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Conselho Editorial da

área de Serviço Social


Ademir Alves da Silva
Dilséa Adeodata Bonetti (Conselheira Honorifica)
Elaine Rosseffi Behririg
Ivete Simionatto
Maria Lúcia Carvalho da Silva
Maria Lúcia Silva Barroco

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
]FAMILISMO
DIREITOS E CIDADANIA
Familismo, direito e cidadania : contradições da política social /
Regina Célia Tamaso Mioto, Marta Silva Campos, Cássia Maria
Carloto, (orgs.). - São Paulo : Cortez, 2015. contradições da política social
Bibliografia.
ISBN 978-85-249-2343-2

1. Assistência social 2. Cidadania 3. Família 4. Proteção social


5. Política social I. Mioto, Regina Célia Tamaso. II. Campos, Marta V edição
Silva. ifi. Carloto, Cássia Maria. r reimpressão

15-02212 CDD-362.82

Índices para catálogo sistemático:


1. Famílias: Proteção social: Bem-estar social 362.82
,CORTEZ
%.#EDITORfl 211

Política Social contemporânea:


a família como referência
para as Políticas Sociais
e para o trabalho social

Solange Maria Teixeira

1. INTRODUÇÃO

A família tem "ressurgido" no contexto das políticas sociais


"pós-ajuste" como agente de proteção social informal dos seus
membros. Pode-se dizer que a tendência atual na esfera das polí-
ticas sociais e econômicas nacionais e internacionais é a de ressaltar
a centralidade da família como objeto, sujeito e instrumento das
políticas públicas.
Ressalta-se o contexto dessa re-emergência. De um lado, a
crise do Estado de Bem-Estar Social e o avanço das reformas neo-
liberais, com sua noção de Estado reduzido nas ações econômicas
diretas e nos gastos sociais, e o retorno ao ideário liberal de que a
questão social e as saídas das crises são responsabilidades de todos.
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Foram os liberais que inicialmente defenderam as potencialidades portadores de doenças mentais, mesmo em sentidos contrários,
da família para assumir algumas intervenções mais burocráticas' elas valorizam as famílias e lhes ressaltam competências, papéis e
e custosas do Estado, como forma de lhe reduzir demandas e cus- funções clássicas, como educação, socialização, guarda, apoios
tos e valorizar outros provedores de bem-estar social, como a co- principalmente a de cuidado doméstico de dependentes doentes
munidade, as organizações não governamentais e o próprio Estado, ou idosos.
mas com ações focalizadas nos mais pobres. No âmbito institucional e normativo e na implementação das
De outro lado, destacam-se as lutas nacionais e internacionais políticas públicas, a re-abordagem da família e das redes sociais é
pela desinstitucionalização, desospitalização dos usuários da saú- incorporada e defendida como estratégia mais adequada para
de mental e da assistência social. O modelo asilar e dos hospitais desenvolver políticas e programas sociais efetivos, eficientes e
psiquiátricos eram criticados pelas práticas de confinamento, se- eficazes para enfrentar e atender à pobreza. A relação custo/bene-
gregação social e violência institucional, prejudiciais ao desenvol- fício sobressai-se porque se pode contar com recursos dessas ins-
vimento humano e cidadão, além de serem extremamente onerosos tituições de proteção informais e com ações mais próximas ao
aos cofres públicos. ambiente natural das pessoas e do seu território de vivência.
O modelo antagônico à institucionalização, o extra-hospitalar, Essas novas formas de abordar e valorizar a família e incluí-Ias
valoriza o retorno à família e comunidade, reforçando o direito à nas políticas sociais geram expectativas e demandas por trabalho
convivência familiar e comunitária, a autonomia e cidadania dos social com famílias em diversas dessas políticas, sejam as dirigidas
sujeitos usuários das políticas sociais e sua inclusão na vida social à família, sejam às endereçadas aos segmentos com ações dirigidas
mais ampla. Como destaca Rizzini et al. (2006), em meados dos às famílias. Nessa perspectiva, o objetivo desse artigo é retratar e
anos 1990 firma-se, por exemplo, uma posição internacional opos- problematizar o modo como a família é tomada como referência
ta à institucionalização de crianças e adolescentes e ressalta-se-lhe nas políticas sociais e explicitar como se vem efetivando o trabalho
o caráter excepcional na Convenção das Nações Unidas pelos Di- social com as famílias, no contexto dessas políticas, além de ressal-
reitos de Crianças e Adolescentes. No plano nacional, esses direitos tar as suas possibilidades, numa dimensão crítica. Essa problemati-
são normatizados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). zação tem dirigido as pesquisas recentes que venho desenvolven-
Em relação às lutas por desospitalização de pacientes psiquiátricos, do, em especial a destes dois últimos anos, que discute a
essa década de 1990 é marcada pela adesão de vários países e a centralidade da família nas políticas sociais.
adoção de medidas alternativas ao hospital.
Assim, seja nas propostas neoliberais, seja dos movimentos
pela desinstitucionalização de crianças e adolescentes, idosos, 2. CENTRALIDADE DA FAMÍLIA NAS POLÍTICAS
SOCIAIS CONTEMPORÂNEAS
1. Dentre as ações burocráticas, compreendidas como ações com longos trâmites, com
necessidades de atestados, papeladas que comprovem necessidades, pareceres de profis-
No contexto brasileiro, destacam-se as políticas de saúde, de
sionais, decisões de juízes que precedem a institucionalização em asilos, abrigos e outros
expedientes que consomem grandes parcelas dos gastos públicos. assistência social, a crianças e adolescentes e aos idosos, dentre
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FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 215

outras que adotam a centralidade da família na sua formulação, -hospitalar. Muitos estudiosos da temática (Furegato, 2002; Meiman,
condução e implementação. 2001) defendem a importância da inclusão da família na assistência
Na política de saúde, em especial na atenção básica, destaca-se ao tratamento do portador de transtorno mental, por considerarem-
a Estratégia Saúde da Família - ESF, que visa substituir o modelo -na a unidade básica de atenção à saúde e, portanto, do cuidado,
tradicional de atenção (centrado no médico, no indivíduo doente, "pois é nesse contexto social que se mantém a saúde e se lida com
no hospital e em ações curativas), cujas ações alternativas centram- as doenças" (Brasil et ai., 2011). Reconhecem, entretanto, que "faz-
-se no trabalho em equipe, na família como objeto de trabalho em -se necessário uma assistência familiar, um suporte de apoio para
ações de promoção, prevenção e proteção. Dentre os objetivos da que ela seja uma grupaiidade capaz de responder aos cuidados que
ESF, destacamos o de "eleger a família e seu espaço social como seu familiar com transtorno mental demanda, para além das con-
núcleo básico de abordagem no atendimento à saúde; humanizar dições materiais, em seu cotidiano" (Nogueira e Costa, 2011).
as práticas de saúde através do estabelecimento de um vínculo Nessa perspectiva, reconhecem que o sistema de saúde não
entre os profissionais de saúde e a população" (Brasil, 1997, p. 10). está preparado para receber e dar suporte à família e às equipes,
Em que pese os avanços e atendimento de parte das reivindi- por carência de serviços institucionais efetivos, más condições de
cações dos movimentos sociais na saúde, com a priorização da trabalho, falta de adesão (negam-se, por exemplo, a trabalhar a
atenção básica não mercantil, o Programa é focalizado nas famílias subjetividade e objetividade do cuidado com o portador de trans-
pobres em situação de risco ou vulnerabilidade, sendo contrário torno mental, exigindo-se que a família aceite e lide com a doença
ao princípio da universalização do serviço. Além disso, o enfoque sem lhe oferecer suporte e orientação). Fica explícito que, se a fa-
na família pode limitar-se à transmissão de conhecimentos, com- mília for capacitada, orientada e conduzida, eia poderá cuidar do
portamentos e atitudes esperadas para o controle das doenças e os seu doente sem o auxílio dos serviços institucionais.
cuidados necessários a serem desenvolvidos no ambiente domés- As legislações como ECA e a Política Nacional do Idoso ins-
tico pela própria família, restringindo a participação pública e a tituem formalmente o direito à convivência familiar e comunitária
noção de promoção à de capacitação da família para desempenhar quando afirmam que "toda criança e adolescente tem direito a ser
as funções de prevenção e de cuidados.
criada e educada no seio de sua família e, excepcionalmente, em
De acordo com Rosado (2011, p. 4), para evitar cair na respon- família substituta, assegurando a convivência familiar e comuni-
sabilização familiar, a atenção básica deve "ocorrer associada à tária [ ... }" (Brasil, 1990, p. 20). Ou, ainda, quando asseveram "prio-
disponibilização de serviços das demais unidades de atenção no rização do atendimento ao idoso através de suas próprias famílias,
SUS", o que exige reordenação dos serviços de saúde e de recursos em detrimento do atendimento asilar, à exceção dos idosos que
disponíveis, em articulação com outros serviços sociais e instituições não possuam condições que garantam sua própria subsistência"
da sociedade. (Brasil, 1994, p. 7).
Na política de saúde mental tem-se valorizado os serviços Como destaca Steffenon (2011), há, nas entrelinhas dessas le-
alternativos no tratamento do portador de transtorno mental e a gislações, uma tendência de apontar a família como responsável
participação da família no cuidado doméstico, no modelo extra- por seus dependentes, incluindo os idosos, sendo chamada a assu-
216 MIOTO. CAMPOS. CARLOTO FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 217

mir esses e novos encargos, independentemente de laços afetivos família pela proteção social de seus membros. A autora destaca
e de condições para cumpri-los. ainda a tendência de se reduzirem os recursos para as formas ins-
Nesses casos, teóricos como Rizzini et ai. (2006, p. 21) defendem titucionalizadas e a contínua demanda por esse tipo de serviços,
que "há que se criar outras formas de suporte básico à família para porque faltam serviços de inclusão da família que promovam mu-
apoiá-la no cuidado dos filhos", destacando ainda que, entre os danças nas condições devida, aliados aos serviços socioeducativos.
fatores que dificultam a permanência da criança com a família, Em todas essas passagens de legislações e posicionamento de
estão a insuficiência ou inexistência das políticas públicas, a falta teóricos é visível a adoção de um novo paradigma: o de que a famí-
de suporte à família no cuidado aos filhos, as dificuldades de gerar lia deve ser apoiada, protegida e capacitada para proteger e cuidar
renda e inserção no mercado de trabalho, a carência de creches e de seus membros dependentes. Complementando essa premissa,
escolas públicas de qualidade, em horário integral, dentre outros. há a de que não é possível fazer políticas públicas sem as parcerias,
sem a gestão em redes com entidades públicas e privadas.
Na Política de Assistência Social, a matricialidade sociofamiliar
constitui um dos princípios fundantes, em especial na proteção O que se percebe, entretanto, em relação ao sistema de prote-
social básica, que visa fortalecer vínculos familiares e comunitários. ção social, é a visível adoção do princípio da subsidiariedade da
Mas seu desenho padece de contradições, pois, de um lado, toma intervenção do Estado que, nunca exclusivamente estatal, e só
aparece quando a família falha na proteção e cuidados. Sua inter-
a família como central para concepção e implementação dos bene-
fícios, serviços, programas e projetos, o lhe que reforça a dimensão venção em nível de proteção social básica, preventiva e promocio-
nal é sempre para potencializar e valorizar as funções protetivas e
como sujeito de direitos à proteção social e lhe põem suas deman-
de cuidado na família, para que a assistência seja realizada na e
das como matrizes de organização e oferta de serviços pela rede
pela própria. Trata-se, de condicionalidades, explícitas ou implíci-
de proteção social. Por outro lado, reconhece e visa potencializar
tas, para a família se constituir em sujeito de direitos, não sendo
os papéis familiares na prevenção, pois são suas funções básicas
um direito incondicional advindo apenas da condição de cidadania
"prover a proteção e a socialização dos seus membros; converter-se
e do direito das pessoas de serem criadas, desenvolverem-se e
como referências morais, de vínculos afetivos e sociais; identidade
permanecerem no grupo familiar.
grupal [ ... ]" (Brasil, 2004, p. 35).
A noção de parceria com a família sobressai-se como parte da
A PNAS (Brasil, 2004, p. 41) destaca ainda que o enfoque na
rede de proteção social, que também conta com outros provedores
centralidade da família está no "pressuposto de que para a família
de bem-estar social, cabendo ao Estado a coordenação, o financia-
prevenir, proteger, promover e incluir seus membros é necessário,
mento, a capacitação das famílias para o cuidado no domicilio e o
em primeiro lugar, garantir condições de sustentabilidade para tal".
oferecimento de serviços alternativos. Todavia, a noção de parceria
Estudiosos das diversas políticas, entre eles Rizzini et ai. (2006), não é uma novidade: mesmo em fase de maior intervenção do
reconhecem um descompasso entre a importância atribuída ao Estado, a família sempre permaneceu como parceira, e em muitos
papel da família e a falta de condições mínimas de vida digna e de países, com mercados pouco estruturados e inclusivos e de sistemas
suporte e serviços familiares ofertados pelo poder público, o que de proteção social subdesenvolvidos, ela se constituiu na principal
mostra que na prática ocorre mesmo é uma responsabilização da fonte de proteção social.
218 MIOTO. CAMPOS .CARL0TQ FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 219

A novidade na conformação atual dos sistemas de proteção dentes, por idade, problemas de saúde, desemprego, falta de
social é a legitimação e legalização da responsabilidade familiar. O qualificação e para ocupação do tempo livre de idosos, adolescen-
que já ocorria na esfera informal, movida pelos laços afetivos de tes e crianças com atividades socializadoras, esportivas e educati-
solidariedade e cooperação viraram obrigações formais, passíveis vas, dentre outras.
de ser reclamada judicialmente, com punição às famílias. Mas quem
Trata-se de políticas que assumem coletivamente as necessi-
pune o poder público por não garantir condições dignas e às vezes
dades familiares, liberam as mulheres para o trabalho e as permitam
mínimas de vida capazes de evitar as rupturas familiares, as vio-
conciliar família e trabalho para que possam criar estratégias sus-
lações de direitos e as violências?
tentáveis de superação da pobreza. O oposto dessa tendência é o
Esse processo de instauração e legitimação de um pluralismo familismo,2 que reforça a família como a principal provedora de
de bem-estar social é um retrocesso e uma despolitização da ques- bem-estar, o que se dá pela escassez de serviços e benefícios, pelo
tão social e de suas formas de enfrentamento. Na verdade, o reco- seu caráter seletivo e focalizado, pelas condicionalidades que en-
flhecimento da questão social implicou a responsabilização coleti- fatizam os cuidados no âmbito doméstico, numa reafirmação dos
va da sociedade pelos problemas que extrapolavam a esfera papéis tradicionais que sobrecarregam as mulheres.
individual e familiar, levando ao financiamento público e à
Ao contrário do que defendem alguns teóricos (Fonseca, 2006;
administração pelo Estado das ações contra esses problemas e
Carvalho, 1998), a revalorização da família tem significado um
mazelas sociais. O modelo atual do funcionamento das políticas
recuo das responsabilidades do Estado, considerando que a priva-
sociais em rede, em parcerias, incluindo a família, a comunidade, tização não ocorre apenas pela venda direta do patrimônio público,
as ONGs, o mercado e o Estado, o financiamento continua público, mas também pela falta de investimentos, que promove a precarie-
agora apenas intermediado pelas instituições, com execução da dade dos serviços e favorece sua oferta no setor privado ou não
responsabilidade de todos.
governamental. Nessa perspectiva, a redução do gasto social afeta
Sem dúvida, é importantíssima a centralidade da família nas as condições de trabalho das equipes de profissionais, marcadas
políticas sociais, mas na direção da inclusão social (e não de refor pela precariedade, ausência de serviços alternativos à instituciona-
ço de papéis clássicos, histórica e culturalmente divididos por lização, e de uma rede em que o poder público ofereça serviços à
gêneros) e da oferta de uma rede intersetorial de serviços para família, sem dizer da elevada população adstrita por equipes no
atender suas necessidades e demandas que de fato possa garantir ESF, nos CRAS e Creas, dentre outros.
a vida familiar e evitar as rupturas e violações de direitos. Para Nesses termos, um projeto político comprometido com a jus-
isso, a política social deve ser desfamiliarizante ou familiar ativa, tiça social, a cidadania e a redistributividade dos recursos sociais
no sentido utilizado por Esping-Andersen (1999), que desrespon-
sabiizam o grupo familiar da função principal de responsável pela
2. Termo utilizado por Saraceno (1992) e Esping-Andersen (1999) para tratarem da
provisão de bem-estar aos seus. Isso implica a oferta universal de orientação das políticas sociais que responsabilizam as famílias por grande parte da prote-
serviços dirigidos à família, como suporte, apoio, cuidados domi- ção social, considerando o princípio de que o Estado só deve intervir, quando elas não
conseguem resolver os problemas. A consequência é um subdesenvolvido sistema de ser -
ciliares e serviços alternativos diurnos para os membros depen-
viços para as famílias.
220 MIOTO CAMPOS .CARLOTO FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 221

é antagônica ao pluralismo de bem-estar social, às ações focalizadas logo, da crise capitalista e das saídas da crise, tais como a reestru-
e ao retorno da família como agente principal de bem-estar social. turação capitalista e superestrutura neoliberal que a sustenta e
Defendemos que quanto mais sobrecarregada é a família, quanto move, gerando novas formas de regulação estatal. Nesse contexto
mais se aposta no fortalecimento e valorização de papéis clássicos as empresas tendem a lançar mão da estrutura de rede, "como
e ideais, menos equidade de gênero se promove e mais se geram parte de um conjunto de estratégias destinadas a minimizar custos
sofrimentos, culpabilizações, sentimentos de impotência, conflitos e capital imobilizado, adquirir competência tecnológica de van-
e até rupturas, o que ocorre pela incapacidade de cumpri-los e pela guarda e compartilhar recursos e informações" (Minhoto e Martins,
menor capacidade de lidar com as transformações familiares, em 2001, p. 83).
suas novas configurações. Para os autores nas novas estruturas empresariais descentra-
Os problemas mais frequentes na condução familista da polí- lizadas tende a prevalecer a noção de cooperação, integração,
tica social, a mais adotada, são falta de cuidadores em tempo integral, parcerias sob a forma de redes de locação, subempreitadas e con-
redução da família e das redes de apoios informais, empecilho à tratação de terceirizadas, com os setores de montagem e com em-
revolução feminina e à inserção plena das mulheres no mercado de presas de países em desenvolvimento formando redes interorga-
trabalho em condições de igualdade, descompasso com a nova nizacionais com empresas colaboradoras.
realidade de parte significativa de famílias em que mulheres traba- Esse modelo de redes se expande para outras organizações,
lham fora de casa, de famílias monoparentais e de famílias chefiadas
inclusive para a gestão pública. Embora os teóricos tenham deli-
por mulheres. A grande dificuldade de diagnóstico dessa tendência
mitado que nas redes empresariais prevalece a razão instrumental,
das políticas sociais se dá em razão de seus atuais objetivos e das
econômica e nas redes de organizações públicas e não estatais ou
formas de trabalho social com as famílias que preconizam, geral-
comunitárias prevaleça o interesse coletivo e a noção de solidarie-
mente, valores de cidadania, de sujeito de direitos e de autonomia,
dade. Todavia, essa estratégia vem sendo utilizada no mesmo
dentre outros que camuflam suas tendências conservadoras.
sentido da primeira, como saída em contexto de redução de gastos
A condução familista da política social contemporânea ganha sociais e ampliação das demandas, para reduzir, a demanda do
contornos de modernidade quando se soma às novas formas de Estado, maximizar a proteção oferecida somando-se aos recursos
intervenção social em redes, como alternativa aos modelos tradi- dos parceiros, a sua infraestrutura, a sua tendência espontânea de
cionais de intervenção social. proteção social, dentre outras. Além de fundar-se na lógica de re-
dução de custos e maximização dos benefícios.
Entre as vantagens da intervenção em redes na gestão das
3. INTERVENÇÃO EM REDES: A FAMÍLIA COMO políticas sociais públicas ou das empresas estão as noções de au-
PARCEIRA NA PROTEÇÃO SOCIAL sência de relações hierárquicas, a que se deve a pretendida hori-
zontalidade entre os parceiros, "à necessidade de resguardar a
Vale ressaltar que o modelo de intervenção ou gestão em redes autonomia de seus participantes e ao compartilhamento de infor-
emerge no contexto das empresas reestruturadas e globalizadas, mações, recursos e atribuições de que dependeria, no final das
222 MIOTO. CAMPOS. CARLOTO FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 223

contas, a própria viabilidade e o sucesso da rede" (Castelis, 1998; deslegitimidade desses como responsabilidade do Estado Demo-
Najmonovich, 1995 apud Minhoto; Marfins, 2001, p. 86). crático de Direitos.
A novidade da proposta de gestão em rede se coloca como a O terceiro, o pressuposto que somente a articulação, combina-
necessidade de romper com os modelos hierárquicos e centraliza- ção de ações - entre políticas, intersetorial, intergovernamental e
dos de organização, para um modelo descentralizado, flexível e entre agentes sociais - potencializa o desempenho da política
horizontal de organização da proteção social, contando e articulan- social pública. Assim, o pluralismo de bem-estar social torna-se
do a contribuição e os recursos de cada agente dessa proteção. parte do metier, do modo de fazer política social na contempora-
Mas, subjacente a essa noção de rede e de intervenção e gestão neidade, como um processo naturalizado.
em rede estão três fenômenos: o primeiro é a legitimação do plu- Nas tipologias das redes essas são classificadas de primárias ou
ralismo de bem-estar social e como ele a legitimidade e viabilidadé secundárias. De acordo com Gonçalves e Guará (2010, p. 20-22) as
dos novos sujeitos do "fazer social": o Estado,o mercado, organi- redes primárias ou de proteção espontâneas são aquelas que se or-
zações não governamentais, a comunidade e o próprio público alvo ganizam na perspectiva do apoio mútuo e solidariedade, como nas
da ação políticas, tais como o indivíduo e a família. relações afetivas, de parentesco, de proximidade com amigos, vizi-
nhos e nas relações entre os indivíduos de uma mesma comunidade.
O segundo, a legitimidade e difusão de uma nova visão do
Elas são informais e "tecem a partir do espaço doméstico, da família,
Estado e de suas funções. Como destaca Brant de Carvalho (2008,
da vizinhança; da rua, do quarteirão; da pequena comunidade".
p. 2), "advoga-se a presença de um Estado forte na regulação,
sem, contudo eliminar ou esvaziar a riqueza democrática de par- As redes formais ou secundárias se organizam por princípios
cenas com outros atores sociais". Portanto, um Estado como re- variados e podem ser tipificadas em estatais, de terceiro setor e de
gulador importante, mas externo, coordenador da rede, um Es- mercado. Segundo Marcondi e Soares (2010) as redes formais são
tado descentralizado, flexível que visa fortalecer a sociedade civil constituídas por instituições sociais de existência oficial e estrutu-
e compor um novo pacto e condições de governabilidade. Logo, ração precisa que desenvolvem funções e serviços específicos e
uma concepção próxima à visão liberal do Estado que responsá- especializados.
biliza a sociedade civil pela implementação ou execução das Segundo Sanicola (2008, p. 62), as redes formais estatais são
políticas sociais. constituídas pelo conjunto das instituições estatais que formam o
A ideia-chave é de que a sociedade civil e iniciativa privada sistema de bem-estar social da população. Fundamentadas no prin-
são corresponsáveis pelo bem comum, pelo coletivo. Possuem cípio da igualdade, do direito e da cidadania. "[...J utilizam a redis-
deveres numa sociedade democrática e de direitos "devem partilhar tribuição, como método, e a lei, como meio [...]. A relação social é
o compromisso com o bem comum e com a necessária tarefa de caracterizada pelo fato de poderem ser exigidas por seus usuários
promover equidade e justiça social" (Brarit de Carvalho,' 2008, p. 3). (exigibilidade). Essas redes fazem parte do sistema normativo e, em
Portanto, um deslocamento do Estado como garantidor dos direi- geral, constituem uma obrigação para a realidade social".
tos sociais, para a sociedade. O que significa desvirtuamento da As redes públicas foram historicamente marcadas pela setoria-
noção de direitos sociais, seu esvaziamento, desmantelamento e lidade, hierarquizada e verticalizada, cujas alterações são recentes
224 MIOTO. CAMPOS. CARLOTO 225
FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA

e instauradas pela Constituição Federal de 1988 que alteram as objetivas de cumprirem as expectativas sociais e de sua situação
características do sistema de proteção social instaurando a descen- de vulnerabilidade social.
tralização, a intersetorialidade, o controle social, dentre outras.
A participação da família como estratégia de proteção social e
As redes do terceiro setor são aquelas que prestam serviços como agente dessa proteção é constantemente acionada pelas polí-
sociais sem fins lucrativos. São as cooperativas sociais, as organi- ticas sociais que visam potencializar essa sua função protetiva. Como
zações, associações de voluntários e as fundações, também deno- destacam Marcondi e Soares (2010) essa nova perspectiva centra-se
minadas de redes sociocomunitárias. no que a família tem como recurso, em lugar do que lhe falta.
As redes secundárias de mercado referem-se às atividades ou Essa leitura tem implicações diretas no trabalho social com
produção de bens e serviços rentáveis que visam lucros para as famílias, pois, como destacam: "esse modo de ver e agir com famí-
empresas que prestam os serviços ao público. lias significa ajudá-las a reconhecer a existência de seu patrimônio
Merece destaque as redes sociais movimentistas que se colocam para, depois, estimular seu uso e seu fortalecimento" (Marcondi e
entre as redes primárias e secundárias. Como destacam Gonçalves Soares, 2010, p. 74). Nessa perspectiva, os problemas sociais que
e Guará (2010, p. 25) essas redes oxigenam todas as demais redes sofrem são tratados de forma limitada aos seus recursos, aos muros
nascidas na comunidade/ sociedade, conformando-se como movi- internos da família, reproduzindo a ditadura da intimidade, da
mentos sociais de defesa de direitos, de vigilância e luta por me- privacidade dos assuntos ou casos de família.
lhores índices de qualidade de vida. Essa perspectiva parte do pressuposto de que de sua rede
Essas redes sempre funcionaram de modo paralelo e comple- social, a pessoa ou família recebe sustento, ajuda material, emocio-
mentar ao Estado. Nesse novo modelo de proteção social elas nal, serviços de cuidados, assistência diversa, informações etc.,
atuam de modo coordenado e incentivado como forma legítima de independente das vicissitudes sociais e da convivência, e que se
dar resposta às refrações da questão social, logo, um processo de for bem informada, habilitada e treinada poderá ser um importan-
reprivatização do trato da questão social, de desresponsabilização te elemento para a inclusão social e de prevenção dos riscos sociais.
do Estado e redução de suas demandas. Uma visão conservadora e inadequada para prevenir problemas
sociais que reforça a responsabilização da família por situações e
Nesse contexto de redução do Estado e reenvio das demandas
problemas que ultrapassam sua capacidade de resposta.
para outros agentes sociais da rede, "paralelamente, vem sendo
aumentada a relevância das redes de serviços do voluntariado e Essa responsabilização da família é expressa de forma clara
reforçada a ideias de solidariedade familiar" (Saraceno, 1998; nos discursos de teóricos:
Faleiros, 1999 apud Mioto, 2002, p. 55).
Defendemos a potencialidade das redes primárias de proteção social
Ainda de acordo com Mioto (2002), as redes primárias ou as
espontânea como abordagem importante na construção ou resgate
famílias e os próprios beneficiários ressurgem nesse cenário como dos vínculos de afeto e cuidado no âmbito familiar ampliado. São
agentes de proteção social e não apenas como sujeito a ser prote- as pequenas redes pessoais de apoio que todos têm e que, no caso
gido. Em relação à família esse ressurgimento está vinculado ao de crianças e adolescentes em maior vulnerabilidade, são fundamen-
apelo moral sobre suas funções, do que sobre as possibilidades tais para sua inclusão social e afetiva (Guará, 2010, p. 50).
226 MIOTO. CAMPOS. CARLOTO FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 227

Mas também está expressa no desenho das políticas sociais, a falta de condições objetivas e muitas vezes subjetivas que viabi-
em normas operacionais, em programas, e em outros mecanismos lize esse enfrentamento, necessitando do suporte do poder público
de implementação das políticas sociais. A título de exemplo, um para garantir o direito à convivência familiar e comunitária.
dos objetivos do serviço de proteção integral às famílias - PAIF Um trabalho social inovador com famílias, que ultrapasse a
é: "Fortalecer a função protetiva na família e prevenir a ruptura perspectiva normativa, disciplinadora, centrado nos papéis sociais
dos seus vínculos, sejam estes familiares ou comunitários, contri- para mães e pais, deve se fundamentar numa perspectiva analítica
buindo para melhoria da qualidade de vida nos territórios" (Brasil, que compreenda a família inserida num contexto social mais amplo,
2012, p. 15) e a natureza social de suas necessidades.
Assim, a questão da convivência familiar e comunitária nas
várias políticas, entre elas a de assistência social define escolhas e
modos de tomar a família com referência, como matricialidade. É
4. TRABALHO SOCIAL COM FAMÍLIAS NAS POLÍTICAS
uma escolha que se contrapõe a institucionalização presente na
SOCIAIS: TRAJETÓRIA HISTÓRICA
história dos serviços sociais, que toma a família como parceira de
uma rede de proteção social mista, envolvendo organizações gover-
namentais, não governamentais, família e comunidade, que distri- O modo com a família é incorporada à política pública reflete
bui responsabilidades e diminui responsabilidades públicas estatais. na organização dos serviços e na proposição e organização do tra-
balho com ela no cotidiano dos serviços, projetos e programas
Uma das leituras dessa centralidade da família na política de
(Mioto, 2006).
assistência social e suas repercussões no trabalho social com esse
público, expressa bem essa tendência: "o trabalho com as famílias, Na organização das políticas sociais brasileiras, no período de
como indica o Sistema Único de Assistência Social (Suas), torna-se 1930 a 1980, a família ocupou um espaço secundário na conforma-
ção do Sistema de Proteção Social. Considerando que as políticas
basilar para que ela possa oferecer proteção e cuidados adequados
ao bom desenvolvimento de seus filhos" (Guará, 2010, p. 52). A estavam orientadas para indivíduos, categorias combativas 3 e
segmentos4 fragmentados em problemáticas, como no caso da as-
política não é vista como suporte, como ações de cuidados, de apoio
sistência social, na qual os serviços foram dispostos a partir de
às famílias, mas como mecanismo que despertará e habilitará,
"indivíduos-problemas" e "situações específicas", como trabalho
através do trabalho com famílias, suas funções de proteção social.
infantil, abandono, exploração sexual, delinquência, idade ou sexo,
Essa perspectiva continua julgando as famílias vulneráveis
bem como para crianças e adolescentes, mulheres e idosos, dentre
como incapazes, incompetentes para criar seus filhos, como res-
outros. Isso não contemplava a família como uma totalidade.
ponsáveis pelos problemas que seus membros enfrentam. Mas, com
potencialidades de proteção social, desde que conscientizadas,
educadas e habilitadas para tal. Como se a família vulnerável, como 3. Entre as categorias combativas; destacam-se, na emergência do sistema de proteção
social, ferroviários, bancários, comerciários e várias profissões inseridas no sistema público
qualquer outra já não mobilizasse todos os seus recursos e capaci- e na esfera privada que pressionavam por mais benefícios.
dades para sanar os problemas, tanto nas redes de parentesco, como 4. Entre os segmentos destacam-se as crianças, adolescentes, idosos, deficientes e lac-
de vizinhança e amizade. Como se o que a caracterizasse não fosse tantes atendidos pela assistência social.
228 MIOTO. CAMPOS. CARLOtO FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 229

Em relação aos pobres, subjacente à lógica da assistência social a) Concepções estereotipadas de famílias e papéis familiares,
estava a ideia de que essas famílias eram constitutivas do problema centradas na noção de família padrão e as demais como
social e seus responsáveis não tinham capacidade de criar, educar "desviantes", "desestruturadas', com expectativas das
e proteger seus membros. Imperava, da emergência do sistema de clássicas funções alicerçadas nos papéis atribuídos por sexo
proteção social até a década de 1980, o paradigma da incapacidade e lugar nos espaços público e privado.
familiar e da institucionalização dos seus membros, como crianças, b) Prevalência de propostas residuais, para determinados
adolescentes, idosos, portadores de doenças mentais, dentre outrom., problemas, segmentados e fragmentados da totalidade
:
considerados uma ameaça para a sociedade pelos problemas do social e tomados como "desviantes", "patológicos" e su-
que eram portadores. jeitos ao trabalho psicossocial individualizante e terapêu-
Essas famílias são consideradas incapazes por suas debilida '; tico, para cujo diagnóstico e solução envolve-se a família,
des, desagregação conjugal e pobreza, dentre outros fatores, caben- responsabilizada pelo fracasso na socialização, educação
do ao Estado, nessas situações-limite, livrar seus membros depen e cuidados de seus membros.
dentes dos riscos por via da institucionalização, do afastamento c) Focalização nas famílias em situação em especial nas
ambiente familiar, "legitimando as internações, as reclusões, os "mais derrotadas", "incapazes" e "fracassadas", e não em
asilamentos, tomados também como medidas de segurança iD 1 Iil situações cotidianas da vida familiar, com ações preventivas
a família e sociedade" (Fontenele, 2007, P. 49). e oferta de serviços que lhe deem sustentabilidade.
Como destaca Fonseca (2006), nesse período e ainda hoje ações
dirigidas às famílias instalam ou aprofundam a vivência do para Nessa perspectiva, esse trabalho social dirigiu-se às chamadas
doxo entre a família idealizada e reconhecida formal ejuridicamen famílias "desestruturadas" e "incapazes", sob o paradigma da
te como a confirmação saudável e legítima (a "normal", ou "n U' patologia social e com os recursos terapêuticos do trabalho psicos-
clear", heterossexual, monogâmica e patriarcal) e a família real - social individualizante. As práticas socioeducativas com esses
efetivamente vivida pelos pobres e que os profissionais desqua 1 i grupos de família dos segmentos atendidos, quando não institu-
ficavam como "desestruturadas" ou "irregulares". Seu funciona- cionalizados ou retirados do convívio familiar, eram desenvolvidas
mento em redes de apoios, que extrapolavam a residência e os laços numa dimensão normatizadora e disciplinadora (dimensão moral
de parentescos, para incluir a de compadrio e amizade, era inter- e doméstica, geralmente dirigidas às mulheres). Nesses casos, como
pretado como uma ameaça aos sujeitos dependentes de cuidados, destaca Mioto (2006), a família é tomada como parte do problema,
Ainda como ressalta Fonseca (2006, p. 7), essa é uma com- cuja solução e dificuldades estavam centradas nela própria, o que
preensão suportada por uma lógica que naturaliza e despolitiza a fortalece, direita ou indiretamente, uma visão dela como produto-
pobreza e a inibe de respeitar política e ideologicamente as dife- ra de patologias.
renças presentes nos núcleos familiares. Na contemporaneidade, como já destacado, a família assume
Mioto (2004; 2006) sintetiza o trabalho social com família, centralidade nas políticas sociais, seja como objeto, seja como
anteriormente e ainda na atualidade, como baseado em: ;- instrumento ou estratégia dessas políticas, seja como sujeitos.
232 MIOTO. CAMPOS. CARLOTO FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 233

cuidado doméstico, reforçando, a partir dos novos conhecimen- ausência de trabalho se devesse apenas à não capacitação ou à
tos adquiridos, da discussão e reflexão do seu cotidiano ou da falta de vontade e de crença nas suas potencialidades.
resolução de conflitos familiares, intergeracionais e de gênero, A noção de autonomia e a capacidade de cada sujeito de "dar
as responsabilidades das famílias. conta de sua vida" e dos cuidados necessários para que caminhe
Essas práticas são herdeiras da educação disciplinadora e sem a necessidade de benefícios sociais, aconselhamento e acom-
normatizadora da família, que assumem versões modernizadoras panhamentos, podem induzi-lo a buscar saídas nele mesmo, em
que lhe escamoteiam a dimensão normativa dos papéis sociais, dos suas potencialidades, inclusive no reforço de suas responsabilida-
comportamentos esperados para pai e mãe, em nome de processos des familiares e individuais, e não na luta pelo benefício como um
educativos que visam potencializar o grupo familiar e gerar sua direito universal e como dever do Estado de prover certo padrão
autonomia. Tais formas de conduzir o trabalho com famílias são digno de vida a todo cidadão cujas condições decorrem de desi-
compatíveis como a PNAS, ECA e PNI, dado que essas legislações gualdades que afetam as relações na família.
contribuem para a valorização do papel social da família e do seu Cabe direcionar o trabalho socioeducativo com famílias para
lugar na produção de bem-estar dos seus membros. além dessa dimensão liberal, individual e subjetivista de autono-
Mas, como destaca Campos (2008), essa responsabilização da mia, no sentido de articular significados e práticas, partindo-se
família, nos cuidados de seus membros é sustentada cultural e da compreensão de que as subjetividades se alteram pelas práti-
socialmente por concepções do adequado desempenho de papéis cas sociais e não por simples conscientização, daí ser fundamen-
dos seus membros responsáveis, em especial a mulher, sobre quem tal o acesso a condições objetivas, fornecidas pelas políticas pú-
recai grande parte dessas responsabilidades e expectativas. blicas como direitos. Nisso se incluem a apropriação e produção
Apesar dos objetivos do trabalho social na proteção básica de novos sentidos pessoais e a inserção da pessoa no engajamen-
serem inovadores (fortalecer os vínculos familiares antes de sua to coletivo por melhores condições de vida (Kahhale, 2004), para
o que é indispensável não só o processo de informação e reflexão,
dissolução, atuar de forma preventiva para evitar riscos e violações
mas também de organização dos diferentes grupos que compõem
de direitos através de benefícios e serviços socioeducativo) é pre-
o território, para que seus direitos sejam garantidos e novas con-
ciso superar a noção de autonomia, protagonismo e empoderamen-
quistas sejam inseridas nas políticas públicas, a partir de suas
to tomados no aspecto individual e liberal dos termos, que se
demandas.
constroem pelo aconselhamento individual ou grupal, centrados
na mudança da subjetividade dos usuários dos serviços, como Assim, a constituição de sujeitos de direitos se dá no processo
forma de libertá-los da dependência dos benefícios sociais e ensiná- de compreensão das determinações sociais de suas condições de
-los a "andar com as próprias pernas", cuidar sozinhos dos filhos vida, material e afetiva, no reconhecimento da força do coletivo,
e outros dependentes, resolver os conflitos familiares mediante no caso específico de famílias, e nas possibilidades concretas de
processos profissionais que fortalecem a autoestima e prepare para acesso aos bens e serviços produzidos socialmente.
o cuidado e responsabilidade familiares e melhore a capacidade Apesar dessas limitações, o trabalho socioeducativo e de edu-
produtiva, dando-lhes condições de empregabilidade, como se a cação em saúde com e para as famílias tem potencialidades, desde
234 MIOTO. CAMPOS . CARLOTO FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 235

que ultrapasse a indução de reflexões e fechamento da família nela das lutas coletivas. A noção de autonomia, segundo Mioto (2004),
mesma, nos seus muros internos, ou no uso do grupo como troca implica o desenvolvimento da capacidade de discernir as mudan-
de experiências e ajuda mútua, para se transformar em instrumen- ças possíveis no âmbito dos grupos familiares e de suas redes e que
to de construção de um novo conhecimento, partilhado e crítico, lhes exigem o engajamento, organizados em coletivos, em proces-
que a leva a sair do imediatismo de suas necessidades para enten- sos sociais mais amplos, para que ocorram transformações mais
dê-las coletivas, como necessidades sociais de classe, que devem gerais e a efetivação de direitos. Isso envolve capacidade de opinar,
ser atendidas pelo poder público como condição fundamental para escolher, decidir e agir intencionalmente, mediante suportes ofe-
a garantia de direitos e de qualidade de vida. recidos e situações refletidas, informadas e debatidas, devendo ser
Nessa perspectiva, o foco das ações socioassistenciais, socio- esses os objetivos da educação que visa à emancipação.-' Para efe-
educativas e de educação em saúde deve ser as necessidades das tivar essas potencialidades, urge ainda superar o trabalho socioe-
famílias e a garantia dos direitos de cidadania, cujas propostas e ducativo em grupo como espaço terapêutico e clínico pela troca de
ações ultrapassam o âmbito específico de uma política para uma experiências comuns.
perspectiva intersetorial, integrada e articulada. O reducionismo das funções socioeducativas pode fortalecer
Assim, o trabalho socioeducativo em grupo se encaminha para práticas normativas e disciplinadoras que se dirigem a ensinar as
o reconhecimento das famílias e de seus membros como sujeitos de famílias a gerir recursos, disciplinar os filhos e a exercer as funções
direitos, sendo a pessoa participante do grupo levada a ver-se como de cuidado, proteção e educação, sem alterar as situações que as
representante de uma família, com problemas comuns a muitas impedem de fazê-las como há cinquenta anos. É preciso compreen-
outras que sofrem as mesmas determinações e participam de um der as mudanças, inclusive, culturais, sociais e de valores, e buscar
grupo maior, em situações semelhantes. O grupo deve enxergar-se estratégias de convivência com elas, a partir, principalmente, do
como tal, identificar e encaminhar demandas e visualizar possíveis apoio do poder público e da rede social, com acesso igualitário a
soluções e ainda superar a responsabilização individual pelo bem- oportunidades e a recursos públicos e privados.
-estar social para incluir a dimensão pública e social, mediante ar~ As alternativas metodológicas para o trabalho com família
ticulação de serviços e políticas que promovam a proteção social. devem ser pensadas e executadas buscando superar a dicotomia
Acredita-se que, com essa perspectiva, se ultrapasse a noção entre assuntos internos e externos, sem hipertrofiar um em detri-
de subjetividade individual para a dimensão coletiva e se promova mento do outro, mas trabalhar sua dialética, entendendo os inter-
a organização grupal e coletiva das famílias, a participação popu- nos não fechados nos muros domésticos, mas decorrentes da es-
lar e a passagem da necessidade ao direito como possibilidade truturação da sociedade e de suas dinâmicas de transformações e
concreta de construção de novos significados e práticas, inclusive a necessidade do fortalecimento do coletivo na luta pela garantia
a de sujeitos de direitos. Assim, a autonomia, como capacidade de de respostas públicas às necessidades.
decidir, optar e eleger objetivos, metas e crenças, é condição fun-
damental para que se alcancem uma participação social, principal-
S. Emancipação no sentido de superação da subalternidade, de conquista de autonomia
mente para o reconhecimento da força do grupo, da organização e e até de superação da ordem social que gera desigualdades sociais.
236 MIOTO. CAMPOS. CARLOTO FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA 237

CONSIDERAÇÕES FINAIS BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da Família: uma estratégia para a
reorganização do modelo assistencial. Brasília: MS, 1997.
A centralidade da família nas políticas sociais apresenta as- Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, 1990.
pectos significativamente positivos, como redução de custos sociais,
Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome. Política Na-
que seriam maiores se os serviços tivessem como foco os indivíduos; cional de Assistência Social. Brasília: MDS, 2004.
como estratégia para se romper com a lógica da fragmentação,
posto que põe a família no centro das ações e não mais o indivíduo, Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome. Política Na-
pelo fato de representar ela uma unidade de referência mais abran- cional do Idoso. Brasília: MDS, 1994.
gente; por articular ações e políticas diferentes no enfrentamento Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome. Orientações
das suas necessidades, como possibilidade de uma intervenção técnicas sobre o PAIF. Brasília: MDS, 2012.
articulada, mesmo quando há atendimentos por segmentos esses
BRASIL, C. da C. et ai. Apolítica da saúde e a centralidade da família: um
estão relacionados à realidade e demandas da família; ao fortale-
olhar sobre as conquistas e desafios da Estratégia Saúde da Família. In:
cimento do princípio da vida familiar e comunitária, com suas JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICA, 5., São Luís,
diferenças e conflitos (Teixeira, 2009). Os paradoxos aparecem na 2011. [CD-ROM.]
medida em que a família ora é tomada como sujeito de direitos,
merecedora de proteção social, ora como agente de proteção social, CAMPOS, M. S. Família e proteção social: alcances e limites. In: ZOLA,
M. B. (Org.). Cooperação internacional para proteção de crianças e adolescentes:
provedora de assistência e cuidado aos seus membros como prin-
o direito à convivência familiar e comunitária. São Bernardo do Campo:
cipal estratégia das ações de prevenção.
Fundação Criança de São Bernardo do Campo, 2008.
O trabalho com famílias, profundamente marcado por esse
viés, termina assumindo versões normatizadoras e disciplinadoras CARVALHO, L. Famílias chefiadas por mulheres: relevância para uma
sobre os papéis sociais hegemônicos e os comportamentos espera- política social dirigida. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, ano XIX, n. 57,
dos, o que inibe a dimensão emancipatória que poderia ter ou 1998.
proporcionar. Todavia, isso pode ser redirecionado a partir de ESPING-ANDERSEN, G. Socialfoundations of posindustrial economies. New
novas diretrizes que, de fato, se traduza em um trabalho social que York: Oxford, 1999.
visa à autonomia, cidadania e protagonismo social das famílias.
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