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AFONSO NILSON BARBOSA DE SOUZA

DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA CATARINENSE

Aspectos Pós-Modernos na Dramaturgia Catarinense


a partir da década de 90

Florianópolis, SC

2007

1
Universidade do Estado de Santa Catarina

Centro de Artes – Departamento de Artes Cênicas

Programa de Pós-Graduação em Teatro – Mestrado

AFONSO NILSON BARBOSA DE SOUZA

DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA CATARINENSE


Aspectos Pós-Modernos na Dramaturgia Catarinense
a partir da década de 90

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Teatro da Universidade do Estado de
Santa Catarina – UDESC como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Teatro

Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço

Florianópolis, SC

2007

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AFONSO NILSON BARBOSA DE SOUZA

DRAMATURGIA CONTEMPORÂNEA CATARINENSE

ASPECTOS PÓS-MODERNOS NA DRAMATURGIA CATARINENSE


A PARTIR DA DÉCADA DE 90

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de mestre no


curso de pós-graduação/mestrado da UDESC.

Banca examinadora:

Orientador: __________________________________________________
Prof. Dr. Edélcio Mostaço
UDESC

Membro: __________________________________________________
Prof. Dr. Clóvis Massa
UFRGS

Membro: __________________________________________________
Profª. Drª. Maria Beatriz Cabral
UDESC

Suplente: __________________________________________________
Profª. Dr. Ronaldo Faleiro
UDESC

Florianópolis, 04/05/2007

3
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Edélcio Mostaço, pela paciência, respeito e exigência que fizeram
deste trabalho o que ele é.

Aos quatro autores analisados neste trabalho, André Silveira, Carlos Silva, Fábio
Brüggeman e Rogério Christofoletti, cuja atenção e disponibilidade foram indispensáveis para
realização desta pesquisa.

Ao programa de pós-graduação da UDESC, cuja concessão da bolsa de monitoria


durante a vigência do curso possibilitou o término desta dissertação.

A Jandira Lorenz Neves e João Otávio Neves Filho (Janga) pelo auxílio teórico em
diversas questões, pelo empréstimo de livros e pelas absolutamente prazerosas conversas sobre o
assunto.

Às secretárias dos PPGT Maria Cristina D’Eça e Mila, pela atenção e carinho ao
ajudarem a resolver vários problemas durante o curso.

Aos meus colegas de curso Roseli Battistella, Ana Lara Fonseca, Ive Novaes, Josanne
Tavares, Moira Stein, Adriano Moraes e Yftah Peled, pelo companheirismo e amizade que tornaram
mais leves esses dois anos de pesquisa.

A minha mãe Fátima Inêz Barbosa de Souza, pelo apoio e incentivo irrestrito.

À Luiza Carolina Lorenz Neves, por me mostrar o quão importante pode ser a
perseverança.

4
RESUMO

Esta dissertação pretende demonstrar a presença de elementos pós-modernos


na dramaturgia produzida em Santa Catarina, a partir da década de 1990, através da
análise da obra dramatúrgica de quatro autores com produção constante no estado:
André Silveira, Carlos Silva, Fábio Brüggemann e Rogério Christofoletti. Para tanto,
inicialmente, traçamos uma série de definições do pós-modernismo e da pós-
modernidade, utilizando alguns dos mais proeminentes estudiosos da área na
atualidade, como Frederic Jamenson, Kristian Kumar, Steven Coonor, David Harvey e
Linda Hucheton. A partir destes conceitos e definições efetuamos um painel da
dramaturgia contemporânea com enfoque em elementos pós-modernos, bem como
uma análise conceitual dos principais procedimentos dramatúrgicos pós-modernos da
atualidade, que por sua vez, também são utilizados na dramaturgia produzida em
Santa Catarina. Deste ponto em diante efetuamos um breve panorama da dramaturgia
catarinense na última década, para posterior inserção das análises das obras dos
dramaturgos enfocados neste trabalho. A partir disso é possível inferir que a pós-
modernidade, como pudemos verificar nas várias definições que norteiam este
trabalho, não se caracteriza como movimento localizado, mas como uma
disseminação irrestrita de um estado, ou estágio da produção intelectual capaz de
conviver e se infiltrar nas mais díspares culturas, meios de comunicação e modos de
expressão, propondo assim uma via de mão dupla entre a produção artística periférica
ou não, o que possibilita, embora não garanta, um conhecimento recíproco que
ultrapasse avaliações de qualidade baseadas proximidade ou distância de grandes
centros.

Palavras Chave: dramaturgia, pós-modernismo, contextos-periféricos.

5
ABSTRACT

This dissertation aims to show the presence of post-modern elements in drama


that have been produced in Santa Catarina State (Brazil) since the 1990s, throughout
the analysis of four authors’ drama production at a steady pace in the State: André
Silveira, Carlos Silva, Fábio Brüggemann and Rogério Christofoletti. Thus, we initially
set series of definitions related to post-modernity and post-modernism by using the
concepts from some of the most important names in this area like Frederic Jamenson,
Kristian Kumar, Steven Coonor, David Harvey and Linda Hucheton. From those
concepts and definitions, we set a contemporary drama panel focusing on post-modern
elements along with a conceptual analysis from current and also main post-modern
drama procedures that are also used in drama works produced in Santa Catarina.
From this point, we show a brief view from the catarinense drama during the last
decade to insert later dramatists works analyses that are focused on this study. It is
possible to infer, after verifying several definitions related to this study, that post-
modernity is not characterized as one located movement but as a non-restrictive
dissemination of one state or an intellectual production stage that will be able to live
and mix with different cultures, communication means and expression modes by
proposing a two- way road between peripheral and non-peripheral artistic productions.
This allows, without any guarantees, to a reciprocal knowledge that may overcome
quality assessments based on proximity or distance from the big centers.

Key-words: drama, post-modernism, peripheral contexts

6
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................08

CAPÍTULO I - O Texto teatral pós-moderno.........................................................................11

1.1. Da incredulidade para com as metanarrativas


à lógica cultural do capitalismo tardio.................................................................................11

1.2 A Dramaturgia Pós-Moderna...............................................................................................21

1.3 Procedimentos Pós-modernos em Dramaturgia.................................................................34

1.31 Mutações da narrativa: fragmentação, descontinuidade, epicização.................................36

1.3.2 Intertextualidades: paródia, pastiche, hibridização e colagem..........................................38

1.3.3 A esquizofrenia pós-moderna e as novas relações com o espectador............................42

CAPÍTULO II - Aspectos pós-modernos na dramaturgia catarinense

a partir da década de 90.............................................................................................................46

2.1 Brevíssimo panorama da dramaturgia catarinense a partir dos anos 90.............................46

2.2 Fábio Brüggemann: metateatro e ambivalência do tempo...................................................52

2.3. Carlos Eduardo Silva: a ironia suspensiva..........................................................................58

2.4 André Silveira: o esmaecimento da autoria.........................................................................63

2.5 Rogério Christofoletti: a esquizofrenia da personagem pós-moderna................................71

CONCLUSÕES...........................................................................................................................79

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................................84

7
INTRODUÇÃO

A dramaturgia em Santa Catarina teve ao longo dos anos 90 um considerável aumento


no número de obras escritas e encenadas, comparável somente a efervescência da cena
teatral aqui ocorrida no final do século XIX e início do XX, muito antes da popularização do
rádio e a retransmissão pela TV, com autores como Álvaro de Carvalho, Lacerda Coutinho e
Horácio Nunes Pires.
Esse crescimento, tanto quantitativo quanto qualitativo, da dramaturgia catarinense se
deve a diversos fatores, entre eles a viabilização de um maior número de produções teatrais
através das leis de incentivo à cultura, bem como ao estabelecimento dos profissionais de
teatro formados pela Udesc, primeiro curso superior de artes cênicas do estado, com início em
1986, a disponibilidade de acesso à informação através das mídias eletrônicas, ao implemento
da produção editorial no país e o surgimento de diversos festivais, mostras e cursos de teatro.
O que interessa para esse trabalho, entretanto, é uma identificável unidade nesta
produção, uma unidade que vai além da procedência e da residência dos autores no estado,
uma vez que contempla aspectos relativos a procedimentos dramatúrgicos e/ou movimentos
artísticos e estéticos. .
Focando neste aspecto, através de uma amostragem bastante significativa, embora
não completa, devido à produção contínua, por um lado, e à escassez de publicações de
textos teatrais, por outro, no estado, identificamos que mesmo com a multiplicidade de
movimentos, correntes estéticas e procedimentos, que a recorrência ao uso de tramas
narrativas abertas, criações coletivas, personagens bipartidas, colagens dramatúrgicas,
hibridização, dentre outros procedimentos, nos remete diretamente a uma série de
características comuns, tanto no tratamento textual quanto temático, características que
denotam relacionamento ou proximidade com as estéticas pós-modernas.
Partindo desta premissa, é minha intenção, nesta dissertação, efetivar um
levantamento dos principais dramaturgos em atividade a partir da década de 1990 no estado
de Santa Catarina e avaliar suas criações em correlação com movimentos e características
pós-modernas presentes na arte contemporânea.
Inicialmente, para localizar os conceitos a serem trabalhados em relação aos
procedimentos pós-modernos em dramaturgia, faço uma leitura descritiva das principais
teorias sobre a pós-modernidade e suas correlações com a dramaturgia contemporânea. Para

8
traçar as definições de pós-modernidade e a transição da modernidade para
contemporaneidade, utilizo referências encontradas nas obras de teóricos como Frederic
Jamenson, Kristian Kumar, Steven Coonor, David Harvey e Linda Hucheton.
Com a intenção de verificar as associações entre as teorias pós-modernas e a
dramaturgia contemporânea, bem como sua trajetória no percurso que vai da modernidade à
pós-modernidade, utilizo depoimentos, entrevistas e textos de dramaturgos como Samuel
Beckett, Eugene Ionesco, Jean Genet, Heiner Muller, Dennis Guénoun, Luis Cano, Dario Fo,
Bernard-Marie Koltés, entre outros, bem como os textos teóricos de Patrice Pavis, Roland
Barthes, Jean Pierre Ryngaert, Ruth Röll, Sílvia Fernandes, Edélcio Mostaço e Renato Cohen.
Após estas primeiras definições, traço um rápido painel sobre alguns dos principais
procedimentos pós-modernos em dramaturgia, suas definições e conectividades com outras
artes, bem como sua presença ou não na obra dos dramaturgos a serem estudados no
segundo capítulo.
Começo o segundo capítulo com um brevíssimo painel da dramaturgia catarinense a
partir dos anos 1990, focando neste recorte temporal as obras e autores a serem estudados.
Neste panorama descritivo foco minha observação no surgimento de novos autores e nas
condições para tal, no considerável número de montagens de textos inéditos e na repercussão
destas montagens, bem como nas diferentes temáticas, procedimentos e estéticas que
convivem simultaneamente na cena teatral do estado.
A partir deste momento analiso a obra dramatúrgica destes autores, onde procuro
verificar e analisar o emprego de procedimentos pós-modernos. São eles quatro autores de
grande repercussão no estado e com representatividade nacional, e para objetivar esta tarefa
recorri à entrevistas e análises diversas de suas obras.
Inicialmente, descrevo a trajetória de cada um e cito suas principais realizações em
dramaturgia. Posteriormente descrevo os textos a serem analisados e direciono meu olhar
para uma ou mais características pós-modernas presentes nas obras. A partir daí, com o
auxílio das idéias propostas pelo material de referência acima mencionado, tento descrever
estas características, sua utilização nos textos estudados e o modo como aparecem na
dramaturgia contemporânea em geral.
A escolha dos dramaturgos a serem estudados deu-se, principalmente, em
decorrência da presença de elementos pós-modernos em suas dramaturgias, mas também
devido à representatividade que detêm, tanto no estado quanto nacionalmente. Outro fator foi
o número de textos a serem estudados de cada autor, pois que dificilmente se poderia fazer
uma análise de procedimentos pós-modernos utilizando apenas uma obra, e para tanto se fez

9
necessária a escolha de autores com uma produção constante, não limitada apenas a
publicações ou encenações, mas a ambas, e com considerável número escritos, publicados
ou encenados. Por esses quesitos, além e principalmente da boa qualidade da produção,
foram escolhidos André Silveira, Rogério Christofoletti, Carlos Silva e Fabio Brüggemann.
A presença de elementos da pós-modernidade nas obras destes autores, bastante
representativos no cenário teatral do estado, marca as correlações possíveis de se encontrar
numa gama muito maior de autores que despontam nos palcos, se não como inovações, pelo
menos com uma dramaturgia alinhada aos modelos de “narração” e construção dramatúrgica
contemporâneas.
E é a partir destas correlações que se pode traçar uma interação entre periferia e
centro, conceitos cada vez mais contestados pelos teóricos pós-modernos, e propor uma via
de mão dupla entre a produção cultural periférica e ou não, possibilitando um relacionamento
e um conhecimento recíproco que vá muito além de patamares de qualidade baseados em
proximidade e distância.

10
CAPÍTULO I
O TEXTO TEATRAL PÓS-MODERNO

Da incredulidade para com as metanarrativas à lógica cultural do


capitalismo tardio

O objetivo deste capítulo é abordar algumas das principais definições de pós-


modernismo e pós-modernidade, para, em seguida, tratar especificamente do texto
teatral pós-moderno e suas características. Constato, no entanto, que a bibliografia
sobre o assunto é muito vasta e complexa1, sendo que um estudo aprofundado do
tema seria inviável neste espaço e fugiria ao escopo deste trabalho. Neste contexto,
limitar-me-ei à uma análise sucinta de algumas teorias pós-modernas mais enfatizadas
para o embasamento do assunto proposto.
Inicialmente, para se entender o conceito de pós-modernidade torna-se
necessário verificar o percurso do desenvolvimento cultural e social, e em como estas
definições passaram a ser insuficientes para definir a modernidade. De modo bastante
breve podemos situar a modernidade como uma designação abrangente de todas as
mudanças intelectuais, políticas e culturais encontráveis nas origens do mundo
moderno; e o modernismo como o movimento cultural surgido no ocidente no fim do
século XIX, que, de certa maneira, erigiu-se como uma reação crítica à modernidade
histórica (Kumar, 1997:79). O termo “moderno” deriva da palavra latina Modernus
(recentemente, há pouco), e foi inicialmente usada em fins do século V d.C. como
antônimo de antiquus (antigo). A modernidade, portanto, foi uma invenção da Idade
Média e seu surgimento foi devido, principalmente, às novas concepções e
transformações do mundo que alavancaram o desenvolvimento da humanidade no
ocidente. Podemos dizer, portanto, que a passagem do paganismo ao cristianismo, as

Utilizei para este capítulo, principalmente os livros Condição Pós-Moderna, de David Harvey; A
1

Identidade Cultural na Pós-Modernidade, de Stuart Hall; Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna,


de Krishan Kumar; O Pós-Moderno, de Jean-François Lyotard; A Epopéia do Pensamento Ocidental, de
Richard Tarnas; Culturas Híbridas, de Nestor Garcia Canclini e Pós-Modernismo – A Lógica Cultural do
Capitalismo Tardio, de Frederic Jameson.

11
grandes navegações e a descoberta de novos continentes, as revolucionárias
concepções de Newton, Galileu, Bacon, Montesquieu e Descartes, a Revolução
Francesa, a Revolução Industrial, o Romantismo, o Realismo foram modernas ao seu
tempo, sobrepondo-se ininterruptamente em direção a uma evolução contínua e
inestática.
Esta sobreposição de inovações e avanços culminou, na área cultural e
artística, com uma espécie de banalização do novo. Ao final do século XIX até as
primeiras décadas do XX, a inovação era a palavra de ordem e a constante lógica
numa sociedade sedenta por novidades. O avanço da possibilidade de informação
permitia a atualização contínua do repertório de um número cada vez maior de artistas
dispostos a inovar sempre mais que seus predecessores e a saciar a sede de
“evolução artística”, através do uso de novos procedimentos e contestações. Deste
modo a sucessão de diversos movimentos de “contracultura”, e uma pretensa
anarquia em relação às instituições e convenções artísticas deram origem,
cronologicamente, por exemplo, a partir das primeiras décadas do século XX, ao
Fauvismo, Expressionismo, Cubismo, Purismo, Orfismo, Futurismo, Vorticismo,
Dadaísmo, Surrealismo, Suprematismo, De Stijl (Neoplasticismo), Construtivismo,
Expressionismo Abstrato, Arte Cinética, Art Pop, Art Op, Minimalismo, Arte
Conceitual... Esta proliferação de movimentos, estilos e manifestos acabou por tornar-
se uma recorrência asfixiante de movimentos de revolta, e as antigas inovações
perdiam, cada vez mais, o seu caráter de revolução para um estado de torpor
repetitivo marcado pela inovação pela inovação. Segundo Krishan Kumar2:

O modernismo, então, contava com seu próprio tipo de confiança, comum


sentimento de euforia em meio ao desespero cultural. Seu fascínio pelo novo
colocou-o ao lado do progresso e dessa forma ligou-o a uma das idéias básicas da
modernidade. Mas alega-se que a própria obsessão com a novidade acabou por
romper a conexão. A mudança veio a ser considerada desejável por si mesma, e
não como um meio para obtenção de maior liberdade ou de auto-expressão mais
completa. A modernidade, que fôra definida como um “rompimento com a tradição”,
tornou-se em si uma tradição, a “tradição do novo”. Sob a força do modernismo, a
modernidade veio a tornar-se nada mais do que inovação sem fim: mudanças
intermináveis de estilo, ciclos intermináveis de moda” (KUMAR,1997:110-111).

KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
2

1997

12
Não se pode, entretanto, afirmar que apenas o esgotamento de uma revolta
deliberadamente pretensiosa tenha sido o ponto de toque para o fim do modernismo
como normalmente este é situado, mas há de se notar que um dos elementos
constituintes do pós-modernismo, tanto como movimento como continuação de um
modernismo adulterado, está num completo “desengajamento” por parte dos artistas
que, conscientes da inutilidade de uma renovação pela contestação ou pela revolta, o
fazem para a inclusão de diferenças e possibilidades de leituras contraditórias, com
implicações estéticas e pedagógicas, em vista de um público cada vez mais
heterogêneo.
De qualquer forma, a partir dos movimentos culturais e sociais oriundos da
década de 60, e do constante impulso democratizador que se fortificava a partir
desses movimentos, a utilização do termo pós-moderno começa a se firmar,
inicialmente na crítica cultural3 para, posteriormente, alastrar-se para as mais diversas
áreas, da sociologia às artes e à filosofia. Assim, em contraste com a crença no
progresso da ciência e da razão provinda da era moderna, intensificam-se sentimentos
de irracionalidade, indeterminação e anarquia que, posteriormente, irão gerar nos
adeptos da chamada “cultura pós-moderna” uma revolta contra tudo o que o
modernismo representava, fosse em cultura, arte ou política. Surgia então a Pop Art e
a música Pop, a Nouvelle Vague no cinema e o Nouveau Roman na literatura, os
happenings, as idéias de apagamento das fronteiras entre arte e vida, o cultivo da
sensibilidade através do sexo e das drogas, o combate ou contestação à
contemplação estética ou ao estudo intelectual e a tudo o que lembrava os elementos
“elitistas”, “autocráticos” e “esotéricos” do modernismo.
Contraditoriamente, muito do caráter anárquico e anti-sistêmico do pós-
modernismo vem de encontro a características das avant-gardes modernistas, como o
dadaísmo ou o surrealismo, por exemplo, pois que tanto em um quanto em outro
podem ser encontradas características como a rejeição do realismo e da arte

Segundo Kumar, o uso do termo pós-modernismo antes deste período na área da crítica cultural e
3

estudos sociológicos se deve ao historiador Arnold Toynbee, que identificara em Study of History, de
1954, um período iniciado no último quarto do século XIX, que rompia deliberadamente com a era
moderna “clássica”que se alastrava desde a Renascença até fins do século XIX, o qual denominou
“pós-moderno”.

13
representativa, ou mesmo um anti-intelectualismo em prol de uma criação inconsciente
ou espontânea.
No entanto, segundo Jean-François Lyotard, o modernismo se deixou ossificar,
burocratizar e comercializar, não mais representando qualquer ameaça ou
contestação, perdendo então o seu élan revolucionário de subversão, ao passo que o
pós-modernismo representa uma ruptura interminável com o passado, por mais radical
que este tenha sido (KUMAR, 1997:121). Fredric Jameson, por sua vez, atesta em
Pós-Modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio4 que, embora seja possível
detectar algumas características pós-modernas em alguns surpreendentes
predecessores modernistas como Marcel Duchamp e Gerturd Stein, o pós-
modernismo, em contrapartida, surge como uma violenta reação à canonização e à
institucionalização acadêmica desses artistas modernos5 (JAMESON, 1997:30).
Algumas características dessa transição do modernismo para o pós-
modernismo podem ser visualizadas na tabela criada por Ihab Hassan contida em A
Condição Pós-Moderna6, de David Harvey, onde, por trás das oposições, descortinam-
se vários elementos de disparidade entre os “movimentos”:

Modernismo Pós-Modernismo
Romantismo/simbolismo Parafísica/dadaísmo
Forma (conjuntiva, fechada) Antiforma (disjuntiva, aberta)
Propósito Jogo
Projeto Acaso
Objeto de arte/obra acabada Processo/performance/happening
Criação/totalização/síntese Descriação/desconstrução/antítese
Presença Ausência
Concentração Dispersão
Seleção Combinação
Raiz/profundidade Rizoma/superfície
Significado Significante

4
JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo, Ática, 1997.
5
Interessante notar que, mais adiante, Jameson sublinha a condição da estética amplamente subvencionada e
mercantil da arte contemporânea, que não choca mais ninguém e são recebidas com complacência pelos órgãos
oficiais da sociedade ocidental.
6
HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo, Loyola, 1996.

14
Legível Escrevível
Código mestre Idioleto
Sintoma Desejo
Tipo Mutante
Genital/fálico Polimorfo/andrógino
Paranóia Esquizofrenia
Origem/causa Diferença/vestígio
Metafísica Ironia
Determinação Indeterminação
Transcendência Imanência
(HARVEY, 1996:48).

Embora não se possa, conforme explicita Harvey, descrever uma relação tão
complexa como a do modernismo/pós-modernismo com simples polarizações, estas
são, de qualquer maneira, um bom ponto de partida.
Neste caminho, diferentemente do modernismo, em que se pode, por exemplo,
usar eficientemente uma definição como a de David Harvey, “geralmente percebido
como positivista, tecnocêntrico e racionalista, o modernismo universal tem sido
identificado como crença no progresso linear, nas veredas absolutas, no planejamento
racional de ordens sociais e ideais, e com a padronização do conhecimento e da
produção” (HARVEY, 1989:19), uma definição do pós-modernismo, devido a seu
caráter mutante e avesso a definições “solidificadoras”, tende a apresentar um caráter
bem mais problemático.
Krishan Kumar argumenta que uma definição razoavelmente clara do pós-
modernismo é contrária à maior parte das práticas pós-modernistas, pois é difícil evitar
uma definição moderna do pós-modernismo, e ainda, tal definição entraria em choque
com as características de racionalidade e objetividade que os pós-modernistas se
esforçam em negar (KUMAR, 1997:115-116). Por sua vez, o historiador da filosofia
Richard Tarnas, em A Epopéia do Pensamento Ocidental7, afirma que a grande
dificuldade em traçar uma definição satisfatória do pós-modernismo consiste em que
“o paradigma pós-moderno é fundamentalmente subversivo em relação a todos os
paradigmas, pois em sua essência está a consciência de que a realidade é, ao mesmo

TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental, São Paulo. Bertrand Brasil, 2000.
7

15
tempo, múltipla, local e temporal, desprovida de qualquer fundamento demonstrável”
(TARNAS, 2000:429). É possível verificar nesses argumentos várias correlações com
um dos textos mais estudados (e criticados) dos estudos pós-modernos: A Condição
Pós-Moderna, de Jean-François Lyotard8.
De fato, após a publicação de La Condition Posmoderne, em 1979, o debate
sobre o pós-moderno e o pós-modernismo se acirrou. Não que antes de Lyotard o
tema, e mesmo o termo, já não tivesse sido amplamente debatido: em 1954 o já citado
historiador Arnold Toynbee já o utilizara em A Study of History e, na década de 60,
intelectuais como Irving Howe e Clemence Greenberg já classificavam o pós-
modernismo como uma “capitulação ao kitsch e ao comercialismo” (Kumar,1997:118).
Acontece que, após o pequeno texto de Lyotard, suas reflexões acabaram por se
tornar basilares em qualquer estudo relativo à pós-modernidade. Segundo o professor
inglês Steven Coonor, em Cultura Pós-Moderna, Introdução às Teorias do
Contemporâneo9, a incontestável influência de Lyotard se deve, principalmente, a
duas razões: o livro está numa encruzilhada em que áreas distintas como política,
economia e estética se interceptam e, as idéias lyotardianas acabaram por se tornar
como que uma fonte legitimadora para narrativas mais propriamente estético-culturais
(COONOR,1996:30).
O foco de Lyotard em seu famoso livro dirige-se, basicamente, aos modos e/ou
à capacidade de legitimação do saber no mundo contemporâneo. Ele argumenta que a
ciência moderna rejeita ou suprime as formas de legitimação do conhecimento que se
baseiam na narrativa, pois estas são, na verdade, auto-legitimações. Entretanto,
paradoxalmente, ao excluir a narrativa, a ciência necessita, para legitimar-se, de uma
outra narrativa, chamada metanarrativa ou narrativa mestra. Lyotard observa, então,
que a partir da Segunda Guerra Mundial estas narrativas mestras foram perdendo seu
poder de legitimação, desestabilizando assim o poder regulatório da ciência, na
medida em que esta descobre as limitações de verificação de seus pressupostos e

LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno, Rio de Janeiro. José Olympio Editora, 1988.


8

CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna – Introdução às Teorias do Contemporâneo. São Paulo,


9

Edições Loyola, 1996.

16
resoluções. Essa “incredulidade diante das metanarrativas” acaba por se tornar um
dos principais motes teóricos do pós-moderno10.
Para Lyotard, a pós-modernidade é um estado “nascente e constante” de
modernidade. Entendendo a arte moderna a partir da estética do sublime de Kant, ele
distingue dois modos de relação entre o representável e o concebível: a melancolia e a
novatio, onde o primeiro caracteriza-se por uma “nostalgia da presença” e o segundo
pela “potência da faculdade de conceber”. Assim, enquanto a estética moderna pode
ser considerada como a estética do sublime, nostálgica, estando o irrepresentável
como conteúdo ausente, permitindo o consolo e o prazer, a estética pós-moderna
alega o irrepresentável na própria representação, evitando assim uma conciliação
entre o sensível e o conceitual e minando possibilidades de experiências
transparentes e comunicáveis. (RÖHL, 1997:4).
Frederic Jameson, no já citado Pós-Modernismo, A Lógica Cultural do
Capitalismo Tardio, colocando em xeque as definições de Lyotard ao sublinhar, entre
outras coisas, a contradição implícita no fato de que todos os aspectos significativos
sobre o desaparecimento das narrativas mestras tenham sido apresentados em forma
de narrativa (1997:15), define o pós-moderno como uma dominante cultural, cuja
concepção dá margem à coexistência de uma série de características que, apesar de
subordinadas umas as outras, são bem diferentes, tais como: uma nova falta de
profundidade que se vê prolongada tanto na “teoria contemporânea” quanto na cultura
da imagem e do simulacro; o enfraquecimento da historicidade, tanto na relação com a
história pública quanto em novas formas de temporalidade privada; um novo tipo de
matiz emocional básico, denominado “intensidades” e, a profunda relação constitutiva
de todos estes elementos com as novas tecnologias. (1997:27-32). Neste caminho, o
pós-moderno é, para Jamenson, não uma superação do capitalismo, mas uma
intensificação de suas forças, onde se descortina uma nova área de sua atuação
multinacional: a própria representação.
Embora as definições do pós-moderno de Lyotard e Jameson sejam basilares,
apresentando uma amplitude difícil de demarcar, e ainda mantenham um tom de work
in progress, para usar um termo tipicamente pós-moderno, é possível e necessário,

10
Ver COONOR, 1996:29-42 e HUTCHEON, 1991:19-42.

17
mesmo que as confluências e similitudes não sejam assim tão explícitas ou presentes,
utilizar outras definições e descrições do pós-moderno que venham a somar, ou se
sobrepor, como num patch-work, a uma definição ou sentido mais completo.
Para Linda Hutcheon, em Poética do Pós-Modernismo11, o novo estilo não pode
ser utilizado como um simples sinônimo de contemporâneo e nem ao menos descreve
um fenômeno mundial, visto que é basicamente europeu e americano (norte e sul), e
que, por atuar dentro dos próprios sistemas que tenta subverter, acaba sendo
profundamente contraditório, apesar de representar um marco para o surgimento de
algo novo, e mais ainda, uma força desafiadora da crescente uniformização da cultura
de massa. Um desafio sim, mas não uma negação, conforme explicita a pesquisadora,
visto que possui um relacionamento ambíguo com o que se costuma classificar de
cultura dominante, pois se distingue do intuito modernista de atingir valores estéticos e
morais estáveis em direção a uma negação de qualquer estrutura ou, na denominação
de Lyotard, qualquer narrativa-mestra, tal como a arte ou o mito como “consolos”
modernistas. Deste modo, os “reparos” a que supostamente o modernismo
necessitava e o pós-modernismo está além, são, como criações humanas dotadas de
valor e limitação, consoladores e ilusórios, constituindo assim o contraditório universo
de questionamentos onde habita o pós-modernismo (HUTCHEON, 1991:19-25).
Assim, a pós-modernidade não nega peremptoriamente a modernidade, mas
lhe dá uma livre interpretação, revendo criticamente seu reducionismo dogmático e
sua incapacidade para lidar com a ambigüidade e a ironia, rumo a uma consciência
histórica, um hibridismo e uma abrangência pós-modernas, onde um repensar sobre o
valor da multiplicidade e do provisório acaba por se tornar uma constante em
detrimento da oposição simplista do fazer/desfazer. O discurso pós-moderno – tanto
teórico quanto prático - , portanto, não entra necessariamente em acordo com a ordem
ou a desordem, mas questiona as duas como termos uma da outra, não buscando
nenhuma visão total, mas questionando continuamente até as próprias conclusões a
que chega ou pretende chegar (idem: 48-52 e 66-72).

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. São Paulo, Imago, 1991.


11

18
Terry Eagleton12, citado por David Harvey, em A Condição Pós-moderna, define
o artefato pós-moderno como travesso, auto-ironizador e esquizóide, e que reage à
austera autonomia do alto-modernismo ao abraçar impudentemente a linguagem do
comércio e da mercadoria. Através de sua brutal estética da sordidez e do choque, e
de sua intencional falta de profundidade, solapa todas as solenidades metafísicas,
mantendo uma relação de pastiche irreverente com a tradição cultural. Assim, para
Eagleton, o pós-modernismo assinala a morte das metanarrativas, cuja função
terrorista era fundamentar e legitimar a ilusão de uma história humana universal. O
pós-modernismo é a passagem da razão manipuladora e do fetiche de totalidade da
modernidade para o pluralismo retornado do pós-moderno, que renuncia ao impulso
nostálgico de totalizar e legitimar a si mesmo. E conclui que a ciência e a filosofia
devem abandonar suas reivindicações metafísicas e ver modestamente a si mesmas
como apenas mais um outro conjunto de narrativas (EAGLETON, apud. HARVEY,
1996:19-20).
Nestor Garcia Canclini, em Culturas Híbridas13, propõe uma ampla reflexão
sobre a crise da modernidade no contexto latino-americano, e considera o pós-
moderno não como uma etapa substitutiva do moderno, mas como uma
problematização “dos vínculos equívocos que ele armou com as tradições que quis
excluir ou superar para constituir-se” (CANCLINI, 1997:28), considerando a
visualidade pós-moderna como a encenação de uma dupla perda: do roteiro e do
autor, onde já não existem os grandes relatos que organizavam e hierarquizavam as
manifestações culturais cultas e populares, nas quais se reconheciam e consagravam
a sociedade e as classes. O pós-modernismo, para Canclini, não é um estilo mas uma
“co-presença tumultuada de todos”, onde os capítulos da história da arte e do folclore
se cruzam entre si e com as novas tecnologias culturais (CANCLINI, 1997:329).
Poderíamos continuar neste expediente indefinidamente por numerosos autores
e definições, sempre encontrando correlações, contradições e discordâncias as mais
variadas, mesmo porque, praticamente todos os estudos sobre o pós-moderno são
constituídos de citações mútuas e recorrentes dos mesmos autores, como se o

EAGLETON, Terry. “Awakenig from modernity”. Times Literary Suplement, 20 de fevereiro de 1987.
12

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas – Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. São
13

Paulo, Editora da USP, 1997.

19
chamado debate pós-moderno fosse realmente uma reunião destes especialistas que
se conhecem, se estudam e se citam ininterruptamente para melhor explicar suas
próprias digressões, definições e conceitos. Desse modo se estabelece, mesmo
contraditoriamente, um paradoxo que acaba por solapar as próprias estruturas do
debate pós-moderno, visto que a formulação definidora de Lyotard para a emergência
do pós-modernismo – a suspeita para com as metanarrativas – acaba sendo
demarcada e nomeada repetidamente pela teoria pós-moderna de maneira tal que se
limita o universo proposto de pluralidade e diferença para uma definição ou conjunto
de definições pretensamente totalizadoras. Sobre isso, é conveniente ressaltar a
observação de Steven Coonor:

“Se a teoria pós-moderna insiste na irredutibilidade da diferença entre as áreas


distintas de prática cultural e crítica, é, por ironia, a linguagem conceitual da teoria
pós-moderna que penetra nas trincheiras que ela própria cava entre
incomensurabilidades – e é essa linguagem que, nessas trincheiras, se torna sólida
o bastante para suportar o peso de um aparato conceitual inteiramente novo de
estudo comparativo” (COONOR, 1996:17)

Mais adiante, entretanto, Coonor afirma que mediante estas contradições não é
possível que a cultura pós-moderna seja bem a coisa que a teoria pós-moderna diz
que ela seja, e que, não obstante, isso não significa que o debate pós-moderno não
tenha função, mas que, se tomarmos estas contradições como uma forma inerente ao
pós-modernismo, seria possível enxergá-lo como uma função discursiva, cuja
integridade derivaria antes da regularidade de seus efeitos e contextos em diferentes
operações discursivas do que, necessariamente, da consistência das idéias que o
compõem. Quanto a isso, seria então necessário reformular as questões que
geralmente são colocadas no debate pós-moderno, perguntando ao invés de “o que é
o pós-moderno?”, como e por que o discurso pós-moderno floresceu? A quem se
dirige e de que maneira? O que está em jogo em seus debates? Mudando assim o
enfoque de seu sentido ou conteúdo para o debate sobre sua função, perguntado
antes “o que o pós-moderno faz?” que “o que ele é?” (COONOR, 1996:17).

20
1.2 – A Dramaturgia Pós-Moderna

“Pois bem, já que é preciso existir o teatro, deixe as peças.


Faça o teatro sem elas, até que, abandonadas,
elas se envergonhem, se emplumem de novo
para seduzir.Toma
na tua mão, aquilo que está aí,
desde que tenha carne.
O que você quiser: pedaços
de discursos, páginas arrancadas
dos jornais, poemas solitários,
ou cartas,
pedaços de filosofia, imagens, restos de filmes, fotos de guerra
ou de festa, momentos da televisão captados em vídeo,
canções, poemas, dados sobre automóveis, traços de estilistas, revistas de cabelereiros.
Sinopse
de vulgarização técnica, prospectos de máquinas, conversas ouvidas no telefone,
poemas, confissões de bêbados, arrotos, preces, filosofia, muita política sem ranço,
poemas, poemas dos dias de hoje. Pegue tudo isto, sem muito desejo de obra, um pouco
apenas, para não cair de muito alto.
Faça teatro sem peças.
Fuja dos diálogos
afetados, falsos dramas incompreendidos:
agora, é preciso evitar aquilo que eles chamam teatro.
Evitar o teatro para fazer teatro de novo.
Abandonar a imitação, escolher o endereço.
Mostrar, mostrar, mostrar, simular um pouco menos.
Enderece,
como se despeja carroças de frutas ou de barro.
Doe o que você puder, o que você encontrar, e doe-se você junto.
Um público quer que se pare de mentir. Faça-o, faça-o. Sem medo.
Com esse texto aqui
que eu te endereço, se ele puder te servir. Pegue pedaços dele,
cole, emende, se você encontrar nele um pouco do vento que agita a noite e o fogo.
Nenhum escrúpulo. Não é uma peça. Será que eu te ofereci uma aparência de endereço,
pedaços de mundo servidos numa caixa de jóias? O palco não é uma caixa de jóias, é um
balcão. O tempo não é mais para pequenas caretas, e quem não é poeta o suficiente para
jogar à platéia grandes proferações poéticas, pode ao menos endereçar algumas palavras
endurecidas no duelo com a verdade” (GUÉNOUN, 2005).

Esse trecho de Carta Aberta, texto do dramaturgo e diretor francês Denis


Guénon, em tradução de Fernando Kinas, não é apenas um exemplo de por quais
caminhos o texto teatral contemporâneo se aventura, mas um auto exemplo que se
propõe fruto de um tempo, e por que não, de um país, que vislumbrara o “fim das
grandes narrativas”.

21
Obviamente, quando Lyotard cunhou este termo que se tornou como que uma
alcunha das definições de pós-modernismo, sua intenção primeira era asseverar antes
o fim de um sistema de legitimação científica do que, necessariamente, antever uma
literatura restrita a novos patamares de inteligibilidade. No entanto, Lyotard, como
explicitado anteriormente, acabou por tornar-se um dos principais referenciais teóricos
para definições culturais e artísticas do pós-modernismo. E, de fato, quando falamos
“o fim das grandes narrativas” em se tratando de literatura, acabamos por cair,
deveras, em teorias e definições que pregam o fim da linearidade, da inteligibilidade e
das formas fixas, apenas para citar as características mais gerais de uma literatura
contemporânea.
O texto de Guénoun, por exemplo, é uma carta endereçada a um diretor de
teatro, onde o autor, após uma espécie de aula sobre os fundamentos, a evolução e a
situação do teatro (principalmente na França), prega que tudo pode ser anexado ao
texto, colado ao espetáculo, desde que devidamente “endereçado” e dotado de carga
poética. Tal como em seu livro O Teatro é Necessário?, Guénoun sugere um novo
patamar de “jogo”, que vá além da relação teatral e invente trocas e éticas inéditas,
abrangendo no seio do espetáculo teatral os homens em si, não apenas suas
imagens, mas suas presenças efetivas, propiciando “um não-teatro que o
compreenda”, maltratando a matéria do teatro para colar nela o real “dos vivos e de
sua pele” (GUÉNOUN, 2004:153-163).
Nessa linha de reaciocínio, há um verdadeiro coro de autores contemporâneos
atentos às transformações consideradas necessárias à existência de um teatro,
mesmo que raramente eles usem o termo, pós-moderno. Podemos citar, como
exemplo, o francês Antoine Vitez:

“O texto de teatro só terá para nós um valor inesperado, e propriamente – não


representável. A obra dramática é um enigma que o tempo deve resolver. O que, às
vezes, leva muito tempo. No início, ninguém sabia como encenar Claudel, nem
Tchekhov, mas é o fato de ter que encenar o impossível o que transforma a cena e
o jogo do ator; assim o poeta dramático está na origem das mudanças formais do
teatro; sua solidão, sua inexperiência, até mesmo sua irresponsabilidade são
preciosas. O que se pode fazer com autores experientes que prevêem efeitos de
iluminação e inclinações do tablado? O poeta não sabe nada, não prevê nada, os
artistas é que devem interpretar. Aí, então, com o tempo, Claudel, que achávamos
obscuro, torna-se claro; Tchekhov, que julgávamos lânguido, parece vivo e conciso”
(VITEZ, 2003:76).

22
E Michel Deutsch:

“O passado e o presente são lançados na cena como fragmentos, vestígios,


restos... Que, na verdade, é o que resta depois do refluxo, quando baixa a maré de
equinócio das ideologias (das utopias e do historicismo). Não há nenhuma nostalgia
de uma pátria perdida. Apenas a imagem do ser conjunto, desorientado e do caos
no qual se afunda uma parte (a maior) da humanidade... impossível de representar.
Suponhamos que o palco bricolado, maquinado provoque um encontro discreto
com um mundo de possíveis (um pouco à maneira das crianças quando brincam),
que realiza um possível encontro com configurações de restos, com objetos e seres
que não são mais, então, aqueles que se acreditava”(DEUSTCH. 2003:117).

O argentino Luis Cano:

“A necessidade de procurar novas formas de falar para poder falar de outras coisas,
escapar ao entendimento para poder conceber coisas que não existem. As fissuras,
as fendas que se produzem na obra por ser frustrada. Há indubitavelmente uma
necessidade de minha parte de falar ainda que não entenda, ou melhor, por não
entender. Isso que estou dizendo é muito questionável, mas creio que este falar
sem que se entenda é a única forma de sair do que está dado, da tradição, da
grande paralisia da cultura” (CANO, 2004:47)
14

Dario Fo:

“Para entender melhor a situação em que se encontra a literatura teatral de hoje,


imaginem o seguinte jogo absurdo: em primeiro lugar, juntemos um determinado
número de comédias e dramas escritos nos últimos anos e talvez não
representados; em seguida, sem apor nessas obras nenhuma data, vamos coloca-
los no interior de um cápsula espacial. Lancemos um foguete na direção da
estratosfera. Dentro de cinco séculos, alguns astronautas provavelmente
encontrarão essa cápsula, trazendo de volta à Terra. De imediato, alguns
estudiosos vão se apoderar dos textos, começarão a estuda-los e tentarão
descobrir em que período histórico foram escritos. Vocês acham que eles vão
conseguir? Onde eles encontrariam uma referência acerca das notícias do nosso
cotidiano, uma alusão aos fatos trágicos de nossa época, uma menção aos conflitos
sociais? Nada; só encontrariam rios de conceitos, palavras se perseguindo como se
estivessem em jogo de cabra-cega, sem nunca se encontrarem, personagens fora
de qualquer tempo e sem um mínimo de realidade. Não, ninguém conseguiria saber
quando e por quem poderiam ter sido escritos esses textos. Dias, noites, meses,
épocas, tudo fora de qualquer tempo” (FO, 1998:206).

“La necesidad de plantearse otras formas de hablar para poder hablar de otras cosas, escapar al
14

entendimiento para poder plantear cosas que no existen. Las fisuras, las grietas que se le producen a la
obra por ser fallida. Hay indudablemente una necesidad de mi parte de hablar aún sin que se entienda,
o más bien porque no se entiende. Esto que estoy diciendo es muy cuestionable, pero creo que este
hablar sin que se entienda es la única forma de salir de lo dado, de la tradición, de lo más anquilosado
de al cultura” (Tradução minha).

23
Heiner Muller:

“Mas quando escrevemos peças, o impulso principal é realmente a destruição, até


que se chegue, e isso soa terrivelmente metafísico, a um núcleo, a partir do qual se
possa construir novamente algo. Se desconstruimos todas as ilusões, chegaremos
possivelmente a situação real. Mas essa talvez nem sequer exista” (MÜLLER,
1997:328).

Como estes, muitos outros autores têm manifesto sua inquieta percepção do
modo de escrita teatral e suas transformações nas últimas décadas. Se somássemos
a eles os teóricos da literatura e pesquisadores do teatro, as fileiras das definições
estariam repletas de características as mais variáveis, múltiplas descrições e, como
seria de se esperar de algo relacionado ao pós-moderno, numerosas contradições. E
isto, sublinhando-se a multiplicidade de características, a convivência ou
simultaneidade entre elas.
Podemos notar a partir das primeiras décadas do século XX, a partir talvez do
meta-teatro de Luigi Pirandello em Seis Personagens a Procura de um Autor, e
mesmo antes, com os fragmentos Woyzek, de Georg Büchner, e até Qorpo Santo, no
Brasil, que a dramaturgia rumou a um novo patamar diegético, onde a linearidade de
ação e tempo acabou por esvanecer diante de novas categorias de enredo e
percepção artística. O caminho aberto pelo simbolismo, onde “pela primeira vez desde
o classicismo, a representação se via desligada da obrigação mimética e da sujeição a
um modelo inspirado no real” (ROUBINE, 2003:121), que tem em Maurice Maertelinck
seu maior representante, influenciou profundamente o teatro dos anos 1950 e 1960,
Beckett e Ionesco, sobretudo. Procedimentos como deslocamento e ambivalência de
tempo, como utilizado por Thorton Wilder em Nossa Cidade, ou Jorge Andrade em A
Moratória, diferentemente da época em que foram escritas, 1938 e 1955
respectivamente, são hoje bastante comuns. O teatro épico e o distanciamento de
Brecht cindiram a noção de conflito do teatro tradicional rumo a uma noção de
dialética, de contradição, aproximando-se da narração propriamente dita e levando o

24
espectador a abandonar a ilusão da realidade para aceitar, efetivamente, como teatro
a representação.
O Pós-Guerra é próspero com o surgimento de novos autores e tendências. A
estréia de Esperando Godot, em 1953, inicia a abundante contribuição de Samuel
Beckett à cena contemporânea. Suas peças posteriores, a começar por Fim de Partida
e Dias Felizes, mostram um mundo desolado, onde o homem, irremediavelmente
solitário, impotente diante do destino e uma existência sem sentido, debate-se
invariavelmente na repetição monótona de suas esperanças infundadas e irrealizáveis.
Em seus textos mais recentes, como as peças radiofônicas (Todos os Que Caem,
Cinzas, Palavras e Música, Cascando), Beckett insere recursos como o monólogo
interior e a contracenação dos atores com a música ou elementos sonoros. Em Ato
Sem Palavras, Catástrofe e Comédia há uma busca por um teatro da imagem, do
gesto e do símbolo, onde cada vez de modo mais sintético, pulverizando as unidades
de tempo, lugar e ação, Beckett desnuda a contumaz busca por felicidade e
transcendência e sua inconciliável realidade fadada ao despropósito e ao absurdo.
Nessa linha, juntamente com Beckett, autores como Eugene Ionesco, Arthur
Adamov, Fernando Arrabal, Jean Genet, Friedrich Durrematt, Harold Pinter, entre
muitos outros, foram enquadrados no que se convencionou chamar “Teatro do
Absurdo”, ou “Teatro de Irrisão”, que negava veemente os procedimentos da
dramaturgia clássica apresentando, entre outros procedimentos, peças sem intriga
onde o acaso e a invenção dominavam o universo ficcional, personagens indefinidos,
múltiplos ou esteriotipados, e a renúncia ao mimetismo psicológico e gestual (PAVIS,
2001:2). Ionesco, por exemplo, revela em O Rinoceronte, a partir de uma premissa
absurda (um misterioso vírus que transforma as pessoas em rinocerontes), uma
parábola sobre a apatia dos franceses perante a ocupação nazista, um homem
desprovido de sentido, dominado pelas convenções e por uma linguagem estéril,
incomunicante. É uma crítica ao conformismo, à submissão dos homens por inércia ou
ambição e à inutilidade da linguagem num mundo onde o pensamento e a inteligência
estão submetidos à formas fixas convencionadas pelos sistemas sociais. Segundo
Raymond Williams15,

WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna, São Paulo. Cosac & Naify, 2002.
15

25
Na absoluta condição da ilusão humana, apenas estes fatos parecem certos: morte
e angústia. Por trás da fachada ridícula, aguarda uma violência à parte, que age de
acordo com suas próprias leis. Saber disso é, a um só tempo, angustiante e
libertador. De fato, a única sociedade autêntica que pode ser criada de acordo com
o olhar de Ionesco tem de basear-se numa descoberta geral da condição absoluta
de ilusão e, conseqüentemente, na “nossa angústia comum” (WILLIAMS,
2002:200).

Jean Genet, por sua vez, apresenta em suas peças a hipocrisia e o absurdo de
uma sociedade fundamentada em máscaras. Suas personagens assumem
constantemente outras personalidades, metamorfoseando-se e duplicando-se ora em
carrascos ou dominadores, ora em figuras subalternas, e fazem desta representação
uma aporia das relações estabelecidas por patamares sociais calcados em símbolos
de posse e poder, bem como retrata sarcasticamente o absurdo de um convívio
baseado em relações de compra e venda, dominação e perversão. Em O Balcão
(1968), por exemplo, Genet estabelece um microcosmo do fetiche que o poder exerce
sobre a sociedade e o homem em geral. Em meio a uma revolução iminente, o
fregueses de um bordel de luxo satisfazem suas fantasias de sexo e poder
representando as figuras símbolo de uma sociedade estabelecida, como o bispo, o
general, o juiz, etc. Madame Irma, a dona do bordel, teme pelo sucesso da revolução,
pois perderia não somente os clientes ligados ao poder, mas, com a queda destes, o
modelo de poder a ser assumido nas fantasias de seus clientes. Com a revolta
desbaratada, Roger, o líder da revolução, entrega-se às fantasias do Balcão
representando o Chefe de Polícia, seu perseguidor e, rejubilando-se por, no decorrer
da peça, ser também representado como uma das grandes figuras do Balcão, castra-
se. Genet multiplica as interpretações: serão os revoltosos apenas mais uma fantasia
do Balcão? O próprio Chefe de Polícia, não será também ele uma figura criada para o
deleite dos clientes? E toda tensão gerada por uma turba de invasores armados, não
será também apenas mais uma atração deste lugar onde as prostitutas fazem teatro?
Esta ambigüidade de interpretações, a esquizofrenia das personagens, o sentimento
de impossibilidade e impassibilidade diante do mundo, contido nas obras de Genet,
como também na maioria dos autores pertencentes ao Teatro de Irrisão, caracterizam,

26
segundo Edélcio Mostaço16, “um mal-estar no mundo que começa a se aperceber
estar na pós-modernidade” (2004:561).
Nesta linha, elementos ou procedimentos como ambigüidades, colagens, obras
abertas ou incompletas, criação coletiva e colaborativa, descontinuidade, perversão,
deformação e subversão, metateatralidade, multi-temporalidades, esquizofrenia, ironia
suspensiva, desritmias, hibridizações, desconstruções, ausência de diálogos, sentidos
ou narrativas, dentre uma infinidade de procedimentos, começam a tornar-se cada
vez mais comuns no texto teatral.
O escritor Ronald Sukenick em The Death of the Novel, citado por Richard
Tarnas em A Epopéia do Pensamento Ocidental, observa:

“O autor contemporâneo... é obrigado a partir do zero: a realidade não existe, o


tempo não existe, a personalidade não existe. Deus era um autor onisciente, mas
está morto; agora ninguém conhece o enredo e, como a nossa realidade não tem a
sanção de um criador, não há nenhuma garantia quanto a autenticidade da versão
recebida. O tempo se reduz à presença, conteúdo de uma série de momentos
descontínuos. O tempo já não é intencional; assim, não há nenhuma densidade,
apenas o acaso. A realidade é simplesmente a nossa experiência e a objetividade
é, naturalmente, uma ilusão. Depois de passar por uma fase de consciência
desajeitada de si mesma, a personalidade tornou-se... mero lócus da experiência.
Diante dessas aniquilações, não é de surpreender que a literatura também não
exista – e como poderia? Só existe o ler e o escrever... maneiras de manter um
respeitável tédio diante do abismo”. (SUKENICK, Ronald. In TARNAS, 2000:420)

De fato, se tomarmos como exemplo o Marat/Sade (1964), de Peter Weiss, nos


defrontaremos tanto com uma obra aberta a várias interpretações e leituras, como com
o relato metateatreal de um dos eventos mais significativos da Revolução Francesa,
além, é claro, da genial metáfora que sugere uma esquizofrenia simbólica das
personagens principais, pois ao mesmo tempo que loucos, representam personagens
históricas de grande importância. O texto narra a encenação do assassinato do
revolucionário Jean-Paul Marat em fins da Revolução Francesa, promovida pelo
Marquês de Sade em uma das várias encenações realizadas por ele quando de sua
internação no sanatório parisiense de Charenton, de 1801 a 1814. A partir daí Weiss
concebe a fábula em três tempos alternados e simultâneos: a encenação em si do

MOSTAÇO, Edélcio. O Teatro Pós-Moderno. In O Pós-Modernismo, São Paulo. Editora Perspectiva,


16

2004.

27
assassinato de Marat em 1793; a encenação do assassinato promovida por Sade com
os internos do manicômio na primeira década de 1800 e, a encenação atual, onde o
público é simultaneamente espectador da peça de Sade e da de Weiss. Esta
fragmentação do tempo e das personagens, o enredo multifacetado e aberto à várias
interpretações acabam por se tornar uma constante no texto teatral contemporâneo.
Neste contexto, o dramaturgo alemão Heiner Muller utiliza vários expedientes
explicitamente pós-modernos, como por exemplo, a colagem simples de textos da
literatura universal acrescidos de citações históricas e dos seus próprios textos em
The CIVIL warS, escrita em processo colaborativo para a encenação de Bob Wilson,
diferentemente do processo de montagem, o texto em si, constituído de “ready mades
quaisquer, permutáveis e repetíveis”, não é passível de interpretação nem como
resultado de um processo de significação nem como processo em si (FISCHER-
LICHTE, apud. RÖLL, 1997:160). Ou, como em A Missão, constituída pelo jogo de
fragmentos e pela montagem de tempos, gêneros, níveis estilísticos e formas de
representação heterogêneos (RÖLL, 1997:146), e ainda, pela intertextualidade
polissêmica que constitui peças como Macbeth (1971) e Hamletmaschine (1977),
onde o autor reescreve segundo sua visão peças clássicas, com o intuito consciente
de, através da relação intertextual, propiciar novas leituras ao receptor17.
Quanto à presumível e criticada “ausência de história”, de linearidade ou
clareza no texto teatral pós-moderno18, mais especificamente nos textos de Heiner
Muller, Ruth Röll observa que:

Sublinhamos que, segundo as considerações referentes à interpretação de espetáculos pós-


17

modernos tecidas por Patrice Pavis em A Análise dos Espetáculos, à medida que um espetáculo ou
texto apresenta-se sob forma de fragmentos, sem a pretensão de um sentido estável e aberto a
multiplicidade de interpretações contraditórias, e fala-se então em desconstrução, podemos inferir, a
partir da premissa de que toda desconstrução é apenas provisória e é o espectador quem decide, em
última análise, sua sucessão, que a crítica pós-moderna pode recorrer ao ecletismo para a escolha de
seus métodos de análise, utilizando-se, dentre outros meios, do estruturalismo e do funcionalismo,
baseando suas descrições na matéria do espetáculo; da hermenêutica, buscando desvendar a maneira
pela qual se constituem as unidades, os conjuntos, as sintaxes, os percursos, as vetorizações e os
signos; a historicidade da produção e a crítica do signo, a qual abre análises ligadas, por exemplo , à
teoria do caos, análise das sínteses, blocos de eventos isolados, etc (PAVIS, 2003:298-301).

“A esquerda marxista crítica a representação pós-moderna pela ausência de história e


18

superficialidade do pastiche, ou enquanto reprodução abstratamente semiológica, cuja eventual energia


social ou conflito político são neutralizados pelos efeitos mass media dispersivos. Outros ainda falam de
anarquia e cumplicidade” (RÖLL, 1997:162).

28
“A polissemia, mediante opção pela metáfora, pela renúncia a um sistema central
de sentido – o e/ou da representação pós-moderna – e pela não-resolução, não só
descreve a ruptura com conceitos convencionais de arte, principalmente num texto
produzido intertextualmente, como também se torna metáfora para ruptura de
nossos modelos de realidade (...) A base da representação pós-moderna é o
modelo bakhtiniano do dialógico, não dialética resolvida. Respeitante ao público-
receptor, a polissemia é também uma motivação ao prazer, à fruição da
representação artística, que nunca ocorre numa recepção puramente passiva, mas
quando depara com signos opacos, resistentes ao sentido” (RÖLL, 1997:168).

Quanto a isso, Lyotard, na mesma linha, observara anteriormente que:

“Lamentar-se sobre a perda de sentido na pós-modernidade seria deplorar que o


saber não seja mais principalmente narrativo. É uma inconseqüência. Uma outra
não é menor: a de querer derivar ou engendrar (por operadores tais como o
desenvolvimento, etc) o saber científico a partir do saber narrativo, como se este
contivesse aquele em estado embrionário” (LYOTARD, 1988:49)

Podemos observar na dramaturgia francesa das últimas décadas, semelhanças


e confluências variadas a esse estado de coisas. Autores como Michel Deustch e
Jean-Paul Wenzel produziram nos anos 70, no então Théâtre du Quotidien, obras que
buscavam através da dialética entre a vida doméstica e a vida no trabalho, abolindo o
diálogo e tentando preencher a cena com a forma e não a substância do cotidiano
real, enfocar “tanto a interiorização da ordem burguesa pela classe operária quanto a
interiorização da ideologia dominante pela linguagem e o comportamento” (PONTES
JR, 2003:74), traçando desta forma uma crítica contundente à exploração da vida
privada pela profissional, à massificação e à coerção exercida pelos meios de
comunicação de massa.
Bernard-Marie Koltès, um dos mais consagrados e encenados autores
contemporâneos franceses, morto prematuramente em 1989 aos 41 anos, apresenta
em suas peças um mundo em franca desestruturação, violento e degenerado, onde
seus personagens, geralmente excluídos e marginais, tentam sobreviver à grande
solidão existencial da vida nas grandes metrópoles. Em Na Solidão dos Campos de
Algodão, por exemplo, Koltès constrói através de longas falas, mais semelhantes a
pequenos monólogos alternados do que a réplicas teatrais em si, um jogo não mais
dialógico, mas dialético, entre o desejo e a rejeição, o ataque e a defesa, o avanço e o
recuo de um traficante e um cliente em plena negociação. Em nenhum momento é

29
mencionado o produto, o valor, os benefícios ou qualquer característica do objeto
negociado, entretanto, o jogo que se estabelece entre a oposição de argumentos
referentes a persuasão de um contra a refutação do outro, é de tal forma veemente
que, segundo o crítico e autor francês Michel Vinaver, a atividade da palavra toma o
lugar antes reservado à progressão da intriga, de forma que o que Koltès concebe é
uma micro-dramaturgia baseada em estratégias de diálogo feitas de figuras de ataque,
de resposta, de esquiva, criando armadilhas que restabelecem uma perspectiva
agonística, desta vez dentro da própria linguagem (VINAVER, apud. FERNANDES,
2001:75).
A literatura dramática contemporânea de língua espanhola, por sua vez,
também apresenta uma produção bastante prolífica e diversificada. Na Espanha,
autores como Sergi Belbel, Juan Mayorga, Josep Benet, Ignácio Del Moral,
Francisco Zarzoso Martinez entre muitos outros, possuem uma obra que segundo o
pesquisador e dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra, questiona as regras
da teatralidade, relativisando princípios como o tempo e o espaço “newtonianos”, a
oposição entre o épico e o dramático, a lógica casual entre o encadeamento da
trama, noções de ação dramática e nexos de continuidade e contigüidade
(SINISTERRA, 2001:10). Na América Latina, limitando-nos apenas ao exemplo
argentino para evitar uma relação de nomes que excederia o espaço conveniente,
podemos citar Griselda Gambaro e Eduardo Pavlovsky, importantes referências da
dramaturgia Argentina dos anos 60 aos 80, apresentam uma obra marcada pela
prática de novos caminhos de escritura, como a dissolução da estrutura tradicional
da peça dramática e a ascensão de formas próprias da literatura como o conto e o
romance no texto teatral (LUNISCH, apud CARREIRA, 2004:62). Autores mais
recentes como Rafael Spregelburd, Frederico Leon, Javier Daulte, Alejandro
Tatanian, Luis Cano e Daniel Veronese, entre outros, desenvolvem uma
dramaturgia profundamente ligada a aspectos pós-modernos de não linearidade e
logicidade das tramas, a personagens fragmentados, estereotipados e distanciados.
Segundo o diretor André Carreira19:

CARREIRA, André. Daniel Veronese: Desintegração e Sabotagem. In. Folhetim, n 19, janeiro a junho
19

de 2004.

30
A obra de Veronese nos oferece um teatro que coloca o olhar sobre a figura de
um ser humano dilacerado que está inserido em um mundo turvo no qual é difícil
discernir o que é um ser humano e o que é um objeto manipulado pelas forças do
mundo dos discursos. Podemos identificar uma zona temática persistente que
insiste em confirmar que o trabalho de Veronese se apresenta como um
instrumento de averiguação de que um sujeito que está partido em inúmeros
fragmentos. Estamos falando de um teatro político que busca sem obviedades
uma zona de impacto no âmbito da cultura. Uma compreensão do caráter político
do teatro, impregnada de uma percepção da vida contemporânea como um lugar
de fragmentos e sobreposições de discursos no qual é necessário tornar visível o
que está velado (CARREIRA, 2004:64-65).

Podemos constatar também no Brasil uma grande diversidade de


dramaturgias ligadas a procedimentos contemporâneos, sobretudo a partir da
década de 90. Nomes como Bosco Brasil (Novas Diretrizes em Tempos de Paz),
Mário Bortolotto (Nossa Vida não Vale um Chevrolet), Aimar Labaki (Vermouth),
Samir Yazbek (O Fingidor), Dionísio Neto (Opus Profundum), Newton Moreno
(Agreste) e Fernando Bonassi (Apocalipse 1,11), fazem, entre outros, parte de um
numeroso contingente de novos autores que buscam, com dramaturgias as mais
variadas, integrar a cena brasileira à contemporaneidade.
Há nessa dramaturgia uma recorrência à violência e à marginalidade nas
grandes cidades brasileiras, retratando uma sociedade problemática, alienada e
descrente. Também não é incomum o uso de recursos como narrativas
fragmentárias, esquizofrenia das personagens e textos escritos a partir de
processos colaborativos.
Citamos como exemplo dessa dramaturgia Opus Profundis e Apocalipse 1,11,
de Dioinísio Neto e Fernando Bonassi, respectivamente. O texto Opus Profundis,
segundo Sílvia Fernandes, é uma justaposição de monólogos-performances de três
protagonistas. À semelhança dos trabalhos do diretor Gerald Tomas, uma das
principais influências do autor, o texto combina uma espécie de “ostentação da
autoria” à inserção, nas rubricas, de dança, música, cinema, mídias eletrônicas e
virtuais, artes plásticas e moda, na conexão das muitas referências do imaginário
do dramaturgo. Percebe-se na dramaturgia de Dionísio Neto a pouca relação
existente entre o encadeamento da intriga e a coerência das ações, e o quanto a

31
simultaneidade, os deslizamentos de sentido, a poesia das palavras e as surpresas
na construção são contumazes em sua obra (FERNANDES, 2001:76).
Tal como nas recriações de Heiner Muller a partir de textos clássicos, como

em Hamletmaschine e Macbeth, Fernando Bonassi em Apocalipse 1,11, apropria-

se do Apocalipse de São João para ressignificar a narrativa bíblica em direção a


um João que não apenas narra as revelações divinas, mas dialoga com Deus a
respeito da solicitação nada subserviente de que este se retire para que se possa
tentar um novo começo. Há também a descaracterização, ou destruição dos
conceitos cristãos de paraíso e justiça, onde uma Jerusalém celeste é retratada
como uma boate, ou prostíbulo e, se faz referência explícita ao massacre dos 111
detentos no presídio paulista do Carandiru, em 2000. Segundo Mauro Meiches, o
texto fez emergir tudo o que a hipocrisia reprimiu, e desestabiliza a função
mediadora da palavra não por um trabalho formal no campo do significante, mas
pelo próprio retorno do recalcado, com sua avassaladora aparição na superfície da
vida de vigília (MEICHES, 2001:133). Para a crítica e pesquisadora Mariângela
Alves Lima:

O desacordo da função judicativa do texto original está também visível nas falas
dos personagens. Em grande parte desorientam e escarnecem do sentido
unívoco das afirmações. As mensagens que deveriam chegar de um mundo
transcendente são, nesse espetáculo, ordenações burocráticas de autoridades
terrenas que não sabem mais o que falar e o que fazer. Só as manifestações
blasfemas das duas alegorias, a Besta e Babilônia, têm a credibilidade indiscutível
do mau gosto e do deboche dos meios de comunicação de massa (LIMA,
2001:170).

A cena dramatúrgica contemporânea, como se buscou aqui demonstrar,


apresenta algumas características comuns no que toca a procedimentos relacionados
com o pós-modernismo. A recorrência de procedimentos como a fragmentação da
narrativa e da estrutura dramática, a multiplicidade ou esquizofrenia das personagens,
a colagem, a transcriação de textos ou a desestruturação de textos clássicos em
recriações desestabilizadoras da narrativa original, a apropriação de elementos ligados
à prosa como literatura dramática, as polissemias são absolutamente recorrentes nas
mais variadas dramaturgias.

32
Renato Cohen, em artigo referente a uma possível cartografia da cena
contemporânea, aponta ainda outros elementos:

As textualidade contemporâneas são assentadas na polifonia, na hibridização, na


deformação: nas intertextualidades entre a palavra, as materialidades e as
imagens, nas formas antes que nos sentidos, nas poéticas desejantes que dão
vazão às corporalidades, às expressões do sujeito nas paisagens do inconsciente e
em suas mitologias primordiais. É uma cena tributária da perspectiva cubista, das
vanguardas, das experimentações da arte-performance em todas as suas
derivações, e dos desdobramentos e vivências de cada uma destas tradições
(COHEN, 2001:106).

A cartografia de Cohen, bem como os exemplos citados anteriormente, situa-se


em relação direta à produção efetuada em grandes metrópoles como São Paulo, Nova
York, Berlim, Madrid e cidades deste porte. Entretanto, julgo perfeitamente possível
que, perante uma sociedade ocidental calcada indissoluvelmente nos meios de
comunicação de massa, suprida de facilidades de deslocamento e comunicação
propiciadas pelo crescente avanço tecnológico e, mais especificamente, por uma
presumível “homogeinação cultural”, nos termos propostos por Stuart Hall, em A
identidade Cultural na Pós-Modernidade, estas recorrências sejam verificáveis
também em contextos periféricos, como Santa Catarina.
No próximo item, através da enumeração e descrição sucinta de alguns dos
principais procedimentos dramatúrgicos no pós-modernismo, pretendo averiguar a
presença destas “recorrências estilísticas” na dramaturgia catarinense atual, para no
segundo capítulo analisar sua utilização na obra dos autores escolhidos.

33
1.3 - Procedimentos pós-modernos em dramaturgia

Assim como a definição do pós-modernismo, uma delimitação dos


procedimentos pós-modernos em dramaturgia é algo bastante abrangente, também
superior à extensão deste trabalho. Entretanto, vejo como possível neste espaço
enumerar e descrever rapidamente algumas das principais e mais recorrentes
particularidades da dramaturgia pós-moderna presentes na cena contemporânea, e
principalmente na cena catarinense.
Levo em consideração que, como atesta Linda Hutcheon, “o pós-modernismo é
um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios
conceitos que desafia” (HUTCHEON, 1991:19) e portanto, mesmo que determinados
textos apresentem uma ou mais características pós-modernas, nada impede que
apresentem também características realistas, naturalistas ou ultra-românticas, apenas
para citar algumas referências que podem estar aglutinadas no corpo narrativo
dramático de uma obra, sem que a mesma se descaracterize como pós-moderna.
Nesse sentido, segundo afirma Hans-Thyes Lehmann, em artigo sobre o teatro
pós-dramático, publicado na revista Sala Preta20,

Se você começa a olhar mais de perto, e com um pouco mais de paciência, uma
série de procedimentos e uma série de formas teatrais, que a gente costuma ver
como coisas muito experimentais, são compostas por elementos tradicionais,
coisas que já existiam no teatro. Ou seja, o teatro pós-dramático não é a
destruição do teatro, mas uma nova etapa que, com esse distanciamento, pode
ser percebida como uma etapa dentro da história do teatro, que tem um
desenvolvimento (LEHMANN, 2005:11).

Observo, entretanto, que o teatro pós-dramático, que na definição de Lehmann


diz respeito a um teatro onde a relação entre as pessoas perde o caráter de centro do
drama, e onde as personagens não mais se adéquam aos conceitos de figuras
dramáticas e da psicologia dos indivíduos, bem como onde as noções de conflito de
idéias e conflito em si, de linearidade de tempo, e principalmente de dialética, no
sentido de uma progressão que se encaminha a uma síntese, acabam por se tornar

LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro Pós-dramático e Teatro Político. Revista Sala Preta, nº5, 2005.
20

34
supérfluas (LEHMANN, 2005:10), por vezes se confunde, mas acaba englobado no
leque mutante e híbrido das dramaturgias pós-modernas.
O mesmo ocorre com o teatro não-dramatúrgico que, segundo as definições
apresentadas pelo professor e encenador José Eduardo Vendramini, em artigo
também publicado pela revista Sala Preta21, apresenta entre outras características, a
recusa do enredo em prol da abolição da linearidade; personagens fragmentárias, sem
biografia, vida psicológica ou objetivos coerentes; não parte de um texto pronto,
embora possa chegar a ele no final do processo de montagem, e a
descontextualização, onde a peça é retirada de um contexto visual óbvio e se
apresenta num outro, em geral simbólico, onde sem evolução seqüencial, época ou
enredo, acaba por se tornar recontextualizado (VENDRAMINI, 2001:81-84).
Podemos falar ainda do pós-teatro, que nas palavras do encenador e professor
Renato Cohen22, apresenta como características a alternância de fluxos sêmicos e de
suportes, instalando o hipersigno teatral, da mutação, da desterritorialização, da
pulsação do híbrido, e contempla a fusão, a diluição de gêneros: trágico, lírico, épico,
dramático, bem como faz uso do múltiplo, da epifania, da crueldade e da paródia,
consubstanciando uma escritura não seqüencial e rizomática em recursos de
proliferação, mediação e subjetivação (COHEN, 2003:03).
Em meio a tantas definições, conceitos e procedimentos que se aproximam e se
assemelham, algumas confusões parecem inevitáveis e o risco de imprecisão
permanece uma constante em qualquer delimitação.
Segundo o encenador francês Jean-François Peyret23,

Então existiria um teatro pós-dramático ou pós-teatro, o que sem dúvida não é a


mesma coisa. E, se entendo bem, meus modestos trabalhos poderiam ser
colocados sob esta rubrica. Eu que acreditava na idiotice, quer dizer, se levar em
conta a etimologia, na singularidade da minha maneira de fazer, eu que sonhava
ser inclassificável! Isso é que é expor-se ao julgamento público. Se um teatro é
uma gentileza com a fábula (como vocês sabem, aquela que tem um começo e
um fim), se ele não vira refém dos personagens (ah! a psicologia dos
personagens), então ele é pós-dramático? Se o teatro tenta ficar disponível a
outras preocupações que não sejam a sua própria tradição (do incesto que data
da mais alta Antiguidade, ao que parece até a venda das cerejeiras na Rússia

21
VENDRAMINI, José Eduardo. O teatro de origem não-dramatúrgica. Revista Sala Preta, nº1, 2001.
22
COHEN, Renato. Pós-Teatro: performance, tecnologia e novas arenas de representação.
http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/
PEYRET, Jean-François. O teatro e o pós. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/
23

35
pré-soviética, se ele tenta ser ligeiramente exógeno, se faz circular outros
discursos além daqueles que tem o monopólio, os da ciência, da rua, da filosofia
ou da literatura não-dramática, temos necessidade de rotulá-lo como pós-alguma
coisa, com o perfume de fim de festa que a palavra pós exala? (PEYRET,
2003:04).

Como podemos perceber, a variedade e a coexistência de diversos


procedimentos na dramaturgia pós-moderna nos leva a um emaranhado de
características e nomenclaturas que fazem com que delimitações e descrições
acabem se tornando reducionistas, ou imprecisas, não conseguindo abarcar a
complexidade e a multiplicidade dos expedientes utilizados na cena contemporânea.
Entretanto, notamos que procedimentos bastante recorrentes como a colagem e a
mistura de linguagens e gêneros, bem como de procedimentos literários e
cinematográficos na escritura dramática, a metalinguagem, a ironia e a paródia,
personagens esquizofrênicas, a epicização e a hibridização acabam por se tornar
bastante constantes nos procedimentos dramatúrgicos contemporâneos.
Acredito que só a partir destas recorrências é que se possa traçar, com certa
ambição de abrangência, um panorama sobre os procedimentos pós-modernos em
dramaturgia.

1.3.1 Mutações da narrativa: fragmentação, descontinuidade, epicização

A partir de Büchner, dos dadaístas e dos futuristas italianos, passando por


Apollinaire, Maeterlinck e Pirandello, culminando em Beckett, a narrativa teatral
passou por transformações “destruidoras”. O desenvolvimento linear cedeu lugar à
fragmentação e a uma diegese entrecortada, multiforme e desconexa. Não podemos
falar em um novo patamar de narrativa, pois que não falamos aqui de valorações, mas
de uma nova forma e de uma nova consciência ao perceber o tempo, o espaço, o
narrador e o receptor.
Na dramaturgia pós-moderna essa nova consciência pode ser representada
pelas peças sem enredo, por caracterizações de tempo e espaço deliberadamente
imprecisas ou inexistentes, pela profusão de personagens ambíguas, esquizofrênicas

36
ou onde a fronteira entre o narrador, a personagem e o ator são difusas ou até
imperceptíveis.
O José da Costa, em artigo sobre dramaturgia contemporânea publicado na
Revista Percevejo, afirma que:

Quanto à ação dramática e à sua implicação no teatro contemporâneo, pode-se


dizer que o problema já não parece mais o de a ação ser mostrada em sua
atualidade imediata (drama ortodoxo) ou reconstituída de forma narrativa
(drama moderno), mas o de que a própria ação, enquanto desdobramento
diegético e fonte de sentido, tende a não se concretizar ou a se definir,
muitas vezes constituindo-se como um grande prólogo, uma espécie de
introdução desmedida, como uma exposição que ultrapassa a parte inicial da
peça, tomando mesmo toda extensão da mesma e não chegando a dar lugar à
ação ou ocorrência propriamente dita (COSTA, 2000:06)

Tais características podem ser encontradas em autores tão diversos quanto


Samuel Beckett em Esperando Godot e Fim de Partida, como mais recentemente em
Bernard-Marie Koltès em Na Solidão dos Campos de Algodão, ou os catarinenses a
serem estudados no próximo capítulo, como Fábio Brüggemann em Fausto e Sim, Eu
Sei, e Rogério Christofolleti, em Castelo de Cartas.
Segundo Vendramini, a tradicional estrutura de um dramaturgo que escreve
previamente um texto para só então um encenador começar a dirigi-lo, desaparece
quando se trata do chamado teatro não-dramatúrgico, onde os pressupostos de
linearidade, enredo, autoria, intencionalidade e recepção do espectador entram em
declínio. A narrativa acaba por ser simplificada ao máximo, compactada até se
transformar em conceitos, que por sua vez se transformam em imagens que se
sobrepõem ou substituem a palavra (VENDRAMINI, 2001:86).
Por outro lado, podemos observar também um retorno, ou melhor, um
aprofundamento de dramaturgias épicas. Segundo o encenador e Luiz Arthur Nunes,
em ensaio publicado na revista teatral Percevejo24,

O restabelecimento da teatralidade anti-ilusionista a partir da hibridização da


forma dramática com procedimentos épicos e poéticos é, sem dúvida, uma das
maiores conquistas da revolução sofrida pelo palco contemporâneo. Este
movimento levou, nas últimas décadas, ao desenvolvimento da prática da
teatralização de textos de ficção literária, salvaguardando sua epicidade

NUNES, Luiz Arthur. Do livro para o palco:formas de interação entre o épico literário e teatral.
24

Revista O Percevejo, Rio de Janeiro: UNIRIO, DTT/PPGT , ano 8, nº9, 2000.

37
constitutiva. O discurso narrativo direto é assumido integralmente: os atores
tornam-se porta-vozes do autor contador (NUNES,2000:40)

Esse binarismo nas definições de procedimentos é uma constante nas teorias e


definições do pós-modernismo. Linda Hutcheon observa que “o pós-modernismo
literalmente nomeia e constitui sua própria identidade paradoxal, e o faz num
incômodo relacionamento contraditório de constante desgaste” (HUTCHEON,
1991:39). Portanto, o fato de termos num mesmo plano o desmembramento das
narrativas em prol do efeito imagético e um retorno ao teatro épico em prol do
restabelecimento de uma teatralidade anti-ilusionista, nos leva a um paroxismo que
não apenas nos dá margens para uma talvez possível delimitação de procedimentos
pós-modernos, mas nos remete ao questionamento pós-moderno à
unidimensionalidade da cultura de massa e à homogenização da cultura.

1.3.2 - Intertextualidades: paródia, pastiche, hibridização e colagem

A ficção pós-modernista, segundo Linda Hutcheon,

Mais do que negar, contesta as “verdades” da realidade e da ficção - as


elaborações humanas por cujo intermédio conseguimos viver em nosso mundo. A
ficção não reflete a realidade, nem a reproduz. Não pode fazê-lo. (...) Em vez
disso, a ficção é apresentada como mais um dos discursos pelos quais
elaboramos nossas versões da realidade (HUTCHEON, 1991:64).

Para contestar essas “verdades” da realidade, o pós-modernismo acaba por


assimilar os discursos dessa mesma realidade que confronta, sejam eles formais ou
políticos, sociais ou históricos. Para o pós-modernismo tudo é consumível e
reaproveitado, inclusive o próprio pós-modernismo, inclusive o próprio fato desse
reaproveitamento.
Nesse contexto, a paródia, que intrinsecamente se utiliza de textos
preexistentes transformando-os ironicamente, acaba por se tornar um de seus
recursos chave. Linda Hutcheon observa que “a paródia é uma forma pós-moderna
perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo que parodia. Ela também
obriga a uma reconsideração da idéia de origem ou originalidade, idéia compatível

38
com outros questionamentos pós-modernos sobre os pressupostos do humanismo
liberal” (HUTCHEON, 1991:28)
Segundo Patrice Pavis,

A paródia tende a tornar-se um gênero autônomo e uma técnica para revelar o


procedimento artístico. No teatro, ela se traduzirá num resgate da teatralidade e
num rompimento da ilusão através de uma insistência grande demais nas marcas
do jogo teatral. (...) Ela intui um jogo de comparações e comentários com a obra
parodiada e com a tradição literária e teatral. Constitui um metadiscurso crítico
sobre a peça de origem. Por vezes, ao contrário, reescreve e transforma a
dramaturgia e a ideologia da peça imitada (PAVIS, 2003:278).

Outro recurso chave em procedimentos pós-modernos é o pastiche. Se por um


lado a paródia se apropria dos textos de uma maneira irônica, desafiando ou
ridicularizando o modelo usado, o pastiche acaba por se aproveitar do modelo como
base para uma possível “complementação”, utilizando-o para recriar, mesmo
deformando-o, tornando-se uma nova obra que comenta, questiona ou parte da
anterior.
O escritor e professor Silviano Santiago, em artigo sobre literatura comparada25,
traça algumas das principais diferenças entre tais procedimentos.

A paródia significa uma ruptura, um escárnio com relação àquela estética que é
dada como negativa. O pastiche não rechaça o passado, num gesto de escárnio,
de desprezo, de ironia. O pastiche aceita o passado como tal, e a obra de arte
nada mais é do que um suplemento. (...) Reparem que a lógica da palavra
"suplemento" é muito curiosa, porque o complemento dá a impressão de ter em
mãos alguma coisa incompleta que você estaria completando. Suplemento é
alguma coisa que você acrescenta a algo que já é um todo. Dessa forma, eu não
diria que o pastiche reverencia o passado, mas diria que o pastiche endossa o
passado, ao contrário da paródia, que sempre ridiculariza o passado (SANTIAGO,
1989).

A hibridização, por sua vez, aproveita-se de trechos, parcelas e estruturas de


outros textos teatrais ou mesmo materiais oriundos das artes plásticas, da cibercultura,
da literatura em prosa e mesmo de elementos não artísticos ou ficcionais, como leis,
manuais de venda, cartas e quaisquer outros que possam ser aproveitados na

SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso na tradição do modernismo.


25

http://acd.ufrj.br/pacc/modernismo.htm

39
construção do texto cênico. A particularidade em questão é que ao se aproveitar
destes materiais, nem estes e nem o texto permanecem imunes a “contaminação” um
pelo outro, e o que antes era uma bula de remédio passa a ser um trecho de
monólogo, e o que antes era Hamlet, passa a ser Hamlet-Máquina.
Diferentemente, a colagem preserva as formas e as distinções entre uma coisa
e outra. O que é trecho de romance, permanece como trecho de romance, mesmo
inserido em contextos diversos26 e, como num quebra cabeça, a forma alcançada será
sempre reconhecível como adendo, citação ou protuberância, algo que mesmo
fazendo parte do todo, a ele não pertence, mas ajuda a transformá-lo em algo novo.
Segundo Renato Cohen,

As textualidades contemporâneas são assentadas na polifonia, na hibridização,


na deformação: nas intertextualidades entre a palavra e as materialidades e as
imagens, nas formas antes que nos sentidos, nas poéticas desejantes que dão
vazão às corporalidades, às expressões do sujeito nas paisagens do
inconsciente e em suas mitologias primordiais. (COHEN, 2001:106)

Percebemos que o reaproveitamento, ou releitura da história cultural e social


por meio das apropriações pós-modernas em dramaturgia nos levam a um patamar
em que a autoria, bem como o conceito de obra acabada, acabam por se “esmaecer”
perante a liberdade e a liberalidade com que adapta, cola, reconstitui, destrói e se
ironiza para criar obras novas.
Exemplos marcantes destes procedimentos podem ser encontrados nos
espetáculos montados pelo Teatro da Vertigem, grupo teatral do encenador Antônio
Araújo, em sua chamada Trilogia Bíblica, composta pelos espetáculos O livro de Jó, O
paraíso perdido e Apocalipse 1,11, que respectivamente utilizaram como texto base o
livro bíblico de Jó, o poema épico O paraíso perdido, do poeta seiscentista John
Milton, e o Apocalipse de São João. O trecho a seguir demonstra claramente o quanto
de paródico pode se encontrar nestas adaptações/transcriações dos textos citados.

Carteiro: Carta do anjo da igreja em Éfeso! Os inteligentes serão transformados


em burros. Aos burros se dará o mínimo necessário para que possam se portar
em fila. Os pretos serão cadastrados como morenos. Os mulatos serão
cadastrados como brancos. Os velhos ganharão cadeiras. Os moços ganharão

Como observado no texto Fausto, de Fábio Brüggeman,onde em determinados momentos surgem


26

pequenos monólogos de Shakespeare, de Gothe e de James Joyce.

40
mordedor. As mulheres maduras terão direito a plástica nos seios ou barriga
depois dos 65 anos de idade (BONASSI, apud. SANTANA 2001:125).

A recriação paródica das profecias dos Apocalipse de São João feita por
Fernando Bonassi na dramaturgia de Apocalipse 1,11, caracteriza-se marcadamente
como recurso de intertextualidade apontado anteriormente. Além disso, a transposição
dessas profecias para o ambiente de um presídio abandonado, suas constantes
referências a realidade da segurança pública no Brasil, suas deficiências legislativas e
defasagem de vagas nos sistemas prisionais, e principalmente ao massacre dos 111
presos no presídio do Carandirú, em 1992, operam uma total recontextualização do
texto bíblico, transformando-o ora em manifesto social, “Ah, Brasil! Toda essa pureza
com sangue nos sorrisos. Todas essas gangues armadas até os dentes que não
temos. Todos esses sorrisos esburacados e esses bacanas, com suas vontades
assassinas, gordos como porcos, porcos como heróis oficiais” (BONASSI, 2001:141),
ora em recriações poéticas dos evangelhos, “Eu dou de comer a quem tem fome...
Porque meu corpo é uma árvore... Uma árvore cheia de frutos. E se os frutos não são
consumidos, eles apodrecem comigo (BONASSI, 2001:143).
Sobre o texto de Bonassi, o professor e encenador Renato Cohen observa:

Numa textualidade construída em work in progress por Fernando Bonassi, que


incorpora a dramaturgia dos atores, funde ficção e planos de realidade, as
ambigüidades entre o espaço mítico e o espaço destronado de uma
penitenciária. (COHEN, 2001:106)

Neste sentido verificamos que não apenas o texto bíblico foi utilizado como
mote para construção da dramaturgia, mas também o espaço da encenação, a
improvisação dos atores e os acontecimentos recentes da realidade brasileira. Essa
reunião de vários elementos díspares e por vezes contraditórios em uma mesma obra,
amplamente recorrente no pós-modernismo, acaba por se tornar cada vez mais
comum na cena contemporânea, como iremos verificar no capítulo posterior na análise
dos textos de André Silveira e Fábio Brüggeman.

41
1.3.3 A esquizofrenia pós-moderna e as novas relações com o espectador

Nas artes, mais especificamente na dramaturgia, diferentemente das definições


clínicas27, a esquizofrenia diz respeito a uma multiplicidade da narrativa, ou melhor
dizendo, dos focos narrativos, dos desenvolvimentos da diegese e, principalmente, do
caráter onisciente dos narradores, e da unicidade das personagens.
Se a bifurcação brechtiniana de um personagem/narrador já apontava um
dilaceramento da manutenção psicológica da personagem, que não mais pertencia
apenas um corpus narrativo único, mas assumia a função de narrador fora da diegese,
no pós-modernismo a própria narração é descentrada, possibilitando que tanto os
autores como os intérpretes possam exprimir-se diretamente, como vozes autônomas
constituintes da diegese.28.
Segundo Linda Hutcheon, os narradores na ficção pós-moderna passam a ser,
pertubadoramente, múltiplos e difíceis de localizar, ou então deliberadamente
provisórios ou limitados, muitas vezes enfraquecendo sua própria onisciência
aparente, o que leva o público a enfrentar ambigüidades na decodificação do produto
cênico e ser desafiado por uma arte da perspectiva variável, de dupla autoconsciência,
de sentido e local amplo (HUTCHEON, 1991:29).
Essa multiplicidade de perspectivas nos leva primordialmente a uma
supervalorização do pólo receptor, onde a fragmentação do texto, e o “sentido aberto”
das narrações, quando existem, põem sobre o espectador a responsabilidade por
identificar e, por vezes, criar as inter-relações diegéticas dentro das estruturas do
drama.
No já citado artigo sobre teatro não-dramatúrgico, o José Eduardo Vendramini
observa que a dramaturgia contemporânea,

Psicologicamente o termo esquizofrenia engloba várias formas clínicas de psicopatia e distúrbios


27

mentais próximos, cuja característica fundamental é a dissociação e a assintonia das funções psíquicas,
disto decorrendo fragmentação da personalidade e perda de contato com a realidade, etmologicamente
o termo deriva das palavras gregas esquizo e frenia, que significam respectivamente cisão e
personalidade.(www.proesq.cepp.org.br/o_que.htm, ww.bristol.com.br/suasaude_esquizofrenia.aspx).

Como poderemos verificar no estudo sobre o texto E fosse minha carne..., de André Silveira, no
28

capítulo posterior.

42
parece querer ter um novo tipo de relação com o público, na qual contaria muito
mais aquilo que se vai formando na mente do espectador, do que o enredo e/ou
conceito que o dramaturgo e encenador tradicionais teriam querido transmitir.
Até poderia existir uma proposta na cabeça do Autor do espetáculo (o
encenador-dramaturgo); porém, o que parece interessar a ele, enquanto artista,
seria o quebra-cabeça formal/conceitual que se forma na mente do espectador,
e não a coincidência com sua intencionalidade. (VENDRAMINI, 2001:82).

Por outro lado, Patrice Pavis, em A Análise dos Espetáculos, nos alerta que a
crítica pós-moderna desconfia de toda noção de linguagem, pois teme que a
linguagem reintroduza o sujeito que está em sua origem, e que este se interponha
entre o espectador e a materialidade dos significados teatrais, atrapalhando a relação
direta com essa materialidade e a corporalidade do ator. Entretanto, observa também
que, a não ser que se queira ficar com uma atitude afirmativa da apreciação de e na
arte, sem nenhum controle sobre o desenrolar das operações, é necessário
reintroduzir um sentido e uma direção, tentando administrar o conceito e a sedução
sensorial do processo teatral; considerando a encenação não como uma obra
orgânica, coerente e acabada, mas um processo que se instaura de maneira episódica
e instável (PAVIS, 2003:291-292).
Essa instabilidade, quer de apreensões quanto de decodificações da obra pós-
moderna, por vezes, aleatoriamente mutante, quase improvisacional, acaba por
provocar um descentramento da capacidade de recepção dos espetáculos.
Compreender uma obra de arte pós-moderna parece algo mais sensitivo que racional,
e paradoxalmente, não raras vezes, conduz exatamente ao contrário.
Frederic Jameson, no já citado Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo
tardio29, ao tratar sobre a fragmentação psíquica clássica, por exemplo, a separação
do conhecimento da imaginação, que na pós-modernidade se tornam internamente
segmentadas e destinadas a “andares e salas diferentes” (JAMESON, 1997:369),
explicita que

esse pluralismo absoluto e absolutamente aleatório (...) uma coexistência nem


mesmo de mundos múltiplos e alternativos, mas de estranhos conjuntos não
relacionados, e de sistemas subautônomos cuja superposição é mantida
perceptualmente como os planos de fundo alucinógenos e um espaço de tantas

29
JAMENSON, Frederic. O pós-moderno – a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo,
Editora Ática, 1997.

43
dimensões é, é claro, o que é reduplicado pela retórica do descentramento, (que
informa os ataques retóricos e filosóficos à “totalidade”). Essa diferenciação e
especialização ou semi-autonomização da realidade é, então, anterior ao que se
conhece por psique – a esquizofragmentação pós-moderna em oposição às
ansiedades e histerias modernas ou modernistas – que assume a forma do
mundo que modela e busca reproduzir na forma de experiência e dos conceitos.
(JAMESON, 1997:370)

Podemos dizer que a “narrativa” pós-moderna, a dramaturgia inclusa, propõe o


esfacelamento da onisciência, onde não mais nos dirigimos a uma seqüência de fatos,
ou a um modelo actancial provido de uma seqüencia lógica, ou mesmo uma única e
objetiva voz narrativa. Do mesmo modo, as personagens não mais podem ser
descritas através de um universo psicológico unificado, de uma patologia
diagnosticada ou um temperamento discernível, mas através de “estados”
desconexos, fragmentados e ambivalentes de personalidade.
E neste sentido, novamente citando Jameson

A estrutura confirma assim a descrião do pós-moderno como algo para o qual a


palavra fragmentário ainda é um termo muito fraco e primitivo, e provavelmente o
mesmo se dá com totalização, uma vez que, em especial, não se trata mais agora
de ruptura de uma totalidade orgânica preexistente mais antiga, mas do
surgimento da multiplicidade de formas novas e inesperadas, uma série de
eventos desconexos, tipos de discurso, modalidades de classificação e
compartimentos de realidade (JAMESON, 1997:370).

Assim, ao elencar sumariamente esses procedimentos e recortes de temáticas


pós-modernas, não pretendo induzir à uma definição fechada de obra pós-moderna,
até porque isso seria levaria à uma contradição, mas listar características capazes de
traçar um retrato panorâmico da “narrativa” dramática contemporânea. Embora tais
procedimentos e recortes não dêem uma visão aprofundada da multiplicidade de
fatores e subterfúgios que caracterizam não só a dramaturgia, mas a literatura e as
demais artes, visto que o pós-modernismo acaba por torná-las intercambiáveis,
múltiplas, e mais precisamente, híbridas umas em relação às outras, eles podem
ajudar na construção de um parâmetro de observação, capaz de localizar uma obra no
universo mutante e convulsivo das produções teatrais contemporâneas, e as relações
de proximidade que estabelecem com o pós-modernismo e/ou a pós-modernidade.

44
Nesse sentido, no próximo capítulo, procuro verificar a recorrência destes
procedimentos na dramaturgia catarinense contemporânea e traçar, em linhas gerais,
um panorama descritivo da presença da pós-modernidade nos textos teatrais
produzidos em Santa Catarina.

45
CAPÍTULO II
Aspectos pós-modernos na dramaturgia catarinense

2.1 Brevíssimo panorama da dramaturgia catarinense a partir dos anos 90

Podemos dizer que o desenvolvimento sistemático de uma dramaturgia dotada


de aspectos pós-modernos em Santa Catarina teve início a partir do funcionamento do
Curso de Artes Cênicas da UDESC, em 1986. Antes disso os textos para teatro
produzidos no estado estavam amplamente ligados a procedimentos mais
convencionais, no variado arco compreendido entre o realismo e as vanguardas
históricas. Notamos, contudo, que são ainda raros na dramaturgia os nomes que
tiveram uma presença marcante no cenário teatral catarinense, sendo que a
relevância dos mesmos está associada mais à experimentação de novas linguagens
do que a uma produção constante.
Entretanto, há que se fazer a ressalva de que nem todos os dramaturgos em
atividade são oriundos da universidade. A existência de diversos grupos e cursos de
teatro amador espalhados pelo estado e de escritores que enveredam pela forma
dramática é uma constante na história cultural de Santa Catarina. Isso não significa
que existam dramaturgos em grande quantidade ou que, dos poucos atuantes, tenha
nascido uma produção numericamente alta, acadêmica ou não. O que existe são
autores extemporâneos que, vez por outra, escrevem peças de teatro.
Tal situação, ao que parece, sofreu uma pequena variação na última década.
Existe hoje uma maior especialização dos dramaturgos no estado, e
conseqüentemente, uma semi-profissionalização do ofício junto a determinados
grupos30. Se antes existia o diretor que propunha um texto ao seu grupo, hoje é cada
vez mais freqüente um grupo solicitar os serviços de um dramaturgo, ou ainda,

Ressalte-se que tal profissionalização não está tão associada a relações trabalhistas quanto ao aprimoramento
30

da qualidade dos textos produzidos.

46
encontrar um desses profissionais atuando conjuntamente com ele na construção de
um espetáculo31.
Outra característica da cena catarinense, no que concerne a este período, diz
respeito aos cursos, palestras e seminários de dramaturgia que vem ganhando
espaço no estado. Pode-se citar, além das disciplinas ligadas à dramaturgia e teoria
do teatro ministradas no curso de licenciatura em teatro da UDESC, as oficinas
continuamente oferecidas pelo SESC (Serviço Social do Comércio) e nos diversos
festivais de teatro que ocorrem no estado32. Há que se notar ainda que, com o
implemento da comunicação eletrônica, a popularização da Internet e a gradual
disponibilidade de materiais referentes à dramaturgia facilmente acessáveis, bem
como o contato com profissionais capazes de auxiliar ou indicar caminhos viáveis para
um aprimoramento técnico e teórico de novos dramaturgos, houve um aprimoramento
que pode ser contabilizado como relevante para o atual vigor do movimento
dramatúrgico no estado.
Em 2000, por exemplo, o dramaturgo radicado em Florianópolis Carlos Eduardo
Silva venceu, com o texto A Filha da..., o I Concurso Nacional de Textos Teatrais
Inéditos, promovido pelo Ministério da Cultura do Brasil. No concurso subseqüente,
André Silveira foi premiado com menção honrosa com É Isso que me Preocupa. Em
2003, foi selecionado entre dramaturgos de todo país para integrar um workshop de
dramaturgia promovido em São Paulo pelo Royal Court Theatre33, tendo uma obra
publicada por esta entidade. Júlio Zanotta Vieira, diretor e dramaturgo gaúcho também
radicado em Florianópolis na época, venceu com o texto A lenda negra de Saxom

Os dramaturgos André Silveira e Rogério Christofoletti podem ser citados como exemplos desta atual situação. O
31

primeiro, formado em artes cênicas pela UDESC em 2004, tem trabalhado em parceria com diversos grupos, ora
em processo colaborativo, ora com textos prontos. Rogério Christofoletti, por sua vez, jornalista de profissão,
trabalha com a Cia. Persona de Teatro, tendo escrito duas peças para o grupo, sendo uma em processo
colaborativo.
32
Um caso exemplar é o do Festival Universitário de Teatro de Blumenau, que desde a edição de 2002 mantém
uma iniciativa chamada “Projeto Dramaturgia”, onde através do assessoramento de um dramaturgo profissional,
jovens autores escrevem um texto inicial a fim de o adaptarem conjuntamente com um diretor e um grupo de
atores, que encenarão a peça no festival do ano subseqüente, caracterizando desta forma, uma oficina de longa
duração, um ano, propiciando ainda, debates e avaliações conjuntas do trabalho realizado, e a publicação do texto
na revista do festival, “O Teatro Transcende”.

Royal Court Theatre, companhia londrina de teatro que desde 1996 oferece, através de workshops de
33

dramaturgia, intercâmbio com diversos países como intuito de fomentar a dramaturgia contemporânea.

47
Frobenius, o Concurso Nacional de Dramaturgia, Categoria Região Sul, promovido
pela Funarte em 2004.
Há também encenações de textos de autores catarinenses com circulação
nacional. Os espetáculos F, de Rogério Christofoletti e E.V.A, de Christiano Scheiner,
ambos com direção de Jéferson Bittencourt, participaram de vários festivais nacionais
de teatro, além de várias temporadas estaduais34. O texto Castelo de Cartas, de
Rogério Christofoletti, também com direção de Bittencourt, além de vários festivais
nacionais, participou de festival internacional teatro promovido pela UNESCO35. A
filha da..., de Carlos Silva, teve encenação no Rio de Janeiro, protagonizada por
Marília Pêra. Os Camaradas Médicos, do blumenauense Giba de Oliveira, adaptado
pelo dramaturgo argentino Alfredo Megna e dirigido por Pépe Sedrez, depois de
numerosas apresentações no estado e premiações em festivais, cumpriu uma
temporada em São Paulo.
A partir destes dados, podemos observar que uma participação tão efetiva de
dramaturgos catarinenses no cenário nacional, bem como um movimento
dramatúrgico desta envergadura em Santa Catarina, só se compara ao movimento
teatral ocorrido no final do século XIX, encabeçado por Horácio Nunes Pires36.
Observamos também, sobretudo, que este é um movimento em efervescência.
Nos últimos cinco anos pode–se contabilizar a estréia de pelo menos vinte e cinco
peças originais no Estado37 e, apenas na última década, de 1995 em diante, publicou-

A encenação de “F” dirigida por Jeferson Bittencourt participou de seis festivais nacionais de teatro, recebendo
34

dois prêmios por direção e o prêmio Destaque da Folha de São Paulo como o 5º melhor espetáculo da Mostra
Fringe, no Festival de Internacional de Teatro de Curitiba, além de duas temporadas com circulação estadual e uma
curta temporada em São Paulo. O espetáculo E.V.A, por sua vez, cuja estréia se deu em maio de 2002, é uma
montagem bastante longeva para os padrões de Santa Catarina, permanecendo, ainda que esporadicamente,
ainda em cartaz no Estado.

XV Festicaribe – Festival Internacional de Teatro Del Caribe – ITI – UNESCO, Santa Marta, Colômbia, setembro
35

de 2004.

Horácio Nunes Pires (1855 – 1919), “o mais completo homem de teatro que encontramos em Santa Catarina no
36

século XIX”, segundo Vera Collaço (1984:365). Autor de quarenta e três peças de teatro, tendo vários textos
encenados no Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, sua cidade natal.

Toda Vontade Mora no Útero (2000), F. (2001), Chata, fria e sem recheio (2002), Urano quer mudar (2003), e
37

Castelo de Cartas (2004), de Rogério Christofolleti; O compassado ir e vir de corpos a pulsar (2002), E fosse minha
carne (2003), A senhora que era pra ser e homem que queria mas não foi (2004) e Inquietude (2004) de André
Silveira; E.V.A. (2002) de Cristiano Scheiner; Contestado – a Guerra do Dragão de Fogo Contra o Exército
Encantado (2003), de Antônio Cunha; Às Avessas (2003), de Carlos Henrique Schroeder; A lenda negra de Saxon
Frobenius (2004), de Júlio Zanota Vieira; Meditação de Thais (2002), Legítima Defesa (2005), de Afonso Nilson
Barbosa; Papai matou mamãe, de Luiza Lorenz (2004); Dois Frênicos Seres (2004) e Inóspito (2005), de Cristiane

48
se não menos do que dez livros contendo peças de teatro38. Uma média considerável,
tendo em vista o limitado mercado editorial e o restrito público para este gênero de
publicação. Isso sem contar os movimentos ocorridos em outras cidades que não a
capital39, e as peças publicadas em periódicos como na já citada revista do Festival
Universitário de Teatro de Blumenau, O teatro transcende, que vem disponibilizando
pelo menos duas peças curtas por edição anual.
É claro que há que se selecionar dessa produção aquilo que efetivamente
propõe uma linguagem mais sintonizada com procedimentos contemporâneos de
dramaturgia, escopo deste trabalho, dos textos que efetivamente tendem a repetir
procedimentos mais ligadas ao realismo do século XIX, algumas tentativas um tanto
quanto ingênuas de transposição de fatos ou personagens históricos para a cena e a
produtos que simplesmente não apresentam uma elaboração mais consistente quanto
à arquitetura dramática. Constatamos, portanto, que, ao lado das inovações, onde
podemos identificar vieses estéticos tipicamente pós-modernos, como as
hibridizações, a ausência de lugares determinados, as rupturas quanto à cronologia, o
encavalamento de motivos e ritmos, a metalinguagem, a desdramatização, etc,
podemos encontrar, em paralelo, as características descritas por Ryngaert quanto ao
diálogo clássico: “uma série de monólogos emendados pelas pontas” (1998:102), ou
características correlacionadas às correntes literárias do século XIX, como traços
naturalistas na caracterização das personagens e situações, linearidade na exposição,
sentidos fechados, personagens planas, etc.

Martins; A dama das margaridas (2004), de Melize Zanoni; O fantástico ladrão de calcinhas (2005), de
William Sievert, entre outros.

Pode-se citar como exemplo os livros: Vozes veladas, de Eglê Malheiros (1995); Trilogia da Angústia,
38

de Fábio Brüggemann (1999); Uma teoria do Paradoxo, de Marcelo Ricardo de Almeida (1999); Textos
para Teatro, de Néri de Paula (1999); Jogos de Teatro, coletânea com vários autores (2000); A filha
da..., de Carlos Eduardo Silva (2001); Vitor Meireles, de Osmar Pisani (2003); O olho da cor – uma peça
em três atos, de José Endoença Martins (2003); Três Dramas Possíveis, de Antônio Cunha (2004); O
tempo de Eduardo Dias - tragédia em 4 atos, de Francisco José Pereira e Amílcar Neves (2005).

No que diz respeito a produção dramatúrgica no interior, apesar de alguma divulgação alcançada em
39

jornais de circulação estadual, há uma dificuldade razoável com relação a encenação profissional dos
textos. Dramaturgos como Carlos Henrique Schroeder, de Jaraguá do Sul, mesmo com textos
publicados em sites de teatro internacionais, teve apenas montagens amadoras de seus textos,
limitando-se apresentações esparsas e pouco numerosas, excursionando por algumas cidades vizinhas,
mas sem repercussão e notoriedade. Outro exemplo é Néri de Paula, dramaturgo radicado em Joaçaba,
mesmo com livro de peças publicado e distribuído por bibliotecas do estado, a circulação de suas peças
se limita a região oeste de Santa Catarina, onde reside.

49
Essa pluralidade demonstra não apenas vigor no desenrolar deste movimento,
mas diferenças marcantes quanto à formação dos dramaturgos. Notamos duas
vertentes mais fortes: profissionais de teatro, com formação e trabalho contínuo em
artes cênicas, e escritores, com conhecimento e trabalho contínuo em literatura.
Enquanto os primeiros tendem ao experimentalismo e a criarem em sintonia com a
sensibilidade contemporânea, os escritores, por sua vez, dividem-se em dramaturgias
realistas (principalmente ao tratarem fatos e personagens históricos)40 e, dramaturgias
ligadas às vanguardas literárias, com textos repletos de citações e alusões a teóricos e
escritores de renome no século XX, como Kafka, Beckett e Barthes, entre outros41.
Outras diferenças podem ser verificadas também na quantidade de peças dos
diferentes autores. O dramaturgo André Silveira, por exemplo, tem mantido desde
2001, uma média de dois textos por ano, entre adaptações e textos originais. Outro
caso é Rogério Christofolletti, jornalista por formação, também um dos dramaturgos
mais atuantes do Estado, tendo encenado pelo menos um texto inédito por ano desde
2001. Por outro lado, romancistas e poetas com vários livros publicados como José
Endoença Martins, Osmar Pisani e Eglê Malheiros publicaram uma única obra de
teatro em toda carreira e, não raro, jamais encenadas.
Verifica-se aí outra disparidade entre os dramaturgos oriundos do teatro e os
das academias literárias: a publicação em livro. Enquanto os primeiros, geralmente
com mais de cinco textos encenados, publicam apenas esporadicamente em
periódicos, os escritores, apesar de muitas vezes nunca encenados, geralmente tem
suas peças publicadas em livro42. Evidentemente, alguns dramaturgos mais ligados ao
teatro que à literatura, também publicam suas peças em livro, embora com a ressalva
de que geralmente reunem a produção de décadas, apresentando-se como
coletâneas, como por exemplo Três Dramas Possíveis, de Antônio Cunha, que

Por exemplo, os textos Vitor Meireles, de Osmar Pisani (2003) e O tempo de Eduardo Dias - tragédia em 4 atos,
40

de Francisco José Pereira e Amílcar Neves (2005).

Por exemplo, Sim eu sei, Prenome: Fausto e Blues e Sousa, peças contidas no volume Trilogia da Angùstia, de
41

Fábio Brüggemann; O olho da cor, de José Endoença Martins e F, de Rogério Christofolleti.

Uma exceção é Fábio Brüggeman, cujas três peças publicadas no volume Trilogia da angústia foram encenadas:
42

Sim, eu sei e Prenome: Fausto, com direção de Nando Moraes, em Florianópolis respectivamente em 1992 e 1993.
Blues e Souza foi montada pelo diretor Lau Santos em 1996. Cabe lembrar que as peças foram encomendadas ao
autor pelos respectivos diretores, tendo este trabalhado em processo colaborativo com os mesmos, embora na
versão publicada dos textos tenham prevalecido os textos sem as alterações propostas pelas montagens.

50
abrange vinte anos de produção do autor, e Teatro Lixo, de Júlio Zanotta Vieira, com
cinco peças dos anos 70 e 80.
Esta breve panorâmica da dramaturgia catarinense, apesar de fornecer um
retrato impreciso de seu movimento dramatúrgico, pode ser bastante pertinente
quando se trata de traçar alguns paralelos com movimentos ligados a produção
contemporânea de textos teatrais em outros estados e países. Semelhantemente ao
movimento de reaquecimento da dramaturgia nacional ocorrido na década de 90, a
dramaturgia em Santa Catarina (dadas as devidas proporções) apresenta algumas
características análogas às observadas em São Paulo pela professora Silvana Garcia:

“Assistimos na contemporaneidade a uma desdramatização do texto teatral e a


compreensão de que a dramaturgia superou o cânone dramático, produzindo
peças sem grandes temas, abordando situações cotidianas ordinárias e podendo
namorar a literatura, a narrativa cinematográfica e entregando-se a outras formas
de combinação textual”. (GARCIA, 2004:31)

Obviamente, nem todos os autores apresentam tais características, e mesmo


os que as apresentam, não o fazem em toda sua produção. Mas o que se percebe é
que há um aumento gradual na utilização de procedimentos ligados ao pós-
modernismo e às estéticas contemporâneas. Utilização de elementos midiáticos,
polissemias e polifonias, colagem de cenas e textos, ambivalência de tempos,
indefinição do espaço, hibridismo com outras expressões artísticas, fragmentação, a
composição da obra através de processo colaborativo, por exemplo, são técnicas
facilmente encontráveis nesta produção a partir dos anos 90.
Algumas dessas técnicas e correlações serão estudas mais demoradamente a
seguir, a partir do estudo da obra dos dramaturgos selecionados.

51
2.2 Fábio Brüggemann: metateatro e ambivalência do tempo

Fábio Brüggemann (1962) é escritor, jornalista e roteirista. Premiado nacionalmente


como contista, possui mais de dez livros publicados em prosa, poesia, teatro e ensaio. Exerce
intensa atividade como editor à frente de sua editora, a Letras Contemporâneas. Possui uma
coluna semanal no jornal Diário Catarinense e participa assiduamente de várias publicações
ligadas à literatura.
Sim eu Sei, peça de 1992, encenada por Nando Moraes no mesmo ano e publicada
em 1999 pela Editora da UFSC na coletânea Trilogia da Angústia, foi seu primeiro texto
encenado. A influência de Dias Felizes, mencionada no prefácio, bem como de outras peças
de Samuel Beckett, é apenas uma das referências literárias presentes neste texto, assim
como no subseqüente, Prenome: Fausto de 1993, também encenado por Nando Moraes e
segunda obra da trilogia, que se encerra com o poema dramático Blues & Souza, de 1996.
A obra teatral de Fábio Brüggemann a ser aqui abordada se limita a Sim eu sei e
Prenome: Fausto. Tal escolha deve-se às estreitas correlações com elementos pós-modernos
em suas constituições, tais como a metateatralidade, a ambivalência de espaço e tempo e o
uso de colagens.
Sim, eu Sei apresenta como personagens um casal, Ele e Ela, que repete há vinte
anos, data apenas sugerida de um presumível fim da civilização, uma rotina interminável de
discussões e ações cotidianas aparentemente sem sentido num mundo onde a destruição
iminente da humanidade é cada vez mais clara. É indeterminado o que há fora da casa, sabe-
se apenas que há vinte anos não há energia elétrica, publicações ou notícias, e durante todo
esse tempo Ele e Ela repetem ações como abrir o último jornal publicado e ler as mesmas
notícias, fazendo os mesmos comentários; ligar a TV (que não funciona pela ausência de
energia), procurar os óculos, a bolsa, discutir sobre o tempo, o desgaste da relação, etc,
constituindo uma rotina asfixiantemente neurótica.
Inspirada em Dias Felizes, de Samuel Beckett, Sim eu Sei apresenta, tal como o
dramaturgo irlandês, um universo árido, diálogos absurdos, incomunicabilidade latente e um
tempo indefinido, que parece “dissolver-se” rumo a uma continuidade sem sentido. Ele e Ela, a
exemplo de Willie e Winnie, travam o diálogo da incomunicação, do aturar-se, da imersão em
si mesmos. Os diálogos são desencontrados, próximos à um monólogo a duas vozes e
permeados continuamente de ironia para com a realidade, as relações e a condição humana
como totalidade.

52
Aproximações com outras peças de Beckett, como Fim de Jogo, podem ser
percebidas: Ele, como Hamm, o mantenedor, sempre sentado, exercendo sua crueldade
beligerante, enquanto Ela, como Clov, movimenta-se e debate-se em afazeres quase
psicóticos, ameaçando repetidamente ir embora, sem no entanto, concretizar a ameaça. Ou
como em Esperando Godot, haja visto a contínua espera de não se sabe o quê, o niilismo
implícito e o humor negro: a mulher se compraz em servir o marido durante décadas, e como
pequena revolta, apenas torna a lembrar-lhe que o que ele irá fazer em seguida já o fez
ontem, como tem feito sempre. Ele, por sua vez, mesmo tentando iludir-se ao rebater as
reprimendas da mulher, tem absoluta consciência do jogo que se estabelece, e lembra que
também ela está a repetir continuamente uma vida que insiste em permanecer igual.
Neste contexto, as personagens de Sim eu Sei vivem numa espécie de “não tempo”,
nada indicando uma data exata, pois sabemos apenas que há vinte anos o mundo já não é
mais como antes. Tal como em Esperando Godot, temos uma indefinição temporal marcada
pela reiteração. Segundo Janvier Ludovic, em Beckett, onde analisa a obra do autor irlandês a
partir de seus temas recorrentes, pode-se saber que:

“O presente, ou o instante vivido ilusoriamente como presente, dilata-se nas dimensões


da vida inteira: sem limite, impossível de interpretar, englobando em sua enorme
totalidade (...) a consciência voltada para si própria” (JANVIER,1988:82)

É interessante notar que, embora Ele acabe por sufocar Ela ao final, não
necessariamente este ato indica que será rompido o ciclo de eternos recomeços. Tal como a
sombrinha que incendeia-se no primeiro ato de Dias Felizes para reaparecer intacta no
segundo, a inexorabilidade da morte parece ser vencida pela rotina em Sim, eu sei, uma vez
que, após estrangular a mulher ao final, o homem nos induz a pensar ambiguamente que no
dia seguinte tudo voltará a ser como antes: “Ele: Você escolheu querida, como escolhe todos
os dias” (1999:44).
As digressões alcançam aqui uma conotação quase fantasiosa, como se as
personagens em momento algum falassem de uma realidade a que estão acostumados, mas
de algo que são forçados a relembrar ininterruptamente, tentando fingir que não se dão conta
disso. Não temos aqui uma intriga, mas sim a insurgência de um diálogo atemporal, sem
espaço para especular se este, em determinado momento, será rompido enquanto desígnio de
uma eterna repetição:

“Ele: Sim, eu sei.

53
Ela: Eu sei. Eu é que sei do que deveria saber. Eu é que tenho memória.

Ele: Que cabe toda em uma bolsa. Se sabe mesmo. O que vai acontecer agora?

Ela: Você sabe que é nada. O que você quer mais, querido? Um carro, e tivemos.
Uma casa, e tivemos. (...) Há vinte anos sabíamos o que havia para que
pudéssemos escolher. (...) mas e agora? Querer o quê do que não sabemos?

Ele: Você está falando o meu discurso.

Ela: Sim, eu sei que você diria isto exatamente neste momento” (1999:38).

A armadilha entre os sentidos engendrada por Brüggemann é veemente: quando Ele


diz que a mulher está falando em seu lugar, não se sabe se esta inversão está inserida no
ciclo de repetições em que ambos estão enclausurados, ou se há, de fato, uma quebra neste
ciclo. A repetição é então sugerida antes de ser afirmada.
Segundo Steven Connor, o texto literário pós-moderno, além de “autoconsciente,
descentrado, cético e galhofeiramente polimorfo (...) é um objeto ideal de análise para uma
teoria da leitura que suspeita de toda a forma de identidade ou de fixidez” (1996:107). Com
este pressuposto, em relação às estruturas encontradas nos textos de Brüggeman, podemos
afirmar que a multiplicidade de desvios de compreensão e ambigüidades intencionais nos
leva à “supervalorização do pólo receptor”, como sugerida por Patrice Pavis em seu Dicionário
de Teatro, no verbete referente ao teatro pós-moderno, onde “o espectador deve organizar
impressões divergentes e convergentes e restituir certa coerência à obra, graças á lógica das
sensações e a sua experiência estética” ( 2001:299).
Prenome: Fausto, segunda peça da trilogia deste autor, caracteriza-se,
marcantemente, pela total consciência das personagens em serem personagens, pertencerem
a uma peça e estarem no palco. Tal situação encontra novamente em Steven Connor uma
ressonância: “os relatos mais aceitos da ficção pós-moderna acentuam a prevalência da
metaficção paródica, ou a exploração pelos textos literários de sua própria natureza e
condição de ficção” (1996:104). Aqui, a grande luta de Fausto é, curiosamente, apagar esta
consciência de ser ficção, negar seu próprio nome e agir de modo a não se dar conta de seu
perene desígnio enquanto obra de arte.
A peça apresenta três personagens que comandam a ação e uma galeria de outros
que passam pela cena para explicitar uma idéia, uma metáfora ou alegoria. Estes últimos
personagens, a exemplo de Estado de Sítio, do franco-argelino Albert Camus, influência
constante na obra de Brüggemann, não são “alguém”, mas “substantivos abstratos”, como o

54
próprio autor elucida no prefácio da peça43. Mesmo assim apresentam, enquanto criaturas
ficcionais, uma feição que os individualiza para além de meras abstrações, embora seja
possível notar certo grau de esteriotipização ou simbolização, no sentido de parecerem existir
apenas para expressar certas idéias, um esquema filosófico ou uma citação literária.
É relevante notar, entretanto, que a peça se propõe justamente a explicitar essa
relação entre a perenidade do mito e sua apreensão contemporânea, seja como metáfora ou
citação. Considerando apenas os três personagens principais, Fausto, Mefisto e Roland, eles
são conscientes de que estão em cena, de que são criações de alguém e repetição de um
espetáculo que é apresentado noite após noite, século após século. Fausto, além da
consciência de sua subordinação ao diretor, Mefisto, e ao autor, Roland, de sua sina histórica
em representar continuamente o mesmo personagem enquanto mito, de estar mais uma vez
em cena e não ter escolha sobre seu destino previamente determinado, apresenta uma
espécie de revolta silenciosa quanto a esta condição, revolta esta manifesta num tédio
explicito quanto à aceitação das escolhas previstas para o mito que representa, sendo isso
que o distingue das demais personagens e do próprio mito, como tradicionalmente é
apresentado:

“Fausto: (...) Me questiono sempre sobre a mesma coisa, luto contra a barbárie, conheço
a dor, a felicidade, os idiotas. Hamlet ou Fausto, que diferença faz, meus senhores?
Vocês que me vêem assim, já não viram isto antes?” (1999:53).

Ao contrário do que ocorre com os autores citados por Brüggemann como referência
do mito (Goethe, Pessoa, Álvares de Azevedo, Tomas Mann e Marlowe), neste Prenome:
Fausto, o protagonista não vende a alma para obter conhecimento, mas para se ver livre dele.
Aliás, o que está em jogo não é a alma, desacreditada por Mefisto, mas o nome, e ainda, a
importância do mito na contemporaneidade. A grande luta desse Fausto é a busca
desesperada pela inconsciência, pela mediocridade e pela idiotia. Fausto sabe muito bem que
está representando e que tudo não passa de um espetáculo para entreter a platéia pagante.
Mefisto, por sua vez, ao mesmo tempo em que sabe também estar em cena, percebe-se ser
obra de alguém (Roland), com quem dialoga e que, paradoxalmente, lhe põe as palavras na
boca.

“Sem almas, sem diabos, Mefisto só poderia ser mesmo um diretor de teatro, e o diabo ser o autor
43

que leva Fausto a um passeio onde ele encontra seres inonimados que representam substantivos
abstratos tão próximos, e ao mesmo tempo tão distantes, do homem: a dor, a felicidade e metáforas do
que não gostaríamos de ser, como o idiota e o homem, também idiota, que vê televisão como se ali
fosse o mundo, recuperado, mais uma vez, do universo platônico” (BRÜGGEMANN, 1999:48).

55
Esta absoluta consciência das três personagens centrais de que estão em cena, são
produto da mente de um autor e precisam seguir até o fim da encenação de acordo com os
pressupostos da fábula, num trabalho que se repete continuamente dentro de um processo
destrutivo que se encerra e recomeça eternamente (uma alusão ao mito de Sísifo), é um
elemento que tergiversa a diegese em direção a uma conotação mais filosófica e literária do
que em si mesma dramática.
Há uma abundância de citações (colagens de trechos de Shakespeare, Goethe e
Joyce) que, embora ligadas ao tema mas nem sempre à trama, dá à obra certo tom de
“diálogo filosófico”, onde a ação se encaminha mais para um exercício de raciocínio, de
assimilação de idéias por parte de Fausto, do que propriamente para as conseqüências de
suas escolhas. Entretanto, tais movimentos subjetivos não deixam de ter um apelo cênico
através de metáforas expostas ora de maneira cômica, ora invocando o grotesco e o absurdo.
Neste contexto, é paradoxal o diálogo de Roland com as demais personagens, o que
de certo modo reforça a ambigüidade dramática. Vejamos duas falas entre Mefisto e Roland:
“Mefisto: Você apenas me escreve, me põe dúvidas e quer reconstruir um mito que não cabe
mais no tempo...”. E mais adiante: “Mefisto: (...) Você é o autor e eu o personagem. Você me
escreve e me comanda” (1999:52). Este intercâmbio verbal, que poderia sugerir uma troca,
perde aqui o seu caráter dialógico. É apenas Roland quem fala, já que Mefisto não conversa
com o autor de uma obra que vai dirigir, mas com o autor que o comanda e escreve, que põe
as palavras em sua boca no preciso momento em que as profere. Mefisto não age por seu
livre arbítrio, tendo consciência de ser escrito por Roland, mas é guiado por um autor absoluto,
onipotente, como a metáfora de um destino inelutável, inevitável. Essa ambivalência de
personalidade pode ser surpreendida em várias outras passagens do texto, como se o tempo
todo Fausto falasse com um único interlocutor que se apresenta com diferentes rostos.
Vejamos um trecho entre Fausto e Mefisto, pouco antes da cena final:

“Fausto: Quando não houver mais formas?

Mefisto: Aí eu cuido disto, invento a Barbárie. Sou deus e tenho pesadelos com você.
Invento sua loucura, seu conhecimento e suas dúvidas” (1999:78).

Roland é a personagem capaz de criar. É ele quem escreve e comanda a ação. Se há


uma correlação possível para ele é a de um deus criador. Quando Mefisto assume essa
função, ao criar a loucura, o conhecimento e a dúvida, e principalmente quando se
autodenomina deus, não há necessariamente uma troca de papéis ou funções, mas é como se
Roland falasse por sua boca e assumisse o papel que lhe convém. Esse poder que tanto

56
Mefisto, num grau menor, quanto Roland, mais acentuadamente, possuem de comandar e
saber irrestritamente quem é a personagem com quem contracenam (poder esse oriundo da
consciência de que seus interlocutores são obras de sua autoria) se vê limitado apenas num
quesito: Roland, apesar de saber ser o autor do texto não sabe que também ele é criado. Essa
constatação nos levaria a uma metalinguagem em segunda potência caso se concretizasse, o
que não é o caso. O que importa, no entanto, é que essa consciência não é apenas o mote
para a metalinguagem do texto enquanto objeto fechado, mas do próprio teatro como
representação consciente e espetáculo, e a discussão que engendra dentro da própria peça.
Roland Barthes, referência de Brüggemann sobre metalinguagem, e mote inspirador
para a personagem homônima, explicita:

“Se é verdade que o sujeito da ciência é aquele que não se expõe à vista, e que é afinal
essa retenção do espetáculo que chamamos “metalinguagem”, então, o que sou obrigado
a assumir, falando dos signos com signos, é o próprio espetáculo dessa bizarra
coincidência, desse estrabismo estranho que me aparenta aos mostradores de sombras
chinesas, quando esses exibem ao mesmo tempo suas mãos e o coelho, o pato, o lobo,
cuja silhueta simulam ” (2004:38).
44

Julgo a metáfora do teatro de sombras apresentada por Barthes bastante apropriada


como referência à Prenome: Fausto, pois do mesmo modo com que o espectador sabe que
são feitas de mãos as sombras de animais que vê - e ainda assim nelas ‘acredita’ - , as
personagens de Brüggemann explicitam claramente que não passam de personagens, mas
continuam a sê-los para que o drama continue. Barthes, em outro lugar45, afirma que quando a
literatura interroga sobre si mesma ainda como literatura, ‘fingindo’ destruir-se como
linguagem-objeto, mas preservando-se como metalinguagem, ela se define como uma nova
linguagem-objeto (1970:28). Acredito ser essa a grande revolta deste Fausto, a
impossibilidade de deixar de ser literatura, mesmo revoltando-se contra ela. Fausto tem a falsa
ilusão de que, deixando de ter um nome, livrar-se-á do encargo de ser uma obra, de ser um
mito. Brüggemann tira-lhe as esperanças quando, mesmo sem nome, Fausto ainda é uma
personagem.

BARTHES, R. Aula. São Paulo, Editora Cultrix, 2004.


44

BARTHES, R. Crítica e verdade. São Paulo, Editora Perspectiva, 1970.


45

57
2.3 Carlos Eduardo Silva: a ironia suspensiva

Carlos Eduardo Silva (1960) é um dos dramaturgos mais premiados de Santa Catarina.
Em 2001 concluiu o curso de Licenciatura em Educação Artística, habilitação em Artes
Cênicas na UDESC.
Seu texto a ser abordado é A filha da..., de 2000. Publicado a expensas do autor no
mesmo ano, teve sua primeira leitura dramática em 5 de março de 2001, na Casa da Gávea,
Rio de Janeiro, com Marília Pêra, Betty Goffmann, Nina Morena Pêra Mota e Paulo Betti no
papel masculino e direção. Posteriormente, entrou em cartaz no Teatro Vanucci, na mesma
cidade, sob direção de Elias Andreato.
Uma das características que encontramos em sua dramaturgia, tanto em A filha da...
como em Hemp, é a chamada “ironia suspensiva”. Steven Coonor, no já citado Cultura Pós-
Moderna, introdução às teorias do contemporâneo, assim a define:

“A ironia ‘suspensiva’ pós-moderna é, portanto, a marca de uma arte nascida dos acessos
de fúria modernista, que combina um conhecimento realista do pior da incoerência e da
alienação, com uma tolerância benignamente bem ajustada para com elas” (CONNOR,
1996:97).

Coonor identifica duas formas de ironia características do modernismo e pós-


modernismo: a disjuntiva e a suspensiva, respectivamente. A primeira, presente em autores
como Virgínia Woolf e J. Joyce, representa o desejo de, num só movimento, ser fiel a
incoerência e transcende-la, oscilando entre a aprovação e a desaprovação, manifestando-se
num conflito binário. A segunda, como acima verificado, “marca uma intensificação da
consciência da incoerência”, chegando a uma propensão à incerteza e à tolerância de um
mundo aleatório e múltiplo, por vezes absurdo.
Neste universo, a primeira cena de A filha da..., por exemplo, mostra uma mulher
obcecada pela princesa Diana (a ação passa-se um pouco antes da morte desta), morando
numa casa acusticamente blindada e carregando sempre consigo uma arma. Ao ver o marido,
que sem seu conhecimento é um corrupto e adúltero, abrir um jornal em cuja capa está
estampada a foto do também adúltero Príncipe Charles, num acesso de fúria em defesa de
Ladi Di, atira na foto atingindo o marido na cabeça. O marido, antes de cair morto, zanga-se
primeiramente pelo estrago feito no jornal, reclama que terá que sair para comprar outro, que
o tiro atingiu justamente as cotações do mercado que estava lendo, quando, por fim,

58
percebendo o sangue, não sem antes confundi-lo com catchup e reclamar que a mulher não
está cuidando direito de suas roupas, morre.
Há nesta cena preliminar alguns elementos que antecedem o clima de estranhamento
que permeia todo o texto. A mulher que carrega uma arma a tiracolo dentro de casa e o
marido que percebe o furo no jornal e o sangue na roupa antes de perceber que levou um tiro,
não são necessariamente absurdos, mas a extrema naturalidade com que estes fatos
incomuns e inverossímeis são tratados induz à uma espécie de “acordo” com o espectador,
no sentido de não mais achar tão estranho estas pequenas “incoerências” que se somam
continuamente no desenrolar da trama.
Nas cenas posteriores, com a chegada da mãe, uma funcionária pública que pegara
quinze dias de licença para acompanhar a filha ao dentista naquela semana, antes que a filha
consiga contar o que sucedeu, anuncia-se todo um esquema de nepotismo e corrupção
envolvendo o futuro cargo do recém falecido genro. Revelada a morte “acidental” do homem
(ele está submerso numa piscina de plástico para não manchar o piso da cozinha), pensa-se
numa maneira de se livrar do corpo. Mencionada a habilidade da Mãe em destrinchar frango,
decide-se por utilizar o “conjunto de facas Guinzo” para cortar o corpo em pedaços e encaixa-
lo em uma grande mala que seria usada numa hipotética viagem à Londres, onde finalmente a
Filha conheceria Lady Di.
Fica evidente, portanto, que as situações que beiram o nonsense vão se avolumando,
tornando-se triviais em função das reações desencadeadas junto às personagens. Não é
motivo de espanto, e sim de um tênue estranhamento, que o corpo do marido esteja boiando
ensangüentado numa piscina de plástico, com o intuito de não manchar o piso da cozinha. O
fato de a filha negar peremptoriamente ter atirado no marido (ela atirou na foto do príncipe
Charles) também é encarado quase com absoluta naturalidade, como se fosse um engano
doméstico. Do mesmo modo, o desmembramento do corpo do homem pela sogra é tratado
quase que como um evento culinário: “Mãe: (esfregando as mãos) Espero que este cheiro saia
das mãos. Com frango basta limão (Cheirando as mãos). Você não tem nenhum creme para
as mãos?” (2001:47). Neste ínterim, traça-se um interessante paralelo entre situações limite
que se tornam usuais, e contravenções graves como corrupção, nepotismo e lavagem de
dinheiro que, em correlação às primeiras, passam desapercebidas, tão corriqueiras quanto
qualquer rotina familiar.
Na seqüência, Marta, a secretária, que supostamente viajaria a trabalho com o patrão
naquela manhã, depois de tentar inutilmente encontra-lo no celular para esclarecer o atraso,
vai a seu encalço no apartamento. Deparando-se com a reação suspeita das duas mulheres e

59
a mala imensa e abarrotada, saca de uma arma (exatamente igual a arma da Filha), achando
que foi enganada. Revela-se então o adultério e a existência do dinheiro, oriundo do desvio de
verbas de uma obra pública. A Filha, descobrindo que o marido a traia e que fugiria do país
com a secretária e o dinheiro, abandonando-a sem nem uma porcentagem, e pior, percebendo
a similitude de sua história com a da princesa Diana, começa a ter ataques de furor diante da
secretária armada. Achando-se também traída e abandonada, a secretária ameaça se matar.
A Filha vai, a pedido da mãe, buscar um copo de água com açúcar para a secretária. Na
cozinha, descobre as maletas com o dinheiro, que emanam uma misteriosa luz verde.
A resolução desta intrincada seqüência de cenas dá-se de forma tão inverossímil
quanto os abundantes elementos de non sense presentes em todo o texto. A Filha dá um
maço de notas de cem dólares para que a secretária possa sair do país, fugindo dos outros
políticos corruptos que, com a presumida fuga do Homem, ficariam sem as comissões ilegais
que auferiam, vindo ao seu encalço. Sob ameaça de denúncia da Filha, Marta se vê obrigada
a levar a mala com o corpo cortado em pedaços (que ela imagina, são os pertences do
Homem deixados na fuga) e jogá-la nas Cataratas do Iguaçu, ligando em seguida para
informar que assim procedera. Após a ligação da secretária, cinematograficamente a cena
final se passa num banco do Hide Park, em Londres, próximo às homenagens de populares
oferecidas à Princesa Diana, recentemente morta num acidente. A Mãe e a Filha folheiam
revistas brasileiras e fazem menção a alguns dos grandes escândalos de corrupção brasileiros
da última década:

“Mãe: (...) Meu Deus: Os crimes da Encol – como a construtora tomou a


poupança de 42.000 famílias. (A mãe lê a Veja enquanto a filha folheia uma
revista que mostra fotos de Diana)

Filha: Veja, mamãe, ela usando a tiara. A tiara é linda, não é mesmo. (...)

Mãe: Olha só isto aqui (mostra a revista). A mulher do Pedro Paulo Afonso, a
Gladys, toca Vivaldi para os pavões que tem no jardim. E este jardim foi o que
inspirou os jardins da casa da Dinda. Devem ser lindos” (2001:64).

Finalmente, tirando da bolsa uma cópia da tiara mostrada na revista, em plena


identificação com a princesa Diana, a Filha diz que também já começara a fazer caridade. A
mãe pergunta se ela pensa devolver o dinheiro, cuja resposta é óbvia, e explica rapidamente a
sua forma de caridade:

“Mãe: Caridade?

60
Filha: Claro. A população teve menos um político corrupto. Um político a menos.

Mãe: Caridade!!!” (2001:67).

É muito salutar, em se tratando de uma peça onde a corrupção esteja associada ao


nonsense e ao inverossímil, como forma de violência aplainada no comum dos noticiosos; e
particularmente, num país em que os escândalos políticos repetem-se cotidianamente sem
maiores conseqüências, mesmo para os comprovadamente culpados, que, segundo o autor
em entrevista realizada em 04 de outubro de 2005, a personagem tenha assassinado o
marido “por pura caridade (...) para o bem da nação brasileira” (SILVA, 2005).
A apropriação de temas recorrentes nos noticiosos, tais como a corrupção e a
violência, e a adaptação de fatos reais na constituição da peça46, de modo a desestabilizá-los
através de uma conotação quase surreal, por vezes tocando o absurdo, a sátira e o humor
negro, alojam A filha da... num trânsito entre a comédia popular/popularesca e a ácida crítica
política inerente à grande parte da literatura pós-modernista.
David Harvey, em a Condição pós-moderna, explicita que “boa parte do pós-
modernismo é conscientemente anti-áuratico e antivangardista, buscando explorar mídias e
arenas culturais abertas a todos” (1993:62). De fato, a aproximação da arte pós-moderna com
a cultura popular é uma característica recorrente. A estilização mais ligada à alta-cultura,
mesmo subvertendo-a, predominante nas vanguardas do início do século parece ter cedido
lugar a uma espécie de “arte conceitual”, onde elementos da cultura midiática são amplamente
utilizados, reconceitualizados, destruídos, desconstruídos, enfim, utilizados como discurso de
uma manifestação artística cujos processos estão mais ligados à crítica e à crônica sócio-
política-econômica, do que a reavaliações estéticas ou lingüísticas. Nesse sentido, Frederic
Jamenson, em O pós-moderno – a lógica cultural do capitalismo tardio, explicita que:

Os pós-modernismos tem revelado um enorme fascínio justamente por essa


paisagem degradada, do brega e do kitsch, dos seriados de TV e da cultura do
Reader’s Digest, dos anúncios e dos motéis, dos last shows e dos filmes B
hollywoodianos, da assim chamada paraliteratura – com seus bolsilivros de
aeroporto e suas subcategorias do romanesco e do gótico, da biografia popular,
histórias de mistério e assassinatos, ficção científica e romances de fantasia:
todos esses materiais não são mais apenas “citados”, como poderiam fazer um
Joyce ou um Mahler, mas são incorporados à sua própria substância” (1997:28).

46
Segundo entrevista já citada, um dos fatos em que se baseou o texto foi o “escândalo Miguel Orofino”,
onde o engenheiro responsável pela restauração da Ponte Colombo Salles, em Florianópolis,
desapareceu com parte do dinheiro da obra, abandonando sua mulher e filhos para fugir com a
secretária.

61
Carlos Eduardo Silva, neste sentido, acaba por solapar estruturas narrativas
falsamente conexas, associando o nonsense de situações estapafúrdias com fatos da
realidade cotidiana brasileira, estabelecendo um paralelo que resulta crítico entre o absurdo de
situações inverossímeis e fatos reais. A ausência de julgamento moral das protagonistas,
assassinas e corruptas, enquadra-se no que Coonor define como Ironia Suspensiva, no
sentido que, em momento algum, é questionada qualquer retificação da incoerência ou da
alienação, ao contrário, estabelece-se um consentimento e uma tolerância absolutamente
trivial em relação aos possíveis desvios de conduta e sanidade das personagens.

62
2.4 André Silveira: o esmaecimento da autoria

André Silveira é atualmente um dos dramaturgos mais atuantes de Santa Catarina. Em


2001 obteve menção honrosa no 1° Concurso de textos teatrais inéditos, promovido pelo
ministério da cultura do Brasil, com o texto É isso que me preocupa, ainda não encenado. A
partir daí tem mantido uma média de pelo menos dois textos por ano, entre adaptações e
inéditos. Entre seus trabalhos destacam-se os três textos escritos para o Projeto Dramaturgia,
promovido pelo Festival de Teatro Universitário de Blumenau, sob supervisão do dramaturgo
argentino Alfredo Megna: Corpos a Pulsar, E fosse minha carne... e Inquietude em 2002, 2003
e 2004 respectivamente. Em 2003 foi o único dramaturgo do sul do Brasil selecionado para o
Workshop de Dramaturgia promovido pelo Royal Court Theatre em São Paulo entre 2003 e
2004. Escreveu nessa ocasião, a partir dos exercícios propostos pelo workshop a peça
Fratura Final.
Nos deteremos nesse espaço sobre o texto E fosse minha carne... Integrante do já
citado Projeto Dramaturgia, E fosse minha carne... foi escrito sob supervisão do dramaturgo
argentino Alfredo Megna, de forma colaborativa com os atores e o diretor, como previa o
projeto. Com direção de Jefferson Bittencourt, estreou em julho de 2003 no XVII Festival
Universitário de Teatro de Blumenau, posteriormente sendo encenado nos festivais da
Federação Catarinense de Teatro- FECATE (Criciúma, 2003); Curitiba, (Mostra Fringe, 2004)
e Isnard Azevedo (Florianópolis, 2004), bem como em sucessivas temporadas em
Florianópolis e região.
O texto aborda a morte na visão degenerada de um assassino em série, sem indícios
de moralidade ou compaixão, com mais humor que psicopatia e menos violência explícita do
que mordacidade. Não se trata de uma representação psicológica do mal, mas antes o relato
de experiências homicidas desprovidas de culpa ou remorsos. Três personagens alternam-se
em pequenos monólogos e rápidos diálogos: o Homem, o assassino; Mulher I, a amante ou
esposa e Mulher II, a mãe. A memória é o foco dialógico das personagens, que relembram
continuamente fatos da infância do Homem, suas estranhas relações familiares e amorosas,
além dos indícios de sua crueldade despropositada. Sem necessariamente estabelecerem
uma trama, pois o texto desenvolve-se como contínuo rememorar narrativo, os personagens
relembram dentro da mente do narrador (o Homem), a trajetória de envenenamento de
animais e homicídios por ele consumados. Há dentro desta estrutura uma intensa
movimentação cênica descrita pormenorizadamente nas rubricas do texto. As relações

63
alteram-se através de olhares e pequenas ações pontuadas pela inserção de músicas
cronometradas com os tempos das falas e das ações.
A violência degenerada e vista sem absolutamente nenhuma culpa por parte do
Homem, mais do que um indício de psicopatia social, pode ser encarada como Ironia
Suspensiva, característica citada no item anterior, dado que as descrições dos assassinatos
não raramente descambam para o humor, e acabam por sugerir uma tolerância contumaz
para com o assassinato e a crueldade.
O espaço e o tempo em que se desenvolve a trama são também imprecisos ou
mutáveis Se a um dado momento presume-se que o Homem é contemporâneo da Mãe e da
Esposa, em outro percebe-se que elas são figuras do passado, fantasmas, lembranças
corporificadas dos assassinatos que o Homem perpretara. Além disso, não se sabe se eles
estão numa sala, num quarto, no palco... As personagens assumem as idades e os lugares
das memórias que revivem: elas dançam quando lembram de seus momentos românticos,
agem como crianças quando rememoram a infância. No entanto, há uma consciência da
atualidade dentro da representação da memória, pois que o Homem usa o gravador como um
elemento de poder e defesa quando suas memórias, ou as personagens de suas memórias, o
afligem, como podemos perceber na cena inicial do segundo ato:

Mulher II (contudente) Se você me disser mais uma vez que não vai tomar, eu faço
você engolir não só a canja, mas a colher, até o prato se for preciso. (Ele coloca o
gravador próximo à boca de Mulher II, ela fala carinhosamente) Toma querido, é de
galinha, é bom. (SILVEIRA, 2003:101)

Esta consciência metanarrativa apresentada pelas personagens de E fosse minha


carne... caracteriza-se mais fortemente ao final da peça, quando os atores desnudam-se de
suas personagens e relatam diretamente ao público experiências pessoais envolvendo a
morte. Se a um tempo as personagens sabiam que sua representação estava profundamente
contida nas memórias que narravam, neste momento a diegese rompe-se em direção às
memórias pessoais dos atores, e à reflexão poética sobre a influência da experiência da morte
na formação de cada indivíduo.
No entanto, embora a presença de elementos pós-modernos seja abundante como
objeto de análise, o foco principal a ser abordado nesta peça está relacionado ao
procedimento de criação do texto, o chamado Processo Colaborativo. Escrita em conjunto
com diretor, Jéferson Bitencourt, e os atores, Gláucia Grígolo, Renato Turnes e Nichele
Antunes, o texto apresenta em sua estrutura características marcadamente oriundas dos
trabalhos de atuação e direção, o que direciona o texto além da esfera narrativa

64
propriamente dramatúrgica, mas diretamente à encenação em si como constituinte do texto.
Estudar estas correlações entre a direção e atuação de uma montagem específica como parte
constituinte do texto, de modo a oferecer variação no conceito de autoria é o objeto desta
análise.
Para tanto utilizo dois referenciais teóricos principais: a dissertação de mestrado do
diretor do Teatro da Vertigem, Antônio Araújo: A Gênese da Vertigem: O Processo de Criação
de O Paraíso Perdido, onde se encontra uma análise pormenorizada da utilização do processo
colaborativo na dramaturgia do espetáculo O Paraíso Perdido, de Luis Alberto de Abreu e, o
livro Caos/Dramaturgia, do dramaturgo Rubens Rewald, onde descreve os processos de
criação colaborativa dos espetáculos Narraador e No Gabinete de Joana.
Passamos a seguir, inicialmente, às definições de processo colaborativo e sua
utilização e correlação com outros métodos de criação. Posteriormente, abordaremos alguns
aspectos quanto ao processo de criação de “E fosse minha carne...”.
Segundo Antônio Araújo, a dinâmica do Processo Colaborativo pode ser definida
sucintamente como “uma metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir de
suas funções artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer espécie de
hierarquia, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos” (2002:101). Em outro
momento, respondendo à pesquisadora Stela Fischer sobre a definição de processo
colaborativo, o encenador aborda outros quesitos:

“É o compartilhamento da criação pelo dramaturgo, diretor, ator, os outros


criadores, sem uma hierarquia nessa criação. O diretor não é mais importante
que o dramaturgo, o dramaturgo não é mais importante que o ator e assim por
diante. Tem uma autoria que é compartilhada sem – e isso distingue esse tipo de
dramaturgia da criação coletiva – aquele desejo de apagamento das funções ou
de uma polivalência de funções. Quer dizer, na criação coletiva muitas vezes se
negava: não existe dramaturgo, não existe diretor, todos faziam tudo, seja pelo
apagamento das funções e por esses artistas fazerem várias coisas. No caso do
processo colaborativo, a idéia é que se tenha alguém que responda por aquela
área. Tem alguém que responde pela dramaturgia, alguém que responde pela
direção, pela luz, pelo figurino. Só que essa criação vai sofrer contaminações,
interferências, sugestões, propostas de todo mundo” (FISHER, in SILVEIRA,
2004:34)

Neste sentido, a grande diferença com relação à criação coletiva reside no fato de que
o processo colaborativo mantém as funções artísticas de cada elemento do grupo, enquanto
que na criação coletiva há uma espécie de diluição destas funções. Bastante comum na cena
brasileira a partir dos anos 70, podendo-se citar o grupo “Asdrúbal trouxe o trombone” e o
“Ornitorrinco”, e mais recentemente o “Lume”, entre outros, como utilizadores e divulgadores
desse procedimento, a criação coletiva busca uma espécie de democratização da cena em

65
detrimento a “tirania” do autor e do encenador. Segundo Patrice Pavis, a criação coletiva
“reage contra a divisão do trabalho, contra as especializações e contra a tecnologização do
teatro, fenômeno sensível a partir do momento em que os empreendedores do teatro passam
a dispor de todos os meios modernos de expressão cênica e a apelar mais para “operários
especializados” que artistas polivalentes” (PAVIS, 2001:79).
Entretanto, a utópica democratização contida na criação coletiva apresenta
contradições e problemas técnicos que não podem deixar de ser citados. Antônio Araújo
observa que, se por um lado nem todos os integrantes estavam dispostos ou tinham
capacidade para assumirem todos os aspectos da criação de um espetáculo, abrindo espaço
para que sub-repticiamente alguns diretores exercessem sua autoridade, desviando-se de
confrontos e conflitos com outros integrantes do grupo, por outro, corria-se o risco de uma
democracia artística exagerada, onde todos os aspetos eram debatidos “ad nauseam” sem
que se obtivesse uma síntese final sobre assuntos polêmicos. Com isso, tendo que ser
incluída a contribuição de todos no produto final, os espetáculos resultavam em obras “flácidas
e adiposas”, prejudicando a clareza e a precisão do discurso cênico (2002,102).
Diferentemente, no processo colaborativo, as funções de cada integrante, apesar de
sujeitas às observações dos outros componentes do grupo, são conservadas com autonomia
suficiente para uma criação individual correlacionada, mas não dependente da sugestão
alheia. A pesquisadora Adélia Nicolete47 observa que o processo colaborativo “requer, desde o
início, alguém responsável pela assinatura de um texto, em pé de igualdade com os
responsáveis pela direção, interpretação e outros setores da produção” (2001:321),
ressaltando, entretanto, que essa igualdade com os demais integrantes da montagem difere
significativamente da igualdade contida na criação coletiva, pois se nessa todos os integrantes
participam ativamente de todas as funções, da dramaturgia até manufatura dos elementos de
cena ou divulgação do espetáculo, no processo colaborativo “há uma centralização maior de
competências: cada um trabalha e responde por sua função – o que não impede que haja uma
imbricação ou uma fusão de interesses e especialidades em nome da construção do
espetáculo” (2001:323).
No que toca a dramaturgia no processo colaborativo, o dramaturgo e roteirista Rubens
Rewald pontua o surgimento de um novo tipo de autor: o autor-espectador. Observa ele que,
ao tempo em que se pode considerar a existência de duas entidades no autor durante a
escrita de um texto de gabinete, o autor-escritor, que executa a escrita, e o autor-leitor, que

Nicolete, Adélia. Criação coletiva e processo colaborativo: algumas semelhanças e diferenças no


47

trabalho colaborativo. Revista Sala Preta, 2001.

66
revisa e critica a produção do autor-escritor; no processo colaborativo, com a necessidade de
uma pulsão criativa em conjunto, e a conseqüente observação do dramaturgo ao longo dos
ensaios e apresentações, este, mais do que exercer a função de autor da obra, constitui-se
como intérprete textual das experiências vividas no processo, cabendo a ele assimilar os
“ruídos” e “flutuações” que possam surgir, e incluí-los ou não no corpo dramático da peça.
Assim, o dramaturgo-espectador adquire uma nova possibilidade de leitura e escrita, podendo
criticar seus colegas (escritor e leitor) na medida em que se permite escrever e reescrever a
peça conforme o desenrolar dos ensaios e das apresentações (2005:23-24):

“O autor-espectador é o escritor forçado a sair de seu gabinete, da sua clausura, da sua


solidão imaculada. Para criar, ele necessita olhar o outro, entender a criação do outro,
dialogar com o outro, aceitar as regras do outro e fazer com que o outro aceite as suas.
O autor espectador tem de olhar para si e para o mundo ao mesmo tempo, e sua criação
é a própria medida deste colocar-se no mundo. Ele não pode se anular aceitando
totalmente as questões do outro em detrimento das suas, como também não pode impor
a qualquer custo as suas idéias, sem ouvir o outro. Em ambos os casos o processo se
empobrece, pois perde a dimensão do diálogo, da interação, necessários para sua
evolução” (REWALD, 40:2005).

Neste contexto, podemos caracterizar o Processo Colaborativo como um esforço


comum entre dramaturgo, diretor e atores no sentido de constituir um texto teatral inédito a
partir de um idéia ou mote pré-concebido. Geralmente essa idéia ou mote (que pode ser um
texto inicial, não necessariamente de teatro) parte do grupo ou do diretor, que definindo e
delimitando o tema, chamam um dramaturgo para escrever o texto de acordo com o trabalho a
ser desenvolvido em conjunto.
Cada vez mais comum na cena brasileira, o Processo Colaborativo tem sido utilizado
por vários grupos, como por exemplo, e apenas para citar dois grupos de grande repercussão,
o Galpão, com “Um trem chamado desejo”, texto de Luis Alberto Abreu e o Teatro da
Vertigem, com os espetáculos que compõe a Trilogia Bíblica: O Paraíso Perdido (1992), O
livro de Jô (1995) e Apocalipse 1,11(2000), todos com direção de Antônio Araújo e de autoria
de Sérgio Carvalho, Luís Alberto de Abreu e Fernando Bonassi, respectivamente. Em Santa
Catarina o Processo Colaborativo tem uma incidência mais restrita, possivelmente em
decorrência do escasso número de dramaturgos profissionais48 e da centralização da
produção teatral na capital do estado. Entretanto, podemos citar alguns trabalhos de grande
relevância produzidos nos últimos anos que fizeram uso deste procedimento, como as peças

Ressalto que ao usar o termo “dramaturgo profissional”, não me refiro a direitos trabalhistas, ou a um
48

dramaturgo que trabalhe exclusivamente com a criação de textos para teatro, mas sim a um profissional
de teatro especializado o suficiente para exercer com competência o ofício de dramaturgo e capaz de
realizar com “dignidade” a dramaturgia de uma peça.

67
F, E.V.A. e E Fosse minha carne..., ambas com direção de Jefferson Bittencourt e autoria de
Rogério Christofoletti, Christiano Scheiner e André Silveira, respectivamente, bem como as
experiências propostas para o Projeto Dramaturgia, promovido pelo Festival Universitário de
Teatro de Blumenau, onde os dramaturgos selecionados apresentavam textos inéditos para
serem trabalhados de forma colaborativa com diretores e grupos da região.
Em entrevista realizada em setembro de 2005, o diretor Jefferson Bittencourt, que tem
trabalhado continuamente com textos de novos autores de maneira colaborativa, salientou as
especificidades da montagem do E fosse minha carne... de outros trabalhos que dirigiu:

“Todos os autores com que trabalhei permitiram minha entrada direta na discussão
e reformulação de vários momentos do texto. Foram processos que geralmente
partiam de um primeiro texto completo apresentado pelo autor e que, a medida que
eu ia encenando – pois trabalho estritamente numa ordem muito linear e contida –
eu apontava modificações que eram discutidas com o autor. Talvez o E Fosse
minha carne.... teve um processo um pouco distinto pois não havia uma ordem
linear das falas....elas estavam somente colocadas no papel e as relações tanto
entre os personagens quanto com o desenrolar da trama foram sendo criados a
partir do que eu e os atores propunham na cena. Nos outros textos as falas e as
situações foram apresentadas pelos autores e eu, juntamente com a criação do
atores, ia dando uma devida forma cênica que fosse do meu agrado e que também
agradasse o autor” (BITTENCOURT, 2005).

De fato, como o próprio autor André Silveira ressalta em O lugar do autor teatral e os
processos de criação do espetáculo, trabalho de conclusão de curso apresentado à UDESC
para finalização do curso de licenciatura em Artes Cênicas, o processo de criação de E fosse
minha carne... partiu de pequenos textos soltos, monólogos e fragmentos de diálogo que, aos
poucos, foram sendo encaixados como num quebra-cabeça, a partir do trabalho dos atores
nos ensaios e da relação entre diretor e autor (SILVEIRA, 2004:49). É interessante notar a
transformação por que passaram estes pequenos trechos no decorrer da montagem e a
anexação de elementos da direção no corpo do texto, nas rubricas mais especificamente, bem
como, por mais contraditório que possa parecer, a contínua possibilidade de improvisação dos
atores dentro das indicações de cena extremamente rígidas contidas na peça.
Outro fator de interesse nessa linha é a ambientação dramática da peça, pois as
informações sobre onde estão as personagens, a que época pertencem e até mesmo quem é
quem, acabam por ficar submersas em meio às indicações de movimentação cênica contidas
no texto, como podemos notar na rubrica a seguir:

“Começa a música. Olham para o público. Acaba a música. Silêncio. As duas mulheres
que estão nas extremidades se acomodam nas cadeiras, se olham e levantam, em
seguida o homem que está ao centro também se levanta. Os três andam em direção ao

68
público. Ele, com seu olhar focado em uma pequena mesa colocada à frente, na boca de
cena, com um frasco de remédio e um gravador. Elas observam o público e reagem a
possíveis interferências externas à cena. Ele pega o frasco, elas o olham. Abre o frasco,
coloca próximo a sua boca, um tempo, desiste e fecha. Elas voltam a olhar para o público.
Ele coloca novamente o frasco sobre a mesa à frente, Enquanto as duas mulheres vão
para trás, pega o gravador, observa o público e fala” (SILVEIRA, 2003:100).

A rubrica acima é a abertura do primeiro ato. Conforme podemos notar, não há


qualquer referência a elementos ligados diretamente a ficção. Talvez com exceção ao frasco
utilizado pelo Homem, que presumivelmente é veneno, todas as informações referentes a
identidade, tempo, localização e ação das personagens são reveladas (e ainda assim, apenas
por suposições), através da enunciação. É possível observar a influência da direção do
espetáculo e das improvisações dos atores no texto final apresentado e publicado pelo festival
em questão, pois são muito mais abundantes nas rubricas as indicações cênicas, do que
elementos especificamente ligados à diegese, como também verificável na rubrica a seguir:

“Mulher I tira da caixinha pequenas bolinhas, joga uma, ele olha, joga outra, ele deixa o
gravador ao lado da cadeira, no chão e segue a bolinha. Vai atrás e pega. Olha para a
bolinha, se lembra de algo e fala” (SILVEIRA, 2003:100)

Não há qualquer menção anterior à relação da bolinha com a narrativa das lembranças
a serem expostas pelo Homem na seqüência da cena, o que se observa , entretanto, é que
essa relação não só existe como a bolinha acaba por se tornar o mote centralizador da
memória na cena subseqüente, sendo observada, jogada ao chão e pisada conforme a
intensidade das emoções evocadas com o desenrolar das lembranças. É possível pressupor
que a cena da bolinha tenha nascido de uma improvisação num ensaio, e acoplada
posteriormente ao texto como ação cênica.
De fato, conforme observa Adélia Nicolete, “tudo que é produzido em sala de ensaio é
devidamente apreciado, discutido e registrado pelo dramaturgo até um ponto em que se julgue
satisfatório quanto aos propósitos originais” (2001:321). Tal procedimento é bastante
recorrente no Processo Colaborativo, e por vezes a inclusão de cenas ou trechos produzidos
em ensaios, incluídos tanto na cena como no texto, acabam por solapar a estrutura narrativa
rumo a resultados inusitados. O dramaturgo Luís Alberto de Abreu relata em entrevista à
Revista Folhetim49, por exemplo, que no processo de criação do espetáculo Um trem chamado
desejo, do grupo Galpão, teve de ceder a um dos atores que não concordou com o
encaminhamento da personagem proposto pelo dramaturgo: “eu disse: ‘não vai ficar

49
REVISTA FOLHETIM, n. 16, 2003.

69
romântico’, ele bateu o pé e, no final, a personagem ficou muito melhor como o ator tinha
indicado. Então, esse processo é uma coisa muito rica” (2003:110).
Obviamente não podemos generalizar o quanto as pressões e acontecimentos
externos ao desenvolvimento “linear” de uma dramaturgia oriunda de um Processo
Colaborativo possam alterar fluxo dos trabalhos de criação. No entanto, é possível, segundo
Rubens Rewald, identificar duas espécies de elementos capazes de distorcer o andamento do
trabalho rumo a novas abordagens e concepções de criação dramatúrgica: ruídos e
flutuações.
Os ruídos, segundo Rewald, caracterizam-se como eventos aleatórios ao processo de
criação do espetáculo, são imprevisíveis, frutos do acaso, como a má compreensão de uma
instrução, equívocos, problemas de produção e coisas do gênero que acabam, pela novidade,
fazendo parte do processo, sendo ou não assimilados por este. As flutuações, por sua vez, ao
contrário dos ruídos, não são necessariamente aleatórias, mas podem ser provocadas pelo
próprio processo, tirando-o de seu equilíbrio. Uma discussão entre o diretor e um ator pode se
caracterizar como flutuação, assim como uma crítica ou a reação da platéia. O que é
importante ressaltar é que as flutuações imprimem movimento ao processo, podendo gerar
crises e a necessidade de rearticulações para um novo estado de equilíbrio, impedindo sua
estagnação e favorecendo uma nova ordem. Nesse sentido podemos considerar que tanto as
flutuações quanto os ruídos produzem novidade, inovação e evolução do processo (2005:22-
23).
Cabe então ao dramaturgo captar e selecionar as informações oriundas dos ensaios e
discussões com os demais membros da equipe, a fim de organizar o fluxo de idéias em
direção a um resultado satisfatório. A presença de ruídos e flutuações servem, então, como
material para elaboração de novas concepções e mudanças no que se refere ao andamento
do trabalho. Nesse sentido, André Silveira assevera que a função do dramaturgo no processo
colaborativo é:

“Colocar ‘ordem na casa’, propor caminhos para onde a idéia daquele grupo pode
e deve ir, e a partir disso, discutir os caminhos e possibilidades de escritura do texto
e sua relação com a cena, analisando se as possibilidades de de trabalho
propostas são coerentes. E o dramaturgo colabora com a arrumação da casa
posteriormente com a ajuda de todos, pois todos ajudaram a bagunçar a casa
assim que entraram nela. A partir do caos inicial do primeiro momento em que
todos estão dentro da casa, o dramaturgo é a pessoa que faz a primeira faxina. O
grupo ajuda a retocar e desarrumar tudo de novo e voltar a arrumar a casa até ficar
limpa e bem organizada” (2004:43).

70
Sobre E fosse minha carne... o dramaturgo salienta que a inserção da música no
espetáculo adquiriu uma função bastante importante, pois que por vezes ocupou espaços em
que o texto precisou ser substituído pela dramaturgia de cena (2004:49). Se observarmos
com atenção, perceberemos que há seis momentos no texto em que as personagens
interagem com a música, seja dançando, dublando ou utilizando-a como marcação. É
possível argumentar que, talvez, essas inserções estejam mais para um texto da direção do
que do dramaturgo, visto que delimitam mais as ações dos atores do que das personagens.
Entretanto, quando questionado em entrevista concedida a mim em novembro de 2005, sobre
como via uma possível remontagem deste texto com outro grupo, André Silveira relata que
uma de suas preocupações na escritura foi dar indicações o suficiente e suficientemente
claras para evitar exageros, ou interpretações equivocadas da violência contida no texto.
Aliás, uma de suas particularidades é a de que, mesmo com numerosas indicações
cênicas de movimentação e atuação dos atores, há uma liberdade de improvisação renovável
a cada espetáculo e, mais ainda, a cada novo integrante que venha a fazer parte do elenco.
Esse aspecto se verifica tanto nas indicações textuais de interação com o público contidas no
primeiro ato, quanto nas diversas marcações em que os atores se dirigem diretamente ao
público, mas principalmente na marcação final contida no último ato, onde:

“Homem rebobina a fita do gravador e o coloca na mesa de centro, liga e ouvem as


gravações que fez durante a peça. Terminado isto começa uma música, os atores
desconstróem seus personagens, pegam um microfone e cada ator conta uma
história de sua vida relacionada a morte” (2003:103).

Ao utilizar o relato das experiências pessoais dos atores, da mesma forma que a
memória das personagens é relatada durante o espetáculo inteiro, Silveira abre o texto a
flutuações que estarão presentes a cada nova encenação. Deste modo, o autor consegue dar
ao texto pronto o caráter de contínua transformação que o Processo Colaborativo pressupõe.
Outrossim, possibilita à encenação a inclusão e substituição contínua de novos elementos,
quebra a diegese rumo a uma interação pessoal, em tom de confidência e revelação com a
platéia, não mais com o distanciamento de um narrador fora de sua personagem, mas de uma
pessoa desnudada de sua máscara de ator.

71
2.5 Rogério Christofoletti: a esquizofrenia da personagem pós-moderna

Rogério Christofoletti é jornalista e professor universitário. Como dramaturgo, escreve


continuamente para os grupos da região. Dentre suas peças podemos destacar Toda vontade
mora num útero, de 2001, seu primeiro texto encenado; F, do mesmo ano, encenada pelo
diretor Jéferson Bittencourt, com grande circulação em festivais e mostras; Chata, fria e sem
recheio e Urano quer mudar, escritas para o projeto Dramaturgia, do Festival Universitário de
Teatro de Blumenau, em 2002 e 2003, respectivamente e, Castelo de Cartas, de 2004.
Os textos a serem abordados nesta análise serão: Toda Vontade Mora Num Útero, F e
Castelo de Cartas, com foco na recorrência da chamada “esquizofrenia pós-moderna”
presente nos textos.
Toda Vontade Mora no Útero, espetáculo dirigido por Maria Paula Bonilha e
apresentado primeiramente no Centro de Artes da UDESC, para posterior temporada no
Cineteatro do Serviço Social do Comércio (Sesc) de Florianópolis, narra a relação entre duas
detentas que, à espera de transferência para um novo presídio, criam alter egos como um
expediente desesperado de expressão de suas angústias e frustrações. Assim, as
personagens Irani e Tamara, a primeira repressora e brutal e a segunda frívola e infantil,
metamorfoseiam-se em Naiir e Martaa, uma psicótica depressiva, escondendo-se e referindo-
se a si mesma em terceira pessoa e a outra, uma terna e lasciva gestante. Nota-se, num
primeiro momento, que a vogal dobrada em Naiir e Martaa constitui os duplos de Irani e
Tamara, pois são como que um elemento defeituoso no jogo com as letras das palavras
“Irani” e “Tamara”. Esse recurso, um tanto quanto submerso no desenrolar da trama, pode ser
útil na medida em que só é revelada no texto a verdadeira identidade das personagens (quem
é inventada por quem) na quarta e última cena. Outrossim, essa vogal sobressalente parece
indicar qualquer coisa de “artificial” nestas personagens, como uma relação forçada ou
inventada.
Este “artificial”, na minha concepção, corresponde a um desdobramento das
características intrínsecas das duas personagens em direções opostas: à frustração ou
exacerbação dos desejos em Tamara, pois que sua personalidade inventada, Martaa, possui
o que esta jamais terá, o desejo dos homens, cabelos macios, doçura e uma libido “sem
preconceitos”, dadas as insinuações bissexuais dirigidas a Naiir; e, por outro lado, a um
desvelamento das fraquezas e temores de Irani que, autoritária e masculinizada (o próprio
nome pode ser também masculino), revela-se enquanto Naiir, amedrontada e subserviente.

72
Tal como em vários textos contemporâneos, a trama é secundária em relação aos
diálogos50. O texto trata mais das inter-relações traçadas entre as personagens reais e
imaginárias (Irani/Martaa, Naiir/Martaa, Tamara/Naiir e Irani/Tamara), do que na tentativa
frustrada de fuga apresentada e realizada na última cena, onde as duas despencam da janela
da cela em que estão encarceradas, que só então se descobre que era num lugar alto.
F, por sua vez, dirigido por Jefferson Bittencourt, estreou em abril de 2002 na Casa de
Cultura Dide Brandão, em Itajaí, SC. Tendo participado de várias mostras e cinco festivais
nacionais de teatro, é o texto de Christofolleti que alcançou maior repercussão. Inspirada
livremente na obra de Franz Kafka, de onde provém o nome do protagonista, F, a peça se
passa na cidade natal do escritor tcheco, Praga, em 1923, e narra o cotidiano de opressão e
melancolia vivido por um escritor humilhado por seus fracassos e incapacidades. Glauss e
Maria, siamesas e irmãs de F, atormentam-lhe continuamente apontando suas fobias,
desprezando-o e escarnecendo de suas pretensões literárias. Conscientes do
constrangimento mútuo e contínuo que a convivência as força, descrentes e blasfemadoras,
as irmãs tentam invocar o demônio com um feitiço, na intenção de que este as livre de suas
infelicidades, mas quem aparece é o Anjo da Morte, que tampouco aparece por causa do
feitiço, mas apenas, aleatoriamente, por estar “passando por ali”, ter ouvido gritos e desejar
“espiar” o que acontecia. O anjo traz consigo o “Livro dos Dias”, que contém a hora da morte
de todas as pessoas. F, deslumbrado com a idéia de um livro onde o que está escrito se
cumpre, estende os braços para pegá-lo. Rapidamente, e sem que o anjo perceba, as
siamesas tomam o livro de F e, depois de encontrar as datas das respectivas mortes,
arrancam as páginas. Quando da partida do anjo, ao invés do Livro dos Dias, as siamesas
entregam-lhe o livro de memórias de F. Quando F toma consciência da troca, e que o anjo
cumpre tudo o que está escrito no livro que carrega, lembra-se do sonho anotado naquela
manhã: uma tempestade torrencial, onde quem se banhava nas águas “lavava a alma e perdia
os medos”. Vislumbra-se a possibilidade de uma vida eterna e sem medos. Ouve-se um forte
trovão.
Tal como em Kafka, o universo asfixiante e sombrio da existência das personagens,
acaba por gerar situações absurdas ou fantásticas. As correlações entre um Gregor Samsa,
metamorfoseado em barata51, e F, o “homem-rato, (...) animalzinho indefeso”, segundo
descrição de Glauss na primeira cena do texto, são bastante perceptíveis. Ao tempo em que

Segundo Jean-Pierre Ryngaert, (1998:153), uma característica bastante marcante dos textos de
50

teatro contemporâneos reside em que, diferentemente do drama tradicional, a fala torna-se ação,
estando os conflitos como que subordinados no cerne da atividade lingüística.
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Rio de Janeiro, Editora Record, 1998.
51

73
Samsa, após a metamorfose, sobrevive encarcerado em casa sob os cuidados da irmã, o
universo de F, incapacitado por seus medos, também se restringe a convivência e a
dependência das irmãs siamesas no recinto doméstico, com a ressalva que diferentemente do
inicial altruísmo da primeira com o irmão, as siamesas mantém escancarados o seu desprezo
e ressentimento para com F.
O autor, Rogério Christofoletti, em entrevista concedida em janeiro de 2006, assinala
que:

“Em “F.”, temos ali um sujeito – o do título – buscando razões para deixar de ser um
rato para ser um homem de verdade, um sujeito na acepção da palavra. E temos
irmãs siamesas, que compartilham corpos, mas tem vontades distintas. Como é
que isso pode acontecer e ainda preservar a individualidade dessas mulheres? Eu
me perguntava sobre isso”. (CHRISTOFOLETTI, 2006)

Nesse sentido, a professora Eliane Lisboa, em crítica publicada no suplemento cultural


do Jornal A Notícia em julho de 2002, observa que:

"F" não vê que a seu lado vivem outras criaturas tão ou mais dignas de compaixão
do que ele, suas irmãs, siamesas. Aprisionadas pelo dorso, as duas mulheres
carregam consigo a marca da monstruosidade e vivem, como "F", confinadas ao
espaço do lar. É do cotidiano dessas três personagens, que a partir de suas
misérias particulares se atordoam e perseguem, que se faz o movimento do
espetáculo” (LISBOA, 2002)

De fato, diferentemente de Toda Vontade Mora num Útero, em F a dualidade de


personalidades contida em uma única personagem é física. A ambigüidade de desejos,
movimentos, intenções provém agora de duas personagens num único corpo
simultaneamente, e não alternadamente, como no texto anterior. Não há mais o conflito e a
alternância de personalidades, mas a opressão.
Segundo afirma o autor:

“Em “Toda Vontade Mora num Útero”, eu colocava duas mulheres dentro de uma
cela, tendo que conviver sem enlouquecer. Pois bem, elas recorriam a um
expediente: inventaram mais duas personalidades para que pudessem desdobrar-
se, reviver e não se repetir. Essa duplicação – que podia ser inclusive notada nos
nomes das personas – era uma estratégia de sobrevivência daqueles sujeitos. Por
isso, o mote do texto era: Corpos encarceram desejos, mas o que acontece quando
corpos estão encarcerados?” (CHRISTOFOLETTI, 2006)

74
Em F esse encarceramento é o próprio corpo das personagens, e não há expediente
para evitar a insanidade provinda de uma convivência forçada, pois não há esperança de
rompimento da ligação que as transforma em aberrações. A única alternativa viável para uma
vontade que não seja compartilhada é a opressão, e apenas nesse jogo de oprimir e sujeitar-
se é que há um vislumbre, ainda que muito vago, de autonomia.
Em Castelo de Cartas o jogo toma ainda uma outra forma. Também com direção de
Jeferson Bittencourt, o espetáculo estreou em maio de 2004 no Teatro Múcio de Castro, em
Passo Fundo, RS, tendo como F, participado de vários festivais e mostras nacionais de teatro.
Neste texto as relações entre as personagens são heterogêneas, múltiplas e
esquizofrênicas. Lombroso, um carteiro inválido, preso a uma cadeira de rodas devido a um
acidente de bicicleta, e sua esposa, muda e completamente subserviente, recebem em sua
casa uma enfermeira, Alice, responsável pela medicação de Lombroso e disposta a desvendar
o mistério que paira no local. Não há, de fato, uma linearidade na investigação da enfermeira,
as revelações vão surgindo quase espontaneamente a partir das digressões e devaneios de
Lombroso, e no embate inquiridor contra a enfermeira.
Dominador e agressivo, Lombroso assume a voz da esposa, falando por ela,
interpretando a figura gentil e desumanizada que criou como sendo o alter-ego daquela. A
Senhora Lombroso mantém, no entanto, uma posição à parte no embate entre Lombroso e
Alice. A enfermeira tenta fazer com que o carteiro tome as pílulas que lhe oferece, e é nesse
jogo de recusa, aceitação e imposição dos remédios que se traçam os devaneios de
Lombroso sobre a morte, genocídios, envenenamentos e a condição de violência e acaso que
em que supõe a humanidade. A cumplicidade da esposa com a enfermeira vai ficando mais
explícita conforme vai se desenvolvendo a trama, algo absurda, de opressão e vingança.
Descobrimos, (ou supomos), que foi a Senhora Lombroso a responsável pelo acidente que
paralisou o ex-carteiro, visto não ter dado manutenção adequada à bicicleta, ou mesmo a
sabotou.
Lombroso, por sua vez, desconfia cada vez mais da enfermeira, que questiona
repetidamente sobre o destino das cartas não entregues pelo correio. Senhora Lombroso
prepara uma suspeita mistura de remédios, e a enfermeira tenta convencê-lo da necessidade
de um “fortificante”, o qual será a mistura de remédios feita pela mulher. Após Lobroso beber a
mistura, as duas dirigem-se a saída, mas antes, esquecendo algo em sua bolsa, a enfermeira
retorna. Lombroso força um último embate e Alice, tirando um revólver da bolsa, o mata com
um tiro. Descobrem sob a manta no colo de Lombroso várias cartas não entregues. As duas

75
mulheres, ao som da leitura em off destas cartas, fazem uma espécie de ritual fúnebre
jogando envelopes e selos sobre o corpo de Lombroso.
Castelo de Cartas, a meu ver, por paradoxal que pareça, transita de maneira realista
entre o nonsense e o absurdo, há um tom melodramático, algo de romance de mistério sem
necessariamente um mistério a altura do esforço por desvendá-lo. Tal como em Toda Vontade
mora num útero, Lombroso assume deliberadamente uma personalidade que não é a sua.
Como um ventríloquo, fala pela mulher como se ela o fosse, assume sua voz, transfigura suas
atitudes, e muito possivelmente, cria a sua própria definição da esposa. A Senhora Lombroso,
resignada, permanece muda e impassível frente a perda da individualidade, da expressão e da
liberdade. Se em Toda vontade mora num útero as personagens assumiam uma outra
personalidade para conseguirem criar uma realidade alternativa e, em F, a individualidade só
era possível num “consenso” entre as siamesas, em Castelo de Cartas a Senhora Lombroso
acaba por representar o indivíduo que prefere calar perante a apropriação de sua voz pela
vontade alheia.
Christofoletti ressalta na entrevista supracitada que Castelo de Cartas retoma um tema
de fundamental importância na sua obra: o da subjetividade:

“Na verdade, me parece a busca mais primordial quando escrevo para teatro:
tentar entender o que é ser sujeito hoje em dia (...) Em “Castelo de Cartas”, o
Lombroso – para punir sua esposa – chega a roubar-lhe a voz, e passa a falar por
ela. Ele projeta-se na vontade pela voz. E atinge o corpo dela, vaza-o e chega à
enfermeira. (...) Pois, é isso... o tema da subjetividade me atrai ainda... não esgotei
meu interesse por ele... e talvez haja aqui um elemento da pós-modernidade: esse
sujeito estilhaçado, clivado, desdobrado, em fragmentos...” (CHRISTOFOLETTI, 2006).

Neste sentido, o sociólogo inglês Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-


modernidade, pretende explorar algumas questões ligadas à identidade cultural na
modernidade tardia, dentre elas o descentramento, deslocamento ou fragmentação de uma
identidade pós-moderna. Para tanto, ele distingue primeiramente três concepções de
identidade: o sujeito do iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. O primeiro, caracteriza-se
como o indivíduo “totalmente centrado, unificado, dotado de capacidades de razão,
consciência e de ação”, cujo centro consistia num núcleo interior, que emergia ao nascer e o
acompanhava durante a existência; o sociológico, fundamentado na consciência de que este
núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas formado na relação com as
outras pessoas, que mediavam os valores, os símbolos e a cultura e; o sujeito pós-moderno,
que não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente, mas como uma “celebração-

76
móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam52” (HALL, 2001: 07-12).
Assim, no que tange a esta identidade mutante do sujeito pós-moderno, Hall salienta
que “à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos
confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis”,
sendo que somos tentados a nos identificar com cada uma, em momentos diferentes (
2001:13). Assim, segundo Hall:

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares
e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas
de comunicação globalmente interligados, mais identidades se tornam
desvinculadas - desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicas
e parecem “flutuar livremente. Somos confrontados por uma gama de diferentes
identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes
partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha (2001:75).

Na mesma linha, Steven Coonor, no também já citado Cultura Pós-Moderna –


Introdução às Teorias do Contemporâneo, observa que como representação da metáfora de
Jean Baudrillard do colapso da dicotomia entre sujeito/objeto, a tela de TV ou monitor de
computador não podem mais ser concebidos como apenas um objeto a ser olhado, mas como
“uma intersecção reativa dos nossos desejos e representações”, tornando-se uma espécie de
“forma personificada” de nosso mundo psíquico, onde o que acontece na tela não está
especificamente na tela, nem em nós, mas num espaço intermediário, virtual. Neste sentido há
uma neutralização da oposição entre o mundo “invisível”, do sentimento, da fantasia, e o
mundo “visível”, da representação pública, visto que o próprio volume de representações
presentes nas mídias audiovisuais e a expansão exponencial da informação, acabam como
que abolindo a distinção entre o privado e o público (COONOR, 1996:138).
Deste princípio, esta invasão do mundo privado e a virtual perda de sentido do limite
que o distingue do mundo público, como podemos verificar cotidianamente com a
multiplicação de programas que exploram a vida intima das pessoas em reality shows, ou

52
Stuart Hall, apesar da ressalva de extrema dificuldade em definir o sujeito na
contemporaneidade, como aprofundamento das definições acima, traça uma rápida panorâmica
abordando o surgimento do sujeito moderno a partir das concepções de René Descartes (1596-1650),
“o sujeito racional, pensante, situado no centro do conhecimento” (sujeito cartesiano) e de John Locke
(1632-1704), que em “Ensaio sobre a compreensão humana” definiu o sujeito em termos de uma
“mesmidade de um ser racional”, ou seja, uma identidade que permanece a mesma e que é contínua
com seu sujeito, (sujeito soberano), em direção a concepções mais sociais do sujeito, onde este passa
a ser visto como mais localizado e definido no interior da maquinaria burocrática e social do estado
moderno, ou seja, o sujeito sociológico.

77
“documentários” tipo câmera indiscreta ou transforme sua vida, sua roupa ou sua moradia de
acordo com padrões impostos por uma “legitimidade midiática”, acaba por extrapolar a noção
de individualidade para a representação de uma “individualidade pública”, onde apenas uma
atuação de acordo com a estética/ética imposta ou esperada pelos espectadores pode resultar
em aprovação.
Segundo Coonor, o que tipifica esta situação é, sobretudo, uma explosão de
visibilidade tão excessiva, que para Baudrillard, em Ecstasy of Comunication, torna-se uma
“obscenidade”. Tal obscenidade caracteriza-se quando já não há espetáculo ou cena, quando
tudo se torna visibilidade e transparência imediata, estando tudo totalmente exposto “à dura e
inexorável luz da informação e comunicação” (COONOR, 1996:138). E ainda,
complementando:

Esse mundo de saturação comunicacional é na verdade emocionalmente vazio, ou


“cool”, e seu estado psíquico representativo não é a histeria, uma condição em que
o corpo e os seus sintomas tornam-se o “texto” externalizado de sentimentos e
desejos interiores, mas a esquizofrenia, que, lembra-nos Baudrilard, é a condição
não tanto da fuga do mundo exterior quanto do avanço superintenso desse mundo
sobre a consciência do sofredor, que se dissolve dolorosamente por falta de
distância (COONOR, 1996:139).

Deste modo, podemos presumir que a esquizofrenia pós-moderna em literatura e teatro


caracteriza-se por apresentar personagens cujas consciências acabam por “desfazerem-se”,
“transmutarem-se” ou mesmo “multiplicarem-se” em decorrência de uma realidade
absolutamente invasiva, totalitária e absurda. Talvez Os Negros, O Balcão e As Criadas, de
Jean Genet sejam os exemplos mais marcantes dessa condição no teatro no século XX.
De qualquer maneira, em Christofoletti, a absoluta falta de distância e a conseqüente
eliminação da privacidade e exacerbação da opressão acabam por produzir personagens
esquizofrênicas, desestabilizadas e absolutamente paranóicas. A completa anulação da
privacidade nos três textos analisados: a coabitação forçada numa cela em Toda vontade
mora no útero, o compartilhamento de um mesmo corpo em F e a apropriação da voz alheia
em Castelo de Cartas, podem ser encaradas como a metáfora de uma individualidade cada
vez mais “compartilhada”, e de um mundo onde os meios de comunicação são capazes de
extrapolar a própria capacidade de comunicação.

78
CONCLUSÕES

Uma das questões problemáticas em se associar o termo pós-moderno a


características regionais, como no presente trabalho, reside em que o pós-
modernismo é tido como um “movimento” ou “estado de coisas” global ou globalizado,
ou seja, diferente do romantismo ou do barroco, por exemplo, onde é possível
distinguir um romantismo alemão e um barroco italiano, não se pode, ou pelo menos
não é usual se empregar o pós-modernismo mexicano, brasileiro ou americano. A
salutar contradição, segundo assinala Fernando De Toro53, no que diz respeito ao
deslocamento ocasionado na passagem da modernidade à pós-modernidade, em
contextos regionais, reside em que, se por um lado a modernidade propunha um
discurso universalista, que poderia ser confundido com a atual noção de globalização,
no sentido de uma homogenização, a pós-modernidade introduz a possibilidade de
uma globalização, ao mesmo tempo que sugere a possibilidade do “local”, do
individual. (TORO, 2001:112).
Portanto, é presumível, ao observarmos a produção cultural desenvolvida em
regiões periféricas, que se encontrem expedientes parecidos ou iguais quanto ao
tratamento e à composição de obras de arte, aos expedientes encontrados nos
principais centros culturais do mundo sem que, no entanto, os mesmos apresentem
características de despersonalização cultural, através da coerção ou supervalorização
de uma cultura sobre a outra.
Segundo Fernando De Toro, as noções esclerosadas de leste/oeste, norte/sul,
primeiro/terceiro mundo tem sido finalmente postas abaixo. E isto implica não apenas
no fim dos grandes relatos, mas mais importante, o fim da superioridade de uma
cultura frente a outra (TORO, 2001:113). Sendo assim, pressupomos que a expressão
“aldeia global”, tão em voga, não signifique apenas a capacidade de comunicação e
inter-relação entre diferentes pontos geográficos, mas também uma “virtual” igualdade,
ou pelo menos, uma valoração eqüânime no que diz respeito à convivência cultural.

TORO, Fernando de. Intersecciones II, Ensayos sobre cultura y literatura en la condición
53

postmoderna y postcolonial, Buenos Aires, Galerna S. R. L., 2002

79
Obviamente as coisas não são assim tão simples. Talvez o exponencial avanço
da capacidade de comunicação internacional e das inter-relações bilaterais entre
países culturalmente diversos ocasione uma espécie de fluxo e refluxo de influências e
identificações e, ao mesmo tempo em que estas informações são assimiladas como
influência, forme-se uma rede de representações que englobe como suas as
representações oriundas de outras culturas. Esse processo de assimilação, também
ocasionado em parte pelas crescentes migrações internacionais, põe em relevo os
conceitos de identidade nacional e abre espaço para uma “localização” cultural da
linguagem54. Stuart Hall, em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, salienta que:

“Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares
e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas
de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam
desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos
e parecem flutuar livremente” (HALL, 2001:75).

Esta identidade que “flutua livremente”, com relação à dramaturgia, a meu ver,
caracteriza uma literatura dramática produzida em contextos culturais periféricos
capaz de se identificar plenamente com movimentos, tendências, temáticas e técnicas
oriundas de múltiplas localidades e movimentos, sem, no entanto, limitar-se apenas às
simplificações das influências literárias, ou dos modelos propostos/impostos por
realidades culturais mais desenvolvidas. Quero dizer com isto que, se no passado
(século XIX e início do XX) a dramaturgia catarinense, e brasileira como um todo, se
aproximava de uma cópia do que se produzia na Europa, hoje, esta influência dissipa-
se em algo mais próximo da colagem, da hibridização e do aproveitamento como
transformação das informações/tendências contemporâneas disponíveis na múltiplas
redes de comunicação que interligam, ou unificam, determinados ramos de atividade.
Assim, se por um lado as dramaturgias de Fábio Brüggemann, Rogério
Christofoletti, Carlos Silva e André Silveira caracterizam-se como catarinenses por
terem sido escritas, produzidas e encenadas em Santa Catarina, e também pela
residência e naturalidade dos autores, por outro, os procedimentos dramatúrgicos, as
temáticas, as influências estéticas e literárias enquadram-se como pertencentes a

54
Ver Garcia Canclini, 1997:310-326).

80
delimitações bem mais amplas, consonantes com movimentos, procedimentos e
técnicas difundidas globalmente.
Segundo Linda Hutcheon, no pós-modernismo, o local e o regional são
enfatizados diante de uma nova cultura de massa e de uma espécie de vasta aldeia
global de informações com que McLuhan teria conseguido apenas sonhar. O conceito
de não-identidade alienada (que se baseia nas oposições binárias que camuflam as
hierarquias) dá lugar ao conceito de diferenças, ou seja, à afirmação não da
uniformidade centralizada, mas da comunidade descentralizada – mais um paradoxo
pós-moderno (HUTCHEON, 1991:30-31).
Essa ampla gama de redes de comunicação que interligam culturas e centros
díspares geográfica e culturalmente, acaba por provocar uma coalizão de valores e
metodologias de criação, aprimoramento e recepção capaz de gerar recorrências e
correlações de temáticas e procedimentos em dramaturgias as mais variadas
internacionalmente.
A partir disso é possível traçar aproximações entre realidades dramatúrgicas
tão distintas quanto a européia e a americana com a brasileira ou com outros países
da America Latina. Se por um lado podemos constatar uma vasta gama de
procedimentos semelhantes, embora os contextos profissionais e de mercado
mantenham diferenças astronômicas, podemos também constatar uma recepção com
os mesmos riscos.
Segundo o pesquisador Jean-Pierre Ryngaert, em análise sobre a profícua
dramaturgia francesa contemporânea, temos o seguinte :

Estamos no momento em que as vanguardas estão mortas e são redescobertas.


Em um momento em que não é bom, para um autor, revelar intenção formal
demais, sob pena de ser rejeitado como ilegível ou suspeito de um retorno do
terrorismo intelectual. Em que é melhor que um texto não perturbe demais a
linguagem acadêmica e manifesta da vontade de comunicar. Em que, talvez, o
pensamento seja suspeito, se não “ultrapassado”, se não se apresentar imaculado
e anódino. (RYNGAERT, 1998:05).

Na mesma linha, o dramaturgo argentino Ricardo Monti afirma em entrevista à


revista Cuadernos de Picadero, respondendo sobre o excesso de hermetismo que por
vezes acaba por afastar o público, que:

81
O hermetismo está ligado com a subjetividade da qual se cria, e tem a ver com a
crise de público. (...) Se perdeu neste sentido o diálogo com o público. E então se
cria um teatro para determinados grupos de conhecedores, que manejam
determinados códigos. Não gosto disso. Há que se considerar o público como
manifestação de uma sociedade, de uma cultura que tem a sua história. (...) Às
vezes eu ouço de alguns autores mais jovens expressões muito depreciativas com
respeito a tradição cultural em que estão inseridos. (...) Se se perde o diálogo com
o país em que estão, com as gerações que convivem com eles, os criadores
correm o risco de que se perca sua oportunidade artística. O teatro não pode
deixar de dialogar com seu contexto histórico. (MONTI, 2004:18)

Ainda nesse sentido, a pesquisadora Silvana Garcia, em reportagem da revista


Carta Capital sobre o ressurgimento da dramaturgia nacional a partir da década de
1990, afirma sobre as 400 estréias e reestréias acontecidas na grande São Paulo no
ano de 2003, que:

Essa abertura para uma dramaturgia menos acabada, que pode ser feita num
processo colaborativo, faz também com que alguns autores achem que qualquer
idéia, qualquer vivência pode ser utilizada na peça. Há um problema de
alfabetização na linguagem do teatro. (...) O teatro perdeu um pouco a aura de
grande espetáculo. Há muito espaço para pesquisa, salas alternativas, teatro em
hall de loja e textos produzidos juntamente com o processo de concepção do
espetáculo. Está tudo autorizado pela compreensão de que o teatro precisa de
muito pouco para existir (GARCIA, 2004:57).

Estas consonâncias da recepção e do modo como a dramaturgia acaba por se


tornar algo cada vez mais aberto a novos “experimentos”, e de como a difusão de
técnicas e processos de criação e concepção os mais diversos, acabam por ter um
alcance muito além das influências literárias que determinavam um estilo ou uma
escola, fazem com que a mútua identificação de procedimentos e leituras se
caracterize como uma, se não tênue, pelo menos possível unidade de criação
dramatúrgica.

Assim, podemos afirmar que a dramaturgia contemporânea, com todas as suas


especificidades e, muito possivelmente a sua quase que absoluta imersão no pós-
modernismo, acaba por apresentar o que Linda Hutcheon escreve sobre uma possível
poética do pós-modernismo:

Obviamente um empreendimento desse tipo não produziria nenhuma verdade


universal, porém, mais uma vez, não seria isso que ele procuraria fazer. O

82
abandono do desejo e da expectativa de um sentido indiscutível e único e a
passagem para um reconhecimento do valor das diferenças, e até das
contradições, poderiam ser um primeiro passo experimental para a aceitação da
responsabilidade pela arte e pela teoria como processos significativos. Em outras
palavras, talvez pudéssemos começar a estudar as implicações de nossa
realização em relação a nossa cultura e da produção de sentido que nela
enxergamos (HUTCHEON, 1991:41).

De qualquer modo, para não incorrer na limitação que as generalizações


impõem, é necessário que sublinhemos a multiplicidade do universo pós-moderno,
onde ao mesmo tempo convivem as mais variadas e contraditórias formas, técnicas e
estilos, e que mesmo apesar da identificação de uma grande gama de correlações e
características comuns na dramaturgia contemporânea, na qual se inclui obviamente a
catarinense, não se limita às definições de uma escola, delimitações de técnicas ou
procedimentos.
O pós-modernismo, como observado no primeiro capítulo, avesso a definições
estatizantes, múltiplo e mutante, está neste trabalho na paradoxal encruzilhada entre
uma possível unidade encontrada na dramaturgia contemporânea e a impossibilidade
de delimitação precisa dessa mesma unidade. Ao mesmo tempo em que podemos
perceber uma recorrência de procedimentos, esses mesmos procedimentos assumem
formas tão variadas, tão dispares de uma obra para outra que uma equivalência se
tornaria imprecisa.
Onde então traçar essa unidade entre dramaturgias as mais variadas, quer
periféricas ou não, semelhantes em procedimentos? Novamente, esse é um assunto
que excede o espaço deste trabalho, mas cujas prospecções partem do mesmo ponto
de onde comecei esse estudo, ou seja, um ponto de apoio onde equilibrar o desejo de
delimitação e a necessidade de não fechar os olhos a um horizonte além de minhas
expectativas.

83
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