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O que é literatura?
O que é a literatura se não um conjunto de estórias? De “mentiras bem
contadas”?2
Philip Sidney, em seu Apology for Poetry (apud VEITH, 1990, p.60)3, afirma
que: “Mentir é afirmar ser verdadeiro aquilo que é falso. [As obras ficcionais] nada
afirmam e, portanto, nunca mentem.”4. A obra ficcional não é uma mentira pois não
tem a intenção de se afirmar como verdade. A obra literária não é a constatação
de um fato, nem a exposição de uma argumentação lógica. Flaubert não quer
provar que Bovary existiu, ele quer, arriscamos dizer, fazer pensar “e se” Bovary
existisse. Pensar “e se” não é sair da realidade, é expandi-la, aprofundá-la.
Dessa forma, a Literatura é uma forma de expansão da realidade na
medida em que nos proporciona uma outra forma de experienciá-la. Obviamente
não queremos dizer que a leitura de Guerra e Paz nos permitirá dizer que vivemos
uma guerra, assim como ninguém se contentará em deixar de ir ao Egito apenas
por ter lido o guia de viagem. A experiência vivida através da leitura é uma
experiência vivida por meio da imaginação. A literatura é então referenciada como
algo importante por proporcionar ao ser humano um de seus atributos mais
extraordinários: a capacidade de experimentar, não hipotética, mas
imaginativamente, e significar a experimentação como “experiência de vida”. Ou
ainda:
5
As ideias comunicadas em um texto fazem uma diferença
prática na sua vida. De forma semelhante, poemas e histórias
podem trazer algo à sua atenção de modo que você comece a
pensar diferente sobre alguma coisa e então agir a partir
desse novo pensamento de modo bastante concreto. Ler
1 Jade Magave, mestranda em Educação, Arte e História da Cultura, formada em Letras. Raquel Endalécio, mestre em
Culturas e Identidades brasileiras, formada em letras, com bacharelado em edição. Noemih Sá Oliveira, estudante em
curso de extensão de Filosofia, formada em Letras e Pedagogia, pós-graduada em Escrita Criativa. Texto base da
Oficina Literatura, imaginação e cosmovisão cristã oferecida no Congresso Nacional de Educadores, Conduzindo os
alunos na verdade, 30 e 31 de maio de 2013 - Associação Internacional de Escolas Cristãs, Brasil.
2 Tradicionalmente, consideramos literatura textos produzidos em prosa e poesia, no entanto, nos deteremos em textos
em prosa, não por desmerecer a poesia, nem os outros gêneros, pelo contrário, apenas como estratégia para delimitar
nossa questão principal.
3 VEITH JR., Gene Edwards. Reading between the lines: a christian guide to literature. USA, Crossway books, 1990.
4 No original: “To lie is to affirm that to be true which is false. [The fictional works] nothing affirms, and therefore never
lieth.”
5 No original: “The ideas communicated through the text make a practical difference in your life. In similar way, poems
and stories can bring things to your attention in such a way that you might begin to think differently about something and
then go on to act on these new thoughts in a very concrete way. Reading texts enables us to participate in life, not to
escape it.”
textos nos permite participar da vida, não escapar dela.
(GALLANGHER;LUNDIN, XXV)6
Literatura e educação
6 GALLAGHER, Susan; LUNDIN, Roger. Literature through the eyes of faith. USA: Haper Collins, 1989.
7
MORIN, Edgar. Amor, poesia e sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998.
8 No original: “Life is full and rich and complex like a story, not abstract and neat like a theory.”
corrente sobre o impacto dos jogos, sobretudo os de videogames, na vida das
crianças, ou mesmo classificações indicativas nos cinemas.
Isso significa que sim: um amigo, um filme, um jogo podem impactar
profundamente a vida de uma pessoa, ao servir de critérios para seu parâmetro de
verdade e conduta. Quando se é um instrumento de “humanização”, está implícito
participar ou ter poderes de acessar esse âmago da condição humana: a busca
pela verdade e uma verdade que sirva de parâmetro para a vida.
Mas ser um dos “instrumentos” que têm esse poder de acesso às nossas
questões existenciais não é, como acabamos de constatar, exclusividade da
literatura. E, como foi colocado também esse “poder” é relativo. Ele é relativo
porque não é um livro, ou um filme, ou uma conversa que consolidam uma
verdade de vida, eles podem até ser decisivos, mas nunca autônomos. E é
justamente por isso, que a literatura realmente pode ser um “instrumento”
imprescindível em educação.
Por um lado, a educação tem como um bem a ser defendido que o
estudante entenda a complexidade da vida, e desenvolva e amadureça sua
consciência. Mas, por outro lado, não há como ensinar a complexidade da vida e
desenvolver a consciência do outro sem verdadeiramente tocarmos nos assuntos
complexos e difíceis de se lidar. Ou seja, é preciso estar preparado para a
literatura. E o principal mediador nesse processo, hoje, é o professor.
9 No original: “As we read, we encounter the many possible human reactions to life and explore the infinite options of
God’s world. Reading helps us to discover some of the incredible possibilities and inevitable limitations of life.”
No realismo de Eça de Queiroz, uma sociedade burguesa de mentalidade
diminuta (Luísa, que tem relações conjugais com o primo Brasílio, é Luisinha,
mesmo10). No existencialismo de Sartre, uma escolha que os homens fazem pela
vida que têm diante de si (e a prostituta pode ser infinitamente mais respeitosa do
que o filho de uma respeitada figura política11). No fairy de Tolkien, existe um mal
que incita a corrupção do coração dos homens12.
Isso significa que as obras literárias, embora sempre ofereçam um sentido
para aspectos da vida, e metonimicamente, para a vida inteira, divergem no
parâmetro de sentido que oferecem? Precisamente.
Mas, existe essa diversidade de crenças sobre o sentido da vida desde a
nossa pré-história ― a julgar pelo que atesta a própria diversidade de sentidos
manifestada pela pintura rupestre.
Nesse sentido, como primeiro dissemos na abertura desse tópico, a
literatura tem sido defendida no âmbito escolar justamente por proporcionar uma
discussão da complexidade, exercitando a consciência. E mais: poderíamos
discutir a complexidade da ação humana contra seu igual de infinitas formas, mas
poucas delas nos dariam um campo tão confortável (para um assunto tão
incômodo) como o literário: é bem mais fácil discutir essas questões quando
sabemos que as estamos discutindo como que tendo-as vivenciadas nós mesmos,
julgando nossa própria consciência diante de momentos difíceis de tomadas de
decisão, mas falando do que Luísa fez, ou se Juliana tinha ou não razões para
fazer o que fez, ou para merecer o fim que teve, ou mesmo definirmos o caráter de
Basílio.
Ainda assim, no entanto, assusta a missão de discutir, em âmbito escolar,
assuntos de natureza tão pessoal, tão carregados de subjetividades, e crenças, e
achismos, e preconceitos. A pergunta é: não é importante que essas questões
sejam discutidas? Não é importante que as crianças e adolescentes percebam a
complexidade dessa busca de sentido, de como as pessoas criam parâmetros
diferentes para lidar tanto com uma como com a outra? Não é importante que ela
defina um parâmetro seu conscientemente, já que será inevitável que estabeleça
algum ― afinal lida com as mesmas questões?
Em Notas sobre a experiência Jorge Larrosa defende uma educação a
partir da experiência e do sentido, o que, se levarmos em conta o que tem sido
defendido neste artigo, seria uma educação onde a literatura é fator essencial.
Para Larrosa, vivemos em um mundo onde “nunca se passaram tantas coisas,
mas a experiência é cada vez mais rara.”13 Ou seja, a cada dia muitas coisas
passam e acontecem, mas não nos passam, não nos acontecem, enfim não nos
tocam. Isso significa que não temos tido tempo para de fato viver experiências e
assim dar sentido ao que nos acontece. Assim, a escola oferece muita informação
sobre literatura e as revistas estão cheias de opiniões sobre tal livro e tal autor,
mas poucas vezes temos a felicidade de viver de fato a experiência da literatura e
muito menos de falar sobre essa experiência vivida em nossas salas de aula.
Aliada ao problema da falta de tempo está a valorização do saber científico
em detrimento dos valores éticos e morais, isto é, a escola tem sido um lugar para
se adquirir informações, se preparar para agir, somente, e não um lugar para
aperfeiçoar o caráter, formar a alma. O filósofo espanhol Fernando Savater explica
que:
Cabe, portanto, à escola cristã, para que seja coerente com seus
fundamentos, investir tempo na formação da alma e isso significa investir tempo,
também, na leitura e discussão de obras literárias. Não significa que a literatura
servirá como redenção do homem, ou salvação de sua alma. E, embora ela possa
ser um meio de edificação do caráter cristão, isto não é algo que lhe é exclusivo e
nem é essa sua função principal. A maior importância da literatura na escola cristã
parece ser essa capacidade de cultivar a reflexão e a “experimentação” (ainda que
imaginativa) da complexidade do mundo criado por um Deus provedor de sentido.
Mas o que fazer quando o sentido, o parâmetro de mundo formador de uma
obra literária for conflitante com o parâmetro cristão? Em regra geral, acreditamos
que ainda assim tais obras devam ser lidas e discutidas, embora também
entendamos que existem obras que não lemos (nem nós mesmos) ou indicamos
porque julgamos a obra uma literatura “menor” (no sentido de explorar pouco da
complexidade da vida), ou porque falta-nos maturidade para aquele tipo de texto –
tudo o que pode acontecer também às pessoas para quem indicamos, ou com
quem trabalhamos com leituras. Mas se deixar de ler, ou discutir, um livro
considerando-o maligno em si por anuência a um estereótipo é resvalar em um
separatismo não apenas impossível, mas inconsequente, porque assim não
formaremos cristãos capazes de intervir na cultura. Cristo ao orar por seus
discípulos pede ao Pai não que os tire do mundo, mas que os proteja do maligno15
e também ordena aos seus discípulos que sejam sal e luz neste mundo16 ― o que,
por razões lógicas, é impossível de se fazer caso não se esteja nesse mundo.
Portanto, a maior preocupação da escola cristã não deve ser proteger do contato
com mundo, mas proteger do maligno: ou seja, estar disponível ao contato mas
estabelecer critérios, parâmetros, para a interação.
Portanto, mais importante do que a escolha dos livros, é essencial a uma
escola e à comunidade cristã (família, igreja) o ensino sólido do parâmetro que
elas têm a oferecer: Jesus Cristo e a mensagem de Deus revelada nas escrituras.
Note-se também que ensinar um parâmetro não implica em obrigá-lo. A exemplo
dos judeus, ninguém é obrigado a matricular seus filhos em escolas judaicas, mas
eles as têm para seus próprios filhos, justamente para que eles aprendam os