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O filme As estátuas também morrem [Les statues meurent aussi], de Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cocquet é fruto
da encomenda ao primeiro dos três cineastas, por parte da revista Présence Africaine, de um filme sobre a dita “arte negra”. A
Présence Africaine, fundada, em Paris, em 1947, afirmou uma geração de novos escritores africanos, entre os quais Aimé Césaire e
Léopold Senghor, que seriam autores decisivos da segunda metade do século XX.
Quando a nova Constituição francesa, falava ainda, em 1946, de “União Francesa” referindo-se à interdependência entre a metrópole
e os territórios não europeus sob domínio gaulês, a Présence Africaine inaugurava já uma perspectiva pós-colonialista, afirmando as
especificidades culturais de África e organizando-se em torno da noção de négritude.
Iniciado em 1950, As estátuas também morrem teve estreia no Festival de Cannes de 1953 e obteve, no ano seguinte, o Prémio
Jean Vigo, por um júri onde se contavam o cineasta Jacques Becker, o crítico Georges Sadoul e o escritor Jean Cocteau. Este filme-
colagem, tido por fundador de um género de documentário a que se chamou “ensaio cinematográfico”, surge num período de
violentas tensões políticas e resulta num delicado revelador deste mundo em transformação. Com a guerra fria, a Europa vive os
primeiros sinais da sua secundarização nos destinos do mundo, a favor de americanos e soviéticos, vendo-se dividida pelo muro de
Berlim, a partir de 1961. Neste contexto, e numa França que assiste à emergência dos movimentos internos pela descolonização, a
emancipação política dos países africanos até então sob sua influência não tardaria: Marrocos torna-se independente em 1956 e a
Argélia em 1962.
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As Vozes do Silêncio [Les Voix du Silence], livro de André Malraux, editado em 1951, assombra As estátuas também morrem,
pois que o filme é também uma resposta à ideia malrausiana da perpétua metamorfose dos objectos de uma cultura, no curso dos
tempos. Quando Malraux vê na museologização, a segunda vida de uma estátua – a sua ressurreição –, Resnais, Marker e Cocquet
vêm, pelo contrário, a morte da função social do objecto e o esquecimento dos aspectos fundamentais da cultura de origem que o
produziu. Donde, como anunciam na sequência de abertura do filme: “Quando os homens morrem, entram na História. Quanto as
estátuas morrem, entram na Arte. Esta botânica da morte é aquilo a que chamamos Cultura.”
André Malraux alertava para os perigos do pensamento nostálgico centrado no fundamentalismo das origens, repetindo que “nada nos
devolverá os sentimentos de um cristão do século XII”. A ressurreição que o museu opera é a devolução dos objectos a uma relação
viva, que não depende da empatia mas da intelecção. É justamente a relação empática que Malraux reprova na tradição arqueológica
germânica, aquela que inspiraria a pretensa adesão da Alemanha nazi ao ideal clássico, com as consequências históricas que
conhecemos. Para Malraux (como para Walter Benjamin), ver é ver hoje, num trabalho de actualização histórica das possibilidades
de significado e de leitura que cada objecto encerra.
Para os autores de As estátuas também morrem, o objecto confiscado ao seu contexto sócio-histórico de origem torna-se refém de
um fim estrito e imprevisto: a contemplação estética. “Nós olhamos a arte negra como se ela encontrasse a sua justificação no prazer
que nos proporciona” ouve-se no filme. Na encruzilhada da religião, do belo e da utilidade, a arte negra escaparia, ainda assim, à nova
institucionalização porque o museu não permite compreender “as intenções do negro que o criou, as emoções do negro que o
observou”, como diz o texto do filme na voz grave de Jean Négroni, concluindo que “tomamos por estátuas o que é o rosto de uma
cultura”.
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descrição (“Colonizadores do mundo, queremos que tudo nos fale: os animais, os mortos, as estátuas”). O filme lembra-nos: “Estas
estátuas são mudas.”
Ao filmar as colecções de arte africana do British Museum (em Londres), do Museé du Congo Belge (em Bruxelas) e do Musée de
l’Homme (em Paris), As estátuas também morrem faz-nos compreender que a nossa leitura da arte negra é essencialmente
etnocêntrica, pelo que “reconhecemos a Grécia num cabeça africana com 2000 anos; o Japão, numa máscara de Logoué; mas também
a Índia, os ídolos sumerianos, os nossos Cristos romanos ou a nossa arte moderna.” Ao mesmo tempo, a dita “arte negra” tornou-se
“uma língua morta” ou derivou para a expressão decadente do chamado “artesanato indígena” destinado a clientes europeus, “uma
arte de bazar” onde a “exigência religiosa” da criação e do rito teria sido substituída pela “exigência comercial” do bibelô e do
espectáculo. O negro escravo trabalha (em cadeia industrial como Ford nas terras de Tarzan) e o negro fantoche entretém.
Na Europa, por outro lado, os negros lutavam por uma cidadania de pleno direito, além dos lugares públicos confinados à música ou
ao desporto, mesmo se, para Resnais, Marker e Cocquet, um negro em movimento seja ainda “arte negra”.
É esse orgulho branco que, apesar de tudo, Werner Herzog não consegue colocar em perspectiva no seu Fata Morgana, filme rodado
em 1969 no deserto do Sahara e no Quénia, entre outras localizações africanas. Fata Morgana surge na vaga do Novo Cinema
Alemão, protagonizada por cineastas de esquerda (Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog, Wim Wenders e Werner Schroeter,
entre outros) que, a partir dos anos 60, procuraram estabelecer uma renovada cultura na Alemanha Ocidental, com manifesto repúdio
pelo passado nazi. Mesmo que não aspire aos princípios da narrativa tradicional e aparente querer descobrir a alteridade cultural, a
câmara de Herzog, em Fata Morgana, varre as paisagens com evidente certeza e o filme não ultrapassa o modo impressionista
compassado pelas diferentes escalas dos espaços, as texturas das matérias e os vislumbres de exotismo. A promessa da sequência de
abertura do filme em que, por oito vezes, assistimos à aterragem de um avião, repetição que nos faz aí compreender uma crítica
mordaz à abrupta imposição do colonialismo em África, no embalo do ritmo industrial e no sentimento do homem branco como
providência, não se vê cumprida pelo filme nas três partes em que se divide: Criação, Paraíso e Idade de Ouro.
A primeira parte, “Criação”, recita um texto sagrado do século XVI de índios da Guatemala, que inclui o mito maia da criação do
mundo, lido por Lotte Eisner. Lotte Eisner foi uma crítica de cinema alemã, judia perseguida pelo nazismo, autora de O Ecrã
Demoníaco [Die Dämonische Leinwand] (obra histórica de 1952 sobre o cinema alemão) e que, em França, trabalhou desde 1945
com Henri Langlois na constituição da Cinemateca Francesa. Tornou-se uma figura de referência para os jovens cineastas germânicos
da geração seguinte.
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Só na segunda e terceira partes – “Paraíso” e “A Idade do Ouro” –, os homens se tornam personagens do filme e surge a música de
Leonard Cohen e a poesia contemporânea.
O filme que, no projecto original, pretendia ser uma obra de ficção científica sobre um planeta em agonia e tem por título a expressão
italiana para “miragem” (que para alguns caracterizaria a cultura alemã, de que o cinema expressionista, com a figuração de estados
alterados da percepção é representativo), resulta numa viagem enfática por paisagens distópicas, formas de vida em territórios hostis
(um naturalista alemão discorre sobre as qualidades de um réptil do deserto que suporta elevadíssimas temperaturas), refinarias e
chaminés em chamas, a degradação das terras africanas pela sua exploração industrial e a limitação da sabedoria humana quando
comparada com a vastidão natural.
Como na sequência de As estátuas também morrem, em que avistamos num sobrevoo uma aldeia modernista de tipo colonial no
coração africano, enquanto África é definida como um laboratório, “desde há vários decénios”, onde se procura fabricar “o bom negro
sonhado pelo bom branco”, Herzog, em bom europeu, fantasia ainda com o bom selvagem e cultiva a nostalgia de um
planeta edénico.
Assim, As estátuas também morrem aventura-se numa reflexão política que o lirismo do cinema de Herzog nunca arriscou com a
mesma ambição e que custará ao filme de Resnais, Marker e Clocquet uma história de ímpares atribulações.
Num contexto de grande liberdade de imprensa, o cinema era, nos anos 50 e 60, objecto de um controlo oficial incomparavelmente
mais cerrado. As estátuas também morrem teve exibição interdita em França entre 1953 e 1963, sob vários pretextos que
escamoteavam motivações políticas, sobretudo pelas questões sociais que a terceira bobine do filme afrontava. Em Janeiro de 1955,
Léopold Senghor, então deputado, interpela directamente, numa sessão da Assembleia Nacional, o Ministro da França Ultramarina,
sobre as razões de proibição do filme, lançando a acusação de uma censura motivada “pelo preconceito de raça, condenado pela
Constituição.” No mesmo ano, Jean Rouch vê-lhe negado pelo Governo francês o pedido de uma autorização excepcional para a
projecção do filme, “apenas aos especialistas”, no âmbito do 1º Seminário Internacional do Filme Etnológico.
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As estátuas também morrem foi realizado um ano antes do primeiro documentário individual de Marker, Olympia 52, em torno
dos Jogos Olímpicos de Helsínquia; e dois anos antes do impressionante filme de Resnais, Noite e Nevoeiro [Nuit et Bruillard],
documento e comentário únicos sobre os campos de concentração e de extermínio nazis; ou de Hiroshima, meu amor [Hiroshima,
mon amour], a primeira longa metragem do cineasta, em 1959, sobre o horror da guerra e o traumatismo produzido pelo desencontro
cultural. As artes das culturas africanas só em 2000 seriam “integradas” no Louvre, pela criação do Musée du Quai Branly, iniciativa
de Jacques Chirac.
Em As estátuas também morrem, o ânimo da cultura africana é o rosto da morte do imperialismo europeu: donde, as imagens das
estátuas neoclássicas, corroídas pela chuva e pelos ventos, no início do filme. Mas também da morte e de como o labor das formas
inteligentes lhe faz frente. “O povo das estátuas é mortal” e, um dia, também elas se decompõem. Retenhamos o lamento cravado no
coração da Europa do século XX e que este filme nos repete: “Um objecto está morto quando o olhar vivo que pousava sobre ele,
desapareceu. E quando nós desaparecermos, os nosso objectos irão para onde nós enviamos os dos negros: para o museu.”
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