Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Limongelli, RM. 1
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Programa de Pós-Graduação em
Educação (EFLCH/PPGE).
rafaelimao@gmail.com
Resumo
Esse texto é uma tentativa. Uma mobilização das conexões musculares que
agenciam tendões e ossos no laborioso exercício de escrever algo, movimentar algo.
Procurei desenvolver três dobraduras sob uma superfície: a superfície do pensar-mover
em dança. Essas três dobras são operações. Operações que amputam a continuidade da
superfície do pensar-mover e avançam para campos novos, virtuais, não assertivos.
Disparo esse texto com a obra O Mesmo Lugar de Sempre2, um trabalho criado em 2010
pela J.Gar.Cia em São Paulo e os escritos de Deleuze e Guattari em linguagem.
1
Técnico em Artes Cênicas pelo Instituo de Artes e Ciências (2008), Cientista Social pela Pontifícia
Universidade Católica de SP (2014) e Mestrando em Educação no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de São Paulo (2015). Autor do livro Cretino (Editora Patuá, 2013). E-
mail: rafaelimao@gmail.com
2
Registro da performance, em 2010. Refiro-me, no texto, à performance de 2015.
https://vimeo.com/20510246
(...)
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei
finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
(Álvaro de Campos)
Por esses dias, e não há muito tempo, pude acompanhar a prática artística de
uma companhia de dança de São Paulo: ensaios, treinos, aulas, espetáculos, jantares e
cervejinhas, etc. Trata-se da J.Gar.Cia. Na direção o bailarino Jorge Garcia. E um
elenco composto por bailarinos e bailarinas exuberantes: Marina Matheus, Amanda
Raimundo, Willy Helm, Natasha Vergílio e Rafaela Sahyoun. Em 2014/2015 esta
companhia foi contemplada com o Fomento de Dança da Cidade de São Paulo para
remontar parte de seu repertório em 10 anos de existência. Dentre estes trabalhos
escolho um apenas para disparar algumas dobras. Disparador de um movimento-texto.
Estar à espera de alguém ou alguma coisa. Viver no mesmo lugar com as mesmas
pessoas. Estabelecer uma sociedade com regras e deveres, sugere a quatro seres
aprisionados em um espaço delimitado pela própria estrutura, instaurar um clima
de tensão e angústia onde esta espera constante será traduzida por seus movimentos
e sensações. Incorporando a sonoridade de uma peça televisa (He Joe) e um
3
Registro da performance, em 2010, com outro elenco. https://vimeo.com/20510246
Três elementos importantes para inventar essa conversa com algumas forças em
luta na gagueira-da-linguagem, na escrita-em-fluxo e no movimento cartográfico-de-
pesquisa.
Tentativa#1
Esse texto é uma tentativa. Uma mobilização das conexões musculares que
agenciam tendões e ossos no laborioso exercício de escrever algo, movimentar algo.
Procurei desenvolver três dobraduras sob uma superfície: a superfície do pensar-mover
em dança. Essas três dobras são operações. Operações que amputam a continuidade da
superfície do pensar-mover e avançam para campos novos, virtuais, não assertivos.
Juntas essas dobras podem formar um estranho objeto estriado com lisuras
expectantes de manipulação. Um quebra-cabeça inesgotável. Um pedaço de papel
amassado, polimorfo e sem significado. Um nada. Uma grande obra. Uma dobra. A
tentativa é desfazer da meta; ou seguir a meta para seu desvio. Seguir o trabalho de
provocar apenas essas pequenas dobras com o mover-em-cena e o pensar – associados.
O corpo deitado não suplica, não descansa, não sofre, não chora, não regozija.
Não afirma e não nega sua presença ali: está e não está ao mesmo tempo. Com a plateia
acomodada no seu lugar de plateia (uma série de sofás, tatames, bancos e cadeiras
diferentes entre si) mudam a luz e a sonoridade do espaço. Outro movimento se enreda e
o corpo permanece ali: assignificante, imóvel. Outros corpos surgem na arquibancada.
Vão aparecendo e se movendo como quem não quer se mover. Uma movimentação
quase-esgotada. Não se lê sentimento nas performers, sentimentos de dor ou cansaço.
Lê-se um esgotamento em mover-se. Todas vestem roupas quase iguais. Roupas
brancas, surradas, com ares oficiais: calças, camisas e ternos. E sapatos. Brancos e
surrados. Uma mesmidade na conformação de seus corpos.
É que a imagem não se define pelo sublime do seu conteúdo, mas por sua forma,
isto é, por sua “tensão interna”, ou pela força que mobiliza para esvaziar ou
esburacar, aliviar a opressão das palavras, interromper a manifestação das vozes,
para se desprender da memória e da razão, pequena imagem alógica, amnésica,
quase afásica, ora se sustentando no vazio, ora estremecendo no aberto. (Deleuze,
2010, p. 81)
É o que acontece quando a gagueira já não incide sobre palavras preexistentes, mas
ela própria introduz as palavras que ela afeta; estas já não existem separadas da
gagueira que as seleciona e as liga por conta própria. (...) Uma linguagem afetiva,
intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala. (Deleuze, 2011b, p. 38)
Beckett é um dos escritores que Deleuze utiliza como disparador para pensar
essa gagueira da língua. Comenta ser possível observar um sistema linguístico como um
‘estar em equilíbrio’, homogêneo. Nessa homogeneidade é possível mapear todas as
conexões possíveis entre os artigos e sujeitos e verbos e suas conjugações. As
possibilidades de dizer são todas previsíveis e equilibradas. Escritores como Beckett
fazem ruir essa concepção de língua, cultura e mundo. Tratam da língua maior
previsível, histórica, reconhecível, de uma maneira menor.
Então, operação por operação, cirurgia contra cirurgia, pode-se conceber o inverso:
como minorar, como impor um tratamento menor ou de minoração, para liberar devires
4
DELEUZE, Gilles. Sobre teatro: um manifesto do menos; o esgotado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2010.
fazer ruídos por sobre o palco. Inúmeras técnicas de dança são elaboradas para adestrar
o corpo dos bailarinos a não criar barulhos e ruídos em seus movimentos. Uma sanha
por linóleos brancos e pretos belíssimos em que os corpos fluem deslizantes.
“Nunca nada se acaba: a maneira pela qual um espaço se deixa estriar, mas também
a maneira pela qual um espaço estriado restitui o liso, com valores, alcances e
signos eventualmente muito diferentes.” (Deleuze e Guattari, 2012, p. 198).
5
Aeróbico é sinônimo de Aeróbio, que, segundo o Dicionário Michaelis, significa:
1. Que tem necessidade de ar ou oxigênio livre para viver. 2. Microrganismo que somente se desenvolve
em presença do ar. (http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-
portugues&palavra=aer%F3bio consultado em 30/11/2015)
Bibliografia
DELEUZE, Gilles. Bartleby, ou a formula. In Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34,
2011a.
DELEUZE, Gilles. Gaguejou.... In Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2011b.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1440 – O Liso e o estriado. In Mil Platôs. Vol.
5. São Paulo: Editora 34, 2012.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2014.