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Breviário sobre o corpo


Lygia Clark
Lembrando os 20 anos sem Lygia Clark, Arte&Ensaios reedita Breviário sobre corpo, o
seminal ensaio da artista no qual percebemos que a fronteira do objeto de arte ultrapas-
sa os limites do espaço e atravessa o campo da escrita. Esse ensaio, sem data, repre-
senta ínfima parcela da extensa produção literária de Lygia, que não tem a menor
pretensão de explicar suas obras, mas sim, definitivamente, de ampliar um tecido, a
extensão de um corpo que é modelado a partir do diálogo entre a escrita e suas propo-
sições. Habitamos um tempo em que virou prática comum na crítica de arte a leitura da
fusão de arte e vida, porém nada consegue ser tão vivo, corpóreo e pulsante quanto este
relato ficcional/verídico/alucinatório de Lygia. Organizada por Felipe Scovino, esta reedição
inclui ainda uma resenha do crítico.
Lygia Clark, corpo, arte contemporânea.

I. Sou da família dos batráquios: através da só, posso dar também as mãos ao outro,
barriga, vísceras e mãos, me veio toda a per- estendê-las ao seu alcance, convidá-lo a uma
cepção sobre o mundo. Não tenho memó- comunicação. A roda da criançada sempre
ria, minhas lembranças são sempre relacio- cantando é um constante dar-se as boas vin-
nadas com percepções passadas, apreendi- das, integrar-se ao mundo dos vivos, partici-
das pelo sensorial. Num lapso de segundo par deste viver. Dar-se as mãos quando se
eu me sinto tomada pela quentura da ma- dança é oferecer-se a si e ao outro o prazer
madeira na palma da mão, acompanhada da solidão quebrada por um momento na
pelo gosto do leite morno que desce deva- comunicação de dois corpos que, em princí-
gar, deixando um rastro de bolhas atrás de pio, deveriam se completar sempre, o cheio
si. Experiência esta, talvez a mais remota e o vazio, janela aberta, convite ao debru-
dentro da minha vivência, inscrita no meu çar-se. As mãos que possuem a magia do
passado, que se faz presente ainda hoje. arrumar, do dar, do carinho, do tirar, do ba-
Havia uma tal incorporação e coesão neste ter, do se limpar e se sujar, da oração, do
instante que hoje só é comparável a esta gesto maquinal, do tatear do cego, do co-
sensação, me vem outro instante em que, nhecimento da criação. Se você não tiver uma
me sentindo inteira, coesa, unida, me sinto face, as mãos dirão por ela quem você é. Se
como se estivesse de mãos dadas comigo você não tiver coração, as mãos falarão por
O eu e o tu: série roupa- mesma. O gesto tem a característica da con- você. Se você não tiver cabeça, elas farão
corpo-roupa
corpo-roupa, 1967 centração no momento da oração. Fusão das uma por si, mas se você não as tiver, pode
Macacões feitos em
borracha, espuma, tecido, polaridades, do direito e do esquerdo, do esconder atrás da sua face, do seu coração,
acrilon que era e do que está sendo. Dar-se as mãos do seu raciocínio, você é como uma ave sem
170 x 68 x 8cm a si mesma: muito prazer em conhecer-nos, asas e o seu andar tornar-se-á pesado e
Col. Família Clark
eu vou bem obrigada, este é o meu mo- inexpressivo, pois elas estarão invisíveis, jun-
Foto: cortesia Associação Cultural
O Mundo de Lygia Clark mento, eu sou solitária, aceito ser um “ser” to aos teus pés; pás de remos do gesto, an-

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cinho que apaziguou a terra, terra que será ções para construir-se a realidade do meu
aberta um dia por outras mãos, para que mundo. Mãos que cavaram a minha perma-
sejas embrulhado como um presente den- nência no mundo, que abriram a minha pas-
tro de uma caixa forrada de cetim e assim sagem através do novo nascimento depois
possas aspirar com sossego o úmido calor da letargia violenta e branda loucura que se
do seu ventre, vulcão que se abre num estendera por 27 anos. Mãos mágicas que
hausto e se fecha como mandíbula de ba- no momento da crise da opção tiveram o
leia, pronta para lhe engolir e para lhe incor- desejo de, com uma faca, tirar todas as dife-
porar. As minhas mãos têm milhões de anos. renças dos dois mundos em conflagração.
São como crateras de terra gretada pelo Mas que tiveram também a sabedoria da
passar de estações milenares, com rios cor- espera e por um pequeno lapso de tempo
rendo dentro, quase na superfície, veias onde compreenderam que, se elas podiam des-
corre o sangue projetado pelo coração que truir com tal desejo e violência, poderiam
alimenta todo o meu corpo de oxigênio, também reconstruir este corpo composto
veias entumecidas, fibrosas, em relevo, elás- de uma cabeça alienada, de um coração frou-
tico e macias como o próprio balão cheio xo, de um sexo calado, rancoroso e surdo.
de ar. Veias que se as furássemos, elas pro- Mãos que andaram nesta ocasião pelo meu
vavelmente estourariam como eles e sobra- corpo, como um carrinho de mão, medin-
ria uma carcaça de ossos revestida por uma do-o, analisando-o, afagando-o e trazendo
membrana, papel de seda, verde, azul, ama- até o meu conhecimento todas as necessi-
relo ou papel de embrulho, pardo, com chei- dades deste corpo até então inerte e mor-
ro de sebo, gordura e pão. Tive de apren- to. Mãos que passaram pela minha sensuali-
der a usá-las muito cedo, pois elas eram dade como um arado, desdobrando, revol-
muito mais sábias do que o resto do meu vendo, remexendo, mãos que arrumaram
corpo. Havia nelas a sabedoria de milhares minha cabeça como uma grande gaveta em
de anos, mãos que cavaram, plantaram, car- desordem. Mãos que redescobriram minha
regaram pedras, costuraram, que bateram em face no contato do relevo, montanhas mági-
gestos de extrema violência, que acariciaram cas, terra árida e cabeluda, áspera e macia
em exaltações supremas. Mãos que oraram, como plaina plantada, ou charco onde pulu-
que imploraram, que puxaram a corda da lavam e coaxam sapos, cobras, lagartos, in-
forca, que cometeram injustiças das maiores setos, larvas e vermes. Mãos que se violen-
e tiveram as maiores complacências no amor taram pelo tremor durante a grande crise,
– olhos cegos que conhecem pelo tato o que se ligaram na necessidade de parar os
redescobrir da pele, dos pêlos, das gordu- espasmos, nervos descontrolados, decom-
ras, das asperezas, dos ossos, do conheci- postos, desnudos, dança macabra,
mento do pênis, desde onde ele começa a desequilíbrio total, pois tudo o que fora dei-
viver até o imponderável do seu limite. Mi- xara de ser e ainda não era nada. Mãos que
nhas mãos não passam de galhos, raízes se recusaram a entrar em contato com a
retorcidas, secas, bicho vegetal, animal ou água, se compraziam no lodo, no suor, no
anjo no momento do toque, turquesas no sangue que escapava dos poros, nesta me-
momento do agarrar-se, alicate no momen- tamorfose radical do “ser” que eu não era,
to do retirar-se. Mãos olhos, mãos cheias de ao “ser” que viria a ser. Mãos que se esten-
olfato, mãos que eram as únicas peças inte- deram para o conhecimento de um Picasso,
ligentes do meu corpo, fora as vísceras de na avidez de uma procura, já na fase da cons-
onde brotaram vômitos e haustos de intui- trução, que gastaram todos os livros de co-

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nhecimento em arte, que passaram em cima ta, que acariciaram sutiãs anônimos na ex-
de cada linha, de cada forma, de cada espa- pectativa de um dia preencher aquele vazio,
ço, de cada cor, absorvendo, engolindo, vo- que fugiram medrosas num apelo ou ordem
mitando o excesso, mãos que esboçaram os para apanhar bolos, mãos que tremeram de
primeiros desenhos de escadas, que encon- susto na hora da escrita, mãos que cuida-
traram uma solução na contradição dos olhos vam dos bichos soltos, que arrancavam vio-
e do conhecimento da lógica, para exprimir lentamente flores carnívoras que traziam o
um espaço que nada tinha a ver com o es- bucho cheio de insetos condenados, que
paço em que elas viviam. Mãos que se des- colhiam devagar e cuidadosamente flores
dobraram pelo avesso, luva da própria for- para serem cheiradas com uma tal intensi-
ma, na gastura da procura, no “o fazer”, no dade como se as incorporasse. Mãos que
“o destruir”. Mãos que alimentavam minha cavam agora meu túmulo, depois de cons-
oralidade, unhas roídas até ao sabugo, a fome truir meu berço, que desnudam as mentiras
testemunhada, onde o alimento faltou, no ditas, pensadas, vividas, que ligam a mim o
começo, de uma maneira quase integral. objeto, que o afasta do seu uso, instituindo-
Mãos que no cigarro compensavam a falta o na sua poética, que nunca passam a pági-
do alimento atrasado, da avidez do presen- na de um livro escrito, mas que escrevem e
te, da voracidade da vida. Mãos que nunca descrevem círculos sem álgebras ou mate-
foram terminadas na sua forma definitiva, máticas, que ensinam e propõem um cami-
mãos de criança que pula corda, joga ama- nhando, que corta este “caminhando”, en-
relinha, tira melecas do nariz, mãos que pas- golindo-o até a imanência do ato. Que apren-
searam pelo sexo à procura de uma respos- deram a tricotar aos seis anos de idade, a

Arquitetura biológica
biológica,
1968, plástico, dimensões
variáveis
Col. Família Clark
Foto: cortesia Associação Cultural
O Mundo de Lygia Clark

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jogar xadrez e paciência, a ajeitar os traves- no antes do depois, já traziam nas palmas
seiros debaixo da branca paina da cabeça todos os distúrbios nervosos que se deram
do avô recostado, dialogando, brincando, no seu tempo, cruzes, redemoinhos, pon-
contando toda a mitologia que a elas, aos tos, constelação de astros, espaços múltiplos,
seis anos, parecia um mundo natural e fan- tempo dos atos, certa, forma não-forma.
tástico; que jogavam os escravos de Jó, que
se agarravam em galhos de árvores, nos pên- II. A boca que se abre num espasmo, dei-
xando escapar o grito que anuncia o nasci-
dulos do balanço, da gangorra para depois
mento, no ato de deglutir uma alma, que se
acariciarem os seios da Diana Caçadora, es-
fecha voraz no seu cheio correspondente
tátua-lustre da sala. Que levavam o peque- que é o bico do seio, dando imediata fun-
no bico do não-seio à boca da boneca, que ção à guelra-garganta no ato do engolir, do
desnudavam o corpo num confronto diante estômago ao duodeno, dos intestinos que
dos primos do sexo oposto, apostando que se ondulam como cobras ao ânus que ex-
teria algum significado entre as relações dos pele o alimento digerido mas que não tem
vazios e cheios. Mãos que foram cosidas jun- o poder de expelir o ar expressivo e signifi-
tamente com uma camisola feita nesta épo- cativo que, habitando o corpo, lhe empresta
ca para a prima que nascera. Mãos que bus- a identidade do ser. O ato de engolir, espas-
mo do peixe fora do seu elemento, mar, pla-
caram os seios da surda-muda e os coloca-
centa, útero, oceano cósmico envolvente,
ram na boca, escutando o bater precipitado sono ou morte. Fole que impulsiona o ar
do seu coração. Mãos que abriram portões, para dentro das entranhas, pulmão que dá
que procuravam se evadir com o corpo todo sentido ao corre-corre frenético da vida que
da prisão de menina limpa com laço de fita formiga num “caminhando” dirigido desde
na cabeça. Mãos que beliscaram de ódio a as pequeninas veias até as mais importantes,
mãe, que arranharam, jogaram objetos no veias de retorno onde a válvula se abre, oleo-
chão com fúria e frenesi para depois, anjo sa, e onde as dobradiças são invisíveis, chu-
de sopro, acariciar um animal perdido. Para te, impulso, sacudidela, nervos que coman-
mais tarde, pegando num machado, dece- dam para o cérebro toda a sensação do “ser”
par a cabeça de um pinto doente e guardar sendo que foi plantado na vida, no ato do
para sempre da lembrança côncava do seu transplante, apêndice arrancado do tronco
palmo, a dureza e o peso da arma contra a principal, enxertado na vida, depois de ter
fragilidade do alvo. Que se entrelaçaram furado o grande túnel da vagina, subterrâ-
muitas e muitas vezes numa prece implo- neo vivo, esgarçado num rictus de alegria,
rando perdão pelo pecado que cometeram, alívio e violência. Gosmas que antes nela se
ao roubar um santinho colorido, incorpora- colavam superpostas em camadas são agora
expelidas no esforço da sobrevivência, abrin-
do e engolido pela sensualidade desponta-
do passagem para o ar que a penetra, secante
da. Serão mãos de gente? Não. Bichos são
do céu da boca, nadador apressado numa
elas na sua forma, na sua pujança, no seu
corrida competitiva, mergulhando na gargan-
nervosismo, na sua prematura velhice, na sua ta entre tendões, virgens mastros de ban-
sabedoria no ato de criar, acariciar, sentir o deira agora hasteados desfraldando os pul-
mundo pela forma, pelo tato, conhecimen- mões que se deixam folhear em lâminas sol-
to que vai muito além dos olhos. Marcada tas, envolvidos pelo espaço do mundo ex-

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terior. Boca que é fornalha, boca do forno gem dos dentes que irrompem como vul-
onde o combustível varia desde o ar até o cões explosivos na medida da sua aparição.
aprendizado da palavra, verbo, início da ex- Dentes, entes inseparáveis, geminados na sua
pressão da comunicação. Boca onde brota aproximação, peça única subdividida em par-
o grito, som que foi modulado, cultivado até celas, trilho por onde o alimento passa, es-
à formulação do alfabeto, som que ao sair magado no contrair do estômago, pântano
dela, penetra o ouvido e impulsiona a res- agora inundado de água pronto para afogá-
posta, o impropério, ou o suspiro do fim, los na falta da identidade da mistura. Bolo
válvula que vacila no seu ritmo, num desva- alimentar anônimo na sua diferenciação, abs-
rio de pêndulo desregulado fora do seu com- trato no seu aproveitamento, desde o ele-
passo, até o aquietar do ante-ser que foi mento gordura ao arranhar das unhas, à ge-
expelido na última parcela do ar que o habi- latinosa consistência da fruta que são os olhos
tava, encerrando o ciclo do começo ao fim. banhados em calda, ao fio do cabelo, linha
Cratera, buraco onde entra a bola de golfe que costura a fisionomia emoldurando-a, ao
que aí se aquieta, onde dorme a larva, toca pêlo do sexo, estopa enroscada elástica cheia
do bicho que espreita, vagina proprietária do de eletricidade, ao pêlo anão dos cílios e
pênis, cárie que acoita a dor, ouvido-túnel sobrancelhas, patas autônomas de insetos,
condutor do som, umbigo-cicatriz marca re- superpostas em finas camadas, suco das glân-
gistrada do passado uterino da dependência dulas, frutos que se embriagam na sua ma-
da guerra do ato do separar-se, fossas nasais turidade ou passas secas já sem especificação
que tomaram para si a rédea da cavalgada dos hormônios. Boca inventiva que morde
do ar que agora penetra no compasso do beijando, caranguejo cujos tentáculos se fun-
ritmo vital. Boca, antro da língua, peça so- dem no parceiro, boca de esqueleto cuja
bressalente que impulsiona desde o ar até a estrutura é a armadura sem uso, casca do
palavra comprimida, cobra no ato do amor, caramujo cujo vazio expressa a vida que o
que procura o avesso no parceiro, perdiguei- habitou. Boca que sopra, chaminé da fábrica,
ro do faro preso por forte corrente de ten- de fogão, de vulcão, de navio, conseqüência
sões que não a deixam submergir no outro. do forno que a alimenta e a faz soltar rugi-
A boca que devora para o estômago, para o dos de feras, boca de fera, coração em car-
cérebro, para o amor. A boca que vomita o ne viva, impulsionado pela fome. Boca de
alimento, a palavra no impropério, o escar- gente-fera que arromba cofres, quebra vi-
ro no arroto, o canto que é som e toda es- draças, mata quando há o encontro, ou se
cala musical derivada da descoberta. Boca, destrói quando não há o que roubar. Boca-
fronteira onde se esconde a palavra, o dese- bico, de mamadeira, de pássaro que se abre
jo, a fome, que se fecha nesta defesa, arapuca na ginástica do balé, da cobra cuja língua sai
onde o pássaro é capturado, rede onde o em flecha, dos roedores sorridentes cujos
peixe é cercado, curral emparedado pela dentes se debruçam na anedota. A boca da
cerca, roda de gente que completa um cír- fábula que conta histórias, a boca da história
culo, anel de compromisso que cerca o dedo. já desdentada, a boca da criança esponja que
Boca que é o abraço da realidade, que come se embebeda, do bêbado, labirinto onde a
o espaço do mundo, que expele o tédio no identidade se perde, do orador, linha passa-
bocejar que é modulado e nela expresso, da entre cada dente na tentativa da ordem
que passa do certificado do bem-estar ao da imagem, da puta onde o palavrão adqui-
processo da dor aliviada. Sustentada pelos re o brilho frenético do ouro, do homem da
maxilares, paredões da fábrica da engrena- rua, onde nasce a anedota que corrige a his-

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tória, do poeta onde predominam os vazios batidas de remos que cavam a água como
sobre os cheios. Boca escondida pelos bigo- ventre aberto por afiada lâmina. Toda a
des, sobretudo da sensibilidade, pelas bar- vivência do “ser” transportado, da máquina
bas, cobertor que não respeita o verão, pelo na sua dinâmica, rodas gigantes que giram
lábio leporino, falso arremate da costura vis- sobre o redondo, máquina de carne que o
ta pelo avesso. Boca do mudo, instrumento gesto tritura, batedeira de vitaminas, ventila-
sem manuseio, liquidação do som expresso, dores de pé, de assento, ar refrigerado, a
caderno de música sem pauta, o compasso porta que se abre e se fecha, o trem que
no silêncio, cheio de significado. A boca da passa veloz. Cascos de cavalo cujo pé é fei-
vagina, cuja entrada é o emaranhado do êxi- to de um só dedo, esse revestido por enor-
to, arrolhada no seu avesso pelo hímen, porta me unha, pés de galinha, mão espalmada,
arrombada pela forma que a complementa. aberta horizontal e chata, o gesto no “o
Caverna que convida a um abrigo poético, ciscar”, o espasmo no “o agarrar-se”. Há uma
onde o silêncio vem cheio de propostas e a distância tão grande entre eles e os meus
escuridão é o esquecimento da autonomia olhos que eles mais parecem peças autôno-
do um. mas, seres vindos de outros planetas, espa-
ço chato na sua rasura, dedos anônimos, que
III. Meus pés são peças mágicas pois na me- se tornam visíveis só no ato do corte das
dida em que os vejo, me vem à consciência unhas. A criança coloca na boca, arco do
de que a minha imagem é invisível e esta, corpo que procura uma unidade sem princí-
eu a percebo. Objetos rasantes que afloram pio nem fim, o engolimos como objeto in-
à superfície da terra, suas raízes, embora in- dependente e nesta incorporação nos fun-
visíveis, estão plantadas na sua sola, raízes dimos numa só peça, sem começo nem fim,
estas que se ramificam pelas pernas, tronco, experiência primeira da continuidade. A pri-
cabeça, e são revertidas numa volta e revol- meira brincadeira na infância, um par, união
ta dentro do corpo, nervos telegráficos que das solas dos pés, o ritmo da roda, primeiro
as fazem retornar à sua origem, numa batida ensaio da máquina primeira, da sociabilida-
surda de código morse. Catalisador sensual, de, do ato de fazer amor, do dar-se o abra-
nos dá a dimensão do sensorial, toque de ço, do eu preciso de um parceiro, da fábrica
campainha no alto ou no baixo, comprimin- da engrenagem das rodas, do movimento,
do-nos o ventre, dando-nos o alarme do do ato e da ação. No jogo de pular amareli-
sentir. A sensação do solo abrasado pelo sol, nha, o pulo num pé só, esforço da sobrevi-
da umidade do lodo, da frescura do verde- vência da idéia, do equilíbrio na mutilação
clorofila da erva, da argila, do estrume, do do próprio corpo, do aleijão, do anjo que
triturar da areia que cede sob eles na medi- busca o equilíbrio na forma plana das asas,
da do passo, do líquido que os afoga no na busca da vivência do rabo já incorpora-
macio e no veludo. O caminhar no fim da do, gancho que substitui os pés, ponto de
tarde, os olhos perdidos na distância, são o interrogação sobre o alto e o baixo. Corri-
encontro do “vazio pleno” na sua existência, da peça distância, o pé que se nega, que se
parada no tempo, distância comida pelos pés, entrega, que se anula, que renasce como
asas do corpo, trem que é submergido pelo peça falida mas ainda no crediário, que traz
túnel, asas de avião que cortam a distância na sua sola uma fábrica do rir-se e a sensua-
como uma faca, rodas de coche vagarosas, lidade do distanciado quando há a aproxi-
de carro de boi tangentes. De aro de bici- mação. Pés, base da coluna que é o corpo,
cleta, de borracha abrasante dos pneus, de coluna dórica, barroca, jônica, desde a mais

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delicada arquitetura à mais violenta e sólida da luta pela sobrevivência da verticalidade.
massa, de granito, de alabastro, de mármo- O nó do fio que costura, da corda que amar-
re, de gelatina, de seda ou de lixa, em que ra, da corda que enforca, do cabresto que
ora predominam os cheios, ora os vazios. puxa, do chiclete preso entre dentes, da base
Base encravada num solo gretado, sola de do quadrado, princípio da escala numérica
boi. Numa louca e fresca vargem, sola de anunciada pelo passo. Passo que é o pró-
carneiro. Em pedregulhos arquitetônicos, prio ritmo, a pausa na música, o espaço en-
cascos de bode em sinuosos e verdejantes tre a bola que salta e o chão ou do pé que a
caminhos de folhas, escritura oriental que chuta, do piscar do gás néon, da paisagem
arremata a barriga das larvas e dos louva-a- que foge diante da janela do trem ou do
deus. Centopéia, a magia da automatização automóvel, do intervalo do gesto, da ora-
da engrenagem do ritmo obsessivo. Pés que ção que ultrapassa o entendimento, da soma
pularam a cerca para roubar a manga do vi- das parcelas, da flexão dos joelhos, da fuma-
zinho, que correram espavoridos, que ça que sobe, da vida que surge vertical do
soergueram uma diminuta arquitetura de ventre da terra. Do passo surdo na madru-
galho em galho até o cimo do céu. Que se gada, do correr alegre da meninada, da ca-
aproximaram do outro par, de sexo opos- dência do enterro, do compasso do exercí-
to, pisando-o numa linguagem muda, apazi- cio, do batuque da dança. Pés estirados na
guando-o e incorporando-o nos seus ner- cama, da gente que dorme ao defunto que
vos, possuindo-o. Dedos que se esgarçaram acorda. Horizontal, ele ainda aponta para o
em espasmos para que por entre eles a ni- alto numa linguagem muda e adquire pela
cotina escapasse, que criaram crostas de primeira vez o sentido das mãos postas para
defesa em sua superfície em forma de cou- a oração, é o adeus dos pés ao tronco da
raças doloridas, que foram devorados pou- cabeça, esta abaixo do seu espaço, desmoro-
co a pouco pela unha calcificada, cascorão nada, degolada, agora espaço rasante e chato
ingrato que perdeu o sentido do seu cami- no contraponto do sono ou da morte.
nho. Pés que durante a grande crise come-
ram voltas e voltas de “caminhandos”, nega- IV. O aproximar-se, a não comunicação, o
ram-se a transportar meu corpo, que se aqui- desejo expresso por meio de gestos, o apa-
etaram no tremor do descontrole nervoso, ziguamento do mesmo através do ato do
entocados na caverna dos cobertores, que amor, o silêncio que se segue, o instante do
se recusaram o meu transportar ao chuvei- ato que se faz objeto, tal o intervalo criado
ro, onde a água convidava à linguagem das pela impotência da expressão da comunica-
coisas simples e quotidianas. Que se apare- ção da palavra. O encontro, a percepção do
lha ao lado do outro, para no caminhar en- interesse mútuo revelado, a atração da pele,
contrar o significado do par. Pés que até onde “ela” ou em si e não do interior
soerguem a barriga grávida no movimento percebido, não falado ou expresso, onde a
da larva que trabalha o vulcão, da fervura na sabedoria do corpo, ultrapassando o seu
panela, da onda macia que cobre o peitoril próprio meio de aproximação até a promes-
da forma, da bolha de sabão que escapa do sa do psiquismo sugerido mas nunca com-
canudo, do ar que enche o balão, dos dedos pletado? A revelação das coisas e objetos na
que se calçam na luva. Desde o começo, ele identificação pura do “o percebido”, na vi-
já traz em si toda a caligrafia da existência são primeira do objeto como meio de co-
que o precedeu. Cicatrizes, pregas, rugas, municação? Da pureza reportada à infância
guerras, cataclismos e vulcões. Contraponto contra o automatismo da palavra, expres-

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são. Do ser que se deixa reportar à data dele, que ultrapassa o sentido da beleza plás-
sem data da percepção pura do momento. tica, berço de uma poética orgânica e bioló-
Do ser criança que bane todos os comple- gica, cosmogônica na sua única razão de ser.
mentos, desde a racionalização até a dialética Olhos no mar, percepção do ritmo, poética
que surgiria conseqüentemente numa ex- projetada a dois, identificada na comunica-
pressão falada, buscando a razão do com- ção do momento vivido, na razão da apro-
portamento, a razão da aproximação, do di- ximação, do entendimento da cumplicidade
álogo e da procura do início da formulação da emoção, da libido gerada desta mesma
da origem. Palavra, verbo, âncora que segu- cumplicidade. O ritmo da música que despe
ra, cabo que afasta, gesto que aproxima e o ambiente de toda a sonoridade real, que
também afasta no “o querer” e no banimento abstrai o momento deglutindo-o, que amar-
da solidão. O gesto que deglute o ato na ra dois seres por laços invisíveis, que propi-
imanência do seu significado. O ato que se cia o entendimento fora de tempo sem com-
supera sem explicações, mãos que se entre- promissos de datas, que abre perspectivas
laçam ávidas à procura de um sentido a dois, dentro do absoluto, bocarra que se abre
travessão que liga duas ou mais palavras, para, deglutindo, reduzir toda a tendência
corrente que prende a tensão por forte faro, da autonomia do ser no um e jogá-lo na
olfato que complementa e perfuma o ins- escala do par, na complementação perfeita
tante do ato, fruta madura, sem razão apa- dos vazios e cheios que se procuram na pe-
rente no seu existir, que não se pergunta, netração do desejo incontido que supera a
que se exprime só no seu existir. O aproxi- diferenciação dos sexos. O ouvido que se
mar-se sem o compromisso do tempo, sem abre para a palavra que não se formula mas
data, sem o conceito do futuro, onde preva- que é invadido pela língua que o modela no
lece a sabedoria do estar-sendo. O precário seu interior, a sonoridade da concha onde
que dignifica o presente, que rompe com o todos os sons irreconhecíveis tomam corpo
conceito da continuidade. O ponto da tape- e se materializam através dos nervos, numa
çaria que procura o parceiro no fio mais pró- vibração magnética que sobe à flor da pele
ximo, na escala de uma continuidade vinda como trepadeira, procurando no “o outro”
da origem, a escolha sem regras, o jogo que o suporte do seu existir. A boca que tenta
se abre diante de dois parceiros, cúmplices se exprimir e não consegue, que se trans-
diretos da mesma regra, não no sentido com- forma em linguagem nela mesma, fazendo
petitivo mas no da complementação do seu com a língua o vocabulário do entendimen-
significado. A alegria do descobrimento do to, desde a carícia do tato à mordida da rai-
momento percebido, vivido na imanência da va, da frustração ou da provocação. A boca
comunicação tão primitiva quanto primária, que treme por não poder se exprimir pelo
tão autêntica quanto viva, trazendo em si um verbo, que tenta articular a palavra num es-
sentido nunca antes percebido, dois seres forço terrível e não consegue na impotência
surdos e mudos, num mundo da dialética da não sabedoria mas também do conheci-
contraditória. A poética da substância do ato, mento do que nela estaria inscrito, toma uma
limpa de toda a representação da linguagem. realidade nunca antes insuspeitada: de peça
O aproximar-se, o afastar-se, o reaproximar- sobressalente a peça vital, coração do cor-
se na medida do desejo, o fluxo e refluxo po de onde partem todas as potencialidades
do mar que cobre a areia, subterrâneo da do comando na opção do momento. Polvo
origem celular, profundidade que ultrapassa no ramificar-se, tentativa de abarcamento do
o ritmo exterior embora se exprima através significado do ser. Boca que se abre e fecha

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sem que o som se exprima, que engole de fruta madura banhada em calda nos olhos
novo o significado pronto a ser expresso, do outro, a pedra calcinada nas unhas, nos
peixe que no espasmo perde a consciência dentes, o veludo da noite da pele, o
do seu habitat e agoniza na percepção do emaranhamento do sexo no pêlo da estopa,
“um espaço” onde o não reconhecimento o a umidade dos hormônios na umidade dos
induz ao ritmo frenético da destruição. A pântanos, mãos que dão a medida do dese-
boca que adquire a voracidade da boca-guel- jo que é pensamento, mãos que no gesto
ra do bicho que nasce e procura o seu aves- ultrapassam a verticalidade do parceiro me-
so na língua do outro, no pênis, no mamilo e dindo-o, que passeiam sobre o seu corpo
se satisfaz numa oralidade brutal, virgem e na entrega do alongar-se, de convulsionar-
primeira. As mãos que complementam o se, mãos que se recolhem na sabedoria da
desejo, que sugerem a aproximação efetiva parada, do intervalo, mãos que silenciosa-
tomam a importância do gesto atípico do mente se cumprimentam depois da posse,
cego que descobre o mundo através do tato. no reconhecimento do desejo cumprido. O
Mãos que se transformam em linguagem pura corpo que passivo se entrega à dislética, toma
sem dialética, que não complementam mas uma dinâmica coerente com o momento.
que impõem uma realidade que busca no O corpo que se volta à procura da percep-
outro a certeza da identificação de dois se- ção do instante, que se esconde por detrás
res no fundo iguais, embora aparentemente das costas no momento da indagação, que se
diferentes, pois o que articulam com a boca curva como um arco sob a pressão do outro
não passa de sons dilacerantes na impotên- corpo, que se alonga na horizontalidade no
cia do não exprimir. Mãos que sobem e des- momento da posse, que se debruça sobre si
cem pelos relevos da arquitetura do corpo, mesmo no momento da náusea da não per-
que encontram nos cheios e vazios a cepção, que vomita impropérios pela mími-
complementação perfeita do par. Mãos que ca, que se curva no cumprimento da fatali-
produzem e transmitem o formigamento dos dade, que se transforma num trilho onde o
nervos, começando na superfície até atingir outro passa fumegante como uma máquina
a cratera no seu fundo-forma ainda amorfa com o seu desejo sobre ele, que se trans-
no começar da cristalização da porra. Mãos forma num vaso onde o parceiro vai buscar
que traduzem no gesto toda a formulação a sua origem, “momento pleno” onde o ato
do momento integral, que afasta para a apro- vai se concretizar em toda a imanência da
ximação, que foge para aprisionar, que bus- posse. O corpo que no ritual se põe de joe-
ca através do balanço da rede um ritmo to- lhos, expressando assim com toda a reve-
tal onde ali se expressa toda a cosmogonia rência de que é possuído pelo mistério do
desde Mozart até a bola impulsionada pelo outro corpo que a ele se oferece: pênis que
chute no diálogo do corpo com o espaço. num gesto soberbo de sociabilidade se trans-
Mãos que dialogam com outras mãos à pro- forma num braço estendido pelo prazer de
cura dos dedos que se entrelaçam, engrena- encontrar o outro. O corpo que se trans-
gem da máquina primeira, oração que ultra- forma na própria vagina, para receber este
passa o entendimento, magia do ritual do gesto de entendimento do conhecimento,
corpo, mãos que fazem amor primeiro e que abrigo poético, onde o silêncio vem cheio
neste gesto propõem a opção na imanência de propostas e a escuridão e o esquecimen-
do ato do amor. Mãos que reconhecem a to da autonomia do um.

REEDIÇÃO • LYGIA C LAR K 123


Lygia Clark: reedição Modulados (1959), Bichos (1959-64),
Trepantes (1964), sua fase denominada Nos-
talgia do Corpo (1966), os macacões de O eu
Todo artista é um suicida e o tu (1967) e a descoberta pelo toque cego
de si próprio no corpo do sexo oposto e
desconhecido, até os arquivos de memória
Felipe Scovino do corpo potencializados pela Estruturação
do Self (1976-82). Nesse campo de experi-
mentação, o significado dos opostos trans-
Dialogar com a obra de Lygia Clark é tecer forma-se em afirmação ou em completude.
uma rede que envolve três instâncias: me- A escrita de Lygia condiciona-se num mapa
mória, obra e uma terceira via resultante das habitado por sua obra e memória: suas dú-
dobras que são geradas por esses momen- vidas, medos, amores, o parto que ela sim-
tos. Embaralhados, conectados, pulsando e bolizava toda vez que uma obra “nascia” ou
conversando incessantemente, esse corpo era criada, a dificuldade financeira, as crises
mostra-se tão vivo e coerente, que suas de- com a família, a dificuldade do mundo da
limitações são impossíveis de ser traçadas. A arte em entender sua obra... Todos esses
produção escrita de Lygia não é um meio fatores transformam-se em transitoriedades
para se entender aquela determinada obra. forçadas, silêncios, brancos, brados, revoltas
É muito mais. É prolongamento de sua práti- que podem ser identificados na força estéti-
ca artística; nesse sentido, são dois planos que ca de sua obra. Além de sua produção dita
não permitem qualquer hierarquização ou plástica, Lygia construiu uma trajetória em
demarcação de espaço, mas sim potência. que suas vivências e experiências pessoais
transpareciam no cerne de suas preocupa-
A produção escrita de Lygia é volumosa, ções artísticas e intelectuais. Questionada em
mas ao mesmo tempo pontual sem ser 1959 por uma jornalista sobre seu trabalho
mera descrição de sua obra. Na prática, como “artista plástica”, Lygia responde: “Todo
essas duas potências (escrita e obra) de- artista é um suicida. Por quê? Porque ele se
sencadeiam uma força que não se configu- joga inteiro, se arrisca a todos os compro-
ra nem fora, nem dentro, mas em perma- missos com a superfície que vai trabalhar. E
nente diálogo, costurando um terreno e quando o faz, ele não tem a menor garantia
provocando sensibilizações, mobilidades e de estar certo naquilo que tenta”.1 Lygia não
infinita criação de possibilidades de apreen- é simplesmente uma artista plástica ou o
são de seu trabalho. A forma como a obra produto daquilo que esperam que uma ar-
estava sendo vivida e arquivada por Lygia tista plástica faça. Sua posição de se assumir
não separou espaços, pelo contrário: quan- como “não-artista” não é política, mas pro-
do essas potências são combinadas, há uma fundamente coerente com a trajetória que
possibilidade de ativação e multiplicação do seu trabalho seguiu: descompromisso com
sensorial por seu leitor/propositor. rótulos, fórmulas, comércio ou o “belo” . Em
seus textos, desvendamos uma intelectual
A questão do vazio e a fragmentação do com posições instigantes sobre o modus
corpo em Lygia são temas recorrentes que operandi do circuito de arte, a vida em Paris
podem ser observados desde os desenhos ou no Rio, a mobilização da vanguarda cario-
das escadas de seu ateliê em Paris no início ca nas décadas de 1960 e 1970, sempre com
da década de 1950, passando pelos Espaços impressionante agudeza. Lygia era fundamen-

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talmente uma pesquisadora, e seu objeto, o pre o atual, o nascente, o novo; a história
homem. Suas técnicas não eram apenas plás- não é experimentação, é apenas o conjunto
tico, concha, borracha, pedra, água, flor ou das condições quase negativas que possibili-
semente, mas o conjunto formado por suas tam a experimentação de algo que escapa
ações e sua visão de mundo. As “dobras” à história”3 ) que atuam no mesmo espaço.
dessa relação eram o legado de Lygia ou o Ou, melhor, de um permanente e fronteiri-
que absorvíamos de suas proposições: ações ço “em vias de romper”. Na década de 1960,
coletivas que colocavam em xeque nossos Lygia sofre um acidente de carro e fica hos-
dogmas comportamentais ou a relação sub- pitalizada. Ligada a um respirador artificial, a
missa que temos com instituições ou situa- forma e o som daquele instrumento que lhe
ções. Como Clark afirmava, “Isso é um exer- salvou a vida e a acompanhou durante dias
cício para a vida. Se a pessoa, depois de fa- é revisitado tempos depois na experimen-
zer essa série de coisas que dou, consegue tação da pulsação de Pedra e ar (1966), cujo
viver de uma maneira mais livre, usar o cor- balanço, ao ser manipulado, faz referência
po de uma maneira mais sensual, se expres- ao pulmão. Vida e obra se complementam.
sar melhor, amar melhor... Isso no fundo me
interessa muito mais como resultado do que O impasse entre as forças do experimental
a própria coisa em si que eu proponho a diário, documentação e prática artística pas-
vocês”.2 As “dobras” são, portanto, práticas sam a constituir uma nova linha de força, um
da “experiência” e “memória” (lembremos fora que deve ser dobrado na medida em
de Deleuze, quando afirma que “pensar é que arremessa obra e vida numa rede
sempre experimentar, não interpretar, mas indivisível. É sobre esses duplos e contras-
experimentar, e a experimentação é sem- tes, sobre essas linhas de força e as possibi-
lidades de desenvolver sua obra que identi-
ficamos a relação intrínseca entre memória,
obra e dobra em Lygia Clark no texto
Breviário sobre o corpo, publicado pela últi-
ma vez em 1997 no catálogo Lygia Clark,
organizado por Manuel Borja-Villel e edita-
do pela Fundació Antoni Tàpies.

Felipe Scovino é doutor em história e crítica da arte pelo


Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA/
UFRJ) e curador da Associação Cultural O Mundo de
Lygia Clark.

Notas
1 Dantas, Ismênia. Lygia explica sua pintura: todo artista é
Estruturação do self
self, 1976- um suicida. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 11 out. 1959.
82 2 Clark, Lygia. In Scovino, Felipe e Clark, Alessandra (org.). O
Lygia Clark realizando uma Mundo de Lygia Clark. Rio de Janeiro: Associação Cultu-
sessão em seu consultório ral O Mundo de Lygia Clark, 2004, s/p.
e aplicando os objetos
relacionais 3 Deleuze, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992:
132.
Foto: cortesia Associação Cultural
O Mundo de Lygia Clark

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