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Griôs: a importância
da oralidade para
as tradições de
matrizes africanas e
indígenas no Brasil
Este artigo tem o intuito de discutir a temática da tradição
Mestre Alcides de Lima*
1
oral, sua função e importância em grupos que transmi-
Ana Carolina
tem sua história e memória social através da oralida-
Francischette da Costa** 2
de. Neste caso, trataremos especificamente da figura do
griot africano e, a partir de então, buscaremos delinear a
identidade dos Griôs brasileiros e de que maneira se dá * Mestre de capoeira do grupo Centro
de Estudos e Aplicação da Capoeira
**
elaboração de políticas públicas de
reconhecimento de Mestres Griôs
detentores dos saberes e fazeres de
tradição oral no Brasil. Licenciado
em Educação Física e Pedagogia com
habilitação em Administração Escolar
e Orientação Educacional. Há mais de
20 anos desenvolve projetos ligados à
cultura de tradição oral no interior de
escolas públicas, atualmente através
da coordenação do Ponto de Cultura
Amorim Rima/ CEACA Capoeira
e Cultura Brasileira e do Projeto
“Expresse-se com consciência – Faça
capoeira”.
não apenas para a compreensão do conceito de tradição justificaram não só a dominação, mas todas as formas de
oral, como também para a compreensão da ressignificação violência desfechadas pelo Ocidente durante o processo
e de recriações de práticas culturais africanas no Brasil. de colonização dos reinos e comunidades africanas 3 .
Em linhas gerais, entendemos por tradição oral o universo Para Boaventura de Sousa Santos, o processo de cons-
de vivência dos saberes e fazeres da cultura de um povo, tituição da ciência moderna como única forma de conhe-
etnia, comunidade ou território que é criado e recriado, cimento válido, remonta do século XVII, na Europa. Após
transmitido e reconhecido coletivamente através da orali- sua vitória “a ciência moderna conquistou o privilégio de
dade, de geração em geração. Este processo de transmissão definir não só o que é ciência, mas muito mais do que
apresenta uma pedagogia própria, bem como uma lingua-
2
Esta definição que nos parece pertinente foi sistematizada por Líllian Pa-
checo, idealizadora da Pedagogia Griô e coordenadora do Ponto de Cultura
Grãos de Luz e Griô, a partir da discussão coletiva de Griôs e mestres da
1
Segundo Hampaté Bâ, aqueles considerados grandes depositários da herança tradição oral e associações culturais, os quais elaboraram um projeto de
oral são chamados de tradicionalistas. Em algumas etnias como os bambaras lei que disponha sobre a proteção e fomento à transmissão dos saberes e
e fulanis, o termo escolhido para expressar esta função seria traduzido fazeres de tradição oral no Brasil: o Projeto de Lei nº 1.786, de 2011, também
por “conhecedor”. Para aprofundamentos no tema, consultar HAMPATÉ BÂ, conhecido como Lei Griô.
Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-História da 3
HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita à
África, História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005. p.13-23
218 219
isso, o que é conhecimento válido” 4 . iletrados), como se todo conhecimento passasse neces-
Ao incidir sobre outras formas de conhecimento, a sariamente pela escrita (decodificada). O linguista ainda
ciência moderna teria se traduzido em “epistemicídio”, discute como o manejo da escrita ocidental foi percebido
liquidando conhecimentos alternativos e subalternizando por pensadores iluministas como Jean-Jacques Rousseau
os grupos sociais, cujas práticas se assentavam em tais que considerava a existência de três maneiras de escrever
conhecimentos. das sociedades e estabelecia uma hierarquia entre elas,
Esse processo histórico teria sido ainda mais violento considerando os europeus organizadores da fala em al-
nas áreas do mundo vítimas do colonialismo europeu e fabeto como o auge da civilização 5 . Estas e outras ideias
mesmo o fim do colonialismo político não teria rompido iluministas teriam fundamentado um entendimento de
220 221
palavra falada simplesmente a uma negativa, ausência do recobre uma série de funções no contexto das sociedades
escrever, e perpetuar o desdém inato dos letrados pelos africanas de tradição oral. Os griots teriam assumido uma
iletrados”. 6
posição de destaque, pois lhes cabiam a função de trans-
Fonseca afirma que seria um equívoco grosseiro afir- mitir a tradição histórica: eram os cronistas, genealogistas,
mar que as civilizações saarianas ou subsaarianas sejam, arautos, aqueles que dominavam a palavra, sendo, por
simplesmente, iletradas ou ágrafas, pois elas: vezes, excelentes poetas; mais tarde passaram também
a ser músicos e a percorrer grandes distâncias, visitando
têm na palavra falada um dos sustentáculos do seu có-
povoações onde tocavam e falavam do passado. Muitas
digo social e cosmológico. A palavra é um mecanismo
vezes eram confundidos com o “feiticeiro”, pois podiam
dual e coletiva 7 .
pública tal como o chamou Hampaté Bâ” 10 .
Segundo o autor, no contexto da chamada “África Anti-
Assim, Fonseca conclui que nessas “sociedades da orali- ga”, anterior à colonização, em sociedades hierarquizadas,
dade”, a fala além de ser um meio de comunicação cotidia- os griots assumiam importantes funções junto aos reis e
na, também se apresenta como o meio de preservação da imperadores, já que assumiam o papel não só de cronistas,
sabedoria e de conhecimento dos antigos e dos ancestrais. mas também de conselheiros desses chefes de estado:
Na região do Mali e Guiné, países da África Saariana, “cada família principesca contava com seu griot dedicado
pode ser encontrada a figura do griot, termo de origem à conservação das tradições,(...) costumes e princípios dos
francesa 8 que, segundo o historiador Djibril Tamsir Niane, governos dos reis”. 11
Entretanto, após a colonização do continente, a convul-
6
VANSINA, Jean. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, J.(coord.)
Metodologia e Pré-História da África, História Geral da África. São Paulo:
Ática/Unesco, 1982.v.1. p.157 definição do termo griot apresentada pelo livro de Niane.
7
FONSECA, Dagoberto José. As relações Brasil- África subsaariana: oralidade, 9
Niane, Djibril Tamsir. Sundjata: ou, a epopéia mandinga. São Paulo: Atica,
escrita e analfabetismo. In: CHAVES, Rita. (org.) Brasil / África: como se o mar fosse 1982, p.05.
mentira. São Paulo:Editora UNESP; Luanda, Angola: Chá de Caxinde, 2006. p. 116. 10
Ibidem. apud Hampaté Bâ, Hamadou. A tradição viva. In: História Geral da
8
Salientamos que existem outras interpretações importantes sobre a temá- África. São Paulo, UNESCO / Ática, 1982. p.209.
tica do termo griot. Neste caso, estamos nos atendo à discussão e a própria 11
Ibidem, p.06.
222 223
são social de diversas sociedades africanas transformou histórico retratado tenha governado o Império do Mali
o papel do griot, em diferentes localidades. entre 1230 e 1255, após a guerra contra o rei de Sosso,
Apesar destas transformações, o historiador afirma que Sumaoro, que ocorrera entre 1220 e 1235. Sob seu coman-
ainda seria possível, nos dias de hoje, encontrar o griot do, o pequeno reino expandiu-se em um grande império,
quase que em seu antigo contexto, distanciando-se das assumindo uma hegemonia política sobre a região que
cidades, nas velhas aldeias do Mandinga, tais como Kába, perduraria até meados do século XV 12 .
Djeliba Koro, Krina, entre outras. Seria possível encon- Esta narrativa do griot, a respeito dos feitos de Sundjata
trar em cada uma dessas aldeias, ao menos, uma família Keita nos traz elementos interessantes sobre uma parte
tradicional de griot que conserva a tradição histórica e a da África Ocidental islamizada, ou seja, adepta da religião
na Guiné; na aldeia de Djêela, na província de Droma, na em sua linhagem um ancestral, Bilali Bunana, fiel servidor
Guiné; na aldeia de Keyla, no Mali; entre outros exemplos. do profeta Maomé, ele demonstra crenças em divindades
O livro de Djibril Niane ”Sundjata ou a Epopéia Man- como gênios — ancestrais — protetores de seu clã; além
dinga” teria sido fruto do contato deste historiador com de demonstrar poderes mágicos e divinatórios, próprios
griots tradicionalistas, mestres da palavra das aldeias de de seu clã de caçadores. Isto poderia ser explicado, segun-
Fadama e Djêela, principalmente o djeli Mamadu Kuyatê, do Djibril Niane, pelo fato de que “[...] Na África antiga, a
da aldeia de Djeliba Koro, na Guiné. Neste caso, o histo- magia era inseparável de toda e qualquer ação.” 13 Dessa
riador teria se colocado como um “tradutor”, dos relatos forma, o triunfo de Sundjata Keita sobre Sumaoro Kante
desses mestres a respeito da epopéia de Sundjata, deste- teria contado além de sua coragem e de seu exército, com
mido guerreiro que diante de vários percalços cumpriu muitas magias e feitiços. Niane afirma que “embora essa
seu destino tornando-se imperador do Império Mali, no
século XIII, após vencer Sumaoro Kante, o rei feiticeiro. 12
Para aprofundar os estudos sobre a gênese e expansão do Império Mali,
bem como a história de seu grande chefe Sundjata Keita, consultar: Niane,
A epopéia de Sundjata é comumente situada na pri- Djibril Tamsir. O Mali e a segunda expansão manden. In: NIANE, Djibril
meira metade do século XIII, durante o domínio Sosso da Tamsir (coord.). África do século XII ao XVI, História Geral da África. Brasília:
Unesco, 2010. v.4. p. 133-150.
região do Sudão Ocidental. Acredita-se que o personagem 13
Idem, p.149.
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guerra de fetiches e magia tivesse garantido a hegemonia da tico e, de alguma forma, intacto em relação à penetração
dinastia dos Keita, paradoxalmente foi o prelúdio da expan- da cultura Ocidental. O autor inclusive faz uma distinção
são do Islã, pois Sundiata fez-se protetor dos muçulmanos” . 14
entre este griot, “do antigo contexto” — cronista, genea-
O relato de Mamadu Kuyatê recupera o papel fun- logista, conselheiro, mestre da palavra — com o que é
damental dos griots neste contexto histórico específico, conhecido atualmente nos grandes centros. A palavra griot
retratando-os como importantes conselheiros tanto para quando mencionada em grandes cidades, traria a imagem
os reis como para seus príncipes sucessores: de pessoas ligadas a uma casta de músicos profissionais:
“pensa-se nesses numerosos violonistas que povoam nos-
No Mandinga, cada príncipe tem seu griot: o pai de Dua
sas cidades e que vão vender sua ‘música’ nos estúdios
16
Idem, p.06.
14
Idem, p.150. 17
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair
15
Idem, p.35. da modernidade. São Paulo: Edusp, 2013. p. XVIII.
226 227
Segundo Canclini, nos processos de hibridação, é pos- oralidade e dos saberes populares ligados à cura, à arte,
sível encontrar exemplos em que a cultura dos setores à espiritualidade e celebração – para ressignificarem, no
não-hegemônicos se apropria de tecnologias e “benefícios” contexto moderno, as culturas negras e também indíge-
da modernidade para usá-los em seu favor. Assim, são nas, com o intuito de realizar apropriações propositivas a
criadas estratégia de reconversão, na qual um patrimônio serviço da luta política, como instrumento de ação cultural
pode ser reconvertido para se reinserir em novas condi- e educativa.
ções de produção e mercado . Neste caso, poderíamos
18
Lílian Pacheco e Márcio Caires desenvolveram uma
dizer que o griot dos grandes centros, citado por Niane, apropriação do griot africano para o termo Griô e do con-
geralmente dotado de saberes e conhecimentos ligados à ceito de tradição oral, que através do Grãos de Luz e Griô e
localidades, sem deixar de transmitir seu legado cultural tradicionais e as populações detentoras desses conheci-
de tradição oral. Assim, verificamos uma ampliação da mentos. Entre outras consequências desta mobilização,
função e da significação da figura do griot, bem como uma citamos o surgimento da Ação Griô Nacional 19 , em 2006,
tentativa de resistência e ressignificação cultural diante e o Projeto de Lei nº 1.786, de 2011, em tramitação no
das transformações da realidade africana a partir dos pro- Congresso Nacional – também conhecido como Lei Griô
cessos de colonização e globalização. – que dispõe sobre a proteção e fomento à transmissão
É nesse sentido que podemos situar a apropriação dos saberes e fazeres de tradição oral no Brasil.
brasileira do griot africano: em um contexto de recriação
e reelaboração de práticas africanas no Brasil diante do
19
Convidado pelo Ministério da Cultura, o Ponto de Cultura Grãos de Luz e
processo de colonização e diáspora. Ao longo das últimas Griô, considerado referência nacional por este órgão, desenvolveu e coor-
décadas, movimentos sociais de caráter étnico e cultural se denou a Ação Griô Nacional em gestão compartilhada com a Secretaria de
Programas e Projetos Culturais, atual, Cidadania Cultural (SCC-MinC), lançado
reapropriaram de conceitos, valores e práticas de tradição em setembro de 2006 no Encontro Sulamericano de Culturas Populares. A
Ação surgiu apresentando a missão de criar e instituir uma política pública
africana e indígena – fortemente estruturados em torno da de estado que promovesse a valorização, sociocultural e econômica dos
chamados Griôs e mestres de tradição oral brasileiros na educação das
crianças e jovens, e o atrelamento dessa proposta com o espaço de educação
18
Idem, p. XXII. formal traduzia essa preocupação.
228 229
No Brasil, tanto as populações africanas em diáspo- forças vitais’’ 23 . Assim, as palavras na cosmogonia Yorùbá
ra, quanto as populações indígenas locais apresentavam revelariam o mundo concreto e a identidade cultural do
formas de organização em que a transmissão dos conhe- grupo:
cimentos e técnicas, bem como cosmogonias e a própria
uma vez que, a voz e a respiração constituem importan-
história e memória das comunidades eram transmitidas
tes instrumentos, tendo em vista que a oralidade das
de forma oral e se baseavam na experiência do mundo.
palavras é apreensão dos conhecimentos ao homem, a
Ainda que o processo de colonização tenha investido na
fim de que este encontre seu respectivo lugar e função
subalternização dessas culturas, por meio de estratégias
na vida social 24 .
de dominação do colonizado pelo colonizador, muitas
Olúmúyiwá Anthony Adékòyà, em seu livro ”Yorùbá: Brasil, no contexto da colonização e do tráfico Atlântico
tradição oral e história”, se debruça sobre o que o autor de escravizados, obrigou-os a enfrentar condições extre-
chama de “continuidades e inovações” encontradas nos mamente adversas no novo território. Assim, os Yorùbás
mitos e ritos no culto à divindade Ògún no candom- foram forçados à adaptação neste contexto, e segundo
blé dos Nagôs 21 brasileiros resultantes desse processo de Adékòyà, neste processo histórico perderam grande par-
“transformação e/ou interpretações das tradições Yorùbá te de sua memória coletiva e do conteúdo significativo
no Brasil” 22. O autor demonstra a importância das palavras das palavras sendo, por isso, observável diferenças no
na tradição Yorùbá, já que elas não apenas “promovem o cerimonial dos rituais dos Nagôs brasileiros, ainda que as
encontro dos homens com o sagrado, mas agem como referências sejam as raízes culturais africanas. Porém, o
construtoras da personalidade e como manifestações das autor conclui que mesmo a perda de elementos africanos
através do tráfico não são capazes de destruir por comple-
to a memória coletiva desses africanos no novo mundo.
20
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras,
1992. p.11-93.
21
Segundo o autor, Nagô é o termo utilizado para designar os Yorùbás no Brasil.
22
Adékòyà, Olúmúyiwá Anthony. Yorùbá: tradição oral e história. São Paulo: 23
Idem, p.151.
Terceira Margem, 1999. p.126. 24
Idem, p.152.
230 231
Assim, a reelaboração das tradições Yorùbás expressam à tradição vigente na Europa Ocidental, o uso que fazem
formas de resistência cultural que apresentam elementos da linguagem, da palavra falada. Ainda que a linguagem
comungados tanto pelos Yorùbás quanto pelos Nagôs: teria a palavra oral como fator primordial de expressão e
imagens e símbolos que representam suas divindades, comunicação, as apropriações que as diferentes culturas
pensamento, ação social e sentimentos comuns que se fizeram dela seria algo bastante significativo. Assim, Fon-
tornam presentes na memória coletiva dos africanos e seca aponta com Starobinski que a palavra e a linguagem
afrodescendentes. Dessa forma: no Ocidente teriam sido utilizadas como mecanismos
ideológicos e de obtenção do poder, além de haver nestas
A tradição e a reinterpretação se conjulgam no processo
sociedades, uma supremacia da palavra escrita pela palavra
232 233
latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o eletivo da reciprocidade comunitária” 30 e, entre os estratos
baobá já existe em potencial em sua semente 28 . mais pobres da população: indígenas, mestiços, negros
escravizados, alforriados, mestiços suburbanos, subpro-
É possível perceber que as palavras faladas nessas so- letários. Nesse contexto, estes estratos conformariam a
ciedades ligadas à tradição oral não apenas seriam depo- cultura popular brasileira, que segundo, Alfredo Bosi, para ter
sitárias da memória do grupo, mas apresentariam um pro- sua complexidade compreendida, deve ter considerada a
fundo valor moral e sagrado, estando vinculadas à origem indivisibilidade da esfera material da existência com a esfera
divina e às forças vitais que regem todo o cotidiano social. simbólica ou espiritual. Bosi afirma que a:
Na sociedade brasileira, as influências materiais e sim- sidades orgânicas e necessidades morais”. No geral, esta
bólicas das tradições orais africanas e indígenas se fizeram indivisibilidade seria difícil de ser apreendida pelo observa-
presentes, sobretudo, nos meios rurais, no “mundo mais dor letrado que “por não vivê-la subjetivamente, procura
recortar em partes ou tópicos a experiência popular, fazen-
do dela um elenco de itens separados, dos quais alguns
28
Segundo Hampaté Bâ, Tierno Bokar Salif foi um Grande Mestre da ordem
muçulmana de Tijaniyya, igualmente tradicionalista em assuntos africanos,
tendo passado toda a sua vida em Bandiagara (Mali). Hampaté Bâ, Amadou. A
tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-História da África,
História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. p.167. 30
APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio
29
Hampaté Bâ, Amadou.A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 223.
e Pré-História da África, História Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1. 31
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras,
p.174. 1992. p. 324.
234 235
seriam materiais, outros não” 32 . natural, iniciação à arte, história, divertimento e recrea-
Essa cultura formada pelas camadas mais pobres da ção, uma vez que todo pormenor sempre nos permite
população se desenvolveu, segundo Bosi, no “limiar da remontar à Unidade primordial. Fundada na iniciação e
escrita” e sobre o “ferrete da dominação”, a partir do fe- na experiência, a tradição oral conduz o homem à sua
nômeno da reinterpretação por meio do qual: totalidade [...] 34 .
236 237
Assim, ao falar de Griôs brasileiros, podemos citar ins- dos engenhos coloniais – com os griots africanos:
tituições religiosas tradicionais cuja importância é inegável
Toda África ainda mantém seus escritores verbais, ora-
na formação da identidade cultural brasileira que são os
dores das crônicas antigas, cantores das glórias guer-
terreiros e grande parte das manifestações de matrizes
reiras e sociais, antigas e modernas, proclamadores das
africanas como os congados, reisados, a capoeira, os ba-
genealogias ilustres. São os akpalô kpatita, ologbo, griotes.
tuques com suas cosmologias, linhagens, formas de orga-
Constituem castas, com regras, direitos deveres, interditos,
nização e transmissão de seus saberes e fazeres através da
privilégios. De geração em geração, mudando de lábios,
tradição oral. Tanto os pajés – das comunidades indígenas
persiste a voz evocadora, ressuscitando o que não deve
– quanto os zeladores de santos (babalorixá e yalorixá),
dizagem da palavra que conforma o lugar de cada um deles Nos ternos do congado, Catupé Cacundê 38 de Estrela do
na vida social das comunidades em que estão inseridos. Sul, Minas Gerais, o Capitão Griô Chico Mané – como é
Essas pessoas são reconhecidas pelas suas comunidades conhecido Francisco Valentim – faz um cântico para sau-
como referências, como mestres, “conhecedores” em seus dar São Benedito e nesse cântico ele conta a história do
saberes e fazeres. percurso da zona rural para a cidade grande, talvez no
Alguns autores que buscaram compreender as raízes de processo de migração dos negros escravizados que antes
manifestações culturais brasileiras demonstram corres- viviam no meio rural e agora seriam escravos de ganho
pondências e reelaborações de práticas culturais africanas nas cidades. Nesse cântico (ponto) ele introduz termos
e indígenas. É o caso de Luís da Câmara Cascudo, que re- em línguas de origens africanas, como reescreveremos
lata a presença africana nos contos orais aproximando a nesse trecho:
mãe negra brasileira 36 contadora de histórias – na casa grande
37
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. Belo Horizonte / São
36
Além de Luís da Câmara Cascudo, diversos escritores brasileiros como Paulo: Editora Itatiaia / Editora da Universidade de São Paulo, 1984. p. 143.
Gilberto Freyre, também se debruçaram sobre a arte de contar histórias 38
Para aprofundar os estudos sobre o Catupé Cacundê e a autoidentificação
das mulheres negras no Brasil. Consultar: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & como Griô e Mestre, consultar a entrevista feita com Mestre Alcides que
senzala. Rio de Janeiro: Record, 2002. se encontra nesta mesma edição da Revista Diversitas.
238 239
Quando eu fui para cumbara grande, (quando fui para cidade outros, como os terreiros de matrizes africanas, que há
grande) uma ressignificação do griot no contexto brasileiro, já que
eu passei no injó de jambê, (passei na igreja) as comunidades em que ele se insere nem sempre apre-
o n’nganga tava no artar, (n’nganga é um título de poder, pode sentam laços de parentesco consanguíneo, sua genealogia
ser uma imagem do santo daquela igreja) vem de sua iniciação dentro daquela prática.
eu com meu tipunga na mão, ( eu fiquei com meu chapéu na mão) Podemos afirmar que a busca por esboçar a identidade
ô marunga joelha no chão (ajoelha no chão), do Griô brasileiro, proposta política central da Ação Griô
côro: ô marunga joelha no châo Nacional, se justifica pelas raízes africanas e indígenas
calcadas na tradição oral, no contexto da colonização bra-
Senhora do Rosário e ao Divino Espírito Santo que vai ração de práticas culturais, historicamente subalternizadas
além da dança nos dias sagrados. Os laços que unem pelos colonizadores. Neste processo, tanto os africanos
o grupo vão além do parentesco consanguíneo, pois os escravizados quanto os indígenas sofreram violências
integrantes conformam um vínculo familiar sem terem, materiais e simbólicas que, contudo, não foram suficien-
de fato, o mesmo sangue. Porém, este vínculo cria laços tes para desfazer o vínculo com suas tradições. Estas se
profundos de solidariedade que motivam os mutirões assentavam em uma apropriação da palavra oral como
para construção de casas, auxílio nos trabalhos agrícolas, algo sagrado, profundamente decisivo na determinação
partilha dos alimentos, além da transmissão de saberes da harmonia e vida social da comunidade. Por meio dela,
relacionados a práticas de cura. O grupo é comandado os conhecimentos calcados na vivência de mundo, regido
pelo capitão do terno, Chico Mané, que se identifica como pela indivisibilidade entre o plano material e simbólico,
Griô deste grupo – o mestre de tradição oral que transmite eram transmitidos àqueles que deveriam ser iniciados em
seus conhecimentos para o segundo capitão, seu aprendiz, tais conhecimentos.
eleito e iniciado por ele para dar continuidade aos seus No Brasil, esta forma de transmissão dos legados cul-
ensinamentos. turais dos antepassados se desenvolveu principalmente
É importante observar neste caso do congado e em nos estratos mais pobres da população, sobretudo, com
240 241
ascendência africana e indígena. Ainda hoje, essas caracte- Referências bibliográficas
rísticas podem ser encontradas em diversas comunidades
cujas práticas são perpetuadas por meio da oralidade e ADÉKÒYÀ, Olúmúyiwá Anthony. Yorùbá: Tradição Oral e His-
ancestralidade. tória. São Paulo: Terceira Margem, 1999.
Percebemos que a temática da tradição oral, bem como APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da
a construção da figura do Griô no Brasil ainda são dis- cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 223.
cussões que necessitam de um olhar mais profundo que BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia
possa atentar para sua complexidade. Neste artigo, nosso das Letras, 1992.
intuito foi apenas de apresentar algumas discussões sobre BRASIL, Projeto de Lei n°1.786, de 2011, que institui a Política
em um país onde a diversidade de culturas assentadas em CALVET, Louis-Jean. Tradição Oral & Tradição Escrita. São Paulo:
formas não hegemônicas de conhecimento ainda têm que Parábola Editorial, 2011.
lutar por reconhecimento e valorização. CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para
entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2013.
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. Belo
Horizonte / São Paulo: Editora Itatiaia / Editora da Uni-
versidade de São Paulo, 1984.
CHAVES, Rita. (org.) Brasil / África: como se o mar fosse menti-
ra. São Paulo: Editora UNESP; Luanda, Angola: Chá de
Caxinde, 2006.
FONSECA, Dagoberto José. As relações Brasil - África sub-
saariana: oralidade, escrita e analfabetismo. In: CHAVES,
Rita. (org.) Brasil / África: como se o mar fosse mentira. São
Paulo: Editora UNESP; Luanda, Angola: Chá de Caxinde,
2006.
242 243
HAMPATÉ BÂ. Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. VANSINA, Jean. A tradição oral e sua metodologia. In:
(coord.) Metodologia e Pré-História da África, História Geral KI-ZERBO, J.(coord.) Metodologia e Pré-História da Áfri-
da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1 ca, História Geral da África. São Paulo: Ática/Unesco,
HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala 1982.v.1
de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Ne-
gro, 2005.
KI-ZERBO, J. (coord.) Metodologia e Pré-História da África, His-
tória Geral da África. Brasília: Unesco, 2010. v.1
____. (coord.) Metodologia e Pré-História da África, História
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