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FOUCRULT,
SIMPLESMENTE
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PUCRS/BCE
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0.968.999-2
PREPARAÇÃO: Marcelo Perine
DIAGRAMAÇÃO: Maurélio Barbosa
REVISÃO: Maurício B. Leal
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ISBN: 85-15-02992-8
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004
SUMRRIO
Apresentação ................... . 7
O MESMO E O OUTRO
Faces da história da loucura 37
, _ _ o, , _... _.
OEMOCRRCIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de Mich~1 Foucault
e Cornelius Castoriadis ... o •••••••••••••
..................... 109
apresentação ! 7
sença de um único objeto. Por fim, o caráter dos textos é igual-
mente diverso. Alguns possuem um sentido mais geral, pois,
tratando de métodos, periodizações e problemas centrais dos
escritos de Foucault, servem de iniciação à sua leitura. Outros,
mais específicos, realizam análises detidas sobre temas preci-
sos, favorecendo a compreensão de um pensamento tão pro-
fundo e complexo quanto instigante.
A unidade de significado do livro, por sua vez, deve-se à
natureza dos textos que o constituem. Resultado de uma leitu-
ra e de uma análise detidas dos escritos de Michel Foucault,
este livro tem sua índole vinculada ao ensino. Todos os textos
nele reunidos ou nasceram de aulas ministradas por sua autora
ou destinavam-se a prepará-las. Talvez por este motivo sejam
tão didáticos, pois na medida em que discutem diferentes as-
pectos do pensamento de Foucault, acima de tudo, esclarecem
o leitor a seu respeito.
Desse modo, aos leitores deste livro diverso, escrito em
muitos tempos, desdobrado em muitos temas, será possível
apreender um pensamento que tem muito a dizer ao nosso pre-
sente. Assim como dizer Foucaul~ simplesmente implica tantas
outras coisas - como a pluralidade do pensamento, a diversifi-
cação das abordagens, a profundidade das análises -, a leitura
desta simples reunião de textos tem muito a nos propor e ensinar.
8 I Foucault. simplesmente
A TRAJETÓRIA DE
MICHEL FOUCAULr
•••
Em texto de 1968, assim descrevia Foucault os propósitos
de suas primeiras investigações: "determinar, nas suas dimen-
sões diversas, o que deve ter sido na Europa, desde o século
XVII, o modo de existência dos discursos e singularmente dos
discursos científicos (... ) para que se constitua o saber que é
nosso hoje e, de maneira mais precisa, o saber que se deu por
domínio este curioso objeto que é o homem,,2.
O primeiro momento de seus escritos tem, portanto, um
enfoque explicitamente histórico ("na Europa, desde o século
XVII" ... até "o saber que é nosso hoje") e a preocupação está
10 I Foucault, simplesmente
centrada na descrição dos discursos, não porém quaisquer dis-
cursos, mas aqueles considerados científicos e, mais particular-
mente, os das chamadas ciências humanas ("o saber que se deu
por domínio este curioso objeto que é o homem").
Observe-se que esta descrição histórica dos discursos não é
feita nem à maneira do "comentário", nem ao modo de uma
análise lingüística. O comentário é uma espécie de discurso se-
gundo a duplicar o discurso comentado, buscando fazer surgir
alguma verdade implícita no dito explícito do discurso primei-
ro. Supõe, por um lado, alguma origem mais remota a ser reen-
contrada e um sentido oculto a ser decifrado; e supõe, por ou-
tro lado, que esta origem e este sentido - mais essencial e, ao
mesmo tempo, mudo - de algum modo atravessam o sentido
explícito, nele dormitam, a fim de que possam ser trazidos à luz
pelo comentário. Supõe, pois, um conteúdo de significações
"já-dito" e, simultaneamente, "jamais-dito"3. Nas análises de
Foucault, ao contrário, os discursos são tomados em sua posi-
tividade, como "fatos", e trata-se de buscar não sua origem ou
seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as
regras que presidem seu surgimento, seu funcionamento, suas
mudanças, seu desaparecimento, em determinada época, assim
como as novas regras que presidem a formação de novos dis-
cursos em outra época. A análise lingüística, por sua vez, diz
respeito à língua como sistema formal que rege a formulação
tanto de enunciados efetivamente realizados como a dos que,
em tese e em número infinito, poderiam vir a ser constituídos.
Já a descrição foucaultiana dos fatos discursivos se limita a enun-
ciados já formulados que compõem as formações discursivas, e
quer estabelecer não as regras formais de sua inteligibilidade,
mas o jogo de regras que define as condições de possibilidade
do aparecimento, das transformações e do desaparecimento
12 I Foucault. simolesmente
to de investigação pode precisamente esfacelar-se sob o efeito da
própria análise. "Nada me prova", diz Foucault, "que os reencon-
trarei (esses domínios do saber eleitos como área de investigação)
ao termo da anãlise, nem que descobrirei o princípio de sua deli-
mitação e de sua individualização. Do mesmO modo, nada me
prova que tal descrição poderá dar conta da cienrificidade (ou da
não-cientificidade) desses conjuntos discursivos que assumi como
ponto de ataque e que apresentam todos, no início, certa pre-
sunção de racionalidade científica"s A escolha do domínio, por-
tanto, nem limita o método nem delimita o próprio domínio
escolhido. Trata-se tão-somente de "um privilégio de partida,,6.
•••
E contudo é um privilégio. Será nos escritos posteriores
que se tornarão mais claros os motivos de semelhante eleição.
Em uma passagem de 1976, a respeito dos escritos do segundo
momento de sua trajetória, Foucault assim declarava: "O que
tentei investigar, de 1970 até agora, grosso modo, foi o como do
poder; tentei discernir os mecanismos existentes entre dois pon-
tos de referência, dois limites: por um lado, as regras de direito
que delimitam formalmente o poder e, por outro, oS efeitos de
verdade que este poder produz, transmite e que por sua vez
reproduzem-no,,7.
Ora, é a investigação sobre os discursos científicos - e entre
eles sobre "os que têm por domínio este curioso objeto que é o
homem" - que melhor lhe permite trazer à tona "os mecanis-
mos existentes" entre exercícios de poder e produção de sabe-
res reconhecidos como verdadeiros. Com efeito, são regiões do
***
Em entrevista concedida pouco antes de sua morte, assim
se exprimiu Foucault a respeito de seus últimos escritos: "Ten-
12. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis·
tas, org. de C. H. ESCOBAR, trad. Ana Maria de A Lima e M. da Glória R da
Silva, Rio de Janeiro, Taurus, 1984, 75.
13. Cf. BARBEDEITE, G. eSCALA, A., "O retorno da moral", in O Dossier-
últimas entrevistas, 136; R BELLOUR, "Um devaneio moral", in O Dossier - últi·
mas entrevistas, 86; FOUCAULT, M., História da sexualidade, voI. 11, O uso dos praze-
res, trad. M. T. da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, "Introdu-
ção", 16.
16 I Foucault. simplesmente
A alteração na cronologia foi acompanhada por mudanças
teóricas e deslocamentos de temas. Agora, o foco das investiga-
ções será o sujeito, não porém como aquele "curioso objeto" de
um domínio de saber, mas como sujeito ético, indivíduo que se
constitui a si mesmo, tomando então a relação a si e aos ou-
tros, enquanto "sujeito do desejo"14, como espaço de referência.
Nesse enfoque, a perspectiva que ele privilegia não é a dos
códigos morais, jurídicos ou religiosos, ou a das leis defini-
doras do que é permitido ou interditado, mas a da conduta, do
modo de comportar-se ou das posições em face de códigos e
leis, daquilo, enfim, que Foucault chama de "práticas de si",
"técnicas da vida", "artes da existência"ls.
Ao privilegiar essa perspectiva, a investigação permite me-
lhor aproximar dados da Antiguidade de problemas de nossa
atualidade, mantendo, assim, a característica da genealogia de
compreender o presente. A este propósito, eis algumas observa-
ções de Foucaulr: "O que me impressionou é que na ética grega
as pessoas se preocupavam com sua conduta moral, sua ética,
suas ligações com elas próprias e com os outros muito mais do
que com problemas religiosos (... ). A segunda observação é que
a ética não estava relacionada a nenhum sistema social - ou
pelo menos legal-institucional (... ). O terceiro ponto a observar
é que o que os preocupava, seu tema, era constituir um tipo de
ética que era uma estética da existência". E as aproximações
que em seguida faz: ''(. .. ) eu me pergunto se nosso problema
atualmente não é, de certa maneira, semelhante a este, desde
que a maioria de nós já não acredita que a ética esteja fundada
na religião, e nem quer um sistema legal que interfira na nossa
moral pessoal, privada (... ). Estou interessado nessa semelhança
de problemas"16.
17. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier - últimas entrevis-
tas, 76.
18. Ibid., 75.
19. FOUCAULT, M., O uso dos prazeres, "Introdução", 12 (os títulos entre
parênteses foram acrescentados por nós).
18 ! Foucault. simplesmente
l
Um segundo eixo desses escritos está em certo ângulo a
partir do qual os temas são abordados. Todos eles se direcio-
nam a "problematizações". Aliás, o segundo tópico da "Intro-
dução" de O uso dos prazeres tem por título "As formas de proble-
matização". Eis ainda uma passagem em que esse eixo comum
é explicitado: "Em A história da loucura a questão era saber como
e porque a loucura, num dado momento, foi problematizada
através de uma certa prática institucional e um certo aparelho
de conhecimento. Do mesmo modo, em Vigiar e punir, tratava-
se de analisar as mudanças na problematização das relações
entre delinqüência e castigo através de práticas penais e insti-
tuições penitenciárias no fim do século XVIII e no início do
século XIX. Agora, como se problematiza a atividade sexual?,,20.
Os dois eixos comuns, por sua vez ~ o propósito de fazer a
história das relações entre pensamento e verdade e o ângulo das
problematizações~, articulam-se entre si, já que por "problema-
tização" deve-se entender "o conjunto de práticas discursivas ou
não-discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro
e do falso e a constitui como objeto para o pensamento JJ21 .
•••
A partir daqueles eixos de aproximação pode-se, finalmen-
te, compreender a reunião dos três momentos da trajetória de
Foucault em um mesmo conjunto, sem contudo escamotear
suas diferenças: o primeiro momento interroga o que habitual-
mente se entende por "progresso do conhecimento", conduzin-
do à análise das práticas discursivas constitutivas dos saberes
reconhecidos como verdadeiros; o segundo interroga o que ha-
bitualmente se entende por "poder", conduzindo à análise dos
mecanismos de exercícios dos poderes relacionados à produção
de saberes; o terceiro momento interroga o que habitualmente
20. EWALD, F., "O cuidado com a verdade", in O Dossier- últimas entrevis-
tas, 76.
21. Ibid., 76.
l
se entende por "sujeito", conduzindo à análise da "constituição
de si mesmo como sujeito"22. Ou pode-se, inversamente, enu-
merar os momentos dessa trajetória acent~ando as diferenças
sem necessariamente perder suas conjunções: trata-se, como
indica um estudioso de Foucault, de três campos ou continentes
de reflexão, um mais marcadamente epistemológico, outro po-
lítico, outro étic023 ; ou trata-se, como se exprime o mesmo Fou-
cault, de três ordens de problemas, "o da verdade, o do poder e
o da conduta individual"24.
De todo modo, a reconstituição da trajetória desse pensa-
mento, quer se lhe acentuem os momentos, quer se lhe realce o
conjunto, faz nela perceber a presença daqueles traços com que
Foucault desenha o perfil, hoje, do intelectual e que, em certas
passagens, ele descreve como exigências, por exemplo, assim
expressas: "Conseguir pensar algo que não seja o que se pensa-
va antes,,25; "ser capaz permanentemente de se desprender de si
mesmo"26; "pensar diferentemente do que se pensa e perceber
diferentemente do que se vê,,27.
Semelhanças e dessemelhanças, aproximações e diferenças
compõem assim um tipo de pensamento - a que se pode cha-
mar filosofia - que duvida do estabelecido, que abala o habi-
tual e que, por isso mesmo, expõe a si próprio à mobilidade e
dispõe-se constantemente a se recompor.
20 I Foucault. simplesmente
11
A FILOSOFIA COMO
CRíTICA DA CULTURA
Filosofia e/ou história?*
22 I Foucault, simplesmente
preensão de outras situações e de outras formações culturais. Se
nossa particularidade nos limita é também, paradoxalmente, o
único meio de acesso à compreensão de outras situações parti-
culares com as quais podemos nos comunicar enquanto varian-
tes da nossa6• Ou seja, é nossa experiência de sujeitos situados,
pela qual vivenciamos uma "co-existência histórica"?, que impe-
de, por um lado, a submissão da história à força de uma lógica
todo-poderosa e atemporal e, por outro, a sua redução a uma
reunião de fatos circunstanciais e sem significação. Nessa medi-
da, história e filosofia serão não apenas solidárias, mas ainda
mutuamente indispensáveis. Uma história que se estreitasse a
um relato empírico dos fatos sem buscar compreender-lhes a
significação através do concurso da filosofia "não saberia, lite-
ralmente, do que ela fala", assim como uma filosofia que sobre-
voasse os fatos "só desembocaria em verdades formais, isto é,
em erros"s. Assim, se para Merleau-Poncy só "haverá história na
medida em que houver uma lógica na contingência, uma razão
na desrazão"9, pode-se completar que só haverá filosofia se os
sentidos ou as verdades que ela busca forem procurados no seio
do devir, na trama histórica dos acontecimentos.
Merleau-Ponty atribuía assim certa inerência entre o tra-
balho do historiador e o do filósofo. Não foi, é claro, a primeira
nem a última vez que um pensador travou relações entre filoso-
fia e história. Mas a peculiaridade está, cremos, em que neste
caso as relações não são tão sistemáticas a ponto de conduzir
finalmente à anulação de uma sob o jugo da outra; e sobretudo
26 I Foucault. simplesmente
oculto" de que supostamente estariam carregadosr 9 . Esses pro-
cedimentos têm em comum o uso da técnica que lhes é apro-
priada, a saber, o tratamento dos textos na forma de "comentá-
rios", capazes que seriam de trazer à luz a suposta origem e o
suposto segredo que o discurso explícito implicitamente conte-
ria. Mais ainda, esses procedimentos cunham a história com a
marca unitária do contínuo e da sub}etividade. São próprios
às histórias "do espírito" e às histórias "globais". Com efeito,
uma "história do espírito" é precisamente aquela que, median-
te a "decifração" dos textos, quer desvelar a "consciência", as
"intenções" ou o "espírito" que os teriam inspirado20 ; uma "his-
tória global" é precisamente aquela que, na dispersão dos fatos
e documentos, quer encontrar "vestígios" que permitam traçar
uma linha contínua, uma direção única, que expliquem, de mo-
do uniforme e homogêneo, as multiplicidades e as transforma-
ções. Trata-se sempre, nesses casos, de histórias "evolutivas" ou
"progressivas", que não pensam as "diferenças" mas "as conti-
nuidades ininterruptas JJ2 ! de uma teleologia segura. Ainda mais,
assegurando a linearidade do progresso, essas histórias salva-
guardam a unidade soberana do sujeito, "consciência históri-
ca" que se constitui em núcleo unificador ou centro originário
capaz de reunir em si a explicação e, portanto, a dissolução da
heterogeneidade, da multiplicidade, da dispersão. Ao se salvar
a linha segura da continuidade histórica, de algum modo salva-
se ao mesmo tempo a consciência como seu eixo: "Querer fazer
da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciên-
cia humana o assunto originário de todo devi r e de toda prática
são as duas faces de um mesmo sistema de pensament,?JJ22.
19. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta a uma questão", Tempo Brasileiro) 28,
Rio de Janeiro, 1972,59.
20. Ibid., 65.
21. FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir, 21.
22. Ibid., 22.
28 I Foucault. Simplesmente
história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte e
dar a todos os deslocamentos passados a forma da reconcilia-
ção; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um
olhar de fim de mundo,m. A "história efetiva", ao contrário, a
genealogia, "reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado
imortal no homem"; reintroduz "o descontínuo em nosso pró-
prio ser,,28. A história tradicional, em sua perseguição da origem
(Ursprung), considerando "acidentais todas as peripécias que pu-
deram ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces"29,
pretende recuar ao reencontro de uma identidade enfim desve-
lada, essência única e sempre a mesma. Para a genealogia, ao
contrário, não há por trás da trama histórica qualquer identida-
de pura de um sentido ou de uma essência; o que existe é preci-
samente a multiplicidade de fisionomias, como tantas másca-
ras sob as quais não há um rosto a ser desmascarado: "A genea-
logia é um carnaval organizado"30. Recolhamos estes traços da
história praticada por Foucault na seleção de algumas passa-
gens em que ele explicita o perfil da genealogia. Primeiro, ela
recusa a identidade das origens e a segurança das teleologias: "A
genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profun-
da do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao
contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações
ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da
'origem"'31. Segundo, ela desvia o enfoque antropológico em
direção aos discursos que compõem os saberes: "É isto que eu
chamaria de genealogia, isto é, uma forma de história que
dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domí-
30 ! Foucault. simplesmente
conferida ao entendimento e à escrita da história, longe de ser
inocente, funciona como uma "estratégia" porque calcada num
comprometimento crítico com pretensões a uma eficácia políti-
ca. Ouçamo-lo mais uma vez: "Uma edição do Petit Larousse que
acaba de sair diz: 'Foucault: um filósofo que funda sua teoria da
história na descontinuidade'. Isto me deixa pasmado (... ). Meu
problema não foi absolutamente dizer: viva a descontinuidade,
estamos nela e nela ficamos; mas colocar a questão: como é
possível que se tenha, em certos momentos e em certas ordens
do saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolu-
ção, estas transformações que não correspondem à imagem tran-
qüila e continuísta que normalmente se faz? Mas o importante
em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitu-
de, ou melhor, esta rapidez e esta amplitude são apenas o sinal
de outras coisas: uma modificação nas regras de formação dos
enunciados aceitos como cientificamente verdadeiros"35.
Ora, é precisamente a eleição, para domínio da investiga-
ção histórica, daquilo que é aceito "como cientificamente ver-
dadeiro" que nos encaminha à abordagem dos vínculos dessa
história com a questão da verdade enquanto assunto da filoso-
fia, e daí à compreensão do que chamamos seu comprometimen-
to crítico com a cultura.
Com efeito, ao privilegiar os acontecimentos discursivos
como campo de análise, Foucault restringe a região de seus es-
tudos: entre os discursos, aqueles que são reconhecidos como
científicos e, entre estes, os que compõem a região mais cam-
biante e imprecisa que é constituída pelos saberes das chamadas
ciências humanas. Essa escolha é, sem dúvida, uma estratégia. E
essa estratégia se aloja no ponto de cruzamento entre a questão
da verdade e os mecanismos do poder. Por um lado, ocupar-se,
enquanto filósofo, com a questão da verdade significa aqui não
ir em busca de uma essência a ser descoberta, mas descrever e
32 I Foucault. Simplesmente
Nesse sentido pois, ocupando-se da análise das relações entre
saber e poder que, mediados pela verdade, mutuamente se pro-
duzem e se reproduzem, a genealogia pretende constituir-se em
foco de crítica e em instrumento de resistência. Quer propor
"um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táti-
cas atuais,,40. E isso duplamente. Busca, por um lado, recuperar,
num trabalho que exige paciência e erudição, conteúdos histó-
ricos que foram subestimados ou silenciados pelo saber "quali-
ficado" das histórias tradicionais: mostra, por exemplo, de que
modo a pretensão ao estatuto científico dos saberes sobre o
homem lhes imprime as marcas do exercício do poder, atribuin-
do ao sujeito detentor do conhecimento sobre o homem a "com-
petência" que autoriza o domínio de seus "objetos", dissociando
assim o sujeito do conhecimento que "possui a verdade" de seus
"objetos" que "nada sabem"; descreve, em face das histórias da
Razão e do mesmo, a história da Desrazão e do Outro, revelan-
do os mecanismos correlatos de exclusão, de enclausuramen-
to e de redução ao silêncio; faz emergir, pela análise do nasci-
mento das prisões, conteúdos históricos que evidenciam o po-
der na forma da disciplina etc. Por outro lado, é aliada da recu-
peração de saberes considerados "ingênuos, hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível da cientificidade" (por exem-
plo, do doente, do enfermeiro, do delinqüente etc.)". "A genea-
logia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição
dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um
empreendimento para libertar a sujeição dos saberes históricos,
isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção
de um discurso teórico, unitário, formal e científico."42
Mais ainda: lembremos que enquanto a arqueologia pre-
tendia realçar principalmente as epistémes) isto é, o nível das
34 I Foucau!t. simplesmente
um "saber histórico das lutas" é, ele próprio, (saber", partícipe
da "história" e da "cultura". Daí o cuidado insistente de Fou-
caulr em não se vir a rransformar a análise realizada pelas ge-
nealogias em outro saber centralizador ou monopolizador da
"verdade" e, portanto, habilitado para o poder. Assim, em opo-
sição às teorias gerais e globalizantes, a crítica tem um caráter
local e específico 46 • Em oposição ao teórico "legislador", Fou-
cault sonha "com o intelectual destruidor das evidências e das
universalidades"47. "Neste sentido", escreve Roberto Machado,
«nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia têm por
objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria ou se consti-
tuir como sistema: o programa que elas formulam é o de reali-
zar análises fragmentárias e transformáveis."48
Essa mobilidade que é constitutiva da postura mesma das
investigações de Foucault vem confirmar aquela distância de
quaisquer dogmatismos a que inicialmente nos referíamos. E
permite que reencontremos, a respeito da filosofia e da histó-
ria, bem como das relações entre ambas, alguns aspectos que
apontávamos em nossas primeiras considerações em torno de
Merleau-Ponty. E pelo menos dois aspectos. Recusando a alter-
nativa entre uma história atravessada por um sentido teleológi-
co e uma história desprovida de sentido porque concebida como
um conglomerado de fatos, Merleau-Ponty recusava igualmen-
te tanto a ininteligibilidade da história como as pretensões "de
uma História Universal inteiramente desdobrada diante do his-
toriador como o seria sob o olhar de Deus,,49. As histórias que
Foucault escreve, além de avessas a qualquer aspiração de uni-
versalidade, assumem, na prática, aquela simultaneidade entre
36 I Foucault. Simplesmente
111
O MESMO E O OUTRO
Faces da história da loucura*
o mesmo e o outro j 37
páginas do Prefácio de As palavras e as coisas. Trara-se da rero-
mada de uma classificação dos animais, citada por Jorge L.
Borges, supostamente extraída de uma enciclopédia chinesa.
Segundo esta classificação, "os animais se dividem em: a) per-
tencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d)
leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluí-
dos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j)
inumeráveis, k) desenhados com um pincel fino de pêlo de
camelo, I) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que
de longe parecem moscasJ1 1.
Esta classificação reúne de modo incongruente categorias
sem nexo que, a nós, parecem impossíveis de "nomear, falar, pen-
sar,,2. Ora, a possibilidade e a impossibilidade de "nomear, falar,
pensar" podem ser analisadas em torno de três termos: ordem)
lugar, espaço. Com efeito, há uma ordem que, naquela classifica-
ção, parece vincular a seqüência das classes nela reunidas, a sa-
ber, a série alfabética. Mas, justamente, é esta ordem que ali pa-
rece não "caber". A estranheza da ordem está em sua articulação
com a ausência de lugar capaz de permitir a reunião das classes e
sua ordenação, ainda que meramente alfabética: "O absurdo ar-
ruína o e (ordem) da enumeração, marcando de impossibilidade
o em (lugar) onde se repartem as coisas enumeradas"3.
Ordem e lugar, porém, dependem de um espaço homogê-
neo e comum dentro do qual somente ou sobre o qual as
coisas possam ser localizáveis e ordenáveis, espaço que torna
possível nomeá-las, dizê-las, pensá-las. Assim, é a justaposição
desse e (ordem), desse em (lugar) e desse sobre (espaço) que
instaura, para nós, a estranheza dessa classificação 4 . Estranhe-
za, porém, para nós. Afinal, aquela classificação de animais
1. FOUCAULT, M., I..es mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, "Préface", 7.
2. Ibid., 11.
3. Ibid., 9.
4. Ibid., 8.
38 I Foucau!t. simplesmente
não é, por assim dizer, "ausente" de espaço; antes, repousa
sobre outro espaço: "A China ... não é justamente o lugar privi-
legiado do espaço?JJ5
Eis o "outro" em seu sentido mais amplo: limite de pensa-
mento e de linguagem para uma cultura, aquilo que a circunda
por fora e lhe escapa, simultaneamente, estranho e exterior.
Mas, a partir daí, pode-se também entender o "outro" em
seu sentido estrito: aquilo que, de dentro dos quadros de uma
cultura, a limita por dentro, diferença que lhe é inclusa, simul-
taneamente interna e estrangeira. É nesse sentido que a Histó-
ria da loucura é uma história do "outro": história daquilo que
pertence à nossa cultura - pensável, nomeável, dizível portan-
to -, mas constantemente ameaçado de submissão aos crité-
rios do "mesmo", precisamente porque ameaçador; história "da-
quilo que para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estra-
nho, a ser, portanto, excluído (para conjurar-lhe o perigo inte-
rior), encerrando-o, porém (para reduzir-lhe a alteridade)"6.
Nossa exposição pretende tão-somente retraçar, em resu-
mo, alguns aspectos dessa história7 • No conjunto do livro, a
descrição da experiência da loucura durante o período renas-
centista ocupa não mais que as 55 páginas do capítulo inicial.
É à experiência clássica - cuja vertente institucional é o Hospi-
tal Geral - e à experiência moderna - cuja vertente institucio-
nal é o Asilo - que, substancial e minuciosamente, se dedicam
as mais de 600 páginas do livro em suas três partes (as duas
primeiras ocupando-se da Idade Clássica e a terceira da nossa
Modernidade). Nas pretensões reduzidas desta exposição -
5. Ibid., 10.
6. Ibid., 15.
7. Para uma reconstituição mais completa do livro, leia-se MACHADO, R.,
Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal,
1982 (cf. "Arqueologia da percepção", 57-95). Também ROUANET, S. P., "A
gramática do homicídio", in O homem e o discurso (A arqueologia de Michel Fou-
cault), Rio. de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1971.
o mesmo e o outro I 39
pincelar algumas faces ou facetas da história desse "outro" que
é a loucura no Ocidente -, escolhemos tratar os três períodos
em proporções diversas às do livro. Por isso mesmo, e evitando
o risco de um resumo por demais empobrecedor, a aborda-
gem da Idade Clássica e da Modernidade será apenas pautada
em algumas passagens em que o próprio Foucault fornece des-
crições mais amplas desses dois momentos. Por motivos análo-
gos, a recomposição dessas "facetas" será organizada em dois
tópicos ou subi tens.
•••
Leprosários e navios
Ao término da Idade Média, nos limiares do Renascimento
(por volta dos fins do século XIV), começa o esvaziamento da-
quelas casas de "exclusão" e "purificação"s que se haviam multi-
plicado às portas das cidades medievais: os leprosários. A lepra
regride, não como resultado de práticas médicas, antes por força
da segregação dos leprosos (e, portanto, do contágio) e do final
das Cruzadas (e, portanto, do contato com focos de infecção do
Oriente). Com efeito, a lepra não era experimentada como "as-
sunto médico", a ser "suprimida" e "curada". Era, antes, uma
espécie de testemunho do mal ao mesmo tempo que de sua ex-
piação. Requeria, pois, o gesto ritual da cisão, rito que segregava
e, simultaneamente, sacralizava, gesto que excluía e, simultanea-
mente, purificava: "O pecador que abandona o leproso à sua
porta abre-lhe a salvação,,9.
A lepra regride, os leprosários se esvaziam. Porém, os "valo-
res" e as "imagens"lO, as "estruturas" e as "formas"ll que, du-
40 I Foucault. Simplesmente
rante a Idade Média, estão vinculados à instituição do leprosário
e ao personagem do leproso vão persistir; exclusão e purifica-
ção, segregação e sacralidade, reclusão e salvação serão trans-
postas, séculos mais tarde, para outras instituições - muitas
vezes nos mesmos lugares que antes abrigavam os leprosos - e
para outros personagens. Entre eles, o louco.
Assim, a loucura, de certo modo, assumirá, no decurso de
uma longa sucessão histórica, uma espécie de papel de herdeira
da lepra!'. Contudo, numa sucessão histórica longa, isto é, cer-
ca de dois séculos mais tarde (por volta da segunda metade do
século XVII e no século XVIII), na chamada Idade Clássica. Antes
disso, porém, no intermédio entre o final da Idade Média e o
início da Idade Clássica, ou seja, no chamado período renas-
centista (por volta dos séculos XV a XVII), ela ocupará outra
posição, ou melhor, circulará sem posição fixa.
Era freqüente nas composições literárias e pictóricas do
Renascimento a imagem de navios que transportavam "heróis
imaginários", "modelos éticos", "tipos sociais" cuja viagem sim-
bolizava seu "destino" ou sua "verdade"I3. Assim, títulos de obras
literárias incluíam, por exemplo, a Nau dos principes e das batalhas
de nobreza, a Nau das damas virtuosas, como também a Nau dos
loucos. Mas, em meio a essa onda literária e pictórica, a Nau
dos loucos guardava uma singular peculiaridade: a de existir real-
mente. De fato, expulsos das cidades, entregues a mercadores,
peregrinos ou marinheiros, os loucos vagavam, numa existên-
cia "errante"14. Para Foucault, esse "gesto que expulsa" está pró-
ximo do "rito,,15; a figura da nau carrega o simbolismo da água
que purifica e da navegação que é passagem. Água e navegação
cumprem, assim, o papel de manter o louco como "prisioneiro
em meio à mais livre e mais aberta das rotas: solidame~te preso
o mesmo e o outro I 41
à infinita encruzilhada. Ele é o Passageiro por excelência, isto é,
o prisioneiro da Passagem,,16.
A ambigüidade dessa simbologia corresponde à ambigüi-
dade da experiência renascentista da loucura, uma experiência
que envolvia duas vertentes simultâneas: um lado trágico, fas-
cinante e cósmico; um lado crítico, irônico e moral. O "fascínio
do trágico" transparece sobretudo nas imagens pictóricas: são
figuras fantásticas, humano-animalescas, que mostram a bestia-
lidade presente no coração do homem, impregnadas de um
saber hermético que anuncia a ameaça da desordem e do fim
do mundo e ao qual só os loucos têm acesso. Ao mesmo tempo,
a "ironia da crítica", que transparece sobretudo nas composi-
ções literárias e filosóficas, no verbo, no texto, na palavra: ali, a
loucura aparece como motivo de sátira ou de escárnio, não
mais como detentora dos segredos ocultos do cosmos, mas co-
mo mal e fraqueza humanos, de onde nascem a ambição dos
políticos, a avareza dos ricos, a presunção dos sábios (O Elogio
da loucura, de Erasmo, por exemplo, reserva, "na ronda de lou-
cos, um largo lugar para homens de saber" - gramáticos, poe-
tas, escritores, jurisconsultos, filósofos, teólogos etc.).l?
As duas vertentes da experiência renascentista da loucura,
simbolizadas pictórica e literariamente, certamente se entrecru-
zam: há temas morais nos quadros de]. Bosch; e Montaigne
sugere que loucura é fiar-se apenas na razão ls . Gradativamente,
porém, os dois pólos se distanciam e o elemento crítico ganha
relevo sobre o trágico. A ironia crítica, prioritária no texto, no
verbo, na palavra, voltada para a racionalidade e a moralidade
42 1 Foucault. simplesmente
humanas, ocupa cada vez mais o primeiro plano na experiência
da loucura, deixando na sombra o silêncio verbal e fascinante
das imagens trágicas carregadas de forças cósmicas. Sem dúvi-
da, observa Foucault, essa ocultação jamais abolirá inteiramen-
te a experiência do trágico: "esse desaparecimento não é uma
derrocada"l9. Nos séculos seguintes e até hoje, o trágico da lou-
cura subsistirá na obscuridade, como que "nas noites dos pen-
samentos e dos sonhos", como que "às escondidas" e "em vigí-
lia", de tal modo que, malgrado o predomínio cada vez maior
do racional, a presença subterrânea do trágico será pressentida
e testemunhada como que em erupções esporádicas (Nietzs-
che, Van Gogh, Artaud, Goya, Sade são alguns exemplos desses
pressentimentos e testemunhos).
Mas, no curso da história, a predominância do saber críti-
co sobre o trágico, marcando o domínio da razão sobre a lou-
cura, assinala o fim da experiência renascentista, abrindo o li-
miar da Idade Clássica e, a partir dela, os caminhos que condu-
zirão à experiência moderna da loucura, num deslocamento
que vai da Nau ao Hospital, do Hospital ao Asilo.
Hospitais e asilos
No começo do século XVII a loucura adentrou os muros da
cidade; internalizada, torna-se "familiar" em um mundo que lhe
é "estranhamente hospitaleiro"20. Não mais vagará: "Ei-la amar-
rada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e
mantida. Não mais nau, mas hospital"21. Não mais, com Mon-
taigne, a crítica à presunção da razão, mas, com Descartes, o
banimento da loucura do caminho que conduz à certeza22 • A
o mesmo e o outro I 43
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desordem irracional do trágico submete-se à ordem do racio-
nal. Demarcada por oposição à razão, a loucura é transformada
em desrazão, desrazão que, séculos mais tarde, se transmuta-
rá em doença mental.
No século XVII são fundados os Hospitais Gerais que cons-
tituem a estrutura visível e a forma institucional da cisão entre
razão e desrazão. O Hospital Geral de Paris, por exemplo, que
data de 1656, por decreto real sob Luís XIV, agrupava em uma
única administração estabelecimentos já existentes com fins
diversificados (como, entre outros, a Salpêtriere, que antes abri-
gava um arsenal, ou a Bicêtre, antes destinada a recolher invá-
lidos de guerra). Como em Paris, em toda a França, na Alema-
nha, na Inglaterra, são fundadas instituições para o internamen-
to, muitas delas estabelecidas nos antigos leprosários. E, assim
como os leprosários, os Hospitais Gerais, ainda que incluís-
sem visitas médicas em seu sistema de funcionamento, não
tinham propósito terapêutico:
"O classicismo inventou o internamento um pouco como a Ida-
de Média a segregação dos leprosos; o lugar deixado vazio por
estes foi ocupado por personagens novos no mundo europeu:
são os 'internados'. O leprosário não tinha um sentido apenas
médico; muitas outras funções eram desempenhadas neste ges-
to de banimento que abria espaços malditos. O gesto que inter-
na não é mais simples: ele também tem significações políticas,
sociais, religiosas, econômicas, morais,>23.
44 I Foucault. simplEsmente
suicidas, portadores de doenças venéreas, blasfemadores, alqui-
mistas, pretensas feiticeiras e, também, insensatos, cabeças alie-
nadas, espíritos transtornados ... Numa palavra, "homens de des-
razão"24. Diferentemente dos leprosos da Idade Média, que eram
"portadores do visível brasão do mal", os "novos proscritos da
Idade Clássica carregam os estigmas mais secretos da desrazão"25.
Diferentemente dos viajantes das naus renascentistas, que
vagando por toda parte eram uma presença igualmente "vaga",
mais pressentida que percebida, os hóspedes do Hospital Geral
são instalados, localizados, tornados "presença concreta" no
horizonte de uma «realidade social" que demarca explicitamen-
te a cisura entre a razão e a desrazã0 26 •
É lá, nesse espaço aberto pelo classicismo, cuja expressão
institucional foi o internamento, é lá, de dentro dele, que a
loucura será mais tarde "destacada", "individualizada", "isola-
da" e, enfim, "asilada", transportando consigo, porém, para os
tempos da Modernidade, os traços que marcavam os diferentes
grupos com que até então se avizinhava. A designação poste-
rior e moderna da loucura como alienação e depois como doença
mental não será o resultado direto de uma espécie de progresso
do conhecimento. Sua condição de possibilidade encontra-se
lá, naquele gesto que produzira a alienação, isto é, que segrega-
ra, que colocara a distância, que "alienara" a desrazão. É porque
já "distanciada", já segregada, que a loucura poderá, na Moder-
nidade, ser "separada" como objeto possível de conhecimento,
numa esfera que será não mais da desrazão, mas da alienação e
da doença mental:
"anexando ao domínio da desrazão, ao lado da loucura, as proi-
bições sexuais, as interdições religiosas, as liberdades do pensa-
mento e do coração, o classicismo formava uma experiência mo-
24. Ibid., II 7.
25. Ibid., 1I9.
26. Ibid., 117.
o mesmo e o outro I 4S
ral da desrazão que serve, no fundo, de solo para o nosso conhe-
cimento 'científico' da doença mental. Por esse distanciamento,
por essa dessacralização, perfaz ele uma aparência de neutralida-
de que já é comprometida, porque só alcançada no propósito ini-
cial de uma condenação"27.
46 I Foucault, simplesmente
sabilidades sociais. Nas casas de internamento, as decisões com-
petiam às autoridades sociais (magistrados, bispos, polícia) e o
louco tinha o estatuto de "sujeito social") perturbador da or-
dem, comprometido, pois, com "as vizinhanças da culpabilida-
de,,31. Ora, uma leitura histórica simplista veria na hospitaliza-
ção comum os indícios de uma espécie de progresso rumo à
Modernidade, quando, então, se reconheceria na loucura a doen-
ça, sua verdade de sempre, sua essência imutável.
Essa leitura simples seria plausível se Os fatos fossem sim-
ples; na verdade, ela inverte-lhes a ordem e a prioridade. A hos-
pitalização individualizada do louco nos hospitais comuns,
durante a Idade Clássica, não foi avanço rumo à Modernidade,
mas o resíduo ainda de uma percepção medieval e renascentista
em que a individualidade do louco era de algum modo reconhe-
cida, ainda que vagamente. O fato "novo", inclusive do ponto
de vista cronológico, da Idade Clássica foi justamente a transpo-
sição dos loucos das casas de cura para as casas de correção, e
não o inverso, de modo que a experiência mais ampla e relevan-
te da loucura foi seu internamento não Como procedimento
médico, mas como prática social. "Ê entre os muros do interna-
mento que Pinel e a psiquiatria do século XIX", escreve Fou-
cault, "encontrarão os loucos; é lá - não o esqueçamos - que os
deixarão, não sem antes se vangloriarem de os ter libertado"32.
Com efeito, no caminho desse percurso histórico é possível
compreender como a transformação que se operará a partir do
final do século XVIII e do início do século XIX, sobre o solo da
experiência classicista da loucura, consistirá numa espécie de jun-
ção entre suas duas vertentes, que, antes "justapostas", serão
depois "superpostas,,33. Em outras palavras: o "alienado" será
reconhecido simultaneamente como "incapaz e como louco"34;
o mesmo e o outro I 47
denominar-se-á "doença mental" essa união entre o fato de uma
incapacidade jurídica do indivíduo e o fato de um distúrbio
que afeta a vida social. E é essa junção do conceito de doença
como assunto médico à prática social do internamento, ou,
reciprocamente, a transformação do "internamento em ato te-
rapêutico"35, que, finalmente, caracterizará então a instauração
da instituição asilar.
• ••
A partir da reconstituição resumida de alguns aspectos
dessa história, podemos compreender que a loucura não seja
um "objeto" uniforme, consubstanciado numa verdade essen-
cial cuja identidade é sempre a mesma, mas antes um fato mul-
tifacetado, cujas verdades são historicamente produzidas e va-
riadas. Em palavras simples: '''a loucura não é um fato da natu-
reza' mas um fato da civilização"36. E sua história a mostra
como tantas faces que figuram o "outro" no interior do "mes-
mo". Para concluir, ousemos supor que esse "outro" de múlti-
plos rostos que atravessa a história de nossa cultura possivel-
mente atravessa também a história pessoal de cada um de nós.
Esta suposição está sugerida, talvez, no primeiro título que Fou-
cault pretendia dar a seu livro, "A outra forma da loucura,,37, e
na frase de Pascal que escolhera para iniciá-lo: "Os homens são
tão necessariamente loucos que seria uma outra forma de lou-
cura não ser louco".
SO I Foucault. simplesmente
ramente empírica do quadro em questão: "( ... ) bastaria dizer
que Velázquez compôs um quadro; que nesse quadro ele se
representou a si mesmo, em seu atélier ou num salão do Escorial,
a pintar duas personagens que a infanta Margarida vem con-
templar, rodeada de aias, de damas de companhia, de cortesãos
e de anões; que a esse grupo pode-se muito precisamente atri-
buir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina
Sarmiente, ali Nieto, no primeiro plano Nicolaso Pertusato,
bufa0 italiano. Bastaria acrescentar que as duas personagens
que servem de modelos ao pintor não são visíveis, ao menos
diretamente; mas que se pode distingui-las num espelho; que
se trata, sem dúvida, do rei Filipe IV e de sua esposa Mariana"2.
Porém, se deslocamos nosso olhar dessa visão imediata-
mente empírica e nos situamos numa região em que os nomes
não são diretamente colados às coisas percebidas, outra descri-
ção é possível. E é esta que nos interessa. Refaçamo-la em al-
guns de seus ângulos.
2. Ibid., 25.
3. Ibid., 21.
4. Ibid., 21.
S2 I Foucault. Simplesmente
revela o jogo ambíguo entre o real e o representado: é um es-
pectador "real" do ponto de vista do interior do quadro e, con-
tudo, "representado" do ponto de vista do exterior do quadro.
5. lbid., 321.
6. lbid., 323.
54 I Foucault, Simplesmente
nos agora apenas explorar alguns aspectos inerentes àquela po-
sição ambígua hoje ocupada pelo homem como "objeto para
um saber" e como "sujeito que conhece". E o primeiro aspecto
a apontar é que a instauração das ciências humanas requer,
intrinsecamente, que se atribua ao homem real o estatuto de
"coisa científica" a ser dominada pelo homem como sujeito
detentor do conhecimento. Ora, acontece também que, por
outro lado e ao mesmo tempo, uma vez que a racionalidade do
saber científico é erigida como critério exclusivo da validade de
todo saber e medida do verdadeiro, as ciências humanas carre-
gam em seu próprio bojo o risco inalienável da redução do
homem ao que dele se pode "cientificamente conhecer". O co-
nhecimento "científico" sobre o homem torna-se não só o único
saber qualificado e competente, isto é, aquele que tem o poder
de decidir sobre o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, o
normal e o patológico; corre também o risco inalienável de se
fazer sempre prescritivo, isto é, aquele que veicula as normas
pelas quais são desqualificáveis quaisquer outros saberes e re-
duzidos ao silêncio outros discursos. Como único saber quali-
ficado, assume então o direito da soberania cujo poder se exer-
ce pelos mecanismos da disciplina, do controle, da exclusão 7 •
Ele dissocia os que "possuem" a verdade porque "sabem" e os
demais que, simplesmente, "nada sabem".
Neste momento de nossas considerações, duas distinções
exploradas com extrema clareza por Marilena Chaut podem
56 I Foucault. Simplesmente
rias da educação, legisla, regulamenta e conttola o trabalho
pedagógico"lO. As estruturas mesmas das instituições escolares
são já um cumprimento dessas normas.
Mas é preciso não se iludir: o poder que legisla, regulamen-
ta e controla não está exclusivamente centralizado num saber
elaborado no exterior da instituição escolar, nela se exercendo
de fora para dentro e de cima para baixo. Ao contrário, na me-
dida mesma em que professores e alunos nos limitamos a cum-
prir as normas, a assimilar o saber "qualificado", trazemos para
dentro das próprias relações pedagógicas os mesmos mecanis-
mos e os mesmos efeitos de exercício do poder. É quando a
escola não pode ser um lugar onde se pensa para ser o lugar
onde se reproduz o conhecimento instituído. É quando as rela-
ções entre professor e estudante reproduzem a relação do sujei-
to que "possui" o saber com um "objeto" de educação.
Diríamos, finalmente, que é nesse tipo de configuração do
saber pedagógico e das relações pedagógicas que o "lugar do
rei", esse "soberano submetido", está plenamente ocupado. E
que o que se propõe, em contrapartida, é o esforço por reverter
semelhante configuração pelo esvaziamento da "posse" desse
espaço. Entenda-se: não estamos aqui a aspirar a um absurdo
regresso ao século XVII nem a um retorno à soberania da repre-
sentação. Por uma transposição mais metafórica que ilustrati-
va, e numa interpretação livre da análise foucaultiana do qua-
dro de Velázquez, estamos apenas endossando a proposta de
que, no saber da educação, na instituição escolar e nas relações
pedagógicas, fique vazio o "lugar do rei", isto é, desocupado de
qualquer sujeito soberano (quer na forma da representação, quer
no modo da realidade), destituído de todo direito da realeza.
Transposição metafórica e interpretação livre que pretende
apenas emoldurar, num cenário visual, a proposta muitas vezes
formulada por Marilena Chaui. A saber: a de que no trabalho
58 I Foucault. Simplesmente
v
O LUGAR DAS INSTITUiÇÕES
NA SOCIEDADE DISCIPLINAR'
60 I Foucault. Simplesmente
tipo determinado de instituições: aquelas que, num dado mo-
mento histórico, constituem peças na engrenagem de um tipo
determinado de sociedade, que é ainda a nossa, e que Foucault
chama de "instituições disciplinares".
.**
R instalação das instituições disciplinares
62 I Foucault, simplesmente
nham uma forma "compacta, forte", sendo depois substituídas
por instituições com iguais características, mas de "forma bran-
da, difusa,,6. Elas marcaram o aparecimento de fábricas, hospi-
tais, escolas, casas de correção, prisões etc., cujas características
de fundo ainda hoje permanecem. Foucault chama-as ainda de
"instituições de seqüestro", em razão de que a reclusão que elas
operam não pretende propriamente "excluir" o indivíduo re-
cluso, mas antes "incluí-lo" num sistema normalizador. Eis uma
passagem esclarecedora:
"Na época atual, rodas essas instituições ~ fábrica, escola, hospi-
tal psiquiátrico, hospital, prisão ~ têm por finalidade não ex-
cluir, mas, ao contrário, fixar os indivíduos. A fábrica não exclui
os indivíduos; liga-os a um aparelho de produção. A escola não
exclui os indivíduos; mesmo fechando-os, ela os fixa a um apare-
lho de transmissão do saber. O hospital psiquiátrico não exclui
os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um aparelho
de normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a ca-
sa de correção ou com a prisão"?
6. Ibid., 90. É ilustrativo ler (no mesmo texto, 86-88), a longa descrição
que Foucault fornece do regulamento de um destes tipos de instituições,
que, em sua forma mais "compacta", realmente existiu na França dos anos
1840-1845.
7. 1bid., 91-92.
64 I Foucault. Simplesmente
tão um tipo de poder que se exerce "por transparências", uma
dominação que se faz como por "iluminação"12.
Foucault lembra que se o projeto de Bentham fora inspira-
do na arquitetura já existente da Escola Militar de Paris (1751),
contudo, a designação que lhe deu - Panopticon - encerra
uma generalização altamente significativa. Com efeito, o proje-
to e seu nome não carregam apenas a idéia de uma técnica
específica destinada a "resolver um problema específico, como
O da prisão, o da escola ou o dos hospitais", mas sustentam
"um princípio de conjunto,,13 capaz de inaugurar o que viria a
ser o desenvolvimento de toda uma nova forma de poder. As-
sim, não é por acaso que o próprio Bentham refere-se à sua
invenção como "um ovo de Colombo", e que Giulius vê nela
"um acontecimento 'na história do espírito humano",14.
Entendido assim. como "princípio de conjunto", o traço
básico do panoptismo articula-se com transformações funda-
mentais e gerais na ordem do poder. Basta apontar, por exem-
plo, as conseqüências vantajosas que acarreta para os custos
políticos e econômicos do poder. Do pOnto de vista propria-
mente político, possibilita uma crítica ao funcionamento do
poder monárquico, que, exercendo-se com violência aparente e
garantindo Sua continuidade por meio de punições espetacula-
res para efeitos de exemplo, acaba por se tornar "um poder
muito oneroso e com poucos resultados"15. Economicamente,
o controle contínuo é de uma eficácia pouco dispendiosa, efe-
tivando-se por meio da organização de uma cadeia de olhares
vigilantes que, finalmente, cada indivíduo "acabará por interio-
rizar a ponto de observar a si mesmo", exercendo a vigilância
12. Cf. expressões usadas pelo autor em "O olho do poder", in Microfi:
sica do poder, 210, 216-217.
13. Ibid., 217.
14. Ibid., 209, 211, 218. Ver também: Surveiller et punir, 218, e A verdade
e as formas jurídicas, 85.
15. FOUCAULT, M., "O olho do poder", in Microfísica do poder, 217.
Funçóes
Controle do tempo
66 I Foucault. Simplesmente
prisões, nos orfanatos, nos hospitais, nas casas de correção etc.
como um dos nós que amarram essa rede de instituições.
1.
espaço hospitalar como nas prisões, de modo a "cobrir o corpo
social por inteiro,,22.
Foucaulr indica inclusive que foram as disciplinas corporais
(particularmente as militares e escolares) que tornaram possível
a elaboração de um "saber fisiológico, orgânico", um "saber so-
bre o corpo,,23. Mas indicar que o controle dos corpos engendra
saber já é referir-se ao caráter polimorfo do poder disciplinar.
22. FOUCAULT, M., Surveiller et punir; 141. Ver, a este respeito, particular-
mente todo o capítulo desse livro intitulado "Les corps dociles".
23. FOUCAULT, M., "Poder-Corpo", in Microfoica do poder, 148-149.
24. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 96.
25. Ibid., 96.
26. Ibid., 97.
68 I Faucault, simplesmente
pelos guardas, pelo diretor d3: prisão etc. Mas também é curio-
so, a esse respeito, o exemplo particular do sistema escolar,
quando Foucault faz ver quanto ele é "inteiramente baseado
em uma espécie de poder judiciário", explicitando que nele "a
todo momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica,
se diz quem é o melhor, quem é o pior,,27.
Poder econômico, poder político, poder judiciário, o poder
instalado nas instituições disciplinares é também epistemológi-
co, isto é, produz saberes. E os produz duplamente: quer extra-
indo saber dos indivíduos, quer elaborando saber sobre os indiví-
duos 28 . Um exemplo de saber extraído dos indivíduos ocorre em
instituições como fábricas, onde o saber do operário a respeito
de seu próprio trabalho, nascido de sua prática, e constante-
mente submetido à vigilância e ao registro, fornece elementos
para gerar saber acerca da produção. Por sua vez, saberes sobre o
indivíduo nascem das observações, das classificações, das ano-
tações a respeito do doente, do criminoso, da criança etc.
Em suma, e conseqüentemente, as instituições disciplina-
res fazem funcionar um poder que, polimorfo e polivalente,
não é essencialmente localizável em um pólo centralizado e
personificado, mas é principalmente difuso, espalhado, minu-
cioso, capilar.
***
Para concluir, o acréscimo de uma observação. É de se no-
tar que, nas análises das instituições disciplinares, muitas são
as passagens em que Foucault se detém particularmente nas
prisões. As conferências sobre A verdade e as formas jurídicas, como
27. Ibid., 97. Ver, também, o estudo destes caracteres no capítulo intitu-
lado "Le paroptisme", de Surveilleret punir; e, em Microfisica do poder; os artigos
"Soberania e disciplina" e "O olho do poder". Neste último (211-212), o
realce da importância de um estudo sobre "a arquitetura institucional" ("da
sala de aula ou da organização hospitalar"), ou a elaboração de uma "histó-
ria dos espaços" que seria também uma "história dos poderes".
28. FOUCAULT, M., A verdade e as formas juridicas, 97.
1
já dissemos, tomam por base as práticas judiciárias, cuja histó-
ria, por certo, se vincula mais diretamente às prisões. O livro
Vigiar e punir, que focaliza explicitamente o estudo de institui-
ções, traz como subtítulo O nascimento das prisões. É possível que
essa tônica ou esse realce se fundamente em dois aspectos que,
ambiguamente, se completam.
Por um lado, há uma certa singularidade da prisão. É nela,
diz Foucault, que o "Panopticon" encontra "seu lugar privile-
giado de realização", é nela que "a utopia de Bentham pôde,
num só lance, tomar uma forma material,,29. Tem, assim, a par-
ticularidade de concretizar o "panoptismo" da forma mais pal-
pável. Além disso, e talvez por isso, entre as instituições disci-
plinares, a prisão guarda certas peculiaridades: basta lembrar
que, afinal, não faz parte da vida rotineira das pessoas e, atin-
gindo, efetivamente, um número reduzido de indivíduos, tem
uma marca "local e marginal,,30. E é assim, contudo, com esta
marca, que a prisão desperta interesse ou curiosidade na maio-
ria das pessoas. Ora, segundo Foucault, isso talvez se explique
precisamente porque, entre as diversas instituições, é ela a úni-
ca "onde o poder pode se manifestar em estado puro, em suas
dimensões mais excessivas e se justificar como poder moral".
Ou seja: "O que é fascinante nas prisões é que nelas o poder
não se esconde, não se mascara cinicamente, se mostra como
tirania levada aos ínfimos detalhes, e ao mesmo tempo é puro,
é inteiramente 'justificado m31 .
Por outro lado, porém, a prisão também aparece como sendo
não mais que a forma "concentrada", "exemplar" e "simbólica"
de todas as outras instituições32 . Afinal, todas as outras institui-
ções realizam uma espécie ~e difusão discreta da prisão 33.
70 I Foucault. simplesmente
Assim, ao meSmo tempo em que é "diferente" das outras
instituições, todas lhe são semelhantes. Por isso, de um lado,
ela "inocenta" as demais, já que, afinal, só ela é prisão. (E o
discurso que ela então emite seria: "A melhor prova de que
vocês não estão na prisão é que eu existo como instituição par-
ticular, separada das outras ... ".) Mas, por outro, ela "se inocen-
ta" de ser prisão, pois, afinal, é apenas a forma mais transpa-
rente de todas as outras. (E o discurso que ela então emite seria:
"Eu faço unicamente aquilo que lhes fazem diariamente na fá-
brica, na escola etc.".)34
Essa ambigüidade da prisão explica, para Foucault, "seu
incrível sucesso, seu caráter quase evidente, a facilidade com
que ela foi aceita... "3S, explica "sua extrema solidez"36. E pode-
mos certamente completar: explica também, como que circular
e reciprocamente, a aceitação cotidiana de sua diluição mais
sutil por toda a rede das chamadas instituições disciplinares.
.....
VI
DE PRÁTICAS SOCIAIS À
PRODUÇÃO DE SABERES*
....
Pode-se dizer, de modo muito genérico, que os escritos de
Foucault investigam a verdade e seus vínculos com o poder.
Mas pode-se igualmente dizer que não é da verdade e do poder
que eles tratam. É que a verdade não é entendida enquanto
identidade de uma essência una e sempre a mesma, mas en-
quanto produzida no decurso da história, constituindo-se na
formação de saberes reconhecidos como verdadeiros, portan-
to historicamente múltiplos e diversificados; numa palavra,
trata-se de verdades em seus diferentes modos de produção
em diferentes sociedades. Do mesmo modo, não se trata do
poder enquanto dominação central e unitária, mas de poderes
ou de múltiplos modos de exercício do poder que permeiam
as diferentes sociedades em diferentes momentos históricos.
Assim, dizer que os escritos de Foucault concernem à verdade
e ao poder significa que eles realizam investigações históricas
que buscam descrever, em períodos determinados da história
da cultura ocidental, modos de produção de saberes reconhe-
cidos como verdadeiros e sua articulação com modos de exer-
cícios do poder.
Essa investigação histórica - mostra-nos Foucault - pode
ser elaborada de modo direto e interno, isto é, percorrendo, por
dentro, a própria trajetória da constituição dos saberes (é esse,
por exemplo, o procedimento empregado em As palavras e as
coisas, de 1966). Mas pode-se também realizá-la desde uma pers-
pectiva externa aos saberes, isto é, retraçando não o seu pró-
prio desenvolvimento, mas tomando como ponto de partida
determinadas práticas sociais que, historicamente, engendra-
ram saberes considerados verdadeiros. É esse o ângulo que aqui
nos interessa, ou seja, verific~r como, no decurso da história,
certos procedimentos, certas práticas não-discursivas de esta-
belecimento da verdade puderam tornar-se matrizes ou mode-
los para a produção discursiva da verdade. Entre essas práticas,
Foucault dedica especial destaque às chamadas práticas jurídi-
cas ou judiciárias. Para o propósito desta exposição retomare-
74 ! Foucault, simplesmente
mos, a título de caso ilustrativo, a reflexão foucaultiana a res-
peito de tais práticas l .
Numa definição introdurória e geral, entende-se por práti-
cas jurídicas ou judiciárias "o modo pelo qual os homens po-
diam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a
maneira como se impôs a determinados indivíduos a repara-
ção de algumas de suas ações e a punição de outras,,2. A des-
crição histórica empreendida por Foucault pretende então mos-
trar em que sentido modos práticos de estabelecimento da ver-
dade, de natureza jurídica, puderam vir a constituir como que
modelos de produção da verdade no plano discursivo, isto é, no
plano dos saberes (ciências, filosofia etc.)3. O percurso da histó-
ria que Foucault refaz começa na Grécia antiga e atravessa a
Idade Média, para centrar-se mais detidamente no período que
vai desde os fins do século XVIII e início do século XIX até
nossa contemporaneidade. Essa história pode ser lida e organi-
zada em torno de três procedimentos ou práticas sociais de
caráter jurídico: a prova, o inquérito, o exame.
Prova e inQuérito
A prova é, na Grécia antiga, o procedimento judicial mais
arcaico, sobre o qual veio a prevalecer depois (a partir do sécu-
lo V a.c. aproximadamente) a prática do inquérito4 • Pela prova,
...
a verdade é judiciariamente estabelecida sem o recurso a teste-
munhas ou a sentenças: os adversários em litígio são literal-
mente "postos à prova", numa espécie de jogo, de duelo ou de
desafio, determinando-se a verdade pelo lado do vencedor do
risco; qualquer instância como um júri ou um juiz não tem
competência de decisão sobre a verdade senão apenas sobre o
correto cumprimento das regras do jogo. No inquérito) ao con-
trário, a verdade é determinada por quem "viu e enuncia"s, ou
seja, é baseada em testemunhos que têm, inclusive, o direito de
opor-se ao poder dos governantes. Segundo Foucault, foi a
prática do inquérito que constituiu modelo para formações cul-
turais então emergentes na Grécia antiga, tais como: "sistemas
racionais" (como a filosofia), a "arte de persuadir" (como a
retórica), conhecimentos empíricos, baseados que são em
testemunhos (como os dos historiadores, dos botânicos, dos
geógrafos etc.)6.
Na Idade Média, os dois modelos reaparecem. Inicialmente
(entre os séculos V e XII aproximadamente), prevalece o pri-
meiro, o da prova, cujos traços principais podem ser assim reu-
nidos: tratava-se sempre de uma ação "de estrutura binária"7,
isto é, em que indivíduos, grupos ou famílias eram diretamente
postos em disputa, sem intervenção de qualquer terceiro ele-
mento que representasse a autoridade ou a coletividade; a ver-
dade se confundia com a vitória do mais forte, o direito cons-
tituindo-se não numa correlação entre justiça e paz mas num
prolongamento ritualizado da guerra. Essa era a prática ade-
quada ao perfil de uma sociedade de tipo marcadamente feu-
dal em que a circulação dos bens era assegurada menos pelo
comércio que pela herança, pelos testamentos e, sobretudo, pelos
76 I Foucault, Simplesmente
mecanismos bélicos (a rapina, a ocupação de uma terra, de um
castelo etc.)'.
É na segunda metade da Idade Média (a partir de fins do
século XII e no decurso do século XIII) que o sistema da prova
tende a desaparecer, cedendo lugar ao que Foucault chama de
"uma espécie de segundo nascimento do inquérito", este agora
de "dimensões extraordinárias", já que "seu destino será prati-
camente coextensivo ao próprio destino da cultura européia ou
ocidental'" e, de certo modo, "para a história do mundo intei-
ro, na medida em que a Europa impôs violentamente seu jugo
a toda a superfície da terra"IO. Usado inicialmente nas esferas
eclesiásticas e nas gestões administrativas, o inquérito é introdu-
zido no âmbito das práticas jurídicas e dali se generalizará como
modelo de produção de verdade e de outras práticas. Eis, no
âmbito jurídico, os traços principais que desenham seu perfil:
a resolução das questões de litígio não se dá diretamente entre
os oponentes, mas se impõe "de fora" e "do alto" por um poder
simultaneamente judiciário e político; aparece um personagem
novo, o "procurador" do rei, representante do soberano, res-
ponsável por "dublar" a vítima, uma vez que o próprio rei é
lesado porque são descumpridas suas leis; surge a noção de
crime como infração, porque um dano não configura mais ques-
tão apenas entre indivíduos, grupos ou famílias, mas "também
uma ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como
8. Ibid., 49. Eis alguns dos exemplos levantados por Foucault (cf 45-47)
de provas durante a Idade Média. Prova verbal: o acusado deveria responder à
acusação pronunciando certas fórmulas; pronunciá-las incorretamente (um
erro gramatical, uma troca de palavras) era prova de culpa. Prova corporal: o
acusado deveria andar sobre ferro em brasa e se, dois dias .depois, ainda
apresentasse cicatrizes, era considerado culpado. Ou ainda: amarrava-se a
mão direita ao pé esquerdo do acusado e se o atirava na água; se não se
afogasse era porque nem a água o recebera e, portanto, era culpado; se se
afogasse, a água o recebera, e o acusado ganhava o processo.
9. Ibid., 42-43.
10. Ibid., 49.
.1
representante do Estado"; por isso mesmo é da competência do
soberano o direito de impor penas e exigir reparações (freqüen-
temente na forma de "confiscos" que enriquecerão as monar-
quias)11. É o funcionamento desse sistema que requer a neces-
sária argüição de testemunhas, a busca da reconstituição dos
fatos, enfim, a prática do inquérito como instrumento capaz de
substituir o flagrante delito, reatualizando o crime quando o
criminoso não é surpreendido na atualidade de sua falta.
Ora, recolher testemunhos, reconstituir situações, reunir
dados são procedimentos que se estenderão para outras práti-
cas e, sobretudo, para a constituição da verdade na ordem do
saber. Assim, nesse quadro, desenvolver-se-ão, principalmente,
as ciências empíricas ou da natureza, em domínios "como o da
geografia, da astronomia, do conhecimento de climas etc.", ou
ainda da medicina, da botânica e da zoologia 12 •
Enquanto o sistema da prova desaparece quase por com-
pleto, dele restando talvez a prática da tortura (e mesmo esta
"já mesclada com a preocupação de obter a confissão, prova de
verificação"13), o modelo do inquérito, ao contrário, permanece e
se estende até nossos dias, constituindo ainda hoje a base do
sistema jurídico de nossa sociedade. Porém, com a introdução
de uma importante diferença: a partir dos fins do século XVIII
e no decurso do século XIX, o modelo do inquérito é invadido
por outro, este inteiramente novo - o exame.
Inquérito e exame
78 I Foucault. simplesmente
exercício do poder. É nesse quadro novo que se instaura o que
Foucault chama de "sociedade disciplinar", que é ainda a nossa.
Do ponto de vista judiciário, as transformações acontece-
ram em dois níveis, com resultados diferentes. No nível teórico
realizam-se, durante o século XVIII (principalmente com Becca-
ria, Bentham e Brissot), reelaborações do sistema penal cujos
princípios básicos podem ser assim reunidos: primeiro, a infra-
ção não diz respeito à lei natural, religiosa ou moral e só se
configura como ruptura com a lei civil, que precisa, portanto,
estar explicitamente formulada; segundo, as leis civis, formula-
das pelo poder político, concernem apenas à sociedade civil, ou
melhor, ao que é socialmente útil; terceiro, o crime, não sendo
falta moral ou religiosa, define-se como "dano social" e o crimi-
noso como "inimigo interno" a ser, de algum modo, excluído
da sociedade; quarto, não compete à lei, por conseguinte, a
prescrição de "vingança" ou a "redenção de um pecado"14, mas
a reparação do dano social; quinto, nessa direção, as punições
serão de quatro tipos possíveis, a saber, a deportação, a humi-
lhação pública, o trabalho forçado e a pena de talião.
No nível prático, porém, as sociedades industriais nascen-
tes vão adotar um procedimento penal que não estava previsto
pelos teóricos da lei e que vai estabelecer-se, portanto, "quase
sem justificativa teórica": trata-se do aprisionamento, tal como
se instala a partir do século XIX, pois, como faz notar Fou-
cault, a prisão, que "não era uma pena de direito no sistema
penal dos séculos XVII e XVIII", é "que vai se tornar a gran-
de punição do século XIX,,15. Na medida em que se generaliza a
prática do aprisionamento alteram-se radicalmente os princí-
pios da legislação penal, cujos traços novos podem ser assim
reunidos: primeiro, as leis tendem agora a ajustar-se menos à
utilidade social que ao indivíduo (o recurso cada vez maior ao
1
que chamamos de "circunstâncias atenuantes", permitindo
modificações na aplicação estrita da lei, em função de situações
individuais, é um exemplo desta mudança); segundo e correla-
tamente, elas buscam menos o "castigo" que o ajustamento do
indivíduo à sociedade, isto é, "o controle e a reforma psicológi-
ca e moral das atitudes e comportamentos"; terceiro, por isso
mesmo, enquanto a punição propriamente dita depende da exis-
tência de lei explícita e concerne à ocorrência efetiva de uma
infração, o controle aringe não apenas o crime já cometido,
mas a possibilidade de ser cometido, enfatizando então a no-
ção nova de "periculosidade". De ação assim ampliada, esse
controle não pode ser assumido apenas pelo poder judiciário.
Ele requererá a conjugação de outros poderes, "poderes late-
rais, à margem da justiça". São eles, basicamente, a polícia, para
a função de vigilância, e "toda uma rede de instituições" ("psi-
cológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas"),
para funções de correção 16 .
Mais, a esse âmbito de ação do controle já não basta o
inquérito. Ele se calca em outro procedimento. Foucault chama-
o de exame. Enquanto o inquérito é um procedimento para se
saber o que havia ocorrido, isto é, "reatualizar um aconteci-
mento passado através de testemunhos,,17, o exame é vigilância
sempre atual e ininterrupta, importando saber não tanto o que
"se passou", mas quais as virtualidades do indivíduo e como ele
presentemente se conduz. De modo genérico, pode-se dizer que,
enquanto o modelo do inquérito é correlato de uma sociedade
comandada pela soberania do monarca, a disciplina é correlata
de uma sociedade comandada pela democracia burguesa.
Radicalmente heterogên~os, os dois sistemas mantêm, con-
tudo, certa articulação na sociedade contemporânea. Pode-se
dizer que na sociedade caracterizada pela disciplina não se dá o
80 I Foucau!t. Simplesmente
desaparecimento completo do modelo inquisitorial. Dele a dis-
ciplina faz uso e é ele que permanece no interior do sistema
jurídico cujo discurso calca-se ainda no inquérito e organiza-se
em torno das relaçoes de soberania (do tipo súdito-rei). Em
suma, nas sociedades modernas encontra-se, por um lado, um
saber do direito articulado na esfera do inquérito e, por outro,
mecanismos ramificados de controles disciplinares, imbrican-
do-se concomitante e complementarmente.
Mas, se o modelo da soberania (e, portanto, o do inquérito)
permanece incorporado ao saber jurídico, isso não significa que
o modelo da disciplina (e, portanto, sob o do exame) não se
tenham constituído outros saberes. A sociedade disciplinar, con-
trolando o tempo e o espaço dos indivíduos, examinando-os,
avaliando-os, classificando-os e registrando continuamente suas
condutas, constrói as condições para um novo modo de produ-
ção da verdade. É assim que, enquanto a prática do inquérito foi
modelo para o desenvolvimento das ciências da natureza, o
exame, ou a disciplina, abre espaço para o surgimento das cha-
madas ciências do homem.
O estabelecimento da verdade pela matriz do exame não se
faz mais pela reconstituição de fatos nem na ordem dos teste-
munhos, mas pela objetivação do indivíduo e na ordem do que
é certo ou errado, permitido ou interditado, correto ou incorre-
to, em suma, "normal" ou não. No mesmo quadro, simultâ-
neos aos saberes disciplinares, instalam-se seus correlatos no
plano das instituições sociais: são as instituições disciplinares
- a prisão, a fábrica, a escola, o asilo, os hospitais psiquiátricos,
as casas de correção -, cuja finalidade não é propriamente a
"exclusão" do indivíduo mediante sua "reclusão", mas, ao con-
trário, precisamente sua "inclusão" como indivíduo, isto é, seu
ajustamento, sua correção, seu adestramento. São saberes e
instituições que não se atrelam ao que é do estrito âmbito da
lei, mas à conduta do indivíduo no âmbito da norma. Foucault
faz ver, por exemplo, que, enquanto numa sociedade de tipo
j
inquisitorial "a individualização é máxima do lado em que se
exerce a soberania e nas regiões superiores do poder", numa
sociedade de tipo disciplinar passa-se o contrário, isto é, a indi-
vidualização é "descendente", vale dizer, " à medida que o po-
der se torna mais anônimo e funcional, aqueles sobre quem ele
se exerce tendem a ser fortemente individualizados'1l8.
Introduz-se assim, dentro dos quadros da sociedade discipli-
nar, um modo de exercício do poder do qual uma descrição
meramente negativa, espetacular e repressiva não pode dar con-
ta. É um poder sutil e produtivo: produz comportamentos e
gestos; cria hábitos; não exclui, normaliza.
•••
Levantemos algumas reflexões que a reconstituição destas
passagens pode, mais de perto, nos suscitar. Sabemos que as
análises foucaultianas não pretendem, de modo algum, consti-
tuir uma espécie de proposta teórica geral. Elas são pontuais,
circunscritas, localizadas. Pode-se, pois, perguntar pela situa-
ção particular da sociedade brasileira atual no quadro daquela
descrição da sociedade contemporânea ocidental. De um pon-
to de vista amplo, parece-nos que o perfil de nossa sociedade
encontra-se, também ele, ali desenhado; ao mesmo tempo, po-
rém, é possível interrogar se ele se ajusta inteiramente ao qua-
dro descrito. Estimulando esta pergunta, apontemos alguns
indícios para a reflexão:
• a industrialização em escala incipiente, desigual e regio-
nalizada, bem como a preservação das grandes proprie-
dades de terra são indícios, talvez, de proximidade ainda
com as condições qu~ caracterizam o modelo inquisitorial
mais do que o do controle;
• a manipulação pela tortura e pela violência sem disfar-
ces, assim como o uso de mecanismos explícitos de cen-
82 I Foucault. simplesmente
sura (da imprensa, das artes etc.) na história ainda recen-
te de nossa sociedade são indícios, talvez, de proximida-
de ainda com o modo do poder espetacular e repressivo
que caracteriza menos "a disciplina" do que a prova ou o
inquérito;
• um sistema de governo no qual foi possível ocorrer o uso
ainda recente do confisco e em que a tônica da indivi-
dualização recai tantas vezes sobre a figura expoente do
governante traz indícios, talvez, de proximidade ainda
com as relações súdito-rei que caracterizam a sociedade
comandada pela soberania.
.1
cia, as práticas judiciárias, o direito, a sexualidade, a literatu-
ra, as artes ... ).
Segundo, variados são também os planos das abordagens.
Ora mantêm-se na dimensão estrita dos discursos, e isso signi-
fica no âmbito das epistémes ou dos espaços que demarcam as
possibilidades de configurações dos saberes historicamente qua-
lificados, permanecendo, portanto, no interior das articulações
interdiscursivas. Ora se movem no trânsito entre a dimensão
discursiva e a extradiscursiva, e isso significa no âmbito dos
chamados dispositivos estratégicos, agregando, portanto, ao cam-
po epistêmico práticas e instituições sociais.
Terceiro, e mais genericamente, há diversidade porque Fou-
cault realiza um peculiar cruzamento entre a atividade do filó-
sofo e a do historiador na medida em que, diferentemente da
prática filosófica de pensar a história, pensa filosoficamente
ao praticar a investigação histórica. Como escreveu um historia-
dor, "seu pensamento se situa sistematicamente nas linhas
fronteiriças, nos limites, nos interstícios entre os gêneros"'.
Entretanto, certa leitura das filosofias - se se quiser, em
sentido largo, certa história das filosofias - marca presen-
ça nos trabalhos de Foucault. Pode ser reconhecida de duas
maneiras, mas em proporções desiguais: convencionemos dizer
que diretamente as filosofias comparecem com menor freqüên-
cia, indiretamente, quase sempre.
•••
Não muitos escritos se ocupam diretamente da abordagem
de filósofos. Para mencionar alguns: um estudo introdutório
sobre Rousseau (de 1962)2; a tese complementar de dourorado
86 I Foucault. Simplesmente
.
sobre Kant (de 1961)3; a releitura (de 1971) das Meditações de
Descartes4 (em réplica tardia à crítica de Derrida); o ensaio so-
bre Nierzsche (de 1971)5; o esrudo mais recente sobre Kant (de
1984t De modo geral, trata-se de cursos, ensaios "avulsos",
textos curtos e, em todo caso, em número reduzido.
Todavia, a presença assídua das filosofias encontra-se nos
escritos volumosos e de grande porre onde têm lugar, por as-
sim dizer, indireto, atreladas que estão ao assunto central da
respectiva investigação. Para mencionar algumas siruações par-
ticularmente explícitas: a leitura comparativa entre Montaigne
e Descartes, no capítulo II ("O grande enclausuramento") da
primeira parte de História da loucura; ou as retomadas de Platão
nos volumes II e III (O uso dos prazeres e O cuidado de si) de Histo-
ria da sexualidade. Em todo caso, com diferentes intensidades e
extensões, as filosofias são protagonistas dos grandes livros de
história (História da loucura) Nascimento da clínica, As palavras e as
coisas, Vigiar e punir, História da sexualidade).
Para o primeiro modo de presença, tomemos uma análise
textual que nos parece exemplar. Trata-se da réplica à crítica que
Derrida endereçara à leitura foucaultiana de Descartes em História
da loucura? Com efeito, no texto "Mon corps, ce papier, ce feu",
.........
Foucault realiza, com habilidade de mestre, uma reconstitui-
ção interna das Meditações, usando técnicas refinadamente rigo-
rosas e uma esmerada ordem de exposição. Compara, passo a
passo, os parágrafos (sobre o sonho e sobre a loucura) do texto
cartesiano e segue, em detalhe, o sistema que os opõé; remete
a termos latinos e a suas traduções9; principalmente, faz ver a
necessidade de dupla postura de leitura demandada pelo pró-
prio texto, isto é, enquanto sistema, certamente ("encadeamento
sistemático de proposições))), mas também enquanto exercício,
precisamente por sua natureza de "meditação"lO. Finalmente,
subverte a posição de defesa para instalar-se no terreno do opo-
sitor e apontar os defeitos que são dele, de seu crítico (no caso,
Derrida), na leitura do mesmo texto cartesiano: "omissão de
elementos literais", "elisão de diferenças textuais", "apagamen-
to enfim e sobretudo da determinação discursiva essencial (du-
pla trama do exercício e da demonstração)"ll.
Consideremos a outra e mais freqüente maneira - a indireta
- de inserção das filosofias, tentando vasculhá-la um pouco no
enredo das investigações históricas
Tomemos As palavras e as coisas. Um artigo de G. Lebrun
descreve-o como "um livro de combate" e "um livro filosófico",
que "contém ao menos o esboço de uma história da filosofia"
e no qual encontramos "indicações para uma leitura de Descar-
88 I FoucaulL Simplesmente
tes, de Kant, de Husserl JJ1z ; não deixa de lembrar quanto Fou-
cault suspeitava de uma «história da filosofia universitária"'3 e,
no final, indica o trabalho foucaultiano como "um instrumen-
to de renovação de uma 'história da filosofia' que seria aciona-
da, enfim, com a morte da 'filosofia' tal como esta é ainda
escolarmente entendida"'4. Se, em As palavras e as coisas) fizer-
mos um levantamento geral na seqüência dos dez capítulos,
acompanhando os três períodos históricos percorridos (renas-
cimento, idade clássica, modernidade), veremos que são convo-
cados, entre outros, e muitos deles numerosas vezes: Montaigne,
Descartes, Bacon, Berkeley, Condillac, Hume, Hobbes, Male-
branche, Espinosa, Rousseau, Locke, Montesquieu, Kant, Dil-
they, Bergson, Leibniz, Hegel, Nietzsche, Husserl, Heidegger;
além disso, há chamadas à Logique de Port-Royal, aos ideólogos,
à fenomenologia, ao estruturalismo etc.
Dessa relação apenas nominal, destaquemos algumas passa-
gens e, preferencialmente, duas escolhidas entre aquelas que se
ocupam com momentos de limiares ou de transição entre os
períodos históricos investigados.
O capítulo III ("Representar"), que estabelece a ponte do
renascimento à idade clássica, depois de iniciar-se com a cativan-
te leitura sobre as aventuras de "Dom Quixote" (item I), passa a
fazer falar os filósofos. A palavra de Descartes, principalmente,
compõe todo o teor do item II, para explanar o desmoronamen-
to da semelhança renascentista e a instauração da categoria clás-
sica da "ordem". No item I1I, a Logique de Port-Royal, Berkeley e
Condillac, para '(a representação do signo". O item N, "a repre-
sentação reduplicada", conta com a Logique e com Destutt de
Tracy. Para apresentar "a imaginação da semelhança", no item V,
12. LEBRUN, G., "Note sur la phénoménologie dans Les Mots et les choses",
in Michel Foucault philosophe - Rencontre internationale)Paris, 9)10,11 janvier 1988.
Paris, Seuil, 1989,33.
13. Ibid., 38.
14. Ibid., 51.
90 I Faucault. simplesme-nte-
nhecimento que coloca para Kant o problema de saber o que é
a relação entre o sujeito moral e o sujeito do conhecimento,,16.
Importa observar que, para o filósofo investigador da histó-
ria, não há desigualdade de importância nem de prestígio ou,
para empregar uma expressão de Roberto Machado, "diferença
de nível,,17 entre a filosofia e outros saberes dos respectivos
períodos históricos. Assim como o pensamento de Kant é ana-
lisado em correlação com os saberes modernos "Sobre o traba-
lho, a vida, a linguagem (economia, biologia, filologia), assim o
de Descartes com os saberes clássicos (análise das riquezas, his-
tória natural, gramática geral). Isso no que concerne ao âmbito
de articulações somente interdiscursivas. Mas observação se-
melhante pode ser feita também a propósito das relações entre
a filosofia e práticas não-discursivas. Se tivéssemos tomado
outro exemplo, como é o caso de História da loucura, teríamos
visto o tecido de relações entre o plano discursivo e o extradis-
cursivo, e certamente então reencontraríamos Descartes, agora
como o marco filosófico na partilha clássica entre razão e des-
razão, de que o Hospital Geral é o marco institucional.
Duas passagens extraídas do livro biográfico de Didier Eri-
bon nos servem para retomar conjuntamente os modos de pre-
sença das filosofias que estivemos denominando direto e indire-
to, assim como para ilustrar a diferença entre eles.
Para o primeiro caso, um trecho sobre as declarações de
Foucault acerca de sua tese complementar de doutorado (que,
lembremos, se compôs de tradução e introdução à Antropologia
de Kant):
•••
As filosofias comparecem, pois, enredadas no interior das
histórias. Não, porém, no cerco interno dos sistemas, nem tam-
pouco na suficiência de suas singularidades, mas espalhadas
na exterioridade espessa das epistémes ou conectadas à heteroge-
neidade complexa dos disposltivos estratégicos, contracenando,
18. ERIBON, D., Michel Foucault ~ Uma biografia. Trad. Hildegard Feise,
São Paulo, Companhia das Letras, 1990, 119.
19. lbid., 125. Cf. SERRES, M., "Géometrie de la folie", Mercure de France,
n. 1188, agosro de 1962, 176. Republicado em Hermes ou la communication,
Minuit, 1968.
92 Foucault. Simplesmente
quase sempre, com objetos múltiplos, com domínios diversos,
com saberes não-filosóficos, com práticas não-discursivas.
Essa forma de inclusão das filosofias na história não é
certamente descomprometida. Pertence a certa escolha que,
se por um lado resulta em um modo de história da filosofia, por
outro é resultante de uma maneira de conceber a própria filo-
sofia. Concluamos com a sugestão, a este propósito, de algu-
mas reflexões.
J
A filosofia. em toda parte
Dize~ que as atividades filosóficas existem "em domínios de-
terminados" e que o diagnóstico que elas realizam remete a "uma
cultura" significa também que elas não configuram um "domínio"
específico, senão que se constroem no espaço relacionaI com o
seu diverso, o seu outro, o seu fora, a não-filosofia Como diria
Merleau-poncy, a filosofia está em toda e em nenhuma parte.
"Assim, eu diria que é precisamente nos seus 'ensaios' para
abrir a filosofia ao seu fora que Foucault era filósofo - uma
22
espécie de filósofo malgrado ele", escreve]. Rajchman • E o
próptio Foucault, também em entrevista mais antiga (de 1966):
"( ... ) Nietzsche multiplicou os gestos filosóficos. Interessou-se
por tudo, pela literatura, pela história, pela política etc. Foi
buscar a filosofia em toda parte. Com isto, mesmo se em certos
domínios permanece um homem do século XIX, genialmente
antecipou a nossa época,>23.
Por isso, conjugar as filosofias a saberes e práticas não-
filosóficos que compõem epistémes e dispositivos não é reduzir os
gestos filosóficos, é multiplicá-los.
94 I Foucault, Simplesmente
como transgredir se as filosofias, como outros saberes e prá-
ticas, estão calcadas nos solos das épistemes e tecidas nas redes
dos dispositivos?
Retomemos aqui, para nosso uso, alguns aspectos das con-
siderações de Deleuze sobre o que é o dispositivo. O dispositivo é
"multilinear" e as linhas de que se compõe são linhas de visibi-
lidade e de enunciação, envolvem o ver e o dizer, as coisas e as
palavras; são também linhas de forças e linhas de subjetivação.
Há "linhas de fuga" e "todas as linhas são linhas de variação".
Os dispositivos são "moventes". Comportam o arquivo, assunto
da análise histórica, e o atual, assunto do diagnóstico. O atual é o
transformávet o ((devir-outro)~ aquilo em que nos tornamos.
Assim, em sua mobilidade, as linhas do dispositivo se repartem
em "linhas de estratificação ou de sedimentação" e "linhas de
atualização ou de criatividade"26.
Por isso, essas histórias que inserem a urdidura das filoso-
fias nas tramas de objetos, saberes e práticas diversificados e as
situam como peças de dispositivos historicamente dominantes não
fazem, necessariamente, apenas atrelar as filosofias ao estabele-
cido. Abrem também a possibilidade do discurso de resistência,
"que foge a toda conivência, um discurso não-cúmplice,m. Tra-
ta-se, se se quiser, de procedimentos que delineiam um modo
outro de história da filosofia como estratégia de criatividade na
contraface de dispositivos estratégicos estratificados.
Finalmente, reunindo as reflexões que acabamos de suge-
rir, poderíamos acrescentar: para que a filosofia possa ser um
olhar atento sobre o presente, um pensamento sem morada,
uma palavra interrogante, é preciso que ela seja -:- antes de tudo
e após tudo - exercício de vida, modo de existência.
1
VIII
OLHARES E DIZERES'
olhares e dizeres j 97
j
Contudo, pretendo referir-me aqui a outros modos ou cri-
térios de organização, que não se opõem ao mais usual e que, a
meu ver, são aproximáveis entre si. Para isso, evoco três passa-
gens, duas das quais recolho em Foucault e a terceira em Deleuze.
Já no "Prefácio" de As palavras e as coisas, de 1966 - antes,
portanto, da produção chamada genealógica -, o próprio Fou-
cault propunha certa organização de seus escritos, e o critério era
então o da ênfase no Outro ou no Mesmo. Assim, enquanto Histó-
ri4 da loucura perguntava pela "diferença" que limita internamen-
te uma cultura, As palavras e as coisas, respondendo "como em
eco", investigava a "proximidade das coisas"; enquanto História da
loucura "seria uma história do Outro" - daquilo que, em uma
cultura, na nossa, "é ao mesmo tempo interior e estranho" -, As
palavras e as coisas "seria uma história do Mesmo" - daquilo que,
em nossa cultura, preside "a ordem das coisas", podendo ser
"distinguido por marcas e recolhido em identidades"l.
Anos depois, na elaboração de um texto que tem por tÍtu-
lo o seu nome - um verbete para um Dicionário de filósofos, de
1984 -, Foucault reconstitui a organização de seus escritos e,
de certo modo, retoma, como que obliquamente, aquele crité-
rio usado no início de sua trajetória, o do Outro e do Mesmo.
Reúne então, retrospectivamente, toda a sua produção sob o
que ele chama de um "projeto geral": investigar a experiência
histórica da constituição do sujeito nas formas diversas de sua
subjetivação e de sua objetivação. E, como que atravessando
este projeto, um "fio condutor": a questão dos "jogos de verda-
de" ou "das relações entre sujeito e verdade"z.
Dentro desse "projeto" e segundo esse "fio condutor", rea-
lizam-se, no conjunto e no decurso de sua trajetória, dois mo-
dos de análise: no primeiro, a análise dos "jogos de verdade"
pelos quais o sujeito torna-se objeto de saber na forma do co-
98 I Foucault. simplesmente
nhecimento científico, desembocando nas chamadas ciências
humanas com sua característica normativa; no segundo, a aná-
lise dos "jogos de verdade" pelos quais o sujeito é constituído
como objeto de conhecimento, alojado, porém, no "outro lado
da divisão normativa". Pode-se ver, no primeiro caso, o sujeito
enquanto "distinguido por marcas e recolhido em suas identi-
dades", de As palavras e as coisas. No segundo, trata-se do "dife-
rente", o louco, o doente, o delinqüente, de História da loucura, O
Nascimento da clínica, Vigiar e punir'.
Finalmente, e sempre no interior do mesmo "projeto geral",
aos dois primeiros tipos de análise seguiu-se o mais recente: in-
vestigar "a maneira como o sujeito faz a experiência de si mesmo
em um jogo de verdade no qual se relaciona consigo próprio"4.
Reunindo esta reconstituição às considerações do "Prefá-
cio" de As palavras e as coisas, pode-se dizer que, na seqüência dos
grupos de escritos, o fio condutor é sempre o das relações entre
sujeito e verdade, tramadas nos jogos do Mesmo e do Outro.
Resta acrescentar que, quando os escritos se centram no Mes-
mo, descrevem a epistéme, o círculo de uma época, o instituído,
o sedimentado. Quando se voltam para o Outro) realçam o dis-
positivo, que tanto comporta a estratégia dominante como se
abre à possibilidade do novo, da resistência e da mobilidade.
A aproximação dessas passagens, a mais antiga e a mais
recente, permite, por sua vez, ligar ambas a alguns aspectos da
leitura que faz Deleuze acerca do percurso foucaultiano. Os
três momentos desse percurso são por ele descritos em termos
de "linhas" que compõem os diversos dispositivos analisados por
Foucault. As mudanças entre eles são referidas como "crises",
"desvios", "brechas", "linhas quebradas", "novas linhas" etcs.
olhares e dizeres I 99
No primeiro momento - o da dimensão do saber -, trata-
se, especialmente, de "linhas de visibilidade e de enunciação":
"pensar é, primeiramente, ver e falar ... "6. Isso corresponde, nos
termos do citado verbete de 1984, aos jogos de verdade segun-
do os quais o sujeito é constituído como objeto para um saber
reconhecido; ou ainda, nos termos do "Prefácio" de As palavras
e as coisas, ao sujeito "visível" e "dizível", na ordem do Mesmo.
No segundo momento - o da dimensão do poder -, trata-
se, especialmente, de "linhas de forças": elas operam um "vai-e-
vém do ver ao dizer", fazem "entrecruzar as coisas e as pala-
vras"7. É o pensamento na elaboração de "estratégias". Nos ter-
mos dos dois textos anteriormente considerados, significa que
isso inclui tanto o pólo das "identidades" como o das "diferen-
ças"; ou, se se quiser, tanto o lado "instituído" da "divisão nor-
mativa" como seu "outro".
No terceiro momento - o da dimensão ética -, trata-se,
especialmente, de "linhas de subjetivação": elas apontam para
"novas possibilidades de existência"g. Não mais "o domínio das
regras codificadas do saber (... ), nem o das regras coercitivas do
poder (... ), são regras de algum modo facultativas"9. Nos termos
dos textos vistos, isso corresponde à "experiência que o sujeito
faz de si" na relação consigo próprio, ou ainda, se se quiser, à
possibilidade de um devir do Mesmo em Outro.
lo "Pensar de outra maneira" de seu livro Foucault, Paris, Minuit, 1986. Veja-
se também as três entrevistas sobre Foucault, "Rachar as coisas, rachar as
palavras", "A vida como obra de arte" e "Um retrato de Foucault", reunidas
em Conversações, trad. P. P. Pelbart, São Paulo, Ed. 34, 1992.
6. DELEUZE, G., "A vida como obra de arte", in Conversações, 119. Veja-se ainda,
no mesmo texto, 119-122; 126; e no texto "Um retrato de Foucaulr", 133-134.
7. DELEUZE, G., "Qu'est-ce qu'un dispositif?", in Michel Foucault philoso-
phe. 186.
8. DELEUZE, G., "A vida como obra de arte", 120.
9. DELEUZE, G., "Um retrato de Foucault", in Conversações, 141. Veja-se
ainda ''Rachar as coisas, rachar as palavras", 116; "A vida como obra de arte",
123; 125. "Qu'est-ce qu'un disposicif?", in Michel Foucault philosophe, 187.
10. Boys don't cry - 1999. Direção: Kimberly Pewirce (também um dos
autores do texto). No elenco: Hilary Swank (Oscar de melhor atriz), no papel
de Teena Brandon; Chloé Sevigny, no papel de Lana; Peter Sarsgaard, no
papel de John. O enredo reconstitui uma hiscória real ocorrida. em 1993.
Palavras e imagens
• De Brandon, sobre si mesma
Vê-se como um rapaz e faz saber que quer mudar de sexo;
essa mesma visão, quando posta sob o olhar do primo/confi-
dente parece ingenuamente tola. Também se vê examinada pelo
olhar de Lana ou o de sua mãe e, sob eles, recua, ameaçada,
como se perscrutassem sua "verdade".
Entre seus objetos pessoais encontra-se um pequeno livro
sobre "crise de identidade sexual", expressão que repete aos
outros para tentar definir-se.
Quando presa, na cela feminina, eis o que diz a Lana: "Quer
saber a verdade? Sou hermafrodita. Uma pessoa que tem ór-
gãos femininos e masculinos. O nome de Brandon é Teena.
Mas Brandon não é bem ele, é mais ela que ele".
Quando fechada no quarto com Lana, começa quase
mecanicamente a despir-se a fim de que Lana pudesse testemu-
nhar sobre sua "verdade". É Lana que a interrompe.
Quando, aos olhos de todos, é despida por John e Tom,
pede, desesperadamente, que apaguem as luzes.
Em suma, Brandon tem sobre si o olhar e o dizer da verda-
de "reconhecida": verdade una, localizada no sexo, ou, se se
•
quiser, no dispositivo instituído da sexualidade, verdade identi-
tária, essencial e universal. Por isso é que a "verdade" de si mes-
ma estaria perigosamente exibida em seu desnudamento, e por
isso também, é preciso que as luzes se apaguem.
Segunda situação
1. Na cena em que Brandon se declara hermafrodita, come-
ça a insinuar-se no espectador uma dúvida sutil; na ex-
pectativa de resolvê-la) só lhe resta (como, de resto, aos
estupradores) que o personagem se dispa.
2. Na cena do banho) após o estupro, a câmera percorre o
corpo, agora enfim nu; focalizando as curvas femininas
de coxas e quadris) parece finalmente fornecer ao espec-
tador a informação aguardada, a mesma, aliás, de que
precisavam os estupradores.
Nesse par de cenas, tudo se passa como se a lente da câme-
ra intermediasse entre eles, estupradores e espectador, uma in-
desejada cumplicidade.
•••
o filme traça "linhas de visibilidade e de em.mçiação", reve-
lando o circuito de condições dentro do qual somente alguma
coisa como a "verdade" do sujeito é visível e enunciável. Indica
"linhas de forças", as do poder que, ele próprio invisível e indi-
zível, entrecruza imagens e palavras, sustentando aquilo que
pode ser "distinguido por marcas e recolhido em identidades".
Em busca da filosofia
o
IX
DEMOCRACIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de
Michel Foucault e Cornelius Castoriadis*
..I
Outros também cabem, talvez mais fundamentais. Pode-se pen-
sar, por exemplo, que o esvaziamento conceitual não se deva
apenas à vulgarização do termo, mas à natureza mesma do con-
ceito de democracia. Afinal, à democracia pertencem, como por
princípio, uma necessária flexibilidade e uma permanente
incompletude, de modo tal que parece incompatível com esse
conceito que ele se substancialize em uma significação única e
definitiva, recobrindo um sentido universal. Mais ainda, a essa
natureza de certo modo vaga vincula-se, complementarmente, o
fato de se tratar de um conceito historicamente circunscrito,
portanto incessantemente construído e reconstruído. Não é pri-
meiramente uma idéia, é antes uma prática, e são os modos his-
tóricos de exercê-la que lhe conferem diferentes significados.
Assim, retomando a expressão de um historiador helenista clás-
sico, pode-se dizer que, desde o momento histórico de seu sur-
gimento, na Atenas do século V a.c., a democracia seria «uma
palavra oca" se não houvesse sido praticad4 pelas pessoas do povo:
"Era também necessário, para que a democracia não fosse uma
palavra oca, permitir que as pessoas do povo, ocupadas em ga-
nhar a vida, dedicassem seu tempo ao serviço da república"'.
11
Da prática, pois, ao conceito, proponho considerar aqui
um recorte histórico particular: o que demarca os contornos de
nossas socieda.des ocidentais modernas, que têm início por vol-
ta do começo do século XIX e às quais, de alguma forma, ainda
pertencemos. Às características desse tipo de sociedade vincula-
se a construção das significações modernas de democracia. As-
sim, ainda que muito esquematicamente, tentarei delinear al-
guns sinais que marcam esse tipo de sociedade.
1. Traços da atualidade
Segundo Michel Foucaulr (1926-1984), o aparecimento da
sociedade moderna é assinalado pelo declínio de um tipo hege-
mônico de poder, o poder soberano, monárquico, e pela
insralação crescente de outro tipo de poder por ele denomina-
do «disciplinar" ou "de controle", "instrumento fundamental
para a constituição do capitalismo industrial e da sociedade
que lhe é correspondente,,2. O poder disciplinar não é apenas
repressivo ou ostensivamente opressor. Mais sutil, ele é "positi-
vo", isto é, "produz" comportamentos, hábitos, gestos, numa
palavra, adestra as pessoas. Não se exibe na identidade de um
poder central e superior - como na figura do Estado soberano
- mas se espalha, anônimo, difuso, capilar, em práticas minu-
ciosas exercidas por todo o corpo social. Não se mantém numa
unidade, mas se exerce no plural - trata-se, antes, de poderes,
múltiplos, heterogêneos, móveis, enfim, micropoderes cujo fun-
cionamento dá sustentação e eficácia ao macro poder estatal.
Vejamos agora algumas reflexões de Cornelius Castoriadis
(1922-1997). Em uma entrevisra radiofônica realizada em 1996,
pouco antes de sua morte, e em seguida publicada, o autor
explicita, em tom coloquial mas não menos denso, o uso que
atribui ao termo "insignificância" para caracterizar nossa épo-
...I.
ca. É a "insignificância" que, por um lado, distingue os políti-
cos de hoje. Eles são descritos como "profissionais da política"
ou Upolíticos de carteirinha"3. A democracia representativa "não
é uma verdadeira democracia. Seus representantes muito pou-
co representam as pessoas que os elegem. Primeiramente eles se
representam a si mesmos ou representam interesses particula-
res, lobbies etc." 4.
Quanto aos cidadãos comuns, por outro lado, é na
experiência de uma "contra-educação política" que a "insignifi-
cância" os alcança. "Enquanto as pessoas deveriam habituar-se
a exercer todas as espécies de responsabilidades e a tomar ini-
ciativas, habituam-se a seguir opções que outros lhes apresen-
tam ou a votar por elas. Como as pessoas estão longe de ser
idiotas, o resultado é que elas crêem cada vez menos e se tor-
nam cínicas, numa espécie de apatia política"5. Há um "esgota-
mento ideológico", acompanhado de uma "disposição geral"
que é de "resignação", ou de "conformismo generalizado", de
"inibição" para agir6•
Mas essas análises de nossa sociedade não se reduzem a
seu desenho austero. Cada qual dos dois pensadores descreve e
denuncia o presente com o intuito de questionar nossas evi-
dências de pensamentos e nossas aderências de condutas e, a
partir daí, delinear e anunciar um horizonte de transforma-
ções. É dessa perspectiva que apresentarei, brevemente, a indi-
cação de algumas pistas.
7. Ibid., 38.
8. Ibid., 39.
9. Cf ibid., 30; 40-44.
1
111
Finalmente, reúno os dois autores que escolhi como apoio,
em uma idéia mais ampla. Casroriadis, no final daquela entre-
vista, usa a expressão "sociedade autônoma"IO e nos convida à
difícil porém verdadeira democracia. Foucault, por sua vez, no
comentário de um texto de Kant l l , nos convoca à saída de um
"estado de menoridade') - que é aquele em que se é conduzido
por outrem - para o "estado de maioridade" - que consiste no
governo ou condução de si mesmo. Governo de si ou autonomia,
eis certamente, um norte para balizar nossas tentativas de exer-
cício democrático.
É um norte apenas. Mas suficiente talvez para nos predis-
por a certas condições indispensáveis se quisermos fazer de nossa
própria prática um lugar de transformações e de superação de
nossas desesperanças. A partir das reflexões que fizemos,
algumas dessas condições podem ser identificadas: 1) dispor-se
à pluralidade de participações heterogêneas, flexíveis, móveis,
provisórias, pontuais, compondo pistas diversas que sejam ca-
pazes de convergir em alianças e pactos em nome de causas
democráticas compartilhadas; 2) dispor-se à educação política
que propicie ao cidadão comum a aprendizagem de "governar
e ser governado", contribuindo assim para sacudir as apatias,
abalar os conformismos, mobilizar nossas inibições.
Estas são, possivelmente, algumas predisposições que po-
dem nos orientar rumo à maioridade democrática, cuja con-
quista é tanto mais alcançável quanto mais se praticar a auto-
nomia de pensamentos e de condutas.
J
retrospectiva, por ocasião de uma entrevista realizada anos mais
tarde (em 1978, publicada em 1980), Foucault realça algumas
razões para um esperado insucesso. Depois de apontar motivos
de ordem mais teórica, como a supervalorização do marxismo,
as resistências a certas aproximações com o estruturalismo e,
em geral, todas as posições humanistas relativas ao sujeito,
sugere outros:
"E também, se quisermos, o fato de que não se podia levar muito
a sério alguém que, de um lado, se ocupava com a loucura e, de
outro, reconstruía uma história das ciências de modo tão extrava-
gante, tão particular, em relação aos problemas reconhecidos
como válidos e importantes. A convergência desse conjunto de
razões provocou o anátema, a grande excomunhão de As palavras
e as coisas por parte de todos: Les Temps Modernes) Esprit, Le NouveZ
Observateur, da direita, da esquerda, do centro. Era pancadaria de
todos os lados. O livro não deveria vender mais que duzentos
exemplares; ora, vendeu dezenas de milhares"z.
10. FOUCAULT, M., "Entretien ... ", in Dits et écrits IV, 78.
11. Cf. FOUCAULT, M., "Chronologie", in Dits et écrits I, 33.
12. FOUCAULT, M., "Entretien ... ", in Dits et écrits IV, 79.
13. Ibid., 78.
14. Convidará para o quadro docente da filosofia, entre outros, Gilles
Deleuze (que não pôde aceitar por estar adoentado), Michel Serres, Judith
Miller, Alain Badiou, Jacques Ranciere, Jean-François Lyotard, François
Châtelet (Cf. ERIBON, D., Michel Foucault .. , 189; DossE, F., História do estrutura-
lismo 11,175). Quando, pouco mais tarde, em janeiro de 1970., o novo minis-
tro da Educação, Olivier Guichard, recusa o reconhecimento de validade
nacional para o ensino da filosofia ao diploma obtido em Vincennes, Fou-
cault concede uma entrevista publicada sob o título "Le piege de Vincennes".
Como era argumento do ministro que o conteúdo de filosofia ali ensinado
era demasiadamente particular e especializado, vale a pena reproduzir um
pequeno trecho da resposta de Foucault: "Como sabem, não estou certo de
Para este livro já velho, eu devena escrever um novo prefácio. Confesso que
isto me repugna (. .. ). Quereria que um livro, pelo menos do lado daquele
que o escreveu, nada mais fosse que as frases de que éfeito; e que não se
desdobrasse neste primeiro simulacro dele mesmo que é um prefácio (. ..).
- Mas você acabou de fazer um prefácio.
- Pelo menos é curto.
M. FOUCAULT, Prefácio à nova edição de Histoire de la folie.
•••
Do primeiro texto - "O que é um autor?" (1969) - destaco
três pontos.
11. Função-autor
•••
o segundo texto - A ordem do discurso (1970) - dá à noção
de autor um tratamento, por assim dizer, mais "negativo". O
assunto ocupa um breve trech.o lO, inserido na seqüência de des-
"( ... ) função do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como
ele, por sua vez, a modifica. Pois, embora possa modificar a ima-
gem tradicional que se faz de um autor, será a partir de uma
***
Finalmente, considero o terceiro texto, publicado quatorze
a quinze anos após os outros. Dele retraço algumas linhas que
permitam possíveis cruzamentos com os destaques dos textos
anteriores.
I. O título e a destinação
o texto intitula-se "Foucault" e destinou-se a compor um
verbete para um Dicionário de filósofosls. Ora, é no mínimo curioso
que esteja instalado em um dicionário de "autores" um pensador
que se renha empenhado em denunciar a função restritiva do
autor. Mais, que seus trabalhos sejam identificados mediante
um título que é nada menos que seu "nome próprio". Entretan-
to, a estranheza se atenua quando se examina o teor do verbete.
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~_.
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