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que existe uma multiplicidade de justificativas, explicações e discursos que se
relacionam com saberes da tradição, terapias que não estão vinculadas ao
conhecimento científico ocidental e até mesmo modelos de tratar como os que
acontecem nos terreiros das religiões afro-brasileiras, nos sistemas de conheci-
mento indígena e no conhecimento popular.
Os profissionais de saúde, de maneira geral, desenvolvem suas
práticas a partir de competências e habilidades adquiridas por meio França
de um processo de formação que tem por base o acúmulo e desen- O texto faz referência
volvimento de conhecimentos e de tecnologias que, por sua vez, a Louis Villermé que,
são orientados pelos princípios de racionalidade científica que lhes na França, em 1840,
confere estatuto de verdade. pesquisava a
Como o desenvolvimento do conhecimento humano é um processo his- pobreza, as condições
de trabalho e suas
tórico, também em relação à saúde/doença, a teoria e a prática que orientam o
repercussões sobre a
saber-fazer dos profissionais variam no tempo e no espaço. Na Grécia antiga, a saúde da população e
saúde e a doença eram consideradas fenômenos naturais na vida de uma pes- militava contra a
soa, pertenciam à Natureza, tanto quanto uma árvore que nasce, cresce, dá opressão dos
frutos e com o tempo envelhece e morre. Não havia médicos, enfermeiros, governos
nutricionistas, embora houvesse profissionais que cuidavam da estética e do absolutistas.
vigor dos atletas. O estudo em saúde dirigia-se aos ares, águas e lugares, não
ao cuidado, que era relegado aos escravos e às mulheres.
Na Europa do século XVIII, a doença, reconhecida como um estágio dife-
rente da saúde, ganhou duas importantes concepções que definiram as práti-
cas e os sujeitos dessas práticas.
Em um primeiro momento, a doença era considerada resultado da manei-
ra como se constituíam os aglomerados humanos, evidenciada quando do apa-
recimento de epidemias, sendo as ações daí decorrentes responsabilidade dos
governos da época, fazendo com que surgissem profissionais e militantes polí-
ticos que, na França, por exemplo, diziam que as causas das epidemias são
sociais, econômicas e físicas e o remédio recomendado consistia em prospe-
ridade, educação e liberdade, que só poderiam se desenvolver numa demo-
cracia plena e ilimitada.1
Outras práticas eram desenvolvidas por agentes que atuavam como fis-
cais e guardas com o objetivo de livrar a sociedade das condições que colo-
cavam em risco a saúde da população, queimando objetos pessoais daqueles
que morriam, isolando os que apresentavam sinais de doença.
Num segundo momento, quando da descoberta do microscópio, as doen-
ças passaram a ter uma causa visível o micróbio orientando o conhecimen-
to e as práticas sobre a saúde/doença, que passaram a ter como prioridade a
compreensão da dinâmica e das maneiras de se evitar os efeitos da presença
desse agente.
Esses conhecimentos e práticas ainda hoje encontram-se presentes tanto
em determinados fatos cotidianos como nas práticas profissionais. Podemos A Miasmas seriam as
citar a proibição de enterrar os mortos em igrejas e a regra dos túmulos apre- emanações
sentarem sete palmos de profundidade, resultados da concepção de que a provenientes de
animais ou vegetais
doença se transmitia pelos miasmas que fluíam dos cadáveres, devendo esses
em decomposição.
ser isolados em locais apropriados.
1. Terris, M. Conceptos de la promoción de la salud: dualidades de la teoria de la salud publica. Journal of Public Health
Policy, 13 (3): 267-276, 1992.
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É interessante o que acontece com o chamado padrão de beleza. Se você
tiver oportunidade de observar alguns quadros ou esculturas antigas, que mos-
tram as pessoas que viveram nos séculos passados, verá que existe uma gran-
de diferença entre homens e mulheres daquele tempo e aqueles que hoje são
considerados exemplos de beleza.
E a predominância desse padrão ideal de saúde e beleza é tão forte que
contribui para o crescimento de um imenso mercado de produtos que obje-
tivam fazer com que as pessoas atinjam esse ideal. Existem revistas, jornais e
programas de televisão que dão dicas para emagrecer, ter um corpo escul-
tural, diminuir rugas e retardar o envelhecimento. Existem, à venda, vitami-
nas específicas, cremes, aparelhos para enrijecer os músculos, alimentos sin-
téticos, cirurgias plásticas e outros produtos que transformam as pessoas em
consumidores implacáveis dessas mercadorias, na esperança de se aproxi-
marem dos modelos de beleza e saúde que vemos nos cartazes, no cine-
ma, na televisão e que povoam nosso imaginário.
2. Os determinantes da saúde
Em razão do que vimos até aqui, poderíamos deduzir que a saúde e a
doença dos indivíduos e dos coletivos humanos apresentam várias causas e
dependem de vários elementos que podemos chamar de determinantes de
saúde e de doença.
Existem determinantes do estado de saúde que dizem respeito às condi-
ções que as coletividades, as cidades, as locorregiões ou o país apresentam,
como nível de desenvolvimento social e econômico, como infraestrutura,
como participação das pessoas nas decisões sociopolíticas e como grau de
desigualdade de renda, entre outros fatores.
2. Martins, A. Biopolítica: o poder médico e a autonomia do paciente em uma nova concepção de saúde. Revista Interface
Comunic.Saúde. Educ., v.8, n.14, p. 21-32, set., 2003 fev. 2004.
3. Ochoa, F.R.R, Pardo, C.M.L., Ayzaguer, L.C.S. Indicadores de salud e bien estar em municípios saludables. Washing-
ton: Organización Panamericana de la Salud (OPAS), Organización Muldial de la Salud (OMS); 1994.
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que objetivem a modificação dos deter-
minantes e dos condicionantes da saúde nos
ambientes de moradia, vida e trabalho.
Entretanto, para operar no sentido da
integralidade, considerar a saúde das pes-
soas e da população e construir compro-
missos de gestão, é importante que as
propostas organizativas, assistenciais e de
promoção da saúde se aproximem mais das pessoas, respeitando aquilo que
elas conhecem e valorizando sua cultura. É muito importante considerar a
sabedoria popular na construção dos sistemas de informação, no cuidado aos
problemas e na regulação da qualidade dos serviços. Também é importante o
respeito à crença das pessoas, não banalizando sua espiritualidade e promo-
vendo a auto-estima e a autoconfiança, para que os usuários compareçam,
com autonomia, ao encontro com os profissionais e sistemas de atenção à saú-
de e exerçam efetivamente seu direito de controle social.
Até aqui, fizemos uma aproximação mais geral à noção de saúde como
um processo móvel e instável, entre processos biológicos, vivências e condi-
ções de vida e trabalho. Nos próximos textos, a proposta é de aprofundar a
compreensão de saúde como noção de vida e não como um fenômeno das
ciências naturais. A vida expressa a produção dos homens e do mundo, sen-
do o processo saúde-doença constitutivo das experiências da vida.