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“CONSTRUTORES DO IMAGINÁRIO”
os arquitetos sem diplomas
Amelia Zaluar
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Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, vol.4. n. 1, 2007.
Casa é o espaço destinado à habita- e isso ocorre até hoje, apesar do precon-
ção, é o lugar que nos abriga, que nos ceito segundo o qual são coisa de pobre
protege das forças da natureza superio- ou o habitat da miséria.
res a nós, das tempestades, do sol incle- Só nas últimas décadas, após a expo-
mente, das chuvas, do frio, dos ventos. sição no Museu de Arte Moderna de
Como símbolo, tem o sentido de re- Nova York – “Arquitetura sem Arquite-
fúgio, de proteção, de mãe, de seio ma- tos” – em 1964, é que arquitetos, soció-
ternal. O estudo dos símbolos mostra que logos, etnólogos e geógrafos começaram
tudo pode assumir uma significação: a reconhecer a importância dessa forma
objetos naturais (pedras, animais, ho- de expressão arquitetônica, até então
mens, montanhas, luz e sol, vento, água desconhecida ou pouco conhecida, como
e fogo, plantas) ou fabricados pelo ho- afirma o arquiteto alemão Wolf Tochter-
mem (casas, barcos, carros, o triângulo, man (198-?). Segundo ele, não há razão
números). Ao transformar objetos ou para se desprezar materiais baratos como
formas em símbolos, enorme importân- o adobe, o barro e o bambu, nem há
cia psicológica lhes é conferida e o ho- motivo para se considerá-los próprios do
mem expressa isso na religião e nas ar- subdesenvolvimento.
tes visuais, inclusive na arquitetura. Métodos tradicionais de construção
Nesta última, tradições culturais de não afastam a existência da criatividade
milênios estão presentes, desde o uso de individual de seus donos. Como exem-
pedras enormes – monolitos – signifi- plo, numa aldeia na Mauritânia, na Áfri-
cando deuses, às construções de grande ca, todos os anos, depois da colheita do
altura – igrejas, catedrais, pirâmides – milho, repete-se uma tradição secular:
quando a verticalidade representa a ele- as mulheres refazem, com os dedos e tin-
vação do homem a uma esfera espiritu- tas fabricadas com corantes vegetais, a
al. Mandalas – símbolo universal da pintura das fachadas com desenhos que
harmonia – aparecem em construções expressam crenças, profecias, e senti-
seculares e sagradas e no traçado de ci- mentos como medo e alegria. As técni-
dades medievais e mesmo modernas, cas da pintura e os desenhos são ensina-
como Paris, Washington, Belo Horizon- dos de mãe para filha, durante um perí-
te. odo de iniciação no qual as meninas não
Na arquitetura de terra, as constru- saem de casa.
ções são feitas com o material mais na- Com pedras, barro, cimento, constru-
tural, gratuito, retirado da natureza: são ídas na horizontal ou na vertical, com
as técnicas da taipa, do adobe, do pau- um ou mais andares (há edifícios na
a-pique. São milênios de um inteligente África com sete ou oito andares, cons-
aproveitamento da terra em edificações truídos em pau-a-pique), a casa do ho-
presentes em um terço das habitações no mem do povo sempre conta sobre sua
mundo, seja nas regiões quentes ou fri- cultura, sobre as tradições locais, mas
as, seja nas secas quanto nas chuvosas, diz ainda da criatividade de seus donos,
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250 km de distância da capital. Ouve Usa cacos, xícaras antigas, relógios, bo-
vozes que guiam sua produção. São seus tões, pratos, pedras para a decoração
guias curadores e seus santos, anjos, es- surreal. Em seu jardim suspenso, três
trelas, cruzes, animais e símbolos que andares acima, plantou árvores frutífe-
ela mesma não consegue explicar. Usa ras, e colhe pitangas, jabuticabas, romãs.
a pedra-canga (porosa). Diz que tem Tem ainda plantadas ervas e flores (or-
contato com extraterrestres e viaja para quídeas). Iniciou sua obra há 23 anos.
outros planetas.
Gabriel Joaquim dos Santos
Cícero Alves dos Santos, e a Casa da Flor
o Véio
Em 1912, em São Pedro da Aldeia,
Vive em Nossa Senhora da Glória, município do Estado do Rio de Janeiro,
Sergipe. No sítio Soarte cria esculturas Gabriel Joaquim dos Santos (1892-
em madeira (mulungu, jurema). 1985), negro e filho de ex-escravo e de
índia, começou a construir só para si
uma casa pequenina, para cumprir a “in-
Geraldo Simplício, o Nêgo tuição” de que teria que viver sempre
Vive em Friburgo, Rio de Janeiro, no sozinho. Trabalhando nas salinas e ro-
Campo do Coelho, a 13 km da cidade, ças próximas, foi erguendo aos poucos
na estrada Friburgo–Teresópolis. seu lar, composto de três cômodos ape-
Descobriu, por acaso, a técnica, que nas – sala, quarto e um depósito para
lembra a topiaria, mas modela na terra guardar quinquilharias. Terminada a
e cobre a escultura com o musgo, evi- obra, veio-lhe, no ano de 1923, por meio
tando a erosão. Planta, rega, poda. São de um sonho, a idéia de enfeitá-la. Mas
esculturas vivas: presépio, bebê, mulhe- não tinha recursos para comprar o ma-
res, animais, velhos, retirantes... terial necessário. “Então, ‘matutando’,
decidiu concretizar aquelas visões com
o refugo das construções próximas, com
Estêvão Silva da Conceição coisas imprestáveis jogadas no lixo, e
Mora na favela de Paraisópolis, no fazer ‘uma casa do nada’”.
bairro do Morumbi, na cidade de São A partir daí, com cacos de garrafas,
Paulo. É jardineiro e porteiro. Cansado de pratos, de xícaras, de azulejos e de
de observar o cinza na favela, resolveu telhas; com pedras, conchas, ossos, lâm-
embelezar sua moradia. Parece uma teia padas, bibelôs e outros objetos quebra-
de aranha: paredes sinuosas, ângulos dos, por vezes insólitos, garimpados nos
quebrados, uma escada totalmente irre- montes de lixo e selecionados, sem pre-
gular direcionada para todos os lados. conceitos, por sua singularidade e bele-
za, começou a criar enfeites diversos,
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