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LEITURAS CI~G FILOSÓFICAS

Aristóteles e o logos, Barbara Cassil1


Aristóteles no século XX, Enrico Berti
Da nahneza, José Gabriel dos Santos
Diálogos com a cultura contemporânea, W.M
Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, Marcelo Perine
Filosofia a partir de seus problemas (A), 2" ed.,
Mario Ariei González Porta
Filosofia da ciência - introdução ao jogo e a suas regras, 8" ed.,
Rubem Alves
Filosofia da natureza (A), Jacques Maritail1
Foucault, simplemente - textos rennidos, Salma TamJUs Mucllail
Metáfora viva (A), Paul Ricoeur
\1ovilllento sofista (O), G. B. K.erferd
l\'iilismo (O), Franco Volpi
Ofício do filósofo estóico (O), RacheI Gazolla
Ordem do discurso (A), 10" cd., Michell''oucault
Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, Rachei GazoUa
Quc é a filosofia antiga? (O), Pierre Hadot
Razõcs dc Aristóteles (As), 2" ed., Enrico Berti
Saber dos antigos - terapia para os tempos atuais, 2.' ed.,
Giovallni Reale
Sete lições sobre o ser, 2" ed, Jacques Maritain
Sobre O político de Platão, Comeljus Castoriadjs
Sócrates ou o despertar da consciência, fean-Toel Duhot
Tempo e razão - 1.600 anos das confissões de Agostinho,
Carlos Arthur A. Nascimel1to
Transformação da filosofia, vol. 1, Karl-Otto Apel
Transformação clJ filosofia, vol. 2, Karl-Otto Apel
Vontadc de crer (A), William James
SRLMR TRNNUS
MUCHRll

FOUCRULT,
SIMPLESMENTE
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PUCRS/BCE
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PREPARAÇÃO: Marcelo Perine
DIAGRAMAÇÃO: Maurélio Barbosa
REVISÃO: Maurício B. Leal

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ISBN: 85-15-02992-8
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004
SUMRRIO

Apresentação ................... . 7

A TAAJETÓRIA DE MICHEL FOUCAULT .................. . 9

A FILOSOFIA COMO CRíTICA DA CULTURA


Filosofia e/ou história? 21

O MESMO E O OUTRO
Faces da história da loucura 37

EDUCAÇÃO E SABER SOBERANO 49

o LUGAA DAS INSTITUiÇÕES NA SOCIEDADE OISClPLlNAA ... 59

DE PRÃTICAS SOCIAIS FI PRODUÇÃO DE SABERES 73

FOUCAULT E A LEITURA DOS FILÓSOFOS ................ .. 85

OLHARES E DIZERES .............. .. 97

, _ _ o, , _... _.
OEMOCRRCIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de Mich~1 Foucault
e Cornelius Castoriadis ... o •••••••••••••
..................... 109

..... COMO NA OALA DO MAR. UM AOSTO DE AAEIA··


Notas sobre maio de 68 .. .......... ..... 115

MICHEL FOUCAULT E O DILACERAMENTO DO AUTOA ........... 123

BIBLlOGAAFIA ........... 133


RPRESENTRÇÃO

o pensamento de Michel Foucaulr é um pensamento plural.


Também seus escritos têm a marca da diversidade de temas e de
abordagens. Percorrê-los exige uma dedicação cuidadosa para
que se possa enfrentar esta diversidade e, ao mesmo tempo, dar
conta de sua inventividade e de sua densidade conceitual. Por
outro lado, ao percorrê-los, o próprio pensamento é instigado a
tornar-se múltiplo e igualmente afinado com a inventividade e
o rigor. Os textos reunidos neste livro exprimem esse caráter.
Em sua maioria são conferências, artigos e capítulos de livros já
publicados. Como reunião de textos dispersos, o livro compor-
ta suas próprias diversidades, não deixando de formar, no en-
tanto, uma unidade dotada de significado.
Relativamente às diversidades, trata-se, em primeiro lugar,
de um livro escrito em diferentes momentos. Os textos que o
compõem expressam a marca temporal dos momentos em que
foram produzidos, revelada por vezes na eleição dos Çlbjetos
tratados e, por outras, na contextualização das análises. Tam-
bém os temas discutidos são diversos. À semelhança dos escri-
tos de Foucault, a abordagem de temas como o ensino, a cultu-
ra, o poder, a história, a loucura, as instituições, a democracia,
a filosofia, não permite que se determine, para este livro, a pre-

apresentação ! 7
sença de um único objeto. Por fim, o caráter dos textos é igual-
mente diverso. Alguns possuem um sentido mais geral, pois,
tratando de métodos, periodizações e problemas centrais dos
escritos de Foucault, servem de iniciação à sua leitura. Outros,
mais específicos, realizam análises detidas sobre temas preci-
sos, favorecendo a compreensão de um pensamento tão pro-
fundo e complexo quanto instigante.
A unidade de significado do livro, por sua vez, deve-se à
natureza dos textos que o constituem. Resultado de uma leitu-
ra e de uma análise detidas dos escritos de Michel Foucault,
este livro tem sua índole vinculada ao ensino. Todos os textos
nele reunidos ou nasceram de aulas ministradas por sua autora
ou destinavam-se a prepará-las. Talvez por este motivo sejam
tão didáticos, pois na medida em que discutem diferentes as-
pectos do pensamento de Foucault, acima de tudo, esclarecem
o leitor a seu respeito.
Desse modo, aos leitores deste livro diverso, escrito em
muitos tempos, desdobrado em muitos temas, será possível
apreender um pensamento que tem muito a dizer ao nosso pre-
sente. Assim como dizer Foucaul~ simplesmente implica tantas
outras coisas - como a pluralidade do pensamento, a diversifi-
cação das abordagens, a profundidade das análises -, a leitura
desta simples reunião de textos tem muito a nos propor e ensinar.

Márcio Alves da Fonseca


Professor do Departamento de Filosofia da PUC/SP

8 I Foucault. simplesmente
A TRAJETÓRIA DE
MICHEL FOUCAULr

Mas o que é filosofar hoje em dia (... ) senão o trabalho critico do


pensamento sobre o pensamento? Senão (... ) tentar saber de que
maneira e até onde seria possível pensar diferentemente
em vez de leptimar o que já se sabe?
M. FOUCAULT, O uso dos prazeres, 13.

A trajetória intelectual de Michel Foucault (1926-1984)


pode ser inscrita entre 1961, quando saiu seu primeiro grande
livro, e 1984, com seus últimos livros publicados. Os estudio-
sos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem, com
certo consenso, uma repartição possível dessa trajetória em três
momentos. O primeiro, conhecido como período da "arqueo-
logia", é voltado principalmente para questões relativas à cons-
tituição dos saberes e inclui os principais livros publicados na
década de 1960: A história da loucura (1961), O nascimento da clí-
nica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber
(1969). O segundo mamemo, conhecido como períodó da "ge-

* Este texto é uma versão modificada de aula ministrada no curso


"Michel Foucault - Razão e Desrazão", na Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais em abril de1991. Foi publicado na Revista Extensão, Belo
Horizonte, PUC/MG, v. 2, n. 1, fev. 1992.

a trajetória de Michel Foucault I 9


nealogia", é centrado sobre questões relativas aos mecanismos
do poder e inclui os principais livros da década de 1970: Vigiar
e punir (1975) e o volume I da História da sexualidade, intitulado
A vontade de saber (1976). O terceiro momento trata de questões
relativas à constituição do sujeito ético e inclui os volumes II e
III da História da sexualidade, intitulados, respectivamente, O uso
dos prazeres e O cuidado de si (1984(
Tomando esta repartição como ponto de partida e roteiro,
temaremos esboçar os traços que caracterizam esses três mo-
mentos, assim como suas aproximações e diferenças. Com a
transcrição da seleção de passagens em que, a cada vez, o pró-
prio Foucault declara suas preocupações e seus propósitos, fa-
remos iniciar a abordagem de cada um desses momentos.

•••
Em texto de 1968, assim descrevia Foucault os propósitos
de suas primeiras investigações: "determinar, nas suas dimen-
sões diversas, o que deve ter sido na Europa, desde o século
XVII, o modo de existência dos discursos e singularmente dos
discursos científicos (... ) para que se constitua o saber que é
nosso hoje e, de maneira mais precisa, o saber que se deu por
domínio este curioso objeto que é o homem,,2.
O primeiro momento de seus escritos tem, portanto, um
enfoque explicitamente histórico ("na Europa, desde o século
XVII" ... até "o saber que é nosso hoje") e a preocupação está

1. A este conjunco devem ser acrescencadas ainda duas situações ocor-


ridas após a morte de Foucault: a publicação, em 1994, dos Dits et écrits (são
quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos, conferências, artigos,
aulas etc. que Foucault produzir~ e realizara em diversos países), e, ainda
mais recencemence, a gradativa edição dos cursos que Foucault ministrou no
Collêge de France entre os anos 1970 e 1984 (foram ministrados treze cursos),
cuja publicação foi iniciada em 1997.
2. FOUCAULT, M., "Resposta a uma Questão", Revista Tempo Brasileiro, 28
(Epistemologia), trad. de M. da Glória R da Silva, Rio de Janeiro, jan/mar,
1972.79.

10 I Foucault, simplesmente
centrada na descrição dos discursos, não porém quaisquer dis-
cursos, mas aqueles considerados científicos e, mais particular-
mente, os das chamadas ciências humanas ("o saber que se deu
por domínio este curioso objeto que é o homem").
Observe-se que esta descrição histórica dos discursos não é
feita nem à maneira do "comentário", nem ao modo de uma
análise lingüística. O comentário é uma espécie de discurso se-
gundo a duplicar o discurso comentado, buscando fazer surgir
alguma verdade implícita no dito explícito do discurso primei-
ro. Supõe, por um lado, alguma origem mais remota a ser reen-
contrada e um sentido oculto a ser decifrado; e supõe, por ou-
tro lado, que esta origem e este sentido - mais essencial e, ao
mesmo tempo, mudo - de algum modo atravessam o sentido
explícito, nele dormitam, a fim de que possam ser trazidos à luz
pelo comentário. Supõe, pois, um conteúdo de significações
"já-dito" e, simultaneamente, "jamais-dito"3. Nas análises de
Foucault, ao contrário, os discursos são tomados em sua posi-
tividade, como "fatos", e trata-se de buscar não sua origem ou
seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as
regras que presidem seu surgimento, seu funcionamento, suas
mudanças, seu desaparecimento, em determinada época, assim
como as novas regras que presidem a formação de novos dis-
cursos em outra época. A análise lingüística, por sua vez, diz
respeito à língua como sistema formal que rege a formulação
tanto de enunciados efetivamente realizados como a dos que,
em tese e em número infinito, poderiam vir a ser constituídos.
Já a descrição foucaultiana dos fatos discursivos se limita a enun-
ciados já formulados que compõem as formações discursivas, e
quer estabelecer não as regras formais de sua inteligibilidade,
mas o jogo de regras que define as condições de possibilidade
do aparecimento, das transformações e do desaparecimento

3. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutu-


ralismo e Teoria da Linguagem, trad. Luís Felipe Baeta Neves, Petrópolis, Vozes,
1971, 21; ver também L'Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, 36.

a trajetória de Michel Foucault ! 11


de tais ou quais discursos, e não de outros, numa época dada e
numa dada sociedade, jogo este que é, portanto, variável num
curso histórico marcado por diferenças e descontinuidades.
Pode-se chamar a esse "jogo de regras" de epistéme de uma épo-
ca, seu a priori histórico, ou ainda o solo onde são constituídas
as formações discursivas historicamente realizadas e que com-
põem as diferentes configurações no espaço do saber. Assim é,
por exemplo, que em As palavras e as coisas as análises mostram
como na Europa dos séculos XVII e XVIII emergem determina-
das formações discursivas que vão constituir a gramática geral,
a história natural e a análise das riquezas, enquanto no século
XIX vão surgir a filologia, a biologia e a economia, de que as
primeiras não são meras precursoras. Estabelecer esse jogo ou
conjunto de regras que, numa determinada época e para uma
determinada sociedade, autoriza o que é permitido dizer, como
se pode dizê-lo, quem pode dizê-lo, a que instituições isso se
vincula etc., enfim, o que deve ser reconhecido como verdadeiro
e o que deve ser excluído como desqualificável, eis o procedi-
mento que Foucault chama de "arqueologia".
Mas não é, genericamente, de quaisquer discursos que
Foucault trata. Interessam-lhe os que constituem o campo do
saber considerado científico e, dentro dele, a região das chamadas
ciências humanas. Ele mesmo nos adverte de que a demarcação
desse donúnio é uma escolha de certo modo hipotética, "uma
primeira aproximação" ou "um primeiro esboço,,4. Trata-se de
uma circunscrição relativa, e duplamente relativa. Por um lado,
a demarcação do domínio não limita o ãmbito de aplicabilidade
da arqueologia que poderia, em tese, ser usada em outros campos
do saber. Por outro, essa de~arcação não pretende definir, salva-
guardar ou confirmar os contornos do próprio domínio escolhi-
do; pelo contrário, o campo do saber assim assumido como obje-

4. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutu-


ralismo e Teoria da Linguagem, 27; ver também L'Archéologie du savoir, 43.

12 I Foucault. simolesmente
to de investigação pode precisamente esfacelar-se sob o efeito da
própria análise. "Nada me prova", diz Foucault, "que os reencon-
trarei (esses domínios do saber eleitos como área de investigação)
ao termo da anãlise, nem que descobrirei o princípio de sua deli-
mitação e de sua individualização. Do mesmO modo, nada me
prova que tal descrição poderá dar conta da cienrificidade (ou da
não-cientificidade) desses conjuntos discursivos que assumi como
ponto de ataque e que apresentam todos, no início, certa pre-
sunção de racionalidade científica"s A escolha do domínio, por-
tanto, nem limita o método nem delimita o próprio domínio
escolhido. Trata-se tão-somente de "um privilégio de partida,,6.

•••
E contudo é um privilégio. Será nos escritos posteriores
que se tornarão mais claros os motivos de semelhante eleição.
Em uma passagem de 1976, a respeito dos escritos do segundo
momento de sua trajetória, Foucault assim declarava: "O que
tentei investigar, de 1970 até agora, grosso modo, foi o como do
poder; tentei discernir os mecanismos existentes entre dois pon-
tos de referência, dois limites: por um lado, as regras de direito
que delimitam formalmente o poder e, por outro, oS efeitos de
verdade que este poder produz, transmite e que por sua vez
reproduzem-no,,7.
Ora, é a investigação sobre os discursos científicos - e entre
eles sobre "os que têm por domínio este curioso objeto que é o
homem" - que melhor lhe permite trazer à tona "os mecanis-
mos existentes" entre exercícios de poder e produção de sabe-
res reconhecidos como verdadeiros. Com efeito, são regiões do

5. FOUCAULT, M., L'Archéologie du savoir, 53-54.


6. FOUCAULT, M., "Resposta ao Círculo de Epistemologia", in Estrutura-
lismo e Teoria da Linguagem, 27; ver também L'Archéologie du savoir, 43.
7. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfísica do poder,
trad. Maria Teresa de Oliveira e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,
1979,179.

a trajetória de Michel Foucault I 13


saber cujo terreno é mais movediço, mais claramente aberto a
combates e cuja história, por isso mesmo, pode ter mais "eficá-
cia política"8.
Trata-se, agora, de evidenciar as articulações entre saber e
poder, mediados, por assim dizer, pelo que podemos chamar
de modos de produção da verdade. Por "verdade" deve-se
entender não "o conjunto de coisas verdadeiras a descobrir ou
a fazer aceitar", mas "o conjunto de regras segundo as quais se
distingu~ o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efei-
tos específicos de poder"9. E, assim como a "verdade" de que se
trata não é nenhuma essência universal, mas "regras" historica-
mente diferenciáveis, também o poder não deve ser compreen-
dido como uma "idéia" ou uma "identidade teórica", mas como
exercício, como prática, que só existe em sua "concretude", mul-
tifacetado e cotidiano 10.
Ora, compreende-se que é sobre os discursos científicos, e,
particularmente sobre os das ciências humanas, que vai incidir
a investigação, uma vez que, se toda sociedade tem seu regime
de verdade com efeitos de poder, em nossa sociedade a produ-
ção da verdade é regulamentada por regras que autorizam a
eleição dos discursos reconhecidos como científicos e a conse-
qüente exclusão de outros saberes, que qualificam os objetos
dignos de saber, os sujeitos aptos a produzi-los, as instituições
apropriadas, e cujos efeitos de poder, particularmente no caso
das ciências humanas, são sobretudo disciplinar e normalizar.
Nesse momento de seus escritos, Foucault amplia o âmbi-
to das análises: de análises quase sempre mais preocupadas com
discursos ou interdiscursos, passa a priorizar seu cruzamento

8. FOVCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 154.


9. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfisica do poder, 13.
10. Ver, a este respeito, por exemplo, em Microftsica do poder:. "Introdu-
ção" (de R. Machado), XVI; "Verdade e poder", 6; "Os Intelectuais e o poder",
75-76; "Poder-Corpo", 149; "Genealogia e poder", 175; "Soberania e discipli-
na", 183-185; "O olho do poder", 221; "Sobre a história da sexualidade", 251.

III I Foucault. Simplesmente


com a trama das instituições e práticas sociais, como faz prin-
cipalmente em sua história do nascimento das prisões (Vigiar e
punir). Abandona, praticamente, a noção de epistéme pela noção
mais complexa de "dispositivo estratégico", entendendo-se que,
enquanto a epistéme é também um dispositivo - ou, antes, um
elemento prioritariamente discursivo do dispositivo -, o dis-
positivo, prioritariamente de natureza estratégica, envolve arti-
culações entre elementos heterogêneos, discursivos e extradis-
cursivos, tais como práticas jurídicas, projetos arquitetônicos,
instituições sociais diversas. Quando Foucault passa a explici-
tar esse momento de sua investigação, passa também a defini-
lo menos como "arqueologia", para denominá-lo "genealogia".
Assim, arqueologia e genealogia se distinguem ao mesmo
tempo em que guardam, de certo modo, a mesma natureza e o
mesmo teor. Mais de uma vez Foucault afirma que os propósi-
tos explícitos nos escritos da fase genealógica já estavam pre-
sentes, mas não percebidos, nos primeiros escritos. Mas adverte
também que uma mudança ocorreu na condução das análises.
"Enquanto a arqueologia", escreve ele, "é o método para a aná-
lise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir
da discursividade local assim descrita, ativa os saberes liber-
tos da sujeição que emergem desta discursividade"l1. Poder-se-
ia dizer que a arqueologia é como englobada e ampliada na
genealogia e que, enquanto a arqueologia efetua uma análise
descritiva veiculando uma denúncia, a genealogia constrói uma
política de resistência e de luta. A denominação "genealogia"
será mantida por Foucault ao referir-se ao terceiro e último
momento de sua trajetória. Mas com outras transformações.

***
Em entrevista concedida pouco antes de sua morte, assim
se exprimiu Foucault a respeito de seus últimos escritos: "Ten-

11. FOUCAULT, M., "Genealogia e poder", in Microftsica do Poder, 172.

a trajeto ria de Michel Foucault I 15


to responder a um problema 'preciso: nascimento de uma mo-
ral, de uma moral enquanto reflexão sobre a sexualidade, sobre
o desejo, o prazer,,12.
Entre a publicação do volume I da História da sexualidade -
A vontade de saber (1976) - e a dos volumes II e 1II - O uso dos
prazeres e O cuidado de si (1984) - passaram-se oito anos. Neste
intervalo, Foucault alterou radicalmente o plano inicial previs-
to para a obra. Uma mudança importante ocorreu relativamen-
te ao período histórico estudado. Como nos livros anteriores,
continua a fazer filosofia fazendo pesquisa histórica. Mas ago-
ra a cronologia é outra. Até então as histórias que escrevera
atravessavam, quase sempre, um percurso que ia desde o final
do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa Moder-
nidade (séculos XIX e XX), com realce para a chamada Idade
Clãssica (séculos XVII e XVIII), buscando trazer à luz as trans-
formações que marcaram a passagem do Renascimento à Idade
Clássica e, principalmente, as que assinalaram a passagem do
final da Idade Clãssica à Modernidade, na direção, pois, de com-
preender nosso presente. O projeto inicial da História da sexua-
lidade anunciava um percurso histórico semelhante. Porém,
como reconhece o próprio Foucault, a pergunta que ele então
se colocou - "Por que tínhamos feito da sexualidade uma expe-
riência moral?" - levou-o a procurar mais "atrás" pelo "nasci-
mento de uma moral", detendo-se então na Antiguidade grega
e greco-romana, nos últimos séculos antes de Cristo e nos pri-
meiros séculos da era cristã 13 .

12. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis·
tas, org. de C. H. ESCOBAR, trad. Ana Maria de A Lima e M. da Glória R da
Silva, Rio de Janeiro, Taurus, 1984, 75.
13. Cf. BARBEDEITE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossier-
últimas entrevistas, 136; R BELLOUR, "Um devaneio moral", in O Dossier - últi·
mas entrevistas, 86; FOUCAULT, M., História da sexualidade, voI. 11, O uso dos praze-
res, trad. M. T. da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, "Introdu-
ção", 16.

16 I Foucault. simplesmente
A alteração na cronologia foi acompanhada por mudanças
teóricas e deslocamentos de temas. Agora, o foco das investiga-
ções será o sujeito, não porém como aquele "curioso objeto" de
um domínio de saber, mas como sujeito ético, indivíduo que se
constitui a si mesmo, tomando então a relação a si e aos ou-
tros, enquanto "sujeito do desejo"14, como espaço de referência.
Nesse enfoque, a perspectiva que ele privilegia não é a dos
códigos morais, jurídicos ou religiosos, ou a das leis defini-
doras do que é permitido ou interditado, mas a da conduta, do
modo de comportar-se ou das posições em face de códigos e
leis, daquilo, enfim, que Foucault chama de "práticas de si",
"técnicas da vida", "artes da existência"ls.
Ao privilegiar essa perspectiva, a investigação permite me-
lhor aproximar dados da Antiguidade de problemas de nossa
atualidade, mantendo, assim, a característica da genealogia de
compreender o presente. A este propósito, eis algumas observa-
ções de Foucaulr: "O que me impressionou é que na ética grega
as pessoas se preocupavam com sua conduta moral, sua ética,
suas ligações com elas próprias e com os outros muito mais do
que com problemas religiosos (... ). A segunda observação é que
a ética não estava relacionada a nenhum sistema social - ou
pelo menos legal-institucional (... ). O terceiro ponto a observar
é que o que os preocupava, seu tema, era constituir um tipo de
ética que era uma estética da existência". E as aproximações
que em seguida faz: ''(. .. ) eu me pergunto se nosso problema
atualmente não é, de certa maneira, semelhante a este, desde
que a maioria de nós já não acredita que a ética esteja fundada
na religião, e nem quer um sistema legal que interfira na nossa
moral pessoal, privada (... ). Estou interessado nessa semelhança
de problemas"16.

14. Cf. FOUCAULT, M., O uso do prazeres, "Introdução", 10-11.


15. Cf. ibid., 15.
16. DREYFUS, H. L. e RABINOW, P., "Sobre a genealogia da ética: uma
visão do trabalho em andamento", in O Dossier - últimas entrevistas, 43-44.

a traietória de Michel Foucault I 17


Mudanças, pois, na cronologia, nos temas, na visão teórica,
que o próprio Foucault faz questão de reconhecer. Aliás, ao pri-
meiro tópico da "Introdução" de O uso dos prazeres dá o título
"Modificações". Em outra passagem realça essas diferenças, jun-
tando sugestivamente as duas pontas de sua trajetória, da Histó-
ria da loucura à História da sexualidade: "A propósito da loucura,
parti do 'problema' que ela podia constituir num certo contexto
social, político e epistemológico: o problema que a loucura co-
locava para os outros. Aqui, parti do problema que o comporta-
mento sexual podia colocar aos próprios indivíduos (... ). Em um
caso, tratava-se em suma de saber como se 'governava' os lou-
cos, agora como 'governar-se' a si próprio". E conclui apontan-
do para aproximações: "São, em resumo, duas vias de acesso
inversas em direção a uma mesma questão: como se forma uma
'experiência' onde estão ligadas a relação a si e aos outros"l?
Com efeito, na passagem dos momentos anteriores ao úl-
timo, as semelhanças também existem. E elas têm pelo menos
dois eixos comuns. Primeiro, há, em todos eles, um mesmo
propósito de base: escrever "a história das relações que o pensa-
mento mantém com a verdade"18. Dito de outro modo, todos
os escritos são sustentados por uma mesma pergunta de fun-
do: "Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser
próprio a pensar quando se percebe como louco (A história da
loucura), quando se olha como doente (O nascimento da clínica),
quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante e ser traba-
lhador (As palavras e as coisas), quando se julga e se pune en-
quanto criminoso (Vigiar e punir)? Através de quais jogos de
verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo
(História da sexualidade)?"!'.

17. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier - últimas entrevis-
tas, 76.
18. Ibid., 75.
19. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 12 (os títulos entre
parênteses foram acrescentados por nós).

18 ! Foucault. simplesmente

l
Um segundo eixo desses escritos está em certo ângulo a
partir do qual os temas são abordados. Todos eles se direcio-
nam a "problematizações". Aliás, o segundo tópico da "Intro-
dução" de O uso dos prazeres tem por título "As formas de proble-
matização". Eis ainda uma passagem em que esse eixo comum
é explicitado: "Em A história da loucura a questão era saber como
e porque a loucura, num dado momento, foi problematizada
através de uma certa prática institucional e um certo aparelho
de conhecimento. Do mesmo modo, em Vigiar e punir, tratava-
se de analisar as mudanças na problematização das relações
entre delinqüência e castigo através de práticas penais e insti-
tuições penitenciárias no fim do século XVIII e no início do
século XIX. Agora, como se problematiza a atividade sexual?,,20.
Os dois eixos comuns, por sua vez ~ o propósito de fazer a
história das relações entre pensamento e verdade e o ângulo das
problematizações~, articulam-se entre si, já que por "problema-
tização" deve-se entender "o conjunto de práticas discursivas ou
não-discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro
e do falso e a constitui como objeto para o pensamento JJ21 .
•••
A partir daqueles eixos de aproximação pode-se, finalmen-
te, compreender a reunião dos três momentos da trajetória de
Foucault em um mesmo conjunto, sem contudo escamotear
suas diferenças: o primeiro momento interroga o que habitual-
mente se entende por "progresso do conhecimento", conduzin-
do à análise das práticas discursivas constitutivas dos saberes
reconhecidos como verdadeiros; o segundo interroga o que ha-
bitualmente se entende por "poder", conduzindo à análise dos
mecanismos de exercícios dos poderes relacionados à produção
de saberes; o terceiro momento interroga o que habitualmente

20. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis-
tas, 76.
21. Ibid., 76.

a trajetória de Michel Foucault I 19

l
se entende por "sujeito", conduzindo à análise da "constituição
de si mesmo como sujeito"22. Ou pode-se, inversamente, enu-
merar os momentos dessa trajetória acent~ando as diferenças
sem necessariamente perder suas conjunções: trata-se, como
indica um estudioso de Foucault, de três campos ou continentes
de reflexão, um mais marcadamente epistemológico, outro po-
lítico, outro étic023 ; ou trata-se, como se exprime o mesmo Fou-
cault, de três ordens de problemas, "o da verdade, o do poder e
o da conduta individual"24.
De todo modo, a reconstituição da trajetória desse pensa-
mento, quer se lhe acentuem os momentos, quer se lhe realce o
conjunto, faz nela perceber a presença daqueles traços com que
Foucault desenha o perfil, hoje, do intelectual e que, em certas
passagens, ele descreve como exigências, por exemplo, assim
expressas: "Conseguir pensar algo que não seja o que se pensa-
va antes,,25; "ser capaz permanentemente de se desprender de si
mesmo"26; "pensar diferentemente do que se pensa e perceber
diferentemente do que se vê,,27.
Semelhanças e dessemelhanças, aproximações e diferenças
compõem assim um tipo de pensamento - a que se pode cha-
mar filosofia - que duvida do estabelecido, que abala o habi-
tual e que, por isso mesmo, expõe a si próprio à mobilidade e
dispõe-se constantemente a se recompor.

22. Cf. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 11.


23. Cf. EWALD, F., "Michel Foucault", in O Dossier - últimas entrevistas, 71.
24. BARBEDElTE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossier-
últimas entrevistas, 129.
25. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis-
tas, 74.
26. Ibid., 81.
27. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 13.

20 I Foucault. simplesmente
11
A FILOSOFIA COMO
CRíTICA DA CULTURA
Filosofia e/ou história?*

A título de introdução, lembremos um conhecido problema


afrontado por Husserl e muitas vezes explorado por Merleau-
Ponty. Poderia receber ele formulações diversas, todas elas, po-
rém, contrapondo dois pólos ou dois termos: trata-se do anta-
gonismo ou da correlação entre idéia e fato, ou entre essência e
experiência, ou ainda entre interioridade e exterioridade, ou mes-
mo entre subjetividade e objetividade, e que constituiria a base
do antagonismo ou da correlação entre o pensamento filosófi-
co e a elaboração científica. Esta, como se sabe, é uma questão
a que Merleau-Ponty dedica vários textos nos quais trata parti-
cularmente das relações entre a filosofia e as ciências humanas.
Basta evocar, por exemplo, Le philosophe et la sociologie, Éloge de la
philosophie, Risumés de cours) como ainda os opúsculos Les sciences
de l'hommeet la phénoménologie e Le métaphysique dans l'homme. Ne-

* Este texto reproduz, com algumas alterações, comunicação apresen-


tada no V Simpósio Nacional da Sociedade de Estudos e Atividades Filosó-
ficas (SEAF), em Belo Horizonte, em novembro de 1981. Foi publicado em
Cadernos PUC, n. 13, São Paulo, EducfCortez, 1982. Posteriormente, foi
republicado com o acréscimo de "Discussão" em Epistemologia das Ciências
Sociais, (FAVARETIO, C. F., BOGus, L. N., VERAS, M. B. orgs.), Série Cadernos
pue, n. 19, São Paulo, Educ, 1984.

a filosofia como critica da cultura I 21


les, o autot aborda aquela questão do ângulo das relações entre,
por um lado, a filosofia e, por outro, a psicologia, as ciências da
linguagem, a história, a sociologia. Em quase todos esses en-
saios, retoma a questão desde onde Husserl a tinha levantado e
a conduz na direção da superação do impasse. Interessa-nos, para
introduzir nosso estudo, resumir alguns aspectos de sua posi-
ção a respeito da filosofia e da história. Primeiramente, Mer-
leau-Ponty rejeita certas alternativas que confundem ou falseiam
O conceito de história e que fazem da filosofia e da história "tra-
dições rivais"l. Não há que escolher, por exemplo, entre uma
filosofia que postula uma consciência fora do tempo, "desliga-
da de todo interesse pelo fato", e as '''filosofias da história', que,
ao contrário, inserem no curso das coisas uma lógica oculta",
como que a predeterminá-I02 • Alternativas deste teor podem in-
corporar seja uma "ilusão retrospectiva", projetando as catego-
rias de hoje na leitura do passado, seja uma "ilusão prospecti-
va", reduzindo os fatos à imediatez de seu presente sem qual-
quer abertura para o futur0 3 • Ademais, pressupõem isolados
entre si "o fato e o homem interior", "a história e o intempo-
ral,,4, elegendo, numa verdadeira "guerra fria", ou bem o "mito
da filosofia" ou bem a "idolatria da objetividade"5. Em contra-
partida, Merleau-Ponry afirmará que é precisamente pela nossa
inerência a uma determinada situação, pela nossa inserção numa
cultura particular, que podemos realizar o movimento de com-

L MERLEAu-PONTY, M.) Éloge de la philosophie, in Éloge de la philosophie et


autres essais. Paris, Gallimard, 1960, 56. A idéia da "rivalidade" aparece igual-
mente em outros textos. Por exemplo, em "Le métaphysique dans l'homme",
in Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1965, 171; ou em "Le philosophe et la socio-
logie", in Éloge de la philosophie et au"tres essais, 112.
2. MERLEAU-PONIT, M., "Máteriaux pour une théorie de l'histoire", in
Résumés de cours (ColJege de France), Paris, Gallimard, 1968,43.
3. Ibid., 45.
4. Ibid., 43.
5. Cf MERLEAU-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge.
113-114; "Le métaphysique dans l'homme", in Sensetnon-sens, 160.

22 I Foucault, simplesmente
preensão de outras situações e de outras formações culturais. Se
nossa particularidade nos limita é também, paradoxalmente, o
único meio de acesso à compreensão de outras situações parti-
culares com as quais podemos nos comunicar enquanto varian-
tes da nossa6• Ou seja, é nossa experiência de sujeitos situados,
pela qual vivenciamos uma "co-existência histórica"?, que impe-
de, por um lado, a submissão da história à força de uma lógica
todo-poderosa e atemporal e, por outro, a sua redução a uma
reunião de fatos circunstanciais e sem significação. Nessa medi-
da, história e filosofia serão não apenas solidárias, mas ainda
mutuamente indispensáveis. Uma história que se estreitasse a
um relato empírico dos fatos sem buscar compreender-lhes a
significação através do concurso da filosofia "não saberia, lite-
ralmente, do que ela fala", assim como uma filosofia que sobre-
voasse os fatos "só desembocaria em verdades formais, isto é,
em erros"s. Assim, se para Merleau-Poncy só "haverá história na
medida em que houver uma lógica na contingência, uma razão
na desrazão"9, pode-se completar que só haverá filosofia se os
sentidos ou as verdades que ela busca forem procurados no seio
do devir, na trama histórica dos acontecimentos.
Merleau-Ponty atribuía assim certa inerência entre o tra-
balho do historiador e o do filósofo. Não foi, é claro, a primeira
nem a última vez que um pensador travou relações entre filoso-
fia e história. Mas a peculiaridade está, cremos, em que neste
caso as relações não são tão sistemáticas a ponto de conduzir
finalmente à anulação de uma sob o jugo da outra; e sobretudo

6. Cf MERLEAU-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge


137; "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non-sens, 162; Ciências do
homem e fenomenologia, trad. S. T. Muchail, São Paulo, Saraiva, 1973,61.
7. MERLEAU-PONTY, M., Ciências do homem e fenomenologia, 69.
8. MERLEAU-PONTY, M., "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et non-
sens, 171.
9. MERLEAU-PONTY, M., "Matériaux pour une théorie de l'histoire", in
Résumés des Cours, 46.

a filosofia como critica da cultura I 23


nem tão precisas que desfaçam certa ambigüidade a atravessar,
na prática, o intercâmbio entre ambas. Ora, a nosso ver, é essa
certa ambigüidade que, além de marcar uma postura fortemen-
te anti dogmática, parece abrir espaço para a possibilidade da
eventual reunião das duas atividades numa mesma prática. E é
essa a prática que, ao que parece, é executada nos escritos his-
tórico-filosóficos de Michel Foucault.
A partir destas considerações iniciais, tentemos ver como o
próprio Foucault compreende seu trabalho enquanto filosofia e
enquanto história e, em seguida, em que sentido se poderia di-
zer que algo como uma crítica da cultura permeia esse trabalho.
É sempre difícil tentar encaixar os escritos de Michel Fou-
cault em classificações estabelecidas do saber, buscando dese-
nhar seus traços eventualmente inalteráveis ou circunscrever
características invariáveis. Questões dessa ordem são ampla-
mente discutidas por estudiosos de Foucault. Não nos importa
aqui reproduzi-las, mas acentuar o lado francamente positivo
dessa "resistência" à classificação. É que esses e~ritos assumem
um caráter por assim dizer flutuante, que atesta uma evasão
sadia em relação a todo dogmatismo. Podemos dizer que Pou-
cault escreve com segurança sobre suas próprias incertezas e
toda vez que aborda o trajeto de sua produção é pata questioná-
lo. Já no final da "Introdução" de A arqueologia do saber escrevera
ele: "Não me perguntem quem sou e não me digam para per-
manecer o mesmo: isso é moral de estado civil; ela rege nossos
papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever"lO. E
num debate a propósito do primeiro volume da História da se-
xualidade, depois de a ele referir-se como um "livro-programa
tipo queijo gruyere, cheio de buracos para que neles possamos
nos alojar", escreve: "Não quis dizer - 'Eis o que penso', pois
ainda não estou muito seguro quanto ao que formulei (... ). O
que existe de incerto no que escrevi é certamente incerto (... ). E

10 FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, Paris, Gallimard, 1969,28.

2'-1 j Foucault, Simplesmente


não estou certo quanto ao que escreverei nos próximos volu-
mes"; chama-o de "discurso hipotético" e, mais de uma vez, de
"jogo"ll. Em outras passagens afirma o caráter parcial e zigue-
zagueante de suas investigações 12 . Noutra ainda, justifica ter
gostado de determinada entrevista pelo fato de ter mudado de
opinião "entre o começo e o fim,,13. Salvaguardadas estas obser-
vações, não será porém artificioso afirmar que os escritos de
Poucault têm a ver com a história e têm a ver com a filosofia.
Ele próprio parece situar a si mesmo em ambas. Não são pou-
cas as vezes em que se refere a seu trabalho de historiador.
Quando, por exemplo, rejeitando ao intelectual o papel de "con-
selheiro" na militância política e designando-lhe, ao contrário,
a função mais modesta de "fornecer os instrumentos de análi-
se", conclui dizendo ser "este, hoje, essencialmente, o papel do
historiador"14. Por outro lado, quando, durante uma entrevis-
ta, após a observação de que "em muitos momentos você se
definiu como historiador", lhe é perguntado por que 'historia-
dor' e não 'filósofo"', sua resposta indica que a questão da filo-
sofia hoje não deixa de ser igualmente uma questão de história:
"é a questão deste presente que é o que somos,,15. Noutra oca-
sião, já mais claramente afirmará: "E mesmo que eu diga que
não sou filósofo, se for da verdade que me ocupo, eu sou apesar
de tudo filósofo", realçando porém que a questão da verdade
que ele coloca é a de perscrutar "qual é sua história, quais são
seus efeitos, como isso se entrelaça com as relações de poderJJ16 .
Ou ainda, ao referir-se às mudanças ocorridas desde algum tem-

11 FOUCAULT, M., "Sobre a História da sexualidade", in Microfisica do


poder, incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 19'(9, 243.
Ver também 259.
12 Cf. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfisica do poder, 180.
13 FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 164.
14. FOUCAULT, M., "Poder.Corpo", in Microfisica do poder, 151.
15. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfisica do poder, 239.
16. FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfisica do poder, 156.

a filosofia como crítica da cultura I 25


po na escrita da história, Foucault faz ver que a história do
Ocidente "não é dissociável da maneira pela qual a 'verdade' é
produzida e assinala seus efeitos", deixando claro que é seu
propósito fazer "a história da 'verdade' - do poder próprio aos
discursos aceitos como verdadeiros"!7.
Eis, pois, que filosofia e história se entrelaçam num mesmo
trabalho que se pretende história da produção da "verdade". Mas
que história e que verdade? Ou melhor, de que tipo de história
esse filósofo que se ocupa da verdade é hoje o historiador?
Afastemos, de início, os traços de uma história que Fou-
cault não elabora. Já no Prefácio a O nascimento da clínica (1963)
aponta dois recursos tradicionais que rejeita e chama-os de "es-
tético" e "psicológico". O primeiro consiste em descrever uma
história das idéias fundada em analogias estabelecidas pelo
historiador, quer no curso sucessivo do tempo (buscando de-
tectar "gêneses, filiações, parentescos, influências"), quer no
âmbito interno de uma época (buscando captar seu espírito,
sua Weltanschauung etc.). O segundo consiste em buscar "inter-
pretar" os fatos no sentido de encontrar como que por detrás
deles suas razões mais secretas, uma lógica escondida, como se
os fatos fossem sempre uma espécie de "alegoria" a dizer outra
coisa que não eles próprios!8. É basicamente a esses mesmos
recursos que também se refere noutro texto, quando recusa a
elaboração da história tanto por um método que procede pelo
"recurso histórico-transcendental" (isto é, que quer encontrar,
por meio de todo acontecimento, de toda manifestação histó-
rica, as linhas de sua origem, apontando assim em direção a
um horizonte sempre longínquo e cada vez mais recuável) como
por um método que procede pelo "recurso empírico ou psico-
lógico" (isto é, que quer "interpretar" as significações explícitas
dos fatos objetivando fazer falar, por meio deles, um "sentido

17. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfúica do poder; 239-23l.


18. FOUCAULT, M., Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1972, Préface, XIII.

26 I Foucault. simplesmente
oculto" de que supostamente estariam carregadosr 9 . Esses pro-
cedimentos têm em comum o uso da técnica que lhes é apro-
priada, a saber, o tratamento dos textos na forma de "comentá-
rios", capazes que seriam de trazer à luz a suposta origem e o
suposto segredo que o discurso explícito implicitamente conte-
ria. Mais ainda, esses procedimentos cunham a história com a
marca unitária do contínuo e da sub}etividade. São próprios
às histórias "do espírito" e às histórias "globais". Com efeito,
uma "história do espírito" é precisamente aquela que, median-
te a "decifração" dos textos, quer desvelar a "consciência", as
"intenções" ou o "espírito" que os teriam inspirado20 ; uma "his-
tória global" é precisamente aquela que, na dispersão dos fatos
e documentos, quer encontrar "vestígios" que permitam traçar
uma linha contínua, uma direção única, que expliquem, de mo-
do uniforme e homogêneo, as multiplicidades e as transforma-
ções. Trata-se sempre, nesses casos, de histórias "evolutivas" ou
"progressivas", que não pensam as "diferenças" mas "as conti-
nuidades ininterruptas JJ2 ! de uma teleologia segura. Ainda mais,
assegurando a linearidade do progresso, essas histórias salva-
guardam a unidade soberana do sujeito, "consciência históri-
ca" que se constitui em núcleo unificador ou centro originário
capaz de reunir em si a explicação e, portanto, a dissolução da
heterogeneidade, da multiplicidade, da dispersão. Ao se salvar
a linha segura da continuidade histórica, de algum modo salva-
se ao mesmo tempo a consciência como seu eixo: "Querer fazer
da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciên-
cia humana o assunto originário de todo devi r e de toda prática
são as duas faces de um mesmo sistema de pensament,?JJ22.

19. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta a uma questão", Tempo Brasileiro) 28,
Rio de Janeiro, 1972,59.
20. Ibid., 65.
21. FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, 21.
22. Ibid., 22.

a filosofia como critica da cultura I 27


Nem histórias do espírito, nem histórias globais, as históri-
as que Foucault escreve são, como ele mesmo as chama, "histó-
rias gerais,,23 entendidas como descrição dos fatos em sua sin-
gularidade de acontecimentos, em suas correlações, em suas
transformações, em seus desaparecimentos; são histórias que,
no lugar de uma teleologia da continuidade e do progresso,
buscam antes "detectar a incidência das interrupções"24, de sor-
te que se antes a descontinuidade equivalia ao "impensável",
que por ser impensável devia ser suprimido e desintegrado me-
diante sua integração numa explicação continuísta, passa agora
a ser "um dos elementos fundamentais da análise histórica"25.
O deslocamento é explícito: "Uma descrição global encerra to-
dos os fenômenos em torno de um centro único - princípio,
significação, espírito, visão do mundo, forma de conjunto; uma
história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dis-
persão"26. Concomitantemente, as histórias que Foucault escre-
ve desfocam a categoria da consciência e se voltam para as aná-
lises dos discursos considerados quer em suas correlações inter-
nas, isto é, interdiscursivas, quer em suas relações com o extradis-
cursivo, isto é, com as práticas e as instituições sociais.
À prática desse procedimento Foucault chamou primeira-
mente "arqueologia" e posteriormente "genealogia". Sem dúvi-
da, reporta a Nietzsche não só o termo "genealogia", como o
modo de seu uso. Nesse uso, contrapõe a genealogia compreen-
dida como "história efetiva" (Wirkliche Historie) à história tra-
dicional dos historiadores. Faz ver que esta última "reintroduz
(e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história
que reria por função recolher em uma totalidade bem fechada
sobre si mesma a diversidade, enfim reduzida, do tempo; uma

23. Cf. ibid., 17.


24. Ibid., I!.
25. FOVCAULT, M., "Réponse au Cercle d'épistémologie", Cahiers pour
l'analyse, 9, Paris, Seuil, 1968, 10.
26. FOUCAULT, M., L'Archéologie du savoir, 19.

28 I Foucault. Simplesmente
história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte e
dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconcilia-
ção; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um
olhar de fim de mundo,m. A "história efetiva", ao contrário, a
genealogia, "reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado
imortal no homem"; reintroduz "o descontínuo em nosso pró-
prio ser,,28. A história tradicional, em sua perseguição da origem
(Ursprung), considerando "acidentais todas as peripécias que pu-
deram ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces"29,
pretende recuar ao reencontro de uma identidade enfim desve-
lada, essência única e sempre a mesma. Para a genealogia, ao
contrário, não há por trás da trama histórica qualquer identida-
de pura de um sentido ou de uma essência; o que existe é preci-
samente a multiplicidade de fisionomias, como tantas másca-
ras sob as quais não há um rosto a ser desmascarado: "A genea-
logia é um carnaval organizado"30. Recolhamos estes traços da
história praticada por Foucault na seleção de algumas passa-
gens em que ele explicita o perfil da genealogia. Primeiro, ela
recusa a identidade das origens e a segurança das teleologias: "A
genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profun-
da do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao
contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações
ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da
'origem"'31. Segundo, ela desvia o enfoque antropológico em
direção aos discursos que compõem os saberes: "É isto que eu
chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que
dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domí-

27. FOUCAULT, M., "Nietzsche, a genealogia e a história", in Microftsica do


poder, 26.
28. Ibid., 27.
29. Ibid., 17.
30. Ibid., 34. É interessante observar a freqüência no uso deste tipo de
metáfora: carnaval, máscara, bastidores, disfarce, cena, cenário, teatro, jogo etc.
31. Ibid., 16.

a filosofia como crítica da cultura I 29


nios de objeto etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele
transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja
perseguindo sua identidade vazia ao longo da história"32. Ter-
ceiro, ela não está preocupada com o "progresso": "Tenho esta
precaução de método, este ceticismo radical mas sem agressivi-
dade que se dá por princípio não tomar o ponto em que nos
encontramos por final de um progresso que nos caberia recons-
tituir com precisão na história. Isto é, ter em relação a nós mes-
mos, a nosso presente, ao que somos, ao aqui e agora, este ceti-
cismo que impede que se suponha que tudo isto é melhor ou
que é mais do que o passado (... ). E não digo que a humanidade
não progrida. Digo que considero um mau método colocar o
problema 'por que progredimos?'. O problema é 'como isto se
passa?'. E o que se passa agora não é forçosamente melhor, ou
mais elaborado, ou melhor elucidado do que o que se passou
antes,,33. Finalmente, despida de origens, teleologias, sujeito cons-
tituinte e progresso evolutivo, a genealogia descreve uma histó-
ria marcada pela descontinuidade dos acontecimentos, enten-
dendo-se por "acontecimento", "não uma decisão, um tratado,
um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças", forças
que "no jogo da história não obedecem nem a uma destinação,
nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta", acaso do jogo que
"não é simples sorteio", mas antes "risco sempre renovado (... )"34.
Mas a prática deste procedimento na escrita da história não
é também movida ao acaso de um capricho. Afinal, por que
tantas "inversões"? Com efeito, não se trata pura e simplesmen-
te de efetuar substituições de algum modo arbitrárias: a conti-
nuidade pela descontinuidade, a uniformidade pela dispersão, a
linearidade pela diferença; nem de trocar o núcleo "consciência"
por outro chamado "discursos". Ao contrário, essa orientação

32. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfisica do poder, 7.


33. FOUCAULT, M., "Sobre a prisão", in Microfisica do poder; 140.
34. FOUCAULT, M., "Nierzsche, a genealogia e a história", in Microfoica do
poder, 28.

30 ! Foucault. simplesmente
conferida ao entendimento e à escrita da história, longe de ser
inocente, funciona como uma "estratégia" porque calcada num
comprometimento crítico com pretensões a uma eficácia políti-
ca. Ouçamo-lo mais uma vez: "Uma edição do Petit Larousse que
acaba de sair diz: 'Foucault: um filósofo que funda sua teoria da
história na descontinuidade'. Isto me deixa pasmado (... ). Meu
problema não foi absolutamente dizer: viva a descontinuidade,
estamos nela e nela ficamos; mas colocar a questão: como é
possível que se tenha, em certos momentos e em certas ordens
do saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolu-
ção, estas transformações que não correspondem à imagem tran-
qüila e continuísta que normalmente se faz? Mas o importante
em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitu-
de, ou melhor, esta rapidez e esta amplitude são apenas o sinal
de outras coisas: uma modificação nas regras de formação dos
enunciados aceitos como cientificamente verdadeiros"35.
Ora, é precisamente a eleição, para domínio da investiga-
ção histórica, daquilo que é aceito "como cientificamente ver-
dadeiro" que nos encaminha à abordagem dos vínculos dessa
história com a questão da verdade enquanto assunto da filoso-
fia, e daí à compreensão do que chamamos seu comprometimen-
to crítico com a cultura.
Com efeito, ao privilegiar os acontecimentos discursivos
como campo de análise, Foucault restringe a região de seus es-
tudos: entre os discursos, aqueles que são reconhecidos como
científicos e, entre estes, os que compõem a região mais cam-
biante e imprecisa que é constituída pelos saberes das chamadas
ciências humanas. Essa escolha é, sem dúvida, uma estratégia. E
essa estratégia se aloja no ponto de cruzamento entre a questão
da verdade e os mecanismos do poder. Por um lado, ocupar-se,
enquanto filósofo, com a questão da verdade significa aqui não
ir em busca de uma essência a ser descoberta, mas descrever e

35. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microftsica do poder, 3-4.

a filosofia como crítica da cultura j 31


analisar os modos como a "verdade" vem sendo historicamente
produzida; trata-se, precisamente, daquele estabelecimento do
jogo de regras - regras que são transformáveis de uma socieda-
de para outra, de uma época para a outra - que autoriza a
qualificação de objetos, de sujeitos, de instituições, para a pro-
dução de saberes reconhecíveis como verdadeiros. Por outro lado,
e ao mesmo tempo, ocupar-se, enquanto filósofo, com a ques-
tão da verdade encarada segundo seus modos históricos de pro-
dução é ocupar-se também do vínculo circular que ela mantém
com os modos de exercício do poder: "o exercício do poder cria
perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de
poder"36. Assim, podemos dizer que, se a "verdade" é "efeito" do po-
der das regras segundo as quais determinados saberes têm a
competência para a verdade, essa competência lhes atribui, por
seu turno, os direitos de uso do poder (em seu nome se distingue
não só o verdadeiro e o falso, como o permitido e o interditado,
o correto e o errado, o normal e o patológico etc.). Eis a pergun-
ta de "filosofia política" que Foucault se coloca: "Em uma socie-
dade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir dis-
cursos de verdade dotados de efeitos tão poderosos?,,37
Ora, posto que em nossas sociedades ocidentais são os
discursos reconhecidos como científicos os que compõem os
saberes aceitos como verdadeiros, é desses saberes que tratará a
genealogia. E posto que é a região das chamadas ciências hu-
manas a que melhor ou mais claramente permite fazer ver aquele
entrelaçamento entre regime de verdade e regime de poder, na
medida em que ela envolve saberes cujo "perfil epistemológi-
co", por ser "pouco definido"38, abriga "combates, linhas de
força, pontos de confronto, tensões"39, é sobre ela que vai par-
ticularmente recair a invesrlgação.

36. FOUCAULT, M., "Sobre a prisão", in Microfisica do poder, 142.


37. FOUCAULT, M., "Soberania e disciplina", in Microfísica do poder, 179.
38. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfísica do poder, l.
39. FOUCAULT, M., "Sobre a geografia", in Microfísica do poder, 154.

32 I Foucault. Simplesmente
Nesse sentido pois, ocupando-se da análise das relações entre
saber e poder que, mediados pela verdade, mutuamente se pro-
duzem e se reproduzem, a genealogia pretende constituir-se em
foco de crítica e em instrumento de resistência. Quer propor
"um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táti-
cas atuais,,40. E isso duplamente. Busca, por um lado, recuperar,
num trabalho que exige paciência e erudição, conteúdos histó-
ricos que foram subestimados ou silenciados pelo saber "quali-
ficado" das histórias tradicionais: mostra, por exemplo, de que
modo a pretensão ao estatuto científico dos saberes sobre o
homem lhes imprime as marcas do exercício do poder, atribuin-
do ao sujeito detentor do conhecimento sobre o homem a "com-
petência" que autoriza o domínio de seus "objetos", dissociando
assim o sujeito do conhecimento que "possui a verdade" de seus
"objetos" que "nada sabem"; descreve, em face das histórias da
Razão e do mesmo, a história da Desrazão e do Outro, revelan-
do os mecanismos correlatos de exclusão, de enclausuramen-
to e de redução ao silêncio; faz emergir, pela análise do nasci-
mento das prisões, conteúdos históricos que evidenciam o po-
der na forma da disciplina etc. Por outro lado, é aliada da recu-
peração de saberes considerados "ingênuos, hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível da cientificidade" (por exem-
plo, do doente, do enfermeiro, do delinqüente etc.)". "A genea-
logia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição
dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um
empreendimento para libertar a sujeição dos saberes históricos,
isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção
de um discurso teórico, unitário, formal e científico."42
Mais ainda: lembremos que enquanto a arqueologia pre-
tendia realçar principalmente as epistémes) isto é, o nível das

40. FOUCAULT, M.) "Genealogia e poder", in Microfísica do poder, 171.


41. Ibid., 170.
42. Ibid., 172.

a filosofia como critica da cultura I 33


correlações interdiscursivas, a genealogia se dirige não somente
ou sobretudo aos discursos, como ainda a suas relações com as
estruturas sociais. Lê-se, por exemplo, numa passagem de Vigiar
e punir: "O sistema carceral reúne numa mesma figura discur-
sos e arquiteturas, regulamentos coercitivos e proposições cien-
tíficas ... ,,43. Do mesmo teor, Foucault não rejeita a afirmação
que lhe é dirigida por um entrevistador: "Você mostrou como
o saber psiquiátrico trazia consigo, pressupunha, exigia a reclu-
são asilar, como o saber disciplinar trazia consigo o modelo da
prisão, a medicina de Bichat o espaço do Hospital e a economia
política a estrutura da fábrica"44. Entende-se assim que, ao esta-
belecer a história da constituição dos saberes explicitando seu
vínculo com exercícios do poder, a genealogia os considera como
peças nas tramas de uma rede - por ele chamada de "disposi-
tivo" - que envolve tanto as inter-relações dos saberes como
suas articulações com as práticas institucionais.
Ora, sem entrarmos na pluralidade possível de acepções
que podem ser cobertas pelo termo "cultura", nem nos diferen-
tes ângulos sob os quais pode ser abordado e, menos ainda, nas
muitas questões que suscita, poderíamos considerar "cultura",
de um modo tão geral quanto simples, o conjunto de saberes
teóricos e de práticas sociais que compõem o quadro em que se
move uma determinada sociedade e cujos limites lhe demarcam
as possibilidades de "nomear, falar, pensar,,45. É nesse sentido
que não nos parece abusivo reconhecer nos trabalhos histórico-
filosóficos de Foucaulr algo a que poderíamos chamar uma
crítica da cultura ou, pelo menos, da cultura "qualificada".
E, finalmente, não há que se esquecer que, contudo, essa
crítica da cultura, esse trab~lho filosófico de constituição de

43. FOUCAULT, M., Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975,276.


44. Cf. "Sobre a geografia", in Microfísica do poder, 16l.
45. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, Préface,
11. É aliás numa concepção assim bem ampla que o termo é freqüentemente
usado neste Prefácio.

34 I Foucau!t. simplesmente
um "saber histórico das lutas" é, ele próprio, (saber", partícipe
da "história" e da "cultura". Daí o cuidado insistente de Fou-
caulr em não se vir a rransformar a análise realizada pelas ge-
nealogias em outro saber centralizador ou monopolizador da
"verdade" e, portanto, habilitado para o poder. Assim, em opo-
sição às teorias gerais e globalizantes, a crítica tem um caráter
local e específico 46 • Em oposição ao teórico "legislador", Fou-
cault sonha "com o intelectual destruidor das evidências e das
universalidades"47. "Neste sentido", escreve Roberto Machado,
«nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia têm por
objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria ou se consti-
tuir como sistema: o programa que elas formulam é o de reali-
zar análises fragmentárias e transformáveis."48
Essa mobilidade que é constitutiva da postura mesma das
investigações de Foucault vem confirmar aquela distância de
quaisquer dogmatismos a que inicialmente nos referíamos. E
permite que reencontremos, a respeito da filosofia e da histó-
ria, bem como das relações entre ambas, alguns aspectos que
apontávamos em nossas primeiras considerações em torno de
Merleau-Ponty. E pelo menos dois aspectos. Recusando a alter-
nativa entre uma história atravessada por um sentido teleológi-
co e uma história desprovida de sentido porque concebida como
um conglomerado de fatos, Merleau-Ponty recusava igualmen-
te tanto a ininteligibilidade da história como as pretensões "de
uma História Universal inteiramente desdobrada diante do his-
toriador como o seria sob o olhar de Deus,,49. As histórias que
Foucault escreve, além de avessas a qualquer aspiração de uni-
versalidade, assumem, na prática, aquela simultaneidade entre

46. Cf. principalmente "Verdade e poder", "Genealogia e poder", "Os


intelectuais e o poder", in Microfísica ...
47. FOUCAULT, M., "Não ao sexo rei", in Microfisica do poder, 242.
48. MACHADO R., "Introdução", in Microfísica do poder, XIII.
49. MERLEAU-POl\.'TY, M., "Le métaphysique dans l'homme", in Sens et
non·sens 158, Ver também, Éloge ... , 59.
J

a filosofia como crítica da cultura I 35


a ausência de um sentido único e a presença de inteligibilidade,
agora, porém, conduzindo este aparente paradoxo a uma nova
direção: "A história não tem 'sentido', o que não quer dizer que
seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve
poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a
inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas"50. Segundo,
e conseqüentemente, afirmando que é pela inerência a uma
situação histórica particular que podemos compreender a sig-
nificação de outras situações que compõem a trama da histó-
ria, Merleau-Ponty se opunha ('ao ideal de um espectador abso-
luto, de um conhecimento sem ponto de vista,,51. Afinal, nem
"ilusão retrospectiva", nem "ilusão prospectiva". "Saber pers-
pectivo", eis como Foucault (na descrição da genealogia nietzs-
chiana) caracteriza a história: os historiadores que perseguem a
neutra objetividade de uma consciência isenta e soberana "pro-
curam, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em
seu saber, o lugar de onde eles olham, o momento em que eles
estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de sua pai-
xão"; já o "saber perspectivo", ao contrário, "sabe que é perspec-
tivo", "olha de um determinado ângulo, com o propósito deli-
berado de apreciar, de dizer sim ou não", "é um olhar que sabe
tanto de onde olha como o que olha"52.
Por ser "perspectivo", e se saber assim, elaborado a partir
da cultura que o torna possível, olha-a criticamente, mas a olha
de dentro dela; e justamente por isso é também visado por seu
mesmo olhar crítico, de sorte que, se provoca deslocamentos,
há que se dispor, ele próprio, a deslocar-se.

50. FOUCAULT, M., "Verdade e poder", in Microfísica do poder, 5.


51. MERLEAu-PONTY, M., "Le philosophe et la sociologie", in Éloge.. , 136.
52. FOUCA.uLT, M., "Nieczsche, a genealogia e a história", in Microfoica do
poder, 30.

36 I Foucault. Simplesmente
111
O MESMO E O OUTRO
Faces da história da loucura*

De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas


a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto
possível, o descaminho daquele que conhece? Existem
momentos na vida nos quais a questão de saber se se pode pensar
diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é
indispensável para continuar a olhar ou a refletir.
M. FOUCAULT, o uso dos prazeres, 13.

Foucault faz filosofia fazendo pesquisa histórica. As histó-


rias que escreve desenvolvem-se no espaço do Ocidente, e o
tempo que percorrem é quase sempre aquele que vai desde o fi-
nal do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa
Modernidade (séculos XIX e XX), atravessando com realce a
chamada Idade Clássica (séculos XVII e XVIII).
É possível sugerir que a questão que, genericamente, po-
demos denominar "do outro e do mesmo" se estenda como
um pano de fundo dessas histórias. Comecemos, pois, por
propô-la, partindo de uma ilustração que está nas primeiras

... Conferência apresentada na VII Semana de Estudos em Filosofia da


Universidade Metodista de Piracicaba, em agosto de 1994. Publicaclaem Foucault
e a destruição das evidências (MARlGUELA, M., org.), Piracicaba, Unimep, 1995.

o mesmo e o outro j 37
páginas do Prefácio de As palavras e as coisas. Trara-se da rero-
mada de uma classificação dos animais, citada por Jorge L.
Borges, supostamente extraída de uma enciclopédia chinesa.
Segundo esta classificação, "os animais se dividem em: a) per-
tencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d)
leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluí-
dos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j)
inumeráveis, k) desenhados com um pincel fino de pêlo de
camelo, I) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que
de longe parecem moscasJ1 1.
Esta classificação reúne de modo incongruente categorias
sem nexo que, a nós, parecem impossíveis de "nomear, falar, pen-
sar,,2. Ora, a possibilidade e a impossibilidade de "nomear, falar,
pensar" podem ser analisadas em torno de três termos: ordem)
lugar, espaço. Com efeito, há uma ordem que, naquela classifica-
ção, parece vincular a seqüência das classes nela reunidas, a sa-
ber, a série alfabética. Mas, justamente, é esta ordem que ali pa-
rece não "caber". A estranheza da ordem está em sua articulação
com a ausência de lugar capaz de permitir a reunião das classes e
sua ordenação, ainda que meramente alfabética: "O absurdo ar-
ruína o e (ordem) da enumeração, marcando de impossibilidade
o em (lugar) onde se repartem as coisas enumeradas"3.
Ordem e lugar, porém, dependem de um espaço homogê-
neo e comum dentro do qual somente ou sobre o qual as
coisas possam ser localizáveis e ordenáveis, espaço que torna
possível nomeá-las, dizê-las, pensá-las. Assim, é a justaposição
desse e (ordem), desse em (lugar) e desse sobre (espaço) que
instaura, para nós, a estranheza dessa classificação 4 . Estranhe-
za, porém, para nós. Afinal, aquela classificação de animais

1. FOUCAULT, M., I..es mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, "Préface", 7.
2. Ibid., 11.
3. Ibid., 9.
4. Ibid., 8.

38 I Foucau!t. simplesmente
não é, por assim dizer, "ausente" de espaço; antes, repousa
sobre outro espaço: "A China ... não é justamente o lugar privi-
legiado do espaço?JJ5
Eis o "outro" em seu sentido mais amplo: limite de pensa-
mento e de linguagem para uma cultura, aquilo que a circunda
por fora e lhe escapa, simultaneamente, estranho e exterior.
Mas, a partir daí, pode-se também entender o "outro" em
seu sentido estrito: aquilo que, de dentro dos quadros de uma
cultura, a limita por dentro, diferença que lhe é inclusa, simul-
taneamente interna e estrangeira. É nesse sentido que a Histó-
ria da loucura é uma história do "outro": história daquilo que
pertence à nossa cultura - pensável, nomeável, dizível portan-
to -, mas constantemente ameaçado de submissão aos crité-
rios do "mesmo", precisamente porque ameaçador; história "da-
quilo que para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estra-
nho, a ser, portanto, excluído (para conjurar-lhe o perigo inte-
rior), encerrando-o, porém (para reduzir-lhe a alteridade)"6.
Nossa exposição pretende tão-somente retraçar, em resu-
mo, alguns aspectos dessa história7 • No conjunto do livro, a
descrição da experiência da loucura durante o período renas-
centista ocupa não mais que as 55 páginas do capítulo inicial.
É à experiência clássica - cuja vertente institucional é o Hospi-
tal Geral - e à experiência moderna - cuja vertente institucio-
nal é o Asilo - que, substancial e minuciosamente, se dedicam
as mais de 600 páginas do livro em suas três partes (as duas
primeiras ocupando-se da Idade Clássica e a terceira da nossa
Modernidade). Nas pretensões reduzidas desta exposição -

5. Ibid., 10.
6. Ibid., 15.
7. Para uma reconstituição mais completa do livro, leia-se MACHADO, R.,
Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal,
1982 (cf. "Arqueologia da percepção", 57-95). Também ROUANET, S. P., "A
gramática do homicídio", in O homem e o discurso (A arqueologia de Michel Fou-
cault), Rio. de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1971.

o mesmo e o outro I 39
pincelar algumas faces ou facetas da história desse "outro" que
é a loucura no Ocidente -, escolhemos tratar os três períodos
em proporções diversas às do livro. Por isso mesmo, e evitando
o risco de um resumo por demais empobrecedor, a aborda-
gem da Idade Clássica e da Modernidade será apenas pautada
em algumas passagens em que o próprio Foucault fornece des-
crições mais amplas desses dois momentos. Por motivos análo-
gos, a recomposição dessas "facetas" será organizada em dois
tópicos ou subi tens.

•••
Leprosários e navios
Ao término da Idade Média, nos limiares do Renascimento
(por volta dos fins do século XIV), começa o esvaziamento da-
quelas casas de "exclusão" e "purificação"s que se haviam multi-
plicado às portas das cidades medievais: os leprosários. A lepra
regride, não como resultado de práticas médicas, antes por força
da segregação dos leprosos (e, portanto, do contágio) e do final
das Cruzadas (e, portanto, do contato com focos de infecção do
Oriente). Com efeito, a lepra não era experimentada como "as-
sunto médico", a ser "suprimida" e "curada". Era, antes, uma
espécie de testemunho do mal ao mesmo tempo que de sua ex-
piação. Requeria, pois, o gesto ritual da cisão, rito que segregava
e, simultaneamente, sacralizava, gesto que excluía e, simultanea-
mente, purificava: "O pecador que abandona o leproso à sua
porta abre-lhe a salvação,,9.
A lepra regride, os leprosários se esvaziam. Porém, os "valo-
res" e as "imagens"lO, as "estruturas" e as "formas"ll que, du-

8. FOUCAULT, M., Historie de la falie à l'âge classique, 2 a ed., Paris, Galli-


mard, 1972, 13.
9. Ib;d., 16.
Ia. Ib;d., 15.
11. Ib;d., 16.

40 I Foucault. Simplesmente
rante a Idade Média, estão vinculados à instituição do leprosário
e ao personagem do leproso vão persistir; exclusão e purifica-
ção, segregação e sacralidade, reclusão e salvação serão trans-
postas, séculos mais tarde, para outras instituições - muitas
vezes nos mesmos lugares que antes abrigavam os leprosos - e
para outros personagens. Entre eles, o louco.
Assim, a loucura, de certo modo, assumirá, no decurso de
uma longa sucessão histórica, uma espécie de papel de herdeira
da lepra!'. Contudo, numa sucessão histórica longa, isto é, cer-
ca de dois séculos mais tarde (por volta da segunda metade do
século XVII e no século XVIII), na chamada Idade Clássica. Antes
disso, porém, no intermédio entre o final da Idade Média e o
início da Idade Clássica, ou seja, no chamado período renas-
centista (por volta dos séculos XV a XVII), ela ocupará outra
posição, ou melhor, circulará sem posição fixa.
Era freqüente nas composições literárias e pictóricas do
Renascimento a imagem de navios que transportavam "heróis
imaginários", "modelos éticos", "tipos sociais" cuja viagem sim-
bolizava seu "destino" ou sua "verdade"I3. Assim, títulos de obras
literárias incluíam, por exemplo, a Nau dos principes e das batalhas
de nobreza, a Nau das damas virtuosas, como também a Nau dos
loucos. Mas, em meio a essa onda literária e pictórica, a Nau
dos loucos guardava uma singular peculiaridade: a de existir real-
mente. De fato, expulsos das cidades, entregues a mercadores,
peregrinos ou marinheiros, os loucos vagavam, numa existên-
cia "errante"14. Para Foucault, esse "gesto que expulsa" está pró-
ximo do "rito,,15; a figura da nau carrega o simbolismo da água
que purifica e da navegação que é passagem. Água e navegação
cumprem, assim, o papel de manter o louco como "prisioneiro
em meio à mais livre e mais aberta das rotas: solidame~te preso

12. Ib;d., 18.


13. Ib;d., 19.
14. Ib;d., 19.
15. Ib;d., 16.

o mesmo e o outro I 41
à infinita encruzilhada. Ele é o Passageiro por excelência, isto é,
o prisioneiro da Passagem,,16.
A ambigüidade dessa simbologia corresponde à ambigüi-
dade da experiência renascentista da loucura, uma experiência
que envolvia duas vertentes simultâneas: um lado trágico, fas-
cinante e cósmico; um lado crítico, irônico e moral. O "fascínio
do trágico" transparece sobretudo nas imagens pictóricas: são
figuras fantásticas, humano-animalescas, que mostram a bestia-
lidade presente no coração do homem, impregnadas de um
saber hermético que anuncia a ameaça da desordem e do fim
do mundo e ao qual só os loucos têm acesso. Ao mesmo tempo,
a "ironia da crítica", que transparece sobretudo nas composi-
ções literárias e filosóficas, no verbo, no texto, na palavra: ali, a
loucura aparece como motivo de sátira ou de escárnio, não
mais como detentora dos segredos ocultos do cosmos, mas co-
mo mal e fraqueza humanos, de onde nascem a ambição dos
políticos, a avareza dos ricos, a presunção dos sábios (O Elogio
da loucura, de Erasmo, por exemplo, reserva, "na ronda de lou-
cos, um largo lugar para homens de saber" - gramáticos, poe-
tas, escritores, jurisconsultos, filósofos, teólogos etc.).l?
As duas vertentes da experiência renascentista da loucura,
simbolizadas pictórica e literariamente, certamente se entrecru-
zam: há temas morais nos quadros de]. Bosch; e Montaigne
sugere que loucura é fiar-se apenas na razão ls . Gradativamente,
porém, os dois pólos se distanciam e o elemento crítico ganha
relevo sobre o trágico. A ironia crítica, prioritária no texto, no
verbo, na palavra, voltada para a racionalidade e a moralidade

16. Ibid., 22.


17. Ibid., 34. Entre as expressões pictóricas incluem-se obras de]. Bosch,
Brueghel, Dürer; entre as expressões lingüísticas, obras de Brant, Erasmo,
Montaigne.
18. O mastro da Nau dos Loucos de]. Bosch é a figura da árvore: árvo-
re proibida da sabedoria à qual só os loucos têm acesso; mas é também
árvore "moral" do bem e do mal.

42 1 Foucault. simplesmente
humanas, ocupa cada vez mais o primeiro plano na experiência
da loucura, deixando na sombra o silêncio verbal e fascinante
das imagens trágicas carregadas de forças cósmicas. Sem dúvi-
da, observa Foucault, essa ocultação jamais abolirá inteiramen-
te a experiência do trágico: "esse desaparecimento não é uma
derrocada"l9. Nos séculos seguintes e até hoje, o trágico da lou-
cura subsistirá na obscuridade, como que "nas noites dos pen-
samentos e dos sonhos", como que "às escondidas" e "em vigí-
lia", de tal modo que, malgrado o predomínio cada vez maior
do racional, a presença subterrânea do trágico será pressentida
e testemunhada como que em erupções esporádicas (Nietzs-
che, Van Gogh, Artaud, Goya, Sade são alguns exemplos desses
pressentimentos e testemunhos).
Mas, no curso da história, a predominância do saber críti-
co sobre o trágico, marcando o domínio da razão sobre a lou-
cura, assinala o fim da experiência renascentista, abrindo o li-
miar da Idade Clássica e, a partir dela, os caminhos que condu-
zirão à experiência moderna da loucura, num deslocamento
que vai da Nau ao Hospital, do Hospital ao Asilo.

Hospitais e asilos
No começo do século XVII a loucura adentrou os muros da
cidade; internalizada, torna-se "familiar" em um mundo que lhe
é "estranhamente hospitaleiro"20. Não mais vagará: "Ei-la amar-
rada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e
mantida. Não mais nau, mas hospital"21. Não mais, com Mon-
taigne, a crítica à presunção da razão, mas, com Descartes, o
banimento da loucura do caminho que conduz à certeza22 • A

19. FOUCAULT, M., Historie de la folie .. ,39.


20. Ibid., 54-55.
21. Ibid., 53.
22. Enquanto em Montaigne a loucura é incorporada ao caminho que
conduz à verdade, em Descartes são incorporados os erros dos sentidos e a
ilusão dos sonhos, mas a loucura é excluída.

o mesmo e o outro I 43
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desordem irracional do trágico submete-se à ordem do racio-
nal. Demarcada por oposição à razão, a loucura é transformada
em desrazão, desrazão que, séculos mais tarde, se transmuta-
rá em doença mental.
No século XVII são fundados os Hospitais Gerais que cons-
tituem a estrutura visível e a forma institucional da cisão entre
razão e desrazão. O Hospital Geral de Paris, por exemplo, que
data de 1656, por decreto real sob Luís XIV, agrupava em uma
única administração estabelecimentos já existentes com fins
diversificados (como, entre outros, a Salpêtriere, que antes abri-
gava um arsenal, ou a Bicêtre, antes destinada a recolher invá-
lidos de guerra). Como em Paris, em toda a França, na Alema-
nha, na Inglaterra, são fundadas instituições para o internamen-
to, muitas delas estabelecidas nos antigos leprosários. E, assim
como os leprosários, os Hospitais Gerais, ainda que incluís-
sem visitas médicas em seu sistema de funcionamento, não
tinham propósito terapêutico:
"O classicismo inventou o internamento um pouco como a Ida-
de Média a segregação dos leprosos; o lugar deixado vazio por
estes foi ocupado por personagens novos no mundo europeu:
são os 'internados'. O leprosário não tinha um sentido apenas
médico; muitas outras funções eram desempenhadas neste ges-
to de banimento que abria espaços malditos. O gesto que inter-
na não é mais simples: ele também tem significações políticas,
sociais, religiosas, econômicas, morais,>23.

Os "novos personagens" que ocupam esses estabelecimen-


toS são apresentados em diversas passagens e em listagens mais
ou menos longas. Com base nessas várias referências, podem ser
assim identificados: pobres, v~gabundos, correcionários, desem-
pregados, jovens que perturbam o repouso da família ou dilapi-
dam seus bens, devassos, pródigos, enfermos, libertinos, filhos
ingratos, pais dissipadores, prostitutas, homossexuais, mágicos,

23. Ibid., 64.

44 I Foucault. simplEsmente
suicidas, portadores de doenças venéreas, blasfemadores, alqui-
mistas, pretensas feiticeiras e, também, insensatos, cabeças alie-
nadas, espíritos transtornados ... Numa palavra, "homens de des-
razão"24. Diferentemente dos leprosos da Idade Média, que eram
"portadores do visível brasão do mal", os "novos proscritos da
Idade Clássica carregam os estigmas mais secretos da desrazão"25.
Diferentemente dos viajantes das naus renascentistas, que
vagando por toda parte eram uma presença igualmente "vaga",
mais pressentida que percebida, os hóspedes do Hospital Geral
são instalados, localizados, tornados "presença concreta" no
horizonte de uma «realidade social" que demarca explicitamen-
te a cisura entre a razão e a desrazã0 26 •
É lá, nesse espaço aberto pelo classicismo, cuja expressão
institucional foi o internamento, é lá, de dentro dele, que a
loucura será mais tarde "destacada", "individualizada", "isola-
da" e, enfim, "asilada", transportando consigo, porém, para os
tempos da Modernidade, os traços que marcavam os diferentes
grupos com que até então se avizinhava. A designação poste-
rior e moderna da loucura como alienação e depois como doença
mental não será o resultado direto de uma espécie de progresso
do conhecimento. Sua condição de possibilidade encontra-se
lá, naquele gesto que produzira a alienação, isto é, que segrega-
ra, que colocara a distância, que "alienara" a desrazão. É porque
já "distanciada", já segregada, que a loucura poderá, na Moder-
nidade, ser "separada" como objeto possível de conhecimento,
numa esfera que será não mais da desrazão, mas da alienação e
da doença mental:
"anexando ao domínio da desrazão, ao lado da loucura, as proi-
bições sexuais, as interdições religiosas, as liberdades do pensa-
mento e do coração, o classicismo formava uma experiência mo-

24. Ibid., II 7.
25. Ibid., 1I9.
26. Ibid., 117.

o mesmo e o outro I 4S
ral da desrazão que serve, no fundo, de solo para o nosso conhe-
cimento 'científico' da doença mental. Por esse distanciamento,
por essa dessacralização, perfaz ele uma aparência de neutralida-
de que já é comprometida, porque só alcançada no propósito ini-
cial de uma condenação"27.

Assim, não se pode pretender simplesmente que a loucura


será um dia tornada "objeto" de conhecimento por ter sido,
então, liberada das "velhas participações religiosas e éticas em
que a Idade Média a tomava,,2B. Antes de se tornar ~'objeto" de
conhecimento e ser configurada como patologia, ela passou
pelo internamento do período classicista, e o internamento não
consistiu numa forma possível de "conhecimento" da loucura,
mas em seu exílio e em seu silêncio: "Não é importante para a
nossa cultura que a desrazão só tenha podido tomar-se objeto
de conhecimento na medida em que previamente foi objeto de
ex-comunicação?"29,
Uma leitura histórica simplista e linear poderia talvez pre-
valecer-se do fato de que durante esses 150 anos - entre a Idade
Média e o Renascimento até a nossa Modernidade, calcada na
repartição entre razão e desrazão e misturando indiscrimina-
damente os insensatos aos demais grupos "associais" - a expe-
riência clássica da loucura não foi uniforme. É que, além dos
Hospitais Gerais, havia também hospitais comuns (Hôtel-Dieu
em Paris, Bethlém em Londres, por exemplo), onde, embora em
número extremamente menor, se internavam loucos com pers-
pectivas de tratamento e de cura, diferentemente das casas de
internamento, em que as perspectivas eram antes de correção)
castigo e repressão. Nos hospitais comuns, as decisões proce-
diam de julgamentos médicos e o louco tinha um estatuto de
"sujeito juridicamente incapaZ,,30) eximido, portanto, de respon-

27. Ibid., 121.


28. Ibid., 119.
29. Ibid., 119.
30. Ibid., 146.

46 I Foucault, simplesmente
sabilidades sociais. Nas casas de internamento, as decisões com-
petiam às autoridades sociais (magistrados, bispos, polícia) e o
louco tinha o estatuto de "sujeito social") perturbador da or-
dem, comprometido, pois, com "as vizinhanças da culpabilida-
de,,31. Ora, uma leitura histórica simplista veria na hospitaliza-
ção comum os indícios de uma espécie de progresso rumo à
Modernidade, quando, então, se reconheceria na loucura a doen-
ça, sua verdade de sempre, sua essência imutável.
Essa leitura simples seria plausível se Os fatos fossem sim-
ples; na verdade, ela inverte-lhes a ordem e a prioridade. A hos-
pitalização individualizada do louco nos hospitais comuns,
durante a Idade Clássica, não foi avanço rumo à Modernidade,
mas o resíduo ainda de uma percepção medieval e renascentista
em que a individualidade do louco era de algum modo reconhe-
cida, ainda que vagamente. O fato "novo", inclusive do ponto
de vista cronológico, da Idade Clássica foi justamente a transpo-
sição dos loucos das casas de cura para as casas de correção, e
não o inverso, de modo que a experiência mais ampla e relevan-
te da loucura foi seu internamento não Como procedimento
médico, mas como prática social. "Ê entre os muros do interna-
mento que Pinel e a psiquiatria do século XIX", escreve Fou-
cault, "encontrarão os loucos; é lá - não o esqueçamos - que os
deixarão, não sem antes se vangloriarem de os ter libertado"32.
Com efeito, no caminho desse percurso histórico é possível
compreender como a transformação que se operará a partir do
final do século XVIII e do início do século XIX, sobre o solo da
experiência classicista da loucura, consistirá numa espécie de jun-
ção entre suas duas vertentes, que, antes "justapostas", serão
depois "superpostas,,33. Em outras palavras: o "alienado" será
reconhecido simultaneamente como "incapaz e como louco"34;

31. Ibid., 144.


32. Ibid., 59.
33. Ibid., 147.
34. lbid., 146.

o mesmo e o outro I 47
denominar-se-á "doença mental" essa união entre o fato de uma
incapacidade jurídica do indivíduo e o fato de um distúrbio
que afeta a vida social. E é essa junção do conceito de doença
como assunto médico à prática social do internamento, ou,
reciprocamente, a transformação do "internamento em ato te-
rapêutico"35, que, finalmente, caracterizará então a instauração
da instituição asilar.
• ••
A partir da reconstituição resumida de alguns aspectos
dessa história, podemos compreender que a loucura não seja
um "objeto" uniforme, consubstanciado numa verdade essen-
cial cuja identidade é sempre a mesma, mas antes um fato mul-
tifacetado, cujas verdades são historicamente produzidas e va-
riadas. Em palavras simples: '''a loucura não é um fato da natu-
reza' mas um fato da civilização"36. E sua história a mostra
como tantas faces que figuram o "outro" no interior do "mes-
mo". Para concluir, ousemos supor que esse "outro" de múlti-
plos rostos que atravessa a história de nossa cultura possivel-
mente atravessa também a história pessoal de cada um de nós.
Esta suposição está sugerida, talvez, no primeiro título que Fou-
cault pretendia dar a seu livro, "A outra forma da loucura,,37, e
na frase de Pascal que escolhera para iniciá-lo: "Os homens são
tão necessariamente loucos que seria uma outra forma de lou-
cura não ser louco".

35. Ibid., 149.


36. Retomamos aqui um comentário do livro de ERIBON, D., Michel Pou·
cault: uma biografia. trad. H. Feist, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, 119.
37. Cf. ERIBON, D., op. cit., 102-103.

lI8 I Foucault, simolesmente


IV
EDUCAÇÃO E
SABER SOBERANO'

Como cenário de nossas considerações escolhemos algumas pas-


sagens de As palavras e as coisas 1 cuja retomada constituirá o pri-
meiro momento da exposição. Do interior desse cenário e a partir
de uma interpretação relativamente livre das análises foucaul-
tianas, tentaremos num segundo momento realçar alguns as-
pectos dos papéis desempenhados pelas ciências humanas em
geral e pela ciência da educação em particular.
Numa visão extremamente sucinta (mas útil a nosso inten-
to), lembramos que As palavras e as coisas, em seu todo, percor-
re uma trajetória histórica que começa no fim do Renascimen-
to (por volta do século XVI), detém-se na Idade Clássica (sécu-
los XVII e XVIII) e desemboca em nossa Modernidade; e que
aborda, em cada qual desses segmentos históricos, a emergên-
cia de determinados saberes de modo a finalmente poder
descrever, nos séculos XIX e XX, o surgimento das chamadas
ciências humanas.

* Comunicação apresentada por ocasião da "Semana de Educação", na


Universidade Federal de Uberlândia, em maio de 1981. Publicada em Cadernos
PUC, n. 13, São Paulo, EducjCorcez, 1982.
1. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966.

educação e saber soberano I lI9


Com curiosa astúcia, o primeiro capítulo traz a nossoS olhos
um quadro de Velázquez. Situado entre o fim da segunda me-
tade do século XVI e o início da segunda metade do século XVII
(1599-1660), o pintor, cuja obra foi escolhida, permite o assina-
lamento do fim do Renascimento e do início da Idade Clássica.
Por outro lado, o quadro escolhido (Las Meninas) aponta ele-
mentos que serão retomados no final do livro (capítulo IX),
permitindo uma espécie de ilustração comparativa a propósito
da Modernidade.
Para desenhar nosso cenário, retomaremos alguns aspec-
tos do primeiro capítulo e, a partir dele, faremos um grande
salto até o capítulo IX. De início, ouçamos uma descrição me-

SO I Foucault. simplesmente
ramente empírica do quadro em questão: "( ... ) bastaria dizer
que Velázquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se
representou a si mesmo, em seu atélier ou num salão do Escorial,
a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem con-
templar, rodeada de aias, de damas de companhia, de cortesãos
e de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atri-
buir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina
Sarmiente, ali Nieto, no primeiro plano Nicolaso Pertusato,
bufa0 italiano. Bastaria acrescentar que as duas personagens
que servem de modelos ao pintor não são visíveis, ao menos
diretamente; mas que se pode distingui-las num espelho; que
se trata, sem dúvida, do rei Filipe IV e de sua esposa Mariana"2.
Porém, se deslocamos nosso olhar dessa visão imediata-
mente empírica e nos situamos numa região em que os nomes
não são diretamente colados às coisas percebidas, outra descri-
ção é possível. E é esta que nos interessa. Refaçamo-la em al-
guns de seus ângulos.

1O pintor e o espectador - De dentro do quadro, o pintor olha


para um ponto fixo e invisível: nesse ponto está o modelo que
ele pinta sobre uma tela da qual o espectador só vê o reverso.
Ora, nesse ponto igualmente, para o qual o pintor dirige o
olhar, está presumidamente o próprio espectador. Assim é que,
enquanto "objeto" virtual do olhar do pintor, o espectador é o
modelo de carne e osso mas sempre invisível e extremamente
variável. Trava-se assim um jogo ambíguo entre o visível e o
invisível: com efeito, para ser olhado pelo pintor, esse especta-
dor-modelo precisa colocar-se em face do quadro na posição de
quem olha, de modo que somente na medida em que é ((sujeito-
que-olha" pode ser "objeto-olhado". O reverso da tela que está
sendo pintada garante essa ambigüidade. Porque só o reverso é
representado, não sabemos, nós, espectadores, se olhamos ou

2. Ibid., 25.

educação e saber soberano I Sl


se somos olhados. Nesse jogo, pois, o olhar do pintor, o único
que pode ir do modelo à frente da tela, é o "olhar soberano"'.

2 O espelho - O quadro como um todo é, evidentemente, uma


representação. Do interior e no fundo dessa representação são
representados outros quadros (que são outras tantas represen-
tações). Entre eles, porém, um é especialmente mais claro. "Mas
não é um quadro: é um espelho.,,4
E, assim como a frente da tela tepresentada é invisível para
o espectador e só visível para o pintor, agora o espelho é clara
visibilidade para o espectador mas sempre invisível para o pin-
tor 0á que este lhe dá as costas). Mas o espelho reflete precisa-
mente o modelo que está sendo pintado. E percebe-se então
que, além do jogo entre o visível e o invisível, outra ambigüida-
de se estabelece, esta agora entre o interior e o exterior do qua-
dro: com efeito, o espelho faz ver (por "reflexo") os modelos
externos olhados de dentro do quadro pelo olhar do pintor que
os representa, e mostra assim o espaço interno do quadro que é
representação de modelos; mas fá-los ver (também "por refle-
xo"), enquanto espectadores que olham do exterior o pintor
que é, ele próprio, representado (feito de linhas, formas, cores),
e mostra assim o contorno externo do quadro que é, ele pró-
prio, em seu todo, representação de uma representação, quadro
que representa um quadro.

3 O visitante inusitado - No fundo do quadro, uma porta deixa


entrever uma estranha figura. Não se sabe se ela <{entra" ou "sai".
Parece estar ao mesmo tempo dentro do quadro (isto é, do quadro
enquanto visto do exterior) e fora dele (isto é, do quadro enquan-
to visto internamente); como se não fosse parte da representa-
ção, mas assistisse a ela, porém do interior dela. Se o espelho
reflete o jogo ambíguo entre o interior e o exterior, o visitante

3. Ibid., 21.
4. Ibid., 21.

S2 I Foucault. Simplesmente
revela o jogo ambíguo entre o real e o representado: é um es-
pectador "real" do ponto de vista do interior do quadro e, con-
tudo, "representado" do ponto de vista do exterior do quadro.

4 As personagens e os centros do quadro - Do plano de fundo, o


visitante olha as personagens dos primeiros planos: o pintor, à
esquerda; um homem e uma mulher, à direita; ainda à direita e
mais à frente, dois anões; e, no meio, a princesa entre duas
damas de companhia. Dois pontos centrais parecem comandar
a composição do quadro: o espelho a refletir os modelos, e o
olhar firme da princesa realçado em primeiro plano. Mas esses
dois pontos parecem estar ambos direcionados para um ponto
convergente: trata-se do espaço claro à frente do quadro, a de-
marcar o limite impreciso entre o seu interior e o seu exterior.
É o espaço olhado pelo pintor e as personagens, mas donde,
supostamente, os modelos olham o pintor e as personagens.
Espaço ocupado e vazio ao mesmo tempo, ao mesmo tempo
sujeito e objeto do olhar ausente e presente, é ele o centro prin-
cipal do quadro. Um centro soberano, e duplamente soberano:
porque comanda a composição de todo o quadro e porque su-
postamente ocupado por "soberanos" (o rei e a rainha). No
interior do quadro é o lugar do modelo, isto é, do rei; mas,
como que prolongável para fora do quadro, esse espaço é tam-
bém o lugar do espectador que olha e é olhado; é também o
lugar do visitante que assiste à cena e é o espectador projetado
para dentro da representação; e ainda, afinal, o lugar do pintor
real, que na verdade se olha como seu próprio modelo para se
representar. O espaço vazio faz do quadro como um todo o que
o espelho faz no interior do quadro: assim como no espelho o
rei ausente está presente, mas "por reflexo", assim também O qua-
dro como um todo torna presentes, mas "por reflexo") o mode-
lo real, o pintor real e o espectador real. Nesse espaço, só há
lugar para o sujeito no plano de representação; é nesse espaço,
afinal, que poderá ser enunciado o cogito cartesiano e onde pode-

educação E' saber soberano I S3


rão desdobrar-se os saberes emergentes na Idade Clássica. Mas,
por outro lado, será também a ocupação desse espaço pelo su-
jeito concreto enquanto empírico e existente real (no duplo
sentido, aliás, de realidade e de realeza) que caracterizará o sur-
gimento das ciências humanas em nossa Modernidade. E eis
que já saltamos para o capítulo IX, cujo segundo item tem
precisamente como título "O lugar do rei".
No século XIX, a personagem representada no quadro de
Velázquez entra empiricamente em cena. O homem, como
"indivíduo que vive, fala e trabalha"S, ocupa, "em carne e osso",
o lugar antes vazio de uma presença ausente. Abre-se um novo
espaço epistemológico no qual podem emergir a biologia, a filo-
logia, a economia. E onde emergem também as filosofias do
homem e as ciências humanas. "No movimento profundo de tal
mutação arqueológica, o homem aparece com sua posição am-
bígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece: sobera-
no submetido, espectador olhado, ele surge aí, nesse lugar do
Rei que lhe atribuíam antecipadamente Las Meninas, mas de onde,
durante tanto tempo, a sua presença real foi excluída. Como se
nesse espaço vago para o qual está virado inteiramente o quadro
de Velázquez, mas que ele, no entanto, só refletia, mediante o
acaso de um espelho e como que abusivamente, todas as figuras
de que se suspeitava a alternância, a exclusão recíproca, o entre-
laçamento e a ofuscação (o modelo, o pintor, o rei, o especta-
dor) cessassem de súbito sua imperceptível dança, se petrificas-
sem numa figura plena e exigissem que fosse enfim referido a
um olhar de carne todo o espaço da representação."6
Não é nosso intento refazer a análise dessa mutação, nem
examinar sua "legitimidade científica" ou avaliar o peso de sua
significação histórica. Partindo do pressuposto de que uma mu-
tação histórica do saber não é sinônimo de avanço ou de pro-
gresso, mas tão-somente a marca de uma diferença, interessa-

5. lbid., 321.
6. lbid., 323.

54 I Foucault, Simplesmente
nos agora apenas explorar alguns aspectos inerentes àquela po-
sição ambígua hoje ocupada pelo homem como "objeto para
um saber" e como "sujeito que conhece". E o primeiro aspecto
a apontar é que a instauração das ciências humanas requer,
intrinsecamente, que se atribua ao homem real o estatuto de
"coisa científica" a ser dominada pelo homem como sujeito
detentor do conhecimento. Ora, acontece também que, por
outro lado e ao mesmo tempo, uma vez que a racionalidade do
saber científico é erigida como critério exclusivo da validade de
todo saber e medida do verdadeiro, as ciências humanas carre-
gam em seu próprio bojo o risco inalienável da redução do
homem ao que dele se pode "cientificamente conhecer". O co-
nhecimento "científico" sobre o homem torna-se não só o único
saber qualificado e competente, isto é, aquele que tem o poder
de decidir sobre o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, o
normal e o patológico; corre também o risco inalienável de se
fazer sempre prescritivo, isto é, aquele que veicula as normas
pelas quais são desqualificáveis quaisquer outros saberes e re-
duzidos ao silêncio outros discursos. Como único saber quali-
ficado, assume então o direito da soberania cujo poder se exer-
ce pelos mecanismos da disciplina, do controle, da exclusão 7 •
Ele dissocia os que "possuem" a verdade porque "sabem" e os
demais que, simplesmente, "nada sabem".
Neste momento de nossas considerações, duas distinções
exploradas com extrema clareza por Marilena Chaut podem

7. Ver, a esse respeito, entre outros, particularmente o artigo "Soberania


e disciplina", de M. Foucault, in Microfisica do poder, introd. e org. de Roberto
Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
8. Ver, sobretudo, da autora: "Ideologia e educação", Educação e Socieda-
de, Cortez Editora/Autores Associados/Cedes, Ano 11, nO 5,jan. 1980; "Ven-
tos do progresso: A Universidade administrada", in Descaminhos da Educação
Pós-68, São Paulo, Brasiliense, 1980; O que é ideologia, São Paulo, Brasiliense,
2 a ed., 1981; "A não-violência do brasileiro, um mito interessantíssimo",
Almanaque, Cadernos de Literatura e Ensaio, nO 11 ("Educação ou Desconversa?"),
São Paulo, Brasiliense, 1980.

educação e saber soberano I 55


nQs ser úteis. A primeira é a distinção entre conhecimento e
pensamento. Conhecimento é aquisição intelectual do saber já
constituído, estabelecido, instituído e qualificado. Pensamento
é afrontamento de uma realidade nova, cujo saber é construído
a partir de um não-saber que requer sua compreensão. Ora, na
medida em que as ciências humanas se movem na zona do
conhecimento qualificado e instituído, tendem a excluir o espa-
ço do pensamento. A outra distinção (retomada de Claude Le-
fort) marca a diferença entre "discurso sobre" e "discurso de".
O "discurso sobre" um objeto dissimula e busca substituir o
discurso daquilo mesmo que está em questão, impedindo que
isso mesmo que está em questão primeiramente fale de si e por
si para vir a ser compreendido. "Por exemplo, quando o discur-
so da unidade social se tornou realmente impossível em virtude
da divisão social, surgiu um discurso sobre a unidade; quando o
discurso da loucura tem que ser silenciado, em seu lugar surge
um discurso sobre a loucura; onde não pode haver um discurso
da revolução surge um outro, sobre a revolução; ali onde não
pode haver discurso da mulher surge um discurso sobre a mu-
lher etc."9. Ora, as ciências humanas, enquanto saber sobera-
no - e com isso entendamos qualificado, normativo e podero-
so -, trazem não só a carga do conhecimento capaz de estagnar
o pensamento como as marcas de um saber sobre o homem que
silencia o seu próprio "objeto".
Transportemos finalmente estas considerações para a re-
gião da pedagogia, admitida que é no campo das ciências hu-
manas como "ciência da educação". É bem possível que acabe-
mos por verificar que ela se faça como conhecimento) isto é, re-
produção de um saber instituído sobre a educação. É possível que
quem primeiramente pronui,.cie o discurso pedagógico não
sejam nem os professores nem os estudantes, mas "a burocra-
cia estatal, que, por intermédio dos ministérios e das secreta-

9. CHAU1, M., "Ideologia e educação", in Educação e Sociedade, nO 5, 26.

56 I Foucault. Simplesmente
rias da educação, legisla, regulamenta e conttola o trabalho
pedagógico"lO. As estruturas mesmas das instituições escolares
são já um cumprimento dessas normas.
Mas é preciso não se iludir: o poder que legisla, regulamen-
ta e controla não está exclusivamente centralizado num saber
elaborado no exterior da instituição escolar, nela se exercendo
de fora para dentro e de cima para baixo. Ao contrário, na me-
dida mesma em que professores e alunos nos limitamos a cum-
prir as normas, a assimilar o saber "qualificado", trazemos para
dentro das próprias relações pedagógicas os mesmos mecanis-
mos e os mesmos efeitos de exercício do poder. É quando a
escola não pode ser um lugar onde se pensa para ser o lugar
onde se reproduz o conhecimento instituído. É quando as rela-
ções entre professor e estudante reproduzem a relação do sujei-
to que "possui" o saber com um "objeto" de educação.
Diríamos, finalmente, que é nesse tipo de configuração do
saber pedagógico e das relações pedagógicas que o "lugar do
rei", esse "soberano submetido", está plenamente ocupado. E
que o que se propõe, em contrapartida, é o esforço por reverter
semelhante configuração pelo esvaziamento da "posse" desse
espaço. Entenda-se: não estamos aqui a aspirar a um absurdo
regresso ao século XVII nem a um retorno à soberania da repre-
sentação. Por uma transposição mais metafórica que ilustrati-
va, e numa interpretação livre da análise foucaultiana do qua-
dro de Velázquez, estamos apenas endossando a proposta de
que, no saber da educação, na instituição escolar e nas relações
pedagógicas, fique vazio o "lugar do rei", isto é, desocupado de
qualquer sujeito soberano (quer na forma da representação, quer
no modo da realidade), destituído de todo direito da realeza.
Transposição metafórica e interpretação livre que pretende
apenas emoldurar, num cenário visual, a proposta muitas vezes
formulada por Marilena Chaui. A saber: a de que no trabalho

lO. Ibid., 27.

educaçáo e saber soberano I 57


pedagógico não seja o conhecimento a ponte entre o professor
e o estudante, mas antes seja o professor o mediador entre o
estudante e o pensamento. Na medida em que exercesse esse
papel, o professor desocuparia o lugar soberano de detentor do
saber, lugar que "então permaneceria sempre vazio, a fim de
que pudesse ser visto como acessível a todos porque não per-
tence a ninguém"ll.

11. CHAUl, M., "A não-violência do brasileiro, um miro interessantíssimo",


Almanaque, nO 11,24.

58 I Foucault. Simplesmente
v
O LUGAR DAS INSTITUiÇÕES
NA SOCIEDADE DISCIPLINAR'

Que há de espantoso no fato de que a pn'são se assemelhe às usinas, às escolas, às


casernas, aos hospitais, e de que todos se assemelhem às prisões?
M. FOUCAULT, Surveiller et punir, 229.

Buscando reconstituir aspectos do pensamento de Foucault


no tratamento das assim chamadas "instituições disciplinares",
convém, preliminarmente, situar o aparecimento desse tema
no contexto mais amplo daquele pensamento.
A inclusão de análises e descrições de práticas institucio-
nais no interior de um pensamento voltado para a formação e
a transformação de configurações discursivas que compõem
saberes historicamente constituídos é um assunto que perten-
ce, certamente, à questão das imbricações entre os planos dis-
cursivo e extradiscursivo. Ora, esta é uma questão que, particu-
larmente em relação aos primeiros livros de Foucault, foi (ou é)
objeto de polêmica e tema de interesse.

* Este textO reproduz, com pequenas alterações, palestra proferida por


ocasião do Colóquio Foucault, na Universidade de São Paulo, em abril de
1985. Publicado em Recordar Foucault (RIBEIRO, R. J., org.), São Paulo, Brasi-
liense, 1985.

o lugar das instituiçóes na sociedade disciplinar ! 59


Contudo, esta questão sofre um deslocamento considerá-
vel a partir, precisamente, da publicação dos livros Vigiar e punir
(1975) e A vontade de saber (1976), marcando a passagem da
"arqueologia" para a "genealogia". Desde então, quando Fou-
cault busca, explicitamente, atrelar a questão da constituição
de saberes a modos de exercícios de poder, a análise se descen-
traliza do eixo "discursivo/não-discursivo", para aproximar-se
de um eixo mais complexo que o autor chama de "dispositivo".
O ((dispositivo", com efeito, reúne o discursivo e o extradiscur-
sivo, ou antes, coloca esta questão em um plano de menor im-
portância. Eis o que ele escreve: "Através desse termo tento de-
marcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente hete-
rogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações ar-
quitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas admi-
nistrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, mo-
rais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito são os elemen-
tos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabele-
cer entre esses elementos". E segue mostrando que, com esse
termo, pretende ainda "demarcar a natureza da relação que po-
de existir entre esses elementos heterogêneos" ("discursivos ou
não") bem como evidenciar a "função estratégica" do dispositi-
vo, na medida em que responde à articulação entre produção
de saber e modos de exercício de poder que é dominante em
cada momento histórico'. De sorte que poderá afirmar: "Mas,
em relação ao dispositivo, não é muito importante dizer: eis o
que é discursivo, eis o que não é"2.
O que aqui nos ocupará é a análise de instituições entendidas,
pois, como elementos de um "dispositivo" articulador das rela-
ções entre produção de saberes e modos de exercício de poder.
Não, porém, genericamente. Retomaremos a descrição de um

1. Cf. FOUCAULT, M., "Sobre a história da sexualidade", in Microfísica


do poder, inrrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
2. Ib;d., 247.

60 I Foucault. Simplesmente
tipo determinado de instituições: aquelas que, num dado mo-
mento histórico, constituem peças na engrenagem de um tipo
determinado de sociedade, que é ainda a nossa, e que Foucault
chama de "instituições disciplinares".

.**
R instalação das instituições disciplinares

As conferências que compõem o texto A verdade e as formas


juridicas (1974) descrevem uma história da produção de saberes
baseada em determinadas práticas sociais (as práticas jurídicas
ou judiciárias) que foram capazes de gerar modelos de estabe-
lecimento da verdade. Ao longo desse estudo, Foucault descre-
ve o surgimento e os caracteres do que denomina "sociedade
disciplinar", dedicando-se, na última conferência, a uma abor-
dagem mais centralizada sobre as instituições inseridas nesse
tipo de sociedade. Tomaremos esse text03 como referência para
resumir, brevemente, o que ele nos diz sobre a sociedade disci-
plinar e nos determos na questão de suas instituições.
A sociedade disciplinar tem seu surgimento por volta dos
fins do século XVIII. Caracterizando-se, principalmente, como
um modo de organizar o espaço, de controlar o tempo, de vi-
giar e registrar continuamente o indivíduo e sua conduta, a
sociedade disciplinar deu lugar ao nascimento de determinados
saberes (os das chamadas ciências humanas), para os quais o
"exame" é o modelo prioritário de estabelecimento da verdade;
pelo "exame" instaura-se, igualmente, um modo de poder em
que a sujeição não se faz apenas na forma negativa da repressão,
mas, sobretudo, ao modo mais sutil do adestrament9, da pro-

3. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas) trad. Roberto Machado e


Eduardo J. Morais, Cadernos da PUC/Rj, série Letras e Arres, 6/74, nO 16,
1974. Posteriormente, este texto foi republicado no Rio de Janeiro, pela Nau
Edirora, em 1999. As referências das passagens aqui reproduzidas remetem à
primeira edição.

o lugar das instituições na sociedade disciplinar I 61


dução positiva de comportamentos que definem o "indivíduo"
ou o que "deve" ele ser segundo o padrão da "normalidade".
Concomitantemente ao surgimento de saberes e ao exercí-
cio do poder disciplinares, instalam-se determinadas institui-
ções a eles articuladas. Foucault toma como modelo prenun-
ciador dessas instituições um projeto de arquitetura, o Panóp-
tico, elaborado em fins do século XVIII pelo jurista inglês Jere-
my Bentham. Retomemos uma das passagens em que descreve
esse projeto arquitetômco:
"O princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro,
uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte
interior do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada
uma ocupando roda a largura da construção. Estas celas têm duas
janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às jane-
las da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atraves-
se a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na
rorre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um
condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito de
contraluz, podem-se perceber da torre, recortando-se na lumino-
sidade, as pequenas silhueras prisioneiras nas celas da periferia.
Em suma, inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de
um vigia captam melhor que o escuro, que, no fundo, protegia"4.

Outra passagem descritiva do projeto conclui com a se-


guinte observação: "O Panopticon é a utopia de uma sociedade
e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atual-
mente conhecemos - utopia que efetivamente se realizou"s.
Por isso, esse tipo de sociedade e de poder é perpassado pelo
que Foucault denomina "panoptismo".
Na realização do "panoptismo", as primeiras instituições
que, por volta do início do século XIX, foram instaladas ti-

4. Cf FoucAULT, M., "O olho do poder", in Microfísica do poder, 210. Esta


descrição praticamente reproduz a. que se encontra em Surveiller et punir,
Paris, Gallima.rd, 1975,201-202.
5. FoucAuLT, M., A Verdade e as formas jurídicas, 69.

62 I Foucault, simplesmente
nham uma forma "compacta, forte", sendo depois substituídas
por instituições com iguais características, mas de "forma bran-
da, difusa,,6. Elas marcaram o aparecimento de fábricas, hospi-
tais, escolas, casas de correção, prisões etc., cujas características
de fundo ainda hoje permanecem. Foucault chama-as ainda de
"instituições de seqüestro", em razão de que a reclusão que elas
operam não pretende propriamente "excluir" o indivíduo re-
cluso, mas antes "incluí-lo" num sistema normalizador. Eis uma
passagem esclarecedora:
"Na época atual, rodas essas instituições ~ fábrica, escola, hospi-
tal psiquiátrico, hospital, prisão ~ têm por finalidade não ex-
cluir, mas, ao contrário, fixar os indivíduos. A fábrica não exclui
os indivíduos; liga-os a um aparelho de produção. A escola não
exclui os indivíduos; mesmo fechando-os, ela os fixa a um apare-
lho de transmissão do saber. O hospital psiquiátrico não exclui
os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um aparelho
de normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a ca-
sa de correção ou com a prisão"?

Descreveremos, a seguir, o traço mais básico e geral das


instituições disciplinares e, a partir daí, as funções que lhes
cabe cumprir.

Característica básica: do espetáculo à vigilância


Pode-se dizer que o traço característico fundamental das
instituições disciplinares está desenhado em seu modelo de ar-
quitetura, tal como é anunciado no projeto do Panopticon.
Recorrendo a autores contemporâneos ao surgimento dessas
instituições e que desenvolveram estudos a respe~to (N. H.

6. Ibid., 90. É ilustrativo ler (no mesmo texto, 86-88), a longa descrição
que Foucault fornece do regulamento de um destes tipos de instituições,
que, em sua forma mais "compacta", realmente existiu na França dos anos
1840-1845.
7. 1bid., 91-92.

o lugar das instituições na sociedade disciplinar I 63


Giulius, autor de Lições sobre as prisões, de 1830, e J. B. Treillard,
autor de Motivos do Código de Instrução Criminal, de 1808), Fou-
caulr realça a transformação que, na arquitetura das institui-
ções, teve por efeito invertê-las de uma arquitetura de espetácu-
lo a uma arquitetura de vigilância. Reportando-se a Giulius, faz
ver como na civilização grega antiga, por exemplo, a arquitetura
atendia à necessidade de possibilitat a exibição de espetáculos
ao maior número possível de pessoas (para isso, "a arquitetura
dos templos, dos teatros, dos circos")'; esse tipo de construção
respondia a um tipo de sociedade marcado pela participação da
comunidade nos momentos de mais unidade na vida pública
("sacrifícios religiosos, teatro ou discursos políticos"t Não que
esse modelo tenha desaparecido por completo; porém, na socie-
dade moderna, organizada na forma estatal, transformam-se as
necessidades e transforma-se a arquitetura. "Numa sociedade",
diz Foucault, "onde os elementos principais não são mais a co-
munidade e a vida pública, mas de um lado os indivíduos priva-
dos, e de outro o Estado, as relações só podem ser reguladas
numa forma exatamente inversa ao espetáculo."lO Isto significa
que a arquitetura deverá então assegurar não mais que espetá-
culos sejam dados ao maior número de pessoas, mas que indiví-
duos sejam dados como que em espetáculo a um olhar vigilan-
te. E (a partir de Giulius) lembra a metáfora do "olho" com que
então se simbolizava o imperador: "O imperador é o olho uni-
versal vo.ltado sobre a sociedade em toda a sua extensão. Olho
auxiliado por uma série de olhares dispostos em forma de pirâ-
mide a partir do olho imperial e que vigiam toda a sociedade" I I
Mediante uma vigilância que é "ao mesmo tempo global e
individualizante", em que o "anteparo da escuridão" é substi-
tuído por uma "visibilidade" isolante", vai-se constituindo en-

8. FOUCAULT, M., Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975,218.


9. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 85.
10. FOUCAULT, M., Surveilleret punir, 218.
11. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 86.

64 I Foucault. Simplesmente
tão um tipo de poder que se exerce "por transparências", uma
dominação que se faz como por "iluminação"12.
Foucault lembra que se o projeto de Bentham fora inspira-
do na arquitetura já existente da Escola Militar de Paris (1751),
contudo, a designação que lhe deu - Panopticon - encerra
uma generalização altamente significativa. Com efeito, o proje-
to e seu nome não carregam apenas a idéia de uma técnica
específica destinada a "resolver um problema específico, como
O da prisão, o da escola ou o dos hospitais", mas sustentam
"um princípio de conjunto,,13 capaz de inaugurar o que viria a
ser o desenvolvimento de toda uma nova forma de poder. As-
sim, não é por acaso que o próprio Bentham refere-se à sua
invenção como "um ovo de Colombo", e que Giulius vê nela
"um acontecimento 'na história do espírito humano",14.
Entendido assim. como "princípio de conjunto", o traço
básico do panoptismo articula-se com transformações funda-
mentais e gerais na ordem do poder. Basta apontar, por exem-
plo, as conseqüências vantajosas que acarreta para os custos
políticos e econômicos do poder. Do pOnto de vista propria-
mente político, possibilita uma crítica ao funcionamento do
poder monárquico, que, exercendo-se com violência aparente e
garantindo Sua continuidade por meio de punições espetacula-
res para efeitos de exemplo, acaba por se tornar "um poder
muito oneroso e com poucos resultados"15. Economicamente,
o controle contínuo é de uma eficácia pouco dispendiosa, efe-
tivando-se por meio da organização de uma cadeia de olhares
vigilantes que, finalmente, cada indivíduo "acabará por interio-
rizar a ponto de observar a si mesmo", exercendo a vigilância

12. Cf. expressões usadas pelo autor em "O olho do poder", in Microfi:
sica do poder, 210, 216-217.
13. Ibid., 217.
14. Ibid., 209, 211, 218. Ver também: Surveiller et punir, 218, e A verdade
e as formas jurídicas, 85.
15. FOUCAULT, M., "O olho do poder", in Microfísica do poder, 217.

o lugar das instituições na sociedade diSCiplinar I 65


"sobre e contra si mesmo"; portanto, mais que uma técnica
particular, é uma "fórmula maravilhosa: um poder contínuo e
de custo afinal de contas irrisório"!6.
Eis também por que, entendida assim a visibilidade como
princípio geral, esse sistema basicamente "ótico"!7 desdobrar-
se-á no aperfeiçoamento, na multiplicação e na diversificação
de instrumentos de vigilância (até os mais sofisticados), de modo
a que as instituições disciplinares cumpram, efetivamente,
diversificadas funções que respondem à instalação e ao desen-
volvimento da sociedade disciplinar.

Funçóes
Controle do tempo

A vigilância é, nas sociedades modernas, uma maneira de


dispor do tempo do indivíduo, de modo a atender, sobretudo,
às necessidades da industrialização. Controlar o tempo é trans-
formar o tempo do trabalho em mercadoria trocada por salá-
rio, mas é mais ainda: é transformar todo o tempo dos homens
em tempo de trabalho. Controlados são os tempos de festa, de
prazer, de ociosidade, de descanso. Foucault mostra que certas
técnicas, aparentemente criadas para a proteção do trabalha-
dor, na verdade têm a eficácia de controlar todo o tempo de sua
vida. Um exemplo disso é a concessão de aumentos salariais e
de fundos de economia, que, contudo, não podem ser usados
pelos trabalhadores "no momento em que desejarem, para fa-
zer greve ou para festejar,,18.
De maneiras mais abruptas ou mais sutis, e com diferentes
técnicas, pode-se dizer que o.controle do tempo é exercido conti-
nuamente não só nas fábricas, mas também nas escolas, nas

16. Ibid., 218. Ver, a este respeito, Surveiller et punir, 219-220.


17. Cf. FOUCAULT, M., "O olho do poder", in Microfísica do poder, 211.
18. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 94-95.

66 I Foucault. Simplesmente
prisões, nos orfanatos, nos hospitais, nas casas de correção etc.
como um dos nós que amarram essa rede de instituições.

Controle dos corpos

Aparentemente, cada uma das instituições disciplinares é


destinada a uma função específica: "As fábricas feitas para
produzir, os hospitais, psiquiátricos ou não, para curar, as es-
colas para ensinar, as prisões para punir"!9. De fato, porém, é
função de todas disciplinar a existência inteira do indivíduo
pela disciplinarização do corpo. Lembremos, com Foucault, a
título de exemplo, que, nas fábricas do começo do século XIX,
questões como a imoralidade e a devassidão eram assunto de
preocupação dos patrões; assim também, nos hospitais, cuja
função específica é a cura, a proibição de atividades sexuais não
se reduz a motivos de higiene e saúde; as disciplinas escolares,
igualmente, excedem a função estrita do ensino. Foucault faz
ver que, se no poder monárquico o "corpo do rei" era não uma
"metáfora, mas uma realidade política", já que "sua presença
física era necessária ao funcionamento da monarquia", na so-
ciedade moderna o importante é o "corpo da sociedade", atin-
gido por meio dos corpos individuais; ele será "protegido", subs-
tituindo-se "a eliminação pelo suplício" por "métodos de assep-
sia: a criminologia, a eugenia, a exclusão dos 'degenerados"'20.
Portanto, não mais o corpo supliciado, mas o corpo controla-
do como "o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que
deve adquirir aptidões, receber um certo número de quali-
dades, qualificar-se como corpo capaz de trabalhar"Z!. Assim,
a disciplina corporal é minuciosa, desenvolvendo-se de formas
diversificadas mas de algum modo semelhantes e intercruzadas
tanto na pedagogia escolar como na organização militar, no

19. lbid., 95.


20. FOUCAULT, M., "Poder-Corpo", in Microfisica do poder, 145.
21. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurzdicas, 96.

o lugar das instituições na SOCiedade disciplinar I 67

1.
espaço hospitalar como nas prisões, de modo a "cobrir o corpo
social por inteiro,,22.
Foucaulr indica inclusive que foram as disciplinas corporais
(particularmente as militares e escolares) que tornaram possível
a elaboração de um "saber fisiológico, orgânico", um "saber so-
bre o corpo,,23. Mas indicar que o controle dos corpos engendra
saber já é referir-se ao caráter polimorfo do poder disciplinar.

Instalação de um poder polimorfo


O tipo de poder instalado por essas instituições é "poli-
morfo" e, por isso, "polivalente"24, Isto é, ele se desdobra em
múltiplos caracteres que, esquematicamente, podemos desig-
nar de econômicos, políticos, judiciários e epistemológicos.
O caráter econômico do poder disciplinar é evidente, por
exemplo, no caso das fábricas; pode também aparecer de for-
mas menos diretas, como no pagamento feito a hospitais. Mas
ao caráter econômico se atrela o político: "As pessoas que diri-
gem estas instituições se delegam o direito de dar ordens, de
estabelecer regulamentos, de tomar medidas, de expulsar indi-
víduos, de aceitar outros etc.".25 Ambos, o econômico e o polí-
tico, articulam-se a um caráter judiciário: "nestas instituições,
não apenas se dão ordens, se tomam decisões, não somente se
garantem funções como a produção, a aprendizagem etc., mas
também se tem o direito de punir e compensar, se tem o poder
de fazer comparecer diante de instâncias de julgamento"26. É
claro que o caráter judiciário é mais evidente no caso das pri-
sões, onde, depois de julgado por um tribunal, o indivíduo
continua tendo seu comportamento constantemente julgado

22. FOUCAULT, M., Surveiller et punir; 141. Ver, a este respeito, particular-
mente todo o capítulo desse livro intitulado "Les corps dociles".
23. FOUCAULT, M., "Poder-Corpo", in Microfoica do poder, 148-149.
24. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 96.
25. Ibid., 96.
26. Ibid., 97.

68 I Faucault, simplesmente
pelos guardas, pelo diretor d3: prisão etc. Mas também é curio-
so, a esse respeito, o exemplo particular do sistema escolar,
quando Foucault faz ver quanto ele é "inteiramente baseado
em uma espécie de poder judiciário", explicitando que nele "a
todo momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica,
se diz quem é o melhor, quem é o pior,,27.
Poder econômico, poder político, poder judiciário, o poder
instalado nas instituições disciplinares é também epistemológi-
co, isto é, produz saberes. E os produz duplamente: quer extra-
indo saber dos indivíduos, quer elaborando saber sobre os indiví-
duos 28 . Um exemplo de saber extraído dos indivíduos ocorre em
instituições como fábricas, onde o saber do operário a respeito
de seu próprio trabalho, nascido de sua prática, e constante-
mente submetido à vigilância e ao registro, fornece elementos
para gerar saber acerca da produção. Por sua vez, saberes sobre o
indivíduo nascem das observações, das classificações, das ano-
tações a respeito do doente, do criminoso, da criança etc.
Em suma, e conseqüentemente, as instituições disciplina-
res fazem funcionar um poder que, polimorfo e polivalente,
não é essencialmente localizável em um pólo centralizado e
personificado, mas é principalmente difuso, espalhado, minu-
cioso, capilar.

***
Para concluir, o acréscimo de uma observação. É de se no-
tar que, nas análises das instituições disciplinares, muitas são
as passagens em que Foucault se detém particularmente nas
prisões. As conferências sobre A verdade e as formas jurídicas, como

27. Ibid., 97. Ver, também, o estudo destes caracteres no capítulo intitu-
lado "Le paroptisme", de Surveilleret punir; e, em Microfisica do poder; os artigos
"Soberania e disciplina" e "O olho do poder". Neste último (211-212), o
realce da importância de um estudo sobre "a arquitetura institucional" ("da
sala de aula ou da organização hospitalar"), ou a elaboração de uma "histó-
ria dos espaços" que seria também uma "história dos poderes".
28. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 97.

o !ugar das instituições na sociedade disciplinar ! 69

1
já dissemos, tomam por base as práticas judiciárias, cuja histó-
ria, por certo, se vincula mais diretamente às prisões. O livro
Vigiar e punir, que focaliza explicitamente o estudo de institui-
ções, traz como subtítulo O nascimento das prisões. É possível que
essa tônica ou esse realce se fundamente em dois aspectos que,
ambiguamente, se completam.
Por um lado, há uma certa singularidade da prisão. É nela,
diz Foucault, que o "Panopticon" encontra "seu lugar privile-
giado de realização", é nela que "a utopia de Bentham pôde,
num só lance, tomar uma forma material,,29. Tem, assim, a par-
ticularidade de concretizar o "panoptismo" da forma mais pal-
pável. Além disso, e talvez por isso, entre as instituições disci-
plinares, a prisão guarda certas peculiaridades: basta lembrar
que, afinal, não faz parte da vida rotineira das pessoas e, atin-
gindo, efetivamente, um número reduzido de indivíduos, tem
uma marca "local e marginal,,30. E é assim, contudo, com esta
marca, que a prisão desperta interesse ou curiosidade na maio-
ria das pessoas. Ora, segundo Foucault, isso talvez se explique
precisamente porque, entre as diversas instituições, é ela a úni-
ca "onde o poder pode se manifestar em estado puro, em suas
dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral".
Ou seja: "O que é fascinante nas prisões é que nelas o poder
não se esconde, não se mascara cinicamente, se mostra como
tirania levada aos ínfimos detalhes, e ao mesmo tempo é puro,
é inteiramente 'justificado m31 .
Por outro lado, porém, a prisão também aparece como sendo
não mais que a forma "concentrada", "exemplar" e "simbólica"
de todas as outras instituições32 . Afinal, todas as outras institui-
ções realizam uma espécie ~e difusão discreta da prisão 33.

29. FOUCAULT, M., Surveilleret punir, 252.


30. FOUCAULT, M., "Os intelectuais e o poder", in Microfoica do poder, 72.
31. Ibid., 73.
32. Cf. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 99.
33. Ver, particularmente, a este respeito, Surveiller et punir, 308-310.

70 I Foucault. simplesmente
Assim, ao meSmo tempo em que é "diferente" das outras
instituições, todas lhe são semelhantes. Por isso, de um lado,
ela "inocenta" as demais, já que, afinal, só ela é prisão. (E o
discurso que ela então emite seria: "A melhor prova de que
vocês não estão na prisão é que eu existo como instituição par-
ticular, separada das outras ... ".) Mas, por outro, ela "se inocen-
ta" de ser prisão, pois, afinal, é apenas a forma mais transpa-
rente de todas as outras. (E o discurso que ela então emite seria:
"Eu faço unicamente aquilo que lhes fazem diariamente na fá-
brica, na escola etc.".)34
Essa ambigüidade da prisão explica, para Foucault, "seu
incrível sucesso, seu caráter quase evidente, a facilidade com
que ela foi aceita... "3S, explica "sua extrema solidez"36. E pode-
mos certamente completar: explica também, como que circular
e reciprocamente, a aceitação cotidiana de sua diluição mais
sutil por toda a rede das chamadas instituições disciplinares.

34. Cf. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas) 99.


35. Ibid., 100.
36. FOUCAULT, M., Surveiller et punir, 312.

o lugar das instituições na SOciedade disciplinar I 71

.....
VI
DE PRÁTICAS SOCIAIS À
PRODUÇÃO DE SABERES*

Trarar-se-á aqui de verdade e poder, questão repetidas vezes indi-


cada como temática nuclear dos escritos de Michel Foucault. À
primeira vista, esta questão parece sugerir certa repartição entre
dois âmbitos: o dos saberes (onde se situaria a ocupação com a
verdade) e o dos procedimentos sociais (onde se reconheceria o
lugar do poder). Assim, por um lado, pensar um espaço comum
que abrigasse o encontro entre ambos não é sempre habitual.
Por outro, um pensamento sobre esse encontro parece apontar,
com maior freqüência, para uma direção de relações que vai,
prioritariamente, dos saberes às práticas sociais, estas como que
guiadas ou iluminadas por aqueles. É propósito desta exposi-
ção perguntar por esse encontro e problematizar essa direção.
Para isso, buscaremos na leitura de Michel Foucault a sele-
ção de algumas passagens capazes de estimular o debate sobre
o assunto e propiciar alguma reflexão acerca do trânsito entre o
campo das práticas sociais e o dos saberes.

* Este texto reproduz, com pequenas alterações, palestra proferida em


Fórum de Debates realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
em abril de 1993. Foi publicado em O uno e o múltiplo nas relações entre as áreas
do saber (MARTINELLI, M. L., RODRIGUES, M. L., MUCHAIL, S. T., orgs.), São
Paulo, Educ, 1995.

de prátícas sociaís à produção de saberes ! 73

....
Pode-se dizer, de modo muito genérico, que os escritos de
Foucault investigam a verdade e seus vínculos com o poder.
Mas pode-se igualmente dizer que não é da verdade e do poder
que eles tratam. É que a verdade não é entendida enquanto
identidade de uma essência una e sempre a mesma, mas en-
quanto produzida no decurso da história, constituindo-se na
formação de saberes reconhecidos como verdadeiros, portan-
to historicamente múltiplos e diversificados; numa palavra,
trata-se de verdades em seus diferentes modos de produção
em diferentes sociedades. Do mesmo modo, não se trata do
poder enquanto dominação central e unitária, mas de poderes
ou de múltiplos modos de exercício do poder que permeiam
as diferentes sociedades em diferentes momentos históricos.
Assim, dizer que os escritos de Foucault concernem à verdade
e ao poder significa que eles realizam investigações históricas
que buscam descrever, em períodos determinados da história
da cultura ocidental, modos de produção de saberes reconhe-
cidos como verdadeiros e sua articulação com modos de exer-
cícios do poder.
Essa investigação histórica - mostra-nos Foucault - pode
ser elaborada de modo direto e interno, isto é, percorrendo, por
dentro, a própria trajetória da constituição dos saberes (é esse,
por exemplo, o procedimento empregado em As palavras e as
coisas, de 1966). Mas pode-se também realizá-la desde uma pers-
pectiva externa aos saberes, isto é, retraçando não o seu pró-
prio desenvolvimento, mas tomando como ponto de partida
determinadas práticas sociais que, historicamente, engendra-
ram saberes considerados verdadeiros. É esse o ângulo que aqui
nos interessa, ou seja, verific~r como, no decurso da história,
certos procedimentos, certas práticas não-discursivas de esta-
belecimento da verdade puderam tornar-se matrizes ou mode-
los para a produção discursiva da verdade. Entre essas práticas,
Foucault dedica especial destaque às chamadas práticas jurídi-
cas ou judiciárias. Para o propósito desta exposição retomare-

74 ! Foucault, simplesmente
mos, a título de caso ilustrativo, a reflexão foucaultiana a res-
peito de tais práticas l .
Numa definição introdurória e geral, entende-se por práti-
cas jurídicas ou judiciárias "o modo pelo qual os homens po-
diam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a
maneira como se impôs a determinados indivíduos a repara-
ção de algumas de suas ações e a punição de outras,,2. A des-
crição histórica empreendida por Foucault pretende então mos-
trar em que sentido modos práticos de estabelecimento da ver-
dade, de natureza jurídica, puderam vir a constituir como que
modelos de produção da verdade no plano discursivo, isto é, no
plano dos saberes (ciências, filosofia etc.)3. O percurso da histó-
ria que Foucault refaz começa na Grécia antiga e atravessa a
Idade Média, para centrar-se mais detidamente no período que
vai desde os fins do século XVIII e início do século XIX até
nossa contemporaneidade. Essa história pode ser lida e organi-
zada em torno de três procedimentos ou práticas sociais de
caráter jurídico: a prova, o inquérito, o exame.

Prova e inQuérito
A prova é, na Grécia antiga, o procedimento judicial mais
arcaico, sobre o qual veio a prevalecer depois (a partir do sécu-
lo V a.c. aproximadamente) a prática do inquérito4 • Pela prova,

1. Servir-nos-á de roteiro, basicamente, o textO de cinco conferências


pronunciadas por M. Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, reunidas sob o título A verdade e as formas jurídicas, trad. de Roberto
Machado e Eduardo]. Morais, em Cadernos PUC-RJ, Série Letras e Artes, 06/
74, n° 16, Rio de Janeiro, 1974. Posteriormente, este textO foi republicado no
Rio de Janeiro pela Nau Editora, em 1999. As referências das passagens aqui
reproduzidas remetem àquela primeira edição.
2. FOUCAULT, M., A verdade e as formas jurídicas, 8.
3. Ibid., 20-21.
4. Segundo Foucault, duas formas de prática jurídica marcaram a socieda-
de grega antiga. Embora o âmbito desta exposição não comporte reconsticuí-
las, vale assinalar a descrição dos elementos da prova e das características do

de práticas sociais à produção de saberes I 7S

...
a verdade é judiciariamente estabelecida sem o recurso a teste-
munhas ou a sentenças: os adversários em litígio são literal-
mente "postos à prova", numa espécie de jogo, de duelo ou de
desafio, determinando-se a verdade pelo lado do vencedor do
risco; qualquer instância como um júri ou um juiz não tem
competência de decisão sobre a verdade senão apenas sobre o
correto cumprimento das regras do jogo. No inquérito) ao con-
trário, a verdade é determinada por quem "viu e enuncia"s, ou
seja, é baseada em testemunhos que têm, inclusive, o direito de
opor-se ao poder dos governantes. Segundo Foucault, foi a
prática do inquérito que constituiu modelo para formações cul-
turais então emergentes na Grécia antiga, tais como: "sistemas
racionais" (como a filosofia), a "arte de persuadir" (como a
retórica), conhecimentos empíricos, baseados que são em
testemunhos (como os dos historiadores, dos botânicos, dos
geógrafos etc.)6.
Na Idade Média, os dois modelos reaparecem. Inicialmente
(entre os séculos V e XII aproximadamente), prevalece o pri-
meiro, o da prova, cujos traços principais podem ser assim reu-
nidos: tratava-se sempre de uma ação "de estrutura binária"7,
isto é, em que indivíduos, grupos ou famílias eram diretamente
postos em disputa, sem intervenção de qualquer terceiro ele-
mento que representasse a autoridade ou a coletividade; a ver-
dade se confundia com a vitória do mais forte, o direito cons-
tituindo-se não numa correlação entre justiça e paz mas num
prolongamento ritualizado da guerra. Essa era a prática ade-
quada ao perfil de uma sociedade de tipo marcadamente feu-
dal em que a circulação dos bens era assegurada menos pelo
comércio que pela herança, pelos testamentos e, sobretudo, pelos

inquérito que Foucault, na segunda daquelas cinco conferências, reconhece


em sua instigante leitura de Édipo-Rei.
S. Ibid., 41.
6. Ibid., 42.
7. Ibid., 47.

76 I Foucault, Simplesmente
mecanismos bélicos (a rapina, a ocupação de uma terra, de um
castelo etc.)'.
É na segunda metade da Idade Média (a partir de fins do
século XII e no decurso do século XIII) que o sistema da prova
tende a desaparecer, cedendo lugar ao que Foucault chama de
"uma espécie de segundo nascimento do inquérito", este agora
de "dimensões extraordinárias", já que "seu destino será prati-
camente coextensivo ao próprio destino da cultura européia ou
ocidental'" e, de certo modo, "para a história do mundo intei-
ro, na medida em que a Europa impôs violentamente seu jugo
a toda a superfície da terra"IO. Usado inicialmente nas esferas
eclesiásticas e nas gestões administrativas, o inquérito é introdu-
zido no âmbito das práticas jurídicas e dali se generalizará como
modelo de produção de verdade e de outras práticas. Eis, no
âmbito jurídico, os traços principais que desenham seu perfil:
a resolução das questões de litígio não se dá diretamente entre
os oponentes, mas se impõe "de fora" e "do alto" por um poder
simultaneamente judiciário e político; aparece um personagem
novo, o "procurador" do rei, representante do soberano, res-
ponsável por "dublar" a vítima, uma vez que o próprio rei é
lesado porque são descumpridas suas leis; surge a noção de
crime como infração, porque um dano não configura mais ques-
tão apenas entre indivíduos, grupos ou famílias, mas "também
uma ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como

8. Ibid., 49. Eis alguns dos exemplos levantados por Foucault (cf 45-47)
de provas durante a Idade Média. Prova verbal: o acusado deveria responder à
acusação pronunciando certas fórmulas; pronunciá-las incorretamente (um
erro gramatical, uma troca de palavras) era prova de culpa. Prova corporal: o
acusado deveria andar sobre ferro em brasa e se, dois dias .depois, ainda
apresentasse cicatrizes, era considerado culpado. Ou ainda: amarrava-se a
mão direita ao pé esquerdo do acusado e se o atirava na água; se não se
afogasse era porque nem a água o recebera e, portanto, era culpado; se se
afogasse, a água o recebera, e o acusado ganhava o processo.
9. Ibid., 42-43.
10. Ibid., 49.

de práticas sociais à produção de saberes I 77

.1
representante do Estado"; por isso mesmo é da competência do
soberano o direito de impor penas e exigir reparações (freqüen-
temente na forma de "confiscos" que enriquecerão as monar-
quias)11. É o funcionamento desse sistema que requer a neces-
sária argüição de testemunhas, a busca da reconstituição dos
fatos, enfim, a prática do inquérito como instrumento capaz de
substituir o flagrante delito, reatualizando o crime quando o
criminoso não é surpreendido na atualidade de sua falta.
Ora, recolher testemunhos, reconstituir situações, reunir
dados são procedimentos que se estenderão para outras práti-
cas e, sobretudo, para a constituição da verdade na ordem do
saber. Assim, nesse quadro, desenvolver-se-ão, principalmente,
as ciências empíricas ou da natureza, em domínios "como o da
geografia, da astronomia, do conhecimento de climas etc.", ou
ainda da medicina, da botânica e da zoologia 12 •
Enquanto o sistema da prova desaparece quase por com-
pleto, dele restando talvez a prática da tortura (e mesmo esta
"já mesclada com a preocupação de obter a confissão, prova de
verificação"13), o modelo do inquérito, ao contrário, permanece e
se estende até nossos dias, constituindo ainda hoje a base do
sistema jurídico de nossa sociedade. Porém, com a introdução
de uma importante diferença: a partir dos fins do século XVIII
e no decurso do século XIX, o modelo do inquérito é invadido
por outro, este inteiramente novo - o exame.

Inquérito e exame

No início do período que passamos a investigar, transfor-


mações fundamentais ocorreram: novas formas de práticas ju-
diciárias, novas formas de estabelecimento da verdade, ou me-
lhor, de saberes considerados verdadeiros, novas formas de

11. Ibid., 51-52.


12. Ibid., 59.
13. Ibid., 59.

78 I Foucault. simplesmente
exercício do poder. É nesse quadro novo que se instaura o que
Foucault chama de "sociedade disciplinar", que é ainda a nossa.
Do ponto de vista judiciário, as transformações acontece-
ram em dois níveis, com resultados diferentes. No nível teórico
realizam-se, durante o século XVIII (principalmente com Becca-
ria, Bentham e Brissot), reelaborações do sistema penal cujos
princípios básicos podem ser assim reunidos: primeiro, a infra-
ção não diz respeito à lei natural, religiosa ou moral e só se
configura como ruptura com a lei civil, que precisa, portanto,
estar explicitamente formulada; segundo, as leis civis, formula-
das pelo poder político, concernem apenas à sociedade civil, ou
melhor, ao que é socialmente útil; terceiro, o crime, não sendo
falta moral ou religiosa, define-se como "dano social" e o crimi-
noso como "inimigo interno" a ser, de algum modo, excluído
da sociedade; quarto, não compete à lei, por conseguinte, a
prescrição de "vingança" ou a "redenção de um pecado"14, mas
a reparação do dano social; quinto, nessa direção, as punições
serão de quatro tipos possíveis, a saber, a deportação, a humi-
lhação pública, o trabalho forçado e a pena de talião.
No nível prático, porém, as sociedades industriais nascen-
tes vão adotar um procedimento penal que não estava previsto
pelos teóricos da lei e que vai estabelecer-se, portanto, "quase
sem justificativa teórica": trata-se do aprisionamento, tal como
se instala a partir do século XIX, pois, como faz notar Fou-
cault, a prisão, que "não era uma pena de direito no sistema
penal dos séculos XVII e XVIII", é "que vai se tornar a gran-
de punição do século XIX,,15. Na medida em que se generaliza a
prática do aprisionamento alteram-se radicalmente os princí-
pios da legislação penal, cujos traços novos podem ser assim
reunidos: primeiro, as leis tendem agora a ajustar-se menos à
utilidade social que ao indivíduo (o recurso cada vez maior ao

14. Ibid., 64-65.


15. Ibid., 78.

de práticas sociais à produção de saberes I 79

1
que chamamos de "circunstâncias atenuantes", permitindo
modificações na aplicação estrita da lei, em função de situações
individuais, é um exemplo desta mudança); segundo e correla-
tamente, elas buscam menos o "castigo" que o ajustamento do
indivíduo à sociedade, isto é, "o controle e a reforma psicológi-
ca e moral das atitudes e comportamentos"; terceiro, por isso
mesmo, enquanto a punição propriamente dita depende da exis-
tência de lei explícita e concerne à ocorrência efetiva de uma
infração, o controle aringe não apenas o crime já cometido,
mas a possibilidade de ser cometido, enfatizando então a no-
ção nova de "periculosidade". De ação assim ampliada, esse
controle não pode ser assumido apenas pelo poder judiciário.
Ele requererá a conjugação de outros poderes, "poderes late-
rais, à margem da justiça". São eles, basicamente, a polícia, para
a função de vigilância, e "toda uma rede de instituições" ("psi-
cológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas"),
para funções de correção 16 .
Mais, a esse âmbito de ação do controle já não basta o
inquérito. Ele se calca em outro procedimento. Foucault chama-
o de exame. Enquanto o inquérito é um procedimento para se
saber o que havia ocorrido, isto é, "reatualizar um aconteci-
mento passado através de testemunhos,,17, o exame é vigilância
sempre atual e ininterrupta, importando saber não tanto o que
"se passou", mas quais as virtualidades do indivíduo e como ele
presentemente se conduz. De modo genérico, pode-se dizer que,
enquanto o modelo do inquérito é correlato de uma sociedade
comandada pela soberania do monarca, a disciplina é correlata
de uma sociedade comandada pela democracia burguesa.
Radicalmente heterogên~os, os dois sistemas mantêm, con-
tudo, certa articulação na sociedade contemporânea. Pode-se
dizer que na sociedade caracterizada pela disciplina não se dá o

16. Ibid., 67-68.


17. Ibid., 69.

80 I Foucau!t. Simplesmente
desaparecimento completo do modelo inquisitorial. Dele a dis-
ciplina faz uso e é ele que permanece no interior do sistema
jurídico cujo discurso calca-se ainda no inquérito e organiza-se
em torno das relaçoes de soberania (do tipo súdito-rei). Em
suma, nas sociedades modernas encontra-se, por um lado, um
saber do direito articulado na esfera do inquérito e, por outro,
mecanismos ramificados de controles disciplinares, imbrican-
do-se concomitante e complementarmente.
Mas, se o modelo da soberania (e, portanto, o do inquérito)
permanece incorporado ao saber jurídico, isso não significa que
o modelo da disciplina (e, portanto, sob o do exame) não se
tenham constituído outros saberes. A sociedade disciplinar, con-
trolando o tempo e o espaço dos indivíduos, examinando-os,
avaliando-os, classificando-os e registrando continuamente suas
condutas, constrói as condições para um novo modo de produ-
ção da verdade. É assim que, enquanto a prática do inquérito foi
modelo para o desenvolvimento das ciências da natureza, o
exame, ou a disciplina, abre espaço para o surgimento das cha-
madas ciências do homem.
O estabelecimento da verdade pela matriz do exame não se
faz mais pela reconstituição de fatos nem na ordem dos teste-
munhos, mas pela objetivação do indivíduo e na ordem do que
é certo ou errado, permitido ou interditado, correto ou incorre-
to, em suma, "normal" ou não. No mesmo quadro, simultâ-
neos aos saberes disciplinares, instalam-se seus correlatos no
plano das instituições sociais: são as instituições disciplinares
- a prisão, a fábrica, a escola, o asilo, os hospitais psiquiátricos,
as casas de correção -, cuja finalidade não é propriamente a
"exclusão" do indivíduo mediante sua "reclusão", mas, ao con-
trário, precisamente sua "inclusão" como indivíduo, isto é, seu
ajustamento, sua correção, seu adestramento. São saberes e
instituições que não se atrelam ao que é do estrito âmbito da
lei, mas à conduta do indivíduo no âmbito da norma. Foucault
faz ver, por exemplo, que, enquanto numa sociedade de tipo

de práticas sociais à produção de saberes I 81

j
inquisitorial "a individualização é máxima do lado em que se
exerce a soberania e nas regiões superiores do poder", numa
sociedade de tipo disciplinar passa-se o contrário, isto é, a indi-
vidualização é "descendente", vale dizer, " à medida que o po-
der se torna mais anônimo e funcional, aqueles sobre quem ele
se exerce tendem a ser fortemente individualizados'1l8.
Introduz-se assim, dentro dos quadros da sociedade discipli-
nar, um modo de exercício do poder do qual uma descrição
meramente negativa, espetacular e repressiva não pode dar con-
ta. É um poder sutil e produtivo: produz comportamentos e
gestos; cria hábitos; não exclui, normaliza.

•••
Levantemos algumas reflexões que a reconstituição destas
passagens pode, mais de perto, nos suscitar. Sabemos que as
análises foucaultianas não pretendem, de modo algum, consti-
tuir uma espécie de proposta teórica geral. Elas são pontuais,
circunscritas, localizadas. Pode-se, pois, perguntar pela situa-
ção particular da sociedade brasileira atual no quadro daquela
descrição da sociedade contemporânea ocidental. De um pon-
to de vista amplo, parece-nos que o perfil de nossa sociedade
encontra-se, também ele, ali desenhado; ao mesmo tempo, po-
rém, é possível interrogar se ele se ajusta inteiramente ao qua-
dro descrito. Estimulando esta pergunta, apontemos alguns
indícios para a reflexão:
• a industrialização em escala incipiente, desigual e regio-
nalizada, bem como a preservação das grandes proprie-
dades de terra são indícios, talvez, de proximidade ainda
com as condições qu~ caracterizam o modelo inquisitorial
mais do que o do controle;
• a manipulação pela tortura e pela violência sem disfar-
ces, assim como o uso de mecanismos explícitos de cen-

18. FOUCAULT, M., Surveilleret punir, Paris, Gallimard, 1975, 194-195.

82 I Foucault. simplesmente
sura (da imprensa, das artes etc.) na história ainda recen-
te de nossa sociedade são indícios, talvez, de proximida-
de ainda com o modo do poder espetacular e repressivo
que caracteriza menos "a disciplina" do que a prova ou o
inquérito;
• um sistema de governo no qual foi possível ocorrer o uso
ainda recente do confisco e em que a tônica da indivi-
dualização recai tantas vezes sobre a figura expoente do
governante traz indícios, talvez, de proximidade ainda
com as relações súdito-rei que caracterizam a sociedade
comandada pela soberania.

Indícios como estes podem sugerir uma curiosa situação:


enquanto a descrição foucaultiana já veicula, polemicamente, a
crítica das sociedades moldadas na disciplina e no controle, é
possível que nOSSa sociedade, pelo menos sob alguns aspectos
ou em algumas regiões, ainda esteja projetando - como meta
de desenvolvimento ou como horizonte de esperança - sua
realização mais completa como sociedade disciplinar.
Finalmente, numa última consideração, retomemos o con-
texto em que situamos inicialmente esta exposição. Depois de
termos feito a apresentação de uma espécie de caso ilustrativo,
alarguemos o alcance do exemplo e indaguemos, mais ampla-
mente, pela possibilidade de que, à diferença do que parece
habitual, as fronteiras entre procedimentos e discursos, entre
práticas sociais e saberes sejam menos distantes e o trânsito
bem mais freqüente.

de práticas sociais à produção de saberes I 83


VII1
FOUCAULT E A LEITURA
DOS FILÓSOFOS'

Meus livros não são tratados de filosofia nem estudos históricos;


no máximo, são fragmentos filosóficos em canteiros históricos.
M. FOUCAULT) Dits et écrits) IV, 21.

De modo geral, os filósofos reúnem sua atividade à do


historiador quando o que os ocupa são "canteiros históricos"
de obras filosóficas, isto é, quando se trata da leitura de textos
filosóficos na elaboração de histórias da filosofia. Nesses casos,
indagações sobre a conjugação ou a disjunção entre caráter
histórico e qualidade filosófica são freqüentes. Questões seme-
lhantes podem ter lugar relativamente aos escritos de Michel
Foucault. Porém, com particularidades de uma situação muito
diversa. E de uma diversidade pelo menos tríplice.
Primeiro, como se sabe, não são as filosofias, mas outros
e variados os "objetos" e os "domínios" dos quais se ocupam
os estudos históricos que Foucault realiza (a loucura, a doen-
ça, a medicina, as chamadas ciências humanas, a delinqüên-

* Este texto reproduz, com algumas modificações, palestra proferida


por ocasião do Colóquio Michel Foucault, na Universidade do Rio deJaneiro,
em novembro de 1999. Publicado em Retratos de Foucault (PORTOC.ARRERO, V.,
CASTELO BRANCO, G., orgs.), Rio de Janeiro, Nau Editora, 2000.

Foucault e a leitura dos filósofos I 85

.1
cia, as práticas judiciárias, o direito, a sexualidade, a literatu-
ra, as artes ... ).
Segundo, variados são também os planos das abordagens.
Ora mantêm-se na dimensão estrita dos discursos, e isso signi-
fica no âmbito das epistémes ou dos espaços que demarcam as
possibilidades de configurações dos saberes historicamente qua-
lificados, permanecendo, portanto, no interior das articulações
interdiscursivas. Ora se movem no trânsito entre a dimensão
discursiva e a extradiscursiva, e isso significa no âmbito dos
chamados dispositivos estratégicos, agregando, portanto, ao cam-
po epistêmico práticas e instituições sociais.
Terceiro, e mais genericamente, há diversidade porque Fou-
cault realiza um peculiar cruzamento entre a atividade do filó-
sofo e a do historiador na medida em que, diferentemente da
prática filosófica de pensar a história, pensa filosoficamente
ao praticar a investigação histórica. Como escreveu um historia-
dor, "seu pensamento se situa sistematicamente nas linhas
fronteiriças, nos limites, nos interstícios entre os gêneros"'.
Entretanto, certa leitura das filosofias - se se quiser, em
sentido largo, certa história das filosofias - marca presen-
ça nos trabalhos de Foucault. Pode ser reconhecida de duas
maneiras, mas em proporções desiguais: convencionemos dizer
que diretamente as filosofias comparecem com menor freqüên-
cia, indiretamente, quase sempre.

•••
Não muitos escritos se ocupam diretamente da abordagem
de filósofos. Para mencionar alguns: um estudo introdutório
sobre Rousseau (de 1962)2; a tese complementar de dourorado

1. DOSSE) F., Histoire du structuralisme. 11 - Le chant du rygne, 1967 à nos


jours, Paris, Éditions La Découverte, 1992, 305. Tradução brasileira de Álvaro
Cabral, São Paulo, Ensaio, 1994,274.
2. Cf. "Introduction" a Rousseau, Rousseau)juge deJean-Jacques. Dialogues,
incluído em Dits etécrits, I. Paris, Gallimard, 1994, 172-188.

86 I Foucault. Simplesmente

.
sobre Kant (de 1961)3; a releitura (de 1971) das Meditações de
Descartes4 (em réplica tardia à crítica de Derrida); o ensaio so-
bre Nierzsche (de 1971)5; o esrudo mais recente sobre Kant (de
1984t De modo geral, trata-se de cursos, ensaios "avulsos",
textos curtos e, em todo caso, em número reduzido.
Todavia, a presença assídua das filosofias encontra-se nos
escritos volumosos e de grande porre onde têm lugar, por as-
sim dizer, indireto, atreladas que estão ao assunto central da
respectiva investigação. Para mencionar algumas siruações par-
ticularmente explícitas: a leitura comparativa entre Montaigne
e Descartes, no capítulo II ("O grande enclausuramento") da
primeira parte de História da loucura; ou as retomadas de Platão
nos volumes II e III (O uso dos prazeres e O cuidado de si) de Histo-
ria da sexualidade. Em todo caso, com diferentes intensidades e
extensões, as filosofias são protagonistas dos grandes livros de
história (História da loucura) Nascimento da clínica, As palavras e as
coisas, Vigiar e punir, História da sexualidade).
Para o primeiro modo de presença, tomemos uma análise
textual que nos parece exemplar. Trata-se da réplica à crítica que
Derrida endereçara à leitura foucaultiana de Descartes em História
da loucura? Com efeito, no texto "Mon corps, ce papier, ce feu",

3. Comporta tradução e introdução a Kant, Antropologia do ponto de vista


pragmático. O texto de Foucault, datilografado, está incluído no acervo do
Centre Michel Foucault e uma "Notice historique" está publicada em Dits et
écrits, I, 288-293.
4. Sob o título "Mon corps, ce papier, ce feu", acrescentada à segunda
edição de Histoire de la folie à l'âge classique, Paris, Gallimard, 1972.
5. Cf "Nietzsche, la généalogie, l'histoire", in Dits et écrits) lI, 136-156.
Incluído, em tradução brasileira, no volume FOUCAULT, M., Microftsica M poder,
introd. e org. Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
6. Cf. "Qu'est-ce que les Lumieres?", in Dits et écrits) IV, 562-578 e 679-
688. Esta última versão, extraída do curso de 5 de janeiro de 1983, incluída,
em tradução brasileira, no volume FOUCAULT, M., O Dossier - últimas entrevis·
tas. Introd. e org. de Carlos Henrique Escobar. Trad. de Ana Maria de A. Lima
e M. da Glória R. da Silva. Rio de Janeiro, Taurus, 1984.
7. Cf. DERRlDA, J., "Cogito et histoire de la folie", Revue de Métaphysique
etde Morale, oct.jdéc., 1963 n. 4, 460-494.

Foucault e a leitura dos filósofos I 87

.........
Foucault realiza, com habilidade de mestre, uma reconstitui-
ção interna das Meditações, usando técnicas refinadamente rigo-
rosas e uma esmerada ordem de exposição. Compara, passo a
passo, os parágrafos (sobre o sonho e sobre a loucura) do texto
cartesiano e segue, em detalhe, o sistema que os opõé; remete
a termos latinos e a suas traduções9; principalmente, faz ver a
necessidade de dupla postura de leitura demandada pelo pró-
prio texto, isto é, enquanto sistema, certamente ("encadeamento
sistemático de proposições))), mas também enquanto exercício,
precisamente por sua natureza de "meditação"lO. Finalmente,
subverte a posição de defesa para instalar-se no terreno do opo-
sitor e apontar os defeitos que são dele, de seu crítico (no caso,
Derrida), na leitura do mesmo texto cartesiano: "omissão de
elementos literais", "elisão de diferenças textuais", "apagamen-
to enfim e sobretudo da determinação discursiva essencial (du-
pla trama do exercício e da demonstração)"ll.
Consideremos a outra e mais freqüente maneira - a indireta
- de inserção das filosofias, tentando vasculhá-la um pouco no
enredo das investigações históricas
Tomemos As palavras e as coisas. Um artigo de G. Lebrun
descreve-o como "um livro de combate" e "um livro filosófico",
que "contém ao menos o esboço de uma história da filosofia"
e no qual encontramos "indicações para uma leitura de Descar-

8. FOUCAULT, M., "Mon corps, ce papier, ce feu", in Histoire de lafolie,


588-590.
9. Ibid., 590-591.
10. Ibid., 593-597.
11. Ibid, 599. A título de curiosidade, lembremos a publicação bem
posterior (Éd. Galilée, 1992) de outro texto, "Fazer justiça a Freud - A histó-
ria da loucura na era da psicanálise", no qual, ao afirmar que evita o retorno
à discussão anterior, Derrida de certo modo a repete e propõe - agora acerca
de Freud, não de Descartes - "o esquema ou o espectro de uma problemática
análoga" ou de "uma questão semelhante". Cf. ROUDINESCO, E.; CANGUILHEM,
G., MAJOR, R., DERRlDA, J., Foucault - Leituras da história da loucura. Trad. M.
Ignes Duque Estrada, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994, 55ss.

88 I FoucaulL Simplesmente
tes, de Kant, de Husserl JJ1z ; não deixa de lembrar quanto Fou-
cault suspeitava de uma «história da filosofia universitária"'3 e,
no final, indica o trabalho foucaultiano como "um instrumen-
to de renovação de uma 'história da filosofia' que seria aciona-
da, enfim, com a morte da 'filosofia' tal como esta é ainda
escolarmente entendida"'4. Se, em As palavras e as coisas) fizer-
mos um levantamento geral na seqüência dos dez capítulos,
acompanhando os três períodos históricos percorridos (renas-
cimento, idade clássica, modernidade), veremos que são convo-
cados, entre outros, e muitos deles numerosas vezes: Montaigne,
Descartes, Bacon, Berkeley, Condillac, Hume, Hobbes, Male-
branche, Espinosa, Rousseau, Locke, Montesquieu, Kant, Dil-
they, Bergson, Leibniz, Hegel, Nietzsche, Husserl, Heidegger;
além disso, há chamadas à Logique de Port-Royal, aos ideólogos,
à fenomenologia, ao estruturalismo etc.
Dessa relação apenas nominal, destaquemos algumas passa-
gens e, preferencialmente, duas escolhidas entre aquelas que se
ocupam com momentos de limiares ou de transição entre os
períodos históricos investigados.
O capítulo III ("Representar"), que estabelece a ponte do
renascimento à idade clássica, depois de iniciar-se com a cativan-
te leitura sobre as aventuras de "Dom Quixote" (item I), passa a
fazer falar os filósofos. A palavra de Descartes, principalmente,
compõe todo o teor do item II, para explanar o desmoronamen-
to da semelhança renascentista e a instauração da categoria clás-
sica da "ordem". No item I1I, a Logique de Port-Royal, Berkeley e
Condillac, para '(a representação do signo". O item N, "a repre-
sentação reduplicada", conta com a Logique e com Destutt de
Tracy. Para apresentar "a imaginação da semelhança", no item V,

12. LEBRUN, G., "Note sur la phénoménologie dans Les Mots et les choses",
in Michel Foucault philosophe - Rencontre internationale)Paris, 9)10,11 janvier 1988.
Paris, Seuil, 1989,33.
13. Ibid., 38.
14. Ibid., 51.

Foucault e a leitura dos filósofos I 89


lá estão Hobbes e Hume, e são evocados Descartes, Malebran-
che e Espinosa, assim como Condillac, Hume e Rousseau.
Bem mais adiante, o capítulo VII ("Os limites da represen-
tação"), que descreve as transformações ocorridas na segunda
metade do século XVIII, traça agora a curva do classicismo para
a modernidade e assinala, em seu último item (VI. "As sínteses
objetivas"), a presença de Kant. Mostra a correspondência entre
o campo transcendental kantiano das condições de possibili-
dade do conhecimento e as categorias modernas de "trabalho",
"vida", "linguagem": trata-se, sempre, de "transcendentais", com
a diferença de que estas categorias situam-se do lado não do
sujeito e do a priori, mas do objeto e do a posteriori, enquanto
condições de possibilidade de conhecimentos objetivos (econo-
mia, biologia, filologia). Kant será reintroduzido, longa e expli-
citamente, nos capítulos IX ("O homem e seus duplos") e X
("As ciências humanas"), quando também aparecerão, entre
outros, a fenomenologia, o positivismo, a dialética. Desenhar-
se-á, então, a configuração moderna dos saberes e, finalmente
- e é para onde todo o livro se dirige -, o lugar de surgimento
das ciências humanas: elas emergem no entroncamento das
dimensões positiva e filosófica dos saberes, elas se alojam na
confluência, precisamente ou, melhor dizendo, ambiguamen-
te, dos conhecimentos positivos com o pensamento filosófico.
Está bem claro que As palavras e as coisas, sem desconsiderar
outros filósofos, detalhadamente posiciona Descartes no limiar
do classicismo como Kant no da modernidade 15 . Aliás, Fou-
cault retomará, mas de modo genérico, em um texto escrito
muito depois (originado em uma entrevista de 1983), essas duas
pontas filosóficas daqueles períodos históricos: "Seguramente,
esquematizo aqui uma história muito longa, mas que perma-
nece fundamental. Após Descartes, tem-se um sujeito do co-

15. Cf MACHADO, R, Ciência e saber - A trajetória da arqueologia de Fou-


cault. Rio de Janeiro, Graal, 1982, 136-138.

90 I Faucault. simplesme-nte-
nhecimento que coloca para Kant o problema de saber o que é
a relação entre o sujeito moral e o sujeito do conhecimento,,16.
Importa observar que, para o filósofo investigador da histó-
ria, não há desigualdade de importância nem de prestígio ou,
para empregar uma expressão de Roberto Machado, "diferença
de nível,,17 entre a filosofia e outros saberes dos respectivos
períodos históricos. Assim como o pensamento de Kant é ana-
lisado em correlação com os saberes modernos "Sobre o traba-
lho, a vida, a linguagem (economia, biologia, filologia), assim o
de Descartes com os saberes clássicos (análise das riquezas, his-
tória natural, gramática geral). Isso no que concerne ao âmbito
de articulações somente interdiscursivas. Mas observação se-
melhante pode ser feita também a propósito das relações entre
a filosofia e práticas não-discursivas. Se tivéssemos tomado
outro exemplo, como é o caso de História da loucura, teríamos
visto o tecido de relações entre o plano discursivo e o extradis-
cursivo, e certamente então reencontraríamos Descartes, agora
como o marco filosófico na partilha clássica entre razão e des-
razão, de que o Hospital Geral é o marco institucional.
Duas passagens extraídas do livro biográfico de Didier Eri-
bon nos servem para retomar conjuntamente os modos de pre-
sença das filosofias que estivemos denominando direto e indire-
to, assim como para ilustrar a diferença entre eles.
Para o primeiro caso, um trecho sobre as declarações de
Foucault acerca de sua tese complementar de doutorado (que,
lembremos, se compôs de tradução e introdução à Antropologia
de Kant):

16. FOUCAULT, M., "À propos de la généalogie de l'éthique: un aperçu du


travail en cours", in Dits et écrits, IV, 411. Veja-se também, no mesmo livro,
630, já que se trata da mesma entrevista reproduzida com modificações. Em
português: Dossier, op. cit., 69. A entrevista também se encontra, em apêndi-
ce, no livro de RABINOW e DREYFUS, Uma trajetória filosófica - Para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Portocarrero, Rio de Janeiro, Fo-
rense Universitária, 1995,278.
17. MACHADO, R., op. cit., 137.

Foucault e a leitura dos filósofos I 91


"( ... ) para compreender esse texto de Kant escrito, remanejado,
transformado durante quase 25 anos, é necessário cruzar análise
estrutural e análise genética. Como essa obra terminal foi elabo-
rada, de que sucessivos sedimentos se alimentou? Análise genéti-
ca. Qual é a situação dessa obra na disposição global e interna do
sistema kantiano, qual é a relação dessa Antropologia com o movi-
mento 'crítico' desenvolvido por Kant? Análise estrutural,,18.

E para ilustrar o que chamamos de presença indireta a


citação sobre a tese principal de doutorado (Folie el Déraison.
Histoire de la folie à l'âge classique), obtida de um comentário de
Michel Serres:
"Inútil seria esse rigor da arquitetura se, além da compreensão
estrutural, não houvesse uma visão secreta, uma atenção mais
ardente: a obra seria precisa sem ser inteiramente verdadeira. Por
isso é que no próprio seio da argumentação lógica, no seio da
minuciosa erudição da pesquisa histórica circula um amor pro-
fundo, não vagamente humanista, mas quase piedoso, por essa
gente obscura em que se reconhece o infinitamente próximo, o
outro eu. Assim, esse livro é também um grito ... Assim, essa geo-
metria transparente é a linguagem patética dos homens que so-
frem o suplício maior da rejeição, da desgraça, do exílio, da qua-
rentena, do ostracismo e da excomunhão,,19.

•••
As filosofias comparecem, pois, enredadas no interior das
histórias. Não, porém, no cerco interno dos sistemas, nem tam-
pouco na suficiência de suas singularidades, mas espalhadas
na exterioridade espessa das epistémes ou conectadas à heteroge-
neidade complexa dos disposltivos estratégicos, contracenando,

18. ERIBON, D., Michel Foucault ~ Uma biografia. Trad. Hildegard Feise,
São Paulo, Companhia das Letras, 1990, 119.
19. lbid., 125. Cf. SERRES, M., "Géometrie de la folie", Mercure de France,
n. 1188, agosro de 1962, 176. Republicado em Hermes ou la communication,
Minuit, 1968.

92 Foucault. Simplesmente
quase sempre, com objetos múltiplos, com domínios diversos,
com saberes não-filosóficos, com práticas não-discursivas.
Essa forma de inclusão das filosofias na história não é
certamente descomprometida. Pertence a certa escolha que,
se por um lado resulta em um modo de história da filosofia, por
outro é resultante de uma maneira de conceber a própria filo-
sofia. Concluamos com a sugestão, a este propósito, de algu-
mas reflexões.

A filosofia, diagnóstico do presente

As filosofias só estão associadas às investigações históricas


do passado para possibilitar um olhar mais atento sobre nosso
tempo. Em outras palavras, para que elas possam ser o que
devem ser, a saber, diagnóstico do presente.
A compreensão da filosofia como "diagnóstico" é, em vá-
rios momentos e de muitos modos, formulada por Foucault.
Já em uma entrevista de 1967, por exemplo, declara-se "filóso-
fo" por reconhecer-se no trabalho de quem "busca diagnosti-
car, realizar um diagnóstico do presente", o que "desde Nietz-
sche caracteriza a filosofia contemporânea,,20. E conclui: "Fa-
lei-lhes de um desaparecimento das filosofias e não de um
desaparecimento do filósofo. Creio que existe certo tipo de
atividades 'filosóficas' em domínios determinados que consis-
te em geral em diagnosticar o presente de uma cultura: é a
verdadeira função que podem ter hoje os indivíduos a que cha-
mamos filósofos"21.
Por isso começa-se a entender que uma história "exclusiva"
das filosofias possa ser não apenas historicamente como ainda
filosoficamente insuficiente.

20. FOUCAULT, M., "Qui êees-vous, professeur Foucault?", in Dits et écrits,


1,606.
21. lbid., 620.

Foucault e a leitura dos filósofos I 93

J
A filosofia. em toda parte
Dize~ que as atividades filosóficas existem "em domínios de-
terminados" e que o diagnóstico que elas realizam remete a "uma
cultura" significa também que elas não configuram um "domínio"
específico, senão que se constroem no espaço relacionaI com o
seu diverso, o seu outro, o seu fora, a não-filosofia Como diria
Merleau-poncy, a filosofia está em toda e em nenhuma parte.
"Assim, eu diria que é precisamente nos seus 'ensaios' para
abrir a filosofia ao seu fora que Foucault era filósofo - uma
22
espécie de filósofo malgrado ele", escreve]. Rajchman • E o
próptio Foucault, também em entrevista mais antiga (de 1966):
"( ... ) Nietzsche multiplicou os gestos filosóficos. Interessou-se
por tudo, pela literatura, pela história, pela política etc. Foi
buscar a filosofia em toda parte. Com isto, mesmo se em certos
domínios permanece um homem do século XIX, genialmente
antecipou a nossa época,>23.
Por isso, conjugar as filosofias a saberes e práticas não-
filosóficos que compõem epistémes e dispositivos não é reduzir os
gestos filosóficos, é multiplicá-los.

A filosofia. palavra transgressora


Pertencente ao seu tempo, o gesto filosófico pode ser tam-
bém capaz de excedê-lo. Em um texto de 1970, Foucault já
aproximava os filósofos de "seus vizinhos, os poetas e os lou-
COS,,24. Em texto bem mais recente, Judith Ravel retoma essas
"três figuras misturadas" - o poeta, o louco, o filósofo -,
reunindo-as sob a categoria da "palavra transgressora,,25. Mas

22. RAjCHMAN, J., "Foucault: l'échique et l'oeuvre", in Michel Foucault


philosophe, op. cit., 25l.
23. Cf. "Michel Foucault et Gilles Deleuze veulem rendre à Nietzsche
son vrai visage", in Dits et écrits I, 552.
24. FOUCAULT, M., "Le piege de Vincennes", in Dits et écrits, lI, 70.
25. RAVEL,]., "Sur l'Imroduction à Binswan~er (1954)", in Michel Foucault,
lire l'oeuvre, diréction de Luce Giard, Grenoble, Ed. Jérôme Millon, 1992, 55.

94 I Foucault, Simplesmente
como transgredir se as filosofias, como outros saberes e prá-
ticas, estão calcadas nos solos das épistemes e tecidas nas redes
dos dispositivos?
Retomemos aqui, para nosso uso, alguns aspectos das con-
siderações de Deleuze sobre o que é o dispositivo. O dispositivo é
"multilinear" e as linhas de que se compõe são linhas de visibi-
lidade e de enunciação, envolvem o ver e o dizer, as coisas e as
palavras; são também linhas de forças e linhas de subjetivação.
Há "linhas de fuga" e "todas as linhas são linhas de variação".
Os dispositivos são "moventes". Comportam o arquivo, assunto
da análise histórica, e o atual, assunto do diagnóstico. O atual é o
transformávet o ((devir-outro)~ aquilo em que nos tornamos.
Assim, em sua mobilidade, as linhas do dispositivo se repartem
em "linhas de estratificação ou de sedimentação" e "linhas de
atualização ou de criatividade"26.
Por isso, essas histórias que inserem a urdidura das filoso-
fias nas tramas de objetos, saberes e práticas diversificados e as
situam como peças de dispositivos historicamente dominantes não
fazem, necessariamente, apenas atrelar as filosofias ao estabele-
cido. Abrem também a possibilidade do discurso de resistência,
"que foge a toda conivência, um discurso não-cúmplice,m. Tra-
ta-se, se se quiser, de procedimentos que delineiam um modo
outro de história da filosofia como estratégia de criatividade na
contraface de dispositivos estratégicos estratificados.
Finalmente, reunindo as reflexões que acabamos de suge-
rir, poderíamos acrescentar: para que a filosofia possa ser um
olhar atento sobre o presente, um pensamento sem morada,
uma palavra interrogante, é preciso que ela seja -:- antes de tudo
e após tudo - exercício de vida, modo de existência.

26. DELEuzE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?", in Michel Foucault philoso·


phe, 185-195.
27. MOREY, M., "Sur le style philosophique de Michel Foucault ~ pour
une critique du normal", in Michel Foucault philosophe, 144.

Foucault e a., leitura dos filósofos I 9S


._-' .-- .-.,

1
VIII
OLHARES E DIZERES'

Fazer a cnêica é tornar difiéeis os gestos demasiado fáceis.


M. FOUCAULT, Dits et écrits, IV, 180.

Em busca do fio condutor


Os modos de distribuir os escritos de Foucault e recompô-
los podem ser relativamente diversos, mas quase sempre se
sobrepõem e, sem dificuldades, complementam-se. O modo
mais freqüente, nomeado e renomeado pelos diferentes estu-
diosos e reconhecido pelo próprio Foucault, consiste em consi-
derá-los ao longo de sua cronologia, situando-os, segundo o
critério dos grandes deslocamentos, em três grupos: quer se
fale de momentos, fases ou etapas, de áreas, campos ou domí-
nios, de eixos ou vertentes, de planos, níveis, camadas, terrenos
ou patamares, eles configuram, em seu conjunto e sucessiva-
mente, uma arqueologia do saber, uma genealogia do poder e uma
genealogia da ética.

* Conferência proferida por ocasião do Colóquio FoucaulrjDeleuze, na


Universidade Estadual de Campinas, novembro de 2000. Publicada em Ima-
gens de Foucault e Deleuze, ressonâncias nietzschianas (RAGo, M., ORlANDI, L. 1.,
VEIGA-NETO, A., orgs.), Rio de Janeiro, DP&A editora, 2002.

olhares e dizeres j 97

j
Contudo, pretendo referir-me aqui a outros modos ou cri-
térios de organização, que não se opõem ao mais usual e que, a
meu ver, são aproximáveis entre si. Para isso, evoco três passa-
gens, duas das quais recolho em Foucault e a terceira em Deleuze.
Já no "Prefácio" de As palavras e as coisas, de 1966 - antes,
portanto, da produção chamada genealógica -, o próprio Fou-
cault propunha certa organização de seus escritos, e o critério era
então o da ênfase no Outro ou no Mesmo. Assim, enquanto Histó-
ri4 da loucura perguntava pela "diferença" que limita internamen-
te uma cultura, As palavras e as coisas, respondendo "como em
eco", investigava a "proximidade das coisas"; enquanto História da
loucura "seria uma história do Outro" - daquilo que, em uma
cultura, na nossa, "é ao mesmo tempo interior e estranho" -, As
palavras e as coisas "seria uma história do Mesmo" - daquilo que,
em nossa cultura, preside "a ordem das coisas", podendo ser
"distinguido por marcas e recolhido em identidades"l.
Anos depois, na elaboração de um texto que tem por tÍtu-
lo o seu nome - um verbete para um Dicionário de filósofos, de
1984 -, Foucault reconstitui a organização de seus escritos e,
de certo modo, retoma, como que obliquamente, aquele crité-
rio usado no início de sua trajetória, o do Outro e do Mesmo.
Reúne então, retrospectivamente, toda a sua produção sob o
que ele chama de um "projeto geral": investigar a experiência
histórica da constituição do sujeito nas formas diversas de sua
subjetivação e de sua objetivação. E, como que atravessando
este projeto, um "fio condutor": a questão dos "jogos de verda-
de" ou "das relações entre sujeito e verdade"z.
Dentro desse "projeto" e segundo esse "fio condutor", rea-
lizam-se, no conjunto e no decurso de sua trajetória, dois mo-
dos de análise: no primeiro, a análise dos "jogos de verdade"
pelos quais o sujeito torna-se objeto de saber na forma do co-

1. FOUCAULT, M., As palavras e as coisas, "Prefácio", 13-14.


2. Cf. "Foucault" in Dits et écrits IV, Paris, Gallimard, 1994, 631-636. O
verbete "Foucault" pode ser encontrado na tradução brasileira: HUISMAN, D.,

98 I Foucault. simplesmente
nhecimento científico, desembocando nas chamadas ciências
humanas com sua característica normativa; no segundo, a aná-
lise dos "jogos de verdade" pelos quais o sujeito é constituído
como objeto de conhecimento, alojado, porém, no "outro lado
da divisão normativa". Pode-se ver, no primeiro caso, o sujeito
enquanto "distinguido por marcas e recolhido em suas identi-
dades", de As palavras e as coisas. No segundo, trata-se do "dife-
rente", o louco, o doente, o delinqüente, de História da loucura, O
Nascimento da clínica, Vigiar e punir'.
Finalmente, e sempre no interior do mesmo "projeto geral",
aos dois primeiros tipos de análise seguiu-se o mais recente: in-
vestigar "a maneira como o sujeito faz a experiência de si mesmo
em um jogo de verdade no qual se relaciona consigo próprio"4.
Reunindo esta reconstituição às considerações do "Prefá-
cio" de As palavras e as coisas, pode-se dizer que, na seqüência dos
grupos de escritos, o fio condutor é sempre o das relações entre
sujeito e verdade, tramadas nos jogos do Mesmo e do Outro.
Resta acrescentar que, quando os escritos se centram no Mes-
mo, descrevem a epistéme, o círculo de uma época, o instituído,
o sedimentado. Quando se voltam para o Outro) realçam o dis-
positivo, que tanto comporta a estratégia dominante como se
abre à possibilidade do novo, da resistência e da mobilidade.
A aproximação dessas passagens, a mais antiga e a mais
recente, permite, por sua vez, ligar ambas a alguns aspectos da
leitura que faz Deleuze acerca do percurso foucaultiano. Os
três momentos desse percurso são por ele descritos em termos
de "linhas" que compõem os diversos dispositivos analisados por
Foucault. As mudanças entre eles são referidas como "crises",
"desvios", "brechas", "linhas quebradas", "novas linhas" etcs.

Dicionário de filósofos, trad. C. Berliner, E. Brandão, I. Castilho Benedeti, M. E.


Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2001, 388-391.
3. Ibid., 633.
4. Ibid., 633.
5. Cf. DELEuzE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?" in Michel Foucault philosophe
- Rencontre Internationale, 1988, 185-195, que retoma, particularmente, o capítu-

olhares e dizeres I 99
No primeiro momento - o da dimensão do saber -, trata-
se, especialmente, de "linhas de visibilidade e de enunciação":
"pensar é, primeiramente, ver e falar ... "6. Isso corresponde, nos
termos do citado verbete de 1984, aos jogos de verdade segun-
do os quais o sujeito é constituído como objeto para um saber
reconhecido; ou ainda, nos termos do "Prefácio" de As palavras
e as coisas, ao sujeito "visível" e "dizível", na ordem do Mesmo.
No segundo momento - o da dimensão do poder -, trata-
se, especialmente, de "linhas de forças": elas operam um "vai-e-
vém do ver ao dizer", fazem "entrecruzar as coisas e as pala-
vras"7. É o pensamento na elaboração de "estratégias". Nos ter-
mos dos dois textos anteriormente considerados, significa que
isso inclui tanto o pólo das "identidades" como o das "diferen-
ças"; ou, se se quiser, tanto o lado "instituído" da "divisão nor-
mativa" como seu "outro".
No terceiro momento - o da dimensão ética -, trata-se,
especialmente, de "linhas de subjetivação": elas apontam para
"novas possibilidades de existência"g. Não mais "o domínio das
regras codificadas do saber (... ), nem o das regras coercitivas do
poder (... ), são regras de algum modo facultativas"9. Nos termos
dos textos vistos, isso corresponde à "experiência que o sujeito
faz de si" na relação consigo próprio, ou ainda, se se quiser, à
possibilidade de um devir do Mesmo em Outro.

lo "Pensar de outra maneira" de seu livro Foucault, Paris, Minuit, 1986. Veja-
se também as três entrevistas sobre Foucault, "Rachar as coisas, rachar as
palavras", "A vida como obra de arte" e "Um retrato de Foucault", reunidas
em Conversações, trad. P. P. Pelbart, São Paulo, Ed. 34, 1992.
6. DELEUZE, G., "A vida como obra de arte", in Conversações, 119. Veja-se ainda,
no mesmo texto, 119-122; 126; e no texto "Um retrato de Foucaulr", 133-134.
7. DELEUZE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?", in Michel Foucault philoso-
phe. 186.
8. DELEUZE, G., "A vida como obra de arte", 120.
9. DELEUZE, G., "Um retrato de Foucault", in Conversações, 141. Veja-se
ainda ''Rachar as coisas, rachar as palavras", 116; "A vida como obra de arte",
123; 125. "Qu'est-ce qu'un disposicif?", in Michel Foucault philosophe, 187.

100 ! Foucault. simplesmente


Finalmente, reunindo as três referências, busquemos refa-
zer o fio condutor que percorre o trajeto foucaultiano. Digamos
que se trata das relações entre sujeito e verdade, ou mesmo do
sujeito com sua verdade; que essas relações são tomadas no jogo
entre o estabelecido e o mutável, vale dizer, entre o Mesmo e o
Outro; e acrescentemos agora que, nesse jogo, as relações são
visíveis e dizíveis de modos diversos, isto é, que olhares e dizeres
- analogamente aos pólos do idêntico e o do estranho - são
sedimentados ou mobilizadores, dependentemente daquilo que
nós, historicamente, somos capazes de ver e dizer.

Imagens e palavras - um exercício


Usando o fio condutor brevemente reconstruído, propo-
nho que façamos um pequeno jogo, alinhavando com ele al-
guns comentários sobre o filme Meninos não choram lO•

Personagens principais e ambientação geral

• Brandon ou Teena Brandon: uma jovem de 21 anos que se


sente) se veste e se comporta como um rapaz; tem um primo
que é também seu confidente.
• Lana' jovem aproximadamente da mesma idade) mora com a
mãe e trabalha em uma fábrica; é amiga de Candace.
• John: namorado de Lana; é amigo de Tom e ambos são ex-
presidiários.
Os personagens são todos de classe média baixa ou pobres,
arriscam-se em aventuras, são usuários de drogas. O contexto é o
de uma pequena cidade americana (Falls City). O filme todo
transcorre em ambientação de pouca luminosidade, ~esmo quan-
do a cena acontece ao ar livre (como no episódio do estupro).

10. Boys don't cry - 1999. Direção: Kimberly Pewirce (também um dos
autores do texto). No elenco: Hilary Swank (Oscar de melhor atriz), no papel
de Teena Brandon; Chloé Sevigny, no papel de Lana; Peter Sarsgaard, no
papel de John. O enredo reconstitui uma hiscória real ocorrida. em 1993.

olhares e dizeres ! 101


Resumo do enredo
Na cena inicial, Brandon quer ser rapaz e produz sua trans-
formação. Aparentemente sem vínculos (salvo os raros encon-
tros com um primo), vai, meio ao acaso, à pequena cidade on-
de moram Lana, sua mãe e seus amigos. Hospeda-se na casa de
Candace. Tenta comportar-se como o grupo de jovens que aca-
ba de conhecer, especialmente os rapazes. Apaixona-se por Lana
e é correspondido. Quando têm relações amorosas, não se des-
pe, exceto na última vez, quando é por ela despido.
Desencadeada por um acidente de carro - que Brandon
dirigia a mando de John e Tom -, uma investigação policial
revela sua identidade feminina. Teena Brandon é levada presa.
Quase ao mesmo tempo, Candace vasculha os objetos pessoais
de sua hóspede e faz a mesma descoberta, relatando-a aJohn e
Tom, que, por sua vez, contam à mãe de Lana. Desconhecedora
dessas informações, Lana busca Brandon na prisão, estranha
encontrá-la em uma cela feminina, mas sua única preocupação
é tirá-la dali. Leva-a então à sua casa onde, indignados, todos os
esperam. Inquirida sobre a identidade sexual de Brandon e
buscando impedir que a forcem a despir-se publicamente, pro-
põe fechar-se a sós com ela, comprometendo-se a dar, em segui-
da, seu testemunho da "verdade". Depois de alguns momentos
com ela no quarto, apenas abre a porta e comunica a todos que
Brandon é homem.
John e Tom agarram Brandon e brutalmente lhe tiram as
roupas, expondo-a nua ao olhar de todos. Levam-na depois a
um lugar ermo onde a espancam e estupram. Cobram-lhe se-
gredo do ocorrido e conduzem-na de volta à casa de Candace
para que se lave. Após o banho, Brandon consegue escapar e
encontra Lana, que a faz ser levada a um hospital. Em seguida,
Brandon vai à polícia e, com imensa dificuldade, quase em
murmúrio, faz o relato das agressões, sendo porém submetida
a uma espécie de interrogatório informal que quer desvendar
não o estupro mas a natureza de seu sexo.

102 I Faucault. Simplesmente


Há uma última cena de amor em que Lana faz Brandon
despir-se. Decidem fugir juntas, "tomar a estrada". Bran-
don vai então à casa onde se hospedara a fim de apanhar suas
coisas. John e Tom surpreendem Lana e a levam também à
casa de Candace. Sob seu olhar perplexo, matam a tiros Can-
dace e Brandon.
Na cena final, Lana, sozinha, "toma a estrada"ll.

Palavras e imagens
• De Brandon, sobre si mesma
Vê-se como um rapaz e faz saber que quer mudar de sexo;
essa mesma visão, quando posta sob o olhar do primo/confi-
dente parece ingenuamente tola. Também se vê examinada pelo
olhar de Lana ou o de sua mãe e, sob eles, recua, ameaçada,
como se perscrutassem sua "verdade".
Entre seus objetos pessoais encontra-se um pequeno livro
sobre "crise de identidade sexual", expressão que repete aos
outros para tentar definir-se.
Quando presa, na cela feminina, eis o que diz a Lana: "Quer
saber a verdade? Sou hermafrodita. Uma pessoa que tem ór-
gãos femininos e masculinos. O nome de Brandon é Teena.
Mas Brandon não é bem ele, é mais ela que ele".
Quando fechada no quarto com Lana, começa quase
mecanicamente a despir-se a fim de que Lana pudesse testemu-
nhar sobre sua "verdade". É Lana que a interrompe.
Quando, aos olhos de todos, é despida por John e Tom,
pede, desesperadamente, que apaguem as luzes.
Em suma, Brandon tem sobre si o olhar e o dizer da verda-
de "reconhecida": verdade una, localizada no sexo, ou, se se

11. Informações em notas finais: John foi condenado e está apelando


da pena de morte; Tom colaborou com a acusação, testemunhou contra
John e foi condenado à prisão perpétua; Lana, alguns anos depois, teve uma
filha e voltou a morar na pequena cidade.

olhares e dizeres I 103


quiser, no dispositivo instituído da sexualidade, verdade identi-
tária, essencial e universal. Por isso é que a "verdade" de si mes-
ma estaria perigosamente exibida em seu desnudamento, e por
isso também, é preciso que as luzes se apaguem.

• De Lana, sobre Brandon e sobre si mesma


Lana vê Brandon sem suspeitas e admite ver-se confusa.
Eis um de seus dizeres: {(Também tenho sentimentos estranhos".
Quando na prisão, afirma: "Não me interessa se você é meio
macaco. Vou tirá-lo daqui".
Quando se fecha no quarto com Brandon e a impede de
despir-se, declara, não sem alguma ambiguidade: cCDirei a eles o
que querem ouvir. O que sabemos ser a verdade".
Em suma, esta é a única personagem com indícios de críti-
ca e sugestão de perplexidade.

• De outras personagens, sobre Brandon


Candace "descobre", nos objetos vasculhados) a verdade
"encoberta".
John e Tom localizam a marca da identidade no "nome"
de Brandon, que, afinal, é Teena. E o nome, por sua vez, tem
que estar inscrito na carne. Assim, no dizer de Tom, ((só há um
modo de saber a verdade", despir. E no de] ohn: "Só quero a verda-
de, seu mentiroso".
Ao policial que a interroga, só interessa conjeturar sobre
seu sexo e por que ('nunca fez amor antes do estupro~'.
Em suma, a verdade está na transparência do visto e na
unicidade do dito. Tudo o mais é de menor importância ou é
falso, simplesmente mentira.

• Da câmera e o do espectador sobre Brandon


Para capturar o olhar da câmera - que conduz o do espec-
. tador - e os dizeres que o acompanham, proponho o destaque
de quatro cenas, reunidas e contrapostas em dois pares.

104 I Foucault, Simplesmente


Primeira situação
1. Na cena inicial, a câmera faz ver Brandon "transformar-
se" em rapaz; no corte de cabelos, nas roupas, nos geni-
tais postiços, no disfarce do chapéu.
2. Na cena em que a personagem se instala na casa de Can-
dace, a câmera faz ver seu corpo seminu, mas com a
camisa cobrindo-o até as pernas; veste-se depois, de cos-
tas, e comprimindo os seios.

Nesse par de cenas) o personagem aparece como uma figu-


ra ambivalente, quase andrógina, é certo, mas meio caricata)
apenas uma espécie de falso artifício.

Segunda situação
1. Na cena em que Brandon se declara hermafrodita, come-
ça a insinuar-se no espectador uma dúvida sutil; na ex-
pectativa de resolvê-la) só lhe resta (como, de resto, aos
estupradores) que o personagem se dispa.
2. Na cena do banho) após o estupro, a câmera percorre o
corpo, agora enfim nu; focalizando as curvas femininas
de coxas e quadris) parece finalmente fornecer ao espec-
tador a informação aguardada, a mesma, aliás, de que
precisavam os estupradores.
Nesse par de cenas, tudo se passa como se a lente da câme-
ra intermediasse entre eles, estupradores e espectador, uma in-
desejada cumplicidade.
•••
o filme traça "linhas de visibilidade e de em.mçiação", reve-
lando o circuito de condições dentro do qual somente alguma
coisa como a "verdade" do sujeito é visível e enunciável. Indica
"linhas de forças", as do poder que, ele próprio invisível e indi-
zível, entrecruza imagens e palavras, sustentando aquilo que
pode ser "distinguido por marcas e recolhido em identidades".

olhares e dizeres I 105


No plano das evidências, pretende, certamente, ser um de-
poimento contra a violência e uma resistência ao preconceito.
Todavia, refaz a tonalidade do Mesmo e, enquanto dispositivo,
permanece nos ecos do instituído. Raras vezes e somente ao
olhar e dizer de um personagem esboça-se uma luz desfocada,
um som destoante, o vislumbre talvez de um dispositivo outro.
Mas não passa de vislumbre, como aquela penumbra que am-
bienta todo o filme.
De algum modo, porém, à semelhança do Diário de Hercu-
line Barbin, o filme faz saber que, assim como "Herculine-Adé-
laide Barbin, ou ainda Alexina Barbin, ou ainda Abel Barbin,
designada em seu próprio texto ora pelo nome de Alexina ora
pelo de Camille", também Teena Brandon "foi um desses he-
róis infelizes da caça à identidade"12.

Em busca da filosofia

Atitude de "diagnóstico", a filosofia vê e diz. Percepção e


discurso estão cercados pelo mesmo círculo de condições de
visibilidade e dizibilidade a que ela própria pertence. Mas vê e
diz criticamente. Isso significa que, se se instaura no presente,
é como para perceber por dentro suas oscilações e falar de seus
abalos. O olhar filosófico não prevê, nem o dizer filosófico
prediz. Apenas, como escreveu Deleuze, fazem-nos "atentos ao
desconhecido que bate à porta,,13. Situam-nos na difícil passa-
gem entre o que já se diz e vê e o que não ainda, entre o agora
e o devir, o Mesmo e o Outro, entre o que somos e o que estamos
vindo a ser. É assim, creio, como pensamento de limiar que o
pensamento filosófico é uma .ontologia do presente.

12. FOUCAULT, M. Prefácio a Herculine Barbin, O diário de uma hermafrodi·


ta, trad. de r. Franco, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982.
13. DELEUZE, G., "Qu'est-ce qu'un disposicif?", in Michel Foucault philoso·
phe, 191.

106 I Foucault. simplesmente


Sob esse ponto de vista, retomo uma passagem tantas ve-
zes lembrada, em que, descrevendo a atividade filosófica como
"trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento",
Foucault também nos fala daqueles "momentos na vida em
que a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que
se pensa e perceber diferentemente do que se vê é indispensável
para continuar a olhar e a refletir'J14.
É também sob essa perspectiva que Foucault, mais de uma
vez, se reconhece tributário da fenomenologia e fiel à lição de
Merleau-Ponty naquilo "que constituía, para ele, a tarefa filo-
sófica essencial: jamais consentir em estar totalmente à vonta-
de com suas próprias evidências (... ); lembrar-se de que, para
dar a elas a indispensável mobilidade, é preciso olhar ao longe
mas também muito de perto e em torno de si"ls.

14. FoucAuLT, M., História da sexualidade, 11 - O uso dos prazeres, crad. de


M. T. da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, 13.
15. FoucAuLT, M., "Pour une morale de l'inconfort", Le Nouvel Observateur,
abril/79, em Dits et écrits, IlI, 787.

olhares e dizeres I 107

o
IX
DEMOCRACIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de
Michel Foucault e Cornelius Castoriadis*

(...) um princípio político, em toda época


e em todo lugar; presta-se a interpretações
diversas e só com a prática adquire
sentido preciso.
G. GLOTZ, A cidade grega, 111.

Democracia é uma palavra que, como se sabe, se presta aos


mais variados usos. Partidos e regimes políticos, governantes e
representantes sociais, instituições diversas, partilhando tendên-
cias diferentes e, freqüentes vezes opostas, são qualificados ou
se autoqualificam como democráticos. Alguns reconhecem nisso,
e não sem razão, a situação de termos cujo uso foi de tal modo
banalizado que acabam por perder toda consistência concei-
tual. Mas este é apenas um ângulo possível de consideração.

* Palestra proferida por ocasião do Seminário "Democracia e Soberania


Popular", promovido pela Comissão de Legislação Participativa da Câ.mara
dos Deputados, em Brasília, em dezembro de 2001. O texto, revistO e modi-
ficado, foi publicado em Michel Foucault - entre o murmúrio e a palavra (CALO-
MENI, T. c., org.), Campos, Ed. Faculdade de Campos, 2004.

democracia camo prática I 109

..I
Outros também cabem, talvez mais fundamentais. Pode-se pen-
sar, por exemplo, que o esvaziamento conceitual não se deva
apenas à vulgarização do termo, mas à natureza mesma do con-
ceito de democracia. Afinal, à democracia pertencem, como por
princípio, uma necessária flexibilidade e uma permanente
incompletude, de modo tal que parece incompatível com esse
conceito que ele se substancialize em uma significação única e
definitiva, recobrindo um sentido universal. Mais ainda, a essa
natureza de certo modo vaga vincula-se, complementarmente, o
fato de se tratar de um conceito historicamente circunscrito,
portanto incessantemente construído e reconstruído. Não é pri-
meiramente uma idéia, é antes uma prática, e são os modos his-
tóricos de exercê-la que lhe conferem diferentes significados.
Assim, retomando a expressão de um historiador helenista clás-
sico, pode-se dizer que, desde o momento histórico de seu sur-
gimento, na Atenas do século V a.c., a democracia seria «uma
palavra oca" se não houvesse sido praticad4 pelas pessoas do povo:
"Era também necessário, para que a democracia não fosse uma
palavra oca, permitir que as pessoas do povo, ocupadas em ga-
nhar a vida, dedicassem seu tempo ao serviço da república"'.

11
Da prática, pois, ao conceito, proponho considerar aqui
um recorte histórico particular: o que demarca os contornos de
nossas socieda.des ocidentais modernas, que têm início por vol-
ta do começo do século XIX e às quais, de alguma forma, ainda
pertencemos. Às características desse tipo de sociedade vincula-
se a construção das significações modernas de democracia. As-
sim, ainda que muito esquematicamente, tentarei delinear al-
guns sinais que marcam esse tipo de sociedade.

1. GLOTZ, G., A cidade grega. Trad. H. de Araújo Mesquita e R. Cones de


Lacerda, São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1980, 105.

110 I Foucault. Simplesmente


Para elaborar esse esquema, recorro a elementos extraídos
das análises de dois pensadores contemporâneos, Michel Fou-
cault e Cornelius Castoriadis. A partir de suas idéias, primeira-
mente darei realce a alguns aspectos, por assim dizer, mais es-
curos de nossa sociedade, aqueles que a descrevem e denun-
ciam. E, em seguida, sempre a partir dos mesmos pensadores,
as luzes de algumas sugestões.

1. Traços da atualidade
Segundo Michel Foucaulr (1926-1984), o aparecimento da
sociedade moderna é assinalado pelo declínio de um tipo hege-
mônico de poder, o poder soberano, monárquico, e pela
insralação crescente de outro tipo de poder por ele denomina-
do «disciplinar" ou "de controle", "instrumento fundamental
para a constituição do capitalismo industrial e da sociedade
que lhe é correspondente,,2. O poder disciplinar não é apenas
repressivo ou ostensivamente opressor. Mais sutil, ele é "positi-
vo", isto é, "produz" comportamentos, hábitos, gestos, numa
palavra, adestra as pessoas. Não se exibe na identidade de um
poder central e superior - como na figura do Estado soberano
- mas se espalha, anônimo, difuso, capilar, em práticas minu-
ciosas exercidas por todo o corpo social. Não se mantém numa
unidade, mas se exerce no plural - trata-se, antes, de poderes,
múltiplos, heterogêneos, móveis, enfim, micropoderes cujo fun-
cionamento dá sustentação e eficácia ao macro poder estatal.
Vejamos agora algumas reflexões de Cornelius Castoriadis
(1922-1997). Em uma entrevisra radiofônica realizada em 1996,
pouco antes de sua morte, e em seguida publicada, o autor
explicita, em tom coloquial mas não menos denso, o uso que
atribui ao termo "insignificância" para caracterizar nossa épo-

2. FOUCAULT, M., "Cours du 14 Janvier 1976", in Dits et écrits, Paris, Galli-


mard, 1994, voI. IH. Tradução brasileira.: "Soberania e disciplina", in Microfoicado
poder, incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 13. ed., 1998, 188.

democracia como prática 111

...I.
ca. É a "insignificância" que, por um lado, distingue os políti-
cos de hoje. Eles são descritos como "profissionais da política"
ou Upolíticos de carteirinha"3. A democracia representativa "não
é uma verdadeira democracia. Seus representantes muito pou-
co representam as pessoas que os elegem. Primeiramente eles se
representam a si mesmos ou representam interesses particula-
res, lobbies etc." 4.
Quanto aos cidadãos comuns, por outro lado, é na
experiência de uma "contra-educação política" que a "insignifi-
cância" os alcança. "Enquanto as pessoas deveriam habituar-se
a exercer todas as espécies de responsabilidades e a tomar ini-
ciativas, habituam-se a seguir opções que outros lhes apresen-
tam ou a votar por elas. Como as pessoas estão longe de ser
idiotas, o resultado é que elas crêem cada vez menos e se tor-
nam cínicas, numa espécie de apatia política"5. Há um "esgota-
mento ideológico", acompanhado de uma "disposição geral"
que é de "resignação", ou de "conformismo generalizado", de
"inibição" para agir6•
Mas essas análises de nossa sociedade não se reduzem a
seu desenho austero. Cada qual dos dois pensadores descreve e
denuncia o presente com o intuito de questionar nossas evi-
dências de pensamentos e nossas aderências de condutas e, a
partir daí, delinear e anunciar um horizonte de transforma-
ções. É dessa perspectiva que apresentarei, brevemente, a indi-
cação de algumas pistas.

3. CASTORIADIS, c., Post-scriptum sur l'insignifiance. Entretiens avec Daniel


Mermet. Paris, Éd. de l'Aube, 1998 .. Tradução brasileira: Post-scriptum sobre a
insignificância, tradução Salma Tannus Muchail e Maria Lucia. Rodrigues;
apresentação Maria Lucia Rodrigues; prefácio Edgard de Assis Carvalho. São
Paulo, Veras Editora, 2001, 27 e 33.
4. Ibid .• 29.
5. Ibid., 30-31.
6. Ibid., 38; 39; 47-48.

112 I Foucault. simplesmente


2. Prospectivas
Para Foucault, a todo tipo de poder responde um tipo de
resistência e de luta, na direção de mudanças. No caso de trans-
formação da sociedade moderna, que é a do ripo disciplinar e
de controle, não se terá bom êxito transformando do alto o
regime central de governo ou o aparelho de Estado, mas atuan-
do estrategicamente na trama molecular dos poderes sociais,
estabelecendo "redes" dentro da rede do poder. Como os pode-
res, as lutas, para serem eficazes, precisam ser plurais, heterogê-
neas, móveis, provisórias, pontuais.
De orientação similar, reproduzo algumas passagens de
Castoriadis.
"( ... ) e creio que só sairemos dele [do esgotamento ideológico]
pelo ressurgimento de uma potente crítica do sistema e um re-
nascimenco da atividade das pessoas, de sua partici pação na coi-
sa comum. Dizer isso é uma tautologia, mas é preciso esperar, é
preciso confiar e é preciso trabalhar nessa direção"7.
"Mas, nesse momento, sentimos vibrar uma retomada da ativi-
dade cívica. Aqui e lá começa-se, de algum modo, a compreender
que a 'crise' não é uma fatalidade da modernidade à qual seria
preciso submeter-se, 'adaptar-se' para não incorrennos em alguma
espécie de arcaísmo. Coloca-se, então, o problema do papel dos
cidadãos e da competência de cada um para exercer os direitos e
os deveres democráticos com a finalidade - doce e bela utopia-
de sair do conformismo generalizado."s

Àquela "contra-educação política", Castoriadis opõe a boa "edu-


cação polírica" que se faz pela ariva participação das pessoas nas
coisas comuns. E, apoiando-se na afinnação de Aristóteles - "cida-
dão é aquele capaz de governar e ser governado" -, faz ver que nisso
consiste a educação política: em aprender a governar, governando 9•

7. Ibid., 38.
8. Ibid., 39.
9. Cf ibid., 30; 40-44.

democracia como prática I 113

1
111
Finalmente, reúno os dois autores que escolhi como apoio,
em uma idéia mais ampla. Casroriadis, no final daquela entre-
vista, usa a expressão "sociedade autônoma"IO e nos convida à
difícil porém verdadeira democracia. Foucault, por sua vez, no
comentário de um texto de Kant l l , nos convoca à saída de um
"estado de menoridade') - que é aquele em que se é conduzido
por outrem - para o "estado de maioridade" - que consiste no
governo ou condução de si mesmo. Governo de si ou autonomia,
eis certamente, um norte para balizar nossas tentativas de exer-
cício democrático.
É um norte apenas. Mas suficiente talvez para nos predis-
por a certas condições indispensáveis se quisermos fazer de nossa
própria prática um lugar de transformações e de superação de
nossas desesperanças. A partir das reflexões que fizemos,
algumas dessas condições podem ser identificadas: 1) dispor-se
à pluralidade de participações heterogêneas, flexíveis, móveis,
provisórias, pontuais, compondo pistas diversas que sejam ca-
pazes de convergir em alianças e pactos em nome de causas
democráticas compartilhadas; 2) dispor-se à educação política
que propicie ao cidadão comum a aprendizagem de "governar
e ser governado", contribuindo assim para sacudir as apatias,
abalar os conformismos, mobilizar nossas inibições.
Estas são, possivelmente, algumas predisposições que po-
dem nos orientar rumo à maioridade democrática, cuja con-
quista é tanto mais alcançável quanto mais se praticar a auto-
nomia de pensamentos e de condutas.

10. Cf. ibid., 52.


11. Cf FOUCAULT, M., "Qu'est-ce que les Lumieres?" in Dits et écrits IV,
Paris, Gallimard, 1944, 562·578.

114 ! Foucault, Simplesmente


.xCOMO NA ORLA DO MAR,
UM ROSTO DE AREIA"
Notas sobre maio de 68*

Para situar Foucault relativamente a maio de 68, descrevo, bre-


vemente, um fragmento de sua trajetória - de 1966 a 1970 _
permitindo-me misturar considerações conceituais com curio-
sidades biográficas.
Depois dos já polêmicos escritos anteriores (principalmen-
te História da loucura), em abril de 1966 é publicado As palavras
e as coisas. O livro, que se mantém no estrito plano dos discur-
sos, sem nenhuma articulação com a ordem das práticas so-
ciais, desloca o homem do centro da história e da origem dos
saberes. E se encerra com aquele prenúncio solene, meio tea-
tral, um quase gesto, a apontar o iminente desaparecimento do
sujeito: "( ... ) então se pode apostar que o homem se desvanece-
ria, como na orla do mar, um rosto de areia"1, A atmosfera
intelectual da época - que precedia de perto 68 - deveria, su-
postamente, ser-lhe bem pouco acolhedora. Em u~a avaliação

* Palestra proferida por ocasião da Semana de Ciências Sociais "1968-


30 anos, o mundo é Outro?", na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, em maio de 1998. Texto inédito.
L FOUCAULT, M., Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1966, 398. As pala-
vras e as coisas, trad. de S. T. Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 1981,404.

como na orla do mar, um rosto de areia" I 115

J
retrospectiva, por ocasião de uma entrevista realizada anos mais
tarde (em 1978, publicada em 1980), Foucault realça algumas
razões para um esperado insucesso. Depois de apontar motivos
de ordem mais teórica, como a supervalorização do marxismo,
as resistências a certas aproximações com o estruturalismo e,
em geral, todas as posições humanistas relativas ao sujeito,
sugere outros:
"E também, se quisermos, o fato de que não se podia levar muito
a sério alguém que, de um lado, se ocupava com a loucura e, de
outro, reconstruía uma história das ciências de modo tão extrava-
gante, tão particular, em relação aos problemas reconhecidos
como válidos e importantes. A convergência desse conjunto de
razões provocou o anátema, a grande excomunhão de As palavras
e as coisas por parte de todos: Les Temps Modernes) Esprit, Le NouveZ
Observateur, da direita, da esquerda, do centro. Era pancadaria de
todos os lados. O livro não deveria vender mais que duzentos
exemplares; ora, vendeu dezenas de milhares"z.

Com efeito, "acontecimento editorial do ano, a melhor


venda do verão", sua repercussão foi "fulgurante"). Como lem-
bra o biógrafo de Foucault, Didier Eribon, "segundo as descri-
ções publicadas pelos jornais da época, as pessoas lêem a obra
de Foucault na praia ou a exibem pelas mesas de bar para mos-
trar que não ignoraram tal acontecimento,,4. "Foucault vende
como pãezinhos" é título de um artigo do momentos. Inusita-
do êxito que Foucault, naquela mesma avaliação retrospectiva,
tenta, um tanto genericamente, explicar:

2. FOUCAULT, M., "Entretien avec Michel Foucault" (com D. Trombado-


ri, Paris, 1978, publicada em II Contributo, n.l, jan.jmar.,1980, 23-84), in Dits
et écrits IV, Paris, Gallimard, 1994,70.
3. DOSSE, F., História do estruturalismo I, trad. de A. Cabral, São Paulo, Ed.
Ensaio, 1993,367-368.
4. ERIBON, D., Michel Foucault) uma biografia, trad. de H. Feist, São Paulo,
Companhia das Letras, 1990, 160.
S. O artigo foi publicado em Le Nouvel observateur. Cf. DOSSE, História do
estruturalismo, 367, e ERIBON, D., Michel Foucault, 159.

116 ! Foucault. simplesmente


"Repensando essa época, eu diria que, em definitivo, o que esta-
va em via de acontecer não tinha sua própria teoria, seu próprio
vocabulário. As mutações em curso produziam-se relativamente
a um tipo de filosofia, de reflexão geral, a um tipo até de cultura
que era, no conjunto, o da primeira metade de nosso século. As
coisas estavam se desagregando e não existia vocabulário apto
para exprimir esse processo. Ora, em As palavras e as coisas, as pes-
soas talvez reconhecessem como que uma diferença e ao mesmo
tempo se revoltavam por não reconhecer o vocabulário do que
estava em via de acontecer (. .. )"6.

No momento em que eclode maio de 68, é certamente esse


tipo de reconhecimento que está tão vivo no depoimento de
Maurice Clavel: "Quando desembarquei em Paris, no dia 3 de
maio, comprei os jornais na estação de Lyon e, diante das man-
chetes sobre a primeira revolta estudantil, disse a minha mu-
lher, com uma calma, ao que parece, estranha, eis aí, aconteceu,
chegamos lá... 'Onde?', perguntou-me ela. Em pleno Foucault ...
pois, afinal, As palavras e as coisas não era o formidável anúncio
da rachadura geológica de nossa cultura humana, humanista
que havia de produzir-se em maio de 6S?"'.
Se foi possível dizer que se estava "em pleno Foucault", o
próprio Foucault, contudo, não estava lá. Desde setembro de
1966, instalara-se em uma pequena cidade na Tunísia, como
professor de filosofia. Uma passagem escrita em 1967 nos diz O
que pensava ele sobre a Tunísia (e, por comparação, sobre o Bra-
sil): "Eu viera por causa dos mitos que todo europeu, hoje em
dia, tem sobre a Tunísia: o sol, o mar, a grande tepidez da
África, em suma, viera buscar um retiro sem ascetismo. Na ver-
dade, encontrei estudantes tunisianos e então aconteceu o ines-
perado. Provavelmente foi só no Brasil e na Tunísia que encon-
trei nos estudantes tanta seriedade e tanta paixão, paixões tão

6. FOUCAULT, M., "Entretien avec Michel Foucault", in Ditsetécrits IV, 70.


7. Cf. FOUCAULT, M., Dits et écrits I, "Chronologie", 32-33.

como na orla do mar. um rosto de areia" I 117


sérias e, o que mais me encanta, a absoluta avidez de saber"B.
Ali, além de viver "entre os prazeres do sol e a ascese filosófi-
ca,,9, também comprometeu-se intensamente com atividades
políticas. Na Universidade de Túnis as revoltas estudantis co-
meçaram bem antes: no final de 66, um estudante é espancado
por policiais; em junho de 67, os tumultos, atrelados a ques-
tões palestinas e às oposições ao governo, se agravam; e é em
março de 68 que recrudesce a repressão violenta. Os professo-
res franceses intercedem e Foucault, entre eles, atua intensa-
mente: procura o embaixador da França, abriga estudantes fo-
ragidos, esconde em seu jardim um mimeógrafo para a impres-
são de panfletos; não é oficialmente importunado, mas recebe
ameaças e intimidaçães do serviço de polícia paralelo e chega a
sofrer maus-tratos físicos. Retomemos trechos de seu relato.
"Estávamos em março de 1968: greves, interrupções dos cursos,
detenções e greve geral dos estudantes. A polícia entrou na
universidade, maltratou numerosos estudantes, feriu gravemente
vários deles e os jogou na prisão. Alguns foram condenados a
oito, dez e mesmo quatorze anos de prisão. Alguns ainda estão
lá. Dada minha posição de professor, sendo francês, eu estava,
de certo modo, protegido em relação às autoridades locais, o
que me permitiu realizar facilmente uma série de ações e,
ao mesmo tempo, apreender com exatidão as reações do gover-
no francês em face de tudo aquilo. Tive uma idéia direta do que
se passava nas universidades do mundo. fiquei profundamente
impressionado com aquelas moças e aqueles rapazes que se ex-
punham a riscos terríveis redigindo um panfleto, distribuindo-
o ou convocando à greve. Foi, para mim, uma verdadeira expe-
riência política. (... ) Na Tunísia (... ) fui levado a tocar com o dedo

8. FOUCAULT, M., "La philosophie strucruraliste permet de diagnosttiquer


ce qu'est 'aujourd' hui''', in Dits et écrits I, 584.
9. ERIBON, D., Michel Foucault, 179. Em um depoimento de Jean Daniel,
reproduzido por Eribon, à p. 176, lê-se: "Nessa cidadezinha onde ele era feliz,
ninguém o conhecia por outra coisa que não seu hábito de trabalhar desde
o amanhecer diante das janelas de sua villa, que davam para a baía, e por sua
gula de viver e amar ao sol".

118 I Foucault. Simplesmente


algo diferente de todo o ronronar de instituições e de discursos
políticos na Europa"lO.

Por duas vezes, no fim de maio e no fim de junho, tem


ocasião de ir a Paris, onde assiste a um comício e participa das
últimas manifestações na Sorbonne. Mas, entre uma e outra
viagem, ainda na Tunísia, no mês de junho, escreve: "Daqui, é um
grande enigma"ll. Para ele, portanto, "não foi maio de 68, mas
março de 68 e em um país do terceiro mundo"12.
Nem bem aceito na Tunísia, nem bem recebido na França,
Foucault diz-se "sempre um pouco deslocado, à margem" e,
quando volta para a França, "é sempre com um olhar um pou-
co estrangeiro"I3. O retorno ocorre em outubro de 68. Inicial-
mente nomeado para a Faculdade de Nanterre, onde não chega
a assumir o posto, vincula-se ao centro experimental de Vin-
cennes, espécie de faculdade-piloto, fundada sob o então mi-
nistro da Educação, Edgar Faure, em resposta às recentes rei-
vindicações. Constituída uma comissão de cerca de vinte
membros (entre eles, Canguilhem, Barthes, Derrida) encarrega-
da de designar os primeiros professores de diferentes áreas, aos
quais caberá a tarefa de compor o corpo docente, Foucault é
escolhido para a área de filosofia1 4 • Ao mesmo tempo em que a

10. FOUCAULT, M., "Entretien ... ", in Dits et écrits IV, 78.
11. Cf. FOUCAULT, M., "Chronologie", in Dits et écrits I, 33.
12. FOUCAULT, M., "Entretien ... ", in Dits et écrits IV, 79.
13. Ibid., 78.
14. Convidará para o quadro docente da filosofia, entre outros, Gilles
Deleuze (que não pôde aceitar por estar adoentado), Michel Serres, Judith
Miller, Alain Badiou, Jacques Ranciere, Jean-François Lyotard, François
Châtelet (Cf. ERIBON, D., Michel Foucault .. , 189; DossE, F., História do estrutura-
lismo 11,175). Quando, pouco mais tarde, em janeiro de 1970., o novo minis-
tro da Educação, Olivier Guichard, recusa o reconhecimento de validade
nacional para o ensino da filosofia ao diploma obtido em Vincennes, Fou-
cault concede uma entrevista publicada sob o título "Le piege de Vincennes".
Como era argumento do ministro que o conteúdo de filosofia ali ensinado
era demasiadamente particular e especializado, vale a pena reproduzir um
pequeno trecho da resposta de Foucault: "Como sabem, não estou certo de

como na orla do mar, um rosto de areia'· ! 119


comissão é atacada pela direita "como um bando de esquerdis-
tas", Foucault é considerado "pouco engajado" pelas esquerdas
e criticado «(por não ter 'feito nada' em maio de 1968". A um
amigo Oean Gattegno) que militara com ele na Tunísia, agora
também em Vincennes, declara: "Vou dizer a eles: 'Enquanto
vocês se divertiam em suas barricadas do Quartier Latin, eu me
ocupava de coisas sérias na Tunísia"'IS. Mais uma vez, desta-
quemos um trecho da entrevista de 1978.
"Quando voltei para a França, em novembro-dezembro de 1968,
fiquei principalmente surpreso, admirado e até decepcionado em
relação ao que vira na Tunísia. As lutas, com sua violência, sua
paixão, não implicaram, de modo algum, o mesmo preço, os
mesmos sacrifícios. Não há comparação entre as barricadas do
Quarcier Latin e o risco real de cumprir, como na Tunísia, quinze
anos de prisão (... ). Isso explica talvez a maneira como, a partir
daquele momento, busquei considerar as coisas tomando distân·
cia em relação a essas discussões indefinidas, a essa hipermarxi·
zação, a essa discursividade incoercível que era própria da vida
das universidades, e em particular da de Vincennes, em 1969. Ten·
rei fazer coisas que implicassem um comprometimento pessoal,
físico e real e que colocassem os problemas em termos concretos,
precisos, definidos no interior de uma situação determinada"16.

Assim, em Vincennes, Foucault será o "filósofo engajado" e


o "intelectual militante", lá permanecendo até 1970, quando
ingressa no College de France, pronunciando em 2 de dezembro
sua aula inaugural.
Esta breve reconstituição permite ver a marca forre e con-
trovertida de Michel Foucault nos acontecimentos de 68. Mas

que a filosofia exista. O que existe.são 'filósofos', isto é, certa categoria de


pessoas cujas atividades e cujos discursos variaram muito de uma época para
outra. O que os distingue, assim como a seus vizinhos, os poetas e os loucos,
é a separação que os isola, não a unidade de um gênero ou a constância de
uma doença" (FOUCAULT, M., "Le piege de Vincennes", in Dits et écrits lI, 70).
15. ERlBON, D., Michel Foucault, 188.
16. FOUCAULT, M., "Entretien ... ", in Dits et écrits IV, 80.

120 I Foucault. simplesmente


indica também o efeito recíproco, isto é, as marcas do evento
em Michel Foucault e as mudanças que nele acarretaram. Des·
se ponto de vista, ou seja, do pensamento de Foucault pós-68,
dois traços, pelo menos, merecem destaque.
Primeiro, aquela proclamada "morte do homem" passará a
receber contornos e consistência mais precisos. Ao tratamento
quase solene do tema, seguir-se-ão comentários mais concretos
e até irônicos. Assim, por exemplo, numa discussão com Lu·
cien Goldman, dirá: "Não se trata de afirmar que o homem
morreu, trata-se (... ) de ver de que modo, segundo quais regras
se formou e funcionou o conceito de homem. Fiz a mesma
coisa com a noção de autor. Portanto, vamos conter as lágri-
mas"17. É nessa direção, creio, que Foucault vai relativizar o
alcance e o entusiasmo por As palavras e as coisas, como se lê
naquela entrevista de 1978.
"( ... ) um livro muito técnico, que se endereçava principalmente a
técnicos da história das ciências (... ). Para dizer a verdade, lá não
estavam os problemas que mais me apaixonavam. Já lhes falei de
experiências· limite: eis o tema que verdadeiramente me fascina·
va. Loucura, morte, sexualidade, crime são para mim coisas mais
intensas. Em contrapartida, As palavras e as coisas foi para mim
uma espécie de exercício formal"18.

Outro aspecto, ligado ao anterior, é o abandono das descri-


ções estritamente intra e interdiscursivas que caracterizavam a
configuração de uma epistéme e direcionavam o horizonte meto·
dológico de As palavras e as coisas. Suas investigações agora se ocu-
parão, explicita e principalmente, de práticas e instituições sociais
que entram na composição da noção de dispositivo, essa configura-
ção heterogênea que articula o dircursivo e o extradiscursivo.

17. FOlJCAULT, M., "Qu'esc·ce qu'un auteur?" (compce rendu de la séance),


in Dits et écrits I, 817. O que é um autor? Trad. de A. F. Cascais e E. Cordeiro,
Lisboa, Vega, 1992,81.
18. FOUCAULT, M., "Encretien ... ", in Dits et écrits IV, 67.

como na orla do mar. um rosto de areia·· I 121


Mudanças, pois, nos temas e na direção das investigações.
Chamemos, mais uma vez e para concluir, o testemunho de
Foucault. Perguntado por que, ao evocar maio de 68, parece
subestimar o acontecimento, Foucault reconhece que alguns
de seus aspectos, "os mais visíveis e superficiais", eram-lhe "com-
pletamente estranhos". Mas, no que tange "àquilo que estava
realmente em jogo, àquilo que realmente fez mudar as coisas"
e que "era da mesma natureza, na França e na Tunísia", a ava-
liação é outra:
"Maio de 68 teve uma importância, sem dúvida, excepcional. É
certo que, sem maio de 68, eu não teria jamais feito o que faço, a
propósito da prisão, da delinqüência, da sexualidade. No clima
anterior a 1968 nada disto era possível"19.

19. Ibid., 81.

122 I Foucault. simplesmente


XI
MICHEL FOUCAULT E O
DILACERAMENTO DO AUTOR'

Para este livro já velho, eu devena escrever um novo prefácio. Confesso que
isto me repugna (. .. ). Quereria que um livro, pelo menos do lado daquele
que o escreveu, nada mais fosse que as frases de que éfeito; e que não se
desdobrasse neste primeiro simulacro dele mesmo que é um prefácio (. ..).
- Mas você acabou de fazer um prefácio.
- Pelo menos é curto.
M. FOUCAULT, Prefácio à nova edição de Histoire de la folie.

Tão paradoxal quanto escrever um prefácio escrevendo sobre


a relutância em escrevê-lo é querer preservar a obscuridade do
anonimato falando dele, expondo-o às luzes do próprio discurso.
São conhecidas as considerações de Foucault sobre o apa-
gamento do autor. Mas o paradoxo parece instalar-se quando
ele traz para o centro da cena aquilo que precisamente desejaria
fora dela, a saber, a atribuição de autoria a seus próprios discur-
sos. É esse paradoxo que está já presente na célebre formulação
que Foucault tomou emprestada a Beckett: "Que importa quem

* Este texto é uma versão modificada de comunicação apresentada no


Encontro Nacional de Filosofia, ANPOF, Águas de Lindóia, 1996, sob o
título "Foucault, o autor, por ele mesmo". Foi publicado na revista Margem,
número 16, São Paulo, Educ, 2002.

Michel Foucault e o dilaceramento do autor I 123


fala; alguém disse: que imporra quem fala"l Considerando que
o primeiro segmento dessa formulação ("que importa quem
fala") diz respeiro a qualquer auror, e que o segundo ("alguém
disse: que importa quem fala") concerne ao autor dessa fala, se
perguntarmos então quem disse "que importa quem fala)), a
resposta será "quem é apenas alguém", isto é, "que importa",
perfazendo uma dobra circular do discurso sobre si mesmo.
Porém, mais que paradoxo, talvez haja nessa dobra um jogo
de estratégia. Com efeito, o gesto que aponta para o desejo
pessoal de impessoalidade em seu posro de auror não faz dele
necessariamente um privilégio; talvez apenas o dilua, indiferen-
ciadamente, como um caso entre outros, digamos assim, dentro
de uma concepção teórica sobre a categoria do autor, qualquer
autor, ele inclusive.
Para apresentar aqui algumas considerações sobre esse as-
sunto, farei liSO de passagens extraídas de três textos: ('O que é
um autor?" (1969), A ordem do discurso (1970) e "Foucault"
(1984). Com os dois primeiros, escritos na mesma época, for-
mo um pequeno conjunto e, como num jogo, não bem de pa-
lavras, mas de "textos cruzados", imagino-os como estendidos
na "horizontal"; o terceiro, produzido bem depois deles, é o
texto "vertical", com que os pretendo cruzar.

•••
Do primeiro texto - "O que é um autor?" (1969) - destaco
três pontos.

1. Cf FOUCAULT, M., "Qu'est-ce qu'un ameur?", in Dits et écrits, 792. (O


que é um autor?, trad. de A. F. Cascais e E. Cordeiro, Lisboa, Vega, 1992,34).
Ver também: FOUCAULT, M., "Réponse à une question", in Dits et écrits I, Paris,
Gallimard, 1994,792. ("Resposta a uma questão", in Epistemologia/28, trad.
M. da Glória Ribeiro da Silva, Rio de Janeiro, jan./mar. 1972,81).
2. FOUCAULT, M., "Qu'est-ce qu'un auteur?", in Ditsetécrits I, 789-821; L'ordre
du discours, Paris, Gallimard, 1971 (A ordem do discurso, trad. Laura Fraga de A.
Sampaio, São Paulo, LoyoIa, 1996); "Foucault", in Dits et écrits, IV, 631-636.

124 I Foucault. simplesmente


I. Autor e nome própriO
Ainda que o "nome de autor" seja um "nome próprio" e
com ele mantenha semelhanças, guarda porém uma "singulari-
dade paradoxal"3, Só para sugerir um exemplo, é diferente, e
diferentes são as conseqüências, dizer que um nome foi erro-
neamente atribuído a uma pessoa e dizer que o nome Guima-
rães Rosa foi erroneamente atribuído ao autor de Sagarana. O
nome de autor está atrelado não propriamente a um indivíduo
real e exterior que proferiu um discurso, mas a certo tipo de
discursos com estatuto específico, isto é, aqueles cujo modo de
ser, numa determinada cultura, os torna providos de uma atri-
buição de autoria. Assim, a noção de autor de que aqui se trata,
menos que um nome próprio, é uma função - "característica do
modo de existência, de circulação e de funcionamento de al-
guns discursos no interior de uma sociedade"4.

11. Função-autor

Restringindo a função-autor ao âmbito de livros e textos,


pode-se nela reconhecer certas características, duas das quais
escolho destacarS , Por um lado, a função-autor não resulta sim-
plesmente da espontânea "atribuição de um discurso a um in-
divíduo", mas "de uma operação complexa" que tem por efeito

3. FOUCAULT, M., "Qu'est-ce qu'un auteur?", in Dits et écrits, I, 797


(tead., 44).
4. Ibid., 798 (trad., 46). A relação entre aucor e nome próprio é também
tratada por Foucault quando discute o conceito de "obra"como unidade
discursiva. Ver, por exemplo, o texto de 1968, "Réponse au Cercle d'Epistémo-
logie" (trad. bras. em Estruturalismo e teoria da linguagem, 1971) bem como o
item "Les unités du discours" de L'Archéologiedu savoir, Paris, Gallimard, 1969.
5. As duas outras que Foucault indica estão assim resumidas: "a fun-
ção-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra, deter-
mina, articula o universo dos discursos; não se exerce uniformemente e da
mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as
formas de civilização" (Dits et écrits I, 803; trad., 56).

Michel Foucau!t e o di!aceramento do autor I 125


um "ser de razão"6, portanto construído, e segundo determina-
das regras (por exemplo, o autor é definido "como certo nível
constante de valor"; "como certo campo de coerência concep-
tual ou teórica"; "como unidade estilística"; "como momento
histórico definido e ponto de encontro de certo número de
acontecimentos"?). Por outro lado, e complementarmente, não
apenas efeito de uma construção, o autor é também sinalizado
e definido pelos próprios textos que, por sua vez, podem reme-
ter, não a um indivíduo singular, mas a uma "pluralidade de
egos" ou a "várias posições-sujeitos" (por exemplo, uma é a
posição-sujeito do autor que fala em um prefácio, outra a do
que argumenta no corpo de um livro, outra ainda a que avalia
a recepção da obra publicada ou a esclarece)'.

111. Autor e sujeito


A análise da função-autor conduz, entre outras conseqüên-
cias, a um reexame da noção de sujeito. Sem dúvida, considerar
um texto do ponto de vista da "análise interna e arquitetônica" já
é colocar em questão "o caráter absoluto e o papel fundador do
sujeito"9. Ora, reexaminar a noção de sujeito não significa restau-
rar a pergunta pelo sujeito originário, mas invertê-la: consideran-
do-se a função-autor uma particularização possível da função-
sujeito, tratar-se-á de perguntar não pelo sujeito constituinte,
mas por sua constituição enquanto função do discurso.

•••
o segundo texto - A ordem do discurso (1970) - dá à noção
de autor um tratamento, por assim dizer, mais "negativo". O
assunto ocupa um breve trech.o lO, inserido na seqüência de des-

6. Ibid., 800·801 (trad., 50).


7. Ibid., 801-802 (trad., 52-53).
8. Ibid., 802·803 (trad., 54-57).
9. Ibid., 810 (trad., 69).
10. FOUCAULT, M., L'Ordre du discours, 28-31 (trad., 26-29).

126 ! Foucault. simplesmente


crição dos diversos procedimentos de rarefação ou controle dos
discursos. Circunscrito como um deles, a categoria do autor
pertence ao grupo de procedimentos classificados como inter-
nos, cujo papel consiste em reduzir, nos discursos, o que eles
têm de acaso, de acontecimento, de ficção'!.
Desse texto, limito-me a reproduzir três passagens, confe-
rindo-lhes pequenos títulos.

I. Autor, função de controle

"Trata-se do autor. O autor entendido, é claro, não como o indi-


víduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor
como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e
origem de suas significações, como foco de sua coerência."I2

11. Autor, função recebida

"Seria absurdo negar, é claro, a existência do indivíduo que es-


creve e inventa. Mas penso que - ao menos desde certa época-
o indivíduo que se põe a escrever um texto no horizonte do qual
paira uma obra possível retoma por sua conta a função do au.
tor (... )."13

111. Autor, função modificável

"( ... ) função do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como
ele, por sua vez, a modifica. Pois, embora possa modificar a ima-
gem tradicional que se faz de um autor, será a partir de uma

11. Os procedimentos ditos externos ou de exclusão - ~'proibição" de


certos discursos, "segregação" de outros, imposição da "vontade de verdade"
- foram apresentados anteriormente. Entre os chamados internos, a descri-
ção do "autor" é precedida pela do "comentário" e seguida pela da repartição
em "disciplinas".
12. Ibid., 28 (trad., 26).
13. Ibid., 30 (trad., 28·29).

Míchel Foucau!t e o dilaceramento do autor I 127


nova posição de autor que recortará (... ) o perfil ainda trêmulo
de sua obra.,,14

***
Finalmente, considero o terceiro texto, publicado quatorze
a quinze anos após os outros. Dele retraço algumas linhas que
permitam possíveis cruzamentos com os destaques dos textos
anteriores.

I. O título e a destinação
o texto intitula-se "Foucault" e destinou-se a compor um
verbete para um Dicionário de filósofosls. Ora, é no mínimo curioso
que esteja instalado em um dicionário de "autores" um pensador
que se renha empenhado em denunciar a função restritiva do
autor. Mais, que seus trabalhos sejam identificados mediante
um título que é nada menos que seu "nome próprio". Entretan-
to, a estranheza se atenua quando se examina o teor do verbete.

11. Reconstituição de um projeto e constituição do sujeito


Sob o nome-título nada se lê acerca do autor. Antes, o tex-
to é, por inteiro, uma reconstituição de seus trabalhos reunidos
desde o ponto de vista de um "projeto geral,,16 que os teria
presidido. Ora, esse projeto, que, de um modo ou de outro,
teria orientado a produção dos escritos foucaultianos, é descri-
to, por sua vez, como precisamente assentado na questão da
constituição do sujeito. Para mostrá-lo, apresento um breve
resumo do trecho inicial.

14. Ibid., 31 (ecad., 29).


15. HUISMAN, D., Dictionnaire des philosophes, Paris, PUF, 1984, t. I, 942-
944 (republicado em Dits et écrits, IV). "Foucault", in HUISMAN, D., Dicionário
dos filósofos, trad. C. Berliner, E. Brandão, I. C. Benedetti, M. E. Galvão, São
Paulo, Martins Fontes, 2001, 388-391.
16. FouCAuLT, M., Dits etécrits IV, 633 (trad. em Dicionárro dos filósofos, 389).

128 I Foucault. Simplesmente


Lê-se que a produção de Foucault pode ser denominada
"História crítica do pensamento,,17, na medida em que realiza
análises (históricas) das condições de possibilidade para a cons-
trução de saberes. Essas condições dizem respeito, basicamen-
te, a dois procedimentos interdependentes: a "subjetivação" do
sujeito, entendida como o estabelecimento das condições se-
gundo as quais, em uma determinada sociedade, em uma de-
terminada época, um sujeito pode ser legitimado como "sujei-
to do conhecimento"; a "objetivação" do objeto, entendida como
o estabelecimento das condições segundo as quais, em uma de-
terminada sociedade, em uma determinada época, alguma coi-
sa pode ser qualificada como objeto para um conhecimento
possível. Lê-se, a seguir, que a investigação de Foucault ocupa-
se, não com quaisquer modalidades de "subjetivação" e de "ob-
jetivação" para a construção de quaisquer saberes possíveis, mas
com aqueles, precisamente, em que o próprio sujeito é colocado
como objeto de conhecimento.
Apresentado como uma espécie de fio condutor dos escri-
tos de Foucault, o ponto de vista da "constituição do sujeito"
permite, inclusive, dar-lhes um novo desenho, dispondo-os em
um modo novo de repartição. Com efeito, estudos sobre o per-
curso da produção foucaultiana fornecem algumas formas de
agrupar seus escritos.
• A mais conhecida reúne-os segundo os momentos "me-
todológicos", coincidindo com sua sucessão cronológi-
ca: arqueologia (História da loucura, O nascimento da clz'nica,
As palavras e as coisas, A arqueologia do saber); genealogia
(Vigiar e punir, A vontade de saber, vol. I de História da sexua-
lidade); vertente ética (O uso dos prazeres, O c/fidado de si,
vols. 11 e III de História da sexualidade). Organização seme-
lhante já foi também formulada em termos de priorida-
de de "áreas": epistemológica, política, ética.

17. Ibid., 631 (trad., 389).

Michel Foucault e o dilaceramento do autor I 129


• Outro modo de organizar tem por critério a "transitivi-
dade" ou "intransitividade" da dimensão discursiva às
práticas extradiscursivas (por exemplo, enquanto As pa-
lavras e as coisas se classifica no nível discursivo estrito,
História da loucura e Vigiar e punir misturam-no ao das
práticas sociais). Organização semelhante tem por crité-
rio, como uma espécie de pano de fundo, a questão do
"Mesmo" e do "Outro" (por exemplo, História da loucura
é uma história do "Qutrol) e As palavras e as coisas é uma
história do "Mesmo").
Ora, o "projeto geral" proposto justifica agora uma nova
organização dos escritos de Foucault, que não se opõe necessa-
riamente às anteriores, mas as amplia ou mesmo as recobre. Tra-
ta-se de redistribuí-Ios - retrospectivamente, é claro - em três
conjuntos, de acordo com diferentes modos de operar a análise
da constituição do sujeito enquanto objeto de conhecimento:
• análise da constituição do sujeito enquanto objeto de
conhecimento com pretensão a estatuto científico (isto
é, enquanto objeto das chamadas ciências humanas) -
temos aqui As palavras e as coisas;
• análise da constituição do sujeito enquanto objeto do
conhecimento como "o outro lado de uma partição nor-
mativa,,18 (isto é, como o louco, o doente, o delinquente)
e - temos História da loucura, O nascimento da clínica, Vigiar
e punir,
• análise da "constituição do sujeito como objeto para ele
mesmo"19 - temos os volumes de História da sexualidade.

Com essas observações, o que interessa é fazer notar que,


malgrado o título, não é do "autor" que o texto fala, mas de sua
produção discursiva, a qual é conduzida pela temática da "cons-

18. Ibid., 633 (cead., 389).


19. Ibid., 633 (trad., 389).

130 I Foucault, simplesmente


tltUlção do sujeito", a tal ponto que permite, inclusive, um
rearranjo do conjunto de escritos.

111. R assinatura" o paradoxo

Atenuada, a estranheza porém ressurge e, com ela, faz


ressurgir o paradoxo sugerido anteriormente. É quando se aten-
ta para o fato de que o texto do verbete, inicialmente solicitado
a François Ewald, então assistente de Michel Foucault, foi redi-
gido e vem assinado por um certo Maurice Florence ou, abrevi-
ando, se se quiser, M. F. Ora, quem desenvolveu aquela concep-
ção teórica sobre a categoria do autor e nela pretendeu diluir o
seu próprio apagamento parece agora revestir-se de um disfar-
ce que, ao contrário, o expõe à plena luz.
Entretanto, suspeita-se aqui, mais uma vez, de que tudo
seja ainda um prosseguimento daquele jogo estratégico no qual
quem ainda é apenas alguém. Suspeita-se de que, se a função-
autor é não somente recebida, mas modificável, Foucault a "re-
toma por sua conta" e "a modifica". E dessa suspeita há pelo
menos dois indícios. Primeiro, se lembrarmos que a função-
autor é uma particularização da função-sujeito, é estrategica-
mente instrutivo que o título-autor recubra um texto cujo de-
senvolvimento trata da questão do sujeito. Segundo, é possível
que, em contrapartida a uma abordagem mais "negativa" (como
em A ordem do discurso) da função-autor, esse texto realize~, em
sua materialidade, a positiva explicitação de uma pluralidade
possível de "posições-sujeitos".
Em suma e para concluir, ao mesmo tempo em que, sob o
título, o texto permite um desdobramento do próprio título:
também permite, sob a assinatura, um desdobramento do au-
tor que a si próprio se coloca numa espécie de zona limítro-
fe em que ele é e pode não ser igual a si mesmo.

Michel Foucault e o dilaceramento do autor ) 131


BIBLIOGRAFIA

Os textos utilizados ou citados ao longo dos artigos estão


referenciados nas respectivas notas. Acrescentamos aqui uma
relação das obras de Michel Foucault seguida de uma relação
de traduções em língua portuguesa.

Obras de Michel Foucault


• Maladie mentale et personnalité. Paris, PUF, 1954.
• Falie et déraison. Histoire de la folie à l'âge classique. Paris, PIon,
1961.
• lntroduction à l'anthropologie de Kant. These complémentaire pour
le Docrorat, directeur d'études J. Hyppolite. Paris, 1961 (Texto
datilografado) .
• Maladie mentale et psychologie. Paris, PUF, 1962.
• Naissance de la clinique. Une archéologie du regard médical. Paris,
PUF,1963.
• Raymond Roussel. Paris, Gallimard, 1963.
• Les Mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. Paris,
Gallimard, 1966.
• L'Archéologie du savoir. Paris, Gallimard, 1969.
• L'Ordre du discours. Leçon inaugural au Col/ége de France prononcée
le 2 décembre 1970. Paris, Gallimard, 1971.·

bibliografia ! 133
o Histoire de la folie à l'âge classique (2eme ed. augmentée). Paris,
Gallimard, 1972.
• Moi) Pierre Riviêre) ayant égorgé ma mere) ma soeur et mon frere ... Un
cas de parricide au XIX siécle (coord. par Michel Foucault). Paris,
Gallimard/Julliard, 1973.
• Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris) Gallimard, 1975.
• Histoire de la sexualité) L La Volonté de savoir. Paris, Gallimard,
1976.
o Herculine Barbin dite Alexine B. (présenté par Michel Foucault).
Paris, Gallimard, 1982.
o Le Désordre des familles. Lettres de cachet des Archives de la Bastille au
XVIlIeme siêcle (présentées para Arlette Farge et Michel Fou-
cault). Paris, Gallimatd, 1982.
o Histoire de la sexualité, 11. L 'Usage des plaisirs. Paris, Gallimard,
1984.
• Histoire de la sexualité, III. Le Souci de soi. Paris, Gallimard, 1984.
o Résumés des cours du Collége de France, 1970-1982. Paris, Julliard,
1989.
• Dits et écrits, 1954-1988, 4 vaIs. Édition établie sous la direction
de Daniel Defert et François Ewald, avec la collaboration de
Jacgues Lagtange Paris, Gallimatd, 1994 (2 vols. Paris, Galli-
mard,2001).
o "I! faut défendre la société". Cours au Collége de France, 1975-1976.
Édition étab!ie sous la direction de François Ewald et Alessan-
dro Fontana, par Mauro Bertani e Alesssanclro Fontana. Paris,
Gallimard/Seuil, 1999.
°Les Anormaux. Cours au Collégede France,1974-1975. Édition établie
sous la direction de François Ewald et Alessandro Fontana, par
Valerio Marchetti et Antonella Salomini. Paris, Gallimard/Seuil,
1999.
o L'Herméneutique du sujeI. Cours au Collége de France, 1981-1982.
Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessan-
dro Fontana, par Frédéric Gros. Paris, Gallimard/Seuil, 2001.
o Le Pouvoir psychiatrique.Cours au Collége de France, 1973-1974.
Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessan-
dro Fontana, par Jacgues Lagtange. Paris, Gallimard/SeuiI2003.

134 ! Foucault. Simplesmente


o Sécurité, territoire, population.Cours au Collége de France, 1977-1978.
Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessan-
dro Fontana, par Michel Senellart. Paris, Gallimard/Seuil, 2004.
o Naissance de la biopolitique. Cours au Collége de France, 1978-1979.
Édition établie par François Ewald et Alessandro Fontana, par
Michel Senellarr. Paris, Gallimard/Seuil, 2004.

Obras de Michel Foucault traduzidas para o português

Livros
o Doença mental e psicologia. Tradução de Lílian Rose Shalders. Re-
visão técnica de Chaim Samuel Katz. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1975.
• História da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira
Coelho Neto. São Paulo, Perspectiva, 1978.
o O Nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro, Forense Universitária, 1977.
• Raymond Roussel. Tradução de Manoel Barros da Motta e Vera
Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária,
1999.
• As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Tra-
dução de Salma Tannus MuchailJ São Paulo, Martins Fontes,
1981.
o A arqueologia do saber. Tradução de Luís Felipe Baeta Neves. Rio
de Janeiro, Forense Universitária, 1972.
• A ordem do discurso. Aula inaugural no College de France pronunciada
em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Lauta Fraga de Almeida
Sampaio. São Paulo, Loyola, 1996. (Edição portuguesa revista
por Nuno Nabais, Lisboa, Relógio D'Água Editores, 1997.)
• Eu, Pierre Riviere) que degolei minha mãe) minha irmã e meu irmão ...
Um caso de parricídio do século XIX (apresentado por Michel Fou-
cault). Tradução de Denise Lezan de Almeida. Revisão técnica
de Geotges Lamaziére. Rio de Janeiro, Graal, 1977.
o Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Tradução de Raguel Rama-
lhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

bibliografia I 135
• Herculine Barbin. o diário de uma hermafrodita (Prefácio de Mi-
chel Foucaulr). Tradução de Irley Franco. Rio de Janeiro, Fran-
cisco Alves, 1982.
• História da sexualidade, r. A vontade de saber. Tradução de Maria
Thereza da Cosra Albuquerque e José Augusto Guilhon Albu-
querque. Rio de Janeiro, Graal, 1977.
• História M sexualiMde, 11. O uso dos prazeres. Tradução de Maria
Thereza da Cosra Albuquerque. Revisão récnica de José Augus-
to Guilhon Alburqueque. Rio de Janeiro, Graal, 1984.
• História da sexualidade, III. O cuidado de si. Tradução de Maria
Thereza da Costa Albuquerque. Revisão técnica de José Augus-
to Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 1985.

Textos avulsos e coletâneas


• "Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao círculo episte-
mológico". In: Estruturalismo e Teoria M Linguagem. Tradução de
Luís Felipe Baera Neves. Perrópolis, Vozes, 1971, p. 9-55.
• "Entrevista com Michel Foucault". Por Sérgio Paulo Rouanet e
José Guilherme Merquior. In: O Homem e o discurso (A arqueolo-
gia de Michel Poucault), Comunicação/3. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1971, p. 17-42.
• "Resposta a uma questão". In: Tempo Brasileiro, Epistemologia/
28, jan-mar. 1972, p. 57-81.
• A verMde e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Machado e
Eduardo Jardim Morais. Cadernos M PUCjR]. Série Lerras e Ar-
res, 06/74, n. 16, PUC/RJ, Rio, 1974. (republicado no Rio de
Janeiro, Nau Editora, 1994).
• Microftsica do poder. Tradução de Lílian Holzmeister, Ângela Lou-
reiro de Souza, Marcelo Catan, Roberto Machado, Marcelo Mar-
ques Damião,José Thomaz ~rum Duarte, Déborah Danowski,
Maria Teresa de Oliveira. Organização, introdução e revisão
récnica de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979 (reu-
nião de textos diversos).
• Nietzsche, Marx, Preud. e Theatrum philosoficum. Tradução de Jor-
ge Lima Barreto. São Paulo, Princípio, 1987 (republicação de

136 1 Foucault, simplesmente


edição portuguesa, 1. ed. Rés Editora Porto, 1975,2' e 3' ed.,
Publicaçães Anagrama, Porto, 1980 e 1982).
• O Dossier. Últimas entrevistas. Introdução e organização de Car~
los Henrique de Escobar. Tradução de Ana Maria de A. Lima e
M. da Glória R da Silva. Rio de Janeiro, Taurus, 1984 (inclui
três entrevistas com Michel Foucault: «Sobre a genealogia da
ética: uma visão do trabalho em andamento", "O cuidado com
a verdade", "O retorno da moral" e uma transcrição da aula "O
que é o iluminismo?").
• Isto não é um cachimbo. Tradução de Jorge Coli. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1988.
• O pensamento do exterior. Tradução de Nurimar Falei. São Paulo,
Princípio, 1990.
• O que é um autor? seguido de A vida dos homens infames e A escrita
de si. Tradução de Antônio Fernando Cascais e Edmundo Cor-
deiro. Prefácio de José A. Bragança de Miranda e Antônio Fer-
nando Cascais. Lisboa, Vega, 1992.
• Michel Poucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow.
In: RABINOW, P. e DREYFus, H., Uma Trajetória filosófica. Para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Portocarrero.
Introdução traduzida por Antônio Carlos Maia. Rio de Janeiro,
Forense Universirária, 1995 (Apêndice à 2. edição).
• Resposta a Derrida. In: Três tempos sobre a história da loucura. Orga-
nização de Maria Cristina Franco Ferraz. Tradução de Vera Lúcia
Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001.
• Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Cole-
ção "Ditos e Escritos", voI. r. Organização e seleção de textos de
Manoel Barros da Motta. Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribei-
ro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999.
• Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pen:samento. Cole-
ção "Ditos e Escritos", voI. II. Organização e seleção de textos
de Manoel Barros da Motta. Tradução de Elisa Monreiro. Rio
de Janeiro, Forense Universitária, 2000.
• Estética: literatura e pintura) música e cinema. Coleção "Ditos e Es-
critos", voI. IIr. Organização e seleção de texto de Manoel Bar-

bibliografia I 137
ros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio
de Janeiro) Forense Universitária, 2001.
• Estratégia, poder-saber. Coleção "Ditos e Escritos", vol. IV. Orga-
nização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Tradu-
ção de Veta Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Uni-
versitária, 2003.
• Ética, sexualidade, política. Coleção "Ditos e Escritos", voI. V. Or-
ganização e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Tra-
dução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio
de Janeiro, Forense Universitária, 2004.

[ursos
• Resumo dos cursos do Collége de France,1970-1982. Tradução de
Andréa Daher. Consultoria de Roberto Machado. Rio deJanei-
ro, Zahar, 1997.
• Em defesa da sociedade. Curso no Collége de France,1975-1976. Tra-
dução de Maria Ermantina Galvão, São Paulo, Martins Fon-
tes,1999.
• Os Anormais. Curso no Collége de France, 1974-1975. Tradução de
Eduardo Brandão_ São Paulo, Martins Fontes, 2001.
• A Hermenêutica do sujeito. Curso no Coll'ge de France, 1981-1982.
Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail.
São Paulo, Martins Fontes, 2004.

138 ! Foucault. simplesmente


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