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MENTE, LINGUAGEM E SOCIEDADE:

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UMA ENTREVISTA COM JOHN R. SEARLE
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(9 de Fevereiro de 1999)

Mafalda Eiró Gomes

Gostaria de iniciar esta “conversa” agradecendo ao Profes-


sor John Searle, Mills Professor de Filosofia da Mente e da
Linguagem da Universidade da Califórnia em Berkeley, a
imensa disponibilidade, generosidade e amabilidade com que se
dignou responder a um pequeno conjunto de questões que lhe
foram enviadas por e-mail.
Mafalda Eiró Gomes − Professor, esteve em Oxford
durante os anos cinquenta. Assistiu à série de conferências
oferecida por Austin “Words and Deeds” e leu Wittgenstein.
Trabalhou com Peter Strawson e Paul Grice. Quarenta anos
depois, como sintetiza a influência destes autores no seu
trabalho?
Professor John R. Searle − Estive em Oxford durante sete
anos, de 1952 a 1959, os três primeiros como estudante; depois,
e após um ano como Senior Scholar no St. Anthony’s College,
tornei-me membro da faculdade (o que em Oxford chamam um
“don”) e fiquei como leitor em Christ Church e a terminar o
meu Doutoramento em Filosofia antes de voltar aos Estados
Unidos. O período de 1952 a 1959, em que lá estive, coincidiu
com uma época de ouro da filosofia de Oxford. A figura
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dominante era Austin, e teve uma tremenda influência na minha


vida e obra, apesar de na altura eu não me aperceber
completamente da sua extensão. O meu professor favorito, e a
pessoa que teve maior influência em mim enquanto estudante,
foi Peter Strawson. Provavelmente não seria exagerar muito
dizer que foi com Strawson que aprendi como fazer filosofia, e
ele sempre me pareceu um modelo de clareza, profundidade,
inteligência e rigor. Tal como muitos estudantes arrogantes,
pensava que se pudesse vencer uma discussão com alguém eu
era melhor filósofo do que essa pessoa. E tinha a ilusão, pelo
menos, de que podia vencer discussões com Austin. Isso
impediu-me de compreender quanto ele era bom. De facto
Austin não era muito rápido a argumentar, e tinha tendência a
recorrer a várias distinções e nuances linguísticas, mas com
Peter Strawson nunca se tinha qualquer dúvida de que ele tinha
um magistral domínio intelectual dos assuntos em discussão.
As primeiras vezes que vi Austin não me apercebi de quem
ele era, nem da influência que mais tarde teria em mim. No meu
segundo ano como estudante em Oxford tinha uns alojamentos
muito elegantes em Peckwater Quadrangle com vista sobre a
biblioteca. Aos sábados de manhã, quando habitualmente acor-
dava depois das festas de bebedeira da noite anterior, reparava
num pequeno homem com um chapéu de coco a atravessar o
pátio, levando um monte de dicionários, dois grandes volumes
do Oxford English Dictionary e uma edição grande do
Larousse. Ficava sempre intrigado com quem seria este homem
que carregava todos aqueles dicionários. Estava demasiado bem
vestido para ser um funcionário da faculdade, mas eu não podia
imaginar por que razão alguém carregaria uma série de
dicionários pelo pátio a um sábado de manhã. Não imaginava
que era Austin a caminho dos seus famosos grupos de discussão
de sábado de manhã.

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Comecei a assistir às conferências de Austin porque tinha


ouvido dizer que ele era um grande filósofo de Oxford, isto em
1954, e tenho de confessar que depois de assistir a uma ou duas
das suas lições sobre actos de linguagem (essas lições chama-
vam-se “Words and Deeds”) deixei de ir porque aquilo pareceu-
-me tudo muito aborrecido. Não me parecia verdadeira filosofia.
Há nisto uma certa ironia, porque, claro, o meu primeiro livro
foi muito influenciado por esta série de lições. Em períodos
lectivos posteriores descobri subitamente que naquelas lições
havia mais do que eu originalmente pensara.
Em qualquer caso, para resumir, aconteceu que tive a sorte
de ter estado em Oxford numa espécie de época de ouro, e foi
assim que de facto aprendi a fazer filosofia. Há muitas pessoas
que tiveram impacto em mim, mas eu diria que as duas com
maior influência foram Peter Strawson e J.L. Austin. Conheci
Paul Grice, e aprendi mais com ele depois da sua vinda para
Berkeley como membro da faculdade do que quando eu era
estudante.
M.E.G. – Acerca de Wittgenstein (no contexto de uma en-
trevista com Brian Magee precisamente sobre o trabalho de
Wittgenstein) afirmou, e passo a citá-lo: “Primeiro, parece-me
que na verdade não compreendemos adequadamente
Wittgenstein e, em segundo lugar, ele não completou o seu
trabalho. Apenas o começou.” Poderia desenvolver um pouco
mais esta sua ideia?
J.R.S. − Acerca de Wittgenstein, domesticámos por assim
dizer Wittgenstein, de maneira que ele torna-se mais ou menos
um filósofo analítico de referência, contribuindo para
discussões como a do argumento da Linguagem Privada e a da
Natureza da Matemática. Penso que o desígnio de Wittgenstein
e o conteúdo real das suas ideias é muito mais revolucionário.
Se Wittgenstein estiver certo, então muita da corrente
dominante da filosofia torna-se simplesmente inútil, porque

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Wittgenstein diz que as questões que mais nos preocupam


levantam-se apenas porque falhamos a compreensão dos jogos
de linguagem que dão às palavras relevantes o significado que
elas têm. Como não conseguimos refutar Wittgenstein, é como
se continuássemos em frente sem ele ter existido, como se as
suas visões radicais e revolucionárias nunca tivessem sido
expressas. Era esta a perspectiva que eu tentava sustentar em
resposta a Magee.
A segunda questão acerca de Wittgenstein é que me parece
claro que de facto ele não terminou o seu trabalho. As publica-
ções que temos, com excepção do Tractatus, que ele mais tarde
rejeitou, e certas partes das Investigações Filosóficas, eram por
ele próprio vistas como por acabar. Penso que algum do melhor
trabalho da sua vida foi feito mesmo no fim, pouco antes da sua
morte. Estou a pensar em particular em On Certainty. Portanto,
vejo Wittgenstein nos seus últimos anos a direccionar-se para
toda uma área de investigação a que chamo “o Background”,
um conjunto de capacidades e aptidões, simultaneamente
biológicas e culturais, que tornam possíveis a nossa linguagem e
o nosso comportamento. Ele morreu antes de levar este projecto
até ao fim. É importante enfatizar que, pelos padrões
contemporâneos, Wittgenstein morreu muito novo. Morreu aos
61 anos, e durante grande parte da sua vida não estava a fazer
filosofia activamente, por isso há uma acepção em que a sua
carreira está inacabada.
M.E.G. – Depois desta, por assim dizer, introdução centre-
mo-nos na sua própria filosofia. Comecemos pela sua filosofia
da linguagem. A sua teoria dos actos de linguagem é sobeja-
mente conhecida. Algumas questões parecem contudo menos
bem compreendidas do que outras. Uma das questões mais
complicadas parece ser a sua abordagem dos actos de lingua-
gem, na esteira de Austin, designados por performativos. As

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enunciações performativas são declarações. Quão longe estamos


dos performativos austinianos?
J.R.S. – Penso que Austin deu uma contribuição revolucio-
nária para a filosofia com a sua teoria dos actos de linguagem,
mas tal como com Wittgenstein, mas com ele ainda mais, é im-
portante enfatizar que o seu trabalho não foi terminado. Austin
morreu prematuramente, aos 48 anos. O que nós conhecemos
como sendo a teoria dos actos de linguagem de Austin não foi
de modo algum bem trabalhada, e se ele tivesse vivido mais
nunca a teria publicado na forma em que a temos. Tenho isto
como um facto porque, à maneira dos jovens estudantes, eu
queria que ele a publicasse porque a queria criticar depois de
impressa, e já tinha preparado o material que posteriormente
publiquei sob a forma de artigo, a que chamei “Austin on
Locutionary and Illocutionary Acts”. Quando lhe perguntei
quando é que a tencionava publicar, ele disse-me que a via
como “meio cozinhada”, e Austin nunca publicaria algo que
considerasse meio cozinhado. Estas conversas com Austin, a
propósito, eram sempre um pouco desastradas, chegando a ser
mesmo cómicas. Perguntei, inocentemente: “Para quando é que
podemos esperar que sejam publicadas as suas lições de
Harvard?” Austin atacou, como eu deveria ter sabido que ele
faria. E respondeu: “Pode esperar que sejam publicadas em
qualquer altura que você deseje.” Era no entanto típico de
Austin fazer um primeiro movimento que pudesse ser
facilmente contornado, o que eu fiz sondando-o com outras
perguntas, e foram essas outras perguntas que revelaram que ele
pensava que esse material, numa forma algo parecida com a
forma que hoje conhecemos, ainda não estava pronto para
publicação. Penso portanto que o meu próprio trabalho sobre
actos de linguagem vai bastante para além de Austin. Em parti-
cular, a combinação da análise da estrutura dos actos de lingua-
gem com uma taxinomia mais rica do que a de Austin
permitem-me dar uma definição de performativo melhor do que

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a dele. A propósito, muita gente interpreta mal Austin; pensam


que Austin sustenta a ideia de que todos os enunciados são
performativos, e de facto diz-se frequentemente que todos os
enunciados têm uma dimensão performativa, ou algo de
parecido. O que as pessoas estão aqui a fazer é uma confusão
entre um performativo e um desempenho (performance). O
cerne da questão é que toda a teoria dos actos de linguagem de
Austin se baseia na assunção de que todas as enunciações são
desempenhos, o que é apenas outra maneira de dizer que todas
as enunciações são actos de linguagem, mas nem todos os
enunciados são performativos. Os performativos constituem
uma classe muito especial de enunciações, nomeadamente
aquelas enunciações em que se desempenha um acto pelo dizer
que se está a desempenhá-lo.
De qualquer maneira, para responder explicitamente à
questão, penso que Austin teve uma grande perspicácia ao ver
que havia uma classe de enunciações onde se desempenha o
acto que se está a desempenhar ao dizer-se que se está a
desempenhá-lo. Faz-se uma promessa dizendo-se “Prometo”,
desculpo-me dizendo “Desculpa”. Penso que a elucidação
proposta por Austin quanto a isto é incorrecta em vários aspec-
tos. Por exemplo, ele nega que esses enunciados possam ser
performativos e, simultaneamente, assertivos. Penso que isto é
errado. Penso que o homem que diz “prometo” tanto faz uma
promessa como afirma fazer essa promessa. O truque é explicar
como é que faz as duas coisas simultaneamente, e num artigo
que escrevi chamado “How Performatives Work” tento dar
resposta a essa questão. Para a presente discussão, o que há a
enfatizar é que todos os enunciados performativos são declara-
ções. Há casos em que dizer algo faz com que assim seja.
M.E.G. – De acordo com alguns autores, e estou nomeada-
mente a pensar em Habermas ou em Apel, por exemplo, há dois
Searle; o de Speech Acts e o de Intentionality. Parecem pensar
que a abordagem “intencionalística” do significado oferecida

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em Intentionality está em conflito com o que poderemos


designar como a visão “social” dos actos de linguagem
defendida precisamente em Speech Acts – An essay in the
philosophy of language. Gostaria de comentar?
J.R.S. − Creio que Habermas e Apel supõem erradamente
que uma abordagem da linguagem através da teoria da intencio-
nalidade e uma abordagem da linguagem enquanto actos de
linguagem desempenhados em sociedade são de algum modo
inconsistentes. Penso que não são de modo algum
inconsistentes. De facto, pretendo desenvolver, e tenho
trabalhado nisso, uma teoria unificada que combine uma
elucidação da mente e da consciência juntamente com uma
elucidação da linguagem e da realidade social. O meu livro mais
recente, Mind, Language and Society, tenta sumariar essa
explicação, apesar de a maioria dos detalhes estarem nos meus
livros anteriores.
É apenas devido à história da filosofia alemã, onde a filo-
sofia da consciência era oposta a uma aproximação social à
filosofia, que pode parecer que estas duas aproximações são
inconsistentes, mas espero que a minha própria abordagem
naturalista torne claro que se pode reconhecer o carácter
essencialmente social dos actos de linguagem e da realidade
social em geral e, ainda assim, ver ao mesmo tempo como
derivam dessa consciência dos indivíduos que é ela mesma um
fenómeno natural do cérebro humano enquanto fenómeno
biológico.
Em resumo, não há qualquer conflito entre a realidade so-
cial manifestada pelos actos de linguagem e pelas instituições
sociais em geral e a intencionalidade individual tal como existe
nos cérebros humanos individuais. O princípio-ponte que liga a
intencionalidade individual e a realidade social é a intencionali-
dade colectiva. Mas a intencionalidade colectiva existe nos
cérebros dos indivíduos que formam o colectivo.

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M.E.G. – Gostava agora de focar algumas das bem conhe-


cidas ideias do Professor sobre filosofia da mente. Poderia
explicar como é que o seu naturalismo biológico fornece
argumentos tanto contra o materialismo como contra o dualismo
no que ao problema mente-cérebro se refere?
J.R.S. – Não se pretende que o naturalismo biológico seja
um argumento contra o materialismo e contra o dualismo, é
antes apresentado como uma resposta à questão a que eles
tentam responder, dada a suposição de que ambos estão errados.
Nunca me dei ao trabalho de publicar muito a atacar o dualismo
porque não me pareceu ter algo de original a dizer sobre o as-
sunto. O dualismo falhou simplesmente porque não podia expli-
car as relações entre o mental e o físico, assumindo que são
domínios ontológicos distintos. Argumentei contra o materialis-
mo ao mostrar que nega factos tão óbvios como a existência de
consciência. Os materialistas responderam a isso dizendo que
não rejeitam a existência de consciência, apenas querem mostrar
que ela é redutível a fenómenos materiais, ao que eu respondi
mostrando que todas as reduções falharam. Este é um dos tópi-
cos principais de Rediscovery of the Mind. O naturalismo bio-
lógico rejeita em primeiro lugar simplesmente as categorias que
dão origem ao problema. É a aceitação das categorias cartesia-
nas tradicionais do mental e do físico que nos dá a ilusão da
existência desses dois domínios ontologicamente distintos, e
então a questão deve ser ou tentarmo-nos livrar de um deles ou
tentar encontrar uma explicação da relação entre eles. Mas se se
rejeitar essas categorias, e se se olhar para a consciência e
outros fenómenos mentais como fenómenos biológicos
perfeitamente naturais, então parece-me que o naturalismo
biológico é uma consequência: todos os estados mentais são
causados no cérebro por processos neurobiológicos de níveis
inferiores, e são eles próprios realizados como características de
nível superior do cérebro. A consciência está a um certo nível

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de organização do cérebro, apesar de ser inteiramente causada


por processos neurobiológicos.
M.E.G. – É bem conhecido que o Professor rejeita qualquer
forma de dualismo, para não falar do materialismo. Os estados
mentais são estados do cérebro. Uma dúvida, ou melhor, uma
dificuldade parece persistir. Como deveremos entender a sua
afirmação de que a “consciência, a essência do mental, é onto-
logicamente subjectiva”? (Queremos continuar a pensar, e a
expressão é sua, que a consciência é um problema e não um
mistério.)
J.R.S. – Quando se leva o naturalismo biológico a sério,
tem de se respeitar as características do fenómeno em questão.
E tal como a digestão desfaz os alimentos de modo a permitir ao
corpo utilizá-los para o crescimento e nutrição, também o cére-
bro causa estados dele mesmo que são ontologicamente
subjectivos no sentido de só existirem enquanto experienciados.
Um estado consciente difere, por exemplo, de uma montanha ou
de uma molécula, na medida em que apenas existe enquanto
experienciado por um qualquer sujeito. É nessa acepção que
digo que é ontologicamente subjectivo. Mas isto é apenas um
facto da natureza. O facto de os cérebros terem consciência não
é mais misterioso do que o dos corpos terem atracção
gravitacional. É apenas o modo como a natureza funciona.
M.E.G. – Em The Rediscovery of the Mind defendeu aquilo
a que chamou o Princípio da Conexão, uma tese contra a visão
herdada de que podemos estudar separadamente as duas dimen-
sões da mente, consciência e intencionalidade. Embora o possa-
mos continuar a fazer, a verdade é que, de acordo com o Princí-
pio da Conexão, há “[…] uma conexão conceptual entre a cons-
ciência e a intencionalidade que tem como consequência que
uma teoria completa da intencionalidade requer uma elucidação
da consciência.” Quais são as consequências desta abordagem
para o estudo da mente?

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J.R.S. – Penso que as consequências totais do princípio da


conexão ainda não foram devidamente apreciadas. Uma das
partes mais fracas da ciência cognitiva contemporânea é a ma-
neira acrítica como o conceito de inconsciente é usado. Sempre
que as pessoas não sabem explicar uma coisa, dizem simples-
mente que é causada por processos mentais inconscientes. Isto é
típico, por exemplo, da elucidação de Chomsky da linguística
generativa. Penso que precisamos de um concepção de incons-
ciente muito mais rica e cuidadosa, e creio que uma das conse-
quências numa análise do inconsciente será mostrar que só po-
demos falar com propriedade de fenómenos mentais inconscien-
tes na medida em que falamos acerca de fenómenos que são
pelo menos em princípio acessíveis à consciência. Chomsky
respondeu-me perguntando: bem, não poderia haver alguém
vindo de Marte que pudesse pensar conscientemente as regras
da gramática universal, apesar de elas não serem acessíveis à
nossa consciência? Mas não penso que quando ele diz isso se
aperceba da dificuldade da sua posição. Ele quer manter que as
regras inconscientes de uma gramática universal são
“computáveis”. Mas isso significa que o seu nível de base é o
de, por exemplo, zeros e uns. Então qual é o suposto conteúdo
da mente do marciano? Supõe-se que seja algo como isto:
00001100110101? Não, não é possível que seja isso, porque
isso é apenas a maneira de os programadores representarem as
transições de estado efectivas dos computadores, mas isso não
apreende o conteúdo intencional. É uma característica dos
fenómenos mentais, quer conscientes ou inconscientes, que eles
têm conteúdo intencional, e o conteúdo intencional só faz
sentido onde em princípio haja acessibilidade à consciência.
M.E.G. – Se afinal a mente é tão biológica como qualquer
outra característica biológica, como é que a intencionalidade
intrínseca pode ser uma propriedade de um organismo físico?
J.R.S. – A questão de como algo natural pode ter intencio-
nalidade é muito parecida com a questão de como algo de mate-

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rial pode ser consciente. A questão não é tanto respondida pela


intrigante metafísica acerca de como tal coisa é possível, mas
antes pela interrogação sobre como é que de facto isto funciona
na vida real. No caso da intencionalidade, temos estado cegos
quanto ao seu carácter natural porque tendemos a pensar em
estados intencionais muito abstractos, tais como acreditar que
Tóquio é a maior cidade do Japão, ou acreditar que 2 + 2 = 4.
Mas se se pensar em estados intencionais biológicos muito mais
primitivos, como a sede, a fome e a visão, então já não parece
de longe tão misterioso supor que um animal, apenas por uma
questão de processos biológicos, possa sentir sede. Um animal
sente um desejo ou uma premência para beber água. E isto é
uma forma básica de intencionalidade. Se se quiser saber como
é que isto pode funcionar, já é suficientemente fácil descrever
como é que funciona na prática. O animal tem uma carência de
água no seu corpo, o que causa uma descompensação salina
(demasiado sal), o que leva os rins a segregarem renina, a
renina sintetiza uma substância chamada angiotensina 2, a
angiotensina atinge o hipotálamo, e a activação de um feixe de
neurónios leva o pobre animal a sentir sede. Isto é bastante
próximo de como funciona na vida real, e se se vir isto como
um fenómeno biológico, então o mistério metafísico é posto de
parte. O que se disse acerca da sede aplica-se à fome, serve para
a visão (apesar de a visão ser mais complicada), aplica-se ao
desejo sexual, e a muitos outros fenómenos perfeitamente
naturais. Em resumo, vejo as formas básicas da intencionalidade
enquanto experiência e acção intencional, e depois formas
derivadas que são coisas como a memória e a intenção, e formas
ainda mais derivadas como a crença e o desejo. Historicamente,
a razão por que isto parece intrigante é como a razão por que o
problema corpo-mente parece intrigante. Tentamos descrevê-lo
num conjunto de categorias cartesianas que se tornaram
obsoletas.

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M.E.G. – Desde 1980, com o seu argumento do Quarto


Chinês, tem sido considerado como um dos mais importantes
opositores àquilo que se poderia chamar a teoria computacional
da mente. Nos anos 90 tem argumentado que a teoria computa-
cional é não apenas falsa mas mal formada. O que é que signi-
fica sustentar que “a sintaxe não é intrínseca à física”?
J.R.S. – A base do argumento do Quarto Chinês era que a
semântica de uma linguagem natural como o chinês ou o inglês
não podia ser reduzida à sintaxe. A semântica não pode ser
reduzida a meros símbolos formais. E como, por definição, um
computador só manipula símbolos formais, decorre que o com-
putador não pode, apenas em virtude da computação, ter a se-
mântica de uma linguagem natural. Não se pode obter a semân-
tica apenas a partir da sintaxe.
Mas isso deixa-nos a questão: bem, mas o que é afinal a
sintaxe? Reparando-se na física de um computador, o que se
encontra em vulgares computadores comerciais é uma série de
transições muito rápidas de estados electrónicos, por exemplo,
entre diferentes níveis de voltagem. A questão interessante é
saber que facto acerca dessas transições de estado as transforma
em símbolos, as transforma em processos sintácticos, transfor-
ma os diferentes estados em zeros e uns. E a resposta é: nada
que seja intrínseco a esse estado enquanto processo físico
natural faz dele um símbolo, ele é apenas um símbolo relativo à
atribuição de uma interpretação simbólica ou computacional. E
o resultado é que não se pode descobrir computações na
natureza, mas pode-se descobrir processos aos quais se atribua
uma interpretação computacional. Mas isso tem como
consequência que a tese de que o cérebro é um computador
digital é não só falsa como também incoerente e mal formada.
Se se perguntar: o cérebro é intrinsecamente um computador
digital? A resposta é que nada é intrinsecamente um
computador digital excepto mentes conscientes a percorrerem

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conscientemente os passos da computação. Mas um aparelho


eléctrico só é um computador digital relativo a um uso ou a uma
atribuição computacionais. A noção de computação é uma
noção relativa ao observador. Mas se a questão for: pode-se
atribuir uma interpretação computacional ao cérebro? A
resposta é que se pode atribuir uma interpretação computacional
ao que quer que seja. A teoria computacional da mente acaba
por não ser propriamente falsa, mas incoerente. Nos tempos do
Quarto Chinês, eu pensava que era pelo menos falsa. Agora
parece-me que não chega a esse nível.
M.E.G. – Gostaria de retomar o conceito de “intencionali-
dade”, não o de intencionalidade individual, mas o de intencio-
nalidade colectiva, talvez um dos seus conceitos menos
conhecidos, pelo menos em Portugal. (Numa certa acepção
estamos a passar da sua filosofia da mente para a área da filoso-
fia social, para o que propôs como um novo ramo da filosofia, a
filosofia da sociedade.) Defende que a intencionalidade
colectiva é um fenómeno biológico primitivo e que é uma
condição necessária para a existência de factos sociais. Afirmou
que as intenções relativas ao nós não são redutíveis às intenções
relativas ao eu. Porque é que a partilha de intenções relativas ao
eu não é suficiente para a constituição de um facto social?
J.R.S. – Os factos sociais requerem intencionalidade colec-
tiva como parte da sua constituição. Se tudo o que tivéssemos
fossem intenções relativas ao eu, então a cooperação seria um
milagre. Seria uma situação em que eu estou a tocar violino e você
está a tocar viola e acontecia, miraculosamente, estarmos a tocar
um dueto de cordas. A vida social não poderia existir se fosse essa
a sua base. O que temos de ter é um sentido de cooperação, um
sentido de agir, planear, falar, etc., em conjunto. Chamo a isso
intencionalidade colectiva. Sem intencionalidade colectiva não
há organização social. Sem organização social não há
sociedade.

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M.E.G. – Regressemos a uma questão mais geral que tem


precisamente a ver com a sua proposta de um novo ramo na
filosofia, a filosofia da sociedade. O que é exactamente a filoso-
fia da sociedade? Quais são as suas implicações para o que
normalmente consideramos como as principais disciplinas da
“filosofia social”, como por exemplo a filosofia política?
J.R.S. – Parece-me que no passado sofremos de uma con-
cepção muito restrita do papel de uma filosofia social. Pensa-
mos na filosofia social ou como um ramo da filosofia política
ou como “a filosofia das ciências sociais”. Gostaria de propor a
existência de um ramo da filosofia, a filosofia da sociedade, que
está para a sociedade da mesma maneira que a filosofia da
mente está para a mente, ou a filosofia da linguagem está para a
linguagem. Numa tal concepção de filosofia social, a ontologia
da realidade social seria a matéria de estudo principal, do
mesmo modo que na filosofia da mente a ontologia do mental, e
a relação dos fenómenos mentais com outros tipos de
fenómenos, são os assuntos principais. Se a aproximação for
esta, então assuntos como a filosofia política e a filosofia das
ciências sociais parecem bastante diferentes. A natureza da
metodologia apropriada para as ciências sociais proviria então
naturalmente da consideração da sua ontologia. Trabalhei
naquilo que considero serem as características básicas dessa
ontologia em The Construction of Social Reality. Uma questão
mais fascinante, que não trabalhei, é a de saber quais seriam as
implicações disto para a filosofia política. Posso apenas dizer
que no Ocidente a filosofia política teve sempre uma qualidade
irreal, tipo Alice no País da Maravilhas, com as suas descrições
de uma utopia ideal, ou as suas caracterizações de contratos
sociais imaginários, etc. O que gostaria de ver na filosofia da
sociedade era um conjunto de mecanismos teóricos satisfatórios
de apreciação, consideração, avaliação, crítica e finalmente
melhoria das instituições sociais humanas existentes.

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M.E.G. – O novo livro do professor Searle, Mind, Langua-


ge and Society, foi publicado em Dezembro último. A pergunta
que gostaria de lhe fazer é precisamente acerca do título do
novo livro. A ordem das palavras é relevante? Vou tentar pôr a
minha questão de uma forma mais clara. Já publicou dois livros
na área da filosofia da linguagem, creio que quatro sobre
filosofia da mente e temos The Construction of Social Reality,
sobre o que designou como filosofia da sociedade. Podemos
dizer que neste livro temos uma perspectiva global da sua
filosofia “na ordem certa”? Primeiro temos a mente, depois a
linguagem e finalmente a sociedade?
J.R.S. – Sim, a ordem das palavras é relevante, e este livro
pretende ser uma panorâmica de um grande número de tópicos
que cobri nos meus outros trabalhos. Qualquer pessoa que es-
creva uma série de livros sobre uma série de assuntos irá, a
dado passo da sua vida, escrever um livro a explicar como é que
tudo isso se encaixa. Para mim, o meu último livro é
precisamente esse livro. Tento explicar como é que mente,
linguagem e sociedade se articulam.
M.E.G. – E qual é o papel que o conceito de Background aí
desempenha? Pergunto isto porque o conceito aparece de uma
forma algo titubeante – estou a pensar em “Literal Meaning” e
“The Background of Meaning” – mas desde Intentionality
torna-se, ou assim parece, um conceito cada vez mais
importante para um entendimento global do seu projecto.
J.R.S. – A tese do Background é a tese de que toda a inten-
cionalidade, quer na forma de percepção e acção intencional,
memória e intenção prévia, ou crenças e desejos, tal como emo-
ções, só funciona em relação a um Background de capacidades
mentais pré-intencionais ou não-intencionais. Por exemplo, só
posso formar a intenção de ir esquiar porque tenho um conjunto
de capacidades que me permitem esquiar. Apenas posso ver isto
como palavras numa página porque tenho um conjunto de capa-

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cidades para reconhecer determinadas coisas como palavras e


determinadas outras como não sendo palavras. É este conjunto
de capacidades pré-intencionais que tornam toda a intencionali-
dade possível e, a fortiori, torna possível toda a
intencionalidade colectiva. Vejo o Background social como
essencial para compreender a sociedade. Muita da história tem a
ver com um conflito de Backgrounds. Um dos aspectos
reveladores acerca da actual luta política nos Estados Unidos
sobre o comportamento do Presidente é que envolve em grande
medida um conflito, de facto um cisma, entre dois Backgrounds
culturais diferentes. Um Background americano muito
tradicional vê o comportamento do Presidente como
absolutamente ultrajante, e insiste que o seu afastamento do
cargo é essencial para a preservação da nossa civilização. O
outro Background, mais moldado pelos acontecimentos do
século XX, vê como algo ridícula a ideia de isto ser uma
questão séria. Eu próprio tendo a partilhar este último
Background, mas como teórico estou muito impressionado pelo
facto de ser difícil para os dois lados comunicarem um com o
outro.

(Traduzido do inglês por


Miguel Madeira e Mafalda Eiró Gomes)

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