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A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

E OS CONFLITOS SOBRE A TERRA


OU A FUNÇÃO SOCIAL DA TERRA E OS
CONFLITOS SOBRE A PROPRIEDADE

Artigo classificado em 3° lugar na XII Jornada

De Iniciação Científica de Direito da UFPR - 2010

Daniela Pessoa de Goes Calmon


David Bachmann Pinto

106 107
“Do ponto de vista de uma formação econômica superior da sociedade, a propriedade diferentes formas históricas, que inclusive lograram condicionar ou impedir o
privada da terra, por parte de alguns indivíduos, parecerá tão absurda como a proprie-
dade privada de um homem por um outro homem.” acesso de determinadas classes sociais à terra. Ao contrário do postulado pelo

Karl Marx senso comum, a apropriação privada da terra é bastante recente na história
humana e a forma da propriedade capitalista moderna data de apenas alguns
séculos, diferindo-se radicalmente das formas anteriores de apropriação da
1. Considerações iniciais
terra.

Conforme explica Ellen WOOD, nos modos de produção pré-capita-


1.1 A história da terra e do Direito que a cercou listas já divididos em classes, os produtores (camponeses), em geral, tinham

Se devemos sempre ter cautela ao usar, na caracterização dos hábitos a posse dos meios de produção (a terra) e, conseqüentemente, o acesso direto

humanos, a expressão “natural”, já tendo sido ela empregada historicamente aos seus meios de reprodução: a apropriação do trabalho excedente dos produ-

das formas mais perversas e desprovidas de fundamento126, ao menos em uma tores era realizada pelas classes dominantes através de meios extra-econômi-

situação podemos usá-la seguramente: para referir-nos à função natural da cos, como a tributação. Apenas no capitalismo os produtores vêm a perder até

terra de prover alimentos, de prover abundância e de prover vida, e como a a sua posse da terra, através da expropriação128 (forçada diretamente ou pela

história humana se construiu naturalmente em torno dela. Diz MARÉS que competição incitada pelo crescente mercado capitalista), o que permite que os

“as sociedades humanas sempre tiveram, em todas as épocas e formas de or- mesmos sejam forçados a vender a sua força de trabalho e que a apropriação

ganização, especial atenção ao uso e ocupação da terra. A razão é óbvia: todas do trabalho excedente realize-se por meios econômicos (a mais-valia). Nas

as sociedades tiraram dela seu sustento.”127 A terra, para o ser humano, cumpre, origens (agrárias) do capitalismo na Inglaterra, é notável a construção de uma

portanto, uma função social primordial, que possibilita toda a produção e re- nova forma de propriedade, “não apenas privada, mas excludente, literalmente

produção da vida. A relação do homem com a terra, embora natural, assumiu


128
Isso explica em grande parte por que “o capitalismo constitui a primeira sociedade que, mediante
a estrutura e força social, condena classes inteiras da população a lutar quotidianamente pela satisfa-
126 ção das necessidades existenciais puras e simples, desde a época da acumulação primitiva até hoje.” PEREIRA,
Para absolutizar direitos historicamente construídos, para enaltecer a propriedade privada, para man-
ter incólumes os papéis de gênero, para reprimir formas de sexualidade alternativas à forma heteronorma- Potyara A. P., Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos vitais. apud ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso
tiva, enfim: para manter e legitimar uma realidade histórica opressiva, naturalizando-a. à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia, p. 23.
127 129
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra, p. 11 WOOD, Ellen. As origens agrárias do capitalismo, p. 14.

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excluindo outros indivíduos e a comunidade, através da eliminação das regu- e que seu sentido de provedora de alimento seja esquecido em favor de sua
lações das aldeias e das restrições ao uso da terra, pela extinção dos usos e função de reprodutora do capital. O capitalismo maduro e seus juristas de
direitos costumeiros”129. Até então, havia não apenas terras estabelecidas como plantão irão ainda além de Locke ao permitir que o proprietário tenha o direito
comunais, que podiam ser eventualmente usadas por membros da comunida- até de destruir seus bens ou de sequer os usar, especulando ociosamente (ou
de, como havia mesmo uma série de direitos de uso sobre terras privadas.130 contra-produtivamente) sobre o valor deles. A própria terra, cujo valor de uso
é essencial ao sustento humano, passa a ser medida primordialmente pelo seu
Em acompanhamento a essa nova forma histórica de relação com a terra,
valor de troca no mercado capitalista.
constrói-se também a forma jurídica capitalista da propriedade, caracterizada
como um poder absoluto e exclusivo sobre coisa determinada131, e sustentada Fez-se necessária ainda outra construção jurídica para que as cercas –
por teorizações do século XVII e XVIII, em especial, pela teoria de John Lo- físicas e jurídicas – se fechassem por inteiro: a distinção entre a posse (relação
cke. Locke quebra de vez com a noção de propriedade como utilidade para de fato entre o homem e a terra) e a propriedade (relação jurídica abstrata).
configurá-la como direito subjetivo independente, cuja origem é o trabalho ou Segundo BALDEZ, a abstração jurídica da propriedade serviu também para
o melhoramento promovido pelo homem132. MARÉS nota que, embora Locke garantir que as classes dominantes mantivessem seu domínio sobre a terra
defenda que a apropriação esteja limitada à possibilidade de uso, essa regra mesmo à distância (sem a posse), uma vez transferida a estrutura econômica
só se aplica verdadeiramente aos bens corruptíveis – portanto, a acumulação do campo para a cidade. Porém, toma-se o cuidado de garantir que os poderes
ilimitada seria legitimada desde que fosse feita em capital (isto é, desde que típicos da posse (uso, fruição e disponibilidade) sejam atribuídos à proprieda-
se troque os bens não-duráveis por bens duráveis, ou por moeda)133. O pensa- de e sejam identificados como próprios dela134.
mento lockeano apresenta não apenas a legitimação teórica moderna da pro-
Percebe-se que o capitalismo e a propriedade privada típica desse modo
priedade, como fornece a base para que a terra possa ser considera mercadoria
de produção (não por acaso) esquecem a função social que a terra sempre

130
cumpriu - impedindo o seu acesso mesmo àqueles que só pretendem tirar dela
Como o direito ao recolhimento dos restos da colheita em certos períodos do ano.
131
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres em matéria de propriedade. O autor especifica as duas car-
acterísticas básicas do direito subjetivo de propriedade como “a submissão da coisa à utilidade própria do seu
titular (usus, fructus, abusus) e a exclusão de todos os demais sujeitos de direito”. Idem, p. 133. 134
BALDEZ, Miguel. A terra no campo: a questão agrária, p. 97. Ainda,“a propriedade burguesa capitalista deixa [...] de ser
132 uma posse flutuante e instável, uma posse puramente de fato, passível de ser contestada a todo momento [...] transforma-
Ver, nesse sentido, a interessante crítica de Ellen Wood à origem do termo improvement (melhoramento) e o
sentido que ela atribui ao “trabalho” na justificativa lockeana da propriedade. WOOD, Ellen. Op cit., p. 12-15. se numa direito absoluto, estável, que segue a coisa por todo lado...”. PRESSBURGER, Miguel. Terra, Propriedade, Reforma
133 Agrária e Outras Velharias, p. 299.
MARÉS, Carlos Frederico. Op cit., p. 23-26.

110 111
o seu sustento - e qualificam-na primariamente como mercadoria. Se o poder a propriedade privada, individualista e absoluta, sufoca-a, podemos dizer que,
sobre a terra deveria se ligar ao seu cultivo, ao seu uso (e assim já o foi por no século XX, esse modo de produção e seu sistema jurídico, pressionados
milênios), no capitalismo é possível concentrá-la apenas para fins de especu- pelas insurgências dos oprimidos e pela contraproposta socialista, vêem-se
lação, ou é possível produzir somente commodities que nunca chegarão aos forçados a redescobrir a função social da terra através do instituto da “função
pratos dos famintos. social da propriedade”. Já no século XIX expandem-se as teorias e movimen-
tos contestatórios do capitalismo, centrados na organização dos proletários em
Deve se ressaltar, ainda, que o desenvolvimento da apropriação da ter-
luta de sua emancipação e tendo como ápice as tentativas revolucionárias ao
ra no Brasil tem as suas próprias especificidades135, passando por um processo
final da Primeira Guerra Mundial. Os camponeses também não estiveram pa-
ainda mais violento de expulsão, escravização e extermínio dos povos nativos
rados, buscando uma distribuição mais justa da terra: PRESSBURGER aponta
e logrando configurar uma estrutura agrária concentradora e excludente desde
que, apesar de não ser considerada essencialmente uma classe revolucionária,
o início da colonização136, voltada para a satisfação do mercado externo e para
nenhuma revolução à época do imperialismo foi feita sem os camponeses138 .
o enriquecimento de uma poderosa classe latifundiária.
É com o fortalecimento da “ameaça socialista” e da mobilização trabalhadora,
1.2 O Direito redescobre a função social
que o sistema capitalista vê-se forçado a estabelecer uma série de concessões
“O uso ou função da terra e de outros bens sempre existiu na sociedade, mas há
pouco tempo o Direito passou a reconhecê-lo e integrá-lo na chamada Ordem Jurídica. e reformas que permitam a manutenção do modo de produção. Não por aca-
Isto quer dizer, a transformação da terra em propriedade privada foi um processo teórico,
ideológico contrário à realidade, à sociedade e aos interesses das pessoas em geral, dos so, a Constituição alemã de 1919 que contém uma das primeiras referências
grupos humanos e dos povos, porque todos dependem da terra para viver. Exatamente
por isso foram se criando exceções, no início chamadas públicas, hoje coletivas ou difu-
constitucionais à função social é consolidada no momento em que a Alemanha
137
sas, estreitando, ou aproximando da realidade, a idéia da propriedade”.
também enfrenta a maior efervescência revolucionária. Surge, assim, na Euro-
pa uma proposta apaziguadora de Estado de bem-estar social, que promete não
Carlos Frederico Marés mais ignorar as necessidades sociais e preocupar-se com o trabalho, o pleno
emprego, a educação e a distribuição de renda. O surgimento da “função social
Se o capitalismo essencialmente esquece a função social da terra e se

138
PRESSBURGER, Miguel. A reforma inacabada, p. 115. Nesse sentido também, MARÉS aponta que as “insurgências
135
Para conhecer as especificidades brasileiras, vide MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. latino-americanas [...] viriam a ter um forte acento camponês”, em razão da terra ter se submetido ao capital com ainda
136
Embora a propriedade no formato tipicamente capitalista só passe a se consolidar no Brasil a partir da Lei de Terras de 1850. mais força na América Latina em sua situação colonial e pós-colonial, com sua produção agrária voltada para mercados
137
MARÉS, Carlos Frederico. Op cit, p. 48. externos. MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p. 81.

112 113
da propriedade” enquanto instituto jurídico reconhecido insere-se, portanto, as necessidades dos sem-terra e camponeses, embora dentro das contradições
dentro desse movimento de rearranjo capitalista, e contém essa ambiguidade e limites inerentes ao capitalismo: a atenção constitucional à função social,
de ser conquista e concessão, avanço e freio, transformação e manutenção do como bem aponta MARÉS, é uma exceção. Porém, uma exceção com efeitos
status quo. jurídicos e sociais da maior importância, dentre os quais se encontra a própria
mudança no conceito jurídico de propriedade. O novo regime constitucional
No Brasil, o reconhecimento jurídico da função social da propriedade
da propriedade rural e da reforma agrária contribuiu, ainda, para o fortaleci-
e da necessidade de reforma agrária não se dá somente por uma importação de
mento da construção do ramo do Direito Agrário, que tem como referência
tais conceitos. Os trabalhadores e desterrados brasileiros também se insurgem
maior a Constituição, mas que engloba também o Estatuto da Terra, as leis
e influenciam significativamente a conjuntura brasileira – pode-se entender
agrárias (como a Lei 8.629/93) e a vasta matéria infraconstitucional pertinente
a própria instalação da ditadura civil-militar em 1964 como reação sufocan-
à terra. A expansão do ramo evidencia que a terra não pode ser confinada ao
te às demandas por reforma agrária, reivindicada principalmente pelas Ligas
Direito Civil, uma vez que os efeitos da Constituição e da previsão da função
Camponesas nas décadas de 1950 e 1960. Não por acaso, em 1964 é editado
social da propriedade espraiam-se para todo o ordenamento e que se deve
o Estatuto da Terra, que representa um avanço escrito, mas não tem imple-
atentar para a realidade da questão agrária brasileira.
mentação real nas décadas seguintes.139 Com o fim da ditadura, ganham força
novamente os movimentos sociais de luta pela terra, em especial, com a fun- A Constituição Federal de 1988 opera uma transformação da proprie-
dação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984. dade, em razão não apenas de sua funcionalização explícita, mas também da
É nesse contexto, de ascenso das lutas populares e de redemocratização, que é interpretação da propriedade à luz da totalidade dos valores constitucionais,
promulgada a Constituição Federal de 1988, a qual incorpora definitivamente em especial na atenção dada ao meio ambiente, aos índios, ao objetivo fun-
a “função social da propriedade”. É através dessa Constituição que o Direito damental de redução das desigualdades sociais, etc. Não cabe mais dúvida de
brasileiro finalmente acorda para a existência da função social da terra e para que a Constituição tornou-se norte e fundamento do ordenamento jurídico,

139 140
Segundo Miguel BALDEZ, a intenção do Estatuto da Terra era justamente congelar as reivindicações num documento “Em suma: a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de
jurídico que não seria implementado. BALDEZ, Miguel. Op. cit., p. 99. Marés ressalta também a dimensão do Estatuto como supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional,
resposta às pressões dos Estados Unidos para que o Brasil realizasse uma reforma agrária de mercado (útil aos moldes mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema.” BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito con-
capitalistas), sendo, portanto, somente “para americano ver”. MARÉS, Carlos Frederico. Op. cit., p. 108. stitucional contemporâneo. p. 364.

114 115
ao que só pode corresponder realmente uma ressignificação do conteúdo e 2. Três contornos da função social
um redirecionamento da hermenêutica de todo o direito infraconstitucional. da propriedade
Nesse sentido, a concepção de normas constitucionais como meramente pro-
gramáticas não pode ser mais admitida, eis que a Constituição se torna ponto
de partida e limite para as estipulações infraconstitucionais. Estabelece-se, por Se a propriedade, com o advento da Constituição, é efetivamen-

conseguinte, que a interpretação dos institutos jurídicos deve ocorrer à luz da te outra é porque o princípio da função social se aplica imediatamente141,

Constituição, verificando a conformidade daqueles a ela140. como integrante do direito de propriedade. Ademais, pode-se compreender
a função social como um dever fundamental aliado à garantia da proprie-
É em vista das transformações empenhadas pela Constituição Federal
dade no texto constitucional. Em linhas gerais, está-se a falar que a função
de 1988 e das construções do Direito Agrário informadas por ela que descre-
social é indissociável do direito de propriedade segundo o nosso sistema
veremos os novos contornos da função social da propriedade – com ênfase na
constitucional.142A seguir, então, exploraremos três contornos desse prin-
propriedade rural - no ordenamento brasileiro e seus efeitos sobre as ações
cípio: enquanto conteúdo do direito de propriedade, percepção da conver-
reivindicatórias e possessórias.
gência de direitos sobre a terra e como retomada do valor de uso da terra.

2.1 Função social como conteúdo do direito de propriedade

Conforme já se disse, a concepção individualista e absoluta de


propriedade foi abandonada em prol de uma nova forma de legiti-

141
Nesse sentido, há de se concordar com José Afonso da SILVA: “A norma que contém o princípio da função
social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, como o são todos os princípios con-
stitucionais.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 282.
142
Fábio Konder COMPARATO entende a função social como um dever fundamental ligado ao direito de pro-
priedade estipulado na Constituição, de modo que assevera: “Importa não esquecer que todo direito subjetivo
se insere numa relação entre sujeito ativo e sujeito passivo. Quem fala pois em direitos fundamentais está
implicitamente reconhecendo a existência correspectiva de deveres fundamentais. Portanto, se a aplicação
das normas constitucionais sobre direitos humanos independe da mediação do legislador, o mesmo se deve
dizer em relação aos deveres fundamentais.” COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e Deveres Fundamentais em
Matéria de Propriedade, p. 142.

116 117
mação da propriedade privada no direito capitalista: a função social 143. pela função social.
Fruto que também é da pressão política dos trabalhadores144, deve-se tomá-la
Aqui cabe discordar, consequentemente, da posição que afirma a função
como determinante de um novo conteúdo ao direito de propriedade. Ou seja, a
social como referência apenas ao uso ou exercício do direito de propriedade. É
previsão constitucional que assegura a propriedade privada para logo em seguida
que a função social não se destina meramente a coibir abusos do proprietário ou
enunciar que “a propriedade atenderá a sua função social” (arts. 5º, XXII e XXIII),
delimitar a forma de atuação dos poderes do domínio; com a Constituição, ela efe-
sendo que tal sequência se repete no elenco dos princípios orientadores da ordem
tivamente refundou o conteúdo do direito de propriedade. Pode-se argumentar, nessa
econômica (art. 170, II e III), significa que o direito de propriedade sofreu mudan-
mesma linha, que no direito de propriedade reverbera uma ordem de atendimento aos
ça em sua estrutura interna145: a função social consubstancia aquilo que justifica,
valores constitucionais: seria absurdo tomar como legítima a proteção da propriedade
no nosso ordenamento jurídico, a atribuição dos poderes inerentes à proprieda-
que fira o princípio da função social, eis que ele define o conceito de propriedade esti-
de.146. O usar, gozar e dispor só podem ocorrer a partir da autorização concedida
pulado constitucionalmente.

Por isso não se admite que a função social diga respeito tão somente aos limites
143
Eros Roberto GRAU afirma que “a consagração do princípio da função social da propriedade em si, tomada iso- do direito de propriedade.147 Além de impor abstenções (não fazer), a função social
ladamente, pouco significa, ao par de instrumentar a implementação de uma aspiração autenticamente capitalista:
a de preservação da propriedade privada dos bens de produção – à função social está assujeitada porque é privada.” impõe também comportamentos positivos (fazer) “ao detentor do poder que deflui da
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 248.
144 propriedade”: este tem “o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas,
A função social foi alçada aos textos constitucionais como forma de preservação do modo de produção, mas
também como resultado de lutas concretas das classes oprimidas. Assim, não se deve entendê-la como uma
de não o exercer em prejuízo de outrem”, o que revela uma “vinculação inteiramente
evolução do direito em direção a uma dimensão mais solidária, buscando acriticamente sua origem em autores
remotos como Tomás de Aquino (filósofo cristão do século XIII) sem considerar que o direito se constitui a partir
distinta, pois, daquela que lhe é imposta mercê de concreção do poder de polícia.”148
de uma materialidade histórica imbuída de contradições. Por outro lado, é necessário rechaçar tentativa de, dentro
dos limites do direito capitalista, identificar a propriedade com a função social, como o fez León DUGUIT, já que a Para Pietro PERLINGIERI, “o conteúdo da função social assume um papel do tipo
propriedade privada jamais será função social; ela é em seu fundamento anti-social, excludente, conforme se viu
anteriormente no ponto 1.1.
145
promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas
Eros Roberto GRAU esclarece que “o princípio da função social da propriedade, desta sorte, passa a integrar o
conceito jurídico-positivo de propriedade [...], de modo a determinar profundas alterações estruturais em sua in-
terioridade.” GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 247. Já José Afonso da SILVA diz: “Enfim, a função social se manifesta na
própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante
na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito 147
“A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes
Constitucional Positivo, p. 284.
dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade.”
146 SILVA, José Afonso da. Op cit., p.281-282.
Ver SILVA, José Afonso da. Op cit., p. 283. Para TEPEDINO e SCHREIBER, “a funcionalização da propriedade é in-
148
trodução de um critério de valoração da própria titularidade”. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. O Papel do GRAU, Eros Roberto. Op cit., p. 246.
149
Poder Judiciário na Efetivação da Função Social da Propriedade, p. 122. PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil, p. 226.

118 119
interpretações deveriam ser atuadas para garantir e promover os valores sobre as necessidades básicas humanas, que os deveres impostos ao proprietário pela função
os quais se funda o ordenamento.”149 social da propriedade têm como correlato os direitos fundamentais ligados ao acesso à
terra.
Por fim, necessita-se retornar à questão de se abordar a função social como
um dever fundamental correlato do direito de propriedade. A Constituição alterou Se, como expusemos anteriormente, a propriedade capitalista em sua origem
a propriedade de forma a não ser mais viável concebê-la como mera pertinência busca encobertar ou excluir os direitos costumeiros das comunidades sobre a terra,
de bens a um sujeito, como um vínculo monolítico. Do contrário, concebe-se con- a função social da propriedade revela novamente que a terra é um bem sobre o qual
temporaneamente a propriedade como uma situação jurídica complexa, da qual se convergem diversos direitos alheios ao do proprietário, em especial os direitos funda-
extraem direitos, deveres, ônus etc.150 E é nesse aspecto que se evidencia a função mentais de alimentação e de moradia dependentes do acesso à terra. ALFONSIN bem
social como um dever fundamental frente ao conjunto de faculdades do proprietá- traduz esse significado da função social: “à função social da propriedade corresponde,
rio, demonstrando-se, assim, o conteúdo largo da propriedade. então, um interesse difuso dos não proprietários, aí compreendidos, evidentemente, os
necessitados de terra para se alimentar e para morar.”151 Conclui ele: “a satisfação de
2.2 Função social como reconhecimento da convergência de direitos so-
necessidades vitais de alimentação e moradia dos não proprietários integra o conteúdo
bre a terra
dos seus direitos humanos fundamentais à terra, podendo ser exigida de qualquer pro-
Estabelecemos que a propriedade sob o princípio constitucional da função
prietário desse bem, enquanto bem de produção, que deixa de respeitar o dever (fun-
social da propriedade é uma situação complexa constituída por direitos e deveres,
ção) que, por sua vez, integra, também, o conteúdo de seu direito”152. Sérgio Sérvulo
sendo o interesse social componente de seu próprio conteúdo. Cabe agora pergun-
da CUNHA inclusive põe essa relação jurídica entre proprietários e não-proprietários
tar: os deveres fundamentais em matéria de propriedade correspondem, no pólo
nos termos de uma obrigação: “o credor da obrigação concernente ao exercício social
ativo, a que direitos? De que sujeitos? Quando falamos em “social”, falamos num
da propriedade rural é o trabalhador rural necessitado de terra como condição de sua so-
sentido apenas abstrato, ou referimo-nos a sujeitos concretos? Parece-nos evidente,
brevivência.” Isso implica que, em casos concretos, é possível, em referência ao mesmo
pela própria função social cumprida naturalmente pela terra e seu estreito vínculo com

150
“A propriedade afasta-se, deste modo, de sua tradicional feição de direito subjetivo absoluto, ou, ainda, limitado
151
apenas negativamente, para converter-se em uma situação jurídica complexa, que enfeixa poderes, deveres, ônus ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação
e obrigações, e cujo conteúdo passa a depender de interesses extra-proprietários, a serem regulados no âmbito da e à moradia, p. 170.
152
relação jurídica de propriedade.” TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Op cit., p. 123. Idem, p. 185.

120 121
bem, a colisão de direitos patrimoniais e direitos fundamentais, o que impõe ao juiz a 3. A função social da propriedade
ponderação de valores constitucionais. rural e seus efeitos
2.3 Função social como reencontro da propriedade com a posse

Constatamos acima que o capitalismo opera uma distinção jurídica entre a pro- Cabe-nos agora descobrir quais as principais consequências
priedade e a posse, permitindo o domínio sobre a terra à distância – garante-se o direito previstas no ordenamento jurídico brasileiro para o descumprimento

real e os poderes decorrentes dele mesmo sem a posse. Conforme também vimos, da função social da propriedade rural. É evidente, de acordo com
as disposições do art. 184 da Constituição Federal, que o descum-
isso possibilitou que o valor de uso da terra fosse substituído por um mero valor de
primento da função social possibilita a desapropriação por interes-
troca. “Essa é a propriedade capitalista, em que o trinômio “uso, gozo e disposição”
se social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural, mediante
pende fatalmente para a possibilidade de disposição, ou seja, para o caráter de valor de
prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária. Com essa
troca, não para o valor de uso dos bens sob apropriação individual,”153 constata Tarso
previsão, deparamo-nos logo com uma contradição: segundo Carlos
de MELO. Porém, a função social da propriedade rural prevista na Constituição tenta
Frederico MARÉS, a desapropriação mediante indenização em caso
um retorno ao valor de uso, o que pode ser interpretado como uma busca por fazer de descumprimento da função social, ao invés de contestar, reafirma
coincidir a posse e a propriedade. Nesse sentido, a aplicação da função social à posse
154
o conceito liberal de propriedade, uma vez que remunera a proprie-
é explicada pelo posicionamento de Fredie DIDIER JR, que afirma ser a posse “o dade mal-utilizada (premia o descumprimento da lei): a desapro-
instrumento da concretização do dever constitucional de observância da função priação não seria, em sua essência, nada mais do que “um contrato

social da propriedade.”155 público de compra e venda” 156 157 . Mas se a função social integra o

153
próprio conteúdo do direito de propriedade, se obriga a atenção aos
MELO, Tarso de. Direito e ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural, p. 56.
154
Diz MELO, ainda: “De certo modo, o princípio da função social da propriedade rural significa um esforço direitos alheios aos do proprietário que convergem sobre a terra, se
no sentido de fazer coincidir a propriedade a posse, para que, segundo os critérios fixados, as propriedades
rurais sejam efetivamente utilizadas, a fim de impedir o simples exercício da propriedade, que, em regra, é
apenas especulatório.” Idem, p. 56. Poderia-se argumentar, então, que a exigência do “aproveitamento racional
e adequado” (art. 186, CF) pretende que o exercício de propriedade seja exercido também segundo seu valor 156
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra, p. 109.
de uso, mediado pela posse. 157
Note-se tendência em sentido contrário da doutrina que defende que a “justa indenização” prevista cor-
155
DIDIER Jr., Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse, p. 12. responde não ao preço de mercado, mas a uma indenização inferior – a justiça no caso requer sanção.

122 123
a função social deve ter eficácia real (devendo, então, aquele que cerne da questão -, torna-se evidente que a desapropriação não é
a descumpre sofrer sanção), como se explica tal contradição? Eros a única consequência para o descumprimento da função social, e
Grau também nota esse tratamento ambíguo e comenta que, partindo talvez sequer seja a principal. A função social integra, sim, o con-
da premissa que é o cumprimento da função social que legitima o teúdo do direito de propriedade e tem plena eficácia. Isso implica,
direito, seu descumprimento deveria implicar no simples perdimento no nosso ordenamento, em caso de descumprimento da função so-
do bem, e se a “propriedade” que não cumpre função social sequer cial, não na eliminação do direito de propriedade por inteiro, mas
propriedade é, a “desapropriação” com indenização prevista seria na modificação substantiva de sua eficácia, que se traduz na perda
injustificada e geraria pagamento ilícito e enriquecimento sem cau- das proteções que não lhe sejam constitucionalmente previstas, em
sa – porém, tal conclusão não se coaduna com a Constituição e é, especial, na perda da proteção possessória 161. Conforme explica Luiz
segundo ele, insustentável 158. Edson FACHIN, “o descumprimento da função social da propriedade
não permite dar-lhe garantias outras que a Constituição não lhe de-
A explicação para essa (aparente) contradição é dupla. Pri-
fere. [...] Isto posto, é defensável concluir que é incongruente com
meiramente, impõe-se reconhecer que a previsão de desapropriação
a norma constitucional e a mens legis deferir proteção possessória
com indenização, conforme o art. 184, foi uma escolha conserva-
ao titular de domínio cuja propriedade não cumpre integralmente
dora da Constituinte de 1987-1988, ligada à articulação realizada
sua função social.” 162 De fato, seria inconcebível conferir tratamento
na ocasião pela UDR e do “pacto” feito com ela pelo “Centrão” 159.
igual à propriedade que cumpre e à que não cumpre sua função so-
A Constituição brasileira poderia (e deveria) ter sido muito mais
cial (afinal, qualquer propriedade pode ser desapropriada 163 mediante
audaciosa (e muito mais sensível à questão agrária brasileira), se
tivesse esclarecido que a “propriedade” que não cumpre função so-
cial, propriedade não é. 160 Em segundo lugar – e aqui chegamos ao 161
A propriedade que não cumpre função social não perde toda proteção. Parece-nos que ela perde todas as
proteções, exceto uma: a previsão constitucionalmente explícita, de ser desapropriada dentro dos moldes do
art. 184, mediante indenização. Está para além do escopo desse artigo investigar se o proprietário cujo bem
158
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 314. descumpre função social pode vendê-lo: deixamos a questão para outros ponderarem.
159 162
Ver a descrição do tratamento do tema da reforma agrária na Constituinte em GOMES DA SILVA, José. O FACHIN, Luiz Edson. A Justiça dos Conflitos no Brasil, p. 285.
Buraco Negro. 163
A desapropriação para fins de reforma agrária difere-se da desapropriação genérica principalmente pela
160
Nesse sentido, as Constituições Mexicana, Boliviana e Colombiana foram muito mais avançadas, segundo sua finalidade pré-estabelecida e pela indenização em títulos da dívida agrária, mas não são essencialmente
se lê em MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. distintas.

124 125
indenização – esta não é uma diferença substancial). função social é a perda da proteção possessória 166. E esta sanção é
aplicada por razões claras: “ao não cumprir essa condição imposta
Expliquemo-no de outro modo. Como já dito, a propriedade
pela lei [a função social], não pode o detentor de um título invocar
sob a Constituição de 1988 apresenta-se como uma situação jurídica
a mesma lei para proteger-se de quem quer fazer daquela terra o que
complexa, constituída não apenas de direitos e poderes, mas também
a lei determina que se faça.” 167 Em outros termos, “o proprietário da
deveres, ônus e obrigações. Diz Pietro PERLINGIERI que “colocar
terra cujo uso não cumpre a função social não está protegido pelo
em evidência as obrigações, os ônus, os vínculos, os limites, etc.,
Direito, não pode utilizar-se dos institutos jurídicos de proteção,
é importante na medida em que, se de tal situação tem-se uma con-
como as ações judiciais possessórias e reivindicatórias, para reaver
cepção unitária, a inadimplência de um deles se reflete sobre toda a
a terra de quem as use, mais ainda se quem as usa está fazendo cum-
situação.” 164 A conseqüência do descumprimento do dever social do
prir a função social, isto é, está agindo conforme a lei.” 168 Encaixa-se
proprietário reflete sobre toda a situação da propriedade, removen-
nessa abordagem, especialmente, as ocupações massivas de terras
do-lhe as garantias normais, em particular a garantia de exclusão
empreendidas pelos movimentos sociais de luta pela terra. A função
das pretensões possessórias de outrem, conforme aponta COMPA-
social da propriedade clama, pois, por uma “nova proteção posses-
RATO 165. O descumprimento do dever acarreta a perda de garantias
sória” .
169
dentro dessa situação jurídica complexa.
A questão, em síntese, é simples: o proprietário cujo imóvel não
Um último argumento deve ser apresentado nesse sentido. De
cumpre a função social não tem direito à proteção possessória, mais
acordo com MARÉS, a desapropriação para fins de reforma agrária,
especificamente, perde o “direito de reavê-la [a coisa] do poder de
comumente chamada de “desapropriação-sanção”, não é verdadei-
quem quer que injustamente a possua ou detenha” 170(art. 1228 do
ramente uma sanção, e sim uma política pública de implementação
Código Civil), independente do instrumento que utilize para tentar
da reforma agrária. A verdadeira sanção para o descumprimento da

164 169
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, p. 224. A expressão faz referência à doutrina de Sérgio Sérvulo da CUNHA.
165 170
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, p.145. Até porque, como afirmamos, quem ocupa uma terra que não cumpre função social não a possui ou detém
166 171
MARÉS, Carlos Frederico. Desapropriação sanção por descumprimento da função social? injustamente, mas está, ao contrário, fazendo cumprir a lei.
167 171
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. p. 117. A ação reivindicatória é uma ação petitória, assim como as ações de imissão na posse.

126 127
reavê-la. Se o Processo Civil é instrumento a serviço do direito ma- que tenha ocorrido incômodo ao exercício da posse, a turbação.
terial consoante pensamento assente, isso significa que essa conse- A terceira contém caráter inibitório e tem por fundamento evitar
qüência imposta pela função social repercute inevitavelmente sobre atos de agressão à posse, concretizáveis em turbação ou esbu-
as ações reivindicatórias e possessórias. lho. 173

3.1 Implicações da função social da propriedade rural no Destarte, o art. 927 do Código de Processo Civil trata daqui-
Processo Civil lo que incumbe ao autor provar nas ações de manutenção e reintegra-
ção de posse. 174 Diz Laércio Alexandre BECKER que: “em primeiro
Não obstante serem as ações possessórias o freqüente instru-
lugar, é preciso lembrar que, desde a Constituição de 1988, há no
mento processual utilizado pelos proprietários, há também a possi-
art. 927 do CPC um ‘inciso V’ implícito, ou seja, que além da
bilidade de se propor ação reivindicatória 171. Nesta última se discute
prova da posse e de sua perda, além do esbulho e de sua data, cabe
o domínio 172, de modo que fica mais fácil a constatação da neces-
ao autor - e não ao réu, como bem frisa o caput - o ônus de provar
sidade de se apresentar prova do cumprimento da função social:
o cumprimento da função social.” 175
Ou seja, em primeiro lugar,
tutelar a propriedade sem atentar para a função social é algo que
fica claro que ônus probatório recai sobre o autor; em segundo lugar,
não se coaduna com a Constituição.
este só pode ter sua posse protegida quando provar o cumprimento
As ações possessórias, por sua conta, são três: a reintegração
de posse, a manutenção de posse e o interdito proibitório. A pri-
meira consiste na ação que corresponde à situação em que a posse 175
E prossegue o autor: “Isso é fruto da doutrina de no mínimo sete doutrinadores brasileiros: Nilson Marques,

foi perdida por ato de agressão, o esbulho. Já a segunda requer Sérgio Sérvulo da Cunha, Gustavo Tepedino, Jacques Távora Alfonsin, Rui Portanova, Fernando Antônio
Nogueira Galvão da Rocha e Antonio Jurandy Porto Rosa.” BECKER, L. A.; SILVA SANTOS, E. L.. Elementos para
uma teoria crítica do processo, p. 119. Inclua-se Fredie DIDIER JR, que aduz: “Deste modo, pode-se afirmar que a
Constituição de 1988 criou um novo pressuposto para a obtenção da proteção processual possessória: a prova
172 do cumprimento da função social. Assim, o art. 927 do CPC, que enumera os pressupostos para a concessão
“[...] e por isso as alegações de defesa são ampliadas.” MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz.
Procedimentos Especiais, p. 90. da proteção possessória, deve ser aplicado como se ali houvesse um novo inciso (o inciso V), que se reputa um
173 pressuposto implícito, decorrente do modelo constitucional de proteção da propriedade. A correta interpreta-
Idem, p. 97 e 109.
174 ção dos dispositivos constitucionais leva à reconstrução do sistema de tutela processual da posse, que passa a
“Segundo descreve o art. 927 do CPC, na ação de manutenção e de reintegração de posse, deve o autor
alegar e provar: (a) a existência de sua posse; (b) a violação a essa posse, pela turbação ou pelo esbulho; (c) a ser iluminado pela exigência de observância da função social da propriedade.” DIDIER JR, Fredie. A função social
data do ato violador (que terá importância para a aferição do rito a ser empregado); (d) o prosseguimento da da propriedade e a tutela processual da posse, p. 14. Ver também FOWLER, Marcos Bittencourt; PASSOS, Cynthia
posse, embora turbada, no caso de manutenção, ou a perda da posse, na medida reintegra tória.” MARINONI, Regina L.. O Ministério Público e o direito à terra, p. 241-244.
176
Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos especiais, p. 103. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos especiais, p. 109.

128 129
da função social. Confirma-se o diagnóstico dos parágrafos antece- se discute domínio, apenas posse. Já apontamos que a perda do di-
dentes. Necessário fazer referência também ao que preceitua o art. reito de reaver a coisa em caso de descumprimento da função social
928 do Código de Processo Civil: neste encontramos a disposição de independe do instrumento processual utilizado. Mas é possível en-
que o deferimento de mandado liminar, sem citar o réu, nos casos dereçar a questão de outras formas. Há autores que afirmam que, em
de reintegração e manutenção de posse, depende da apresentação geral, a proteção da posse visa sobretudo à proteção da propriedade.
de petição inicial devidamente instruída. Ora, petição devidamente Teria-se que a garantia legal que tem o possuidor de ser mantido na
instruída é aquele que contém em seu bojo a prova do cumprimento posse no caso de turbação e ser restituído no caso de esbulho (CC
da função social, pois quem lesa a ordem constitucional não pode art. 1.210) embasaria as ações possessórias, de modo que o termo
invocar a lei para ter sua posse salvaguardada. Quanto ao interdito possuidor aí inscrito haveria de ser entendido a partir da visão de
proibitório, “aplicam-se [...] as normas que tratam das demais ações Jhering de que a proteção possessória é a guarda avançada da pro-
possessórias” 176, conforme o art. 933 do CPC. priedade. Nessa linha, o possuidor é definido pelo art. 1196 do Có-
digo Civil como “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou
No entanto, tudo o que foi dito em relação a esses dispositi-
não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.” 177
De fato, his-
vos do CPC depende de um pressuposto: a possibilidade de se exigir
toricamente, o objetivo de proteger a propriedade permeou a cons-
a função social nas ações possessórias, nas quais teoricamente não
trução da proteção possessória, conforme aponta BALDEZ. 178 São
177
Fredie DIDIER JR assevera que: “a tutela jurídica da posse (enérgica e bastante minuciosa) justifica-se como
os proprietários de terra, efetivamente, os maiores desfrutadores da
um mecanismo de tutelar, ainda que mediatamente, o titular do domínio. Protege-se o possuidor, pois ele,
porquanto exerça poderes inerentes ao domínio, muito provavelmente é o titular do direito sobre a coisa.”
proteção possessória, sendo que, na maior parte das vezes, as ações
DIDIER JR, Fredie. Op. cit., p. 11.
178
possessórias acabam por serem apresentadas com base tão somente
“Durante o século XIX, com inspiração formal nos princípios do Direito Romano (modo de produção an-
tigo), dando um salto sobre o feudalismo, construiu-se o sistema de proteção da posse, o que significa proteção
à propriedade. Foi no fim desse século, na Alemanha, que um importante jurista burguês, Ihering, explicitou
que a posse era o indicativo da propriedade cuja proteção deveria dar-se com presteza, e eficiência. Com 178
BECKER, Laércio Alexandre. A repercussão da função social da propriedade no Processo Civil. apud DIDIER JR,
o aperfeiçoamento dos interditos possessórios e a sua caracterização como procedimento especial de caráter Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse, p. 15.
administrativo (embora no campo judicial) caracterizado pela previsão de medida liminar, cercou-se a posse 179
A Constituição delineia um quadro jurídico para a relação dos sujeitos com a terra. No mínimo do que se
de modo absoluto da proteção exigida pela propriedade. Na proteção da posse, veja-se bem, sem cogitar-se
possa falar, a Constituição não tolera que quem na terra trabalhe o faça sem as garantias das leis trabalhistas,
da propriedade, o que na verdade se protege é a propriedade mesma. Perguntado a Ihering se se protegendo
nem que essa relação com a terra seja a de destruição (com lesão das leis ambientais), nem que dessa relação
a posse não se estaria, eventualmente, protegendo o ladrão, Ihering respondeu que melhor seria proteger a
resulte frutos a menos do que a sociedade espera e do que a terra possibilita, nem que não haja nenhuma
posse do ladrão do que correr o risco de perder-se a propriedade.” BALDEZ, Miguel Lancelotti. A terra no campo:
relação, deixando-se a terra a relento, como sórdida especulação individualista.
a questão agrária, p. 97.
130 131
no título dominical, contrariando o art. 927 do CPC e confirmando 3.2 Poder Judiciário e outras tutelas possíveis
certa aderência ao art. 1.196 do Código Civil. Laércio Alexandre
Apesar dessa eficácia da função social da propriedade,
BECKER, então, trata de estabelecer que “na ação possessória, o
que obriga o juiz a avaliar o cumprimento dela nas ações reivindi-
descumprimento da função social desqualificaria a posse; e tanto nas
catórias e possessórias, é fato notório que o comportar generalizado
possessórias quanto nas petitórias, para a prova da propriedade não
do Poder Judiciário tem sido ainda a rápida (por vezes, fulminan-
bastaria o título, sendo também necessário provar o cumprimento da
te) concessão de liminares em favor do proprietário, muitas vezes
função social.” 179
sequer levando em conta os princípios constitucionais. 181 Segundo
Para finalizar o tema, diremos que, se nas ações possessó- ALFONSIN, é comum os juízes até reconhecerem em suas sentenças
rias acaba-se por discutir domínio, a necessidade de cumprimento a gravidade da miséria brasileira, a necessidade da reforma agrária,
da função social é, por todo o visto, inquestionável. Por outro lado, mas logo em seguida escusarem-se, atribuírem a responsabilidade
mesmo se admitirmos que só se discute posse, a exigência é também de resolução desses problemas exclusivamente aos outros Poderes 182.
inquestionável, tendo em vista o caráter amplo da função social, que Não é possível, sob a égide da Constituição Federal de 1988, conti-
atinge, em última análise, a relação dos sujeitos com o bem terra. nuar a permitir que o Poder Judiciário se esquive da responsabilida-
Se, como afirma MARÉS, a função social faz referência em verdade de, compartilhada pelos três Poderes, de zelar pela função social da
ao bem terra e a sua utilização 180, há de se reconhecer que o cumpri- propriedade e de implementar a reforma agrária, enfim, de tutelar os
mento da função social atravessa também a posse e tem implicações direitos fundamentais ligados à terra. E tem havido julgados nesse
também sobre ela. As ações possessórias, afinal, não podem consti- sentido, construindo-se aos poucos uma jurisprudência que garante
tuir atalho para escapar da incidência da função social anunciada na a eficácia plena do princípio da função social da propriedade. Nes-
Constituição. se sentido, é notável a decisão da ação de reintegração de posse nº

181
02100885509/RS da Comarca de Passo Fundo: o juiz Luiz Christia-
Pensamos que já deixamos claro que o juiz não pode se ater à mera aplicação mecânica dos institutos do
direito infraconstitucional, sendo-lhe obrigado em seu julgamento a garantir a eficácia plena da Constituição.
Nesse sentido: “a função social é também critério de intepretação da disciplina proprietária para o juiz e para os
operadores jurídicos.” PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil, p. 216.
182
ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação
e à moradia, p. 239-242. 183
Ver esse despacho na Revista de Direito Agrário nº 18.

132 133
no Enger Aires indeferiu liminar, afirmando que “apesar de terem E é preciso ir mais além: vários julgados também já reconhecem
os autores juntado comprovante de terem adquirido a área em ques- que os conflitos de terra envolvem ampla gama de direitos fundamen-
tão há longo tempo e afirmarem sua produtividade, deixaram de de- tais, frequentemente ocorrendo a colisão entre os direitos patrimoniais
monstrar a adequação legal do exercício do direito de propriedade, do autor e os direitos à moradia, à alimentação, à vida digna, à reforma
através do atendimento de sua função social. [...] Para alguém exigir agrária, entre outros, dos não-proprietários. 184 Ainda, a função social da
a tutela judicial de proteção à sua posse ou propriedade, necessita propriedade rural e os princípios constitucionais com um todo deman-
fazer prova adequada de que esteja usando ou gozando desse bem dam não apenas a “defesa” do réu que tem seus direitos fundamentais
secundum beneficium societatis [...]”. 183 violados por quem quer removê-lo da terra que ocupou, mas também a
garantia de proteção ativa, concreta desses direitos fundamentais.
Também podemos encontrar esse raciocínio na ementa da de-
cisão unânime do Tribunal de Alçada de Minas Gerais no agravo de É simples: da Constituição (art. 5º, XXXV) extrai-se que a todo
instrumento 468384-9: direito corresponde uma ação. O direito infraconstitucional tem apre-
sentado, até hoje, uma vasta gama de opções para o proprietário defen-

“Agravo de instrumento com pedido efetivo ativo – Reintegração liminar da posse dene- der sua propriedade ou posse – mas quais opções de ação oferece aos
gada em 1º grau. Grande propriedade invadida pelo MST – Não cumprimento da função
social da propriedade – Imóvel improdutivo – Descumprimento dos requisitos elencados
que têm seus direitos fundamentais violados? Assim, Laércio Alexandre
no art. 186 da Cf/88 – Não satisfação dos elementos econômico, ambiental e social
BECKER enuncia: “quando falamos que a função social deve também
necessários ao atendimento da função social – Requisito para proteção possessória – im-
provimento. Não havendo o agravante comprovado tratar-se seu imóvel de propriedade repercutir sobre o pólo ativo da relação processual, queremos dizer que
produtiva, tem-se que dito imóvel não cumpre sua função social na forma prevista no
art. 186 da CF/88. o processo civil brasileiro deveria pôr à disposição dos jurisdicionados
Com a interpretação sistemática de seu texto constitucional, a função social da proprie- ações, procedimentos especiais, o que for necessário, para conferir aos
dade passa a ser requisito para a proteção possessória, de forma que, apenas se o imóvel
atender aos requisitos previstos no art. 186 da CF/88, é que deve ter ele proteção na interessados o direito à terra, o direito à moradia, o direito à refor-
forma dos arts. 1210 do NCC e 927 do CPC.”
ma agrária.” 185 Não há dúvida: novas tutelas processuais precisam ser
pensadas em leitura constitucional do Processo Civil.
184
Nesse sentido, vide agravo de instrumento 698360402, da 19ª Câmara Cível do TJRGS, de 1998. Consta
185
em sua ementa: “Prevalência dos direitos fundamentais das 600 famílias acampadas em detrimento do direito BECKER, Laércio Alexandre. Elementos para uma teoria crítica do processo, p. 121. Nas páginas seguintes, o
puramente patrimonial de uma empresa.” autor arrola o que já foi ensaiado nesse sentido.

134 135
4. Para além das cercas estruturais da função social da propriedade, o qual não podemos deixar de

e para além do Direito observar: a sua falta de eficácia real, ou efetividade186. Apontamos já que
o Poder Judiciário frequentemente ignora esse princípio, havendo
praticamente uma presunção em favor do proprietário que ingressa
4.1 Limites estruturais do princípio da função social com ações possessórias. Também o Poder Legislativo e Executivo

da propriedade negam-se a dar efetividade à Constituição, não tendo havido no país


uma reforma agrária e mantendo-se uma política permissiva quanto
Expusemos ao início desse artigo que a função social da proprie-
à concentração de terras e à permanência dos latifúndios 187. A partir
dade representa o despertar do Direito capitalista para a importância
dessas constatações, é mais do que razoável questionar-se até que
da terra para a vida humana – ou, podemos especificar, para a vida das
ponto a previsão da função social pode fazer a propriedade con-
classes oprimidas cujo acesso a ela é restringido ou impedido tipica-
trariar a sua função capitalista ou pode opor-se às determinantes
mente no capitalismo. Tal despertar, porém, como também assinala-
econômicas. Voltaremos a esse ponto ao final, após perquirir quais
mos, não se dá por uma “evolução” ou “sensibilização” do Direito, e
determinantes e quais atores estão envolvidos nesse processo.
sim como reação direta às contestações anticapitalistas e às mobilizações
das classes oprimidas, como tática de permitir reformas para impedir revo- Outras críticas podem ser feitas à qualificação dada em nos-

luções. Assim, a função social da propriedade cumpre não apenas a função so ordenamento à função social da propriedade rural: em particular,

de legitimação do capitalismo como um todo, mas cumpre uma função bem


187
Brasil está em último lugar no índice comparativo de reforma agrária da América Latina: entre 1985 e 2002,
específica de legitimação ideológica: esconde-se os objetivos reais das classes 7,6% das terras cultiváveis foram distribuídas entre 3,4% dos camponeses. Em comparação, na Bolívia, em 2,4
anos, 30% das terras foram distribuídas entre 52,7% dos camponeses e em Cuba, 81,2% das terras foram dis-
dominantes e o funcionamento estrutural do capitalismo atrás de promessas tribuídas entre 75% dos camponeses em 4,6 anos. Mesmo com os ditos avanços do governo Lula, a reforma
ao total beneficiou apenas 5% da força de trabalho agrícola e distribuiu 11,6% das terras cultiváveis. CARTER,
belas, que são garantidas por escrito – e, como nota Tarso de MELO, muitas Miguel. Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil, p. 50-51, 61. Quando falamos em reforma
agrária, referimo-nos à uma política de desconcentração de terras que altera as relações de poder no campo, e
vezes são garantidas somente por escrito. Aqui entramos num dos problemas não uma mera política de assentamentos. As provas de que esse tipo de reforma agrária não ocorreu minima-
mente estão no Censo Agropecuário do IBGE de 2006, que constata que o GINI rural (índice de concentração
de terras) do país aumentou de 1985 a 2006. Também segundo o Censo, menos de 1% dos estabelecimentos
186 rurais têm área acima de 1000 hectares e concentram cerca de 44% da terra. Ver COCA, Estevan Leopoldo de
Quando falamos em eficácia anteriormente, referimo-nos à eficácia jurídica, da qual, sem dúvida, a função
social é dotada plenamente. Mas o Direito e a realidade, ou melhor, o discurso jurídico e a realidade, como Freiras; FERNANDES, Bernardo Mançano. Uma discussão sobre o conceito de reforma agrária: teoria, institu-
sabemos, raramente coincidem. ições e políticas de governo para as conceituações de reforma agrária.

136 137
pela escolha de não integrar a esse princípio um limite à proprieda- Bernardo Mançano FERNANDES prefere explicar essa contra-
de da terra, um “módulo máximo”. “Até quando a não previsão de dição não em termos de luta de classes (uma vez que, segundo ele, o
um máximo permitirá a sobrevivência dos mínimos, conhecido que campesinato não é uma classe propriamente inserida no capitalismo),
é o apetite expansionista ilimitado do poder econômico aplicado à mas em termos de disputa pela territorialização. Diz ele: “No Brasil,
terra?” 188 indaga acertadamente ALFONSIN. Não há como atentar existem hoje 360 milhões de hectares de terras agriculturáveis, mas
à função social da terra quando se permite concentração ilimitada somente em torno de 100 milhões estão produzindo. Portanto, existem
dela. Ainda, há de se reconhecer que as ações possessórias e reivin- 260 milhões de hectares que podem ser utilizados. Assim sendo, os
dicatórias, quando aplicadas frente a ocupações de terras por movi- sem-terra constituem, antes de mais nada, um contingente populacio-
mentos sociais, representam uma individualização, uma juridicização nal organizado disposto a recriar a condição camponesa ao ocupar os
de um conflito social de extensão muito maior. A tradução de conflitos 260 milhões de hectares de terras ‘que não estão produzindo’, mas que
sociais em categorias jurídicas permite a sua neutralização, e o enco- são, em grande parte, potencialmente produtivas para a agricultura.” 190
bertamento da extensão real do conflito 189. Esses 260 milhões, apesar de improdutivos, “produzem” lucros ou ex-
pectativas de lucros para seus proprietários, através da especulação e da
4.2 A extensão do conflito e a conjuntura
atual do campo brasileiro reserva de valor.

O conflitos jurídicos que têm, em um pólo, grandes proprietá- Apesar de não configurarem as classes centrais do capitalismo,

rios de terras e em outro, sem-terra, posseiros ou camponeses em geral, pode-se colocar a relação entre latifúndio e camponeses em termos de

são a juridicização de contradições estruturais entre o latifúndio e o


campesinato (ou agricultores familiares) e sem-terra. 190
FERNANDES, Bernardo Mançano. Das ocupações de terra à reforma agrária: territorialização, renda capital-
izada e sobretrabalho, p. 87.
191
PRESSBURGER, Miguel. A reforma inacabada, p. 115. O autor, conforme já se assinalou, ressalta também que
188
ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimenta- apesar de o campesinato não ser considerado uma classe revolucionária, teve um papel significativo em toda
ção e à moradia, p. 122. revolução importante do século XX.
189
“Quando os fatos são tomados pela ótica viciada das categorias jurídicas e, assim, interpretados segundo “Desde o século XVI, com o sistema das sesmarias, passando pela concessão de terras devolutas instituídas em
dogmas consagrados, em que se cristalizam as ideologias dominantes, o Direito encobre a problemática real 1850, sempre houve no Brasil uma política de impedimento aos pobres, camponeses e indígenas de viverem
em que se inserem os problemas tratados separadamente. Assim, ao menos provisoriamente, evita-se que se em paz na terra. Uma permanente e nem sempre surda luta entre o latifúndio e os camponeses cada vez mais
revelem as dimensões sociais dos conflitos, para impedir um avanço que inviabilize o sistema como um todo, despossuídos esteve latente no Brasil desde 1500, e foi severamente agravada nos últimos 150 anos.” MARÉS,
na sua relação com a sociedade.” MELO, Tarso de. Direito e ideologia, p. 29. Carlos Frederico. A função social da terra, p. 103-104.

138 139
classe (ainda mais, por sua inserção dentro da totalidade das relações). garantiram que o capital pudesse ingressar com força no campo, resolven-
Segundo PRESSBURGER, a luta pela terra está inexoravelmente ligada do-se, em grande escala as possíveis contradições195 . Assim, o capital e o
a uma questão de classe e de etnia: os que lutam pela terra são “clas- latifúndio não só se unem, como se fundem no projeto do agronegócio.196
ses sociais cuja sobrevivência, inclusive física, depende da posse e do
uso da terra.” 191 Na história brasileira, sistematicamente perseguiu-se
A atual conjuntura brasileira é, de fato, de preocupante fortalecimento do
aqueles que tentaram ocupar a terra de forma não voltada à produção
agronegócio, cuja produção, segundo DELGADO, apareceu como “solução”
agroexportadora 192. Em contraposição, as eventuais contradições en-
nos momentos de crise de liquidez internacional (notadamente, 1983-1993,
tre latifúndio e capital 193 não se apresentaram da maneira clássica no
2000-2005), fornecendo um saldo positivo na balança comercial. Os cam-
Brasil: explica PRESSBURGER que houve uma certa junção entre essas
poneses, que em geral não adotam a estratégia tipicamente capitalista197,
classes em nosso país, no qual possibilitou-se que o capitalista se tornasse
são excluídos desse processo – e, politicamente, muitos dos movimentos
proprietário da terra e o proprietário se tornasse empresário rural194 . BAL-
campesinos e sem-terra apresentam não a vontade de serem incluídos, mas re-
DEZ aponta que os incentivos e benefícios tributários da ditadura militar
jeitam frontalmente o projeto do agronegócio e da agricultura capitalista, que
produz para o lucro e não para a vida198. Apresenta-se, assim, uma resistência:
192
“Desde o século XVI, com o sistema das sesmarias, passando pela concessão de terras devolutas instituí- organizações como o MST, em escala nacional, e a Via Campesina, em escala
das em 1850, sempre houve no Brasil uma política de impedimento aos pobres, camponeses e indígenas de
viverem em paz na terra. Uma permanente e nem sempre surda luta entre o latifúndio e os camponeses cada
internacional, contestam não apenas a concentração da terra, o não-cumpri-
vez mais despossuídos esteve latente no Brasil desde 1500, e foi severamente agravada nos últimos 150 anos.”
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra, p. 103-104.
mento da função social, mas todo o projeto agrário capitalista, que necessa-
193
As quais buscou-se resolver nos países centrais através da reforma agrária de mercado, a qual, usando-se riamente exclui e explora. Por fim, voltamos a indagar sobre
da desapropriação mediante indenização, transforma terra improdutiva em produtiva e ainda libera dinheiro
(público) para novos negócios, conforme é explicado em MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. a possibilidade de o Direito – e da função social da propriedade – con-
194
PRESSBURGER, Miguel. Op. cit., p. 118.
195
BALDEZ, Miguel. A terra no campo: a questão agrária, p. 100. Note-se que esse foi também o período da
“modernização conservadora”, no qual se muda a base técnica da agricultura e aumenta-se a quantidade de 197
Embora lhes sejam forçados, cada vez mais, os “pacotes tecnológicos” que os colocam nas mãos das em-
insumos e maquinário, na chamada “Revolução Verde”. Quanto a isso: DELGADO, Guilherme Costa. A questão
presas de sementes, insumos, etc.
agrária e o agronegócio no Brasil, p. 85-88.
198
196 Não por acaso é a agricultura camponesa que produz cerca de 70% dos alimentos que os brasileiros con-
“Observe-se que agronegócio na acepção brasileira no termo é uma associação do grande capital agroin-
somem, apesar de ocupar apenas 24,3% da área dos estabelecimentos agropecuários brasileiros, segundo o
dustrial com a grande propriedade fundiária. Essa associação realiza uma aliança estratégica com o capital
Censo Agropecuário do IBGE de 2006.
financeiro, perseguindo o lucro e a renda da terra, sob patrocínio de políticas do Estado.” DELGADO, Guilherme
199
Costa. A questão agrária e o agronegócio no Brasil, p. 93-94. MELO, Tarso de. Direito e ideologia, p. 36.

140 141
seguir se opor a tal conjuntura. Tarso de MELO afirma que “decisões REFERÊNCIAS
jurídicas que se sustentam são aquelas a que correspondem fatores reais
do poder” 199 . Apresentamos neste trabalho conclusões jurídicas – por
ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direi-
óbvio, não neutras – de que o princípio da função social da proprieda-
tos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sérgio
de impõe àqueles que não a cumprem que não tenham sua propriedade
Antonio Fabris, 2003.
protegida, frente aos que querem usar a terra para fazer cumprir sua
função social. A efetividade dessas conclusões depende não apenas dos ALFONSIN, Jacques Távora. A terra como objeto de colisão entre o
esforços de juristas, mas da correlação de forças, isto é, da capacidade direito patrimonial e os direitos humanos fundamentais. Estudo crítico de
de organização e mobilização das classes oprimidas. Chega-se, não um acórdão paradigmático. In: STROZAKE, Juvelino José (org.). A questão
estranhamente, à conclusão de que os mesmos atores que ocupam as agrária e a Justiça. São Paulo: RT, 2000.
terras, que querem produzir, se alimentar e viver, são os que podem
ALVES SIQUEIRA, José do Carmo. Reforma agrária: promessa cons-
dar, em última instância, a efetividade ao Direito 200
que lhes permita
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Artigo classificado em 4° lugar na XII Jornada

De Iniciação Científica de Direito da UFPR - 2010

Eduardo Borges Araújo*


Evandro de Nadai Sutil**
*Acadêmico do 4º ano diurno da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná
**Acadêmico do 4º ano diurno da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná

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