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_, _ Nao achando um nome bem generico para designar a raga pri- mitiva que constituiu os Scandinavos, raga de que os Iberos sio fambem um ramo, Bergmann propée chamar-lhe Sabmeana ou _Iappo-finnica, Pertencem estes povos vindos dos planaltos do Ural e do Altai, ao ramo tonguse, que com o ramo tartaro formava a raga a que se tem dado o nome de twraniana. Viviam 4s bordas do mar, principalmente do mar Baltico, e por isso, diz Bergmann, se chamavam a gente da agua (finn. Swma-lassed; esth. Soma- sed; lap. Sabme-lads.)1 A palavra Swma e Soma esta revelando caracteristica ethnica da raga turaniana conservada eutre os po- s finnicos. Os sabmeanos precederam na Europa os keltas e os tas ou goles e foram por elles repellidos para o norte, das bor- das do Baltico para as ilhas e peninsula da Scandinavia. Apesar da ua decadencia e degradagdo secular, os povos finnicos ainda con- _ Seryam incalculaveis riquezas poeticas, como 6 uma prova a gigan- te epopéa mythica do Kalevala, colligida por Lonrét. A genealogia historica da raga sabmeanu, téo bem definida por Bergmann, fundamenta-nos um facto importante para a localisagao das racas primitivas da Europa: que a raga a que se chama mon- goloide, ou turaniana, que foi avassallada pelos celtas, entrou na Europa pelo norte e se misturou com os povos germanicos, como ‘Yemos nos sabmeanos ou finnicos, e pelo sul, como vemos na dif- 1 Tes Getes, pag. 31. — 19 Auxo. - we Pe eee a 98 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES fusio dos Iberos até 4s margens do Rhodano. Nas ragas germani- cas deu-se 0 phenomeno de recorrencia de tradigdes epicas, que ainda entre os scandinavos estavam n’um estado mythico; nos po- vos meridionaes deu-se a persistencia dos cantos lyricos, por causa da. estabilidade do elemento iberico da Aquitania. A influencia sabmeana entre os Godos vem um dia tambem a fazer revivescer na peninsula hispanica os cantos epicos dos Romanceiros; diz Bergmann, no seu trabalho sobre os Scythas: «Mais tarde ainda a tradigfio epica dos Godos, dos Germanos e dos Scandinavos falla~ nos dos heroes taes como Volker, Horund, Verbil, Svemlim, etc., que manejavam tao bem o instrumento musico como a espada, & na qualidade de musicos (fdlari) e de poetas oradores eram tam- bem empregados como mensageiros e embaixadores. » +E no mes- mo escripto: «Nas linguas finnicas a palavra forjador era synony- mo de artista, e servia para exprimir toda a especie de industria ou de arte, mesmo a arte da povsia (runs-seppa o forjador de cantos; cf. lioda smidr).» * Num Romance popular portuguez, dos Agores, ainda se encontra um vestigio inconsciente das rimas finnicas ou scandinavas, no verso: «Escreve n’essa bengala,» * A’ mistura de sangue turaniano nas ragas germanicas 6 um facto provado, e por isso quando um dia ellas occuparam a peninsula hispanica, segundo a lei dos crazamentos formulada por Miller, 6 natural que se dessem bastantes phenomenos de recorrencia do ca- racter iberico. Os Alanos, que primeiro entraram na Peninsula his- panica, «estavam conjunctamente alliados e aparentados com povos de origem scythica como os Godos, e com tribus de origem tartara como os Kuni, ou Hunos. * Os cantos heroicos, entre as ragas ger- manicas eram chamados Ciecones, cantares de cegos, e esta pala- ‘yra apparece-nos na Italia, em Franga, em Portugal e Hespanha; entre os povos scythicos, 0 cego nao significava sémente 0. que era privado da vista, mas tambem 0 servo, 0 escravo, os vencidos. Eram estes os que cantavam as mesas dos principes, e 0 seu cara- cter de inferioridade e desprezo foi conservado pelos jograes, ¢ ainda no seculo xv 0 marquez de Santillana considerava infimos e despreziveis os que cantavam Romances tradicionaes. ° Na dade 1 Les Scythes, pag. 30. 2 Ibids, pag. 3f°8 8 Cantos populares do Archipelago acoriano, n.° 80 e Bl. 4 Bergmann, Les Scythes, pag. 8 46. 5 «Os Scythas tinham_por costume cegar os servos (Heredoto, rv, 2) com o fim, diziam elles, do nao serem distrahidos nos seus trabalhos; mas 0 verdadeiro motivo d’esta barbaridade era impedir-lhes a fuga ou a revolta. Este uso atroz cessou completamente ou pelo menos foi muito restricto en- ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 99 ‘média o nome de cego tornou-se synonymo de poeta, como Cieco WAscoli, Cieco de Ferrara, e foi entre as camadas populares, ou propriamente classes servas da Europa, que se conservou a tradi- ga poetica d’onde sairam as litteraturas modernas. A preponde- Tancia do sangue turaniano nos gaulezes, cuja origem scythica esta ‘demonstrada por Lagneau, explica-nos porque 6 que a Franga do norte com a fusdo dos ramos germanicos franko e borguinhao, pro- duziu essa assombrosa fecundidade epica das Canodes de Gesta. A persistencia do elemento iberico do Sul, que veiu pela Asia Menor, on pela Africa como se deduz do typo berbere, 'é que nos explica a expansao lyrica meridional, ou provengalesca. Se 0 ramo sabmeano se fusionou com as ragas germanicas ao norte, o ramo derico fusionou ao sul com as ragas celticas, e em condigdes na- turaes. ‘ As inyestigagdes sobre a raga iberica levam-nos as seguintes Conclusdes: que a raga turaniana precedeu na peninsula as ragas _ firicas e preparou o caminho da sua civilisagio. A raga turaniana divide-se na peninsula em dois ramos; 0 primeiro 6 o mais anti- go, 6 uma derivacio do typo berbere, vindo da Asia através da Africa, e fixando-se ao sul da Buropa e nas ilhas do Mediterraneo, ‘A este chamaremos o ramo iberico, que se estendeu pelo sul da Franga, regio meridional da Italia e ilhas Britanicas. 0 segundo 6 0 ramo Auske ou basco, derivado do elemento scythico, e que desceu do norte da Europa vindo da Asia, e na Pranga constituiu o elemento gaulez; este entrou na peninsula pelo lorte, e nao desceu mais do que até 4 Aquitania. Cada um d’estes ramos teve o seu destino historico. 0 Ibero assimilou-se facilmente ao Phenicio e ao Arabe, quando entraram por seu turno na Peninsula; porque sendo o Ibero de origem Ber- ‘ber, esta raca apresenta duas classes, a dos Lybios que chegaram a fusionar-se com os Phenicios, e a dos berberes que fusionando-se com Arabes deram vrigem aos Mouros. Estas fusdes parciaes ex- plicam primeiramente a civilisagio Bastulo phenicia da peninsu- la, @ seculos depois a civilisagao arabe da Hespanha, que persiste ainda através da mais ferrenha reaceio catholica. Mesmo quando 0s Romanos coadjuvando os gregos contra os phenicios, e batendo os tre 0s Scythas agricultores, enjos escravos empregados nos trabalhos dos ¢ampos nao podiam oecupar-se d’isso sendo privados da vista. Comtudo, escravisar e cegar eram duas cousas tao intimamente ligadas na ideia dos te da antiguidade, que na lingua dos Scythas filho de cego 6 synonymo de escrayo... (Herod. 1v, 28). » Bergmann, Ib., pag. 22. 1 Segundo Bodichon, nos Etudes sur U’Algerie, os Iberos passaram da Africa 4 Hespanha, e conclue pelas analogias entre 0 Bretio e 0 Kabyla. * 400 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES carthaginezes se apoderaram da peninsula ja vinham das conquis- tas da Africa, onde receberam mercenarios numidas e colonos agri- colas berberes, ou barbaros. 0 euskariano, combinando-se com o elemento arico dos Ligu- res, e formado principalmente pelos Gaulezes, de origem evidente- mente scythica, nao sO tornaram facil a assimilagdo com os Cellas, contribuindo para a sua civilisagdo, como pela sua origem sabmea- na, facilitaram lambem a fusdo das ragas germanicas, dos Lombardos e Ostrogodos na Italia, dos Francos e BurguinhOes em Franca, e dos Wisigodos e Suevos na peninsula hispanica, bem como uma outra invasao de tribus normandas e scandinavas, Esta genealogia ethnica é que nos faz comprehender a persistencia de. um dado typo iberico e a recorrencia de um certo numero de costumes e tradig6es, @ mais ainda a separacao nacional entre Portugal e a Hespanha. A diiferenga entre os dous ramos do tronco turaniano o Bush eo lbero udo 6 uma subtileza; aqui a intuigdo do genio de Gui- Jherme Humboldt comprova-se com os factos antropoiogicos, que 0. progresso d’esta sciencia veiu pdr em relevo. 2m numerosas passagens das Memorias de Antropologia, o illustre Broca esta- belece a dillerenga entre 0. Basco francez e o Basco hespanhol, postoque nao saiba explicar os motivos d’essa differenciagao pri- mordial. Transcreveremos os principaes trechos de Broca, para fundamentar em primeiro logar a differenga ethnica entre o Basco francez.e o hespanhol, e para tentarmos depois uma explicagado que nos parece segura: « Assim os Bascos francezes dilferem no- tabilissimamente dos Bascos hespanhoes, e se aproximam em cer- tos pontos dos seus visinhos Bearnezes. » ? Broca desconheceu facto das duas designagdes ethnicas de Lusk e Jber, o primeiro descido do norte da Europa, como se proya pela sua estabilidade no triangulo da Aquitania, 0 segundo tendo entrado na Europa pelo sul, vindo da Asia através da Africa como se demonstra pela dolichocephalia do Basco hespanhol e do Berber. No emtanto Bro- a fornece-nos estas duas provas de um alcance immenso para as origens da civilisagdo moderna. Recapitulemos as duas provas, au- thenticadas pelas suas proprias palavras: «Na época que Cesar in- vadiu a Gallia, tres povos, ou antes tres grupos de povos, differen- tes nos costumes, na lingua e na raga occupavamo territorio da Franga. Eram os Aquitanios, comprehendidos entre o Garonna, os Pyreneos e 0 Oceano... Tudo leva a crér que 03 Aquitanios per- tenciam a esta raga de cabellos negros, cujo typo se conserva 1 Mém. d’Antropologie, t. u, pag. 13: Les caractéres des Cranes Bas- ques. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 404 quasi sem mistura entre os Bascos actuaes (Gascdes, Vascones, Bas (0s). » + Hsta persistencia do elemento Zusk na Aquitania, 6 que nos ha de explicar a efflorescencia e diffusio do lyrismo moderno da Provenca e sua propagacao 4 Italia, Sicilia, Portugal e Hespanha. Quanto 4: segunda prova, a analogia do Basco hespanhol com o Berber, escreve Broca, discutindo os craneos de Zaraus: « Quasi todos se fazem nolar por um desenvolvimento consideravel da par- te occipital, de sorte que se sdo delichocephalos, nao 6 4 maneira dos Europeus, mas antes 4 dos negros, dos Berberes e dos Kaby- las; etc. » 1 As consequencias d’este facto, a entrada dos Bascos hes- Panhoes na Buropa, através da Africa, sao nada menos do que a comprehensaio plena da influencia dos Arabes pelo elemento mau- Tesco ou berber, e como 0 lyrismo arabe, de origem accadica, veiu activar de um modo espontaneo o lyrismo meridional. A differenciagio antropologica entre o elemento Eusk e 0 Iber 6 tio importante, que todas as provas se devem archivar como bases positivas para as deduccées historicas que d’ella se derivam. Escre+ ve Broca sobre os dois typos bascos: « Posso segundo isto, crér, ou melhor, suppOr que as duas racas, uma brachycephala, e outra delichocephala, cuja mistura tinha produzido, antes do seculo xv1, @ populacdo de Sam Joao da Luz, differiam muito mais pelo indicio cephalico, do que pelos outros caracteres. Uma d’estas ragas 6 actualmente predominante na Vasconia hespanhola; quanto 4 outra, que predomina hoje na terra do Labourd, e sem duvida tambem no Testo da Vasconia franceza, 6 provavel que antes de se achar em contacto com a primeira, d’este lado dos Pyreneos, ella alliava ja 08 caracteres da brachycephalia com muitas feicdes recebidas da Taga dos Bascos da Hespanha, quer esta similhanga fosse o resul- tado de uma fusio anterior, quer ella dependesse da influencia ‘atavica de uma raga mais antiga, tronco commum dos dois ramos, que, a0 fixarem-se sobre as duas vertentes dos Pyreneos, ahi se ‘“eruzariam respectivamente com duas populacdcs autochtones diffe- rentes, uma dolichocephala em Hespanha, a outra brachycephala em _ Franga, — Esta questo, sobre a qual ndo se acham comprovacoes historicas, abre um vasto campo 4s conjecturas.» + As conjecturas desapparecem diante das duas correntes de migracio turaniana na Europa, e da propria differenca cephalica da raga turaniana ainda ‘a Asia. Paul Broca insiste no facto da differenciac&o : « Propendo a 2 Mém. dAntropologie, t. u, pag. 10. % Ibid. 1, pag. 282. at 3° Tbid., u, pag. 43. 4102 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES acreditar que os antigos habitantes do paiz basco francez eram bra- chycephalos; que os do paiz basco hespanhol eram dolichocephalos, e que a dolichocephalia que se observa actualmente sobre um grande numero de Bascos francezes foi consequencia do mixto effe- ctuado desde o fim do sexto seculo, em resultado da immigragao dos Vasconios ou Bascos hespanhoes.» * Um pouco adiante con- clue: «a raga brachycephala, que era, segundo toda a probabi- lidade, a dos Bascos francezes, era bem supérior em numero & raga dolichocephala, que era sem duvida a dos Vasconios ou Bas- cos hespanhves. » * Paul Broca ataca de frente o problema ethno- genico contido n’estes dados, e depois de discutir e eliminar as dif- ferentes hypotheses do problema, conclue pela differenciagao pri- mordial: « Procuraremos agora tirar d’este longo parallelo uma con- clusio ethnogenica? Que existe uma differenga importante entre os dois grupos dos Bascos de Sam Joao da Luz e dos Bascos de Guipuz- coa, 6 um facto incontestavel e independente das theorias. Para ex+ plicar esta differenga, ou antes, para a conciliar com a unidade nao menos incontestavel que proclama a linguistica, pode-se inquirir pri- meiramente se se trata de uma so e unica raga, diversamente mo- dificada pela influencia dos meios. Mas, seja qual for a ideia que se faga d’esta influencia, 6 claro que as condigdes do solo e do clima sao bastante similhantes sobre as duas vertentes dos Pyreneos para que se pudesse ahi achar a causa da transformagao de uma raga dolichocephala em uma raga brachycephala, ou reciprocamente; e, quanto ds condigdes moraes, intellectuaes, politicas, religiosas, ow outras, que constituem o que se chama 0 meio social, ellas sao mais similhantes ainda, pois que, sob esta relagado os dous ramos do povo basco apresentaram sempre e apresentam ainda hoje a mais notavel unidade. »* 0 illustre antropologista francez levanta todas as hypotheses imaginaveis para explicar a differenciagao éethnica, refutando-as com factos scientificos e portanto eliminando gradualmente essas complicagdes do problema, concluindo depois de uma severa discussio: « Avsim, de qualquet maneira que se proceda para explicar como uma raga basca primitiva pode, cru- zando-se com as ragas indo-européas dar logar aos dois typos bas- cos actuaes, quer se considere como primitivo o typo brachycepha- lo, hoje predominante no Labourd, ou o typo dolichocephalo, que 6 mais predominante ainda na Vasconia hespanhola, embaraca-se contra objecgdes, as quaes 6 bem difficil responder, E se se torna 1 Mém, d’Antropologie, pag. 45. 3 Ibid., pags.” 3 Ibid. pag. 77. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 403 - por isso provavel que a diversidade dos grupos bascos nao foi eonsecutiva 4 introducgao dos elementos indo-europeus, é-se levado @ conjecturar que ella existia anteriormente. B a esta conjectura que me ligo provisoriamente. — Mas, esperando, as probabilidades me parecem convergir para esta ideia, que os nossos dois typos Dascos e sua distribuigao actual, datam de uma 6poca anterior nao s6mente aos tempos historicos, mas ainda ao inicio da éra indo- européa. » * Sobre a cdr dos olhos azues ou verdes da raga de Sam Joao da Luz, e dos olhos castanhos, segundo as observagdes minu- ciosas de Argelliés, Paul Broca conclue: «A differenga entre estes dois typos 6 bastante pronunciada para que se possa attribuir a uma differenga ethnica, e presumir que a populagao descende de -duas racas ao menos, uma com olho pigmentado, outra com olho nao pigmentado. »* Assim reconhecida pelos processos e provas da antropologia a dilferenga ethnica dos dois ramos_bascos, fortalece- se com o facto gue se d4 na séde da raga turaniana ainda na Asia, € na dupla direcgdo das suas migragdes para a Europa, bem como pelas diversas aptiddes para a metallurgia e para a agricultura, Na religido tambem se encontra a differenga dos deuses, em Dingir, Tegri, Tangry, Tengri, Tangli e Tangara para os Bascos que des- eeram pelo norte da Europa, Devol, Dovel, An Tuval, En Dovelico, Ama Dubellen, Idevor e Nidwver para o ramo basco da Hespanha *, Assim o ponto de vista, puramente linguistico de Humboldt fica justificado pela Antropologia; e do nome do deus Dovel, Devol ow Mobal chamaram Flavio Josepho e Sam Jeronymo Thobeles e Thuba- ditas a0 Basco hespanhol ou Ibero, As dilferenciagdes dos Iberos nado foram desconhecidas aos geo- gtaphos antigos ; ~ «0s que vivem ao norte da Hespanha; pois aqui nao sé se differenciam pelo seu valor, senao tambem pela sua crueldade...» * ‘Rsta differenciagdo observada por Strabo, explica-se pelo territo- tio: «Esta nacdo em uma grande parte do seu terreno nao affe- - rece aos seus habitantes uma morada mui aprazivel; porque sao frequente n’ella as rochas, os bosques é selvas, e tambem nas planicies por vezes a terra 6 mui delgada ou leve, e as mais care- cem de regadio. A parte pertencente ao norte 6 bastante fria, mon- _ tanhosa, exposta ao oceano, sem commercio com outras nagdes,.. » Mém. d'Antropologie, pag. 80. Ibid., pag. he Sobre o Deus Endovelico. Strabio, ap. Cortés y Lopes, pag. 113. Tbid., pag. 70. oe een aS 104 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES «Naéo 6 assim a parte meridional, que quasi toda 6 feliz em sum- mo gréo... » Esta differenciagdo nota-se no Ibero metallurgo, ou dado 4 in- dustria mineira, e no Ibero agricola e constructor de canaes de irrigagdo. Diz Silio Italico, fallando nas minas de ouro da Penin- sula; __ Astur avarus, Visceribus lacerae telluris mergitur unis, Et redit infelix effso concolar auro. Punica, lib. 1, 929. Caracterisa com vigor o asturiano que rasga o seio da terra para colher 0 ouro, e sae das minas mais palido do que o mesmo ouro, Strabio tambem descreve os trabalhos de mineragao dos Ibe- ros junto. dos Pyreneos, cuja abundancia de 4azigos era reputadis- sima, * 0 mesmo com relagao aos gallos, ou iberos francezes. A visinhanga dos montes ao passo que 0s fazia mais selvagens do que o ibero das’ planicies, forgava-os 4 industria metallurgica. Diz Stra~ bao: «Fronteiros a este rio e parallelos a elle so apresentam os espinhagos de uma cordilheira de montanhas (Serra Morena) mais ou menos inclinadas para 0 norte, que sio abundantissimas em to- do o genero de metaes; e com effeito os que estao visinhos a Hipa sao abundantissimos em minas de prata e nado 0 sio menos os que estdo visinhos a Sisapon, tanto o antigo como o novo (Valde- Jazogue ou Almaden). E nas montanhas chamadas das Cotinas (ao occidente e norte de Sevilha) de uma mesma mina se extraem ou- 10 e cobre.» E adiante: « Pela parte de cima (do Betis) se acham montanhas abundantissimas em arestas de ouro e prata, e se dila- tam até tocar com o Tejo; e ja se sabe que os montes que abun- dam em metaes sio geralmente asperos e estereis: assim sio 0S da Carpetania e seus visinhos e ainda mais os da Celtiberia; taes sao tambem os da Beturia, cujos campos indo-entestar com o Ana sio bastante seccos e estereis. » * Nos Artabros, que sdo os ultimos para o norte e occidente da Lusitania, pullula com abundancia aquella terra, segundo dizem, em prata, em estanho e ouro, que 6 esbranquicado por ter mescla de, prata. Os rios arrastam esta terra mineral...» ° 1 Strabiio, ap. Cortés y Lopes, pag. 86. 2 Ibid. 3 Tbid., pag. 88. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA. ~ 4105, 0 caracter agricola do Ibero meridional coexiste com a indus- tria metallurgica, porque na Turdetania « ao mesmo tempo que sub- ministra tanta quantidade de prata e ouro, 6 prodigiosa sua abun- dancia em todo o genero de colheitas. Hsta feracidade e variedade de fructos dobra seu valor e riqueza por meio da exporlacdo, e a mullidio dos marinheiros contribue para 0 prompto despacho dos artigos restantes. Facilitam este commercio nao 86 os rios, sendo tambem o mar que se introduz pelos esteiros e os faz tao navega- veis como os rios, desde suas bordas até ds cidades mediterraneas, onde se chega em grandes barcos, » + Por aqui se vé, que a ex- ploragao agricola se alliava aos estimulos para a navegacao em que tanto se havia de revelar 0 genio peninsular. Strabao falla das in- suas, ou terras adjacentes aos rios «cultivadas com o maior esme- To @ pericia» ? e sob o dominio arabe este talento agricola reap- pareceu com o contacto das tribus maurescas, se 6 que esse esti- mulo nao 6 mais antigo. Strabao falla das relagdes commerciaes com Tingis (Tanger) na Mauritania, e ao mesmo tempo de uma transplantagao. de populagio mauresca da cidade de Zeles e algu- mas familias de Tingis para a nova cidade e colonia Julia Joza (Al- geziras), * Liste facto 6 importantissimo para explicar 0 desenvol- vimento da agricultura entre os Iberos, a sua reviviscencia do ty- po dolichocephalo do Berber, e a facil coexistencia com as tribus Maurescas vindas da Africa com a invasao arabe; o talento para os trabalhos de irrigagéo e canalisagdo, que tanto distingue as tri- bus maurescas, ja era notado por Strabao no Ibero: «Tambem construiram em muitas partes canaes de navegagao, pelos quaes‘se cruza de umas povoagdes para outras, e por elles se fazem ex- portagdes, ja para os naturaes, ja para os estrangeiros. » * A sua industria agricola, que caracterisa o lbero mais civilisado, define a Natureza da sua actividade mercantil: « Os arligos de commercio que se extraem da Turdetania sio trigo, muito vinho, abundante @ fino azeite, céra, mel, pez e gram de purpura, minio ou verme- Thao, que nao 6 inferior em qualidade 4 terra sinopica. Nos portos 8@ ajunta muita madeira de construcgado da propria regiao, e final- Mente sal gemma, além do que em grande abundancia dao os rios e fontes salgadas, que sao muilas.» * Strabao’ falla em seguida dos escabeches, dos tecidos, e especialmente « das las dos carnei- Be: a ene, pag. 80. oeeer 4106 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES ros coraxos, cuja belleza 6 incomparayel. » Tal 6 ainda hoje a ex- ploragdo dos merinos, e os principaes artigos do commercio de Hespanha e Portugal. Na differenciagéo do Ibero peninsular, o territorio tornou um ramo mais progressivo, que chegou a fundar uma civilisagao rudi- mentar. Taes foram os Turdetanos. Estes, povos estavam collocados em uma mesopolamia formada pelo Ana e pelo Tejo, como dia Strabio: «O Ana em certo ponto do seu curso descae para o meio dia, ¢ forma com o Tejo uma mesopotamia habitada a maior parte pelos Geltas ¢ por algumas familias de lusitanos, que do outro lado do Tejo para aqui trouxeram os romanos e lhes destinaram habita- ao.» Importa distinguir n’estes Celtas de Strabao o que ha de ele- mento scythico, 2 «Esta regiio... de seus habitantes 6 chamada Turdetania, pois que seus habitantes se chamam. turdetanos @ turdulos, bem que ha quem os tome por uma sé gente. »— «0s Turdetanos so reputados pelos mais illustres de todos os Iberos; estudam a sua lingua pelos principios da grammatica (caracter da civilisaedo accadica); seus annaes ou memorias escriptas remon- tam a uma prodigiosa antiguidade; tem poemas, e as leis com que se governam, escriplas em verso, segundo elles contam seis mil annos de antiguidade. » * Quando Strabio consignaya estes factos, nao era conhecida a extincta civilisagao accadica, e porlanto estes poemas, talvez analogos ao de sdwbar da Chaldéa, e estes annaes, analogos 4s Inscripgoes cuneiformes, pareciam-lhe extraordinarios. A persistencia das formas lyricas das serranilhas na tradigdéo penin- sular, a sua revivescencia pelo genio arabe, e a sua efllorescencia na época provencal, explicam-nos tambem como os antigos roman- ces € aravias hespanholas e porluguezas pertencem a esse cyclo de poemas, analogos em tudo aos que na Finlandia se repetiam até que com elles Liaroth formou a epopéa do Kalevala. Das outras tribus ibericas falla Strabo differenciando-as pela sua inferior cultura @ dialectos: «Os outros Iberos tém tambem grammatica ; porém 6 de outra natureza que a anterior, nem fallam a lingua propria e privas tiva da Iberia, sendo que fallam outros idiomas. » * Estes dialectos eram dos bastulos, em que entrava um elemento phenicio, eram dos Celtiberos, das colonias maurescas, de modo que o turdetano era propriamente lingua escripta tendendo para fixar-se na littera- tura. Strab&o, ap. Cortés y Lopes, pag. 74. Tbid., pag. 74. oe 3. Tbid.; pag. 78. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 407 A introduceao do elemento phenicio sobre os Iberos da Turde- tania 6 facil de explicar, attendendo 4 cultura accadica dos Pheni- ¢ios. Diz Strabao: « ainda hoje em dia muitas cidades da Turdeta- fia e de algumas regides visinhas estéo habitadas por Pheni- cios.» + A maior parte do onomastico portuguez das localidades 6 phenicia, e isto diferencia o Ibero occidental e maritimo do que veiu a ser propriamente hespanhol. A lenda das Ilhas encantadas, jue seduziu sempre a imaginagao portugueza e despertou o genio Maritimo d’este povo, 6 de origem phericia, da memoria das ilhas que primeiro habitaram no golfo persico; taes eram as fabulas das ilhas Cyaneas ou Symplegadas, ou Penhascos errantes, que se tornaram as Fortunatas e Avalon. ? Assim como acceilaram 08 cos- tumes dos Phenicios, os Turdetanos imitaram tambem os Romanos, € esle caracter dmitativo 6 por onde se conhece ainda hoje 0 por- tuguez na sua arte, lilteratura e governo: «A esta felicidade da Tordetania, 4 docura dos seus costumes e 4 sua civilisagdo se as- similha muito a dos Celtas por sua proximidade com os Turdeta- Nos, @ por certa cognagao que contrahiram ja, como diz Polybio. al nao chegam a igualar-se com elles, pois os Celtas ainda hoje. vivem em aldeias ou vicos de poucos moradores: ao passo ay Os turdetanos, especialmente os da borda do Betis, quasi to- los tomaram as maneiras e o genero de vida dos romanos. Até do seu idioma nativo se esqueceram, e a maioria falla o latim, por ¢ausa de se mesclarem com muitas familias que sendo romanas se domiciliaram entre elles; de maneira que pouco falta para que to- dos parecam romanos.» * Este facto 6 importantissimo para a ethnologia iberica, porque a facilidade da fusio com os Pheni- ¢ios, manifesta-se na imitagao dos Romanos, da mesma forma que na imitacito dos costumes Arahes (Mosarabes). ‘A fasao com os Celtas, relativamente aos Phenicios e Romanos Dastante atrazados, fizera recuar o progresso dos Iberos, e como Nota Strabio «os Celtiberos sempre foram reputados por mais indo- Mitos e feros.» * Onde predominou o elemento celtiberico custou aos Romanos a conquista para mais de dois seculos de campanha; -Strabio retrata este elemento celtiberico, em que entram o Callaico > 0 lusitano, ® como tribus isoladas, traigoeiras e dadas 4 rapina: 1 Strabio, a ie y Lopes, pag. 90. Ibid., pag. 90 e 92. 8 Ibid., pag. 3 4 Ibid” 5 «ainda hoje em dia succede que uma parte dos Lusitanos sio ehamados Calaicos. » A gente do Alemtejo chama Gallegos a todos os que ecupam do Tejo para cima. at 408 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES «So pois, cerca de trinta as diversas gentes que habitam entre o Tejo e os Artabros, (celtas do promontorio Nerio ou Finisterra) do que se infere quam abundante 6 esta regiao em fructas, em gados, em ouro e prata e outras riquezas similhantes. Antigamente mui- tas d’estas tribus, odiando a vida da agricultura, e vivendo da ra- pina, estavam em continua guerra, ja entre si mesmos, ja com seus visinhos, e 4s vezes chegavam a passar o Tejo, incommodan- do a toda a regido. Porém, jé os Romanos lograram contel-os e humilhar sua audacia, e reduzindo muitas de suas cidades em al- deias, os ensinaram a viver com tranquillidade. Este mal teve sua origem no que de ordinario succede nos paizes asperos e monta- nhosos, pois tendo que cultivar uma terra ingrata e insufficiente para manter a povoagaio, desejavam a par da vida fazer-se donos dos terrenos que os outros possuiam. B acontecia que estes mesmos que viviam da agricultura, vendo-se forgados a defender-se e a Tepellir os invasores, tinham de deixar o arado e tomar as armas, ficando os campos sem cultura, e nio podendo manter os seus le- gitimos possuidores, estes mesmos tambem se faziam ladrdes. Os lusitanos séo homens insidiosos, escuadrinhadores ou inves- tigadores, ageis, ligeiros, inconstantes e credulos ; etc.» ! Este ca- racter meio sclyvagem foi produzido pelo cruzamento dos Celtas com os [beros; foram os Romanos que operaram pela sua forga militar e administrativa a unificagio politica d’estes Celtiberos, comprehendidos entre o promontorio Nerio e o Tejo, com-a nacaio turdetana, pacifica e civilisada. Aqui era mais facil esse tradalho, porque bastava apear os muros das cidades; ao passo que para 0 centro da peninsula existiam altas montanhas onde o Celtibero fo- ragido se apoiava na resistencia. Strabao admirava-se como os Cel- liberos «que sempre foram reputados mais indomitos e feros» se romanisaram do mesmo modo que os Iberos! Esta unificagdo ope- rada pela conquista romana langou as bases para a futura precocida- de da unidade nacional portugueza, onde de facto se fundiram dois elementos ethnicos que o dominio arabe, nao se estendendo acima do Douro, fez definir-se melhor. De facto 0 dominio arabe fixa-se com mais intensidade na antiga mesopotamia do Ana e Tejo, onde se desenvolveu a civilisagéo turdetana, ou iberica propria; e na Beira, onde se fixaram os Berones (originarios da transmigragio ou exercito dos Celtas *) existe a imitacdo dos costumes arabes, per- sistindo 0 typo do Celtibero romanisado pelo colonato no Mosarabe. A federagao era a forma natural da constituigao politica do Ibero; 1 Strabiio, ap. Cortés y Lopes, . 97, cite ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 109 _ Strabao falla da cidade de Asta como da séde da dicta ou federa> 40 turdetana; 1 e as moedas bilingues da peninsula justificam essa Policia dada tambem por Strabao das Cidades duplas, ou de diver- 808 povos separados por um muro, mas visinhos para a defeza mutua. ? Quando os romanos apearam os muros das cidades celti- bericas destruiram estas federagdes naturaes, para conservarem @ conquista e unificarem sob um mesmo regimen administrativo, As- sim foi facil.a illusio dos historiadores em abstrairem do -antigo elemento iberico, celtiberico e hispanico, para considerarem os po- Yos peninsulares como completamente romanos. Quem observar os vestigios ethnicos dos povos ibericos conser- Yados por Strabo na sua descripgio geographica, 6 os comparar com 08 costumes actuaes, pasma da sua extraordinaria persistencia @ sobrevivencia, se nao vir que elles persistem por phenomenos de Yecorrencia ao typo iberico pelas invasdes phenicias, pelo colonato Tomano, pelos germano-scythas (alanos) e pelas Wwibus maurescas. _ Na entrada dos Celtas na Europa a raga iberica foi invadida, Mas deu-se um phenomeno notavel, que se nao odiaram mortal- mente, e ao cabo das primeiras luctas ja se acharam fusionados, Diz Ufvalvy, na Migracdo dos Povos twranianos: «onde quer que 0s Cellas e os Iberos se encontraram, acabaram por se confundi- vem ; 0s nomes o provam: Celt Jberos, Umbrianos, Cimbros, ete. Os Iberos foram entao repellidos para as montanhas, ou acabaram por absorver os seus aggressores, como em Hespanha. Nos pensamos que na Escossia, na Irlanda e nos paizes dos Bascos 0 elemento iberico predomina ainda hoje, ao passo que no paiz de Galles e na Bretanha é o elemento celtico que entra em maior escala, Em Hes- Panha e na irlanda poderia ter havido vestigios de uma influencia Mais on menos directa dos Phenicios. Seria entio da mais alta im- riancia comparar a lingua basca com o irlandez, as linguas ber- eres com o albanez, elc. Os Bascos sao certamente Iberos, que ado- plaram uma grande quantidade de palavras cellicas. Por ventura achar-se-ha nos Alpes vestigios dos Iheros, 0 que nos parece muito Provavel, mas certamente acham-se ahi restos de Celtas. » ® Na in- Yasiio celtica uma parte da Europa conservou-se quasi extranha a nova influencia, ficando ahi o elemento iberico n’uma certa pu- veza de raca; 0 eminente antropologista Paul Broca considera a Aquitania como um triangulo comprebendido entre os Pyreneos, 0 Garonna e o Golfo da Gasconba, no qual se conservou isolada a ra- 4 has ap. poe Loves pag. 79. i . Bearcats oA Peuples, pag. 189. M0 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES ¢a ou populagdo primitiva que veiu a ser subjugada na Europa pela occupacio dos Arias. £ esta tambem a opiniao de Jorge Phillips, ci- tada por Jubainville: «Muito mais tarde, isto 6, no tempo de Cesar, os Iberos possuiam ainda na Gallia a maior parte do territorio situa- do entre o Garonna, 0 Oceano e os Pyreneos; elles se conservaram neste vasto triangulo, apesar das conquistas dos Ligures primeira~ mente, e depois de um inimigo muito mais terrivel, a raga celti- ca.» + Este triangulo aqui demarcado é a Aquitania; foi n’esta zona que floresceu a poesia trobadoresca, por isso que ahi persisti- ram mais puros os elementos tradicionaes do lyrismo provengal. 0 apparecimento e propagagao quasi simultanea d’esse lyrismo da Provenga para a Galliza, para a Italia e para a Sicilia, tem a sua rasdo n’um fundo ethnico commum. 0 lyrismo germanico, em cuja raga entraram bastantes elementos scythicos, teve 0 mesmo pro- cesso organico de manifestagéo; as poesias dos Minnesingers, os Minneliedes, foram uma revivescencia dos antigos cantos populares das ragas germanicas do tempo de Carlos Magno, e, interdictas ao povo no tempo de Luiz Debonnario, revivesceram a primeira com- municagio com o lyrismo provengal. Essas poesias populares da antiga Aquitania iberica representavam a vida pastoral e agricola nas encantadoras pastorellas communs a todos os povos meridio- naes da Edade média; ainda no seculo xv1, Montaigne conhecia es- ses cantos tradicionaes com o nome de Villanellas, Ao fallar do elemento iberico, Mommsen, na sua Historia ro- mana, reconhece 0 alto grao da civilisgao da peninsula e a persi- stencia de um certo numero de caracteres no povo hispanico: «Era uma difficil empreza que os Romanos se haviam imposto em querer domar e civilisar a todo o custo estes povos turbulentos, amorosos de combates, ardentes ji 4 maneira do Cid, e arrebata- dos como Don Quixote.» O caracter nomada da raga a que perten- cem as tribus ibericas prevaleceu na peninsula, e subsiste na sua historia, e fez com que ellas nao fundassem uma civilisagao capaz de resistir pela unificacao politica; Mommsen. accentua esta cara- Cteristica, alludindo 4 persistencia de outro caracter ethnico: «Se elles pudessem ter-se submettido 4 disciplina; se chegassem a ter alguma cohesao politica, teriam sido bastante fortes, talvez, para repellir victoriosamente o invasor estrangeiro; mas a pura bravura era mais a do guerrilheiro do que a do soldado, e faltava-lhe 0 senso politico. » * Todos estes caracteres se applicam ainda ao povo hespanhol; fortalecem-nos as palavras de um historiador tao seve- 1 Les prémiers Habitants de VEurope, pag. 30. 8 Hist. Romaine, t. 11, pag. 273-276. Trad. franc. ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA ah To como Mommsen, que vae derivar do elemento iberico esse ge- nio nacional personificado nas creagdes tradicionaes e litterarias do Cid e Don Quixote, e nos costumes actuaes dos pronunciamen- tos e das guerrilhas. Um outro facto apontado por Mommsen, e a que ligaremos uma explicacio historica, é a da independencia das regides cen- traes, edo Norte e Oéste da Peninsula, que nao acceitaram o jugo da invasio romana; de facto foi ao noroéste da peninsula que se conseryaram as tradigdes poeticas, que produziram essa efflores- ‘cencia lyrica tao prematura, que 0 Marquez de Santillana ainda no ‘seculo xv considerava os Gallegos e os Portuguezes como os que primeiro exerceram esta Arte que maior se chama. ' 0 espirito de Tesistencia contra o dominio romano conserva os cantos populares como um meio de excitar a coragem, por isso onde maior foi a re- Sistencia ahi se deve encontrar uma maior persistencia tradicional. Além d’isso a proximidade do féco poetico da Aquitania, onde a Taga se conservira menos perturbada pelas invasdes aricas, fez com que na revivescencia de certas formas lyricas coubesse 4 Gal- Tiza e a Portugal a aceao iniciadora. E na>verdade, os Cancioneiros gallecio-portuguezes encerram as composigdes lyricas mais bellas de tudo quanto resta da Rdade média n’este genero; ® como se pdde explicar esta belleza excepcional sendéo por uma maior pure- za da tradigao? ® Temos até aqui reunido os factos para o conhecimento antropo- logico da raga iberica, considerada com bastante fundamento como um ramo da raga turaniana, mongoloide, ou melhor do ramo allo- phylo do tronco branco, ou uralo-altaica, distincta da raga finnica por ter entrado na Europa pelo sul e vindo através da Africa, A extensiio da raga iberica esta hoje determinada, sendo um dos ra- mos mais importantes os Sicanos das margens do Sena, que pas- ‘Saram da Gallia para a Italia, e que sdo talvez os scythas conhecidos pelo nome de Sakes; os Cunetes, que habitavam junto do Guadiana ; 08 Tartesses, comprehendendo os Turdulos, Turdetanos e Martia- noi, que habitavam junto do Guadalquivir; cs Sordones, que habi- tayam junto do rio Sordus; os Libwrnos, Libw ou Rebu, da Gallia 1 Eis 0 trecho de Mommsen : « Mas se & certo que ao Sul ea Léste os indigenas por algum modo abriram o eaminho 4 eivilisagio e ao dominio Tomano, nao foi o mesmo ao Odste, no Norte e no interior do paiz. Ali as ~ humerosas e rudes povoagdes mostraram-se absolutamente refractarias. » Ip. cit. 2 0s philologos allemies o confessam. § Este ponio ja esta desenvolvido nos nossos trabalhos sobre Historia da Litteratura portugueza, 412 t REVISTA DE ESTUDOS LIVRES cisalpina, de Brescia e dé Verona; os Siluros da Gram-Bretanha; os Kempses, no Guipuzcoa, comprehendendo os Asturos, os -Canta- bros e os Lusitanos; os Vascons, junto do Ebro; os Ceretes ao pé dos Pyreneos; finalmente os Jglebres, os Gletas, Indikeles, e Edetani. Estes povos n&o chegaram a produzir uma unificagdo nacional, e sendo contemporaneos dos periodos da mais alta civilisagao egy- peia, receberam a sua primeira cultura dos phenicios, dos gregos € dos romanos que os dividiram e subjugaram. Os Celtiberos pos- suiam as letras gregas primitivas, os Turdetanos tinham as suas le~ tras formadas com caracteres gregos, phenicios e lybios; os Bastu- los tinham o alphabeto phenicio, como se.observa nas legendas das moedas chamadas dinheiro de Osea. Emfim os Turdetanos for- mavam um nucleo de civilisagdo, que tenderia a unificar todos os elementos ibericos, se se nao dessem as successivas invasdes da Pe- ninsula; os Turdetanos, como relata Strabao, possuiam Cantos tra- dicionaes, um codigo de leis versificadas, e annaes historicos anti- quissimos; este facto néo_surprehende hoje ninguem, depois que se acharam os cantos lyricos dos turanianos da Galdéa; os cantos epicos dos sumirianos da Assyria e 0 Kalevala da Finlandia. Nas inscripgdes lapidares da Peninsula existem bastantes nomes de Deuses, para por elles se deduzir o caracter da religiao dos Ibe- ros; 0 confronto das superstigdes populares de Portugal e Hespanha com as supertigdes accadicas, revelar-nos-hdo a persistencia do ge- nio iberico; finalmente os costumes actuaes revelario de vez em quando ainda essa physionomia primitiva. Sobre a religiio dos Iberos, alguma cousa se pdde dizer de positivo percorrendo as inscripgdes lapidares da Peninsula, hoje pu- blicadas por Hubner. A religiao era essencialmente fotichista, nao 0 felichismo das ragas selvagens, mas esse fetichismo especulativo hoje tio bem conhecido pelo culto accadico, e especialmente pela religiao dos Ghinezes. Os nomes de alguns deuses ainda hoje se encontram entre varias tribus nomadas da raca amarella; e na epigraphia peninsular, nomes de deuses como estes Abiafelaesur- accus, Aegiamunidegus, Bawdiarbariecus, s6 podem ser considera- dos como agglutinagdes de diflerentes nomes de divindades, e redu- ctiveis aos seguintes elementos, que sao ainda hoje deuses entre as tribus altaicas, como’ Abu, Aval, (Esw, divindade celtica) Okke, Aegiews, (Manyos, divindade meda) e Ba, Ander, Bari ou Bu- ron, Okke. Da immensa lista de Deuses ibericos, 0 unico mais co- nhecido pelos monumentos epigraphicos 6 Endovelico: sobre este deus tem-se desarrazoado bastante por falta do justo criterio ethno- Jogico. As suas tres formas, como se Ié nas inscripgdes, Endovellico, Endobolico, Enobolicus, sao reductiveis 4s seguintes divindades Ana, Dovel ou Aval e Okke ou Oki. Andlysando cada um d’estes deuses ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA MS - se vé nao s6 o caracter ethnico dos Iberos, como 0 estado da sua religiao partindo j4 para um syncrelismo. Anna, 6 0 dens principal dos Accadicos, o senhor do cé0 (entre o nosso povo ainda existe a locugdio —Pae do céo), que apparece tambem como principal na China, no Thian (Zu-Anna); entre os guaranis Ana tem ja um cara- cter demoniaco e malfazejo. Este seria o Deus mais antigo dos Ibe- 03, por isso que 6 o maior entre os turanianos. 1 0 nome de De- bel significa ainda hoje em bohemio Deus; * Oke ou Okki ainda en- fre os habitantes da Virginia ‘e da Florida significa espirito, * e en- tre os Hurons Okki 6 a divindade suprema. Na linguagem dos Ci- ganos das provincias bascas conserva-se ainda a forma Amadabelle para significar Deus, * ultimo vestigio da importancia primitiva de Endovellico. Bste processo precisava fazer-so a todos os nomes das divindades ibericas conservados nas inscripgdes lapidares; e poder-se-iam classificar na seguinte hierarchia: primeiramente os deuses ou Lspiritos simples, como Oke, Al, Aval, Dovel, Dogoda ; de- Pois os deuses derivados da fusao celtiberica, como Aesuris, Ezsie, e deuses derivados dos turanianos da Media, como Manyos, ou das colo- Nias gregas, como Aegieus, Agria, ou do Egypto como Ammon, Isis e Serapis. Assim como pelos nomes d’essas divindades se de- duz a successdo historica das ragas na peninsula, assim remontan- do mais fundo se demonstra o caracter turaniano da raga iberica. 5 5 O*deus innominato 6 peculiar da raga turaniana. Dos Gallegos - diz Strabio: «Ha quem assegura que os Gallegos nio reconhecem divindade alguma. Os Celtiberos e seus visinhos, que ficam para o Norte (Berones e Vasconsos) no tempo-da lua chejam passam toda @ noite saltando e bailando as portas de suas casas em honra de um Dens, para o qual nao tem nome proprio.» ° 0 Chinez-é n’es- te sentido um povo atheu, e as ragas mongolicas que abragaram o budhismo fizeram d’essa doutrina moral uma religido sem Deus. _ Strabao, fallando de um templo no Gabo de Sam Vicente ou Promontorio Sacro, nega a sua existencia dizendo: «alli se véem de pedago em pedago espalhadas umas pedras de tres em tres, ou de quatro em quatro, a que fazem dar balangos os que se che- gam ao dito sitio, seguindo n’isto um costume proprio do paiz 1. Lenormant, La Magie chez les Chaldéens, 4, 138, 144, 2 Francisque Michel, Pays Basque, pag. 148, nota 2. % Abb. Bertrand, Dice. des Religions. 4 Francisque Michel, ib., pag. 144. _ 5 Algumas noticias sobre ilivindades ibericas, para maior comprova- a0 do nosso processo, ajuntal-as-emos em um trabalho especial sobre Endo- relico. © Ap. Cortés y Lopos, pag. 114. 1. Axxo. Soe Ath REVISTA DE ESTUDOS LIVRES Nao ha costume de fazer sacrificio algum, nem de congregar-se de noite n’aquelle sitio, que segundo créem os naturaes é habitado pelos deuses. » + Estas pedras sagradas sio os Bethyles dos povos proto-semitas, ¢ semitas; e portanto as numerosas Antas, ou Dol- mens e Comleks em uma regiio habitada por Iberos puros de- ver ser consideradas como Bethylos caracteristicos da raga tura- niana ;’o nao invocar outro deus, além das proprias pedras, 6 bas- tante significativo. « Recapitulando as nogsas conclusdes sobre as racas da Ruropa meridional antes da conquista romana, chegamos a uma uniformi- dade de distribuigio d’essas ragas na Franga, nas ilhas Britanicas, é nas peninsulas hispanica e italica; este trabalho de systematisa- g40 86 se tornou possivel quando se provou a entrada na Europa de uma raga uralo-altaica pelo norte, ou sabmeana, e a entrada de outro ramo da mesma raga pelo sul ou iberica, sendo a primeira repellida pelas invasdes das tribus que vieram a constituir os ger- manos @ scandinavos, e a segunda fusionada pela entrada e occu- pagao dos Celtas. Os dados ethnicos fornecidos por Cesar, Pomponio Mella e Ammiano Marcellino para as Gallias, por Tacito e Avieno pa- ra as ilhas Britanicas, e por Staphano de Byzancio para a Hespanha, sao conformes n’essa distribuic&éo ; comecemos pela peninsula his- panica ante-romana. Occuparam-na, 1.° os Iberos (Bascos), elemen> to turaniano, tendo atravessado a Africa, e diffundidos pelo sul da Franga e Italia, principalmente na Aquitania; 2.° os Celtas-Lygios, elemento arico entrando na peninsula pelo norte, e pela longa cohabitagao fusionando-se no Celtibero; 3.° os Gallaecos, outro ele- mento turaniano, propriamente o gaulez, descendo do norte da Eu- ropa, e nao passando do norte da Peninsula. Para a Franga temos o mesmo quadro ethnico: 1.° os Aquita- nios, que se estendem pelas ilhas do Mediterraneo e pela Italia; 2.° os Celtas, ramo arico, do qual hoje se separam os gaulezes e os kimricos; 3.° os Gauleses, 0 mesmo que os Gaéls, Wallons, Welches, Belgas, Cimbros, turanianos descerido do norte da Europa, sendo um ramo das montanhas e outro das bordas do mar. B 0 que se mistura no norte com as ragas germanicas. Nas ilhas Britanicas, temos: 1.° os Silwros, que Tacito jé com- parava aos Iberos; 2.° os Caledonios, ou celtas insulares ; 3.° os Bretdos, ou o elemento turaniano do norte. Na Italia, a successdo 6 a mesma: 1.° os Venetes, elemento turaniano correspondendo aos aquitanios ; 2.° os Umbrios (Amhra, os valentes) considerados por Freret e por Amadeu Thierry, como 1 Ap. Cortés y Lopes, pag. 72. Pepe a ee hae ELEMENTOS DA NACIONALIDADE PORTUGUEZA 15 celtas que transpuzeram os Alpes, fixando-se em quasi toda a par- te septemtrional da Italia; 3.° os Boios, elemento turaniano, entra- 4 do do norte, ou kimeriano, formando a Gallia cisalpina. a Este prospecto ethnographico, tao necessario para estabelecer i luz nas noticias desconnexas dos geographos e historiadores anti- ’ gos, explica-nos como para o Romano foi facil estabelecer a unida- de politica no Occidente da Europa, ao mesmo tempo como 6 que nas invasdes germanicas essas hordas barbaras facilmente se ro- manisaram, é ainda mais particularmente como 6 que os pheno- Menos sociaes das Nacionalidades modernas foram os mesmos na Franga, na Italia, na Hespanha e em Portugal, isto 6, lucta das clas- ses servas, formagio do feudalismo, creagao do terceiro estado, monarchia hereditaria, e espirito democratico proclamando a sobe- Tania da nagao. Nos phenomenos litterarios as concordancias sao ainda muito mais palpaveis, quer se considere a formagdo dos dialectos romanicos, quer a propagagao dos cantos tradicionaes, ou ja a tendencia para a unificagao do direito civil, primeira base da federagdo do occidente. Taeornito BRAGA, ; : DO. METHODO. A SUR WA APPLICAGAO DO REALISMO A ARTE (Gonclusao) O romance moderno, sendo a synthese de uma experimenta- ¢ao no mundo moral, para se mover com seguranga no microcos- mo complicado das paixdes humanas, deve guiar-se pelo facho da moderna physiologia, que tanto tem esclarecido os phenomenos da actividade mental e emotiva. Mediante este processo, quando nas creagdes artisticas a debili- dade dos caracteres se fizer sentir, ha de ter necessariamente por antecedente a debilidade do talento do auctor. Nao ignoramos que basta muitas vezes um grito d’alma para revelar um caractér: 6 este o cunho capital e caracteristico das creacdes monumentaes de Shakespeare. Em um rapto de audaz e profunda intuigao penetra profundamente na alma dos. persona- gens; mas estes arrojos servem mais para se medir a pujanga do genio creador, que se revela em todas as formulas, do que para aquilalar as excellencias do methodo. Em contraposigao tambem muitas vezes um trago exterior, um impulso irresistivel dos sentidos, define um caracter. & ainda quando 0 artista entra bruscamente no intimo dos per- sonagens, estas revelagdes instantaneas de um caracter nao deixam de ser precedidas mais ou menos de manifestagdes exteriores que nos preparam para‘as subitas irradiagdes da alma, Julieta, ao avistar-se com Romeo, revela logo uma d’estas im- pressdes profundas que sao precursoras das paixdes irremissiveis, | 7 | | APPLICAGAO DO REALISMO A ARTE 447 fataes e assoladoras, Mas nao teve este lance precedentes de or- dem objectiva, que nos predispdem 4 comprehensao de tao irre- - primivel impulso n’aquella natureza amantissima, delicada, impres- sionavel ? E antes de concluirmos detenhamo-nos em fixar o que 6 a arte sob 0 nosso ponto de vista. D’essa definigdo irradiara luz sobre 0 ponto controvertido. Quando subordinamos a arte 4 observacao exacta da natureza, nado a queremos reduzida 4s estreitezas da imitagio servil; mas desvendamos-lhe, com Glustavo Planche, os vastos horisontes da interpretagio. Somente em precisar o que seja interpretagao, a for- mula realista diverge essencial e profundamente do idealismo, e € Westa divergencia que se accentua a diiferenca que separa mais salientemente as duas formulas. i O realismo, pela interrogacaéo exacta e paciente da natureza, formula os seus ideaes apossando-se do que 6 mais predominante € esti latente muitas vezes na mesma natureza; em quanto que 0 idealismo, ultrapassando estes justos limites, afasta-se logo da ver- dade natural para se lancar nas abstracgdes. Estonteado na preoc- cnpacdo de pesquizar o bello fora da realidade, tentou corrigir a ‘ae na sua obra e ensinar-lhe como melhor deveria ter feito. Contra esta insensata pretensdo insurge-se o realismo. A arte inspira-se nas ligdes da natureza, mas contenta-se em dar eviden- cia e relevo ao que, apesar de profundamente caracteristico, passa desapercebido do maior numero. So ainda as consequencias dos erros da metaphysica: 6 ainda @ philosophia, que tem por lemma a expressio mais completa do orgulho humano, —o homem 6 a medida do universo — estenden- do a sua influencia ao campo da arte. Justamente d’esta louca as- piragéo a produzir melhor que a natureza nasceram todas as phan- tasias, que desfiguraram a verdade e desfecharam na febre e na ne- ‘Wrose, na descoordenagaio, em summa, do cerebro humano, a qual desencadeon sobre o campo litterario um sabba infrene de visio- narios e allucinados, A obra de arte 6 a expressio harmoniosa da natureza no que ella tem de mais caracteristico e predominante; 6 um consensus do que esta esparso e 6 capital, condensado pela observacao e con- ¢retisado pelo poder creador da imaginagao. § com estes elementos colhidos em flagrante realidade que se formula a synthese de um ideal, que nfo 6 o vago e o incognoscivel, mas uma aspiracao sen- sata para’o bello ou para um estado melhor de cousas, E uma eyo- lugaio de progresso e perfectibilidade que se opéra dentro das for- gas da propria natureza. dts. REVISTA DE ESTUDOS LIVRES Tambem. o realismo 6 accusado de nfo ter ideal. Nao o teria, ge se entendesse por ideal alguma cousa de mysterioso e devota- mente encerrado em sacrario invisivel, uma exaltagio sentimental que nos transporta a um mundo phantasiado, onde tudo 6 vaporoso, ceruleo, intangivel. Mas se ideal 6 a idéa concebida pelo artista em communhao com a natureza, fielmente observada e assimilada no que tem de mais essencial e relevante, seguramente esse ideal que, tla expressao de Taine, nos conduz nao a uma ode, mas a uma lei, realisa-o plenamente a formula realista. bea A arte, invertendo no concreto o que 6 universal e predominan- te, incarna em uma forma esthetica o resultado de uma observa- gao fiel. Nao se aspira a corrigir a natureza e a ensinar-lhe o que nao soube fazer melhor; mas pode dar um desenvolvimento da mesma natureza pela antecipacdo do que viri a fazer. i a sua evo- lugao latente manifestada pela obra d’arte, Aquella falsa nogio do ideal restringe e acanha o campo da arte. A arte 6 a expressio da vida, e a vida ndo 6 sé a luz ine- briante e gloriosa, o ether immaculado, ceruleo, onde se desatam as mais bellas efflorescencias ; 6 tambem a sombria humidade das terras fundas, onde rasteja um mundo obscuro e lobrego de vege- tagdes leprosas. Nio 6 s6 Miguel Angelo e Raphael, no limpido e glorioso céo da Italia, com as suas serenidades olympicas, com as suas audacias magestosas, com as suas purezas sublimes, 6 tam- bem Rubens e Rembrandt com o céo penumbroso da Flandres, com todas as deformidades, todos os contrastes, todos 0s conflictos @ to- das as exuberancias monstruosas da vida. A differenga 6 que, na primeira concepgao, a arle manifesta-se pelo desenvolvimento e pela apotheose do que é bello e grande e na segunda pela repro- vagao do que 6 mau, vicioso e baixo. A arte interroga a natureza.no que tem de mais importante @ dominador, @ n’este ponto de vista biparte-se em dous aspectos, ~ como a agulha magnetica que indica os dous polos, quer o desen- volvimento da natureza se opere pela contemplagao do que é bom, nobre e puro, quer se consiga 0 mesmo fim pela repugnancia ins- pirada pelo que 6 torpe, defeituoso e malefico. Shakespeare e Balzac, os dous grandes conhecedores da alma humana que mais fundo revolveram o mar tenebroso das paixdes, elevaram a arte ao apogeu da forga gigantea, principalmente pela pintura do que 6 repellente e monstruoso. E n’uma €6poca, em que o cerebro humano se descoordena na tensio febricitante de todos os appetites, de todas as ambigdes cu- pidas e infrenes, no meio d’esta existencia complexa, nervosa e agitada, a arte tem de ser fatalmente um sangrento realismo. Estamos, pois, muito distantes da cpia servilmente exacta, do SN APPLICAGKO DO REALISMO A ARTE 419 mero artificio, que nos pode dar uma idéa lisonjeira da habilidade do auctor, mas sem as emogdes profundas de uma verdadeira crea- ¢%0, em que-a vida palpite no livre conflicto das paixdes. A descripgao commovente de um espectaculo grandioso, obra do homem ou producto da natureza, revela-nos o quadro mnitas vezes sob aspecto, que nao tinhamos suspeitado, ao contemplal-o* -e surprehendemo-nos de vér depois, com os olhos da consciencia, através do crystal da observagao artistica, 0 que nao tinhamos en- xergado com os olhos do corpo, 1 que a obra d’arte veio despertar impressdes que jaziam dor- mentes e inertes na actividade inconsciente. Foi esse estimulo que deu o impulso dynamico as energias do espirito, avocando 4 con- sciencia 0 que permanecia inactivo. £ se n’este processo de investigagéo para alcangar a verdade, os principaes utensilios sio a observagao e a analyse, evidente- mente as manifestagdes de ordem objectiva séo as primeiras que se Offerecem ao observador e constituem 0 fio conductor mais seguro para nos internarmos no labyrintho dos phenomenos internos. Mas quer se dé a preeminencia a um ou a outro methodo, quer se arrazem as barreiras que extremam a physiologia da psycholo- gia, fundando-se uma unica sciencia pela allianga dos dous metho- dos, o fim da arte s6 pela simultanea observagao objectiva e subje- Ctiva pode ser plenamente alcangado. B a concepgio de Kant, que viu em cada uma das nossas erengas um duplo aspecto, subjectivo e objectivo, correspondendo aum estado activo e a um estado passivo. do espirito. £, na opinido de Comte, o verdadeiro alcance d’esta concepgao consiste em applicar aos phenomenos intellectuaes o principio fun- damental da biologia, que estabelece a correspondencia do orga- ‘nismo e do meio. Os caracteres sio o producto dos antecedentes hereditarios e do temperamento nas suas relagdes com o meio educador, e o roman- ce moderno, que 6 uma verdadeira continuagao da psychologia ex- perimental, ha de necessariamente seguir esta orientagado, obser- a o homem nas relagdes do foro interno com o meio am- iente. f D'esta hodierna concepeao, 6 ponto de fé para nds, ha de bro- far a torrente de vida nova, que renovara a arle gasla e dessora- da pela rotina e pela convengio. Jucio Lourengo Pinto, A QUISTAO DO ZAIRE (Continuagaio) Em 19 de fevereiro de 1810 assignava-se no Rio de Janeiro um tratado entre Portugal e a Gram-Bretanha, estabelecendo uma acgao commum e reciproca dos dous paizes para a abolicdo do trafico ne- greiro, A campanha contra este, havia muito que comegara, e longe de ser dos ultimos a entrar n’ella iamos-lhe na vanguarda despedindo golpes vigorosos e certeiros no odioso commercio. Ja em 1761 lhe fecharamos os mercados da metropole, eo mesmo fizeramos em relagao 4 Madeira e aos Agores em 1771 e 1773. Pelo tratado de 1810 ficava defeso o trafico aos subditos portu- guezes «sobre qualquer ponto da costa africana nao pertencente effectivamente a Portugal», reservando-se-lhes porém o direito de © fazer «nos dominios africanos da Corda portugueza». Estas phrases que so a versao exacla e lilteral do texto inglez, teem uma importancia muito particular para a apreciagao rigorosa eé justa da questdo pendente. Como estava ainda na memoria de todos 0 caso de Cabinda que poderia considerar-se uma especie de contestagao incidental do nosso direito exclusivo de soberania.territorial ao norte do Zaire, e como, além de tudo, pela convengao de Madrid a que nos referimos, con- cederamos 4 Franca e ds outras nagdes a liberdade do trafico até ao Zaire, entenderam naturalmente os negociadores do tratado que convinha accentuar n’elle a circumstancia de que aquella parle da_ costa, vulgarmente conhecida entre nds pelos nomes de Molembo e Cabinda, se havia de reputar, para os effeitos do texto accordado, como incluida «nos dominios da Corda de Portugal ». A QuESTAO DO ZAIRE aR a's N6s tinhamos um tratado com a Franga pelo qual lhe concedia- mos que fizesse 0 trafico n’essa costa, e esse tratado nao podia ser revogado pelo de 1810, negociado com outra potencia. Claramente, néo haviamos de prohibir aos nossos o que con- cediamos aos estranhos: q Por ovtro lado, parecera que assim succedia desde que aos por- tuguezes era 86 permiltido 0 trafico nos pontos effectivamente pos- suidos ou occupados, @ nds nao’ occupavamos entio e/fectivamente Molembo e Cabinda sobre cujos territorios sé conservavamos direi- tos. Convinha resalvar estes, ou explicar a extensao da clausula es- tabelecida. Pelo menos, assim o comprehendeu a diplomacia. Dahi, a declaragéo expressa de que essa clausula nao seria considerada «como affectando ou invalidando de qualquer maneira —IN ANY Way, — 08 direitos da Corda portugueza aquelles territo- tios »: — the rightis of the crown of Portugdl to the territories of Cabinda and Molembo, — que a Franga parecera contestar pelo acto brutal de Marigny. Fez-se mesmo allusao a esta circumstancia, como que para defi- “nir melhor as razdes da declaracaéo expressa, clara e terminante. Vamos vér como d’este proceder e d’esta phrase leal dos nego- ciadores de 1810 se derivaram todos os.equivocos e todas as objec- ges que teem constitvido a nossa questio com a Inglaterra e que tem sido longamente explorada pelos traficantes e pelos intrigan- tes desalmados a quem nao convém o estabelecimento d’um regi- men regular de policia e de civilisagdo no Zaire. Note-se que o tratado de 1810 nao falla d’este rio; nao se du- vidava, nao se suppunha até que pudesse haver a menor duvida de que o Zaire era um rio portuguez ou de que o Congo fosse « um dominio da Gorda de Portugal ». Fallava-se tao séfente da costa ao norte, ou de Molembo e Ca- binda, territorio que vem morrer na margem direita do Zaire. Em 22 de janeiro de 1815 Portugal e a Inglaterra assignam um Novo convenio em Vienna, destinado a fixar o sentido e a applica- gao literal do tratado de 1810. Nesse convenio estabelece-se que nenhum embarago soffrerao 0s navios portuguezes que fizerem 0 trafico ao sul do equador, quer nos dominios effectivos de Portugal, quer nos territorios que sao Teclamados no referido tratado como pertencendo 4 Corda portu- gueza. : A expressao ja nao 6 tio rigorosa’e clara como a simples de- claragaio de 1810. Nesta nao se reclamam direitos : — affirmam-se. i | 122 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES Mas a locugio are claimed, de 1815, que traduzimos por; — «sao reclamados » — 6 sufficientemente significativa. B uma indicagio formal d’um direito subsistente: —of any thing as due, Além de que, a Inglaterra longe de pdr objecgado ou reserva a essa asseveragao dos nossos direitos, tanto reconhece estes e aceita, como boa e exacta, aquella, que exactamente concorda na sua con- sequencia immediata, que é a inclusdo dos territorios alludidos no regimen de excepgao estabelecido para os mais dominios portugue- 208. A diplomacia nao fora desta vez tao feliz e rigorosa na redac- ¢ao do texto, mas nao commettera ainda os erros e confusdes de- ploraveis em que nao tardou a resvalar, Um terceiro tratado, feito em 28 de julho de 1817 propoz-se a ~ fixar mathematicamente, com uma grande preciséo geographica, os limites fixados aquelle regimen de excepcao, declarando que os ter- ritorios em que os sMbdiltos portuguezes continuariam a ter a liber- dade do trafico, incontestavelmente pela unica razao indicada nos tratados de 1810 e 1815, de pertencerem esses territorios 4 Corda portugueza, eram: 1.°: Todos os effectivamente possuidos por essa Corda entre o 18.° 6 0 8.° lat. S. 2.° Aquelles sobre os quaes Portugal declarara que reservava 0s seus direitos, chamados Molembo e Cabinda, desde 0 5.° 12, ao parallelo 8.° S, 5 Nada mais desastroso do que esta delerminagéo pretenciosa- mente definitiva, geographica, precisa, dos diplomatas de 1817. Em primeiro logar, com tanta cautela e conhecimento das cou- sas foi feita essa determinagao fundamental que se langaram na costa oriental os territorios de Molembo e Cabinda! Eo que é mais curioso 6 que so dous annos depois foi esse absurdo, sob a modesta qualificagdo de um «erro verbal » — a ver- bal mistake, —corrigido por uma nova convengao diplomatica ou declaragado addicional em 30 de abril de 1819! Se porém eram inoffensivas as consequencias praticas do ex- traordinario erro, nao acontecia, —e nao aconteceu —o mesmo, a outro, qual foi o da fixacao dos parallelos geographicos que se deram como limites dos territorios referidos. Ao norte a nossa dominagao e o nosso direito, que devia ir até ao Gabo de Lopo Gongalves, pelo menos, em 0.° 36’ 10 lat. S.—o capo Lopes, das cartas inglezas, — que no seculo xvi ficdra sendo 0 extremo, d’aquelle lado, do nosso dominio d’Angola e Congo, retrahiu-se até o Chiloango on até o parallelo 5.° 12/, Perdemos 5 graus de costa onde chegaramos a ter uma explo- mee : PaCS Oe Lae OR A QUESTAO DO ZAIRE 423 ragéo commercial importante, —a primeira exploragao culta que alli se exercera, @ perdemol-o sem o menor proveito para nenhuma Outra nacio europeia. Mas emfim d’esse lado havia ainda a descul- pa de que os tratados anteriores fixavam ja a costa de Molembo como nosso dominio extremo. Mas esses tratados fallavam sO de Molembo e Cabinda;—este ultimo territorio termina no Zaire, na embocadura d’este rio, na ponta do Diabo, —a Red Point das car- tas inglezas, em 5.° 44’ §. ou quando muito na ponta Banana, em 6.° 2/, e a malfadada convengao de 1817, arbitrariamente, errada- mente, levava esse limite até ao 8.°, além mesmo do Ambriz, para 0 §., alargando assim a area dos territorios sobre os quaes reser- vamos direitos, ou, 0 que 6 0 mesmo, cerceando aquelles que eram positivamente considerados dominios effectivos da Corda portugueza, € cerceando-lhes nem mais nem menos do que toda a regiao que de- mora entre o parallelo 8.° e a margem direita do Zaire, incluindo o rio! ~~ Se este erro se nao tivesse commettido 6 dado suppor que nunca se teria levantado a famosa questao chamada do Zaire. Os direitos reservados continuariam a abranger apenas os terri- torios de Molembo e Cabinda. Para 0 S. incluido o rio, haveria sémente 0 dominio effectivo claramente affirmado e nunca posto em duvida, de Portugal, a face dos tratados de 1810 e de 1815 e perfeitamente d’accordo com a convengaio de Madrid de 1786. Bem mais habilmente redigida foi esta convencao, * Comtudo sé em 1846 aquelle desastrado tratado de 1817 pro- duziu as suas consequencias. N’esse anno, e a proposito da apprehensao e do julgamento re- gular de um navio negreiro do Brazil, ao norte do Ambriz, pelas authoridades portuguezas, 0 representante inglez em Lisboa obser- vava a0 nosso governo que o seu apenas reconhecia a soberania portugueza do parallelo 8.° para o Sul, segundo o texto do tratado de 1817, comegando d’alli para o Norte a regido sobre a qual Por- tugal reservara direitos que a Inglaterra nao reconhecera, na opi- nido do diplomata inglez. Positivamente, essa opiniao quando sincera, era especiosa e er- rada. Tanto a Inglaterra reconhecera taes direitos, ou 0 que é mais exacto, nao duvidara d’elles, que longe de contestar as declaragdes dos tres tratados citados, as aceilara constantemente como base do tegimen por esses diplomas estabelecido. Mas nao 6 menos certo que se o tratado de 1817 nao tivesse tido a graciosa velleidade de determinar no parallelo 8.° o limite sul de Cabinda, 6 provavel que o ministro inglez soubesse que este 42h “REVISTA DE ESTUDOS LIVRES territorio n&o ia tanto além e que por isso nao achasse fundamento para a sua reclamagao, em todo o caso inopportuna. Mas porque a fizera elle? Porque, segundo francamente confessa, a Inglaterra, nao podia deixar de manter no interesse do seu commercio uma livre com- municagdo com a parte da costa ao norte do parallelo 8.° conside- rado como limite extremo, d’esse lado, do nosso dominio effective pelo tratado de 1817. Ora 6 certo que essa liberdade de communicacao e do trafico correspondente, a estabeleceramos ou a concederamos nos proprios, a todas as nagdes na convengdo com a Franga, em 1786, mas de Cabinda para o S. incluindo 0 Zaire e dentro d’elle, essa convencao expressamente declaréra que a nao consentiamos a nagao alguma, seguindo os principios da época. Isto puderamos ter respondido, acrescentando que o territorio de Cabinda morria no Zaire e nao Ja até o parallelo 8.° Infelizmente porém o tratado de 1817 disse- Ya positivamente que sim, que esse territorio ia alé aquelle paral- Jelo, @ por isso o diplomata inglez tinha uma tal ou qual apparencia de direito querendo evilar que d’esse parallelo para o norte estabe- Jecessemos quaesquer restric¢des 4 livre communicacao estrangeira. Nao eram exactamente os nossos direitos que elle pretendia atacar. Eram os interesses inglezes que elle procurava defender, pre- vendo a possibilidade do estabelecimento de qualquer acgao fiscal, tributaria ou mesmo impeditiva n’aquella parte da costa. (Continiia). Luciano CorpEmRoO. PRILOSOPHLA TECHNOLOGICA Desde que Comte subordinou as sciencias uma ds outras e @ellas tirou os principios geraes com que formou uma synthese objectiva tao perfeita quanto o permittiam os conhecimentos‘do seu tempo, e que encerra os elementos para‘outra futura ou subjecti- va, o homem sente, que para se elevar precisa nio sé ser sim- ples experimentador e accumulador de factos, mas tambem de- ductivo, e aquelle que nao entrar n’este caminho perde-se e esterili- sa-se. La fora ainda vemos homens simplesmente experimentadores, grandes genios, faltando-Ihes mais ou menos uma philosophia, mas como chegam a ser profundos sabios, chegam tambem a ser me- Ihores ou peores philosophos, como Glaude Bernard, 0 grande physiologista, que chegou a conclusdes admiraveis; entre nds po- vém onde a crianga perde o senso commum por defeito de educa- go e instrucgdo, e onde o homem, que adquire um certo numero de conhecimentos nao tem os elementos necesgarios para empregar a sua actividade, achando-se sem disciplina, annullam-se. 0 homem de sciencias 6 como o pequeno crystal, que introdu- zido n’um liquido com certas condigdes. physicas e chimicas da a este liquido um movimento, originando a sua transformagao em erystaes, que se grupam em roda do primeiro, B deste homem que carecemos; 6 preciso, que apparega, que seja como o centro regulador de todas as actividades.. Nao pdde ser, embora distincto, um simples observador nem mesmo um experimentador, porque a falta de meios, como bons laboratorios e museus, que entre nds se 4126 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES nota, nao os deixa formarem-se, e faltando-lhes 0 estimulo, por uma serie de difficuldades que nao estao preparados para vencer, es- © tacionam e formam entao o nosso pequenino sabio — simples e incompletissimo diccionnario, do que se la sabe fora—ficam meio materialistas nos ramos que estudaram, meio theologos nos’ que nunca souberam, ou entéo sao espiritos indisciplina- dos, 4s vezes pedantes quando nao sio immoraes, e 6 desta massa, que se formam os professores, juizes, advogados, estadis- tas, jornalistas, etc. O espirito tem necessidade de uma philosophia; 6 esta necessi- dade que origina a theologia falsa e hoje perturbadora, a meta- physica synthese confusa, e finalmente a synthese positiva, a unica verdadeira, porque se formou e aperfeigoara pela sciencia, e a unica que ha de fazer a nossa reorganisagao, porque entao 0 homem me- thodisado, recebendo os factos verificados e livre da accao official pode tentar a sua applicagdo, B o que se esta dando. 0 movimento de alguma importancia que presentemente se passa na nossa sociedade, tem por uma das principaes causas a introduc- ¢ao em Portugal d’esta philosophia, e 6 no grupo dos seus'propagado- Tes, que encontramos a elite dos nossos artistas e homens de scien- cia, e 6 aqui tambem, que, vamos encontrar 0 homem, que pelo seu profundo saber adquire o poder moral de incitar e dirigir 0 Novo progresso; quem conhecer os seus trabalhos vera, que 6, além de um grande philosopho um sociplogista : facto este, que pro- va, 0 que atraz dissemos, porque na sociologia sé se emprega a observacdo, mas 6 onde ella precisa estar o mais rigorosamente disciplinada pelo methodo historico para as deduccdes nao serem erroneas, Esté dada a direccio, como 14 fora nas artes ena sciencia, mas faz-se sentir ainda a sua falta na technologia ou theoria das artes industriaes, porque o desenvolvimento industrial é re- lativamente recente. A actividade dos primeiros povos foi mais philosophica, que industrial. A sua primeira philosophia foi o feti- chismo, acompanhada de uma arte mais que nunca relacionada com o mundo physico, e um desenvolvimento industrial nomada. 0 ho- mem pela sua organisagio carnivora, pela necessidade de se defen- der e sustentar apparece-nos cagador, habito que foi moderando e deixando para com certos animaes, para os quaes se tornou pro- tector, logo que conheceu que d’elles poderia tirar utilidade. Fez- sé entdo pastor, abandonou mais os bosques para melhor se defen- der a si e aos animaes; e para se esquivar 4 insalubridade, abando- nou os sitios baixos e foi occupar as montanhas, onde apascentava ‘os rebanhos. Ahi, como mostrou Jourdanet, a pressao atmospherica facilitando a circulagdo, activa-se a vida, auxiliando 0 comeco do PHILOSOPHIA TECHNOLOGICA 427 trabalho, a que o homem se viu obrigado, principalmente o mais fraco pela impossibilidade de ir buscar 4s florestas os alimentos ve- getaes com que se aqueceria e engordaria, calor e gordura tao ne- cessarios n’uma 6poca em que vivia nu, e que com difficuldade achava nos seus rebanhos, que Ihe davam principalmente as sub- stancias azoladas. Estas substancias sao pela sua composic¢aéo muito instaveis, porque se transformam rapidamente pela acgdo das for- gas incidentes nas suas innumeraveis isomerias, propagando-se es- te movimento as substancias carbonadas muito mais estaveis, que se decompdem em outros corpos, decomposigio esta acompanhada de calor. Ha um exemplo, que todos conhecem—a fermentagao al- coolica originada por um fermento, substancia azotada, que desdo- bra o assucar principalmente em acido carbonico, alcool e glyce- rina. O mesmo tem logar nos organismos, onde os azotados repre- sentam 0 papel do micoderma vini, isto.6, sio alimentos de func- gao, mas servindo principalmente para a constituigdo dos tecidos ; ‘os hydrocarbonados representam o do assucar, sdo alimentos para a funcgio e formagio da gordura, porque como vimos, no caso da fermentagao apparece a glycerina, e Berthelot mostrou que os cor- pos gordos eram compostos d’aquelle principio e acidos gordos. Estes hydrocarbonados encontrava-os 0 homem nos animaes, mas diz Liebig «quinze libras de carne nao teem mais carbone que quatro libras de amido, e emquanto o selvagem com um 86 animal e com peso igual de amido poderia conservar a vida‘e a saude durante um certo numero de dias, seria forgado, nao: viven- do senao de carne, a consummir cinco animaes para ter 0 cabone ne- cessario para a respiragdo durante o mesmo tempo.» Por outro lado 0s terrenos altos prestavam-se 4 cultura, porque havia a ausencia de grandes florestas, que sO seriam mais tarde destruidas com 0 desenvolvimento industrial, e o terreno formado pela decomposigao dos granitos originada pela acgio combinada do acido carbonico, agua e vegetaes que os carcomiam eram facilmente preparados com simples instrumentos. Até aqui 0 homem, sentindo todo o ri- gor das leis naturaes, néio tinha a observagao rigorosa para os des- cobrir, foi-lhes apenas conhecendo certas propriedades como ainda hoje 0 cao as conhece, o qual instinctivamente sabe, que a pedra tende a caminhar em linha recta e por isso d’ella se desvia. Incapaz de ligar ou relacionar as idéas dotava os corpos com movimentos @ para elle tudo eram fetiches, que adorava ou esconjurava. Pas- sando ao estado agricola a actividade cerebral foi-se desenvolvendo, elevando-se da simples adoragao dos séres para a contemplagao dos astros, primeiro passo que o homem havia de dar para o poly- theismo e¢ onde estava o germen da astrolatria, que o havia de le- var 4 astronomia. Os dons instinctos individual e da especie insti- 128 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES gavam-o ao trabalho, ao mesmo tempo, que a populacdo se espa- Ihava por melhores terrenos e entéo produzindo mais do que care- cia, dividiu a sua actividade, originando-se a troca, facto este que entre outros havia de levar os diversos povos a relacionarem-se, porque se a agricultura 6 o primeiro ramo industrial, por onde ha- via de comegar 0 progresso 0 seu demorado empirismo pela de- pendencia, em que esta de elevados conhecimentos scientificos, faz estacionar a actividade especulativa dos povos, que a ella se entre- gam. Este estado desenvolveu o amor da patria, pela dependencia em que o homem se achava do hocado que cultivava onde tinha incorporado todo o seu capital, todo o seu trabalho, o de sua fami- lia e o de alguns dos seus antepassados. Outros povos, que estando ainda no estado nomada foram attrahidos pelo bem estar e riqueza rélativa, encontraram-se com os sedentarios agricolas e comegaram as guerras, que marcam um segundo periodo na progressao da humanidade, Estes povos mais atrazados confundem-se e recebem os conhecimentos dos agricolas, os quaes foram obrigados a susten- tarem uma continua guerra, actividade esta, que os fez abandonar o socego dos campos, para onde mandaram os escravos prisioneiros na tnesmg guerra. Tornaram-se’polytheistas, philosophia esta, que ajudando pouco a sciencia, que comegava a desabrochar, elevou com- tudo a arte para o dominio da moral; dos tres ramos da actividade humana 6 o que mais caracterisa esta época. Taes sGo rapidamente esbogadas as duas primeiras phases da progressao negativa representadas na historia, a primeira pelo Egy- pto como povos agricolas ¢ pelos semilas como agricolas e cosmo- politas que pelas condipdes naturaes dos seus paizes, estabelecendo a troca entre si a desenvolveram até chegarem-ao commercio nao 80 terrestre mas marilimo; como foram os phenicios, que espalha- ram a civilisagéo do Egypto até serem supplantados primeiro pelos gregos e depois pelos romanos em Carthago; como foram os ju- deus, continuando o trabalho dos phenicios e cuja nacionalidade foi destruida pelos romanos, e como ainda os arabes, que pro- pagaram e desenvolveram os conhecimentos scientificos, que en- contraram em Alexandria. Entre os povos guerreiros apresentam-se os romanos, que foram os que mais desenvolveram esta arte, que tanto lempo sustentaram contra os povos do norte, até serem por elles subjugados, povos, que seriam mais tarde vencidos pelos ara- bes. D’aqui em diante todo o movimento scientifico, artistico e in- ‘dustrial 6 continuado pela raga arica e primeiramente pelos povos novo-latinos, os quaes tendo recebido todos os conhecimentos dos romanos e depois dos arabes, como a mathematica, a astronomia, © commercio e a industria, e que pelo contacto e cruzamentos, , ram a poesia e passaram ao monotheismo e 4 monogamia. A divisdo das occupagdes transmiltindo-se de familia em familia havia originado a differenciagdo das castas, e os’ guerreiros foram encarregados da defeza das villas, porque entdo a guerra de offen- siya se tornou em defensiva, primeiro contra os povos do norte e de- pois contra os musulmanos, guerra que a egreja, depois de conti- dos em respeito aquelles dous elementos, tentou acabar com as suas tendencias em apaziguar os paizes catholicos. Os escravos, que até aqui tinham visto por falta de desenvolvimento da industria mechanica vagarosamente caminhar a sua libertagdo, que havia co- Megado no tempo dos romanos pela passagem d’este genero de tra- fico de externo para interno, 0 que levou estes desgragados a con- fundirem-se cada vez mais com as familias a que pertenciam, aca- haram n’esta 6poca de se libertar, passando a ‘servos, —progressao. esta que os havia de instigar ao trabalho. 0 monotheismo, separando © poder em temporal e espiritual, e entregando-se ao segundo absor- _ Veu as intelligencias mais elevadas, que espalharam a moral tanto pelos senhores como pelo servos, melhorando assim a condigéo dos ultimos, e os seus sacerdotes fechando-se nos conventos deram a “sciencia o grande desenvolvimento, que caracterisa esta 6poca. O seu estado de celibatarios fazendo-os estabelecer a eleigio acaba- - Yam com a preponderancia da descendencia para elevar e recom- pensar a intelligencia, o que deu um grande golpe nos senhores _ fendaes, os quaes accumulando os bens, tornavam ainda a classe dos servos bem desgragada. Mas o solo como todos os agentes na- turaes 6 gratuito,e o seu valor estd no trabalho empregado a me- ~ lhoral-o; e como 0 trabalho vale absolutamente mais quanto 6 mais perfeito e como essa perfeigao relativamente 0 diminue, 0 servo por _ esta lei chegou a formar um capital e passou a rendeiro, passo até _ ajudado pela corrupgao dos senhores feudaes, que passaram a corte- 40s formando essa fidalguia, que esta annullada e quasi extincta. Aqui comeca o vetdadeiro movimento technologico mais fabril - que agricola, que entéo comegou a caminhar muito mais lentamen- _ te. As sciencias mathematicas e physicas tinham chegado a um desenvolvimento, que ja facilitava 0 emprego dos seus principios la industria, originando essas tres monumentaes descoberlas: da _ bussola, que desenyolveu a navegagao, que abriu e offereceu ao commercio 0 caminho para mundos e mares desconhecidos; das ar- mas dé fogo, que, destruindo a supremacia do forte sobre o fraco, acabou com a classe privilegiada dos guerreiros, e a da imprensa cujos effeitos todos sentem. 0 monotheismo, que havia elevado 0 _ nivel moral, derramando todos os conhecimentos, de que era capaz, “que havia ajudado a destruir o feudalismo, comegou a querer im- 1° Awno, 9 430 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES por-sé @ os papas sonhavam com a unificagdo do poder temporal ¢ espiritual para os terem debaixo da sua mao. 0 movimento scienti- fico abandonaram-no, e dividindo a philosophia em natural e moral, 1 tomaram elles a segunda a seu cargo @ sentindo a sua fraqueza co- megaram a usar da forga com a inquisigio, e de manha com os jesui- tas, 08 quaes destruidos acabaram com a preponderancia do catholi- cismo, que um novo poder, a monarchia, ajudou a derrubar. A phi- losophia natural continuou a ser cultivada pelos metaphysicos ¢ le- gistas, que representam actualmente o papel predominante em to- dos os ramos da actividade official, e a monarchia, sentindo a sua fraqueza apoiou-se nos seus ministros sahidos @aquellas seitas e co- megou a rodear-se de fidalgos burguezes. O burguez era o antigo rendeiro, que havia abandonado o campo. 0 solo como uma accu- mulagio de trabalho 6 um capital, que nao se distingue de qual- quer outro, @ por isso a renda 6 o seu producto cuja parte do capi- talista tende sempre, ainda que augmentado em absoluto, a dimi- nuir relativamente, em quanto a parte do rendeiro, que tem & disposig&o o capital e que com seu trabalho se aproveita dos agentes naturacs, augmenta em proporcdo e em quantidade abso- luta, Foi esta lei, que fez o burguez, seu producto estatico. Se a liberdade individual e collectiva comegou no campo, hoje com a supremacia de industrias, como as geometricas, mechanicas e physicas, passon a dar-se nas cidades, onde se da a lucta entre o burguez e o operario, querendo o primeiro espoliar o segundo, : originando isto as lamentagdes sentimentaes e metaphysicas dos economistas socialistas. 0 operario ha de caminhar para o seu bem estar, porque a lei que elevou o burguez ha de melhorar a condi- gio d’aquelle, A lucta e a exploragao, que o burguez lhe faz, s atraza 0 progresso de ambos e da collectividade, de que fazem parte. Mas a perfeigéo a que chegou a industria dividiu tanto o tra- balho, que n’este genero de actividade esti-se dando o que se viu nas sciencias; ha uma confusio na quantidade de principios applicaveis, faz-se aqui ja sentir a liberdade individual no facto da invengao, ainda sem direccao, levando ao absoluto, dando logar a questies em que se desvia e perde actividade e que sao originadas pelo mau resultado que dao muitos principios na applicagao. Este mal estar e desordem proveniente de cada um se fechar na sua especialidade faz sentir a necessidade de uma synthese. Este traba- Iho de philosophia technologica foi j4 comegado por Monge, e d’elle : diz Comte, no seu curso de philosophia, quando trata da geometria e descriptiva «este sabio, analysando os trabalhos d’este genero exe- cutados antes d’elle, segundo uma mullidao de processos incohe- rentes, reconheceu, que a questao era sempre reductivel a um pe- queno numero de problemas abstractos invariaveis susceptiveis de PHILOSOPHIA TECHNOLOGICA 134 serem resolvidos uma vez para sempre por operacdes uniformes, & que se referem essencialmente umas vezes aos contactos outras as intercepgdes das superficies. & assim que as questoes geometricas, 4s quaes podem dar logar as diversas artes da construccao, 0 corte das pedras, a carpintaria, a perspectiva, a gnomonica, a fortificagio, poderam ser tratadas como simples casos particulares d’uma theo- tia _unica. «Esta importante descoberta merece fixar a attencdo dos philoso- phos; 6 um primeiro passo e até aqui o unico realmente completo _ para esta renovagdo dos trabalhos humanos que deve imprimir a todas as artes um caracter de precisdo e de racionalidade tao ne- cessario aos seus progressos futuros. Uma tal revolugao devia come- gar por esta classe de trabalhos industriaes, que sé referem 4 scien- cia a mais simples, mais perfeita e mais antiga, ndo pdde deixar de se estender successivamente a todas as operagées praticas. Monge, que conheceu mais perfeitamente que ninguem a philosophia das artes industriaes, ensaiava tragar para a industria mechanica uma doutrina correspondente sem outro resultado senéo o de indicar a direcedo que devem tomar as indagagdes d’esta natureza. » A humanidade encetou agora a sua marcha do objectivo para 0 subjectivo, entrando no caminho da positividade, e se nos mostra uma progressdo inversa do primeiro, isto 6, mais industrial do que esthetico @ scientifico, estes tres ramos de actividade pelo seu desenvolvimento estdo mais ligados do que nunca; um melhoramen- to em qualquer d’elles origina um grande progresso nos outros; @ 8e considerarmos que 4 industria se dedica o maior numero, ainda mais sentimos a urgencia do methodo n’estes trabalhos e entao a Sciencia, a esthetica e a technologia, até aqui unidas materialmente, sentiréo moralmente a sua dependencia, e s6 entéio o homem tera a verdadeira nogao do dever, sujeitando-se sem repugnancia a col- - lectividade tambem ja relativamente moral. J. Epuarpo Gomns. He NS ee WR Ca, Poe CARTAS GEOGRAPIICAS 2 DESCOBRIMENTO “DO. ZAIRE (PROCESS08 NOVOS K DOCUMENTOS VELHOS) Verum, verum, verum. As recentes discusses no parlamento inglez sobre a posse e portanto descobrimento d’este rio, e as tendencias que n’ellas se manifestam de se introduzir no direito internacional a concorrencia como lei, e a energia do mais forte como principio, tém feito entre nos um verdadeiro borborinho, agitando o nosso meio silencioso e acanhado, e forgando os espiritos mais ou menos dirigentes a estu- dal-as e a resolvel-as, procurando documentos e justificagdes, inves- tigando factos historicos, vasculhando pergaminhos, revolvendo bi- bliothecas, varejando livrarias, com escrupulo e com profundeza. Esta 6 a face diplomatica ou politica, se 0 quizerem, da ques- tao, porque o lado historico téo escassamente propagado entre es- tranhos 6 entre nds conhecido, « Como porém a politica se nao pode nem deve de maneira al- guma separar da historia, sua base natural e legitima, 4 questao diplomatica do Zaire tao bem tratada aqui por um primoroso ta- lento, nado vem de maneira nenhuma fazer mal, ¢ elle mesmo 0 confessou, a apresentagao de velhos documentos muitissimo pouco divulgados entre nés, porque estao naturalmente na Torre do Tombo que ainda continiia a ser twmba para a maior parte dos nossos es- tudiosos. Isto posto, bom 6 que digamos que n’esta rude materia em que ora entramos, sao banidas as flores de rhetorica, sao postas de parte as irisagdes gentis da poesia, afastadas as adjectivagdes bom- basticas do louvor, desviadas as pompas apparentes do estylo in- Pe a ee CARTAS GEOGRAPHICAS B DESCOBRIMENTO DO ZAIRE 133 flado, e prohibidas as apresentag6es ruidosas de provas assim como _ descripgdes faustosas. Porque, se 4 historia na sua antiga expressao singela ou na sua phase mais moderna, mais real e mais positiva, vao mal as cOres da poetisagao dos factos, as tintas variadissimas do exagero d’elles e os tons cambiantes da indecisfio das linhas ou da fluctuagio dos caracteres, em que tanto se comprazem espiritos ingenuos, imaginagdes exaltadas e criticos apaixonados; tambem hoje ao tempo, que vai n’uma furiosa vertigem de progressos @ descobrimentos em todos os ramos da actividade humana, applican- do estrictamente 4 vida quotidiana de individuos e nagdes a celebre divisa ingleza time is money, absorvendo o mais descuidoso para dar lugar ao mais applicado, arruinando um inhabil para enrique- cer um trabalhador, deitando abaixo um idiota para fazer subir o mais forte, nao serve com certeza esse luxo inutil de decoragAo das cousas, prejudicialissimo por fazer perder minutos e perigoso por deturpar os factos. Por isso 6 que entramos ji no assumpto. Em materia de geo- graphia a veracidade d’um documento e a verdade d’um descobri- mento, reconhecem-se scientificamente, a primeira sobretudo, pelo valor intrinseco d’elle, pela maneira por que elle se presta a uma s6 interpretragéo e pelo reconhecimento pelos estranhos d’esta mesma interpretagdo e d’aquelle valor intrinseco. _ Livros ou mappas, impressos ou manuscriptos, tem a mesma regra —verificar a seriedade do author, reconhecer como incontes- tavel a authenticidade do documento que se consulta, extrahir-Ihe 0 facto que se quer apresentar, comparal-o com o que 6 conhecido da regiado a que se refere, depois fazer a série dos descobrimentos demonstrando-lhe a prioridade e a importancia scientifica e commer- cial. Em seguida apresentar os sabios estrangeiros que reconhece- Yam essa importancia e aquella prioridade, quer attendendo ao va- lor das authoridades que citam, quer dando credito 4s cartas, por-° tulanos, etc. tanto nacionaes como estrangeiros copiados dos nos- 80s. Logo, cilar os escriptores de fora que rejeitam os nossos do- cumentos e contestam os descobrimentos nacionaes, por ignorancia, como 6 mais vulgar, ou por aleivosia: uns, impugnando o facto em si mesmo, outros ambicionando para a sua patria as honras de uma prioridade ou de uma posse de todo o ponto contestavel. Por fim, refutagao dos principios d’estas duas classes d’escriptores, ou pela prova esmagadora d’um documento authentico, que todos os trabalhadores conscienciosos devem reconhecer como sério; ou pela confrontagdo de diversas obras do mesmo author, ou de varias pas- Sagens da mesma obra, em que ora se reconhecem como authenti- 0s os documentos, ora se duvida d’elles pela falseag&o do facto historico ou deturpagao da prova. 3h REVISTA DE ESTUDOS LIVRES Como se vé, a empresa 6 ardua e dificil nado sé pela vastidao ~ do programma, como pelo estado especial de contestagio em que tem andado envolvida esta materia. Uma das grandes difficuldades, senao a maior na critica docu- mental, 6.0 estudo das cartas geographicas n’uma época em que dominava o falso systema do velho Ptolomeu, inventando formas 4 Africa e prolongando exageradamente o curso do rio Nilo. As numerosas edigdes das obras d’este author, publicadas desde © xv seculo ate ao meiado do xvu, propagaram as ideias do geo- grapho d’Alexandria, que n&o podiam ser, ou nao deviam ter sido admissiveis n’um tempo em que ja havia renascimento na carto- graphia e na sciencia em geral, determinado pelas descobertas por- tuguezas na costa e pelas nossas exploragdes no interior. Por isso foi que, quando a fama dos nossos descobrimentos no exterior e no interior d’Africa correu a Europa, combatendo sendo destruindo o systema do velho geographo; quando as surprehen- dentes faganhas dos nossos antepassados correram mundo, firmando os tragos indecisos, vagos, do calido continente, reduzindo-o 4s suas verdadeiras formas e exactas dimensdes, foi tao grande a surpreza @ tal a novidade das informagdes, que os escriptores de entao se dividiram immediatamente em tres campos: no 1.° figuravam os que ‘seguiam as nossas indicagdes com detrimento e abandono do systema ptolemaico; estavam no 2.° os que desprezavam por estra- nhos ou falsos os documentos portuguezes, cingindo-se totalmente aos velhos erros; faziam parte do 3.° os que julgavam verdadeiros 0s nossos descobrimentos, nao lhe dando todavia total conflanga, produzindo por isso n’uma assimilagao violenta obras em que se fundiam as descobertas nossas com os defeitos da cartographia pto- lemaica, dando ao Nilo demasiada extensio, e Africa a forma ne- Dulosa das vagas navegacées antigas. D'isto resultou que as cartas geographicas d’aquelle tempo nem representam exactamente, pela maior parte, as informagdes portu- guezas, nem a geographia ptolemaica, ndo marcando como hoje o estado exacto da sciencia n’uma dada época, Sao apenas grosseiros esbogos, rudes ensaios d’uma arte, que ia abandonando as estreitas faxas do primitivo estado rudimentar, para se reveslir mais tarde das formas seguras e mais caracteristicas dos Gosselin e d’Anvil- Je, que induguraram e crearam a moderna cartographia, ainda hoje em renovagdo sob o pulso de Pettermann, Vivien de St. Marlin, Beke, Markham, Peschel, Gora e outros, affirmando-se como scien- cia com processos criticos definidos. Para convencimento d’isto basta vér as cartas de Marino Sanu- to de 1321, d’Andréa Bianca de 1436, de Joannés Léardus de 1448, de Fra Mauro de 1457, a de 1489 d’um manuscripto do Mu- “CARTAS GROGRAPHICAS E DESCOBRIMENTO DO ZAIRE ~ 433 seu Brilannico, a de 1492 de Martinho de Behaim, de Juan de la Cosa de 1500, a de 1527 d’author hespanhol (Diego Ribeiro a nosso vér) publicada em Weimar, a de 1529 d’este cartographo, o Mappa- mundi de Ruych de 1508, 0 de Roselli de 1532, de Sebastiao Munter de 1544, Vadianus de 1546, Mercator de 1587, 1609 e 1619 revistag por Hondius em 1628 e 1638, e outras mais que mostram quao duradoura e nociva foi a influencia de Ptolomeu. Bstas indecisdes da cartographia da renascenga geographica, alliadas com os fracos meios de observagao d’aquelle tempo, e com a completa falta de rigor astronomico e escassez dos processos geographicos de reconhecimento de terrenos, bacias hydrographicas, altitudes, distancias, etc., fizeram com que aquelles trabalhos com a complicagao do tragado e confusdo de systemas, embaracem os estudiosos e perturbem os proprios geographos ainda hoje *. De modo que, para bem se comprehender as cartas e mais do- cumentos dos seculos xv, xvi e xvii que tanto se relacionam @ tanto justificam .e reconhecem as nossas descobertas nas costas d’Africa e as nossas exploragdes no interior, 6 preciso, repetimol-o —e nunca nos cangaremos de insistir n’este ponto importantissi- mo por o vermos ignorado ou esquecido por escriptores de muito merito—contar sempre com a propagagao das idéas de Ptole- meu. E demais, se nas cartas geographicas modernas, que tenham os requisitos d’um trabalho sério, se conhece 4 simples vista o valor scientifico d’uma exploragio que tenha o itinerario tracado, nao se da isso nos mappas antigos porque nao sé excluiam os roteiros, como tambem nfo gravavam os pontos no lugar exacto, nem assentavaih os nomes com a orthographia devida. D’onde resulta, que, para completa intelligencia dos descobrimentos d’aquelles tempos, 6 necessario identificar por comparagao prévia os dados dos velhos documentos com informagdes posteriores, para que se possa dizer com seguranga—tal ponto, tal lugar d’aquelle tempo, esta aqui ou alli, a tal distancia da costa, etc. Sem isto, dizemol-o afoutamente, 6 impossivel apreciar as ex- # 1 Provam-no bem além dos contemporaneos Pierre du Val, Sanson @ Abbeville, Frederico With, Buache @ outros do xvut seculo. Quanto as ¢artas pode o leitor curioso vér o Atlas do benemerito visconde de Santa- Tem, de que ha exemplares na Bibliotheca Publica e na Sociedade de Geo- eh e mais a magnifica, mas 1NcaTALocaDA collecgio de cartas e atlas da Bibliotheca de S. Francisco, e outros mappas dispersos ¢ atlas das bibliothe- cas da Academia Real das Sciencias e da Escola Naval; assim como um hel- lo Portugalensium Orbis typus terrarum muito perfeito para a época e muito mais exacto para a costa do que as de Behaim e Juan de la Cosa, de que ha um exemplar no Alias du Moyen Age de 1850 de Joachim Lelewel, que esta no Curso Superior de Lettras. _ ploragdes antigas, de qualquer maneira que se proceda, quando s pretenda, 6 claro, fazer obra de sciencia e dignidade. See Neste intuito historiaremos rapidamente como se descobriu 0 _ 0 rio Zaire, apresentando alguns documentos ineditos e mal conhe- — _ ¢idos, senao totalmente ignorados, applicando depois 0 processo — que acabamos de apresentar 4 reconstrugio pelos mappas da his- toria do descobrimento, collaborando assim para a divulgagio d’el: Je sob um aspecto novo. ‘ : (Continiia), z CaRLos DE MELLo. BIBLIOGRAPHIA _ Vibragdes do Seculos I. Sons do universo. TI. Aureolas luminosas. III. Grito da Epocha, — por Teixeira Bastos. — Nova Livraria Internacional de Lisboa Entre 08 poucos livros que me teem sido offerecidos nos ultimos tempos © do que sinto a necossidade de fallar,ha um de Teixeira Bastos, Vibragdes do Seculo. Este livro tem de muito curioso para o nosso pais o seguinte : 6 de ver- 808 ¢ eseripto por um mogo educado na sciencia e na philosophia positiva ois mio ¢ verdade que em Portugal eausa ainda estranhosn quo um pensa- dor publique versos? No é certo que entro nés as ideias de sciencia © poo sia passam por antinomicas, por incompativeis ? : Para a grande maioria do povo portuguez um poeta & ainda hoje a fi- gura pallida e Iacrimanto que phantasiava a Tata Bobosso do um livro de audet. O poeta, segundo a opinido geral, é um lunatico incomprehen-ivel, um irritavel, um doente, cheio de aspiragtes indefinidas e vazio de conheci- montos praticos, Nao tem uma nogiio scientifica, no comprehende as dure zas da vida, vota um horror profundo e sincero % mathematica, um desdem supremo aos conhecimentos experimentaes e mantem pelos sentimentos hu- |" manos, que niio aprecia, um scepticismo absolutamente comico. Fallando do amor, 0 poeta legendario chama-lhe uma ficgio; a humanidade é paravelle um bando de animaes prosaicos que 0 nfio comprehendem, que no sabem " apreciar-Ihe o quid divino,a chamma que o consome e o immortalisa ao mes- mo tempo ; as mulheres sho montros infernaes.. . Podesso uma s6 nau contel-as todas Eo piloto fosse __ Por cima das aspiragées indefinidas e dos idenes incomprehensiveis, paira na cabega do poeta uma camada de caspa. Pois bem: o snr. Teixeira Bastos, o auctor das Vibragdes do Seculo, ‘nnho tem horror 4 sciencia, niio 6 devorado por chamma de qualidade algu- _ ma, nio alimenta aspiragdes indefinidas, nem conserva caspa na eabega. um homem moderno, cheio de eengas, conhecendo a seiencia, frequentando a philosophia, definindo em todos os campos da sua actividade extensissima 2 438 _ REVISTA DE ESTUDOS LIVRES 0 ideal que visa e por cuja consecugio trabalha, Entendendo, & manoira de outros poetas novos da Franga, que nos dominios propriamonte e rigorosa- mente scientificos ha uma idealidade profunda e motivos de sobojo para ex- citar a emotividade dos espiritos superiores, 0 snr. Teixeira Bastos conse- guiu nos seus versos a allianga do espirito positivo da sciencia com as sub- tilezas mimosas da arte. As Vibragdes do Seculo abi estio para attestar gue existe poesia no mundo, na seiencia que o estuda, na comprehenstio synthe- tica das leis que o governam. 0 scepticismo, a descrenga que se desgrenha @ yorifera nfio siio dos nossos dias: significam uma aberragio subjectiva do sentimento niio disciplinado pelas faculdades directoras da intelligencia, A esia moderna é uma coisa diferente, quorida Tata Bobosse, querido ‘pu- lico portuguez! Para ser um poeta do nosso tempo 6 mister fer ascendido ao ponto culminante e dominador d’onde se descobre tudo quanto o espiri- to humano produziu, no seu labutar ineessante e heroico, para resgate da especie. Para arrancar o homem 4 primitiva cscravidio da natureza e col- locar-Ihe na mio o dominio de um planeta, foi preciso um trabalho secular, uma lucta gigantesea, um esforgo colossal. Pois 6 n'esse trabalho, n'easa lucta, n’esse esforgo que reside « poosia verdadeira, a que é feita, no para encher saraus ou captivar meninas loiras, mas para emocionar os que pen- sam, 08 que se interessam pelo combate travado entre o inconsciente, repre- sentado pela tyrannia da natureza, e 0 consciente representado pelo homem que aspira & libertagio. © snr, Teixoira Bastos comprehende a poesia deste modo. Perdoemos-lhe, pois, as incorreegbes de forma, as durozas, as sombras do seu liyro, que as tem; quo elle se corrija d'estas defeitos ¢ continue no caminho encetado ¢ quanto desejamos o quanto lhe podimos. Jurro pe Marzos, Sciencia pre-historiea — Primeira parte: Paleontologia humana, As popu- LAGOES LAGUSTRES, por Anselino de Andrade. Lisboa, 4882, 4 vol. ini.° — 130 paginas, Bastava a importancia das questies que se ligam ao pasado humano antorior a toda intoncionalidade historiea, para chamar a attengiio sobre esto livro. O espirito nao soffre decopcdo alguma n’esta legitima curiosida- de, porque a obra esté fundamentalmente estudada, o auctor 6 uma intel- ligencia lucida, que anima a investigagio analytien com uma viva paixio pelo seu assumpto, © Portugal fica dignamente representado n’este concur- s0 de esforgos para o desenvolvimento da moderna sciencia da Paleontolo- gia humana. O nome de Anselmo de Andrade ser desconhecido para muita ente; elle vive isolado nas suas propriedades de Beja, entiegue aos vros quando nfo viaja pelas principaes capitaes da Europa; e seguindo a espontaneidade das suas predilecgdes, 86 estuda o que Ihe agrada, niio co- operando directamente com a alta capacidade que possue, como lhe compe- tia, n’este esforgo de reorganisagio moral ao qual todos devemos sacrificar ‘a8 nossas energias. Anselmo de Andrade pertence a essa geragid de Coim- bra, em que floresceram Anthoro de Quental, Ega de Quelcod um grande numero de rapazes quo so dosalentaram o sumiram na vida de provincia ; n’essa época de actividade metaphysica © de exaltag&o poctica, Anselmo de BIBLIOGRAPHIA 439 Andrade lia com fervor og estudos de ethnologia, e saturado de Michelet e de Quinet, escreven o seu primeiro livro, As Hpoptas da Historia, que eva a revelagio de um talento. Estava dado o primeiro passo, e o proprio tra- balho 0 afcigoaria e 0 tornaria grande. A Universidade, porém, 6 conheco 03 talentos pelo automatismo com que vomitam a sebenta, e tanto Anselmo de Andrade como tambem Ega de Queiroz foram brindados pelo Paes-Novo com um 2 na votagdo da formatura, I certo que Anselmo do Andrade es- teve dezoseis annos som publicar cousa alguma, © porventura seria uma intelligencia esterilisada se uma vocagiio do intimo o nio impellisse a tomar conhecimento e a manifestar-se sobre as grandes quosties scientificas mo- dernas, O livro de que hoje apresenta um fascicalo isolado 6 a boa nova de mais um valent obreiro que volvo ao trabalho mental porque no péde es tar parado, A traga goral da obra intitula-so Zstudos de Paleontologia hu- mana, © trataré dos seguintes assumptos em ontras tantas monographias = As populagdes paledtithicas, As popuasdes nedlithicas, As populasdes da toa de bronze, A presente monographia, sobre as Populagdes lacustres, pelo enorme material de erudigio sobre que estd assentada, e pela audacia das vistas syntheticas que deduz d’esses elementos, revelam-nos além de um trabalhador conseieneioso, um espirito originale com um aspecto poetico das questées, que, como em Renan, suppre a falta de uma concepgiio phi- losophica. A obra divide-se em cinco capitulos, sobre as Habitagies, a Bth- nographia, a Chronologia, a Religilo.e a Sociologia. Esta ultima divisio & 0 lado defeituoso do livro, porque a Sociologia niio #5 comprehende a maior parte dos capitulos anteriores, mas rigorosamente dii-se 0 nome de Sociolo- gia a uma sciencia geral ¢ abstracta dos phenomenos sociaes, @ nilo 4 som- ma dos elomontos descriptivos reunidos para as deducgdes d’essa sciencia. Nio se péde dizer que a anatomia, a botanica ou a zoologia sejam Biologia, comtudo siio sciencias conerctas que prestam os dados inductivos para se es~ tabelecerem as deducgdes goraes e abstractas da sciencia fundamental da Biologia, Da scioncia pre-historica o que se péde aproveitar para a Sociolo- gia & 0 estabelecimento ¢ comprovag&o da lei de coutinuidade historica, fa- zendo com que as altas civilisagdes como a aceddica, peruana, kmér, 0 a egypeia, percam esse caracter extraordinario, relacionando-as com um pas= sado rudimentar ¢ inferior d’onde provieram evolutivamente. A falta de uma philosophia faz-se sentir ainda apesar dos mais perfeitos methodos scientificos; temos ethnologos que combatendo etymologias erradas @ trans- erevendo usangas do Almanach de Lembrangas, a si mesmos passam diplo- mas do competencia, yindicando com rancor a prioridade da publicagho de um réfrem popular, © impondo um negativismo pedante que pretendem fa- zer passar por severidade acientifica, Hstes ficaram onde a sua mediocrida- de os deixon, A parte a reserva foita do capitulo da Sociologia, todos os outros das Populagies lacustres cstio logicamente divididos e cabalmente tratados. O capitulo das Habitagbes 6 principalmente deseriptiyo ; 0 auctor esmerilhando o3. varios typos das habitag3es do homem primitivo sobre os Jagos, apresenta as cidades construidas sobre estacas (designadas pelos ita- Jianos palafittas) © as quo se alevantaram sobre pedras e entulhos forman- do pequenas ilhas (steinberg, como lhes chamam os allemies, cramoges, na Inlanda, @ packierdanten, ma Suisea). Esta, forma do habitagto do homem primitivo foi longo tempo descouhecida dos historiadores ¢ archeologos, ape~ sar da sua universalidade, da’conservacio do systema entre alguns povos solvagens, e dos vestigios abundantissimos de formas cultuacs relacionadas com os lagos. A descoberta que tanto veiu revolucionar a Sciencia. pre-histo- rica data da segunda motade d’este seculo, quando se descobriu no lago de Zurich em 1854, por effoito de uma grande estingem, a primeira estagho la~ ann 440 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES custre ; as descobertas multiplicaram-se de um modo assombroso dentro em dex annos,eo que se via nos lagos da Suissa reapparecia por toda a Europa, na Africa, nas ilhas do Pacifico, na Asia e na America. Era um assombro ; apparecia-nos uma époea viva da humanidade, na qual preponderava um mesmo systema de construcgito ¢ os mesmos recursos industriaes ; entrava na lucta pela existencia uma raga activa, que depois da violencia do ataque do homem traglodita com as suas facas de pedra, comegaya um processo defensivo, em que garantia a sua seguranga contra os grandes monstros da natureza ¢ iniciava pela concentragio do lar a domesticidade dos animaes, que tanto cooperaram para o seu triumpho definitivo sobre as fatalidades eosmicas. As Populagdes lacustres si0 um problema da mais alta importan- cia, sobretudo quando se reconhece a sua vasta réde espalhada sobre todos 08 continentes ; portanto estes factos descriptivos levam necessariamente & inferencia de qilal seria a raga inventora e propagadora d’esse systema de- fensiyo, que outras ragas superiores vieram a aproveitar, perdendo-se pot esta desnaturagiio o conhecimento do seu uso primordial. O capitulo da Eth- nographia responde brilhantemente a este problema, é 0 mais audacioso da obra, sustentando que era uma raga conhecedora do bronze, a qual precedeu na Europa a entrada dos Arias. O snr. Anselmo de Andrade traga prévia- mento a dispersiio geographica das cidades lacustres : « Todo o globo era cingido por ellas. Contornavam-no como ge fossem um equador. No extremo occidente as ilhas da Gram-Bretanha, a Galliza, as Asturias e mesmo as provineias vascongadas tiveram as suas bacias lacustres mais ou menos po- voadas. Depois vindo para éste, ¢ nio fallando da Suissa, que era um vor- dadeiro archipelago de populagdes lacustres, na Franga, na Italia, na Ba- viera, nas margens do Elbo, no Brandeburgo, no Mecklemburgo, na Pome- rania, na Polonia, na Austria, na Romolia, na Grecia, nas regides da anti- ga Dacia, as palafittas nfo tinham conto. — Passadas as fronteiras euro- poas, e seguindo pelas margens do Ponto féra até 4s extremidades do Cau- caso ¢ As aguas do Caspio, 08 vestigios das palafittas continuam a apparecer como se fossem os marcos arrancados e quebrados de uma velha estrada aban« donada, » (Pag. 83) B fallando das cidades ou populagdes lacustres da Afri- ca: «O interior do velho continente afrieano R ainda pouco conhecido para se tragar uma carta geographica d’essas habitagdes. Comtudo nos lagos de ‘Tshadd, e de Mahrya, nas margens do Zambeze e do Niger e na costa dos Escravos, & certo haver cabanas lacustres, que reproduzem exactamente aa pre-historicas da Huropa. » (Pag, 81) E.aqui que o auctor prope o proble- ma ethnico, caracterisando a raca iniciadora das habitagdes lacustres : «6 surprehendente a apparigio das palafittas na Africa, estando toda ella fora da corrente das migragdes. B porém d’ahi, do interior do continente negro, ges en ae esclarecimento inesperado para este problema.» (Pag. 33) trabalho d’Eichthal sobre a raga dos Fallahe, ¢ a theoria da distribuigio das xagas de Heckel prestam excellentos subsidios de comprovagio para es- ta corrente de populagio branca que atravessou as populagdes negras da Africa, © que d'ellas reccberam o nome caracteristico. (Fulah, no dialesto Rotti, e fuleh, nas ilhas oceanicas, signifieam branco). «Se a raga oceanica & 0 producto de dois factores, um indigena e o outro proveniente da Asia meridional, 6 sem duvida n'este ultimo que-devemos ir filiar a populagdo Jacustre.» (Pag. 41) «Os cereaes cultivados na Europa pelos forasteiros lacustres, eram as especies asiaticas provenientes da referida regiio orien- tal, bem diversas das que anteriormente se conheciam no Occidente, » (Pag. 43) «A liga dos bronzes lacustres 6 a mesma que a de certos bronzes assy- rios, sendo porém diversa nas outras partes do mundo, — Por esta balisa entre o centro oriental, que determinamos e a Europa, nfo é difficil seguir BIBLIOGRAPHIA 1d depois as pégadas da populagao lacustre. Proseguindo na sua longa jorna- da occidental passou o Caucaso, entre o Caspio ¢ o Euxino, estanceando nas regides que formam hoje a parte meridional da Russia, principalmente nas margens dos seus grandes rios, do Don, do Dnieper, ¢ do Dniester. Quando jorém entraram na Moldavia, o gigante dos rios europeus ensinou logo aos [sgustios ita itiderario de sslecentas leguas: Nao foi'a primeira nom « ule tima vez que a0 grande rio couberam os destinos occidentaes. » (Pag. 44) Dos esqucletos achados nos lagos da Suissa, vé-se que essa populagaio la- - custve era de « estatura pouco elevada, dolichovephala » inferindo-se pelo seu habitat nos logares baixos, que deveria tor a cdr trigueira. (Pag. 51) Esta raga tinha sido precedida-na entrada na Europa, ainda na edade de pedra, ¥ «uma raga mongoloide, prognatha, com o rosto em férma de losango, Ri ea ck Setreala’i ct teleusicay catslioy pesos w aopeenba’ hos iascney © estatura elevada,» (Pag. 46) Vé se portanto que ora uma raga de pro- venjoncia malaia, (pag. 116) ji com uma civilisagho relativamente supe rior, que 0 nosso paleontologista relaciona com essas populagbes que inivia- rain nos deltas da Chaldéa (pag. 70) ¢ de Camboja as civilisagdes accadica e kmér, H certo que na tradigio provengal as cangbes dos trovadores apro- sentam typos estrophicos similhantes ds fSrmas poeticas dos cantos accadi- cos, modernamonte descobertos, ¢ aos cantos do Chi-King da China. Na ex- posigiio do snr. Anselmo de Andrade falta a consideragio do facto da emi- Bragio de populagies Incustres através da Africa, ax quaes penetraram no Rearsdts du Harags, seigindo'o previa olgreudel cibnite No'capitalocde Chronologia, prova exuberantemente a modernidade das populagdes lacus- _ tres comparada mesmo com a edade de bronze; o capitulo da Religido com- prova o asserto, pela demonstragiio de um estado religioso em que prepon- dorava o culto lunar. (Pag. 83) « Além d’isso tambem nos terramares de Brescia, de Mantua, de Modena, de Parma, ¢ nas ostagbes lacustres de Garde 6 de Fimon, foram descobertos creacentes como os dos lagos helveti- cos que demonstram a antiga existencia d'aquelle sabeismo, tanto de um como de outro lado dos Alpes.» (Pag. 90) Do oulto lunar infere-se uma eondigho social agricola, o que se verifica com a populagio das palafittas. ee iia ead psa Populiron’ denon da Tia sont" yoderontincley (a como especie de paraiso, onde se refugiavam as almas, revelamenos as pri- mitivas nagbes animistas dos lncustres. O costume contado por Herodoto, de por cada casamento o par conjugal ter de ampliar a cidade com mais uma @staca, 6 tambem a revelagiio dos rudimentos de uma lei politica a que ca- da um obedecia para o interesse de todos, A actividad agricola d@ lacus- tres fez com que se fixassem insensivelmonte na terra 4 medida que os p rigos dos grandes monstros ou das racas canibalescas iam desapparecend por esta transformagtio lenta da estabilidade é que se perdeu totalmente a memoria d’essa phase da vida sociativa do homem, onde elle encontrou os otia tuta, em que desenvolveu a sua capacidade especulativa. O livro do See weusliial de ‘Asdealle’ tom pile om cecehida peloe wutvopolop ae en ttangeiros, com quem esté em relagio directa; a imprensa portugueza de- vin-lhe uma referencia de justiga, e niio som interesse, para que se apresse a dotar a nagio com a sua obra completa, : Tuwormo Braca. 4 4 12 REVISTA DE ESTUDOS LIVRES ‘Histudo acerca do gado ovino do districto de Castello Branco, or, Filipe Bduardo de Almelda Figueiredo. Lishoa, typographia de Castro Trmao. |. — 88 pag. in-4.' Este trabalho, de que se fez uma pequens edigiio, que n&o veio ao mer- cado, serviu de dissertagdo para o acto final do curso de agronomia, que o auctor, mogo intelligente e estudioso, frequentou com bastante aproveita- mento. O Livro que temos presente 6 uma prova frisante do que ayangamos, © que faz honra tanto ao alumno, hoje agronomo diplomado, como ao Insti: tuto geral de agricultura de Lisboa, onde concluiu os seus estudos. O snr. Filippe de Figueiredo, ao contrario do maior numero dos seus collegas do Instituto ¢ em geral de todas as esedlas especiaes e superiores, entendeu jue a these nfo devia ser um trabalho vulgar e insignificante, destinado simplesmente a satisfazer a um artigo regulamentar, mas sim um ostudo consciencioso, que affirmasse ao mesmo tempo os solidos conhecimentos ad- quiridos na frequencia do curso e a sua aptidio @ boa yontade para os uti- lisar na vida pratiea, contribuindo efficazmente para o progresso, desenvol- vimento © prosperidade nacional. E louvavel o pensamento do novel agro- nomo, e digno de ser imitado por todos os novos, por todos quantos tém ain- da 6 enthusiasmo sincero da mocidade e que nio foram corrompidos pela gangrena das repartigSes publicas ¢ do mundo official. $6 as novas geragdes poderio arrancar o paiz do estado miseravel de decadencia e de desorga higaciio a que o arvastou a monarchia ; mas para isso 6 necessario, que no deixem murchar as esperangas juvenis, e que fortalegam as suas aspiraydes espontaneas com o estudo das sciencias naturaes e com a perseveranga 20 trabalho, A sciencia 6 a maior forga revolucionaria das sociedades moder- nas ¢ o unico alicerce verdadciramente firme da reorganisagtio social. Por ella, e 86 por ella se péde erguer a nossa nacionalidade. Que as novas gera- goes estudem, pensem, trabalhem; e o futuro do paiz estard garantido. A dissertagio, de que nos occupamos, 6 um symptoma agradabilissimo. A mo- cidade comega a preoccupar-se com os mais s¢rios problemas scientificos @ com as mais graves questies sociaes, comega a tomar interesse pela vida nacional, comega a pensar serenamente nos meios de collocar a nagho por- tugueza ‘a par das nagdes mais avancadas da Europa. Ainda bem ; 6 tempo de Portugal occupar o logar que lhe pertence na vanguarda da humani« jade. O sfir. Filippe de Figueiredo visitando, nas ferias de 1881, o districto de Castello Branco, estudou as condigses naturaes e economicas d’esta re- giflo, o clima, a orographia, a cultura, o gado, observou o estado intelle- ctual do povo, a falta de instruagtio, a rotina, tomou notas, pediu esclareci- mentos aos agricultores e aos industriaes e emfim, munido de tio variados elementos, formulou os soguintes uesttos: «1,° — Serd vantajoso, debaixo do ponto de vista economico, o melhoramento das ragas lanigeras do distri- cto de-Castello Branco? 2.°— Reunird a localidade em questiio, as condi- gdes naturaes necessarias © indispensaveis para o fim proposto? 3.0 — No. caso affirmativo, quaes os meios a empregar para levar a elfeito a empresa rojectada ?.» Foi este o assumpto escolhido pelo novel agronomo para a sua Mierecint s que elle trata desenvolvidamente no livro ficerca do qual fa- zemos estas ligeiras consideragdes. ‘Na introduegiio descreve o auctor, a tragos rapidos, o estado precario da industria ¢ da agricultura, na Covilh&, notando que, d'primeira, falta es pecialmente o ensino profissional, ©, & segunda, uma instrueoiio scientifica e 08 capitaes necessarios para a apropriagdo das riquezas naturaes. Com ra- 280 condemna a indolencia do nosso povo e a indifferenga dos governos, ‘BIBLIOGRAPHIA 1h3 causa manifesta da falta de associagdes operarias ¢ de caixas economicas agricolas, como as que existem em Inglaterra e n’outros paizes, ¢ que tan- tos servigos dispensam aos pequenos agricultores. Nés conservamo-nos n’uma inaegho evidentemente fradesca, restos dos habitos adquiridos duran- te alguns seculos de bestialisagio monachal, snr. Filippe de Figueiredo divide em duas partes o seu trabalho; na primeira, occupa-se do carneiro em presenca das condicBes economicas ¢ natu= raes da provincia da Beira Baixa, e estuda o gado ovino como productor de estrume, de lis ¢ de carne, o clima, a alimentagao e a cultura actual, as miodificagdes de que é suscoptivel o systema de cultura, as yantagens que @ahi podem advir, e 0s effeitos da grande divisiio da propriedade. O auctor eré que, com perseveranga ¢ forga de vontade, é possivel melhorar 0 car- neiro fazendo-o produzir carne o la. Diz elle: « Augmentem-se os recursos a ues ponham-se em pratica os varios methodos de gymnastica func- cional ; active-se um pouco na raga o desenvolvimento precoce ; faga-se su- bir o peso vivo dos individuos, dos actuaes 15 kil. a 40 on 50; alimentem- se abundantemente, sem que haja receio de quo a 1& perca as suas boas quae lidades, porque as nio tem: para este producto nfo ha que esperar seniio beneficio. » E’ necessario para isso transformar o systema de exploragao de extensivo, como por'ora tem sido, em intensivo. Na segunda parte, trata dos meios a empregar para levar a offeito os melhoramentos em questo, Depois de considerar o pee actual do gado la- nigero na Beira Baixa, a variedade em que se filia, o seu modo de vida, a sua alimentagiio, creagho © exploragiio, o auctor procura os processos indis- pensaveis «para o fazer sabir deste estado, a quasi todos os respeitos pri- Mitivo, e eleval-o ao que elle é chamado a occupar na economia rural d’es- ta regitio. » Os prineipaes obstaculos que encontra so: « a inferioridade da rag de carneiros indigenas eo regimen alimentar e o modo de tratamento aqui seguido, » Para vencer o primeiro, propde o snr. F, de Figueiredo 0 eruramento e a selecglo artificial, que tantos ¢ tho notaveis resultados tém dado n’outros paizes. As doutrinas de Darwin, trazidas para o campo da applicacio, tam fornecido 4 industria pecuaria optimos resultados. « A arte da creagiio, escreve Hmckel, j4 tem feito taes progressos, que muitas vezes © homem péde produzir, 4 vontade, dadas particularidades entre as especies domesticas, animaes e yegetaes. » 1 O gado ovino é desde muito submettido & selecgiio artificial quo tem produzido racas eelebres, como o merino, 0 dishley ¢ 0 southdown, citadas pelo illustre agronomo. Para o cruzamento ‘com 0 indigena aconselha, porém, 0 grande churro ou lacha, earneito hespar nhol, j4 introduzido n’alguns pontos do Alemtejo, e que tem uma 1& com- prida @ grande disposigfio para a engorda. Contra o segundo chstaculo pro- pie o desenvolvimento da precocidade por meio da gymnastica funccional, € estabulagio, a alimentacio composta de forragens seccas o verdes, etc. Na conclusio da sua these, o snr. Filippe de Figueiredo, escreve os 8e- guintes periodos que siio altamente sensatos: « Atardada no eaminho do pro- resso social, parada no meio do tudo o que caminha, a agricultura rotincira niko péde corresponder as exigencias da civilisagio moderna ; por isso soffre € 08 agricultores, soffrendo com ella, reclamam a assistencia dos governos, eomo o seu unico salvaterio, sem repararem que é exclusivamente em suas miios, que se encontra o remedio para os seus males. “4 Histoire de ta eréation, tr. fr., pag. 188, Ake REVISTA DE ESTUDOS LIVRES «O Estado nfio péde, nem deve descer a es Poduenae coisas, cntas minuciosidades, de que quasi sempre, porém, resulta a prosperidade d'um. paiz. «Estas pertencem 4 iniciativa particular, 4 iniciativa dos proprios la-. vradores ¢ proprietarios ruraes. «O Estado sé deve intervir onde esta iniciativa for impotente. E a elle gue, compete organisar 0 ensinoj facilitar 08 capitaes e o trabalho por meio le leis opportunas ; coadjuvar a cireulag&o dos productos por meio de vias de communicagio facil ¢ com pouco mais termina a sua intervengio, «E destas funegées mesmo, que quasi sempre sio attribuidas 4 inicia- tiva do governo, muitas desojaria eu vér a cargo dos municipios e das juntas districtacs. As ideias de centralisacio esto ainda hoje muito de pos- sete animos populares, ainda pouco afeitos 4s ideias liberaes do nosso se culo, «Entretanto esta deseentralisagiio dos poderes e das attribuigSes “daria timos resultados, pois que crearia'a iniciativa particular, pondo de lado a obediencia passiva, que tudo acceita sem discussiio, ¢ que tem constituido até hoje 0 nosso modo de ser. » Resta-nos 46 felicitar o nosso amigo Filippe de Figueiredo pela sua es treia, e pedir-Ihe que continue trabalhando para ajudar a levantar o paiz da ruina, a que chegou, impellido por esta dissolug’o monarchica que atraves- samo. ‘Turxema Bastos.

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