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2º Capítulo do TCC
Gianluca Vilela
01/03/2018
Em 1977, Michel Foucault publica o artigo "A vida dos homens infames" em uma
revista francesa, que apresenta alguns fragmentos de arquivos e documentos resgatados durante
anos de pesquisa.1 Nesse artigo, podemos encontrar o projeto de Foucault em fazer uma
"antologia de existências".2
"A vida dos homens infames" apresenta um interesse pessoal de Foucault em "vidas de
algumas linhas ou de algumas páginas".3 São as "vidas breves", que estão presentes em
documentos que contam histórias fragmentadas:
1
Trata-se da revista francesa Les cahiers du chemin, nº 29, 15 de janeiro de 1977.
2
FOUCAULT, 2006, p. 203.
3
O projeto genealógico de Foucault em recuperar "vidas de algumas linhas ou de algumas páginas" parece se
assemelhar ao primeiro livro de ficção do escritor argentino Jorge Luis Borges, História universal da infâmia
(1935). No prólogo, Borges diz: "Os exercícios de prosa narrativa que formam o presente volume foram escritos
de 1933 a 1934. (...) Abusam de certos processos: as enumerações díspares, a brusca solução de continuidade, a
redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas." Em As palavras e as coisas (1966), igualmente no
prólogo, Foucault dedica o nascimento do seu livro a um texto de Borges. C.f. BORGES, 1989, p. XXV;
FOUCAULT, 2016, p. IX.
1
No capítulo anterior, vimos que Foucault menciona os "processos de escrita" ao tratar
da disciplina, em Vigiar e punir.4 Para Foucault, a "escrita disciplinar" serve para a
"acumulação dos documentos" em larga escala e para a criação de um sistema de dados
comparativos que permitem a avaliação, a categorização, a classificação e a fixação de normas:
Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame abre duas
possibilidades que são correlatas: a constituição do indivíduo como objeto descritível,
analisável, não contudo para reduzi-lo a traços "específicos", como fazem os
naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares,
em sua evolução particular, em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle
de um saber permanente; e, por outro lado a constituição de um sistema comparativo
que permite a medida de fenômeno globais, a descrição de grupos, a caracterização
de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição
numa população. (idem)
4
FOUCAULT, 2014, p. 186-187.
5
FOUCAULT, 2006, p. 204.
2
Como se estivesse praticando uma espécie de jornalismo investigativo, Foucault trata
essas vidas como "notícias" e menciona sobre a sua recepção, remetendo à experiência
literária.6 Ele comenta sobre os relatos em poucas frases desses "personagens sem dúvida
miseráveis":
6
Em "A vida dos homens infames, Foucault afirma sobre resgate do que chamamos de escrita dos infames: "...)
diferentemente do que os eruditos recolhiam no decorrer de suas leituras - são exemplos que trazem menos lições
para meditar do que breves efeitos cuja força se extingue quase instantaneamente O termo 'notícia' me conviria
bastante para designá-los, pela dupla referência que ele indica: a rapidez do relato e a realidade dos acontecimentos
relatados; pois tal é, nesses textos, a condensação das coisas ditas, que não se sabe se a intensidade que os atravessa
deve-se mais ao clamor das palavras ou à violência dos fatos que neles se encontram." É importante ressaltarmos
dois pontos para falar de "jornalismo investigativo" aqui: primeiro, estamos frisando o ativismo presente na
teoria/prática de Michel Foucault; e segundo, ligamos essa atividade jornalística do seu pensamento filosófico ao
que ele chama de "ontologia da atualidade". Na aula inaugural do curso O governo de si e dos outros (1983),
Foucault trata da importância da questão da atualidade, do presente no texto "Que é esclarecimento?" (1783), de
Immanuel Kant e, por conseguinte, na sua própria trajetória. C.f. Ibidem, p. 203-204; FOUCAULT, 2010a, p. 3-
22.
3
É justamente em função da "vibração" que lhe causa o contato com relatos esquecidos
de "vidas ínfimas", que Foucault decide organizar uma antologia delas:
Se eu o fiz então é sem dúvida por causa dessa vibração que sinto ainda hoje, quando
me ocorre encontrar essas vidas ínfimas que se tornaram cinzas nas poucas frases que
as abateram. (idem)
Foi para reencontrar alguma coisa como essas existências-relâmpagos, como esses
poemas-vidas que eu me impus um certo número de regras simples:
- que fossem contadas em algumas páginas, ou melhor, algumas frases, tão breves
quanto possível;
- e que do choque dessas palavras e dessas vidas nascesse para nós, ainda, um certo
efeito misto de beleza e de terror. (idem, p. 205-206)
Foucault trata de "vidas reais", que foram resumidas em poucas palavras e que, em sua
maioria, tiveram a morte infeliz como destino. Localiza discursos que atravessaram essas vidas
"riscadas e perdidas":
Vidas reais foram "desempenhadas" nessas poucas frases; não quero dizer com isso
que elas foram ali figuradas, mas que, de fato, sua liberdade, sua infelicidade, com
frequência sua morte, em todo caso seu destino foram, ali, ao menos em parte,
decididos. Esses discursos realmente atravessaram vidas; essas existências foram
efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras. (idem, p. 207)
Visto esse projeto de uma antologia de existências, podemos nos perguntar: o que são,
para Foucault, esses discursos que atravessaram vidas? Quais são os seus efeitos sobre elas?
4
Em Vigiar e punir, Foucault trata dos suplícios, que eram recorrentes no interior dos
mecanismos do poder soberano. Durante um certo período da história, os suplícios deixaram
de ocupar o centro do poder de punir, porque através dele um "horror confuso nascia do
patíbulo". Isso se deu por conta do surgimento de um pensamento humanista por parte de
reformadores das leis criminais no século XVIII, que buscou novas maneiras de exercer o poder
de punir sem uma "cerimônia de violência do soberano assim como do povo". Segundo Josué
Pereira da Silva:
Com a intervenção do humanismo nas estratégias do poder soberano, já não era nada
glorioso, segundo Foucault, ver o carrasco praticando as torturas mais dolorosas ao condenado
em praça pública. Passa a ser considerado "infame" a "violência legal do executor":
7
Silva afirma que existem "três figuras de punição" em Vigiar e punir, de Foucault: "As três figuras de punição
são representadas no livro, primeiro, pela tortura do condenado; segundo, pela reforma humanista que procura
modificar a forma de punição baseada na tortura física pública; e, finalmente, pelo confinamento do condenado
em prisões (...)." C.f. SILVA, 2016, p. 156.
5
No início da modernidade, nasce uma série de instituições disciplinares com o suporte
de um novo mecanismo de poder, que passam a colocar as técnicas de poder soberano em
segundo plano. Porém, Foucault defende, segundo Silva, que o poder soberano e o poder
disciplinar se justapõem:
Temos então uma justaposição de dois mecanismos trabalhando juntos para formatar
a sociedade moderna: o explícito sistema de direito ainda ligado à teoria da soberania,
e os obscuros e inefáveis mecanismos de disciplinas, ambos convergindo para
constituir o grande mecanismo de poder, que funda nossa sociedade moderna. (idem
p. 165)
Segundo Foucault, algumas vidas foram perseguidas pelos efeitos das relações de
poder, que as deixaram com marcas de suas "garras" e, poderíamos dizer, a marca da infâmia
em seus corpos e suas biografias. São os efeitos das relações de poder que deixaram esses
escritos breves pelos quais Foucault se interessa. Giorgio Agamben comenta sobre aqueles que
transmitiram o "arquivo impiedoso da infâmia", que Foucault analisa:
De que maneira essas vidas estão presentes nas anotações míopes e cursivas que as
legaram para sempre ao arquivo impiedoso da infâmia? Os escribas anônimos, os
funcionários menos graduados que redigiram tais observações, certamente não
pretendiam nem conhecer e nem representar; seu único objeto era marcar de infâmia.
(AGAMBEN, 2007, p. 58)
Porém, esses "funcionários do poder" não decidem o futuro das vidas infames. A sua
escrita seria, segundo Agamben, um "lugar possível" para a autoconstituição da subjetividade,
do exercício ético da formação de si:
A vida infame não parece pertencer integralmente nem a uns nem a outros, nem aos
registros dos nomes que no final deverão responder por isso, nem aos funcionários
do poder que, em todo caso, e no final das contas, decidirão a respeito dela. Ela é
apenas jogada, nunca possuída, nunca representada, nunca dita – por isso ela é o lugar
possível, mas vazio, de uma ética, de uma forma-de-vida. (idem, p. 60)
6
Em "A vida dos homens infames", ele afirma que essas vidas apenas puderam deixar
"rastros" por conta do exercício contínuo do poder sobre seus corpos e suas existências:
O poder que espreitava essas vidas, que as perseguiu, que prestou atenção, ainda que
por um instante, em suas queixas e em seu pequeno tumulto, e que as marcou com
suas garras, foi ele que suscitou as poucas palavras que disso nos restam; seja por se
ter querido dirigir a ele para denunciar, queixar-se, solicitar, suplicar, seja por ele ter
querido intervir e tenha, em poucas palavras, julgado e decidido. Todas essas vidas
destinadas a passar por baixo de qualquer discurso e a desaparecer sem nunca terem
sido faladas só puderam deixar rastros – breves, incisivos, com frequência
enigmáticos - a partir do momento de seu contato instantâneo com o poder. De modo
que é, sem dúvida, para sempre impossível recuperá-las nelas próprias, tais como
podiam ser 'em estado livre'; só podemos balizá-las tomadas nas declamações, nas
parcialidades táticas e nas relações com ele. (idem, p. 207-208)
O ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali
onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou
escapar de suas armadilhas. As falas breves e estridentes que vão e vêm entre o poder
e as existências as mais essenciais, sem dúvida, são para estas o único monumento
que jamais lhes foi concedido; é o que lhes dá, para atravessar o tempo, o pouco de
ruído, o breve clarão que as traz até nós. (idem, p. 208)
8
Foucault simula a objeção ao seu projeto de uma antologia de existências, que está atrelada à sua analítica do
poder: "Alguém me dirá: isto é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de
passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma
escolha, do lado do poder, do que ele diz ou do que ele faz dizer." C.f. FOUCAULT, 2006, p. 208.
9
Dentro dos jogos do poder, para Foucault, o resgate da escrita dos infames significa uma "revanche": "Divirtamo-
nos, se quisermos, vendo aí uma revanche: a chance que permite que essas pessoas absolutamente sem glória
surjam do meio de tantos mortos, gesticulem ainda, continuem manifestando sua raiva, sua aflição ou sua
7
tivessem existido", "vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão
aniquilá-las", "vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos". Lembrando de
figuras consideradas "infames" na cultura francesa, Foucault mostra que não está falando
exatamente delas. Essas figuras deixaram "lembranças abomináveis", que lhes fizeram herdar
um "horror respeitoso". Para Foucault, elas são "aparentemente infames", porque, na verdade,
são "homens da lenda gloriosa", mesmo que essa glória atribuída seja diferente daquela que
geralmente faz a imagem de grandes heróis.10
Para Foucault, os "infames" que realmente procura são os "pobres espíritos perdidos
pelos caminhos desconhecidos", aqueles que estão à margem, que tiveram as suas vidas
descritas em "poucas palavras terríveis", de modo que não pudessem ser lembrados
posteriormente por nenhum de seus feitos:
invencível obstinação em divagar, compensa talvez o azar que lançara sobre elas, apesar de sua modéstia e de seu
anonimato, o raio do poder." C.f. Ibidem, p. 210.
10
Ibidem.
8
documentos que datam, todos, mais ou menos da mesma centena de anos, 1660-1760,
e que provêm da mesma fonte: arquivos de internamento, da polícia, das petições ao
rei e das cartas régias com ordem de prisão. Suponhamos que se trate de um primeiro
volume e que a Vida dos homens infames possa se estender a outros tempos e a outros
lugares. (idem, p. 211)
Foucault comenta que essas "vidas mais dignas de pena" são narradas de maneira
"trágica", mas percebe que há um "efeito cômico" nelas. 11 Nos relatos das vidas "infames",
Foucault enfatiza as "desordens insignificantes" e as "desgraças tão comuns":
As vidas mais dignas de pena aí são descritas com as imprecações ou com a ênfase
que parecem convir às mais trágicas. Efeito cômico, sem dúvida: há alguma coisa de
irrisório ao se convocar todo o poder das palavras, e através delas a soberania do céu
e da terra, em torno de desordens insignificantes ou de desgraças tão comuns (...).
(idem)
Até os séculos XVII e XVIII, era, segundo Foucault de Vigiar e Punir, um privilégio
"ser olhado, observado, contado detalhadamente, seguido dia por dia por uma escrita
ininterrupta".12 Os "doentes mentais" ou aqueles considerados "delinquentes" não tinham até
então o menor interesse de terem as suas vidas como objeto de narrativas, como acontece na
"crônica dos reis", na "epopeia dos grandes bandidos populares", etc. Foucault afirma que se
trata de uma "função política da escrita" em uma outra estratégia de poder, que não é mais
aquela de tipo soberano:
11
Um ponto importante da influência nietzschiana de Foucault é o uso do termo "trágico". Em uma de suas últimas
obras, Ecce Homo (1888), Nietzsche diz: "Nesse sentido tenho o direito de considera-me o primeiro filósofo
trágico - ou seja, o mais extremo oposto e antípoda de um filósofo pessimista". Tendo em vista esse
posicionamento de Nietzsche diante do pessimismo filosófico, Tereza Cristina B. Calomeni afirma: "Nada mais
estranho ao filósofo trágico para quem a vida - que não pode ser avaliada - prescinde de uma finalidade a ela
exterior e merece ser afirmada em seus aspectos mais difíceis e estranhos, precários e infames". Desse modo, uma
visão dolorosa e risível da existência não parece excludente a um posicionamento trágico.
O uso do termo "trágico" nos remete também a primeira grande obra da fase arqueológica de Foucault, História
da loucura (1961). Nela, Foucault trata do "elemento trágico" e do "elemento crítico", ou seja, "duas formas de
experiência da loucura": "Apesar de tantas interferências ainda visíveis, a divisão já está feita; entre as duas formas
de experiência da loucura, a distância não mais deixará de aumentar. As figuras da visão cósmica e os movimentos
da reflexão moral, o elemento trágico e o elemento crítico irão doravante separar-se cada vez mais, abrindo, na
unidade profunda da loucura, um vazio que não mais será preenchido". C.f. CALOMENI, 2010, p. 205;
FOUCAULT, 2014b, p. 27; NIETZSCHE, 2008, p. 61.
12
FOUCAULT, 2014, p. 187.
9
Em "A vida dos homens infames", Foucault diz que a "tomada do poder sobre o dia-a-
dia da vida" em sua banalidade e trivialidade remete ao ritual de confissão, presente no
cristianismo. O pecador tem o dever de se dirigir ao confessor através da fala e destrinchar o
"mundo minúsculo do dia-a-dia" com as suas "faltas banais", as "fraquezas mesmo
imperceptíveis" e, inclusive, o "jogo perturbador dos pensamentos, das intenções e dos
desejos". Segundo Foucault, o ritual da confissão é o momento em que "aquele que fala é ao
mesmo tempo aquele de quem se fala":
É com a confissão que Foucault nota, portanto, o nascimento de uma "nova mise en
scène" para a "vida comum".13
De tudo isso, gostaria de deter, por ora, o seguinte: com o dispositivo de petições, de
lettres de cachet [cartas régias] com ordens de prisão, de internamento, da polícia,
nascerá uma infinidade de discursos que atravessa o cotidiano em todos os sentidos,
e se encarrega, mas de um modo absolutamente diferente da confissão, do mal
minúsculo das vidas sem importância. Nas redes do poder, ao longo de circuitos
bastante complexos, vêm prender-se as disputas da vizinhança, as brigas dos pais e
de seus filhos, os desentendimentos dos casais, os excessos do vinho e do sexo, as
disputas públicas e muitas paixões secretas. (idem, p. 216)
13
FOUCAULT, 2006, p. 213.
10
A partir de um dado momento, Foucault diz que o "comum", o "detalhe sem
importância", a "obscuridade", os "dias sem glória", em resumo, a "vida comum", passam a ser
matéria de escritos:
Portanto, o poder que se manifesta na ordem do cotidiano não tem mais o soberano
como o seu personagem principal. Para Foucault, em sua genealogia dos anos 1970, se trata de
relações de poder que alcançam o nível da vida cotidiana, que atua em uma "rede fina" e em
diferentes instituições:
O poder que se exercerá no nível da vida cotidiana não mais será o de um monarca,
próximo ou distante, todo-poderoso e caprichoso, fonte de toda justiça e objeto de
não importa qual sedução, a um só tempo princípio político e potência mágica; ele
será constituído de uma rede fina, diferenciada, contínua, na qual se alternam
instituições diversas da justiça, da polícia, da medicina, da psiquiatria. (idem, p. 219)
Já vimos que os efeitos discursivos sobre as vidas são as marcas deixadas pelas relações
de poder, como a infâmia, que, através do "dispositivo de escrita", capturam os corpos, moldam
os gestos e, por este motivo, dão lugar a modos dóceis de subjetivação. 14 Mas, agora, é a vez
de mostrar que discursos são esses, para Foucault.
14
Sobre o que chamamos de "dispositivo de escrita" aqui, consideramos imprescindível a posição de Agamben
sobre essa expressão: "O sujeito – assim como o autor, como a vida dos homens infames - não é algo que possa
ser alcançado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar; pelo contrário, ele é o que
resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto – se pôs - em jogo. Isso porque
também a escritura – toda escritura, e não só a dos chanceleres do arquivo da infâmia - é um dispositivo, e a
história dos homens talvez não seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles
mesmos produziram – antes de qualquer outro, a linguagem." C.f. AGAMBEN, 2007, p. 63.
11
passam a ser discutidas também no âmbito da justiça. Para Foucault, esse é o momento em que
a "instituição médica, em caso de loucura, deve tomar o lugar da instituição judiciária".15
Quando Foucault trata de problemas como a da "perversidade", as noções da medicina são
postas no "campo do poder judiciário", assim como aquelas que dizem respeito à justiça se
fazem presentes no "campo de competência da medicina":
Foucault menciona duas noções que servem de exemplos para mostrar a articulação
entre o poder jurídico e o saber médico: a "perversão", que liga "conceitos médicos" e
"conceitos jurídicos"; e o "perigo", a noção de "indivíduo perigoso", que torna possível a
criação de "instituições médico-judiciárias":
(...) temos finalmente duas noções que se deparam e que vocês logo veem quão
próximas e vizinhas são: a noção de "perversão", de um lado, que permite costurar
uma na outra a série de conceitos médicos e a série de conceitos jurídicos; e, de outro
lado, a noção de "perigo", de "indivíduo perigoso", que permite justificar e fundar em
teoria a existência de uma cadeia ininterrupta de instituições médico-judiciárias.
(idem, p. 30)
(...) vocês veem que a junção do médico com o judiciário, que é possibilitada pelo
exame médico-legal, essa função do médico e do judiciário só se efetua graças à
reativação dessas categorias, que vou chamar de categorias elementares da
moralidade, que vêm se distribuir em torno da noção de perversidade e que são, por
exemplo, as categorias de "orgulho", de "obstinação", de "maldade", etc. Em outras
palavras, a junção do médico com o judiciário implica e só pode ser efetuada pela
reativação de um discurso essencialmente parental-pueril, parental-infantil, que é o
15
FOUCAULT, 2010b, p. 27.
12
discurso dos pais com os filhos, que é o discurso essencialmente dirigido às crianças,
discurso necessariamente em forma de bê-á-bá. (idem)
Mesmo com essa articulação entre poder judiciário e saber médico, a entrada dos
técnicos da medicina no campo jurídico e dos técnicos do direito no campo médico não se deu
pacificamente, segundo Foucault. Para que houvesse o exercício do "poder judiciário do
médico" ou o "poder médico do juiz", uma série de conflitos foram gerados entre os campos
da medicina e da justiça no início do século XIX:
(...) desde o início do século XIX, não se para de reivindicar, e cada vez com maior
insistência, o poder judiciário do médico, ou o poder médico do juiz. No início do
século XIX, no fundo, o problema do poder do médico no aparelho judiciário era um
problema conflituoso, no sentido de que os médicos reivindicavam, (...) o direito de
exercer seu saber no interior da instituição judiciária. (idem, p. 33)
Porém, existe, para Foucault, uma "espécie de terceiro termo insidioso e oculto", além
do poder jurídico e do saber médico. Ele se encontra "cuidadosamente encoberto" pelos
conceitos judiciários de "delinquência", de "reincidência", etc., e aqueles que dizem respeito à
medicina, como a "doença". Para Foucault, esse terceiro termo coloca para funcionar um
"poder que não é nem o poder judiciário nem o poder médico", mas que é chamado por ele de
"poder de normalização". Naquilo que toca o problema dos "anormais", esse poder de
normalização faz com que aconteça a articulação entre poder judiciário e saber médico, de
modo que haja a instauração de um "controle do anormal":
13
jurídicas de "delinquência", de "reincidência", etc., e os conceitos médicos de
"doença", etc. Ele propõe, na verdade, um terceiro termo, isto é, ele pertence
verossimilmente (...) ao funcionamento de um poder que não é nem o poder judiciário
nem o poder médico, um poder de outro tipo, que eu chamarei, provisoriamente e por
enquanto, de poder de normalização. Com o exame, tem-se uma prática que diz
respeito aos anormais, que faz intervir certo poder de normalização e que tende,
pouco a pouco, por sua força própria, pelos efeitos de junção que ele proporciona
entre o médico e o judiciário como o saber psiquiátrico, a se constituir como instância
de controle do anormal. (idem, p. 36)
Discutimos aqui sobre os discursos do poder jurídico e do saber médico, bem como sua
articulação no campo na normalização e dos efeitos das relações de poder sobre as vidas e a
marca da infâmia que fica nelas. Agora, vamos discutir como as escritas produzidas pelos
infames podem ser consideradas resistentes ao poder.
Em "A vida dos homens infames", Foucault se refere à articulação entre a literatura e a
massa documental que dá testemunho das vidas infames, que possui uma íntima relação com o
que é rotineiro. Segundo Foucault, a literatura e a "carta régia com ordens de prisão", que datam
os séculos XVII e XVIII, estavam atentas igualmente às "relações do discurso, do poder, da
vida cotidiana e da verdade":
Não quero dizer que a carta régia com ordens de prisão está no ponto de origem de
formas literárias inéditas, mas que na virada dos séculos XVII e XVIII as relações do
discurso, do poder, da vida cotidiana e da verdade se entrelaçaram sob um novo modo
em que também a literatura se encontrava engajada. (FOUCAULT, 2006, p. 220)
Aquilo que está na ordem da "vida do dia-a-dia", para Foucault, só foi contada desde
que passasse pela ótica das fábulas, do que era considerado "fabuloso" no Ocidente até então.
Essa maneira de contar histórias tinha de passar pelo herói e pelos elementos de "façanha",
"providência", "graça", etc., que marcam o aspecto extraordinário das fábulas mais arcaicas.
De vez em quando, segundo Foucault, o "crime abominável" é contado com esse tom de
fabuloso, já que existe a marca e o "toque de impossível" em seu conteúdo:
14
Por muito tempo, na sociedade ocidental, a vida do dia-a-dia só pode ter acesso ao
discurso atravessada e transfigurada pelo fabuloso; era preciso que a vida fosse
extraída para fora dela mesma pelo heroísmo, pela façanha, pela providência e pela
graça, eventualmente por um crime abominável, era preciso que ela fosse marcada
com um toque de impossível. (idem)
Mas se o fabuloso contado era de vidas consideradas ilustres, para Foucault, uma série
de narrativas surgem, a partir do século XVII, sobre a "vida obscura". 16 Dispositivos de poder
incitam a dizer aquilo que está no nível da vida ínfima, que não era dito, que não dispõe de
glória, ou seja, aquilo que é chamado de "infame". A partir da disciplina, Foucault diz que a
escrita não manifesta mais como antes aquilo que está na ordem do heroico, mas aquilo que é
quase imperceptível, "o mais escondido", "o mais penoso de dizer e de mostrar", "o mais
proibido e o mais escandaloso":
Para Foucault, essa escrita dos infames não seria algo próximo do que se pode chamar
de literatura, nem mesmo o "esboço de um gênero" literário, mas o "trabalho do poder sobre as
vidas, e o discurso que dele nasce":
Foucault está diante de um tipo de escrita que diz sobre uma "prática social complexa",
que está inserida nas relações de poder, e não em um "lugar de exterioridade". Essa escrita
mostra uma "multiplicidade de poderes e de resistências locais", ou seja, tanto o esforço das
estratégias de poder para capturar os corpos e as vidas dos indivíduos, como a tentativa destes
16
FOUCAULT, 2006, p. 220.
15
de responder com o contrapoder. Portanto, a escrita dos infames mostra o cruzamento dos
mecanismos de poder e das estratégias de contrapoder, que estão em lutas que não cessam.17
BIBLIOGRAFIA
BORGES, Jorge Luis. História universal da infâmia. São Paulo: Globo, 1989.
FOUCAULT, Michel. História da loucura: na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2014.
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de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
________. O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982-1983). São Paulo:
Martins Fontes, 2010a.
________. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes,
2010b.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
SILVA, Josué Pereira. "Poder e direito em Foucault: relendo Vigiar e punir". In: Lua Nova,
São Paulo, Nº 97, 2016.
17
YAZBEK, 2016, p. 33.
16
YAZBEK, André Constantino. "O louco e o sonhador: Jacques Derrida leitor de História da
loucura, de Michel Foucault (notas sobre uma polêmica)". In: Revista Trágica: estudos de
filosofia da imanência. Rio de Janeiro: UFRJ, v. 9 n. 2, 2016, p. 21-40.
17