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Vale destacar, de saída, o deslocamento que Lowy opera a partir da leitura da nona tese de
Benjamin sobre o conceito de história. Para Lowy, o contexto que molda essa tese diz muito mais a
respeito a uma modernidade que encontramos em Baudelaire, por exemplo, do que no quadro de
Paul Klee ao qual Benjamin se refere no texto. Cito Lowy:
A tese se apresenta como o comentário do quadro de Paul Klee, que Benjamin adquirira
quando jovem. Na realidade, o que ele descreve tem muito pouca relação com o quadro:
trata-se fundamentalmente de projeção de seus próprios sentimentos e ideias sobre a
imagem sutil e despojada do artista alemão. Na construção desse texto, provavelmente
Benjamin se inspirou em algumas passagens poéticas de As flores do mal […]. Mas a
relação da tese IX com Baudelaire é mais profunda. A estrutura significativa da alegoria é
baseada em uma correspondência – no sentido baudelairiano – entre o sagrado e o profano,
a teologia e a política, que atravessa cada uma das imagens. Para uma das figuras da
alegoria, os dois sentidos nos são dados pelo próprio texto: o correspondente profano da
tempestade que sopra do Paraíso é o Progresso, responsável por uma “catástrofe sem
trégua” e por um amontoado de escombros que cresce até o céu” (p. 88-89).
Para além dessa correspondência que Lowy expõe a partir de Benjamin entre a tempestade e
o progresso poderíamos estendê-la à própria noção de modernidade. A tempestade a qual Benjamin
se refere em sua tese é, em última análise, a própria modernidade como noção que dá conta não só
do progresso tecnológico como também dessa relação específica que se estabelece entre o homem e
o tempo. Por isso a leitura de Lowy nos remete a Baudelaire, a partir de quem Benjamin ensaia toda
uma teoria da modernidade identificando-o como “um lírico no auge do capitalismo”. Para
Benjamin o auge do capitalismo nada mais é do que uma imagem do inferno. Cito Lowy:
Aos antípodas do paraíso, o inferno. Ele não trata disso na tese IX, mas vários textos de
Benjamin sugerem uma correspondência entre a modernidade – ou progresso – e a
condenação ao inferno. […]. Para Benjmain, nas Passagens, a quintessência do inferno é a
eterna repetição do mesmo, cujo paradigma mais terrível não se encontra na teologia cristã,
mas na mitologia grega Sísifo e Tântalo, condenados à eterna volta da mesma punição.
Nesse contexto, Benjamin cita uma passagem de Engels, que compara a interminável
tortura do operário: toda a sociedade moderna, dominada pela mercadoria, é submetida à
repetição, ao “sempre igual” disfarçado em novidade e moda, “a humanidade parece
condenada às penas do inferno” (p. 90).
É por esse motivo que Lowy nos diz que as relações entre a tese IX e Baudelaire são muito
mais profundas do que as que aparecem anunciadas em primeiro plano, que dizem respeito ao
quadro de Paul Klee. Para Benjamin, Baudelaire é o poeta que identifica essa atmosfera infernal da
modernidade. É ele que marca o fim da figura do flâneur a se perder como sujeito anônimo da
multidão nas passagens parisienses. Não por acaso, é Baudelaire que traduz Edgar Alan Poe para o
francês. O poeta lírico se rende ao romance policial ao passo em que formula seus poemas em
prosa. Quanto ao problema da mercadoria, não se trata simplesmente de perceber que a sociedade
moderna está dominada pela mercadoria, mas de perceber que o próprio sujeito moderno, do
operário ao poeta, tornam-se também eles mercadorias. Cito um trecho do ensaio de Benjamin,
“Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”:
Jules Laforgue disse que Baudelaire teria sido o primeiro a falar de Paris “como um
condenado à existência cotidiana na capital”. Teria podido dizer também que foi o primeiro
a falar do ópio que conforta este – e somente este – condenado. A multidão não é apenas o
mais novo refúgio do proscrito; é também o mais novo entorpecente do abandonado. O
flâneur é um abandonado na multidão. Com isso, partilha a situação da mercadoria. Não
está consciente dessa situação particular, mas nem por isso ela age menos sobre ele.
Penetra-o como um narcótico que o indeniza por muitas humilhações. A ebriedade a que se
entrega o flâneur é a da mercadoria em torno da qual brame a corrente dos fregueses. Se a
mercadoria tivesse uma alma – com a qual Marx, ocasionalmente, faz graça –, esta seria a
mais plena de empatia já encontrada no reino das almas, pois deveria procurar em cada um
o comprador a cuja mão e a cuja morada se ajustar. Ora, essa empatia é a própria essência
da ebriedade à qual o flâneur se abandona na multidão. “O poeta goza o inigualável
privilégio de poder ser, conforme queira, ele mesmo ou qualquer outro. Como almas
errantes que buscam um corpo, penetra, quando lhe apraz, a personagem de qualquer um.
Para o poeta, tudo está aberto e disponível; se alguns espaços lhe parecem fechados, é
porque aos seus olhos não valem a pena serem inspecionados.” O que fala aqui é a própria
mercadoria, e essas últimas palavras dão realmente uma noção bastante precisa daquilo que
ela murmura ao pobre-diabo que passa diante de uma vitrine com objetos belos e caros.
Estes não querem saber nada dele; não sentem nenhuma empatia por ele. Aquilo que fala
nas frases desse importante texto em prosa, As multidões, é o próprio fetiche. Com ele a
sensibilidade de Baudelaire vibra em tão perfeita ressonância que a empatia com o
inorgânico se tornou uma das fontes de sua inspiração.” (p. 51)
Essa é a tempestade à qual Benjamin se refere e que impediria o anjo da história de fechar as
suas asas, ainda que esteja com o olhar voltado para o passado. Essa não se limita a corresponder ao
progresso tecnológico, como vimos há pouco, senão que a própria concepção do tempo e das
relações sociais é afetada por essa tormenta que constitui a maneira como vivemos nas grandes
cidades. Cito novamente Lowy:
Como deter essa tempestade, como interromper o progresso em sua progressão fatal? Como
sempre, a resposta de Benjamin é dupla: religiosa e profana. Na esfera teológica, trata-se da
tarefa do Messias; seu equivalente, ou correspondente profano é simplesmente a
Revolução. A interrupção messiânica/revolucionária do Progresso é, portanto, a resposta de
Benjamin às ameaças que fazem pesar sobre a espécie humana a continuação da
tempestade, a eminência de catástrofes novas. […] Somente o Messias poderá fazer o que o
Anjo da História é impotente para realizar: deter a tempestade, cuidar dos feridos,
ressuscitar os mortos e rejuntar o que foi quebrado. (p. 93)
Essa resposta dupla de Benjamin se converte, por sua vez, em uma oposição entre duas
concepções temporais: a cíclica defendida por Scholem e a nietzschiana, que contém o aspecto
revolucionário ausente no primeiro e, consequentemente, profano, herdado por Benjamin. Cito
Lowy agora num momento em que se alternam suas palavras com trechos das notas preparatórias
das teses: