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TRÊS COISAS QUE EU ACHO QUE SEI SOBRE OPAVIVARÁ!

Há uma genealogia. Dela faz parte, sem dúvida, João do Rio e a vontade de capturar o ritmo,
os modos e os tipos das ruas. Um olhar para fora da casa, enfim conquistado. Faz tempo isso,
início do século que já é passado. Ainda na literatura, talvez João Antônio, paulista que viveu
anos em Copacabana, escrevendo através dos olhos de vagabundos, putas, loucos e todos os
que resistem ao regramento da vida ordinária. Também está nela, é evidente, Flávio de
Carvalho, que imaginou a “cidade do homem nu”, livre dos preconceitos burgueses e
paroquiais. Aquele híbrido de artista-arquiteto-engenheiro-escritor que perdeu o pejo e o nojo
de lançar-se à prova dos nove da vida. O mesmo que, na São Paulo acanhada de muitas
décadas atrás, quis atravessar sozinho a procissão de Corpus Christi, no sentido contrário ao
que vinham os fiéis compactos e contritos, ainda mais de gorro enterrado na cabeça, sendo
por isso quase linchado. O homem que quis fundar o cortejo dos desgarrados e reinventar a
relação com Deus e os anônimos que formam multidões sem faces. E que tempos depois
desfilou de saia no centro da cidade, desvelando o disparate de o brasileiro vestir-se como
vivesse na Europa. Há vários outros que pertencem a esse inventário breve, e os que aqui vão
citados são os incontornáveis. Lygia Pape, por exemplo. Aquela que via “espaços imantados”
formarem-se nos movimentos coreografados de gentes nas ruas, criados pelo vendedor
ambulante ou pelo mágico; por aqueles que buscavam juntos o parque aos domingos; pelos
outros reunidos para fazer ginástica no estacionamento vazio de carros; pelos capoeiristas que
jogam seus corpos suados na praça e lutam. Espaços imantados são os pontos vitais da cidade,
entre os quais seus habitantes se deslocam o tempo inteiro, puxando um fio que se trança e se
enovela, estabelecendo formas novas e variadas de relacionar-se com um lugar. Lygia Pape
que quis a todo custo apreender em fotografias esses territórios inventados, tarefa tão crucial
quando inglória: a captura do essencial é sempre falhada, embora seja impossível não buscá-
la. Na lista resumida de aparentados se impõe ainda José Celso Martinez Corrêa e sua Uzyna
Uzona, bacantes dispostos a beber o mundo e a dançá-lo, fazendo do encontro dos corpos e
do gozo partilhado armas certeiras contra o encolhimento moral. Trazendo a rua suja e
transparente para dentro da instituição-teatro, quebrando quantas paredes fossem
necessárias para que ela de novo se impusesse como espaço da celebração possível de uma
vida nômade. E há, é certo, Hélio Oiticica, que um dia propôs um “esquenta pro carnaval” no
boteco Buraco Quente, no Morro da Mangueira, como o ambiente propício à emergência de
um estado de invenção radical. E que com seu “delirium ambulatorium” apontou o deambular
ocioso como a expressão melhor de um projeto de ambientação e imersão no cotidiano. Um
jogar-se na vadiagem que se abre para o que está nas ruas em busca de elementos – prosaicos
ou extraordinários, suaves ou ásperos – que emancipem o corpo. O que um dia foi museu, aqui
se transforma efetivamente no mundo, e o ‘verdadeiro fazer’ da arte se torna a vivência de
cada um. É nessa herança potente que OPAVIVARÁ! se banha, estendendo-a e ampliando-a
para outros lugares e tempos.

Há também um contexto geográfico de origem. A cidade do Rio de Janeiro. A de ontem como a


de hoje. A de hoje comendo a de ontem por meio de demolições e remoções, sem incorporá-la
de fato ao tecido orgânico do corpo urbano. Expelindo-a por vezes como resto, apagando
rastros, desmanchando memórias, desfazendo, com ligeireza, arranjos sociais longamente
construídos. Um contexto que também acolhe resistências, de variadas intensidades e origens.
Da população moradora de áreas afetadas por demolições e ‘requalificações’, deslocada dali
para acolá em prol de um processo apressado de urbanização, acuada pelo tudo ou nada
indenizatório que suprime o direito à escolha livre. Resistência de profissionais da rua e da
academia, da puta e do arquiteto, do camelô e do urbanista, todos inventando novas
disciplinas para falar de volta a um Estado atravessado de interesses que não são públicos.
Sozinhas ou em grupos, pessoas que de algum modo opõem-se à anulação daquilo que faz das
suas vidas um evento singular no mundo. Resistência da arte, em suas inúmeras aparições
possíveis. Das práticas simples de criação que, por não se deixarem instrumentalizar pela
lógica produtivista, incomodam quem se quer atribuir o poder de mando em tudo. Contexto
que é também a territorialidade aberta das muitas ruas e praças da cidade, transformadas em
campos de infinda luta. Cartografia dos lugares onde o encontro é ainda possível, onde as
pessoas trabalham e dançam indistintamente. Mesmo lugares que são inundados pela chuva,
soterrados pela lama ou consumidos por chamas. Esse contexto geográfico não é, todavia,
restritivo. O mapa simbólico e afetivo da cidade do Rio de Janeiro se expande e desmancha,
abarcando diversos outros espaços. Se nessa cidade está o foco do que aqui se tenta falar, logo
ele se espalha, alcançando experiências semelhantes vividas pelos habitantes de outros
lugares: de Salvador a São Paulo, de Belém ao Recife, de Fortaleza a Brasília, de Belo Horizonte
a Porto Alegre. Cidades que constam do mapa de experiências urbanas desmanteladas por
projetos de intervenção privada e pública em espaços de morada e convívio e que, apesar de
tudo, resistem. É nessa cartografia ferida e viva que OPAVIVARÁ! atua.

Há uma estratégia para isso. Não se trata do que se convencionou chamar de ativismo. Não se
trata tampouco de ‘explicar’ o que acontece. Não se quer tornar didático o que é por demais
sabido. Nutre-se horror ao tédio das convenções políticas. Principalmente, não se quer ser
condescendente e paternalista com os mais afetados pelas transformações em curso. O que se
quer é criar situações que ativem e aumentem a potência de vida. Situações fincadas no
cotidiano dos afetos comuns, como fazer e compartilhar comida. Como beber e dançar juntos,
ou festejar um dia qualquer reunidos na praça, na praia ou na rua. Fazer o carnaval fora de
época, posto que no tempo que é próprio dele a sua força transformadora se atenua.
Fantasiar-se para encenar a mudança prometida, descondicionar o corpo e sugerir outras
vivências possíveis. Há quem pergunte se isso é arte. A resposta vem de Jean-Luc Godard, um
artista: Arte é aquilo que é do âmbito do desvio e da exceção; não se confunde com cultura,
que é o que afirma normas e regras a serem seguidas. Arte incomoda, desassossega, por vezes
se faz incompreensível (e por isso é importante). Alarga, pouco a pouco e sempre, o espaço em
que se pode partilhar projetos e perseguir trajetórias comuns. É nesse sentido que a arte de
fato faz política. A sua política, não a outra. Uma refeição inesperada na praça, uma festa
improvisada em qualquer parte. Um corte na realidade quando nada era aguardado. O roçar
de uma realidade em outra, a abertura de entradas para territórios novos. Quem sabe? Um
cortejo de fantasiados nas ruas de comércio do Saara. Fantasias feitas das coisas encontradas
ali mesmo, nas tantas lojas que ainda não queimaram. Coisas que estão no cotidiano das
pessoas que trabalham e vivem ali, e que, ao mesmo tempo, amparam a reinvenção do que se
esquece com a rotina diária. Deslizamentos de significados, mudanças sugeridas nos modos de
perceber o mundo. Roupas que são dispositivos de afecção. Roupas para olhar e para vestir.
Roupas para desfilar na vida. Deambulação que serve para nada, ou para a criação do que não
se sabe ainda o nome. É isso o que OPAVIVARÁ! faz. Agora. Depois tem mais.

Moacir dos Anjos

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