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Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira


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QUALIDADE SOCIAL DA ESCOLA PÚBLICA: PRINCÍPIOS DE UMA


AVALIAÇÃO CONTRARREGULATÓRIA

Jean Douglas Zeferino Rodrigues - Unicamp


Geisa do Socorro Cavalcanti Vaz Mendes - Unicamp
Adriana Varani – Unicamp

Resumo: Este texto tem por objetivo apresentar uma discussão acerca de princípios
forjados especialmente para fundamentar uma política de avaliação, implementada em
uma rede pública municipal paulista, em contraposição a lógica de processos de
regulação hegemônicos inerentes as atuais políticas das avaliações externas, de larga
escala. Esses princípios foram retomados e ampliados para guiar uma pesquisa que
busca elaborar indicadores de qualidade social em que se considera a formação humana,
para além das medições feitas pelas avaliações externas do aprendizado de habilidades e
competências em campos específicos, como leitura, escrita e matemática. A pesquisa é
financiada pelo OBEDUC-CAPES, desenvolvida por professores-pesquisadores da
universidade e da rede pública. Assumimos que há uma construção possível na
contramão do que é hegemônico no campo da avaliação, instituído pelo poder e o
interesse de regulação por parte dos reformadores e empresários educacionais. Tal
assunção nos leva a compreender a instituição escola como potencial na luta contra-
hegemônica. Refletimos sobre uma Carta de Princípios, elaborada coletivamente por
pesquisadores da universidade e rede de ensino municipal, necessários à construção de
um projeto de avaliação contrarregulatório. Ao final faremos a exposição e reflexão
sobre esses princípios defendendo-os como fundantes para se avaliar o trabalho
pedagógico desenvolvido no interior da escola. Concluímos que processos de avaliação
construídos de forma participativa, assim como outros espaços de decisão coletivos,
podem suscitar formas de organização contrarregulatórias, ou seja, por um lado resistem
à lógica empresarial contidas nos processos de implementação das reformas e
avaliações externas e, por outro, apontam caminhos alternativos sedimentados em um
projeto societário distinto daquele que orienta os valores de mercado.
Palavras chave: Avaliação institucional participativa; avaliação contrarregulatória;
políticas públicas.

1. Do lugar que falamos


Neste texto temosi como intenção fazer a discussão de princípios de uma política
de avaliação contrarregulatória dentro do bojo dos processos de regulação que vem
sendo hegemônicos nas constituições das políticas avaliatórias, em especial, das
avaliações externas, de larga escala. Primeiramente falaremos do nosso lugar como
pesquisadores, em seguida explicitaremos nossa compreensão sobre uma projeto
contrarregulatório dentro de certa perspectiva da relação escola e sociedade. Ao final
faremos a exposição e reflexão sobre princípios que regem este processo

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contrarregulatório no campo da avaliação educacional.


Participamos de um laboratório de pesquisas, em uma universidade pública
paulista, que vem desenvolvendo observação e estudos descritivos pertinentes ao campo
educacional. Em um dos estudos em andamento temos realizado a discussão pertinente
a este tema em uma pesquisa sobre a qualidade da escola pública para sustentação da
responsabilização partilhada em uma rede de ensino municipal, circunscrita no
Observatório da Educação (OBEDUC) financiada pela CAPES (2013-2017). Participam
desta pesquisa professores-pesquisadores de três universidades (duas públicas e uma
comunitária), profissionais da rede pública em atividades de coordenação pedagógica,
supervisão educacional e direção escolar, estudantes de pós-graduação (doutorado e
mestrado), estudantes de graduação, além de outros professores colaboradores. A
discussão que faremos neste texto é fruto do trabalho desse coletivo.
Nossa preocupação tem sido, ao longo dos anos, discutir o campo da avaliação
educacional, em especial a avaliação institucional e os efeitos das lógicas avaliativas
vigentes no panorama das avaliações externas. O laboratório, em especial a partir de
2002, tem se debruçado na construção de parcerias com secretarias de educação
municipal na instituição de Avaliação Institucional Participativa (AIP), bem como de
projetos de incrementação de alternativas às avaliações externas. A compreensão é que
a lógica da avaliação externa, da forma como é construída, tem ampliado a compreensão
de que a escola é espaço de aprendizado de habilidades e competências em campos
específicos, como leitura, escrita e matemática, e deixado de lado a perspectiva que há
uma muldimensionalidade nas aprendizagens infantis e juvenis.
Estas experiências levaram o grupo a construir seus princípios no campo da
avaliação que agora, são objeto de reflexão neste trabalho.

2. Uma compreensão para contrarregulação


Ao longo do processo de construção de compreensões sobre o papel da escola na
sociedade, foram diversas as sistematizações possíveis em função de diferentes
postulados paradigmáticos no campo da filosofia, da sociologia. Ao assumirmos que há
uma construção possível na contramão do que é hegemônico, imprescindível nos
situarmos no entendimento do movimento que nos leva a compreender a instituição
escola como potencial na luta contra-hegemônica, lugar de onde falamos.
As teorias sociológicas da educação mais tradicionaisii, com forte vínculo com
uma perspectiva epistemológica e social positivista, postulavam uma escola que se

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caracterizasse como conservadora e responsável pela manutenção da ordem social


através da preparação da criança para a vida ocupacional adulta. Logo as produções
bibliográficas detinham-se num olhar para a escola de forma a reduzir seus problemas a
culpabilização dos indivíduos (alunos, famílias), como a teoria da carência cultural
(PATTO, 1999).
Em especial, a partir da década de 60, um forte movimento crítico passa a
compreendê-la como mecanismo de reprodução do sistema sócio-econômico
predominante. Houve uma crescente posição questionadora em relação às ideologias
que ela propagava/propaga. Aqui podemos nos remeter à obra de Althusser (1985) ou
de Pierre Bourdieu (1975). O primeiro anunciando a escola enquanto aparelho
ideológico do estado, num processo de reprodução, já Bourdieu, do status quo e da
ordem social, que aos olhos dos autores, é excludente e serve de manutenção de
diferenças e desigualdade econômica.
Tomando Giroux (1986) que trata em sua obra da resistência em educação, a
forma sociológica tradicional de ver as escolas ignora que elas também são “espaços
culturais, assim como é ignorada a noção de que as escolas representam arenas de
contestação, luta entre grupos de diferentes poder cultural e econômico” (p. 105).
No caso das teorias críticas as contribuições advindas de seu olhar para o campo
educacional, em especial, a compreensão de sua construção como em sua não
neutralidade são imprescindíveis. Ao mesmo tempo em que nos parece, para
compreender amiúde as práticas que ocorrem no interior institucional, que esta forma de
olhar a escola necessita de complementaridade em sua análise, em especial no que se
refere ao olhar para as peculiaridades dos movimentos cotidianos, dos embates de
subjetividades e de construção dos projetos na escola ou em outros níveis.
Algumas perspectivas que explicitam a relação escola e sociedade começaram a
compreender o espaço escolar, bem como espaços de apoio e gestão da educação, não
mais apenas como um aparelho ideológico do estado, reprodutivista das relações sociais
e consequentemente um espaço que a todo o momento precisa ser aprimorado,
reorganizado curricularmente, redimensionado, através de políticas “milagrosas” que
vão curar o mal da educação.
Em sua explicitação sobre a relação escola e sociedade, Freitag (1986) nos
remete a alguns autores que demonstram esta luta, em especial, o pensamento de
Gramsci. Ele desenvolve o conceito de sociedade civil que, para além de ser o espaço
onde estão as instituições que transmitirão as ideologias da classe hegemônica (escola,

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igreja, sindicatos, clubes...), tem potencial para ser espaço de circulação de diferentes
posicionamentos. E neste sentido, tem potencial para ser espaço contra-hegemônico.
Seguindo esta lógica, voltamos às políticas educacionais atuais, em especial as
do campo da avaliação, as quais tem nos mostrado o poder e o interesse de regulação
por parte dos reformadores e empresários educacionais, bem como de determinadas
correntes políticas. O interesse aí não é a regulação da qualidade, a regulação para
qualificar e garantir os direitos em diferentes campos, do atendimento do público para o
público. O novo sentido de regulação posto aqui é o que se enquadra nas políticas
neoliberais.
“regulação” foi um termo construído no interior das “políticas
públicas neoliberais”, cuja eficácia maior no Brasil foi obtida na
gestão de Fernando Henrique Cardoso, para denotar uma
mudança na própria ação do Estado, o qual não deveria intervir
no mercado, a não ser como um “Estado avaliador” (cf. Dias
Sobrinho, 2002b). As políticas regulatórias querem, em áreas
estratégicas, transferir o poder de regulação do Estado para o
mercado, como parte de um processo amplo marcado por várias
formas de produzir a privatização do público. Isso inclui tanto a
instituição da regulação via mercado como o seu complemento,
a desregulação do público via Estado, para permitir aquela ação
de regulação do mercado (FREITAS, 2005, 913 - grifos do
autor).
Partindo do princípio gramsciniano de crença no poder contra-hegemônico da
sociedade civil, a lógica da política regulatória, quando ocorre nas instituições da
sociedade civil, pode sofrer resistências.
Contrarregulação é resistência propositiva que cria
compromissos ancorados na comunidade mais avançada da
escola (interna e externa), com vistas a que o serviço público se
articule com seus usuários para, quando necessário, resistir à
regulação (contrarregulação) e, quando possível, avançar tanto
na sua organização como na prestação de serviços da melhor
qualidade possível (justamente para os que têm mais
necessidades) tendo como norte a convocação de todos para o
processo de transformação social. Contrarregulação não é a
mera obstrução ou um movimento de “fechar as fronteiras da
escola” com relação às políticas centrais, penalizando o usuário
do sistema público. (FREITAS, 2005, p. 912- grifos do autor).
É com esta perspectiva e com este olhar para o contrarregulatório que
apontamos princípios importantes para a efetivação da contrarregulação.
3. Princípios de uma avaliação participativa sob a lógica contrarregulatória
A perspectiva de se implementar uma Avaliação Institucional Participativa

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(AIP) na rede municipal, onde o projeto de pesquisa está em curso, data do início da
primeira década deste milênio, como uma questão problematizadora, na efervescência
que tomava assento nas discussões travadas em um cenário nacional e internacional
acerca da necessidade de os sistemas educacionais se avaliarem para traçar metas e
ações com vistas a qualidade do ensino público.
A partir desse momento, assumiu-se a defesa de um formato avaliativo que fosse
participativo, configurado a partir do trabalho coletivo envolvendo todos os atores da
rede municipal. Para tanto, engajou-se nesse processo professores pesquisadores do
laboratório, acima referido, os quais já vinham estudando acerca da avaliação e suas
lógicas, junto aos profissionais da rede que promoveram estudos e discussões sobre as
concepções de avaliação para definir qual perspectiva seria implementado na rede.
Dessa relação entre a Universidade e a Secretaria de Educação, culminou, em 2003,
com a publicação da “Carta de Princípios”, visando legitimar o processo de construção
das bases de uma experiência de Avaliação Institucional Participativa (FREITAS et al
2004). Cabe destacar, que a “Carta de Princípios”, foi aprovada em audiência pública
por profissionais da rede e os munícipes (SME, 2005).
Nessa Carta, a avaliação é entendida como um processo de apropriação
fundamentado em um “pacto de qualidade negociado”, e não como mera verificação de
um resultado pontual (FREITAS et al, 2004); nela, explicita-se a maneira mais
adequada de se pensar a avaliação em quaisquer níveis: como processo destinado a
promover o permanente crescimento; e que constituem aspectos indissolúveis do ato
educativo, formar para transformar a vida e instruir para permitir o acesso ao saber
acumulado (GERALDI, RIOLFI, GARCIA 2004).
Desse movimento, organiza-se um processo de avaliação, na rede municipal,
com a pretensão de não se limitar ao rendimento dos alunos, mensurados em notas, mas
que fosse capaz de ampliar as possibilidades de melhoria da escola, assim como
reconhecer os atores e as relações que nela ocorrem, distanciando-se de formatos
meritocráticos e ranqueadores.
Os elementos contemplados no documento tinham como objetivo nortear o
processo de discussão, implementação e viabilização do Sistema de Avaliação da Rede
Municipal de Educação.
Demarcados pelo caráter coletivo de reflexão sobre a avaliação educacional e
para além da verificação de resultados pontuais minimizados nas medidas, os dez
princípios, contemplados pela Carta, podem ser sumariados, como segue:

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1. a avaliação educacional é um processo de reflexão coletivo


e não apenas a verificação de um resultado pontual. [...] Avaliar
supõe, em algum grau e de alguma forma, medir. Mas medir,
certamente, não é avaliar. [...] é uma categoria intrínseca do
processo ensino-aprendizagem, por um lado, e do projeto
político pedagógico da escola, por outro. Não pode ser separada
dele como se pretende com as avaliações centralizadas. Ela só
tem sentido dentro da própria organização do trabalho
pedagógico do professor e da escola;
2. a qualidade é entendida como o melhor que a comunidade
escolar pode conseguir frente as condições que possui, tendo em
vista os objetivos de servir a população naquilo que é específico
da educação: formação e instrução. [...] A qualidade não é
optativa no serviço público. É uma obrigação;
3. qualidade não deve ser vista apenas como “domínio de
português e matemática”, mas, além disso, incluir os processos
que conduzam à emancipação humana e ao desenvolvimento de
uma sociedade mais justa. A qualidade da escola depende da
qualidade social que se consegue criar no entorno da escola. [...]
Os processos avaliativos longe de serem apenas
aperfeiçoamento de resultados acadêmicos, visam criar sujeitos
autônomos pelo exercício da participação em todos os níveis;
4. o sistema de avaliação proposto contempla três níveis:
construção da avaliação ao nível da sala de aula (ensino
aprendizagem); construção da avaliação ao nível institucional
(Escola); construção da avaliação do sistema ou conjunto da
rede (Secretaria). A adesão das Escolas aos níveis 1 e 2 é
optativa, o terceiro nível é responsabilidade do poder público;
5. nenhuma das ações de avaliação deve conduzir a
“ranqueamento” ou classificação de escolas ou profissionais e
muito menos de conduzir a premiação ou punição. Os dados
devem conduzir a processos de reflexão local e melhoria da
escola. [...] Como princípio geral, as ações de avaliação, dentro
ou fora da sala de aula, não se destinam a punir ou classificar,
mas sim a promover;
6. o processo avaliativo deve ser construtivo e global. Ele
envolve participantes internos (professores, alunos,
especialistas, funcionários administrativos) e participantes
externos (sociedade, pais, empregadores). É um processo que
deve combinar auto-avaliação, avaliação por pares e também um
olhar externo;
7. o compromisso da avaliação é de se usar técnicas modernas,
levando-se em conta tanto os resultados obtidos como as
condições em que eles foram concretizados. Para a avaliação
institucional (Escolas), a técnica de base será a autoavaliação
seguida pela avaliação baseada em pares. A do ensino-
aprendizagem devem ser disponibilizados conhecimentos para
que os professores possam criar estratégias específicas de
avaliação, preservando a autonomia profissional e valorizando a
atuação responsável do professor no processo pedagógico;

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8. a avaliação não deve ser um instrumento de controle sobre a


escola e os profissionais da educação, mas sim um processo que
reúne informações e dados para alimentar e estimular a análise
reflexiva das práticas em busca de melhorias, desde a sala de
aula até a Secretaria Municipal;
9. o modelo de qualidade e seus indicadores devem ter
legitimidade técnica e política e ser produzido coletivamente
com as escolas da Rede Municipal, a partir da prática;
10. todo o processo deve ser acompanhado por um Conselho
Gestor do Sistema de Avaliação de constituição tripartite:
Universidade, Secretaria Municipal e representantes de Escolas.
(FREITAS, L., SORDI, FREITAS, H. & MALAVASI, 2004, p.
75 apud MENDES, 2011, p. 118-120).
Segundo esses autores, a função desse documento é tranquilizar a rede quanto à
“construção dos indicadores de qualidade do sistema bem como definir claramente os
compromissos, fixando os conceitos envolvidos” (FREITAS, SORDI, FREITAS,
MALAVASI, 2004, p. 79). Para tanto, definiu-se um conjunto de indicadores gerais,
por áreas, em que se fundamentaria o sistema de avaliação. Destaca-se não haver a
intenção de se fixar níveis a serem atingidos, porém os indicadores, construídos
coletivamente pelos atores envolvidos no processo (professores, famílias, equipe
gestora, alunos e funcionários) constituem importante passo para orientar as escolas
sobre o que a rede está sinalizando como fonte de dados para sua análise de qualidade.
Apresentaremos, a seguir, as áreas objeto de avaliação a serem considerados, pelos
diversos atores da rede, para elaboração dos indicadores de qualidade:
1. Projeto Político Pedagógico da rede Municipal (Secretaria);
2. Projeto Político Pedagógico (Escolas);
3. Contexto histórico-familiar predominante na região da escola;
4. Nível sócio-econômico dos profissionais e alunos da escola;
5. Infraestrutura existente na escola;
6. Formação dos profissionais da escola;
7. Estilo pedagógico de diretores, professores e alunos;
8. Organização curricular;
9. Rendimento do aluno e seu desenvolvimento nas disciplinas;
10. Participação dos pais na escola e visão da família sobre a
escola;
11. Inclusão de alunos com necessidades especiais (MENDES,
2011, p. 120-121).
Depreende-se daí a possibilidade de uma avaliação potencializadora de ações
para promover a participação de todos os segmentos da escola, pautando-se na
construção coletiva e dialógica e ancorando-se em um pacto de qualidade negociada
(FREITAS et al, 2009). Trata-se, portanto, de uma proposta de avaliação antagônica aos
marcos da pura e simples mensuração, responsabilização, meritocracia e privatização

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dos processos escolares, fundando-se em uma perspectiva societária distinta daquela


cuja organização se baseia nos preceitos mercadológicos.
Cabe dizer que a escola não foge à regra e insere-se no interior de uma disputa
hegemônica de sua função social. Tais interesses se manifestam através de uma
infinidade de intervenções das quais o controle da organização do trabalho pedagógico
recebe atenção especial. Nesse sentido, há que se destacar a centralidade que ocupa a
avaliação na modulação das demais categorias (objetivos, conteúdos e métodos) que
operam no interior da própria escola. Mais do que simples verificação do processo
pedagógico desenvolvido, a avaliação, no interior do binômio objetivos/avaliação,
incorpora a função de determinar e orientar todo o processo, desde seu início até o fim
(FREITAS, 2014).
O controle da organização do trabalho pedagógico pela lógica dos reformadores
diz respeito, acima de tudo, à necessidade de resolução da contradição nodal que se
coloca: permitir à classe trabalhadora o acesso ao conhecimento sem, no entanto, perder
o controle político e ideológico da escola (FREITAS, 2014). Os processos atuais que se
desenvolvem a partir da avaliação externa atendem perfeitamente a esta exigência já
que a disputa pelas categorias objetivos/avaliação são incorporados segundo a lógica da
meritocracia, responsabilização e privatização e submetem os processos pedagógicos
segundo a necessidade de formação da força de trabalho. Este é o ponto central em que
a intervenção dos reformadores se volta já que
É esta centralidade da avaliação escolar (fortalecida agora pela
associação com a avaliação externa e as políticas de
responsabilização) que é disputada e usada hoje pelos
reformadores empresariais da educação para impor uma trava a
possíveis avanços progressistas na organização do trabalho
pedagógico da sala de aula e da escola – seja em seus objetivos,
seja em sua avaliação – fortalecendo seu controle ideológico
sobre toda a estrutura educacional que forma milhões de jovens,
ajustando-os a um padrão cultural “básico” de instrução
(ARROYO, 2009 apud FREITAS, 2014, p. 1089 – grifos do
autor).
Com base na Carta de Princípios (2003), atualmente, o grupo ampliou e
aprofundou aspectos essenciais para fundamentar a AIP, que conduziu a elaboração de
outra “Carta de Princípios”, para subsidiar a pesquisa do OBEDUC, no que se refere a
elaboração de indicadores de qualidade social, em torno de qual formação humana
aponta-se considerando o avanço das intervenções dos reformadores empresariais
através da associação da avaliação e a responsabilização (accountability). Que outros

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aspectos, que não os contidos nas matrizes de referências, norteiam a organização do


trabalho pedagógico nas escolas a partir de uma perspectiva de emancipação humana?
Nos parágrafos anteriores deixamos claro que o processo de AIP é ele próprio
circunscrito dentro de uma lógica contrarregulatória que pressupõe resistência a um
modelo escolar propagado pelos reformadores empresariais. Assim, a partir do
documento destacado acima, queremos refletir sobre alguns temas pertinentes e que são
fundantes para sua implementação.
Nos processos avaliativos em questão acreditamos que pontuar o tipo de sujeito
que se pretende formar é marcar um espaço, ao mesmo tempo, pedagógico e político, já
que para se atingir tais objetivos torna-se necessário fazer escolhas e,
consequentemente, resistir à lógica das políticas regulatórias atuais. Entendido desse
modo, inicialmente é preciso caracterizar o ser humano como um ser de natureza social.
Isto corresponde a afirmar que tudo o que identificamos como humano tem origem na
vida dele com outros indivíduos, ou seja, na vida em sociedade inserido na cultura
produzida pelo conjunto de seus pares (LEONTIEV, 2004).
É por meio do trabalho, na sua acepção ontogenética, compreendido como
atividade vital humana, que o indivíduo transforma e modifica a natureza segundo suas
necessidades de modo que ao produzir uma realidade humanizada pela sua própria
atividade o indivíduo cria possibilidades de sua própria humanização.
Dessa forma, o ser humano é, ontologicamente, um sujeito histórico e social,
produto e produtor de sua atividade. Consequentemente, a organização escolar que se
pretende construir tem nesse sujeito histórico e social sua vértebra. Para tanto,
elementos materiais devem organizar a própria escola de modo a criar condições que, de
fato, apontem para a consecução desses objetivos. Nesse sentido, o trabalho socialmente
útil como eixo da ação pedagógica, a coletividade e a ampliação da formação humana
na escola se destacam e cumprem função essencial na organização do trabalho
pedagógico. Se é o trabalho a categoria essencial para a formação integral do sujeito a
escola deve, impreterivelmente, incorporá-lo como eixo da ação pedagógica escolar. As
discussões proporcionadas por Pistrak (2005) em torno da escola do trabalho colaboram
para compreendermos esta categoria e as mediações necessárias à formação do sujeito.
Segundo o autor
O trabalho é um elemento integrante da relação da escola com a
realidade atual, e neste nível há fusão completa entre ensino e
educação. Não se trata de estabelecer uma relação mecânica
entre o trabalho e a ciência, mas de torná-los duas partes

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orgânicas da vida escolar, isto é, da vida social das crianças.


[…] Não se trata de estudar qualquer tipo de trabalho humano,
qualquer tipo de dispêndio de energias musculares e nervosas,
mas de estudar apenas o trabalho socialmente útil, que
determina as relações sociais dos seres humanos. Em outras
palavras, trata-se aqui do valor social do trabalho, […] isto é, da
base sobre o qual se edificam a vida e o desenvolvimento da
sociedade. Ou seja, […] na base do trabalho escolar devem estar
o estudo do trabalho humano, a participação nesta ou naquela
forma de trabalho, e o estudo da participação das crianças no
trabalho (PISTRAK, 2005, p. 50, grifos nossos).
Nesse sentido, é que se pauta a defesa, na Carta de Princípios, de um teor de
protagonismo no sujeito no processo de constituição do trabalho de avaliação na escola.
Enquanto sujeitos, e sujeitos sociais, os encaminhamentos são coletivos e como tal,
produto de um trabalho que considere-se em sua atividade humana vital. Não somos
meros coadjuvantes ou estamos alheios ao processo. Há uma característica fundante da
Carta que é considerar a relação pensar e fazer, teoria e prática como indissociáveis, a
medida que todos são tem papel imprescindível na reflexão e condução da qualidade
educacional.
É daí que destacamos outra aspecto central da Carta que é a noção de
coletividade no interior da escola. Isto porque o que se persegue em relação à formação
do sujeito não é um indivíduo marcado pelo racionalismo econômico liberal, ou seja,
acirramento do individualismo diante da sociedade de mercado. A AIP assenta-se em
marcos societários distintos, já que se busca a formação de um novo sujeito. O coletivo
da escola não deve ser caracterizado como a soma dos segmentos que constituem a
instituição. O coletivo deve ser compreendido em uma concepção integral,
circunstanciados pela diversidade, pelas diferenças, por disputas, e consequentemente,
contradições em seu interior. A própria quantidade e variedade de sujeitos se transforma
em qualidade para o coletivo.
Os trabalhadores da escola, estudantes e comunidade formam um “coletivo”
quando
[...] estão unidos por determinados interesses, dos quais têm
consciência e que lhes são próximos. Se quisermos criar na
escola um coletivo infantil, seremos obrigados a desenvolver
estes interesses entre as crianças, inspirando-lhes interesses
novos (PISTRAK, 2005, p. 177).
Nesta perspectiva de pensar o trabalho e o coletivo como fundante,
consequentemente, parece-nos necessário rever a perspectiva do olhar para o

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conhecimento circulante na escola. Como já anunciado a qualidade não deve ser vista
apenas como domínio de língua portuguesa e matemática, a formação humana em que
nos amparamos parte do pressuposto de que nossa constituição é mais ampla que a
formalização artificial de conhecimentos na escola. Ao tomarmos a natureza humana e o
trabalho socialmente útil como central, as diferentes produções humanas (ciências,
artes, cultura, humanidades) serão compreendidas como constitutivas das
crianças/jovens/adultos inseridos em seu contexto.

Finalizando
Neste texto, objetivamos trazer à tona princípios que regem uma avaliação

institucional participativa, de teor contrarregulatória a lógica avaliativa externa das

atuais políticas públicas que se implementam por meios dos exames em larga escala. O

conteúdo político e pedagógico contido na Carta de Princípios (2003) torna-se um

valioso instrumento de resistência às políticas de regulação. Neste sentido, a concepção

contra-hegemônica do documento aponta para princípios profundamente distintos

daqueles propagados pelos reformadores empresariais. Aspectos centrais como a

compreensão do sujeito como histórico e social, produto e produtor das circunstâncias;

o entendimento de que a escola deve incorporar o trabalho socialmente útil como forma

de aprofundar o processo de humanização e desenvolvimento humano, para muito além

do cognitivismo estreito desdobrado pelas reformas empresariais e representados pelas

matrizes de referências dos testes; e o pressuposto de que a escola deve se organizar a

partir de uma coletividade consciente das contradições em seu interior, mas que no

entanto, se organize por determinados interesses comuns.

Estes elementos aglutinados organicamente a partir do Projeto Político

Pedagógico da escola e desdobrados por meio da Avaliação Institucional Participativa,

assim como outros espaços de decisão coletivos, podem suscitar formas de organização

contrarregulatórias, ou seja, por um lado resistem à lógica empresarial contidas nos

processos de implementação das reformas e avaliações externas e, por outro, apontam

caminhos alternativos sedimentados em um projeto societário distinto daquele que

orienta os valores de mercado.

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PATTO, M. H. S. A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
PISTRAK, M. Fundamentos da escola do trabalho. 4. ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2005.

i
A opção pela conjugação no plural não se dá apenas pela autoria que se anuncia no texto, de 3
professores envolvidos no projeto. Mas também por conta de que tais discussões tem sido construídas
coletivas no interior do grupo de pesquisadores do laboratório de pesquisa no qual nos encontramos
imersos.
ii
Freitag (1986), dentre outras, é uma referência para a melhor compreensão das diferentes posturas de
compreensão da relação escola e sociedade na área educacional.

ISSN 2177-336X 5842

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