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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE


AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE
AMADOU HAMPATÉ BÂ

ANTONIO FILOGENIO DE PAULA JUNIOR

PIRACICABA, SP
(2014)
EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE
AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE
AMADOU HAMPATÉ BÂ

ANTONIO FILOGENIO DE PAULA JUNIOR

ORIENTADOR: PROF. DR.CESAR ROMERO AMARAL VIEIRA

Dissertação apresentada à
Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação
em Educação da UNIMEP
como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre
em Educação

PIRACICABA, SP
(2014)
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Unimep
Bibliotecária: Luciene Cristina Correa Ferreira CRB-8/8235

Paula Junior, Antonio Filogenio de.


P324e Educação e oralidade no oeste africano pela representação de Amadou Hampaté Bâ./
Antonio Filogenio De Paula Junior. – Piracicaba, SP: [s.n.], 2014.
158 f. ; il.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Ciências Humanas / Programa


de Pós- Graduação em Educação - Universidade Metodista de Piracicaba. 2014.
Orientador: Dr. Cesar Romero Amaral Vieira.
Inclui Bibliografia

1. Educação. 2. Oralidade. 3. África. 4. Tradição. 5. História. I. Vieira, Cesar


Romero Amaral .II. Universidade Metodista de Piracicaba. III Título.

CDU 37
BANCA EXAMINADORA

Prof.Dr. Cesar Romero Amaral Vieira

Prof.Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos

ProfªDrª. Anna Maria Lunnardi Padilha


AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela sua misericórdia.

Agradeço aos meus pais Etelvina e Antonio pela minha existência e educação. Esse

trabalho é dedicado a eles de todo o meu coração.

Agradeço a minha esposa Alexandra e o meu filho Kauê pelo apoio durante esta

jornada acadêmica. Agradeço a minha filha Luana que mesmo no ventre materno já

era fonte de inspiração e motivação.

Agradeço aos meus irmãos e mestres: Cosmo, Djop, Barcellos, Zequinha e

Lumumba. Aos amigos parceiros de caminhada: Vande, Vandeco, Mauro, Márcia,

Viviane, Elide e Dida.

Agradeço aos amigos da Biblioteca Pública Municipal: Lucila, Tite e Rosana pela

condição que me foi oferecida para realização do mestrado.

Agradeço ao meu amigo Alexandre Cruz por sua orientação na elaboração do

Projeto. Agradeço ao Djop, Acácio e Dida pelo apoio com materiais de pesquisa.

Agradeço aos funcionários, professores e alunos do PPGE – Unimep que sempre se

mostraram generosos e atenciosos as nossas necessidades.

Agradeço de maneira muito especial aos membros da banca: a Profª. Anna por sua

competência, cuidado e atenção, ao Prof. Acácio por me ajudar a compreender cada

vez mais uma África sujeito que ainda tem tanto a nos dizer. A sua amizade sempre

foi um grande incentivo.

Agradeço com muito carinho e respeito ao meu orientador Prof. César por me

acolher neste programa e por me dar a segurança intelectual e metodológica para o

desenvolvimento da pesquisa. A sua presença foi essencial.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior – CAPES – Brasil.


RESUMO

Educação e oralidade no oeste africano pela representação de Amadou


Hampaté Bâ

O trabalho tem como objetivo responder qual o papel da oralidade na educação do


oeste africano, tendo como objeto principal de investigação as ideias sobre
educação e oralidade contidas na obra Amkoullel, o menino fula do filósofo e mestre
tradicional do Mali, Amadou Hampaté Bâ (1900-1991). A tradição oral é uma das
fontes investigativas basilares para a historiografia da África. De acordo com o
historiador de Burkina Faso, Joseph Ki Zerbo (1922-2006), a oralidade ao lado da
escrita e da arqueologia, tendo como ciências auxiliares a linguística e a
antropologia, forma o material de pesquisa do historiador que investiga o continente
africano. Em nossa pesquisa buscamos perceber o papel que a tradição, conhecida
como tradição oral, desempenha na formação do homem africano. Esta pesquisa
justifica-se também pela necessidade de ampliar os conhecimentos sobre o
continente africano, já pensando na Lei Federal 10.639 de 2003, que institui a
obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas
do país. Deste modo, compreender melhor a África, também é reconhecer com mais
coerência a formação do nosso povo e suas matrizes culturais ampliando as
possibilidades do diálogo entre os povos.

Palavras-chave: Educação, Oralidade, África, Tradição e História


Abstract

Education and oral tradition in West African by the representation of Amadou


Hampâté Bâ.

This study aims to answer what the role of orality in education of West African is,
whose the main object of research is the idea about education and orality that comes
from ‘Amkoullel, A Fula Child’. It is a literary work made by philosopher and traditional
master of Mali, Amadou Hampâté Bâ (1900-1991). The oral tradition is one of the
basic investigative sources for the historiography of Africa. According to the historian
of Burkina Faso, Joseph Ki Zerbo (1922-2006), the oral tradition along with writing
and archeology that have linguistics and anthropology as auxiliary sciences form the
historian's research material who investigates the African continent. In our research
we seek to understand the role that tradition, known as oral tradition, plays in the
formation of African man. This research is also justified by the need to expand the
knowledge about the African continent, already thinking of Federal Law 10,639 of
2003, establishing the obligation of history teaching, African and Afro-Brazilian
cultures at schools of the country. Therefore, a better understanding of Africa, it is
also to recognize with more consistency a training of our people and our cultural
matrixes by expanding the possibilities of dialog between peoples.

Keywords: Education, Orality, Africa, Tradition and History.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: A África no contexto de um mundo descentralizado..........09


Capitulo I: A representação africana: avanços e desafios.............................25
I.1-Desconstruindo imagens: unanismo e afropessimismo............................32

I.2 - A África sem ilusões: Racismo e Antirracismo........................................41

I.3 – A África no contexto mundial: História e Cultura....................................54

I.4 – Nação e representação..........................................................................59

Capítulo II: A questão da memória.................................................................67

II.1 – A memória coletiva................................................................................73

II.2 – Memória e História.................................................................................80

II.3 – Memória e Oralidade..............................................................................84

Capítulo III: Saberes e Práticas Culturais........................................................95

III.1 – Palavra e Tradição................................................................................107

III.2 – Palavra, Espiritualidade e Cosmovisão.................................................117

III.3 – África e Brasil: Diálogos culturais para a educação...............................125

CONCLUSÃO: Uma educação para emancipação do ser humano................133

BIBLIOGRAFIA e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................139

ANEXO.............................................................................................................153
Anexo:

Figura 1 - Amadou Hampaté Bâ em Treichville (Abidjan – Costa do Marfim) em


1966. Foto de Philippe Dupuich extraída de Sur les traces d´Amkoullel, L´enfant
peul, Actes Sud, 1998 ..............................................................................................154

Figura 2 - Mapa da África Ocidental com delimitação dos países na colonização mas
apresentando algumas divisões anteriores, baseada nos territórios de alguns grupos
étnicos. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003) ....................................155

Figura 3 - Mapa do Mali apresentando a região em que Amadou Hampaté Bâ viveu


a sua infância e adolescência. Nesta região viviam vários grupos étnicos entre eles:
fulas, dogons, bozos, sereres, tucolores, diwambés, entre outros. Imagem do livro
Amkoullel, o menino fula (2003) .............................................................................156

Figura 4 - Mapa mais detalhado da região em que viveu Amadou Hampaté Bâ que
destaca a cidade de Bandiagara. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003)
.................................................................................................................................157

Figura 5 - Mapa da África Ocidental........................................................................158


9

Introdução
A África no contexto de um mundo descentralizado

Na atualidade torna-se cada vez mais evidente a percepção de que o mundo -


e aqui se diga o mundo humano dos sentidos e significados - não suporta mais uma
perspectiva hegemônica. A ideia de uma visão única e centralizada sobre o mundo
torna-se assíncrona de um momento histórico contemporâneo, que tem evocado e
provocado múltiplos (des)encontros entre diferentes pessoas e lugares. É neste
cenário que nos reencontramos também com o continente africano.
Ao longo dos anos, em especial a partir da modernidade, o continente
africano tem sido retratado por um olhar externo, impregnado de elementos
ideológicos, constituídos dentro de uma visão de mundo que prioriza os dados
culturais oriundos da Europa.
A África tem sido, ao longo de muitos séculos, alvo de interesses variados; na
maioria das vezes esses interesses estiveram ligados à exploração. Nessa
perspectiva, não foi possível estabelecer-se uma relação de compreensão e
entendimento, na qual o respeito e a valorização dos aportes culturais africanos
fossem reconhecidos.
Em praticamente toda a sua extensão territorial, a África é descrita pelo
ocidente de maneira diversa, sendo essa descrição alheia ao que de fato acontece
internamente em suas culturas. Esse olhar exógeno esteve muitas vezes imbuído de
ideologias que justificassem a relação que se desenvolveria com as populações
africanas. É nesse sentido que ao menos duas dessas relações se tornaram
emblemáticas e, digamos, traumáticas para muitas ações que aconteceriam no
continente africano posteriormente. São elas: a escravização, com a consequente
disseminação dessas pessoas para o novo mundo, e a colonização que estabelece
heranças políticas e econômicas delicadas ao continente africano, visíveis até os
dias de hoje.
O continente africano visto dessa maneira acaba por não ser conhecido de
fato, já que nesse contexto de uma visão hegemônica e de uma descrição apenas
externa, existe uma dificuldade de aproximação com os traços culturais da África.
10

O contato com a África solicita a participação efetiva desse continente no


diálogo mundial atual, e para isso é preciso reconhecer as suas expressões e os
seus modos de pertencimento.
A noção de pertencimento e de identidade não é homogênea para os próprios
africanos. Assim, na proposta de irmos ao encontro da África através de alguns dos
seus autores, ou seja, da África descrita a partir de sua própria percepção,
procuramos trabalhar com autores que a descrevessem de maneira também
endógena.
Essa condição descritiva é enfatizada por Castiano (2010)1, que trata essa
questão sob a perspectiva do olhar externo, percebido como um olhar objetivo e do
olhar interno, denominado de subjetivo. É necessária essa retomada de si mesmo
para pensar-se a África no contexto mundial de relações, mas tendo como base a
condição de que os africanos se percebam, se reconheçam e passem a dizer quem
são e o que buscam, em uma perspectiva também interior de sua identidade. Essa
análise e proposta de Castiano coincidem com Fábio Leite2.
Vejamos a sua constatação dessa condição objetiva e subjetiva do
continente.

Esta visão periférica é ainda impactada negativamente pela pouca pesquisa


de campo e fragilidade de dados realmente concretos, indispensáveis ao
conhecimento das sociedades de que se deseja falar, ocorrendo pela
combinação desses fatores à configuração da África-objeto a ser dissecada
e observada nos microscópios equipados com lentes impróprias para não
dizer partidas. (2013, p.36).

Então,

A essa visão periférica opõe-se outra corrente, que se pode denominar de


visão interna, nascida de uma metodologia diferencial, isto é, uma
metodologia cujos limites são estabelecidos por uma dada realidade
concreta, seja ela qual for, e não por outra. Isso é decisivo no processo
progressista de conhecimento de vez que faz captar a imagem da África-
sujeito e liga-se a uma atitude que deseja conhecer tanto a estrutura como a
dinâmica dos processos. (LEITE, 2013, p.36).

A nossa investigação parte deste princípio, de procurar ir ao encontro da


África para ouvir os seus agentes intelectuais, saber quem ela é, e, para isso, nos
voltamos para a obra “Amkoullel, o menino fula” (2003) como lugar privilegiado para

1
José Paulino Castiano é filósofo e historiador moçambicano do departamento de Filosofia da
Educação da Universidade Pedagógica de Maputo.
2
Sociólogo da USP, especialista em culturas africanas da costa ocidental.
11

obtermos essa percepção da África sujeito. Aproximamo-nos do texto como um


documento, no qual procuramos compreender a relação oralidade e educação no
oeste africano. Neste ponto é válido dizermos que o oeste africano é uma vasta
extensão territorial que não se constitui em uma unidade territorial, mas que
apresenta uma unidade cultural que estabelece uma proximidade entre os povos
que habitam esse local. De acordo com Hampaté Bâ (2003), aspectos como o valor
dado à palavra e o respeito aos mais velhos são comuns em todas as culturas.
Para realizarmos essa leitura da obra Amkoullel, o menino fula, precisamos
localizar o autor e suas memórias em um contexto histórico maior, procurando
compreender o que estava acontecendo na África no período de infância e juventude
de Amadou Hampaté Bâ. No período retratado na obra, aproximadamente de 1905 a
1921, pleno período colonial da África, o que estava acontecendo no local?
Temos na África nesse período, de acordo com Conceição (2006), a forma do
colonialismo contemporâneo, que fez por ampliar as bases europeias em território
africano e boa parte do território asiático. Essa colonização da África é estabelecida
pela Europa e procura a afirmação dos países europeus no cenário mundial. A
própria divisão territorial africana foi determinada por esses interesses
fundamentados em bases econômicas principalmente.
De acordo com Latouche

O ocidente fez mais que modificar seus modos de produção, ele destruiu o
sentido de seu sistema social ao qual seus modos estavam fortemente
aderidos. Desde então, o econômico tornou-se um campo autônomo da vida
social e uma finalidade em si mesmo. As velhas forças onde predominava o
ser mais foram substituídas pelo objetivo ocidental do ter mais. (1989, p.22)

Também somos levados a investigar o momento em que essas memórias são


trazidas à tona, já que Amadou Hampaté Bâ (1900-1991) coloca essas lembranças
no papel, já com a idade de 80 anos. Nessa idade, já havia assistido ao surgimento
de vários movimentos pela emancipação africana, em especial o movimento pan-
africanista e a negritude. Estes movimentos são fenômenos relevantes na
organização dos povos negros na África e nos países em que essa comunidade se
fez presente. Ambos buscam uma proposta de identificação de grupo em torno de
valores comuns, observáveis na cultura e na própria condição de exploração a que
são submetidos os negros em distintas sociedades. Hampaté Bâ é um intelectual
formado nesse contexto, tendo participado desses processos de maneira ativa. O
12

modo com que essas lembranças são trazidas à tona se torna bastante relevante
para termos uma noção mais apropriada do sentido de sua obra.
O texto Amkoullel, o menino fula é um registro autobiográfico da infância e
juventude de Hampaté Bâ, que foi publicado após a sua morte por Hélene
Heckmann, responsável por sua obra literária. O título original em francês é
Amkoullel, L´enfant peul. A palavra Amkoullel é o modo como Amadou Hampaté Bâ
era chamado quando criança e Fula ou Peul refere-se ao grupo étnico ao qual
pertence, que, de acordo com historiadores especialistas em etnias africanas, trata-
se de uma etnia que tem origem na África oriental e Península Arábica, mas que foi
migrando até o oeste africano em um longo percurso que permitiu que a cultura
desse povo seja complexa, revelando traços presentes em outros povos, ao mesmo
tempo que mantém as suas características próprias.
O autor escreveu doze obras ao longo de sua vida, tratando na maioria delas
sobre a cultura do oeste africano, com ênfase na sua região. Entre as obras escritas
por ele, podemos destacar: L´entrange destin de Wangrin; Oui, mon comandante;
Contes initiaques Peul; Contes des Sages d´Afrique; Vie e enseignement de Tierno
Bokar-Le sage de Bandiagara; Aspects de la civilisation africaine; Jesus vu par un
mulsuman; Kaidara; L´Empire peul du Macina, entre outras. Estas obras estão
publicadas em outros idiomas e mesmo na língua francesa estão disponíveis em
diversas edições. Porém, no Brasil apenas Amkoullel, o menino fula está disponível.
Hampaté Bâ era mestre tradicionalista, professor, historiador e filósofo
nascido em Bandiagara, no Mali, oeste da África, reconhecido no meio intelectual
dos pesquisadores sobre a África como uma das maiores referências sobre a
chamada cultura tradicional3. Concordando com Blaise (2012), podemos dizer que o
vasto conhecimento de Hampaté Bâ em várias áreas chega ser desconcertante. A
sua formação reunia o universo tradicional africano, o conhecimento islâmico e a
formação acadêmica europeia, tendo na Universidade Sorbonne, na França, a sua
base, o que lhe permitiu desenvolver e aprimorar uma reflexão relevante, capaz de
indicar possíveis caminhos para o diálogo entre as culturas tradicionais africanas, o
mundo islâmico e o mundo europeu, e assim, contribuir para a reconstrução de uma
imagem da África que saiba articular a perspectiva do olhar externo e interno.

3
A cultura tradicional está ligada à cultura nativa de transmissão oral.
13

A natureza desse encontro ou reencontro entre a África e o mundo ocidental


pode estar pautada na busca pelo ser humano, por aquilo que lhe seja mais caro,
talvez a ideia de felicidade, de beleza, que para Hampaté Bâ (2010) está
configurada na maneira com que o homem se coloca no mundo e no sentido que dá
a sua existência, que não é única, tampouco isolada. O homem é com o outro, é
com o mundo. Essa visão apresentada por Hampaté Bâ se coloca na contramão
daquela que Latouche chama atenção, que tem como característica o modo de
consumo estabelecido pelo ocidente, e o desconstrói “à potência mágica dos
brancos, ao status ligado a esse modo de vida” (1989, p.27). Um modo de vida que
privilegia o acúmulo de bens materiais.
A relevância de Amadou Hampaté Bâ para os estudos sobre a África já era
conhecida por seus contemporâneos, entre eles Joseph Ki Zerbo4, que reconhecia a
importância cultural e intelectual de Hampaté Bâ para que os dirigentes africanos e
os pensadores do continente pudessem refletir a África embasados em um universo
próprio de saberes, que já começava a se tornar desconhecido para as gerações
africanas mais jovens. Desse modo, nos diz que, “de tempos em tempos, tivemos
algumas luzes individuais que brilharam na noite, como faróis ou estrelas dos
pastores, como o historiador Amadou Hampaté Bâ, por exemplo.” (2009, p.137).
É nesta perspectiva de reconhecimento da obra desse autor que
procuraremos conduzir os estudos sobre a África do oeste sob a ótica da educação,
de modo a compreender o valor da educação tradicional africana no próprio
continente, assim como na formação da cultura brasileira, já que elementos dessas
culturas foram trazidos para o Brasil, através do processo escravista, e desse modo
foram sendo incorporados através das culturas negras aqui existentes ao universo
da cultura nacional. Conceição (2006) nos diz que o escravismo trouxe para o Brasil
cerca de 40% da população africana, o que deixa nítida a necessidade de
compreenderem-se os aspectos gerais dessa presença em território nacional com os
seus respectivos desdobramentos culturais, políticos, econômicos, sociais e
educacionais.
A cultura tradicional africana pauta-se essencialmente na transmissão oral
dos seus saberes. Aliás, segundo Ki Zerbo (2010), esse é um dos aspectos que
mais a tornam de difícil aceitação na lógica cartesiana ocidental, que entende a

4
Historiador de Burkina Fasso, país do oeste africano. Nasceu em 1922 e morreu em 2006.
14

tradição escrita como uma primazia e até mesmo uma condição superior de
civilização em relação aos povos de perspectiva oral. De acordo com Prins (1992,
p.163), “os historiadores das sociedades modernas, industriais e maciçamente
alfabetizadas – ou seja, a maior parte dos historiadores profissionais – em geral são
bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado”.
Devido a esse olhar, a história da África ficou submersa, pois se suspeitava da
possibilidade de uma construção histórica sem bases escritas.

Desde o início da história (isto é, da história escrita segundo o método


Ranke), a África tem sido vista como o continente a-histórico par-excellence.
Esta opinião foi consistentemente sustentada, desde a sentença de Hegel
em 1831, de que “ela não é parte histórica do mundo”, até a famosa
observação de Hugh Trevor-Roper em 1965, que ofendeu por uma geração
os clãs africanistas anticoloniais que rapidamente se proliferavam na época,
declarando que a África não possuía história, apenas evoluções sem
sentido e tribos bárbaras. (PRINS, 1992, p.164).

Hampaté Bâ (2013) relata que, quando foi falar aos europeus pela primeira
vez sobre as tradições orais do oeste africano, conseguiu apenas arrancar risos e
alguns chegavam a perguntar, em tom irônico, qual a utilidade dessas tradições para
a Europa. Naquele primeiro momento, e ainda sob o impacto dessa rejeição, ele
respondeu que seria a de devolver a alegria que a Europa havia perdido. Alguns
anos mais tarde, refletindo sobre essa resposta, também acrescentaria que uma
certa dimensão humana, pois a civilização tecnológica estaria fazendo
desaparecer o ser humano em sua totalidade. Essa visão demonstra o aspecto de
centralidade que esses intelectuais europeus atribuem a Europa: é como se o que
for estabelecido a partir dessa perspectiva é válido e o que for construído fora dela
não.
Essa situação a que Hampaté Bâ foi submetido não é diferente em muitas
instâncias do conhecimento, entre elas a filosofia e a história. Na filosofia podemos
verificar as análises de Martin Bernal (1987) em sua obra Black Athena em que
discute a pretensa origem grega do pensamento reflexivo. E na própria história oral
ainda existem desafios a serem superados para revelar e legitimar a oralidade no
campo da historiografia. Segundo Thompson (1992, p.45), “na verdade a história
oral é tão antiga quanto a própria história. Ela foi a primeira espécie de história. E
apenas muito recentemente é que a habilidade em usar a evidência oral deixou de
ser uma das marcas do grande historiador”. Nesse contexto, de acordo com Martin
Bernal, é interessante pensar que a base da civilização ocidental a partir de uma
15

tradição escrita revela fragilidade histórica em si mesma, já que a população grega,


assim como a população medieval eram iletradas em sua quase totalidade, o que
revela também uma base oral de sua cultura.
A história cultural enquanto escola historiográfica tem sido uma das vertentes
que não somente reconhece como também valoriza a investigação através da
história oral, sendo ela também uma das bases conceituais na formação de boa
parcela de historiadores africanos contemporâneos. Segundo François (2006, p.12),
“...a história oral tem uma função propriamente política de purgação da memória...”.
Este trabalho se insere no contexto investigativo da história cultural, tendo
nessa linha de pesquisa os elementos metodológicos que possibilitam avançar no
encontro com a obra de Hampaté Bâ.

A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objetivo


identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa
deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito a classificações,
divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como
categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real.
(CHARTIER, 1999, p.16-17).

A história cultural tem influenciado muitos pesquisadores africanos


contemporâneos, não sendo diferente com Joseph Ki Zerbo. Dessa forma, tem sido
possível estabelecer um diálogo dessa corrente historiográfica nascida na Europa
com o modo de ser da África. Muitos pesquisadores africanos tem encontrado na
história cultural, e mesmo na história oral, os subsídios apropriados para realizar a
descrição da representação africana. Vejamos,

Os melhores historiadores reconhecem também que ser historiador é


escolher o seu tema, os seus centros de documentação, as suas fontes, os
seus argumentos, a sua apresentação, o seu estilo e o seu público. Todos
estes fatores de eleição, sem contar com a força violenta e obscura do
subconsciente e com o peso sútil do ambiente social e dos preconceitos,
mostram bem a parte de subjetividade do trabalho histórico. A partir do
momento em que escolhe a todos estes escalões, o historiador procura não
somente a verdade, mas também a “sua” verdade. Foi por essa razão que
os maiores historiadores sempre tomaram partido nos seus livros, como na
sua vida. O grande prof. Marc Bloch, fuzilado pelos nazis, é um exemplo
entre muitos outros. (KI ZERBO, 1999, p. 34).

De acordo com Pesavento (2004), a história cultural foi ao encontro do outro,


conferindo-lhe autenticidade e valorização histórica. Assumiu os desafios de lidar
com o diferente. Nesse contexto, os povos de tradição oral, a partir de suas
16

representações, colocam-se na história e fazem história. Ir ao encontro desses


povos é tomar posse dos instrumentos necessários para procurar compreendê-los, e
nesse aspecto os métodos da história oral têm muito a oferecer.

A diversidade existe, os homens, étnica e culturalmente, apresentam


distinções e, nas relações sociais, de poder e econômicas, vivem e
reproduzem assimetrias. Mas, em termos da História Cultural, importa
resgatar como a diferença é percebida e representada pelos homens, o que
implica uma outra abordagem. (PESAVENTO, 2004, p.60).

Pode-se pensar que a história oral “é antes um espaço de contato e influência


interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e regionais; com ênfase nos
fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, oferecer interpretações
qualitativas de processos histórico-sociais” (LOZANO, 2006, p.16).
Joseph Ki Zerbo apresenta uma metodologia para se investigar a história da
África, em que aborda três aspectos de relevância: a arqueologia, a escrita e a
tradição oral5, tendo a tradição oral a grande marca de ser portadora de um saber
ancestral, imaginado como sendo talvez o que há de mais próprio da África,
refletindo uma possível essência do modo de ser africano. Daí a necessidade de
darmos a devida atenção a esse aspecto da história da África. A educação, assim
como a história do continente, não pode ser compreendida sem levar em
consideração a oralidade nesse universo cultural.
Ao elegermos a obra de Hampaté Bâ (2003), que transita em toda sua
narrativa pela tradição oral, como campo investigativo, pensamos estar nos
aproximando dessa África profunda, talvez ainda envolta em mistérios, escondida
sob véus para a cultura ocidental. O pesquisador Blaise (2010) também denomina
essa África da oralidade e da tradição de África profunda. Nesta busca
procuraremos esse desvelamento para que ela se diga em suas características.
Retomando a proposta de subjetivação e intersubjetivação6, indicada por
Castiano (2010), na qual está estabelecida a necessidade praticamente
fenomenológica de deixar a África expressar-se, é que buscamos na obra de
Hampaté Bâ uma maneira de nos aproximarmos do continente africano, para
responder a nossa questão: Qual o papel que a oralidade desempenha na educação
do oeste africano? Esta questão se apresenta como sendo basilar, pois dela parte a

5
Essa metodologia é descrita no primeiro volume da obra História Geral da África (2010).
6
Por intersubjetivação Castiano (2010) refere-se à necessidade do diálogo entre os próprios
africanos.
17

possibilidade de compreendermos não somente o papel da oralidade no continente


africano, mas também de nos referenciarmos de modo mais apropriado para
compreendermos a oralidade no contexto da cultura negra brasileira e sua utilização
nas práticas educativas no país.
É necessário repensar as práticas, os modos como a oralidade se dá no
cotidiano dos saberes culturais afro-brasileiros. Com isso pode-se pensar a sua
didatização e incorporação efetiva nas práticas pedagógicas. De acordo com Blaise
(2010, p.17), “todos os contingentes de escravos aos quais o Brasil deve a sua
vertente africana foram, sem exceção, filhos dessa tradição”. Ainda, segundo Blaise
essa constatação concorda com a análise do antropólogo Darcy Ribeiro que diz que
os negros do Brasil são oriundos em grande parte do oeste do continente africano.
Desse modo, a compreensão da oralidade no universo tradicional africano passa a
ter uma ligação direta com a cultura negra desenvolvida no Brasil, e
consequentemente precisa estar presente na escola não apenas como elemento
figurativo, mas como forma efetiva de uma representação dada a partir dos seus
membros. A oralidade é elemento formador da identidade e modo de ser da pessoa.
É neste ponto que percebemos também a relevância desta investigação.
Embora não seja nosso objetivo responder a questões de como essa implementação
da oralidade deverá ser feita na escola, esta pesquisa procura chamar a atenção
também para esse aspecto, pois o mesmo é necessário, mediante os desafios da
inserção das temáticas africanas e afro-brasileiras nas escolas do país. O
estranhamento ou a não compreensão dos aspectos da oralidade no continente
africano, em especial no oeste africano, tornam o entendimento das práticas
culturais recriadas no Brasil pelos escravizados ainda limitada em sua utilização nos
ambientes escolares. Dentre essas práticas pode-se pensar no samba, no maracatu,
no jongo, no batuque de umbigada, na congada, na capoeira e no maculelê, por
exemplo. Todas essas práticas trazem em seu conjunto algo muito mais profundo do
que os aspectos estéticos percebidos em um primeiro olhar.
Para a educação temos a oralidade como forma privilegiada na formação da
criança ou do adulto, já que, independente da alfabetização, ela garante não
somente a troca de informações - e com isso a transmissão de conhecimentos -
como também, segundo Ong (1998), efetiva de modo privilegiado o exercício da
memória e da reflexão sobre algo apreendido. Nesse sentido, é interessante
pensarmos sobre o trabalho educativo desenvolvido em comunidades quilombolas
18

no Brasil, entre elas as do Quilombo Ivaporonduva, localizado no vale do Ribeira no


estado de São Paulo, em que, de acordo com Luiz (2013), temos a preservação de
um saber ancestral conservado em grande parte devido à transmissão oral, que
mantém viva a memória da comunidade. Essas experiências educativas que
acontecem em comunidades tradicionais afro-brasileiras, tais como as comunidades
quilombolas, são heranças africanas recriadas no Brasil e que de algum modo
precisam ser reconhecidas nos conteúdos formais da escola. Observa-se que a
presença da oralidade na sala de aula pode ampliar as possibilidades do
conhecimento e da participação dos alunos nos processos de aprendizagem.
De acordo com Ferreira (2004, p.151),

Uma reflexão equilibrada sobre o oral não pode mais perpetuar a crença de
que, por ser mais natural, mais comum no cotidiano, frequentemente mais
espontâneo, é mais fácil do que o escrito e pode prescindir de
aperfeiçoamento para a aprendizagem. O oral é a condição essencial para a
existência de um idioma e esse atributo merece respeito: é vital no processo
interacional humano e merece atenção pedagógica.
.
Essa atenção pedagógica se faz necessária, pois reflete a atenção histórica
que se procura dar às comunidades, aos povos de tradição oral.
Na década de 2000 nos deparamos com uma série de conquistas do
movimento negro brasileiro, entre elas, a aprovação da Lei Federal 10.639 de 09 de
janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-
brasileira nas escolas do país. Essa lei foi uma alteração na Lei Federal nº 9.394 de
20 de dezembro de 1996, que vai ao encontro de uma pendência histórica do Brasil
em relação a um dos grupos que constituem a sua formação, o negro. A existência
dessa lei impõe a necessidade de formação de quadros de educadores para que
seja atendida essa demanda, com isto esta pesquisa pode contribuir também com o
processo de formação do educador que trabalha com a temática africana, através de
um tema central para se entender o fenômeno educacional no contexto da tradição
africana. Pode-se, deste modo, potencializar a eficácia da LDB, já que estando
amparada pela reflexão atenta aos aspectos étnicos propicia de modo mais efetivo a
oportunidade da pesquisa e o reconhecimento de práticas socioeducativas oriundas
das experiências das culturas de origem africana.
Ainda tivemos a Resolução nº1, de 17 de junho de 2004, do Conselho
Nacional de Educação, fundamentada no Parecer do mesmo Conselho, de 10 de
março de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
19

das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e


Africana7.

Nos cursos de formação de professores e de outros profissionais da


educação (...) de práticas pedagógicas, de materiais e de textos didáticos,
na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais e do ensino e
aprendizagem da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos. (...)
Estudo da filosofia tradicional africana e de contribuições de filósofos
africanos e afrodescendentes da atualidade. (BRASIL, 2004, p.22).

De acordo com Kabengele Munanga8, quando se pensa a formação do


docente e do discente, ainda é necessário que se verifique qual África ensinar e
como ensinar, já que os estereótipos sobre a mesma ainda são vários, e a carga de
negatividades enorme, sendo muitos os preconceitos a serem vencidos.

A Lei 10.639/03 coloca aos educadores brasileiros uma questão prática


ainda não totalmente equacionada. Trata-se de saber que África e que
Brasil negro transmitir aos alunos dos Ensinos Básico e Médio. A África é
tão complexa e diversa que fica difícil definir por onde começar, sobretudo
quando se trata de uma disciplina de iniciação do jovem num terreno repleto
de preconceitos acumulados durante o período escravista e colonial que
pavimentou a historiografia oficial e persiste até hoje no imaginário.
(MUNANGA, 2009, p.9).

É pensando também nessa questão bastante atual que a escolha pela obra
de Hampaté Bâ e pelo entendimento da tradição oral e sua ligação com a educação
no oeste africano nos parece ser uma porta de entrada válida, principalmente para
pensarmos uma história da África na perspectiva da educação brasileira.
No Brasil, sentiu-se durante muito tempo a carência de acesso a materiais
históricos e didáticos sobre o continente africano. Tal carência é minimizada na
década de 2000 quando leis, projetos e iniciativas públicas e privadas contribuíram
para o acesso a uma quantidade maior de material de pesquisa. Um exemplo desse
fato é a publicação na íntegra da coleção História Geral da África (2010), cujo
original era dos anos 80, mas que, no Brasil apenas eram encontrados em língua
portuguesa os três primeiros volumes. No entanto, em 2010, em uma iniciativa do
Ministério da Educação, UNESCO e UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)
foram disponibilizados em formato impresso e PDF os oito volumes da coleção, que
desde a sua proposta original tem sido um marco fundamental para os estudos

7
CNE/CP Resolução 1/2004. Diário Oficial da União. Brasília, 22 de junho de 2004, seção 2,p.11.
8
(1942-), nascido no Congo e professor da USP do departamento de ciências sociais /
antropologia. Também é do Centro de Estudos Africanos da USP.
20

sobre a África, já que se constitui em uma perspectiva subjetiva, em que os


pesquisadores africanos em sua grande maioria descreviam as principais
características do continente, proporcionando então um contato mais próximo com a
África. O próprio Amadou Hampaté Bâ é convidado para compor esse grupo de
pesquisadores, e no primeiro volume da coleção apresenta um texto emblemático,
que tem servido de base desde a sua publicação para compreendermos inicialmente
o universo tradicional africano. O texto chama-se Tradição Viva (2010); aliás, é
nesse contexto que Amadou Hampaté Bâ será reconhecido internacionalmente
como um legítimo membro das culturas tradicionais africanas e um sábio da velha
escola ancestral.
Vejamos o que nos dizem os senhores Vincent Defourny, representante da
UNESCO no Brasil e Fernando Haddad, então Ministro de Estado da Educação no
Brasil, em seu texto de apresentação da Coleção História Geral da África (2010).

A representação da UNESCO no Brasil e o Ministério da Educação têm a


satisfação de disponibilizar em português a Coleção da História Geral da
África. Em seus oito volumes, que cobrem desde a pré-história do
continente africano até sua história recente, a coleção apresenta um amplo
panorama das civilizações africanas. Com sua publicação em língua
portuguesa, cumpre-se o objetivo inicial da obra de colaborar para uma
nova leitura e melhor compreensão das sociedades e culturas africanas, e
demonstrar a importância das contribuições da África para a história do
mundo. Cumpre-se, também o intuito de contribuir para uma disseminação,
de forma ampla, e para uma visão equilibrada e objetiva do importante e
valioso papel da África para a humanidade, assim como para o
estreitamento dos laços históricos existentes entre o Brasil e a África. (2010,
p. 7).

Mesmo no campo literário, a dificuldade de encontrarem-se obras de autores


africanos no Brasil era elevada. Algumas iniciativas ainda dos anos 60 e 70 não
alcançaram os objetivos almejados, tornando-se pequenas experiências carregadas
de forte idealismo, mas sem apoio econômico e logístico adequado para o sucesso
das mesmas. Sendo assim, o acesso aos materiais, aos textos e autores
consagrados era restrito, tornando a temática algo muito distante da realidade da
maioria das pessoas e mesmo dos pesquisadores.
Porém, é necessário destacar o trabalho de intelectuais brasileiros e de
africanos radicados no Brasil, que sempre procuraram apresentar no meio
acadêmico e mesmo político a relevância da pesquisa sobre a África. É válido
ressaltar os pesquisadores Júlio Mourão, Kabengele Munanga, Fábio Leite, Alberto
da Costa e Silva, entre outros que há muitos anos cumprem a tarefa de manter viva
21

a pesquisa sobre a África no Brasil. Também a criação de vários centros de


pesquisa ligados a instituições acadêmicas fez com que estes pioneiros
conseguissem agregar discípulos oriundos dos mais variados cursos para compor
um quadro de pesquisadores de qualidade.
Ainda mais recentemente, em uma iniciativa também de pesquisadores
acadêmicos, vimos o nascimento da Casa das Áfricas, uma organização que tem
promovido em parceria com várias instituições nacionais e internacionais ações de
relevância no campo da pesquisa sobre a África, já trabalhando uma África diversa e
complexa em sua variedade cultural. É da Casa das Áfricas9, em parceria com as
editoras Palas Atena e UFBA (Universidade Federal da Bahia), que recebemos as
traduções da obra Amkoullel, o menino fula de Amadou Hampaté Bâ e África Negra:
Histórias e Civilizações Tomo I e Tomo II de Elikia M´Bokolo. Essas duas obras,
entre outras que estão sendo disponibilizadas em forma de textos online, estavam
disponíveis há muitos anos em idiomas como o inglês e o francês, mas não
despertavam o interesse de editoras brasileiras em sua tradução e publicação. É
necessário dizer que muitos textos foram traduzidos de forma voluntária pelos
iniciadores da Casa das Áfricas, entre eles o Prof. Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos
e a Profª. Drª. Daniela Moreau.
Sendo assim, desde o texto de Raymundo Nina Rodrigues, Os africanos no
Brasil de 1933, ainda repleto de uma visão europeizada, até agora tivemos um
aumento substancial na quantidade e na qualidade das obras publicadas, o que nos
permite uma segurança maior na realização de uma investigação cada vez mais
consistente a partir do modo de ser e pensar africano.
Hoje ao ter acesso a esses materiais e a boas traduções, a pesquisa pode ser
ampliada, e no nosso caso, esperamos colaborar com esta nova fase investigativa
sobre a África, já atendendo as nossas necessidades locais, contribuindo através da
educação nas relações África-Brasil.
A partir desse contexto, e procurando analisar melhor o aparecimento desse
tema enquanto pesquisa na área da história da educação, buscamos nos anais dos
congressos bienais da Sociedade Brasileira de História da Educação 10 nos anos de
2002, 2004, 2006, 2008 e 2011 verificar a incidência da temática sobre a África nas
pesquisas.

9
Ver www.casadasafricas.org.br
10
Ver www.sbhe.org.br
22

A pesquisa revelou o fato de que a temática africana não aparece em nenhum


trabalho. Apenas no ano de 2002 temos um trabalho que transita com uma pequena
proximidade com a questão, ao investigar alguns grupos africanos no Brasil e seus
descendentes, sem contudo fazer uma menção direta ao continente africano ou
mesmo a algum autor africano que realize uma análise educativa sobre a África.
As pesquisas encontradas reúnem discussões acerca da condição do negro
no Brasil, sendo a maioria voltada à perspectiva de entendimento das relações
étnico-raciais na educação, práticas de discriminação e ações voltadas à formação
de professores para atuação nessa área. Os trabalhos envolvem pesquisas de
campo, análise de documentos e bibliografia.
Entendemos que o maior conhecimento sobre o continente africano,
principalmente já especificando alguns tópicos de interesse, poderá não somente
fomentar a implementação da lei no Brasil, assim como apontar de algum modo,
como já dissemos, outros caminhos para a prática pedagógica no país, ao
reconhecer os pontos de correspondência das culturas negras no Brasil e sua
proximidade com as culturas tradicionais africanas.
Na atualidade quando se fala em África não se pode mais cometer o equívoco
da generalização; a África deve ser compreendida em suas múltiplas nuances,
oriundas da sua diversidade geográfica, humana e cultural. Sabe-se o quanto tais
dimensões foram minimizadas e estereotipadas em nome de uma homogeneidade.
Um olhar que não realizava distinções entre grupos humanos com experiências
civilizatórias trilhadas por caminhos próprios. Ao destituir essas diferenciações da
categoria de relevância para se estudar o continente, acaba-se por generalizá-lo de
tal modo que o melhor que se consegue é então apresentar uma caricatura de sua
gente e de suas expressões culturais. Para pesquisadores como Valentin Yves
Mudimbe esta é uma das características de uma África inventada.
Dessa maneira, e procurando ser mais coerente com a pesquisa, o presente
trabalho será então dividido em três capítulos. No primeiro capítulo procuraremos
reapresentar a África de modo subjetivo, através principalmente dos conceitos de
imaginário e representação11. A partir desses conceitos, outros surgem como

11
Conceitos importantes da história cultural que trabalharemos no primeiro capítulo com o
suporte teórico de Sandra Jatahí Pesavento e Roger Chartier.
23

suporte de análise, tais como: o unanismo e afropessimismo12, dois conceitos


bastante utilizados por pesquisadores do continente e que tem sido alvo de extensas
discussões entre os estudiosos.
Analisaremos o continente procurando conduzir a pesquisa sem cairmos em
outro campo perigoso, a da idealização fantasiosa, algo que já passa a ser discutido
como um afrocentrismo13, uma posição dialética, porém ingênua e equivocada em
relação ao eurocentrismo14. Dessa maneira, verificaremos como então têm sido as
relações da África com o mundo.
E na obra de Amadou Hampaté Bâ localizaremos o processo histórico colonial
e sua implicação para a cultura africana, verificando os impactos socioculturais que
colaboraram na formação da identidade africana. Teremos na análise de Ali
Mazrui,15 Elikia M´Bokolo16, Kabengele Munanga e de Kwame Anthony Appiah 17 e
dos historiadores Serge Gruzinski18, Roger Chartier19 e Michel de Certeau20, entre
outros, os auxiliares nesta caminhada.
No segundo capítulo adentraremos a questão da memória, e para isto
procuraremos entender o papel e a relevância da memória para a cultura tradicional.
Verificaremos através das pesquisas de Paul Ricouer21, Maurice Halbwachs22 e
Amadou Hampaté Bâ contribuições para se compreenderem as características da
memória para a tradição africana, entendendo o conceito de memória coletiva,
relacionando memória e história e memória e oralidade.
No terceiro capítulo procuraremos através das práticas e saberes culturais do
oeste africano, identificar a questão da palavra na tradição, entendendo a sua
ligação com o universo amplo da tradição oral, com a cosmovisão e a
espiritualidade, dando ênfase à presença do islamismo nessa região da África e na
própria vida de Amadou Hampaté Bâ, que terá nesse universo de formação fortes

12
Estes conceitos também serão tratados no primeiro capítulo.
13
Termo conceitual que se refere à tendência de ter a África como centro. Este conceito
também será melhor compreendido no primeiro capítulo.
14
O modo como a Europa se coloca como centro do mundo. O local de onde parte os
pensamentos e os processos civilizatórios. Um modelo dado e estabelecido.
15
Historiador queniano nascido em 1933.
16
Historiador congolês nascido em 1944. Atualmente é professor na Sorbonne.
17
Filósofo inglês, filho de mãe inglesa e pai ganense nascido em 1954. Atualmente é professor
de filosofia na Universidade de Princeton nos USA.
18
Historiador francês nascido em 1949.
19
Nascido em 1943. É também um dos nomes mais conhecidos da história cultural francesa.
20
Historiador de origem jesuíta (1925-1986).
21
Filósofo francês da corrente fenomenológica (1913 -2002).
22
Sociólogo francês (1877-1945).
24

elementos impressos no seu modo de ser e na maneira de conceber a sua


identidade. Com isto, esperamos responder a nossa questão em relação à oralidade
e à educação no oeste africano.
O desafio para esta jornada não é fácil, tampouco tranquilo. E nesta
perspectiva lembramos Ki Zerbo quando fala da função do historiador da África.

O historiador da África, sem ser um mercador de ódio, deve dar à opressão


do tráfico de escravos e à exploração imperialista o lugar que elas realmente
ocuparam na evolução do continente e que tantas vezes e tão habilmente é
minimizado por certos historiadores europeus, com resultados terríveis para a
mentalidade dos jovens africanos que nos bancos das escolas se
alimentaram destes manjares envenenados. (1999, p.35).

O presente trabalho não é um trabalho de história da África, é antes de tudo


uma investigação histórico-filosófica que pretende apresentar a África através de
outras possibilidades oriundas da cultura, buscando com isso alcançar as propostas:
de reapresentação da África por meio dos seus autores; compreender a oralidade na
educação do oeste africano; compreender o valor da educação tradicional africana;
auxiliar na formação de quadros de educadores para o trabalho com a temática
africana nas escolas; perceber a história da África na perspectiva da educação
brasileira e revelar a diversidade africana escapando das generalizações a ela
atribuídas.
Este é o desafio de trazer à tona aspectos desta história, já que ao estar
ainda muito presente na realidade das pessoas, quer seja na África ou no Brasil, e,
portanto, capaz de despertar sentimentos dos mais variados tipos, precisa manter-se
aberta ao diálogo, não fomentando a diferença como barreira, tampouco o
preconceito como caminho. Aliás, algo que, apesar das dificuldades sociais ainda
existentes, a própria cultura africana em sua dimensão artística tem sabido realizar.
Sendo assim, o campo da pesquisa investigativa e das relações sociais como um
todo pode promover o reconhecimento desses legados históricos como forma de
ampliação do olhar contemporâneo sobre a condição humana, e com isso
possibilitar novas contextualizações que sejam significativas para a humanidade,
colaborando para a proposta de novos caminhos para a educação.
25

Capítulo I
A representação africana: avanços e desafios

Olhei para frente. A proa da embarcação fendia as


águas sedosas e límpidas do velho rio cuja corrente nos
levava, como que para me arrastar mais depressa em direção
ao mundo desconhecido que me esperava, à grande aventura
de minha vida de homem.
(Amadou Hampaté Bâ)

Um dos desafios impostos ao continente africano através da Europa tem sido


o de romper com estereótipos que carregam em si as marcas do colonialismo, o que
determina a elaboração de pensamentos e ações que visam à opressão e controle
da vida social do colonizado. A imagem e a representação que o colonizador tem de
si tende a ser sobreposta à imagem e representação do colonizado.
Segundo Pesavento, “entende-se por imaginário um sistema de ideias e
imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas,
construíram para si, dando sentido ao mundo“ (2004, p.43).
E ainda,

A ideia de imaginário como sistema remete à compreensão de que ele


constitui um conjunto dotado de relativa coesão e articulação. A referência
de que se trata de um sistema de representações coletivas tanto dá a ideia
de que se trata da construção de um mundo paralelo de sinais que se
constrói sobre a realidade, como aponta para o fato de que essa construção
é social e histórica. (PESAVENTO, 2004, p.43).

Segundo o filósofo e historiador polonês Bronislaw Baczko, em seu texto


Imaginação Social (1985), durante muito tempo a palavra imaginação esteve ligada
a algo ilusório ou quimérico e agora passa a ocupar o lugar das coisas reais,
mensuráveis e perceptíveis na história do homem. É nesse contexto que tomamos
contato com a ideia de imaginário23, e consequentemente com a ideia de
representação, ou seja, como representamos estas imagens.

23
Ainda sobre o imaginário podemos pensar:
“O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. As
referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade,
mas definem também de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações com
ela, com as divisões internas e as instituições sociais, etc. [...] O imaginário social é, pois, uma peça
efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e
do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais.” (BACZKO, 1985.
p.310).
“O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de
espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível
26

A representação assim formulada é algo fixado sobre si mesmo, mas que está
permeando as relações com o outro. Desse modo, a representação da Europa sobre
si mesma tende a se sobrepor aos valores de representação da África, ou interfere
no modo como estas representações se efetivam. Assim, os africanos tendem a
representar-se influenciados através do retrato de um contexto social construído
pelo mundo ocidental, ora agregando valores positivos, quando se refere às riquezas
naturais do continente, ora negativos, quando se refere às pessoas e culturas
africanas. Essa representação assim dada estabelece o surgimento de outras
características que tendem a reforçar estereótipos, entre eles a própria
desvalorização cultural e simbólica. É neste sentido que de forma violenta e perigosa
percebe-se a modificação temporal de velhos (pré) conceitos, que vão adaptando-se
às características contemporâneas.

As representações do mundo sociais assim construídas, embora aspirem à


universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. Daí, para cada caso,
o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de
quem os utiliza. (CHARTIER, 2002, p.17).

Através da análise de Chartier pode-se então notar o quanto a constituição da


representação europeia exerceu influência e domínio na constituição da
representação africana.
De acordo com Pesavento (2004, p.41),

As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem


mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos,
que construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente
coletivo, e se apresentam como naturais, dispensando reflexão.

Face a essa condição a descrição que se constrói sobre a África, ainda


continua ligada a uma perspectiva oriunda do olhar construído na Europa. Mudimbe

evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é
desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a
representação do ser e parecer. Não será este o verdadeiro caminho da História? Desvendar um
enredo, desmontar uma intriga, revelar o oculto, buscar a intenção?” (PESAVENTO, 1995, p. 24).
“[...] uma realidade tão presente quanto aquilo a que poderíamos chamar de vida concreta,
uma dimensão tão significativa das sociedades humanas como aquilo que corriqueiramente é
encarado como realidade efetiva [...] sistema ou universo complexo e interativo que abrange a
produção e circulação de imagens visuais, mentais, verbais, incorporando sistemas simbólicos
diversificados e atuando na construção de representações diversas.” (BARROS, 2004, p. 92-94).
27

(1988) dedicou boa parte de suas pesquisas para entender este fenômeno e o
quanto ele ainda afeta a vida africana.
Nesta relação dialética na qual os valores da cultura europeia são
intencionalmente sobrepostos aos traços culturais dos povos africanos, existe pouco
espaço para transformação do modo como se observam os fatos. Esta situação era
imposta tanto no período colonial quanto no pós-colonial. Portanto, estava presente
no universo vivido por Amadou Hampaté Bâ.

Um empreendimento de colonização nunca é filantrópico, a não ser em


palavras. Um dos objetivos de toda colonização, sob qualquer céu e em
qualquer época, sempre foi começar por decifrar o território conquistado,
porque não se semeia a contento nem em terreno já plantado, nem em
alqueive. É preciso primeiro arrancar do espírito, como se fossem ervas
daninhas, valores, costumes e culturas locais, para poder semear em seu
lugar os valores, costumes e cultura do colonizador considerados superiores
e os únicos válidos. E que melhor maneira de alcançar este propósito do
que a escola? (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.326-327).

Percebe-se nesta reflexão o quanto a representação europeia, forjada ao


longo de séculos, fez com que uma série de crenças e valores próprios fossem
justificados como válidos, não somente para si mesmo, mas também para o outro.
Por isso, a necessidade de darmos atenção a esta relação que se efetiva na prática
colonial, pois a partir do colonialismo é que a Europa procura influenciar o modo de
ser do africano, e faz isto tendo como aliada também a escola implantada em acordo
com o modelo europeu.
Esta reflexão demonstra o quanto a educação é responsável pela reprodução
de discursos, e neste caso a substituição de um modelo africano por um modelo
europeu de educação carregada de valores culturais próprios se torna auxiliar na
constituição de uma representação africana exógena a sua cultura.

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:


produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade à custa de outros, por ela menosprezados, a legitimar
um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações
supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e
de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e
dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe,
ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus
e o seu domínio. (CHARTIER, 2002, p.17).
28

Esses conceitos são fundamentais para o nosso olhar para o continente, e


principalmente como Hampaté Bâ (2003) irá procurar dar ênfase à busca pelos
elementos culturais africanos para retomar uma educação própria, caso contrário, a
representação africana sempre estaria desfocada de si mesma, e assim acabaria
por ser projetada à revelia dos símbolos e valores do continente.
Sendo assim, qual a imagem que normalmente se tem da África? Como ela
ainda é vista, percebida pelo ocidente? Estas questões nos colocam diante da
condição africana, no sentido de buscarmos percebê-la não mais a partir das
categorias a ela atribuídas, mas a partir da maneira como ela própria procura
apresentar-se (representar-se), a partir dos seus próprios atores, dos seus próprios
sujeitos, de suas próprias referências e pertencimento.
Essa noção de pertencimento se dá na perspectiva da relação com o outro,
seja ele pertencente ao continente africano ou não. É necessário refletir que tal
perspectiva interna, própria do continente africano, não é homogênea, e, portanto,
apresenta o que está sendo discutido pelos africanos em relação a sua identidade,
local de pertença e consequentemente na maneira como procuram representar-se.
De acordo com Castiano (2010), esta subjetivação e intersubjetivação
africana é uma necessidade para rearticulação de sua própria imagem e
representação. A subjetivação, que tem por base principal a ideia de que os
africanos devem procurar em sua história e experiência civilizatória os elementos
que os constituem, se relaciona com a ideia de representação de Chartier (1999),
pois exige a análise criteriosa do seu lugar de pertencimento, do lugar que a África
se atribui na sua relação consigo mesma, daí também a necessidade da
intersubjetivação, ou do diálogo com os seus próprios atores, mas também com o
mundo a sua volta. A representação africana requer a apropriação eficiente e
consciente de si mesma, e para tanto não pode estar refém apenas do olhar que o
ocidente lhe atribui e com o qual a categoriza.
No caso da África, nota-se a necessidade de ouvi-la, para que se possa então
estabelecer mecanismos mais eficazes para se pensar a sua inserção no mundo,
assim como as suas condições de desenvolvimento, tendo a educação como vetor
principal para o desencadeamento desse processo. E, como nos diz Kabengele
Munanga, “é através da educação que a herança social de um povo é legada às
gerações futuras e inscrita na história” (2010, p.35). Nesse contexto, Hampaté Bâ
(2003) nos diz que a retomada do modelo de educação da África tradicional é um
29

dos caminhos possíveis e necessários para que essa construção da representação


africana a partir de si mesma possa ser feita a contento. A escola ou núcleo de
formação tradicional é uma possibilidade concreta de recondução do africano para o
continente africano. De acordo com a análise de Hampaté Bâ, pode-se dizer que o
processo colonialista na África teve além da exploração material do ambiente a
intenção de modificar o olhar do africano para si mesmo, para a sua cultura,
estabelecendo então condições de estranhamento e descontentamento de sua
própria cultura, em favor da cultura europeia.
Ainda sob essa perspectiva da educação é válido ressaltar que os povos e
culturas que passaram ou passam pela opressão acabam por estabelecer
mecanismos de resposta à condição a que são submetidos, a princípio como táticas
individuais, mas depois existe a organização dessas respostas e a constituição de
um espaço de confronto, de onde permite a sua articulação, agora como uma
estratégia, mesmo diante do quadro da negação ou subordinação impostos a esses
grupos pela cultura dominante. Nesse sentido, de acordo com Michel de Certeau
(2004), temos estabelecida uma lógica de invenção, na qual o sujeito explorado
redesenha o seu destino com criatividade, estabelecendo então um sentido de vida
em que se utiliza e aproveita daquilo que outrora seria um mero mecanismo de
poder e exploração. Essas culturas assim adaptadas, e permanentemente sendo
modificadas em acordo com a dinâmica existencial, possibilitam uma ruptura nas
ordenações do poder e na maneira como este tenta estabelecer um controle sobre a
sociedade.
Os conceitos de tática e de estratégia são categorias desenvolvidas por
Certeau para analisar as relações sociais estabelecidas e o modo como as pessoas
em condição de subjugação social e cultural conseguem transformar o seu cotidiano,
reinventando modos de fazer e operar com as coisas dadas em acordo com as
condições disponíveis. A isto Certeau denominou tática. Já o conceito de estratégia
é atribuído a quem está no poder, aquele que desfruta de um local do qual projeta o
seu olhar para o outro e com isso articula e procura formular os mecanismos de
controle social e cultural. No entanto, quando os grupos dominados se organizam e
se articulam, eles também passam a elaborar estratégias de resposta ao dominador,
e aí sim estabelecem uma condição de confronto que visa a modificações nos
quadros dados. No caso da educação como apresentada por Hampaté Bâ (2003) é
uma condição essencial da organização africana em torno de sua cultura, a
30

reapropriação da condição necessária de garantir a educação dos africanos voltados


para África, e assim prepará-los para dialogar com o outro, com o mundo.
É também com essa perspectiva de reinvenção do seu cotidiano que a África
e os seus filhos na diáspora fizeram por elaborar uma nova estrutura de participação
e discussão de sua condição no mundo. Essa representação do continente passa
então a ser da maior valia nas relações a serem estabelecidas com o mundo
ocidental, já que nesse contexto a compreensão do africano sobre si mesmo passa
não mais a ser permeada por valores apenas constituídos na Europa, normalmente
valores que os destituem de uma condição civilizatória. O que se tem a partir dessa
apresentação de Hampaté Bâ (2003) é a oportunidade e o direito de o africano
reconhecer-se e apropriar-se de sua história e dos seus traços civilizatórios a partir
do reconhecimento de elementos próprios oriundos de sua cultura.
A partir dessa percepção vários processos de resistência à opressão infligida
ao continente tiveram como vetor principal a ideia de recuperação e preservação de
traços culturais comuns que garantiam a dignidade da condição humana, mesmo em
um contexto de colonização. Nesse momento, a intensidade na busca por essa nova
representação africana se fez cada vez mais frequente. Amadou Hampaté Bâ tem
sua contribuição efetiva nesse contexto, principalmente ao afirmar o valor da
tradição africana e a sua forma de transmissão, o seu modo de promover a
educação, cuja chave é a oralidade.
Porém, antes de avançar sobre esta questão é pertinente ainda compreender
um pouco mais o que ocorreu historicamente no continente africano, e mesmo dos
negros na diáspora, na busca pela constituição da sua representação, os caminhos
pelos quais ela foi forjada, os seus desafios e principalmente por que a perspectiva
de Hampaté Bâ em favor dessa representação é válida, seja na África ou aos negros
na diáspora.
Através da narrativa de Amadou Hampaté Bâ no conjunto de suas obras,
aquelas com as quais nos deparamos e investigamos, em especial Amkoullel, o
menino fula (2003), assim como através de outros autores que nos auxiliam neste
percurso, procuramos então propor um trajeto que consideramos válido e relevante
em termos históricos no sentido de compreender por que determinadas palavras e
ações foram ditas e realizadas na busca por essa representação, a isto nos
referimos a própria organização dos movimentos negros e africanistas. O impacto
desses movimentos, seja no continente africano ou na diáspora é significativo,
31

marcando o início dos processos de independência desses países. Assim como


ajudam a organizar em torno de um símbolo comum a condição racial, as mesmas
angústias e traumas oriundos do processo escravista e colonial. Nesse aspecto,
verificaremos ainda como hoje tem sido discutida pelos intelectuais africanos ou
africanistas a proposta de uma unidade africana baseada no conceito racial e como
ela é apropriada pelos negros na diáspora.
A história da África, assim como a história dos negros, passa a ser reescrita
por eles mesmos a partir daquilo que lhes era mais próximo em suas culturas, com
os valores e símbolos que revelam uma identificação comum e a possibilidade de
uma identidade africana.
Esse cenário assim constituído nos dá uma dimensão mais pormenorizada do
pensamento de Hampaté Bâ, já que ele não somente viveu a sua infância e
juventude no período colonial africano, como viveu a experiência da educação
tradicional na África e a educação europeia, assim como o ápice de criação e
manifestação dos movimentos de identidade negra. Desta maneira, esteve
convivendo com essas discussões, sendo bastante ativo nesse universo por ser um
dos poucos representantes da cultura tradicional africana aptos a dizer o que ela é e
o que significa. Hampaté Bâ assistiu aos processos de independência dos países
africanos e às dificuldades na consolidação dos novos estados-nação. Portanto,
esse trajeto se faz pertinente para nos aproximarmos do continente africano e mais
ainda da África do oeste.
É necessário ter uma maior proximidade com o lugar de pertença de Hampaté
Bâ, o que nos prepara para investigar a oralidade na educação, a partir então de
algo factível, acessível a nossa condição, por não estarmos pisando no solo
africano, de não estarmos em campo no sentido prático do termo. Para entendermos
melhor o desafio dessa distância cultural e geográfica é válido entender o que afirma
Appiah,

A maioria das pessoas de hoje sabe como é difícil avaliar a vida e as


pretensões de outras culturas e tradições sem cair presa dos preconceitos
decorrentes das perspectivas das nossas. Quando deixamos de avaliar os
outros com imparcialidade, torna-se muito improvável receber deles
24
tratamento imparcial. Esse tipo de etnocentrismo , por mais que nos aflija,
já não tem como nos surpreender. (1997, p.22).

24
De acordo com Paula Carvalho (1994) o etnocentrismo consiste em dar privilégio a um
universo de representações, propondo que o mesmo seja um modelo a ser seguido. Com isto,
reduzem-se à insignificância os outros universos e culturas.
32

Essa análise de Appiah faz com que tenhamos o cuidado necessário para nos
aproximarmos do outro, já que estando imbuídos de valores culturais próprios
tendemos a estabelecer um juízo de valor à outra cultura baseando-nos na nossa
própria cultura e referência civilizatória, o que faz com que uma representação
acabe por sobrepor-se à outra, influenciando a sua constituição. A responsabilidade
científica, em especial nas ciências humanas, exige que se tenha essa atenção
despertada. Portanto, essa aproximação requer critérios e métodos próprios, que ao
serem estabelecidos permitem a condição de um diagnóstico coerente e sensato a
partir do nosso lugar. Nesse cenário é sempre fundamental compreender a
representação no seu contexto, na sua perspectiva dada, como afirma Chartier
(1999).
No entanto, parece que para o objetivo que se pretende alcançar, que é o de
responder qual o papel da oralidade na educação africana, a partir da obra
supracitada, o que se faz necessário é compreender o contexto dessa cultura, e isto
já foi dado por intelectuais africanos em obras que ainda carecem de mais estudos.
A proposta de avançar em uma investigação sobre a África, a partir de um
fenômeno específico, neste caso a oralidade, requer que se entenda a sua
construção, o que de fato levou aquela determinada estruturação simbólica e
representativa. Sendo assim, para entender o que Hampaté Bâ (2003) diz sobre a
tradição e a sua veemência em validar a relevância dessa prática é essencial tentar
compreender o que ele vislumbrou ao deparar-se com as condições tanto coloniais
como pós-coloniais, e quais aspectos educacionais que sentiu ser necessários para
a constituição dessa identidade africana tão almejada pelos líderes africanos no
período pós-colonial.

I.1 - Desconstruindo imagens: Unanismo e Afropessimismo

A partir da análise do olhar que o ocidente tem sobre o continente africano,


foram construídas duas imagens que corriqueiramente são acionadas. São elas: o
unanismo e o afropessimismo.
O conceito de unanismo, segundo o filósofo inglês Kwame Anthony Appiah,
na sua obra Na casa do meu pai (1997), foi cunhado pelo filósofo do Benin Paulin
33

Houtundji na obra Sur la philosophi africaine (1976) para explicitar a forma como
muitas vezes se vê a África, como um continente único, sem distinções, sem
diversidade cultural, sem características continentais.
O conceito de afropessimismo também é refletido por Paulin Houtundji (1976)
na mesma obra supracitada, e trata-se de antecipadamente atribuir-se uma negação
ao continente africano; consiste na afirmação da incapacidade africana na
superação dos seus problemas históricos e dificuldades emergenciais.
O unanismo é construído social e ideologicamente e impede uma
aproximação com o continente africano dificultando o entendimento das culturas e
dos povos, impossibilitando desta forma qualquer avanço na comunicação. De
acordo com Hountundji, o unanismo deve ser desconstruído de maneira emergencial
para que se avance nas possibilidades de um diálogo. A representação africana é
fragilizada quando permeada por estes dados, já que eles tendem a despersonalizar
as características próprias de cada país africano, de cada cultura africana.
Appiah afirma que toda e qualquer forma de construção ou reconstrução da
identidade africana deve procurar superar a ideia reducionista do unanismo e da
desvalorização contida no afropessimismo.
Esses conceitos devem ser analisados quando introjetados pelos próprios
africanos. Tal reflexão é alertada por Appiah, que chama a atenção sobre os
discursos de unidade africana que muitas vezes podem estar sendo cooptados pela
perspectiva do unanismo, o que retira de cada um desses povos a reflexão histórica
própria e as particularidades de sua cultura. Para Appiah, o discurso de unidade
africana deve ser pautado nas perspectivas socioeconômicas que colocam hoje
grande parte dos países africanos após a experiência colonial em condição bastante
assemelhada entre si, no sentido de ocupação de espaço efetivo no cenário político
e econômico mundial.
O unanimo é perigoso, pois pode manifestar-se de modo estratégico nas mais
variadas instâncias, desde as mais evidentes, tais como a percepção cultural
africana em sua forma estética, que tende a organizar ritos e símbolos africanos de
grupos étnicos distintos em um lugar comum, até as mais sutis, ligadas ao
pensamento africano que muitas vezes são quase imperceptíveis ao primeiro olhar.
Essa maneira de observar o continente africano tem em alguns dos modelos
educacionais ocidentais uma excelente forma de propagação. O mesmo acontece
com modelos de educação que apenas retratam a África como um continente
34

atrasado e selvagem, que, quer seja por ignorância ou intencionalidade, faz com que
a imagem africana permaneça em uma esfera única.
Da mesma maneira acontece quando se olha para os seus povos, sendo
todos igualados e nivelados em um ambiente comum, sem distinções de nenhum
tipo, e quando essas distinções parecem surgir, são então colocadas em outra
perspectiva comum, a diferença igualada no atraso civilizacional que representam.
Vejamos o que nos diz o historiador brasileiro, especialista em África, Anderson
Ribeiro Oliva,

Dessa relação de estranhamento versus entendimento, gerou-se uma


postura mais ou menos usual de filtragem cultural, ou seja, o uso de um
instrumental composto por valores, códigos e categorias comuns à cultura
do observador que contaminam ou influenciam o seu olhar sobre o
observado, e das interações entre os mesmos ao longo do tempo. (2007,
p.29).

A representação africana colocada diante da representação europeia pode


ficar fragilizada, já que os conceitos de negação construídos através da
representação europeia fazem com que uma força ideológica a partir da Europa
procure estar sobreposta à representação africana. Nesse sentido, a representação
africana estaria sendo efetivada a partir do interesse da representação europeia.
No entanto, de acordo com Appiah (1997) deve-se também rejeitar as contra
argumentações que apenas evoquem a ideia de uma África vitimada. Ela existe na
história, mas esta mesma África tem também em seu conjunto civilizatório uma
quantidade enorme de elementos socioculturais a serem refletidos e compartilhados.
É relevante o reconhecimento dessas contribuições pelos próprios africanos; é
necessário voltar-se para alguns traços de suas culturas, expressas na sua
diversidade e não em uma pretensa unidade, incapaz de revelar essa natureza vasta
de suas expressões culturais. É a partir desse reencontro com seus elementos
culturais que a África poderá construir uma representação valorativa de si mesma.
Hampaté Bâ (2003;2010) ao refletir essa questão, faz questão de afirmar a cultura
tradicional, a oralidade, como sendo esse alicerce do qual não se deve fugir.
De acordo com Oliva,

É certo também que, se esse exercício de interpretar outra cultura teve


encaminhamentos e consequências diversas ao longo dos tempos, alguns
de seus resultados se aproximam na perspectiva da exclusão ou
inferiorização do Outro/observado, principalmente daqueles que se
encontram física ou culturalmente em situação de grande divergência em
35

relação ao observador, ou da óbvia discussão de que o Outro assume,


muitas vezes, a condição de observador ou se apropria e manipula a
condição de observado. (2007, p.29).

A construção da representação africana, pelo que podemos apreender de


Appiah, não pode se dar a partir de uma imagem de vitimização, mas sim, a partir do
reconhecimento dos traços culturais africanos, dos seus valores, mas também da
reflexão crítica dos mesmos. Essa análise crítica deve ser feita pelos africanos e a
partir daí estabelecer o diálogo interno, intersubjetivo, tal como apresenta Castiano
(2010), e também o diálogo externo, mas em uma perspectiva de encontro entre
pares e não entre superiores ou inferiores em que as distintas representações sejam
reveladas apenas como forças dialéticas em busca do poder.
A reflexão de Oliva (2007) se aproxima da análise de Appiah (1997) e sugere
o conhecimento de suas referências culturais para que aquilo que Serge Gruzinski
(2001) percebe como encontro cultural, ou processo de mestiçagem, possa de fato
acontecer, mas de modo recíproco e qualitativo, em que os diferentes pares não
sejam desqualificados em suas contribuições, tampouco supervalorizados. Gruzinski
nos traz em suas reflexões a ideia da dinâmica cultural, do estabelecimento de
interfaces que se processam no encontro entre as pessoas, dos povos. De acordo
com essa perspectiva a cultura é alterada de modo dinâmico e constante, mas para
que a mesma se efetive de modo mais consistente é relevante conhecer o local de
onde elas partem, as suas referências anteriores, a partir dos seus atores e
produtores, ou seja, se um determinado grupo se vê subjugado ou alijado da
condição de conhecer ou reconhecer a sua própria cultura, existirá a tendência da
sobreposição do outro. A ideia aqui se refere à condição de representação, na qual o
sujeito ou grupo específico, precisa ter garantido o acesso a suas referências
históricas, sociais e culturais, e não somente àquelas a eles atribuídas. É essa
condição que Castiano (2010) e Leite (2013) defendem como o olhar interno,
subjetivo da África.
No entanto, em virtude do olhar negativo sobre a África e seus povos, oriundo
dos países do ocidente e a introjeção desse olhar por parte dos africanos, o que
Houtundji denominou de afropessimismo, o olhar negativo sobre o continente pode
levar à apatia em relação ao que se pensa sobre a África, assim como, em relação
às políticas de desenvolvimento humano a ela destinado ou das políticas
promovidas no próprio continente, que podem ocorrer em descompasso com as
36

realidades culturais locais, já que estão baseadas na representação do outro como


referência e não na construção efetiva da representação pautada na própria cultura
e os desafios que isso acarreta.
De acordo com Oliva (2007) essa visão afropessimista é reafirmada em
grande parte pelos meios de comunicação ao associarem o continente africano
somente à fome, à miséria, aos conflitos interétnicos e a AIDS por exemplo.
Raramente é mostrado algo de valor da civilização africana, algo como os seus
modos de percepção do mundo e do ser.
O conceito de afropessimismo como visto anteriormente é analisado tanto
pelo olhar externo como pelo olhar interno, sendo neste último caso mais complexo
e difícil, pois conduz a população a uma autoestima negativa 25, a negação de sua
própria história e cultura, a negação de sua imagem. Essa autoimagem inferiorizada
é construída pela representação afirmada do outro, que sempre se coloca como
centro referencial, de modelo a ser seguido. Embora o tempo todo especifique as
suas marcas de pertença, de grupo, do qual o outro subjugado não faz parte, ou
seja, mesmo que procure seguir ou imitar este modelo estabelecido nunca terá a
mesma condição desse modelo criado. Esse conceito declara uma condição de
permanência, de estado, tal qual foi um dia a ideia que se fazia crer do negro
escravo, como se fosse uma condição natural, sendo que na realidade eram
pessoas tornadas escravas, portanto escravizadas em um momento, em uma
condição, em um espaço.
O afropessimismo toma diferentes roupagens estratégicas e pode ser
pensado também em suas adaptações já destinadas aos negros na diáspora. Isso
ocorreu no Brasil de maneira bastante violenta e eficaz. Esse conceito é estendido a
tudo o que provém da África, em especial as pessoas, e nesse caso, essa marca
negativa que tem origem no colonialismo é então destinada aos negros em todos os
lugares em que eles estejam. Como adverte Munanga,

A desvalorização do negro colonizado não se limitará apenas a esse


racismo doutrinal, transparente, congelado em ideias, à primeira vista quase
sem paixão. Além da teoria existe a prática, pois o colonialista é um homem
de ação, que tira partido da experiência. Vive-se o preconceito
cotidianamente. Conjunto de condutas, de reflexos adquiridos desde a

25
Este termo refere-se ao processo de negação das próprias características, da própria
imagem. No caso dos africanos e seus descendentes, refere-se à negação ou vergonha da própria
cultura e da cor da pele. Para saber mais sobre este fenômeno é relevante a leitura da obra Pele
negra, máscaras brancas (2008) do psiquiatra Frantz Fanon (1925-1961).
37

primeira infância e valorizado pela educação, o racismo colonial incorporou-


se tão naturalmente aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que
parece constituir uma das mais sólidas estruturas da personalidade
colonialista. (2009, p. 33).

O afropessimismo tem levado ao limite do absurdo a expectativa de dignidade


no continente africano. Infelizmente, esse conceito quando naturalizado retira do
homem uma de suas principais características, a esperança. Esse homem assim
constituído é esvaziado de um sentido de vida, no qual não cabe projeto algum, já
que nada há de se esperar de algo já condenado. A eficiência psicológica do
afropessimismo e seus aplicativos destinados aos negros na diáspora são ainda
hoje um dos maiores desafios dos movimentos de direitos humanos. Por exemplo,
no caso do movimento negro existe uma série de dificuldades para recuperar jovens
e adultos de um trauma histórico, alimentado muitas vezes em sala aula, já na
primeira infância.26 Vejamos o relato de Hampaté Bâ ao descrever a sua convocação
para frequentar a escola ocidental.

Quando, de volta a Bandiagara, a vida parecia afinal retomar o seu curso


normal, sou brutalmente arrancado de minhas ocupações tradicionais que
sem dúvida me teriam conduzido a uma carreira clássica de marabu-
professor, para ser enviado a força à “escola dos brancos”, considerada
então pela grande maioria dos muçulmanos como o caminho mais rápido
para o inferno! (2003, p.209).

Essa experiência de Hampaté Bâ marcou profundamente a sua visão de


mundo e a busca pela desconstrução de imaginários depreciativos, seja pelo lado
africano ou pelo lado ocidental europeu na busca de um respeito mútuo e
aprendizado comum.
É possível perceber nesse relato de Hampaté Bâ o quanto é tendenciosa, na
constituição desse lugar de poder, de representação dada pela Europa, a negação
da cultura do outro a ser dominado. Os velhos sábios africanos viam no modelo
educacional proposto pela Europa um dos instrumentos mais eficazes dentro das
aldeias na despersonalização da criança africana, daí a expressão “de caminho mais
rápido para o inferno”, o que para eles significava estar apartado de si mesmo, de
sua própria história e cultura.
Na escola - seja no continente africano no período colonial, em que a
negação da língua e dos valores culturais locais era total no ambiente das escolas
26
Sobre racismo e educação infantil, é recomendada a leitura da obra Do silêncio do lar, ao
silêncio escolar (2006) da educadora brasileira Eliane dos Santos Cavalleiro.
38

dos colonizadores, ou no Brasil, por todo o período, ainda bastante recente, em que
os materiais escolares que se referiam à África apenas como um paraíso selvagem,
a terra dos grandes animais e dos homens nus -, a estratégia de não permitir ou
possibilitar ao negro o acesso a sua cultura e história, foi eficientemente
desenvolvida, momento em que se efetiva um olhar e se fortalece uma
representação a ser seguida.
De acordo, com o que diz Eliane dos Santos Cavalleiro,

Em estudos anteriores, foi possível comprovar que a existência do racismo,


do preconceito e da discriminação raciais na sociedade brasileira e, em
especial, no cotidiano escolar acarretaram aos indivíduos negros: auto
rejeição, desenvolvimento de baixa autoestima com ausência de
reconhecimento de capacidade pessoal; rejeição ao seu outro igual
racialmente; timidez, pouca ou nenhuma participação em sala de aula;
ausência de reconhecimento positivo de seu pertencimento racial;
dificuldades no processo de aprendizagem; recusa em ir à escola e,
consequentemente, evasão escolar. Para o aluno branco, ao contrário
acarretam: a cristalização de um sentimento irreal de superioridade,
proporcionando a criação de um círculo vicioso que reforça a discriminação
racial no cotidiano escolar, bem como em outros espaços da esfera pública.
(2005, p.12).

Para Cavalleiro a baixa autoestima de alunos negros no Brasil teve origem


não somente no contexto geral da sociedade, mas também em uma forte e basilar
referência na escola formal, já que, ao não tematizar questões de formação, tais
como o preconceito e a diversidade, acabam por expor os alunos negros a uma
representação sempre forjada para além de suas possibilidades.
Pode-se considerar que os ideais civilizatórios constitutivos no modelo
educacional não davam conta de revelar a origem e história dos negros, e com isso
a sua autoestima é constituída por valores que se constroem externamente a sua
condição histórico-cultural. A imagem projetada não se refere à imagem que se tem
de si mesmo e a representação dessa imagem desfigura ainda mais a condição do
ser negro. Por isso tornarem-se comuns as ideias construídas na Europa de que a
África, os africanos, ou mesmo os negros de modo geral são portadores de uma
condição inferior em termos intelectuais e civilizatórios. Esses aspectos
educacionais, sejam eles destinados aos africanos no período colonial ou aos
negros da diáspora, incluindo o Brasil, geram a negativação do indivíduo, o seu
enfraquecimento. Para Oliveira (2009), no Brasil sociólogos como Silvio Romero
fizeram questão de afirmar a herança trágica que a África deixa no Brasil,
39

procurando destacar aspectos como a preguiça, a desorganização e a falta de


criatividade como aspectos oriundos da presença africana em solo brasileiro.
É interessante que nesse aspecto poderíamos pensar em outra perspectiva
de imaginação distinta daquela pela qual estamos trabalhando, mas que nos auxilia
a entender a dimensão do impacto a que essa estratégia de dominação pode
conduzir o indivíduo. Este tipo de imaginação a que nos referimos agora tem a ver
com a psicologia e procura colocar o homem em contato com seu mundo interior de
imagens e representações e tem sido utilizado com eficácia em algumas terapias no
ocidente. Este tipo de terapia trabalha com aquilo que pode ser chamado de mundo
interior.

Poucos são os que sabem que, em princípio, é possível viver


alternadamente em dois mundos: no mundo interior e no exterior. Estamos
acostumados a viver somente no mundo exterior, e esse é o foco de nossa
vida. Empenhamo-nos em conhecer tanto desse mundo quanto nos seja
possível, e nossos pais e professores fizeram de tudo para nos explicar
como esse mundo é constituído e de que maneira se pode sobreviver
melhor nele. No entanto, também existe um mundo interior, embora
atualmente o tenhamos até certo ponto perdido de vista. Esse mundo
continua existindo e, sob certas circunstâncias, é possível que novamente
entremos em contato com ele. Isso acontece em várias formas de
psicoterapia; por exemplo, na terapia pela imaginação. (MIDDELKOOP,
27
1996, p. 9) .

Nessa perspectiva de terapia que agrega elementos simbólicos oriundos do


universo cultural e interior da própria pessoa, que talvez façam sentido apenas para
ela, é possível reconduzi-la ao equilíbrio de si mesma. No caso dos modelos
oriundos do negativismo com o qual a África e o negro em si são vistos, tem-se
assistido ao fenômeno da autoestima negativa como uma rejeição passiva ou ativa
do que se é. Esse tipo de terapia que recompõe este universo imaginário em diálogo
com a realidade tem sido um aliado nessas situações. E, o mais interessante, é que
tal perspectiva de abordagem do ser humano é capaz de conformar a sua cultura e a
sua história ao que ele é objetiva e subjetivamente.
Essa análise nos ajuda a perceber o quanto a constituição da representação
do negro na África ou na diáspora tem sofrido o impacto da interpretação externa a
que são submetidos. O olhar objetivo que Castiano (2010) chama a atenção. Essa
marca que se expressa na constituição sociológica do racismo e que traz em si uma
série de estereótipos destinados ao negro produz várias problemáticas que podem

27
Psicoterapeuta de origem holandesa.
40

levar ao extremo a autoaceitação, e com isso, a elaboração de uma representação


negativa, no qual se percebe em muitos aspectos a fixação em formas de pensar e
agir que dificultam que este indivíduo consiga superar as condições sociais a que é
submetido. No Brasil, o Instituto AMMA Psique e Negritude28 tem desenvolvido um
trabalho de referência sobre os efeitos psicossociais do racismo, procurando
elaborar a partir da cultura negra a valorização do sujeito, revelando a sua história
em uma dimensão livre das conceituações negativas exteriores. Através disso tem
sido estabelecida uma possibilidade de reconstrução desta autoestima, e com isso a
construção de uma representação positiva da criança negra.
Essa atenção que vem sendo dada ao aspecto psicológico da criança negra
no Brasil é estabelecida na tradição africana. Segundo Hampaté Bâ (2010), no
universo da cultura tradicional, da oralidade, o ser humano é visto em totalidade 29,
em seu conjunto. Essa visão integrada do ser humano recupera no ser o sentido de
sua existência e com isso a autoestima. Aqui já podemos perceber com maior
clareza o porquê de Hampaté Bâ ter dado tanta importância a essa cultura na
constituição da imagem e representação africana. Ela é um contraponto à ideia
racial imposta pelo colonizador, que conduziu a reconstrução africana a modelos de
representação que estiveram pautados essencialmente na ideia de raças humanas,
um conceito hoje bastante discutido e presente na sociedade, mas que, se por um
lado aproxima os africanos em torno de uma ideia de raça a que foram colocados,
normalmente não dá conta de expressar a diversidade cultural que trazem em suas
experiências civilizatórias. Portanto, entender essa resposta forjada pelos negros ao
racismo que foram submetidos, nos permite entender essa primeira representação
pós-colonial e diaspórica que fez com que houvesse uma aproximação do ser negro,
seja no continente africano ou fora dele, em busca do estabelecimento de sua
condição humana no mundo. Contudo, é imprescindível entender os desafios
posteriores que esta representação impôs, principalmente a África.

28
Algumas reflexões sobre essa temática podem ser conferidas no livro Psique e Negritude: Os
efeitos psicossociais do racismo (2008), que reúne entrevistas e depoimentos das experiências de
trabalho do Instituto AMMA organizados pela sua diretora Maria Lúcia da Silva.
29
Esse conceito é trabalhado de modo parecido com o olhar africano na antropologia filosófica
de Max Scheler (1874-1928).
41

I.2 - A África sem ilusões: Racismo e Antirracismo

A descrição que foi feita da África, assim como a ideia a ela atribuída, tem
como marca fundamental a noção de raças humanas30, e nesse contexto a
classificação racial entre superiores e inferiores. De acordo com M´Bokolo (2009), o
olhar para África foi, e muitas vezes ainda continua sendo, um olhar de racialização,
no qual estão embutidos valores construídos ao longo dos séculos e que procuraram
de maneira pseudocientífica justificar e autorizar a invasão e dominação dos países
africanos. Essa estratégia, de acordo com Certeau, é a marca de quem está no
poder, e com isso profere um discurso de legitimação. Esta análise coincide com o
que Chartier (1999) procura despertar a atenção para que as relações de
representação sejam devidamente analisadas em seus contextos. Nesse caso, a
representação feita pela Europa para si mesma foi a da superioridade intelectual e
espiritual, já a África e outros povos do mundo fariam parte da barbárie e da
selvageria. A percepção social que cada povo tem de si e que se coloca num lugar
central de onde profere seu discurso se enuncia nos dizeres de Chartier,

Não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e


práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à
custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador
ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas
(1999, p. 17).

A ideia de que um homem seja superior ao outro ainda prevalece em muitas


ocasiões, revelando um aspecto delicado da condição humana, a luta pelo poder em
detrimento do seu semelhante.
Munanga reconhece no período colonial as marcas da superioridade racial
presentes como justificativa das estratégias e práticas de dominação.

Convencidos de sua superioridade, os europeus tinham a priori desprezo


pelo mundo negro, apesar das riquezas que deles tiravam. A ignorância em
relação à história antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos
étnicos entre duas sociedades que se confrontam pela primeira vez, tudo
isso mais as necessidades econômicas da exploração predispuseram o
espirito europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do
negro e suas aptidões intelectuais. (2009, p.24).

30
Sobre a questão racial, especialmente no Brasil, indicamos o livro O espetáculo das raças:
cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930) da historiadora e antropóloga Dra.Lilia
Moritz Schwarcz.
42

A partir deste contexto, as relações entre estes grupos passam a ser


motivadas principalmente pela condição social construída, a ideia racial, que então
se torna a principal referência para ambos os grupos no seu processo de
identificação. Estava então estabelecido o mundo branco e o mundo negro, que
tomaria proporções ideológicas cada vez mais sofisticadas, transcendendo a
questão da cor da pele, como atesta Munanga:

O negro torna-se, então, sinônimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma


mentalidade pré-lógica. E, como o ser humano toma sempre o cuidado de
justificar a sua conduta, a condição social do negro no mundo moderno
criará uma literatura descritiva dos seus pretendidos caracteres menores. O
espirito de muitas gerações europeias foi progressivamente alterado. A
opinião ocidental cristalizara-se e admitia de antemão a verdade revelada
negro=humanidade inferior. À colonização apresentada como um dever,
invocando a missão civilizadora do Ocidente, competia a responsabilidade
de levar o africano ao nível dos outros homens. (2009, p.24).

Esse olhar foi muito bem constituído ao longo da história por renomados
intelectuais europeus, que em sua necessidade de atender a interesses de uma
época souberam eficazmente construir ideologias que pudessem dar conta de
minimizar ou destituir essa região do globo e seus povos de uma condição humana
legítima. Aqui é interessante analisar o tom incisivo do militante negro Stokely
Carmichael31,

Portanto, a situação que temos é que a história foi escrita, mas na realidade
ela foi assim distorcida. Acho que uma das maiores mentiras que a
sociedade ocidental podia ter dito era de dar a si própria o nome de
civilização ocidental. Agora por toda a história vimos estudando a civilização
ocidental, e isso significava que tudo o mais era incivilizado. E as crianças
brancas que hoje leem isto, jamais reconhecem que lhes estão dizendo que
elas são superiores a todos os outros porque produziram a civilização (...)
sim a civilização ocidental tem sido tudo, menos civilizada. Na verdade, tem
sido extremamente bárbara. Somos informados de que a civilização
ocidental começa com os gregos, e o epítome disso é Alexandre Magno. Só
que posso lembrar a respeito de Alexandre Magno é que aos 26 anos de
idade, ele chorou porque não tinha mais gente para matar, assassinar e
saquear. E isso é a epítome da Civilização Ocidental. (1968, p.50).

Os anos de 1960 foram marcantes na história do movimento negro nos


Estados Unidos, pois era o ápice das discussões e dos embates pelos direitos
humanos naquele país. Esse período também coincide com o das lutas de
31
Stokely Standiford Churchill Carmichael (1941 – 1998) foi um dos fundadores do grupo
Panteras Negras. Ao final de sua vida distanciou-se das ideias radicais dos panteras, e junto com sua
esposa Miriam Makeba (cantora da Africa do Sul), mudou-se para a Guiné, onde se tornou assessor
do presidente Ahmed Sekou Touré.
43

independência dos países africanos. Foi um momento em que as buscas pela


identidade africana e negra foram intensificadas, a luta pela representação se
fortalecia. É nesse contexto que vários movimentos se apresentam nos Estados
Unidos influenciando outras ações em outros países, inclusive no continente
africano. Entre esses movimentos temos: os liderados por Martin Luther King 32, os
muçulmanos negros com Elijah Mohammad33 e Malcom X34 e os próprios Panteras
Negras com Stokely Carmichael. Esses movimentos com formas de organização e
ação diferenciadas tinham em comum a luta pela questão dos direitos dos negros
naquele país e o reconhecimento e valorização de uma identidade negro-africana no
mundo. Era uma representação construída em oposição ao racismo ideológico da
Europa, em torno de uma identidade negra.
De acordo com Appiah (1997) a construção ideológica do racismo por parte
da Europa é histórica. É desse modo que Descartes, Locke, e mesmo Kant
considerado um humanista, não souberam poupar em suas reflexões a abordagem
de que esse lugar do mundo era o palco da penumbra. O filósofo alemão Hegel em
seus famosos cursos de história da filosofia chega a dizer que a África é um
continente destituído de história.
Vejamos,

At this point we leave Africa, not to mention it again. For it is no historical


part of the world; it has no movement or development to exhibit. Historical
movements in it-that is in its northern part belong to the Asiatic or European
world. (HEGEL, 1956, p.99).

O universo religioso também se fez exemplar nessa posição, veja-se a bula


papal Romanus Pontifex (1454) do então Papa Nicolau V, Tommaso Parentucelli,
que dizia da inferioridade de negros e índios. Ainda no universo religioso é possível
encontrar traços não menos marcantes em várias tendências religiosas do ocidente.
De modo geral, pensa-se que a espiritualidade seja um patrimônio do ocidente, e

32
(1929-1968) – Um dos mais importantes líderes mundiais no enfrentamento do racismo e na
busca pelos direitos humanos.
33
(1897-1975) Líder religioso de um seguimento dissidente do Islã, chamado Nação do Islã, que
pregava uma ideia de separação racial.
34
Al Hajj Malik Al-Shabazz é conhecido como Malcolm X (1925-1965), um dos mais
representativos líderes da comunidade negra norte-americana. Abandonou métodos radicais para
seguir uma perspectiva de diálogo entre os homens. Sua visão de mundo foi alterada quando fez a
sua peregrinação a Meca, cumprindo o ritual do hajj, e lá viu pessoas de diferentes culturas e origens
étnicas convivendo em igualdade e respeito.
44

que as formas mais elaboradas de expressão religiosa sejam daí decorrentes.


Vejamos o que nos diz o teólogo suíço Hans Kung,

Nós europeus não temos nenhuma razão para nos considerarmos


superiores, pois... De onde viemos? Também nós, por evolução,
procedemos da natureza. E o que existia entre nós antes da escrita, antes
da história escrita, antes da ciência? Primeiramente na fria Europa da idade
do gelo, o primitivo homem de Neandertal. Com sua fronte diminuta e uma
herança genética em parte diferente da nossa, ele não foi nosso ancestral
direto, mas de qualquer modo era um parente do homo sapiens. Também
ele já possuía uma admirável e elevada cultura: sepultava seus mortos,
cuidava dos idosos e dos doentes, presume-se que possuísse uma
linguagem evoluída. Extinguiu-se há cerca de trinta mil anos, deixando o
lugar para o homo sapiens, o homem atual. Causa-nos surpresa saber que
também na Austrália foi encontrado o esqueleto de um homo sapiens do
sexo masculino com trinta mil anos de idade. Estava coberto de ocre, o sinal
mundialmente difundido da ideia de uma vida após a morte. Ou seja, esse
homem, ao que tudo indica, foi sepultado ritualmente. Um primeiro
testemunho claro da cultura e da religião entre os primitivos! Então o que é
cultura? Na cultura ou civilização, em sentido lato, a religião sempre está
incluída. Cultura é o conjunto de conhecimentos e procedimentos que
caracterizam uma determinada sociedade humana, sejam eles de natureza
técnica, econômica, científica, social ou religiosa. (2004, p. 22).

Hans Kung ainda reflete que a base do pensamento religioso está no


continente africano, pois este é o berço da humanidade. Vejamos,

O homem é um ser que incessantemente reflete sobre suas origens na


religião, na filosofia, nas ciências. Muitos sábios acreditam que o homo
sapiens, o homem assim como ele é hoje, se teria desenvolvido em
diversos lugares do mundo. A maioria dos pesquisadores, no entanto, com
base em convincentes e também recentíssimas descobertas, estão
convencidos disso: o homo sapiens provém da quente e selvosa África
tropical e subtropical, muito provavelmente do Great Rift Valley siro –
africano ao norte do Zambeze. A África é, pois, nossa origem comum.
(2004, p.38).

Na história ocidental um dos mitos mais conhecidos e utilizados ainda na


construção e legitimação dessas distinções raciais talvez seja o mito camítico. De
acordo com Munanga (2009,p.29), “segundo ele, os negros são descendentes de
Cam, filho de Noé, amaldiçoado pelo pai por tê-lo desrespeitado quando este o
encontrou embriagado, numa postura indecente”. A partir de uma interpretação
intencional e não contextualizada do texto bíblico, a maldição de Noé destinada ao
filho Cam, descrita em Gênesis cap.9:22-27, estava legitimada a condenação do
negro.
45

Segundo Edwin Black em sua obra “Guerra contra os fracos” (2003)35, quando
Francis Galton, primo irmão de Charles Darwin, emprestou muitos dos elementos da
teoria da evolução das espécies para criar a sua própria teoria de evolução do
homem, soube também com muita propriedade caricaturar com nome de ciência
uma ideologia que pretendeu legitimar a superioridade dos povos não negros sobre
os demais. Essa teoria foi bem desenvolvida atingindo outros povos, sendo
financiada por empresas conhecidas no cenário mundial, entre elas a IBM 36 e a
Ford, ajudando nos investimentos dessa pesquisa inventada sobre dados imprecisos
e irreais, que declarava explicitamente a valorização de um ser humano sobre outro,
pautada em valores terminantemente raciais, dividindo a espécie humana em raças,
cujas funções sociais eram estabelecidas pela maior ou menor possibilidade do uso
da razão. Tal empreita não atinge mais somente os povos africanos e negros de
modo geral, mas também ciganos, entre outros, que, quer seja por uma atribuição
racial, opção sexual ou religiosa, estavam marcados pela condenação diante de uma
sociedade estruturada em valores ideológicos homogêneos e fechados.

Nos Estados Unidos, a campanha de extermínio de grupos étnicos inteiros


não foi empreendida por exércitos bem armados nem por seitas que
cultuam ódio as minorias. Ao contrário, essa perniciosa guerra enluvada foi
promovida por respeitados professores, universidades de elite, ricos
industriais e funcionários do governo que conspiraram um movimento
racista e pseudocientífico denominado eugenia. O objetivo: criar uma raça
nórdica superior. (BLACK, 2003, p. 19).

O historiador Elikia M`bokolo, reafirma essa mesma opinião.

O trabalho dos homens de ciência produziu também de maneira mais


insidiosa, ao lado das reconstruções históricas mais refletidas e mais
duradouras, estereótipos tanto mais persistentes, pois apareciam
aparelhados com todos os emblemas da legitimidade “científica“ ou
acadêmica, ao mesmo tempo em que confortavam as falsas evidências do
senso comum. Será um dia necessário, no próprio interesse do
desenvolvimento do trabalho histórico na África mais do que pela busca de
uma polêmica, empenhar-se em dilucidar a arqueologia mais antiga destas
teorias e mitos “científicos”, a sua genealogia, a sua filiação até os nossos
dias. (2009, p.49).

Um dos momentos mais críticos da história humana, e que ao mesmo tempo


foi a apoteose do pensamento racial de caráter eugênico, se dá com o advento e a

35
Nesta obra Edwin Black trata do pensamento eugenista e dos seus desdobramentos na
sociedade contemporânea.
36
Ver também de Edwin Black a obra A IBM e o holocausto (2001).
46

plenitude do nazismo sob a égide endeusada de Adolf Hitler37, que fez revelar ao
mundo, à custa de uma estética distorcida, aquilo que pretendia ser uma raça
perfeita, a raça ariana. Esse momento da história traduziu muito bem a ambiguidade
da condição humana, a da sapiência e a da demência. Se somos capazes de amar e
criar, somos capazes de odiar e destruir; estava, pois, dada a fragilidade de muitas
de nossas reflexões.
Porém, a experiência eugênica teve na África o seu início mais aterrorizador.
Autores como Catherine Coquery Vidrovitch38 desenvolvem pesquisas que revelam
que foi no massacre do povo herero da Namíbia que as experiências com campos
de concentração tiveram início. Nesse país foram desenvolvidas pesquisas em seres
humanos, levando muitos deles à morte. A Namíbia sofreu com esta ação em 1840,
ou seja, 100 anos antes do episódio nazista. No entanto, o massacre do povo herero
ainda é pouco conhecido e divulgado.
Essa representação forjada ao longo de séculos na Europa foi imposta ao
mundo pela força militar, pela mídia, pela educação e cultura. O que temos então é
um cenário constituído por uma representação que, mesmo já estando desgastada
em muitos aspectos, não deixa de se sobrepor as outras.
Tem-se ainda a busca pelas constituições de representações dos outros
grupos, mas ainda fortemente influenciados pelas características deixadas e
herdadas da perspectiva europeia. Hampaté Bâ (2004) reflete essa situação como
um confronto cultural em que os grupos subordinados procuram com um esforço
muito grande lembrar-se do que são, da cultura que possuem, mas também é
enorme o esforço daquele que a todo preço insiste em ocupar a posição de
centralidade e referência.
O teólogo e filósofo Leonardo Boff, na sua obra A voz do Arco Irís (1998), fala
da necessidade do outro, em que as diferenças entre as pessoas não deveriam, e
não devem ser utilizadas como muros que as separam, mas sim, como pontes para
novos encontros.

37
Sobre o pensamento de Hitler é indicada a leitura de seu texto autoral Mein Kampf: Minha
luta, no qual descreve as suas motivações e esclarece a maneira eugênica pela qual acreditava que a
sociedade alemã devesse ser estabelecida.
38
Historiadora francesa especialista em estudos sobre a África. Autora de vários livros sobre a
temática da colonização e o seu impacto nas civilizações africanas. Entre estas obras estão Afrique
Noire: permanences et ruptures ( 1985 ) e L´Afrique occidentale au temps des Français, colonisateurs
et colonisés: 1860 – 1960 ( 1992 ).
47

Gruzinski (2001, p.16) afirma que “a mestiçagem seria a extensão calculada


ou suportada da globalização no campo cultural, ao passo que a defesa das
identidades se ergueria contra o novo Moloch universal“. O conceito de mestiçagem
ajuda a refletir a natureza desses encontros, assim como possibilita verificar e
entender melhor a necessidade do reconhecimento cultural oriundo da diversidade
humana, frente a formas de representação centralizadas e homogêneas.
É esse cenário que, quando não discutido e refletido, permite que muitos
povos no mundo sejam observados por valores e categorias que os destituem da
condição humana. São olhares construídos por métodos das ciências, da filosofia,
da própria história, que possibilitaram que fosse constituída uma educação da
inferiorização e da negação. Desse modo, a marginalização ou mesmo a
invisibilidade do outro foi propagada.
A partir das reflexões de Cavalleiro (2005) pode-se pensar que no Brasil a
formação do educador que trabalha com uma realidade pluricultural que revela a
diversidade do povo brasileiro deve tomar o cuidado de sensibilizá-lo, sendo
provocadora de uma consciência crítica sobre a condição humana. Nesse caso,
essa diversidade deve ser vista como um fenômeno o qual se abraça com o intuito
da inclusão e da participação comum na construção de uma sociedade em que
todos se sintam participantes. Esses encontros historicamente acontecidos em solo
brasileiro retratam de modo especial o que Gruzinski analisou sob a ideia de
pensamento mestiço. Aliás, é necessário certo cuidado com o entendimento deste
conceito de Gruzinski, pois ele não diz respeito à banalização dessa mistura, mas,
pelo contrário, diz respeito ao entendimento e à valorização dessas diferenças
culturais e à interação entre elas dentro de uma dinâmica existencial própria da
cultura, e que esta sim torna o ser humano mais capaz para seu desenvolvimento.

As ciências sociais começam a nos fornecer pistas e luzes sobre a questão.


Uma antropologia livre enfim de seu fascínio pelos povos selvagens e uma
sociologia sensibilizada pela mistura dos modos de vida e imaginários têm
muito a nos ensinar sobre o alcance e o sentido das mestiçagens que se
desenvolvem por toda parte diante dos olhos. (GRUZINSKI, 2001, p.44).

A análise de Gruzinski procura dar conta de um fenômeno intenso que


estamos vivendo oriundo de um momento da história atual, no qual as relações
humanas e os contatos entre os povos foram intensificados devido aos meios de
comunicação e tecnologias avançadas. No entanto, essa comunicação não alterou
48

de fato a natureza profunda dessas relações e os nichos de poder estabelecidos


pelas formas de representação centralizadas que ainda são motivadores da forma
como se estabelecem a natureza desses encontros. Para Gruzinski um dos desafios
de hoje é exatamente compreender a relevância desses encontros, as modificações
no cenário cultural que são propostas e a procura por garantir que as diferentes
culturas sejam reconhecidas nesse cenário de mudanças.
No entanto, a questão racial é ainda bastante complexa, tanto para estudar as
civilizações africanas como também as relações étnicas no Brasil, pois se não
existem raças efetivamente falando em termos biológicos, essas ideias raciais
fizeram por gerar o racismo, no qual grande parte da organização social se
constituiu, delimitando lugares sociais bastante formais para os diferentes grupos
humanos, inclusive no Brasil. A representação racial através da ideia do “ser
branco”, estabeleceu lugares e posições nítidas na sociedade que ainda insistem na
sua condição de poder.
Embora alguns sociólogos, antropólogos e historiadores no Brasil e no mundo
rejeitem a ideia racial, entre eles Yvone Maggie 39, Demétrio Martinelli Magnoli40,
propondo que o que ocorreu nesses processos de conquista e dominação foi
caracterizado por motivos sociais e não raciais, o fato é que se o mesmo não tivesse
ocorrido o fenômeno de reorganização mundial dessas pessoas a partir da ideia de
raça não teria acontecido. Aliás, como diz Munanga (2009), se a raça é
biologicamente rejeitada em comprovação científica, ela é sociologicamente
comprovada pelo que gerou o racismo, no qual pautaram-se as ideologias de
desenvolvimento político e econômico que moveram por séculos os países europeus
em relação à escravização e à colonização da África e ao “descobrimento“ da
América e Caribe.

Dizer que não somos racistas é negar uma infinidade de vivências e


evidências que estão por todos os lados. Como tantos de nós, sei de casos
de racismo contra pessoas de alta renda e/ou alta escolaridade – professor
universitário negro barrado por porteiro na portaria da faculdade em que
trabalha, estudante negro da graduação abordado e agredido por policiais,
aluna negra da pós-graduação associada a ocupação manual que não exige
nenhuma escolaridade. Nesse sentido, estar sentada na minha confortável

39
(1944-). A autora é uma especialista em religiões afro-brasileiras, possuindo trabalhos de
relevância nesta área. No entanto, questiona de modo incisivo as políticas de ação afirmativa, em
especial as cotas. Para saber mais http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/03/em-
entrevista-professora-yvonne-maggie-afirma-racas-nao-existem.html acesso em 20/08/13.
40
O autor nasceu em 1958. Ver a obra Uma gota de sangue: história do pensamento racial no
Brasil (2009).
49

posição de branca me dá uma enorme vantagem: ninguém pode me acusar


de estar sendo passional, de ser mais uma das “vozes iradas do Movimento
Negro”, expressão que li, indignada, numa resenha sobre o livro, ou de
estar tentando dar aos casos da minha vida privada uma conotação
científica, argumento barato com que se tenta com frequência, desconstruir
o que dizem os acadêmicos negros sobre racismo. (MIRANDA-RIBEIRO,
2006, p.377).

Este é o trecho de um texto intitulado Somos racistas (2006), em forma de


resenha crítica sobre o livro Não somos racistas (2006), do jornalista e sociólogo Ali
Kamel, responsável pelo setor de jornalismo da rede Globo de televisão, no qual o
autor defende com veemência a não existência de racismo no Brasil, procurando
com isso desconstruir as políticas de ação afirmativa 41 conquistadas ao longo de um
processo histórico do movimento negro e que visam à cidadania plena e uma real
inserção social do negro no Brasil. Lembrando que a Lei Áurea 42 em seus dois
artigos não garante em nenhum momento as condições de vida social e econômica
para a população negra. Adentramos a república no ano de 1889 e essa situação se
mantém. Somente na década de 2000 é que começam a se constituir oficialmente
no país as políticas reparatórias dos danos causados pela escravidão da população
negra e genocídio das populações indígenas, estes últimos têm, com a inclusão da
obrigatoriedade do ensino de sua história e cultura na atual Lei Federal 11.645 de 10
de março de 2008, o início de um reconhecimento formal na educação brasileira.
Ainda no caso brasileiro, somente se faz notar com a argumentação desses
autores contemporâneos um velho conceito, o da democracia racial, que aparece
em obras literárias e acadêmicas que reforçavam a ideia de uma igualdade social
entre negros e brancos pautada na cordialidade e boa convivência. Essa teoria, que
aparece na obra Casa Grande e Senzala (1994) e também em Sobrados e
Mocambos (1961) do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, foi desconstruída, e é hoje

41
As políticas de ação afirmativa representam o resultado de anos de lutas do movimento
negro em busca da condição de uma cidadania plena. Essas políticas visam atender as principais
necessidades desse seguimento da população, oriundas tanto do processo escravista quanto de uma
república que não garantiu direitos legítimos à educação, ao trabalho, à moradia e à saúde. Em um
processo bastante tardio no Brasil essas políticas passaram a fazer parte da realidade das
discussões públicas voltadas à população negra. As cotas universitárias são apenas um exemplo de
políticas de ação afirmativa. Vale dizer que o termo cota tem causado estranhamento em boa parte
da população brasileira, porém se o entendermos como reserva, notamos que a sua prática é
histórica no Brasil. Veja por exemplo a reserva para trabalho, moradia e educação destinadas aos
imigrantes que vieram para o país. Ver Decreto nº 4.228, de 13 de maio de 2002 que institui, no
âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4228.htm Acesso em
20/08/13.
42
Ver Lei n. 3353 de 13 de maio de 1888.
50

denominada pelos estudiosos como o mito da democracia racial. A posição desses


intelectuais apenas faz afirmar antigos estereótipos construídos ideologicamente,
movidos por interesses elaborados em uma estratégia de dominação ligada à ideia
de representação, primeiro destinada ao continente africano e depois aos negros na
diáspora.
Sendo assim, não somente para entender a pertinência dessa questão no
contexto da realidade africana em busca de suas identidades, também
consideramos relevante notar que no Brasil ainda existem intelectuais que procuram
desconsiderar a pertinência da temática racial, ao analisar aspectos sociais no país.
Como este trabalho também tem como finalidade o auxílio na formação do professor
no contexto das Leis Federais 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornam obrigatório o
ensino sobre a história e cultura da África, dos afro-brasileiros e indígenas,
procuramos salientar a questão racial para que a mesma seja motivo de atenção e
cuidado ao refletirmos sobre a África a partir do local em que estamos e das
imagens que ainda persistem sobre temas relacionados ao continente. Entender a
natureza dessas culturas no Brasil é também nos aproximarmos da necessidade de
se compreender a África e suas culturas, através da via mais próxima de acesso ao
continente africano, neste caso por meio da cultura negra do país.
É neste contexto de racialização que em parte o continente africano e os
negros na diáspora reorganizaram a sua identidade procurando elaborar a sua
própria representação, transformando o imaginário sobre si mesmo. De algum modo,
era necessário retornar as raízes culturais originais e a valorização de suas culturas,
já que a ideia racial branca apenas fazia sucumbir a noção de pessoa, fazendo do
ser humano um ser tornado negro, consequentemente inferior.
No intuito de entender melhor esse fenômeno histórico, devidamente
registrado e passível de reconhecimento, vamos então analisar o movimento pan-
africanista e o movimento de negritude. Ambos os movimentos tiveram e têm forte
impacto nas organizações negras africanas e também na diáspora. Hampaté Bâ
(2004) revela o quanto esses movimentos foram relevantes na formação de
intelectuais e líderes políticos africanos. Essa opinião é compartilhada também por
Joseph Ki Zerbo. De acordo com Munanga (2009) esses movimentos que
postulavam a volta às origens, baseando-se na identidade cultural de todos os
africanos negros, não foram concebidos no continente africano.
51

O vento que as levou soprou a partir das Américas, tendo como origem
provável os Estados Unidos, passando pelo Haiti, seguindo seu caminho até
a Europa, manifestando-se na Inglaterra para se cristalizar, enfim, na
França, em Paris, no Quartier Latin. A partir daí alastra-se, cobrindo toda a
África negra e os negros da diáspora, isto é, as Américas. (MUNANGA,
2009, p.45).

Um dos primeiros movimentos de busca por uma identidade após a


colonização europeia foi o movimento pan-africanista, que teve na pessoa do filósofo
e sociólogo estadunidense Prof. Dr. William Edward Burghardt Dubois, uma de suas
maiores referências. No ano de 1900, Dubois foi nomeado secretário do primeiro
Congresso Pan-Africano, realizado em Londres.
O Prof. W. E. B. Dubois, como é mais conhecido, foi o responsável por
chamar a atenção sobre a política imperialista na África, refletir sobre a
independência dos países africanos, a partir de uma unidade entre todos os
territórios africanos na busca pela sua integridade. “Sem pregar a volta à África dos
negros americanos, defendia os direitos deles enquanto cidadãos da América e
exortava os africanos a se libertarem em sua própria terra” (MUNANGA, 2009, p.46).
O pan-africanismo se tornou um dos movimentos mais marcantes no
processo de reconstrução africana e de identidade negra fora da África. Através dele
se reconhecia um lugar comum, a África e as pessoas então passavam a ter uma
ligação com um espaço físico que representava uma herança cultural e histórica,
agora valorizada. A partir dessa ideia os valores culturais africanos e também
aqueles construídos pelos negros na diáspora ganhavam forma de representação
afirmada de um modo de ser, da qual todas essas pessoas se sentiam parte e que,
portanto, lhes conferia uma condição de pertencimento e também de comunidade,
independente do lugar em que estivessem. Se os brancos se afirmavam pelos
valores civilizatórios oriundos da Europa, os negros também se afirmavam pelos
valores civilizatórios oriundos da África.
De acordo com Munanga, as reflexões e indagações de Dubois tiveram
grande influência sobre as personalidades africanas ligadas tanto ao meio político
como intelectual, entre eles Asikiwe Nandi, que se tornou presidente da Nigéria,
Kwame N`Krumah, primeiro presidente de Gana e Jomo Kenyatta, primeiro
presidente do Quênia.
A influência do pensamento Pan-africano repercutiu na Europa,
especialmente em Paris, onde muitos estudantes universitários africanos
52

começaram a questionar a ideia da superioridade da civilização europeia, a sua


representação. Ao perceberem os muitos conflitos entre os países europeus, entre
eles os que motivaram as duas guerras mundiais, verificaram a fragilidade de muitos
dos discursos desenvolvidos, em que a lógica de superioridade caía por terra. Como
povos ditos tão civilizados e de espírito tão nobre promoveram enormes chacinas
entre si? Como o homem branco em seu ideal de pureza e nobreza foi capaz de
fomentar o nazismo? Enfim, estas e outras questões revelavam de maneira bastante
convincente a fragilidade da condição europeia, do seu modelo de representação,
assim como uma mentira tornada verdade como a hierarquização humana a partir
de conceitos raciais, tendo como único intuito a dominação dos outros povos. De
acordo com Munanga, esse movimento que começava acontecer, já influenciado
também pelo pan-africanismo, fez surgir a negritude.
De acordo com Oliveira,

Em 1934, na França, Leopold Sedar Senghor, juntamente com Aimé


Césaire e outros, fundaram a revista “L´Etudiant Noir”, com o objetivo de
unir estudantes martiniqueses, guadalupenses, guianos, africanos,
malgaches, etc em torno de ideias e ideais comuns. A França das décadas
de 1930 e 1940 mantinha muitos imigrantes africanos e antilhenses, todos
eles registrados como “negros”, e não por suas nacionalidades. Foi na
revista “LÉtucdiant Noir” que Césaire usou o termo “ négritude” pela primeira
vez. (2004, p.123).

A negritude começou a arregimentar estudantes de vários países africanos e


de outras colônias francesas do Caribe, no chamado Quartier Latin 43, em Paris, isto
já nos anos 30. Nesse local lhes era imposta pelo dominador europeu a aceitação de
que não eram portadores de uma civilização e de que nada acrescentariam à
história do mundo. Foi então neste cenário que esses estudantes das colônias
começaram a responder estas afirmações, questionando-as uma a uma, refazendo
assim uma trajetória histórica, estabelecendo uma representação africana que
pudesse contra argumentar os conceitos a eles atribuídos pelos europeus.
É nesse aspecto que Hampaté Bâ (2004) também confrontava a ideia de que a
civilização oral fosse inferior em relação à civilização escrita e tinha neste aspecto
da cultura africana a base de sustentação de sua argumentação. No entanto, todos
os africanos realizavam esta ação, estudando cuidadosamente cada ideia e conceito
europeu para refutá-lo a altura. Assim, Munanga (2009, p.51) explica, “Um novo

43
Região de Paris que abriga escolas e fica próxima a Universidade Sorbonne.
53

nome, um conceito, todo um vocabulário nasce neste contexto, para onde se


canalizavam os debates: a negritude, quer dizer, a personalidade negra, a
consciência negra”. De acordo com Munanga, a negritude tem como objetivos
principais buscar uma identidade africana, uma representação de si, a partir do
universo cultural africano, dito original; protestar contra a ordem colonial; buscar a
emancipação dos povos africanos oprimidos e estabelecer os caminhos para uma
civilização universal a partir do reconhecimento dos seus diferentes grupos e
pessoas, e não nos moldes estabelecidos em uma perspectiva de origem europeia.
Aqui se percebe que a tônica do discurso evocava a busca pelo outro, a
alteridade, mesmo estando esses jovens estudantes submetidos ao constante
desafio de negação de sua origem. A resposta na maioria dos casos não era a
ruptura, mas o diálogo. O próprio Hampaté Bâ (2003) disse dessa sua busca por
aprender com o outro, por dialogar, e o quanto isto foi importante para sua vida e os
encontros que teria no mundo europeu.
A ideia racial ao ser reapropriada pelos negros estabelece de acordo com o
filósofo francês Jean Paul Sartre em seu texto Orfeu Negro (1968), o conceito de
antirracismo. Obviamente temos aqui configurada uma relação dialética na qual se
utiliza contrariamente o pressuposto racial criado pelo opressor para tentar
responder o tom de suas argumentações. O antirracismo foi o primeiro grande
instrumento desenvolvido para responder à condição imposta aos negros, seja na
África ou na diáspora.
Atualmente intelectuais como Elikia M´Bokolo, na França, e Kwame Anthony
Appiah, nos Estados Unidos, têm se dedicado a também discutir se a apropriação do
conceito racial ainda é válida no sentido de se pensar uma unidade africana ou
unidade negra a partir dele. Esses autores têm provocado uma discussão em torno
dessas identidades, pensando com isto a diversidade cultural africana, a autonomia
dos seus povos e dos seus processos civilizatórios. No entanto, ao realizarem essa
reflexão, não descartam os efeitos da racialização, entre eles o racismo, utilizado
como instrumento de dominação. No Brasil, Kabengele Munanga e a historiadora e
antropóloga Lilia Katri Moritz Schwarcz têm se destacado na elaboração conceitual
dessa discussão, fazendo perceber a pertinência ainda, em especial nos países da
diáspora, do conceito racial, em virtude da construção social do racismo, que ainda
vigora com grande impacto nas relações sociais brasileiras. Porém, todos eles
reconhecem que a representação africana hoje requer uma apropriação maior dos
54

aspectos culturais que compõem os povos africanos e que a ideia racial não dá mais
conta de dizer o que são estes povos e suas civilizações.
O ideal desses intelectuais talvez seja pensar um dia a identidade não mais a
partir da questão racial, já que esse pressuposto carrega marcas bastante
complexas para serem trabalhadas, oriundas de uma falsa perspectiva científica.
Porém, negar a existência do racismo e do mote racial nos processos de dominação
como querem alguns intelectuais é, segundo Munanga (2009), tentar apagar os
traços de responsabilidade social que têm sua origem nesse contexto e se refletem
até os dias de hoje.

I.3 – A África no contexto mundial: História e Cultura

A África a partir da modernidade estabeleceu no contexto mundial das


relações internacionais papéis sociais, culturais e políticos complexos, já que num
primeiro momento, foi alvo do interesse do colonizador no intuito de buscar a mão de
obra, para as suas colônias na América e Caribe. Em um segundo momento foi
ocupada pelo colonizador que pretendia estabelecer sobre o continente a extensão
territorial dos seus impérios. E em um terceiro momento se verificaram as lutas pela
independência dos países colonizados e com isso a busca pelo estabelecimento dos
seus estados nacionais.
Esse processo da história da África44 mais recente pode também ser dividido
como história colonial e história pós-colonial. Porém, alguns pesquisadores têm
estudado outras maneiras de se entender e interpretar a história da África, entre eles
está Ferran Iniesta professor de história da África na Universidade de Barcelona,
propondo outras maneiras de realizar a divisão dos momentos históricos.
De acordo com Boahen,
44
Sobre a história da África é relevante alertarmos que o nosso trabalho não visa traçar um
panorama amplo dessa história, mas sim localizar a África no período colonial da infância e juventude
de Amadou Hampaté Bâ e pós-colonial, período em que o autor registra as suas memórias na obra
Amkoullel, o menino fula (2003). Para aprofundar essa temática recomendamos a leitura da obra
completa da História Geral da África (2010), disponível em versão PDF para download. Também é
significativa a obra de autores como Elikia M`bokolo com África Negra: História e Civilizações tomo 1
(2009), África Negra: História e civilizações tomo 2 (2011), ambos publicados pela Casa das Áfricas e
Alberto da Costa e Silva com as obras a Enxada e a Lança (2006), A manilha e o libambo (2002),
entre outros. Estes textos estão disponíveis em língua portuguesa, o que torna o acesso facilitado
principalmente para alunos de graduação, trabalhos de extensão e formação/capacitação de
professores para o ensino fundamental e médio.
55

Na história da África jamais se sucederam tantas e tão rápidas mudanças


como durante o período de 1880 e 1935. Na verdade, as mudanças mais
importantes, mais espetaculares e também mais trágicas, ocorreram num
lapso de tempo bem mais curto, de 1880 a 1910, marcado pela conquista e
ocupação de quase todo continente africano pelas potências imperialistas e,
depois, pela instauração do sistema colonial. A fase posterior a 1910
caracterizou-se essencialmente pela consolidação e exploração do sistema.
(2010, p.1).

Nesse período colonial pelo relato de Hampaté Bâ (2003) estamos imersos


em relações ainda mais delicadas entre a África e o colonizador. Os africanos desde
a mais tenra idade eram induzidos, e muitas vezes de fato conduzidos a aceitar a
cultura europeia como formação, mesmo que uma formação para produção de base.
Nesse sentido, o esquecimento de alguns traços da cultura passa a ser fundamental
para que se consolide uma possível perda de uma identidade africana como
elemento valorativo. Ainda segundo Boahen,

Até 1880, em cerca de 80% do seu território, a África era governada por
seus próprios reis, rainhas, chefes de clãs e de linhagens, em impérios,
reinos, comunidades, e unidades políticas de porte e natureza variados. No
entanto, nos 30 anos seguintes, assiste-se a uma transmutação
extraordinária, para não dizer radical, dessa situação. Em 1914, com a
única exceção da Etiópia e da Libéria, a África inteira vê-se submetida à
dominação de potências europeias e dividida em colônias de dimensões
diversas, mas de modo geral, muito mais extensas do que as formações
políticas preexistentes e, muitas vezes, com pouca ou nenhuma relação
com elas. Nessa época, aliás, a África não é assaltada apenas na sua
soberania e na sua independência, mas também em seus valores culturais.
(2010, p.3).

A análise histórica de Boahen colabora para a compreensão dos fenômenos


descritos por Hampaté Bâ, que revelam uma série de situações em que através da
presença europeia no continente era imposto um modo de ser. Essa característica
pode ser refletida aqui com o auxílio do conceito de dominação de Weber. Para
Weber (1991,p.139) chama-se de “dominação a probabilidade de encontrar
obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de
pessoas”.
Este autor ainda reflete que existem três tipos de dominação: a de caráter
racional, que se baseia na crença legítima das ordens e direito de mando daqueles
que são imbuídos para dominar; a de caráter tradicional, que está baseada na
crença em valores constituídos ao logo da história da comunidade; e a de caráter
carismático que se baseia em algum tipo de veneração. Destes tipos de dominação,
56

pode-se notar que a relação que a Europa constituiu com a África em seu período
colonial baseia-se especialmente no primeiro tipo, a de caráter racional, já que foi
planejada e calculada e concentra-se em um tipo de representação que justifica e
legitima tais atos. De acordo com Vieira45 (2006, p.47) “a sociologia da dominação
de Weber tem como centralidade a preocupação latente pelo entendimento do
exercício do poder e do conceito de dominação social”. É exatamente esta questão
que se coloca em questão para entendermos os reflexos do colonialismo no
continente africano.
A África sob o jugo europeu estava à mercê não de suas necessidades, mas
das necessidades que o colonizador lhe impunha. Este fardo sufocava em grande
parte a possibilidade de uma identidade africana consolidar-se de modo efetivo. A
própria imagem da África para os africanos estava diluída na perspectiva do
negativismo, da ausência do espaço político e da desvalorização cultural imposta
pelos europeus. De acordo com Hampaté Bâ (2003) era comum que aqueles
africanos ainda próximos às suas heranças culturais denominassem os africanos
que passavam a seguir os padrões da cultura externa ou de certa forma afastavam-
se de suas culturas originais de “negros – brancos“.
Para Hampaté Bâ (2004) essa rejeição da própria cultura tem levado ao poder
líderes descompromissados com a realidade africana, que, por não acreditarem na
capacidade dos seus próprios países e seus povos superarem crises, acabam por
desenvolver governos que atendam interesses pessoais, constituindo verdadeiras
fortunas que são soberbamente alimentadas por capitais estrangeiros que procuram
estabelecer seus interesses nas economias internas desses países. Aliás, esse
quadro tem permitido que os modelos coloniais, agora sob uma nova bandeira
neocolonial, continuem mantendo seus monopólios na África. Dessa maneira,
possibilitaram o surgimento de governos ditatoriais.
Esses governos podem ser refletidos a partir de outro conceito associado a
Weber, o patrimonialismo, que diz respeito à perda da noção do público com o
privado, ou seja, a posse de um determinado espaço político de representação
pública é vista apenas como extensão de interesses particulares, e em decorrência
disso as ações desses governantes passam a se perder do comprometimento com o

45
O Prof. Dr. César Romero Amaral Vieira é o coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Metodista de Piracicaba e tem pesquisas relacionadas a instituições e
suas representações sociais.
57

povo que representam, mas antes passam a seguir uma perspectiva pessoal, de
interesses particulares. No entanto, esse conceito estaria mais ligado à perspectiva
das relações tradicionais e poderia ser melhor refletido nos governos antigos e
medievais, nos quais na realidade essa noção pública e privada nem sempre era
definida. Essa noção de distinção está mais presente nos governos atuais. No caso
dos governos africanos contemporâneos Bruhns (2012) faz-se perceber que o uso
do termo neopatrimonialismo seria mais apropriado para analisar esses governos, já
que esse conceito tem condições melhores de observar os diferentes e múltiplos
fenômenos sociais que ocorrem em um estado contemporâneo.
E desse modo Hampaté Bâ afirma,

Qualquer ditadura preocupa, seja na África ou em outro lugar, sobretudo


quando constatamos que a maioria dessas ditaduras só parece ter como
finalidade satisfazer um punhado de homens, ou certa categoria de homens,
e nunca o povo em seu conjunto. O povo, aliás, sente-se geralmente estranho
ao que acontece na cúpula e as lutas pelo poder. Sejam intelectuais ou
militares, para eles são toubaboumoro, “gente dos brancos”, isto é, gente que
imita os brancos, pensa e age como os brancos e não segundo a tradição
africana. (2004, p.9).

O relato de Hampaté Bâ (2003) coloca-nos diante de um dos desafios a que a


África estará submetida desde a sua colonização até os dias de hoje. A construção
da representação africana é desafiada pela necessidade da África compreender-se
em si mesma, mas em diálogo também com o colonizador. Nesse contexto é
necessário pensar que a África sob o jugo europeu e já tendo incorporado os
elementos também dessa cultura, começa um processo de autoentendimento, no
qual se configura um pensamento já mestiço. A ideia de pensamento mestiço deriva
do fato de que por meio desses encontros socioculturais, todos os envolvidos são
transformados. De acordo com Gruzinski (2001) “a identidade define-se sempre,
pois, a partir de relações e interações múltiplas“. Nessa reflexão, pode-se dizer que
somente somos o que somos com e pelo outro, até mesmo aquele que rejeitamos.
E se pensamos este fato também com a análise de Certeau (2004) percebe-
se que a modificação do espaço cultural dado a partir da colonização se dá com o
instrumental estrategicamente pensado pelo colonizador, mas adaptado e
transformado no cotidiano das pessoas na busca pela sua sobrevivência e
dignidade. O encontro entre os povos e suas culturas como analisado por Gruzinski,
teve no caso africano, ou das culturas africanas um impacto considerável no mundo.
Na análise do historiador Ali Mazrui (2010) as antigas aldeias africanas foram
58

invadidas pelo colonizador, mas estes colonizadores não perceberam que com esta
ação, juntamente com o processo de escravização, fizeram por conduzir estas
aldeias para o mundo, e este seria transformado de um modo significativo. Esses
encontros culturais nunca são inertes. Esta análise tem correspondência com a
composição de Gilberto Gil chamada Chuck Berry Fields Forever = Eternos campos
de Chuck Berry46.
Esta composição de Gilberto Gil faz menção com o título da letra dos Beatles,
chamada Strawberry Fields Forever ou os Eternos campos de morango. A letra de
Gil fala da música africana chegando a Europa e sendo transformada nas Américas
e Caribe.
Vejamos a letra desta música,
Trazidos d´África pra Américas de norte e sul
Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou
E neve, garça branca valsa do Danúbio Azul.
Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou.
Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol.
Rachado em mil raios de Xangô
E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rhythm´n blues
Tornaram-se os ancestrais, os pais do Rock and Roll
Rock é o nosso tempo, baby
Rock and roll é isso
Chuck Berry Fields Forever
Os quatro cavaleiros do após calypso
O após calypso
Rock and Roll
Capítulo um
Versículo vinte
Sículo vinte
Século vinte e um
Versículo vinte
Sículo vinte
Século vinte e um
(RENNÓ, 1996)

É válido também pensar que o retorno para a África dessas culturas


transformadas na diáspora foi bastante intenso, e que elas ajudaram a constituir
outras formas culturais no continente. Um exemplo bastante interessante dessas
possibilidades é o caso dos Agudás47 no Benin, que se constitui como um novo
grupo étnico formado a partir de descendentes de africanos que foram escravizados
no Brasil e que retornam ao Benin levando costumes brasileiros. Temos nesse caso
um fenômeno marcante que influenciou também na organização sociocultural

46
O cantor e instrumentista negro estadunidense Charles Edward Anderson Berry (1926- ),
conhecido como Chuck Berry, é considerado o pai do rock in roll.
47
Ver as obras: Negros, estrangeiros: Os escravos libertos e sua volta à África (2012) de
Manuela Carneiro da Cunha e Agudás, os brasileiros do Benin (2000) de Milton Guran.
59

desses países, já que ao retornarem ao continente africano, essas pessoas não


eram mais absorvidas em suas culturas originais, em seus respectivos grupos
étnicos, pois ao assumirem uma identidade cultural distinta da original, na qual se
inclui o idioma, a religião entre outros, eram vistos como um grupo estranho em seu
próprio território de origem, e desse modo, passaram a constituir-se, a organizar-se
em torno da própria noção de etnia, fazendo então surgir um novo grupo étnico.
Essas características da organização nativa africana são fundamentais na
perspectiva de Hampaté Bâ (2004) para se entender os desafios na constituição dos
estados africanos contemporâneos, já que descrevem um modo de ser distinto
daqueles baseados no modelo europeu.

I.4 – Nação e representação

A luta pela constituição das representações africanas culminou nos processos


de independência e no estabelecimento dos respectivos países africanos. De acordo
com Ki Zerbo (2009), uma das principais necessidades do continente africano talvez
seja o estabelecimento dos Estados-nação, a partir do que fora deixado como
divisão territorial da África na colonização. Tal necessidade se dá pelo fato de que
essas nações, originadas da campanha expansionista e escravista europeia,
forjaram encontros que outrora talvez não existissem, estabelecendo novas
fronteiras culturais, políticas e econômicas aos próprios africanos, e
consequentemente desestruturando organizações sociais anteriores. Tal
empreendimento deixou uma carga de dificuldades aos africanos, o que acarreta
inúmeros problemas a serem resolvidos.
Ainda segundo Ki Zerbo a busca pela construção dos diferentes Estados
africanos deveria perpassar a perspectiva ética de solidariedade e cidadania,
enquanto estados autônomos, os quais habita um conjunto vasto de culturas
humanas que devem e precisam confluir. E, a partir das suas próprias culturas,
constituírem um estado contemporâneo de direito.
Esses desafios conduzem à ideia de uma identidade africana nos Estados
Nação48 que ainda não se consolidou de fato, embora várias medidas tenham sido

48
Sobre esta discussão e o que tem sido feito mais recentemente para promover o avanço dos
países africanos é relevante visitar o site da UA – União Africana no seguinte endereço www.au.int
60

incentivadas, mas que na atualidade sofrem as restrições de avanço e aplicabilidade


que talvez não estivessem nítidas inicialmente.
De acordo com Hampaté Bâ, o conceito de nação é um conceito que foi
importado de outra realidade histórica. Trata-se de um conceito moderno que não
atende a compreensão geográfica forjada pela tradição africana. A esse conceito
caracteristicamente geográfico ele contrapõe com o conceito de etnias.

A África conheceu Estados, reinos, impérios, mas não “nações” na


perspectiva geográfica e moderna da palavra. Os grandes conjuntos que se
reivindicava e aos quais se sentia pertencer eram as etnias. Estas, muitas
vezes móveis, podiam cobrir vastos territórios. Um fula de Macina podia
viajar para a Costa do Marfim; lá, encontrava outros fulas e se sentia em
família. Um senufo da Costa do Marfim que viesse para o Mali encontrava
os seus. Cada grande cidade comportava bairros consagrados às diferentes
etnias, de maneira que o viajante tinha certeza de sempre encontrar nelas
irmãos. (2004, p.11).

Refletindo sobre a condição deixada pelos europeus ao continente africano,


Hampaté Bâ nos diz que não houve escolha, o continente recebeu uma herança. No
entanto, é importante que se retome esse início para que se possa perceber o que é
relevante para a África e o que não é, e assim se possam fazer as distinções entre o
parecer e o ser ela mesma.
E ainda,

Mas a dificuldade é que a África não pode viver a sua vida sem levar em
consideração as contingências internacionais. Aliás, nenhum país pode mais,
no mundo de hoje. Somos todos interdependentes. A revisão do início, bem
como a revisão do processo em curso, precisa ser universal, e não reservada
apenas à África. É um problema mundial. (2004, p.11-12).

Se pensarmos esta situação em acordo com a reflexão de Hampaté Bâ,


perceberemos que a civilização deve pautar-se na noção ética de reciprocidade e
compartilhamento; a negação do outro, ou mesmo a sua não oportunidade de
pertença decisória no mundo contemporâneo, torna as relações empobrecidas. Essa
ideia defendida por Hampaté Bâ (2004), assim como por Ki Zerbo (2009), leva em
consideração que a própria instituição dos países africanos deve ser apresentada e
organizada levando-se em conta a sua autonomia, o seu modo de organizar a
economia e a maneira como devem ser estabelecidas as suas fronteiras geográficas
a partir do que lhes foi delimitado. No entanto, a interferência externa sem diálogo,
sem o devido respeito às características internas do continente africano, apenas
61

dificulta o estabelecimento de relações contributivas no âmbito internacional. Esses


autores ponderam que a posição da África no mundo deve ser ocupada pelo diálogo,
e na concepção de Hampaté Bâ, a condição deste diálogo se dá a partir do
momento em que o continente africano possa apresentar-se a partir de suas
culturas, dos seus referenciais civilizatórios, entre eles a tradição oral.
Esse diálogo é simultâneo: se por um lado é necessário garanti-lo
internamente, é também necessário efetivá-lo externamente, ou seja, da África para
o mundo. No entanto, o estabelecimento das identidades nacionais e suas
representações internas requer que os líderes africanos tomem contato com as
várias representações étnicas nacionais, o que determina, por exemplo, a maneira
como o africano estabelece a sua economia doméstica. Em alguns grupos étnicos a
pecuária ainda é o grande vetor de sustentação do grupo, independente das
mudanças sociais existentes. Este é o caso, por exemplo, dos Massai 49 do Quênia.
Nesse sentido, qualquer governo africano que não perceba e entenda esses pontos
estará fadado ao fracasso. Segundo Ki Zerbo (2009) o estado africano precisa gerir
e aperfeiçoar o seu espaço territorial através da estruturação do estado federal, que
desse conta do caráter amplo do espaço ocupado pelos diferentes grupos étnicos e
das suas características culturais.

O Estado atual, instância média, seria uma federação dos poderes que
operam na base e que correspondem às realidades concretas. Assim, não
seria preciso destruir as fronteiras atuais, mas superá-las. Como levar em
conta, por exemplo, os fatos senufo, haussá e sonrai num reordenamento
da África Ocidental? É difícil gerir certas realidades em que há tensões
atualmente. Ora, será necessário tornar as fronteiras atuais o mais leves
possível, fazendo delas linhas pontilhadas em vez de muros de concreto, e
transformá-las, de estruturas belígeras, em fontes de prosperidade e
locomotivas de novas configurações. (KI ZERBO, 2009, p.82-83).

Essa situação ocorre em todos os países africanos, com maior ou menor


intensidade. De acordo com Ki Zerbo a proposta de uma emancipação política e
econômica não acontecerá se não levar em conta a diversidade que se encerra
nesses países. E tentar propor políticas públicas comuns terá sempre o desafio de
atender algumas especificidades regionais, locais.
Por isso, segundo Hampaté Bâ (2004) e Ki Zerbo (2009), haver a
necessidade de entender as políticas organizacionais externas, mas também a
necessidade de ter despertada a autonomia para o desenvolvimento de políticas que

49
Grupo étnico.
62

estejam amparadas na realidade local. Embora este seja um dado facilmente


perceptível, contudo não é facilmente aplicado e desenvolvido, e depara sempre no
desafio do diálogo intersubjetivo.
Essas condições internas, inerentes ao continente africano hoje, estão muitas
vezes longe da percepção externa, que, de acordo com a socióloga malinesa
Aminata Traoré (2004), infelizmente ao não compreender tais situações ainda insiste
muitas vezes em descrevê-la envolta em determinados estereótipos negativos, entre
eles a fome, a miséria e os conflitos interétnicos, também denominados de conflitos
tribais - aliás, um conceito ainda bastante marcado pela visão eurocêntrica de
civilização, no qual o termo tribo é destinado a povos tidos como inferiores
culturalmente, e consequentemente destituídos de uma noção mais elaborada de
civilização.
Também é válido notar que esse juízo destinado ao continente africano cabe
também a Europa, já que conflitos semelhantes acontecem ou aconteceram dentro
dos países europeus, veja-se o exemplo do país Basco na Espanha, os históricos
conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda ou mesmo a separação belga entre
descendentes de franceses e descendentes de holandeses. Enfim, muitos outros
exemplos poderiam ser trazidos, todos com significado histórico. Porém, ao analisar
o contexto africano, esses exemplos exteriores são intencionalmente esquecidos, e
esta característica humana é atribuída apenas aos povos africanos, então como
exemplo de atraso, daí o termo tribo. Essa análise é relevante, pois segundo
Munanga (2009) ela carrega intenções, motivações que deslocam a reflexão sobre a
condição humana como um todo, fazendo uma atribuição específica ao universo
africano, principalmente quando o mesmo apresenta-se como um fenômeno alvo de
críticas por parte de valores sóciomorais estabelecidos.
Do mesmo modo, pode-se pensar o estabelecimento dos estados federais,
tais como propostos por Ki Zerbo (2009) quando propõe uma maior maleabilidade na
delimitação de suas fronteiras. Essa proposta pode ser observada no
estabelecimento, por exemplo, da União Europeia, que também procura romper com
a ideia de fronteiras geográficas fixas na busca pela consolidação de um espaço
ampliado de relações econômicas, políticas e culturais que esteja para além das
delimitações geográficas dos países membros. Dessa maneira, a ideia de Ki Zerbo
não é estranha e baseia-se em aspectos já experimentados e vivenciados nos
antigos impérios africanos e compartilhada com as etnias.
63

A partir da análise que Hampaté Bâ (2010) faz da cultura, pode-se pensar que
os valores culturais africanos estão permeando as suas civilizações, em especial as
chamadas populações tradicionais. Esses mesmos valores podem e devem,
segundo o autor, ser colocados à disposição do homem contemporâneo, pois muitos
deles encerram valores universais, cabíveis à constituição do ser humano.
De acordo com o que pudemos apreender com Hampaté Bâ (2003) o ser
humano é em sua vida, e esta vida é qualificada pela sua capacidade de elaborar
encontros e dar sentido a sua jornada. Essa noção permite que se reconheça que o
ser humano não nasce pronto, mas que ele se faz ao longo de sua vida, daí a
relevância e a necessidade da educação. Essa perspectiva de análise é válida tanto
ao olhar para os sujeitos individuais, quanto para as culturas e civilizações
existentes. As experiências civilizatórias e suas respectivas culturas vão sendo
maturadas através de processos de interação, de capacidade de reciprocidade e
autoavaliação dos seus processos históricos.
No caso da África, não se pode destituí-la dos seus problemas, e
consequentemente da responsabilidade que se deve ter sobre eles. De acordo com
Appiah (1997) o não reconhecimento e enfrentamento desses problemas pode
ocasionar uma limitação no entendimento de algumas discussões já universalizadas,
que transcendem aspectos específicos de uma determinada cultura.
Um exemplo desta questão registra-se em alguns grupos étnicos em que a
prática da infibulação50 e extirpação do clitóris nas meninas ainda em sua primeira
infância é justificada em nome de uma cultura com caráter religioso e social. Esta
prática tem levado muitas meninas à morte precoce, até mesmo pela precariedade
com que é realizado o ato, na grande maioria das vezes sem nenhum recurso
médico ou sanitário mais adequado. Além disso, mesmo as meninas que
sobrevivem a tal manipulação, ao crescerem não podem vivenciar o sexo livre de
dores, na qual a ausência do prazer é bastante comum. A prática da infibulação
ainda se faz presente em algumas culturas também na África ocidental. Embora
esse tema não apareça no relato de Hampaté Bâ (2003), neste está contido um
cenário a ser investigado sobre a condição da mulher na sociedade do oeste
africano tradicional e na contemporaneidade.

50
A infibulação feminina consiste na costura dos lábios vaginais e do clitóris. A extirpação do
clitóris é a remoção desse órgão. Ver o caso da modelo somali Waris Dirie (1965- ), descrito na obra
Flor do deserto(2001). E também http://jus.com.br/artigos/21078/flor-do-deserto-mutilacao-genital-
feminina-e-direitos-humanos#ixzz2cNAf4AKT
64

Temos ainda, algumas práticas tradicionais ligadas ao universo mítico-místico


que muitas vezes, por não dialogarem com novos conhecimentos oriundos da
ciência, têm impedido que métodos mais eficazes de tratamento de saúde sejam
desenvolvidos, levando assim muitas pessoas à morte51. Na perspectiva de Appiah
(1997) devem-se repensar estes saberes na condição de pertencerem a um
universo cultural distinto, mas que na busca pelo diálogo devem estar inseridos em
uma ética universal que se firma a partir desses encontros, e que somente será
fortalecida no momento em que todas as culturas também mediadas pelas outras,
consigam tornar-se autocríticas e consequentemente avaliativas dos seus processos
histórico-culturais. Tais análises quando bem conduzidas devem reconduzir aos
sentidos dessas práticas e, com isso, recuperar sentidos de fato relevantes, mas que
com o passar do tempo tornam-se invisíveis em nome de uma prática milenar que
deixou de ser pensada. Com essa noção a própria educação é fortalecida, já que a
cultura será refletida de maneira mais incisiva e sua transmissão, mesmo na
tradição, será garantida no diálogo e na interação com o todo à sua volta, e neste
todo, agora se inclui o outro modelo civilizatório, outrora tão distante, mas agora
possível de ser pensado e compreendido através da acessibilidade proporcionada
pela melhor condição dos meios de comunicação disponíveis, assim como através
da tecnologia por eles utilizada. Esta proposta é compartilhada por Hampaté Bâ
(2010) ao falar da tradição como um caminho de diálogo permanente com a
contemporaneidade, já que essa cultura é dinâmica e atual, mesmo preservando
valores ancestrais.
Ki Zerbo também faz um alerta semelhante ao de Appiah (1997) para o fato
de que a África é um conjunto de problemáticas internas que precisam ser mais bem
refletidas para que se estabeleçam as condições favoráveis ao diálogo externo. “Os
africanos têm interesse em resolver eles próprios os seus problemas.” (KI ZERBO,
2009, p.58).
Deve-se descartar qualquer possibilidade de romantismo e ingenuidade em
relação ao continente africano, para que se possa estabelecer uma reflexão
coerente, um olhar atento sobre os seus povos e civilizações. Caso contrário, pode-
se migrar do eurocentrismo52 para um afrocentrismo53. A África é dessa maneira alvo

51
O Prof. Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos da Casa das Áfricas tem desenvolvido estudos
nesta área, em especial na Costa do Marfim.
52
Ver AMIN, Samir. Eurocentrismo: crítica de uma ideologia. Lisboa: Dinossauro, 1994.
65

de múltiplos interesses, de muitas ideologias que a ela se referem de maneira tão


díspar, seja ao negativá-la, ou ao positivá-la. A África é em si mesma um continente
de contrastes, tal como qualquer outro: a sua gente é humana como qualquer outra,
portanto passível da ambiguidade presente nesta condição. No entanto, o que se
coloca na pauta das reflexões é o seu papel na história da civilização humana, as
suas experiências, os seus pensamentos, as suas culturas, que podem, segundo
Hampaté Bâ (2004), oferecer mais elementos para serem dialogados e com isto
ampliar as possibilidades reflexivas do homem sobre si mesmo. E, nesse sentido, as
contribuições são difíceis de ser mensuradas. Ki Zerbo afirma,

É por isso que é preciso favorecer as redes de grupos que criem um projeto
para “o homem novo“ no séc. XXI. Um homem aberto a alteridade e que,
sobre uma base econômica e social mínima esteja aberto às relações, às
ligações humanas, a uma ética universal e aos valores. Quando falo de
valores, penso nos valores morais, psicológicos, ideológicos e religiosos,
mas não só. Proponho, pois, um projeto que seja como um foguete com três
estágios: os bens econômicos, as ligações sociais (que compreendem as
relações humanas, os serviços e a organização humana) e os valores. Esse
projeto humano não visa simplesmente maximizar o consumo material. Será
construído com base nos valores da solidariedade, convivência, alteridade,
compaixão, autocontrole, piedade e equilíbrio... (2009, p.156-157).

O educador Paulo Freire (2003), quando de sua experiência no continente


africano, nos diz sobre o quanto a África e suas culturas têm a nos ensinar, a
começar pela maneira respeitosa de olhar para a natureza, em que o homem não se
vê acima da natureza, mas com ela, assumindo responsabilidades em cuidar dela.
Destaca também a noção integral do ser humano: o homem é um todo que é razão,
emoção, corpo, alma, enfim, uma inteireza que se comunica por completo.
É nesse sentido que buscamos nas reflexões de Hampaté Bâ as condições
de entender o papel da oralidade na educação, procurando nessa perspectiva local
algo que possa ser relevante para refletirmos a educação no Brasil.

Assim, nada de desespero nem catastrofismo. As duas correntes existem: a


positiva e a negativa. Em toda parte há homens que lutam para despertar as
consciências, e eles encontram quem os ouça. O que é importante é nunca
deixar de lutar. Qualquer esforço conta. A aparente pequenez de um
esforço não impede que ele possa ter consequências consideráveis. Como
dizia meu mestre Tierno Bokar: apesar de sua envergadura gigantesca, o
baobá é engendrado por uma semente que não é maior que um grão de
café. (Hampaté Bâ, 2004, p.12).

53
Ver FARIAS, P. F. de Moraes. Afrocentrismo: entre uma contranarrativa histórica universalista
e o relativismo cultural. Afro-Ásia, 29;30. Salvador, 2003, p. 317-343.
66

De acordo com Ki Zerbo (2009) e Hampaté Bâ (2004) essas culturas


funcionam como um novo fôlego para o estado tênue da civilização humana e do
homem enquanto sujeito existencial. Elas não seriam soluções em si mesmas para
problemas hoje globais, mas são fundamentais para que a heterogeneidade humana
seja manifesta.
67

Capítulo II
A questão da memória

A tradição transmitida oralmente é tão precisa e tão


rigorosa que se pode, com diversas confirmações, reconstituir
os grandes acontecimentos dos séculos passados nos
mínimos detalhes, especialmente a vida dos grandes impérios
ou dos grandes homens que ilustraram a história africana.
(Amadou Hampaté Bâ).

Na tradição africana a memória ocupa um papel de destaque, já que para os


povos de cultura oral ela é fundamental. No entanto, ao longo da história da
humanidade, a relação com a memória sempre foi complexa, pois implica vários
aspectos, entre eles a imaginação e o esquecimento. É nesse sentido, e tentando
compreender o que seja a memória, é que recorremos ao filósofo francês da
fenomenologia hermenêutica Paul Ricouer. Através desse autor procuramos
compreender o papel e a relevância da memória para a história, e mesmo para
educação. Assim vamos em diálogo com o sociólogo francês Maurice Halbwachs
compreender o conceito de memória coletiva. Depois desse percurso chegaremos
então à memória no contexto da cultura tradicional africana; aqui teremos contato
com as reflexões de Amadou Hampaté Bâ e do historiador belga Jan Vansina.
Para Paul Ricouer (2007), essa relação da memória e a história ocupa um
lugar especial em suas reflexões sobre a memória em si, em uma abordagem
conceitual oriunda da fenomenologia, a relação noesis54 e noema55 se refere ao
sujeito que investiga e o objeto investigado no ato mesmo de tomar consciência de
algo. Deste modo, a memória é observada como fenômeno a ser desvelado. Essa
abordagem é própria da fenomenologia husserliana56.
De acordo com Paul Ricouer, a memória é um recurso que existe para o
homem e o identifica pela lembrança a um passado ou a fatos já acontecidos. A
memória é a possibilidade também do entendimento da temporalidade e
espacialidade através dela mesma; sendo assim, ela é significativa para o homem
na constituição do seu conhecimento e da sua história. Porém, a memória ao
54
Noesis (ai.noesis). Na terminologia de Husserl, o aspecto subjetivo da vivência, constituído
por todos os atos de compreensão que visam apreender o objeto, tais como perceber, lembrar,
imaginar, etc.(ABBAGNANO, 2007, p.724).
55
Noema (ai.noema). Na terminologia de Husserl, o aspecto objetivo da vivência, ou seja, o
objeto considerado pela reflexão em seus diversos modos de ser dado. (ABBAGNANO, 2007, p.724).
56
Filósofo alemão de origem judia Edmund Husserl (1859-1938), considerado o mentor da
fenomenologia.
68

oferecer através da lembrança a rememoração dos fatos acontecidos é desafiadora,


no sentido de possibilitar também o esquecimento. Dessa maneira, um dos
problemas está no esquecimento e no falseamento das coisas rememoradas, pois
ao reconstruir algo do passado, pode-se, intencionalmente ou não, apagá-las,
configurá-las ou reconstruí-las. Essas possibilidades lidam com campos do ser
humano que extrapolam a perspectiva da razão, lidam com campos mentais ligados
à emoção, ao sono, enfim, a outras dimensões humanas que tornam a relação com
a memória bastante complexa. Os estudos sobre a memória ocupam várias áreas do
conhecimento humano, cada qual gerando as suas próprias concepções e
argumentos científicos.
Aqui se procura destacar a função da oralidade na educação do oeste
africano, a partir da interpretação de dados, fontes, argumentos e textos
selecionados. Em nosso caso, a memória não é somente vista no contexto mais
amplo da cultura africana, mas também através de sua contribuição para a
historiografia onde ocupa um lugar relevante, já que, de acordo com Ki Zerbo (2010),
não se faz história da África sem levar-se em conta a oralidade e a oralidade é
pautada na memória. Neste ponto, vale ressaltar que para pesquisadores como
Maurice Halbwachs (2006) a memória antecede a história e para outros, como o
próprio Ki Zerbo, a memória é um dos instrumentos do historiador. Enquanto que
para Ricouer existe um conflito entre a história e a memória.

De fato, ela caracteriza também a operação historiográfica enquanto prática


teórica. O historiador empreende “fazer história“, como cada um de nós se
dedica a “fazer memória”. O confronto entre memória e história se dará,
quanto ao essencial, no nível dessas duas operações indivisamente
cognitivas e práticas. (RICOUER, 2007, p.72)

A história oral tem sido um campo de investigação de relevância para a


história cultural, já que a história cultural tem utilizado os métodos investigativos da
história oral para lidar com diferentes povos e culturas. Dessa forma, segundo
Pesavento (2004), a história cultural vai ao encontro do outro tendo por base o
reconhecimento do valor inerente à cultura de cada um. No caso africano, nota-se
que a oralidade é um traço essencial dessa cultura e a história dos povos africanos
não é completa se for destituída a oralidade dessa condição de importância.
Entretanto, uma questão que incomoda os pesquisadores que lidam com o
conceito de memória é a questão de sua autenticidade enquanto preservadora de
69

um dado temporal. Nesse sentido, podemos pensar também uma relação com a
linguística, pois será que tudo o que é lembrado pode ser falado? Já que a memória
se realiza não no passado, mas no presente de uma situação, de uma relação, de
uma ação.
Assim, se discute se dados que foram rememorados são de fato descritos tal
como aconteceram, caso haja algum impedimento social ou mesmo moral que
impossibilite essa descrição tal como tenha acontecido. Além do mais, pensa-se
ainda que mesmo que se diga de fato aquilo que se viu, ao relatá-lo em um presente
as impressões do sujeito que se lembra, o lugar de onde se lembra e como se
lembra já não alterariam essa descrição?
Nota-se que o desafio da memória não é tão simples de ser resolvido, e,
portanto, o pesquisador, ao aprofundar o seu caminho de investigação através da
memória, deve assegurar-se de alguns cuidados e limites. Paul Ricouer, na sua obra
A memória, a história e o esquecimento (2007), dirá

A aposta última da investigação que se segue é o destino do voto de


fidelidade, que vimos ligado ao alvo da memória enquanto guardiã da
profundeza do tempo e da distância temporal. De que maneira, quanto a
essa aposta, as vicissitudes da memória exercitada são susceptíveis de
interferir na ambição veritativa da memória? Respondamos numa palavra: o
exercício da memória é o seu uso; ora, o uso comporta a possibilidade do
abuso. Entre uso e abuso insinua-se o espectro da “mimética” incorreta. É
pelo viés do abuso que o alvo veritativo da memória está maciçamente
ameaçado. (p.72).

No entanto, nos parece cabível perceber que esse abuso da memória se


refere também a um abuso de intencionalidade e a questão pode ser comparada ao
abuso também sobre outras fontes utilizadas pela historiografia, entre elas o próprio
documento escrito. Parece-nos que a questão colocada serve de alerta ao bom
senso na utilização das fontes e à maneira como as mesmas são transmitidas ao
pesquisador. Essa questão torna-se relevante ao pensarmos sobre a memória no
oeste africano e a necessidade de uma transmissão mais próxima possível do real,
amparada em pressupostos valorativos próprios, tais como a espiritualidade e a
ancestralidade, já que, de acordo com Hampaté Bâ (2010), para estes povos, ao
relacionarem a palavra a um universo de sacralidade na qual todas as coisas se
conectam, acabam por ter no âmbito da tradição oral um solo de segurança em
relação à coerência e autenticidade dos relatos. Provavelmente esse aspecto não
resolve as dúvidas quanto à validade da tradição oral, quando observada pelo
70

ocidente, mas apresentam justificativas que dão sentido e coesão para os povos que
a praticam, assim como tornam legítimas as suas ponderações, a partir do mundo
que representam.
De acordo com Prins (1992, p.170), “um dos efeitos de se viver em uma
cultura dominada pela palavra escrita é, devido ao rebaixamento da palavra falada,
cauterizá-la.” Por isso, esse será um desafio a ser superado para aproximar-se da
cultura oral do oeste africano, sem desqualificá-lo antecipadamente, baseando-se
em conceitos estabelecidos fora do contexto cultural africano. Ainda nos diz Prins
(p.170): “os historiadores tradicionais, orientados por documentos, buscam três
qualidades em suas fontes, nenhuma das quais os dados orais manifestamente
possuem”. São elas: a precisão da forma; a precisão cronológica e registro marcado
(escrito) capaz de proporcionar comparação e comprovação. O próprio Hampaté Bâ
(2003) admite que nem sempre os relatos têm uma forma fixa, tampouco
apresentam uma precisão cronológica pormenorizada; antes se referem a períodos,
a fatos e acontecimentos, normalmente rememorados pela comunidade ou que
muitas vezes são preservados por alguns memorialistas, sendo assim um aspecto
subjetivo da memória. Por isso, segundo Prins (p.171) “para os historiadores que
não gostam da história oral, esses compõem campos suficientes para sua rejeição”.
No entanto, os defensores da história oral, alguns ligados à história cultural,
procuram justificar a sua metodologia e interesse pela oralidade e mais
especificamente a tradição oral, esta sim uma característica fundamental da cultura
do oeste africano, que veremos em nossa investigação de modo mais detalhado. A
oralidade, como já dissemos, tem na memória um alicerce, um fundamento para sua
existência.
Somos então levados a refletir sobre outro aspecto da memória, que é a
questão da memória individual ou coletiva, pois já que existe um questionamento da
lembrança de determinado indivíduo, será que esse questionamento permanece se
ela estiver expressa em um dado coletivo? Ou ao menos, será que ela se apresenta
do mesmo modo? Não seria o compartilhamento das lembranças, um elemento que
assegure a sua validade?
Deste modo, Paul Ricouer (2007, p.105) apresenta-nos uma questão
importante a ser resolvida: “a memória é primordialmente pessoal ou coletiva?”
Essa discussão apenas passou a tomar corpo entre os intelectuais a partir do
séc. XX, principalmente através da sociologia, devido ao conceito de consciência
71

coletiva57. Para Ricouer (2007), não houve o devido questionamento desse conceito,
sendo este naturalizado. Esse conceito construído por Emile Durkheim diz que,
apesar das características individuais de uma pessoa em determinado grupo, existe
uma série de dados coletivos referentes ao grupo que se sobrepõem às pessoas,
aos indivíduos; essa consciência coletiva se ocupa da consciência individual, sendo
esta sempre determinada pela consciência do grupo. Segundo Ricouer, essa
reflexão de Durkheim foi transportada para a reflexão sociológica de modo
exagerado, sendo incorporada também aos estudos sobre a memória.
Para Ricouer (2007, p.106), essa situação polêmica, que coloca praticamente
a memória individual e a coletiva em rivalidade, revela que “elas não se opõem no
mesmo plano, mas em universos de discursos que se tornaram alheios um ao outro”.
O objetivo, segundo Paul Ricouer, é colocar um fim nessa discussão, a partir do
entendimento das especificidades dos discursos elaborados, sustentados de um
lado e de outro, além de propor caminhos de reencontro entre eles.
Nesses campos distintos, mas, segundo Ricouer, complementares, teremos
então os adeptos da memória individual, com uma proposta interior de abordagem
da memória, e os adeptos da memória coletiva, com uma proposta mais exterior de
abordagem da memória. Nessa perspectiva de memória coletiva nos deparamos
com o pensamento de Maurice Halbwachs, na obra Memória Coletiva (2006). Esse
sociólogo, morto em um campo de concentração em 1945, teve uma posição sólida
em defesa da memória coletiva, oriundo de um conceito anterior, também formulado
por ele, que é o de quadros sociais da memória que se baseiam em três aspectos: o
espaço, a memória/lembrança e a linguagem. Estes quadros somente são possíveis
a um grupo. São estes quadros que são facilmente perceptíveis no contexto das
tradições africanas.
Sobre essas características do espaço, da lembrança e da linguagem
podemos dizer que elas são também basilares para a condição humana, que solicita
um espaço, o outro e a palavra, ou seja, o homem somente se faz em totalidade, a
partir do momento em que tem assegurado estes quadros. No caso africano, mesmo
nos grupos nômades, a questão do espaço é significativa, pois o fato de deslocar-se
de um espaço a outro, não significa a perda da necessidade espacial: o próprio
espaço de locomoção, de deslocamento e a fixação temporária nas distintas regiões

57
Sobre o conceito de consciência coletiva é recomendado ler a obra As regras do método
sociológico de Emile Durkheim.
72

são constitutivos de uma memória coletiva desses grupos. Com o conceito de


memória coletiva formulado, o objetivo era de fato entender a ideia, a validade de
uma memória individual.
Porém, Paul Ricouer não assume uma posição como a de Halbwachs de
defender uma memória coletiva com veemência. O filósofo tem uma posição de
reflexão entre a memória individual e a memória compartilhada. Outros autores,
entre eles Joel Candau (2011), são defensores da memória individual e constituem
os seus argumentos a partir dessa perspectiva. Assim se expressa Candau,

Ora, se as memórias individuais são dados (não se pode, por exemplo,


registrar por escrito ou suporte magnético a maneira pela qual um indivíduo
tenta verbalizar sua memória), a noção de memória compartilhada é uma
inferência expressa por metáforas (memória coletiva, comum, social,
familiar, histórica, pública), que na melhor das hipóteses darão conta de
certos aspectos da realidade social ou cultural ou, na pior delas, serão
simples flatus vocis sem nenhum fundamento empírico. Essas
generalizações parecem, no entanto, inevitáveis se não se quer impedir a
possibilidade de qualquer teoria antropológica. (CANDAU, 2011, p.29)

Dessa forma, segundo o autor em destaque, “a existência de atos de memória


coletiva não é suficiente para atestar a realidade de uma memória coletiva. Um
grupo pode ter os mesmos marcos memoriais sem que por isso compartilhe as
mesmas representações do passado.” (2011, p. 35).
Para Ricouer, existe a individualidade do ponto de vista que pondera sobre
dados coletivos, ou seja, a lembrança ocupa características distintas para cada
pessoa que se lembra, mesmo mediadas pelas outras ou pelo meio. Ricouer nos diz
que esse ponto de vista muda segundo o lugar que uma pessoa ocupa e que, por
sua vez, esse lugar também muda segundo as relações que o indivíduo mantém
com o meio em que vive. Dessa maneira, o autor contribui com a questão ao dizer
que as memórias individuais predominam sobre as coletivas, mas as memórias
individuais estão inseridas na memória coletiva.
Aliás, essa é uma característica que nos ajuda a pensar um pouco a maneira
como o africano se relaciona com seu universo cultural. Na perspectiva africana, e
de acordo com Hampaté Bâ (2010), o indivíduo no contexto da comunidade somente
é importante e relevante se o que ele pensa e faz tem sentido também para o grupo:
o indivíduo é significativo desde que seja para o grupo.
De acordo com Munanga (2009), o conceito de memória coletiva de
Halbwachs parece estar mais próximo do conceito de memória encontrado na África
73

tradicional. No entanto, na leitura da obra de Amadou Hampaté Bâ (2003) e de


outros textos do autor, tais como Tradição Viva (2010), não fica evidenciada na
percepção dele uma análise sistematizada da memória na busca de uma verificação
se a mesma é individual ou coletiva, ou, como pensa Ricouer, se existe uma relação
de complementação entre elas. Em partes dos textos de Hampaté Bâ este se refere
à memória dos dois modos, seja individual ou coletiva, aparentemente como um
recurso explicativo sobre um aspecto da cultura. Porém, pelas características da
relação com o outro, pelo aspecto documental que se propõe os memorialistas
africanos, ou como eles são descritos na sociedade, nos parece que não exista
margem, ao menos no que se refere à história do grupo ou de uma pessoa, a uma
interpretação individual que altere o sentido daquela lembrança e o papel que ela
ocupa no contexto da sociedade. Sendo assim, ela então estaria mais próxima do
sentido de memória coletiva, pensada por Halbwachs. A própria sociedade africana
se assenta, segundo Ki Zerbo (2010), em uma base coletiva, algo que é reafirmado
por Bâ (2010), e nesde aspecto nos parece que a memória possa ser compreendida
também nesse contexto.
Além do mais, Munanga (2009, p.16) nos diz que “a história escrita ou oral
não pode ser feita sem a memória”, e esse é um fenômeno que se constrói
coletivamente. Desse modo, reafirma a relevância do trabalho de Halbwachs.
De acordo com o historiador e antropólogo belga Jan Vansina,

O historiador deve, portanto, aprender a trabalhar mais lentamente, refletir,


para embrenhar-se numa representação coletiva, já que o corpus da
tradição é a memória coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma.
Muitos estudiosos africanos, como Amadou Hampaté Bâ ou Boubou Hama
muito eloquentemente têm expressado esse mesmo raciocínio. O
historiador deve iniciar-se, primeiramente, nos modos de pensar da
sociedade oral, antes de interpretar suas tradições. (2010, p.140).

Sendo assim, nos apropriaremos do conceito de memória coletiva para nos


aproximarmos de uma compreensão do universo cultural do oeste africano.

II.1 – A memória coletiva

A memória coletiva exposta por Halbwachs, embora, segundo Ricouer, seja


herdeira da perspectiva de consciência coletiva de Émile Durkheim, não nega
74

campos de decisão individual, não sobrepondo apenas valores externos ao indivíduo


como seus determinantes, já que, para Halbwachs, a mudança social é também
motivada pelos indivíduos, que com essa perspectiva também alteram os quadros
sociais existentes, estabelecendo com isso outros determinantes, o que significa
dizer que, se somos alterados pelo meio, sobre ele também promovemos mudanças,
a partir dos diferentes contatos que estabelecemos com um mesmo dado trazido
pela memória. O sujeito não está inerte diante da sua existência. Se assim
entendermos essa perspectiva, a proposta de memória coletiva estabelecida por
Halbwachs nos permite dialogar com a ideia de memória no oeste africano.
Para Halbwachs (2006, p.30), “as nossas lembranças são sempre coletivas,
pois jamais estamos sós”. De acordo com este autor, estamos sempre
acompanhados, independentemente da presença física do outro. O outro sempre é
presente pelas impressões que encontram semelhança em nossas lembranças, ou
mesmo em nossas significações. Essa análise encontra correspondência na cultura
africana, segundo Hampaté Bâ (2010), embora em uma perspectiva mais voltada a
um modo de percepção ontológica, que destaca o papel da ancestralidade no
conjunto das lembranças do sujeito. Percebemos então uma relação não somente
física com os dados da memória, mas também espiritual, expressa no conjunto
simbólico e ritual dessas culturas, no qual os antepassados se fazem presentes no
contexto da sociedade através da lembrança dos seus feitos.
Até o momento, ao tratar da memória estamos destacando um dos seus
aspectos que têm a ver com a lembrança ou rememoração. Na realidade é a
memória voltada a ela mesma, aquilo que nela esteja impresso, guardado. Para
Halbwachs, a memória não está somente no indivíduo, mas nas coisas, nos objetos,
e ao observá-los ou termos contato com eles nos lembramos, recordamos.
É preciso pensar que existe outro aspecto da memória que é o registro
intencional de algo, aspecto este refletido por Ricouer. É válido salientar uma
distinção entre memorização e rememoração. Para esse autor, a rememoração é o
retorno à consciência desperta de um acontecimento que se reconhece ter
acontecido antes do momento que esta declara tê-lo percebido, sentido. Desse
modo, diz: “a marca temporal do antes constitui, assim, o traço distintivo da
recordação, sob a dupla forma da evocação simples e do reconhecimento que
conclui o processo de recordação” (2007, p.73).
Sobre a memorização afirma que,
75

...em contrapartida, consiste em maneiras de aprender que encerram


saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que estes sejam fixados, que
permaneçam disponíveis para uma efetuação, marcada do ponto de vista
fenomenológico por um sentimento de facilidade, de desembaraço, de
espontaneidade. (p.73).

Nesse contexto refletido por Ricouer, a perspectiva de memória de Halbwachs


está vinculada à ideia de rememoração. O que vemos hoje em um lugar, ou uma
coisa, baseia-se na realidade não somente nas impressões daquele momento, mas
em muitas impressões já vivenciadas e sentidas por outro sobre aquele mesmo local
ou coisa. “É como se estivéssemos diante de muitas testemunhas” (HALBWACHS,
2006, p.29).
Para Halbwachs, é como se no momento da lembrança existissem dois seres
no eu: um é o ser sensível, uma espécie de testemunha que observa, e o eu, que
realmente não viu, mas que talvez tenha visto outrora e que pode ter uma opinião
baseada no testemunho dos outros. De acordo com o autor, é necessário evocar em
nós mesmos lembranças, e assim juntá-las às lembranças exteriores para que se
torne uma consistente massa de lembranças. Esse aspecto é relevante, pois o
parece conferir legitimidade maior aos dados da memória. É nesse contexto que se
pode então estabelecer a credibilidade dos fatos rememorados.
Essas análises de Halbwachs coincidem em grande parte ao que é proposto
pela cultura tradicional africana. De acordo com Hampaté Bâ (2003; 2010), a cultura
do grupo é mantida na memória de seus membros, que ao interagirem e proporem
ritos comuns, renovam laços de parentesco, de proximidade e legitimam a memória
comum, constituindo assim a história.
Esse aspecto está relacionado à ideia ampla de comunidade ou coletividade.
Esse princípio de alteridade é condição fundamental para o estabelecimento da
memória e o seu reconhecimento como dado relevante na cultura africana. Se
Halbwachs, assim como Hampaté Bâ (2003), observa na coletividade o ponto de
apoio do pesquisador ao trabalhar com a memória, este então pode ser um
elemento de validade e relevância, assegurando, desse modo, a necessidade de
reconhecer no aspecto coletivo um aliado para a credibilidade da memória. Para os
dois autores o homem sempre está inserido em um grupo, ele nunca está sozinho,
mesmo que aparentemente esteja só.
76

Para Halbwachs, existe a necessidade social, a sociedade, para afirmar a


lembrança. Daí, não nos lembrarmos de nossa primeira infância na qual não se
estabelece uma consciência social. A partir dessa perspectiva, nota-se o quanto a
cultura tradicional do oeste africano preserva o convívio social, a comunidade. O fato
de estar em comunidade não retira o papel da subjetividade do indivíduo.
Diferentes impactos são vividos por membros de um mesmo grupo, baseados
nas posições que estes ocupam em um mesmo momento, assim como a sua
condição psíquica diante dos mesmos. O fato de participarem de um grupo não os
torna iguais em suas percepções, elas continuam particulares e individuais, mesmo
que o seu processamento não seja isolado e esteja o tempo todo mediado pelos
outros. De acordo com Halbwachs, a memória coletiva deve encontrar-se com a
memória individual. Nesse aspecto é como se a memória individual estivesse sob a
lógica da memória coletiva.
No processo de desenvolvimento da pessoa humana nota-se a sua gradativa
inserção no convívio social, o que a aprimora ao longo da vida, habilitando-a para o
exercício de suas funções junto à comunidade a que pertence. As crianças, à
medida que vão crescendo, são inseridas por esse processo gradativo na vida social
dos adultos, estabelecendo antes, entre si, pequenas estruturas sociais, de acordos
e negociações, que as preparam para a vida. Para isso, as crianças vivem situações
que as conduzem paulatinamente às decisões e compreensão do seu próprio
processo de desenvolvimento para as próximas etapas da vida. No dizer de
Halbwachs, “a sequência de pequenas provas que são como uma preparação para
vida do adulto” (2006, p.47).
Esse aspecto também é percebido na sociedade africana, vejamos um
exemplo na cultura do Mali quando Hampaté Bâ (2003) se refere às associações de
crianças e adolescentes estimuladas pelos pais, nas quais se aprendem as regras
do convívio social, assim como a diplomacia, o exercício da liderança, o
cumprimento das responsabilidades e a atenção ao grupo. Vejamos na narrativa de
Hampaté Bâ o relato de sua experiência sobre esse processo de formação.

Foi então que minha mãe mandou construir uma casa bem grande para
mim e meus companheiros. Ali podíamos nos reunir, fazer as refeições e
até dormir. Nós a chamávamos de walamarou, “o dormitório da associação”.
Foi a partir deste momento que comecei mesmo a formar um círculo de
pessoas a meu redor e a desempenhar meu papel de chefe da waaldé.
(2003, p.174).
77

As waaldés58 são como centros, escolas de formação nas quais as crianças e


jovens são exercitadas na prática a desenvolverem a responsabilidade e o
comprometimento com o outro, com a comunidade. Desse modo, aquilo que a
tradição lhes proporciona é um encontro da teoria com a prática, do material com o
espiritual. Na waaldé os valores oriundos da herança dos antepassados são
reorganizados em um tempo presente, no qual as diferenças dos tempos, no que
concerne à atualidade e emergência de outras situações, proporcionam o cenário no
qual os velhos saberes podem ser reinventados. Essas situações proporcionam um
aprendizado que pode ser aprimorado e testado, conduzindo ao crescimento
humano e melhorando a vida em comunidade.

O desenvolvimento da pessoa vem acompanhado do ritmo dos grandes


períodos de crescimento corporal, e que corresponde a um nível de
iniciação. A iniciação promove a pessoa psíquica uma condição moral e
mental que permite a realização perfeita e total do indivíduo. (HAMPATÉ
59
BÂ, 1972, p.12) ( tradução nossa ).

Os ritos de passagem que ocorrem na sociedade tradicional africana são


caminhos que preparam a pessoa nas diferentes fases de sua vida para o convívio
social, e as waaldés colaboram nesse processo.

A tradição considera que a vida de um homem normal comporta duas


grandes fases: Uma ascendente até os sessenta e três anos. E, outra
descendente até os 126 anos. Cada uma destas fases comporta três
grandes sessões de vinte e um anos, composta de três períodos de sete
anos. Cada sessão de vinte e um anos marca um degrau da iniciação, e
cada período de sete anos marca uma etapa da evolução da pessoa
60
humana. (HAMPATÉ BÂ, 1972, p.12-13). ( tradução nossa ).

Outro desses ritos é o da circuncisão dos meninos61, que, de acordo com


Hampaté Bâ (2003), é um ritual que educa para a vida e define a passagem da vida

58
Associações de crianças e adolescentes
59
Le développement de la persone va s´accomplir au rythme des grandes périodes de la
croissance du corps, dont chacune correspond à un degré d´initiation. L´initiation a pour but donner á
la personne psychique une puissance morale et mentale qui conditionne et aide la réalisation parfaite
et totale de l´individu. (HAMPATÉ BÂ,1972,p.12).
60
La tradition considere que l avie d´um homme normal comporte deux grandes phases: l ´une
ascendant, jusqu´à soixante trois ans, l´autre descendante, jusqu´à cent vingt six ans. Chacune des
ces phases comporte trois grandes sections de vingt et um ans, composée de trois périodes se sept
ans. Chaque sectin de vingt et um ans marque um degré dans l´initiation, et chaque période de sept
ans marque um seuil dans l´évolution de la personne humaine.( HAMPATÉ BÂ,1972,p.12-13).
61
A circuncisão masculina na África do Oeste é oriunda tanto de práticas religiosas locais,
advindas das chamadas religiões nativas, como das tradições judaicas, como no caso da etnia ibô da
Nigéria, ou de influências do Islã, algo bastante presente na cultura de Amadou Hampaté Bâ. Na obra
Amkoullel, o menino fula, o autor descreve de modo mais detalhado esse universo. É válido dizer que
78

de criança para a vida adulta. Esses rituais normalmente são coletivos e marcam de
maneira especial o grupo que deles participa com experiências individuais, entre as
quais o medo, o espanto, a curiosidade, a coragem, a resistência à dor, enfim, uma
série de sensações vividas individualmente, mas que são celebradas em conjunto,
fazendo parte da vida daquelas pessoas, como uma memória comum, coletiva, na
qual todos os componentes são relevantes, as cores, os cheiros, os sabores, tudo é
componente a ser lembrado. Esse rito coletivo gera para o grupo que dele participa
um elo de proximidade e respeito que será levado pelo resto da vida. Este rito vivido
coletivamente será sempre lembrado e os elos entre essas pessoas ficarão
fortalecidos. “Uma quinzena de meninos do bairro deviam ser circuncidados ao
mesmo tempo. Como de costume, a cerimônia seria precedida por uma grande festa
que duraria a noite inteira, do pôr-do-sol ao amanhecer” (HAMPATÉ BÂ, 2003,
p.192).
A memória, nesse contexto, é quase uma fotografia para cada um dos
indivíduos que coletivamente viveram uma mesma experiência. Amadou Hampaté
Bâ dirá que “quando se lembra, não são apenas palavras que são recordadas, mas
cenas inteiras são visualizadas. Pode-se ver cenas passadas como em uma tela de
cinema. Para descrever uma cena só preciso revivê-la” (2003,p.13).
Tudo é motivo para que a lembrança aconteça, e esse tudo significa pensar
todos os envolvidos, todas as partes e os espaços em que os fatos ocorreram e a
maneira como são alçados a memória. Essa experiência possibilita que contextos
inteiros sejam retomados. A memória ligada ao espaço também é alvo do interesse
e reflexão de Halbwachs. O espaço conserva em si muitas lembranças, que se
registram em cada objeto em particular, e até mesmo “as pedras falam”.
Essa mesma memória contida no espaço é o que Hampaté Bâ (2003) chama
a atenção, pois todas as experiências vividas pelo grupo, os locais em que elas
aconteceram, são passíveis da rememoração, tão logo os espaços ainda existam,
mesmo que modificados, e as pessoas também existam. Essa é uma característica
também relevante no estudo da memória coletiva de Halbwachs. Por isso, o cuidado
pela preservação, no universo da cultura tradicional, dos espaços, das pessoas.

segundo a crença islâmica a circuncisão não é obrigatória para os homens, e muito menos para as
mulheres. No entanto, essa prática tornou-se comum em alguns povos islamizados, talvez por uma
herança do judaísmo. Já a circuncisão feminina é uma prática de algumas culturas, africanas ou não,
e que muitas vezes é atribuída erroneamente ao Islã. Na realidade esses povos adotaram o Islã
enquanto religião, mas não abandonaram algumas de suas práticas originais.
79

Essas memórias surgidas desses encontros com os lugares e com as


pessoas nunca são solitárias: como nos diz Halbwachs, elas sempre estarão
permeadas pelos outros e pelo impacto que os outros deixaram no lugar e também
entre as próprias pessoas.
Uma experiência sobre a importância do espaço encontramos com as
comunidades remanescentes de quilombo no Brasil. O espaço territorial oriundo dos
antigos povoadores é uma condição fundamental para o grupo e afirma uma
identidade comum, a partir de uma memória coletiva.

O legado dos líderes quilombolas e da comunidade de quilombos é a


politização, expressa na coletividade, compreendendo crianças, jovens e
idosos, e que se manifesta no enfrentamento e na efetiva participação
política no sentido de legitimar e garantir o direito constitucional da titulação
da terra de quilombos, cuja posse é, desde a origem, símbolo de
resistência. (AMÉRICO, 2013, p.24).

No continente africano, não sendo diferente no oeste da África, essa ligação


com o espaço territorial é marcante na constituição dos grupos étnicos, já que o
espaço territorial delimitado pelas ex-colônias africanas na maioria das vezes não
corresponde ao espaço anteriormente ocupado pelos grupos étnicos, que mantêm
em suas memórias a lembrança do espaço visto ou contado pelos seus ancestrais,
espaços esses que possuíam configurações territoriais bastante distintas das
encontradas hoje em dia. Essa percepção é relatada por Hampaté Bâ (2003) ao
demonstrar o esforço que o seu próprio grupo étnico realizava para manter as
relações afetivas entre seus membros a partir do espaço territorial que ocupavam.
As pessoas em sua individualidade tinham a partir do espaço comum o alçar
das memórias, que, apesar de ditas individuais, são alçadas por um dado coletivo
que envolve a todos, embora de modos diferentes, e é esse conjunto de lembranças
que auxilia na constituição da memória.
Desse modo, para Halbwachs (2006, p.69), “a memória individual é um ponto
de vista da memória coletiva”, mas o que se define de fato é a memória coletiva,
capaz de agregar todas as lembranças e tornar-se de fato uma memória.
No entanto, para refletirmos melhor esses aspectos e entender a relação
entre memória e sociedade devemos recorrer também à história. E nesse contexto é
fundamental que saibamos perceber a relação da memória com a história na
perspectiva africana. Sem o entendimento dessa questão torna-se quase impossível
estabelecer-se um diálogo com a África. Ao buscar-se compreender a África do
80

oeste, em qualquer dos seus aspectos, torna-se necessário dedicar-se ao


entendimento de sua tradição. A história da África segundo Ki Zerbo (2010) somente
poderá ser escrita quando a tradição for aceita, e nesse conjunto o diálogo entre a
memória e a história é essencial.

II.2 – Memória e História

Ao longo da história da historiografia a memória sempre apareceu como um


ponto delicado, já que sempre foi colocada com certa cautela, principalmente quanto
à legitimidade e à segurança das suas bases. Os estudos sobre a história oral, que
têm na memória uma fonte necessária, já que fatos são rememorados por sujeitos
que os relatam, fizeram com que a temática da memória fosse destacada. No
contexto dos estudos sobre a África, em especial no que se refere a sua história,
torna-se essencial o reconhecimento da memória como fonte.

Na história oral, o objeto de estudo do historiador é recuperado e recriado


por intermédio da memória dos informantes; a instância da memória passa,
necessariamente, a nortear as reflexões históricas, acarretando
desdobramentos teóricos e metodológicos importantes... (AMADO;
FERREIRA, 2006, p.15).

A história oral tem tido uma projeção cada vez mais acentuada nas últimas
décadas, isso se dá principalmente pelo encontro com grupos humanos, portadores
de outros valores civilizatórios, entre eles a maneira de se comunicar e registrar os
fatos acontecidos. A história oral tem como desafio elaborar uma metodologia de
apreensão desses diferentes falares, sem categorizá-los pelos próprios valores da
cultura letrada. Nesse sentido, cabe ao historiador procurar entender as diferentes
culturas que irá investigar. É assim que o diálogo com outras áreas do conhecimento
desenvolvidas no ocidente tem auxiliado no aperfeiçoamento metodológico para o
cumprimento mais apropriado das pesquisas.
Atualmente, tem-se em boa medida o consenso de que a história de
determinados grupos não pode ser construída esquecendo-se ou evitando este traço
importante do ser humano. Outrora, tal característica civilizatória era tida como
marca de inferioridade, de menor capacidade intelectual, o que serviu para legitimar
ações contra esses povos. No entanto, ao aproximar-se a história enquanto ciência
81

dessas diferentes realidades culturais tornam-se cada vez mais alargadas as


possibilidades da historiografia universal. Ao se estar mais disponível para o outro,
abre-se a possibilidade do diálogo, e com isso, o entendimento e o reconhecimento
mútuos.
A memória é cultivada na África tanto no contexto da rememoração como da
memorização. A rememoração como nos diz Ricouer está de, acordo com Bâ
(2003), no universo contido na tradição e a memorização está também associada a
esse universo, mas, de modo especial, encontra-se associada ao mundo religioso,
em grande parte ligada ao islã. Na religião islâmica é comum que os jovens logo
cedo sejam iniciados na memorização do Alcorão.
Um aspecto relevante da questão da memória na tradição do oeste africano é
a não separação da memória com a história. Antes, porém, tal como Ki Zerbo (2010)
nos diz, a tradição oral, da qual a memória é componente importante, é uma das
bases da história africana, juntamente com a arqueologia e a escrita, que contam
ainda com o apoio da linguística e da antropologia como ciências investigativas.
Vejamos,

Uma das peculiaridades da memória africana é reconstituir o acontecimento


ou a narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que se
desenrola do princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de
recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos
participam, o narrador e a sua audiência. Aí reside toda a arte do contador
de histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar um
fato tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim
como ele próprio, tornem-se testemunhas vivas e ativas desse fato. Ora,
todo africano é, até certo ponto, um contador de histórias. (HAMPATÉ BÂ,
2010, p.208).

Neste sentido, a memória então é parte constitutiva da história, ou seja, a


memória também é história. No entanto, aqui há uma distinção da percepção de
Halbwachs em relação à memória, já que para esse autor, a história somente
começa quando acaba a memória, pois esta trata de aspectos vividos, no qual
alguns membros ainda vivos podem relembrar um passado e relatá-lo de acordo
coma sua experiência diante desses acontecimentos. A história, por sua vez, apenas
inicia-se quando não existe mais como acionar essas lembranças, cabendo a ela
então recolher as fontes possíveis para fazer uma descrição do passado, elaborando
uma escrita do passado.
82

Essa representação escrita do passado nunca será de fato o passado: este já


ocorreu, e o que temos é uma representação possível desse passado. Mas, de
acordo com Certeau (1982), essa representação criada nunca está totalmente isenta
de uma intenção determinada pela condição de um determinado momento. Aqui nos
deparamos com o mesmo problema que havíamos discutido em relação à memória
e sua validade para a história. Portanto, nota-se que o trabalho do historiador
sempre será o de permitir que as fontes sejam reveladas e interpretá-las dentro de
suas possibilidades.
Para Certeau (1982), o trabalho do historiador é construir, a partir das fontes
já passadas, dos documentos possíveis, uma descrição do passado. Contudo, essa
descrição nunca será o passado reconstituído, pois será uma possibilidade, vista de
uma perspectiva, que é limitada pelas próprias condições do pesquisador e das
fontes.
Esse é o percurso historiográfico, a escrita da história, a qual Certeau,
denomina trabalho sobre o morto. Pois o que existe por parte do historiador é uma
pesquisa sobre um fato já acontecido, impossível de ser reconstituído. Portanto,
esse sempre será um dado aproximado. No entanto, podemos pensar isso quando
se localizam as fontes, os documentos, as fotografias. Mas será que no caso
africano, esse percurso se dá da mesma forma? Essa é uma questão delicada, pois
mesmo as pessoas que se lembram, a principal fonte da memória, têm suas
lembranças dadas em um presente, pois temporalmente elas não estão no passado,
além do mais, existe o fato normalmente aceito de que a memória seja seletiva.
No caso africano, essa relação com a memória, além do aspecto coletivo,
insere-se no que se chama, segundo Hampaté Bâ (2010), uma tradição viva, pois ao
estabelecer-se a transmissão da lembrança ao longo das gerações, acredita-se - e,
aliás, toda a sociedade tradicional se baseia neste fato - que os dados, as fontes não
podem ser modificadas, já que existe uma ligação ética e metafísica com a palavra,
e o seu mecanismo da transmissão. Desse modo, tem-se na memória um registro
confiável, que no caso do oeste africano é muito mais confiável do que qualquer
documento escrito.

Tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito


funcionamento de suas instituições, para uma correta compreensão dos
vários status sociais e seus respectivos papéis, para os direitos e
obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente transmitido. Numa
sociedade oral isso é feito pela tradição, enquanto numa sociedade que
83

adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas a


tradição. É esse fato que levou durante muito tempo os historiadores, que
vinham de sociedades letradas, a acreditar erroneamente que as tradições
eram um tipo de conto de fadas, canção de ninar ou brincadeira de criança.
(VANSINA, 2010, p.146).

A memória, na perspectiva de Amadou Hampaté Bâ, é a própria história, por


isso na tradição africana relatada por Hampaté Bâ (2003; 2010) esses termos
chegam a confundir-se. Nessa perspectiva, não existe uma ruptura ou linha que de
fato afirme o que é história ou o que é memória. Essa noção é relevante para que se
compreenda o universo de práticas e saberes da África tradicional.
É importante retomar a reflexão de Joseph Ki Zerbo (2010) que, ao ajudar a
estabelecer um método de estudos para a história da África, indica a tradição oral
como uma das referências, e nesta a memória. Em nosso caso, uma vez que a
pesquisa se dá a partir da análise de obras de Amadou Hampaté Bâ (2003; 2010) e
não como uma pesquisa de campo, in loco - o que talvez possibilitasse uma
compreensão empírica da cultura que estamos tratando -, parece-nos ser mais
coerente nos estabelecermos no método de Joseph Ki Zerbo, já que o mesmo não
fere tampouco desconstrói o modelo próprio da tradição oral, mas ao mesmo tempo
subsidia o investigador com outras técnicas e métodos teóricos que o auxiliem na
interpretação dos dados.
O método investigativo sobre a África vai se consolidando e assim concebe
um caminho para a escrita da história da África, uma historiografia que dê conta de
interpretar do modo mais coerente possível o registro cultural que se encontra no
continente africano. A oralidade irá compor de modo especial este método
investigativo e a palavra falada será então estudada com atenção, e isso dentro do
seu universo.
Na concepção africana, segundo Hampaté Bâ (2010), não se pode mentir, os
vínculos estabelecidos com a comunidade abrangem não somente a relação com os
viventes, mas também com aqueles que já se foram. Assim nos diz: “Para eles, a
mentira não é simplesmente um defeito moral, mas uma interdição ritual” (p.176).
Dessa maneira, um elo é estabelecido, e a vida dos falecidos é manifestada,
pela fidelidade as suas lembranças, a sua palavra. Desse modo, no contexto cultural
africano, a palavra cria ou mata, caso seja proferida de maneira falsa.
84

II.3 – Memória e Oralidade

Os historiadores culturais têm procurado, segundo Pesavento (2004), maturar


e aprimorar os mecanismos investigativos e metodológicos da história, com o intuito
de serem mais coerentes quanto possível com a pesquisa sobre outros povos. A
historiografia, ao reconhecer outras experiências civilizatórias, tem contribuído
significativamente para a reordenação dos diálogos mundiais entre os diferentes
povos. Essa função social demonstra um comprometimento científico também por
parte da história com a correção de erros do passado, que somente fizeram alargar
as distâncias entre os povos. Infelizmente, de acordo com Ki Zerbo (2010), no caso
africano esses erros ocasionaram anos de atraso para as pesquisas. E mesmo o
interesse para as temáticas relacionadas ao continente africano ficou em segundo
plano, quando se pensava o número de pesquisas em história sobre outros lugares
do mundo.
O continente africano continuou a ser descrito imerso na obscuridade, no
exotismo e no primitivismo. Portanto, tornar significativo o papel da memória na
constituição da tradição oral e, consequentemente, na estruturação da história
africana possibilitou a ampliação do olhar sobre o continente, e, nesse caso, exigiu a
alteração do modo como se investiga a África, fazendo revelar o quanto esse
continente ainda é desconhecido.
De acordo com Hampaté Bâ (2010), o entendimento das tradições africanas é
primordial, seja no contexto social, econômico ou cultural, já que a partir dele é que
comunidade se organiza. A educação também se baseia nos valores oriundos da
tradição, ou seja, da tradição oral. É com o entendimento da tradição que se pode
aproximar do continente africano com a atenção necessária para não sufocar as
expressões culturais locais e as formas de gerenciamento da sociedade comunitária,
perfil este que caracteriza os grupos que preservam a tradição.
A memória cultivada pelos tradicionalistas é, segundo Hampaté Bâ (2003), a
narrativa profunda da África, do modo de ser do africano e de uma maneira de se
estar no mundo. Essa memória se expressa na oralidade, sendo que a oralidade é
tudo, é, na perspectiva dos tradicionalistas africanos, a própria vida, a existência
como um todo. Por isso, Chartier (1999, p.20) diz: “propomos que se tome o
conceito de representação num sentido mais particular e historicamente
determinado”. É dessa maneira que o contato com esse modo de ser define uma
85

representação que a tradição oral procura revelar e perpetuar através da educação.


Esta é a subjetividade que Castiano propõe, sendo, pois, a oralidade, de acordo com
Hampaté Bâ, o caminho mais íntimo que revela a África e sua gente.
A partir da oralidade ou tradição oral, temos a configuração social dada, que
permite ao pesquisador reconhecer através dos traços dessa cultura tanto os
caminhos percorridos, como também perceber os desafios que se apresentam na
consolidação de uma representação. Desde o período da colonização a consciência
histórica62 de um povo baseada em suas formas de vida era alvo de ataques dos
dominadores, pois, de acordo com Munanga (2009), ela estabelece a coesão na
comunidade a ser dominada e fortalece a noção de pertencimento. Nessa
perspectiva, na África do oeste foi possível verificar o esforço realizado pelo
dominador para coibir a educação oriunda da tradição oral, pois ela fortalecia a
consciência histórica do grupo.
No continente africano, durante o período colonial, as escolas ocidentais
cumpriam um papel auxiliar na tentativa de impor a cultura europeia em detrimento
da cultura local.

A maior parte do ensino – como em todas as escolas primárias nativas


locais – consistia em nos fazer aprender a ler, escrever e, sobretudo a falar
corretamente o francês. O ensino de matemática elementar limitava-se às
quatro operações básicas: adição, subtração, multiplicação e divisão.
Depois de um ano ou dois, os alunos que haviam conseguido um número
de pontos suficiente eram enviados a uma escola regional onde se
preparavam para as provas do certificado de estudos primários nativos,
necessário para frequentar a escola profissional de Bamako. (HAMPATÉ
BÂ, 2003, p.231).

Esse é um exemplo do percurso que a criança e o adolescente africano


deveriam percorrer. Nesse período, a criança era sucessivamente afastada de sua
cultura. De acordo com Hampaté Bâ, até mesmo o uso das línguas locais era
coibido. Munanga (2009, p.35) diz que “é através da educação que a herança social
de um povo é legada às gerações futuras e inscrita na história. Privadas da escola
tradicional, proibida e combatida para os filhos negros a única possibilidade é o
aprendizado do colonizador”. A criança e o jovem nessa condição eram, segundo
Munanga e Hampaté Bâ, conduzidas a aceitar uma memória imposta pelo

62
Para Munanga, a consciência histórica, refere-se à apreensão por parte das pessoas da
história comum, da história do grupo. Dessa maneira, define-se para o indivíduo a condição de
pertença ao grupo e o comprometimento em cuidar desta memória comum.
86

colonizador e que não faz referência a sua própria história e o local que habitam.
Eram, desse modo, levadas a aceitar a representação do dominador.
Segundo Munanga, ao analisar essa questão educacional na África e também
a comparando ao processo escravista no Brasil, é possível perceber que “... o
afastamento e a destruição da consciência histórica eram uma das estratégias
utilizadas pela escravidão e pela colonização para destruir a memória coletiva dos
escravizados e colonizados.” (2009, p.12).
Para Munanga, essa consciência histórica é mais sólida nas comunidades de
tradição oral, pois se preserva em muitas das narrativas dos memorialistas, que, ao
transmitirem os mitos fundantes da comunidade, dão continuidade a um processo
ancestral, portanto histórico.
A África tem sido despertada para sua história, uma história contada por ela
mesma, tendo na tradição oral os principais elementos que caracterizam um modo
de ser africano que propicia uma representação mais próxima de sua identidade
cultural. É assim que as representações do continente para si mesmo e para o outro
têm sido alteradas. O reconhecimento dos valores culturais africanos pelos próprios
africanos tornou-se o diferencial para muitos países do continente em seu processo
de independência e da sua autonomia pós-colonial. Alguns presidentes dos novos
países africanos procuraram impulsionar esses novos estados a partir dessa cultura
original do continente. Esse foi o caso, por exemplo, do presidente Sékou Touré da
Guiné, que em seu governo fez questão de apresentar a imagem do país, interna e
externamente, a partir de suas culturas tradicionais, todas elas amparadas na
oralidade.
É sob o comando desse presidente que começaram a eclodir na Guiné os
chamados Ballets africanos63, que levavam para os palcos nacionais e internacionais
as epopeias históricas narradas nas aldeias de toda a Guiné. É com essa
experiência que o mundo começou a ter contato com um universo de informações

63
Os ballets africanos, a partir do exemplo da Guiné, passaram ao longo dos anos a ser um
canal relevante de visibilidade das culturas dos países africanos no mundo. Através dos ballets a
tradição oral, a história, a música, a dança e o canto oriundos da África, e normalmente conhecidos
apenas em suas comunidades, puderam ser apreciados e compartilhados. Um exemplo desse
fenômeno foi a experiência do percussionista guineano Mamady Keita (1953 - ), que através do
ballet da Guiné conheceu a Europa, e hoje mantém uma rede de escolas de percussão tradicional
malinke (grupo étnico), espalhada por vários países e continentes. Ver http://www.mamadykeita.info/
e http://www.ttmusa.org/
87

outrora desconhecido. É assim que histórias como a de Soudjiata Keyta 64 líder do


Império mandinga em territórios que hoje abrangem o Mali, o Senegal e a Guiné
puderam ser conhecidas e popularizadas, sendo transmitidas, ao modo tradicional
dos mestres da palavra, com cantos e danças, tornando-se uma comunicação viva,
típica da cultura oral.
A representação africana mediada pela tradição oral permitiu que a memória
coletiva de africanos e afrodescendentes em todo o mundo pudesse ser
reconstituída, ao colaborar de modo significativo com a identificação cultural dessas
pessoas em torno de símbolos familiares que possibilitaram uma reconstrução de
identidade, na qual os valores culturais do ocidente não seriam apenas sobrepostos
ao indivíduo, algo que facilita a constituição de uma autoestima negativa. Houve, de
acordo com Munanga (2010), um enfrentamento dessa condição imposta pelo
dominador.
Essa resistência tem base fundamental na memória e oralidade, pois foi
graças a esse legado que foi possível manter e estabelecer a transmissão de
símbolos que identificavam as pessoas em torno de valores comuns. Isso ocorre
tanto na África como na diáspora, não sendo diferente no Brasil. Foi a partir dessa
identidade reconstruída que se consolida o processo histórico para os africanos na
contemporaneidade. De acordo com Vansina (2010), a memória africana, de modo
geral, surpreende pelo seu alcance e espanta pelo seu registro detalhista. A tradição
oral tem na memória o aliado indispensável para sua continuidade.
Vejamos um exemplo dessa memória através de Hampaté Bâ e de como as
pessoas reagiram quando se deparam com o manuscrito do livro Amkoullel, o
menino fula.

Muitos amigos que leram o manuscrito mostraram-se surpresos. Como é


que a memória de um homem de mais de oitenta anos é capaz de
reconstituir tantas coisas, e principalmente, com tal minúcia de detalhes? É
que a memória das pessoas da minha geração, sobretudo a dos povos de
tradição oral, que não podiam apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de
uma precisão prodigiosas. Desde a infância, éramos treinados a observar,
olhar e escutar com tanta atenção, que todo acontecimento se inscrevia em
nossa memória como em cera virgem. Tudo lá estava nos menores
detalhes: o cenário, as palavras, os personagens e até suas roupas. (2003,
p.13).

64
(1190 - 1255) - A história do Rei Leão, como também era conhecido, é um dos grandes
marcos das narrativas que contam a saga de algumas etnias e civilizações da costa ocidental
africana.
88

A característica da memória africana descrita por Hampaté Bâ é algo peculiar


aos povos do oeste africano, que na sua maioria são considerados povos da
palavra. Mesmo que a escrita exista esse recurso não é sobreposto à condição da
palavra falada. A palavra escrita para esses povos não dá conta de tudo o que a
palavra falada representa para eles.
De acordo com Vansina (2010), o pesquisador que trabalha com os povos de
tradição oral precisa compreender a natureza discursiva presente na oralidade, que
é diferente de uma civilização de tradição escrita. Essa condição é fundamental para
que se consiga apreender os modos e símbolos contidos nessa forma de
organização social. Essa é uma preocupação constante em Hampaté Bâ (2003)
quando descreve aspectos da tradição oral, que, se não forem devidamente
compreendidos inicialmente, torna o desenrolar desse encontro entre a civilização
oral e escrita praticamente impossível; é como se fossem mundos completamente
distantes.
Segundo Vansina, “uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como
um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da
sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave,
isto é, a tradição oral.” (p.139-140). Pode-se perceber o quanto o valor da
ancestralidade é presente e necessário para os povos de tradição oral. Esse é outro
aspecto relevante da cultura, a questão da ancestralidade. De acordo com Leite
(2008), o ancestre está ligado ao mundo dos que não são mais visíveis fisicamente
no plano material, mas que nele exercem sua influência ao serem lembrados, e
assim, fazem parte da memória da comunidade.
Desse modo Vansina nos diz,

A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido


verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra
tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o
que prevalece na maioria das civilizações africanas. (2010, p.139-140).

Nessa perspectiva, nota-se que existe o desafio do outro de compreendê-lo


em suas características, em seus modos, em seu contexto civilizacional. A
representação do ocidente, no entanto, fez por impor um modo considerado válido
para significar as coisas, algo que a representação africana, principalmente aquela
oriunda das tradições orais, aparece como diferente, como um contraponto ao modo
de olhar estabelecido. Por isso, enquanto essas diferenças de olhar não forem
89

compreendidas, torna-se praticamente impossível desenvolver-se a contento uma


pesquisa dos povos e culturas africanas em suas especificidades e singularidades.
Um dos aspectos que Hampaté Bâ percebe como sendo talvez de maior dificuldade
de aceitação e compreensão é a ausência de distinção entre espiritualidade e
materialidade presentes na tradição. Para o autor, estas características não são
simples de serem explicadas na lógica de pensamento ocidental, tampouco são
aceitas com facilidade. Deste modo relata que,

Outra coisa que às vezes incomoda os ocidentais nas histórias africanas é a


frequente intervenção de sonhos premonitórios, previsões e outros
fenômenos do gênero. Mas a vida africana é entremeada deste tipo de
acontecimentos que, para nós, são parte do dia-a-dia e não nos
surpreendem de maneira alguma. Antigamente, não era raro ver um homem
chegar a pé de uma aldeia distante apenas para trazer a alguém um aviso
ou instruções a seu respeito que havia recebido em sonhos. Feito isso,
simplesmente retornava, como um carteiro que tivesse vindo entregar uma
carta ao destinatário. Não seria honesto de minha parte deixar de
mencionar este tipo de fenômeno no decorrer da história, porque faziam e
sem dúvida, em certa medida ainda fazem parte de nossa realidade vivida.
(2003, p.15).

Nesse sentido, Hampaté Bâ ainda nos diz de distinções no próprio conceito


de culturas africanas, distinções estas que especificam particularidades étnicas e
civilizacionais no interior do próprio continente. Porém, apresenta os pontos de
proximidade entre estas culturas, e aqui se percebe em que momento o autor então
pode reconhecer certa unidade africana, e em que aspectos culturais ele a coloca.

Quando se fala da “tradição africana”, nunca se deve generalizar. Não há


uma África, não há um homem africano, não há uma tradição africana válida
para todas as regiões e etnias. Claro, existem grandes constantes (a
presença do sagrado em todas as coisas, a relação entre os mundos visível
e invisível e entre os vivos e os mortos, o sentido comunitário, o respeito
religioso pela mãe etc.), mas também há numerosas diferenças: deuses,
símbolos sagrados, proibições religiosas e costumes sociais delas
resultantes variam de uma região a outra, de uma etnia a outra; às vezes,
de aldeia para aldeia. (2003, p.14).

Hampaté Bâ é um pesquisador, um conhecedor de muitas tradições do oeste


africano; o contato com diferentes culturas dessa região desde a sua mais tenra
idade permitiu-lhe tomar contato com modos de vida, idiomas, ritos e símbolos que o
ajudaram a fazer uma leitura mais aprimorada dos pontos de semelhança e distinção
entre eles. No entanto, Hampaté Bâ faz questão de dimensionar esse conhecimento
sobre a África, evitando, desse modo, generalizações ou mesmo tecer
considerações sobre culturas que não conheceu no continente africano. Nesse
90

sentido, procura localizar a sua análise, demonstrando exatamente o seu lugar de


pertença e das culturas que ele descreve.

As tradições a que me refiro nesta história são, de maneira geral, as da


savana africana que se estende de leste a oeste ao sul do Saara (território
que antigamente era chamado Bafur), e particularmente as do Mali, na área
dos fula-tucolor e bambara onde vivi. (2003, p.14).

De acordo com Vansina (2010, p.140), “a oralidade é uma atitude diante da


realidade e não a ausência de uma habilidade”. A oralidade determina um modo de
ser, de pensar, de agir, ou seja, todo um modo de educar e aprender estão
configurados no universo tradicional. Sendo assim, o cuidado com a sua
preservação, com as suas características é para Hampaté Bâ (2003) de fundamental
necessidade para os africanos no entendimento de si mesmos e no estabelecimento
de sua representação, já que dela se origina o sentido de vida. Assim,

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos


os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o
segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar
tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o
espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o
exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens,
falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com
as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento,
ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recriação, uma vez
que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial.
(HAMPATÉ BÂ, 2010, p.169).

De acordo com Hampaté Bâ, a visão de unidade e inteireza que o africano


tradicionalista tem da vida e a interação entre os seres é determinante para um
modo de ser, no qual a sacralidade da palavra é preservada. A palavra falada é,
segundo a concepção da tradição oral, o elemento capaz de aproximar ou afastar os
seres no mundo, desse modo, está revestida de respeito e responsabilidade, não
podendo ser utilizada em vão. Por isso, os mestres da palavra, os memorialistas ou
tradicionalistas são respeitados na África.
Segundo Hampaté Bâ (2010, p.178),

Se o tradicionalista ou conhecedor é tão respeitado na África, é porque ele


se respeita a si próprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais
deve mentir, é um homem bem equilibrado, mestre das forças que nele
habitam. Ao seu redor as forças se ordenam e as perturbações se
aquietam.
91

A educação que está ligada ao universo da tradição oral busca uma educação
para a vida, para a totalidade das relações e interações humanas, assim como para
o autocontrole. A fala, ao ser portadora do poder da criação, deve ser observada,
medida, pois é a expressão do interior da pessoa. Diz-nos Hampaté Bâ: “falar pouco
é sinal de boa educação e de nobreza. Muito cedo, o jovem aprende a dominar a
manifestação de suas emoções ou de seu sofrimento, aprende a conter as forças
que nele existem...” (2010, p.178).
No entanto, aqui é importante compreender que no universo da cultura
africana de tradição oral, especialmente no Mali, existem diferentes funções sociais
e pessoas que se utilizam da palavra. Os que seguem um rígido processo de
iniciação e que são comprometidos com a verdade são os chamados doma, ou seja,
tradicionalistas ou memorialistas. Nestes, a memória é um documento válido e
verdadeiro. Já para os dieli ou griot, a disciplina da verdade não existe. De acordo
com Hampaté Bâ (2010), a tradição lhes concede o direito de travestir ou embelezar
os fatos, mesmo que de modo grosseiro, pois o objetivo é apenas divertir os
ouvintes.
No entanto, nos diz Hampaté Bâ,

Ao contrário, nenhum africano de formação tradicionalista sequer sonharia


em colocar em dúvida a veracidade da fala de um tradicionalista, doma,
especialmente quando se trata da transmissão dos conhecimentos
herdados da cadeia dos ancestrais. (2010, p.179-180).

Somente nesta distinção entre doma e dieli, pode-se perceber o quanto o


contato com o próprio universo africano a partir dos seus locutores é necessário.
Esse tipo de distinção não seria percebido ao olhar externo, pois aparentemente
eles não se distinguem, pois tanto o doma quanto o dieli, estão no universo da
tradição, e têm na palavra o seu meio de interação social. Ambos ocupam um papel
cultural e educativo na sociedade do oeste africano, porém com características
próprias. O valor do doma evoca também um saber metafísico, além do saber
histórico, o que também já é um desafio ao pesquisador ocidental, que em sua
formação racionalista dificilmente colocaria esses conhecimentos no mesmo nível de
relevância e significação.
O doma, ao também ser iniciado no universo da espiritualidade e da
ancestralidade, traz consigo uma carga de responsabilidades distintas; é sobre ele
que repousam os valores mais profundos e longínquos da sua cultura, e é sobre ele
92

que está a responsabilidade da herança e continuidade do saber, até mesmo sobre


a função e o papel do dieli. Portanto, o doma é, ao que nos parece, o guardião por
excelência da tradição.
Deste modo, Hampaté Bâ nos diz que,

Antes de falar, o Doma, por deferência, dirige-se às almas dos


antepassados para pedir-lhes que venham assisti-lo, a fim de evitar que a
língua troque as palavras ou que ocorra um lapso de memória, que o levaria
a alguma omissão. (2010, p.180).

Vejamos um exemplo oferecido por Hampaté Bâ (2010) da maneira como um


doma inicia uma história ou uma aula. Neste caso, ele está se referindo a Danfo
Siné, um grande sábio da etnia bambara, que Hampaté Bâ conheceu na infância.

“Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké”!


Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos tecelões,
Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste!
Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou.
Na trombeta do Komo,
Vindo sobre o Jeliba (Níger)!
Acercai-vos e escutai-me.
Em concordância com vossos dizeres
Vou contar aos meus ouvintes
Como as coisas aconteceram,
Desde vós, no passado, até nós no presente,
Para que as palavras sejam preciosamente guardadas
E fielmente transmitidas
Aos homens de amanhã
Que serão nossos filhos
E os filhos dos nossos filhos.
Segurai firme, ó ancestrais, as rédeas de minha língua!
Guiai o brotar das minhas palavras
A fim de que possam seguir e respeitar
Sua ordem natural.” (2010, p.180).

De acordo com o que vimos refletindo sobre a questão da oralidade no


universo da tradição africana, abre-se um desafio ao pesquisador, o de tentar evitar
o máximo possível atribuir categorias pré-definidas de análise a essa prática cultural.
Porém, essa busca não é simples, e por isso precisa ser amparada por critérios e
métodos que assegurem a coerência investigativa e que a descrição dos fenômenos
observados possam ser compatíveis ao dado observado.
Na explicação que Hampaté Bâ (2003) apresenta sobre a sua própria obra e
que reflete o seu cuidado para que a mesma possa ser compreendida em outras
culturas, nós podemos perceber algumas pistas que fazem revelar a necessidade de
talvez voltarmos um pouco aos primórdios da construção da história do ocidente, em
93

que os mitos de origem das narrativas religiosas começam a fazer parte de uma
narrativa também histórica, sendo aceitos sem maiores dificuldades.
Essa reflexão nos ajuda a perceber um dado comum das civilizações e
culturas, em que o elemento místico-mítico se faz presente, constituindo-se em parte
da história dos povos. Essas características não são absurdas e tampouco
estranhas até o momento em que a razão passa a ser determinante da explicação
da origem dos povos. Essa crise de entendimento e percepção do ser humano que
fez aflorar determinadas características em detrimento de outras, fez com que na
Europa, primeiramente, se fizessem por gradativamente minimizar alguns aspectos
da percepção do homem no mundo, que estivessem ligados a outras dimensões
humanas, entre elas a espiritualidade, em favor de uma preferência pela razão.
No caso africano, esse olhar fragmentado do homem não é comum, e
percebe-se isto em todos os aspectos da vida. Por isso, Hampaté Bâ (2003) fala que
antigamente era comum uma pessoa ir procurar outra, motivada por um sonho. No
mínimo tal comportamento visto ao olhar racionalista pode ser percebido como
ingênuo. No entanto, tal a força das representações do ocidente, mesmo na África
de hoje, segundo Hampaté Bâ, este comportamento vem diminuindo, revelando que
tal aspecto já não é tão comum, o que pode significar que também essas culturas
africanas podem estar recebendo as influências, cada vez maiores, da lógica
ocidental que se impõe sobre o mundo, revelando a característica hegemônica que o
mundo ocidental ainda mantém com forte poder de sedução e persuasão.
Outro aspecto do qual seria relevante darmos conta antes de avançarmos é o
fato de um memorialista estar escrevendo. Como um homem da tradição oral,
transfere os saberes para uma forma escrita? Esse fenômeno é relevante e curioso,
pois Hampaté Bâ (2003) descreve parcialmente essa dificuldade de conciliar e
dialogar essas formas de transmissão do saber. Nesse sentido, vale lembrar a
referência que Hampaté Bâ (1972) faz ao seu grande mestre da tradição e membro
da confraria islâmica tidjaniya65 Tierno Bokar Saalif Tall, que dizia que “o saber é
uma coisa e que a escrita é outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber
em si.”.
Esse desafio tem sido estudado tanto por africanistas quanto por
pesquisadores das culturas orais, que dizem que quando esse memorialista escreve,

65
Ver os endereços sobre a Tidjaniya: na Argélia - http://www.tidjaniya.com/; na Costa do
Marfim - http://tidjaniyaci.org/; e no Senegal - http://www.tidjaniyya.org/
94

na realidade ele desenvolve uma oratura, que seria a representação escrita da


tradição oral. E, nesse caso, recorremos a Nunes, para entender melhor este
fenômeno.

Escrever sobre oratura africana é um desafio arriscado e sedutor. Começa


pela designação a atribuir a esta literatura, literatura de expressão oral,
literatura tradicional, literatura popular, literatura oral, não existindo
unanimidade teórica quanto a esta questão; os escolhos continuam com a
delimitação dos territórios oral e escrito, os métodos de abordagem
adotados, a classificação das narrativas, a tradução para sistemas
linguísticos e culturais muito diferentes do original. (2009, p.23).

Porém, tem sido através desta oralidade escrita que temos podido contatar a
África de modo diferenciado. De acordo com Nunes, é uma escrita que tem cheiro,
sabor e muitas cores. Esse é o caso da obra Amkoullel, o menino fula. Devido a
estes textos, o caminho de aproximação para essa África subjetiva, torna-se mais
adequado e menos incerto. Esse já seria também um método ou forma que auxilia
no encontro com a África. No caso do Brasil, temos ainda outra possibilidade para
essa aproximação, a presença da oralidade nas culturas negras aqui desenvolvidas.
Em síntese, são culturas que possuem a sua base de formação e continuidade na
transmissão geracional por via da oralidade. Essa característica presente no
universo cultural brasileiro é uma herança africana que revela o próprio processo
educacional negro-brasileiro, mesmo fora do continente africano, e acaba servindo
como uma ponte de aproximação com o universo africano.
Pelo que pudemos apreender de Hampaté Bâ (2003) é enorme o papel de
relevância que a oralidade tem no processo educativo da África; é a partir dela que
se fundamenta o modo de ser e pensar do africano, e dessa maneira determina
como o mesmo se relaciona com o mundo.
95

Capítulo III
Saberes e Práticas Culturais

É o conhecimento do homem e a aplicação deste


conhecimento na vida prática que faz do homem um ser
"superior" na escala dos seres vivos. É somente então que se
pode dizer que ele esteja no estado de neddaaku (na língua
fula) ou de maayaa (no idioma bambara),
isto é, no estado de homem completo.
(Amadou Hampaté Bâ).

Os saberes e práticas da África tradicional estão imersos na tradição oral. As


ações cotidianas são responsáveis por preservar e difundir conhecimentos
ancestrais, lembrados e vivenciados em todas as instâncias da vida. Essas práticas
constituem, desse modo, uma parte relevante da história e do pensamento. Essa
África tradicional corresponde àquilo que se expressa na herança mais ancestral do
próprio continente, presente no conjunto dos conhecimentos transmitidos de geração
em geração. Porém, esses saberes e práticas foram também dialogados com as
heranças muçulmanas e europeias, também já fazendo parte há um longo tempo do
continente africano.
Assim nos diz Hama e Ki Zerbo,

O homem é um animal histórico. O homem africano não escapa a esta


definição. Como em toda parte, ele faz sua história e tem uma concepção
dessa história. No plano dos fatos, as obras e as provas de sua capacidade
criativa estão aí sob nossos olhos, em forma de práticas agrárias, receitas
de cozinha, medicamentos da farmacopeia, direitos consuetudinários,
organizações políticas, produções artísticas, celebrações religiosas e
refinados códigos de etiqueta. Desde o aparecimento dos primeiros
homens, os africanos criaram ao longo de milênios uma sociedade
autônoma que unicamente pela sua vitalidade é testemunha do gênio
histórico de seus autores. Essa história engendrada na prática foi, enquanto
projeto humano concebida a priori. Ela é também refletida e interiorizada a
posteriori pelos indivíduos e pelas coletividades. Torna-se, portanto, um
padrão de pensamento e de vida: um “modelo”. (2010, p.23).

De acordo com Hampaté Bâ (2010) a tradição oral responde por todo tipo de
conhecimento e pela visão integrada do homem e do meio em que vive. Nesse
contexto, a educação é constante no dia-a-dia em atividades as mais corriqueiras.
Nesse universo do cotidiano, uma gama bastante vasta de conhecimentos é
transmitida, às vezes, de modos os mais inusitados e até controversos para o olhar
de outra cultura. Segundo Hampaté Bâ (2003), é nesse caso, por exemplo, que o
momento da alimentação, a maneira como se servem as refeições, os primeiros a se
96

alimentarem, apresentam uma série de valores educativos, que servirão em muitos


momentos da vida. Dentre as muitas práticas culturais existentes, procuramos dar
uma atenção especial à questão da alimentação, pois essa é uma característica
marcante da cultura africana e que se estende às práticas culturais dos negros no
Brasil. O momento da alimentação é visto como alimentação do corpo e da alma, e
quando praticado em comunidade faz por fortalecer e aproximar todos os envolvidos.
Segundo Hampaté Bâ (2003; 2010) e Vansina (2010), as práticas culturais
tradicionais têm relação total com a palavra, sendo esta geradora da dinâmica
existencial e o mecanismo capaz de estabelecer as correspondências dimensionais
do ser humano, assim como, em uma perspectiva bastante espiritualizada, efetivar e
atender a criação. A palavra faz emergir a existência, convocando o homem para
assumir a sua vida com comprometimento. Essa vida pessoal, no entanto, somente
tem sentido na relação com o outro, uma relação prioritariamente dialógica e
coletiva. Essa maneira como a tradição oral se propõe a observar o mundo torna-se
significativa especialmente em um momento da história contemporânea em que
somos solicitados ao diálogo global, porém, somos desafiados pelas diferenças, e
pelo receio das perdas particulares. A sabedoria contida em práticas cotidianas - em
alguns casos, aparentemente destituídas de uma importância maior - esconde ou
preserva uma gama ampla de saberes que contribuem na formação do sujeito.
O pensamento que se constrói e a sabedoria que se revela no interior das
práticas revelam a característica de comunidade e coletividade tão presentes na
cultura africana. Com isso é demonstrada também a maneira como o africano é
conduzido ao diálogo com o outro. Tal característica é bastante refletida por
Hampaté Bâ (2003), revelando que, mesmo na relação de dominação que se
estabelecia por parte da Europa em relação ao continente africano, foi buscado o
diálogo por parte dos africanos. O filósofo alemão Martin Buber, em sua obra Eu e
Tu (2012), apresenta-nos a necessidade do outro na formação do ser. A relação eu e
tu possibilita a condição da existência na medida em que também prefigura a
diversidade dos seres humanos, de suas culturas e de suas identidades, tendo essa
diversidade como elemento necessário ao conhecimento. Por isso, Hampaté Bâ
(2003) reflete essa questão com o que aprendeu ao longo da sua vida, com o que
recebeu das tradições africanas, que sempre procuraram lhe ensinar a relevância do
outro na constituição do eu. Essa ontologia presente na cultura africana, por si só, já
é significativa como um caminho possível para o diálogo atual entre as civilizações.
97

Porém, sempre é válido pensar o que já disse Sartre (2007) sobre as


dificuldades na relação com o outro, e dos desafios que esse outro representa. No
entanto, é nesse encontro que o indivíduo é solicitado ao movimento de si mesmo, é
convocado a transcender conceitos e é incomodado de modo tal que esse sujeito já
não será mais o mesmo: é transformado e é formado ao longo da vida. Essa
perspectiva de alteridade e de necessidade do outro encontra nas culturas
tradicionais africanas um território fecundo, pois a própria tradição já se baseia
nesse fato.
Ao se pensar o outro se pensa na comunicação com ele; é assim que a
palavra é para os tradicionalistas africanos o veículo sagrado da existência, devendo
ser respeitada, é por ela que se efetiva o encontro entre as pessoas. Hampaté Bâ
(2010) nos diz que a palavra precisa ser bendita, portadora de dádivas e não
maledicências, pois, ao ser criadora, pode também ser destruidora, devido a sua
condição transformadora. Nessa condição pode proporcionar a aproximação ou o
afastamento.
Esse caráter sagrado dado à palavra lhe concede um valor incalculável, difícil
de ser medido pelos valores apenas cartesianos, já que culturalmente é repleta de
símbolos e representações facilmente perceptíveis ao homem africano em seu
contexto, em sua noção de tempo e espaço.

Ora, em geral o tempo africano tradicional engloba e integra a eternidade


em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o
tempo presente. Á sua maneira, elas permanecem sempre contemporâneas
e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a época em que
viviam. (HAMA; ZERBO, 2010, p.24).

Essa maneira de observar o tempo e ter a palavra como elemento possível de


dinamizar e aproximar o que está expresso na eternidade, revela o quanto esta
palavra é fundamental para a cultura africana. No entanto, de acordo com Reis,
refletindo sobre Paul Ricouer e suas considerações sobre o tempo, nos diz que
“teoricamente, nem as construções cosmológicas e nem as fenomenológicas
puderam atingir o tempo em seu ser”. (REIS, 2009, p.29). Deste modo, o tempo
continuaria “inexplicável, inapreensível, misterioso”.
Mas para Reis, esse não ser do tempo teoricamente inapreensível é uma
realidade que estabelece a experiência de vida. Ou seja, mesmo que não se consiga
explicar o tempo em si, é nele que vivemos e realizamos as experiências de vida.
98

Porém, nos diz Reis que “as sociedades humanas aspiraram sempre à eternidade, à
estabilidade, à unidade, a um presente eterno” (2009, p.31). Ainda de acordo com
esse autor, pensando através da obra de Lévi-Strauss66, existem sociedades que
admitem ser históricas, enquanto outras tentam não admitir esta apreensão pelo
tempo, buscando mecanismos de burlar essa lógica temporal linear (presente,
passado e futuro), através de ritos, mitos e símbolos que permitam certa fuga do
tempo. No caso africano, não se trata de uma fuga do tempo, mas de uma
compreensão dele em sua sacralidade, pois para o africano o tempo é visto por uma
perspectiva subjetiva e objetiva, podendo entender-se isto pela maneira como cada
um lida com o tempo e as necessidades do seu dia-a-dia, o ritmo; a maneira e o
modo como cada indivíduo responde a estas necessidades é bastante pessoal. Por
outro lado, todos estão sob uma lógica de tempo comum, no qual a história se
opera, a sociedade se organiza e as práticas se efetivam. É exatamente nessa
interação entre o tempo externo e o interno que existem o homem e suas vontades,
o homem como agente mediador e articulador desse tempo. Portanto, nessa lógica a
África não foge da história, da sua história, mas a compreende no contexto da
tradição que pode abarcar distintas interpretações do tempo, adequadas às
condições vivenciadas. Reis, nos diz que “a história, a experiência temporal, local
das ações humanas, é objeto de uma reflexão universalizante ética, estética e
política” (2009, p.38). Desse modo, ela ocorre com os africanos em acordo com a
sua percepção de mundo.
Quando o africano articula a sua reflexão sobre o tempo, ele o pensa como
um ritmo, um pulso, o mesmo que existe na palavra, na emissão do som. De acordo
com Hampaté Bâ (2010), o ritmo, o timbre e o pulsar da palavra são o próprio ritmo
do universo. A música africana mais tradicional, aquela expressa nos tambores e
outros instrumentos de percussão, é a extensão da voz humana, e o que os
tambores tocam é o que a voz humana expressa. De acordo com Santos e Bahi
(2010), Niangoran-Bouah, outro especialista em tradições orais da Costa do Marfim,
empenhou-se para que as tradições orais fizessem parte do ensino superior da
Costa do Marfim, dando ao seu método de trabalho uma atenção especial ao som

66
Antropólogo de origem belga nascido em 1908 e falecido em 2009. É considerado o fundador
da antropologia extruturalista.
99

dos tambores e a utilização dos textos dos tambores africanos de fala como suporte
aos estudos da oralidade67.
Na cultura tradicional do oeste africano na região do Mali, a palavra sagrada
das antigas práticas religiosas encontrou no islamismo outro elemento significativo
que influenciará a cultura tradicional e também recebeu a influência dessas culturas
nativas do continente. De acordo com Hampaté Bâ (2003) o Islã, integra-se à vida
africana subsaariana, de maneira relativamente tranquila, havendo aceitações e
concessões de ambas as partes. O Islã, segundo o autor, foi facilmente aceito no
continente africano, devido a sua relativa simplicidade ritual e à norma, segundo o
próprio Alcorão, de procurar o respeito e a convivência com as outras crenças. Essa
característica fez com que o Islã tivesse um rápido crescimento em solo africano,
sendo que muitos grupos étnicos se converteram em massa a essa religião, sem
que fossem ameaçados ou forçados a essa posição.
Segundo o teólogo e pesquisador saudita Ahmad Ibrahim (2008) o Islã é
totalmente contra o racismo e a injustiça, e faz essa afirmação baseado na seguinte
sura (versículo): “Ó humanos nós os criamos de um macho e uma fêmea e os
separamos em nações e tribos para que conhecessem uns aos outros.
Verdadeiramente, o mais nobre entre vocês para Deus é o mais piedoso.
Verdadeiramente Deus é Onisciente.” (Alcorão, 49:13).
Outro aspecto relevante destacado por Hampaté Bâ (2003) é o fato de o Islã
presente na região não confrontar-se doutrinariamente com as práticas religiosas
locais, já que em sua maioria estas não feriam os pilares fundamentais da fé
islâmica, na qual o mais importante é o reconhecimento do Deus único, como
supremo criador e ter em Muhammad o seu último mensageiro. Esta crença está
expressa na shahada (declaração de fé): “Ach hadu La ilaha ila Ala, ach hadu
Muhammad rassululah”, que significa “Afirmo que não existem deuses além de Deus
e afirmo que Muhammad é o mensageiro de Deus”.
Esta constatação de Hampaté Bâ (2003) é interessante, pois exige uma
reflexão sobre as religiões nativas da região do oeste africano, ao menos aquelas
descritas pelo autor. De fato é possível reconhecer netas distintas formas religiosas

67
Indicamos a leitura do texto SANTOS, Acácio Sidinei Almeida; BAHI, Aghi. Contribuições
de Georges Niangoran–Bouah ao estudo das tradições orais da Costa do Marfim. in: Cerrados:
revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.Literaturas e
Culturas Africanas.n.30, ano 19, 2010.
100

a concepção espiritual da existência de um ser supremo que rege sobre todos os


outros, sendo, por isso, o portador da criação, ou seja, a concepção de uma
unicidade de Deus, de uma base monoteísta. E mesmo no universo dos iorubás,
grupo étnico que habita grande parte da atual Nigéria e Benin e que veio em uma
quantidade expressiva para o Brasil em período mais próximo do final da escravidão,
tem-se a noção de um Deus todo poderoso, que a tudo governa e que tudo criou;
essa divindade maior é conhecida como Olorum68 ou Olodumare69. As outras
divindades presentes tanto na cultura ioruba, como nas culturas descritas por
Hampaté Bâ (2003;2010) estariam sob a regência desse Deus todo poderoso.
Portanto, a ideia de um Deus único todo poderoso e que rege sobre todas as coisas
caracteriza outra semelhança com o Islã e os seus devotos muçulmanos (aqueles
que se submetem à vontade de Deus). A ideia da submissão ao Ser superior não era
alvo de estranhamento nas religiões tradicionais africanas, e, desse modo, esse
aspecto também é um componente da cosmogonia africana.
Pode-se notar que a ligação entre o material e o espiritual é bastante presente
na cultura africana, assim como na cultura islâmica. Daí, não se estabelecer a total
separação desses mundos. Como já analisamos antes, a história do ponto de vista
africano perpassa estes mundos e a interação entre eles. O islã, por exemplo,
estabelece como parte da crença oficial a fé nos anjos e nos gênios, que seriam
seres espirituais que atuam como elo entre o mundo celestial e o terreno,
influenciando a conduta dos homens. Vejamos o que nos diz o teólogo muçulmano
de origem turca Muhammad Fethullah Gullen.

Os anjos são criados da luz. A palavra árabe para anjo é malak. De acordo
com a sua forma raiz, malak significa mensageiro, representante, enviado,
superintendente, e um ser poderoso. Os anjos formam relações entre o
mundo macrocósmico e o mundo material. Eles transmitem os
mandamentos de Allah a respeito da criação e da operação do universo,
dirigem os atos e as vidas dos seres (com a permissão de Allah), e
descrevem suas adorações em seus próprios domínios. (2009, p.70).

E sobre os gênios na teologia do Islã nos diz: “gênio, literalmente, significa


‘algo oculto ou velado’. Os gênios são uma espécie de seres invisíveis.” Gullen
(2009, p.76). Essa concepção de seres intermediários entre Deus e os homens

68
Senhor do Céu em idioma ioruba
69
Senhor do destino supremo em idioma ioruba
101

também é comum nas culturas africanas, e, portanto, também colaborou no


entendimento entre o Islã e as expressões religiosas africanas.
Essa constatação de boa convivência entre o islã e as religiões tradicionais
africanas foi relatada também através do registro de outros pesquisadores, entre
eles Hberk e Mazrui. No entanto, não isentaram práticas contrárias, em que a
brutalidade e a violência também se fizessem presentes quando da chegada dessa
religião ao continente, e em alguns casos fazendo por surgirem movimentos que não
somente impunham a sua fé como também eliminavam aqueles que não aceitassem
a conversão. Isso fez com que em alguns casos conflitos étnicos fossem
deflagrados, tendo como pressuposto principal a questão religiosa.
Vejamos o que nos diz Giordani,

O Islã se impôs, às vezes pela força bruta. “O fanatismo e o orgulho dos


conquistadores levava-os quer a desprezar os pagãos e a deixa-los
submissos ou escravos, quer deixar-lhes a escolha entre a morte e a
conversão”. Mas muitas vezes também a conversão foi efetivada na
ausência de toda força, quer por marabus isolados que não tinham outro
poder senão a fé quer por infiltrações lentas. Procurava-se ganhar a
aristocracia, depois, aos poucos a massa camponesa. (1997, p.166).

Em período bem mais recente da história africana subsaariana, infelizmente já


se tornam comuns os casos de fundamentalismo religioso ligado a grupos islâmicos
radicais. Um exemplo disso encontra-se na Nigéria70, país que na atualidade tem
enfrentado sérios problemas sociais devido a formas rígidas e fundamentalistas de
interpretação do Alcorão por parte de alguns grupos radicais e dirigentes políticos.
Porém, esse tem sido um fenômeno mais comum na atualidade, algo estranho e
raro na época em que Hampaté Bâ (2003) registrou as suas memórias e impressões
da sua região.
A tradição oral soube na maioria dos casos acolher a nova prática,
integrando-a sabiamente ao modo de ser do africano. Portanto, não é raro
pensarmos nesse Islã com a imagem e representação da África, o que difere de
maneira considerável de outras práticas muçulmanas em outras partes do mundo,
embora todos os aspectos que determinam as bases ou os fundamentos da fé sejam

70
Um dos grupos radicais que atuam na Nigéria é o grupo Boko Haram que mantém ligações
com a rede Al Qaeda. Deve-se lembrar também do julgamento da nigeriana Safiya Hussaini Tungar
Tudu, condenada a ser apedrejada por adultério em um processo repleto de abusos e imprecisões.
Essa ação somente foi impedida devido a fortes pressões mundiais quando o caso tornou-se público.
Ver a obra Eu, Safyia - A história da nigeriana que sensibilizou o mundo. (2004).
102

praticados. As diferenças estariam no próprio modo de ser das pessoas, que não
abrem mão de sua cultura, bastante pautada no colorido das roupas, na alegria e
espontaneidade e a presença constante da música. O Islã africano, segundo
Hampaté Bâ (2004), se desenvolve principalmente por uma vertente mais mística,
denominada sufi, e com características bastante coletivas, com ritos e celebrações
diferenciados. As confrarias sufi da África ocidental são ligadas em sua grande
maioria ao Islã sunita (de sunna, a comunidade dos crentes) desde a época do
profeta Muhammad71, que tem sua linha sucessória, ou seja, os primeiros quatro
califas72 eleitos após a morte de Muhammad, pessoas do seu círculo de amizades.
Já outro grupo islâmico bastante conhecido são os xiitas73, que reconhecem a linha
sucessória do profeta Muhammad, apenas os membros de sua família, conhecidos
como os Alu Bait (membros da casa). O grupo sunita é o grupo mais numeroso até
os dias de hoje, e foi o responsável por avançar o Islã no continente africano,
incluindo a África subsaariana. A principal base do Islã sunita localiza-se na Arábia
Saudita.
De acordo com o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto ,

A constituição das duas principais divisões sectárias do islã, o sunismo e o


xiismo, foi fruto de um processo iniciado logo após a morte de Muhammad e
que se consolidou por volta do século IX. Com a morte do Profeta, a
questão da sua sucessão na liderança da comunidade muçulmana se
colocou de maneira premente. A ausência de um herdeiro masculino
inviabilizava o uso da tradição pré-islâmica de sucessão patrilinear e
obrigou a comunidade muçulmana a decidir quais seriam os critérios de
definição, atribuição e manutenção de poder que criariam lideranças
legitimas. (2010, p.73).

Essa divisão do Islã determina rituais diferenciados entre os grupos, embora


os elementos principais da fé sejam os mesmos. Um aspecto presente em ambas as
tradições islâmicas é o aspecto místico. De acordo com Azevedo (1996, p.42) “o
sufismo é a mística do Islã. Também já foi definido como a sabedoria dos santos”. A
palavra sufi (lã em árabe), refere-se a pessoas de vida simples e despojada, que
mantinham uma conduta de vida ainda mais espiritualizada, seguindo práticas ainda
mais devocionais e contemplativas que os demais muçulmanos. Essa via mística
teve uma enorme aceitação na África já no início de sua chegada, por aproximar-se

71
Ver Muhammad, o mensageiro de Deus (2007) do teólogo islâmico Abdurrahman al Sheha.
72
Os quatro califas são: Abu Bakr (632-634);Omar(634-644); Othman (644-656) e Ali (656-
661).Para os xiitas apenas Ali é reconhecido como sucessor verdadeiro do profeta Muhammad.
73
De shiia. Para maiores informações indicamos o site do Centro Islâmico no Brasil
(comunidade xiita) www.arresala.org.br
103

de práticas rituais locais, nas quais o caráter subjetivo do devoto também é bastante
preservado no culto à sua divindade particular, que, segundo pesquisadores como
Pierre Verger, ao observar a crença dos iorubas, refere-se ao modo de ser de cada
um. Todos fazem parte do culto e celebração coletiva, mas existe uma instância mais
íntima na qual cada pessoa possui um tempo e um espaço sagrado próprios. Neste
ponto nos deparamos com a questão da temporalidade sagrada que observamos
antes.
A ação, a devoção e o conhecimento são bases dessa formação humana, e
no sufismo, de acordo com Azevedo (1996, p.42), “são conhecidos como makhâfah
(temor), mahabah (amor) e marifah (conhecimento)”. Essas características têm no
sufismo e suas mais diversas Tariqahs (confrarias) um aspecto importante, o que
também fez aproximar essa maneira de interpretar o Islã, bastante comum na África
do oeste. Dentre as principais confrarias sufi do oeste africano, destacam-se: a
mouridya74, que tem no senegalês Ahmadou Bamba Mbaché75 o seu fundador; a
qadiriya76 de origem com o iraniano Abdul Qader Gilani Al Amoli77; e a tidjanyya,
esta última é a mesma confraria à qual Tierno Bokar e Amadou Hampaté Bâ
pertenciam, e que tem sua origem com o argelino Ahmad Al Tidjani78.
Torna-se marcante na vida de Hampaté Bâ (2003) a maneira como ele é
influenciado por essa escola de saberes e práticas, que aliados à cultura nativa de
seus ancestrais mais remotos permitiram-lhe uma leitura de mundo diferenciada que
busca estabelecer o encontro entre os povos, já que aprendeu desde a sua mais
tenra idade a conviver com o outro, seja ele próximo ou não culturalmente.
O encontro dessas culturas é intenso há muitos séculos no oeste africano,
tornando-se em alguns momentos difícil estabelecer no relato de Hampaté Bâ (2003)
uma separação ou mesmo uma distinção entre elas. Também é significativa a escola
europeia, na qual terá a sua educação nos conhecimentos e valores próprios do
ocidente que o habilitaram a chegar à França para a realização dos seus estudos
superiores.
Como já dissemos antes, no universo da cultura tradicional as práticas são
coletivas, e é nessa condição que os saberes são perpetuados, pois não há um
74
Ver os seguintes endereços: http://www.mourides.com/; http://www.mouridetv.net/#;
http://www.jazbu.com/ e http://www.cheikhibrafall.com/
75
Nasceu em 1853 e faleceu em 1927
76
Ver o seguinte endereço: http://www.qadiriyya.com/
77
Nasceu em 1077 e faleceu em 1166
78
Nasceu em 1737 e faleceu em 1815
104

saber de fato solitário, e tal como a memória, eles são construídos conjuntamente. O
saber é constituído no grupo, na interação e na relação entre as pessoas. Do
mesmo modo, procura-se entender os saberes na natureza, não apenas na razão
humana, mas pelo conjunto de possibilidades a serem apreendidas pelo homem em
todas as suas dimensões: psíquicas, sociais, emocionais, entre outras, sendo então
acionadas e contempladas em conjunto79. As características psíquicas, racionais e
espirituais do ser humano foram bastante refletidas pelo filósofo alemão Max
Scheler, que em várias de suas obras chamou a atenção para as dimensões do
homem e para a necessidade de percebê-las em totalidade e inteireza, algo que se
aproxima do conceito de inteireza presente no continente africano. A ideia de
totalidade no contexto das culturas tradicionais descritas por Hampaté Bâ (2003;
2010) não se restringe somente ao ser humano, mas também se refere à natureza.
Busca-se a interação do ser na natureza. É por essa característica que, de
acordo com Hampaté Bâ (2003), não é incomum ouvir de um africano tradicional
algumas expressões como as árvores me falaram, os peixes estão dizendo, entre
tantas outras possibilidades. No universo tradicional este tipo de comunicação é
totalmente aceitável e digno de valor.
Porém, quando é estabelecida uma relação desse universo com a maneira
pela qual o ocidente europeu procura entender o conhecimento e a relevância das
práticas sociais e culturais, percebe-se de imediato a distância entre esses mundos
conceituais. Por isso, também segundo Hampaté Bâ (2004), é relevante encontrar
no mundo ocidental as bases comuns que aproximem o diálogo e o entendimento
entre esses mundos.
De modo geral, o mundo ocidental tem priorizado a razão em detrimento de
outras dimensões humanas, o que torna a referência de percepção do mundo
africana alvo de estranhamento. Ki Zerbo (2009) chama a atenção para a
necessidade do despertar de um homem novo, que seja capaz a partir da sua
identidade reconhecer e até apreciar a identidade do outro. Hampaté Bâ (2004)
nessa mesma perspectiva nos diz da necessidade do diálogo para o conhecimento.
Portanto, um caminho, no caso do Brasil, de compreensão dessa simbologia
das práticas e saberes africanos seria procurar entender as práticas culturais negras
desenvolvidas em nosso país, nas quais a oralidade se faz presente. Até mesmo os

79
Para entender melhor essa noção a partir de uma perspectiva do ocidente, indicamos o livro
Antropologia Filosófica (1993) do filósofo e teólogo brasileiro Edvino Rabuske.
105

aspectos ligados à espiritualidade e à cosmovisão africana se tornam mais


acessíveis a partir do entendimento das culturas afro-brasileiras, manifestações
locais que guardam elementos herdados do continente africano.
Esses saberes e práticas contidos nas culturas negras desenvolvidas no
Brasil quando pensados pelo viés da educação são trabalhados ainda no espectro
da educação não formal, termo que se contrapõe à educação formal80.
De acordo com Gohn (2010), a educação não formal precisa ser cada vez
melhor compreendida. As suas formas e métodos estão cada vez mais presentes na
escola e o professor precisa compreendê-los para, desse modo, também
compreender os alunos em sua diversidade cultural. Por educação não formal pode-
se pensar uma vasta quantidade de práticas socioculturais que efetivam em
universos distintos formas de transmissão de saberes, ações educativas que podem
ser mais bem analisadas e compreendidas e, com isso, comporem também o
universo da educação desenvolvida nas escolas.
A presença dos elementos culturais tradicionais africanos na cultura brasileira
através da oralidade faz com que essa análise de Gohn (2010) seja relevante, pois
muitas das práticas culturais afro-brasileiras trazem em seu conjunto a condição
educativa. No entanto, faz-se necessário compreendê-las e interpretá-las para que
se consiga realizar tal intento. É significativo compreender as origens dessas
práticas, imersas em grande parte nas culturas africanas tradicionais. De acordo
com Vieira, “o conhecimento é um processo interativo que se dá entre o real e as
representações que fazemos dele, ou seja, as relações sociais, a natureza, os
objetos, o trabalho, as instituições políticas, a família, etc.” (2006, p.24). E, nesse
sentido, estabelecer um conhecimento sobre o Brasil e as culturas aqui presentes se
faz necessário para promover a interação entre as culturas aqui existentes, tendo a
escola como um local social privilegiado neste sentido. Na analise de Vieira,
percebemos a mesma ponderação que encontramos em Hampaté Bâ (2003) ao
longo de sua narrativa: a de procurar convergir os saberes comuns a cada povo e
cultura para um encontro em que todos sejam valorizados e ao mesmo tempo
refletidos diante de uma realidade de mundo que se revela.

80
Educação não formal e educação formal se referem respectivamente a educação fora do
ambiente escolar e dentro do ambiente escolar.
106

Ainda de acordo com a educadora Anna Padilha (2012), a prática pedagógica


é uma prática sociocultural que deve almejar o humano no homem e, portanto, deve
estar embasada historicamente no conhecimento mais profundo do ser humano.
A Lei Federal 3.394 de 20 de dezembro 1996 sobre as Diretrizes e Bases para
Educação Nacional já diz da realidade educativa presente nos muitos espaços
sociais, não somente na escola. Nesse sentido, os diferentes saberes e práticas
existentes na sociedade brasileira, entre eles as culturas de origem africana e suas
formas de transmissão, são também um elemento que pode dar vitalidade ao
conhecimento. E, mais do que isto, seria válido pensar a sua aplicação e utilização
no âmbito da educação formal.
Na África tradicional esses universos do formal e do não formal, como
descrito por Gohn (2010), se confundem e se complementam, sem que haja um
conflito entre as suas práticas. Pensando um pouco nesse aspecto é que
procuraremos em nossa análise perceber a prática educativa dessa tradição e a
preocupação contida no ato de educar, no qual a questão educar para quê? é o
grande foco. Pelo que se percebe no relato de Hampaté Bâ (2003), existe uma ideia
de educação para a vida e não apenas uma educação de conteúdos.
Para Mbuy Kabunda (2000), a educação tradicional africana busca a
interação entre os seres humanos e o seu meio. É uma educação coletiva que visa à
solidariedade e o convívio social harmonioso.
A partir dessa perspectiva, nota-se a constante procura por uma educação
que possibilite a harmonia do ser com ele mesmo e com o mundo a sua volta. Essa
característica é determinante para refletirmos um pouco sobre o sentido de
educação no oeste africano, e, com isso, ponderarmos sobre as contribuições
dessas culturas do oeste africano no conjunto formador das culturas negras no
Brasil, no qual algumas práticas são visivelmente assemelhadas às práticas
africanas, e nas quais a oralidade se revela também como um elemento presente.
Com isso, podemos sugerir que se pense nas nossas práticas educativas uma
presença também conceitual desse modelo da África, que auxilie na formação do ser
humano para a vida, e não apenas para o atendimento de conteúdos, algumas
vezes deslocados de um contexto maior que se insere na própria vida.
O diálogo entre a África e o Brasil também no campo educacional pode ser
revelador de práticas que se fortaleçam mutuamente, que contribuam no
desenvolvimento de outras propostas pedagógicas que consigam dar conta da
107

diversidade cultural que forma o povo brasileiro. Sendo assim, o papel da palavra e
dos sistemas educativos africanos passa a ser um fenômeno de interesse e não de
descaso como outrora fora pensado.

III.1 – Palavra e Tradição

A palavra para Hampaté Bâ (2010) tem sua expressão maior no universo da


tradição. Essa palavra é mantida como o grande vetor da existência, da vida. Tudo é
pela palavra, sem ela nada existiria. Essa relação com a palavra também determina
e enfatiza aquilo que para o ser humano é fundamental, a comunicação. É por ela
que se efetivam as ligações humanas, é por ela que se estabelece a comunidade.
A palavra na tradição é o elo das gerações, possibilitando que uma corrente
de saberes e práticas seja preservada, ao unir crianças, jovens, adultos e velhos em
uma perspectiva comum. Essa ligação na tradição é o que lhe confere a condição de
ser um saber tradicional, normalmente descrito como a transmissão geracional de
saberes, tendo como vetor principal a palavra falada. Neste aspecto é válido
enfatizar que a tradição não pode ser confundida com o tradicionalismo, pois este
seria o engessamento de um saber em uma perspectiva fixada em um tempo já
passado. A tradição, segundo Hampaté Bâ (2003; 2010), é antes de tudo algo
dinâmico, que se atualiza e é recriada em tempo presente; ela é viva. E quanto mais
ela consegue dialogar com o mundo a sua volta, mais ela é fortalecida. Daí Hampaté
Bâ (2003) preocupar-se com os puristas conservadores, que, na sua concepção, são
os principais vetores do fim das tradições, do mesmo modo que aqueles que a não
compreendem e dela se afastam.
Essas características são utilizadas por Hampaté Bâ (2003) para analisar o
comportamento político-social de alguns líderes africanos, que muitas vezes deixam
de observar o mundo pelo olhar da própria África, antes, porém, assumem um
comportamento distanciado. E distanciar-se da África é primeiro separar-se de suas
tradições. Essas tradições, segundo Hampaté Bâ, devem ser dialogadas com o
mundo ocidental, compartilhadas, revistas, mas nunca esquecidas.
A formação do ser humano africano depende da tradição, pois ela instrui em
várias situações e em todos os momentos da vida. A base da educação do africano,
de acordo com a concepção de Hampaté Bâ (2003), deveria estar pautada na
108

tradição. É por isso que um líder político do continente que não conheça e não
respeite essa base de sua formação não reúne as condições necessárias para
compreender e representar o seu povo.
Essa reflexão coincide com a que o sociólogo brasileiro de origem baiana
Guerreiro Ramos81 também realizava ao analisar o comportamento de lideranças
brasileiras nos mais variados setores, que desconheciam, intencionalmente ou não,
algumas das principais realidades sociais e culturais do Brasil.
Uma liderança que, ao contrário, conhece e respeita essas tradições será
menos atingida pelo desejo de poder e o acúmulo desnecessário de bens, pois
considerará essa conduta social como sendo desequilibradora. De acordo com
Hampaté Bâ (2004), a civilização africana deve constituir-se com base em valores
humanos e éticos, presentes em sua cultura, aspectos estes que contribuem
também para uma sociedade mais fraterna. São esses aspectos que devem ser
compartilhados com outros povos e culturas.
De acordo com Hampaté Bâ, a palavra oriunda da tradição, articulada em um
tempo comum, de presença e atualidade, continua sendo geradora da vida, e é a
isso que a tradição se propõe, é isso que a tradição procura alcançar, para que
continue oferecendo saberes a sua própria civilização e ao mundo por
consequência. Ao oferecer e receber estabelece trocas e partilhas que são capazes
de gerar outros conhecimentos. O filósofo francês Maurice Merlou Ponty nos traz a
seguinte reflexão sobre a linguagem, que coincide em boa parte com a reflexão de
Hampaté Bâ (2010).

A linguagem tem um interior, mas esse interior não é um pensamento


fechado sobre si e consciente de si. O que então exprime a linguagem, se
ela não exprime pensamentos? Ela apresenta, ou antes, ela é tomada de
posição do sujeito no mundo de suas significações. O termo “mundo” não é
aqui uma maneira de falar, ele significa que a vida “mental” ou cultural toma
de empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que o sujeito pensante
deve ser fundado no sujeito encarnado. (1999, p.262).

A reflexão de Ponty nos dá entender o quanto o sujeito encarnado, como ele


diz, se dá e se manifesta a partir de sua existência concreta; é daí que surgem as
ideias, as práticas a serem maturadas e desenvolvidas, que se estabelecem na
ligação com o outro, e não como algo fechado sobre si. Ao percebermos essa

81
(1915 – 1982) Sociólogo negro de origem simples e que se dedicou a refletir também a
questão do negro no país. A partir de 1949 engajou-se ao TEN (Teatro Experimental do Negro), ao
lado de Abdias do Nascimento, outro importante intelectual brasileiro.
109

análise de Ponty percebemos o valor que a tradição africana procura dar a esses
encontros, a essas trocas de experiência.
Vejamos um exemplo interessante da tradição, que diz respeito à
convivialidade das diferenças étnicas, o aprendizado sobre elas e o diálogo possível
entre os povos e culturas distintas.

A partir do momento em que fui morar na casa de Amadou Kisso, minha


vida tornou-se um mar de rosas. Eu comia a seu lado, assistia toda noite às
conversas e reuniões em seu pátio, às vezes até durante o dia, quando não
tinha aula. Era como se tivesse saído do pátio de meu pai Tidjani para entrar
no dele. Ali também se sucediam contadores de histórias e tradicionalistas,
evocando, ao som da música, a história da região, a criação da cidade de
Djenné, suas antigas tradições, suas divertidas crônicas, sua conquista pelo
exército francês... Aprendi também muitas coisas sobre os bozos, os
songais, os bambaras da região de Saro (principado que sempre resistiu ao
rei bambara de Segu) e sobre os próprios fulas. Isto me permitiu completar
e aprofundar o que já sabia. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.246).

E ainda Hampaté Bâ nos traz o quanto a organização social, política e


econômica de um lugar pode ser efetivada a partir do acordo e respeito entre os
grupos distintos.

Doze etnias viviam em harmonia em Djenné naquela época, espalhadas em


doze bairros da cidade: as etnias bozo, bobo, nono, songai, fula, dîmadjo
(casta de cativos fula), bambara, mandê, moura, árabe, mianka e samo –
estas duas últimas raças eram as mais raras. A cidade era administrada por
um triunvirato bozo-songai-fula, secundado por dois colégios; um de
anciãos e um de marabus. O policiamento ficava a cargo da classe dos
cativos – a de artesãos encarregava-se mais da vigilância moral. As
profissões artesanais tradicionais (ferreiros, tecelões, sapateiros, etc.) se
organizavam em corporações chamadas tende (ateliês), dirigidas por um
comitê presidido por um ancião. (2003, p.246).

Essa perspectiva dialógica e universalizada da tradição traz em si um dado


relevante para os desafios que a própria África tem enfrentado em suas tentativas de
organização política e social, sendo que algumas dessas dificuldades são oriundas
exatamente da diversidade étnica existente. Assim como revelam ao mundo
globalizado a possibilidade do entendimento entre os povos, algo que mesmo a
ONU (Organização das Nações Unidas) encontra dificuldades em contribuir na
solução diplomática de muitos conflitos que surgem em diferentes partes do mundo.
Também esse caráter ético e dialógico da tradição desconstrói qualquer ideia
de isolamento, de afastamento. Para Hampaté Bâ (1972), o que se percebe é que
em alguns momentos a comunidade produtora desses saberes precisa olhar para si
mesma. Necessita rever a sua trajetória e as suas práticas de modo subjetivo; em
110

outras palavras, precisa confiar e reconhecer a sua própria história. Nesse contexto
é válido dizer que na contemporaneidade alguns modelos socioeconômicos,
mediados pela globalização, têm conduzido esses grupos tradicionais a uma perda
do sentido de suas práticas, ao mesmo tempo em que as mesmas são cooptadas
parcialmente, apenas em características externas e passam a fazer parte de um
mercado cultural exógeno. Um exemplo disso são algumas práticas culturais em sua
dimensão artística que têm sido exploradas e divulgadas, mas sem o devido cuidado
com os aspectos essenciais que a constituem, todo o universo simbólico e ritual que
lhe asseguram um sentido.
O desafio de interpretar essas práticas e adequá-las à atualidade está em ter
discernimento do possível, do válido e daquilo que poderia ser uma inovação
alienada dos interesses e sentidos daquela prática em sua origem. Essa ação
interpretativa em outros contextos sociais e históricos requer um cuidado, ensinado
na própria tradição africana, mas que, com o passar do tempo, tem sido esquecido.
Quando Hampaté Bâ (2003; 2010) fala sobre essa questão, ele lamenta, pois os
jovens africanos estão ficando distantes da sua principal base de formação, aquela
que lhes permite a constituição de uma identificação com a África, naquilo que
Mazrui (2010) denomina de África pelos próprios africanos.
Essa busca pela essencialidade, pela subjetividade que seria o fundamento
no qual se assenta a tradição, é que precisaria, segundo Hampaté Bâ, ser
apropriada pelas gerações mais novas para que em posse destes fundamentos
consigam estabelecer com coerência as condições comunicacionais em um tempo
presente. O conhecimento dessas bases é que possibilita que as tradições não se
percam em formalismos desnecessários e que impedem a sua compreensão e
sentido no mundo atual.
A apropriação apenas dos elementos exteriores da cultura tradicional forma
uma espécie de maquiagem da realidade dessas culturas; é aqui que Hampaté Bâ
reflete com muita atenção o modo como outras culturas têm se apropriado de
elementos exteriores da cultura africana, sem o devido entendimento dos seus
fundamentos, e principalmente sem o devido reconhecimento e respeito dos seus
legítimos criadores e mantenedores.
Esse modo de proceder também ocorreu com muitas das culturas negras
espalhadas pelo mundo a partir da diáspora. Essas culturas são alvo de
apropriações e transformações externas, que retiram delas o sentido primordial, ou
111

seja, aquilo que de fato a definiria. Esse fenômeno está, segundo Munanga (2009),
pautado ainda nas práticas discriminatórias das quais a população africana e seus
descendentes ainda são alvo. Ao pensarmos esta relação com outras práticas
culturais oriundas de outros povos como, por exemplo, os japoneses, a situação é
completamente diferente. Vejamos o judô (arte marcial japonesa), que tem em Jigoro
Kano o seu fundador. Em qualquer lugar do mundo onde seja praticado o judô, ao
adentrar-se o dojô (local de treino), é feita uma reverência ao mestre fundador
seguindo os elementos ritualísticos próprios da cultura japonesa.
No caso do Brasil, podemos pensar essa diferença de respeito em relação à
capoeira82. Houve um momento da história do Brasil em que a nacionalização tentou
promover a capoeira, contudo desconsiderando essa presença africana em sua
estruturação. Com isso, segundo a antropóloga brasileira Letícia Vidor de Souza
Reis em sua obra O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil (2000),
retirava-se ou tentava-se minimizar a presença do negro na cultura do país, até
mesmo nas práticas legitimamente de origem afro-brasileira como a capoeira.
Porém, graças ao esforço e empenho de muitos capoeiristas ligados tanto à tradição
angola como à regional83, temos assistido a um fenômeno interessante da
preservação dos seus valores rituais e simbólicos. Atualmente capoeiristas em
diversos países do mundo têm atuado como “embaixadores” dessa cultura,
garantindo em boa parte a sua prática dentro de uma coerência que respeite os
valores originais que ela carrega.
No entanto, essas práticas afro-brasileiras, assim como as africanas, têm na
própria tradição oral o seu principal mecanismo de preservação, e isso se dá no seu
processo de transmissão.
Em relação à corrente geracional tão relevante para a cultura tradicional, vale
destacar o papel dos velhos. O historiador Ki Zerbo (2009) diz que os velhos são
difíceis de lidar, podem ser sistemáticos, mas na cultura africana são valorizados

82
Arte marcial com vários traços culturais de origem africana, mas criada no Brasil pelos
escravizados.
83
A capoeira angola é denominada de capoeira mãe, a forma mais antiga desta expressão
cultural desenvolvida no Brasil, a partir da herança dos escravizados oriundos em boa parte de
Angola e outros países ao sul do Saara. Hoje está divulgada em vários países do mundo. A capoeira
regional foi criada na Bahia pelo Mestre Bimba na década de 1930, tendo por base os elementos da
própria capoeira angola, assim como de outras lutas que ocorriam no universo negro, tais como o
batuque e a bassula (luta de agarre). Também discute-se a presença de outras lutas estrangeiras na
sua formação. O primeiro nome dado a essa nova luta era de Luta Regional baiana; somente depois
passou a ser conhecida como capoeira regional.
112

pelo que representam no conjunto dos saberes constituído ao longo da civilização,


assim como pela sua capacidade na transmissão das práticas e interpretação dos
saberes nelas contidos. É pelos velhos que se pode estabelecer uma prática
coerente de aplicação do que é ensinado e aprendido.
O que se nota no relato de Hampaté Bâ (2003) é que existe uma consciência
crítica na sociedade tradicional, e não uma relação superficial entre a criança, o
jovem e o velho. A pessoa idosa precisa ser cuidada, amparada e ouvida. No
entanto, tais condições não eliminam aspectos próprios de sua idade mais
avançada, que gradativamente a conduzem a distanciar-se das coisas, tornar-se
mais meticulosa, capaz de antecipar situações, simplesmente pela sua maturidade,
o que algumas vezes torna essas pessoas arredias, desconfiadas e críticas.
Essas características tornam os relacionamentos às vezes difíceis, delicados,
tensos, e uma sociedade que pensa e convive com essas realidades diretamente
aprende ao longo do tempo a conviver de modo equilibrado essas relações. Essa
comunicação passa a ser salutar, pois não está pautada na valorização desmedida
de um grupo em relação ao outro. Por isso, a tradição se atualiza, pois ela nota com
coerência o que ainda permanece válido em determinadas práticas, e o que a torna
incomunicável em um tempo presente, devido a algumas práticas não alinhadas ao
próprio grupo e a um sentido atualizado de sua proposta. Sobre isso Hampaté Bâ
(2003) nos dá um exemplo da condição dos fulas, que em sua origem eram
nômades e depois por uma questão de necessidade e pela própria fundação do
estado islâmico por Cheikou Amadou, vieram a se tornar um povo sedentário.
Pensar sobre a tradição é deparar-se com um processo dinâmico, inusitado,
que pouco ou nada se assemelha a algo inerte, restrito a um tempo passado, pronta
para ser congelada ou colocada como objeto de observação. A tradição é corrente
em todos os lugares, envolvendo vários aspectos da sociedade. Os seus ambientes
de formação são variados, e nesse aspecto, a família e a comunidade ocupam um
lugar de destaque como locais dessa formação.

Muitas vezes eu ficava na casa de meu pai Tidjani após o jantar para assistir
aos serões. Para as crianças, estes serões eram verdadeiras escolas vivas,
porque um mestre contador de histórias africano não se limitava a narrá-las,
mas podia também ensinar sobre numerosos outros assuntos, em especial
quando se tratava de tradicionalistas consagrados como Koullel, seu mestre
Modibo Koumba ou Danfo Siné de Buguni. Tais homens eram capazes de
abordar quase todos os campos do conhecimento da época, porque um
“conhecedor” nunca era um especialista no sentido moderno da palavra
mas, mais precisamente, uma espécie de generalista. O conhecimento não
113

era compartimentado. O mesmo ancião (no sentido africano da palavra, isto


é, aquele que conhece, mesmo se nem todos os seus cabelos são brancos)
podia ter conhecimentos profundos sobre religião ou história, como também
ciências naturais ou humanas de todo tipo. Era um conhecimento mais ou
menos global segundo a competência de cada um, uma espécie de “ciência
da vida”; vida, considerada aqui como uma unidade em que tudo é
interligado, interdependente e interativo; em que o material e o espiritual
nunca são dissociados. E o ensinamento nunca era sistemático, mas
deixado ao sabor das circunstâncias, segundo os momentos favoráveis ou a
atenção do auditório. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.174-175).

Essa ideia de conectividade entre todas as coisas e a necessidade humana


em preservar e cuidar dessas relações colocam em reflexão o papel do homem no
mundo, no qual as responsabilidades perante a vida, não somente dele e de outros
seres humanos, mas de todos os seres, são bastante ampliadas. Na concepção
africana, o homem tem o dever de cuidar de tudo. Essa tarefa pertence ao homem e
de modo intransferível. É possível percebermos uma semelhança com essa noção
de responsabilidade e comprometimento do homem com o meio e o espaço que
habita no universo africano na obra A posição do homem no cosmos (2003) do
filósofo Max Scheler. A mesma ideia de responsabilidade pode ser encontrada tanto
na descrição que Hampaté Bâ (2003) nos traz da tradição, quanto na que Scheler
(2003) nos traz através da antropologia filosófica.
Os saberes oriundos da tradição e os seus métodos de transmissão formativa
às vezes podem parecer confusos ou controversos, mesmo aqueles ligados a uma
ética universal de preservação e cuidado com o meio ambiente. No entanto, são em
aspectos do dia-a-dia que se preservam saberes que guardam valores éticos de
relevância que se assentam na formação da pessoa. Vejamos o que Hampaté Bâ
nos diz sobre as regras referentes à alimentação.

Durante a refeição, as crianças estavam sujeitas a uma disciplina rigorosa.


Quem a quebrava era punido, de acordo com a gravidade da falta, por um
olhar severo, uma batida de ventarola na cabeça, um tapa, ou mesmo a
ordem de retirar-se pura e simplesmente e ficar sem comer até a refeição
seguinte. Devíamos observar sete regras categóricas: não falar; manter os
olhos baixos durante toda a refeição; comer no espaço diante de si (não
mexer a torto e a direito no grande prato comum); não pegar um novo
punhado de comida antes de haver terminado o anterior; segurar a borda do
prato com a mão esquerda; evitar toda precipitação ao pegar a comida com
a mão direita; não se servir dos pedaços de carne colocados no centro do
grande prato. As crianças deviam se contentar em pegar punhados de
cereais (milhete, arroz ou outro) bem regados com molho; só no final da
refeição é que recebiam uma boa porção de carne considerada como um
presente ou recompensa. (2003, p.172).

A explicação dessa prática nos traz uma ação educativa para a vida.
114

Toda essa disciplina não visava torturar inutilmente a criança, mas ensinar-lhe
a arte de viver. Manter os olhos baixos em presença de um adulto, sobretudo
dos pais – isto é, dos tios e amigos dos pais – era aprender a se dominar e a
resistir à curiosidade. Comer diante de si era aprendera contentar-se com o
que se tem. Não falar servia para aprender a controlar a língua e praticar o
silêncio: é preciso saber onde e quando falar. Não pegar um novo punhado
de comida antes de haver terminado o anterior ensinava a dar prova de
moderação. Segurar a borda do prato com a mão esquerda era um gesto de
educação que ensinava a humildade. Evitar se precipitar sobre a comida era
aprender a paciência. Enfim, esperar receber a carne ao final da refeição e
não se servir sozinho conduzia ao controle do apetite e da gula. (HAMPATÉ
BÂ, 2003, p.172).

Nessa descrição nota-se o quanto uma prática pode guardar em termos de


conhecimento, e também o quanto ela pareceria inapropriada em um primeiro
momento ao olhar externo, permeado por outra cultura que não compreendesse os
meandros e significados dos valores tradicionais.
Esse olhar externo seria apanhado no estranhamento do outro, da cultura do
outro, e fatalmente incorreria na tendência classificatória daquilo que se vê,
procurando enquadrar o fenômeno visto em alguma categoria pertinente somente a
sua própria cultura. Esse olhar baseado em valores próprios sempre continuará
existindo, porém o que se percebe na reflexão de Hampaté Bâ (2003) no decorrer de
sua obra é que a abertura para ouvir o outro é fundamental para que se processe um
encontro de seres humanos, culturalmente diferentes, mas essencialmente iguais na
condição humana.
Na tradição, todos os ambientes e situações são possibilidades para o
aprendizado, e nesse caso, o ambiente da casa, da família é privilegiado, pois, do
mesmo modo que há os momentos de maior severidade, existem os de total
descontração e brincadeira. Vejamos o que Hampaté Bâ nos diz:

Neste aparente caos aprendíamos e retínhamos muitas coisas, sem


dificuldade e com grande prazer, porque tudo era muito vivo e divertido.
“Instruir brincando” sempre foi um grande princípio dos antigos mestres
malineses. Mais do que tudo, o meio familiar era para mim uma grande
escola permanente; a escola dos mestres da palavra. (2003, p.175).

No conjunto de práticas e saberes da tradição, deve-se acrescentar a escola


corânica, pois esta também desempenhou um papel relevante na vida de Hampaté
Bâ (2003) e, pelo que ele nos revela, foi um componente fundamental na sua
formação humana, assim como para boa parte da África do oeste. De acordo com
115

Hampaté Bâ, é praticamente impossível pensar na cultura da sua região sem colocar
em evidência a presença do Islã na formação das pessoas.

Quando cheguei à idade de sete anos, uma noite, depois do jantar, meu pai
me chamou. Ele me disse: “Esta será a noite da morte de sua primeira
infância. Até agora, sua primeira infância lhe dava liberdade total. Ela lhe
dava direitos sem impor qualquer dever, nem mesmo o de servir e adorar a
Deus. A partir desta noite, você entra em sua grande infância. Terá certos
deveres, a começar pelo de frequentar a escola corânica. Aprenderá a ler e
memorizar os textos do livro sagrado, o Alcorão, a que chamamos também
Mãe dos livros”. (2003, p.135).

O conhecimento dos fundamentos da religião islâmica era essencial na


formação africana, e desconectar essa região da África da presença do Islã na sua
cultura seria não observar os seus povos e civilizações. No caso do Mali, Senegal,
entre outros países do oeste africano, essa marca é totalmente presente.
A presença do colonizador europeu no continente africano trouxe também o
modelo educacional da Europa. De acordo com Hampaté Bâ (2003), esse modelo
não era bem visto pelos mestres da tradição, ao contrário do que aconteceu com o
Islã na maioria dos casos, pois, segundo eles, o modelo de educação da Europa era
capaz de separar o homem de si mesmo. Esse olhar da tradição fez com que
durante muito tempo a escola europeia, chamada também como escola dos brancos,
fosse rejeitada pelos africanos. No entanto, até mesmo pela necessidade de atender
as demandas da colônia, muitos alunos nativos eram conduzidos a essas escolas.

Na época, os comandantes de circunscrição tinham três áreas a suprir por


meio da escola: o setor público (professores, funcionários subalternos da
administração colonial, médicos auxiliares etc.), para onde iam os melhores
alunos; o setor militar, porque se desejava que os atiradores, spahis e
goumiers tivessem conhecimento básico do francês; e o setor doméstico,
que herdava os alunos menos dotados. A cota anual a ser fornecida para os
dois primeiros setores era estabelecida pelo governador do território; os
comandantes de circunscrição executavam a “encomenda” indicando aos
chefes de cantão e aos chefes tradicionais quantas crianças era necessário
requisitar para a escola. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.209-210).

Desse modo, Hampaté Bâ descreve a sua convocação para a escola ocidental:

Foi assim que num belo dia do ano de 1912, mais para o final do ano
escolar, o comandante da circunscrição de Bandiagara, Camille Maillet, deu
ordem ao chefe tradicional da cidade Alfa Maki Tall, filho do antigo rei
Aguibou Tall, de enviar-lhe dois meninos de boa família, com menos de
dezoito anos, para completar a cota da escola primária de Bandiagara.
(2003, p.210)
116

Na vida de Hampaté Bâ (2003) é possível notar muito bem a presença dessa


herança tríplice africana, a África por ela mesma, a África e o Islã e a África e sua
relação com a Europa, tal qual descrita por Mazrui (2010). Essa presença foi efetiva
também no campo educacional. Aliás, é relevante dizer que a partir desse momento
a formação de Hampaté Bâ prosseguiu até a sua idade adulta sempre dialogando e
procurando entender esses três universos. É por conhecer e transitar bem nesses
universos específicos que Hampaté Bâ ao longo de sua vida procurou revelar o valor
da tradição, possibilitando a sua validade e instrumentalidade no mundo atual.
No entanto, tal como em qualquer outra cultura, a cultura tradicional também
possui aspectos que talvez não se adequem à sociedade contemporânea e mesmo
à noção de direitos humanos já estabelecidos em uma perspectiva mais
universalizada. É por isso que todo saber humano deve ser refletido e ponderado
nas relações, não apenas do próprio grupo, mas ampliadas no encontro com outras
culturas e processos civilizatórios. Esse caminho é defendido por Hampaté Bâ
(2004), pois reconhece que a tradição não é finita, tampouco se estabelecerá
somente em si mesma.
O filósofo francês Maurice Merleau Ponty, pensa de modo bastante
semelhante com o que Hampaté Bâ (2003) propõe, e nos diz:

...na compreensão do outro, o problema é sempre indeterminado, porque só


a solução do problema fará aparecer retrospectivamente os dados como
convergentes, só a motivo central de uma filosofia, uma vez compreendido,
dá aos textos do filósofo o valor de signos adequados. Portanto, existe uma
retomada do pensamento do outro através da fala, uma reflexão no outro,
um poder de pensar segundo o outro que enriquece nossos pensamentos
próprios. (1999, p.243).

A África das suas heranças nativas encontra-se com o Islã e posteriormente


com o mundo europeu. Esses encontros traumáticos em alguns momentos puderam,
no caso de Hampaté Bâ, ajudar a formar um homem para o mundo. É nisto que
Hampaté Bâ acredita: que o homem conheça a sua origem, a valorize, e esteja
amparado na sua própria história, mas que saiba com maturidade e sabedoria
dialogar com a história e civilização do outro, e desse modo, constantemente
aprender a ser.
117

III.2 – Palavra, Espiritualidade e Cosmovisão

A palavra em sua relação com o sagrado, com o divino, ocupa uma posição
especial na cosmovisão e espiritualidade africanas. De modo geral, todos os
aspectos da vida tradicional são permeados pela presença do sagrado. Sendo
assim, não existe na maioria das vezes uma distinção formalizada em que se
estabeleçam os limites do sagrado e do profano. Ao contrário, nota-se que o sagrado
permeia o imaginário das pessoas e as ações cotidianas sempre carregam uma
perspectiva mística e metafísica.
É nessa perspectiva que adentramos o universo da palavra em sua maior
subjetividade, relacionada a toda uma percepção de mundo, a uma maneira de estar
no mundo repleto dos elementos mítico-místicos da espiritualidade e simbologia
africanas.
A espiritualidade pode ser entendida e pesquisada no contexto da religião
formal, porém é válido pensar que a espiritualidade também esteja relacionada com
a maneira como o ser humano se relaciona com o mundo, as suas motivações e
modos de interação. A espiritualidade africana é um modo de ser que independe da
religião formal. O pensamento religioso é considerado natural no universo da cultura.
Segundo os historiadores Tshibangu; Ajayie e Sanneh,

A religião, foi-nos dito, impregna toda a trama da vida individual e


comunitária da África. O africano é um ser “profunda e incuravelmente
crente, religioso”. Para ele, a religião não é simplesmente um conjunto de
crenças, mas, um modo de vida, o fundamento da cultura, da identidade e
dos valores morais. A religião constitui um elemento essencial da tradição a
contribuir na promoção da estabilidade social e da inovação criadora. (2010,
p.605).

Essa noção de religiosidade é enfatizada por Hampaté Bâ (2003) em vários


momentos de sua narrativa, deixando evidente o quanto a vida social está baseada
na vida espiritual. Ao longo das obras de Hampaté Bâ ele explica em algumas delas,
de modo ainda mais pormenorizado, o papel que a religião desempenha na cultura
africana.

Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas


postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é concebido e
sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo
invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento. No interior
dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o
comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo
118

que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será


objeto de uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar
segundo as etnias ou regiões. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.173).

Essa característica religiosa que permeia o modo de ser dos africanos foi
utilizada pela Europa em vários momentos para classificar essas pessoas como
inferiores. Na perspectiva da racionalidade e da cientificidade, essa visão de mundo
aparece como atrasada, oriunda de um dado mitológico. E isso acaba por ser outro
desafio a ser superado no avanço desse diálogo. Pode-se pensar que a perspectiva
de religiosidade entre os africanos diz respeito à maneira com a qual o ser humano
se conecta, se comunica consigo mesmo e com o mundo a sua volta; a religiosidade
se expressa aqui em torno de uma motivação, de um sentido para vida, que
necessariamente não esteja ocupando um lugar formal em uma religião institucional.
No ocidente quando se pensa em religião é comum pensarmos em algo
bastante formal, com uma doutrina estabelecida e consolidada historicamente.
Porém, na África esse elemento formal é recebido subjetivamente e recriado dentro
de uma perspectiva endógena de olhar para o mundo. Um olhar de
complementação, esse sim, o olhar religioso, pois se refere a religar-se ou manter-se
ligado à energia original e a todas as energias dela oriundas, ou seja, todos os seres
criados.
A própria ideia da palavra tal como aparece nas tradições relatadas por
Hampaté Bâ (2003; 2010) nos faz lembrar a questão da origem divina da palavra na
sociedade judaico-cristã ocidental, oriunda da apropriação cultural dos mitos de
origem do oriente médio. Na tradição judaico-cristã temos a criação do homem por
Deus e este Deus se comunicava diretamente com o homem. De sua vontade e
palavra se fez o homem feito da terra. (Gênesis 1. 1-13). Também no Novo
Testamento temos a ideia de Jesus como o verbo de Deus. Desse fato provém a
crença cristã de que Jesus seja o filho de Deus e na doutrina oficial cristã, seja um
dos membros da trindade-una, que seria o próprio Deus em três pessoas distintas,
mas plenamente comunicáveis e inseparáveis: o Pai, o Filho e o Espírito Santo84.
Os mitos de origem, relatos que, segundo o especialista norte-americano
Joseph John Campbell em sua obra O poder do mito (1990), fazem parte da
narrativa de todos os povos, localizam-se na primeira grande questão humana,
quem somos e de onde viemos? Essa marca importante sobre os seres humanos é

84
Ver o livro Catecismo da Igreja Católica das Edições Loyola.
119

um questionamento que necessitava de uma resposta. A alternativa mítico-mística-


teológica é a que possibilita uma primeira resposta a tal questão.
No continente africano, o que se percebe é que o aspecto mítico-místico não
é distante do pensamento lógico. O africano transita livremente por esses diferentes
tipos de respostas, pois as unifica e integra, já que o ser humano também é
percebido nesta inteireza, daí tudo que se relacione com ele, ser visto também
dessa forma.
Essa perspectiva do mítico sagrado que ocupa a gênese dos povos é base na
percepção concreta real para a tradição africana. Pode-se perceber o quanto há de
semelhança entre a narrativa judaico-cristã e a narrativa africana, ao menos aquela
descrita por Hampaté Bâ (2003; 2010). No contexto dos mitos de origem a palavra é
oriunda do Criador. Do mesmo modo, a palavra no contexto da tradição africana é
divina e a sua origem está ligada ao Ser Supremo.
Vejamos o que Hampaté Bâ nos diz ao relatar o mito do povo bambara.

A tradição bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma força


fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de
todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: “Aquilo que Maa Ngala diz,
é!” proclama o chantre do deus Komo. (2010, p.170).

Aqui é válido pensar que para os muçulmanos a expressão é exatamente esta


“Aquilo que Allah diz, é”. E do mesmo modo, como encontramos na narrativa
judaico-cristão-islâmica, temos a maneira como Deus cria o homem.

O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador


Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revela-nos que
quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou o Primeiro Homem:
Maa. (2010, p.170).

Boa parte desses mitos africanos era comunicável com a religião islâmica que
se instalou no continente, o que estabeleceu, de acordo com Hampaté Bâ, um
diálogo profícuo para ambas as culturas. O homem é visto em ambos os universos
religiosos como um ser especial criado por Deus, dotado de responsabilidades e
habilidades que o capacitam a ser o mantenedor, o cuidador das coisas criadas.
De acordo com Hampaté Bâ, o homem é um ser especial, ele é “síntese de
tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força Suprema e confluência de
todas as forças existentes. Maa, o homem, recebeu de herança uma parte do poder
criador divino, o dom da mente e da Palavra” (2010, p.171). Maa Ngala, a suprema
120

divindade, depositou no ser humano Maa três potencialidades: o poder, o querer e o


saber. No entanto,

... todas essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro
dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha
colocá-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forças
começam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa
segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como a
materialização, ou a exteriorização, das vibrações das forças. (2010, p.172).

De acordo com Ribeiro (1999), na cultura do povo ioruba é comum atribuir à


palavra falada essa materialização das energias. Ofò é o termo ioruba para palavra e
asè (pronuncia-se axé) é o termo utilizado para expressar força, poder, vida.
Portanto, a palavra de poder está expressa na fala daquele que a articula. Sendo
assim, de acordo com Hampaté Bâ (2010), o sentido de falar e escutar na cultura
tradicional é muito mais complexo do que normalmente é pensado. De fato, diz-se
que “quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala.
Trata-se de uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na
totalidade”. (p.172). Ainda segundo esta concepção, no universo tudo fala, pois tudo
começa com a palavra. Essa ideia parte do fato de que tudo emana da força
criadora, a palavra de Deus, da qual todos os seres são criaturas. Outros grupos
étnicos do oeste africano partilham vários pontos de semelhança com essa
percepção de mundo. Vejamos o que nos diz Hampaté Bâ,

Em fulfulde, a palavra que designa “fala” (haala) deriva da raiz verbal hal,
cuja ideia é “dar força” e, por extensão, “materializar”. A tradição peul ensina
que Gueno, o Ser Supremo, conferiu força a Kiikala, o primeiro homem,
falando com ele. “Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os
Silatigui (ou mestres iniciados peul). (2010, p.172).

A fala é mobilizadora de forças, pois dá vida e materialização àquilo que é


apenas pensamento, vontade. A fala gera movimento, ritmo. De maneira semelhante
à fala do Criador, a fala do homem é geradora da ação, e, portanto, organiza a
existência. A fala ritmada contribui para a harmonia das forças do universo, a
expressão verbal não somente possibilita a comunicação dos seres humanos, mas
também efetiva a reordenação dos seres no mundo.
A fala nesse contexto está associada a uma concepção mágica, embora não
a mágica ou magia como algo negativo, fictício ou tolo. Ao contrário, a magia na
concepção da tradição africana é a condição básica para que a fala possa exercer a
121

sua função reguladora das forças que regem o universo. A magia é capaz de
estabelecer a harmonia da existência, é conhecimento e saber. Portanto, a chamada
boa magia é aquela que provém dos mestres do conhecimento.

Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forças cósmicas que
dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana anima, coloca
em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas. Mas para
que a fala produza um efeito total, as palavras devem ser entoadas
ritmicamente, porque o movimento precisa de ritmo, estando ele próprio
fundamentado no segredo dos números. A fala deve reproduzir o vaivém
que é a essência do ritmo. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.173-174).

Deste modo, segundo Hampaté Bâ,

Nas canções rituais e nas fórmulas encantatórias, a fala é, portanto, a


materialização da cadência. E se é considerada como tendo o poder de agir
sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que
geram forças, forças que agem sobre os espíritos que são, por sua vez, as
potências da ação. (2010, p.174).

Então, “na tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e
operativo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da
harmonia no homem e no mundo que o cerca.” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.174). A
palavra no universo da tradição está imbuída de acompanhar a vida em todas as
suas nuances, além de ser o elo entre os vivos, o é também com o universo dos
ancestrais.
O aspecto religioso da fala africana tem uma correspondência significativa
com a palavra da tradição islâmica, pois se para o cristianismo o verbo divino se fez
carne na pessoa do Cristo, na tradição islâmica a palavra divina se fez livro, o
Alcorão. De acordo com Hampaté Bâ (2010) e Mazrui (2010), o islã chegou a essa
região da África, bem antes do séc. X, fazendo surgirem desde essa época
importantes centros de formação.

Grandes escolas islâmicas puramente orais ensinavam a religião nas


línguas vernáculas (exceto o Corão e os textos que fazem parte da oração
canônica). Podemos mencionar, entre muitas outras, a escola oral de
Djelgodji (chamada Kabe), a escola de Barani, a de Amadou Fodia em
Farimaké (distrito de Niafounké, no Mali), a de Mohammad Abdoulaye
Souadou em Dilli (distrito de Nara, no Mali) e a do xeque Usman dan Fodio
na Nigéria e no Níger, onde todo o ensino era ministrado em fulfulde. Mais
próximas de nós estavam a Zauia de Tierno Bokar Salif, em Bandiagara, e a
escola do xeque Salah, o grande marabu dogon, ainda vivo. (HAMPATÉ BÂ,
2010, p.204-205).
122

As tradições africanas tiveram um encontro relevante com o universo


islâmico, e em muitos casos o processo de interação foi tão intenso que se torna
praticamente impossível separar uma cultura da outra. Vejamos a reflexão de
Hampaté Bâ sobre essa questão,

As peculiaridades da memória africana e as modalidades de sua


transmissão oral não foram afetadas pela islamização, que atingiu grande
parte dos países da savana os do antigo Bafur. De fato, por onde se
espalhou, o Islã não adaptou a tradição africana a seu modo de pensar,
mas, pelo contrário, adaptou-se à tradição africana quando – como
normalmente ocorria – esta não violava seus princípios fundamentais. A
simbiose assim originada foi tão grande, que por vezes torna-se difícil
distinguir o que pertence a uma ou a outra tradição. (2010, p.204).

Para termos uma ideia de como essas culturas se entrelaçaram, vamos ver
neste trecho da obra Amkoullel, o menino fula como Amadou Hampaté Bâ faz
referência a sua mãe Kadidja, quando esta relata um sonho que teve com o profeta
do Islã Muhammad Ibn Abdullah:

Mais ou menos nessa época, a pequena Kadidja teve um sonho que a


marcou profundamente por causa das previsões a que deu lugar e que de
fato ocorreram, uma após outra, ao longo de sua vida. No sonho, via o
santo Profeta entrar no pátio da casa da família. Ele a mandava chamar os
irmãos e irmãs para partilharem com ele um grande prato preparado por sua
mãe. Sentaram-se todos ao redor do prato e comeram até não sobrar nada.
O Profeta, mantendo a seu lado os irmãos e irmãs de Kadidja, olhou para
ela e a mandou sair. Assim que acordou na manhã seguinte, a menina
sentiu-se invadida por profundo desgosto e caiu num humor pesado e
taciturno. O pai não deu importância ao fato, mas a mãe inquietou-se: “O
que você tem, minha pequena Kadidja. (2003, p.52).

No sonho a mãe de Hampaté Bâ, a então jovem Kadidja, sente-se punida pelo
Profeta, por não estar ao seu lado, assim como os seus irmãos estavam. Percebe-se
nessa narrativa o quanto a cultura islâmica se fazia e se faz presente na cultura
africana dessa região. Dessa maneira, o ser africano do oeste, ao menos a maioria
dos grupos retratados por Hampaté Bâ (2003; 2010), não podem ser entendidos em
seu imaginário e representação destituídos dessa parcela relevante de sua
formação. Nessa citação percebemos o quanto o Islã estará imerso nas tradições
locais, compondo então uma cultura própria.
Outro aspecto de relevância retratado por Hampaté Bâ está na maneira como
as escolas islâmicas instaladas no continente africano souberam respeitar e valorizar
os princípios da tradição africana, algo que foi bastante diferente da relação que a
escola europeia estabelecia com as culturas africanas.
123

Em todas as escolas os princípios básicos da tradição africana não eram


repudiados, mas ao contrário, utilizados e explicados à luz da revelação
corânica. Tierno Bokar, tradicionalista em assuntos africanos e islâmicos,
tornou-se famoso pela intensa aplicação deste método educacional.
Independentes de uma visão sagrada comum do universo e de uma mesma
concepção do homem e da família encontraram nas duas tradições, a
mesma preocupação em citar as fontes (isnad, em árabe) e nunca modificar
as palavras do mestre, o mesmo respeito pela cadeia de transmissão
iniciatória (silsila, ou cadeia em árabe) e o mesmo sistema de caminhos
iniciatórios (no Islã, as grandes congregações Sufi ou Tariga, plural turuq,
cuja cadeia remonta ao próprio Profeta), que tornam possível aprofundar,
através da experiência, aquilo que se conhece pela fé. (2010, p.205).

Deste modo, houve um encontro cultural, uma troca de saberes que ampliou
possibilidades de entendimento entre os grupos.

Às categorias de “Conhecedores” tradicionais já existentes vieram juntar-se


as dos marabus (letrados em árabe ou em jurisprudência islâmica) e dos
grandes xeques Sufi, embora as estruturas da sociedade (castas e ofícios
tradicionais) fossem preservadas, inclusive nos meios mais islamizados, e
continuassem a veicular suas iniciações particulares. O conhecimento de
assuntos islâmicos constituía uma nova fonte de enobrecimento. Assim, Alfa
Ali, falecido em 1958, gaolo (etnia-grifo nosso) de nascimento, foi a maior
autoridade em assuntos islâmicos no distrito de Bandiagara, assim como
seus antepassados e seu filho. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.205).

Vejamos outro exemplo que Hampaté Bâ nos traz sobre o seu avô materno
Pâté Poullo e a sua decisão em abandonar tudo para seguir a vida religiosa na
companhia de El Hadj Omar, um mestre da confraria sufi Tidjania. Aqui Hampaté Bâ
nos dá o exemplo da narrativa memorialista ao contar o episódio vivido por seu avô,
lembrando cada palavra emitida por Pâté Poullo ao encontrar-se com El Hadj Omar.

Não vim a ti para as coisas deste mundo. Peço-te que me recebas no Islã e
te seguirei aonde fores, mas com uma condição: no dia em que Deus fizer
triunfar tua causa e dispuseres de poder e grandes riquezas, peço-te que
nunca me nomeies para qualquer posto de comando- chefe de exército,
chefe de província, chefe de aldeia, nem mesmo chefe de bairro. Porque a
um fula que tenha abandonado seu rebanho não se pode oferecer nada que
seja mais valioso. Se te sigo, é unicamente para que me guies na direção
do Deus Único. (2003, p.28).

Quando analisamos a natureza desses encontros pela perspectiva de


Gruzinski podemos perceber que as categorias anteriores de análise que
mencionam os dados da inculturação ou da aculturação já não são suficientes para
revelar a dimensão dessas dinâmicas e encontros culturais. Estamos diante de
trocas e dinâmicas culturais intensas que se refazem a todo instante e, com isso,
124

propiciam sentidos e significados novos aos seus participantes, que, ao perceberem


identificações comuns, recriam a imagem e representação de si mesmos.
No entanto, nem sempre as relações com o mundo cristão ou muçulmano
foram tão tranquilas. As religiões nativas da África não são expansionistas, já as
religiões como o cristianismo e islamismo são e sempre estão na busca de mais
adeptos.
De acordo com Tshibangu; Ajayi e Sanneh

A religião tradicional africana não fazia proselitismo e era aberta. Ela


tolerava a inovação religiosa como manifestação de um novo saber, sempre
esperando interpretar e interiorizar estes conhecimentos no âmbito da
cosmologia tradicional. (2010, p.606)

Esse traço de abertura na espiritualidade africana é marca na cosmogonia. A


palavra sagrada da tradição oral encontra-se em eco comum com a palavra sagrada
do Islã, e por isso é possível serem ouvidas nesses países, nos horários prescritos,
as cinco orações tradicionais do Islã, convivendo em harmonia com os toques dos
tambores e cânticos tradicionais africanos. Segundo essa concepção, tudo fala, e
tudo é emanação do mesmo Deus, agora chamado em árabe de Allah.

A importância da religião tradicional africana vai muito além do que se


poderia crer, mediante a leitura das estatísticas, as quais avaliam os seus
fiéis em cerca de 20% da população africana total. Para grande número de
cristãos e muçulmanos, os valores morais continuam a emanar, com maior
ênfase, da antiga cosmologia, muito mais que das suas novas crenças:
manifesta-se sempre respeito pelos ancestrais, especialmente através de
libações, crê-se ainda que eles intervenham na vida dos seus sucessores,
que existam forças do bem e do mal, passíveis de manipulação pela
acessão direta às divindades, por meio das orações e do sacrifício, que os
talismãs e os amuletos sejam eficazes para afastar o mal e assim
sucessivamente. (TSHIBANGU; AJAYI; SANNEH, 2010, p.608-610).

No caso da África do oeste, mais especificamente na região descrita por


Hampaté Bâ (2003), o que temos é uma integração bastante remota que possibilitou
uma construção cultural própria, em que os valores da religião tradicional não se
perderam, ao mesmo tempo em que se integraram à religião islâmica, constituindo-
se assim uma cultura original, capaz de preservar os saberes e práticas tanto do
mundo tradicional africano quanto do mundo islâmico.
125

III.3 – África e Brasil: Diálogos culturais para a educação

A cultura é para Appiah (1997) uma construção humana que se dá no


contexto histórico e social. De acordo com Appiah, em cada uma das diferentes
experiências humanas espalhadas pelo mundo, desenvolveram-se formas culturais
distintas, específicas, adaptadas aos locais de existência dessas populações. Desse
modo, as culturas desenvolvidas no continente africano nascem a partir do contexto
histórico, social e espacial próprio. No entanto, a cultura é um processo dinâmico e
interativo, pois percorre a própria condição e necessidade humana de comunicação.
Sendo assim, a cultura se faz, se constrói, se transforma e é propagada na
interação, no encontro entre as pessoas, entre os povos e suas distintas
experiências civilizatórias. As culturas, ao serem compartilhadas e mediadas por
estas interações, vão adquirindo não somente outros formatos, mas também
sentidos. Esses sentidos são ressignificados em tempo real, em acordo com
aspectos subjetivos e objetivos que envolvem essas relações. Segundo Appiah, na
atualidade vivemos um momento mais intenso dessas interações, devido às
transformações tecnológicas que auxiliaram os meios de comunicação,
possibilitando a ampliação dos canais de informação sobre outros povos e culturas.
No entanto, essas informações nem sempre são possibilidades de conhecimento, e
com isso, as aproximações e entendimentos culturais acabam ficando em certa
superficialidade, normalmente expressas na aparência.
No caso do Brasil e do continente africano, as proximidades culturais entre
esses lugares não são recentes, mas, ao contrário, remontam a períodos históricos
seculares. O continente africano possui uma ligação geográfica e histórica com o
Brasil, desde tempos primordiais. Esses lugares estiveram próximos, seja como
continente de Pangea ou posteriormente pelos elos oriundos do tráfico escravista.
Porém, dar um sentido de relevância a esses encontros é uma emergência, que, de
acordo com Munanga (2009), é a condição necessária para o enfrentamento de
práticas discriminatórias em relação à população negra, assim como para que se
reconheça o valor de conhecimento presente no universo da cultura negra em solo
brasileiro. Esse reconhecimento não pode ser feito se não forem propiciados ao
educador e aos educandos os mecanismos necessários de acessibilidade à história
e à cultura dos povos africanos, bases fundamentais da formação da cultura negra
no Brasil.
126

De acordo com Hampaté Bâ (2013), o modo principal pelo qual o ser humano
em qualquer uma de suas civilizações transmite a cultura é a educação. Assim, a
relação cultura e educação são necessárias para o entendimento e aprimoramento
dessas interações humanas.
Os historiadores e antropólogos africanos Habte; Wagaw e Ajayi nos dizem
que,

A educação é o mecanismo através do qual uma sociedade produz


conhecimentos necessários à sua sobrevivência e à sua subsistência,
transmitindo-os de geração a outra, essencialmente, pela instrução dos
jovens. Esta educação pode ter lugar, de maneira não institucionalizada, em
casa, no trabalho ou em área de entretenimento. Em termos gerais, ela se
desenrola em contexto de ensino organizado, naqueles lugares e estruturas
especialmente concebidos para a orientação dos jovens e para formação
das gerações mais anciãs. Os jovens são formados para adquirirem os
conhecimentos, as competências e as aptidões, das quais necessitam, tanto
para preservarem e defenderem as instituições e os valores fundamentais
da sociedade, quanto para adaptarem-nos, em função da evolução das
circunstâncias e do surgimento de novos desafios. (2010, p.817).

Nesse caso, apesar desta ligação ancestral com o continente africano,


percebe-se ainda um desconhecimento desse local do mundo para a maioria dos
brasileiros, e mesmo com a presença de descendentes de africanos no Brasil, tal
distância e tal estranhamento ainda se fazem presentes. De acordo com Munanga
(2010), os saberes e práticas culturais africanos são desconhecidos e mesmo os
saberes e práticas recriados no Brasil, sob a ideia de cultura de resistência, são
apresentados de modo superficial, e ainda não se compreende o seu sentido e
significado mais profundamente.
A presença cultural africana no Brasil possibilitou, segundo Munanga, que,
através da interação de diferentes grupos étnicos africanos que aqui chegaram e a
interação destes com as culturas que aqui estavam, fosse construída uma cultura de
resistência, uma cultura que pudesse garantir a condição humana ao escravizado. A
condição da servidão conduzia o sujeito a um estado de coisificação, um estado em
que a sua humanidade lhe era negada. Mas o ser humano em sua capacidade
transformadora não se submete a essa condição de negação de sua própria
identidade. Foi assim que, mesmo nesta condição de escravizados, os negros
promoveram em solo brasileiro a reinvenção de suas próprias culturas, constituindo,
desse modo, uma reinvenção dessas interações. Lopes diz que,
127

Para manter-se de pé na arena movediça do racismo brasileiro, a cultura


negra negaceia e negocia. Negaceia quando parece dar a cara ao tapa mas
tira o corpo fora e ressurge do outro lado. Negocia quando, forçada pelas
circunstâncias, dá um passo atrás e dois à frente. (1994, p.7).

E sobre o que seria este negaceio, este campo de negociações cotidianas a


partir da cultura que ocorrem no modo como os negros se colocam na sociedade
brasileira Barbosa e Santos afirmam,

Conhecemos a ginga como um movimento de avanço e recuo, um negaceio


feito com o corpo, uma forma de deslocamento reto ou circular; este
movimento de dança varia de ritmo e velocidade, e tal como nos
recordamos dele, assim de pronto, ele está relacionado com a prática da
capoeira. Ou seja, o capoeira ginga para adquirir velocidade; para
dissimular o golpe; para surpreender o adversário com seu movimento; para
escapar ao golpe do adversário. Este é um bom ponto de partida para o
nosso entendimento de hoje. A ginga é, pois, um movimento equilibrador
para aquele que a pratica; desequilibrador, para aquele que não a pratica.
Ela elimina surpresas para quem a pratica; e gera movimentos
surpreendentes, para aquele que não a pratica. (1994, p.26).

Estas são as invenções do cotidiano que permitem ao sujeito existir,


reinventando formas e práticas que lhe garantam a existência. Temos nessa análise
de Barbosa e Santos (1994) e Lopes (1994) a mesma perspectiva analisada por
Certeau (2004) sobre a habilidade criativa e inventiva do sujeito diante de situações
que lhe são impostas.
No entanto, o que nos interessa neste processo não é somente apontar a
existência dessas culturas, apresentar a sua origem primeira em solo africano e a
sua reinvenção no Brasil, mas principalmente chamar a atenção para a forma como
essas práticas culturais preservam saberes ancestrais, nas quais muitos aspectos da
tradição oral se fazem presentes, de modo muito próximo ao que ocorre na África.
Portanto, compreender a origem dessas culturas no continente africano a partir do
seu vetor principal, a chamada tradição oral, e sua base educativa, pode nos auxiliar
a entender a natureza das culturas afro-brasileiras, revelando também o seu
potencial educativo.
Do que pudemos verificar, as culturas afro-brasileiras podem fazer parte não
somente da educação não formal, aquela expressa em ambiente não escolar, mas
também no próprio conjunto da educação formal, em que essas práticas podem ser
inseridas, garantindo-se o seu potencial educativo, permeadas por uma visão de
mundo que ainda se preserva em grande medida e que pode ser um auxiliar na
compreensão do mundo hoje.
128

A educação em ambiente escolar formal no Brasil, em especial quando se


refere à questão étnica, recebeu um grande avanço a partir da Lei Federal
10.639/2003, que em seus métodos de aplicação possibilitou que os fazedores das
culturas afro-brasileiras pudessem estar presentes dentro do universo escolar a
princípio como ilustração dos temas a serem desenvolvidos nos currículos oficiais e
que tratassem da presença negra no país. Porém, esse olhar ainda é ingênuo e não
consegue dar conta do valor educativo embutido no interior dessas práticas. Sendo
assim, a realização de uma apresentação de cultura afro nas escolas brasileiras
durante o mês de maio (Abolição da escravatura) ou novembro (Consciência Negra)
é ainda visto apenas como algo ilustrativo. Nesse contexto, o que de fato alicerça
aquela prática, o saber nela contido, torna-se obscuro, velado.
É assim, por exemplo, que se acha a capoeira bonita, mas quando se pensa
em uma prática de arte marcial com valores educativos, a mesma pode aparecer em
último plano. Nestes casos, o judô, o karatê, o taekwondo, entre outras formas de
luta, aparecem como excelentes instrumentos educativos, capazes de auxiliar na
formação do homem para a vida, devido a uma carga de valores filosóficos. No caso
da capoeira, apesar de vista, é desconhecida e, com isso, não são percebidos os
valores nela existentes, igualmente ricos e complexos e que também formam o ser
humano para a vida.
Pouco se nota que a característica da ginga na capoeira permite que o
indivíduo dialogue com a vida, com as dificuldades da vida, sem desistir, sem fugir,
mas procurando adaptar-se e assim fluir como a água em busca do oceano. De
acordo com Reis (2000), a capoeira traz valores pedagógicos que incluem a
alteridade, pois esta luta-jogo não se propõe à agressividade, mas sim à defesa, e
quando os lutadores se entendem o que temos é um diálogo corporal que se pauta
no respeito ao outro, na condição do outro, algo que nos faz lembrar muito os
valores propostos por Hampaté Bâ e que se tornam significativos para um
entendimento maior da condição do homem no mundo.
Outras práticas da cultura afro-brasileira guardam em si valores semelhantes,
que reafirmam a ideia da coletividade, da ancestralidade, do respeito a si mesmo, ao
outro e à natureza. E, desse modo, apresentam-se como práticas integradoras e
socializadoras por excelência, por serem inclusivas em sua natureza. Esses traços
presentes na cultura afro-brasileira têm sua origem na cultura africana, na tradição.
129

De acordo com o pesquisador em educação Pedro Abib, a cultura afro-


brasileira se insere no universo das culturas populares. Esse cientista, ao analisar as
práticas da capoeira angola no Brasil, reconhece nela e em outras modalidades da
cultura afro-brasileira vários pontos de proximidade com a cultura africana. Segundo
Abib (2004), essas culturas desenvolvidas no Brasil preservam a ritualidade, a
oralidade, a memória e a própria noção de tempo diferenciada. Assim, nos diz: “... no
universo da cultura popular se caracteriza por outra concepção de tempo, que difere
da concepção linear inaugurada pela metafísica” (p.3). Para o autor, o passado é
visto como uma dimensão que guarda um sentido.
A memória, nos diz Abib (2004, p.4), “enquanto patrimônio de saberes e
conhecimentos, cuidadosamente armazenados e organizados”, é importante para a
história do coletivo e tem um papel fundamental ao alicerçar vínculos sociais e uma
identidade coletiva. Para o autor “a grande maioria das tradições populares ainda
tem na oralidade o seu meio mais importante de transmissão” (p.4), tendo aí a sua
essência. Portanto, nota-se também nas práticas afro-brasileiras o elo da memória
com a oralidade. E em relação à sacralidade da existência nos diz que “a ritualidade
adquire no universo da cultura popular, o aspecto do culto, onde sagrado e profano
se entrecruzam, atribuindo um outro sentido ao religioso e a religiosidade” (p.4).
Essas reflexões de Abib nos dão a dimensão mais específica dos pontos de
semelhança e aproximação da África com o Brasil e o quanto esses pontos podem
auxiliar no diálogo e entendimento das culturas africanas no Brasil. Nas colocações
do autor, esse caminho das práticas culturais afro-brasileiras inseridas no contexto
das culturas populares preserva saberes ancestrais. Desse modo, pode-se pensar
que esse universo cultural precisaria ser melhor conhecido e explorado, e, como
uma via de duas mãos, conhecer a África através do pressuposto da oralidade no
processo educativo do oeste africano pode implicar no conhecimento das práticas
culturais afro-brasileiras pautadas também na transmissão oral, e como as mesmas
poderiam ser melhor aproveitadas na educação no Brasil, já se pensando os
mecanismos da Lei Federal 10.639/2003, e mais do que isto, de fato potencializando
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996.
De acordo com Abib,

Os processos de transmissão de saberes presentes no universo da cultura


popular, pautados por uma lógica diferenciada, pressupõem práticas
pedagógicas também diferenciadas, baseadas numa outra concepção de
130

tempo e espaço, que priorizam outro tipo de relação entre mestre e aprendiz
ou entre o (educador e o educando), que enfatizam formas diferenciadas de
sociabilidade, em que as formas simbólicas, a ritualidade e a ancestralidade
têm papel fundamental, e que assim privilegia nesse processo pedagógico,
outro sistema de valores, que não aquele presente na prática educacional
corrente em nossa sociedade. (2004, p.4-5).

De acordo com Abib, é relevante pensar-se no próprio modelo educacional


desenvolvido no Brasil, para que o mesmo possa também receber a contribuição
dessas matrizes culturais oriundas em grande parte do continente africano, e
também para que esse modelo de educação possa fazer sentido para boa parte da
população brasileira que não está sendo representada no modelo atual.
Assim, segundo o geógrafo e educador Cunha Junior, deve-se refletir que

Um processo pedagógico implica no conhecimento, na sua organização e,


no sentido do seu uso, na extensão da prática de uma formação crítica. A
educação tem como base a socialização dos cidadãos, na formação da
autonomia das pessoas e na sua realização como participante da
sociedade. Esta educação precisa fazer sentido para a população, precisa
representar os diversos atores sociais, em suas necessidades particulares,
de vida, posição social e de pertencimento de identidade. O pertencimento
étnico tem esta marca da identidade e da posição social, vai além da ideia
de classe social europeia. (2007, p.10).

Segundo Hampaté Bâ (2010), a tradição africana tem muito a oferecer. Esses


aspectos das culturas afro-brasileiras são legitimamente heranças africanas, quer
sejam elas da costa ocidental africana ou de outras regiões do continente, e nos
revelam o seu potencial de capacidade humanizadora. Essa é a proposta que
encontramos na obra de Amadou Hampaté Bâ, um pensador que não negou as suas
origens e a partir delas foi para o mundo, dialogou com o mundo e fez questão de
dizer da importância da contribuição de cada ser, na constituição do espaço comum
que habitamos.
A ideia de Hampaté Bâ coincide com aquilo que se pensa sobre as
perspectivas de um mundo melhor, porém ela é dita a partir de um saber milenar,
que continua vivo, como ele mesmo diz, na memória dos sábios, na cultura dos
povos descendentes de africanos, hoje espalhados pelo mundo afora. Já dizia
Mazrui, se antes vivíamos em aldeias na África, hoje o mundo é também nossa
aldeia, e já que estas mudanças estão ocorrendo, que elas possam atender a
demanda angustiada dos seres humanos em sua maioria, a construção de um
mundo mais justo e equitativo.
131

O historiador Serge Gruzinski, quando conceitua esses encontros culturais,


nos diz da mudança comum dos povos que se comunicam. Na lógica de Gruzinski,
são esses encontros que possibilitam o avanço da civilização na superação de seus
males.
Portanto, em condição específica e localizada, temos no caso brasileiro,
pensando na educação, um campo vasto de saberes que ainda precisam ser
vasculhados e entendidos em sua própria natureza, e muito mais que apenas a
estética dessas práticas, que se tenha também uma ética do seu reconhecimento
como elemento formador, relevante para o entendimento e formação do povo
brasileiro.
Se pudermos pensar a identidade como algo mutante, a identificação é um
fato social e cultural concreto. E, deste modo, a identificação com o continente
africano precisa ser valorizada e a educação é um meio privilegiado para que se
consiga construir canais de identificação, em que haja um reconhecimento também
do Brasil africano, tão presente na cultura do país, mas ainda pouco valorizado no
meio educacional. A educadora Eliane Cavalheiro (2006), ao refletir os problemas do
preconceito em sala de aula, deixa-nos nítido que a questão da baixa autoestima
ainda é um fator marcante na construção da pessoa negra. É nesse ponto que
notamos ser a cultura um caminho possível para o reconhecimento e valorização da
presença dos africanos e seus descendentes na formação do país. Por isso, não
apenas como conteúdo informativo nas disciplinas, mas mesmo como forma de
transmissão de saberes, a contribuição africana é acentuada. É com essa reflexão
que Abib propõe mudanças nos modelos educacionais.
Para Munanga (2009), a recuperação da história e da memória coletiva da
comunidade negra não deve ter apenas o foco no aluno negro, mas todos os alunos
de outras ascendências étnicas para que seja possível vencer anos de uma
educação repleta de preconceitos que infelizmente foram alicerçados ao longo de
muitos anos.
A tentativa de impossibilitar essa identificação através do discurso negativista
sobre a África somente reafirma os antigos valores colonialistas e escravistas, assim
como continua a inferiorizar os africanos e seus descendentes em uma suposta
hierarquia humana.
A educação brasileira, a partir dos pressupostos das Leis Federais
10.639/2003 e 11.645/2008, deu um passo significativo para a efetivação do
132

caminho da cidadania, através da prática educativa que integra oficialmente ao


currículo os elementos africanos, afro-brasileiros e indígenas, componentes estes
basilares na formação do povo brasileiro. Contudo, ainda existe muito a ser feito, a
começar pela sensibilização dos professores ao tema, além da necessidade de
aproximá-los cada vez mais da realidade nacional, que não é uma realidade isenta
de preconceitos, por isso, a sensibilização. O professor precisa enfrentar os seus
preconceitos, assumi-los para transformá-los. De acordo com Cunha Junior (2007), é
necessário nos cursos de formação em qualquer nível, até o superior, integrar o
modo de ser e pensar africano à ação formativa, caso contrário não se entenderá
minimamente o porquê de determinadas práticas, e muito menos se verificará nelas
o seu valor educativo. É necessário proporcionar que materiais pedagógicos nas
mais variadas idades estejam cumprindo com o seu papel de desmistificação do
continente africano e acima de tudo é relevante que os fazedores dessas culturas,
os seus membros ativos socialmente, sejam reconhecidos também no ambiente
escolar, possibilitando-lhes a condição de participação efetiva na elaboração do
conhecimento.
Essas discussões estiveram presentes nos Seminários e Congressos que
ocorreram ao longo do ano de 2013 por todo o território brasileiro, em face das
celebrações reflexivas dos 10 anos da Lei Federal 10.639/2003. De modo geral,
nota-se que nestes 10 anos foi possível ampliar o acesso aos materiais específicos
sobre temas africanos e afro-brasileiros, a publicação de muitos livros e vídeos,
assim como a abertura para se discutir os temas referentes à presença negra no
país. No entanto, nota-se também o recrudescimento em outras áreas como as
discussões em torno das políticas de ação afirmativa, em especial as cotas para
universidades, a quase estagnação da área do emprego, da habitação e da saúde;
ou seja, muito ainda precisa ser feito. Assim, podemos concluir que a educação tem
esboçado o seu compromisso para a área, mas ainda falta a efetivação desse
compromisso: é necessário comprometer as partes envolvidas e os grupos de
interesse para que políticas educacionais possam ser efetivadas e garantidas.
133

CONCLUSÃO
Uma educação para emancipação do ser humano

O ser humano enquanto sujeito cultural por excelência é também um sujeito


educativo por condição. E quando se pensa essa característica a partir daquilo que
se constituiu ao longo da história como elementos de referência para organização da
sociedade humana, nota-se a relevância do pensamento reflexivo, capaz de voltar-
se sobre si mesmo, rediscutir e reapresentar o que é dado. Assim, quando se pensa
a educação para este tempo, pode-se ver o que simboliza o outro, no qual as
diferenças culturais se apresentam e distintas maneiras de olhar o mundo são então
conhecidas.
Temos vivido um tempo de contradições, de choque entre diferentes formas
de pensar, e o desafio que o outro representa para valores e símbolos próprios, que
normalmente dão uma ideia de mundo já configurada e “perfeita”. Essas ideias
prévias presentes no universo de cada cultura ou de cada ser humano são
destronadas no contato com o outro. A forma dada de se olhar para as coisas, para
o mundo, não é mais única e, com isso, deixa de ser plena em si mesma, ela
necessita do outro, da complementação e da reflexão para a sua adequação ao real.
O mundo humano é um mundo simbólico de imagens e representações, que
faz sentido apenas ao homem em sua busca por si mesmo. A capacidade de
pensar, de discutir e rever a sua própria jornada histórica é que habilita o ser
humano a adequar-se ao mundo, assim como adequar o mundo para si. Essa
característica o torna responsável por si e pelo meio. No entanto, de acordo com
Hampaté Bâ (2003), são enormes os desafios que essa condição lhe impõe, e,
somente isolado no universo próprio de sua cultura, o homem não dá conta dos
desafios que se apresentam, portanto o caráter emergencial do encontro, não mais
como desencontro e tampouco como conflito, mas como perspectiva esperançada
para a civilização, se faz necessário.
Ao refletir a educação e a cultura, estamos buscando outra conformidade
social que seja pautada no respeito e no diálogo entre os povos, em que a prática
educativa seja uma prática de formação do ser humano, que, de acordo com Padilha
(2012), seja capaz de levar o homem ao mais profundo de si.
134

Nas tradições bambara e fula diz-se que existem as pessoas da pessoa, o


que significa pensar também nas muitas possibilidades que existem na pessoa, nas
possibilidades de escolha que o ser humano é capaz e na sua imensa capacidade
de aprender. E aqui é interessante lembrar o que dizia Nelson Mandela ainda em
seus anos de enfrentamento ao regime do apartheid, em que falava sobre a
capacidade de ensinar as crianças a amar e não a odiar. Essa é a educação que se
revela como caminho para este tempo. Não parece que seja mais viável uma
estrutura de mundo em que a lógica seja apenas movida pelos bens materiais e
econômicos, em que a técnica se sobreponha ao homem, o que há anos vem
conduzindo o homem ao flagelo de si mesmo. Nas análises de Serge Latouche essa
perspectiva já revelou o seu fracasso, as suas limitações, por opor-se ao principal da
condição humana: o diálogo e a coletividade como formas de aprender.

A pessoa, assim, não está encerrada sobre si mesma, como uma caixa bem
fechada. Ela se abre em diversas direções, diversas dimensões,
poderíamos dizer, ao mesmo tempo interiores e exteriores. Os diversos
seres, ou estados, que estão nela, correspondem aos mundos que se
escalonam entre o homem e seu Criador. Eles estão em relação entre si e,
através do homem, em relação com os mundos exteriores. Antes de tudo, a
pessoa está ligada a seus semelhantes. Não se saberia concebê-la isolada
ou independente. Assim como a vida é unidade, a comunidade humana é
uma, e interdependente. (HAMPATÉ BÂ, 2014, p.3).

As maneiras e os modos sociais que não ouvem o outro, ou o


descaracterizam de sua condição, apenas fortalecem a condição delicada em que já
se encontra grande parte da civilização humana em um mundo de absurdos
contrastes. A análise sociopolítica mundial tem revelado a dramaticidade do
disparate da distribuição de renda, o sufocamento dos fundos econômicos e a
exploração de bens naturais. Para pensadores como Hampaté Bâ, Ki Zerbo e
Latouche, faz-se necessária uma mudança nos modos de ver e pensar; é necessário
reaprender a ser e não se conformar com o ter apenas, e ter de maneira cada vez
mais excessiva. Como diz Latouche (1989) “(...) o ser mais foi substituído pelo
objetivo ocidental do ter mais”.
Na visão de Hampaté Bâ, não podem existir harmonia, direito, equidade se o
humano não está equilibrado em si mesmo, e essa condição passa pela
necessidade do outro. Essa característica provoca o pensamento de que é
impossível estar bem se o outro está mal. Esta proposta se assenta nos
pressupostos da tradição oral que enxerga a pessoa como ser humano integral e de
135

relações. Tal forma de olhar para as coisas, para o mundo, se revela tão significativa
para fazer pensar no que nos diz Latouche sobre o ter e a sua relação com o ser.
A cultura da África tradicional procura a todo custo, e como forma de valor
maior, preservar o ser, dando-lhe o sinal da escolha, da decisão e não tornando-o
um mero agente já escravizado pelo sistema por ele inventado, em que os métodos
de exploração e desenvolvimento econômico se apresentam de maneira a sufocar o
homem que o criou.
Para Hampaté Bâ (2014), o ser humano é chamado, é convocado para a
realização do ser, pois, enquanto ele não realiza a ordenação de si mesmo e do
mundo a sua volta, ele é apenas um homem ordinário que não se tornou apto ao
cumprimento de sua existência.
A proposta de Hampaté Bâ não está restrita a África ou a pensarmos uma
África isolada do mundo, mas, muito pelo contrário, trata-se de uma proposta
mundial, coletiva, de partilha e engajamento, na qual a educação deve estar voltada
para a emancipação do homem, tendo por base a sua própria humanidade
repensada e refletida. Mais do que conhecermos as diferenças que existem entre os
povos, entre as culturas, o que se aponta é o reconhecimento das mesmas e a
emergência de aprendermos com elas.
No caso da escola no Brasil é mais do que ministrar conteúdos sobre a África
nas escolas, mas ir além e pensar o modo de ser que essa cultura ensina e percebê-
la como agente viável na formação da pessoa humana também no Brasil. Dar
visibilidade e respeitar a presença negra no Brasil é, de acordo com Munanga
(2010), dar-lhe a condição de pertencer efetivamente ao universo de saberes que
compõem o ser humano. A adequação da LDB através das Leis Federais
10.639/2003 e 11.645/2008, é um caminho proposto que possibilitou a abertura de
portas de entrada a esse universo de modo mais concreto - oficial, diríamos -,
embora todo esse universo sempre se tenha feito presente na formação cultural do
povo brasileiro, como já descrito por Darci Ribeiro e outros tantos antropólogos e
sociólogos brasileiros. Porém, o seu conhecimento regular em ambiente formal o
retira da marginalização escolar, e, mais do que isso, colabora efetivamente no
reconhecimento da história do aluno negro, contribuindo, dessa forma, para que o
mesmo consiga elaborar a sua identidade e representação também a partir de
valores culturais e civilizatórios oriundos de uma história que lhe é familiar.
136

Nos diz Santos (1997) que a concepção de educação é abrangente, pois o


olhar para o mundo deve permitir a percepção de que todos os componentes da
realidade estão em relação. Sendo assim, a prática educativa está localizada em
todas as ações e o processo educativo está nas palavras e nos modos de fazer.
Amadou Hampaté Bâ nos diz, ao longo de sua obra Amkoullel, o menino fula,
que o sentido da existência humana é buscar a sabedoria e a harmonia. Deixa nítido
o quanto valores civilizatórios que ainda preservam este olhar integrado do ser
humano podem contribuir para que o homem consiga sair do estado de perda de
sentido para sua existência. Esse fenômeno da ausência de sentido e também a
relativização dos valores civilizatórios constituídos ao longo da história dos homens,
têm sido alguns dos desafios do nosso tempo. Por isso, a experiência dos grupos
étnicos descritos por Hampaté Bâ faz revelar que é possível existir um ser humano
diferente, capaz de ressignificar a sua vida por princípios que são mais
determinantes a sua existência e que acabam fortalecendo a ideia de ser e não
somente a de ter.
Ao longo da obra de Hampaté Bâ vários episódios nos chamam a atenção
pelo que representam na constituição formativa do ser humano. Contudo, neste
momento final de nossas considerações em que nos deparamos ainda com um
caminho a ser percorrido, mas que se revela fecundo e pronto para ser maturado
tanto pelas pesquisas como pelas práticas pedagógicas em curso, voltamo-nos ao
episódio de despedida de sua mãe Hadidja e do seu filho Hampaté Bâ e os
conselhos (saberes) que ela faz questão de fortalecer no coração de um jovem que
avança para o mundo.
Vejamos a descrição que Hampaté Bâ faz desse momento, que, embora
longa, ajuda-nos a compreender algo mais do sentido e significado da palavra na
tradição e, consequentemente, na educação africana como formação para vida.

Na manhã da partida, minha mãe acompanhou-me até a beira do rio. Um


pouco antes de chegar à margem era preciso atravessar uma pequena
duna de areia. Caminhávamos de mãos dadas. À medida que descíamos,
virados para o sul, o vento do norte nos colava as roupas as costas. Minha
mãe fez questão de subir na piroga para verificar com seus próprios olhos
que nada faltasse. Mais sossegada distribuiu os últimos presentes e voltou
para a margem. Pegando minha mão, puxou-me de lado. Ali deu-me
cinquenta francos para as despesas de viagem e, tomando minhas mãos
nas suas, disse-me: “Olhe bem nos meus olhos”. Mergulhei meu olhar no
seu e, por alguns instantes, como se diz em fula, “nossos olhos tornaram-se
quatro”. Toda a energia desta mulher indomável parecia fluir para mim
através de seu olhar. Virou então minhas mãos e em um gesto de grande
137

benção materna, à maneira das mães africanas, passou a ponta da língua


85
sobre minhas palmas . “Disse:” Meu filho, vou lhe dar alguns conselhos
que serão úteis para toda a sua vida de homem. Guarde-os bem”. Ela
marcava cada conselho tocando a ponta de um de seus dedos. “Nunca abra
sua mala em presença de alguém. A força de um homem vem de sua
discrição; não é necessário mostrar nem sua miséria nem sua fortuna. A
fortuna, quando exibida, atrai invejosos, pedintes e ladrões.” - “Nunca tenha
inveja de alguma coisa ou de alguém. Aceite o seu destino com firmeza,
seja paciente na adversidade e comedido na felicidade. Não se compare
àqueles que estão acima de você, mas àqueles que são menos favorecidos
que você.”. Não seja avarento. Distribua esmolas a medida de suas
86
possibilidades ,mas dê preferência aos pobres sobre os marabus
ambulantes.” - “Preste o máximo de serviço, mas peça o mínimo possível.
Faça-o sem orgulho e nunca seja ingrato com Deus e os homens“. - “Seja
fiel em suas amizades e faça tudo para não ferir seus amigos“. - “Nunca
brigue com um homem mais jovem ou mais fraco que você“.- “Se partilhar
um prato com amigos ou desconhecidos , nunca pegue um pedaço grande,
nem encha a boca de alimentos e, principalmente, não olhe para as
pessoas enquanto estiverem comendo, porque nada é mais feio que a
mastigação. E nunca seja o último a levantar-se; demorar-se diante de um
prato é próprio dos glutões e a glutonaria é vergonhosa”. - “Respeite os
mais velhos. Sempre que encontrar um ancião fale com ele com respeito e
dê-lhe um presente, por menor que seja. Peça-lhe conselhos e faça-lhe
perguntas com discrição”. - “Desconfie dos aduladores, das mulheres de má
vida, dos jogos de azar e do álcool”. - “Respeite os chefes, mas não os
coloque no lugar de Deus”. - “Faça suas orações regularmente. Confie sua
sorte a Deus toda manhã ao levantar-se e agradeça-lhe toda noite ao deitar-
se”. - ”Você entendeu bem? “Sim, Dada.” (2003, p.340-341).

A preocupação da educação tradicional africana é pela formação do ser


humano para o todo da sua existência, para a vida em sua complexidade. Não se
trata apenas de conteúdos ou de técnicas a serem aprendidas, mas de formas de se
olhar para si e para o outro que fortaleçam a dignidade, o respeito e principalmente
um sentido de vida.
A educadora brasileira Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2003) nos diz
que tanto os africanos como os seus descendentes na diáspora, incluindo os afro-
brasileiros, quando pensam a educação, referem-se a um sentido maior, que visa o
tornar-se pessoa com capacidades de conduzir a sua própria vida. Nesse aspecto, a
educação refere-se a uma construção da própria vida, mas a partir de relações
geracionais, de gênero, de grupos sociais e étnico-raciais, sempre procurando
ampliar a visão de mundo, compartilhando e repassando conhecimentos e
experiências. Assim, a vida do indivíduo somente se efetiva e tem sentido no seio da
comunidade, e, portanto, não busca apenas um bem estar pessoal, individualizado,
mas um bem estar do grupo, do coletivo.

85
Esse gesto tem base na importância que se dá à palavra e à saliva tanto na cultura espiritual
tradicional africana quanto no Islã. Trata-se de uma benção especial.
86
Homens e mulheres que no Islã adotam a vida mística.
138

É nessa perspectiva que pensamos que deva seguir a educação brasileira.


Daí reconhecermos na obra e nas ideias de Hampaté Bâ (1972; 2014) tanto a
apresentação de uma África ainda pouco revelada para a grande maioria das
pessoas no Brasil, como também por conter todo um cabedal de saberes que podem
contribuir de modo considerável para se rever a condição do homem no mundo.
Percebe-se o papel de grande educador que Amadou Hampaté Bâ exerceu ao longo
de sua vida, ao lembrar que o ser humano é um ser de complexidades e
transformações sempre em movimento. O ser humano é movimento, assim como o
Cosmos. E as suas possibilidades de amadurecimento se estabelecem nas
condições que vivencia e se permite compartilhar.
Hampaté Bâ (2014) nos chama a atenção para o fato de que a tradição
observa a pessoa humana em sua multiplicidade interior, um ser ainda não pronto
em seu princípio, mas que é chamado a ordenar-se, a unificar-se, sempre
procurando o seu lugar nas unidades mais vastas, estabelecidas no Cosmos e na
própria comunidade humana. O homem descrito pela tradição é síntese do universo
e todas as forças existentes procuram nele o ponto de equilíbrio para reunir-se e
assim ordenar a vida.
Somente assim o homem será pleno em sua existência. Essa é a educação
que se busca para emancipação do ser humano. A escola e outros espaços sociais
deveriam possuir o mesmo objetivo, o de despertar o homem para si mesmo e para
o mundo que ele ocupa e, com isso, para a responsabilidade que tem perante o todo
da vida.
139

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153

ANEXO
154

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em 1966. Foto de Philippe Dupuich extraída de Sur les traces d´Amkoullel,
L´enfant peul, Actes Sud, 1998.
155

Figura 2- Mapa da África Ocidental com delimitação dos países na colonização mas apresentando algumas
divisões anteriores, baseada nos territórios de alguns grupos étnicos. Imagem do livro Amkoullel, o menino
fula (2003).
156

Figura 3 – Mapa do Mali apresentando a região em que Amadou Hampaté Bâ viveu a sua infância e
adolescência. Nesta região viviam vários grupos étnicos entre eles: fulas, dogons, bozos, sereres, tucolores,
diwambés, entre outros. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003).
157

Figura 4 – Mapa mais detalhado da região em que viveu Amadou Hampaté Bâ que destaca a cidade de
Bandiagara. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003).
158

Figura 5 – Mapa da África Ocidental


159

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