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Os direitos do antivalor

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Autor: 01 iv e ir a «Franciscc* de ♦

Título:Os direi-tos do a n t i v a l o r : a econo»

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N ° R e g is tro & E E l/O S _______________


Coleção Zero à Esquerda
Coordenadores: Paulo Eduardo Ar antes e Iná Camargo Costa
- Desafortunados
D a v id S n o w e L e o n A n d erso n
- Diccionario de bolso do almanaque philosophico zero à esquerda
Paulo E d u a r d o A ra n te s
- Os direitos do antivalor
F ran cisc o d e O liv eira
- Em defesa do socialismo
F ern an d o H a d d a d
- Geopolítica do caos
Ig n ac io R a m o n e t
- Globalização em questão
P au l H ir sí e G r a b a m e T h o m p so n
- A ilusão do desenvolvimento
G io v a n i A rrigh i
- Os moedeiros falsos
J o s é L u ís F io ri
-A s metamorfoses da questão social
R o b e rt C a ste l
-Poder e dinheiro: Uma economia política da globalização
M aria d a C o n c e iç ã o T av ares e J o s é L u ís F io ri (O rg s.)
- Terrenos vulcânicos
D o l f O eh ler
- Os últimos combates
R o b e rt K u rz
C o n se lh o E d ito r ia l d a C o le ç ã o Z e ro à E sq u e rd a :
Otília Beatriz Fiori Arantes
Roberto Schwarz
Modesto Carone
Fernando Haddad
Maria Elisa Cevasco
Ismail Xavier
José Luís Fiori
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Oliveira, Francisco de, 1933 -


Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita /
Francisco de Oliveira. -Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

ISBN 85-326-1996-7

1. Capitalismo 2. Social-democracia 3. Valor (Economia) I. Título.

98-0906 CDD-338.521

índices para catálogo sistemático:


1. Antivalor: Teorias: Economia 338.521
I

Francisco de Oliveira

Os direitos do antivalor
A economia política da hegemonia imperfeita

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%fá EDITORA
Y VOZES
Petrópolis
1998
© 1997, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
Internet: http://www.vozes.com.br
Brasil
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reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
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| ® FICHA T ÉC N IC A DA VOZES

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Gilberto M .S. Piscitelli, OFM

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Avelino Grassi

EDITOR
Lídio Perettí
Edgar Orth

DIRETOR INDUSTRIAL
José Luiz Castro

EDITOR D E ARTE
Omar Santos

EDITORAÇÃO
Editoração e organização literária: Otaviano M . Cunha
Revisão gráfica: A. Tavares
Capa e projeto gráfico: Maríana Fix e Pedro Fiori Arantes
Supervisão gráfica: Valderes Rodrigues

ISBN 85-326-1996-7

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LC - divisão tio Satvlç®» Tóaulw*

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Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. em abril de 1998.
À minha mãe, Joventina: Todas as gerações te
chamarão Jovem, Joventina.

Às minhas irmãs: Etelvina, Isabel, Iraci (in memoriam),


Conceição, Assunção, Tercina, Auxiliadora.

Aos meus irmãos: José (in memoriam), Antonio


(in memoriam), Luis (in memoriam), Guido, Tadeu

Para Victor Hugo, alegria.


SUMÁRIO
í w e *

lB W o to i* ** tcoM nnt Jfcdmntstttt açàa I

9 Introdução

17 PARTE I - DO MERCADO AOS DIREITOS

19 O surgimento do antivalor
49 A economia política da social-dem ocrada
63 Políticas do antivalor, e outras políticas
77 PARTE I I - A QUASE HEGEMONIA

79 A m etam orfose da arribaçã


121 Crise e concentração
159 A quase-hegemonia
163 PARTE III - SUAVE É O TERROR

165 Quem tem medo da governabilidade?


197 Além da hegemonia, aquém da democracia
205 A vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda
223 Dominantes e dominados na perspectiva do milênio
IN TRO DU ÇÃO

Devo à generosa insistência de Paulo Arantes, amigo e co­


lega da FFLCH-USIJ um dos coordenadores da Coleção Zero
à Esquerda, a sugestão para organizar e publicar este livro que,
além disso, deve-lhe também o título completo, recebido na
pia batismal de Paulo, sacerdote dos “zero à esquerda” pois,
como todos sabem, somos uma seita. Este livro se inscreve,
orgulhosamente, na linha imprimida à coleção , tentando so-
mar-se aos esforços dos que, no Brasil (e não apenas os que
têm seus trabalhos publicados nesta coleção), buscam manter-
se no terreno crítico de uma produção intelectual que recusa
o “ pensamento único” , o conformismo bem remunerado e os
álibis para transitarem da esquerda para a direita, pretextos
bem pensantes por trás dos quais esconde-se uma nova posição
de classe, “et pour cause” quando proclamam a inexistência
das classes no capitalismo contemporâneo.
Este livro está organizado em três partes. A primeira, Do
mercado aos direitos, contém dois artigos que tratam do tema
da regulação do capitalismo - nada a ver com a chamada Escola
da Regulação, outrora capitaneada por Michel Aglietta - cons­
truída através do conflito e cuja característica básica consti­
tuiu-se , segundo a interpretação adotada, em um trânsito da
produção de mercadorias regulada sobretudo pelo mercado
para aquela cuja regulação dependeu basicamente dos direitos
da cidadania, alicerçados sobretudo nos novos direitos sociais
e do trabalho; é a regulação que o neolíberalismo especifica­
mente combate e trata de destruir. No dizer de um François

9
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Ewald, em seu L’État-Providence, trata-se de um trânsito do


paradigma do contrato mercantil, estruturado nos códigos na-
poleônicos, ao paradigma da segurança, estruturado pelo Wel-
fare State. Ao lado deles comparece uma entrevista à revista
Teoria & Debate, editada pelo Partido dos Trabalhadores, na
qual, pela boa organização e consistência das questões propos­
tas por Fernando Haddad, volto aos temas do antivalor, me­
lhorando, penso eu, a exposição de algumas de suas principais
proposições. Faltaria, para completar essa parte, um capítulo
que dialogasse com as críticas que “ O surgimento do antivalor”
e “A economia política da social-democracia” receberam desde
que foram publicados. Menos que contestar, tratar-se-ia de
contrapor argumentos às críticas feitas por Francisco Paulo
Cipolla, em artigo publicado também na Noivos Estudos Ce-
brap, que remarca, por meio de uma rigorosa sistematizaçao
dos esquemas da produção da mais-valia e da reprodução do
capital em Marx, o impasse das proposições do “ antivalor” .
A segunda crítica foi elaborada por Roseli Martins Coelho em
sua tese de doutorado “ Social-democracia: A chantagem do
capitalismo” , defendida no Departamento de Filosofia da
FFLCH-US1? de cuja banca tive a honra de participar, e que
contesta a tese da desmercantilização da força de trabalho, um
dos elementos estruturantes do antivalor ou das antimercado-
rias, porque, segundo sua argumentação, os recursos fiscais
que constituem os fundos públicos, suportes do antivalor na
minha interpretação, são derivados de impostos pagos pela
população em geral e particularmente pelos trabalhadores.
Não havería, pois, a pretendida desmercantilização, mas, ao
invés, um aumento da exploração e da mais-valia por vias
indiretas. Infelizmente, a tese de Roseli Martins Coelho ainda
não foi publicada, e portanto assumo os riscos de fazer sua
síntese. A terceira crítica recebida partiu de Francisco José
Soares Teixeira, colega da Universidade Federal do Ceará, co­
nhecido do público por seu Pensando com Marx, Editora En­
saio, que em correspondência pessoal transmitiu-me o teor de
sua argumentação; creio que Soares Teixeira ainda não publi­
cou o trabalho. A meu modo de ver, Teixeira critica o uso

10
INTRODUÇÃO

abusivo e incoerente das categorias e conceitos de Marx em o


Antivalor e em A economia política da social-democracia, que
me levaria, inape lave Imente, a juntar-me a Habermas, Offe,
Gorz e outros, esvaziando os conceitos de classe social, de luta
de classes e, por conseqüência, da mais-valia, tornando meu
esquema, portanto, insustentável em si mesmo. São três críticas
poderosas, bem estruturadas, com as quais tentarei dialogar
em artigo em preparo, que possivelmente poderá vir a integrar
este Os direitos do antivalor em alguma segunda edição, se a
recepção desta primeira assim aconselhar. Confesso antecipa­
damente - com a liberdade do diálogo que me permite a gran­
deza dos meus críticos, mas sem me estender, posto que não
apenas ainda não elaborei completamente as possíveis respos­
tas aos mesmos, e, ainda, por decoro intelectual, já que duas
das críticas citadas ainda não são de um domínio público mais
amplo - que a crítica de Teixeira Soares me parece mais exe-
gética, do tipo “ não foi assim que Marx escreveu e pensou” ;
decididamente, não sou marxista para manter-me nos limites
estritos, ainda que formidavelmente amplos, do que Marx pen­
sou. Na melhor tradição do próprio Marx, ele próprio discí­
pulo de algum as das mais im portantes vertentes do
pensamento ocidental, e nas pistas de Antonio Negri, num de
seus mais importantes livros, sou marxista - eis o jurássico -
para ir “ au-delá de M arx” . Além disso, não me incomoda, e
pelo contrário, muito me honra, estar na companhia dos cita­
dos por Teixeira Soares. Faltaria fazer a pergunta de Garrincha,
isto é, se Habermas, Offe, Gorz e outros se sentem confortáveis
com essa companhia? Penso que Teixeira Soares esqueceu-se
de juntar ao grupo Robert Kurz, mas talvez este esteja excluído
do grupo excomungado porque Kurz faz praça da mais rigo­
rosa dialética, embora seja bastante claro que ele, sim, aban­
donou e rejeita explicitamente o Marx da luta de classes.
Acontece, para adiantar um pouco o argumento anti-Teixeira
Soares, que não me considero fazendo parte do honorável
grupo porque, para mim, a perda da centralidade, para aceitar
o argumento de Teixeira Soares, ela própria é produto do con­
flito. Em outras palavras, a perda da centralidade é uma luta

11
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

ideológica, produzida no centro do conflito, claríssima nos


tempos de neoliberalismo e globalização, que se dá pela ten­
tativa de destruição do fundo público como mecanismo regu­
lador do cap italism o . Para tanto, faz-se necessário
“ desproletarizar” a sociedade, isto é, borrar o projeto de classe
da face da terra. Não se trata, pois, nem de determinismo
tecnológico, que, de algum modo, mesmo atenuadamente, en­
contra abrigo no argumento dos autores citados, nem do con­
flito entre o mundo da vida e o mundo sistêmico, ao modo de
Habermas, nem de uma desproíetarização pelo deslocamento
da divisão social do trabalho para os serviços, como em Offe
e em Gorz. Nem muito menos da predominância exclusiva do
“ sujeito autônomo” de Kurz, uma espécie de piloto automático
do capitalismo. Este não percebe que a contradição latente na
obra de Marx , que não permite a resolução do problema que
.ele propõe, é entre o “ sujeito autônomo” hegeliano e a luta
de classes empírica; esta, como realidade dos homens, perturba
a marcha do espírito, que no fundo é o “sujeito autônomo”
de Kurz, construção inteiramente idealista, por mais que ele
brinque de materialista dialético, como volta a fazê-lo em ar­
tigo no Caderno Mais, Folha de S.Paulo, I o de fevereiro de
1998, sobre os cento e cinqüenta anos do O manifesto do
Partido Comunista, de Marx e Engels.
A primeira parte deveria conter, também, uma revisita ao
antivalor, para reavaliá-lo do ponto de vista da hegemonia
neoliberal e dos processos da globalização, que parecem, em
tudo e por tudo, ser o mais cabal desmentido às proposições
centrais do antivalor. Aqui também não terminei ainda esse
tipo de trabalho, que fica prometido também para uma pos­
sível segunda edição deste livro, e faz-se necessária e urgente
mesmo se não houver essa segunda chance. A meu modo de
ver, abusando ainda desta introdução, o processo da globali­
zação acentua as contradições da forma-valor ao limite do
quase-intransponível, e as sucessivas crises das quais não con­
segue sair esse sistema vitorioso, hegemônico e aparentemente
sem negatividade, são as mostras mais aparentes de como a
tentativa neoliberal de desregulação e de destruição das anti-

12
INTRODUÇÃO

mercadorias requerem - hélas\ - o concurso de recursos pú­


blicos cujo crivo não é o valor. Em outras palavras, para cons-
truir-se o pretenso mercado auto-regulado, que dispensaria
tudo o mais a não ser os próprios critérios da lucratividade,
faz-se necessário muito Estado, muitos recursos públicos. Tan­
to no nível internacional quanto no nível nacional, essa con­
tradição salta, cotidianamente, para as páginas dos jornais!
Mas, é evidente que essa antecipação não dá conta de tudo,
questão que pretendemos abordar num futuro bem próximo.
A segunda parte, intitulada A quase-hegemonia muda o
registro do plano mais geral para o plano brasileiro. Ela é
constituída de material sobre as bases materiais e sociais da
dominação burguesa no Brasil, um artigo já antigo sobre os
novos poderes econômicos no Nordeste pós-Sudene, e outro
sobre concentração e centralização industrial em São Paulo.
Os dois foram publicados na Novos Estudos Cebrap, e são
artigos em colaboração com antigos colegas de pesquisa no
Cebrap. Em “A metaformose da arribaçã” , que se refere ao
Nordeste, eu sou o autor principal, enquanto em “ Quem é
quem na indústria paulista” , o autor principal é Alexandre
Comin. Mas, sem roubar nenhuma autoria, não apenas sou
também co-autor do referido artigo, como ele saiu de um pro­
jeto desenvolvido no Cebrap sob minha coordenação e, sem
desmedro dos meus colegas, todos reconhecem minha respon­
sabilidade na inspiração teórica do projeto de pesquisa e do
artigo. Por isso, o utilizo dentro desta coletânea.
A formação dessas bases sociais que, a meu ver, rompem
com a antiga segmentação das burguesias no Brasil, dariam
lugar à constituição de uma hegemonia burguesa, ausência que
pontua os formidáveis conflitos dos últimos sessenta anos de
desenvolvimento capitalista no Brasil, marcados por 35 anos
de ditadura, e uma freqüência de um golpe, dois bem-sucedi­
dos, e os demais não evitados pela reação de forças populares
ou frustrados pela mesma incompletude das rivalidades intra-
burguesas, a cada três anos da história brasileira desde a Re­
volução de Trinta. Essa é a história do país “ cordial” ! Assumi
durante algum tempo essa hipótese, gramsciana, evidentemen­

13
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

te, face ao sucesso da ampla coalizão política liderada por


Fernando Henrique Cardoso, unificando do centro para a di­
reita, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, cuja base estaria no
“ senso comum” das vantagens da estabilidade monetária al­
cançada desde a “ Regência” Fernando Henrique - na síndrome
de abstinência de Itamar - e que catapultou o presidente de
um quase provável limbo político até a presidência (imperial)
da República. Em outras palavras, em termos gramscianos, a
estabilidade monetária havia construído um amplo consenso
que entre dominantes e dominados, e seria esse consenso que
teria soldado, sobre as bases materiais da ampliação da domi­
nação de classe no Brasil, matéria dos dois primeiros artigos-
capítulos, as antigas clivagens burguesas setoriais e regionais.
Essa hipótese é esboçada em entrevista à Folha de S. Paulo,
que é aqui utilizada.
A terceira parte do livro, “ Suave é o terror: O neolibera-
lismo termidoriano no Brasil” , diz logo a que vem. Ela é aberta
com artigo publicado também na Novos Estudos Cebrap, ela­
borado ainda antes da posse de Fernando Henrique Cardoso
na presidência, em que trato de esboçar o que me parecia,
segundo as indicações fornecidas pelos discursos políticos do
então candidato, pelo confronto durante a campanha eleitoral,
em que a cínica utilização da antiga prepotência de classe foi
ostensiva, pelas medidas já tomadas desde sua “ regência” no
Ministério da Fazenda, pelas alianças políticas até a extrema
direita - sim, porque é comum considerar no Brasil a extrema
direita como sendo atributo exclusivo de Paulo Maluf, enquan­
to a “ternura” de Antônio Carlos Magalhães o tem posto a
salvo de ser também incluído no lugar que, talvez mais que a
Paulo Maluf, de direito e de fato lhe pertence - , os rumos do
futuro governo. Parece que os fatos não desmentiram as con­
jecturas discutidas no artigo. Enfim, trata-se, ao incluí-lo aqui,
não de mostrar quaisquer dotes proféticos, mas de procurar
encontrar a coerência do governo, em lugar de permanecermos
surpresos com a conversão de um antigo intelectual e militante
de esquerda.

14
INTRODUÇÃO

Em “Além da hegemonia, aquém da democracia” prepa­


rado para um seminário sobre Gramsci no Instituto de Estudos
Avançados da USI^ rebato minha própria entrevista, que consta
da segunda parte, sobre o governo Fernando Henrique Car­
doso como expressão da hegemonia burguesa, síntese de um
longo processo de ajustes de contas no interior do bloco do­
minante. Minha hipótese, francamente frankfurtiana, é a de
que a burguesia já não trata de integrar os dominados ao seu
próprio campo de significados, mas, ao contrário, o processo
de destituição dos direitos sociais em curso nada tem a ver
com hegemonia, mas com exclusão. Esta tem um sentido forte,
e não apenas economicista, o de inclusão ou exclusão no mer­
cado, um feito que, afinal de contas, a burguesia, mesmo que
se pretenda divina, não pode fazer. Porque mesmo o mendigo
mais miserável consome mercadorias. Mas é no campo dos
direitos, do conflito pelos direitos, da negação dos direitos,
que se plasma o que chamei o totalitarismo neoliberal.
“A vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda” texto-
base da conferência magistral proferida, por obra e graça da
generosidade do meu amigo Emir Sader, no X X I Congresso
da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) e pu­
blicado na revista Praga, elabora o que se anuncia no capítulo
anterior. Na verdade, como acontece comumente na elabora­
ção de coletâneas, o texto da ALAS e revista Praga é anterior
ao do Instituto de Estudos Avançados, que procurou justificar
teoricamente o abandono da hipótese de hegemonia.
A terceira parte se fecha com um texto publicado em O
livro da profecia, editado pelo Senado Federal sob a presidência
do Senador José Sarney, intitulado “ Dominantes e dominados
na perspectiva do milênio: Do Iluminismo para a reação” , no
qual procuro caracterizar o sentido da grande mudança, isto
é, o sentido da história brasileira, desde a Colônia, por sobre
as misérias que o escravismo perpetrou atualizadas, parcial­
mente rompidas ou simplesmente reiteradas, num processo
profundamente contraditório, violento, cruel e sangrento, era
conduzido, apesar de tudo, sob o signo do Iluminismo, com
todas as contradições da modernidade fundamente denuncia­

15
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

das e trabalhadas pela Escola de Frankfurt. “A marca da mal­


dade” orsonwelliana é a mudança do sentido da história para
o signo da reação, do conservadorismo. No Brasil, como no
mundo, o que está em jogo é o próprio sentido da civilização.
Este livro, portanto, desde seu título, quer marcar essa
tentativa de ruptura que se opera à nossa vista e que, como
nos sugeriu Bergman, é como o ovo da serpente. Processa-se
transparentemente e, por isso, parece inofensivo. Dá-se pelos
mesmos mecanismos instituticionais formalmente democráti­
cos: eleições diretas, alternância, poderes constitucionais in­
dependentes. Mas, “ suave é o terror” : essa transparência e essa
formalização mascaram o mais formidável ataque às próprias
instituições e aos direitos de que tem notícia a história brasi­
leira. Digamos, para insistir no refrão do exagero e, assim, não
decepcionar meus críticos, que ele é mais letal do que o próprio
escravísmo: enquanto este foi a forma pela qual a construção
da mercadoria se elaborava sob as chicotadas mercantis, ins­
tituindo regras pelas quais o escravo poderia ultrapassar o es­
tatuto da “ peça” para ingressar no mundo da mercadoria, ou
coletivamente, pela Abolição, ou individualmente, pelas di­
versas formas de alforria, o “suave terror” neoliberal instaura
uma espécie de sociedade de castas, onde os “ intocáveis” não
serão os personagens de Brian de Palma, mas todos os desti­
tuídos dos direitos. Eles serão “ intocáveis” pelos direitos.
Este livro, com toda sua heterogeneidade , incompletude
e mal-balanceamento, sabendo-se “ zero à esquerda”, quer ser
parte da luta dos que pretendem barrar o caminho do “suave
terror” e construir uma alternativa democrática, imperfeita.

5. Paulo, fevereiro de 1998.

16
PARTE I

D O M E R C A D O AO S D IR E IT O S
O Surgimento do Antivalor
Capital, força de trabalho e fundo público*

Introdução: A crise do Estado-providência

Nas últimas cinco décadas, acelerada e abrangentemente,


o que se chama Welfare State, como conseqüência das políticas
originalmente anticíclicas de teorização keynesiana, consti­
tuiu-se no padrão de financiamento público da economia ca­
pitalista. Este pode ser sintetizado na sistematização de uma
esfera pública onde, a partir de regras universais e pactadas,
o fundo público, em suas diversas formas, passou a ser o pres­
suposto do financiamento da acumulação de capital, de um
lado, e, de outro, do financiamento da reprodução da força

* Publicado em Novos Estudos Cebrap, n° 22, outubro de 1988. Sem a


acolhida, quem sabe até entusiasmada demais, e a crítica de Rodrigo Naves,
José Arthur Giannotti, Roberto Schwarz, Luiz Felipe de Alencastro, Geraldo
Müller, Otacílio Nunes, Carlos Alberto Bello, Elson Luciano Pires e Hélio
Correia Lino, este ensaio não aparecería agora, permanecendo, talvez, numa
longa ruminação, que vem desde uma bolsa de pós-doutoramento patroci­
nada pelo CNPq e CNRS em Paris. Para além dos agradecimentos formais
de praxe, meu reconhecimento não pode deixar de ancorar-se nos amigos e
instituições, particularmente, neste caso, minha casa - o CEBRAP-, dispostos
a patrocinar uma discussão que rema contra a maré montante do Moíoch
privatista neoíiberal, o “ai-jesus” de hoje no Brasil, que uma vez mais mostra
como as “idéias podem estar fora do lugar” .

19
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

de trabalho, atingindo globalmente toda a população por meio


dos gastos sociais.
A medicina socializada, a educação universal gratuita e
obrigatória, a previdência social, o seguro-desemprego, os sub­
sídios para transporte, os benefícios familiares (quotas para
auxílio-habitação, salário família) e, no extremo desse espec­
tro, subsídios para o lazer, favorecendo desde as classes médias
até o assalariado de nível mais baixo, são seus exemplos. A
descrição das diversas formas de financiamento para a acumu­
lação de capital seria muito mais longa: inclui desde os recursos
para ciência e tecnologia, passa pelos diversos subsídios para
a produção, sustentando a competitividade das exportações,
vai através dos juros subsidiados para setores de ponta, toma
em muitos países a forma de vastos e poderosos setores estatais
produtivos, cristaliza-se numa ampla militarização (as indús­
trias e os gastos em armamentos), sustenta a agricultura (o
financiamento dos excedentes agrícolas dos Estados Unidos e
a chamada “ Europa Verde” da CEE), e o mercado financeiro
e de capitais através de bancos e/ou fundos estatais, pela uti­
lização de ações de empresas estatais como blue chips, intervém
na circulação monetária de excedentes pelo open market, man­
tém a valorização dos capitais pela via da dívida pública etc.
A descrição anterior pode ser refutada com a afirmação
de que toda a vasta gama de subsídios e auxílios públicos é
constitutiva do próprio capitalismo, não sendo marca especí­
fica do Estado-providência. Mas essa objeção não capta a di­
ferença de natureza entre esses dois momentos. De fato, a
formação do sistema capitalista é impensável sem a utilização
de recursos públicos, que em certos casos funcionaram quase
como uma “ acumulação primitiva” desde o casamento dos
tesouros reais ou imperiais com banqueiros e mercadores na
expansão colonial até a despossessão das terras dos índios para
cedê-las às grandes ferrovias particulares nos Estados Unidos,
a privatização de bens e propriedades da Igreja desde Henrique
VIII até a Revolução Francesa; e, do outro lado, as diversas
medidas de caráter caritativo para populações pobres, de que
as “ Poors Houses” são bem o exemplo no caso inglês. Contra

20
O SURGIMENTO 1)0 ANTIVAI.OK

esse caráter pontual, que dependia ocasionalmente da força e


da pressão de grupos específicos, o financiamento público con­
temporâneo tornou-se abrangente, estável e marcado por re­
gras assentidas pelos principais grupos sociais e políticos.
Criou-se, como já se assinalou, uma esfera pública ou um mer­
cado institucionalmente regulado.
Entretanto, a mudança mais recente das relações do fundo
público com os capitais particulares e com a reprodução da
força de trabalho representa uma “revolução copernicana”.
Para resumir uma tese que se desdobrará ao longo deste ensaio,
o fundo público é agora um ex-ante das condições de repro­
dução de cada capital particular e das condições de vida, em
lugar de seu caráter ex-post, típico do capitalismo concorren­
cial. Ele é a referência pressuposta principal, que no jargão de
hoje sinaliza as possibilidades da reprodução. Ele existe “ em
abstrato” -antes de existir de fato: essa “ revolução copernicana”
foi antecipada por Keynes, ainda que a teorização keynesiana
se dirigisse à conjuntura. A per-equação da formação da taxa
de lucro passa pelo fundo público, o que o torna um compo­
nente estrutural insubstituível.
Do lado da reprodução da força de trabalho, a ascensão
do financiamento público não foi menos importante. “As des­
pesas públicas, destinadas à educação, à saúde, pensões e ou­
tros programas de garantia de recursos aumentaram, durante
os vinte últimos anos no conjunto dos países da OCDE, quase
duas vezes mais rapidamente do que o PIB, e elas foram o
elemento dominante no crescimento das despesas públicas to­
tais: desde 1960, elas passaram, no conjunto dos sete maiores
países da OCDE, de cerca de 14% a mais de 24% do PIB”
(“ Dépenses sociales: érosion ou evolution?”, UObservateur de
1 ’OCDE, n° 126, janvier 1984, OCDE, Paris, trad. do autor).
Essa média resultou de evoluções, país por país, de 19% para
26% na República Federal da Alemanha, de 16% para 25%
na França, de 16% para 23% na Itália, de 16% para 30% na
Holanda, de 16% para 28% na Bélgica; entre 1969 e 19 8 1,
de 18% para 27% na Dinamarca e de 15 % para 22% na In­
glaterra. Entre 1965 e 19 8 1, as despesas sociais públicas, como

21
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

porcentagem da renda disponível domiciliar, passaram de 28%


para 46% na República Federal da Alemanha, de 24% para
42% na Holanda, de 25% para 33% na França, de 22% para
27% na Itália, de 22% para 33% na Bélgica e, na Inglaterra,
entre 1969 e 19 8 1, de 24% para 33% . Quer dizer que em sete
grandes países industrializados, nata do Primeiro Mundo, com
exceção dos Estados Unidos e do Japão, o salário indireto tem
uma importância, em relação ao salário direto (assimilando a
renda domiciliar a este conceito), que vai de um mínimo de
33% ao máximo de 45%, até o último ano para o qual se
dispõe de dados (Ch. André, “ Les evolutions spécifiques des
diverses composants du salaire indirect à travers de la crise” ,
Critiques de EÉconomie Politique, h. 26-27, janvier-juin, 1984,
Paris). Aliás, a transferência para o financiamento público de
parcelas da reprodução da força de trabalho é uma tendência
histórica de longo prazo no sistema capitalista; a expulsão
desses custos do “ custo interno de produção” e sua transfor­
mação em socialização dos custos foi mesmo, em algumas so­
ciedades nacionais, uma parte do percurso necessário para a
constituição do trabalho abstrato; nas grandes economias e
sociedades capitalistas contemporâneas, o Japão parece ser a
única exceção a esse respeito, no momento de decolagem da
industrialização japonesa, e, pelo menos, até há muito pouco
tempo: o específico “ exército cativo de mão-de-obra” ligado
a cada empresa - pelo menos às grandes empresas - parece
um caso insólito na tradição capitalista.
O crescimento do salário indireto, nas proporções assina­
ladas, transformou-se em liberação do salário direto ou da
renda domiciliar disponível para alimentar o consumo de mas­
sa. O crescimento dos mercados, especialmente do de bens de
consumo duráveis, teve, portanto, como uma de suas alavancas
importantes, o comportamento já assinalado das despesas so­
ciais públicas ou do salário indireto. Modificações dessa monta
no rapport salariel são, pois, como tem sido repetidamente
assinalado pelos autores da corrente teórica da regulação (MÍ-
chel Aglietta, Robert Boyer, Alain Lipietz, entre outros), fato­
res dos mais importantes no longo período de expansão, que

22
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

vai desde os fins da II Guerra Mundial até hoje. Noutras pa­


lavras, para a ascensão do consumo de massa, combinaram-se
de uma forma extraordinária o progresso técnico, a organiza­
ção fordista da produção, os enormes ganhos de produtividade
e o salário indireto, estes dois últimos fatores compondo o
rapport salariel. A presença dos fundos públicos, pelo lado,
desta vez, da reprodução da força de trabalho e dos gastos
sociais públicos gérais, é estrutural ao capitalismo contempo­
râneo, e, até prova em contrário, insubstituível.
O padrão de financiamento público do Estado-providên-
cia é o responsável pelo continuado déficit público nos grandes
países industrializados. E este padrão que está em crise, e o
termo “ padrão de financiamento público” é preferível aos ter­
mos usualmente utilizados no debate, tais como “estatização”
e “ intervenção estatal” . O primeiro destes últimos leva a supor
que a propriedade é crescentemente estatal, o que está muito
longe do real, e o segundo induz a pensar-se numa intervenção
de fora para dentro, escamoteando o lugar estrutural e insubs­
tituível dos fundos públicos na articulação dos vetores da ex­
pansão econômica. Uma série de 19 7 1 a 1985 (International
Financial Statistics - Yearbook 1987. International Monetary
Fund, Washington) mostra que o déficit público nos países
industrializados (incluindo EUA, Canadá, Austrália, Japão,
Nova Zelândia, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Fran­
ça, Alemanha Federal, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda,
Noruega, Espanha, Suécia, Suíça e Inglaterra), cresceu, média
desses países, de 2,07% do PIB em 19 7 2 para 4,93% do PIB
em 1984. Os Estados Unidos situaram-se na média, enquanto
outros países, como Canadá, Nova Zelândia, Bélgica, Irlanda,
Itália, Holanda e Suécia ultrapassaram a média entre uma e
três vezes. E interessante notar que a média do déficit público
como porcentagem do PIB foi geralmente dos mesmos valores
em quase todas as partes do mundo, por grupos de países, o
que sugere que as internacionalizações produtiva e financeira
estão obrigando praticamente todos os países a adotarem o
padrão de financiamento público do Estado-providência.

23
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

A crise do Estado-providência - e o termo freqüentemente


é mais associado à produção de bens sociais públicos e menos
à presença dos fundos públicos na estruturação da reprodução
do capital, revelando pois um indisfarçável acento ideológico
na crítica à crise - tem levado à “ crise fiscal do Estado” nos
termos de James 0 ’Connor (The Fiscal Crisis o f the State. St.
Martin’s Press, New York, 1973) devido à disputa entre fundos
públicos destinados à reprodução do capital e fundos que fi­
nanciam a produção de bens e serviços sociais públicos; ou,
na versão de Lester Thurow, a um impasse ricardiano, jogo de
soma zero, em que “ o que um perde é o que o outro ganha”
(The Zero-Sum Society. Basic Books, New York, 1981).
As receitas dos governos centrais como porcentagem do
PIB têm se elevado sistematicamente desde níveis de 23% em
19 7 1 a 27% em 1984 (International Financial Statistics- Year-
book 1987, IMF) para o conjunto dos países industrializados,
com os níveis máximos de 4 5 ,1% na Bélgica, 42,23% na Fran­
ça, 4 3 ,1% na Irlanda, 40,8% na Itália, 52,2% na Holanda,
42,8% na Noruega e 4 1,4 % na Suécia. Paradoxalmente, paí­
ses mais potentes como os Estados Unidos estão num nível
de 30% , a Alemanha Federal situa-se em 29% e a Inglaterra
em 3 8 ,1% , esses últimos dados referindo-se a 1984. Os gas­
tos dos governos centrais situam-se, média do conjunto dos
países mais industrializados, acima de 1/3 do PIB, de novo
com uma grande heterogeneidade, ressaltando-se que os Es­
tados Unidos mantêm-se em torno da média. Não há dados
para o Japão, tanto no que se refere às receitas governamen­
tais quanto às despesas.
Ao lado do déficit público e das receitas e despesas estatais
como proporção do PIB - pelo menos 1/3 dos PlBs mais im­
portantes transitam pelos tesouros nacionais -, as proporções
e o lugar da dívida pública dos principais países confirmam o
lugar estrutural do fundo público na sociabilidade geral. Nos
últimos anos, de 1982 a 1986, variando de país a país, segundo
o último dado disponível nas International Financial Statistics
(1987, IMF), nos níveis mais baixos da dívida pública interna
e externa como porcentagem do PIB agrupavam-se países

24
O SURGIMENTO DO ANTIVAI.OK

como Bélgica (10,2% ) e Suíça (11,6 % ); no patamar imediata­


mente posterior, países como a Alemanha Federal (20,6%) e
França (22,7%); no patamar posterior, países como Suécia
(56,6%), Flolanda (55,5%), EUA (43,4%), Inglaterra (47,8%)
e Japão (53,8%); nos níveis máximos, países como Nova Ze­
lândia (73,1% ) e Itália (81,2% ), Flá, pois, uma razoável dis­
persão, mas importa notar que países da talha dos EUA, Japão,
Inglaterra, Holanda e Suécia situaram-se num patamar em que
a dívida pública corresponde à metade de seus produtos inter­
nos brutos. Salvo Alemanha Federal, França e Suíça, que se
situam nos segundo e primeiro níveis anteriormente descritos,
os países em que a dívida é metade do PIB são, indiscutivel­
mente, as mais notáveis lideranças industriais, tecnológicas e
financeiras do capitalismo contemporâneo. A Suíça é reconhe­
cidamente uma exceção, pela concentração de recursos finan­
ceiros de outros países no seu sistema bancário e financeiro.
Ainda que não perfeita, há uma indisfarçáveí relação entre a
dívida pública dos países mais importantes, suas posições no
sistema capitalista e suas dinâmicas.
O argumento da direita é que essa estatização dos resulta­
dos da produção social levaria a uma espécie de socialismo
burocrático e estacionário, diminuindo, de um lado, os recur­
sos privados destinados ao investimento e, de outro, pela ele­
vação da carga fiscal sobre pessoas e famílias, diminuindo a
propensão para o consumo; utilizando-se o esquema keyne-
siano da depressão da demanda efetiva tanto por parte das
empresas quanto das famílias, a estatização dos resultados da
produção social teria tudo para conduzir o capitalismo a um
estado estacionário, congruente com a previsão estagnacionis-
ta da maioria dos clássicos da economia, sobretudo Smith,
mais resolutamente Ricardo e secundariamente Stuart Mill.
O coração do impasse ricardiano de Thurow ou da “crise
fiscal” de 0 ’ Connor - e as versões da direita são menos teo­
rizadas, salvo Hayek - não é de nenhum modo uma tendência
estagnacionista. E apenas e esse apenas é muito forte, a ex­
pressão da abrangência da socialização da produção, num sis­
tema que continua tendo como pedra angular a apropriação

25
OS DIREITOS DO ANT1VALOR

privada dos resultados da produção social. Mas, de certo


modo, ela expressa também a retração da base social da ex­
ploração, em termos marxistas, questão que será desdobrada
mais adiante.
O rompimento do círculo perfeito do Estado-providência,
em termos keynesianos, é devido, em primeira instância, à
internacionalização produtiva e financeira da economia capi­
talista. A regulação keynesiana funcionou enquanto a repro­
dução do capital, os aumentos de produtividade, a elevação
do salário real, se circunscreveram aos limites - relativos, por
certo da territorialidade nacional dos processos de interação
daqueles componentes da renda e do produto. Deve-se assi­
nalar, desde logo, que aquela circuiàridade foi possível graças
ao padrão de financiamento público do Welfare State, um dos
fatores, entre outros aliás, que levaram à crescente internacio­
nalização. Ultrapassados certos limites, a internacionalização
produtiva e financeira dissolveu relativamente a circularidade
nacional dos processos de retro-alimentação. Pois des-territo-
rializam-se o investimento, e a renda, mas o padrão de finan­
ciamento público do Welfare State não pôde - nem pode, até
agora - des-territorializar-se. Em outras palavras, a circulari­
dade anterior pressupunha ganhos fiscais correspondentes ao
investimento e à renda que o fundo público articulava e finan­
ciava; a crescente internacionalização retirou parte dos ganhos
fiscais, mas deixou aos fundos públicos nacionais a tarefa de
continuar articulando e financiando a reprodução do capital
e da força de trabalho. Daí que, nos limites nacionais de cada
uma das principais potências industriais desenvolvidas, a crise
fiscal ou “ o que um ganha é o que o outro perde” emergiu na
deterioração das receitas fiscais e parafiscais (previdência so­
cial, por exemplo), levando ao déficit público. O anterior fica
muito claro quando se pensa numa multinacional com antenas
em vários países: o país-sede original não é contemplado com
retornos fiscais e parafiscais proporcionais ao investimento e
renda (inclusive salários) gerados alhures por filiais das mul­
tinacionais, enquanto o financiamento público que tenta arti­
cular a demanda efetiva continua circunscrito a sua territo-

26
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

rialidade. Em países como os Estados Unidos, certas atividades


das multinacionais, substituindo suas próprias produções in­
ternas, deixam ao fundo público nacional os encargos de fi­
nanciar a reprodução do capital e da força de trabalho (y
compris o seguro-desemprego), o que gera uma crescente in­
compatibilidade entre o padrão de financiamento público e a
internacionalização produtiva e financeira. Nasceu exatamen­
te dos países em que essa performance de suas próprias mul­
tinacionais é mais acabada, Estados Unidos e Inglaterra, a
reação conservadora contra o Estado-providência, pondo o
acento nos gastos estatais para a produção de bens e serviços
sociais públicos. A reação Thatcher e Reagan, que, procurando
cortar ou diminuir a carga fiscal e parafiscai (impostos e pre­
vidência social), fiou-se num comportamento neovitoriano de
empresas e famílias, utilizando - presumia-se - o alívio daque­
las cargas para fazer voltar à tona o impulso de investimento
e o consumo privados.

O fundo teórico da crise

O padrão de financiamento público do Welfare State


operou uma verdadeira “ revolução copernicana” nos fun­
damentos da categoria do valor como nervo central tanto
da reprodução do capital quanto da força de trabalho. No
fundo, levado às últimas conseqüências, o padrão do finan­
ciamento público “implodiu” o valor como único pressu­
posto da reprodução ampliada do capital, desfazendo-o
parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da
sociabilidade em geral.
Na medida em que o padrão de financiamento público
constituiu-se em uma verdadeira esfera pública, as regras da
reprodução tornaram-se mais estáveis porque previsíveis, e da
competição anárquica emergiu uma competição segmentada.
Por certo, não deixou de haver competição no capitalismo,
mas essa se dá dentro de regras preestabeleddas e consensuais.
Essa universalização tem efeitos paradoxais, segmentando a

27
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

competição em pelo menos dois níveis; o primeiro, o circuito


dos oligopólios, e o segundo, o circuito dos capitais competi­
tivos. A rigor, o fundo público é um Ersatz do capital finan­
ceiro, indo além da teorização proposta por Hilferding.
Na forma dos títulos públicos e dos vários tipos de incen­
tivos e subsídios, é o fundo público que agiliza a circulação
do capital, e em muitos casos cumpre o papel da famosa
ponte invisível keynesiana entre quem poupa e quem inves­
te. Essa função demarca um setor oligopolista e um setor
concorrencial “ primitivo” (que não tem acesso ao fundo
público) na tradição teórica de Labini. Do ponto de vista da
teoria marxista, dissolveu-se a tendência à formação de uma
taxa média de lucro, para dar lugar, no mínimo, a duas taxas
médias: a do setor oligopolista e a do setor concorrencial
“ primitivo” . E o fundo público é decisivo na formação da
taxa média de lucro do setor oligopolista, e pelo negativo,
pela sua ausência, na manutenção de capitais e capitalistas
no circuito do setor concorrencial “ primitivo” .
Imbricando-se diretamente na determinação da taxa mé­
dia de lucro do setor oligopolista, o fundo público influi de­
cisivamente, através de outros recortes, sobre a taxa de lucro
de setores inteiros e até de ramos especiais da reprodução no
interior do setor oligopolista. Recortes como “ prioridades na­
cionais de segurança” , “ pesquisa de ponta” , “ programas espe­
ciais de produção”, e inúmeros outros, tais como a sustentação
de produções agrícolas excedentárias, transformaram mais
uma vez a competição segmentada. O papel do fundo público
como pressuposto especial dessa segmentação retirou o capital
constante e o variável da função de parâmetro-pressuposto, e
colocou em seu lugar a relação de cada capital em particular
com o próprio fundo público. Em outras palavras, a taxa de
lucro de setores de ponta como a aeronáutica, as atividades
industriais espaciais, a informática, tem que se referir simul­
taneamente aos seus próprios capitais e à fração dos fundos
públicos utilizados para sua reprodução; isto tem um efeito
paradoxal, pois enquanto aumenta a taxa de lucro de cada
capital em particular (pois na equação particular a fração do

28
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

fundo público utilizada não tem remuneração ou quando a


tem é francamente subestimada) diminui a taxa de excedente
global da economia.
A rigor, trata-se de uma relação ad hoc entre o fundo pú­
blico e cada capital em particular. Essa relação ad hoc leva o
fundo público a comportar-se como um anticapital num sen­
tido muito importante: essa contradição entre um fundo pú­
blico que não é valor e sua função de sustentação do capital
destrói o caráter auto-reflexivo do valor, central na constitui­
ção do sistema capitalista enquanto sistema de valorização do
valor. O valor, não somente enquanto categoria central, mas
práxis do sistema, não pode, agora, reportar-se apenas a si
mesmo: ele tem que necessariamente reportar-se a outros com­
ponentes; no caso, o fundo público, sem o que ele perde a
capacidade de proceder à sua própria valorização. O fato de
que, finalmente, a mesma expressão monetária recubra o in­
terior dessa contradição, apresentando-a externamente como
uma unidade, não deve levar a enganos: trata-se, no caso, da
“ indiferença da moeda do banco central” , que expressa apenas
uma relação entre devedores e credores, subsumindo nesta a
moeda como expressão do tempo de trabalho médio social­
mente necessário.
Do lado da reprodução da força de trabalho, que toma a
forma do financiamento público de bens e serviços sociais pú­
blicos extensivos na prática à maioria da população, as políti­
cas anticíclicas aceleradas e universalizadas - a rigor, a
social-democracia alemã e inglesa, e mesmo o Front Populaire
francês de 1936 e o New Deal rooseveltiano as precederam a
partir do fim da II Guerra Mundial foram no sentido da cres­
cente participação do salário indireto no salário total. Esses
bens e serviços funcionaram, na verdade, como antimercado-
rias sociais, pois sua finalidade não é a de gerar lucros, nem
mediante sua ação dá-se a extração da mais-valia. Dizer, como
a maior parte da crítica marxista tem dito, que contribuem
para aumentar a produtividade do trabalho, é quase um truís-
mo, posto que qualquer gasto de bem-estar deve potencial­
mente melhorar as condições de vida.

29
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

A questão teórica que se põe vai mais longe: recuperan­


do-se Sraffa (Production o f Commodities by Means o f Com-
modities) é possível dizer que o salário - mercadoria-padrão
para Sraffa - agora data, determina a produção de um sem-
número de bens e serviços públicos sociais, e vai mais além,
atingindo mesmo a produção de bens e serviços explorados
privadamente. De fato, indexando os benefícios sociais ao sa­
lário, o que se está fazendo é tornar o salário o parâmetro
básico da produção de bens e serviços sociais públicos. Isto é
o oposto da extração da mais-valia e, conseqüentemente, em
sua derivação, da determinação da taxa de lucro, onde os pa­
râmetros não apenas do cálculo mas da razão da mais-valia
residem na relação capital constaiite-capital variável. Se to­
marmos qualquer dos bens e serviços financiados e/ou produ­
zidos pelo fundo público, ver-se-á que seu preço é determinado
como uma quota-parte do salário: isto é, a tarifa de um serviço
público como o metrô é calculada tendo-se como referência
uma parte do salário destinada a gastos de transporte. E, em
muitos casos, na fixação de preços de bens básicos produzidos
pelo próprio setor privado, o que se tem em vista é que seu
preço represente uma certa porcentagem dos gastos dos orça­
mentos familiares.
A dialética instaurada pela função do fundo público na
reprodução do capital e da força de trabalho levou a inusitados
desdobramentos. Há, teoricamente, uma tendência à des-mer- ,
cantilização da força de trabalho pelo fato de' que os compo­
nentes de sua reprodução representados pelo salário indireto
são antimercadortas sociais. De um lado, isto representou uma
certa homogeneização do mercado e do preço da força de
trabalho, levando à autonomização do capital constante, de
que já falava Belluzzo (“A transfiguração crítica” , in Estudos
CEBRÁP n. 24), e desatando, por sua vez, a reprodução do
capital das amarras de uma antiga dialética em que as inovações
técnicas se davam, sobretudo, como reação aos aumentos do
salário direto real. A brecha para a inovação técnica, despara-
metrizada do salário real total, posto que este agora tem no
salário indireto um componente não desprezível - no mínimo

30
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

um terço do salário total deslanchou um processo de ino­


vações tecnológicas sem paralelo.
E simultânea a dupla operação de presença do fundo pú­
blico na reprodução da força de trabalho e do capital; não se
pode, neste caso, buscar resolver o velho enigma da precedên­
cia “ da galinha ou do ovo” , mas o fato é que houve uma dupla
des-parametrização; tanto em relação ao valor ou preço da
força de trabalho quanto em relação aos valores dos capitais
originais, o capital se move agora numa relação em que o preço
da força de trabalho é indiferente do ponto de vista das ino­
vações técnicas e o parâmetro pelo qual se mede a valorização
do capital é agora um mix, em que o fundo público não entra
como valor. A contradição, pois, é que se assiste a uma elevação
da rentabilidade, ou das taxas de retorno dos capitais, gerando
a enorme solvabilidade e liquidez dos setores privados, en­
quanto o próprio fundo público dá visíveis mostras de exaus­
tão como padrão privilegiado da forma de expansão capitalista
desde os fins da II Guerra Mundial.
Nesse rastro, inclusive as predições de pauperização, en­
tendida absoluta ou relativamente, não se confirmaram. O que
se assiste é uma expansão do consumo de todas as classes nos
países mais desenvolvidos, e uma renovada e inusitada expan­
são do investimento. É por essa razão que os esquemas key-
nesianos já não são capazes de explicar os fenômenos con­
temporâneos, comprimidos entre as tenazes de uma oposição
entre propensão para consumir e propensão para poupar (ou
investir); sem incluir o fundo público em sua autonomia rela­
tiva, o esquema keynesiano tende a perder sua capacidade
paradigmática. O que torna o fundo público estrutural e in­
substituível no processo de acumulação de capital, atuando
nas duas pontas de sua constituição, é que sua mediação é
absolutamente necessária pelo fato de que, tendo desatado o
capital de suas determinações autovalorizáveis, detonou um
agigantamento das forças produtivas de tal forma que o lucro
capitalista é absolutamente insuficiente para dar forma, con­
cretizar, as novas possibilidades de progresso técnico abertas.
Isto somente se torna possível apropriando parcelas crescentes

31
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

da riqueza pública em geral, ou mais especificamente, os re­


cursos públicos que tomam a forma estatal nas economias e
sociedades capitalistas. A massa de valor em mãos dos capita­
listas, sob a forma de lucro, de cuja abundância a circulação
monetária contemporânea é a expressão, não deve iludir: ape­
sar da enorme liquidez, essa massa de valor é absolutamente
insuficiente para plasmar as novas possibilidades abertas em
acumulação de capital concreta.
O resultado desse longo processo é que o fundo público
passou a vincular-se a finalidades determinadas aprioristica-
mente, e ainda mais, pouco tem a ver com a taxa de lucro
original de cada capital. A rigor, é a partir da alocação de uma
parcela do fundo público que a taxa de retorno ou seu equi­
valente, a taxa de lucro, é calculada. Concebido como instru­
mento anticíclico, tornado permanente e insubstituível, essa
rigidez do fundo público escapa às regulações nacionalmente
territorializadas, Ela torna relativamente inócuas as políticas
econômicas em muitos aspectos, dando lugar à soberania das
políticas monetárias - e neste caso, apenas as de alguns países
- posto que a indiferença da moeda (Aglietta e Orléans. La
violence de la monnaie. PUF, Paris) do banco central é, no
fundo, a única abrangência que cobre tanto o setor de econo­
mia de mercado quanto o setor hors marché (a economia pú­
blica de bens e serviços sociais); e cobre precisamente porque,
em não sendo mais a moeda a expressão do tempo de trabalho
socialmente necessário - erodida nessa função pelo anticapital
e pela antimercadoria -, terminou por ser apenas a expressão
monetária - mas não necessariamente de valor - de uma rela­
ção entre credores e devedores.

Um desdobramento teórico particular ao campo marxista

Em termos marxistas, a função do fundo público tende a


desfazer os conceitos e realidades do capital e da força de
trabalho, esta última enquanto mercadoria, ou nos termos de
Sraffa, a mercadoria-padrão, que determina o valor e o preço

32
MEC - OrV
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8EÇAO DE RE(?E$TRO — LIVROS
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de qualquer outra (relevados os problemas da conversão de
valor em preços, que aliás com o fundo público tornam-se
praticamente intraduzíveis). A equação original de Marx é a
de D-M-D’ no que se refere ao circuito do capital-dinheiro.
O fundo público funcionando como pressuposto geral de cada
capital em particular transforma essa equação em anti-D-D-
M-D!(-D), sendo que o último termo volta a repor-se no início
da equação como anti-D, isto é, uma quantidade de moeda
que não se põe como valor. O último termo é uma quantidade
de moeda que tem como oposição interna a fração do fundo
público presente nos resultados da produção social, que se
expressa em moeda, mas não é dinheiro.
Do ponto de vista do circuito da mercadoria, a equação
original de Marx era a de M-D-M, e o fundo público como
estrutura imbricante transforma a equação para anti-M-M-D-
M ’ (-anti-M), na qual os dois primeiros termos significam as
antimercadorias e as mercadorias propriamente ditas, e os dòis
últimos significam a produção de mercadorias e a produção
de antimercadorias. No fundo, a segunda equação fica subsu-
mida na primeira. As conseqüências teóricas dessa transfor­
mação vão se expressar na composição do capital e na taxa de
exploração. A composição do produto, na equação C + V + M ,
sofre a seguinte transformação: -C +C +V (-V )+M , na qual a
taxa de mais-valia se reduz pela presença, na equação, das
antimercadorias sociais que funcionam como um Ersatz do
capital variável. Isto quer dizer que na equação geral do pro­
duto, a taxa de mais-valia cai, enquanto na equação de cada
capital particular ela pode, e geralmente deve, se elevar.
Essa transformação repõe o problema, clássico na teoria
marxista, da tendência declinante da taxa de lucro. De fato,
em perspectiva estatística, procurando medir-se o aumento do
capital constante e o declínio do capital variável a partir da
soma dos capitais particulares, chega-se a uma incógnita sem
solução. Porque de fato já não se pode realizar teoricamente
essa soma. Tanto o capital constante não pode ser uma soma
dos capitais particulares, pois aí existe uma oposição operada
pelo fundo público para viabilizar a acumulação de cada capital
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

em particular, quanto não se pode mais medir o capital variável


sem considerar o salário indireto como uma forma oposta ao
salário direto (por isso, na equação transformada, o segundo
V tem sinal negativo). A diferença desta postulação com a
“ queima de excedentes” da formulação teórica do capitalismo
monopolista de Estado, é que o fundo público não é capital,
não podendo, senão nominalmente, senão monetariamente,
ser identificado com ele; além disso, o fundo público não opera
como tendência contrarrestante à queda da taxa de lucro: de
fato, ele é uma expressão dela, e sua necessidade estrutural
insubstituível não se dá porque o capitalismo esgotou as pos­
sibilidades de acumulação; ao contrário, o fundo público com­
parece como viabilizador da concretização das oportunidades
de expansão, em face da insuficiência do lucro frente ao avas-
salador progresso técnico. Em suma, já não se pode falar mais
de “capital social total” , mas apenas de “capital em geral” . A
conseqüência teóríca mais profunda é que a lei da tendência
declinante da taxa de lucro se afirma pela retração da base
social global de exploração, enquanto, se tomarmos a velha
fórmula em seu sentido original, a base social de exploração
se ampliaria (se somássemos as antimercadorias com o salário
real direto), o que tornaria o patadigma da tendência decli­
nante inteiramente inócuo. Nos termos de Kuhn, o poder ex­
plicativo do paradigma teria perdido toda sua potência, e por
conseqüência ameaçaria o corpo teórico marxista por inteiro
(Thornas Kuhn. A estrutura das revoluções científicas. Perspec­
tiva, São Paulo).
O caminho percorrido pelo sistema capitalista, e particu­
larmente as transformações operadas pelo Welfare State, repõe
a velha questão dos limites do sistema. A famosa previsão de
Marx do fim do sistema foi lida literalmente, e interpretada
comumente como uma catástrofe ao estilo de Sansão derru­
bando as colunas do templo. Ora, a história do desenvolvi­
mento capitalista tem mostrado, com especial ênfase depois
do Welfare State, que os limites do sistema capitalista só podem
estar na negação de suas categorias reais, o capital e a força
de trabalho. Neste sentido, a função do fundo público no tra-

34
O SURGIMENTO DO ANT1 VALOR

vejamento estrutural do sistema tem muito mais a ver com os


limites do capitalismo, como um desdobramento de suas pró­
prias contradições internas. Dizendo em outras palavras, as
transformações mais importantes do sistema capitalista se
dão no coração, no núcleo duro das mais importantes eco­
nomias capitalistas. O fundo público, em resumo, é o anti-
valor, menos no sentido de que o sistema não mais produz
valor, e mais no sentido de que os pressupostos da reprodu­
ção do valor contêm, em si mesmos, os elementos mais fun­
damentais de sua negação. Afinal, o que se vislumbra com
a emergência do antivalor é a capacidade de passar-se a outra
fase, em que a produção do valor, ou de seu substituto, a
produção do excedente social, toma novas formas. E essas
novas formas, para relembrar a asserção clássica, aparecem
não como desvios do sistema capitalista, mas como necessi­
dade de sua lógica interna de expansão.
Permanece, no campo marxista, uma interrogação sobre
o fetiche da mercadoria. O percurso teórico até aqui sumari-
zado tem, como necessidade intrínseca de seu desdobramento,
a anulação do fetiche da mercadoria, se esta categoria está se
desfazendo no sistema capitalista; principalmente se a força
de trabalho está se desvestindo das determinações da merca­
doria. De fato, a des-mercantilização da força de trabalho ope­
ra no sentido da anulação do fetiche: cada vez mais, a
remuneração da força de trabalho é transparente, no sentido
de que seus componentes são não apenas conhecidos, mas
determinados politicamente. Tal é a natureza dos gastos sociais
que compõem o salário indireto, e a luta política se trava para
fazer corresponder a cada item do consumo uma partida cor­
respondente dos gastos sociais. Não há fetiche, neste sentido;
sabe-se agora exatamente do que é composta a reprodução
social. Ou, em outras palavras, a fração do trabalho não-pago,
fonte da mais-valia, se reduz socialmente. Mas, parecería iro­
nia dizer que o mundo contemporâneo é completamente des-
fetichizado, pois a sociedade de massas parece a fetichização
elevada à enésima potência. Pode-se, apenas, sugerir que no
lugar do fetiche da mercadoria colocou-se um fetiche do Es­

35
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

tado, que é finaímente o lugar onde se opera a viabilidade da


continuação da exploração da força de trabalho, por um lado,
e de sua des-mercantilizaçao, por outro, escondendo agora o
fato de que o capital é completamente social.
Importa também observar que o Estado de bem-estar e
suas,instituições não são, agora, o “ horizonte intransponível” ;
para além dele bate, latente, um modo social de produção
superior. Resta resolver um problema, intacto, que é o da apro­
priação dos resultados desse modo social; por enquanto, a
capacidade de reprodução desatada pela atuação do fundo
público leva água ao moinho dos proprietários de capital,
numa situação em que este mesmo capital já é fundamental­
mente socializado. Isto posto, a constituição das classes sociais
também não atingiu nenhum umbral intransponível; não há
uma “ eternização” nem das classes nem das relações sociais.
Mas, decididamente, o acesso e o manejo do fundo público
são o nec plus ultra das formas sociais do futuro.
O que de fato se transformou foi a relação social de pro­
dução; na literatura marxista, a relação social de produção foi
ganhando cada vez mais uma conotação restritiva, que termi­
nou por assumir como essência aquilo que para Marx era apa­
rência (o salário como ocultação da apropriação pelos
capitalistas do valor de uso do trabalho que a força de trabalho
tem). Dessa forma, sobretudo após a crítica leninista da so-
cial-democracia e da derrocada desta à época do fascismo, o
problema da transformação do capitalismo em socialismo ti­
nha como condição prévia a derrocada da relação social de
produção em sentido restrito, quase no sentido de relação de
fábrica.
Mas a relação social de produção não se mede apenas nem
pela presença do salário nem da propriedade privada; ela in­
clui, além disso, todas as esferas necessárias para a reprodução
do capital, como a circulação, a distribuição e o consumo,
além da esfera da produção. A “ revolução copernicana” da
relação social de produção, antevista pela social-democracia
alemã de antes do nazismo - o renascimento político da so­
cial-democracia não produziu nenhuma nova perspectiva dos

36
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

problemas teóricos principais - é a presença do fundo público


na reprodução simultânea do capital e da força de trabalho.
O bloqueio leninista, baseado no próprio Marx - ver a Critica
ao Programa de Gotha - relegou para um segundo plano quais­
quer outras mudanças na relação gíobal-social da produção.
Ora, o desenvolvimento do Welfare State é justamente a revo­
lução nas condições de distribuição e consumo, do lado da
força de trabalho, e das condições de circulação, do lado do
capital. Os gastos sociais públicos mudaram as condições da
distribuição dentro de uma relação social de produção que
parecia ter permanecido a mesma; o fundo público como fi­
nanciador, articulador e “ capital em geral” mudou as condi­
ções da circulação de capitais, Estas transformações penetram
agora a esfera da produção pela via da reposição do capital e
da força de trabalho, transformados nas outras esferas. E, no
sentido de Giannotti (Trabalho e reflexão, sobretudo o capítulo
“Formas da sociabilidade capitalista” ), a sociabilidade não se
constrói, apenas, pela projeção sobre os outros setores da vida
social dos valores do mercado, mas pelo contrário, tem nos
valores antimercado um de seus traços principais. Em outras
palavras, no terreno .marcadamente da cultura, da saúde, da
educação, são critérios antimercado os que fundamentam os
direitos modernos. E verdade que nestes tempos de reação
conservadora, em que parece ser o mercado, de novo, o único
critério válido, tal posição tem tudo para parecer romântica
ou fora da realidade.

Esfera pública e democracia

Mais que uma coincidência, a construção de uma esfera


pública, que é igual à “ economia de mercado sociaímente re­
gulada” (termo cunhado pela social-democracia alemã de antes
da ascensão do nazismo) identificou-se ou se ergueu sobre as
bases da regulação keynesiana. Esta esfera pública é, nos países
capitalistas, sinônimo da democracia, simultânea ou concomi­
tante, e ao longo do tempo os avanços sociais que mapeavam

37
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

o acesso e a utilização do fundo público entraram num pro­


cesso de interação com a consolidação de instituições políticas
democráticas. Para todos os efeitos, pode-se considerar a cons­
trução da esfera pública e a democracia representativa como
irmãs siamesas.
Muitos críticos do Welfare State têm observado que, no
fundo, a resultante foram bastiões corporativistas, com cada
uma das classes sociais ou grupos específicos defendendo fe­
rozmente seus interesses, que não se espraiam para os outros,
confinando a gestão do Estado e dos interesses sociais a guetos
particulares, a partir dos quais políticas de caráter geral tor­
nam-se impossíveis. A direita vai mais longe, e aponta os di­
reitos lato sensu trabalhistas como obstáculos ao investimento
e à acumulação. Trata-se de uma visão conservadora, que re­
vela a aspiração de uma des-regulação total, a volta às práticas
de uma acumulação selvagem e o retorno das classes sociais,
neste caso os assalariados, à mera condição de pura força de
trabalho. Interpretações mais ingênuas vêem nas instituições
do Welfare State a harmonia total, a desaparição das classes
sociais, enquanto as interpretações mais pessimistas, vindas
estas sobretudo da esquerda comunista, viram nas instituições
e práticas da esfera pública e nas políticas do Welfare State
apenas a cooptação de largas parcelas do operariado e a anu­
lação de seu potencial revolucionário. Um esquerdismo infan­
til impenitente julga que no fundo a educação pública, a saúde
pública, a previdência social e outras instituições estruturado-
ras das relações sociais são apenas uma ilusão e contribuem
para reproduzir o capital.
O Estado de bem-estar não deixou, por isso, de ser um
Estado classista, isto é, um instrumento poderoso para a do­
minação de classe. Mas está muito longe de repetir apenas o
Estado “comitê executivo da burguesia” da concepção original
de Marx, explorada a fundo por Lênin. Trata-se, agora, na
verdade, de um Estado que Poulantzas chamou de “conden­
sação das lutas de classe” . Utilizando-se uma metáfora entre
o jogo de xadrez e o jogo de damas, pode-se dizer que o Es-
tado-providência é um espaço de lutas de classe, onde os ter­

38
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

ritórios de cada peça - no caso, de cada direito - são previa­


mente mapeados e hierarquizados, isto é, não se trata de um
campo isomorfo e isônomo. Os adversários sabem que ao in­
vadirem determinada área, onde a hierarquia da dama, da torre
ou do cavalo é dada, a luta de classes consiste em buscar al­
ternativas que anulem a posição previamente hierarquizada,
e o poder de fogo, das peças mais importantes. Somente entre
neófitos é que o jogo - ou a luta de classes - pode arrasar
impunemente o poder de cada peça previamente estabelecido.
Nas palavras de Przeworski, trata-se de um jogo de “ incertezas
previsíveis” . Ao contrário, o jogo de damas, onde a hierarquia
das peças é completamente horizontal - e a obtenção de “ peças
coroadas” é o corolário dessa homogeneização - qualquer peça
do mesmo valor pode varrer completamente toda a formação
de jogo do adversário. A metáfora do xadrez serve para colocar
em pé o que é característico da construção da esfera pública:
a construção e o reconhecimento da alteridade, do outro, do
terreno indevassável de seus direitos, a partir dos quais se es­
truturam as relações sociais. Enquanto em sociedades sem es­
fera pública o jogo de damas é a metáfora mais pertinente: nos
Estados de mal-estar, com uma penada, o governo pode reduzir
salários, aumentar impostos a seu bel-prazer, confiscar bens -
mesmo os da burguesia.
A estruturação da esfera pública, mesmo nos limites do
Estado classista, nega à burguesia a propriedade do Estado e
sua dominação exclusiva. Ela permite, dentro dos limites das
“ incertezas previsíveis” , avanços sobre terrenos antes santuá­
rios sagrados de outras classes ou interesses, à condição de que
isto se passe através de uma re-estruturaçao da própria esfera
pública, nunca de sua destruição. Representa, de um ponto de
vista mais alto e mais abstrato, o fato de que agora “ os homens
fazem a história e sabem por que a fazem” . E uma negação
dos automatismos do mercado e de sua perversa tendência à
concentração e à exclusão. E, apesar da descrença teórica nas
ciências sociais da existência de sujeitos - o que é, na verdade,
uma pobre confusão nascida da multiplicidade de sujeitos que
a própria estruturação da esfera pública permite e requer -, o

39
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

resultado surpreendente é que a esfera pública e a democracia


contemporânea afirmam, de forma mais peremptória que em
qualquer outra época da história, a existência dos sujeitos po­
líticos e a prevalência de seus interesses sobre a pura lógica do
mercado e do capital.
A construção de uma esfera pública confunde-se com a
plenitude da democracia representativa nas sociedades mais
desenvolvidas, não só porque ela mapeia todas as áreas con-
flitivas da reprodução social; isto equivalería apenas a estender
ou projetar as regras das relações privadas a uma área soi-disant
pública. O que é fundamental na constituição da esfera pública
e na consolidação democrática que lhe é simultânea, é que esse
mapeamento decorre do imbricamento do fundo público na
reprodução social em todos os sentidos, mas sobretudo crian­
do medidas que medem o próprio imbricamento acima das
relações privadas. A tarefa da esfera pública é, pois, a de criar
medidas, tendo como pressupostos as diversas necessidades da
reprodução social, em todos os sentidos. Não é mais a valori­
zação do valor per se: é a necessidade, por exemplo, da repro­
dução do capital em setores que, por sua própria lógica, talvez
não tivessem capacidade de reproduzir-se. Necessidades que
podem ser de vários tipos, como já foi citado anteriormente:
desenvolvimento científico e tecnológico, defesa nacional, são
das mais comuns, ou, tal como nos oferece hoje o exemplo da
luta contra a Aids, necessidades sociais em escala mais ampla
que não podem depender unicamente da autocapacidade de
nenhum capital especial. Na área da reprodução da força de
trabalho, tais necessidades também se impõem: não se trata
agora de prover educação apenas para transformar a popula­
ção em força de trabalho; são necessidades que são definidas
aprioristicamente como relevantes em si mesmas; que elas ter­
minem servindo, direta ou indiretamente, para o aumento da
produtividade não dissolve o fato principal, que é o de que,
agora, aquele aumento da produtividade que pode ser seu re­
sultado não é mais seu pressuposto.
Qual é a relação dessa esfera pública assim constituída com
a democracia representativa? Existe nessa constituição uma

40
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

transformação das relações entre as classes sociais; não é que


agora as classes sociais se subsumam no Estado, anulando a
velha irredutibilidade entre Estado e sociedade civil, que, des­
de Hegel, é a grande revolução burguesa. O ponto essencial é
que as relações entre as classes sociais não são mais relações
que buscam a anulação da alteridade, mas somente se perfazem
numa perequação - mediada pelo fundo público - , em que a
possibilidade da defesa de interesses privados requer desde o
início o reconhecimento de que os outros interesses não apenas
são legítimos, mas necessários para a reprodução social em
escala ampla. A democracia representativa é o espaço institu­
cional no qual, além das classes e grupos diretamente interes­
sados, intervém outras classes e grupos, constituindo o terreno
do público, do que estk acima do privado. São, pois, condições
necessárias e suficientes. Neste sentido, longe da desaparição
das classes sociais, tanto a esfera pública como seu corolário,
a democracia representativa, afirmam as classes sociais como
expressões coletivas e sujeitos da história. Para tomar um caso
concreto, quando alguma necessidade mais alta se coloca,
como no caso de desativar certos setores industriais, as em­
presas não podem simplesmente despedir seus trabalhadores
e empregados: essa operação é necessariamente precedida de
negociações que visam a responder à pergunta de como salva­
guardar os empregos e a renda daqueles que estão nos setores
a serem desativados. O exemplo recente da Itália, onde fortes
centrais sindicais consentiram em desindexar a curva dos sa­
lários da curva da inflação, mostra bem esse caso. "
Assim redefinidas as relações entre as classes, a capacidade
ile representação elevou-se notavelmente, e como seqüência,
<>papel e a função dos partidos políticos. Não é mais necessário
que os partidos se identifiquem, pelas suas origens sociais, com
t erras classes sociais: o que é absolutamente necessário é que
des se identifiquem com tais ou quais modos de processar essa
relação social de preservação da alteridade. Por este processo,
e possível pois falar tanto de partidos de esquerda quanto de
direita, sem que isso remeta apenas a uma base social marca-
damcnte classista; mesmo assim, na história ocidental, os par­

41
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

tidos que melhor processam a gestão dessa relação são noto­


riamente partidos cuja origem foi marcadamente classista.
Tanto na organização da esfera pública quanto na da de­
mocracia representativa, a função intermediadora do fundo
público alterou as relações entre as classes e deu lugar à am­
pliação e fixação das funções das classes médias. E notável que
estas, contemporaneamente, são radicalmente novas, tendo
apenas um longínquo parentesco com a pequeno-burguesia,
sua matriz original. Como classe social, sua inserção geral na
matriz das relações sociais de produção do sistema capitalista
abrange uma série infindável de posições, que seria fastidioso
enumerar. Mas sua natureza de classe se demarca em relação
às outras, o operariado e a burguesia, pela fundação de sua
irredutibiíidade na relação social de produção; isto é, ela não
pode ser substituída nem técnica nem socialmente por nenhu­
ma outra; ela não é intercambiável, o que é característico,
também, das outras classes sociais. Emergindo ao longo de um
imenso pano de fundo histórico, tendo como matriz original
a clássica separação entre produtores e meios de produção, ela
se especificou no decorrer dos processos do Welfare State
como a classe cuja “propriedade” reside na gestão da articula­
ção entre o público e o privado; seus interesses não têm cor­
respondência com os das outras classes sociais, mas nem por
isso deixam de ser reais. O processo de constituição da esfera
pública especificou essas funções de forma ainda mais radical:
para operar a articulação entre o público e o privado, foi ne­
cessária a constituição de um grupo social especial, que se
converte em classe exatamente sem interesses dos tipos que
caracterizam as classes sociais clássicas, o proletariado e a bur­
guesia. Isto não as torna “ classes bonapartistas” , pois a cons­
tituição da esfera pública exatamente demarca também seu
campo de atuação.
Esse longo processo instaurou novos modos de repre­
sentação. Agora não se trata de uma representação que se arma
a partir apenas de interesses como pressupostos, mas sobretudo
como resultados. Em termos rousseaunianos, não é da vontade
geral que se trata, mas da articulação de pontos específicos

42
O SURGIMENTO DO ANTIVA1.0R

capazes de traçar a trajetória do resultado a ser obtido. E as


classes médias se constituem num desses pontos, ou em mais
de um, sem o que o resultado a ser obtido não tem condições
de ser projetado. Daí sua enorme importância nos partidos
políticos modernos. Essas classes médias modernas superam,
inclusive, o antigo lugar da burocracia. Esta sempre foi um
agente técnico da razão de Estado; as condições da regulação
contemporânea, fundamentalmente perpassada e estruturada
pelo fundo público, diluem uma única razão de Estado, subs­
tituindo-a pelas razões particulares que ligam o fundo público
a cada movimento ou a cada capital, ou a cada condição es­
pecífica da reprodução social, incluindo-se aí a reprodução da
força de trabalho e a sociabilidade geral. A burocracia continua
a existir, por certo, mas ela não mais constitui um agente téc­
nico à parte, senão que se inclui por inteiro nas classes médias.

A crise da crise

A formalização das novas relações sociais de produção nas


instituições do Welfare State politizou a relação do fundo pú­
blico com cada segmento da reprodução social. Trata-se, em
concreto, de uma relação adboc, cujo único pressuposto geral
é o fundo público em “ abstrato” . Transportado para a esfera
pública, esse ad boc parece-se com um super-Estado ou Estado
máximo; a rigor, bem observado, o que há é uma miríade de
arenas de confronto e negociação, onde o aparente Estado
máximo se converte num Estado mínimo, emaranhado no pró­
prio tecido das novas relações; se bem que, para a determina­
ção abstrata do resultado geral, o fundo público seja aquele
pressuposto unificador, a obtenção dos resultados particulares
tem no mesmo fundo público apenas uma dentre outras de­
terminações. Num terreno assim mapeado e esquadrinhado,
a autonomia do Estado relativiza-se cada vez mais, e está a
léguas de distância do suposto Estado Moloch, denunciado
pela direita.

43
I

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

A crítica da direita e a passagem à ação, na linha das po­


líticas thatcheristas e reaganianas, dirige-se aparentemente ao
Estado Moloch, mas seu objetivo é dissolver as arenas especí­
ficas de confronto e negociação, para deixar o espaço aberto
a um Estado mínimo, livre de todas as peias estabelecidas a
nível de cada arena específica da reprodução social. Trata-se
de uma verdadeira regressão, pois o que é tentado é a manu­
tenção do fundo público como pressuposto apenas para o ca­
pital: não se trata, como o discurso da díreita pretende
difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas
naquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe a
uma progressão do tipo “ mal infinito” do capital. E típico da
reação thatcherista e reaganiana o ataque aos gastos sociais
públicos que intervém na nova determinação das relações so­
ciais de produção, enquanto o fundo público aprofunda seu
lugar como pressuposto do capital; veja-se a irredutibilidade
da dívida pública nos grandes países capitalistas, financiando
as frentes de ponta da terceira revolução industrial.
A nova dinâmica da economia parte dessa nova situação.
Sem controles institucionais, a nova dinâmica pode exacerbar
o que é uma das características do oligopólio: a ereção de
barreiras à competição, entre as quais se inclui a não-difusão
como “ mancha-de-óleo” do progresso técnico (Sylos Labini.
Oligopólio e progresso técnico. Forense - José Arthur Gian-
notti. Trabalho e reflexão. Brasiliense). Essas barreiras não ape­
nas impedirão a regulação da concorrência entre os capitais,
mas em última análise podem seccionar o mercado de força
de trabalho em duas áreas irremediavelmente separadas, cru­
zando-se como navios em silêncio. O efeito mais perverso se
dará, finalmente, na estrutura de rendas e salários, restabele­
cendo uma dualidade que o próprio sistema capitalista há mui­
to dissolveu.
O dramático é que essa possibilidade está inscrita na pró­
pria forma mediante a qual o fundo público modificou o mer­
cado de força de trabalho. Pois, pela relação salários dire-
tos/salários indiretos, a ação do fundo público homogeneizou
a estrutura do próprio salário direto num leque muito estreito.

44

L L
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

Esta é a base que permitirá, por exemplo, a unificação quase


total do Mercado Comum Europeu, pois, tanto em nível do
salário indireto (gastos sociais públicos como porcentagem do
PIB e gastos sociais públicos como porcentagem da renda fa­
miliar disponível) quanto em nível do próprio salário direto,
a estrutura de rendas e salários é mais homogênea do que em
qualquer dos outros grandes blocos econômico-sociais mun­
diais. Isto não deve levar a pensar que o desenvolvimento ca­
pitalista realizou a promessa igualitária. E inegável que o leque
de rendas e salários estreitou-se, mas assim mesmo as diferen­
ças permanecem enormes: os dados disponíveis no Compen-
dium of Incoming Distribution Statistics, ONU, 1985, mostram
que em 1979 a distância entre os 20% mais pobres da popu­
lação e os 20% mais ricos, na Inglaterra, era de 5,67 vezes;
para a Bélgica, em 1979, era de 4,56 vezes; para a Itália, em
1977, de 7,08 vezes; para a Suíça, em 1978, de 5,76 vezes;
para a Holanda, em 19 8 1, de 4,36 vezes; para a Suécia, em
19 8 1, de 5,64 vezes; para o Japão, em 1979, de 4 ,3 1 vezes;
para os EUA, em 1980, de 7,53 vezes; para o Canadá, em
19 8 1, de 7,55 vezes; e, finalmente, para a França, em 1985,
de 7,67 vezes (Denis Clerc. “ Première des injustices: Les
disparités de revenus” , Le Monde Diplomatique, juiílet
1988, Paris). Resta considerar ainda que a complexa articu­
lação entre salários diretos e salários indiretos, tendo em
conta especialmente aqui o seguro-desemprego, tornou in-
compresstvel para baixo, ou inelástico à oferta de emprego,
o próprio salário direto. A nova dinâmica pode tomar essa
nova estrutura como um dado, um patamar a partir do-qual
tenta estabelecer novas diferenciações.
A baixa generalizada da taxa de sindicalização nos EUA e
na Europa parece que, entre os países mais importantes, a
Suécia é uma importante exceção -, um efeito não previsto da
nova estrutura de renda e salários pode desguarnecer os fronts
onde se trava, permanentemente, o conflito pela regulação
institucional do fundo público. A desestruturação dos grandes
sindicatos de trabalhadores é um dado tomado em conta pela
ofensiva da direita thatcherista e reaganiana. Isto pode levar

45
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

à desarticulação da alteridade, que é a condição primordial


para aquela regulação.
O ataque da direita aos gastos sociais públicos propõe,
outra vez, em lugar do Welfare State, o Estado caritativo ou
assistencialista. Tentando destruir a relação do fundo público
com a estrutura de salários, a correção das desigualdades e dos
bolsões de pobreza - que nos EUA já são imensos - será deixada
à caridade pública ou a uma ação estatal evasiva e eventual.
Isto é o melhor dos panoramas, pois convém não deixar de
pensar no pior, que seria uma mescla altamente perigosa de
assistencialismo e repressão.
Na crise atual, que re-define a própria crise do Welfare
State, a direita não propõe o desmantelamento total da função
do fundo público como antivalor. O que ela propõe é a des­
truição da regulação institucional com a supressão das alteri-
dades entre os sujeitos sócio-econôm ico-políticos. A
privatização que ocorre na Inglaterra e a reprivatização ocor­
rida na França durante o predomínio da direita, não são equi­
valentes à desmontagem do suporte do fundo público à
acumulação de capital; pois essa relação estrutural não pode
ser desfeita, à condição de completa anulação da possibilidade
de reprodução ampliada do capital. Não se retirou o fundo
público como fundo geral para pesquisa e desenvolvimento
tecnológico; não se retirou o Estado como comprador quase
oligopsônico da indústria armamentista; sequer se retiraram
os andaimes da relação do fundo público com a estrutura de
rendas e salários. Apesar de toda a retórica, as políticas that-
cherista e reaganiana continuam a seguir os passos, de forma
tatibitate, de uma política keynesiana em sentido amplo. Quase
toda a política fiscal, e mais ainda, a política monetária, não
se libertou daquela ampla moldagem. Que o digam a persis­
tência dos enormes déficits da economia norte-americana.
Dois pontos estão em xeque nessa ampla conjuntura. A
tese neoliberal é que, nesse passo, a ultrafiscalidade do Estado,
mantidos os controles institucionais do Welfare State, pode
ter chegado a limites que ameacem a acumulação de capital,
tolhendo as possibilidades de crescimento. O que está em jogo,

46
O SURGIMENTO DO ANTIVALOR

na aparência da ultrafiscalidade, é que o capitalismo pós-Wel-


fare State, por meio do fundo público, desatou uma capacidade
de inovações que não podem ser postas a serviço da produção
financiadas apenas pelo lucro; exigem e puncionam parcelas
crescentes do fundo público. Neste sentido, se reatualiza o
limite previsto por Marx para o sistema capitalista:o limite do
capital é o próprio capital. Mas essa voracidade não pode ser
deixada entregue a si mesma, sem controles públicos, sob pena
de transformar-se numa tormenta selvagem na qual sucumbi-
riam juntos a democracia e o sentido de igualdade nela inscrito
desde os tempos modernos. Não deve escapar à observação
que, em países como os EUA, o tamanho crescente da pobreza
já é um risco real nesse sentido.
A crise abala os fundamentos da democracia moderna. O
sistema representativo corre o risco de ser transformado numa
democracia de interesses, com mandato imperativo. Em mui­
tas condições, a democracia de interesses já atua no interior
do sistema representativo mais amplo. A profusão de lobbies
é sua expressão. Levado à sua expressão ultramontana, o Es­
tado pode se converter, realmente, num Estado completamen­
te subordinado ao capital, o que seria uma homenagem a
Marx, vinda de seus mais ferrenhos adversários e detratores.
Por esse caminho, as relações se inverteríam: em lugar do Es­
tado como organizador da incerteza da base, da infra-estrutura
em linguagem marxista, haveria uma base organizando o Es­
tado, que se transformaria na mais brutal imagem-espelho do
banquete dos ricos e do despojo de todos os não-proprietários.
Nao existe fórmula feita nem acabada para solucionar a
crise. Não se trata de uma mera crise conjuntural. Trata-se, na
verdade, de levar às últimas conseqüências a verdadeira “ re­
volução copernicana” operada nas relações sociais de produ­
ção neste século, sobretudo depois da II Grande Guerra. Ao
contrário das teses da direita, o pós-Welfare State consiste em
demarcar, de maneira cada vez mais clara e pertinente, os lu­
gares de utilização e distribuição da riqueza pública, tornada
possível pelo próprio desenvolvimento do capitalismo sob
condições de uma forma transformada de luta de classes.

47
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Quando todas as formas de utilização do fundo público esti­


verem demarcadas e submetidas a controles institucionais, que
não é o equivalente ao superior-Estado ou ao Estado máximo,
então o Estado realmente se transformará no Estado mínimo.
Trata-se da estrutura de um novo modo de produção em sen­
tido amplo, de uma forma de produção do excedente que não
tem mais o valor como estruturante. Mas os valores de cada
grupo social, dialogando soberanamente. Na tradição clássica,
é a porta para o socialismo.

48
A Economia Política da social-democracia*

O fundo público é um conceito construído para a investi­


gação dos processos peíos quais o capitalismo perdeu sua ca­
pacidade auto-regulatória; ao mesmo tempo, ele tem a
pretensão de sintetizar o complexo que tomou o lugar da auto-
regulação. No período mais recente da história das tentativas
de explicar essa perda, nas mãos e pela ótica liberal e neolibe-
ral, ela decorrería de uma “ intervenção” estatal, que geralmen­
te não ultrapassa o estágio descritivo, e não se alça, pois, a um
estatuto teórico-conceituai. A esquerda, mais precisamente a
marxista, deu muito mais importância à questão, procurando
teorizar num nível mais alto; o que não quer dizer que os
resultados tenham sido satisfatórios. O termo composto “ in­
tervenção estatal” é um pseudoconceito, que funciona como
panacéia. A sua simples enundação, tudo parece revelar-se, e
um processo dos mais complexos é acometido de reducionis-

* Artigo publicado na Revista USP, n. 17, mar-mai. 1993, p. 136-143. Este


texto corresponde à aula preparada como prova de erudição no Concurso
para Professor-titular da cadeira de Sociologia, do Departamento de Socio­
logia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, prestado pelo autor em 19 de outubro de 1992. Ele se beneficia
tias críticas e observações dos eminentes professores membros da banca,
Manoel Corrêa de Andrade, Roberto Schwarz, Fernando Henrique Cardoso,
Paul Singer e José Reginaldo Prandi, aos quais este artigo é dedicado. Nunca
será demais agradecer suas presenças.

49
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

mo empobrecedor que, de resto, denuncia sua matriz ideoló­


gica. Pois postula imediatamente um estatuto de exterioridade
entre o Estado e a economia, que não é o reconhecimento da
radical separação entre o Estado e sociedade, metodologica-
mente correto e ideologicamente salutar. A proposição de ex­
terioridade funciona desde logo no sentido de atribuir ao
Estado intencionalidade e finalidade econômicas próprias, ine­
rentes e imanentes (uma formulação insolitamente estranha à
própria doutrina liberal). Em seu favor, poder-se-Ía pensar es­
tar-se em presença de uma radical atualização do liberalismo,
o que significaria que as evidências sobre as transformações
do Estado não teriam atravessado o território da doutrina li­
beral, deixando-a incólume, ao custo de deixá-la incapaz.
Mas a crítica neoliberal significa que o Estado transfor­
mou-se num agente econômico com a mesma racionalidade
dos agentes privados, com o que a diferença qualitativa da
“ intervenção” perde todo sentido e eficácia. De que serviria
uma “ intervenção” de um agente igual aos outros? Como con­
seguiría ele escapar seja às determinações ou aos azares dos
ciclos de negócios? Apenas pelo tamanho? Mas existem em­
presas que têm o tamanho “ econômico” de Estados, e as maio­
res empresas multinacionais manejam recursos superiores aos
da grande maioria dos Estados latino-americanos, asiáticos e
africanos. Mas mesmo Estados fracos são qualitativamente di­
ferentes de uma empresa. A “ intervenção” é eficaz, em pri­
meiro lugar, porque em que pese a extraordinária trans­
formação do Estado no século X X , sua radical separação com
relação à sociedade permanece (sendo o contrário também
verdadeiro o f coursé) e é isso que a torna qualitativamente
diferente e imune aos azares dos negócios privados; sua racio­
nalidade é de outro nível, formada por outros elementos e
sujeita a outras determinações e contradições. Este é o núcleo
da proposição keynesiana, que a tornou revolucionária.
O processo real que se dá não é de uma “ intervenção” ,
posto que não é tópico nem casual? Trata-se da extrapolação
dos espaços privados ou, dizendo de outro modo, da insufi­
ciência da esfera privada para tramitar e processar novas rela-

50
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

ÇÕes sociais que, por essa razão, vê-se metamorfoseada em


esfera pública. A dialética do processo resulta em que ele é
urdido para assegurar os interesses privados, mas só o pode
fazer, somente se torna eficaz, se éles se transformam em in­
teresses gerais, públicos. Não há, portanto, ao contrário do
que afirma a denúncia liberal e neoliberal, interesse do Estado
senão na medida em que este aparece como uma instância
necessária da publicização.
Por outro lado, a crítica de esquerda, particularmente a
crítica marxista ortodoxa, tampouco foi muito feliz ao inter­
pretar a nova relação entre o Estado e a economia no capita­
lismo contemporâneo, A esquerda não-marxista não logrou
sequer pensar a questão; sobretudo a sodal-democracia, na
verdade a grande parteira prática da nova relação, não a ela­
borou teoricamente. Mais recentemente os trabalhos na linha
de Offe, Przerworski, Wallerstein, Gosta Esping-Andersen, tal­
vez Habermas, para citar um pequeno e brilhante conjunto de
tóricos que se têm debruçado sobre o Welfare State (apenas
exemplares de uma vasta bibliografia, e discordantes entre si),
voltaram-se decididamente para preencher a lacuna que o va­
zio social-democrata estava deixando quase irreparável. Mas
a maioria deles, como Offe e Habermas, talvez demasiada­
mente tarde, assinala mais os limites do Welfare e anuncia uma
sociabilidade não estruturada sobre o trabalho, a morte do
trabalho, do que teoriza, propriamente, sobre a social-demo-
cracia. Przerworski, Wallerstein e Esping-Andersen, por outro
lado, pertencem a outra linhagem. Dedícam-se a uma cuida­
dosa análise do Welfare e da social-democracia, estabelecem
tipologias, vêem seus limites, mas não os teorizam como for­
mas diferentes do capitalismo; é isto que diz até o título do
conhecido livro de Przerworski.
Voltando à crítica do marxismo ortodoxo, este cometeu
equívocos mais ou menos simétricos aos da crítica liberal à
nova relação entre o Estado e o capitalismo. A mais articulada
foi proposta na forma da teoria do capitalismo monopolista
de Estado, que é um desdobramento, uma atualização e um
avanço sobre a teoria do imperialismo de Lênin. Resumida-

S1
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

mente, a crítica do CME incidiu num erro similar ao dos li­


berais - mas com sinal trocado quando atribuiu ao Estado,
na fusão do capitalismo monopolista, o mesmo sentido, a mes­
ma direção e a mesma lógica que a dos capitais privados, anu­
lando, pois, a radical diferença entre Estado e economia e, no
fundo, entre Estado e sociedade. Em lugar da “ intervenção”
liberal, a crítica marxista construiu o paradigma da unicidade
monolítica entre Estado e capitais monopolistas, isto é, a su­
bordinação total do Estado ou, teoricamente, uma estranha
desnecessidade de um Estado que se fazia necessário para com­
portar-se exatamente como os capitais privados.
Essa fusão entre Estado e capitais monopolistas não resiste
tanto à crítica sobre a indiferença que estabelece quanto àquela
voltada ao próprio conceito de monopólio. Este dificilmente
se sustenta no terreno do marxismo, pelas dificuldades que
cria no terreno da teoria da taxa média de lucro. A escola do
Capitalismo monopolista de Estado não pôde ultrapassar, nem
abandonar, o teorema da taxa média, porque permaneceu -
ou melhor, tinha necessidade de - no terreno da mercadoria,
sem o que sua própria teorização sobre a fusão entre Estado
e capitais monopolistas perderia todo e qualquer sentido. O
conceito de monopólio, se pretende dizer mais do que a evi­
dência do crescimento do tamanho das empresas e do controle
por poucos grupos de ramos inteiros da produção, esbarra
definitivamente com o teorema da taxa média de lucro, que é
central para a dinâmica do capitalismo enquanto modo de
produção a partir da mercadoria. A literatura sobre a matéria
é abundante, e mais recentemente um excelente artigo de Alt-
vater na História do Marxismo a resumiu de forma exemplar.
Mas o CME não pôde superar o teorema da taxa média, que
requer, para tanto, uma superação da própria teoria do fetiche
da mercadoria, porque a teoria do CME necessitava dela para
demonstrar que o sistema seguia sendo capitalista, explorador
de mais-valia, portanto de uma parte de trabalho nao-pago,
cuja “ magia” reside na utilização ilimitada do valor de uso da
própria mercadoria força de trabalho.

\)
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

O conceito de fundo público tenta trabalhar essa nova


relação na sua contraditoriedade. Ele não é, portanto, a ex­
pressão apenas de recursos estatais destinados a sustentar ou
financiar a acumulação de capital; ele é um mix que se forma
dialetícamente e representa na mesma unidade, contém na
mesma unidade, no mesmo movimento, a razão do Estado,
que é sociopolítica, ou pública, se quisermos, e a razão dos
capitais, que é privada. O fundo público, portanto, busca ex­
plicar a constituição, a formação de uma nova sustentação da
produção e da reprodução do valor, introduzindo, mixando,
na mesma unidade, a forma valor e o antivalor, isto é, um valor
que busca a mais-valia e o lucro, e uma outra fração, que chamo
antivalor, que por não buscar valorizar-se per se, pois não é
capital, ao juntar-se ao capital, sustenta o processo de valori­
zação do valor. Mas só pode fazer isso com a condição de que
ele mesmo não seja capital, para escapar, por sua vez, às de­
terminações da forma mercadoria e às insuficiências do lucro
enquanto sustentação da reprodução ampliada. A metáfora
que usaria vem da física: o antivalor é uma partícula de carga
oposta que, no movimento de colisão com a outra partícula,
o valor, produz o átomo, isto é, o novo' excedente social.
O processo de produção desse movimento, que busco con­
ceituar no fundo público, é o processo da luta de classes. Mas
é também o de seu deslocamento da esfera das relações priva­
das para uma esfera pública ou, dizendo de outra forma, o da
transformação das classes sociais de privadas para classes so­
ciais públicas. O que se quer dizer com isso? Seria mais fácil
dizer que há um deslocamento da luta de classes da esfera da
produção, do chão da fábrica ou das oficinas ou ainda dos
escritórios, para o orçamento do Estado. Mas, não apenas de
fato, mas teoricamente, não é isso que se passa, pois tanto para
que exista o fundo público quanto para que o processo de
publicização das classes sociais se dê, é absolutamente neces­
sário que também continue a luta de classe na esfera da pro­
dução ou, se quisermos dizer, no confronto imediato e direto
entre empregado e patrão, O fundo público só existe e somente
se sustenta como conseqüência da publicização das classes so­

53
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

ciais, do deslocamento da luta de classes da esfera das relações


privadas para a das relações públicas: ele é uma espécie de
suma de todas essas transformações, as quais têm que ser re­
novadas quotidianamente, sob pena de ele perder sua eficácia.
Evidentemente, a publicização, ou o processo desse desloca­
mento, não é aleatória, conjuntural, e construiu suas institui­
ções, as quais são, na maior parte dos casos, as instituições do
Estado de bem-estar.
Entretanto, as classes sociais, seus contornos, parecem de­
saparecer. Offe, Habermas ou Giannotti (para citar os mais
rigorosos de uma vasta bibliografia, que incluiria também os
que deram “ adeus”ao proletariado) anunciam o fim da socie­
dade do trabalho, o que quer dizer o fim da sociedade de
classes. Ou, fukuianamente, embora os desagrade, o fim da
história, Minha interpretação é que ocorre, de fato, que, pa­
rodiando Habermas, o máximo de publicização possível pa­
rece privatizar tudo. Mas esta é uma ilusão da aparência, posto
que as classes sociais saíram de seus invólucros anteriores, pri­
vados, e não são percebidas como públicas. Mas, quanto mais
parecem desaparecer do campo da visibilidade do confronto
privado, tanto mais são requeridas como atores da regulação
publica. Isto não é um paradoxo, mas a contradição das classes
sociais hodiernas, que é, também, a mesma do fundo público.
As conseqüências ou, dizendo de outro modo, as transfor­
mações na esfera pública e no Estado, ao mesmo tempo causa
e efeito do mesmo processo, são extremamente relevantes. A
esfera pública aqui não é mais uma esfera pública burguesa:
mas, da mesma forma como a entrada da classe trabalhadora
na disputa eleitoral redefiniu a democracia, com o que as an­
tigas desconfianças marxistas em relação à democracia perde­
ram todo o sentido, também uma esfera pública burguesa,
penetrada por um fundo público que é o espaço do desloca­
mento das relações privadas, deixa de ser apenas uma esfera
pública burguesa. Assim, de novo parafraseando Habermas,
no máximo de intransparência é possível distinguir, nitida­
mente, a esfera pública, redefinida dessa forma, da esfera pri­
vada. E isso, por exemplo, que torna possível uma campanha

54
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCLAL-DEMOCRACIA

pela ética na política, pela moralidade pública, que terminou


na aceitabilidade do impeachment do presidente, sem que se
corra o risco de cair no moralismo conservador. E da distinção
entre uma esfera pública não-burguesa e uma esfera privada
que nasce a possibilidade de uma nova política.
A grande transformação no Estado, que a revolução teórica
keynesiana formalizou, é, em primeiro lugar, a de sua autono-
mizaçao fiscal. Que significou o abandono da posição de su-
balternidade fiscal, situação real do Estado até os dias da
Grande Depressão, à qual correspondia a teoria fiscal do Es­
tado, do gosto liberal, e de formulação neoclássica. O Estado
doméstico, dono-de-casa, que gastava apenas o que arrecadava
e tão-só depois de arrecadar. Um Estado sempre ex-post. A
revolução teórica keynesiana formaliza o que já era o movi­
mento tateador, tattonnant> do Estado ex-ante. Um Estado
que antecipa o que gasta, que é mais do que arrecada; mais
que essa contabilidade, o que há, aí, é uma transformação
impressionante, no sentido já assinalado do deslocamento das
relações privadas para relações públicas. Na maioria das so­
ciedades do capitalismo hoje avançado, e até porque o Estado
foi utilizado instrumentalmente, a forma desse deslocamento
ganhou, sobretudo, um rosto, uma forma estatal. Daí, que à
ampliação do espaço público correspondeu, na totalidade dos
casos, praticamente, uma ampliação do Estado, entendido nos
termos em que os liberais o entendem. E até nos termos postos
pela luta de classes: para publicizar, operar esse deslocamento,
a forma estatal em muitos casos revelou-se imprescindível e
insubstituível. E o caso mesmo dos países periféricos como o
Brasil.
Essa revolução no Estado tem enormes conseqüências.
Para citar uma teorização que depende inteiramente dela, aliás
reconhecida por Furtado e Prebisch - e este foi um dos pri­
meiros keynesianos da América Latina-, relembremos a teoria
do subdesenvolvimento da CEPAL, a qual partia, precisamen­
te, da possibilidade de uma demanda autônoma derivada das
funções do Estado. Ora, a rigor não se trata de “ funções” do
Estado, mas de uma revolução posta nas formas do Estado por

ss
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

aquele deslocamento. A autonomização da demanda, que é a


cara com que esse deslocamento e essa revolução aparecem na
teoria econômica mesmo keynesiana, vai autorizar todas as
modernas políticas públicas sociais, que são, todas, políticas
de demanda. Outro campo teórico imediatamente fecundado
pela autonomizaçao da demanda é a moderna teoria demo­
gráfica, no que aliás se resgata a tradição malthusiana, que é
o precursor de Keynes.
Não há, portanto, um tamanho ótimo de Estado, nem má­
ximo, nem mínimo. Essa discussão soaria bizantina se não fosse
evidentemente ideológica, pois o que a famosa ampliação das
funções do Estado revela “ intervenção” na doutrinação liberal,
subordinação ao capital na doutrinação marxista ortodoxa, é
um extravasamento das esferas privadas, das relações privadas,
para uma esfera pública não~burguesa que, por variadas razões,
tomou freqüentemente a forma estatal. Até mesmo porque
a burguesia usou muito instrumentalmente o poder do Es­
tado, a passagem para uma publicização das relações priva­
das requereu, na maior parte dos casos, uma forma estatal.
Isto é verdade até mesmo para o caso norte-americano, onde
uma história nacional singular, de uma nação feita de imi­
grantes vindos de todas as opressões identificáveis ao Esta­
do, criou uma das mais arraigadas e poderosas ideologias
antiestatais e antiestatistas do capitalismo moderno... Mas,
mesmo ali, até porque a burguesia norte-americana também
havia usado o Estado instrumentalmente, quando novas re­
lações extrapolaram o leito das antigas relações privadas, a
forma estatal foi requerida.
Parece, pois, que o fundo público realiza o sonho da paz
universal, e a eternidade do capitalismo. Mas se ele é formado
de duas partículas, de carga oposta, que se chocam para pro­
duzir uma nova síntese que é a nova forma da reprodução
social, então trata-se de um processo conflitivo e contraditório.
Qual é e onde se localiza a contradição? A argúcia dos profes­
sores Reginaldo Prandi e Fernando Henrique Cardoso, duran­
te a argüição do memorial, no concurso de que este artigo foi
a prova de erudição, localizou, corretamente, nesta questão,
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCLAL-DEMOCRACIA

uma dificuldade da teorização empreendida sobre o fundo


público. O fundo público desmercantiliza parcíalmente a força
de trabalho, isto é, seu caráter de mercadoria. Ao fazê-lo, põe
a nu uma espécie de desnecessidade da exploração ou a vir-
tualidade dessa desnecessidade e, também, simultaneamente,
a finitude de uma das formas mercantis mais importantes; a
forma mercadoria mais importante do capitalismo, sua espe­
cífica mercadoria, a única criada realmente pelo capitalismo.
Ao fazê-lo - uma operação que é de difícil descrição, pois a
rigor o fundo público consiste precisamente nessa operação
que substitui, teoricamente, a auto-regulação do valor - ele
desbloqueia as virtualidades do progresso técnico, pois a mer­
cadoria força de trabalho não é maís um limite nem o suporte
da acumulação. Isto é, na formulação de Luiz Gonzaga Beluz-
zo, ele autonomiza o capital constante.
Reaparece, pois, o problema proposto pela literatura in­
dicada sumariamente nos nomes de Offe, Habermas e Gian-
notti, no sentido de que a sociabilidade que tem no trabalho
seu núcleo estruturador estaria em veloz transformação para
desaparecer. E a sociedade de classes do capitalismo fatalmente
seria afetada. Não há uma resposta fácil nem estruturada para
essas questões. Tal como Reginaldo Prandi notou, pode-se co­
meçar a dizer num nível mais modesto que, tal como a própria
sociologia dos processos de trabalho vem insinuando, o esta­
tuto sociológico do trabalho sem dúvida sairá fundamental­
mente modificado, dando lugar, pelo menos, a nova concepção
de trabalhador. Mas uma resposta mais estruturada exigiría
muito mais do que simples repercussões no âmbito do traba­
lhador e do estatuto sociológico do trabalho, por importante
que este seja. A menos que uma simples boa intenção seja
suficiente, e já não o é, não há o mínimo de experiência social
capaz de indicar ou sugerir linhas de força sobre o futuro lon­
gínquo. Mesmo porque, convém relembrar, o esforço concei­
tuai aqui desenvolvido não diz respeito à construção de uma
utopia, mas de um sistema que tem, pelo menos, setenta anos
c cuja capacidade não se esgotou.

57
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Mas a mesma operação expõe, também, os limites da for­


ma mercadoria, no sentido de que o lucro passa a ser insufi­
ciente como forma social, para financiar a continuidade do
processo de expansão do produto social. Esses limites apare­
cem pela retração da base social de exploração, via desmer-
cantilização da FT, e pelo desbloqueio operado já referido.
Isto vai se expressar em formas aparentes: na concentração da
renda, no encarecimento do capital constante - em lugar de
seu barateamento constante - e numa volúpia de apropriação
de toda e qualquer forma de riqueza pública, que deve ser
posta a serviço da acumulação de capital, sem o que ela não
pode continuar, pois que a simples forma mercantil, via forma
lucro, é insuficiente. Apesar de que todas as aparências são
contrárias.
A pista de algumas outras transformações poderia ser se­
guida no rastro desse paroxismo. Elas podem tomar a forma
da constituição dos grandes blocos, por exemplo. Que não
passa de uma forma de pôr, em escala supranacional, todas as
formas da riqueza pública a serviço do processo de acumula­
ção, que aparece sob a forma da expansão e integração dos
mercados. Mas isso nos levaria muito longe e exigiría muito
tempo. Mas mesmo essa pista é da mesma natureza teórica da
que examinaremos mais profundamente. Isto é, paroxismos
dos limites leva ao que parece ser uma politização da economia,
uma economia administrada, preços políticos administrados,
enfim, toda uma corte de adjetivos para uma insuficiência teó­
rica, que faz parte do repertório da direita e para a qual a
esquerda não logrou resposta. De fato, o que aconteceu, ou o
resultado maior de todo o processo, pode ser sintetizado, com
algum pedantismo no título, pelo nome de modo social-demo­
crata de produção.
Um modo social-democrata teria sua origem histórica, evi­
dentemente, nos países com história social-democrata. Mas os
EUA não são social-democratas tout court, o que desqualifi­
caria pelo menos a denominação. Convém pensar, entretanto,
numa social-democracia fraca, isto é, sem partido social-de­
mocrata; desde o New Deal, o processo de regulação que subs­

58
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

titui a auto-regulação perdida é caracteristicamente o que es-


tamos chamando “fundo público” . Além disso, as multinacio­
nais norte-americanas européias são uma espécie de economia
norte-americana espacialmente deslocada, e elas estão inseri­
das em espaços nacionais social-democratas. Caberia ainda
acrescentar que, ao contrário das aparências, a economia nor­
te-americana é regulada hoje por uma espécie de fundo público
mundial, na forma de seus imensos défidts na balança comer­
cial e na conta de capitais, causada por uma dívida externa
monumental. Mas, conforme a tentativa teórica buscou en­
saiar, o modo social-democrata universalizou-se, guardando e
mantendo diferenças, assim como o próprio sistema capitalista
tinha suas diferenças. Ele é mais forte, mais pleno, ali onde a
social-democracia desenvolveu-se como forma histórica con­
creta, com seus partidos da classe operária, seu Estado de bem-
estar ora universalista, ora corporativista, ora estatal; ele é
mais fraco ali onde não vicejaram partidos sociais-democratas,
casos clássicos dos EUA e Japão, entre os desenvolvidos. Ele é
menos forte, ainda, em países periféricos, como o Brasil, índia,
para dar alguns exemplos, e ele é apenas um simulacro na
grande maioria dos países periféricos da África, em alguns da
Ásia, e uns poucos da América Latina. Mas é um simulacro do
modo social-democrata. Não é apenas uma politização da eco­
nomia, pois azares ou mudanças da conjuntura política pode-
riam mudar essa regulação não auto-regulada pelo valor.
Não é uma regulação conceitualmente equivalente à da
escola francesa da regulação, pois esta não trabalha com mo­
dificações no próprio valor; a rigor, os regulacionistas “ fran­
ceses” entraram num impasse teórico, o que os fez regredir,
na verdade, para uma aplicação meramente conjuntural do seu
aparato teórico-conceitual. Modo de produção social-demo­
crata é, evidentemente, forte. E tem, aqui, como denominação,
um sentido provisório. Que quer marcar uma forte ruptura,
a gênese de uma nova contradição e novos limites, assim como
marcou uma enorme abertura ainda não esgotada.
Finalmente, à guisa de conclusão, cabe abordar a questão
do socialismo. Minha convicção, a partir do esboço teórico

59
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

que tentei ensaiar, é de que o socialismo coloca-se, uma vez


mais, na tradição clássica, como um desdobramento do pró­
prio sistema capitalista. Há, neste sentido, uma certa dose de
necessidade. Mas não é uma necessidade histórica abstrata,
como se desde os inícios dos tempos ele estivesse inscrito. Nem
é tampouco o fim da história. O socialismo aparece como
necessidade enquanto um sistema que possa resolver as con­
tradições do que chamei o modo social-democrata de produ­
ção. Nessa medida, ele não é independente da história dos
homens, pois como tratei de expor, a constituição desse modo
social-democrata de produção é, afirmativamente, um produ­
to da história dos homens, da luta de classes, travada não ce­
gamente, não enquanto as classes são uma espécie de
autômatos robitizados do capital, mas enquanto as classes são
personae de sua própria história. De fato, o modo social-de­
mocrata de produção mostrou, pela primeira vez, a virtuali-
dade da desnecessidade da exploração, e isso ainda vai longe.
E está mostrando também que a contradição em que se cons­
truiu a forma de superar um capitalismo não auto-regulado
desbloqueou as imensas potencialidades da produção, mas blo­
queia as possibilidades da realização. Por isso, seu voraz apetite
por todas as formas de riqueza pública, entre as quais espaços
supra-nacionais aparecem como uma das mais notáveis; mas,
assim mesmo, bloqueado pela forma mercantil, ele concentra
renda, o que aparece como encaredmento do capital constante
- quando na verdade há um barateamento e condena vastas
parcelas da humanidade a serem apenas simulacros de consu­
midores. O socialismo aparece nessa fronteira para, por sua
vez, desbloquear esse caminho.

BIBLIO GRAFIA SUMARIA INDICATIVA

AGLIETA, Michel. Régulation et crises auxÉtats Unis.

ALTVATER, Elmar. “A Teoria do Capitalismo Monopolista de Estado” .


In: História do Marxismo.

60
A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

B elu zzo , Luiz Gonzaga. “A transfiguração crítica” . In: Novos Estudos


Cebrap.
ESPING-ANDERSEN, G. “A s trê s eco n o m ias p olíticas do Welfare State
In: Lua Nova.
FlANNOTTl, José Arthur. ‘A sociabilidade travada” . In: Novos Estudos
Cebrap.
HABERMAS, Jürgen. “A nova intransparência” . In: Novos Estudos Ce­
brap.
KEYNES, John Maynard. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda.
LlPIETZ, Alain. Audácia.

Of f e , Claus. Capitalismo desorganizado.

Ol iv e ir a , Francisco de. “ O surgimento do antivalor” ./«: Novos Estu­


dos Cebrap.
PRZERWORSKI, Adam. Capitalismo e social-democracia.

61
I

àm
Políticas do antivalor, e outras políticas"'

Sua formulação teórica mais importante é a idéia de que


a partir dos anos 30 o capitalismo teria sofrido uma tal ava­
lanche de transformações radicais que fizeram com que você,
provocativamente, sugerisse que se tratava de um modo social-
democrata de produção. Como seria esse modo de produção
partindo da idéia, presente em seus textos, de antivalorf
O uso provocativo de modo de produção não tinha a pre­
tensão de ser um conceito acabado, nem mesmo de ser fiel ao
conceito de modo de produção. Era uma tentativa de provocar
a discussão. Eu percebia algo de inédito no sistema capitalista,
desde os anos 30, que me levava a fazer a provocação. Toda a
literatura marxista preocupou-se muito em estudar as trans­
formações ocorridas do lado do capital. Ficaram muito conhe­
cidas nos anos 60 as tentativas —que na verdade remontam há
muito tempo antes - de medir as transformações no capital,
de verificar empiricamente a famosa tendência à queda da taxa
de lucro, de medir as proporções diferentes de capital cons­
tante e variável. Parecia-me que esse caminho era infrutífero
porque esquecia uma noção essencial em Marx, a de que o
capital é uma relação social. Então, fui ver o outro lado dessa
relação social, que era a mercadoria como conceito (trabalho).
Dirigi meus esforços para o estudo da exploração da força de

” Entrevista concedida a Fernando Haddad para Teoria & Debate, n. 34,


mar.-abr.-mai.97.

63
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

trabalho e descobri que, por meio de uma série de processos,


havia mudado bastante o estatuto da força de trabalho nos
países capitalistas líderes. Mudado no sentido do que chamei
de produção de antimercadorías, aquilo que os economistas
chamam de salário indireto, composto geralmente de gastos
sociais, que vão desde os elementares, como educação e saúde
públicas, até os gastos com lazer, diversão, que compõem a
cesta de consumo de qualquer trabalhador.
Como resultado de um conjunto de processos políticos,
para os quais concorreu de maneira importante a intervenção
da classe trabalhadora e dos partidos social-democratas e co­
munistas, constituiu-se, desde o fim do século passado, mas
sobretudo a partir dos anos 30, ura quadro daquilo que os
liberais chamam de intervenção do Estado na economia, for­
mando essa cesta de produtos, mercadorias e serviços. A isso,
que mudou o estatuto da mercadoria força de trabalho, chamei
de antivalor. E algo que, na verdade, funciona dentro do sis­
tema capitalista mas negando-o e já anunciando um dos limites
da forma mercadoria. Isso evidentemente é um fenômeno his­
tórico e não tentei transformá-lo numa lei de desenvolvimento.
Esse fenômeno dependia exatamente da formação dos partidos
operários, dos seus sindicatos, das suas instituições e de uma
certa reação da burguesia e do próprio sistema capitalista para
evitar o seu colapso, adotando, na sua reprodução, uma forma
de socialização do excedente que, por realizar-se mediada pelo
fundo público (e não pelo mercado), eu chamei de antivalor.
Você sugere que nesse período houve um deslocamento da luta de
classes do setor da produção para o setor público, no sentido de uma
disputa em torno do destino do orçamento. Nesse sentido, o conceito
de classe também sofre um deslocamento. Com o você entende a luta
de classes nesse período e em que medida pode-se ainda falar em
classes sociais no sentido marxista?

As classes sociais podem ser entendidas tais como Marx


as pensou, sob a condição de que se faça uma pesquisa empírica
que atualize seu estudo. Quando Marx trabalhou os conceitos
à base evidentemente de sua experiência histórica - o que não

64
POLÍTICAS DO ANTIVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

quer dizer que o que Marx teoriza seja algo que se possa reduzir
à pura experiência empírica, senão não teria ganho o estatuto
e a força explicativa que ganhou a relação entre as classes
tinha muito a aparência de um conflito privado* A partir dos
anos 30, o conflito extrapola os marcos daquilo que se poderia
dizer que ficava restrito ao espaço da esfera burguesa, segundo
uma abordagem habermasiana ou mesmo weberiana. O pró­
prio conflito interburguês assumiu proporções tais que acar­
retaram o seu deslocamento do terreno do privado para o
público. Portanto, não é propriamente uma transformação das
classes, mas um fenômeno devido ao próprio conflito entre
elas. A crise de 30 foi a evidência mais eloqüente desse deslo­
camento do terreno do privado para o público. Naquele mo­
mento, a esfera do privado revelou-se insuficiente para de
alguma maneira processar o conflito na sociedade burguesa.
E por isso que, de certa forma, as ciasses aparecem como
se não tivessem recortes, como - o que a sociologia americana
disse de forma fácil e banal - se o operariado americano fosse
classe média, medido pelos índices de consumo. Na verdade,
é possível continuar a pensar que o conceito de classe é válido,
à condição de fazer esse novo percurso que tentei fazer.
Como a tecnologia entra nesse esquema ? A ciência como fator de
produção tem algum estatuto?

Tem um estatuto, mas não autônomo. Na verdade, bene­


ficiei-me de uma reflexão do Luís Gonzaga Belluzo. Na sua
tese, ele fez uma reflexão sobre a autonomização do capital
constante. O que quer dizer isso? Segundo uma posição antiga
e forte em Marx, a burguesia, tentando superar continuamente
os limites da exploração da força de trabalho, usa a ciência e
tecnologia para baratear o custo da sua reprodução. Contudo,
a partir dos anos 30, tomando-se em conta os países líderes
do sistema, onde havia uma relativa homogeneização da pre­
vidência social, de seguro social, de outros antivalores em ge­
ral, o que se viu foi que esse processo, com o fundo público,
havia ganho outra forma, tinha passado a ser relativamente

65
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

indiferenciado no sentido de que não era mais o custo da força


de trabalho que provocava a reação dialética da ciência e tec­
nologia a serviço do capital. Isso deu lugar àquilo que Belluzo
chama de autonomização do capital constante.

Se o motor do processo de inovação tecnológica não era o esforço


para baratear o custo da mercadoria força de trabalho, o que veio a
ser então?

A mola propulsora desse processo continua a ser uma busca


de valorização, o que de alguma maneira é sempre a mesma
coisa. Mas o processo de extração de mais-valia e a sua relação
com os impulsos para os saltos tecnológicos e para a aplicação
da ciência e tecnologia passaram a ser mediados pelo fundo
público. De alguma maneira, não havia mais uma relação di­
reta. Essa mediação liberou cada capitalista em particular de
olhar a relação com o custo da sua mercadoria força de traba­
lho e provocou a autonomização. Na verdade, uma pletora de
inovações que encontram seu limite outra vez na forma mer­
cadoria. No fundo, o sistema volta a bater no mesmo proble­
ma, mas de uma maneira em que a dialética entre o custo da
força de trabalho e o progresso tecnológico passou a ser me­
diada pelo fundo público. Isso deslocou e, de alguma maneira,
liberou as formas técnicas do capital constante.
Essa mediação seriam, por exemplo, os gastos militares com tecno­
logia, os gastos públicos com as universidades, em pesquisa e desen­
volvimento etc.? .

Exato. Se pesquisarmos, não encontraremos uma relação


direta disso com o custo da força de trabalho. Ela se perde,
mas não desaparece. O orçamento de uma grande universidade
não está ligado diretamente a salário nenhum. Provém do con­
junto da sociedade, do imposto que cada um paga. Portanto,
a relação passa a ser mediada exatamente pelos fundos públi­
cos, e isso é uma enorme apropriação. E nesse sentido que eu
falo de uma espécie de autonomização. Por exemplo, os Esta­
dos Unidos jogam força em pesquisa bélica e isso tem impacto

66
POLÍTICAS DO ANTIVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

na produção de bens de consumo, mas não pode ser ligado


diretamente ao custo de reprodução da força de trabalho dos
setores industriais. Sem essa mediação fica difícil entender.
Que papel você atribui à emergência do sistema soviético na confi­
guração desse modo de produção soc ial-dem o cr ata ?

Na própria sociai-democracia há uma enorme influência


soviética. Há todo um grupo de planejadores social-democra-
tas que tenta apreender dos soviéticos a possibilidade de fazer
a passagem para o socialismo através de uma desmercantiliza-
ção. E uma discussão bastante interessante. A sociai-democra­
cia aprendeu muito com a experiência soviética.
Mas as instituições capitalistas se remodelaram mais em função de
constrangimentos internos ou devido à ameaça externa que repre­
sentava a União Soviética?

Fazendo um balanço, se essas coisas pudessem ser medidas


em proporções, eu daria 60% de peso às condições internas
dos países que hoje chamamos de desenvolvidos. Acredito mui­
to mais num tipo de interpretação marxista que concede muito
valor ao movimento das lutas de classes. Até porque sabemos
historicamente que antecipações desse processo existiram na
Alemanha e na Itália até como tentativa da burguesia de dis­
putar a posse dos corações e das mentes da nova classe social.
Tratando dessa forma esquemática, os outros 40% são devidos
à revolução soviética, à medida que havia uma forte sedução
das massas trabalhadoras pela URSS. A Grande Depressão,
que desempregou 30% da força de trabalho, é outro fator que
mobilizava e atualizava a ameaça soviética no interior dos paí­
ses ocidentais. Antes mesmo de Keynes tentar teorizar qual­
quer coisa, a maioria dos países estava tateando e buscando
formas de sair do nó, por intermédio do que depois veio a ser
sistematizado como medidas de bem-estar social. Em alguns
casos, de forma já bastante sistemática - como foi a Suécia nos
anos 20 - e em outros já premidos pelas circunstâncias, como
foi o caso da França já na grande crise, correndo para descontar

67
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

o prejuízo. A Revolução Russa estava presente por intermédio


das grandes massas desempregadas. Não acho, como muitas
interpretações, que foram apenas concessões das classes do­
minantes. Estou mais numa linha de que o curso da luta de
classes já anunciava um desenvolvimento nesse sentido. E, so­
bretudo, porque - evidentemente sem nenhum eurocentrismo
- isso surgiu nas relações de luta de classes mais avançadas, e
não do tipo de luta de classes que se tratava em relações ainda
coloniais. Isto desagrada certos setores da esquerda que gos­
tariam de pensar que toda revolução, toda transformação nos
países capitalistas centrais foram feitas a partir da periferia.
Em que medida a débâcle soviética torna inviável, do ponto de vista
político, a apresentação de propostas de transformação mais radical
da sociedade f

Durante boa parte da minha juventude e mesmo na matu­


ridade, eu vivi a experiência soviética - como quase todo mun­
do da esquerda como uma grande referência. Nunca fui
membro do Partido Comunista, sempre tive bastante reservas
a respeito da sua forma de militância, mas sempre os encarei
como companheiros de luta, principalmente na minha cidade,
Recife, onde o partido tinha notável presença nas classes po­
pulares. Só vim a tomar conhecimento dos problemas mais
graves da experiência soviética a partir da invasão da Tchecos-
lováquia, em 68. Nem mesmo quando do aparecimento do
relatório Krutchev, ainda em 56, a URSS era posta em dúvida.
Ninguém sabia muito bem o que era aquilo e a economia so­
viética parecia que ainda funcionava bem, ia ganhando a com­
petição com os EUA e nós não sabíamos dos horrores dos
campos de concentração. A partir da invasão da Tchecoslová-
quia minhas reservas em relação à União Soviética aumenta­
ram muito, a ponto de eu não mais apoiá-la incondicio­
nalmente. Quanto a experiências como a de Cuba, por exem­
plo, sempre fui francamente favorável, ainda que deteste a
forma ditatorial que lá se exerce. A débâcle soviética é um
golpe muito forte na moral socialista e é uma derrota de pro-

68
POLÍTICAS DO ANTIVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

íundas conseqüências que continuará por muitas décadas. É


um golpe que deve ser sentido também do ponto de vista das
milhares de vidas que se dedicaram a construir o socialismo
e, portanto, exige de cada um de nós socialistas, marxistas ou
não, a mais profunda condenação e a mais rigorosa reflexão
a respeito de seu significado.
Essa profunda derrota moral colocou a esquerda em geral
muito na defensiva e retirou nossa principal arma de combate,
tjue era mostrar como se podia construir um mundo melhor.
E nesse contexto que reafirmo minha posição socialista e o
uso privilegiado que é possível fazer do marxismo, sem pro­
fissão de fé, sem nenhuma idolatria.
Você diria que a crise do Estado de bem-estar social tem mais a ver
com problemas de gerenciamento interno f

As condições em que o sistema capitalista opera ainda não


mudaram essencialmente do ponto de vista do chamado Esta­
do do bem-estar. Se quiséssemos usar um termo, diria que o
paradigma da sociabilidade presente no sistema capitalista ain­
da é o da segurança representada pelo Estado do bem-estar.
O sistema tem uma espécie de sede de segurança que eviden­
temente o converte em algo que mostra o limite da forma
mercadoria. Ele não consegue sustentar-se sem que instituições
tentem segurar o risco. Apesar do que parece, o mundo da
livre concorrência, aberta, nao-regulamentada, não é nada dis­
so. No mundo real, você pessoalmente segura a sua casa, a
vida, a saúde, a viagem. Isso se repete no mundo da mercado­
ria. Portanto, não se saiu ainda dos marcos em que o capita­
lismo continua a se reproduzir dentro do paradigma do Estado
do bem-estar, e os problemas que ele tem não são de geren­
ciamento, nem devido ao desmoronamento da União Soviética
e dos demais países do chamado socialismo real. Seus proble­
mas advêm do limite da forma mercadoria, porque esse sistema
desativa forças produtivas numa escala sem precedentes ao ter
que passar pelo crivo do valor, e esse impõe limites, que se
traduzem em desemprego e exclusão. Esses são limites da for­
ma mercadoria que o Estado do bem-estar não conseguiu su­

69
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

perar. Parte do seu ocaso é devido também a uma transforma­


ção ocorrida nos sujeitos que o construíram. E muito evidente
que mudou a constituição das classes sociais. Se antes havíamos
assistido a um deslocamento das classes, eu diria de privadas
para classes sociais públicas, no sentido da sua reprodução,
hoje estão ocorrendo fortes transformações. Por que se sur­
preender com o fato da taxa de sindicalização cair nos países
mais desenvolvidos? Exatamente porque o Estado do bem-es­
tar universalizou-se, aquilo que dependia da sua filiação ao
sindicato, de um certo partido que chegava ao poder, não de­
pende mais disso. Qual o incentivo para ser sindicalizado hoje?
Há uma erosão pela base naqueles sujeitos que construíram o
próprio Estado do bem-estar, e daí vem parte do seu ocaso.
Mas, em grandes linhas, eu diria que esse ocaso é mais apa­
rência do que realidade.
N o que diz respeito à disputa pelos fundos públicos, a classe traba­
lhadora está perdendo terreno em relação aos direitos que havia as­
segurado antes?

Não. Essa derrota não é tão grande como a gente pensa.


Exatamente pelo fato de que essas coisas se universalizaram.
O que está havendo de fato - e daí a erosão das bases sociais
do Estado do bem-estar - é a desregulamentação do trabalho,
a destituição de direitos sociais e trabalhistas. Aí sim vai afetar
essas bases sociais.
O que você está dizendo é que, do ponto de vista dos fundos públicos,
os direitos de saúde, educação etc. permanecem, mas no plano privado
da produção ali sim estão sendo destruídas as bases sociais do Estado
de bem-estar?

Sim. Mas, evidentemente, essa destruição no plano das


relações privadas vai atingir o público...
Ainda não atingiu?

Ainda não. Os gastos sociais continuam até a crescer como


parte do PIB nos principais países desenvolvidos, e a direita e
o capital tentam dar solução a isto através do corte desses

70
POLÍTICAS DO ANTIVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

gastos no plano da produção, como está sendo demonstrado


nos países mais desenvolvidos.
Você resumiría sua reflexão na afirmação de que, por enquanto, está
se perdendo mais salário direto do que salário indireto?

Por enquanto é isso. Mas uma coisa pode implicar a outra


c, sobretudo, ao se retirar a base direta se solapa não somente
o indireto como também direitos de cidadania. Há um pro­
blema mais sério e mais importante, teórica e praticamente,
que é a destruição da esfera pública.
Como se dá essa destruição?

Poderiamos reconstruir uma musiquinha do Centro Popu­


lar de Cultura da UNE, nos anos 50, que contava o que era
um brasileiro. Ela dizia que o sujeito acordava de manha, es­
covava a boca com Colgate, fazia a barba com Giíette e por aí
ia. Era a crítica básica do CPC ao imperialismo.
Se analisarmos hoje o cotidiano de um executivo da grande
burguesia em São Paulo, por exemplo, que noção de público
pode ter essa pessoa? Fazendo uma paródia com o brasileiro
da musiquinha do CPC, o que está na experiência subjetiva
radical da alta burguesia e da alta classe média de hoje é uma
intensa privatização. Ele não toma nenhum transporte público,
ele não tem contato com absolutamente nenhuma pessoa do
povo. Sai de manhã, toma seu carro, que é seguido na frente
e atrás por dois carros de segurança. Nos casos mais exagera­
dos, o sujeito já viaja de helicóptero. Não tem nenhum contato
portanto com nada que seja comum, para não falar de público.
Chega na sua empresa, mete-se num desses edifícios chamados
inteligentes, onde nem existe ascensorista. Usa um crachá ele­
trônico, vai para o seu escritório e só fala com instrumentos
eletrônicos. No máximo, ainda existe a secretária, que já está
virando uma pessoa em desuso! Esse cidadão sai para almoçar
geralmente num restaurante privé, freqüentado por gente igual
a ele, quando não é no próprio restaurante da empresa. Ter­
mina o dia, se é um sujeito estilo Antônio Ermírio de Moraes,

71
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

meio caipira e mão-de-vaca, vai para casa. Se não, tem obri­


gações sociais nas quais se encontra sempre com gente seme­
lhante. Quando se trata de um tipo mais à última fase do Oíacyr
de Moraes, vai gastar o dinheiro nos grandes salões da alta
burguesia. De público e comum com o resto da sociedade, esse
cidadão não tem nenhuma experiência. Esse é o sentido radical
da privatização. Esta é a ameaça mais radical à esfera pública.
Daí entender, evidentemente discordando, essa fúria privati-
zante. Essa privatização não é só ideológica, é uma experiência
radical de vida. O fato de o transporte ser ruim em nada co­
move um empresário desses. Antes, eles tinham que contrace­
nar diariamente com experiências de subjetividade porque os
operários iam reivindicar diretamente. Hoje, ele vive num
mundo virtual, privado.
Do ponto de vista das relações internacionais, que tipo de transfor­
mações você vê?

Do ponto de vista das relações intercapitalistas, não vejo


nada de bom. De tanto desrégulamentar, os países capitalistas
vão se enfrentar brevemente com uma competição mortal e
vão se preparar para isso. A China já acabou com a indústria
de brinquedos no mundo inteiro, está acabando com a têxtil
e acabará com a indústria eletrônica de pequenos aparelhos.
Quando somar-se a isso a Rússia - com mão-de-obra barata
que tem - e o Brasil e a índia se juntarem, chegará a hora da
barbárie no comércio internacional. Eles desregulamentaram
e os desregulamentados vão cobrar a fatura!
Os países desenvolvidos estão tentando se cercar das maio­
res garantias e constituir nas nações subdesenvolvidas - para
usar um termo forte - uma espécie de sátrapas que governem
em nome deles. Mas isso não vai resolver por muito tempo.
D entro dessa lógica, não seria irracional p o r parte dos países
avançados estar p ratican do essa desregulam entação, uma vez
que eles próprios estariam p rom oven d o algo que brevem ente irá
prejudicá-los?

72
POLÍTICAS IX ) ANT1VALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

A China produz, por exemplo, gravadores pequenos, mas


r investimento de uma firma inglesa ou sob licença de uma
firma de Taiwan ou do Japão. É difícil, no entanto, pensar que
a China vai ser eternamente uma província de produtos de
exportação. Ela está fazendo isso para ganhar dinheiro.

Então, quem estã forçando a desregulamentação é o capital privado,


e quem vai pagar a conta é a população?

Sim. A população dos dois lados pagará a conta: a dos


países desregulamentados, que em parte já está pagando, e a
dos países mais ricos que vão manter uma taxa de exclusão
que tende a ser crescente. Como a Europa não conseguiu ainda
sua unificação monetária, os Estados Unidos continuam fazen­
do do dólar a moeda hegemônica. Quando a Europa conseguir
essa união monetária, em 1999, isso mudará, porque os Esta­
dos Unidos estão com 5% de desemprego - o que é um milagre
quando a França tem 10% e a Espanha 24% - mas fazem isso
porque têm uma grande margem de manobra por terem a
moeda de emissão mundial.
Você não credita à desregulamentação do mercado de trabalho ame­
ricano essa taxa de desemprego baixa?

Tem mais a ver com a hegemonia monetária do que com


a desregulamentação, porque o mercado americano é desre-
gulamentado há muito tempo do ponto de vista da importação.
Os americanos pagam o preço de uma balança comercial de­
ficitária que jamais poderão reverter, de uma dívida externa
que jamais poderão pagar e que eles manejam.
As possibilidades de desenvolvimento do capitalismo no Brasil são
grandes dentro deste contexto?

São grandes sim. O Brasil é e será um dos lugares de in­


vestimento privilegiado, não há nenhuma dúvida. O Brasil será
desregulamentado evidentemente se as forças sociais que se
opõem não conseguirem deter essa onda, e eu não acredito
que consigam, pelo menos a curto prazo. Há hoje um bloco

73
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

no poder que tem virtualidade hegemônica. Reverter esse pro­


cesso é algo que vai demorar muito mais tempo.
O governo Fernando Henrique está explorando convenientemente as
brechas no cenário internacional, de maneira a proporcionar a melhor
taxa de desenvolvimento das forças produtivas internas?

Não. Acho que ele está aceitando a desregulamentação.


Haveria outras alternativas de explorar de forma mais inte­
grada, que produziríam inclusive taxas de crescimento muito
mais altas. Ele as explora porcamente. Isso vai produzir, en­
tretanto, em muitas regiões, um desenvolvimento grande e em
outras produzirá desintegração. Todo esforço de cmqüenta
anos vai começar a dar para trás. Esse governo tem uma estra­
tégia que é de fazer do Brasil a cabeça de uma integração la­
tino-americana, da qual evidentemente o país trata de tirar o
melhor partido, mas é uma integração completamente desre-
gulamentada e que, no interior dos países, não integra popu­
lações, não amplia o mercado interno. Há alternativas mais
consistentes que dariam até melhores possibilidades de com­
petir internacionalmente. Mas essas são opções de classe, po-
lítico-ideológicas, e eu não estou no lugar dele para propor.
Mas os economistas do governo afirmam que a estabilização mone­
tária em si incluiu no mercado um contingente de consumidores que
nenhuma política social stricto sensu conseguiría e que, portanto,
traz conseqüências positivas do ponto de vista social...

Isso é ficção. Na verdade, o que houve com a estabilização


é o que os economistas chamam de queda do denominado
imposto inflacionário. A inflação retirava dos pobres porque
eles não tinham mecanismos de defesa contra ela, não tinham
como aplicar financeiramente ou no mercado de capitais. Com
a estabilização, o imposto inflacionário deixa de funcionar, e
com isso os pobres passam a consumir. Isso ocorre em todos
os momentos em que o fenômeno da imediata monetízação é
intenso, como aconteceu depois do Plano Cruzado. Mas seu
efeito já terminou. Quero ver daqui para frente!

74
POLÍTICAS DO ANTÍVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

A tendência é de queda do salário real a partir de agora?

A tendência do salário real é de cair ou crescer numa taxa


muito pequena. Num país como este, com as enormes desi­
gualdades, a taxa de crescimento que a Salomon Brothers -
que é uma corretora e um banco de investimentos que segue
de perto a economia brasileira porque tem altos interesses aqui
- está projetando é de 2,2% para o ano de 97. Não é nada
promissor. Um país como este tem de crescer, no mínimo, 5%
a 6% ao ano com melhor distribuição de renda.
O que seria uma política de integração que contemplasse as suas
preocupações?

E difícil precisar, mas creio no entanto que vigorosas


políticas sociais ainda são a melhor forma de distribuição
de renda. Evidentemente, se combinadas com uma boa taxa
de crescimento econômico de 5% a 6% ao ano. Nós sabemos
que a melhor educação não depende do mercado. Portanto,
uma política social vigorosa é insubstituível como elemento
de distribuição de renda, mesmo quando o salário real está
crescendo. O mercado só realiza muito parcialmente a me­
lhoria na distribuição de renda. Nos anos gloriosos do mi­
lagre, quando se pensava que só o crescimento do salário
real era suficiente para redistribuir renda, a classe média
abandonou o ensino público. Quando os salários da classe
média se deterioraram, ela quis voltar para a escola pública,
mas esta estava liquidada. Por isso, eu advogaria uma boa
taxa de crescimento e vigorosas políticas sociais porque é
por aí que passam educação, saúde, lazer e cultura de qua­
lidade.
Falando nos seus próprios termos, o salário direto está mais sujeito
ao ciclo dos negócios enquanto o salário indireto tem uma estabilidade
que se sustenta no tempo e que serve de garantia inclusive para a
cidadania?

Exatamente.

7S
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Q ual o papel da esquerda hoje no Brasil e no mundo? Q ual o papel


do intelectual, do militante, dentro desse cenário?

Eu sou um PT light. Acho que o PT não tem do que se


envergonhar nesse curto período de existência, em que con­
tribuiu enormemente para a democratização da vida brasileira.
De imediato, a tarefa do PT é lutar bravamente para que a
hegemonia de FHC - que é virtual - não se consolide, isto é,
lutar para que este credo não se transforme em senso comum,
o que é o mais perigoso. Tentar construir uma alternativa sig­
nifica combater em todas as frentes possíveis essa virtualidade
hegemônica muito forte que está se desenhando no Brasil.
Evidentemente, enfrentar o governo e todas as formações ad­
versas em todas as frentes possíveis - prefeituras, eleições, sin­
dicatos - é um trabalho que não é de curto prazo. O que o PT
não deve nunca tentar fazer é parecer bonzinho. Não no
sentido de uma velha discussão bizantina que houve no PT,
se nós vamos administrar o capitalismo ou não. Para mudar
o capitalismo é preciso primeiro saber administrá-lo. Não
é essa a questão. O PT não deve ser bonzinho no sentido de
tentar melhorar esse programa aqui, aquele programa acolá.
Essa foi a tônica de certos discursos nas últimas eleições
municipais. O que está aí é muito forte e o PT se assustou.
Mas ele tem que continuar a dizer a esse país que ele precisa
de reformas vigorosas, profundas. Não como a vanguarda
iluminada que sabe mais do que o povo, mas como aquele
que é na essência diferente do senso comum. O partido deve
continuar essa batalha, a curto e médio prazos, para criar a
possibilidade de que a hegemonia virtual que se desenha não
se instaure. O projeto hegemônico que temos que combater
é talvez o mais consistente que os grupos, classes e blocos
dominantes no Brasil jamais tiveram. E esse é um desafio
que não pode ser subestimado.

76

i
PARTE II

A Q U A SE -H E G E M O N IA

Bases materiais e sociais da dominação burguesa no brasil


A Metamorfose da Arribaçã
Fundo público e regulação autoritária na
expansão econômica do Nordeste*

O processo de integração sob a “regulação autoritária”

Desde a criação da Sudene, em 1959, e mais especifica­


mente, desde a entrada em ação dos mecanismos de dedução
fiscal para investimentos no Nordeste, conhecidos anterior­
mente como dispositivo 34/18 e hoje como Finor, a região
nordestina vem sofrendo importantíssimas transformações
econômicas e sociais. A inteligibilidade desses processos é aces­
sível nos quadros de sua progressiva integração à dinâmica da
economia nacional, e por conseqüência, do processo de acu-

,l Publicado em N o v o s E stu d o s, São Paulo, Cebrap, n. 27, julho de 1990, p. 67-91.


Este texto sintetiza o relatório da pesquisa “ Estrutura de Poder no Nordeste Pós-Su-
dene”, encomendada pela diretoria de Programação Global-DPG, da Superintendên­
cia do Desenvolvimento do Nordeste-Sudene, ao Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento - Cebrap. Participaram da pesquisa, além do autor do texto (coorde­
nador), os seguintes auxiliares de pesquisa: Carlos Alberto Beijo e Silva, Elson Luciano
Silva Pires, Hélio Francisco Corrêa Lino e Marcelo César Gouvêa. O principal objetivo
da pesquisa foi oferecer um quadro de referências atualizado para marcar as possibi­
lidades e os limites do planejamento regional. Neste sentido, o estudo das estruturas
de poder engendradas e/ou reforçadas pelas transformações econômico-sociais em
curso desde a criação da Sudene passa a ser o ponto focal para avaliação daquelas
possibilidades. As fontes estatísticas utilizadas na pesquisa foram publicações de órgãos
públicos (BNDES, FIBGE, Sudene etc.), de entidades sindicais de trabalhadores (DIEE-
SE) ou patronais (FIESl^ Febraban) e publicações econômicas especializadas (Visão,
G u ia In terin v est).

79
OS DIREITOS DO ANTÍVALOR

mulação de capitais, da ação do Estado, da internacionali­


zação produtiva e financeira, da anulação da presença polí­
tica de algumas classes e setores sociais, da repressão e
centralização políticas operadas pelo Estado autoritário, en­
tre outros muitos fatores.
Um resultado talvez não esperado é, de certa forma, a
desregionalização da economia regional, que se coloca como
par num ambíguo processo que, do outro lado, reifica a região,.
já agora do ponto de vista da ação dos mecanismos financeiros
que o presidem.

Para verificar as transformações da base econômica nordestina, procedeu-se ao


levantamento das informações sobre o PIB regional, determinando sua magni­
tude e composição e sua repercussão no emprego. O estudo do setor industrial
possibilitou a análise desagregada em nível de gêneros: é o único setor da eco­
nomia para a qual se procedeu a uma análise a este nível. Os capitais envolvidos
nas modificações da base econômica do Nordeste foram determinados através
da identificação das 1.300 maiores empresas da região, segundo o faturamento
e o patrimônio. Em seguida, procurou-se determinar a articulação e o grau de
concentração destes capitais obtendo-se, desta forma, uma relação dos principais
grupos econômicos que atuam na região e o impacto provocado pela sua atuação
na economia regional. A determinação dos principais agentes financiadores da
acumulação fez-se através do estudo do setor financeiro, das instituições públicas
de financiamento e do principal incentivo fiscal aplicável à região, a saber, o
Fundo de Investimentos do Nordeste - Finor.
A força de trabalho e as associações de classe foram estudadas com a intenção
de perserutar sua influência na economia e nas relações sociais da região.
Desta forma, procurou-se determinar o grau de organização dos trabalha­
dores e empresários, os níveis de rendimentos, a participação relativa dos
trabalhadores com e sem carteira assinada no mercado de trabalho etc.; os
resultados obtidos sobre a força de trabalho, salários, estrutura das ocupa­
ções e relações de trabalho são limitados, dngindo-se a informações das
PNADS; quanto aos demais objetivos, a rigor são indicações para futuros
aprofundamentos. Na ótica de privilegiar a ação concreta dos sujeitos e
atores da transformação regional, procurou-se abrir uma via de investigação
sobre a formação e circulação das elites empresariais, públicas, estatais e
privadas. O entrelaçamento dos interesses, sua representação política, o grau
de aderência entre esta e as novas estruturas de poder na região resultaram
apenas sugeridos, necessitando-se, pois, de desdobramentos futuros para
conhecerem-se, com maior veracidade, numa palavra, as relações entre eco­
nomia e política na região.

HO
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

As transformações ocorridas não se deram numa “ terra de


ninguém” . Há mais continuidade no Nordeste transformado
do que na Amazônia redefinida a partir dos grandes projetos-
impacto promovidos pelo regime autoritário; mas há profun­
das rupturas. O todo resulta num tecido misto, em que se
combinam continuidade e ruptura, isto é, a resistência de ve­
lhas estruturas nordestinas, como é o caso particularmente
do campo, e as novas estruturas erguidas a partir do período
em referência, como é o caso do pólo petroquímico de Ca-
maçari, na Bahia. Mas uma dêmarche arqueológica resulta­
ria vã, pois o que se encontra não são camadas consistentes
que se superpõem, mas um solo misto, combinado, arga-
massado, cujos elementos constitutivos interagem dinami­
camente. O vasto setor informal, nome eufemístico para
uma vastíssima ampliação do exército industrial de reserva,
é novo ou velho? As duas coisas.
São dois os elementos mercantes desses processos, que os
fazem alvos excepcionais para o estudo da função do fundo
público no capitalismo oligopolista contemporâneo, com as
especificidades do caso brasileiro. Por um lado, a atuação das
empresas estatais. O que poderia levar imediatamente à deri­
vação de que foi a ação do Estado a responsável pelas trans­
formações. Numa repartição clássica entre público e privado,
tal conclusão encontraria apoio nos fatos. Mas, trata-se de
“ empresas estatais” e não do Estado, embora as fontes dos
recursos destas, e mais, do próprio setor privado, que finan­
ciaram o processo de acumulação sejam, inequivocamente, es­
tatais, mas não “públicas” . Aqui reside uma sutil mas notável
diferença, que dá o tom a todo o processo ocorrido - e em
expansão - no Nordeste, como ademais no Brasil, que marca
o caráter específico desse Estado do mal-estar. Baseadas e ali­
mentadas por recursos estatais, as empresas não são públicas:
esta metamorfose, obra do autoritarismo e marca do “ capita­
lismo selvagem” , é a sutil diferença que separa a utilização dos
fundos estatais, em casos como o do Nordeste e o do Brasil,
do processo da regulação pública, característico do Welfare
State. Os fundos são estatais, mas a lógica do desempenho das

81
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

estatais é privada. No outro lado da suposta fronteira, no setor


privado, a propriedade é privada, mas a argamassa, os fundos
para capitalização, são estatais. Na definição de Rangeon, ha­
vería uma privatização do público, mas não há uma publíci-
zação do privado1.
Essa ausência de uma esfera pública reproduz, no Nordes­
te, o vasto processo posto em marcha no Brasil desde a segunda
metade dos anos 50 e levado às últimas conseqüências pelo
Estado autoritário. Os efeitos concentracionistas da expansão
econômica não são, prima fade, pura derivação do crescimen­
to econômico; poderíam sê-lo no século X IX , mas não hoje.
A má distribuição de renda, a aberrante estrutura de salários -
ver-se-á como, no Nordeste, depois de trinta anos quase ininter­
ruptos de crescimento econômico, 57% dos empregados rece­
biam até 1 salário mínimo*2 - são inequívocos resultados da
ausência de uma esfera pública, e exatamente ao contrário do
que apregoam os neoliberais, da ausência do poder regulador do
Estado sobre os mecanismos do mercado; ou, especificando me­
lhor, o público se privatiza apenas numa direção, na direção da
substituição dos fundos da acumulação privada pelos estatais,
mas não há contrapartida no sentido de corrigir o mercado em
termos de salários, distribuição de renda etc.
Os mecanismos financeiros que presidem à expansão ca­
pitalista no Nordeste configuram o novo papel dos fundos
públicos nos processos de constituição do capitalismo contem­
porâneo. Poderíam ser listados como estando na vanguarda,
precoce, de um capital financeiro em geral, que se arma a partir
dos fundos públicos, se concretiza e se torna capital privado
na órbita da produção, se traveja na mordernidade de uma
nova relação capital-trabalho, irriga o bem-estar na forma dos
gastos sociais públicos, escanteia o acaso e o aleatório dos
processos da reprodução econômica e social até o limite do
possível em contextos históricos determinados, e potência, de

Rangeon, F., Lidéologie de Vinterêt général. Paris, 1986.


2 Vide “Estruturas de poder no Nordeste pós-Sudene”, Tabela BII: le e ld.

82
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

forma inimaginável para o século X IX , a própria capacidade


de expansão e renovação do sistema.
Mas, no meio desse processo, algo ocorre: a contribuição
financeira do Finor (que é uma dedução do imposto de renda)
às empresas toma a forma de certificados de investimento de
propriedade dos investidores/dedutores (empresas e pessoas
físicas). Nos leilões do Finor, os certificados são transformados
em ações das empresas nas quais se fizeram aplicações. Essa
transformação, a rigor, interessa apenas às próprias empresas
que utilizaram o Finor, pois tais ações são inegociáveis durante
quatro anos. Além disso, compõem o capital de empresas de
pouca visibilidade à percepção dos investidores de Bolsas de
Valores. Nestas condições, as próprias empresas beneficiadas
pelo Finor recompram suas ações (derivadas dos certificados),
transformando o mercado acionário do Finor em um mercado
cativo, na verdade uma ficção de mercado de capitais. A prática
tem sido a de as empresas recomprarem suas próprias ações a
preços que sequer atingem 10% de seu valor real'1; percebe-se
a intransparência do sistema e a não-publicização do privado,
na medida em que o Finor pagou pelas ações um valor 10 vezes
maior do que o valor de venda. Neste percurso, perde-se in­
teiramente o controle dos apartes públicos à formação de ca­
pital das empresas; privatizam-se os fundos públicos e não se
publiciza o privado. Eis o Estado do mal-estar.
Os congressistas do Nordeste foram uma das bases mais
fortes de sustentação parlamentar do Estado autoritário. Não
foram os únicos, nem os principais. A ação do Estado po­
dería parecer, à primeira vista, uma troca entre apoio polí­
tico e investimentos estatais. Mas, exatamente no núcleo da
relação fundos públicos/acumulaçao privada, o Congresso
castrado do regime autoritário não atuava, impedido de le­
gislar sobre orçamento e de interferir nas empresas estatais.

1 Dc acordo com Tabela G .l, p. 141, do relatório “Avaliação dos Incentivos


Fiscais Regidos pelo Decreto-Lei 1376”, IPEA, 1986.

83
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Gabe notar que a representação parlamentar do Nordeste,


eleita para os trabalhos constituintes, reafirmava uma velha
tradição: é a bancada de menor índice de renovação, se com­
parada a Estados de outras regiões. E na sua grande maioria,
as raízes políticas mais importantes dos constituintes são a
Arena e o PDS4. E difícil supor, neste caso, que essa velha
matriz política tenha algo a ver com as modernas empresas
estatais, e com a nova forma de associação entre elas e os
capitais privados, nacionais e estrangeiros. Aliás, alguns dados
levantados pela pesquisa-base deste artigo indicam que nas
16 2 empresas que têm ações negociadas em Bolsas de Valores
(entre as 1.000 maiores), 2 13 dos membros das diretorias não
tinham nenhuma passagem pela política institucional5. O dado
não é suficiente senão para sugerir que uma nova forma de
política - os “ anéis burocráticos” de F.H. Cardoso - ganha
preeminência sobre as velhas formas de representação ou de
circulação das elites.
Mas, sem dúvida, há uma sobredeterminaçao superior aos
processos particulares, que responde pelo todo: a existência
do Estado autoritário. E ela que desenha os perfis da mescla
estatal-privado, eliminando o público, justamente pela ausên­
cia de uma esfera que, emanando do social, regularia politica­
mente os conflitos. E a mesma sobredeterminação presente no
movimento do “ capitalismo selvagem” em escala nacional. Se
os movimentos das classes sociais, no caso das burguesias re­
gionais e mesmo das burguesias nacionais e internacionais,
buscando expandir-se e hegemonizar o espaço econômico re­
gional e nacional, são causas insuficientes para explicar as for­
mas que tomou a expansão econômica no Nordeste; se os
movimentos das elites políticas no Nordeste estão claramente
à margem do movimento da economia, não se podendo por­

4Ver “Estruturas de poder...” op. cit., tabelas BII: 4 a 11, elaboradas a partir
dos dados de Leôncio Martins Rodrigues, Quem é quem na Constituinte, S.
Paulo, OESR 1987.
5 Sobre altos escalões das empresas e suas relações de poder, vide “ Estruturas
de poder...” , op. cit,, tabela BII: 3

84
A METAMORFOSE DA ARR1BAÇA

tanto buscar uma relação de representação entre a economia


e a política que explicasse essa mescla como expressão de in­
teresses, a existência do Estado autoritário incorpora esses in­
teresses e essa ausência de relação numa forma especial que se
torna a nova norma. A condição necessária é a eliminação das
alteridades sociais e sua não-transformaçao em alteridades po-
Iíticas. A regulação autoritária é, assim, simultaneamente, uma
expressão das relações de força no interior da economia sem
alteridade sociopolítica, e uma estatização-privatizaçao do pú­
blico. Ela não se contrapõe ao privado, como pensa o catecis­
mo neoliberal pedindo “ menos Estado” e “ menos regulação” ;
ela elimina o público, e como decorrência perverte a própria
ação estatal, que perde o poder de estabelecer as diferenças
entre interesses gerais e particulares. Nisto consiste o que tem
sido chamado a “privatização” do Estado.

bundo público e empresas estatais:


teoria e prática da "ruptura” regional

Uma lista sumária indica as principais vias pelas quais to­


mou forma a utilização dos fundos públicos na expansão eco­
nômica nordestina pós-Sudene:
a) recursos da União apartados através das empresas esta­
tais;
b) incentivos fiscais concedidos pela Sudene, que incluem,
ademais da própria dedução fiscal para investimentos, conhe­
cida hoje como Finor (antes dispositivo 3 4 118 ), isenção de
imposto de renda para certas atividades após sua implantação;
mesmo atividades econômicas pré-Sudene beneficiaram-se da
isenção, quando transformadoras/utilizadoras de matéria-pri­
ma regional;
c) isenções concedidas pelos governos estaduais e munici­
pais (ICM e impostos sobre serviços);
d) isenções concedidas por outros organismos de coorde­
nação e planejamento, como o CDI-Conselho de Desenvolvi­
mento Industrial, para casos de importação de equipamentos
sem similar nacional;

85
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

e) recursos na forma de participação acionária através do


Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) e/ou do Banco do Nordeste do Brasil (BNB);
f) financiamentos do BNDES e do BNB, a taxas favorecidas;
g) financiamentos doBancoNadonal de Habitação (BNH)/Ban-
co Mundial, para infra-estrutura industrial e saneamento.
Essa nutrida lista é a mesma para o Brasil como um todo,
revelando, pois, que o padrão de fínanciamentoAitilização de
recursos públicos que preside à expansão da economia nor­
destina é o mesmo que foi utilizado pelo Estado autoritário
para a economia nacional, levando à exaustão e aos impasses
atuais de déficit e dívidas públicas interna e externa, à erosão
da carga tributária bruta, à incapacidade de investimento do
Estado e à inflação.
Os incentivos fiscais do tipo dedução do imposto de renda
foram exclusividade do Nordeste; logo após foram estendidos
à Amazônia, às atividades de turismo e reflorestamento, aos
investimentos na Embraer e, através de legislação especial, ao
Estado do Espírito Santo. O que explica a tendência histórica
de baixa dos recursos do Finor. Vale dizer ainda, de passagem,
que os empréstimos concedidos pelo BNB e pelo BNDES às
empresas que investem no Nordeste são considerados, para
efeitos de aferição do montante de recursos do Finor a que
podem aspirar, como recursos próprios; desta “ inocente” ope­
ração de ajuste e medição decorre a já mencionada desvalori­
zação dos certificados de investimento do Finor, que dá lugar
ao “ mercado de capitais cativo” dos investidores do Finor.
Em 1985, os recursos financeiros via Finor e BNDES re­
presentaram 2 ,8 1% do PIB regional6, enquanto a formação
bruta de capital fixo (FBCF) total alcançou em 1983 (último
ano para o qual há dados disponíveis) 2 1,9 9 % 7 . A primeira

6 Idem, p. 62.
7 Vide Produto e formação bruta de capital - Nordeste do BrasiL Recife,
Sudene, 1987.

86
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÀ

porcentagem pode parecer insignificante, mas deve-se relem­


brar que na FBCF se incluem todos os investimentos, mesmo
os não diretamente produtivos, do Estado (como estradas, es­
colas, hospitais, portos etc.). Além disso, pelas vias do Finor
e do BNDES não correram fundamentalmente os investimen­
tos das estatais produtivas, que se financiam ou autonoma-
mente ou por empréstimos externos, ou ainda via subscrições
acionarias do BNDES, que não se incluem nos empréstimos.
O Finor financiou apenas 1 0 % do capital total dos grupos
estatais que atuam no Nordeste.
A face mais impactante do Finor se revela pelo lado de sua
participação no capital total das 1.300 maiores empresas do
Nordeste, que alcançou em 1985 a porcentagem de 35% para
o setor industrial, e da ordem de 65% para o setor agropecuá­
rio8. A distribuição setorial dos recursos do Finor confirma
sua importância como mecanismo financeiro da acumulação
de capitais, pois são os seis gêneros industriais mais dinâmicos
os que absorveram a maior parte dos recursos daquele fundo
(excetuando-se as empresas estatais de serviços públicos, que
se financiam diretamente junto aos tesouros, federal e esta­
duais, e em parte junto ao BNH).
O sistema Finor não funciona como instrumento financei­
ro ao alcance de médios e pequenos capitais, senão de maneira
marginal. Ele se revela como financiador e potenciador de uma
acumulação concentrada, quase oligopolista, pois os cinqüenta
grupos econômicos mais importantes do Nordeste repre­
sentam cerca da metade do capital total das 1.300 maiores
empresas e absorveram também a metade dos recursos totais
do Finor em 19 8 5 9. Se desglosadas as empresas e seus grupos
por origem/propriedade dos capitais, a análise revela que os
grupos estatais absorveram recursos do Finor da ordem de
10% de seus patrimônios totais (uma vez mais, com exceção

KSobre os recursos do Finor, vide “Estruturas de poder...” , op.cit., tabelas


AII: 3a e 3e.
y Sobre as relações entre Finor e grupos econômicos, vide idem, tabelas Aíí:
3b e 3i.

87
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

da Petrobrás), enquanto as empresas e grupos de capitais pri­


vados nacionais e internacionais que mais utilizaram recursos
do Finor o fizeram em escala que correspondeu à metade de
seus respectivos capitais. Já as empresas e grupos de origem
regional absorveram recursos do fundo que representaram cer­
ca de 35% dos seus capitais, próximo do teto formal estabe­
lecido pelo próprio Finor, que é de 40% dos investimentos.
Essas informações mostram as empresas e grupos que mais
captaram recursos do Finor como sendo os que menos desem­
bolsaram recursos próprios: o que parece ser, simplesmente,
uma lei de proporções, revela-se na verdade como “ privatiza­
ção” do fundo, no sentido já discutido de que o Estado perde
a capacidade de distinguir entre interesses públicos e privados.
O Estado é conduzido pela lógica do mercado, ao invés de
procurar corrigi-lo.
O BNDES aplicou no Nordeste em 1985 o triplo dos re­
cursos liberados pelo Finor; na divisão dos recursos do banco
coube ao Nordeste apenas 20%, acima da participação da re­
gião na economia nacional, que é de cerca de 15 % do PIB10.
O BNDES realiza essas aplicações repassando importantes re­
cursos aos bancos de desenvolvimento, como o Banco do N or­
deste, e às carteiras de desenvolvimento dos bancos comerciais
estatais dos vários Estados.
O que torna particular a ação do BNDES, do BNB e dos
bancos estatais federais e estaduais, não são suas aplicações,
mas suas fontes de recursos. O BNDES capta principalmente
fundos tipo PIS/Pasep, os quais aplica diretamente ou os re­
passa ao BNB e aos bancos estatais estaduais. Estes ainda se
socorrem de fundos sob administração do antigo BNH, prin­
cipalmente o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS), de fundos administrados pelo Banco Central e de fun­
dos internacionais, provindos do Banco Interamericano de De­
senvolvimento (BID), Banco Mundial e Eximbank nor­
te-americano. O PIS/Pasep é um fundo misto, formado por

10 Idem, tabelas AII-3e e 3f e p. 62

88
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

I% do lucro das empresas atribuído aos trabalhadores e por


alíquotas da remuneração dos funcionários públicos federais,
enquanto o FGTS é calculado sobre a folha de salários e atri­
buído a cada assalariado. Os fundos do Banco Central são de
natureza diversa, não se podendo identificar claramente suas
fontes, mas em todo caso dependentes do governo federal. E
os empréstimos de instituições internacionais são avalizados
pelo governo federal, que, assim fazendo, assume o risco de
câmbio implícito na operação, quando de sua quitação.
Todas essas fontes têm em comum seu caráter altamente
subsidiado, e, nos casos especiais do PIS/Pasep e FGTS, cons­
tituem uma verdadeira expropriação sobre seus proprietários
nominais, os assalariados em geral e os funcionários públicos.
O BNDES e o BNFI remuneravam esses fundos historicamente
a taxas de 3% ao ano, mais correção monetária. Ora, essas
taxas não alcançam sequer a remuneração das cadernetas de
poupança, que é de 6% ao ano mais correção monetária. O
BNDES empresta a taxas maiores, apropriando-se da diferença
entre o que paga e o que cobra, que reverte para seus próprios
fundos. Este é um dos aspectos da “ regulação autoritária” . Os
proprietários desses fundos não têm qualquer ingerência nas
suas aplicações. Ademais, a ação do BNDES e dos bancos es­
tatais de fomento, BNB e aqueles de propriedade dos governos
estaduais, não é especificamente nordestina. Tanto a forma das
aplicações quanto a natureza das fontes são fenômeno geral
na atuação do principal banco de investimento nacional em
todo o país; e os bancos estaduais de Estados fora da região
Nordeste também atuam da mesma maneira e socorrem-se das
mesmas fontes.
A soma de aplicações do Finor e do BNDES, que já se
indicou, alcançou quase 3% do PIB regional em 1985 e trouxe
uma qualidade nova ao processo de expansão econômica nos
quadros da “ regulação autoritária” . Genericamente, eles são
parte da crescente interação entre Estado e economia, carac­
terística do capitalismo contemporâneo, em que os fundos
públicos constituem um pressuposto de processo de acumula-

89
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

,çãoJ1 A função do fundo público nesse processo consiste, em


geral, em potenciar a acumulação para além dos limites im­
postos pela geração do lucro, utilizando uma riqueza pública
que não ê capital e que, portanto, na equação geral não é
remunerada. O fato de que os recursos do Finor são de custo
de oportunidade igual a zero, somado à alta taxa de subsídio
implícita nas aplicações dos bancos estatais, adapta-se a esse
paradigma.
Funcionando como um substituto do capital financeiro,
os fundos públicos concretizados no Finor e nos bancos estatais
cumprem vários requisitos. O primeiro deles é o de promover
uma centralização de capitais imediatamente desligados da
base produtiva, o que é clássico para o capital financeiro. De
fato, as deduções fiscais desligam-se momentaneamente da
base produtiva que gerou o imposto de renda, para só se liga­
rem outra vez à mesma no interior de cada capital em parti­
cular. A essa função própria do capital financeiro junta-se outra
que é peculiar aos fundos públicos, e que somente eles podem
cumprir: não estão sujeitos aos movimentos da taxa de lucro
de qualquer setor em particular, amarração esta que ainda pre­
side o capital financeiro stricto sensu. Esta última condição
revelou-se absolutamente necessária para romper a inércia da
economia regional anteriormente regulada pela sua própria
produção de excedente: a taxa de investimento do Nordeste
não dependeu de sua base produtiva, isto é, da geração de
lucros interna, pois se verifica que o coeficiente de inversão
regional sobre o produto é bem superior ao da economia bra­
sileira, tendo alcançado cerca de 22% em 19 8 3 112.
A primeira razão é a já indicada: elevar o coeficiente de
inversões acima da capacidade gerada pela própria economia,
A segunda razão é romper com a inércia de capitais que se
movimentavam em torno das taxas de lucro existentes nos

11 Ver Francisco de Oiiveria. “O surgimento do antivalor”, Novos Estudos.


Cebrap, n. 22, Sâo Paulo, out. 1988.
12 Vide Produto e formação bruta de capital,.., op. cit.

90
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

vários setores da ancilar economia regional, produzindo um


círculo vicioso, cuja única saída histórica foi sempre a expor­
tação de capitais para fora da região. Esse movimento é exem­
plificado pelos grupos nordestinos alçados ao primeiro time
dos grupos econômicos nacionais13, enquanto suas atividades
matrizes no Nordeste permaneciam atrasadas: o grupo Othon,
arcaico no açúcar e na atividade têxtil em Pernambuco, e um
dos primeiros grupos hoteleiros do país; o grupo Pernambu­
canas, moderno na comercialização de tecidos em todo o país,
c arcaico em suas atividades têxteis e agrícolas em Pernambuco
e na Paraíba; os grupos baianos, do antigo Banco da Bahia, e
do Econômico, arcaicos em suas atividades na Bahia - já não
são mais, tendo transitado para a indústria - e entre os mais
importantes bancos nacionais; o grupo João Santos, o terceiro
maior produtor nacional de cimento, que finca suas raízes
agrárias no Norte de Pernambuco, no mais famigerado padrão
de açúcar, álcool... e cambão.
As estatais constituem o outro importante elo na cadeia
de montagem da expansão econômica regional recente, e fun­
cionam, ao lado do Finor e do BNDES, como fundos públicos
que são privatizados, como complemento na direção do mo­
vimento de capitais. Em si mesma, a participação das empresas
de propriedade (ou com participação) estatal foi central na
mudança da composição da base industrial da região, assumin­
do duas ordens de tarefas:
a) prover a infra-estrutura citadina necessária à dinâmica
industrial e aos processos de urbanização;
b) prover os meios de produção de consumo generalizado
na cadeia produtiva, através das holdings federais empenhadas
em acelerar a concentração de capital nos segmentos de insu-
mos intermediários: Petrobrás (incluindo sua subsidiária Pe-
troquisa), Eletrobrás, Siderbrás, Telebrás, Vale do Rio Doce.1

11 Vide o ranking dos grupos econômicos, em “Estruturas de poder...”,


ojy.cit,, tabelas AII: 2b e 2c.

91
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Em termos quantitativos, a presença das empresas estatais


significa quase a metade (44%) do patrimônio líquido total
das 1.300 maiores empresas do Nordeste14*, através de duas
formas de empresas:
a) empresas na área de serviços industriais de utilidade
pública e em ramos mais modernos: os primeiros se referem
a: energia elétrica, água, esgotos, distritos industriais, e os se­
gundos a: habitação e, sobretudo, telecomunicações. São todas
empresas de controle exclusivamente estatal, tanto da União
como dos Estados;
b) holdings federais, principalmente no gênero petroquí­
mico, mas também na mineração e na siderurgia. Estas holdings
federais, Petrobrás (e Petroquisa), Vale do Rio Doce, Usiba,
constituem a solda de articulação com capitais privados na­
cionais, inclusive aqueles de origem estritamente regional, e
empresas internacionais. O conjunto dos investimentos esta­
tais produtivos - excluídos, pois, os capitais empatados em
empresas de água, esgoto, habitação etc. - contribuiu com
10% da FBCF em 1983 no Nordeste, ou 3% do PIB regional
no mesmo ano1J. Exclui-se dessa porcentagem a participação
da Petrobrás, a maior e mais expressiva delas, cujos investi­
mentos não são regionalizados.
As empresas exclusivamente estatais - de serviços indus­
triais de utilidade pública e industriais propriamente ditas -
sozinhas representam 35% do patrimônio total das 1.300
maiores empresas do Nordeste. E as estatais em associação
com capitais privados de várias origens, os outros 9%, os quais
perfazem os já referidos 44% 16 Dividindo-se o total das 1.300
empresas da amostra trabalhada em empresas de propriedade
de um só capital e empresas de propriedade de mais de um
capital, as estatais contribuem com 70% do patrimônio total
deste segundo subgrupo.

14 Idem, tabelas AI: 3a e AII: 2a.


1-1Idem, tabela BI: 2e.
16 Sobre empresas de capital associado, vide idem, tabelas AII: 2b, 2d e 2e.

92
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

Setorialmente, o predomínio dos capitais estatais se dá nos


dois maiores segmentos da economia do Nordeste - Química
e Serviços Públicos cujas empresas respondem por 46% do
patrimônio líquido total das 1.30 0 maiores empresas17.
A qualidade da função das estatais na expansão econômica
recente do Nordeste é insubstituível e forma o outro par da
equação cujo primeiro termo são os fundos públicos do Finor
e do BNDES. Esta qualidade vai muito além de seu significado
quantitativo, cuja importância foi demonstrada nos parágrafos
anteriores, e pode-se dizer que, sem a somatória Finor/BNDES
mais estatais, não teria ocorrido a expansão recente, nem se­
quer como mera decorrência espacial do forte crescimento
nacional desde o pós-guerra.
Em primeiro lugar, as empresas estatais no Nordeste de­
sempenham o mesmo papel que tiveram na industrialização
nacional desde o segundo pós-guerra. Um papel paradigmático
de proto-indústria, não no sentido de pré-indústria, mas no
sentido de prévia e pioneira: é um desempenho afirmado quase
trinta anos depois da arrancada industrial t^ue se deu nos anos
50, com Siderúrgica Nacional, Petrobrás, Alcalis, Vale do Rio
Doce, em escala nacional.
As grandes holdings federais são capital financeiro por ex­
celência, pois no seu interior elas fundem a função produtiva
c a função creditícia (quase bancária). Financiadas basicamente
por fundos públicos de extração fiscal, seus recursos desligam-
sc momentaneamente do movimento da taxa de lucro (ou de
juros), e, aplicados produtivamente, perfazem uma equação
inteiramente inovadora em meio ao primitivo circuito regio­
nal. Quando associadas a capitais privados, de qualquer ori­
gem e natureza, exponenciam sua qualidade de capital
financeiro sui generis, pois os capitais que se lhes associam
passam, também, a gozar da prerrogativa de escapar às deter­
minações da taxa de lucro, em que viviam circunscritos en­
quanto permanecessem em suas formas originárias.1

1 Idem, tabela BI-2b

93
OS DIREITOS DO ANTÍVALOR

É por essa qualidade que estas holdings formam uma es­


pécie de argamassa de todos os capitais, quando se associam.
Ancoradas nessa especificidade, elas orientam o movimento
de capitais: seus investimentos são altos comparativamente aos
demais; são simultâneos, oferecendo uma possibilidade de
complementaçao que, em meio ao movimento errático dos
capitais privados, aparece imediatamente como a melhor das
associações; pela sua elevada composição orgânica, puxam
para cima, radicalmente, a produtividade dos setores que li­
deram. Em síntese, na ausência de uma tendência à equalização
das taxas de lucro, que dirigíria o movimento dos capitais no
modelo original de Marx, são os capitais estatais que realizam
uma função análoga de orientação da taxa de lucro e, por
conseqüência, da taxa de acumulação: não pela equalização,
mas pelo seu quase-contrário: a des-equalização compartimen-
tada. Esta é sua principal função teórica, tanto no movimento
geral da industrialização brasileira, quanto no específico, re­
cente, do Nordeste, recortado no interior do quadro brasileiro
pela presença de fundos públicos tais como o Finor, cujo custo
de oportunidade é zero.

A transformação das bases materiais da produção

A dinâmica econômica promovida pela nova armação de


fundos públicos e fundos privados inscreve o Nordeste, deci­
sivamente, no processo mais geral de acumulação de capital
no país. Disso dão testemunho as inusitadas taxas de cresci­
mento do PIB regional entre 1970 e 19 8 3 18. Neste sentido,
apesar da pequena descentralização regional do PIB (Nordeste
x Brasil)19, é inegável a ampla incorporação do Nordeste à
lógica dos processos econômicos de âmbito nacional. O em­
prego nos setores da indústria e de serviços cresceu ao ponto

18 Idem, tabela AI: Id.


19 Idem, tabela AI: la.

94
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

de que a população ocupada de base urbana saltou de 37%


em 1970 para 53% da população ocupada total em 1985,
íiinda distante da média nacional (72% em 1985). Isto se deve,
sobretudo, ao “ calcanhar de aquiles” nordestino: 46% da po­
pulação ocupada total ainda estavam no campo em 1985, o
que representa o elemento de continuidade de relações arcai­
cas de emprego, num conjunto em que os avanços são bem
notáveis, apesar de tudo20.
No período 1970-19 83, a economia nordestina cresceu,
sistematicamente, acima da média nacional: 7,8% ao ano con­
tra 6,7%, segundo os dados da FIBGE e do Grupo de Contas
Regionais da Sudene21. Mais ainda: esse crescimento se deve
às taxas da indústria e dos serviços, anotando-se apenas para
a agropecuária uma taxa inferior à nacional. Observados os
períodos curtos dentro do longo período de treze anos, o com­
portamento é o mesmo, notando-se, marcadamente para o
subperíodo 80-83 (de crise e recessão), que a economia do
Nordeste mantém um comportamento positivo, enquanto a
média nacional acusou taxas negativas de crescimento indus­
trial e total. A agropecuária, como “ calcanhar de aquiles” ,
cresce sempre abaixo da média nacional, e no período reces­
sivo já sinalizado, que coincide com um pesado ciclo de secas
no Nordeste, a agropecuária regional mostrou taxas negativas
tlc -8,2 % ao ano. Para esse comportamento em geral superior
às médias nacionais contribui, sem dúvida, a forma de finan­
ciamento público já analisada, o que reafirma o caráter excep­
cional do financiamento público e das empresas estatais na
expansão econômica nordestina. Trata-se de um caráter anti-
cíclico swi generis.
Do ponto de vista da origem setorial do Produto Interno
Bruto regional, há uma marcada diferença entre os anos ex­
tremos do período, 1970 e 1983. A mais notável mudança se
dá no peso relativo da agropecuária que, de 22 %, em 1970,

’(1 idem, tabela AI: lg.


'' idem, tabela AI: ld.

95
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

decresce para 13 ,1 % do PIB em 1983. O comportamento da


série longa mostra que aqui se trata de uma tendência, e não
apenas de um dado conjuntural. De outro lado, os serviços,
que em 1970 já compareciam com 5 1,5 % do PIB, chegam a
59,3% em 1983. O peso da indústria muda pouco se conside­
rado em si mesmo: 26,5% do PIB em 1970 para 27,6% em
19 8 322.
Essas modificações parecem de pequena monta, a julgar
pelos pontos percentuais. Quando analisadas em malha fina,
elas revelam mais que à primeira vista. De fato, o aumento da
participação da indústria no PIB é atenuado pelo efeito des­
trutivo que a nova industrialização provoca23. O aumento da
produtividade do trabalho ditado pelos novos padrões de acu­
mulação reduziu a participação relativa da população ocupada
do Nordeste em relação ao Brasil em 5,5 pontos percentuais,
ao longo do período24.
Isto quer dizer que o aumento da produtividade se deu
paralelamente ou movido por um poderoso movimento de
concentração do capital, ao qual sucumbiram inúmeras indús­
trias regionais, nas quais a importância da força de trabalho
na geração do produto era bem maior. E na conta do produto
industrial o efeito líquido positivo teve que lutar contra o efeito
destrutivo; de modo que, tanto em nível do produto quanto
em nível do emprego, a aparência é de quase nenhuma modi­
ficação, o que consta, aliás, reiteradamente, das queixas regio­
nais sobre o recente desenvolvimento. Mas é na análise em
nível desglosado dos serviços que se observa, de forma pe­
remptória, o caráter capitalista das novas atividades e da nova
dinâmica econômica. De fato, a intermediação financeira,
componente dos serviços, passou de 5% do PIB em 1970 para

22 Idem, tabela AI-lc


23 Ver Francisco de Oliveira. Elegia para uma re(li)gião. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 3.ed., 1981.
24 De 33,0% em 1950 para 27,5 % em 1985. Ver “Estruturas de poder..... ”,
op.cit., tabela AI:le.

96
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

õ,6% em 19 8 32\ Ora, intermediação financeira nas contas


nacionais é, sobretudo, uma medida do lucro das instituições
linanceiras. Ou seja, o caráter capitalista das novas atividades
tio Nordeste requer, como em qualquer economia, não apenas
uma monetização da atividade econômica, mas é ainda forte­
mente exigente do ponto de vista da circulação de mercado­
rias, através do crédito bancário.
Adicione-se a isso o crescimento das rendas e salários e
dos lucros industriais, e ter-se-á uma resposta parcial para um
incremento da intermediação financeira, a qual se relaciona
com o mercado de poupanças, um incipiente mercado de ca­
pitais e mesmo com a circulação dos recursos públicos do Fi­
no r, BNDES, Banco do Nordeste e estatais. É evidente também
que o subperíodo 1980-83 é aquele no qual as taxas de juros
começaram a crescer, sistematicamente, na economia brasilei­
ra, coincidindo com a chamada “ crise das dívidas externa e
interna” , o que poderia contribuir para inflar a intermediação
financeira no PIB nordestino. Entretanto, os estudos nacionais
a respeito anotaram que apenas em breves períodos conjun­
turais a taxa de juros foi real e positiva, tendo sido, na maior
parte do longo período analisado, negativa. Essa anotação re­
força a possibilidade de que o crescimento da intermediação
financeira no PIB nordestino reflita, de fato, crescimento real,
devido às modificações da base produtiva e em geral ao caráter
nssumidamente capitalista da nova dinâmica regional.
O crescimento dos serviços poderia, de outro lado, ser
atribuído ao crescimento do chamado setor informal da eco­
nomia. Isto é, aliás, uma constante nas análises sobre o cres­
cimento do Nordeste, mesmo nas mais aparelhadas conceituai
e estatisticamente. Impressionisticamente, a paisagem das
principais cidades do Nordeste reforça essa interpretação:
qualquer grande cidade do Nordeste parece-se, hoje, mais com
um mercado persa do que com uma cidade ocidental. As es­
tatísticas daPNAD reforçam essa impressão: em 1985, do total*

■’A Vide nota 7.

97
OS DIREITOS DO ANTFVALOR

de empregados, 60,1% eram trabalhadores sem carteira assi­


nada - o que é a melhor aproximação estatística do trabalho
informal - e, destes, apenas 25% ganhavam acima de 1 salário
mínimo20. Embora a paisagem das cidades-bazares seja confir­
mada do ponto de vista do emprego, pelas estatísticas da
PNAD, o mesmo não ocorre no quadro das contas nacionais.
Em outras palavras, o sistema de contas nacionais não mensura
o setor informal, quase por definição, pois suas atividades são
clandestinas, não do ponto de vista da visibilidade mas do
ponto de vista jurídico-fiscal e econômico. No máximo, as
estatísticas das contas nacionais conseguem registrar a produ­
ção de bens industrializados comercializados pelo setor infor­
mal, e assim mesmo de forma subestimada. Assim, pode-se
afirmar que o crescimento econômico dos serviços, tal como
aparece, captado e medido pelas contas nacionais, correspon­
de à realidade.

As estruturas do poder econômico


na transformação da base material

A integração do Nordeste à dinâmica global da economia


brasileira produziu importantes deslocamentos na estrutura
da propriedade burguesa. Esses deslocamentos são verso e re­
verso dos mecanismos da expansão regional: de um lado, o
fundo público atuando como argamassa principal dos capitais;
de outro, uma mobilidade de capitais permitida apenas pela
alta concentração econômica em escala nacional, vale dizer,
pelo poder oligopólico dos principais grupos. O processo pode
ser sintetizado como o de uma des-regionalizaçao burguesa
que se completa ou se perfaz por uma perequação da própria
burguesia como classe social nacional, não apenas do ponto
de vista de uma hegemonia abstrata, mas concretamente, isto
é, seus capitais, seus interesses, seus investimentos, seus lucros26

26 Vide “Estruturas de poder...”, op.cit., tabelas BII: lc e le.

98
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

estão fincados hoje na equação regional, também como formas


iliferenciadas de seu poder nacional.
O primeiro e notável deslocamento se dá do ponto de vista
da participação da agropecuária na formação do PIB regional.
A queda da presença das atividades rurais quer dizer perda de
poder econômico por parte dos grupos proprietários agrários;
a participação de 13 % no PIB regional dá uma dimensão dessa
perda27. Não se trata, no caso, de grupos burgueses, mas da
velha forma latifúndio-minifúndío, tão característica do Nor­
deste, e sobretudo dos grandes proprietários rurais. Essa perda
não é, totalmente, transformação, metamorfose, no rumo do
empresariamento das atividades rurais. Ela é mais perda mes­
mo, no sentido já indicado também na Elegia de que a inte­
gração dos mercados nacionais iria solapar as velhas produções
e suas estruturas correspondentes. Daí que na amostra utiliza­
da pelo estudo que fornece a base para este ensaio, apenas 175
empresas agropecuárias comparecem, respondendo por tão-
somente 0,8% do faturamento total das 1.300 maiores em­
presas, em flagrante contradição com o peso da agropecuária
na formação do PIB regional28.
Eppur se muove. A soma dos saldos dos financiamentos
pelo Sistema Nacional de Crédito Rural para o Nordeste mais
as aplicações do Finor agropecuário já alcançava, em 1985,
52% do Produto Agropecuário regional, o que significa dizer
que a reprodução do capital já se dá, crescentemente, pela via
do capital-dinheiro, substituindo as formas clássicas da relação
latifúndio-minifúndio.
Entretanto, percebe-se o peso ainda grandemente deter­
minante do setor agropecuário no Nordeste - se não do ponto
de vista da antiga expressão do latifúndio, do poder econômico
tio coronelato - mas de outro ângulo: na feitura do mercado
de força de trabalho, na estrutura da distribuição de renda e,
o que talvez seja ainda seu grande triunfo e ao mesmo tempo

' Idem, tabela AI: le.


"NSobre agropecuária, vide idem, tabelas BI: 4a a 4d.

99
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

o handicap do Nordeste, na sociabilidade geral e nas estruturas


mais localizadas do poder. Embora produzam apenas 13 % do
PIB regional, as atividades agropecuárias ainda retêm 46% da
população ocupada total em 19 8 529. Essa contradição entre
base material do poder econômico e controle de uma parcela
expressiva da população ocupada e de seus dependentes pro­
duz, no Nordeste, alguns fenômenos que, à primeira vista,
parecem paradoxais. O primeiro deles é uma certa impercep-
tibilídade das mudanças, permanecendo os proprietários ru­
rais, e sobretudo algumas de suas mais especiais categorias,
como referências sociais e políticas de primeiro plano, quando
economicamente já não o são. E o caso dos usineiros de Per­
nambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, por exem­
plo. A última eleição para governador de Pernambuco - talvez
o Estado arquetípico desse conflito - opôs Miguel Arraes a
José Múcio, usineiro, filho de usineiros, neto de usineiros,
bisneto de senhor-de-engenho, tataraneto de senhor-de-enge-
nho, cujas raízes mergulham longe, no Pernambuco colonial
do século XVI.
De outro ângulo, a escassa renovação das bancadas de con­
gressistas do Nordeste pode ser explicada em parte por essa
permanência deformada. Em eleições majoritárias, o velho
curral não funciona, mas em eleições proporcionais é fato que
as velhas oligarquias continuam produzindo deputados, os
quais renovam-se longevamente nos mandatos, quase à seme­
lhança da açucarocracia pernambucana, de longe a mais lon-
geva classe dominante do Brasil, que sem dúvida pode disputar
esse duvidoso labéu em concurso mundial.
E no setor industrial que os deslocamentos e a metamor­
fose se mostram mais importantes e decisivos. Como já foi
salientado, o pequeno aumento da participação da indústria
de transformação no PIB regional esconde, mais do que mos­
tra, as mudanças que se quer assinalar. Sem nenhuma dúvida,
a indústria foi, na expansão recente do Nordeste, como de

2y Idem, tabela AI: Ig.

100
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

resto no Brasil, a chave e o motor das maiores mudanças. Em


primeiro lugar, deve-se anotar a mudança no peso dos gêneros
industriais mais importantes. O par clássico da indústria nor­
destina, produtos alimentares mais indústria têxtil, foi substi­
tuído pelo par indústria química/produtos alimentares (nessa
ordem de importância), e o último gênero quer dizer sobre­
tudo açúcar e.álcool30. Essa mudança desloca o eixo principal
da economia, da produção de mercadorias componentes do
custo imediato de reprodução da força de trabalho local para
a produção de insumos intermediários (meios de produção),
destinados ao mercado nacional e internacional.
Mesmo o álcool deve ser entendido como insumo na ca­
deia puxada e comandada pela indústria automobilística. A
indústria sucro-alcooleira pôde reciclar sua produção, em
acentuada decadência nos anos 70, através do Programa Na­
cional do Álcool - Proálcool, cujo manejo consistiu na fixação
de cotas regionalmente garantidas, independentemente da
produtividade. Essa reciclagem, de um lado, criou um segmen­
to de alta produtividade - as novas refinarias de álcool mas
de outro lado, pelo mecanismo da fixação de cotas regionais,
permitiu que o novo segmento continuasse amarrado ao velho
segmento agrícola da produção da cana-de-açúcar, levando à
diminuição da produtividade do complexo agro-sucro-alcoo-
leiro, com a manutenção das velhas estruturas agrárias das
usinas. Isto se reflete, por sua vez, na manutenção de uma alta
porcentagem da população nas atividades agrícolas, baixa pro­
dutividade e baixos salários.
A importância da indústria química para a dinâmica in­
dustrial da região é ainda mais acentuada se considerarmos os
gêneros que dela dependem diretamente - como matérias plás-
i icas, borracha, produtos farmacêuticos e veterinários -, que
apresentaram taxas de crescimento reais superiores à média
do Nordeste. Juntamente com o setor mineral, representam
47% do faturamento total da industria. De outro lado, os gê-

l(í Sobre composição industrial, vide idem, tabelas Aí: 2a a 2t.

101
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

neros industriais mais ligados ao consumo (têxtil e vestuário,


alimentação, incluindo bebidas, e outros - madeira, móveis)
somam 37% do total. Os outros 16 % da indústria estão dis­
tribuídos em gêneros de grande importância estratégica em
nível nacionát, como metalurgia e mecânica (juntos, iguais a
9% do total), e os segmentos mais modernos (material elétrico,
de transporte, papel e diversos), que fazem 7% do total.
O deslocamento do eixo da acumulação industrial revela,
visto de outro ângulo, a ruptura da inércia ou do círculo vicioso
da acumulação de capital nordestina intramuros. De fato, ape­
sar da grita regional de que a industrialização não se está fa­
zendo para a produção de mercadorias de consumo popular,
o que teoricamente quer dizer mercadorias ligadas ao custo
imediato de reprodução da força de trabalho local, o grande
problema da anterior inércia residia precisamente nesse cir­
cuito viciado e vícios. Pois sendo baixos os salários, a produção
de mercadorias componentes do custo de reprodução esbar­
rava nestes, ou na falta de mercado ou de demanda dinâmica.
Por outro lado, a produção de mercadorias componentes do
custo direto e imediato da reprodução da força de trabalho
dificilmente induz a melhorias da produtividade do trabalho.
Do que, o deslocamento do eixo para a produção de insumos
intermediários é quase uma condição para romper-se a inércia
ou círculo vicioso da acumulação. De fato, é pelo aumento da
produtividade do trabalho na produção de bens intermediários
e de capital que, pela cadeia interindustrial, o aumento da
produtividade atinge a produção de mercadorias ligadas ao
custo direto e imediato da reprodução da força de trabalho.
Do ponto de vista da estrutura de poder intraburguesa na
região, esses deslocamentos constituem uma espécie de terre­
moto, abalando velhos e indisputados domínios. E certo que
do par antigo produtos alimentares + têxtil, os produtos ali­
mentares formam um novo par, agora com a química, em po­
sição subordinada. Isto responde pelo fato de que grupos e
categorias sociais, como os usineiros (produtos alimentares —
açúcar e álcool) continuem, se não no primeiro degrau da
estrutura de poder intraburguesa, pelo menos no segundo.

102
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

Mas os grupos que assumem a química são uma inovação na


referida estrutura. De qualquer modo, feitas as contas da perda
tio poder econômico dos grupos agrários não-burgueses, do
avanço da indústria e da intermediação financeira na formação
tio PIB regional, a expansão econômica revela-se, nitidamente,
como um avanço do poder econômico burguês. Esta afirmação
deve ser atenuada cum grano salis, posto que são as empresas
estatais os novos e principais atores. Mas do ponto de vista
macroeconômico e macrossocial, a presença das estatais não
nega a expansão burguesa, senão que é sua condição sine qua
non. Trata-se de uma situação radicalmente distinta da dos
primeiros anos da década de 60, que precedem o golpe de
1964, quando o definhamento do poder dos proprietários ru­
rais combinado com o definhamento da indústria regional pôs
cm xeque o poder burguês na região, do que se salvaram pela
adesão ao movimento militar na conjuntura. Vale a pena re­
lembrar que o definhamento referido foi uma espécie de mo­
vimento de pinças, que tinha uma ponta no solapamento
econômico do Nordeste produzido pelo avanço capitalista no
Sudeste e a outra nos fortes movimentos sociais e políticos
contestadores. Puro renascimento à maneira da fênix mitoló­
gica ou o produto do novo amálgama em que os fundos pú­
blicos e as empresas estatais são a argamassa insubstituível?
Para a mitologia burguesa, renascimento; o real, entretanto,
vai muito mais para a segunda hipótese.
No magma dos capitais, a estrutura da propriedade se di­
versifica notavelmente, se reportada aos padrões antigos da
propriedade burguesa no Nordeste31. Já se salientou que a
parcela detida pelas empresas estatais é de 44% do patrimônio
total das 1.300 maiores empresas; a segunda grande parcela
cabe, talvez surpreendentemente, aos capitais de origem estri­
tamente regional: 40% do patrimônio líquido-total na indús­
tria (no conjunto das 1.30 0 maiores empresas da amostra);

u Sobre a participação das diversas origens de capital, vide idem, tabelas AI:
da c AII: 3b.

103
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

entre esses vinte gêneros estão três dos cinco maiores gêneros
industriais regionais - produtos alimentares, têxtil e metalur­
gia. Eles, os capitais regionais, se associam pouco, repre­
sentando apenas 1,6% do patrimônio total das empresas de
capital associado (outro recorte feito no estudo original, des­
tinado a verificar a formação de grupos econômicos e a asso­
ciação de capitais).
Já os capitais privados de origem nacional, do resto do
Brasil, representam 10% do patrimônio líquido total das 1.300
maiores empresas, uma importância menor do que parece pela
presença de grandes grupos privados nacionais no Nordeste.
Mas, por outro lado, associam-se muito mais do que os capitais
de origem estritamente regional, pois 1 1 3 dos nacionais estão
presentes em empresas de capital associado. Revela-se, por
esse lado, que os capitais de origem nacional estão mais aptos
a participações também financeiras, enquanto seus congêneres
regionais se caracterizam, sobretudo, pelo controle exclusivo
das empresas. Quando se analisa a presença dos capitais na­
cionais em outros empreendimentos nos quais não são exclu­
sivos, então a presença deles se eleva para 2 1% do patrimônio
total das 1.300 maiores empresas, pois estão, majoritária ou
minoritariamente, em 57% dos capitais de empresas associa­
das. O porte financeiro, a posição no ranking em seus setores,
a familiaridade com os processos de mercado financeiro e de
capitais, conferem-lhes maior viabilidade às estratégias, que,
como salientado, não se restringem à presença em empresas
sob seu absoluto controle. Aliás, retomando a questão das es­
tatais, vê-se que o capital privado nacional coloca-se, quando
não em empresas de seu controle exclusivo, preferencialmente
sob o guarda-chuva protetor das estatais: as estatais possuem
80% do patrimônio total das empresas onde o capital privado
nacional é minoritário. Resta salientar que os capitais privados
nacionais predominam absolutamente na indústria mecânica
e na de produtos de matéria plástica, de importância mediana
na cadeia interindustrial da economia do Nordeste.
A participação das empresas de capital estrangeiro é, sob
os ângulos do patrimônio e do faturamento, mais do que mo-

104
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

desta na expansão econômica recente. Elas controlam, quando


exclusivas, 3,7% e, quando em associação, mais 2,3% do total
das 1.300 maiores empresas da amostra. Os gêneros industriais
que controlam são os de perfumaria e material elétrico, e nos
outros setores em que participam associadamente não alcan­
çam nem 25% do patrimônio e do faturamento respectivos.
Mas é possível que essas participações estejam subestimadas,
embora não haja indícios de um grande desvio, e que uma via
privilegiada para o capital estrangeiro seja a conhecida cessão
de direitos, marcas e patentes. No trabalho que serve de base
para este artigo não foi possível passar do nível de suspeita,
uma vez que a própria indústria de capital nacional utiliza de
maneira intensa e abrangente esses tipos de relações técnico-
comerciais com empresas de capital estrangeiro, mas não há
nada que possa confirmar essa sugestão.
O que é novo na composição da estrutura de propriedade
das empresas, sobretudo industriais, é a quebra do “ exclusivo
regional” , que era a marca da antiga industrialização do Nor­
deste, isto é, a presença praticamente exclusiva de empresas
de capital estritamente regional. A esse respeito, não fazia parte
da história industrial regional a presença de empresas de ca­
pitais do resto do Brasil na propriedade industrial, salvo um
ou outro caso muito raro. Quanto ao capital estrangeiro, este
participou da estrutura econômica do Nordeste ao modo e à
semelhança de sua participação na estrutura econômica nacio­
nal antes da industrialização, isto é, com empresas e proprie­
dades nos gêneros de energia elétrica, transportes urbanos
(bondes) e ferroviários, telefonia e gás (neste caso, Pernambuco
sendo o único, ao que consta); o setor bancário assinalou tam­
bém, antes da II Guerra Mundial, a presença de clássicos ban­
cos estrangeiros: ingleses, franco-italianos, holandeses,
portugueses e norte-americanos.
Depois da II Guerra, a intensa nacionalização dos bancos
comerciais privados (nada a ver com estatização) reduziu a
presença dos bancos estrangeiros no Nordeste, e mesmo os
bancos de países aliados na II Guerra Mundial reduziram sua
presença na região a quase nada. Somente agora, tal como
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

acontece no Brasil como um todo, os bancos estrangeiros vol­


tam a crescer no Nordeste. Mesmo assim, em escala compa­
rativa à sua presença pré-guerra, suas atividades são modestas
e a rigor são uma extensão de suas atividades principalmente
no Sudeste industrializado. Isto é fácil de compreender
quando se tem em vista que os bancos estrangeiros opera­
vam, sobretudo, nos negócios de exportação e importação,
numa época em que a contribuição do Nordeste às expor­
tações brasileiras era da ordem de 30%. Com a queda do
índice de abertura da economia brasileira para o exterior, a
política industrial de substituição de importações e os con­
troles cambiais, a área externa do Nordeste deixou de ser
interessante para os bancos estrangeiros.
A composição da estrutura de capitais mostra, portanto,
uma novidade: os capitais nacionais estão na atividade indus­
trial, o mesmo acontecendo com os capitais estrangeiros, atra­
vés de filiais ou de empresas novas que, às vezes, nada têm a
ver com os perfis das matrizes. Essa nova matriz é, em si mesma,
um resultado dos processos de integração, e demonstra, por
seu lado, uma descentralização que é simultaneamente nacio­
nalização territorialmente concreta dos amplos interesses de
classe. A formação de empresas associadas oferece, por outro
lado, um novo ângulo para se pensar a gênese dos novos in­
teresses burgueses: trata-se de interesses articulados, que, não
excluindo a competição, formam, entretanto, um novo e com­
pacto bloco de interesses privados.

Velhas e novas classes

Do ponto de vista do domínio de classe, as velhas classes


burguesas nordestinas, revitalizadas ao ponto de deterem 40%
do patrimônio e faturamento das 1.300 maiores empresas, não
são mais exclusivas: o "exclusivo regional” foi rompido, e mes­
mo aquela porcentagem não significa hegemonia, pois ela só
se perfaz mediante o impulso dinâmico que é dado pelo vínculo
com a economia nacional e, em casos mais concretos, pela

106
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

associação com outros capitais, sendo o conjunto presidido


pela argamassa dos fundos públicos e empresas estatais. O
espaço regional de classe é agora compartilhado com outras
formas de capitais.
Entretanto, essa dinâmica do econômico parece não se
transladar para a esfera das identidades, das alteridades, do
inter-reconhecimento social e político, e finalmente para o
imaginário sociopolítico. Em Estados de tradição política mais
à esquerda, como Pernambuco, e secundariamente, Bahia, e
nos novos espaços industrializados, no imaginário sociopolí­
tico são categorias burguesas relativamente desimportantes
economicamente, como os usineiros, que continuam a galva­
nizar a rivalidade da esquerda ou dos setores políticos popu­
lares - e muitas vezes populistas - , enquanto os novos capitais,
nacionais e estrangeiros, não aparecem como “ adversários” .
Desapareceram mesmo do discurso político os temas e as fi­
guras do “ imperialismo” e dos “ imperialistas” , emblemáticos
do discurso e da luta política pré-64, numa época em que,
agora, “ imperialistas” exploram diretamente a força de traba­
lho, ao contrário de antes, quando sua atividade exploradora,
nos antigos serviços de utilidade industrial, estava mais pró­
xima da retórica do que do real. As empresas estatais jamais
se vêem colocadas no centro da luta política, salvo talvez no
Pólo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, enquanto existe um
difuso sentimento “ antipaulista” , mas não antiempresas “ pau­
listas” , que nunca aparecem no discurso e na luta como “ ini­
migos”, “ invasores” , “ exploradores” . Deve ser dito, aliás, que
o difuso sentimento referido é produto, talvez, da aguda per­
cepção das diferenças regionais, propiciadas pela mobilidade
social, pela migração “ andorinha”, que vai e volta, pela crônica
de vida dos migrantes e de seus dependentes, e ao mesmo
tempo pela dissolução do antigo sonho de “vai, menino, cresce,
para ir para São Paulo” , símbolo de ruptura com os velhos
modos de vida e da percepção concreta de um mercado de
trabalho em crescimento em São Paulo, que se colocava como
alternativa à mesmice regional.

107
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

As fortes mudanças ocorridas na base material seguem,


ipsis litteris, as pautas do capitalismo contemporâneo, do pon­
to de vista da concentração de capitais. O que, já de si, reforça
o poder de classe das novas estruturas econômicas. Essa con­
centração é pautada pelos próprios mecanismos financeiros
que presidiram a acumulação: em primeiro lugar, as empresas
estatais são, em si mesmas, poderosas expressões da concen­
tração de capitais. Em segundo lugar, o tipo de mecanismo
Finor, uma dedução do imposto de renda, desde que a opção
de investimento é das próprias empresas que praticam a de­
dução, é concentracionista: deduz mais quem paga mais im­
posto de renda. Em terceiro lugar, como os mecanismos têm
vigência devido à dinâmica econômica das regiões mais ricas,
a expansão de empresas de fora do Nordeste faz-se, na região,
sob os mesmos moldes concentrados e organizacionais das re­
giões líderes. Dessa forma, simultaneamente os maiores grupos
têm mais acesso aos recursos do Finor e os menores grupos
ou empresas desfrutam menos o benefício fiscal32. Não há per­
versidade out, maquiavélica, ou discriminação adhoc (embora
a corrupção também funcione, não alterando, entretanto, sig­
nificativamente, os dados da questão); a perversidade é m,
necessária ao sistema estruturante dos fundos públicos. Além
disso, os pequenos capitais têm uma enorme defasagem técnica
e financeira - referente à concentração e à centralização de
capitais - com respeito aos grandes capitais. Isto, em presença
de um sistema de custo de oportunidade igual a zero, leva
necessariamente à escolha de métodos capital-intensivos, des­
locando ainda mais a capacidade de competição dos pequenos
e médios capitais. Mas o sistema não tende, nunca, para uma
concentração absoluta, uma espécie de tendência assintótica
inexorável. Como acontece, âdemais, em todo o sistema capi­
talista, a própria concentração de capitais freqüentemente ba­
rateia o capital constante, dando lugar a toda uma trama onde
têm lugar os pequenos e médios capitais.

32 Vide idem, tabelas AIÍ: 3h e 3í.

108
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

Em trinta dos 33 setores da economia, as quatro maiores


(da amostra de 1.300) empresas controlam, no mínimo, 1/3
do faturamento global dos setores respectivos (este global é
para além das empresas da amostra)33. Ampliando-se o número
das empresas para as oito maiores, somente nos setores têxtil
(47%) e de produtos alimentares (19%) é que elas não con­
centram 50% ou mais do faturamento dos setores. Reduzin­
do-se o estudo da concentração para vinte setores, o grau de
concentração é ainda maior: as quatros maiores empresas de
cada setor controlam 50% ou mais do faturamento34. Essa
extremada oligopolização - embora não se esteja trabalhando
com mercados, o que daria maior precisão ao conceito de
oligopólio, pois é inegável que o faturamento expressa capa­
cidade de controle de mercado - sugere que a possibilidade
de crescimento da economia regional depende, quase total­
mente, da dinâmica dos grandes grupos econômicos e seus
interesses em nível nacional. Para fins de planejamento, pois,
a variável independente não são mais fatores locacionais re­
gionais favoráveis, mas a estratégia das empresas e de seus
grupos. Este processo, aliado à forte gravitação exercida pelas
empresas estatais, aconselha uma mudança radical na estraté­
gia de planejamento regional, a qual tem permanecido ligada
a hipotéticos fatores atrativos regionais, entre os quais o custo

Sobre concentração industrial, vide ídem, tabelas AII: la.


14 Uma comparação com os graus de concentração na economia brasileira
confirma que o padrão de concentração encontrado no Nordeste obedece
à mesma lógica: tomando-se estudo realizado pelo Núcleo de Estudos Es­
tratégicos do PSDB (Jornal do Economista, S. Paulo, Corecon, fev. 90) en­
controu-se que os graus de concentração no Nordeste são superiores aos dos
respectivos setores da economia brasileira em construção pesada e papel e
celulose; praticamente idênticos em fumo, eletroeletrônica, borracha, me­
cânica, química, têxtil e mineração; e inferiores em alimentos, bebidas, ma­
terial de transporte, metalurgia e minerais não-metálicos. Essa similaridade
decorre muito fortemente dos mecanismos fiscais de transferência de capitais
do resto do Brasil para o Nordeste. Deve-se informar que as metodologias
de estimação para o Nordeste e para o Brasil não são absolutamente iguais,
além de se referirem a anos diferentes - 85 e 88, respectivamente. Tudo
indica que essas diferenças não comprometem a comparação.

109
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

da força de trabalho ou mais diretamente os salários, cuja efi­


cácia é quase nula. Estudos já realizados, entre os quais o de
Tania Bacelar3j, haviam posto em séria dúvida o papel dos
baixos salários como fator de atração. Na prática, as novas
atividades do ciclo da recente expansão pagam baixos salários,
o que só aumenta a lucratividade das empresas e deprime os
salários, piorando a distribuição da renda, sem que tenha efeito
na atração locacional. De fato, a variável sobredeterminante
é o custo de oportunidade zero dos incentivos fiscais. Dentro
desse marco, é a estratégia das empresas e dos grupos que
decide pela localização. O fator mão-de-obra não foi determi­
nante mesmo em casos em que a existência de recursos naturais
jogou um forte papel na decisão de empresas estatais, tais como
o petróleo na Bahia, os depósitos de sal-gema em Alagoas e
recursos minerais em Sergipe e no Maranhão, os recursos fer-
ríferos de Carajás. A estratégia do nortbeastern tvay o f life,
muito sol, praias, suco de caju e mão-de-obra barata, não é
nada sem a dedução fiscal e a ação das estatais. Mas constitui
um agradável incentivo e um refrescante paraíso fiscal...
Uma simulação realizada sobre a participação das dez
maiores empresas no ICM total de cada Estado fornece outra
indicação do grau de concentração e do poderio das novas
atividades geradas pela expansão recente. Tomando-se o ICM
realmente arrecadado e calculando-se o ICM que cada empre­
sa pagaria (na base de uma alíquota sobre o faturamento),
chega-se à conclusão de que as referidas dez maiores empresas
de cada Estado seriam responsáveis por 40% da arrecadação
de ICM na Bahia, até o máximo de 86% no Piauí, sendo que,
na média regional, as dez maiores empresas seriam responsá-

3j Araújo, Tania Bacelar de.“Crescimento industrial no Nordeste: Para quem


e para quê” , Revista Pernambucana de Desenvolvimento, Recife, 1981. Idem.
La division Interregionale du travail au Brésil et Vexemple du Nord-Est, Paris,
1979. (Thèse pour le Doctorat en Economie Publique, Planification et Ame-
nagement du Territoire - Université de Paris). Idem. “Industrialização do
Nordeste - Intenções e resultados” , m: Seminário Internacional sobre Dis­
paridade Regional, Recife, 1981 - Anais, Recife, Fórum Nordeste/Sudeste,
1982, p. 292-301.

110
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

veis por 46% do ICM regional36 . Trata-se de uma simulação,


em vista de que não se obtiveram os dados reais do pagamento
das empresas. Estes podem estar por cima (se a alíquota real
for mais alta) ou por baixo (se a alíquota real for mais baixa),
à parte os problemas de isenção e de evasão fiscal, também
desconhecidos pela pesquisa base deste artigo. De qualquer
modo, convém assinalar a extremada concentração fiscal que,
se de um lado poderia facilitar a fiscalização por parte dos
Estados, de outro revela que, de fato, os mesmos Estados são
fortemente dependentes de um número muito pequeno de
fortíssimos contribuintes, o que, em suma, desmistifica o ca­
ráter pretensamente “ sufocante” do Estado sobre a iniciativa
privada: de fato trata-se de Estados (e de Estado) prisioneiros.

A questão regional hoje

A clássica “questão nordestina” , que é nossa “questão re­


gional” por excelência, constituiu-se a partir da segunda me­
tade do século X IX . E na confluência de processos que
definiram as questões do mercado de trabalho e do Estado
brasileiro, simultâneas e recíprocas - conforme as ricas indi­
cações de Luiz Felipe de Alencastro em sua tese de doutorado
Le commerce des vwants: Traité d ’esclave$ et “Pax Lusitana”
dans TAtlantique Sud - XVle e XIXe siècles. Uníversité de Paris
X, Paris, 1986, 3 vols. -, que o Nordeste se constitui simulta­
neamente como região e como região mais atrasada. Antes,
ajudadas pela moderna historiografia, em que ressalta Evaldo
Cabral de Mello em seu O Norte agrário e o império, as refe­
rências “ regionais” se davam em relação a um vasto Norte e
um vasto Sul, e as outras regiões (de hoje) simplesmente não
faziam sentido. Além disso, as posições eram invertidas em
relação ao sentido que têm hoje: era o vasto Norte (em que
contava principalmente o Nordeste de hoje) a região rica, en­
quanto o vasto Sul era a região pobre.

%(>Vide “Estruturas de poder...”, op.cit., tabela BI: e e f.

111
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Não interessa, aqui, reconstituir o largo processo em que


as regiões se cristalizaram no Brasil, mediante o aguçamento
das diferenças de níveis de desenvolvimento que, aliás, são os
próprios fatores determinantes da regionalização. A partir da
criação da Sudene, a regionalização do Nordeste é não apenas
reconhecida, mas, sobretudo, tornada a substância de uma es­
tratégia visando sua anulação. Não sem antes proceder-se, tal­
vez, à última ampliação da região, fincada desta vez no
parâmetro do subdesenvolvimento em relação ao Sul/Sudeste:
incorporam-se o Maranhão e a Bahia e, para efeitos fiscais, o
Nordeste de Minas.
A partir da efetiva entrada em funcionamento dos me­
canismos fiscais-financeiros sob a égide da Sudene, e da im­
plantação dos projetos das grandes empresas estatais, no
período que vai de 19 59 a 198 5, e, para efeitos deste artigo,
de 1970 a 198 5, os programas de desenvolvimento regional
baseados nos mecanismos e nos projetos já assinalados an­
teriormente estão produzindo resultados que redefinem a
“ questão nordestina” .
Em primeiro lugar, pela força dos processos analisados, e
sobretudo pela sua ligação aos processos de acumulação de
capital em escala nacional, o Nordeste integrou sua economia
à do resto do Brasil. A tal ponto que, a rigor, não se pode falar
em “ economia do Nordeste” , mas numa divisão regional do
trabalho no Brasil com atividades regionalmente localizadas.
As taxas de desenvolvimento nordestino não dependem da
taxa de acumulação (ou de poupança e investimento) do Nor­
deste; se assim fosse, o ritmo e os níveis da expansão econômica
alcançados teriam sido inviáveis. O rompimento da inércia e
do ensimesmamento regional já foram suficientemente descri­
tos e analisados. A constituição dos novos interesses, a parti­
cipação de capitais de fora da área, o deslocamento radical de
ancilares interesses fincados no complexo latifúndio-minifún-
dio, são parte e sujeitos desses processos.
Tudo isso se resume no resultado de que a política de de­
senvolvimento regional levou à desregionalização da econo­

112
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

mia37. São movimentos centrífugos atuando no sentido de uma


maior interdependência entre as várias regiões brasileiras. As­
sim como não há, rigorosamente, “ economia paulista” : tirem-
lhe os mercados nacionais e a “ economia paulista” será
reduzida pela metade. Do ponto de vista estratégico, isto sig­
nifica que o discurso regionalista da economia não faz mais
sentido; quando fazia, era pior. Isto é, os mercados da produ­
ção nordestina não devem, necessariamente, ser regionais; se
o Nordeste não produz todos os alimentos que sua população
consome, isto não é um mal em si, desde que a distribuição
da renda e os salários sejam notavelmente melhorados. A in­
dustrialização havida não criou todos os empregos necessários
- este resultado decorre do efeito destrutivo da nova indus­
trialização e do nível de salários, que neste caso não é produto
de uma abstrata oferta de mão-de-obra contra escassos empre­
gos, mas da fraqueza das organizações sindicais da nova in­
dustrialização e da fantástica desorganização da economia
agrária. Estrategicamente, pois, basear a defesa da economia
regional na manutenção de baixos salários, como defesa das
médias e pequenas empresas que não podem pagar salários
competitivos ou, o que dá na mesma, como atrativo para a
localização regional - fortemente desmentido pela experiência

Não levou à dissolução total da região, que é uma realidade bem mais rica
c mais complexa do que suas simples determinações econômicas. Mas ainda
neste terreno movediço é possível dizer que o Nordeste é simultaneamente
sujeito e objeto dos novos processos de identificação cultural em curso no
Brasil, de que não está ausente, senão que é o agente, talvez mais importante,
a televisão: basta ver que das últimas novelas da Globo de maior audiência,
Roque Santeiro e Tieta, não apenas se passam no Nordeste, mas usam o
peculiar modo de falar da região como linguagem televisiva. Tudo isso é para
dizer que mesmo cm terreno tão pantanoso quanto os dos processos culturais,
o Nordeste não comparece apenas como enjeitado; sem fazer nenhum juízo
definitivo sobre o bem ou o mal, parece evidente que no contemporâneo
processo brasileiro de elaboração de referentes culturais —com evidente mas­
sificação e pastichização - as trocas regionais não são mais avenida de mão
única, no velho esquematismo à la Mattelart, de uma região “imperialista”
tentando subordinar culturalmente a mais pobre. Também isso há, mas, como
diz uma personagem da última novela citada, aí tem maís “mistérios” do que
podemos supor esquematicamente.
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

e pelos estudos já realizados - seria um equívoco de fundas


conseqüências para as classes trabalhadoras regionais.
Esse efeito centrífugo manifesta-se, também, no nível da
homogeneidade regional, das semelhanças entre os Estados da
região. Tal homogeneidade sempre foi muito relativa, mas de
qualquer modo, a inércia e o “ círculo vicioso e viciado” em
que se movia a economia regional vis-à-vis outras regiões tor­
nava os Estados mais semelhantes entre si. Os resultados da
expansão recente não foram capazes, ainda, de preencher as
sensíveis diferenças, do ponto de vista dos principais indica­
dores econômicos, entre os Estados da região e os outros, mais
ricos. Entretanto, modificações de ritmo de desenvolvimento,
localizações estratégicas de empresas estatais, capacidade de
algumas burguesias metamorfosearem-se em empreendedores
industriais aliando-se a outros poderosos grupos estatais e bur­
gueses extra-regionais, indicam um movimento centrífugo no
sentido de desfazer a relativa homogeneidade e a unanimidade
em que se reconheciam “ nordestinos” .
Tal é o caso mais flagrante da Bahia, onde antigos e pode­
rosos grupos financeiros deram o passo no sentido de se trans­
formarem em empresários, como o grupo do antigo Banco da
Bahia (os Mariani Bittencourt) e o grupo do Banco Econômico
(Calmon de Sá). Ao lado deles e capitaneada por eles, uma
nova safra de empresários, articulados basicamente no Pólo
Petroquímico de Camaçari, joga sua estratégia com o olho
voltado para a Petroquisa, enlaçando-se através da holding
Norquisa, por exemplo, com os mais variados capitais, inclu­
sive estrangeiros, e projetando-se para além de seus ramos de
negócios tradicionais. Daí surgiram grupos como o Odebrecht
- hoje entre os maiores da construção civil pesada em termos
nacionais-, com estratégia de dominação para além da simples
extração do excedente: este grupo possui uma fundação, que
financia estudos, monografias sobre o próprio Nordeste, dis­
tribui prêmios culturais, entra em relação com os grupos ne­
gros; o grupo Paes Mendonça, nos supermercados, é também
um grupo baiano de projeção nacional. Em suma, estes grupos
destacam-se nitidamente do empresariado de outros Estados,

114
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

pelas suas articulações nacionais e concepções do papel de sua


classe social.
O Ceará também apresenta modificações que, paradoxal­
mente no Estado talvez mais simbolicamente nordestino, afas-
ta-se, sob certos aspectos, do estigma; é certo que os
indicadores econômicos cearenses continuam entre os mais
baixos. Mas lideranças empresariais do tipo Jereissatti conse­
guiram fazer a ponte com a política, derrotaram os velhos
“ coronéis” , estabeleceram relações com a Universidade - ra-
ríssimo comportamento entre empresários e políticos do Nor­
deste - e, pelos empreendimentos que conduzem, colocam-se
em segmentos de atividades dinâmicas em escala nacional.
Os exemplos de grupos empresariais em vigorosa meta­
morfose quase se esgotam nesses dois Estados. Decerto grupos
empresariais do Nordeste estão entre os maiores de seus seto­
res, nacionalmente falando. Caso do grupo Pernambucanas,
do grupo Othon no ramo hoteleiro, do grupo João Santos no
cimento, para citar uns poucos mais. Entretanto, estes grupos
não se destacam armando articulações mais amplas no cenário
nacional. Aqueles capitais estritamente regionais que possuem
40% do patrimônio das maiores empresas do Nordeste in­
cluem os grupos e exemplos já citados, e mais uma miríade de
outras empresas que não têm expressão nacional.
Em outros Estados, como Maranhão, Sergipe, Alagoas e
secundariamente Rio Grande do Norte, a presença de fortes
empreendimentos de empresas estatais responde pela nova di­
nâmica econômica. O efeito centrífugo em oposição à homo­
geneidade regional manifesta-se aí no sentido da forte
gravitação dos interesses em torno das estatais, fazendo com
que reivindicações “ nordestinas” passem, no limite, a segundo
plano se colidirem com as articulações e demandas junto às
estatais. Mas também revelam a fraqueza desses Estados, cujas
burguesias não têm o porte sequer para aliarem-se com as
empresas estatais e seus sócios nacionais e estrangeiros.
Há um movimento em sentido contrário ao da desregio-
nalização da economia, um movimento centrípeto que é, dia-
leticamente, o fautor da desregionalização. Trata-se do “ capital

115
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

financeiro em geral”, nas formadas isenções fiscais, dos subsí­


dios e do papel das estatais, que teoricamente exercem uma
função de antivalor para pôr em marcha o processo de valo­
rização. Este movimento reifíca constantemente a hoje ficcio­
nal “ economia do Nordeste” ; é pela reificação das diferenças
de desenvolvimento, pelo conceito de região mais atrasada -
em que, subliminarmente às vezes e explicitamente na maior
parte dos casos, o Nordeste foi utilizado como ameaça de con­
vulsão social e, no limite, de revolução camponesa operária
de sentido socialista de “ prioridade” nacional, que os me­
canismos fiscais-financeiros foram erigidos, mantidos, refor­
çados e ampliados. Esse movimento centrípeto reconstrói
recorrentemente a homogeneidade subdesenvolvida do Nor­
deste, obscurece as diferenças entre os Estados, os ritmos de
expansão, as clivagens de interesses e de classes, buscando
manter os referidos mecanismos fiscais-financeiros. E certo
que os empreendimentos estatais escapam, pela fonte de seus
recursos e pela amplitude de suas articulações, a essas deter­
minações, mas no interior das alianças ou do magma argamas-
sado pelos empreendimentos estatais, os mecanismos
fiscais-financeiros continuam a valer para os processos parti­
culares de empresas e grupos. No interior e como resultado
desses processos, a “ questão nordestina” se recoloca e se refaz,
em primeiro lugar, do ponto de vista daquela reificação. E
especificamente, por algumas peculiaridades a mais. A primei­
ra delas é que persiste, como marca registrada do Nordeste,
uma questão agrária irresoluta. Os dados já apresentados mos­
tram uma acentuada perda de poder econômico dos grupos
latifundiários, na queda da participação das atividades agro­
pecuárias na formação do produto regional. Mas uma grande
parcela da população e da força de trabalho continua amarrada
às atividades rurais, o que distingue o Nordeste, notavelmente,
de outras regiões brasileiras.
Em segundo lugar, o Nordeste se diferencia também sen­
sivelmente das outras regiões pelas características de seu mer­
cado de força de trabalho, composição da população ocupada,
níveis de renda e de salários, existência de um marcante exér­

116
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

cito industrial de reserva ou setor informal. Os dados a esse


respeito são dramáticos, e não constituem herança do passado,
senão que são produto da dinâmica da expansão recente.
Como outro resultado, o Nordeste deve se caracterizar - em­
bora os dados da pesquisa sejam insuficientes para isso - por
uma concentração da renda ainda mais desigual do que a bra­
sileira, o que não é surpreendente, se se levam os dados em
consideração.
Do ponto de vista do mercado de trabalho, a expansão
recente também integrou o Nordeste ao padrão dominante no
Centro-Sul, pois os empregados já são (1985) mais de metade
da população ocupada, enquanto os trabalhadores por conta
própria perfazem apenas um terço, invertendo as proporções
prevalecentes no início dos anos 7 038*. Mas os empregados
urbanos saltaram apenas de 65% em 1970 para 69% em 19853í>
(apesar de a população ocupada de base urbana como um todo
ter crescido de 37% para 53% do total), devido, provavelmen­
te, à elevada relação capital-trabalho dos capitais altamente
concentrados que passaram a operar na região, implicando
um pequeno aumento líquido do emprego; e, em segundo
lugar e principalmente, devido à escassa mudança nas formas
técnicas da produção no campo, apesar da expansão do assa-
lariamento na agricultura.
A estrutura de salários reflete esses processos: em 1985,
85% da média dos empregados ganhavam menos do que
três salários mínimos e 52 %, até um salário mínimo. Parece
haver uma acentuada relação entre esses níveis salariais e a
formalização das relações de trabalho, pois os trabalhadores
sem carteira assinada representavam 60% do total de em­
pregados em 1985, e nestes apenas 24% ganhavam acima
de um salário mínimo40.

,if Vide “Estruturas de poder...”, op.cit., tabela BII: la.


Idem, tabela BII: lb.
Idem, tabelas VII: le e If.

117
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

O impacto das 1.300 maiores empresas sobre o mercado


de trabalho é desproporcional à sua importância na formação
do produto regional: elas eram responsáveis por 2 1% do PIB
regional em 1985, e empregavam apenas 7% da população
ocupada41.
Desde os anos 20 a migração do Nordeste para o Sudeste
foi, talvez, a marca principal da “ questão nordestina” , ao lado
et pour cause da questão agrária regional. A participação do
Nordeste na divisão regional do trabalho no Brasil poderia ser
resumida em fornecimento de mão-de-obra e de algumas ma­
térias-primas industriais importantes, tais como algodão e si­
sal; além disso, a região produzia um excedente de divisas cujo
peso na balança comercial e no balanço de pagamentos brasi­
leiro era importante, provavelmente 1/3 do total. Ao longo
dos processos descritos neste artigo, e até antes, como resul­
tado da integração dos mercados nacionais - ainda não da
população nacional -, o papel de fornecedora de matérias-pri­
mas industriais enfraqueceu-se sensivelmente; a forte expan­
são das exportações brasileiras fora do Nordeste relegou a
exportação nordestina para quotas não muito relevantes (ape­
nas cacau, conjunturalmente açúcar e melaço, e outros itens
de menor importância na pauta brasileira). Uma importante
redivisão regional de trabalho gestou-se no Brasil. De forma
que o Nordeste ampliou consideravelmente a pauta de suas
trocas comerciais com o resto do Brasil, e aparece hoje na
divisão regional do trabalho industrial como importante
produtor de insumos e bens intermediários. Esta é sua marca
principal, hoje, do ponto de vista da produção. A antiga
autarquia regional de bens de consumo, sobretudo alimen­
tares, foi rompida, quase em todos os itens; principalmente
no capítulo relativo a bens de consumo industrializados, sua
balança comercial é provavelmente deficitária (devido, en­
tre outras coisas, ao melhoramento de rendas e salários das
classes médias).

41 Idem, tabelas do Anexo 3 e BII: lg.

118
A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

No capítulo da migração e da força de trabalho, embora


continue a haver uma forte migração, esta, calculada em
relação à população residente, já não atinge mais as propor­
ções de décadas como as de 50 e 60; isto é, o mais importante
mercado de força de trabalho para a população regional é,
dinamicamente, a própria região. A migração que continua
a haver provavelmente tem papel marginal na determinação
do nível de salários reais nas regiões, Estados e cidades onde
ela aporta. Estes níveis agora têm muito mais a ver com a
organização das classes trabalhadoras, de um lado, e, de
outro, com a própria produção de populações excedentes
nas regiões mais ricas. Basta ver que na última década cen-
sitária - entre 19 70 e 19B0 - o Estado que mais perdeu
população absoluta e relativamente foi o Paraná, devido à
forte mudança técnica e nas relações de produção na rica
agricultura paranaense.
O que resta é uma mudança importante, do ponto de
vista da clássica caracterização da “ questão nordestina” : a
arribaçã já não migra mais, e se continua a fazê-lo - e
continua - , sua fecundidade nos lugares onde arriba é
decíinante, em todos os termos. A moral é que a “ questão
nordestina” que resta, e ainda é grave, dramática e imen­
sa, exatamente porque ela é dinâmica, deve ser resolvida
no próprio Nordeste. A antiga válvula de escape já não
funciona. O próprio movimento de tentativa de anulação
das disparidades regionais no Brasil, não completo, ainda
largamente insuficiente, baralhou as cartas das velhas re­
ferências e das velhas estratégias. Para todos os lados,
para todas as classes. A novidade agora é que a “ questão
nordestina” é a de níveis de miséria produzidos pela pró­
pria expansão econômica. Bela e feia novidade.
A rápida expansão econômica destruiu todos os mitos e
todas as saídas fáceis, muitas das quais repousaram, na maior
parte dos casos, sobre a própria tragédia dos que migravam,
ao custo de poderosos processos de desenraizamento, perdas
pessoais, angústia da grande cidade, discriminação antibaiana,
guetos nordestinos. Um rico processo social deu a volta por

119
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

cima, de tal modo que dos guetos nordestinos do ABC paulista


saiu o mais importante movimento sindical e político do Brasil
nos últimos quarenta anos. O réquiem da velha questão nor­
destina tocou para todos, executantes, maestro, ouvintes. Sem
forçar os termos, o novo é a “ questão brasileira” .

120
Crise e concentração
Quem é quem na indústria paulista

Apresentação

Este artigo apresenta alguns dos principais resultados e


conclusões a que se chegou na linha de pesquisa sobre o poder
econômico que o Cebrap realiza desde 1987. Em particular,
este texto procura tornar públicas algumas das idéias e desco­
bertas empíricas que aparecem de forma minuciosa em um
relatório de pesquisa elaborado pela equipe1. Além de bastante
sintético, o artigo tenta também aliviar o leitor, sempre que
possível, dos transtornos comuns à maioria dos relatórios, em
geral maçantes pelo jargão característico e pela profusão de
tabelas e dados.*1

* Publicado em co-autoria com Alexandre Comin, Flávio Mesquita Saraiva


e Hélio Francisco Corrêa Lino, em Novos Estudos Cebrap, n. 39, julho de
1994, p. 149-171.
1Cebrap. Estruturas de poder econômico na indústria de São Paido (Relatório
Final de Pesquisa). São Paulo, Cebrap, 1992. A equipe de pesquisa é coorde­
nada por Francisco de Oliveira; os pesquisadores responsáveis pela organi­
zação e análise dos dados, em diversos momentos do tempo, foram Alexandre
Comin, Flávio M. Saraiva, Hélio Francisco Corrêa Lino e Carlos Alberto
Bello e Silva; colaboraram decisivamente os estagiários Rogério C. de Souza,
José Celso Cardoso Jr., Osvaldo Godoi, Marcos Q. Barreto e Lilian M. Lam-
bert. Os autores agradecem também aos vários pesquisadores do Cebrap que
participaram das discussões deste texto: Adalberto M. Cardoso, Álvaro A.
Comin, Elson L. S. Pires e Eugênio Diniz. Como de praxe, os autores assumem
toda a responsabilidade pelo resultado final.

121
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

O curso presente dos estudos dessa equipe do Cebrap pode


ser resumido no esforço de fornecer à análise econômica um
conjunto de instrumentos teóricos e empíricos que, de um
modo geral, passam ao largo dos estudos que habitualmente
se fazem. E comum dividir-se a economia em dois âmbitos;
um agregado, que trata de fenômenos globais, tais como cres­
cimento, inflação e desequilíbrios no balanço de pagamentos;
outro, microscópico, que enfoca os agentes individuais, famí­
lias e empresas. A lacuna entre os dois níveis constitui aquilo
que poderiamos chamar de mesoeconomia: um espaço con­
ceituai no qual os agentes econômicos - em particular as em­
presas, públicas e privadas, bem como os grupos econômicos
que as controlam - aparecem propriamente como sujeitos do
processo econômico, posto que não estão nem subsumidos ao
movimento macro - mensurado sempre a partir de agregados
e médias globais - nem tampouco diluídos na abordagem in­
dividualista, maximizadora, simplificadora, da análise micro-
econômica.
A tarefa posta aqui portanto é a de estabelecer uma topo­
logia empresarial, mapear os altos e baixos de uma configura­
ção complexa de entidades que comumente aparecem de modo
plano, isomórfico, sob a denominação de “ setor privado” . Tra­
ta-se de estabelecer clivagens, entre grandes e pequenos, na­
cionais e estrangeiros, dinâmicos e tradicionais, entre outras.
Em alguma medida, uma parte da microeconomia, sob a
denominação de Organização Industrial (OI), e outras disci­
plinas correlatas vêm há décadas buscando captar e explicar
estas distinções dentro do setor empresarial. Boa parte do tra­
balho que aqui se vai expor tem aí suas origens; em particular,
as análises de concentração setorial da produção não são mais
do que velhas análises baseadas em novas informações, abaixo
explicitadas. Mas a pretensão deste trabalho vai além: ao con­
trário dos estudos convencionais de OI, não tomamos a em­
presa como objeto de análise por excelência. Aqui, ela aparece
subordinada a condicionantes mais amplos: de um lado, as
clivagens acima referidas encaixam cada caso individual em
tipologias várias que - é a hipótese - ajudam a explicar o com­

122
CRISE E CONCENTRAÇÃO

portamento diferenciado das diversas unidades de capital;


de outro, a novidade das bases de informações de que dis­
pomos nos permite operar uma análise financeira da orga­
nização em presarial, centrada no conceito de grupos
econômicos. Este ponto é de crucial importância e a ele
voltaremos na última seção.
A próxima seção trata de apresentar rapidamente o mate­
rial empírico com que estamos trabalhando. A segunda seção
apresenta o panorama geral da evolução econômica de São
Paulo no período. Em seguida, examinaremos diretamente al­
guns indicadores de concentração econômica. A seção seguinte
tratará de alguns aspectos da participação estrangeira na eco­
nomia sediada em São Paulo e da conformação setorial da
indústria em termos de seus principais agentes. Outra seção
procura fazer uma avaliação preliminar do espaço ocupado
pelos maiores grupos econômicos no Estado de São Paulo e
das mudanças ocorridas ao longo da década de 80. Por fim,
uma pequena reflexão de natureza conceituai que é sugerida
pelas revelações e conclusões das partes anteriores, bem como
uma síntese destas.

As bases de dados

A pesquisa ora em curso, sob financiamento da Finep,


abrange informações relativas a empresas e grupos econômicos
sediados no Estado de São Paulo. A partir dos dados de balan­
ços do Quem équem na economia brasileira, publicados anual­
mente pela revista Visão, selecionamos 2.689 empresas
industriais paulistas, para os anos de 1980, 1985 e 1989. A
opção pela indústria não é casual: aí se encontra o coração da
grande empresa. Ninguém melhor para expressar o poder fi­
nanceiro, tecnológico e de mercado das mais importantes fra­
ções do capital. Ao conjunto de empresas diretamente
industriais agregaram-se mais dois outros ramos de atividades
que, embora não possam ser encaixados no que se convencio­
nou chamar de indústria de transformação, mantêm com esta
forte vinculação.

123
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

De um lado, certos serviços públicos de apoio à indústria


(energia, telecomunicações, transportes, para citar os mais
importantes) são cruciais para o próprio funcionamento e
integração da divisão de trabalho da indústria; movimentam
parcelas consideráveis do produto global e do emprego; e
são fortes demandantes de insumos e bens industriais. De
outro, a construção civil, devido a seu considerável peso na
estrutura produtiva global e na estrutura mais geral de poder
econômico.
As empresas selecionadas possuem patrimônio líquido su­
perior a 1 miihão de dólares (o que exclui as pequenas e mi-
croempresas) e são bastante representativas do universo
industrial paulista e, por extensão, brasileiro2.
A partir desta amostra, coletamos as informações dis­
poníveis no Atlas Financeiro e no Guia Interinvest rela­
tivas à propriedade acionária das empresas, identificando
o(s) agente(s) controlador(es) das mesmas, estabelecendo
deste modo uma primeira triagem, entre empresas nacio­
nais privadas, estrangeiras e estatais. A compilação dos
dados de propriedade acionária permitiu ademais criar
uma nova categoria analítica, a de grupos econômicos,
mais adiante tratada.
Quanto aos dados da Fundação Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, foram utilizados os censos industriais
de 1980 e 1985, com o objetivo de conhecer o pano de fundo
da evolução econômica do Estado de São Paulo e do Brasil,
que abrange todo o universo de empresas e representa o mo­
vimento geral, a ser contrastado com a performance do seg­
mento de maiores empresas, captados pela amostra do Quem
ê quem.

2 Embora em pequeno número, esta amostra representou, na primeira me­


tade da década de 1980, entre 50% e 60% do faturamento de toda a indústria
paulista, numa comparação com dados censitários do IBGE. Mais detalhes
no referido relatório final de pesquisa, p. 60, doravante citado apenas pela
sigla RFP e o número da página.

124
CRISE E CONCENTRAÇÃO

O pano de fundo: crise econômica e estabilidade estrutural

Inicialmente convém traçar um rápido panorama da evo­


lução geral da economia brasileira e paulista, Para isto usare­
mos os dados da FIBGE sobre produção, para os anos de 1980
e 1985, únicos de que dispomos.
A primeira observação, em nível bastante agregado, é de
que o Valor Bruto da Produção (VBIJ que mede as vendas) da
economia como um todo teve um aumento real de tão-somente
4,24%, evidenciando, do ponto de vista quantitativo, a estag­
nação do período. O fato importante é que o Valor da Trans­
formação Industrial (VTI, que mede o excedente econômico
apropriado como remuneração dos fatores de produção) au­
mentou num ritmo superior (11,2 2 % )34 .
O ano de 1985 foi atípico na década, na medida em que,
puxadas pelas exportações, a economia como um todo e a
indústria em particular recuperam-se da conjuntura recessiva
dos anos anteriores. Mesmo para os salários, esse não foi um
ano muito ruim. Ainda assim, é possível supor que o aumento
mais do que proporcional do excedente econômico (em rela­
ção à produção) se deve prioritariamente ao aumento das mar­
gens de lucro das empresas. O exemplo mais flagrante (deste
fato) está no gênero da indústria de borracha, um dos mais
oligopolizados da indústria brasileira: enquanto o VBP subiu
14,86% , o VTI cresceu 62,91% !
Os dados de nossa amostra são consistentes com estas in­
formações censitárias. Eles confirmam a interpretação consen­
sual de que “ o ajuste das margens de lucro assegurou para as
empresas mais poderosas a preservação de níveis de acumula­
ção interna em plena recessão,,41 Na verdade, este movimento
de ampliação do excedente cum retração da produção é ainda

4Utilizou-se sempre o índice Geral de Preços (IGP-DI, coluna 2) da Fundação


Getúíio Vargas para deflacionar os valores monetários.
4 Almeida, Júlio Sérgio Gomes &í Novais, Luis Fernando. A empresa líder
na economia brasileira (Ajuste patrimojiial e tendências de “mark-up” -
1984/89). São Paulo: IÊSP/Fundap, Textos para Discussão, 6(2), 19 9 1, p. 6.
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

mais forte para as maiores empresas, conforme discutido no


próximo item.
Quase metade do setor industrial brasileiro encontrava-se
no Estado de São Paulo em 1980. O crescimento da indústria
paulista, até a metade da década, é inferior ao verificado na
indústria nacional como um todo. A conseqüência deste fato
é uma pequena redução da participação da indústria paulista
no setor industrial nacional. Em 1985, a indústria paulista
respondia por 43,92% da produção industrial nacional; em
1980, por 46,98%. Estes números dão uma dimensão da eco­
nomia paulista: ao falarmos dela estaremos nos referindo a
quase metade da indústria nacional, com um peso ainda maior
em setores mais dinâmicos, como material de transporte, por
exemplo.
Descendo para o nível setorial (21 gêneros industriais do
IBGE), pode-se traçar um retrato da estrutura industrial bra­
sileira. No que se refere ao Valor Bruto da Produção e ao Valor
da Transformação Industrial destacam-se três gêneros da in­
dústria, como os mais representativos. Somados, produtos ali­
mentares, metalúrgica e química representam 47,6% do VBP
e 37,74% do VTIem 1980 (RFP 104). Num segundo patamar,
estão ainda a indústria mecânica e a de material de transporte.
Entre os anos de 1980 e 1985, não se observaram mudan­
ças significativas no que diz respeito à participação dos gêneros
da indústria na economia nacional, ou seja, manteve-se a mes­
ma estrutura, o que reflete, pela qualidade, a estagnação no
intenso processo de desenvolvimento por que passava a eco­
nomia brasileira até então. Em São Paulo o quadro não é di­
ferente da estabilidade estrutural observada no âmbito
nacional5.

5 Há que se fazer a seguinte ressalva: alguns segmentos tiveram um grande


crescimento na década, em particular alguns ramos da indústria de material
elétrico, como produtos de informática e telecomunicações. Outros segmen­
tos, ligados principalmente à agroindústria e insumos intermediários-, puxa­
dos pelo esforço exportador induzido pela política econômica, também
sofreram grande crescimento. Tais movimentos, no entanto, não são captados
no nível de agregação em que estamos trabalhando.

126
CRISE E CONCENTRAÇÃO

A concentração em processo

Uma primeira análise, agregada, da concentração do poder


econômico foi realizada estabelecendo-se uma divagem, pelo
critério de tamanho do patrimônio líquido, entre as 10, 100
e 500 maiores empresas da amostra, que, apenas para dar uma
noção de grandeza, tinham em média cerca de 17 mil, 6-7 mil
e mil empregados, respectivamente. As indicações, mostradas
nos gráficos 1 (10 maiores), 2 (100 maiores) e 3 (500 maiores),
são de que existe uma elevada concentração econômica na
indústria paulista6. No tocante ao patrimônio líquido e ao
faturamento, a ampliação desta concentração não foi muito
expressiva, mantendo-se de forma estável a “ correlação de
forças” entre os gigantes empresariais. No que diz respeito
ao lucro líquido, ao contrário, verificou-se uma substancial
concentração da apropriação do excedente, sobretudo no
estrato das 100 maiores empresas, que, partindo de um pa­
tamar de pouco mais de 40% do total da amostra em 1980,
chegam em 1989 ao fabuloso valor de 60% do total dos
lucros, muito acima de sua contribuição na produção, men­
surada por sua participação no faturamento (em torno de
40%). Seguramente foi este estrato que conseguiu melhor
se “ ajustar” às turbulentas oscilações da economia brasileira
do período. Para estas maiores empresas, a expressão “ dé­
cada perdida” deve soar estranha.

O que estes gráficos não mostram é a importância econômica desses sub­


conjuntos da amostra. Apenas para se ter uma idéia da importância dessas
empresas no conjunto da economia paulista basta dizer que as 500 maiores
empresas, no ano de 1985, detinham 73,57% do faturamento total da amos­
tra {RFP 117 ) que, por sua vez, representava 47,6% do VBP do Estado (RFP
113 ) . Fazendo o cálculo, tem-se que estas 500 empresas detinham pouco
mais de 35% de todas as vendas da indústria de São Paulo. Dado que esta
cifra representava neste ano 43,92% do total da indústria brasileira, tem-se
que as 500 maiores foram responsáveis por 15,4 % de toda a produção in­
dustrial nacional, ou quase um sexto do total.

127
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Gráfico 1
Dez maiores empresas como proporção total da amostra (%)

Gráfico 2
Cem maiores empresas como proporção total da amostra (%)

128
CRISE E CONCENTRAÇÃO

Gráfico 3
Quinhentas maiores empresas como proporção total da amostra (%)

Este processo de concentração é a contraface do já referido


movimento de ampliação das margens de excedente das em­
presas em meio à crise. Além de intensa, a retração do mercado
afetou as empresas de modo diferenciado, segundo seu tama­
nho, provocando moderada concentração. Para as 500 maio­
res, sua participação cresce em todo o período. No estrato
superior (10 maiores) a concentração do faturamento foi mais
forte, passando de 7,7% para 11,6 % ao longo da década.
Em termos de concentração na apropriação de lucros, é
possível observar que ela ocorre nos três estratos, porém de
forma bastante diferenciada. As 10 maiores, ao fim do período,
obtiveram quase 10% do total do lucro líquido, em compara­
ção com os 7,5% de 1980. Este nível é bastante inferior à
concentração do patrimônio líquido para a classe que é cerca
de três vezes maior (no que as estatais contribuem duplamente,
devido ao elevado imobilizado e aos enormes prejuízos). Para
as 500 maiores, os lucros como porcentagem do total também
sobem, de 74% para 82,7%, configurando um patamar supe­
rior ao do faturamento (72%-76%).

129
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Ao examinar mais de perto o subconjunto das 100 grandes


empresas, podemos constatar que elas operam em alguns dos
setores mais oligopolizados da economia brasileira. Em pri­
meiro lugar, vem o setor de química e petroquímica, com 15
empresas, em seguida papel e papelão, com 7, construção civil
(pesada), metalurgia dos não-ferrosos (alumínio, níquel etc.)
e produtos alimentares diversos com 5 empresas cada. Ade­
mais, podemos encontrar nesta lista (RFP 114 ) as montadoras
de automóveis, cervejarias, pneumáticos e outros repre­
sentantes da grande indústria brasileira em setores como ele­
trodomésticos, bens de capital e bens intermediários para
construção civil e indústria.
Este quadro se completa com a presença de grandes estatais
nos serviços industriais de telefonia, eletricidade, saneamento
básico e transportes. Aparecem também algumas empresas es­
tatais ligadas diretamente à indústria, como Ultrafértil, Ma-
fersa (privatizadas no governo Collor) e Embraer.
Esta seção das 100 maiores da pirâmide industrial revela
muito a respeito da hierarquia dos capitais na indústria brasi­
leira. Nela encontramos 43 empresas nacionais privadas (33
de São Paulo e 10 de outros Estados da federação), 39 empresas
multinacionais e 15 empresas públicas*7. Por fim, existem 4
empresas que designamos como sendo de controle comparti­
lhado, isto é, cujo controle acionário é exercido por dois ou
mais sócios (sempre de elevada estatura econômica) de forma
conjunta. Estas empresas não são nem públicas nem privadas,
nacionais ou estrangeiras, mas resultam da confluência destas
forças naquilo que Peter Evans chamou de tríplice alianças.
Mais do que isto, é possível constatar uma certa divisão
de funções no interior da estrutura produtiva. As empresas
estatais certamente predominam nos setores de serviços pú­

7 Sobre estas convém frisar que ocupam o topo da pirâmide: das 10 maiores,
7 são públicas, em geral ligadas aos serviços públicos,
K Evans, Peter. A tríplice aliança (As multinacionais, as estatais e o capital
nacional no desenvolvimento dependente brasileiro). 2a ed. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1982.

130
CRISE E CONCENTRAÇÃO

blicos e naqueles tradicionalmente conferidos a elas pelo mo­


delo de industrialização brasileiro: siderúrgico, ferroviário,
portuário, entre outros.
As empresas de capital privado nacional encontram-se dis­
tribuídas entre os mais diferentes setores: construção civil,
máquinas, madeira, vestuário, papel e papelão, bebidas etc.
Pode-se ressaltar que as paulistas concentram-se nos setores
de bens intermediários, aparecendo de forma também signifi­
cativa nos setores de bens de consumo não-durável.
As empresas estrangeiras ocupam seu lugar na estrutura
industrial em conformidade com a superioridade tecnológica
e mercadológica que trazem de seus países de origem: elas
estão no alto da pirâmide econômica porque ocupam os nichos
olígopólicos de bens de consumo durável e bens intermediários
que conferem maturidade à indústria brasileira; ao contrário
do capital nacional, não baseiam, salvo raras exceções, sua
pujança financeira na exploração dos segmentos mais tradi­
cionais da indústria, ligados aos bens de consumo não-durável.
Nesta subseção da pirâmide encontramos praticamente todas
as montadoras de veículos automotores (Mercedes Benz,
Volkswagen, General Motors, Ford e Caterpillar) bem como
segmentos a montante, como pneumáticos e vidros; gigantes
do ramo químico (como Rhodia, Ciba Geigy, Hoechst, Bayer,
Basf, Dow, ICI), de eletrônica de consumo (Philips) e industrial
(Siemens), de bens intermediários (alumínio, papel e celulose,
materiais para construção) e bens de capital (Brown Boveri).
Aparecem também alguns líderes mundiais em setores mais
tradicionais, como alimentos (Nestlé, Bunge y Born, Cargill),
têxtil (Bunge y Born) e conglomerados altamente diversifica­
dos na área de bens de consumo não-durável (Johnson & John­
son e Gessy Lever, também conhecido como Unilever).
Quanto às quatro empresas de capital compartilhado, cabe
destacar que elas fazem parte de dois setores que já mereceram
significativo destaque nesta análise, a saber: o setor de química
(com três empresas) e o setor de papel e papelão (com uma
empresa). O que vemos aqui é o resultado da estratégia do II
Plano Nacional de Desenvolvimento: a busca do amadureci­

131
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

mento da estrutura industrial mediante a formação de alianças


nos setores de insumos intermediários através da associação
entre capitais nacionais, públicos e privados, e estrangeiros.
Esta topografia complexa, que mapeia a altitude do poder
econômico concentrado juntamente com as latitudes da estru­
tura industrial, se completa com uma análise mais detida no
plano setorial. Para não sobrecarregar o leitor com cifras e
nomes, nos limitaremos a alguns setores-chave, sem reproduzir
a análise mais detalhada já realizada (RFP 72) para os 56 setores
da Quem é quem.
Seguindo a tradição dos estudos de OI, calculamos a evo­
lução ao longo da década de 1980 da participação no total do
faturamento dos 4 maiores integrantes de cada um destes se­
tores. Este índice mostra que não só a concentração nos mer­
cados é espantosamente alta, mas que ela cresce vertigino­
samente ao longo do período.
Apenas para se ter uma idéia, em 1980, 40 setores apre­
sentavam mais de 50% de seu faturamento concentrado em
suas quatro maiores empresas (RFP 118 / 119 ). Esses dados tor­
nam-se mais expressivos quando se verifica que, para esse mes­
mo ano, em 19 setores as 4 maiores empresas abocanhavam
mais de 80% do faturamento e, em 15 , mais de 90%! Em
1989, esses números aumentam sensivelmente em relação a
1980, com 44 setores acima dos 50% , 24 acima dos 80% e 18
acima dos 90%.
Nos estratos superiores do tecido industrial, isto é, nos
oligopólios concentrados de bens de consumo durável, bens
de capital e bens intermediários, a imagem de uma economia
de muito poucos concorrentes aparece nitidamente. Em certos
segmentos, a ampliação da concentração é insignificante, pos­
to que o ponto de partida já estava, em 1980, colocado em
níveis extremamente elevados. Os melhores exemplos provêm
do segmento de material de transporte (veículos automotores,
construção naval, material ferroviário e aviões), ápice da evo­
lução do complexo metalmecânico, todos oscilando entre 90%

132
CRISE E CONCENTRAÇÃO

e 100% de concentração nos 4 maiores produtores em cada


setor (quando não há menos de 4 participantes)9.
No segmento de bens intermediários, o quadro difere ape­
nas em grau. Patamares superiores ou próximos a 70% de
concentração nos 4 maiores (borracha, cal e cimento, não-fer-
rosos), ou mesmo 80%, são comuns. Nestes, ou bem o nível
se mantém ou até sofre alguma ampliação.
A estes se poderiam agregar os “ monopólios institucio­
nais” representados pelas empresas estatais em setores indus­
triais básicos: siderurgia (concentração em torno de 65%, com
tendência de alta), refino de petróleo (80%, em alta) e gás
natural (cerca de 95%, estável). Juntamente com os “ mono­
pólios naturais” , nos serviços públicos, todos com concentra­
ção próxima de 100% , compõem o segmento público do
grande capital oligopolizado da indústria brasileira.
Os dados destes setores refletem, para o conjunto, uma
relativa estabilidade da concentração. No entanto, outros oli­
gopólios mostram que houve, setorialmente, uma ampliação
considerável do poder de poucas empresas sobre importantes
mercados. Talvez o exemplo mais impressionante seja do setor
de produtos farmacêuticos, medicinais e veterinários, onde em
1980 as 4 maiores empresas detiveram 32,36% do faturamen­
to e, em 1989, aumentaram esta participação para 63,53% .
A especificidade brasileira, de um desenvolvimento fecha­
do, dominado por um punhado de grandes conglomerados,
se evidencia também em outros setores, fora do circuito pri­
vilegiado dos oligopólios diferenciados, voltados para o con­
sumo durável, ou dos oligopólios homogêneos, de bens
intermediários, nos quais a concentração crescente é uma regra
geral. Mesmo em setores tradicionais, ligados à agricultura,
não necessariamente intensivos em tecnologia e/ou escala, a

9Dentro do segmento de material de transporte, somente no setor de tratores


e implementos agrícolas, mais diversificado e com maior número de parti­
cipantes, é que o nível da concentração dos 4 maiores está abaixo dos 90%;
foi de 64% em 1980 c de 79% em 1989.

133
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

elevada oligopolização aparece como um aspecto distintivo do


hipercentraíizado capitalismo brasileiro.
Grandes redes empresariais, sob o controle centralizado de gru­
pos econômicos solidamente estruturados do ponto de vista finan­
ceiro, fazem do agribusiness brasileiro mais um espaço privilegiado,
concentrado, crescentemente excludente, do big business10.
Isto é particularmente evidente em ramos do complexo
agroindustríal que foram moldados pelas diversas políticas,
agrícolas e industriais, do regime ditatorial, como açúcar e
álcool (leia-se Proálcool) e óleos vegetais (leia-se soja), onde a
concentração dos 4 maiores, em termos médios, passa de um
patamar de 50% no início da década de 1980 para cerca de
70% no final. Em outros ramos, cuja base agrícola é bastante
antiga e não foi fortemente afetada pelas políticas governa­
mentais dos anos 70 e 80, como café, moinhos e carnes frigo-
rificadas e industrializadas, as cifras não destoam do
movimento geral: elas apontam para um crescimento contínuo
(exceto moinhos após 1985) da concentração, que chega a
patamares próximos a 70% e 80%.
Devido a certas limitações intrínsecas do material empírico
utilizado até agora (basicamente a restrição em termos espaciais
e o elevado grau de agregação setorial), seria conveniente mostrar
algumas poucas informações adicionais com o intuito de dimen­
sionar melhor o elevado grau de concentração da indústria bra­
sileira. São informações que não fazem parte da pesquisa e serão
aqui rapidamente apresentadas apenas como um complemento,
sem a menor pretensão de estender o escopo original do projeto.
Em primeiro lugar, procura-se comparar o grau de con­
centração industrial do Brasil com o de outros países, em par­
ticular, EUA, ex-Alemanha Ocidental e França. Para isto foi

10 A respeito do desenvolvimento rápido deste complexo agroindustríal sob


o comando financeiro do Estado brasileiro no tempo da ditadura militar,
ver Comin, Alexandre & Muíler, Geraldo. Crédito, modernização e atraso
(O crédito rural na modernização e no atraso da agricultura brasileira no
período 1965-84). Cadernos Cebrap, Nova Série. São Paulo: Cebrap, 1985.

134
CRISE E CONCENTRAÇÃO

montado o gráfico 4, com base nos dados de Holanda Filho11,


que mostra a concentração das 4 maiores empresas em diversos
gêneros industriais nestes 4 países.
A primeira constatação que salta aos olhos é a razoável
similaridade nos níveis de concentração, para os diversos paí­
ses, em cada gênero. Isto sugere que cada um destes sofre
processos de concentração que são específicos às condições
tecnológicas e comerciais do setor. Deste modo, em pratica­
mente todos os países, são os mesmos gêneros que aparecem
como os mais concentrados (material elétrico, material de
transporte, borracha e fumo) e menos oligopolizados (madeira
e mobiliário, seguidos de couros e peles, têxtil e vestuário).
A segunda evidência que se pode extrair deste gráfico,
malgrado suas deficiências12, é que, numa comparação com
países mais desenvolvidos, a indústria brasileira é significati­
vamente mais concentrada. Apenas em um terço dos gêneros
(mecânica, mobiliário, couros e peles, têxtil e fumo) o Brasil
não figura como o mais concentrado; nestes 5 casos, é o se­
gundo colocado. Em outros gêneros (borracha, alimentos, be­
bidas e editorial e gráfica) apresenta níveis de concentração
bastante superiores aos dos demais países.
O segundo conjunto de informações, que também não pos­
suem um caráter sistemático, apenas ilustrativo, diz respeito
à concentração de mercado em alguns produtos básicos de
consumo no Brasil. Apresentados na tabela 2, estes dados re­
presentam o mais baixo grau possível de agregação e fornecem
uma pequena noção dos níveis extremos de oligopolização a
que chegou a economia brasileira.

11 Holanda Filho, Sérgio Buarque de. Estrutura industrial no Brasil: concen­


tração e diversificação. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 19 83, p. 100.
12 Em termos de tempo; abrangência do tecido industrial; de diversidade do
grau de desenvolvimento econômico e de grau de abertura comercial dos
diversos países; nao-homogeneidade da variável utilizada para cada país.
Dados mais recentes para os EUA (não diretamente comparáveis aos do
gráfico 4) podem ser encontrados em Brozen, Yale. Concentration, mergers
and public policy. Nova Iorque: MacMiílan Publishing Inc., 1982.

135
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Duas observações podem ser feitas a partir da tabela 1,


Em primeiro lugar, impressionam os elevados níveis de con­
centração nas mãos de um número tão restrito de grupos em­
presariais. Percentagens tão altas quanto 90% ou 100% sob o
controle de apenas 1 ,2 ou 3 grupos, caracterizam uma situação
em que o poder oligopólico, em termos de preço, negociação
de prazos com clientes etc., pode ser exercido sistematicamen­
te, independentemente da conjuntura e dos esforços de esta­
bilização da política econômica13.
A segunda observação diz respeito à repetição dos nomes
de alguns grupos como parte das configurações oligopólicas
de diversos produtos. Se alguns grupos aparecem em ramos
de produção muito próximos do ponto de vista técnico e co­
mercial (como, por exemplo, Sadia e Perdigão nos embutidos
de carne, ou Brahma em bebidas), outros, ao contrário, detêm
posições de destaque em mercados não correlatos (aqui o me­
lhor exemplo é a Gessy Lever, que produz sabão em pó, de­
tergentes, creme dental, sabonete e margarina, além de outros
que não constam da tabela 1).

13 As duas matérias usadas como fontes na tabela 1 mostram exatamente


isto: foi justamente nestes setores altamente oligopolízados que ocorreram
as maiores altas de preços (bem acima dos níveis gerais de inflação) tanto às
vésperas do lançamento da Unidade Real de Valor quanto no período sub-
seqüente. Está claro neste momento que, do ponto de vista econômico, o
comportamento destes e de outros oligopólios é a maior ameaça à continui­
dade do plano de estabilização econômica.

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Tabela 1
Participação dos principais grupos na produção de bens de consu­
mo selecionados, Brasil, 19 9 3 , (%)

produto n. de % de grupos (marcas/empresas)


grupos vendas
sabão em pó 1 74 Gessy Lever
presunto 2 68 Sadia, Perdigão
salame 2 51 Nestlé, Itambé, Fleischman Royal
leite em pó 3 88 Cragnotti & Partners (Bombril e
detergentes 2 92 Orniex), Gessy Lever

caldo de 2 92 Nestlé (Maggi), Refinações de


galinha Milho Brasil (Knorr)
refrigerante 3 78 Brahma, Antárctica, Coca
cerveja 3 94 Brahma, Antárctica, Coca (Kaiser)
creme dental 3 100 Anakol (Kolynos) Colgate-Palmolive,
Gessy Lever (Signal e Aim)
margarina 4 80 Gessy Lever, Sanbra, Sadia, Cevai
sabonete 1 62 Gessy Lever
cigarros 2 98 Souza Cruz, Phillip Morris
leite (só grande 3 85 Parmalat, Mansur (Leco, Vigor,
S. Paulo) Flor da Nata), Paulista

óleo de soja 3 48 Cevai (Soya), Cargill (Liza), Sadia


sorvete 2 96 Phillip M orris (Kibon), Nestlé
(Gelato, Yopa)

FONTE: F o lh a de S. P aulo , 20.3.94, p. 1-8, e Veja, 9.3.94, p. 30-7.

Tais recorrências de nomes, que poderiam se multiplicar


às dezenas num estudo mais abrangente da indústria brasileira,
apontam para a forma grupo como um fenômeno específico,
não redutível às dimensões convencionais da microeconomia,
tais como mercado, produto, firma. Somente sob este ângulo
novo é que a conformação do poder econômico pode ser cap­
tada em toda sua extensão. Voltaremos a este ponto na seção
“ Os 50 maiores grupos econômicos” .
Por ora, gostaríamos apenas de frisar o seguinte: a intensa
concentração econômica verificada no âmbito das variáveis

138
CRISE E CONCENTRAÇÃO

resultado (patrimônio, lucros e faturamento) acima evidencia­


da, ainda que esteja condicionada por múltiplas determinações,
encontra na esfera da produção uma sólida base explicativa14.
Em outras palavras, o poder de mercado é a base sobre a qual
se ergue a estrutura do poder econômico.
Como conclusão geral do que foi examinado até agora
sobre a economia paulista, podemos afirmar que se trata de
uma estrutura altamente concentrada e em forte processo de
concentração, devido a uma crise que, de tão longa e poderosa,
deixou de ser conjuntural para ter efeitos estruturais de longo
prazo. Se de um lado a crise restringe o investimento produtivo
e engessa os grandes contornos da estrutura industrial, de ou­
tro lado ela também é responsável por um reforço do poder
econômico do grande capital, cujos detalhes ainda podemos
examinar sob outros ângulos.

As distintas reações à crise segundo a origem de capital

Vejamos mais de perto quem são esses sócios bilionários


do poder. Se, de um lado, eles são solidários financeira e po­
liticamente no intento de preservar sua posição privilegiada
no organograma econômico da nação, de outro, estão dividi­
dos internamente, dada a heterogeneidade de sua composição
setorial, tecnológica e de origem de capital. Em particular, os
dados da pesquisa permitem perceber uma importante diva­
gem: o comportamento e o desempenho dos grandes capitais
foi diverso entre empresas públicas e privadas, nacionais e
estrangeiras.
O primeiro destaque cabe aos donos da casa. Os indica­
dores financeiros analisados (RFP 125/127) mostram o amplo
domínio das empresas de origem de capital paulista em todos
os indicadores para os três anos considerados. Em 1989 estas

14 Importante acrescentar que a tabela 1, montada apenas com intuito ilus­


trativo, muito provavelmente expressa uma condição generalizada. Basta
dizer que apenas 200 fornecedores são responsáveis por mais de 70% de
tudo que é vendido em um grande supermercado (Veja, 9.3.94, p. 33).

139
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

empresas eram responsáveis por 44,7% do patrimônio líquido


total da amostra, 49,6% do total de faturamento, 52,4% do
total de lucro líquido e 6 1,6 % do total de empregados.
As empresas de origem estatal mantiveram uma participa­
ção aproximadamente constante em número de empresas e
patrimônio líquido (com relação ao total da amostra), em­
bora este último tenha crescido, em termos reais e absolutos,
aproximadamente 20% no período de análise. Apresenta­
ram crescimento em faturamento, que praticamente dobrou,
em relação ao total da amostra, embora em termos reais
tenha declinado. O número de empregados sofreu acréscimo
(ao contrário do ocorrido com as demais categorias de em­
presas) e houve, ainda, diminuição em seus prejuízos líqui­
dos, sendo necessário frisar que em nenhum dos anos
considerados registrou-se lucro líquido positivo para o con­
junto das empresas estatais.
Outro aspecto marcante diz respeito à pequena integração
das empresas brasileiras (nacionais privadas, porém não pau­
listas) à estrutura industrial de São Paulo. A participação destas
empresas cresce ao longo do período, mas chega em 1989
apenas ao nível de 8,6% do faturamento total da amostra.
As estrangeiras, ao contrário, evidenciam uma inserção
privilegiada na estrutura industrial paulista. Em 1989, estas
empresas, representando apenas 10% dos casos na amostra,
detinham quase 27% da produção e 40% dos lucros. Essas
discrepâncias, embora não tão acentuadas para os anos ante­
riores, são a regra: em outras palavras, o capital internacional
é particularmente concentrado em poucas empresas e é capaz
de se apropriar de uma parcela proporcionalmente alta do
excedente, dada sua participação na produção.
Numa apreciação geral, cabe destacar que a década de 80
se caracterizou por anos de considerável queda na atividade
econômica, o que se refletiu nesta amostra através de queda
acentuada no faturamento. Em meio a essa diminuição, des-
taca-se o aumento em termos percentuais do faturamento das
empresas paulistas e a diminuição dos seus percentuais de lucro
líquido. No caso das empresas estrangeiras ocorre exatamente

140
CRISE E CONCENTRAÇÃO

o contrário, e é justamente isso que deve ser enfatizado. Seria


ocioso citar aqui depoimentos que comprovam a “choradeira”
generalizada das empresas multinacionais: a economia brasi­
leira seria hostil ao capital estrangeiro, ele estaria indo embora
daqui, estaria perdendo dinheiro etc. Os dados da pesquisa
mostram que estas empresas avançaram na economia paulista,
apropriando-se de parcelas crescentes do excedente econômi­
co. Seu mecanismo básico de ajuste é o mesmo - ganhar mais
sobre uma produção menor - porém seu poder de barganha
com as demais frações do capital, bem como com o Estado,
trabalhadores e consumidores, é seguramente maior.
Esta diferença entre empresas paulistas e estrangeiras é
fundamental e evidencia o fato de que, entre as primeiras,
estão incluídas empresas pertencentes a grandes grupos eco­
nômicos e possuidoras de grande poder de mercado, e empre­
sas de tamanho mais reduzido, que na maioria das vezes não
são pertencentes a grupos econômicos (doravante chamadas
de empresas individuais) e participam de mercados menos oli-
gopolizados. Esta diversidade explica em parte a perda de po­
sição relativa das empresas paulistas, pois o comportamento
oligopólico das grandes acaba sendo diluído (em termos do
resultado agregado) pelo das empresas individuais.
Já no caso das firmas estrangeiras, estão incluídas empresas
que são em sua totalidade partes constitutivas de poderosos
grupos econômicos internacionais que normalmente se en­
contram numa posição oligopólica e, portanto, num mo­
mento de retração da economia conseguem manter ou
ampliar sua rentabilidade com maior facilidade, lançando
mão, em graus diversos, de várias práticas, a saber: corte de
empregos, manutenção de capacidade ociosa, remarcação
de preços num ritmo superior ao da inflação Desta forma,
pode-se dizer que houve um deslocamento dos lucros líqui-15

15 Some-se a isto uma política de incremento de lucros não-operacionais,


via desendividamento e aplicações no mercado financeiro (Almeida eNovais,
op. cit.s p. 11) .

141
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

dos da amostra, do capital de origem paulista para o capital


de origem internacional.
Quanto a este, cabe ainda uma análise mais detida, cen­
trada nos três principais blocos de capital: o norte-americano,
o alemão e o japonês. Essa escolha deve-se ao fato de que estes
três blocos de capital, somados, representaram mais da metade
do subgrupo de empresas estrangeiras em termos de todos os
indicadores analisados (RFP 12 8 /13 1).
Em 1989, as empresas japonesas eram responsáveis por
2 4 ,1% do total de empregos oferecidos pelo capital interna­
cional em contraposição a 4,8% em 1980. No que diz respeito
ao lucro liquido, o salto é mais espantoso, de 4,8% em 1980
para 35,5% em 1989. No caso das empresas cuja origem de
capital é norte-americana, nota-se o declínio de 45,4% no
patrimônio líquido ao longo de nove anos. Em termos de par­
ticipação percentual no total da amostra, nota-se também uma
diminuição em todos os indicadores. No caso das empresas
alemãs (na época, pertencentes à República Federal da Alema­
nha), nota-se uma razoável estabilidade da participação em
todos os indicadores, em torno de 20% do total do capital
internacional, embora elas sejam apenas cerca de 15 % do nú­
mero de empresas deste tipo.
Em resumo, pode-se afirmar que, durante a década de
1980, ocorreu na economia sediada em São Paulo uma ascen­
são da participação do capital japonês e um declínio da parti­
cipação do capital norte-americano, mantendo-se o capital
alemão num honroso segundo posto. Em outras palavras, a
economia paulista e, por extensão, a brasileira, dados seus
elevados níveis de integração produtiva com as principais po­
tências capitalistas16, refletem, a seu modo, as mudanças na
correlação de forças que ocorrem no âmbito mundial.

16 Novamente a comparação internacional parece adequada. Num levanta­


mento feito por Reinaldo Gonçalves (“ Investimento externo direto e em­
presas transnacionais no Brasil; uma visão estratégica e prospectíva” .
Ciências Sociais Hoje, Anpocs/Vértíce, 19 9 1, p. 235), o Brasil é um dos
países em desenvolvimento com maior penetração estrangeira. Medido pela
participação de empresas multinacionais na produção no final dos anos 70,

142
CRISE E CONCENTRAÇÃO

Adicionalmente, um cruzamento das informações setoriais


(24 gêneros do IBGE) com as de origem de capital permitiría
descrever padrões de especialização produtiva que podem ser
claramente visualizados para os diversos tipos de capital (RFP
132/137). A falta de espaço impede a reprodução integral desta
rica análise. Mencionaremos alguns traços essenciais.
E possível perceber uma razoável permanência do padrão
de distribuição do capital segundo sua origem entre os gêneros
industriais.
No caso das empresas estatais, como era de se esperar, sua
atuação se dá basicamente nos serviços públicos, onde seu pre-
domínio é quase absoluto17.
Para o capital estrangeiro, temos um padrão de especiali­
zação bastante definido, como também seria de se esperar, e
que se mantém praticamente inalterado em todo o período.

o Brasil (32%) só perde para a Venezuela (35,9%) entre os 8 principais países


latino-americanos. Confrontado com outros 7 países em desenvolvimento
da Ásia, o Brasil só perde para Cingapura (62,9%) e Malásia (44%). A Coréia,
tida e havida como modelo de desenvolvimento aberto, possuía apenas
19 ,3% de sua produção controlada por empresas estrangeiras.
17 Há que se observar, no entanto, que este padrão extremamente especia­
lizado de atuação não existia em 1980. Ele foi sendo gestado ao longo da
década mediante a redução da participação propriamente industrial do setor
público. Em 1980, as estatais, refletindo a estratégia de desenvolvimento do
II Plano Nacional de Desenvolvimento, obtinham quase 40% de suas receitas
nos gêneros de química e metalúrgica, em proporções iguais entre os dois.
Em 19 85, o patamar em cada um dos 2 ramos cai para menos de 15% , e
para menos de 10 % em 1989. Há que acrescentar que, a partir do governo
Collor (1990), este padrão de especialização se acentua, com a privatização
de segmentos quase inteiros do setor público, na siderurgia, petroquímica e
fertilizantes, entre outros. Dado que a pesquisa sc encerra em 1989, este
assunto está além dos limites deste trabalho. No entanto, pode-se acrescentar,
de passagem, que o processo de privatização, do modo como está sendo
executado, está ensejando a formação de poderosos oligopólios privados nas
áreas críticas de insumos intermediários. Um estudo mais detalhado sobre
isto é necessário para que a sociedade brasileira possa, no mínimo, repensar
o modelo de desestatização, agora que ele ameaça avançar para segmentos
ainda mais sensíveis da economia, como telecomunicações e energia. Para
uma sinopse do Programa Nacional de Desestatização, ver Indicadores IESP,
n. 26, março de 1994, p. 8-10.

143
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Nos três anos, as empresas estrangeiras de São Paulo concen­


traram suas atividades, numa proporção que oscila entre 60%
e 70% de todo o faturamento, em 4 gêneros, a saber: produtos
alimentares, mecânica, química e material de transporte.
A ampla predominância do capital paulista na industria
do Estado é confirmada pelo fato de ele deter mais de 50%
do faturamento em 14 dos 24 gêneros analisados, voltados
basicamente para o consumo não-durável, característicos da­
quilo que se costuma chamar de indústria leve.
Como contrapartida da poderosa ocupação de espaços dos
demais tipos de capital, pode-se observar a escassa penetração
do capital originário de outros Estados na indústria paulista:
ele não é predominante em nenhum dos 24 gêneros. Realizou
pequenas incursões em São Paulo (com destaque para o setor
de construção civil), que, no entanto, não alteram essencial­
mente a fraca posição destes capitais no pólo mais dinâmico
da economia brasileira.
De forma bastante sintética, foi possível constatar na pes­
quisa algumas mudanças nas relações de força e no padrão de
ocupação de espaços econômicos na economia sediada em São
Paulo. A predominância dos capitais locais se manteve, tendo
inclusive se ampliado em alguns setores antes dominados pelo
capital estrangeiro. Este, ainda que cedendo terreno em alguns
ramos, permanece soberano em vários dos principais mercados
oligopolizados da economia: a economia interna espelha um
padrão altamente concentrado de controle econômico que se
formou e se reproduz continuamente no âmbito do capitalismo
global. Espelha também as alterações entre capitalismos na­
cionais que ocorrem neste âmbito, a saber, a ascensão do ca­
pital japonês.

Os S0 maiores grupos econômicos

Até agora, o objeto de análise foram as empresas - unidades


jurídicas autônomas, publicamente reconhecidas enquanto tal.
Mas é preciso superar esta base teórica tradicional: há muito

144
CRISE E CONCENTRAÇÃO

que ela se subordina a outra, mais ampla, que determina o


rumo e o potencial de acumulação de cada componente. Tra-
ta-se dos grupos econômicos, a expressão mais desenvolvida
de um conjunto complexo de movimentos de concentração e
centralização da propriedade capitalista que têm início no finai
do século passado18. Podemos defini-los como uma unidade
de propriedade e controle que se estende por um conjunto de
empresas. Pode assumir a forma de holdings —caso muito co­
mum no Brasil19 - ou não. Constitui-se de vários tipos de li­
gação de propriedade - a começar daquelas que surgem a partir

18 O percurso teórico da categoria grupo econômico deve ter início pela


noção de capital financeiro, isto é, pela contribuição pioneira de Rudolf
Hilferding (Ocapital finariceiro. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os Eco­
nomistas, 1985). As referências mais recentes incluem, necessariamente, os
seguintes trabalhos: Zeitlin, Maurice. “ Corporate ownership and control
(The large Corporation and the capitalist class)” . American Journal of Socio-
logy. Chicago, University of Chicago Press, 79(5), p. 10 7 3 / 111 9 ,19 7 4 ; Che-
valier, Jcan Marie. La economia industrial en cuestión. Madri, H. Blume
Ediciones, 19 79 ; Bellon, Bertrand. Groupes et ensembles financiers en Fran-
ce (Evolution, strueture strategie). Tese de doutorado, Universidade D’A-
miens, 19 79 ; Scott, John. Corporations, classes and capitalism. Londres,
Hutchinson &c Co., 1979; Gr ou, Pierre. La strueture financière du capitalis-
me multinational. Paris, Presses de la Fondation Nationale des Sciences Po-
lítiques, 19 8 3; Montmoriílon, Bernard de. Les groupes industrieis (Analyse
structurelle et stratégique). Paris, Economica, 1986.
19 Na literatura brasileira, o píoneirismo na discussão teórica e empírica sobre
os grupos econômicos privados atuantes no Brasil cabe a Queiroz, Maurício
Vinhas. “ Os grupos multibilionários” . Revista de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro, 2(1), p. 47-78, 1965. A contribuição teórica mais recente e abran­
gente sobre o tema está em Gonçalves, Reinaldo. “ Grupos econômicos: uma
análise conceituai e teórica” . Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro,
Fundação Getúlio Vargas, 45(4), p. 489-656, 19 9 1. A respeito das relações
entre sistema financeiro e setor industrial, o destaque cabe aos trabalhos de
Braga, Josc Carlos de Souza & Mazzucchelli, Frederico. “ Notas introdutórias
ao capitalismo monopolista” . Revista de Economia Política. São Paulo, Ed.
Brasiliense, 1(2), p. 57-65, 19 8 1 e Zoninsein, Jonas. Atitudes nacionais e
financiamento da indústria: A experiência brasileira. Texto para Discussão,
63. Rio de Janeiro, IE/UFRJ, 1984. Para uma análise qualitativa de alguns
dos principais grupos privados nacionais, no período mais recente, ver Su-
zigan, Wilson (org.). Estratégia e desenvolvimento de C & T nas empresas
privadas nacionais. Relatório de Pesquisa. Campinas, IE/Unicamp, 1989 e
Ruiz, Ricardo Machado. Reestruturação dos grupos industriais brasileiros.
Campinas, 1994, mimeo.

145
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

do mercado acionário - e financeiras que se cristalizam em


relações de comando e de apropriação econômica entre pes­
soas físicas - as grandes famílias proprietárias - e jurídicas. Em
uma frase, o grupo é a estrutura empresarial que combina a
centralização do poder e da apropriação econômica com a
descentralização na gestão e na ocupação de espaços econô­
micos (regionais, nacionais, setoriais etc.).
Esta dupla subordinação - pela hierarquia do comando
centralizado e pelo circuito de recursos financeiros mais amplo
do que a magnitude do cash flow de cada empresa - implica
teoricamente atributos diferentes para a empresa que pertence
a um grupo com relação àquela que não pertence. Para nossos
propósitos, cabe ressaltar dois deles, referentes ao desempenho
contábil das empresas que estamos examinando. De um lado,
o potencial de acumulação de cada empresa não está contido
nos limites de si própria, posto que ela pode contar com re­
cursos - sobretudo financeiros, mas também humanos, tecno­
lógicos, entre outros - que pertencem ao grupo. De outro, as
transferências intragrupos, nem todas explicitadas em balan­
ços, mascaram a performance de cada ente individual.
Estes seriam, prima fatie, motivos analíticos suficientes
para justificar um estudo centrado nos grupos econômicos.
Mas são também motivos teóricos: é esta entidade abrangente
que expressa, pela agregação das partes, o real comporta­
mento dos agentes econômicos, o efetivo potencial de acu­
mulação de um capital que é multissetorial, multifuncional
e, em muitos casos, multinacional. Ainda que os dados não
captem toda esta diversidade, porque se concentram em al­
guns setores produtivos (indústria) e não contemplam outras
funções (comercial e bancária) nem a atuação em outros
locais que não São Paulo, sua agregação por grupos repre­
senta um primeiro passo rumo à compreensão da sinergia
que resulta unicamente da forma grupo. E neste ponto que
a análise mesoeconômica começa propriamente a alçar vôo:
ao observar a paisagem industrial pelo alto, capta as inter-
conexões entre setores e ramos produtivos, revelando a di­
mensão mais ampla da acumulação de capital numa eco-

146
CRISE E CONCENTRAÇÃO

nomiadominadanãoporgrandesempresas, mas por grandes


coalizões de firmas estruturadas como grupos.
Nosso objetivo primordial é localizar e dimensionar o po­
der econômico justamente no locus onde ele efetivamente se
materializa, os grupos, a entidade que reúne o patrimônio -
financeiro, de penetração de mercado, tecnológico etc. - for­
malmente disperso entre diversas empresas juridicamente in­
dependentes.
No curso da pesquisa, procuramos agregar as empresas
da amostra nestas unidades mais amplas, procurando enxer­
gar não mais o movimento das partes, mas sim do conjunto.
Numa tentativa preliminar, criamos vários grupos pela agre­
gação simples de empresas a eles pertencentes (maioria do
controle acionário), isolamos os 50 maiores dentre eles e
comparamos sua performance com o restante da amostra20.
Seguem-se algumas das principais conclusões daí derivadas,
tendo como foco as variáveis com as quais vimos operando
até aqui (patrimônio líquido, faturamento, lucro líquido),
acrescidas do indicador número de empregados, para os 50
maiores grupos, discriminados tão-somente segundo sua
origem de capital.
Um primeiro nível de análise, ainda sem individualizar os
grupos, diz respeito à relação entre os maiores grupos listados
e o conjunto da amostra. Ela nos dá uma outra radiografia do
grau de concentração da economia sediada em São Paulo.
Pode-se observar que o patrimônio líquido dos maiores grupos
como percentagem do total da amostra passa de 63,5% em

2(1 Algumas complicações metodológicas implicaram um quadro um pouco


mais complexo do que aquele aqui descrito. Dificuldades na apuração das
intricadas ligações de propriedade em algumas empresas descaracterizam
alguns agrupamentos econômicos enquanto tal. Felizmente são de menor
importância no conjunto da amostra, e aqui passaremos por cima destes
detalhes. O leitor mais interessado é remetido à discussão sobre estes pro­
blemas, no RFIJ p. 94 e s.

247
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

1980 para 69% em 1989 (RFP 138/143). Para as demais va­


riáveis os cálculos revelariam proporções um pouco menores,
mas ainda assim bastante elevadas21, evidenciando a existência
de uma distribuição bastante concentrada do poder econômico
na indústria de São Paulo.
Tomemos inicialmente, com o objetivo de estabelecer um
contraste, a empresa individual (isto é, a agregação de todas as
empresas que não pertencem a grupos) como foco de análise. E
possível perceber nitidamente um perfil econômico-financeiro
que caracteriza estas empresas de menor porte e que não estão
integradas ao circuito de acumulação dos grupos em termos de
propriedade do capital. Em 1980, as 1.12 6 empresas não per­
tencentes a grupos detinham, como proporção dos 50 grupos,
pouco mais de 15% do patrimônio líquido, 2 2 ,1% do fatura­
mento e quase 30% do emprego. Em 1989, a desproporção se
acentua figeiramente, com o patrimônio líquido subindo um pou­
co e o percentual do emprego atingindo praticamente o patamar
de um terço22. Estas cifras, por oposição àquelas dos maiores
grupos, indicam claramente um padrão de organização da pro­
dução intensivo em mão-de-obra e de baixa capitalização.
Outro aspecto importante quanto ao papel ocupado por
esta miríade de empresas de menor porte diz respeito à parcela
dos lucros por elas obtida em relação aos grupos. Calculando
a proporção dos lucros desta empresas no conjunto dos maio­
res grupos, percebe-se que esta relação, que era de 25% em
1980, passa para cerca de 20% em 1989. Ou seja, um dos
efeitos da crise econômica foi o de deslocar parcelas expres­

21 No caso do iucro líquido, o percentual passa de 49% para 65,7% ao longo


do período. Em suma, os grandes grupos detêm entre 60% e 70% do patri­
mônio líquido e entre metade e dois terços dos lucros de toda a amostra.
22 Este aumento na proporção do emprego não foi obtido pela geração de
novos postos de trabalho, mas, ao contrário, por uma redução menor do
que o conjunto dos 50 grupos na oferta de empregos. A crise implicou tam­
bém para estas empresas de menor tamanho um corte em pessoal, da ordem
de quase 20 mil pessoas, dado que o contingente de trabalhadores passa de
574,2 mil em 1980 para 554,4 mil em 1989. Para o conjunto dos 50, a perda
de empregos foi de 33,3 mil.

148
CRISE E CONCENTRAÇÃO

sivas do excedente global das empresas que não pertencem a


grupos para os grandes agrupamentos de empresas. Isto sugere
ao menos duas observações, ainda que não permita uma de­
monstração cabal.
Primeiro, falando-se de grupos econômicos, a referência
não é a de uma simples multiplicação da empresa individual
em novas unidades. Os grupos são a centralização de entidades
já caracterizadas pelo grande porte, pela penetração em setores
mais oligopolizados e pelo poder financeiro; não são a soma
de quaisquer empresas. Neste sentido, o deslocamento de lu­
cros das empresas individuais para os grupos é mais uma di­
mensão da concentração de excedente nos estratos superiores
da hierarquia empresarial.
Segundo, os grupos econômicos representam mais do que
agregação de unidades entre si homogêneas. Ao combinar fra­
ções diferentes do capital - comercial, produtivo e financeiro
- passam a se movimentar por uma lógica diferente. Ao con­
centrar recursos líquidos de várias unidades diferentes, em se­
tores diversos, as holdings que controlam os grupos passam a
desempenhar funções financeiras que estão muito além das
possibilidades econômicas dos empreendimentos isolados; os
grupos podem assim se dirigir ao mercado financeiro de modo
privilegiado e compor uma equação capital produtivo/capital-
dinheiro muito mais eficaz. Dado o peso da acumulação fi­
nanceira no conjunto da reprodução do capital que carac­
terizou os anos 80, isto faz toda a diferença.
Ademais, os grupos econômicos, em muitos casos, são eles
próprios parte do mercado financeiro, através de seus bancos
(freqüentemente à frente de todo grupo), corretoras e outras
instituições financeiras; nestes casos, são os grupos uma en­
grenagem central da ciranda financeira, alavancando fictícia­
mente sua acumulação numa magnitude impensável para o
capital individual.
Partindo para uma análise individual dos grupos, o pri­
meiro tipo de informação relevante é quanto à continuidade
de alguns grupos, ao longo de toda a década, no ranking dos
50 maiores. Ao todo, foram identificados 29 grupos que apa­

149
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

recem nos três anos; eles formam o núcleo duro do poder


econômico na indústria de São Paulo. Ao contrário de outros
grupos, que saem do conjunto dos 50, ou nele entram em
algum momento do período 1980-89, estes 29, devido a sua
permanência, constituem um subconjunto à parte, o daqueles
blocos de capital que resistiram à crise e lograram manter-se
no topo do ranking. Não é possível oferecer uma explicação
única para esta distinção: haveria que examinar cada grupo
em particular para saber por que razão saíram, entraram ou
permaneceram nesta lista específica que é, desde logo, arbi­
trária. Apenas com as informações de que dispomos, a perma­
nência destes 29 grupos é, em si, uma distinção importante.
Os 29 grupos estão divididos, segundo a origem do capital,
da seguinte forma: 2 são estatais, 10 são estrangeiros e 15
paulistas. Há que ressaltar que os grupos brasileiros não figu­
ram neste rol seleto, o que sugere, por um novo ângulo, a
pequena integração dos grupos de outros Estados à economia
paulista23. Convém mencionar cada um destes grupos.
Comecemos pelos grupos não-privados. Sob o comando
do Executivo federal encontram-se 3 grandes estatais: Petro-
brás, Siderbrás e Telebrás, elas próprias 3 grandes holdings,
que, neste sentido, poderiam, numa análise mais detida, ser
enfocadas como 3 grupos independentes, devido à relativa
autonomia operacional e financeira de que dispõem. A pre­
sença destas empresas gigantes indica o peso do setor público
estatal nas atividades de apoio industrial (energia e telecomu­
nicações) e na indústria de base (siderurgia) no Estado mais
industrializado do país.
O outro grupo do setor público é o Estado de São Paulo,
que aparece em todos os anos como o primeiro do ranking.
Sua participação no patrimônio líquido do conjunto dos 50
grupos não é nunca inferior a 20%. Isto significa, efetuando
os cálculos, que este grupo representa algo em torno de 15 %

23 Na verdade, para os três anos de análise da década, aparecem 10 grupos


brasileiros, sendo que nenhum deles consegue se manter ao longo de todo
o período.

ISO
CRISE E CONCENTRAÇÃO

do total geral da amostra. Em outras palavras, entre os grandes


de São Paulo, figuram no topo as empresas do próprio governo
do Estado.
Entre as 13 empresas deste grupo (para o ano de 1989),
figuram algumas das principais concessionárias do sistema Ele-
trobrás (CESI? CPFL e Eletropaulo), algumas das maiores em­
presas de transportes do país (Cia. do Metropolitano de São
Paulo e Fepasa) e outros serviços públicos (Sabesp e Comgás).
A composição setorial do grupo explica seu peso na economia
sediada em São Paulo: reproduz no plano estadual a comple­
mentaridade entre indústria e serviços industriais; e as con­
centrações regionais de ambos se condicionam mutuamente.
O peso das empresas do governo paulista no faturamento
e no número de empregados, por outro lado, não atinge nunca
o patamar de 7% do total dos 50 grupos em ambos os indica­
dores. Para completar o quadro, resta dizer que o setor pro­
dutivo paulista é deficitário em todos os anos. Estas cifras
ilustram o papel deste segmento do setor público para a acu­
mulação industrial no Estado: alta intensidade de capital (tanto
em relação ao fator trabalho quanto ao produto) e rentabili­
dade negativa. A primeira característica se explica pela con­
centração em setores onde prevalecem grandes aportes de
capital e longos prazos de maturação do investimento. A pés­
sima rentabilidade, para além das questões vinculadas à efi­
ciência operacional, está fortemente associada às injunções da
política econômica e à eterna “vocação” do setor público de
subsidiar o setor privado, sobretudo pela contenção de pre-
ços/tarifas.
Em resumo, percebe-se uma peculiar inserção do capital
público na economia paulista. Em seu estrato superior, figura
uma holding pública que, em seu conjunto, transfere recursos
para o resto da economia; somada às três holdings federais
acima mencionadas (no conjunto lucrativas, mas numa pro­
porção irrisória para seu patrimônio e faturamento) compõe
um quadro que diz muito a respeito da importância e da fun­
cionalidade do capital público no capitalismo brasileiro. Quase
sempre impedidas de exercer seu poder oligopóhco (ou mo-

151
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

nopólico) na formação de seus preços, e impossibilitadas de


fazer o ajuste financeiro devido a uma dívida anterior - con­
traída menos em função de suas próprias necessidades e muito
mais devido às estratégias de captação de crédito externo dos
últimos governos militares as empresas estatais são gigantes
acorrentados, divididos entre o objetivo de acumulação para
si e os desígnios das políticas macroeconômicas24.
Entre os 10 grupos estrangeiros, encontram-se nomes bem
conhecidos do público brasileiro, quase todos de países capita­
listas avançados. Três destes são alemães2\ França, Itália, Suíça,
Canadá e Bélgica comparecem com um grupo cada26. Por último,
aparece um grupo de um país em desenvolvimento27.
Ao contrário do que se podería esperar, não figura nenhum
grupo americano entre o subconjunto de 29 grupos ora estu­
dado. Vale mencionar que em alguns anos figuram 6 grupos
dos EUA28. Ainda mais curiosa é a quase completa ausência de
grupos japoneses. O único a aparecer, e apenas em 1989, é o
Fuji Bank Ltd., braço brasileiro de um dos maiores conglome­
rados japoneses.

24 A respeito das contradições que envolvem a acumulação de capital das


empresas estatais ver Dain, Sulamis. Empresa estatal e capitalismo contem­
porâneo. Tese de doutoramento. Campinas, Unicamp, 1980. Sobre a vincu-
lação entre dívida externa e desajuste das empresas estatais, ver Cruz, Paulo
D avidoff. Dívida externa e política econômica (A experiência brasileira nos
anos setenta). São Paulo, Brasiliense, 1984, especialmente p. 173-4.
25 A saber, Daimler Benz, Hoechst c Siemens.
2(l Respectivamente, Saint Gobain, Pirelli, Nestlé, Alcan e Solvay. Aparece
também o grupo Uniiever, que resulta de uma associação entre o capital
inglês e o holandês.
17 Trata-se do grupo Bunge y Born (mais conhecido pelo nome de Santista),
de nacionalidade argentina, há muito tempo instalado no Brasil e atuando
nos setores de alimentos e têxtil.
28A saber, Dow Química, Cargill, Caterpillar, Champion Inth, Ford e General
Motors. Esta última, maior “ empresa” do mundo, saiu da amostra em 1989.
Motivo: deixou de ser uma empresa de capital aberto e parou de divulgar
seus dados contábeis.

152
CRISE E CONCENTRAÇÃO

Entre os 15 grupos nacionais privados, todos eles do Es­


tado de São Paulo, figuram alguns dos maiores e mais conhe­
cidos grupos privados do país, como Votorantim, Matarazzo,
Antárctica, Villares, Vidigal e Alpargatas. Outros, menos co­
nhecidos, podem ser citados: Termomecânica, Suzano Feffer,
Severino Pereira da Silva. Há outros com forte participação
na agroindústria (com diversificação para os setores de bens
de capital conexos ou não), como Cutrale, Dedini, Biagi e
Ometto. Completam a lista uma grande construtora, a Camar­
go Corrêa, e um grande conglomerado financeiro, o Grupo
Itaú.
Estes grupos, atuando nos mais diversos setores da econo­
mia - com destaque para os conglomerados altamente diver­
sificados: Votorantim, o maior grupo privado nacional, e
Matarazzo, que já ocupou este posto no passado29 repre­
sentam metade do núcleo duro de grupos da economia paulista
e espelham a pujança do capital local, em contraste com a
parca penetração do capital de outros Estados, e mantendo
uma posição de liderança mesmo frente aos enormes grupos
estrangeiros citados que, em boa medida, permanecem encas­
telados nos oligopólios que dominam no plano mundial.

Quem é quem na crise brasileira

A discussão que vimos fazendo procurou basicamente re­


sumir os resultados empíricos que nossa equipe foi capaz de
sistematizar até agora. Nesta última seção, mais abaixo, fare­
mos uma síntese final dos grandes movimentos da economia
paulista. Antes, porém, gostaríamos de alinhavar alguns co­
mentários de natureza conceituai, sugeridos pela pesquisa.

2y O grupo Matarazzo é um caso à parte: a decadência (relativa) que já era


visível nos anos 80, converteu-se na década atual em um verdadeiro processo
de desestruturação industrial. Atualmente, as atividades industriais do grupo
se resumem basicamente à metalurgia (Ruiz, R. M., op. cit., p. 20).

153
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

A noção de um espaço teórico mesoeconômico, que bus­


caria integrar análises já existentes num corpo conceituai úni­
co, ao qual seriam acrescentadas dimensões novas, vive ainda
sua infância. Muita reflexão e trabalho empírico são ainda
necessários para que se prove sua necessidade e pertinácia ao
estudo das economias contemporâneas.
Desde já, no entanto, é possível delinear seus traços bási­
cos, reconhecer seu objeto, sugerir algumas hipóteses prelimi­
nares. Como ponto de partida, é possível afirmar que a
mesoeconomia deveria se ocupar de duas ordens de fenômenos
fortemente associados. De um lado, é preciso estudar as inter-
relações produtivas entre os setores econômicos que estão na
base do desenvolvimento econômico, particularmente na in­
dústria e na confluência desta com a agricultura (agroindús­
tria). O objeto aqui são a matriz de relações intersetoriais, as
sinergias comerciais e tecnológicas entre setores correlatos, as
condições enfim que nos permitiriam identificar clusters in­
dustriais, isto é, construir as mediações necessárias entre os
mercados (nível micro) e a estrutura produtiva (nível macro).
De outro lado, a mesoeconomia precisa identificar os agen­
tes econômicos que operam - isto é, que comandam - este
complexo mosaico que é a divisão do trabalho numa economia
que já atingiu um certo grau de desenvolvimento interno. O
objeto aqui são as relações de propriedade (acionária e finan­
ceira) e apropriação (privada ou estatal, individual ou grupai)
que, variantes ao longo do tempo e variáveis segundo os di­
versos contextos nacionais, regulam, constrangem, possibili­
tam o desenvolvimento daquela divisão técnica do trabalho
acima referida. A montagem de ramos da produção (petróleo,
automóveis, petroquímica) é simultaneamente a construção
de agentes econômicos e sociais (grupo estatal, grupo multi­
nacional), tripé que os tornam possíveis30.

30 A questão não c nova: ela aparece desde o princípio da industrialização


brasileira. Fernando H. Cardoso é explícito sobre este ponto, adicionando
as dimensões sociais e políticas de que não estamos tratando aqui: “ o desen­
volvimento econômico do Brasil como processo político-econômico-social

154
CRISE E CONCENTRAÇÃO

Se a primeira dimensão da mesoeconomia se inscreve na


longa e viva tradição da Organização Industrial, a segunda
procura recuperar alguns aspectos da economia política que,
ao contrário, parecem perdidos no tempo: é bastante reduzida
a atenção que os processos de concentração e centralização
dos capitais têm recebido de uma ciência econômica hegemo-
nizada pelo paradigma neocíássico. A concorrência intercapi-
talista, ao perpassar estas duas dimensões, é a chave para
entender as relações de causa e efeito que entre elas se estabe­
lecem. Mas não é a concorrência isomorfa e reducionista da
microeconomia neoclássica: não isolamos os agentes em fir­
mas e mercados abstratos. Ao contrário, os atores aqui se dis­
tinguem pelo tamanho, pela origem de capital, por suas
articulações internas e externas, pelo poder econômico e po­
lítico de que dispõem; os mercados são determinados forte­
mente pelo desenvolvimento de outros mercados, com os quais
mantêm relações, e se distinguem também pela dinâmica da
concorrência neles prevalecente (inclusive em termos da pre­
dominância deste ou daquele tipo de capital, da presença de
grupos etc.).
Em resumo, a proposta de um espaço mesoeconômico,
mais do que uma ruptura com a teoria econômica, é uma ten­
tativa de aglutinar dentro de um corpo teórico coerente um
conjunto de análises que, amiúde, aparecem dissociadas. Nossa
aposta é a de que, particularmente no caso do Brasil, o enfoque
mesoeconômico pode contribuir decisivamente para a com­
preensão da presente crise de desenvolvimento.
A luz destas considerações, nos parece oportuno sintetizar
algumas das principais conclusões a que chegamos até o mo­
mento. São elas a prova dos nove de um espaço conceituai
ainda em construção.

implica não apenas a formação de uma indústria de bens de capital e o


automatismo do crescimento econômico, como a formação e dinamização
de novas classes capazes de redefinir o equilíbrio tradicional de poder e de
romper a estagnação econômica” (Cardoso, Fernando Henrique. Empresário
industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo, Difusão Euro­
péia do Livro, 19 72, p. 84).

155
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Quanto às mudanças na estrutura produtiva paulista, nos­


so elevado grau de agregação setorial e a falta de dados cen-
sitários não nos permitem uma análise detalhada. A conclusão
mais geral a que se pode chegar neste tema é de que a crise
econômica congelou, ao menos no início dos 80 e em seus
contornos mais gerais, a estrutura industrial.
No âmbito da concorrência econômica, a pesquisa revela
que houve um intenso aprofundamento da concentração: os
grandes se agigantaram às custas dos participantes menores e
mais fracos da indústria sediada em São Paulo.
Este processo não se deu aleatoriamente. Ao contrário,
parece ter influído, de vários modos, sobre a correlação de
forças entre os diversos segmentos empresariais. Alguns traços
de continuidade e de mudança se destacam.
Primeiramente, o capital público, dada sua inserção sui
generis, acima discutida, acirrou algumas das contradições que
caracterizam o setor produtivo estatal há algumas décadas. A
centralidade de sua inserção produtiva continuou se chocando
com o caráter subordinado do capital público, tanto com re­
lação à política econômica quanto à estrutura de acumulação
do capital como um todo.
Em segundo lugar, o balanço entre o capital paulista e o
de outros Estados da federação, aqui atuantes, não parece ter
se alterado essencialmente. O capital local conserva sua pri­
mazia, apesar de algumas incursões pontuais do capital brasi­
leiro em certos setores.
Em terceiro lugar, não se pode dizer que tenha havido
grandes mudanças na inserção do capital estrangeiro (como um
todo) na economia sediada em São Paulo. O peso global da pro­
dução sob controle internacional e a distribuição setorial desta
produção sofreram poucas mudanças. Por outro lado, a partici­
pação deste tipo de capital na apropriação do excedente econô­
mico cresceu substancialmente, indicando uma capacidade maior
de se adaptar aos graves desequilíbrios macroeconômicos, o que
em parte se explica pelas características técnicas e competitivas
dos setores onde atua preferencialmente.

156
CRISE E CONCENTRAÇÃO

Por último, nossos dados mostram claramente a ascensão


dos blocos de capital organizados como grupos, em prejuízo
dos demais. Esta evidência, juntamente com aquelas relativas
à concentração econômica, parece indicar que houve também
um forte processo de centralização de capital. Em outras pa­
lavras, para além da concentração que resultou da concorrên­
cia oligopólica em boa parte dos mercados, outros mecanismos
econômicos atuaram no sentido de provocar uma centraliza­
ção geral do poder econômico que transcende as realidades
setoriais.
A quase-hegemonia*

Por que a reeleição surge no atuaLquadro político ?

A reeleição é parte da estratégia política de um grupo que


tem pretensões hegemônicas. O projeto desse grupo, liderado
por FHC, é manter-se por muito tempo no poder, como deu
sinal, desajeitadamente, o ministro Sérgio Motta, que diz o
que o presidente não pode dizer ao falar de 20 anos no poder.
Que grupo é esse?

Do ponto de vista político não é expressivo. O único real­


mente expressivo é Fernando Henrique. Ele articulou os gru­
pos políticos dominantes no Brasil que não se combinavam:
PFL, PMDB quase inteiro, PSDB, PPB, uma boa parcela do
PTB. Desde a Revolução de 30 não surgia um grupo hegemô­
nico. Ao longo desses anos, extremamente violentos, os con­
flitos significaram a impossibilidade de hegemonia de um
grupo que soldasse as diferenças sociais e as traduzisse politi­
camente.
Fernando Collor já não foi um sinal de novos tempos?

Collor foi o primeiro sintoma de um novo momento, um


cheiro de possibilidade de hegemonia. Mas ele era muito mal

* Entrevista realizada por Ana Maria Mandim e publicada na Folha de 5.


Paulo, 10 de fevereiro de 1998, p. 1-4.

159
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

preparado, um outsider, vinha de um Estado fraco. FHG é


a conseqüência imediata de Collor, é de qualidade diferente.
Os grupos dominantes são um conjunto diversificado, que
precisa ser articulado: burguesia industrial, financeira, ru­
ral, setores da classe média, empresas multinacionais e am­
biente internacional.

F H C é o intérprete dos grupos dominantes ?

E, embora politicamente o PSDB seja fraco. Mas FHC


mostrou capacidade de fazer a tradução do social para o plano
político. Por isso tem todo esse apoio. Houve uma enorme
expansão do poder de classe, que não encontrava tradução
política devido a fraturas regionais e entre as classes. Daí a
grande dificuldade do PFL, em São Paulo. O PFL, partido que
sempre serviu a todos os governos, tem expressão muito fraca
no Estado mais rico. Como fazer, então, a tradução do social
para o político, se faltava a peça-chave?

F H C é essa peça?

Sim. A novidade de Fernando Henrique é sua capacidade


de aglutinar. Ele faz algo que nem todo político pode fazer,
A profecia de 20 anos no poder se cumprirá?

ínfelizmente, acho que sim. Existem as condições sociais, e


Fernando Henrique está conseguindo a tradução disso para a
política. Existe uma base real, as pessoas hoje são desinibidamente
capitalistas. Antes, tinham vergonha de dizer que eram capitalis^
tas. Hoje, cada um de nós, mesmo sem ser empresário, ostenta,
gasta. A miséria, que continua a ser o problema mais grave do
país, deixou de ser um desafio para a sociedade.
Se a estabilização redistribuiu renda, como diz o governo, por que o
senhor discorda dela?

Não houve redistribuição de renda alguma. Isso é propa­


ganda do Plano Real. O que houve foi que o imposto inflacio­
nário deixou de existir.

160
A QUASE-HEGEMONIA

O grupo hegemônico representa algo n ovo?

Sim, o grupo de FHC soube capitalizar muito bem a bur­


guesia de São Paulo, que é de uma inépcia política extraordi­
nária. Eles se colocaram no lugar dela, realizaram o sonho do
PCB. A famosa vanguarda sobre a qual o PCB tanto teorizou
são eles.
O PFL impede F H C de realizar seu projeto?

De jeito nenhum. Antônio Carlos Magalhães é que é pri­


sioneiro do FHC. ACM sem Fernando Henrique não é nada,
sabe que jamais poderá aspirar a ser presidente. O que FHC
fez foi juntar São Paulo e as oligarquias.
H á possibilidades eleitorais para propostas alternativas?

No momento, muito remotas para um desafio global no


sentido de postular a Presidência. Não que não se deva tentar,
é tentando que se constrói, e a história é aberta, felizmente
nos prepara surpresas todos os dias. O projeto hegemônico
pode ser desafiado em terrenos circunscritos, derrotado em
eleições para prefeituras e até Estados. O grupo que ganha
trata de destruir os recursos políticos do outro. E o que Fer­
nando Henrique está fazendo. Ele vai salgar a terra para que
nenhum grupo alternativo tenha chance tão cedo.
Com o?

Por meio, das reformas constitucionais, da flexibilização


do contrato de trabalho, da desregulamentação, da mudança
na Previdência, tirando o chão social das entidades que um
dia desafiaram as elites. Nenhum grupo está aí para contemplar
o outro crescer. As forças alternativas têm de lutar em todos
os foros e tentar traduzir isso para o campo político. Como a
âncora da credibilidade do projeto hegemônico é a estabilidade
monetária, será muito difícil lutar contra ela por causa da dura
pedagogia da inflação: a subjetividade popular foi castigada
por 30 anos de inflação.

161
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Existe alguém boje que expresse tão bem esse projeto hegemônico
quanto E H C f

No momento, não. Demora muito para uma classe ou


conjunto de classes criar uma liderança desse porte. Não
essencialmente pelas qualidades de FHC, mas porque um
longo processo foi forjado e FHC saltou à cabeça dele no
momento certo. Além disso, ele faz o trabalho cotidiano da
aranha, tecendo articulações e destruindo outras. Não é à
toa que a presidência do Senado é do PFL, e a da Câmara,
do PMDB. Isso ajuda porque demarca terrenos, corta am­
bições, circunscreve capacidades. E um método político de
mestre.
Como o grupo de F H C assumiu a hegemoniaf

Existe dominação e hegemonia. Pode-se dominar poli­


ticamente, economicamente, mas só há hegemonia quando
você faz o dominado pensar como você. Tivemos, no Brasil,
30 anos de transformação que significaram dominação, mas
não hegemonia, porque os grupos dominantes estavam di­
vididos. FHC os juntou. Com a estabilização surge a possi­
bilidade de hegemonia: o povão começa a pensar como o
mais rico. Isso ocorre raramente, e por isso a estabilidade é
ferozmente perseguida. O grupo hegemônico pagará qual­
quer preço para mantê-la.
M alu f poderia ser o intérprete desse grupo f

Maluf ainda não tem a capacidade de articulação necessá­


ria. Ele não é trouxa e já percebeu a força do grupo hegemô­
nico. Pode escrever: ele não se candidatará à Presidência.
Receberá avisos para não se meter, não terá dinheiro para a
campanha. Os grupos mandantes esperaram desde Vargas pelo
surgimento de um condottière como Fernando Henrique. Var­
gas não era amado pela burguesia, Fernando Henrique, é.

162
III PARTE

SUAVE É O TER RO R

O Neoliberalismo Termidoriano no Brasil


Quem tem medo da governabilidade?*

Conservadorismo e mudança social

A eleição de Fernando Henrique Cardoso processou-se


numa equação contraditória entre urgências de mudança so­
cial e ambiência social conservadora. As primeiras são eviden­
tes por si mesmas, para economizar uma longa descrição: no
campo social, a depredação do Estado, em conjunção com
uma crise que se arrasta, com oscilações, desde o começo dos
oitenta, produziu uma devastação nos principais serviços pú­
blicos que se expressa nos indicadores sociais. O já precário
Estado do bem-estar nacional foi atingido em cheio: as refor­
mas do “ caçador de marajás” terminaram por dar-lhe o golpe
de misericórdia. A incapacidade do Estado de exercer o con­
trole, ainda que mínimo, da situação social, se necessitasse de
maior explicitação, encontra, no recurso - uma “última ins­
tância” à la Marx - da utilização das Forças Armadas no com­
bate ao narcotráfico dos morros cariocas, sua definitiva e cabal
demonstração.
Não é que, no percurso, vários recursos não fossem utili­
zados e experimentados para melhorar a assistência social es­
tatal. Reform as descentralizadoras, como a do Sistema
Unificado de Saúde, foram tentadas: de novo, em “ última ins­
tância” , a descentralização não funcionou porque a diíapida-

Pubiicado em Novos Estudos Cebrap, n. 4 1, março 1995, p. 61-77.

165
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

ção do Estado - que é sempre confundida com desorganização


governamental - traduziu-se em sua incapacidade, nos níveis
estaduais e municipais, de articular e implementar qualquer
política. Essa incapacidade revela-se tanto em não poder ofe­
recer salários razoáveis às categorias médica e paramédica -
resultado não inteiramente casual da crise financeira do Estado
quanto em não controlar o sistema privado de saúde, que é a
saúva que devasta a roça pública das políticas governamentais
para o setor. Essa dialética cruel de um lado sofistica desne­
cessariamente a aplicação de uma simples aspirina e “ aspira”
a montar hospitais de primeiro mundo. Produz-se, então, o
paradoxo, ou a dualidade: milhares de médicos rebaixados
a simples força de trabalho, aplicadores de aspirina que se
“viram” em meia dúzia de empregos para sobreviver, hos­
pitais públicos depredados, cenas de “ pátio dos milagres” ,
onde são os parentes dos pacientes que literalmente tentam
ajudar a precária estrutura a funcionar, filas de doentes cujos
semblantes nada ficam a dever aos dos milhares que acorrem
aos milagres do Padre Cícero: mas eles não estão no N or­
deste, senão que nos corredores do Hospital de Clínicas da
USI? do Hospital Universitário da USP e do Hospital-Escola
da Paulista de Medicina, os de caráter público que, em São
Paulo, ainda resistem ao naufrágio geral; nos demais, não
faltam apenas médicos: o simples esparadrapo já é artigo de
boutique. Os hospitais privados são boutiques mesmo: ali a
sofisticação atinge as raias do impensável, para aplicar as­
pirinas e “ aspirar” os recursos estatais,
Weberianamente, o Estado perdeu o monopólio exclusivo
da violência; marxisticamente, o Estado foi privatizado numa
escala impensável em qualquer país radicalmente liberal. Essa
tendência já vinha desde o autoritarismo, mas, perversamente,
o Estado democrático a agravou. Depois de Sarney, que pra­
ticou o “é dando que se recebe” como uma modalidade de
desregulamentaçao, Collor levou a tendência ao paroxismo:
já que o Estado não funciona, o melhor é suprimi-lo. (Quase
escrevi “ suprimamô-lo” , mas aí o fantasma de Jânio ectoplas-
mou-se, para salvar-me e aos leitores).

166
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

Essa depredação do Estado e sua repercussão na crise social


não é gratuita, nem se deve à sua fúria intervencionista. A
depredação pode ser interpretada ao modo de Kurz1 - e aqui,
crítico que sou do alemão, devo render-lhe mes bommages: é
o espasmo de um Estado exaurido, posto a serviço da globa­
lização da economia, que gasta seus recursos no pagamento
da dívida externa, enquanto utiliza seu “último recurso meto­
dológico” , suas Forças Armadas, para reprimir bandidos.
O intervencionismo estatal não atuou autonomamente,
pro dom.o suo. Pela estatização da dívida externa, promovida
como política de balanço de pagamentos, chegou-se à explosão
da dívida interna, ferreamente determinada pela primeira. Vis­
tos contabílmente ou pela ótica conservadora, a inteligibilida­
de desses processos é apenas parcial. De fato, o que eles querem
dizer é, em primeiro lugar, que a dívida externa é um elemento
da globalização financeira, verbi gratiae, da subordinação fi­
nanceira dos Estados nacionais da periferia capitalista. E um
modo novo da acumulação de capital pelos países-líderes e
suas empresas-líderes. Os países dependentes, pela dívida ex­
terna, financiaram não apenas as ampliações de capital pro­
dutivo das m u ltin acio n ais em seus te rritó rio s, mas
sancionaram - não podiam escapar - a extraterritorialização
dos mecanismos financeiros da acumulação de capital.
A dívida externa já é um sintoma da incapacidade de man­
ter a moeda nacional por parte das economias periféricas do
capitalismo; as moedas nacionais, pela internacionalização
produtiva, deixaram de ser portadoras da reserva de valor,
imprescindível para os processos de acumulação real de capi­
tal. Elas tão somente servem como meios de pagamento, de
troca, e ainda assim, como ensinam as experiências argentina
e mexicana, apenas se estão referidas, se estão “ ancoradas” e
são conversíveis à moeda que porta o atributo de reserva de
valor, isto é, o dólar. A globalização financeira é o corolário,
pois, da internacionalização produtiva: mesmo quando se trata1

1 Kurz, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

167
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

de processos de acumulação real que não transitam extrater­


ritorialmente a cada país respectivo, eles apenas podem ser
garantidos pela moeda-reserva de valor.
Pela conversão da dívida externa em dívida interna, o
Estado brasileiro pagou o ajuste das empresas à nova ordem
econômica internacional. E por isso que na década que apre­
sentou as duas primeiras quedas absolutas do PIB total e per
capita na moderna história brasileira, paradoxalmente não
houve praticamente quebra de empresas. Salvo no sistema
bancário, intermediador desses processos, não se anotou,
no conjunto das empresas, nenhuma quebra espetacular. Ao
contrário, todos os balanços coincidiam em mostrar empre­
sas com resultados lucrativos medíocres na área da produ­
ção, enquanto as aplicações financeiras exibiam impressio­
nantes performances positivas. O real desse processo é que
a tomada de recursos pelo governo federal e principais go­
vernos estaduais ao sistema privado não significava existên­
cia de excedentes no setor privado, mas o oposto: a dívida
interna formou os excedentes do setor privado, sem o que
as empresas, se tivessem sido forçadas ao ajuste internacio­
nal sem a mediação do Estado, teriam ido todas, quase sem
exceção, à falência. A teorização de Ignácio Rangel, infeliz­
mente já desaparecido, era uma ilusão de ótica: no caso
brasileiro, a existência de excedentes no setor privado ape­
nas se materializa quando o Estado os converte em dívida
pública. O confisco dos ativos financeiros realizado por Col-
lor evidenciou dramaticamente essa verdade. O pequeno
alívio da dívida interna rapidamente desapareceu e ela vol­
tou a explodir tão logo o governo retomou sua trajetória de
endividamento2, o que era inevitável, dado que o confisco
praticado não eliminou as necessidades do gasto estatal.1

1 Ver Lídia Goldenstein, Repensando a dependência. Rio de Janeiro, Paz e ]


Terra, 1994. j
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

Ao lado do processo hiperinflacionário constante nos úl­


timos dez anos3, que elaborou uma espécie de pedagogia per­
versa, a contra-revolução tresloucada de Collor mandou “ pro
brejo” toda a esperança de mudança social progressista, vale
dizer, mudança que tentasse varrer com as vastas desigualda­
des. Instaurou-se ~ e a eleição do rei do kitsch já era seu indício
mais forte, com o forte apelo messiânico de salvação - uma
espécie de conservadorismo que se pode resumir em mudança
social regressiva, isto é, um anseio generalizado e difuso por
estabilidade, segurança, ordem, e, par contre, o medo à mu­
dança social progressista.
Nesse ambiente, inicialmente Lula foi confundido com es­
tabilidade. Parecia a vastas camadas da sociedade que o can­
didato petista tinha melhores condições de segurar o furacão
da instabilidade, da inflação desenfreada, da desorganização,
da insegurança generalizada. Feitas as projeções a partir dos
resultados conseguidos contra Collor, onde ainda quase a me­
tade dos eleitores havia se posicionado pela mudança progres­
sista, Lula alcançava elevados índices de intenção de voto. A
própria burguesia, em almoços e jantares, apesar da aberta
hostilidade, confessava ao candidato que poderíam conviver
desde que ele segurasse seus radicais, vale dizer, os conteúdos
progressistas de mudança que ele encarnava: tratava-se de do­
mesticar o sapo barbudo.
Aprendendo a lição do Cruzado do ponto de vista das
possibilidades eleitorais de quem traduzisse em medidas con­
cretas o anseio do conservadorismo social, o então ministro
da Fazenda, Fernando Fíenrique Cardoso, lançou-se à disputa.
O Plano Real, a mudança social regressiva tão ansiada, cujo
único resultado concreto consistiu em segurar a inflação, foi
o “grande eleitor” do Ministro. A partir de seu êxito, a previ­

^ O tecnicismo economicista que chama hiperinflação apenas àquele estágio


em que já não se confia na moeda nacional - coisa que não ocorreu no Brasil
justamente pelos mecanismos de indexação - não tem importância sodoló-
gico/política. Collor foi eleito nas seqüelas dos 80% mensais de inflação que
tecnicamente não era uma hiperinflação.

169
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

sibilidade de poder chegar ao fim do mês com os parcos salários


e o desaparecimento do pânico de surpreender-se semanal­
mente com os descabelados aumentos dos preços, a esperança
em Lula transferiu-se para quem já havia realizado a estabili­
dade4. O senador por São Paulo, reconhecidamente um polí­
tico anticarismático (como Tancredo, que parece ser uma de
suas inspirações na política), transformou-se no imbatível can­
didato, hoje presidente eleito. Quando este ensaio for publi­
cado será presidente em pleno exercício dos poderes.
Evidentemente, tal tipo de interpretação não se enquadra
nas tendências atuais da ciência política, tipicamente pro­
cessual, que não vê vinculação alguma entre resultado elei­
toral e mandato para governar de acordo com algum
programa e/ou forças sociopolíticas que sustentaram o ven­
cedor. No médio e longo prazos, sociologicamente não é
previsível que a maior parte do eleitorado, que votou em
Fernando Henrique Cardoso, vá permanecer conservadora.
Na conjuntura, a tensão entre mudança social progressista
e a ânsia por ordem e estabilidade, um efeito perverso da
última década hiperinflacionária, resolveu-se em favor da
última, elegendo o candidato que já havia tocado os umbrais
da estabilidade. Não se sugere nenhuma “ lei” do conserva­
dorismo social, mas a imbricação entre a pedagogia do medo
às mudanças e os resultados palpáveis de uma estabilização
surpreendente criou, indefectivelmente, uma “ afinidade ele­
tiva” entre o voto e o mandato programático.

4 Por isso, a polêmica recentemente desatada entre economistas do PT sobre


a responsabilidade da derrota, atribuída por uma corrente liderada pelo se­
nador Eduardo Suplicy e Paulo Nogueira Baptista Jr. ao “ catastrofismo” de
Maria da Conceição Tavares e Aloysio Mercadante, é equivocada. Isto não
quer dizer que a subestimação dos impactos favoráveis do Real sobre os
salários c a atividade econômica não tenha sido um outro equívoco. Mas
uma avaliação correta do plano não teria salvo o PT da derrota. A corrente
liderada por Suplicy e Paulo, Nogueira Baptista Jr. não entendeu, sociologi­
camente, a contradição entre reformas e estabilidade; por isso, sua crítica é
conservadora.

170
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

Esse conservadorismo de ampla base social não constrói


um cenário muito propício à mudança de caráter progressista
que as vastas massas populares que elegeram Fernando Hen­
rique Cardoso desesperadamente necessitam. Pesquisas reali­
zadas durante o processo eleitoral - informação que obtive de
José Arthur Giannotti, já que nunca as tive em mãos e, parece,
não vieram a público - indicavam, ao lado da aprovação do
Real, uma condenação a qualquer tentativa de melhoria nos
salários. Giannotti interpretou esses resultados como a prova
de racionalidade econômica da população e principalmente
dos assalariados, tão rigorosa quanto a dos economistas neo-
clássicos (esta adjetivação é minha). E evidente que, há muito,
a confiança depositada nas cadernetas de poupança já era pro­
va cabal de comportamento racional por parte da população.
Porém, na conjuntura, o mais importante é que o argumento
freqüentemente esgrimido pela mídia de que os salários são
causa da inflação havia deitado raízes justamente em quem
vive de salários.
Ora, a experiência dos países mais desenvolvidos5 mostra
que uma redistribuição de renda que atenue as enormes dis­
paridades sociais no Brasil somente poderá ser o resultado
combinado de aumentos salariais, respaldados em incrementos
da produtividade, com políticas sociais públicas vigorosas, que
incluam uma política de rendas (política de renda mínima,
aumento sistemático do salário mínimo, seguro-desemprego,
melhoria da seguridade social), e políticas sociais no sentido
estrito (aumento da escolaridade, combate à evasão escolar,
melhoria da qualidade do ensino, ampliação e universalização
do acesso à saúde etc). Um ambiente social conservador será
hostil aos incrementos salariais, enquanto um Estado depre­

1 The Economist, de 5 - 1 1 nov. 1994 , vo). 3 33 , n. 7888, tem, na pág. 2 1 , um


interessante gráfico que mostra, entre os países desenvolvidos, que o igua-
lítarismo combina-se muito bem com a produtividade do trabalho, instau­
rando um trade o/f positivo na relação. Os países menos desigualitários são
também os de alta produtividade do trabalho, enquanto os mais desiguali­
tários - USA, Austrália, Suíça e Nova Zelândia ~ são os de menor produti­
vidade.

171
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

dado será incapaz de implementar políticas sociais públicas


vigorosas e universalizantes.

O empresariado e a mudança social regressiva

Nos últimos quinze anos, para não irmos mais longe, a


pauta das relações capital-trabalho foi comandada pelas rei­
vindicações do assalariado, lideradas por aquelas produzidas
nos confrontos/negociações dos metalúrgicos com o patrona­
to, mormente o do setor automotivo, A política econômica do
“ delfinato” sob Figueiredo foi tornada ineficaz pelas movi­
mentações dos metalúrgicos no amplo arco que vai de São
Bernardo à zona sul de São Paulo. Juntando a isto a velocidade
de crescimento das dívidas externa e interna e o pagamento
de seus serviços, a capacidade de previsão do Estado brasileiro
evaporou-se: nisto consistiu a liquidação do autoritarismo.
Sem mecanicismos reducionistas, de algum modo essa ini­
ciativa dos assalariados transplantou-se para a política, fazen­
do com que a mudança social progressista assumisse o plano
principal das transformações. A Constituição de 1988 foi o
coroamento dessa tendência, que no entanto já havia se ma­
nifestado no reconhecimento de fato das centrais sindicais,
anteriormente proibidas pela legislação. As Diretas-Já foram
a principal indicação, no plano institucional, desse comando
da mudança social progressista. A adoção do seguro-desem-
prego, que chegou com mais de quarenta anos de atraso ao
Brasil, foi uma outra expressão dessa pauta de reivindicações
sociais que influenciaram a política. A universalização (ou
pelo menos sua tentativa) de certos serviços sociais, como
o Sistema Unificado de Saúde, onde a condição para receber
assistência médica é a de ser cidadão, também seguiu a ten­
dência assinalada.
Essa tendência não prevaleceu sem atritos. Durante todo
o último período das presidências militares, tanto o regime
quanto as bases sociais empresariais tentaram, sem sucesso,
opor-se à mudança social progressista. Pós-militares, o período

172
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

Sarney caracterizou-se, como seu mandatário, por um com­


portamento oscilatório, vacilante, e, em não poucas vezes,
francamente repressivo, O uso abusivo da caracterização de
greves como atentatórias à segurança nacional mostrava até
que ponto o arco das forças dominantes, tanto na política
como na economia, incomodava-se com uma pauta política
onde a tendência progressista predominava e, de certo modo,
dava as cartas. O Centrão, no plano da Constituição, ostentou
as garras de um empresariado que formou todos os lobbies,
financiou todas as campanhas para evitar uma “ Constituição
cidadã” , a fórmula consagrada por Ulysses Guimarães. As pro­
vas são de uma abundância que não precisam de uma longa
lista: bastam alguns exemplos, como os referidos.
O trabalho pedagógico perverso da hiperinflação, entre­
tanto, corroía o anseio geral por mudanças sociais progressis­
tas. A própria eleição do “Bismarck das Alagoas”6foi sua maior
prova; e o apoio indiscriminado dos grandes grupos econô­
micos, de que a CPI que resultou no impeachment de Collor
veio a ser a cabal demonstração, aproveitava-se do mandato
popular desesperado dado a Collor para transformá-lo num
mandato destrutivo das organizações sociais que eram as van­
guardas das mudanças sociais progressistas7.
Os objetivos do mandato destrutivo eram as conquistas
sociais recentes e a própria capacidade que alguns importantes
setores do assalariado e mais precísamente do operariado ha­
viam mostrado de conduzirem a pauta sociopolítica. Collor
atacou as organizações do funcionalismo público civil, com

Oliveira, F. de. “ Les cent jours du chasseur Bismarck” . M. Mensuel, Mar-


xisnte, Mouvement, Paris, n. 42, déc. 1990, p. 33-39.
7 É preciso não ter medo da palavra vanguarda, que é utilizada não no sentido
de um grupo que usurpa a autonomia dos outros, mas no sentido sociológico
forte de que su^s reivindicações e conquistas é que contestam o status quo.
Embora hoje, quando escrevo, o Supremo Tribunal Federal tenha absolvido
Collor de Mello, é um segredo de Polichinelo que uma grande burguesia que
não tinha Collor como um dos seus servia-se dele para fazer o trabalho sujo
que ela desejava há muito, mas que só alguém investido de um mandato
popular incontestável seria capaz de fazer.

173
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

sua reforma destrambelhada, acabando por reduzir a capa­


cidade operacional do Estado brasileiro a quase zero. Atacou
as centrais sindicais como fonte de corporativismo - o novo
termo panexplicativo de tudo que ocorre no Brasil, abusi­
vamente utilizado por uma ciência política impotente -, pra­
ticando um dos mais formidáveis arrochos salariais de que
se tem notícia: diz-se “ um dos mais” , porque outros piores
ainda poderão acontecer. Centrais sindicais, sindicatos, mo­
vimentos trabalhistas foram identificados como os inimigos
públicos por excelência, que conspiravam contra toda a na­
ção e contra todo o povo, por se postarem contra o Plano
Collor. Criava-se, assim, um ambiente social antiprogressis-
ta, medroso, anti-reformista.
A estratégia dos grupos dominantes viu-se frustrada com
o impeachment de Collor de Mello. Mas ressurgiu por inteiro
com a eleição de Fernando Henrique Cardoso. Nesta, o pro­
cesso foi outro, já antecipado neste ensaio: no lugar de um
messianismo salvacionista, fora do alcance de um político que
não se distingue por nenhum dote carismático (salvo entre
seus pares acadêmicos), a empreitada, coroada de sucesso ao
menos temporariamente, de lograr a estabilidade antes da elei­
ção, que assim o catapultava nas preferências populares, sem
fazê-lo popular. É um ganho, dizem, a entrada do cálculo ra­
cional no comportamento dos eleitores, e uma mudança nas
regras da política no Brasil. Há, aqui, indefectivelmente, um
elemento modernizador: apenas não se pode afirmar se esse
comportamento não passou de um momento conjuntural, ha­
bilmente explorado pelo vencedor.
As burguesias se jogaram todas na candidatura Fernando
Henrique Cardoso. Tanto as contribuições de empresas, quan­
to as milhares de declarações de empresários e o posiciona­
mento do poderoso Roberto Marinho, da Globo, em favor do
candidato, dispensam maiores elaborações. Seu programa
transformou-se na bíblia dos empresários, ou o que é mais
sintomático: a bíblia, composta por privatização, retirada do
Estado da economia, desregulamentação de alto a baixo, ata­
que aos direitos sociais e humanos, desregulamentação do mer-
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

cado de força de trabalho, “ desconstitucionalização” da


Constituição-cidadã de Ulysses Guimarães, que criou a “ in-
governabilidade” (a esmagadora maioria dos tucanos, inclu­
sive o presidente eleito, votou, na Constituinte, a favor do
que hoje apontam como elementos de “ ingovernabilidade” ),
passou a ser o livro comum, transcendental, da grande bur­
guesia e do candidato.
Tudo isto não se passa apenas num plano simbólico, de
discursos, planos e apoios ostensivos; ainda se fosse pouco, o
episódio num clube paulista em que empresários promoviam
um evento para “ alavancar” a candidatura Fernando Henrique
Cardoso revelaria o processo por inteiro: ali distribuiu-se uma
“ ficha de inscrição” no PT, quando Luiz Ignácio Lula da Silva
ainda pairava em altas estratosferas nas pesquisas, que resumia
todo o ódio de classe contra largas parcelas das classes domi­
nadas que haviam criado um movimento político que há mais
de uma década acuava a grande burguesia e os partidos polí-
ticos-garrafa, que se amoldam a cada governante de plantão.
As condições para pedir inscrição no PT eram: ser nordestino,
analfabeto, preto, mulher, prostituta, homossexual, catador
de lixo etc. Isto é, os estigmas da própria discriminação de
classe, de cor, de etnia, de preferência sexual, que habitam o
inconsciente coletivo da sociedade, manejados pela própria
classe dominante! O partido do presidente apenas declarou
que não era responsável pela “ficha”, sem condená-la; tam­
pouco se ouviu ou se leu nenhuma declaração da intelectuali­
dade tucana, incluindo-se aí o próprio candidato, contra
semelhante atentado à democracia.
Os sinais da intolerância da grande burguesia contra or­
ganizações sociais do assalariado, e mais especificamente de
certas categorias operárias, já não se dão a público travestidos
em apelos à cooperação; agora, eles ganharam em desinibição
e hostilidade agressiva. O presidente da GM, em entrevista
recente à Folha de S. Paulo, declarou em alto e bom som que
a empresa pensava em localizar a terceira fábrica fora do eixo
sob influência dos sindicatos, e em seguida ameaçou o governo
quando este baixou a alíquota de importação de automóveis,

175
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

declarando que a decisão sobre a famosa terceira fábrica havia


sido suspensa, entrando as localizações na Argentina, Uruguai
e Paraguai como concorrentes com o Brasil. O recado estava
claro: tanto o movimento sindical quanto a autonomia do go­
verno em tomar decisões de política econômica não são bem
vistos no mundo globalizado pelas grandes corporações trans-
nacionais. A desinibiçao que se transforma em hostilidade ativa
contra movimentos sociais e organizações das classes domina­
das é um dos primeiros resultados da legitimação que a aura
de intelectual de Fernando Henrique Cardoso conferiu às po­
sições antiprogressistas, que pautaram o cenário e o movimen­
to dos sujeitos e atores sócio-político-econômicos nos últimos
quinze anos. E a primeira tempestade que o semeador de ven­
tos pode colher: a ameaça à governabilidade provém, contra-
ditoriamente, de sua própria vitória. O futuro governo pode
vir a ser o refém da implosao das tendências progressistas que
dominaram a cena brasileira, que ele mesmo comandou como
condição para sua eleição.
É claro que existem contradições entre o movimento que
Fernando Henrique Cardoso lidera e o grande empresariado.
O próprio Plano Real não foi aceito sem reservas nem resis­
tências: a formidável aceleração dos preços na última rodada
da URV antes da entrada da nova moeda, em junho/julho de
94, mostra até que ponto elas existem. Entretanto, essas con­
tradições viram-se grandemente atenuadas porque, mais do
que Collor, Fernando Henrique Cardoso mostrou-se a melhor
alternativa contra Lula. Mas, há uma diferença essencial entre
Collor e Fernando Henrique Cardoso do ponto de vista do
apoio das classes dominantes (de outros pontos de vista, que
a imprensa não se cansa de ressaltar, as diferenças são enormes
e a favor de FHC: preparo intelectual, real cosmopolitismo
que lhe propicia uma visão do mundo menos simplista do que
a de Collor, carreira política impoluta, pertencimento real às
elites nacionais e internacionais): Fernando Henrique Cardoso
é um “ intelectual orgânico” das reformas burguesas, enquanto
Collor era apenas um aventureiro.

176
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

Tanto a aura intelectual de Cardoso quanto sua própria


contribuição à formulação das “ reformas” fazem-no o porta­
dor da hegemonia burguesa contemporânea no Brasil. De ou­
tro lado, seu partido, o PSDB, é um forte núcleo yuppie das
novas classes médias constituídas de um novo tipo social: os
intelectuais-empresários-altos executivos (Bresser Pereira é seu
emblema por excelência) produzidos pelas grandes transfor­
mações do regime autoritário. Em poucas palavras, embora
contradições existam, Fernando Henrique Cardoso e seu
PSDB não são “ estranhos no ninho” das grandes corporações.
Mais rigorosamente, a tecnoburocracia que o próprio Bresser
Pereira teorizou no primeiro período de sua produção acadê­
mica (nas pistas do John Kenneth Galbraith, de O novo Estado
industrial), essas novas classes médias são estruturais no capi­
talismo contemporâneo, e por isso são herdeiras diretas das
transformações econômicas e na estrutura social promovidas
pelo autoritarismo8. Por essas razões, o projeto conduzido por
FHC é duradouro: não se está em presença de um estouro

KBeneficio~me do anúncio do ministério de FHC para essa tese: o próprio


Bresser Pereira, misto de intelectual (com mais de 20 livros publicados) e
empresário, tendo atuado por mais de 30 anos no Grupo Pão de Açúcar, um
dos maiores do ramo da alimentação no Brasil; Sérgio Motta, dono de uma
consultoria de engenharia, um tipo de empresa que foi “ alavancada” pelo
autoritarismo como forma de destruir os quadros profissionais do serviço
público e que temavirtualidade de transformar saber técnico em propriedade
do capital; Pedro Malan, notável economista dos anos setenta, que desde o
começo dos oitenta detém altos cargos no BID e no Banco Mundial; Pérsio
Arida, economista teórico da inflação inerciaí do grupo da PUC-Rio, ante­
riormente ligado ao grupo Unibanco e hoje ele mesmo banqueiro; Andrade
Vieira foge um pouco ao figurino: este é banqueiro mesmo, e ao que se saiba,
não perpetrou, até agora, nenhuma obra intelectual; Paulo Renato Souza
converteu-se de especialista em emprego a reitor da Unicamp, passando pelo
secretariado de Montoro até encaixar-se na gerência geral de operações do
BID, o segundo cargo mais importante na estrutura de decisões do Banco,
tradicionalmente ocupada por um brasileiro desde os tempos de Ewaldo
Correia Lima; Dorothéa Werneck, economista dos quadros do IPEA que,
depois de passagem pelo Ministério do Trabalho de Sarney e Secretaria de
Política Econômica de Collor (onde, aliás, teve profícua atuação), transitou
também pela iniciativa privada no ramo da consultoria; Clóvis Carvalho,
egresso do grupo Villares. Em oito sobre quinze ministros civis revelam-se

177

*
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

imprevisto, à la Coílor, mas de uma longa elaboração social,


de que Collor foi apenas um aviso extemporâneo. Tampouco
o lugar ocupado por FHC deveu-se apenas ao seu enorme
senso de oportunidade para perceber um vazio de liderança
burguesa: conta muito para que o projeto burguês de hege­
monia ganhe consistência e passe à ofensiva as qualidades do
hoje presidente. Trata-se de um condottière no sentido mais
rigoroso do termo, e a excepcionalídade de sua personalidade
é um elemento constitutivo da hegemonia.

O alvo da desinibição burguesa e do neoliberalismo da equipe


econômica: centrais sindicais e papel protagônico na política

A ninguém é lícito desconhecer o papel protagônico que


o movimento sindical vem desempenhando no país, no pro­
cesso de democratização. Já nos referimos a que a derrota da
política econômica de Delfim Netto sob Figueiredo esteve no
centro da erosão da capacidade de previsão do Estado autori­
tário; o movimento sindical do ABC, com as memoráveis cam­
panhas de Vila Euclides, as passeatas de São Bernardo, a greve
e o movimento de solidariedade desencadeado por vastas mas­
sas da população que se ombrearam com os trabalhadores de­
ram o empurrão final no autoritarismo.

ligações de pertencimento dos ministros de FHC a vários setores do empre­


sariado ou de grandes corporações institucionais, como BID e BIRD. Talvez
sintomaticamente, é a taxa mais alta de empresários-altos executivos nos
gabinetes dos últimos anos. Em suma, pertencem a essa nova classe que
Cristopher Lasch chamou de “ analistas simbólicos” , com inserções bem reais
no campo da propriedade de capital. Salvo Andrade Vieira, todos os citados
vieram da esquerda, alguns tendo militado em grupos da oposição armada,
que os militares chamavam terroristas. Nessas organizações peroravam com
a mesma certeza arrogante sobre a inevitabilidade da queda da ditadura pelas
suas ações armadas, tal como hoje fazem sobre a inevitabilidade e a racio­
nalidade do mercado livre. Mas, enquanto Vicente Paulo da Silva é visto
como defensor de “ interesses corporativos” , os “ analistas simbólicos” são
seres neutros, que somente verbalizam e atuam no sentido do interesse pú­
blico... É de fábulas de Esopo que estamos falando.

178
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

Durante os últimos catorze anos, a longa “ década mais que


perdida” 3 viu organizarem-se as centrais sindicais, em total
desmentido às teses da anomia e do redudonismo politicista
que associa crise econômica com crise política. Sob o impacto
de uma crise devastadora, que reduziu os empregos em 93 aos
níveis já alcançados em 80, que transformou os centros ope­
rários do ABCD paulista em recordistas de surgimento de fa­
velas, o assalariado não se dobrou. Categorias como a dos
metalúrgicos no ABCD exibem a impressionante porcentagem
de 90% de sindicalização, acima de qualquer outra categoria
no Brasil e em oposição à tendência decíinante da sindicalíza-
Ção no mundo desenvolvido. Pode-se dizer, como contra-ar-
gumento, que isto é apenas a prova de que permanecemos na
organização fordista do trabalho, cuja superação é hoje a pedra
de toque do desenvolvimento capitalista; não por acaso, o
ataque neoliberal no Brasil se dá justamente contra as formas
de organização de alguma maneira ligadas à organização do
trabalho sob o fordismo (comissões de fábrica, grandes sindi­
catos de massas).
Mas os sindicatos mais importantes lutaram também, com
êxito, contra as devastadoras conseqüêncías do progresso téc­
nico no emprego, no processo de trabalho e na própria orga­
nização sindical: o trabalho flexível, a robotização, a infor­
matização, os processos kamban, o just in time, os círculos de
qualidade, para citar os mais expressivos. Vale dizer: o êxito
do crescimento da sindicalização e da construção das centrais
sindicais, por esse lado, prova-se essencialmente como político;
ele não é, apenas, uma derivada das condições da organização
do trabalho. E é esse êxito político que preocupa, atemoriza,
mesmo em muitos casos, a grande burguesia e os arautos do
neoliberalismo. O movimento dos bancários, por exemplo,
onde a informatização já fez milhares de desempregados, ga­
nhou em organização e capacidade de negociação; é hoje um9

9 Lopes, J.B. e Gottschaík, A. “ Recessão, pobreza e família: a década pior do


que perdida” . São Paulo em Perspectiva, vol. 4, n. 1, jan./mar. 1990, p. 100-109.

279
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

dos principais pilares da CUT e constitui uma das poucas ca­


tegorias sindicais que superaram o constrangimento que a ter­
ritorialidade da legislação sindical opõe às tentativas de
movimentos sindicais mais amplos. Neste caso, os bancários
souberam aproveitar uma característica da estruturação nacio­
nal dos bancos no Brasil, com o que se criou uma categoria
verdadeiramente nacional.
Mais recentemente, os metalúrgicos, essa categoria de
vanguarda no sentido já referido, foi capaz de estruturar,
em conjunção com os empresários do setor automotivo -
montadoras e setor de autopeças - a chamada câmara seto­
rial, um acordo que, com a redução de alíquotas do IPÍ e
do ICMS, reverteu a tendência de queda da produção auto­
mobilística no Brasil, passando de 1.0 7 3 .7 6 1 veículos em
19 9 2 aos 1 milhão e seiscentos mil estimados para 1994,
num salto de produtividade sem precedentes, mesmo para
um setor que nos dias do “ milagre econômico” de 1968-73
cresceu a taxas reais anuais de 18 % !10
O “ milagre” aqui não foi simplesmente econômico, se bem
que os resultados funcionam como uma caução para o pros­
seguimento do acordo: é, como já escrevi em artigo publicado
em Novos Estudos, um acordo que faz de seus resultados sua
própria medida, tirando o confronto operários-patrÕes do
jogo de soma zero11. O “milagre” é político, cidadão na mais
alta acepção do termo, e revelou a capacidade de uma ampla
categoria des-subalternizar-se, autonomizar-se, colocar-se não
apenas como interlocutor da grande burguesia e do Estado,
mas como crivo pelo qual passa o próprio investimento pri­

10 A taxa de crescimento real da produção no biênio foi de 49% ou 22%


anuais. Com a relativa estabilidade do total da força de trabalho empregada,
esse aumento equivale praticamente a crescimento de produtividade. Algu­
mas terceirizações não alteram substancialmente as taxas referidas. Fonte
dos dados: Anfavea, elaborados pela equipe da pesquisa “ Os cavaleiros do
antiapocalipse: o acordo das montadoras” , em curso no Cebrap com apoio
da Finep.
11 Oliveira, F. deetalii. “ Quanto melhor, melhor: o acordo das montadoras” .
Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, n. 36, jul. 1993, p. 3-7.

180
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

vado. Uma democratização pela base desse tipo teria - e tem,


ainda - tudo para mudar radicalmente a forma da política no
Brasil. E contra isso que a grande burguesia e o neoliberalismo
se insurgem.
O argumento anterior, como se suporta em sabendo-se
que as montadoras de automóveis e o setor de autopeças são
parte dessa grande burguesia contra a qual agora se invectiva?
Evidentemente, o formidável salto da indústria automobilís­
tica não se produziría sponte suo contra as tendências da pró­
pria indústria autom obilística no amplo processo da
globalização. Isto é, o acordo foi a forma que montadoras e
setor de autopeças encontraram para viabilizar sua particular
inserção na globalização, superando os entraves de uma estru­
tura fiscal e de um processo tutelar do Estado sobre os sindi­
catos, e pondo em marcha uma política de industrialização na
ausência de sua equivalente elaborada pelo Estado brasileiro.
Tudo isso é certo, o que tornaria irrelevante a contribuição
sindical ao acordo, para uns; para outros, o acordo é precisa­
mente a prova da submissão da CUT a uma ordem burguesa
renovada. Uns e outros vêem apenas corporativismo, com
montadoras e autopeças e sindicalistas tirando “ castanhas do
fogo com mão de gato”, enquanto outros denunciam o sindi­
calismo economicista da CUT. Ecos de um conceito panexpli-
cativo poíiticista sem capacidade para explicar e de um
Ieninismo ultrapassado fazem-se ouvir!
A inteligência do movimento sindical foi a de perceber,
precisamente, essas tendências, e fazê-las trabalhar a favor dos
assalariados e do sindicalismo. Em primeiro lugar, porque as­
segurou ganhos salariais não irrelevantes numa conjuntura ain­
da sob o acicate de inflações na casa dos 40% mensais; em
segundo lugar, deteve a sangria do desemprego que já batia às
portas de São Bernardo, Diadema, São Caetano, Ipiranga, São
José dos Campos, Taubaté e Betim. De fato, o desemprego
havido desde o acordo é quase nulo, embora o crescimento
do emprego não tenha se dado; o que ocorreu foi um formi­
dável salto na produtividade por trabalhador. Mas, o mais
importante é que esses ganhos foram conseguidos justamente

181
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

quando, pela urgência que a abertura comercial somente ace­


lerou, as indústrias estavam e estão passando por um acelerado
processo de reestruturação tecnológica: enquanto a Volkswa­
gen de São Bernardo, uma espécie de dinossauro do setor,
típica da verticalização produtiva iniciada nos anos 50, produz
um carro em 45 horas, já a de São José dos Campos, da mesma
empresa, produz um carro a cada 25 horas.
Um aspecto extremamente importante do chamado “ acor­
do das montadoras” é que o setor, que responde por uns 5 a
6% do PIB brasileiro, altamente concentrado, altamente oli-
gopolizado, deixou de ser puxador da inflação: de fato, desde
sua vigência, o aumento de preços dos automóveis nunca es­
teve acima da taxa média de inflação, e em termos reais o preço
dos automóveis assinalou sensível redução, o que aumentou a
demanda. Com uma programação de custos, preços e salários
desse tipo, num setor da importância do automotivo, o gover­
no poderia tê-la utilizado como um dos instrumentos de uma
política antiinflacionária verdadeiramente inovadora; tal não
aconteceu em toda a gestão Itamar, mormente sob o comando
- a regência imperial, diz-se - de Fernando Henrique Cardoso
na pasta da Fazenda. Isto é, o ministro negou o sociólogo, mas
não inocentemente: o candidato em perspectiva não poderia
apresentar um êxito avassalador baseando suas esperanças
num processo que requereria demorados e sofisticados acor­
dos sociais. Os estudos que caucionaram o pedido de rebaixa­
mento das alíquotas do IPI e do ICMS já demonstravam que
havia uma elasticidade-imposto da demanda que assegurava o
crescimento desta quando os impostos baixassem. Quando se
sabe quanto da inflação era diretamente comandada pelos me­
canismos de passagem de custos a preços que é própria dos
oligopólios, uma façanha dessa ordem é de uma importância
extraordinária e aponta para formas de combate à inflação e
simultaneamente de retomada do crescimento que colocam
em primeiro plano a capacidade dos atores e sujeitos sociais
em tornarem plausível a regulação social da economia, não de
costas para o Estado, mas em uma nova relação deste com os
sujeitos sócio-político-econômicos. Levada a suas últimas con­

182
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

sequências, seria a liquidação do autoritarismo estatal e a fa­


lência do neoliberalismo, levando de cambulhada toda uma
teorizaçao mercadologizante.
Um acordo desse tipo não é um acordo de anjos. Trata-se
de uma forma altamente sofisticada de defesa de interesses,
sem dúvida. Por que então, se ele é exitoso, as montadoras e
o setor de autopeças, partes importantes da grande burguesia
brasileira, estariam justamente atuando contra essa tendência
tornada plausível pela presença e pela luta de uma importante
categoria de trabalhadores?
A resposta é simples. Montadoras e setor de autopeças
perceberam que não poderíam inverter sozinhas os resultados
da falta de política industrial do Estado - sob os beneplácitos
da qual se instalaram no país, valendo lembrar que foi sob
Kubitschek que o país passou de montar automóveis que já
vinham empacotados, para fabricá-los-, quando Collor de Mel­
lo começou a implementar sua desregulamentação treslouca-
da, os em presários do setor autom otivo perceberam
imediatamente que seus investimentos estavam em perigo. Isto
levou a que até o setor de autopeças, tradicionalmente avesso
a acordos, mas em sendo o mais nacionalizado, aderisse ao
acordo, pois provavelmente é o que mais perdería com a aber­
tura comercial. Há analistas, como Luiz Nassif, que esposam
a tese de que a abertura comercial já era, em si, uma política
industrial. Este argumento não conhece nada do que é uma
política industrial nos países desenvolvidos: durante décadas
os EUA confiaram no livre comércio que induziría, pela com­
petitividade, aumentos na produtividade, e o resultado obtido
foi quase a liquidação da própria indústria automobilística
norte-americana. De alguns anos para cá, a mudança norte-
americana em direção a uma política industrial, com a indús­
tria pressionando o Congresso e o Executivo, levou de novo
o automóvel norte-americano à liderança mundial.
Nessa linha de interesses, os trabalhadores perceberam que
o jogo de soma zero ameaçava-os mais do que as empresas;
estas, no limite, poderíam desativar suas linhas de fabricação,
o que aconteceu justamente com a fábrica de motores para

183
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

caminhões da Ford. O sinal vermelho acendeu nos sindicatos,


e o hoje presidente da CUT, Vicente Paulo da Silva, então
presidente do Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo,
voou para Detroit, discutindo com a alta direção da Ford a
situação da empresa no Brasil e os meios de induzi-la a não se
retirar do país. Os sindicalistas perceberam que se há um mer­
cado global de automóveis, que inclui os capitais produtivos,
onde a movimentação das grandes multinacionais migra de
um país para outro, não há, por outro lado, um mercado global
de trabalhadores de livre circulação, ainda mais em se tratando
de trabalhadores brasileiros, relativamente desqualificados
numa competição mundial. A única forma de participar desse
mercado global do trabalho é a partir de sua fixação em cada
mercado nacional12. A soma desses dois poderosos interesses
foi capaz de induzir o Estado a, timidamente, tomar medidas
que viabilizaram o acordo.
Mas os trabalhadores foram acrescentando, na renovação
do acordo, pontos importantes na agenda da câmara setorial,
que de puramente defensiva tornou-se ofensiva no sentido de
desenhar uma política industrial para o setor que inclui, ao
contrário do que se pensa, a reestruturação produtiva com
grande avanço tecnológico. A esse respeito, vale repetir que
quem introduziu o carro popular no acordo foi o populismo
de Itamar Franco, pois os trabalhadores não queriam saber de
produzir um carro tecnicamente superado como o velho Fusca.
Nesse acrescentamento da agenda, os trabalhadores foram
criando instrumentos que impediríam uma modernização sel­
vagem, à la México, por exemplo. Não criaram constrangi­
mentos à renovação tecnológica do setor, mas o condicionam
à reciclagem do trabalhador, à sua recapacitação, e finalmente,
para dizer de uma vez, ganharam capacidade para definir o
tipo de investimento das empresas. Não o decidem, não chega

12 Diga-se, em louvor da verdade, que a então secretária de Política Econô­


mica, Dorothea Werneck, esteve sempre no centro da estruturação do acor­
do, enfrentando a indiferença e até a hostilidade da equipe econômica sob
o comando de Marcílio Moreira, ministro da Fazenda de Collor.
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

sequer a parecer-se com o modelo de co-gestão alemão, mas


sem eles, no marco do acordo, a renovação não se faz.
Ora, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, as
coisas estão mais daras do ponto de vista de que conquistas
sociais de trabalhadores são consideradas elementos de “ ingo-
vernabilidade”; a “ desconstitucionalização” , agora assumida
abertamente pelo presidente eleito, tratará de limpar o terre­
no. De outro lado, com o êxito do aumento impressionante
da produção, e com o desejo desesperado das forças políticas
vitoriosas de uma avalanche de novos investimentos estran­
geiros na economia para viabilizar o Plano Real e o mandato
do presidente, as empresas do setor automotivo estão “ com a
faca e o queijo” na mão. Esgrimirão, como já o fez o presidente
da GM do Brasil, o argumento do peso dos direitos sociais
sobre a folha de salários como fator inibidor da competitivi­
dade da indústria brasileira, e de outro, poderão livrar-se de
um parceiro que resultou ser importante numa conjuntura de
total incapacidade do Estado, mas que pode revelar-se impor­
tuno justamente pela capacidade que conquistou de balizar os
movimentos das empresas13.
A CUT, epicentro de todo este movimento, ao contrário
da argumentação de José Pastore no seminário sobre a questão
da governabilidade no próximo governo, de que este ensaio
faz parte, é um movimento sindical moderno. Espero que o
texto de Pastore esteja sendo publicado ao lado deste, na revista
Novos Estudos. Por ele, se poderá ver que tudo que Pastore
rotula como moderno no movimento sindical, são caracterís­
ticas da CUT: em primeiro lugar, uma central dos setores mais

33 Edward J. Amadeo tem mostrado, em artigos para a imprensa diária e


para revistas acadêmicas, o silogismo em que se baseia tal tipo de argumen­
tação. Em resumo, nem tudo que se cola à folha de salários vai para o tra­
balhador; boa parte vai para o Estado. Assim, é falso falar do encarccimento
do preço do trabalho. Uma boa reforma fiscal daria conta desse quiproquó
de que o Estado se vale para criar quase-impostos. Reduzido às parcelas que
se adicionam ao salário nominal pago ao trabalhador, o plus de encareci-
mento do trabalho no Brasil é extremamente baixo. Ver Amadeo, E.J. e
Estevão, M. A teoria econômica do desemprego. São Pauto, Hucitec, 1990.

185
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

modernos da economia; em segundo, uma central cujos sin­


dicatos baseiam-se em organizações no chão da fábrica, isto é,
as comissões de fábrica, para onde deslocam-se hoje as ques­
tões mais importantes do processo de trabalho; em terceiro
lugar, uma central que se formou a partir de sindicatos com
tradição em negociar, ao invés de procurar o confronto pelo
confronto; esta é apenas uma arma tática. Mas, ao contrário
do que apregoou José Pastore, e do que desejam os arautos do
neoliberalismo, a CUT quer ver inscritos nos documentos má­
ximos da Nação, como a Constituição, os direitos sociais e
especialmente os trabalhistas. No Tratado de Maastricht ne­
nhum dos direitos conquistados no nível nacional é renegado:
ao contrário, eles estão inscritos no Tratado. No Nafta, não
foram os Estados Unidos e o Canadá que se adequaram ao
péssimo regime de trabalho e de direitos dos trabalhadores
mexicanos; ao contrário, os EUA e o Canadá obrigam que o
México dobre o salário-mínimo mexicano, justamente para
que o Tratado não se transforme em arma de transferência de
vastos setores industriais que se beneficiem do baixo nível sa­
larial mexicano. Assim, o argumento de Pastore de que a ten­
dência moderna é a de deixar para o contrato coletivo, ou no
máximo para uma lei ordinária, os direitos trabalhistas - que
a seu ver enrijecem as condições da produção e da competiti­
vidade - é justamente negado nos tratados que regulam os
direitos .trabalhistas no nível mais amplo, em dois dos maiores
e mais dinâmicos ambientes produtivos mundiais, sendo o ter­
ceiro o Japão, onde se não há direitos constitucionalmente
inscritos, eles se dão pelos costumes, que são tão fortes, em
alguns casos, quanto constituições.
Onde a CUT incomoda é justamente em não aceitar voltar
à posição de subalternidade, que é toda a demanda do empre­
sariado e dos neoliberais, parte importante do programa do
governo Fernando Henrique Cardoso. Deste ponto de vista,
se a miopia política e grossos interesses não se misturassem ao
ponto da promiscuidade, a CUT seria o melhor parceiro para
a modernização do país. Não se está vendendo aqui a sugestão
de cooptação, mesmo porque esta não é minha posição ideo­

186
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

lógica, além do que significaria um enorme desrespeito a esse


magnífico movimento de trabalhadores. Está se afirmando que
o tratamento com uma organização que tem estratégia, e não
atua simplesmente ao sabor das conjunturas, embora seja mui­
to esperta para percebê-las, além de procurar construir uma
esfera pública onde as relações do Estado com os setores pri­
vados - incluindo-se aqui os próprios sindicatos teria tudo
para levar adiante um programa de modernização que valori­
zasse simultaneamente o crescimento econômico e a cidadania,
a redefinição das relações Estado-mercado num sentido civi-
lizatório. A opção mistificadora e mistificada pelo mercado
pode, nas condições concretas brasileiras, significar não apenas
a desindustrialização, mas a barbárie social. Um diálogo tra­
vado apenas entre o governo e os empresários não é suficiente
garantia para um avanço civiÜzatório.

A implosão de uma governabilidade cwilizatóna:


o núcleo duro do neoliberalismo do governo
FernandoHenrique Cardoso

O inimigo maior da governabilidade no governo Fernando


Henrique Cardoso é o neoliberalismo da equipe econômica.
Por governabilidade está-se entendendo a capacidade de go­
vernar sintonizada com as principais tendências que se dão na
sociedade. Ainda assim, o termo continua equívoco, pois cer­
tamente o neoliberalismo do governo encontra sintonia com
o pensamento e a ação de vastos setores do empresariado.
Portanto, faz-se conveniente uma redefinição da governabili­
dade: esta é entendida, ao longo de todo este ensaio, como a
capacidade de governar, apoiada em tendências muito concre­
tas na sociedade - para rebater, desde logo, o estigma do vo-
luntarismo-, dirigida no sentido de um processo de liquidação
das desigualdades sociais.
Estas tendências existem, e se multiplicam suas formas
concretas; aqui, insistiu-se muito no movimento sindical, mas
é muito evidente que outras formas da organização societal,

187
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

de setores não-trabalhadores, indicam a possibilidade de uma


nova relação Estado-sociedade que trabalhe na direção indi­
cada. Uma longa lista aqui pode também tirar o fôlego do
leitor: exemplifiquemos apenas com duas delas, a primeira a
chamada Campanha contra a Fome, que reeditou o movimen­
to pela anistia constituindo ao longo de todo o país milhares
de comitês de cidadãos. Um certo academicismo arrogante e
que debocha desse tipo de iniciativa, à esquerda e à direita,
dirá que isto não resolve a fome, cuja natureza é de caráter
estrutural. Mas a Campanha contra a Fome, menos que seus
resultados práticos, que não deixam de ser importantes, indica
precisamente setores da sociedade que podem ser mobilizados
para, em parceria com o governo, lidar com os imensos pro­
blemas da desigualdade social. O outro exemplo situa-se no
outro extremo da desigualdade, ou na sua outra face, que é a
da violência. O Movimento Viva o Rio dá todas as mostras de
como partes expressivas da sociedade podem e estão se mobi­
lizando para o combate contra uma mazela social, o narcotrá­
fico junto com o jogo do bicho, que mantêm justamente as
parcelas mais pobres da sociedade carioca - e não apenas ca­
rioca - como reféns de uma trama cujos fios são tecidos, e
cujos lucros fluem, de e para os ricos apartamentos da alta
burguesia carioca. Iniciativas de ONGs mostram também essa
capacidade, quando a sociedade se organiza.
Apesar da argumentação desenvolvida sobre a tendência
mortífera por parte do grande empresariado de liquidar con­
quistas sociais trabalhistas importantes, e, principalmente, a
autonomia do movimento dos trabalhadores, é certo também
que existem pequenos núcleos de empresários que ensaiam
passos na direção oposta. Infelizmente, são menos importantes
do ponto de vista do PIB. Mas iniciativas como a da Fundação
Abrinq dão conta dessa virtualidade. E mais: caso o grande
empresariado não encontrasse total ressonância - e sua justi­
ficativa teórica-no neoliberalismo do governo Fernando Hen­
rique Cardoso, ele se veria obrigado, para fazer valer seus
interesses, a trabalhar num sentido oposto àquele em que se
faz sócio da fúria destrutiva do neoliberalismç) incrustado no

188
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

novo governo. Esse foi o caso da câmara setorial do setor


automotivo. Uma definição firme do governo nesse sentido
serviría como corretivo ao grande empresariado, que não pode
se dar ao luxo de, agora, jogar pela janela um mercado de 2
milhões de automóveis/ano. Percebendo que não é esse o caso,
isto é, que o governo também é hostil à autonomia dos traba­
lhadores, as principais montadoras já se preparam para impor­
tar cerca de 400 mil veículos em 1995, com o que se livram
das obrigatoriedades do acordo da câmara setorial, e faturam
bons lucros numa nova onda de concentração da renda que o
modelo neoliberal produzirá. Quem duvidar, consulte The
Economist, op. cit., para ver os resultados do thatcherismo e
da reaganomics na Inglaterra e nos EUA: uma formidável re-
concentração da renda, que reverteu todo o trabalho que o
próprio Welfare havia produzido em mais de cinquenta anos
de políticas de renda14.
Por que o neoiiberalismo é incompatível com qualquer
mudança social progressista? Seu argumento principal se dá
no nível das aparências: o Estado intervencionista é um estorvo
justamente porque promove políticas que, no fim do caminho,
produzem inflação, e esta é o maior flagelo dos pobres. San­
tíssima boa intenção!

14 A insuspeitada revista inglesa {op. cit.) publicou resultados de estudos


sobre a evolução do coeficiente de Giní para os EUA e a Grã-Bretanha, entre
1950 e 1992. No caso norte-americano, o coeficiente melhorou entre 1929
e 1969, estacionando aí; a partir de então, voltou a deteriorar-se, elevando-sc
a 0.40 em 1992 (como se sabe, na escala de Gini 0 corresponde à igualdade
perfeita, enquanto 1 é a perfeita desigualdade); 20% dos mais ricos detinham
em 19 9 2 45% dos rendimentos líquidos totais do país, enquanto os 20%
mais pobres detinham apenas 4% do mesmo total. De 1969 para 1992, a
distância entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres passou de um
múltiplo de 7,5 para 1 1 vezes. Na Grã-Bretanha a desigualdade social entre
ricos e pobres atenuou-se até 19 77, dois anos antes da chegada ao poder de
Mrs. Thatchcr e suas políticas anti-Welfare. O coeficiente de Gini passou de
0.23 em 19 77 para 0.34 em 19 9 1; os ricos tinham então uma renda que era
quatro vezes mais que a dos pobres, enquanto em 19 9 1 a distância passou
a medir-se por um múltiplo de 7. Não por acaso, tal deterioração ou aumento
da desigualdade passou-se justamente nas gestões Thatcher na Grã-Bretanha
e Reagan-Bush nos EUA.

189
OS DIREITOS DO ANT1VALOR

Vejamos de dentro o fundamento do neohberalismo, que


é adotado sem ressalvas pela equipe econômica do presidente
Fernando Henrique Cardoso, e que se expressa no Plano Real.
O presidente não está isento: premido pelas tenazes da opor­
tunidade de alçar-se à presidência, encontrou-se sem equipe
econômica, optando pela única estruturada e não ligada aos
seus inimigos políticos: optou pela da PUC-Rio. Isso diz tudo,
ou quase tudo. Mas, conforme seu discurso de despedida no
Senado, a referência a Collor como pioneiro da modernização
não é gratuita: Fernando Henrique Cardoso fez de tudo para
levar o PSDB para o ninho collorido, interpretando mui jus­
tamente o mote de Collor “ eu tenho votos e vocês têm o ta­
lento” . Em palavras diretas, o presidente já havia aderido às
teses neoliberais.
O dado fundamental que define o neoliberalismo é sua
concepção de moeda. No rastro dos neoclássicos e principal-
mente do friedmanismo (Milton Friedman, líder da Escola de
Chicago e Prêmio Nobel de Economia) que vê a moeda como
neutra, isto é, como uma mercadoria entre as outras. Ela não
tem preferências, por isso é neutra, como qualquer outra mer­
cadoria, e seu movimento se dá unicamente pelo seu preço
relativo em relação a outras mercadorias. A partir daí, todas
as conseqüências são derivações dessa concepção.
A primeira delas opera-se no plano do Estado. A revolução
mais importante deste século em matéria de concepção da
moeda foi racionalizada por Keynes, Sua teoria monetária é
não-monetarista, isto é, a moeda não é uma mercadoria, nem
especial nem sequer igual às outras. A moeda é uma relação
social, concepção equivalente à de Marx, embora este estivesse
muito preso a uma suposta natureza metálica da moeda.
Esta revolução teórica abriu as portas para o processo de
des-subalternização do Estado, mesmo que ainda o conside­
remos um Estado burguês. Há uma longa história anterior,
cujos protagonistas principais são os partidos de extração ope­
rária, social-democratas, socialistas e comunistas, cuja entrada
na política redefiniu esta e destruiu a relação simétrica entre
poder econômico e poder político. Toda tentativa de sair da

190
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

crise dos anos trinta esbarrava na concepção da moeda como


mercadoria, e logo numa subalternidade do Estado aos movi­
mentos do mercado, no longo ciclo descrito por Polanyi. Em
pleno auge da recessão, os economistas neoclássicos aconse­
lhavam - e faziam - o Estado submeter-se ao custo da moeda,
num movimento que ia da queda da produção, passava pela
contração das receitas do Estado e terminava conduzindo ao
corte dos gastos, o que, por sua vez, jogava gasolina na fogueira
da depressão. O núcleo dessa subalternidade do Estado fren­
te ao ciclo econômico residia em que o Estado só podia
emitir moeda em proporcionalidade com a produção - daí
a teoria que se chama quantitativa - , tendo como caução
outra mercadoria, que constituiría seu lastro; no caso, o
ouro, no sistema do padrão-ouro. Se o preço do ouro esti­
vesse muito alto ou muito baixo, em desproporcionalidade,
por sua vez, com os quantitativos da produção global, com
o PIB, o Estado ver-se-ia impedido de emitir. Neste círculo,
a moeda e a autonomia do Estado estariam aprisionadas no
próprio circuito da mercadoria.
A revolução teórica produzida libertou o Estado da subal­
ternidade monetária e, por conseqüência, de sua subalterni­
dade fiscal. E abriu o passo a todas as políticas contemporâneas
de demanda, principaímente as de políticas sociais. A moeda
agora era concebida como uma relação entre ativos e passivos,
e ela pretendia medir essa relação e não ser medida por ela.
Portanto, entrou-se no que Aglietta e Orléans vieram a chamar
posteriormente de “moeda do Banco Central” . Caso, por
exemplo, o Estado desejasse expandir seus ativos, como na sua
entrada no setor produtivo, a moeda não vetaria ex-ante essa
operação, mas mediria as conseqüências disto sobre o passivo
que o Estado necessariamente constituiría com a efetivação
dos ativos; e mais, o Estado ajustaria a relação entre ativos e
passivos. Para dar um exemplo concreto: na gestão Roberto
Campos, esse que hoje é o nosso Hayek, idólatra do mercado
e da moeda-mercadoria, ele promoveu uma reforma fiscal em
que um dos pilares consistia numa desvalorização dos passivos
das empresas, pela obsolescência acelerada. Quem podia de­

191
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

cretar essa desvalorização era o Estado, justamente porque não


se submetia a uma moeda-mercadoria, mas a uma moeda-re-
lação. Campos, sabendo-o ou não, utilizava uma concepção
de moeda que está hoje em total contradição com o que de­
fende, e com o que é a base do Plano Real.
Essa concepção, pois, volta a subordinar o Estado ao ciclo
dos negócios privados, e impede várias coisas. Pela sua relação
com a moeda hegemônica, com o dólar, que passa a ser a
mercadoria-padrão, o Estado brasileiro estará subordinado às
variações da moeda norte-americana. Como os movimentos
das bolsas de valores demonstram cotidianamente, se o FED
aumenta a taxa de juros haverá uma migração de dinheiro para
as aplicações norte-americanas; se o FED fizer o contrário,
poderá haver inundação de dinheiro norte-americano no Bra­
sil, e a estabilização pode ir “pro brejo” , pela necessidade de
emitir reais. A Argentina livrou-se do dilema simplesmente
adotando a conversibilidade total, que é um passo a mais na
total subordinação do Estado e da economia argentinas à moe­
da norte-americana. No mesmo passo e na mesma direção irá
a política econômica do Real.
A autonomia da política econômica estará virtualmente
coartada por essa subordinação. Como as experiências argen­
tina e mexicana estão mostrando, um dos efeitos é o de pro­
duzir imensos déficits comerciais, que somente poderão ser
compensados pelo movimento de capitais1^. Em cascata, as
defesas da indústria local estarão liquidadas, a não ser que se
utilizem mecanismos não-alfandegários, grandemente impe-

Em tempo: a prática do déficit levou o “ exemplar” modelo mexicano à


catástrofe. Déficit e supervalorização da moeda conduziram não apenas à
devastação social - vide Chiapas - mas a uma incessante instabilidade da
economia, provocando a desvalorização da moeda e o pânico entre os in­
vestidores do “ milagre” mexicano. A reiteração dessa política leva à total
subordinação do México aos EUA, de modo que o presidente Clinton pede
a entrega das divisas do petróleo mexicano como garantia para o megaem-
préstimo de US$ 40 bilhões para segurar seus sócios do Nafta e salvar os
investidores norte-americanos da hecatombe mexicana. No fundo, a “ coo­
peração” dos EUA será paga pelos mexicanos com perda da soberania na­
cional, novo arrocho salarial, recessão e venda do patrimônio nacional.

192

*
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

didos hoje pelos resultados da Rodada Uruguai. Os déficits


comerciais poderão ser utilizados como poupança externa,
como o mostrou Otávio de Barros em artigo recente na Folha,
à condição de que o árbitro dos déficits ou superávits não seja
a taxa de câmbio, ela mesma hoje estruturada mais em termos
financeiros do que em diferenças de poder de compra das
moedas. Ora, com a conversibilidade, a diferença de poder de
compra da moeda nacional é virtualmente anulada; restaria
compor a taxa de câmbio com elementos financeiros, os quais
não serão possíveis devido a que a própria autonomia finan­
ceira é obstaculizada pela relação com a moeda-padrão. A eco­
nomia caminha para uma total subordinação, não deixando
ao governo praticamente nenhuma margem para políticas eco­
nômicas autônomas. O pior é que é isto mesmo o que parece
pretenderem os elaboradores da política do Real.
No terreno das políticas sociais, uma tal concepção de
moeda é devastadora. Preocupado todo o tempo em manter
a paridade da moeda nacional com a norte-americana, o Es­
tado estará impedido de emitir, mesmo quando conjunturas
especiais, uma seca, catástrofes naturais, epidemias, o obriga­
rem na elementar função de manter a ordem e a coesão sociais.
Com a desorganização do Estado, simples enchentes já passam
ao estatuto de catástrofe. Pior será com as políticas sociais não
conjunturais, aquelas que, em combinação com os aumentos
da produtividade, podem operar a redistribuição da renda.
Como elas deverão ser constantes, e mais, deverão .exatamente
tentar superar e recompor o quadro da devastação social que
aí está, elas necessariamente terão que superar o quadro de
receitas previstas - teriam que voltar a um modo de política
keynesiana, para dizer o mínimo. Isto estará impedido pela
subalternidade fiscal a que o Estado brasileiro retornará, com
a política neoliberal. Qualquer aumento de despesas só poderá
ser feito se houver prévio aumento de receitas: eis o Estado
doméstico de volta. Mesmo no quadro da redistribuição da
renda via aumentos salariais respaldados pelo aumento de pro­
dutividade, a tendência neoliberal é repressiva e desmente seus
próprios argumentos: no caso da greve dos trabalhadores do

193
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

setor automotivo, que reivindicavam um razoável aumento


respaldado pelo gigantesco aumento da produtividade ocor­
rido no setor, a posição do governo foi a de impedir que as
partes chegassem, ou melhor, cumprissem os termos do acordo
da câmara setorial. Isto é, o Estado nacional reprime ali onde
ele ainda tem capacidade, ou seja, exatamente porque não há
um mercado internacional do trabalho senão pela via da ter­
ritorialidade social e institucional dos Estados-nacionais, ape­
nas a mercadoria força de trabalho pode ser regulada pelo
Estado nacional.
Parece que a teoria da equipe econômica não é compatível
com uma teoria monetária da moeda, nos moldes de Friedman.
Pelo menos Bresser Pereira fez o esforço de entroncar a teoria
inercial da inflação no estruturalismo da escola cepahna, cujos
maiores representantes no Brasil foram Celso Furtado e Igná-
cio Rangel10. Bem reparada, a teoria inercial nada tem de es-
truturalista, nem sequer neo-estruturalista, e a rigor é
completamente compatível com uma teoria da moeda como
mercadoria. Nas vertentes Arida e Chico Lopes da inflação
inercial16
17, que se diferenciam apenas quanto ao gradualismo
ou choque, a inflação é concebida como inercial porque já
nada tem a ver com conflitos distributivos. Isto é, a moeda
nada tem a ver com a distribuição da renda entre os principais
agentes econômicos, tanto os do interior da burguesia quanto
assalariados, poupadores etc. A inércia é apenas uma projeção
do status quo, num movimento preventivo para não se perde­
rem posições no futuro. Ora, é fácil ver que aí está o cerne de
uma teoria da moeda neutra, exatamente igual à monetarista
estilo Friedman. Assim, o confiar cegamente nos mecanismos
de mercado, como tem sido ressaltado ad nauseam pelos mem­
bros da equipe econômica, reconduzirá o Estado à posição de

16 Ver Bresser Pereira, L.C. “ Inflação inercial e Plano Cruzado” . Revista de


Economia Política, São Paulo, vol. 6, n. 2, jul./set. 1986.
17 Ver Arida, E (org.). Inflação zero: Brasil, Argentina, Israel. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1986.

194
QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

subaíternidade, pela via da moeda. Para resumir, a teoria da


inflação inercial substantivamente não difere em nada da teoria
monetária da moeda, e seus efeitos serão provavelmente os
mesmos, com a agravante da perda da autonomia monetária
no caso de um país dependente.
Frente, pois, aos processos de concentração e centralização
dos capitais que a globalização expressa, o Estado nacional no
Brasil e na América Latina em geral perdeu a capacidade de
arbitrar o conflito interburguês. O neoliberalismo aparece
pois, não como uma exigência frente ao intervencionismo
estatal, que não permite o funcionamento dos mercados: o
neoliberalismo é, antes, a confissão da impotência do Estado
burguês frente a esses processos. E a dolarização direta, via
conversibilidade, ou disfarçada, via âncora cambial, é sim­
plesmente a confissão de que o Estado nacional da periferia
do capitalismo não tem mais a capacidade de possuir moeda.
Nos termos de Aglietta e Orléans, que redefinem Weber, o
Estado nacional não tem mais o monopólio exclusivo da
violência, já que a moeda é o conversor público de todas
violências privadas18.
No caso brasileiro, onde um grande setor estatal produtivo
tomou a própria forma do Estado, substituiu o Estado ou re­
presenta o Estado, com empresas do porte da Petrobrás ou da
Vale do Rio Doce, com a privatização que se processa, quem
representará o Estado ali, em Carajás, no complexo mineiro-
ferroviário-portuário entre Minas e Espírito Santo, no orde­
namento do conflito entre indígenas e companhias de
mineração? A moeda brasileira, que deixará de existir? As so­
ciedades que estão se entregando tão totalmente, tão estupi­
damente e tão ilusoriamente a essa utopia perversa, já estão
pagando caro: transformaram-se em bazares persas comanda­
dos por máfias como nem a Itália, seu berço, nem os EUA da
década de trinta, sua “ modernizadora” , conheceram. Tal ilusãoIS

IS Ver Aglietta, M . e Orléans, A. La ulolence de la monnaie. Paris, PUF.

195
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

perversa leva à desintegração social que é quase sempre apenas


o prelúdio da desintegração nacional. As repúblicas da ex-
URSS, da ex-Iugoslávia, e mesmo as consideradas exemplares,
como Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Romê­
nia e Bulgária, com gradações, estão aí como advertência. O
Brasil está fazendo um enorme esforço para juntar-se a elas.

196
Além da hegemonia,
aquém da democracia'"'

É muito sedutor pensar o processo de mudanças (cujo ca­


ráter regressivo colocaria sob suspeita sua caracterização como
“transformador” ) em curso no Brasil sob o crivo do conceito
gramsciano de hegemonia. Eu próprio fui seduzido por essa
perspectiva: em algumas entrevistas, tentei apreendê-lo inter­
rogando-o a partir daquele conceito.
Há elementos que poderiam fundamentar tal caracteriza-
çãò. Desde a aceleração da expansão capitalista pela ditadura
militar —ela mesma a expressão da impossibilidade da hege­
monia que moveu os tanques no Golpe Militar de 64 - , as
bases materiais, sociais, regionais, territoriais da dominação
burguesa no país foram radicalmente modificadas. Não apenas
como continuidade do longo processo desatado nos anos trin­
ta, mas também como ruptura no sentido de uma “ revolução
passiva” . Posto que tanto os dominados não eram atores da
mudança - a ostensiva hostilidade da ditadura com relação
aos trabalhadores, mesmo quando interviam nas suas entida­
des de classe, é sua prova mais enfática - quanto no sentido
de um deslocamento de classes no interior do bloco dominante*

* Conferência proferida durante o Seminário sobre “ Classe, hegemonia e


poder político nacional” , promovido pelo NEDIC/USíJ realizado em 16 de
setembro de 1997.

197
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

sem liquidação das classes ou frações perdedoras... Seria uma


espécie de “ eterno retorno” da própria Revolução de Trinta.
De fato, a dominação de classe expandiu-se notavelmente.
Observada pelo ângulo das contas nacionais, a dominação bur­
guesa ampliou-se notavelmente: a ampliação do setor indus­
trial no PIB, hoje por volta dos 34% , a própria industrialização
das atividades primárias (agricultura, pecuária, silvicultura
etc.) hoje fundamentalmente de reprodução ampliada, a igual
industrialização dos serviços, revela uma economia fundamen­
talmente capitalista, cuja produção e reprodução é conduzida
pela burguesia como proprietária e cuja relação social básica
é o assalariamento. O fato de que conviva com a extensão do
assalariamento uma enorme parcela do que a literatura chama
“setor informal” , não nega o caráter capitalista: ao contrário,
o “setor informal” é uma “ forma” específica das próprias con­
tradições da acumulação de capital, particularmente da simul­
tânea e contraditória concentração de renda e liquidação das
formas arcaicas de emprego, renda e acesso ao consumo de
mercadorias. E mais: o processo em curso da flexibilização das
relações de trabalho tende a reduzir o espaço e o tamanho das
relações formalizadas, inaugurando o que pode vir a ser a for­
ma específica do “setor informal” no capitalismo global.
A ampliação da dominação de classe do ponto de vista da
acumulação de capital e da divisão social do trabalho implicou
na fundação de classes sociais nacionais. Isto é, do antigo ar­
quipélago de dominações regionais, o processo da expansão
integrou as diversas regiões, não apenas a uma dinâmica de
conjunto, mas o que é mais importante, a propriedade do ca­
pital concentrou-se sob o comando dos mesmos proprietários.
E a isto que corresponde a expansão das empresas nacionais
e internacionais desde o núcleo dinâmico do Sudeste, e parti­
cularmente de São Paulo, para o Nordeste e o Norte, através
dos incentivos fiscais, para o Oeste, através de mecanismos
mistos de mercado e incentivos fiscais (implícitos na política
de juros para a agricultura e a pecuária), e mesmo para regiões
como o Sul, que se caracterizava pela existência de sólidas
empresas regionais. Em suma, há uma burguesia, hoje nacio­

198
ALÉM DA HEGEMONIA, AQUÉM DA DEMOCRACIA

nal. O contrário também se produziu: as classes dominadas


são nacionais, pela mesma dinâmica: esta é a raiz estrutural
sobre a qual se levantou o moderno movimento de trabalha­
dores no Brasil a partir de São Bernardo.
Esse vasto, amplo e profundo processo requereu, por duas
vezes no curso de sessenta anos, duas ditaduras cujos períodos
somam trinta e cinco anos. Fazendo-se uma simples operação
de proporção, significa que 60% do período em que se con­
sumou a radical transformação da economia e da sociedade
ocorreram em regimes de exceção, claramente antidemocrá­
ticos, em que um pesado ajuste de contas no interior do bloco
dominante requereu o braço armado não apenas para reprimir
a nova classe dominada, o operariado, mas para operar, pela
força, uma acumulação, uma integração, uma concentração
de capitais, com mudanças drásticas no controle de patrimô­
nios crescentes. Exigiu, mesmo quando o regime de exceção
era claramente antíestatizante - o caso da ditadura militar de
64 a 84 - a utilização do aparato estatal, o simulacro da so-
cial-democratizaçao do capital, tanto na forma das empresas
estatais quanto na regulação do mercado de força de trabalho
para discriminar - não para arbitrar - em favor de uns grupos
contra outros. Dizer que as ditaduras não favoreceram o cres­
cimento, como defenderam Cardoso e Serra na polêmica com
Ruy Mauro Marini sobre a existência ou não de um subimpe-
rialismo tendo o Brasil como eixo na expansão para a América
Latina, significou não terem apreendido as formas concretas
dessa relação, desclassificando a posição de Marini como se
este tivesse postulado uma “ lei” a-histórica das relações entre
regimes de exceção e acumulação de capital.
Estaríamos em presença de um típico processo de “ revo­
lução pelo alto” , “ passiva” nos termos gramscianos, “prussia­
na” segundo uma outra tradição também marxista.
O deslocamento no interior do bloco dominante, o pesado
ajuste de contas, não teve nada de harmônico; talvez tenha se
passado sempre sob o signo da “ cordialidade” tematizada por
Sérgio Buarque de Holanda. De fato, entre 30 e 84, anota-se
um golpe de Estado, ou tentativas de golpe, numa proporção

199
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

de 1 para 3, isto é, um golpe/tentativa a cada 3 anos.. Isto


refletia, de algum modo, a radicalidade da transformação e a
contradição entre as formas políticas em que ela se operava,
o clássico problema da relação entre economia e política. De
outro lado, a emergência e consolidação do movimento ope­
rário, a emergência do campesinato como classe, magnificado
pelas Ligas Camponesas no período imediatamente anterior
ao Golpe de 64, implodia com as relações no interior do pró­
prio bloco dominante, impedindo que a burguesia fizesse a
sociedade à sua “ imagem e semelhança” . A poderosa reativa­
ção do movimento operário e sindical desde os anos 70 exa­
cerbou a crise no bloco dominante, levando à liquidação da
ditadura, pela sua incapacidade de continuar a reprimir os
trabalhadores, e por isso, “ prever” os desdobramentos da re­
produção ampliada.
Com a redemocratização formal em 84, as contradições
no interior do bloco dominante se aguçaram, já que a repressão
não mais funcionava, a iniciativa das classes dominadas - gre­
ves, criação das centrais sindicais, movimentos sociais e da
cidadania - dificultava, enormemente, a resolução de certas
questões centrais para uma nova fase de expansão. A questão
do lugar do Estado era, talvez, a mais central deixada irreso-
luta, sobretudo numa quadra de globalização. Não resultava
funcional para a burguesia a apropriação do espaço democrá­
tico. A formalização dessa “ irresolução” , com o avanço dos
direitos da cidadania, em geral, na Constituição de 1988, dra­
matizou o impasse. Desde antes, a contradição entre as formas
da política e as exigências da acumulação de capital havia ca­
minhado no sentido da dilapidação financeira do Estado, com
o que a “ previsão” , própria do Estado moderno, entrava em
colapso, e com ela, a própria ditadura.
Em 1989, todo o arcabouço da “ revolução passiva” e das
contradições não resolvidas quase foi abaixo: um devastador
terremoto, quase 7 na escala Ríchter, que é de 8, aparecia na
expressão dos 45% de votos conquistados por Luís Ignácio
Lula da Silva na eleição de 89. Um susto quase fatal, quase
infarto, percorreu o bloco dominante de alto a baixo e operou

200
ALÉM DA HEGEMONIA, AQUÉM DA DEMOCRACIA

uma dessas raras fusões entre política e economia no capita­


lismo. Isto é, amalgamou, por pressão, por medo - social e
político - o vasto bloco burguês, em primeiro lugar, e fez passar
esse amálgama para a política. Em Fernando Collor a burguesia
depositou o mandato destrutivo de desmantelamento dos re­
cursos políticos das classes dominadas, entregando-se ao “sal­
vador” que havia obtido uma formidável votação popular,
justamente porque a dilapidação financeira do Estado mostra­
va a fratura exposta da irresolução da crise na forma de um
Estado assistencialista, que negava o “ leite do Sarney” e arras­
tava sua longa cauda nas filas do INSS. A dilapidação preparava
o caminho para sair-se do terreno da “ revolução passiva” para
uma forma messiânica de poder, quase um cesarismo, que en­
carnou em Collor.
Aprendida a lição, o amálgama de interesses divergentes
no bloco dominante e a fusão entre economia e política, voltou
a funcionar com a eleição de Fernando Henrique Cardoso. As
classes dominantes no Brasil juraram nunca mais deixar-se con­
taminar pela democratização; impeachment nunca mais. E essa
descontaminaçao, essa vacina contra os processos democrati-
zanteg, a fusão entre economia e política, o controle absoluto
de todas as siglas partidárias do “partido da ordem” , do PSDB
ao PPS, passando pelo indefectível PFL, misturando o hamle-
tiano PMDB ao “firme” PTB e ao novo-arcaico PPB, torna-se
possível pela âncora da estabilidade monetária lançada no mais
fundo da subjetividade popular, devastadoramente pedagogi-
zada por décadas de altíssima inflação. Em outras palavras, é
a credibilidade do Plano Real que torna concreto o amálgama
dos interesses dominantes e o “ partido da ordem” , virtualmen­
te colocados pelo longo período da “ revolução passiva” .
A situação sugere, pois, hegemonia. A formação de um
consenso que se dá no momento em que os de baixo, os do­
minados, tornam seus os valores dos dominantes: a estabili­
dade monetária é esse valor, interpretado por uns e outros
como seu máximo e convergente interesse. Mas há uma dife­
rença crucial, que torna o conceito de hegemonia impróprio

201
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

para interrogar e decifrar o enigma. A hegemonia, como o


próprio nome sugere, significa a criação de um campo de sig­
nificados unificado, que abre, entretanto, as brechas para sua
própria negação. Em outras palavras, o projeto burguês, desde
as grandes revoluções, a Inglesa, a Americana e a Francesa,
esta mais radicalmente, é de integração, de universalização dos
valores burgueses - interesses sob a forma de valores - de
forma tal que a dominação se tornasse consensual, nos termos
de Gramsci, naturalizada nos termos de Marx e Engels. Daí a
virtualidade que se abre - para a qual Marx talvez tenha sido
cético demais, ele mesmo que havia tematizado a relação de
compra e venda da força de trabalho como um contrato mer­
cantil - para a negação, posto que o contrato inscrito no campo
do direito pode ser negado dentro do mesmo campo semân­
tico. A luta de classes encontra, assim, uma jurisdicização, para
falar como Habermas, que, sem duvida, implica em limites.
Mas, por outro lado, a luta de classes utilizou-se do contrato
como direito para propor o direito além do contrato, de que
o Estado do bem-estar é a forma historicamente concreta.
0 neoliberalismo renuncia à universalização e ultrapassa
sorrateiramente - contraditoriamente, como nos advertiram
os frankfurtianos - a soleira do totalitarismo.
Esse processo, que é evidente no capitalismo desenvolvido,
embora sua ultrapassagem seja mais complicada, na periferia
assume abertamente a cara totalitária. No Brasil de hoje, ele
significa o desmantelamento do campo de significados criado
pelo contraditório processo da “ revolução passiva” , encurra­
lada nas duas últimas décadas pelos novos recursos políticos
criados pelas classes dominadas, Toda vez que os direitos são
transformados em “ custo Brasil” , que a estabilidade do fun­
cionalismo, antes um requisito para a construção de um Estado
moderno, é transformada em explicação para a dilapidação
financeira do Estado, que direitos humanos, que incluem jul­
gamentos e tratamento iguais para todos os cidadãos, incluin­
do-se os que cometem crimes, são transformados em causaçao
da violência e da barbárie, o que está em jogo é a exclusão.
Não no seu sentido mais pobre, o da exclusão do mercado e

202
ALÉM DA HEGEMONIA, AQUÉM DA DEMOCRACIA

do emprego, mas no seu sentido mais radical: o de que, agora,


dominantes e dominados não partilham o mesmo espaço de
significados, o mesmo campo semântico. Há uma negação -
ou sua tentativa - da contestação no mesmo campo de signi­
ficados, o que dilui a política e o conflito. E uma forma radical
de administração, tal como a administração de um zoológico.
Assim, apesar de que a aparência seja de uma hegemonia
finalmente lograda, após o longo período de violentas trans­
formações e de pesados ajustes no interior do bloco dominan­
te, que sempre se renovou, diga-se de passagem, o conceito
perde eficácia porque o processo em curso não é integrador.
O totalitarismo, apesar de seu claro inacabamento, parece mais
produtivo teoricamente. Ele se refere a um processo de des­
truição do campo de significados comuns a dominantes e do­
minados, e seu sonho é o apartbeid total.

203
A vanguarda do atraso e
o atraso da vanguarda
Globalização e neoliberalismo na América Latina*

Desde a colonização, as relações da América Latina com


suas antigas metrópoles, e posteriormente com os imperia-
lismos inglês e norte-americano, e nos escassos períodos em
que buscou uma via autônoma, são marcadas pelo que Caio
Prado Jr. destacou como a contradição entre contempora-
neidade de nascimento com o próprio capitalismo em sua
fase mercantil, e defasagem, pelo fato de que as nóveis so­
ciedades nasciam pelo trabalho escravo, umas e outras re­
definiam-se no marco das “ encomiendas” . Nas antípodas,
portanto, dos processos que, na Europa Ocidental, faziam
a passagem da servidão para o trabalho livre. Tais traços
estruturais dariam nascimento ao que a Cepal posteriormen­
te teorizou como formações duais, e Celso Furtado elevou
à categoria de conceito de uma forma histórica, o subdesen­
volvimento. Ignãcio Rangel, economista brasileiro já faleci­
do, de formação cepalino-marxista, com seu gosto pelos
paradoxos barrocos, chamou essa especificidade de “ con-
temporaneidade do não-coetâneo” .

* Texto preparado para o Congresso da ALAS (Associação Latino-Americana


de Sociologia), realizado em São Paulo, de 1 a 5 de setembro de 1997, na
Universidade de São Paulo.

205
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

A América Latina, pois, e especialmente o Brasil, combi­


nou, desde sempre, uma posição de vanguarda do atraso e
atraso da vanguarda. Vale dizer, enquanto outras colônias,
como as treze norte-americanas, Austrália e Nova Zelândia,
se estruturaram como colônias de povoamento, portanto na
retaguarda do processo da expansão capitalista mercantil, li­
gadas ao mesmo apenas como escoadouro de excedentes po­
pulacionais, de variada origem (perseguições religiosas,
colônia de degredo, desestruturação agrária), o Brasil, exem­
plarmente, nascia para o sistema na sua vanguarda, isto é, como
lugar de produção. O atraso da vanguarda aparecia duplamen­
te, seja na própria forma de estruturação da colônia à base do
tráfico e do trabalho escravos, seja como uma contradição da
vanguarda que reproduzia na colônia o que ela mesma já ex-
tinguia, isto é, a servidão e o escravismo. Por oposição, as
colônias de povoamento nasciam como retaguarda, mas essa
condição propiciou, imediatamente, um tipo de economia e
de sociedade que logo transitou para o trabalho livre. A van­
tagem da vanguarda do atraso logo transformou-se numa des­
vantagem, cujos efeitos seculares perduram, apesar ou talvez
et pour canse.
Longa e desnecessária seria a recapitulação da atualização
permanente da “ contemporaneidade do não-coetâneo”, para
falar barrocamente. Está bem fresca na memória e numa pro­
dução teórica que, por vezes, logrou elevar-se à condição de
importante contribuição mundial - o caso claro da Cepal. A
última atualização do paradoxo barroco, que mais do que isso
é uma real contradição, deu-se com a industrialização de vários
países latino-americanos, casos bem conhecidos do Brasil, Ar­
gentina, México, Chile, Colômbia, Venezuela já mais tardia­
mente, e dos que se uniram em blocos para intentarem superar
as desvantagens de tamanho, como o Centro-americano e o
Pacto Andino. A contradição se repôs, em novas bases, vale
dizer, para não se cair no logro metodológico de extração
genética, que não anota as rupturas, com o que desemboca em
destino, ou nas “três raças tristes5’ do caso brasileiro pensado
pelos clássicos autoritários brasileiros. A industrialização, pen­

206
A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

sada como a condição sine qua non para a ruptura da relação


de subordinação e dependência de países produtores de bens
primários versus produtores de bens industriais, repôs a rela­
ção desigual, posto que foram empresas dos países centrais
que estiveram e estão à frente dos ramos dinâmicos, e frago-
rosamente produziu uma dívida externa, cujo resultado foi o
de transformar o dólar e outras moedas fortes no pressuposto
e resultado da acumulação de capital, retirando os graus de
liberdade do desenvolvimento autônomo, duramente perse­
guido e, por alguns anos, bem ao alcance de alguns poucos
países. A conseqüência política esperada pela teoria cepalina
(que, sob esse aspecto, reificava a ideologia liberal da simetria
entre desenvolvimento econômico e formas políticas demo­
cráticas), e ademais por toda a elaboração inspirada no mar­
xismo soviético (foi Marcuse quem o chamou assim), isto é, a
da produção de uma classe burguesa não apenas independente,
mas que realizasse entre nós a revolução burguesa, mostrou-se
um fracasso espetacular, e, mais do que isso, um fracasso san­
guinário: na crise da passagem para uma sociabilidade de su­
jeitos autônomos, ainda que no marco capitalista, as burguesias
nao.suportaram a emergência das novas classes sociais virtual­
mente colocadas pela própria expansão capitalista, cuja con-
cretude, sabemos, depende das próprias classes, e apelou
simultânea e decisivamente para a repressão política e para as
forças imperialistas. Em outras palavras, incapaz de elaborar
sua própria hegemonia, o desenvolvimento pareceu às burgue­
sias uma ameaça e um passo para o socialismo. A hipótese
radical de Florestan Fernandes, de esgotamento das energias
revolucionárias da burguesia na América Latina, que torna
incompatíveis expansão capitalista e democraçia, parece som­
briamente confirmada pelos últimos desenvolvimentos/expe­
rimentos neoliberais, que soaria outra vez como um paradoxo
barroco, em virtude de que são os regimes democráticos(?)
saídos do longo período de ditaduras militares os condutores
performádcos da nova exclusão.
O neoliberalismo entre nós apresenta-se como o caldea-
mento de arraigadas sociabilidades autoritárias na formação

207
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

de nossas sociedades - paródia da “democracia na América -


com os processos de globalização. Nisto consiste sua específica
letalidade ao sul do Rio Bravo. O que não quer dizer que no
norte capitalista sua versão original não seja portadora também
de um altíssimo grau de letalidade social. E o atraso da van­
guarda: síntese, cléde voüte, de complexos processos de nova
direitização, neoconservadorismo, racismo físico e cultural,
intensa transformação dos sujeitos sociais, desemprego, que,
no fundo expressam uma radical exasperação dos limites da
mercadoria. Uma crise da modernidade que volta a tangenciar
os limites do totalitarismo, numa espécie de Auschwitz sem
chaminés de crematórios. A leste, no “ buraco negro” colapso
do “ socialismo real” o panorama é, talvez, mais grave do que
na América Latina. Mas não nos compete, por desconheci­
mento, aprofundar essa sugestão que já está praticamente em
todos os vaticínios sobre o leste europeu, salvo naqueles pro­
duzidos pelos Jeffrey Sachs da vida, e propagandeados, não
sem alguma reticência, pelo G 7, que se fez 7 e meio. Samuel
Huntington, o conhecido conservador, também apostou num
rápido processo de democratização do Leste Europeu, baseado
no alto nível de escolaridade formal que havia sido alcançado
pelos regimes socialistas. Talvez esteja amargando uma apres­
sada aposta, sem levar em conta o caráter desestruturador da
formidável mudança.
Tratemos de nossa vida, enquanto “ seu lobo não vem” . A
vanguarda do atraso consiste em chegar aos mesmos limites
superiores do capitalismo desenvolvido, sem ter atingido seus
patamares mínimos, para dizer, de novo, de forma barroca. E
não adianta o protesto de que uma tal formulação expressaria
a teoria ultrapassada das etapas do desenvolvimento capitalis­
ta, formulação essa que a própria produção teórica latino-ame­
ricana, nunca assaz louvada, já havia superado. A resposta
antecipada a essa possível e óbvia crítica é de que nossos “clás­
sicos” , de Mariátegui a Caio Prado Jr., de Raúl Prebisch a Celso
Furtado, para citar uns poucos, ao elaborarem as teorias de
nossa especificidade, nunca pensaram que a mesma tivesse sido
produzida em função exclusiva das contradições internas, mas

208
A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

exatamente no cruzamento com o capitalismo mundial. É


nisto que consiste tanto a especificidade quanto a singula­
ridade do subdesenvolvimento como a negação do desen­
volvimento linear.
A vanguarda do atraso, assim, mal ultrapassadas as fron­
teiras da segunda revolução industrial, logo se viu às voltas
com a perda da capacidade regulatória do Estado, que vai
desde a incapacidade para regular o sistema econômico em
suas áreas poiítico-territoriais, até apresentar a fratura exposta
da violência privada e dos grupos, gangues, redes de narcotrá­
fico, que tornam letra morta o monopólio legal da violência.
Não precisamos citar especificamente nenhum de nossos paí­
ses: em todos, sem nenhuma exceção, o Estado é uma presa
fácil da violência privada, que ele mesmo, em sua função de
condottieri e, por conseqüência, em sua dilapidação financeira,
estimulou até o surreal.Em toda a Amazônia, espécie de inte­
gração latino-americana às espaldas da vontade dos governos,
para citar um só exemplo, as forças desatadas pelas políticas
ditas integracionistas do Estado desenvolvimentista metamor-
fosearam-se numa acumulação primitiva predatória e desapie-
dada: tráfico de toda espécie, contrabando, depredação
ambiental, pilhagem da biodiversidade, reatualização do ge­
nocídio da Conquista estão a mostrar que as criaturas já são
mais poderosas do que o criador. Essa perda da capacidade
regulatória, que ela mesma é provocada pela escolha da inser­
ção dos países latino-americanos numa posição subalterna nos
processos da expansão da última fase, que podem ser chama­
dos de pré-globalizaçao, é reiterada agora por políticas cujo
núcleo consiste em apressar a integração suspirada. Os regimes
democráticos revelaram-se, pois, formidáveis pastiches dos re­
gimes ditatoriais: enquanto os segundos engendraram as crises
das dívidas externas, na perseguição de integrarem-se deses­
peradamente, os primeiros, herdando tais condições desfavo­
ráveis, tentam apagar os últimos vestígios de independência e
autonomia, numa espécie de busca da cura pelo veneno. Não
por acaso: os regimes ditatoriais criaram poderosas forças - e
quando não criaram, destruíram as forças alternativas, como

209
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

nos casos da Argentina e do Uruguai - econômicas e sociais,


cuja única salvação, nos termos em que as classes dominantes
a entendem, consiste em dissolverem-se no amplo conjunto
das forças dominantes em nível global. Mas isto não se faz sem
um alto preço a pagar pelas classes dominadas. Nesse processo,
o neoliberalismo “ na América” , para relembrar Tocqueville,
transforma-se em totalitarismo.
Parece um evidente exagero assimilar regimes repre­
sentativos, cujos dirigentes são eleitos em pleitos universais -
o México é o último a juntar-se ao clube democrático, ainda
que apenas em níveis municipais - com alternância de grupos
e partidos na direção do Estado, àqueles regimes-emblemas
do totalitarismo: o nazi-fascismo e os regimes do tipo sovié­
tico, entre os quais o chinês, certamente. De partido único,
portanto sem alternância, sem imprensa livre, com repre­
sentantes eleitos pelo partido único e em listas obrigatórias,
enfim nas antípodas das democracias representativas. E bem
verdade, estamos fartos de saber, que os pleitos livres são grave
e crescentemente comprometidos pelo poder econômico fi­
nanciando legendas políticas, o que torna muito relativa a li­
berdade e universalidade das eleições. M as, para não
incorrermos seja na ira dos formalistas, seja no próprio risco
de desvalorizar as instituições, nossa crítica move-se dentro
do próprio terreno democrático. Vale dizer, nossa tese é a da
quadratura do círculo: os regimes democráticos na América
Latina estão se transformando em totalitários, por via das mes­
mas instituições que processam a democracia. Depois da queda
dos regimes do Leste, formou-se um falso consenso sobre a
prevalência de regimes democráticos, urbi et orbí, América
Latina compris. Para sairmos da sensação de derrota histórica
e impotência para transformações, é preciso em primeiro lugar
fazer a crítica dessa pretensa democratização. E o “ gramscia-
nismo de direita” - Gramsci se vê, assim, transformado no
teórico da resignação que assimila e reduz hegemonia a
democracia, e vice-versa, “ legitimando” esse “ consenso demo­
crático” , desqualifica qualquer interpelação que se faça aos
atuais regimes - Fujimori incluído, salve-nos Deus ! - em nome

210
A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

de que, assim, se deslegitima a democracia. A primeira tarefa in­


telectual e prática do campo democrático é probíematizar o con­
ceito e a prática dessa democracia “consensual e hegemônica”.
A característica central da contradição latino-americana,
explicitada e posta em marcha pelas políticas econômicas cha­
madas neoliberais, é a exclusão, Essa exclusão tem que ser
qualificada: pois o leit motiv dos argumentos neoliberais é que
as políticas dos simulacros de Welfare, entre nós, mais excluí­
ram do que incluíram. Nisso, copiam os argumentos conser­
vadores, desde Hayek e Friedman. A inflação, por exemplo,
resultado - na fórmula reducionista neoliberal - de expansão
dos gastos sociais sem receita que os avalizasse, exclui, pela
permanente corrosão dos salários, os grupos sociais pobres do
consumo moderno. Além disso, a inflação penaliza fortemente
os mais pobres pelo chamado “imposto inflacionário” . Em
suma, o Welfare exclui exatamente pela prática de políticas
supostamente integradoras. A evidência fornecida até agora
pelos resultados das políticas neoliberais, entretanto, não são
muito favoráveis aos seus argumentos: o México já é hoje um
caso clássico de rigidez excludente; ninguém seriamente apos­
ta que qualquer revitalização da economia mexicana possa
repor a imensa massa de subempregados que em qualquer cal­
çada mexicana estão vendendo - suprema ironia - garrafinhas
da água mineral de elite, a Perrier francesa. Na Argentina,
cinco anos de estrondoso sucesso do Cavallo que caiu do cavalo
(isto é, Menem) produziu uma massa de desemprego que teima
em permanecer em irredutíveis 17/18% , fenômeno único na
história argentina, que sempre se caracterizou por pleno em­
prego, desde os dias da grande entrada do país austral como
fornecedor de alimentos no mercado mundial. Em todos os
outros, o registro é do mesmo tipo. O Brasil apresenta a sau­
dável taxa de desemprego de 6% da PEA, com um incremento
de 1,52 % entre maio de 96 e maio de 97 (Carta IBGE, ano
III, n.37, ago/97), mas os resultados para sua capital econô­
mica, toda a Grande São Paulo, medidos pelo convênio SEA-
DE/DIEESE elevam-se ao patamar de 15,7 % , em julho de 97

211
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

(Folha de S, Paulo, 28/8/97) muito próximo do argentino. Es­


timativas que levam em conta o desemprego disfarçado nos
milhares de pontos de venda do imenso bazar persa em que
se transformaram, praticamente, todas as grandes cidades da
América Latina, autorizam a supor que desemprego aberto
mais desemprego disfaçado alcançam níveis de 30 a 50% da
PEA, dependendo do país.
Depois dos primeiros resultados do Plano Real, de aboli­
ção do “imposto inflacionário”, da seignorage, em linguagem
mais elegante, proclamou-se uma formidável redistribuição de
renda, responsável pelo exponenciaí crescimento do consumo
de... frangos. Para os brasileiros, não resisto à piada: foi a
forma de FHC ajudar Maluf... Fim do parêntese. Desde mea­
dos de 96, entretanto, anota-se o fim dessa redistribuição de
renda e a estagnação do crescimento do salário médio real. A
mesma publicação do IBGE já anotava recuo de 0,20% do
salário real médio na indústria, de março para abril de 97,
enquanto no comércio varejista o recuo somava 0,59% entre
maio 96 e maio 97. A pesquisa SEADE/DIEESE, já referida,
acusava uma queda acumulada de 15,6 % dos rendimentos dos
10% mais pobres da Grande São Paulo, entre janeiro/97 e
julho/97, justamente o estrato mais “beneficiado” pela redis­
tribuição de renda promovida pelo Plano Real! Categorias in­
teiras, como as do funcionalismo público, amargam uma
erosão salarial que já vai pela casa dos 64%, igual à inflação
desde a implantação do Real, período no qual não houve ne­
nhum reajuste salarial, exceto para os militares... A sensação
de marasmo invade todos os setores.
Noutras palavras, a vanguarda do atraso aqui também co­
pia o atraso da vanguarda. O sucesso da política antiinfíacio-
nária - paradoxalmente, diria Rangel - impede qualquer
política social, mesmo aquelas que copiam o velho assisten-
cialismo do Estado desenvolvimentista, a confracção latino-
americana do Estado do bem-estar. Precisamente porque a
política monetária, permanentemente amarrada - e ancorada -
no dólar, perdeu toda sua autonomia, que é o oposto do que
dizem tanto o governo quanto a mídia; a ancoragem exige que

212
A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

a relação cambial seja, na verdade, o eixo central da política


econômica. Qualquer afastamento implica imediatamente em
perda da capacidade competitiva, o que não é muito, posto
que as economias latino-americanas são as que menos crescem
no comércio internacional, mas sobretudo porque os preços
internacionais são a polícia dos preços internos. Nisto consiste
a estabilidade monetária. Portanto, nenhum afastamento da
relação cambial “ ancorada” . Esse enorme esforço esteriliza
toda a façanha da política monetária: posto que, para tanto,
é preciso abrir-se para o capital estrangeiro, especulativo, con­
dição sine qua non para fechar o Balanço de Pagamentos, do
que decorre uma expansão da dívida interna que consome, no
seu serviço, boa parte dos recursos fiscais. A armadilha é com­
pleta e o círculo se fecha: a condição do êxito da política
monetária é garrotear qualquer gasto social. Todas as políticas
econômicas que seguem esse padrão - casos da Argentina e
México, radicalmente, e dos demais paises latino-americanos
de forma mais atenuada - não conseguiram, desde então, ela­
J borar qualquer política social. Em países como os nossos, com
desigualdades abismais entre as várias classes sociais, esse tipo
de política transforma-se em exclusão; antes, o termo poderia
ser contestado, posto que, mais mal do que bem, assim mesmo
as políticas tentavam incluir progressivamente as populações
e classes sociais no mercado, na cultura, na cidadania, enfim.
Digamos que a integração se dava por formas excludentes, que
criaram as grandes maiorias pobres da América Latina: os vá­
rios recortes do mercado de trabalho mostravam essa integra­
ção por exclusão: negros, no Brasil, mulheres em toda a
América Latína, os índios de variada extração na América La­
tina, os mestiços, a infância, os coortes generacionais, eram
formas de divagem no mercado de trabalho que integravam
por exclusão, vale dizer, o mercado reificava como atributos
dos indivíduos e das classes o que eram as taras históricas da
desigualdade e da não-cidadania na América Latina.
A diferença, expressada com eloqüência por ninguém me­
nos que o presidente F.H. Cardoso, é de que não se pretende
(e ele diz que não se pode) mais integrá-los, mesmo que seja

213
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

através das clivagens reificadas pelo processo de acumulação.


Ele criou o neologismo “inempregáveis” para nomear os que,
na nova ordem globalizada em que o país se insere, não terão
nenhuma vez. Vale ressaltar que, no início dos anos setenta,
em polêmica com José Nun, conhecido sociólogo e cientista
político argentino, o presidente, então sociólogo e cientista
político, acusou Nun de adotar uma interpretação malthusiana
a respeito da escassa possibilidade que os modelos de cresci­
mento adotados pelas ditaduras na América Latina abriam para
o emprego, gerando, segundo Nun, uma massa marginal. F.H.
Cardoso contestou-lhe a impropriedade tanto do conceito de
massa marginal quanto da dificuldade de emprego, apontando
para políticas que poderíam oferecer emprego para toda a
população. E o fez com argumentos de... Marx, no tratamento
do “ exército industrial de reserva” . Essa renúncia de combater
o desemprego, amparada numa fatalística interpretação da
reestruturação produtiva globalizada, corresponde a aceitar
que as sociedades latino-americanas estarão irremediavelmen­
te divididas entre um contingente empregável e um largo con­
tingente “ inempregável” . Suas próprias estimativas, por
ocasião do discurso em que falou dos “inempregáveis”, refe-
riam-se a cerca de 40 milhões de brasileiros que já não terão
vez no sistema produtivo. Em termos da população brasileira,
de 150 milhões, isto quer dizer 27% da população. Em relação
a uma PEA de 50% da população - estimativa otimista, devido
às mudanças etárias fortes no Brasil, que aumenta a população
em idade de trabalhar e de permanecer na ativa —quer dizer
53% (40/75— 53). Vale dizer, metade da população em idade
ativa, segundo as estimativas do presidente-sociólogo, está
condenada à marginalização. Ele deveria, para ser coerente,
chamar José Nun para seu ministro, dando-lhe um posto de
“Ministro para a Marginália” , o que o digno cientista social
argentino recusaria, posto que, naquela época estava tentando
chamar a atenção para a dramática conseqüência das políticas
econômicas.
A exclusão social, para o que nenhuma política assisten-
cialista, aliás inviabilizada pela política econômica, é desenha­

214
A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

da, é apenas a face “ econômica” do neoliberalismo globalizado


na América Latina e no Brasil, Faço a particularidade posto
que conheço melhor, ou suponho, meu próprio país. De fato,
há algo mais tenebroso por trás da renúncia ao combate ao
desemprego e à miséria. E que as classes dominantes na Amé­
rica Latina desistiram de integrar a população, seja à produção,
seja à cidadania. Isto não quer dizer, desde logo, que tal cenário
se desenvolva fatalmente; caberá às classes dominadas reagi­
rem, não aceitando o que lhes é apresentado como fatalidade
tecnológica. Mas os grupos e classes dominantes no Brasil já
não pretendem integrar, mesmo que seja por mecanismos rei-
ficadores da exclusão. O que elas pretendem é segregar, con­
finar, diriamos, definitivamente, consagrar nuns casos,
reforçar noutros, o verdadeiro apartbeid entre classes, entre
os dominantes e os dominados. Essa segregação é socialmente
construída, diga-se logo, pelo menos para honrar nosso diplo­
ma de sociólogo. Não se está transformando o neoliberalismo
e seus executores em deus ex-machina, que operariam contra
todas as tendências e processos inscritos na própria estrutura
e expressos na sua sociabilidade? De fato, ao contrário do que
supõe e teoriza uma impotente sociologia - da qual deve-se
desconfiar de sua “ neutralidade” axiológica - da inexistência
e desaparição das classes sociais, pregando, “a la sociologia
norte-americana” uma sociedade-geléia, o que se vê é um cres­
cente distanciamento, intranscendência e incomunicabilidade
entre as classes sociais. Uma espécie de sociedade de classes
estamental. A mídia, em sua operação de exclusão, sabe disso
muito bem: com a ajuda de teorias sociológicas da estratifica-
ção, a mídia não dirige seus programas ou seus produtos, sejam
jornais, revistas, emissões de rádio e de televisão, para todas
as classes - ou estratos - da sociedade. Ela os dirige para uma
sociedade fragmentada. Entre nós, no Brasil, sabemos que o
grupo SBT, por exemplo, escolhe, deliberadamente, trabalhar
e emitir para as classes C, D e E, economizando-se de concorrer
com a Rede Globo nas classes A e B. A complexa equação do
grupo Sílvio Santos baseia-se na mesma percepção de intran-
sitividade das ciasses sociais: seus negócios de venda de utili­

21S
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

dades domésticas, o Baú da Felicidade, sua loteria, a TeleSena,


e suas emissões televisivas, o SBT, dirigem-se para o mesmo
mercado e mesmo público.
O apartbeid se caracteriza pela criação de um campo se­
mântico em que os significados dos direitos e conquistas civi-
Uzatórias, plasmados em direitos sociais, trabalhistas, civis e
políticos são transformados em obstáculos ao desenvolvimen­
to econômico, e mais, são transformados em fatores causais
da miséria, pobreza, exclusão e ausência de cidadania. A pro­
teção social, por exemplo, transforma-se em “custo Brasil” . A
estabilidade, inamovibilidade, do funcionalismo público, ala­
vanca da modernidade num continente cuja história de caci-
quismo continua a reiterar-se, são transformadas em causa do
déficit público e da inflação. Os funcionários públicos, os “ ma­
rajás” da falsificação de Fernando Collor, foram transforma­
dos em inimigos públicos: são o número um de uma longa
cadeia de inimigos do povo. Os direitos humanos, em sua ex­
pressão moderna, ápice da formação da cidadania, são trans­
formados em causação da barbárie e da violência: o direito
civil e político de protestar é reprimido não apenas com vio­
lência, o que se dá mesmo em qualquer democracia. Ele é
desqualificado como direito. Não apenas Eldorado de Carajás
o confirma, mas o próprio presidente já afirmou que a con­
testação e o protesto são características - hélas! - de sociedades
totalitárias! A seqüência de tragédias, massacres, é diária, e
toda uma histeria contra os direitos humanos, que são direitos
civis e políticos, manifesta-se cotidianamente na mídia impres­
sa, televisiva e radiofônica. Os arautos do “ olho por olho”,
“ dente por dente” , conduzem programas de grande audiência
na mídia. Há, no ar, uma espécie de sociabilidade da apartação,
da segregação, do confinamento; sobre ela, reforçando-a, as
políticas empreendidas aumentam-lhe o alcance, a legitimam,
e, suprema ironia, a metamorfoseiam em modernidade: os
signos do apartheid são, agora, sinais da individualidade, da
capacidade de empreendimento. A tentativa de melhorar a
exposição pública de personalidades políticas, de candidatos
às várias eleições, é permanentemente castrada: os programas

216
A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

políticos tendem a se parecer com prontuários policiais, numa


reedição, no Brasil, da famosa Lei Falcão, que os brasileiros
sabem o que foi. E o patrocinador dessa regressão é um ilustre
senador por São Paulo. A nova lei eleitoral procura confinar
ainda mais os possíveis adversários, enquanto o presidente
dispõe de todos os recursos diários de exposição, reforçados
pela possibilidade de convocar cadeias nacionais de rádio e
televisão, todas as vezes que tiver alguma coisa importante
para transmitir ao povo. Os ministros fazem o mesmo. Ima­
gine-se, para comparar, o presidente norte-americano con­
vocando emissões nacionais a cada instante! A Federação se
espatifa, dilacerada pelas enormes desigualdades regionais
e interestaduais, enquanto o poder central recusa-se a traçar
políticas regionalizadas, em nome de evitar... discriminações.
Novamente o mesmo senador por São Paulo é o arauto do
princípio, tão velho nas democracias liberais quanto andar
pra trás, de uma cabeça, um voto, num mal disfarçado pau-
listocentrismo, com o que a representação no Congresso se
transformaria em 30% de deputados paulistas, 50% distri­
buídos entre Minas, Rio, Rio Grande do Sul, Bahia e Paraná,
e os restantes 20% para todo o resto da Federação, isto é,
para os demais 16 Estados. A isto corresponderia a verda­
deira Federação!
' A “ comunicação mediática” transformou-se em substituto
da política. Opera uma exclusão da fala dos contestantes que
é mortal para a formação de uma arena pública, de uma esfera
pública. O episódio de Diadema, conhecido pelos brasileiros,
é exemplar: o flagrante de extorsão e assassinato por membros
da Polícia Militar de São Paulo de moradores da hoje triste­
mente famosa Favela Naval, foi transformado pela televisão -
lideradas pela Rede Globo, soberana e imbatível - em espetá­
culo. Esperava-se, e a mídia se encarregou de autolouvar-se
como vigilante dos direitos humanos, uma ação política pro­
porcional à fratura exposta de uma realidade social e política
em que o monopólio legal da violência é transformado em
monopólio privado da violência. A pífia resposta do governo
federal veio num projeto de lei que se resume a mudar nomes,

217
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

jogar a responsabilidade da segurança sobre os governos esta­


duais e, como audácia máxima, retirar os crimes cometidos
por policiais militares da jurisdição da justiça.*, militar. De
cambulhada, aproveitando a indignação, que não é sinônimo
de política, o projeto de lei cancela a igualdade entre servidores
civis e militares, para facilitar a manutenção do arrocho salarial
sobre o funcionalismo civil, enquanto o governo livra a cara
reajustando os militares ao saber das conjunturas críticas, de
que a crise das Polícias Militares estaduais, que pegou como
rastilho de pólvora no mês de julho de 97, constituiu-se a
pressão insuportável. Ainda de cambulhada, aproveitando o
pânico instalado na população pelas greves das polícias civis
e militares, que apenas ampliou em escassíssima margem a
criminalidade e a violência cotidiana sobre os pobres, o projeto
retira os direitos civis e políticos de policiais civis e militares
de associarem-se para defesa de seus interesses.
O que sustenta a avassaladora e devastadora política de
apartheid, conduzida e elaborada por alguns antigos eminentes
membros das oposições à ditadura? Em primeiro lugar, ren­
dendo homenagem aos “ demiurgos” do pensamento social
brasileiro, que foram capazes de reconhecer a componente
autoritária na formação da sociedade brasileira, a “ antidemo-
cracia na América... Latina” : o avassalamento da intimidade
no escravismo, por Gilberto Freyre; a estruturação descom­
passada de Caio Prado Jr., a que já nos referimos; o “ homem
cordial” e seu horror às distâncias, de Sérgio Buarque de Hol-
landa; a sociabilidade do favor, de Machado de Assis/Roberto
Schwarz, a ambigüidade do público e privado, patrimonialista,
de Raymundo Faoro. E nessa base que reside a virtualidade
do apartheid, que funda uma culpabilidade popular que se
resume na desconfiança de uma parte dos pobres sobre eles
mesmos: o sentimento reconfirmado nas recentes eleições, de
que Lula não servia para governar o país, porque era igual a
eles. E sobre esse fundo que Collor construiu a demonologia
do funcionário público, do bandido que os defensores dos
direitos humanos queriam travestir de cidadão. E Cardoso, na
campanha eleitoral, referiu-se sans ambages, à sua diferença

218
A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

principal em relação ao seu principal opositor: sua condição


de intelectual, enquanto o outro não passava de um simples
metalúrgico, aproveitando-se dessa subjetividade culposa in-
culcada em alguns dos setores mais pobres da sociedade. Uma
militante tucana, muito conhecida no Brasil, a atriz Ruth Es-
cobar, expressou claramente, em artigo para a Folha de S. Pau­
lo, essa diferença e esse preconceito: ela escreveu que tínhamos
a oportunidade de votar em Sartre - FHC - ou num bombeiro
- Lula. O filósofo de Uêtre et le néant deve ter se revirado em
Père Lachaise...
Caminhando sobre o chão pavimentado pelo preconceito
dos pobres contra os pobres, as classes dominantes no Brasil
começaram a extravasar uma subjetividade antipública que
segrega, elabora, pela “ comunicação mediática” , uma ideolo­
gia antiestatal. Essa subjetividade, que se elabora em relação
dialética com o amplo movimento neoliberal global, que rea-
tualiza nossa “ contemporaneidade do não-coetâneo”, funda-
se, de um lado, no extraordinário crescimento capitalista. A
ampliação da dominação de classes, que pode se expressar
através simplesmente dos indicadores da divisão social do tra­
balho no PIB, vale dizer, a ampliação da participação da in­
dústria, a transformação da agricultura em indústria, a
industrialização dos serviços. De outro, na dilapidação finan­
ceira do Estado condottièri desenvolvimentista, que inver­
teu, na aparência, a antiga relação do Estado com o mercado,
ou do Estado com o setor privado: de um Estado financiador
da acumulação de capital para um Estado - falido, na acep­
ção neoliberal - devedor. A extraordinária expansão da dí­
vida pública interna seria a expressão da falência. Ampliação
da dominação de classe e estado falimentar do Estado pro­
duzem, segregam, a “ falsa consciência” da desnecessidade
do Estado; a rigor, trata-se de uma “ falsa consciência” da
desnecessidade do público, que se expressa nas formas ainda
estatais do público no Brasil. Em outras palavras, e pondo
de lado o sociologuês, as burguesias brasileiras acreditam
que podem passar sem o Estado, porque, para elas, já é o
Estado que depende delas.

219
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Isto produz um desprezo pela esfera pública, porque pa­


rece que tanto a acumulação de capital quanto seus próprios
cotidianos, podem fazer-se, reproduzirem-se sem o Estado.
Este, aliás, aparece como um estorvo. Voltando aos nossos
termos acadêmico-científicos, as burguesias brasileiras, y com-
pris a grande burguesia internacional/giobal, já não busca uni­
versalizar sua dominação. Ela não busca hegemonia, fazendo,
operando sobre as classes dominadas, a clássica combinação
de coerção e consenso. Divide o espaço entre um econômico
e um social que não se comunicam, que não têm relação dia­
lética de oposição, mas apenas de subordinação do segundo
ao primeiro. Em outras palavras, a dominação não busca trans­
formar o dominado num igual no campo dos direitbs, mesmo
que, na férula interpretação de Marx, isto seja apenas ideolo­
gia. Mas, como nos lembra Rancière, a simples admissão da
igualdade, mesmo se a considerarmos enquanto ideologia, é
produtiva para os dominados. E a mesma tematízação de
Gramsci a respeito da hegemonia: esta supõe uma integração
dos dominados ao campo semântico dos dominantes, e essa
integração abre o passo à produção da contestação, à elabo­
ração de uma contra-hegemonia. Mas a “ falsa consciência”
das burguesias no Brasil não deseja que o dominado se pareça
com elas. Deseja mantê-lo diferente. Este é o sentido mais
profundo da exclusão.
Essa desuniversalização da dominação, que portanto re-
define-se como apenas dominação, des-democratiza e trans-
muta-se em totalitarismo. O conceito, mesmo que imperfeito,
parece-nos mais teoricamente produtivo, no tratamento do
neoliberalismo, que o de hegemonia. Porque ele permite tra­
balhar a tendência, formalizada em projeto sob a égide da
presidência Cardoso - da impossibilidade do dissenso, da al­
ternativa, do seqüestro do discurso e da fala contestatória, da
anulação da política. Não é sem conseqüências tal projeto.
Porque mesmo que elabore, sob a forma de ideologia, a inte­
gração das massas ao mercado de consumo - o grande feito
neoliberal, assim mesmo duvidoso até pela explícita “teoriza-
ção” presidencial sobre os “inempregáveis” - trata-se de uma

220
A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

integração passiva, ou, nos termos frankfurtianos, da produ­


ção de mercadoria sem a ilusão da liberdade, o que na fórmula
frankfurtiana equivale ao nazi-fascismo e ao totalitarismo so­
viético. A sombria desconfiança da teoria crítica de que o nazi-
fascismo foi uma perversão gestada no espectro de virtua-
lidades do liberalismo aparece, no Brasil e na América Latina,
cinqüenta anos depois da derrota do totalitarismo, como uma
aterradora plausibilidade da hipótese. Talvez resida aqui o pri­
meiro resultado promissor da globalização: as tendências de
metamorfose das democracias em totalitarismos estão unifi­
cando o campo dos problemas em escala mundial; seremos,
daqui por diante, “contemporâneos e coetâneos” .
Em quadras históricas como a que atravessamos, o com­
promisso do intelectual é de radicalizar a crítica. Sem otirnis-
mos ingênuos, até mesmo porque a avalanche neoliberal não
é apenas uma retórica, mas um processo com fundas raízes em
nossas sociedades. Conforme a lição de Adorno, compete-nos
radicalizar no sentido de cobrar as promessas do conceito; no
caso sob exame, as promessas contidas na democracia. Um
outro grande clássico, Gramsci, aconselhava a, nas crises, afiar
o “ pessimismo da razão” , para ajudar ao “ otimismo da von­
tade” , que só pode surgir da práxis das classes dominadas, para
responderem e derrotarem esse Holocausto sem(?) câmaras
de gás. Como disse um poeta de minha cidade, da minha pre­
dileção, Carlos Pena Filho, morto prematuramente: “Não nas-
^ce a pátria agora/ O sonho mente/ Mas em meio à mentira/
Sonho e luto/ Pois sei que sou o espaço/ Entre a semente e o
fruto” (“A Tiradentes” , in Livro Geral Rio, Liv. S. José, 1959).

221
Dominantes e dominados na
perspectiva do milênio

Do llumintsmo para a reação

Perguntar-se pela estruturação/divisão da sociedade brasi­


leira em dominantes e dominados na perspectiva do Terceiro
Milênio constitui um enigma imediatamente transparente;
vale dizer, não apenas essa dicotomia atravessa e constitui toda
nossa história, como imediatamente ela continuará sendo a
divagem mais geral de nossa sociedade, até onde alcançam as
vistas da ciência social. Fora exercícios futeis de futurologia,
cartomancia, jogos de dados, búzios, tarôs, energizaçÕes men­
tais, cultos piramidais, a que recorre, hoje, um século devas­
tadoramente desesperado de dessacralidade, a experiência
social que autoriza projeções mais imediatas não dá lugar a
supor drásticas mudanças na estrutura de dominação da so­
ciedade brasileira. Mais imediatamente, a ciência social se põe
cautelosa, mesmo porque suas armas metodológico-teóricas
continuam sendo incapazes de prever revoluções da dramati-
cidade de uma que reverta os pólos dominantes/dominados
na sociedade brasileira: se ela é capaz de diagnosticar crises,
as revoluções continuam sendo acontecimentos singulares, ca­
rismáticos para Weber, rupturas revolucionárias para Marx,*

* Publicado em O Livro da Profecia: O Brasil no Terceiro Milênio. Brasília,


Coleção Senado, vol. I, 1997, p. 273-282.

223
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

que nenhuma ciência social pode antecipar. O que não diminui


o estatuto científico das sociais, mas ao contrário as descon-
tamina de pretensões mágicas.
A tal grau de generalidade, a resposta à questão perde todo
interesse. Faz-se necessário, portanto, aproximar a resposta
das condições concretas da sociedade brasileira contemporâ­
nea, o que inclui caracterizar a estrutura de dominação não
apenas abstratamente, mas, em primeiro lugar, como uma es­
trutura de classes antagônica, própria do sistema capitalista
produtor de mercadorias, localizado num país da periferia do
sistema capitalista, numa etapa crucial de transformações que
a mídia popularizou como “globalização” e a ciência social
mais rigorosa, na ótica de um François Chesnais, prefere cha­
mar de “ mundialização” (ver seu A mundialização do capital
- Trad. Silvana Finzini Foá. São P^ulo, Xamã, 1996).
Ainda assim, a perspectiva mais imediata parece não con­
templar uma reviravolta muito profunda na estrutura de clas­
ses e de desigualdades da sociedade brasileira; muito ao
contrário, os sinais emitidos a partir da dominância na con­
juntura de forças conservadoras, cujo mais notável “ álibi” para
as contra-reformas em curso é mui justamente a famosa “glo­
balização” , levam a pensar que as desigualdades tendem a cres­
cer no futuro imediato. Importa, entretanto, antes de reiterar
uma resposta “ pessimista”, traçar um certo percurso da socie­
dade brasileira até o princípio da década de 90, para perceber
o que talvez seja o mais preocupante, a mudança do que po­
deriamos chamar o paradigma do Uuminismo pelo paradigma
do Conservadorismo ou da Reação, em sentidos político-so-
ciológicos fortes.
Com todos os problemas de uma sociedade fundada como
uma colônia de produção no e sobre o escravismo, desde logo
contemporânea e ao mesmo tempo defasada no capitalismo
enquanto sistema que se tornava universal (Caio Prado Jr.),
cuja sociabilidade se estruturou no complexo da “ economia
patriarcal” (Gilberto Freyre) e do “horror às distâncias” (o
“homem cordial” de Sérgio Buarque de Fíollanda), a sociedade
brasileira orientou-se sempre pelo paradigma do Iluminismo.

224
DOMINANTES E DOMINADOS NA PERSPECTIVA DO MILÊNIO

Caricata e “ fora de lugar” nas suas instituições liberais (Ma­


chado de Assis na magnífica interpretação de Roberto
Schwarz), federação oligárquica do “ coronelismo, enxada e
voto” de Vitor Nunes Leal, do barracão e da semi-servidão,
da Primeira República, irrupção do moderno Estado interven-
cionista (Celso Furtado) a partir de uma “ revolução passiva”
(Gramsci) nos anos trinta, que tinha tudo para conformar-se
ao padrão lampedusiano, a transformação do proletariado de
“questão de polícia” numa “questão política” por excelência,
a marcar o Rubicao a partir do qual ingressa-se, definitivamen­
te, no mundo moderno, a sociedade caminhou até o princípio
da década de 90 sob o signo do Iluminismo, da Ilustração, do
Esclarecimento, no duplo sentido dialético da interpretação
franckfurtiana, isto é, no sentido da instauração do princípio
da individuação e de seus limites liberais: os dois longos pe­
ríodos ditatoriais, entre 30/45 e 64/84, ilustram esses limites,
a dificuldade da hegemonia burguesa, sua quase incompatibi­
lidade com a democracia, na hipótese radical de Florestan Fer­
nandes.
A partir da década de 90, a sociedade brasileira passa a ser
presidida pelo signo da Reação, do Conservadorismo, em sen­
tidos sociológico e político fortes. Não se está tratando aqui
da “ cor” política dos políticos e dos partidos; no passado,
freqüentemente, partidos com base rural, como o velho Par­
tido Social-Democrático, não eram conservadores nem rea-
, cionários nos sentidos político e sociológico fortes assinalados,
embora o fossem do ponto de vista do clássico espectro polí­
tico. Mas, do ponto de vista do Iluminismo, ele era, também,
e sua ação prática o confirmava, um partido “ iluminista” , pro­
gressista.
De posse de um mandato, cujo sentido ele falsificou gros­
seiramente (ver Francisco de Oliveira. Collor, a falsificação da
ira. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1992), Collor começou a
inversão para a Reação e o Conservadorismo. Destrutivamen­
te, ele atacou as principais instituições públicas de um precário
“Estado do bem-estar”, avançando impiedosamente no des­
mantelamento do aparelho do Estado para as políticas públi-

225
OS DIREITOS DO ANT1VALOR

cas. O estigma do “ marajá” , que simbolizava a ira e o ressen­


timento popular contra as longas filas do INSS, foi utilizado
então para esfarelar o pouco de políticas públicas que havia e
para atacar as organizações populares, sobretudo as organiza­
ções sindicais que, sem louvações indevidas, estavam no núcleo
da construção de uma esfera pública não-burguesa no Brasil e
do rompimento da sociabilidade da “ casa grande” e do “ ho­
mem cordial” . Collor era apenas o sintoma inicial, ainda bal-
buciante, mal articulado porque apenas saído do forno longo
de hesitações e violentas acomodações de lutas internas à bur­
guesia, da mudança de paradigma do sentido mais geral da
sociabilidade, do Iluminismo para o Conservadorismo,
É com Fernando Henrique Cardoso, entretanto, que a in­
versão se completa, se radicaliza, amadurece e ganha foros de
projeto de hegemonia. Amadurece porque ganha uma lideran­
ça intelectual, cujo sentido não é apenas o da antiga condição
de seu titular, mas o de “ organizador” das articulações; se
radicaliza porque ganha a adesão de um antigo adversário - o
próprio presidente - e com isso se desinibe, mostra suasgriffes,
luta num terreno em que praticamente somente seu adversário
nacional ainda tenta uma alternativa, enquanto no plano in­
ternacional a derrocada do “ socialismo real” desmoraliza as
perspectivas anticapitalistas; ganha foros de projeto de hege­
monia porque unifica praticamente todo o espectro político
que vai do centro à extrema direita, e no plano dos interesses
de classe burgueses unifica os que vão do campo à cidade,
passam pela nova complexidade dada por uma divisão social
do trabalho, em que a própria agricultura já é inteiramente
capitalista, a indústria é 34% do PIB nacional, os serviços já
são mais de 50% do PIB e não são mais serviços de garotos
lavando carros na rua, e a intermediação financeira (bancos e
finanças não-bancárias) alcançou a marca, recorde para o mun­
do capitalista, de uns 13 % do PIB nacional; além disso, o que
não é desimportante, as antigas fraturas regionais, que no pas­
sado deram lugar às revoltas e revoluções, a última das quais
foi a própria Revolução de 30, foram substituídas por uma
burguesia (com todos os seus ramos e frações) unificada na­

226
DOMINANTES E DOMINADOS NA PERSPECTIVA DO MILÊNIO

cionalmente (que inclui, é claro, a burguesia internacional aqui


presente), que é a mesma da Amazônia ao Rio Grande do Sul,
passando pelo Nordeste, num movimento que teve nas em­
presas estatais um dos epicentros de sua aglutinação regional
e nacional. Os-interesses dos dominantes tendem a transfor­
mar-se em “senso comum” para os dominados, e este sempre
foí, na interpretação gramsciana, um dos claros sintomas de
hegemonia, de produção de consenso que substitui a pura vio­
lência como elemento da dominação de classes. É o que se
passa na mitificaçao da estabilidade monetária pós-Plano Real:
as classes populares, que só têm objetivamente a ganhar com
reformas profundas no Brasil, dadas as desigualdades, que são
crescentes, converteram-se nas maiores defensoras da estabi­
lidade, isto é, da não-reforma, devido a uma dolorosa expe­
riência subjetiva de convivência com a inflação.
Quais são os sentidos fortes político-sociológicos do Con­
servadorismo e da Reação como orientadores gerais da socia­
bilidade? Que significa dizer que habitam no imaginário e
portanto caucionam todas as políticas, não políticas e anti-po­
líticas públicas que justamente poderiam tentar, no sentido do
Iluminismo, cumprir a velha promessa da igualdade?
O primeiro sentido é o da substituição do “ princípio da
esperança” pelo “ princípio da realidade” . No discurso políti­
co, essa mudança é claríssima. O “ princípio da esperança” não
era a transferência para o futuro das resoluções dos problemas;
ao contrário, o “ princípio da esperança” queria dizer que todos
os problemas eram históricos, podiam ser resolvidos, que eles
constituíam desafios, ao contrário de constrangimentos. O
“ princípio da realidade” , ao contrário, diz que há limites,
como os 40 milhões de brasileiros que o presidente Fernando
Henrique Cardoso admitiu, em conferência internacional, es­
tarem condenados a permanecer excluídos do novo Brasil
“ globalizado” . O “princípio da realidade”, ao contrário do
realismo de que se autovangloria, é completamente anti-rea­
lista: ele é imediatísta, congela o futuro e o antecipa numa
presentificaçao. Não há, portanto, mais futuro: há somente
um presente, que se não for aproveitado agora, perdeu-se. Do

227
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

ponto de vista sociológico, o “ princípio da realidade” é con­


servador, pois tende a produzir o medo às reformas e mudan­
ças, embora o discurso de hoje no Brasil insista em dizer que
as “ reformas constitucionais” estão se fazendo justamente para
propiciar mudanças.
A aceitação do status quo é uma conseqüência das mais
importantes do “ princípio da realidade” . A intransponibilida-
de da situação social, da estrutura social de classes, aparece
então como mostra de realismo, quando ele é um perigoso
sintoma de conformismo. Numa sociedade como a brasileira,
que ainda não se “ desencantou” inteiramente, no sentido we-
beriano, em que assistimos cotidianamente desde familiares
de vítimas de acidentes de avião até mães do Nordeste que já
perderam 14 dos 18 filhos que tiveram, aceitarem, novamente,
que se cumpriu a vontade de Deus, para além das crenças
religiosas, o que está em jogo é uma mudança importante no
sentido mais geral que presidia a sociedade. Até ontem, até
médicos, uma espécie de substitutos de Deus na terra, já co­
meçavam a ser questionados por seus erros, perfeitamente hu­
manos, aliás; empresas de aviação estavam sendo levadas aos
tribunais por se descuidarem da manutenção de aeronaves; e
justamente no mundo do trabalho, que foi por onde entrou a
cidadania brasileira, de há muito os acidentes de trabalho pas­
saram de uma interpretação de falha humana para a respon­
sabilização do capital e dos empresários pelo recorde de
acidentes do qual o Brasil é detentor dessa iníqua taça desse
maligno campeonato mundial. Com o “ princípio da realidade”
tudo isso tende a voltar a explicações ou transcendentais ou
àquelas que procuram contemporizar apelando para condições
especiais de competitividade da mão-de-obra. Tal como um
conhecido ex-ministro do Planejamento da ditadura militar
foi a Estocolmo, ainda no auge do “ milagre brasileiro” , na
primeira grande reunião mundial sobre meio ambiente, dizer
que o Brasil recebería de braços abertos as indústrias poluido-
ras, pois o essencial era a geração de emprego e renda, e depois
se podería combater a poluição! A devastação da Amazônia e

228
DOMINANTES E DOMINADOS NA PERSPECTIVA DO MILÊNIO

o estado de calamidade das cidades brasileiras não são resul­


tados ocasionais daquele “princípio de realidade” da ditadura.
Correlata à substituição do “ princípio da esperança” pelo
“ princípio da realidade” é a regressão de uma sociedade que,
do plano dos direitos desliza em direção ao contrato mercantil.
Este, que está na base da racionalidade burguesa desde a Re­
volução Francesa - a edição do Código de Napoleão é sua
marca por excelência, ele mesmo uma espécie de regressão da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão - foi gra­
dativamente revelando-se insuficiente até a complexidade da
própria sociedade capitalista; sobretudo a “ inventividade de­
mocrática” (Castoriadis) deslocou o contrato mercantil e co­
locou no seu lugar os direitos, civis, políticos, e por último os
chamados direitos sociais. Contemporaneamente, o avanço
dos direitos já está no plano dos chamados “ direitos difusos”,
isto é, sem sujeitos, que não é a prova da “ implosão do sujeito”
foucaultiana, mas contorna esse falso problema, situa-se para
além dessa discussão, é uma espécie de estatuto transcendental
do direito, que não precisa subjetivar-se. Isto é, não pode mais
ser negado: é uma afirmação, no nível mais alto, das conquistas
humanas, uma espécie de “ cláusula pétrea” .
O Conservadorismo e a Reação como princípios legitima-
dores e estruturadores das novas relações sociais, da sociabi­
lidade e do imaginário, na sociedade brasileira, regressam ao
contrato mercantil como princípio regulador. Destroem direi-
t tos, e não se detêm mesmo diante de uma interpretação tão
consagrada mundialmente como a dos direitos adquiridos. Ela
trabalha ao modo nazi-fascista e Stalinista de permanente pre-
sentificação do passado, isto é, o passado não existe, e portanto
não existe história propriamente. E isto o que significa os sta-
linistas eliminando Trotsky da história russa e já soviética; é
isto o que significava Hitler e Goebbels mandando queimar
livros que nunca deveríam ter sido escritos: mas o tinham sido!
E isto o que significam no Brasil as “reformas constitucionais”
do Presidente Cardoso e de sua maioria parlamentar, quando
desfazem os direitos de funcionários públicos, de trabalhado­
res, de aposentados, quando reabrem as demarcações das re­

229
OS DIREITOS DO ANTIVALOR

servas indígenas. Não há história, eles não viveram; o que


interessa é o presente, os interesses do presente, e para isso o
passado deve ser presentificado. Como a força dessa presen-
tificação é mercantil, o que resta é um simples contrato mer­
cantil: trabalhadores “ fle x ív e is” , desregulam entados,
funcionários públicos à mercê dos poderosos de cada dia, um
aparelho de Estado que deve conformar-se à demanda e oferta,
como uma empresa, terras indígenas e cuja posse deve ser
aberta à contestação, para que se legitimem(P)
No limite, a regressão ao contrato mercantil tende, por
analogia, à mesma regressão do nazi-fascismo. Sendo impos­
sível, dada a complexidade da sociedade, voltar-se ao contrato
mercantil, a violência termina por ser a parteira dessa regres­
são. Assiste-se, então, à violência explícita como moeda de
troca nas relações sociais, até no cotidiano: a violência é o
novo código da sociabilidade. Não à toa, o Instituto de Pes­
quisas Econômicas Aplicadas do Ministério do Planejamento
e Orçamento divulgou, na última reunião anual da Associação
Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP - em outubro de
1996, em Caxambu, Minas Gerais, estudo que constatava a
elevação proporcional dos assassinatos, suicídios e acidentes
de trânsito, que hoje são 70% da mortalidade na faixa etária
da população masculina de 15 a 29 anos, detendo a queda
histórica da taxa naquela faixa. A violência “ fria” e não explí­
cita passa~se no mundo do trabalho: o desemprego aumenta,
apesar da descarada manipulação que o governo e o IBGE
fazem da matéria, os trabalhadores e principalmente as mu­
lheres trabalhadoras “somem” das planilhas e das estatísticas
através da terceirização, da flexibilização, do trabalho em tem­
po parcial e do trabalho a domicílio, agora também categori­
zado como “ flexível” .
Uma sociedade com tais desigualdades presidida por um
consenso conservador, tendo como norte a Reação, nada tem
de bom a esperar. O enigma imediato pode ser decifrado sem
dificuldades: o mais imediato, que é a perspectiva para o pró­
ximo milênio, exige uma reflexão urgente, sobre o padrão
civilizador que conduzirá a sociedade pelo menos na próxima

230
' DOMINANTES E DOMINADOS NA PERSPECTIVA DO MILÊNIO

década. Uma ciência social responsável não se permite ilusões


cínicas a respeito da modernização em curso. Esta tem tudo
para fazer-nos entrar no século X X I sob o signo da desespe­
rança, da violência e da barbárie. O papel da ciência social,
reconhecendo seus próprios limites num século que fetichiza
o poder da ciência, é o de insistir, contra todas as evidências
“ realistas” , sobre as conseqüêndas de mudanças tão drásticas,
sobretudo sobre a tragédia que constitui uma sociedade sem
esperança.

231
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(50050-410) Rua do Príncipe, 482
(13015-002) Rua 8r. de Jaguara, 1 164
Tel.: (081) 423-4100
Tel.: (019) 231-1323
Fax: (081) 423-7575
Fax: (019) 234-9316
CUIABÁ, MT RIO DE JANEIRO, RJ
Atacado e varejo Atacado
(78045-750) Rua Marechal Floriano, 611 - sl. 2 (22280-060) Rua Elvira Machado, 5
Tel. e Fax: (065) 322-8791 Botafogo
Tel.: (021) 224-0864
CURITIBA, PR Fax: (021) 252-6678
Atacado
Varejo
(80060-140) Rua Dr, Faivre, 1271
(20031-201) Rua Senador Dantas, 118-1
Tel.: (041) 264-9112
Tel.: (021) 220-8546
Fax: (041) 264-9695
Fax: (021) 220-6445
Varejo
(80020-000) Rua Voluntários da Pátria, 41 SALVADOR,BA
loja 39 Atacado e varejo
Tel.: (041) 233-1392 (40060-410) Rua Carlos Gòmes, 698-A
Fax: (041) 233-1570 Tel.: (071) 329-54Ó6
FLORIANÓPOLIS, SC Fax: (071) 329-4749
Atacado e varejo
(88015-100) Rua Osmar Cunha, 183 - loja 15 SÃO PAULO, SP
Centro Atacado
Tel. e Fax: (048) 222-4112 (01415-000) Rua Bela Cintra, 967 - 8o andar
Conjunto 81 - Cerqueira César
FORTALEZA, C E Tel.: [01 1) 3159-1236
Atacado e varejo Fax; (011) 257-0452
(60025-100) Rua Major Facundo, 730 Varejo
Tel.: (085) 231-9321 (01006-000) Rua Senador Feijó, 168
Fax: (085) 221-4238 Tel.: (01 1} 605-7144
GOIÂNIA, GO Fax: (011) 607-7948
Atacado e varejo Varejo
(74023-010) Rua 3, ns 291 (01414-000) Rua Haddock Lobo, 360
'Tel.: (062) 225-3077 - Tel.: (011) 256-061 1
Fax: (062) 225-3994 Fax: (011) 258-2841

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