Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
A hospitalidade na arquitetura
The hospitality in the architecture
Fernando Freitas Fuão
Publicado em:
- ROCHA, Eduardo, BARROS, Carolina; KULHOFF, Ivan; (ORGS.). ENTRE-CRUZAMENTOS,
ensaios sobre a cidade na contemporaneidade. Peloas. Editora da UFPEL. 2013
The paper presents the theme of hospitality as the 'other place' the interiority of
architecture, the place that gives rise to human relations and founding cities. The theme of
hospitality is proposed from the ideas of Jacques Derrida and Emmanuel Levinas, where
the logic of the 'other' opens the prospect of a new look at the issue of space, the city and
architecture, demonstrating the ability to host and hostility these posts created within the
city. The hospitality is structure from the relationship with the host and the guest and here
is compared to the movement of collage and its meetings, as presented in "The collage as
loving trajectory", where the figures of the 'hold' and 'wandering' plays analogous roles to
the guest and host in the process of reception. The question of preserving differences
hospitality unites their differences, for it makes use of binomials as familiarity and
unfamiliarity, the visible and not visible, hidden and exposed as analytical elements of the
city and the house.
ARQUITETURA E HOSPITALIDADE
Tudo está errantemente esperando.
O sentido da hospitalidade, como nos propõe Derrida, é o que funda as cidades, relaciona-
se não só à hospedagem e ao hotel, mas também ao acolhimento, a relação entre hóspede e
hospedeiro, e tudo que possa advir disso. A Hospitalidade fala enfim de uma primeira
morada, e também de uma última. As meditações de Derrida sobre a hospitalidade e seus
correlatos são sinais endereçados sempre a essa questão do lugar, convidando o sujeito a
reconhecer que ele é, primeiramente, e antes de nada, um hóspede.
A Hospitalidade, como se refere Anne Dufourmantelle, no pequeno livro Da hospitalidade,
escrito junto com Derrida: “(...) é esse dar lugar ao lugar, a hospitalidade nos faz entender a
questão do lugar como sendo fundamental fundadora e impensada da história da nossa
cultura.”
Curiosamente, a hospitalidade coloca o tema do espaço não no espaço, mas no indivíduo,
como se ele próprio portasse a hospitalidade, o próprio espaço. Como se o sentido não
estivesse no espaço ou na arquitetura, mas sim nas próprias pessoas..
Já por outro lado, é quase uma impossibilidade pensar a hospitalidade sem um lugar
específico, um tópico. A interioridade, assim como a hospitalidade, é sempre construída por
uma relação de abertura, a qual é feita de fora, por aquele que chega para o outro, de fora
para dentro, para constituir assim o dentro, como muitas vezes parece atestar a construção
da arquitetura. Sempre parece que construímos o edifício por fora constituindo o dentro,
mesmo muitas vezes construindo de dentro para fora. Isso porque o nosso conceito de
interioridade se dá a partir do fechamento do corpo, esse fechamento sempre é a pele, a
exterioridade.
A interioridade lateja na borda do outro. Se existe uma interioridade, uma interioridade das
coisas, ela só pode estar mesmo fora, fora de si, quase ali no outro, só pode ser ar, neuma.
Uma ansiedade do ar que mora no lar. Todo passo é um acontecimento, cada passo um
evento, uma relação que se trava com a natureza, a ideia de um espaço geográfico limitado
acaba desmerecendo a vida, também estamos e somos sempre, quando andamos no
território do outro. A natureza, a vida é sempre o território do outro. O ato de exteriorização
é uma permanência no território do outro, na interioridade do outro.
Em frances hôte designa tanto a pessoa que oferece quanto aquela que recebe hospedagem.
Hospedeira e hóspede ao mesmo tempo.
Dentro e fora ao mesmo tempo, nem dentro nem fora em nenhum tempo.
A questão da hospitalidade aqui não é tratada desde um ponto de vista romântico ou
turístico, mas de sim de uma afetividade perdida no tempo, abandonada, fundadora do
espaço, da arquitetura e da cidade; e que se desvela e se reinventa hoje também no espaço
da informática, no mundo internet.
Em palavras mais diretas, é a hospitalidade que funda a cidade e a rede de comunicação,
tanto de direito quanto absoluta: a internet nos abre esse campo ao denunciar a figura do
hoster, do host, do hóspede, do hospedeiro. Hospitalidade não só da hotelaria, dessa
hospitalidade exploratória da indústria do turismo, como prática comercial, como
mercadoria, mas de uma hospitalidade atrelada ao cuidar, ao amar. Hospitalidade tal como
pensou Derrida, uma hospitalidade incondicional, da necessidade de uma política da
hospitalidade dos países com relação aos estrangeiros e exilados.
Hospitalidade na radicalidade da palavra está a antiga hospitália romana, o lugar onde se
cuidava os seres. Hospitalares, o lugar onde se trata do outro, morada dos acolhimentos.
A hospitalidade é o lugar que faz repensar a arquitetura, a casa, o abrigo. O lugar que dá
lugar ao lugar. O sentido sem lugar que dá sentido ao sentido. O lugar onde deveria se
receber, cuidar do outro sem perguntar seu nome, seu “id“, ou mesmo de receber aqueles
que não têm papel na sociedade. No entanto, a cada dia mais, nossos lugares em vez de se
abrirem para os outros, de se prepararem para receber os outros, serem hospitaleiros,
fecham-se em campos, em verdadeiros campos de reclusão, os quais necessitam de senhas,
logins, e ids e minados de câmeras para entrar. Há câmeras por todos os lados.
Esse 'outro' já não é mais aquele outro, que outrora batia na porta, como no mito grego,
mas sim um 'outro outro', agora, impossibilitado de até mesmo bater na porta. Nossas
cidades, nossos bairros e casas se tornaram mais hostis. Os muros, as paredes, as grades, as
senhas, as câmeras de controle, os seguranças, as identificações, os monitores, as senhas
são os elementos arquitetônicos que promovem essa hostilidade, esse apartheid.
As cidades com suas ruas e seus labirintos de anonimatos perderam a confiança, o pacto
que se estabelecia para a convivência, para o sentido da hospitalidade se foi, está se
perdendo. Talvez, devemos crer que esse pacto que funda a convivência, a cidade seus
segredos e leis, deve ser muito mais forte que os parricídios cometidos, a fim de que ela
possa continuar. Já não é só esse pacto que funda a hospitalidade que deve ser re-acolhido,
mas sim, em simultaneidade, hospitalizar a cidade como um todo. Tratá-la, cuidá-la,
devolver aquilo que lhe foi retirado pela violência, saná-la. Não colocar dentro de um
hospital, mas hospitalizar abrindo, recebendo.
Derrida, que pensava o tema da hospitalidade justamente a partir dos estrangeiros, e da
xenofobia comentava que a lei da hospitalidade, a lei formal que governa o conceito geral de
hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal. Ela parece ditar que a hospitalidade
absoluta rompe com a lei da hospitalidade como direito ou dever, com o pacto da
hospitalidade. Pergunta Derrida: "A hospitalidade deveria passar pela interrogação de
quem chega, ? Do como te chamas? Diga-me teu nome, como devo chamar-te? Ou será que
a hospitalidade começa pela acolhida inquestionável, num duplo apagamento, o
apagamento da questão e do nome?"
O tema da hospitalidade, também de certa forma, coloca-nos ao centro do debate do
conceito de 'campo’ proposto por Agamben em Homo sacer de tudo o que está fora desse
campo e não tem acolhida, como a pobreza periférica; desses outros que estão de fora e não
podem entrar e nunca entrarão esses fora do fora. Dessas multidões empobrecidas pelo
medo da vida, que se fecha em seus habitáculos, ou condomínios.
Cada vez mais se faz emergente estudar o tema das aberturas, dos recortes, do
esburacamento e abertura ao mundo, do acolhimento e da hospitalidade no espaço. Não é
possível imaginar uma arquitetura sem portas, é preciso a abertura. Não existe casa ou
interioridade sem porta. Nesse sentido, estão as intervenções de Gordon Matta-Clark sobre
as pequenas casas familiares americanas em seus projetos como o Splitting e Bingo.
Essa abertura pode ser entendida em muitos sentidos, o primeiro sentido refere-se a
concerner a abertura de um objeto a todos os outros. Já outro, é aquele da desnudação da
pele exposta, a vulnerabilidade de uma pele oferecida, a ferida exposta, também a carícia,
ou algo como uma cidade declarada aberta à aproximação do inimigo.
Hospitalidade quer dizer alteridade. Esse ‘outro’ pode ser recebido tanto como hóspede
(hôte), ou como inimigo (hostis), pois em sua origem está o temor ao diferente, ao estranho.
A própria história atesta que hospitalidade e hostilidade caminham juntas, tanto que
Derrida criou a expressão ‘hostipitalidade’.
Como nos explica a filósofa Dirce Solis:
A hospitalidade, combina então, hostis + pets (potis, potes, potencia). Configura-se, então
uma questão de poder. Assim, há o hospedeiro, aquele que exerce o poder e recebe o
estranho, o dono da casa, digamos. E há o hóspede, aquele que é recebido. Mas ao mesmo
tempo, há uma disposição originária, há uma quebra da simetria, e essa expropriação
originária acaba por fazer do sujeito um anfitrião, mas também o hóspede se converte em
refém. Lembremo-nos, por exemplo, das alcovas das casas de fazenda dos barões de café no
Brasil, onde os viajantes, bem recebidos durante o dia, pois eram negociantes, eram
convidados a se recolher durante a noite às mesmas, que sem janelas e com grades de ferro
como porta, protegiam a família e a propriedade de um suposto intruso. (SOLIS, 2005,
p:72-73)
Derrida tem uma passagem que explora de uma maneira bastante curiosa a questão da
hospedagem, da proibição e da censura na internet, do que nos chega, do que vem sobre
nós pelo e-mail, pela internet.
Entre os inúmeros signos de mutação que acompanham o desenvolvimento do e-mail e da
internet, isto é, tudo aquilo de que essas palavras são indícios, Derrida privilegia primeiro
aqueles que transformaram de cabo a rabo a estrutura do espaço chamado público. Derrida
ironicamente pergunta como a semântica de Sófocles, por exemplo, teria resistido num
espaço público estruturado pelo telefone, fax, e-mail e internet, ou por todos esses outros
dispositivos proféticos de televisão e cegueira telefônica? (DERRIDA, 2003, p:45)
Hoje, uma reflexão sobre a hospitalidade pressupõe, entre outras coisas, a possibilidade de
uma delimitação rigorosa das soleiras ou fronteiras: entre o familiar e o não-familiar, entre
o estrangeiro e o não-estrangeiro, entre o dentro e o fora, entre o público e o privado, entre
a familiaridade e não familiaridade.
Ora, o que acontece quando um Estado vigia as comunicações privadas sob o pretexto de
uma segurança pública? A partir do momento que isso acontece, diz Derrida, em que uma
autoridade pública ou um Estado se vê no direito de controlar e vigiar, interditar as trocas
que se dão no espaço, todo elemento da hospitalidade se encontra perturbado.
Diz ele que:
Minha casa (chez moi) antes era constituída pelo campo de acesso de minha linha
telefônica, na qual podia dar minha amizade, meu socorro, meu amor a quem quero e,
portanto, convidar quem eu queira que venha me visitar quando bem entenda, primeiro
nesse dialogo com minhas orelhas, e também não importa a que horas do dia ou da noite,
seja ele vizinho ou um amigo desconhecido. (DERRIDA, 2003, p:45)
Todas essas possibilidades são sentidas como ameaças que pesam sobre o território
“próprio do próprio“, no mais profundo do profundo, ainda que seja ‘na pele’, parodiando
Paul Valeri.
Agora, é a rua dentro de casa, e a cidade esvaziada de qualquer sentido, porque já é uma
cidade fantasma, espectral, há espectros de violência por todos os lados, sufocando o
sentido da beleza pública, da felicidade. Da ‘felizcidade‘.
Por todo lado, quanto mais esse ‘em casa’, o dentro de casa, o interior, ou melhor, quanto
mais essa interioridade é violada por esses dispositivos representacionais de controle,
grades, senhas, o medo de estar sendo vigiado, só se pode prever uma reação privatizante,
reacionária, seja etnocêntrica, nacionalista, xenofóbica. A perversão dessa lei é que pode
tornar virtualmente xenófobo justamente quem protege sua própria hospitalidade, o
próprio lar, justamente o mesmo lar, o mesmo fogo dos antigos deuses Lares que tornou
possível essa hospitalidade.
O desenvolvimento atual das tecnologias da informática reestruturou o espaço de tal
maneira que aquilo que constituía um espaço de propriedade controlada e circunscrito
como a própria casa, ficou devassada, aberta perfurada pela tecnológica Windons. A
novidade não é a janela, mas o Windows, pois para constituir o espaço habitável de uma
casa e um lar é preciso também uma abertura, uma porta, uma janela, é preciso dar
passagem ao estrangeiro, de preferência pela porta da frente.
Não existe casa ou interioridade sem porta, fica difícil acontecer a hospitalidade sem
abertura. Há alguns anos, o filósofo Vilém Flusser já fazia uma distinção brilhante entre a
porta e a janela com relação ao espaço público. Ele dizia que:
A porta é o elemento de comunicação, participação direta entre o público e o privado,
enquanto pela janela observamos a vida pública sem sofrer as intempéries. A janela nos
torna observadores, mas não atores. Talvez fosse por isso que os revolucionários e as
crianças adoravam atirar pedras nas vidraças. (FLUSER, 1984, p:106).
Para oferecer hospitalidade, pergunta Derrida, é preciso, realmente, partir da existência
segura de uma morada ou apenas a partir do deslocamento do sem abrigo, do sem-teto? O
que se pode abrir para a autêntica hospitalidade? Talvez, só aquele que suporta a
experiência da privação da casa pode oferecer a hospitalidade. O problema é que ao perder
a morada muitas vezes se perde também o sentimento de hospitalidade.
Solis, a respeito da hospitalidade na arquitetura, diz:
Poderíamos empreender um estudo minucioso de arquitetura clássica, por exemplo, dos
gregos até nossos dias, para encontrar em quase todas as formas arquitetônicas e estilos
uma pequena idéia do que seja de hospitalidade. Para Platão, Khôra ,como espaço aberto, é
quase sinônimo de hospitalidade. A arquitetura se dispõe a propiciar a hospitalidade, onde
o conforto seria a medida da hospitalidade, porém ‘o conforto de morar está muito mais no
cérebro do que nas costas’. (SOLIS, 2005, p:122)
Os mitos da hospitalidade existentes na antiguidade referem-se basicamente ao amor em
suas diversas formas, ou à morte como o lugar último da hospitalidade. A hospitalidade é
um conceito diretamente enraizado ao ser e à circunstância (dasein). É mais uma questão
de abertura, vazão, espera, do que de território ou cercamento.
A hospitalidade só pode ser oferecida por alguém, segundo um aqui e agora, numa situação
específica. Não é possível pensar a hospitalidade só em sua relação com o lugar, que a
funda, como fundação. Mais que isso, não é possível pensar a hospitalidade sem o
hospedeiro e hóspede, sem essa pessoa que espera a chegada do outro, a figura da espera, e
desse outro que não vê a hora de chegar, às vezes desesperadamente, a figura do errante.
Curioso, pois é essa mesma situação que funda a relação amorosa, ou a estética da A collage
como trajetória amorosa, como veremos mais adiante.
É como se o lugar que estava em questão na hospitalidade fosse um lugar que não
pertencesse originalmente nem àquele que hospeda, nem ao convidado, mas ao gesto pelo
qual um oferece acolhida ao outro, sobretudo, se este outro está sem morada. É como se
realizasse dentro, no interior da figura da espera, como se realizasse também no interior da
figura do errante, do estranho, no um no outro, em nenhum, simultaneamente. Entretanto,
há formas, geometrias que propiciam o acolhimento, enquanto outras são formas que
afastam, distanciam. De outra maneira, refletir sobre a hospitalidade também é denunciar
as formas sutis pelas quais a ética da hospitalidade acaba por servir a outros fins que não
são os seus, como os comerciais por exemplo.
Os elementos arquitetônicos da hospitalidade estão atrelados de alguma forma aos lugares
de espera e de encontros: a porta aberta e entreaberta, a marquise, o alpendre, os baixios de
viadutos e pontes, as arcadas, as galerias, as paredes, os bancos, as ruas, as praças; de um
modo geral a maioria dos espaços públicos, onde o acolhimento é mais expressivo do que a
própria casa.
A errância / o hóspede
Errância, diz Barthes: "é a capacidade humana de errar, vagar em busca do corpo amado,
da figura amada."
É a eterna errância das figuras o que possibilita toda a sorte de encontros
O Encontro tal qual o acolhimento da lei da hospitalidade se manifesta quando há uma
reciprocidade entre o anfitrião, que está “dentro” na interioridade de algum espaço, na
interioridade de seu ser; e desse outro 'lá fora', propenso a chegar. Hospitalidade é o lugar
sem lugar que recebe o hóspede que vem de outro lugar, fora de tudo que conheço, do fora
de minha circunscrição - sabe lá Deus de onde.
O forasteiro é sempre aquele outro que está de normalmente de 'passo', de passagem, ele é
o errante sempre pronto para partir a qualquer momento, mas também propenso a
permanecer independentemente da vontade do hospedeiro. É como se, o lugar em questão
na hospitalidade fosse um lugar que não pertencesse originalmente nem aquele que
hospeda, nem ao convidado, mas ao gesto pelo qual um oferece acolhida ao outro mesmo e,
sobretudo se este outro não tem onde ficar.
Ele é o incomodo que faltava no cômodo da casa do ser, a peça em questão, como se
mostrou a filosofia até Levinas. O incomodo na arquitetura também, aquilo que não estava
previsto e que desestrutura todo o positivismo da arquitetura. É o outro que desestrutura o
espaço planejado, que tira as minhas coisas do lugar rearranjando meu mundo de uma
maneira distinta. Ele diminui, acrescenta, transfigura transtorna-me, transforma. Bernard
Tschumi em Architecture and disjunction nos mostra as possibilidades do event, do
acontecimento não previsto na geração do espaço.
É o encontro dos dois, dos três, dos quatro, do multitudo que faz a transfiguração, faz o
lugar, o novo lugar. Assim, numa simultaneidade impossível, encontro e lugar acontece, um
propiciando o outro. É 'como se' o encontro acontecesse no interior da figura da espera, na
casa do hóspede, mas aporeticamente, também, 'como se' realizasse na figura do errante, no
transbordamento do um no outro, no dentro do fora, no fora do dentro. O um no outro, em
nenhum, simultaneamente. Abertura que abre colando, sentido que se faz sentido, abrindo-
se na outra figura.
Vivo no outro, vivo na loucura de não habitar em mim mesmo. O revolucionário, o
realmente revolucionário político é o amor, como já diziam os surrealistas. O amor é uma
estranha doença, uma loucura, Um estar fora de si que joga no mais dentro do dentro de
nós mesmos, saindo de si. Uma vez absorto no outro é quase impossível seu descolamento,
sua decoupage. Sua retirada se parece mais uma extração de um órgão, uma descarnação,
uma decollage..
Diz Derrida: "O hospedeiro toma e acolhe, mas sem tomá-los. Assim se entra do interior: o
senhor do lugar está em seu lugar, mas ele também acaba de entrar em casa graças ao
hóspede - que vem de fora. Ele, então, 'entra de dentro' como se viesse de fora."
Ele entra em casa, entra no jogo do sentido, se faz existência graças a seu hóspede..
Uma figura mora na outra, 'na mora da' outra.
(In) possível realizar a hospitalidade sem a presença da hóspede, desse que está por vir. (In)
possível pensar a hospitalidade sem a figura da espera, o hospedeiro, sem essa pessoa que
espera - às vezes desesperadamente - a chegada do outro, dos outros.
Impossível pensar a arquitetura, a cidade sem as relações entre um e outro, entre
hospitalidade- insospitalidade, entre espera e errância. O que nos mostra, tanto Derrida
como Levinas é que somos hóspedes e hospedeiros ao mesmo tempo sem lugar nesta via.
A casa do fim do mundo está no meu lado, na minha frente. Nas minhas costas.
Essa casa que não é minha, nem dela, é a nossa paixão.
Essa casa que não é só eu, mas eu transbordado no pequeno outro.
Assim descobri o significado do @luguel.
Sem lugar. (A)lugar.
Alugar-se é estar desocupado, vazio, disponível ao outro.
De outro modo: a hospitalidade pode ser compreendida como um lugar que não requer um
“lugar” propriamente dito.
O outro é o lugar. O errante, o errado, seu corpo e seu tempo. Agora, é o tempo do outro que
assalta a modernidade. O outro tempo, outrora. 'Outra-hora' não quer dizer passado, mas
simplesmente outro tempo, que nada mais é que o tempo do outro, que chega para
desestabilizar a lógica da geração. Travar o movimento, acionar o estagnado.
O errante é outro tipo de ocupação, de temporalidade, um desvio na origem do uso do um
espaço e do tempo, já programaticamente definido. O errante é o que provoca o
acontecimento, modifica o espaço perturbando. Quando o errante chega, quando se
encosta, desdobra o sentido da coisa em outra coisa, transborda. Enlouquece e vira do tudo
do avesso.
Todo errante, assim como todo hospedeiro é uma figura dupla, tem frente e verso. Verso e
reverso, perverso. Duas entidades distintas, ou mais, ocupando o mesmo espaço, mas em
superfícies opostas, como num anel de Moebius, ou como na unheimlich freudiana, no qual
o estranho já nasce dentro de nós.
A questão de quem chega e de quem sai é relativa à destituição. A Figura da espera também
pode destituir a figura do hóspede, pouco a pouco, na medida em que permanece em sua
casa. Subestimar a duplicidade e cumplicidade nesse jogo entre a espera e a errância é cair
no acolhimento romântico.
Não é só o errante o enlouquecido, mas também a figura da espera esta sempre
enlouquecida, desesperada, fixada no tempo e no espaço, imobilizada em sua loucura.
Quando ele abraça mesmo o outro, quando ele abraça a loucura sorrindo, quando a loucura
abraça a loucura, quando se abre recebendo, quando se rasga desdobrando-se, quando vira
abraço: aí então se cria o lugar.
A hospitalidade assim como collage quer unir tudo, mas simultaneamente também vai
recortando tudo para poder viver, tal qual eros e tanatos. A cola reúne, a tesoura separa.
Um separa unindo, o outro cola separando.
O hóspede, às vezes, mora no outro mundo, é um espectro.
Do errante e do estrangeiro não se pode esperar muito, muito menos uma retribuição de
uma hospedagem num lugar longínquo, que provavelmente nunca iremos, e tampouco
saberemos se é acolhedor ou não. O fim do mundo do eu é a partida do outro, o abandono
provocado pelo retirante.
Já a errância configura-se como uma busca obsessiva do encontro, mas sem metas, sem um
destino fixo. Vago em busco de minha felicidade, vago pela cidade, vago no outro, vago em
mim mesmo. Disse Barthes: “Hoje ainda sigo sem esperar nada, dessa sede de errar (vagar)
ao encontro de tudo, assegurando-me de que me mantenha em misteriosa comunicação
com os demais seres disponíveis, como se estivéssemos por ser chamado de repente a
reunir-nos.”
Há uma interessante passagem em O errante de Gibran Khalil Gibran que ilustra o papel do
errante e da errância:
Certa feita travei contato com outro andarilho das estradas. Era também um tanto louco e
falou-me dessa forma: “Sou um errante. Muito frequentemente, sinto como se eu
caminhasse numa terra de pigmeus. Como minha cabeça flutua a dezenas de metros do
chão, ela cria pensamentos mais altos e mais livres.Em verdade, não caminho entre os
homens, mas acima deles, e tudo o que podem ver de mim são meus rastros em seus
campos abertos. Muitas vezes escuto-os discutir e divergir sobre a forma e o tamanho de
minhas pegadas. Alguns falam: são pegadas de um mamute que errava pela terra nos
tempos antigos. “Já outros afirmam: de jeito nenhum: são marcas deixadas por meteoros
vindos de estrelas longínquas, mas você meu amigo, sabe muito bem que elas são apenas
rastros de um errante.” ( GIBRAN, 2003, p.111)
A espera/ o hospedeiro
Tudo está errantemente esperando.
Se a errância existe é porque algo ou alguém espera, porque alguma coisa se foi, foi
separada, fragmentada. O mundo todo é espera. A natureza é espera, aguarda e nos guarda.
Não existe errância sem espera, assim como não há espera sem a esperança da chegada de
algo ou alguém. Ambos compartilham no ponto comum da chegada.
A cenografia da espera é o lugar onde se constrói a narrativa dos encontros, da
hospitalidade. A espera: figura inicial, receptáculo das demais, corpo anfitrião que hospeda
os demais corpos. Hospedeira. Ela é uma figura de encantamento, de imobilização. Ela tal
como o espaço, não faz nada, só aguarda e guarda.
O hospedeiro, a figura da espera é território, campo, receptáculo onde as figuras errantes,
os fragmentos isolados desfilam em busca de uma conjugação poética, de uma casa, um
acasalamento.
A espera é uma querência, um ser, um objeto, um espaço, um lugar. Ser da espera e lugares
de espera se co-fundem. No momento em que espero alguém ou algo, torno esse lugar onde
estou num lugar de espera, num possível lugar de encontro. Por outro lado, no momento
em que preparo um espaço para espera, torno as pessoas que ali chegam seres de uma
espera, como a sala de espera de um consultório médico.
O hospedeiro é ser esperando, encantamento, imobilização, acomodação. Ele não faz nada,
só aguarda, guarda e res-guarda. Fica a espera do outro até se desesperar por sua chegada,
correndo o risco de abandonar sua própria condição, e partir como um errante
desesperado.
A espera é sempre um delírio.
Diz Derrida, numa das mais belas passagens Da hospitalidade:
O dono da casa espera ansioso sobre a soleira de sua casa o estrangeiro que ele verá
despontar no horizonte como um libertador. E do mais longe que ele vir chegando, o senhor
se apressará em gritar-lhe: 'entre rápido, porque tenho medo de minha felicidade. Entre
rápido, rápido, quer dizer, sem demora e sem esperar. O desejo é a espera daquele que não
espera, diz Derrida, O desejo mede o tempo desde sua anulação no movimento de entrada
do estrangeiro, o hospede esperado não é apenas qualquer um a quem se diz 'venha', mas
'entre', entre sem esperar, faça uma parada entre nós sem esperar, venha para dentro,
venha a mim, não apenas para mim,mas em mim: ocupa-me, toma lugar em mim, o que
também significa tome o meu lugar. (DERRIDA, 2003, p:107)
Imaginar que o ser da espera é um eterno esperante, é subestimar a lógica do encontro
amoroso, esperar que o hospedeiro seja um eterno anfitrião é subestimar a lógica da
hospitalidade. A espera também tem desejo de errar. E, é justamente esse desejo de errar,
que faz com que o hospedeiro se torne hóspede do hóspede. O errante cansado de tanto
errar, quer tornar-se, ainda que momentaneamente, o hospedeiro do hospedeiro.
Em outras palavras Derrida explicou:
É como se o senhor estivesse, enquanto senhor, prisioneiro de seu lugar e de seu poder, de
sua ipseidade, de sua subjetividade. É o mesmo convidador, hospedeiro que se torna refém
-que sempre o terá sido, na verdade. O hóspede, o refém convidado torna-se convidador do
convidador, o senhor do hospedeiro O hospedeiro torna-se hóspede do hóspede. O hóspede
torna-se hospedeiro do hospedeiro. (DERRIDA,2003, p:109)
Ele recebe a hospitalidade que ele oferece na sua própria casa, ele a recebe de sua própria
casa - que no fundo não lhe pertence. O hospedeiro como host é um guest. A habitação se
abre a ela mesma, a sua 'essência', como 'terra de asilo'. O que acolhe é sobretudo acolhido
em-si. Aquele que convida é convidado por seu convidado. Aquele que recebe é recebido, ele
recebe a hospitalidade naquilo que considera como sua própria casa, em sua própria terra.
(DERRIDA, 1997, p:58)
No entanto, pode acontecer a reversão perversa. O que deveria ser errância, de certa forma,
se inverte obrigando o outro a esperar também, através do seducco, da sedução, o errante
paralisa, congela, glassifica, louco apaixonado se imobiliza, e vira espera da espera. Ele não
faz nada, só aguarda, res-guarda. Fica à espera na espera, fica na espera da outra espera, até
se desesperar -correndo o risco de não suportar e abandonar sua própria condição- e partir
como um errante.
Assim, retratou Barthes com o pequeno conto do mandarim: "Um mandarim se apaixonou
por uma cortesã. Serei tua, disse ela, depois que passares cem noites me esperando sentado
sem um banco, no meu jardim, sob a minha janela. Mas na nonagésima nona noite, o
mandarim se levanta, pega seu banco e se vai."
O jogo de inversões e aberturas de significados, diz Derrida, pode ser formalizadas sim, e
segundo uma antinomia de aparência bastante simples. A simultaneidade, ela é o 'ao
mesmo tempo' duas hipóteses incompatíveis: "Não se pode ao mesmo tempo tomar e não
tomar, estar e não estar aqui, entrar quando se está no interior. A impossibilidade desse 'ao
mesmo tempo' é ao mesmo tempo o que chega. Um tempo e cada tempo."
Resta perguntar se não estaríamos similarmente na questão da amorosidade, da amância, e
da collage, quando uma figura adquire nova significação em simultaneidade a sua anterior,
sem perder seu sentido original, sua singularidade? Não estaríamos na ilogicidade do
tempo na collage, já que não existe um só tempo, mas uma simultaneidade de tempos
distintos, intrínsecos a cada imagem, e o tempo de cada figura é sempre assegurado, ainda
mesmo que submetida a um novo tempo do outro? Não estaríamos, enfim, no discurso do
congelamento, da flor, do entame, do enxerto, da cola, proposto por Derrida em Glas?
Na arquitetura, experimentamos, muitas vezes, esses câmbios de sentidos, como por
exemplo, uma igreja medieval se transformar numa discoteca, um túnel num shopping, um
cinema numa igreja. Toda impossibilidade que um sentido apresenta contém a
possibilidade impossível de acontecer como novo sentido.
Na espera, criam-se as fantasias e também os fantasmas, do guest se passa facilmente ao
ghost. O êxito do encontro depende da presença e da articulação de dois ingredientes
ativos: 'o elemento de familiaridade', o qual é necessário para iniciar o processo e colocar as
coisas em movimento, e o ingrediente ativo do novo, do estranho, do diferente, do 'não
familiar.' Em termos freudianos: heimilich, unheimilich.
No entanto, essa espera só é familiaridade porque houve trabalho secular de domesticação
sobre o corpo da errância, sobre a loucura. Essa familiaridade, característica do okus, dos
lares, é também o lugar secreto e do oculto do culto, que faz nos recordar dos perigos da
hospitalidade. Dos perigos de estar submetido, na casa do anfitrião, não só às suas regras de
hospitalidade, mas os horrores impensáveis que estão ocultos, e pululam na imaginação do
hóspede.
O medo cruza a relação. É o gesto, por assim dizer, que diferencia a hospitalidade da
hostilidade. Nunca haverá hospitalidade ou acolhimento se não houver entrega mutua, uma
co-fiança, um depósito silencioso e secreto como bem observou Derrida. A errância é um
desvio não um erro, todo erro é um desvio daquilo que deveria ser, mas não foi. Não há
nada de errado na errância.
Tudo espera. Não é só o hospedeiro que espera, o errante também espera, numa simetria
quase equivalente, ambos esperam a chegada em algum lugar. Hóspede e hospedeiro
esperam cada um a seu modo. Tudo espera e não espera esperando. Esperar se torna um
passatempo milenar da humanidade.
Na espera, parece que existe sempre uma crença na iminência do excepcional, que possa
revertê-la. Ernst Bloch, no Princípio Esperança, disse que: “Sem a espera nada nos poderia
causar horror, nem estremecer-nos com um susto. A espera provoca, sem dúvida,
aturdimento, deslumbramento, susto, entanto que shock”.
O efeito negativo da espera é o desespero e a angústia.
O efeito positivo é a esperança. Pere Salabert, em seu livro A mirada en el vacío descreve
sobre as relações existentes entre a surpresa e a espera, como elementos que permitem a
criação poética:
A surpresa nunca pode surgir pela simples inexistência de um sentido. Surge, isto sim,
frente à aparição de um sentido inesperado. A existência desse sentido que surge de
repente, é o que parece invalidar a possibilidade do sentido primeiro que esperávamos.
Assim, decepcionar a espera é colocar a possibilidade de um sentido razoável como
horizonte, e surpreendê-la logo com outro sentido que não encaixa nos limites da razão que
justificava o fato de esperar. (SALABERT, 1990, p:110)
A hospitalidade sempre começa pela espera. O sentido da espera e do acolhimento
primeiro, tradicionalmente, tem sido atrelado e acorrentado à figura do feminino, e o
errante ao masculino. Tradicionalmente é o feminino que espera a gravidez, o tempo da
espera e cultivo. O feminino é esse outro que espera, desde a antiguidade, ou pelo menos
esperava. Mas a lógica moderna das relações tem demonstrado que não há um ser
predefinido por uma feminilidade que espera, tampouco um ser destinado à errância por
sua masculinidade. Essa espera atribuída ao feminino remonta a antiguidade grega, época
na qual a mulher quando casava era obrigada a abandonar seus antepassados, recusava
seus deuses lares, e passava cultuar os antepassados do marido. Na nova morada, ela era a
responsável pelo lar, por manter acessa a chama dos lares, a lareira. Ela ficava de certa
forma atada à casa, quase como uma condenada, cuidando do fogo sagrado, tornando-se
pura espera. Tornando-se ela própria o oculto, o recolhido, o mistério. O ser da espera, do
acolhimento, não é a mulher, a fenda, a dobra ou a porta, na varanda, ou no
estacionamento que permitem o acolhimento; o acolhimento se situa em todas as coisas
que esperam na espera, na natureza do mundo, no recortado de suas aberturas, de seu
sorrisos, nos braços abertos, a mão estendida, en la mano, en lo hu-mano.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Belo Horizonte: Editora da UFMG, s/d 210 p.
BARTHES. R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves
Editora,1981
BLOCH, Ernst. El principio esperanza. Tomo I. Madrid: Editora Aguilar, 1977
BOFF, Leonardo. Virtudes para um outro mundo possível. Vol.1. Hospitalidade. Petrópolis:
Vozes. 2005
DERRIDA, Jacques. Glas. Paris: Galilée.1974
DERRIDA, Jacques. Adeus Levinas. São Paulo: Editora Perspectiva.1997
DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Da Hospitalidade. São Paulo: Editora
Escuta, 2003
FLUSER, Vilém. Debate sobre collage, em LIMA, Sergio. Collage em nova superfície. São
Paulo: Ed. Parma. 1984, p.106.
GIBRAN, Gibran Kalil. O errante. São Paulo: Editora Claridade. 2003,
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70. 1980.
SALABERT, PERE. La mirada en el vacio: ensaios de estética y semiótica.
Copenhague/Barcelona: 1990, p. 110 inédito.
SOLIS, Dirce Eleonora. Jacques Derrida e a ética da hospitalidade. Revista de Filosofia
SEAF, Ano V, n.5, nov. 2005, p.122.
SOLIS, Dirce Eleonora. Desconstrução e arquitetura, uma abordagem a partir de Jacques
Derrida. Rio de Janeiro: Ed. UAPÊ. 2009.
TSCHUMI, Bernard. Architecture and disjunction. Cambridge: MIT Press. 1996.
VIDLER, Anthony. Architectural uncanny, essays in the modern unhomely. Cambridge:
MIT Press.1994