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PIRACICABA, SP
(2014)
EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE
AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE
AMADOU HAMPATÉ BÂ
Dissertação apresentada à
Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação
em Educação da UNIMEP
como exigência parcial para
obtenção do título de Mestre
em Educação
PIRACICABA, SP
(2014)
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Unimep
Bibliotecária: Luciene Cristina Correa Ferreira CRB-8/8235
CDU 37
BANCA EXAMINADORA
Agradeço aos meus pais Etelvina e Antonio pela minha existência e educação. Esse
Agradeço a minha esposa Alexandra e o meu filho Kauê pelo apoio durante esta
jornada acadêmica. Agradeço a minha filha Luana que mesmo no ventre materno já
Agradeço aos amigos da Biblioteca Pública Municipal: Lucila, Tite e Rosana pela
Projeto. Agradeço ao Djop, Acácio e Dida pelo apoio com materiais de pesquisa.
Agradeço de maneira muito especial aos membros da banca: a Profª. Anna por sua
vez mais uma África sujeito que ainda tem tanto a nos dizer. A sua amizade sempre
Agradeço com muito carinho e respeito ao meu orientador Prof. César por me
This study aims to answer what the role of orality in education of West African is,
whose the main object of research is the idea about education and orality that comes
from ‘Amkoullel, A Fula Child’. It is a literary work made by philosopher and traditional
master of Mali, Amadou Hampâté Bâ (1900-1991). The oral tradition is one of the
basic investigative sources for the historiography of Africa. According to the historian
of Burkina Faso, Joseph Ki Zerbo (1922-2006), the oral tradition along with writing
and archeology that have linguistics and anthropology as auxiliary sciences form the
historian's research material who investigates the African continent. In our research
we seek to understand the role that tradition, known as oral tradition, plays in the
formation of African man. This research is also justified by the need to expand the
knowledge about the African continent, already thinking of Federal Law 10,639 of
2003, establishing the obligation of history teaching, African and Afro-Brazilian
cultures at schools of the country. Therefore, a better understanding of Africa, it is
also to recognize with more consistency a training of our people and our cultural
matrixes by expanding the possibilities of dialog between peoples.
ANEXO.............................................................................................................153
Anexo:
Figura 2 - Mapa da África Ocidental com delimitação dos países na colonização mas
apresentando algumas divisões anteriores, baseada nos territórios de alguns grupos
étnicos. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003) ....................................155
Figura 4 - Mapa mais detalhado da região em que viveu Amadou Hampaté Bâ que
destaca a cidade de Bandiagara. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003)
.................................................................................................................................157
Introdução
A África no contexto de um mundo descentralizado
Então,
1
José Paulino Castiano é filósofo e historiador moçambicano do departamento de Filosofia da
Educação da Universidade Pedagógica de Maputo.
2
Sociólogo da USP, especialista em culturas africanas da costa ocidental.
11
O ocidente fez mais que modificar seus modos de produção, ele destruiu o
sentido de seu sistema social ao qual seus modos estavam fortemente
aderidos. Desde então, o econômico tornou-se um campo autônomo da vida
social e uma finalidade em si mesmo. As velhas forças onde predominava o
ser mais foram substituídas pelo objetivo ocidental do ter mais. (1989, p.22)
modo com que essas lembranças são trazidas à tona se torna bastante relevante
para termos uma noção mais apropriada do sentido de sua obra.
O texto Amkoullel, o menino fula é um registro autobiográfico da infância e
juventude de Hampaté Bâ, que foi publicado após a sua morte por Hélene
Heckmann, responsável por sua obra literária. O título original em francês é
Amkoullel, L´enfant peul. A palavra Amkoullel é o modo como Amadou Hampaté Bâ
era chamado quando criança e Fula ou Peul refere-se ao grupo étnico ao qual
pertence, que, de acordo com historiadores especialistas em etnias africanas, trata-
se de uma etnia que tem origem na África oriental e Península Arábica, mas que foi
migrando até o oeste africano em um longo percurso que permitiu que a cultura
desse povo seja complexa, revelando traços presentes em outros povos, ao mesmo
tempo que mantém as suas características próprias.
O autor escreveu doze obras ao longo de sua vida, tratando na maioria delas
sobre a cultura do oeste africano, com ênfase na sua região. Entre as obras escritas
por ele, podemos destacar: L´entrange destin de Wangrin; Oui, mon comandante;
Contes initiaques Peul; Contes des Sages d´Afrique; Vie e enseignement de Tierno
Bokar-Le sage de Bandiagara; Aspects de la civilisation africaine; Jesus vu par un
mulsuman; Kaidara; L´Empire peul du Macina, entre outras. Estas obras estão
publicadas em outros idiomas e mesmo na língua francesa estão disponíveis em
diversas edições. Porém, no Brasil apenas Amkoullel, o menino fula está disponível.
Hampaté Bâ era mestre tradicionalista, professor, historiador e filósofo
nascido em Bandiagara, no Mali, oeste da África, reconhecido no meio intelectual
dos pesquisadores sobre a África como uma das maiores referências sobre a
chamada cultura tradicional3. Concordando com Blaise (2012), podemos dizer que o
vasto conhecimento de Hampaté Bâ em várias áreas chega ser desconcertante. A
sua formação reunia o universo tradicional africano, o conhecimento islâmico e a
formação acadêmica europeia, tendo na Universidade Sorbonne, na França, a sua
base, o que lhe permitiu desenvolver e aprimorar uma reflexão relevante, capaz de
indicar possíveis caminhos para o diálogo entre as culturas tradicionais africanas, o
mundo islâmico e o mundo europeu, e assim, contribuir para a reconstrução de uma
imagem da África que saiba articular a perspectiva do olhar externo e interno.
3
A cultura tradicional está ligada à cultura nativa de transmissão oral.
13
4
Historiador de Burkina Fasso, país do oeste africano. Nasceu em 1922 e morreu em 2006.
14
tradição escrita como uma primazia e até mesmo uma condição superior de
civilização em relação aos povos de perspectiva oral. De acordo com Prins (1992,
p.163), “os historiadores das sociedades modernas, industriais e maciçamente
alfabetizadas – ou seja, a maior parte dos historiadores profissionais – em geral são
bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado”.
Devido a esse olhar, a história da África ficou submersa, pois se suspeitava da
possibilidade de uma construção histórica sem bases escritas.
Hampaté Bâ (2013) relata que, quando foi falar aos europeus pela primeira
vez sobre as tradições orais do oeste africano, conseguiu apenas arrancar risos e
alguns chegavam a perguntar, em tom irônico, qual a utilidade dessas tradições para
a Europa. Naquele primeiro momento, e ainda sob o impacto dessa rejeição, ele
respondeu que seria a de devolver a alegria que a Europa havia perdido. Alguns
anos mais tarde, refletindo sobre essa resposta, também acrescentaria que uma
certa dimensão humana, pois a civilização tecnológica estaria fazendo
desaparecer o ser humano em sua totalidade. Essa visão demonstra o aspecto de
centralidade que esses intelectuais europeus atribuem a Europa: é como se o que
for estabelecido a partir dessa perspectiva é válido e o que for construído fora dela
não.
Essa situação a que Hampaté Bâ foi submetido não é diferente em muitas
instâncias do conhecimento, entre elas a filosofia e a história. Na filosofia podemos
verificar as análises de Martin Bernal (1987) em sua obra Black Athena em que
discute a pretensa origem grega do pensamento reflexivo. E na própria história oral
ainda existem desafios a serem superados para revelar e legitimar a oralidade no
campo da historiografia. Segundo Thompson (1992, p.45), “na verdade a história
oral é tão antiga quanto a própria história. Ela foi a primeira espécie de história. E
apenas muito recentemente é que a habilidade em usar a evidência oral deixou de
ser uma das marcas do grande historiador”. Nesse contexto, de acordo com Martin
Bernal, é interessante pensar que a base da civilização ocidental a partir de uma
15
5
Essa metodologia é descrita no primeiro volume da obra História Geral da África (2010).
6
Por intersubjetivação Castiano (2010) refere-se à necessidade do diálogo entre os próprios
africanos.
17
Uma reflexão equilibrada sobre o oral não pode mais perpetuar a crença de
que, por ser mais natural, mais comum no cotidiano, frequentemente mais
espontâneo, é mais fácil do que o escrito e pode prescindir de
aperfeiçoamento para a aprendizagem. O oral é a condição essencial para a
existência de um idioma e esse atributo merece respeito: é vital no processo
interacional humano e merece atenção pedagógica.
.
Essa atenção pedagógica se faz necessária, pois reflete a atenção histórica
que se procura dar às comunidades, aos povos de tradição oral.
Na década de 2000 nos deparamos com uma série de conquistas do
movimento negro brasileiro, entre elas, a aprovação da Lei Federal 10.639 de 09 de
janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-
brasileira nas escolas do país. Essa lei foi uma alteração na Lei Federal nº 9.394 de
20 de dezembro de 1996, que vai ao encontro de uma pendência histórica do Brasil
em relação a um dos grupos que constituem a sua formação, o negro. A existência
dessa lei impõe a necessidade de formação de quadros de educadores para que
seja atendida essa demanda, com isto esta pesquisa pode contribuir também com o
processo de formação do educador que trabalha com a temática africana, através de
um tema central para se entender o fenômeno educacional no contexto da tradição
africana. Pode-se, deste modo, potencializar a eficácia da LDB, já que estando
amparada pela reflexão atenta aos aspectos étnicos propicia de modo mais efetivo a
oportunidade da pesquisa e o reconhecimento de práticas socioeducativas oriundas
das experiências das culturas de origem africana.
Ainda tivemos a Resolução nº1, de 17 de junho de 2004, do Conselho
Nacional de Educação, fundamentada no Parecer do mesmo Conselho, de 10 de
março de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
19
É pensando também nessa questão bastante atual que a escolha pela obra
de Hampaté Bâ e pelo entendimento da tradição oral e sua ligação com a educação
no oeste africano nos parece ser uma porta de entrada válida, principalmente para
pensarmos uma história da África na perspectiva da educação brasileira.
No Brasil, sentiu-se durante muito tempo a carência de acesso a materiais
históricos e didáticos sobre o continente africano. Tal carência é minimizada na
década de 2000 quando leis, projetos e iniciativas públicas e privadas contribuíram
para o acesso a uma quantidade maior de material de pesquisa. Um exemplo desse
fato é a publicação na íntegra da coleção História Geral da África (2010), cujo
original era dos anos 80, mas que, no Brasil apenas eram encontrados em língua
portuguesa os três primeiros volumes. No entanto, em 2010, em uma iniciativa do
Ministério da Educação, UNESCO e UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)
foram disponibilizados em formato impresso e PDF os oito volumes da coleção, que
desde a sua proposta original tem sido um marco fundamental para os estudos
7
CNE/CP Resolução 1/2004. Diário Oficial da União. Brasília, 22 de junho de 2004, seção 2,p.11.
8
(1942-), nascido no Congo e professor da USP do departamento de ciências sociais /
antropologia. Também é do Centro de Estudos Africanos da USP.
20
9
Ver www.casadasafricas.org.br
10
Ver www.sbhe.org.br
22
11
Conceitos importantes da história cultural que trabalharemos no primeiro capítulo com o
suporte teórico de Sandra Jatahí Pesavento e Roger Chartier.
23
12
Estes conceitos também serão tratados no primeiro capítulo.
13
Termo conceitual que se refere à tendência de ter a África como centro. Este conceito
também será melhor compreendido no primeiro capítulo.
14
O modo como a Europa se coloca como centro do mundo. O local de onde parte os
pensamentos e os processos civilizatórios. Um modelo dado e estabelecido.
15
Historiador queniano nascido em 1933.
16
Historiador congolês nascido em 1944. Atualmente é professor na Sorbonne.
17
Filósofo inglês, filho de mãe inglesa e pai ganense nascido em 1954. Atualmente é professor
de filosofia na Universidade de Princeton nos USA.
18
Historiador francês nascido em 1949.
19
Nascido em 1943. É também um dos nomes mais conhecidos da história cultural francesa.
20
Historiador de origem jesuíta (1925-1986).
21
Filósofo francês da corrente fenomenológica (1913 -2002).
22
Sociólogo francês (1877-1945).
24
Capítulo I
A representação africana: avanços e desafios
23
Ainda sobre o imaginário podemos pensar:
“O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. As
referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade,
mas definem também de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações com
ela, com as divisões internas e as instituições sociais, etc. [...] O imaginário social é, pois, uma peça
efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e
do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais.” (BACZKO, 1985.
p.310).
“O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de
espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível
26
A representação assim formulada é algo fixado sobre si mesmo, mas que está
permeando as relações com o outro. Desse modo, a representação da Europa sobre
si mesma tende a se sobrepor aos valores de representação da África, ou interfere
no modo como estas representações se efetivam. Assim, os africanos tendem a
representar-se influenciados através do retrato de um contexto social construído
pelo mundo ocidental, ora agregando valores positivos, quando se refere às riquezas
naturais do continente, ora negativos, quando se refere às pessoas e culturas
africanas. Essa representação assim dada estabelece o surgimento de outras
características que tendem a reforçar estereótipos, entre eles a própria
desvalorização cultural e simbólica. É neste sentido que de forma violenta e perigosa
percebe-se a modificação temporal de velhos (pré) conceitos, que vão adaptando-se
às características contemporâneas.
evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é
desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a
representação do ser e parecer. Não será este o verdadeiro caminho da História? Desvendar um
enredo, desmontar uma intriga, revelar o oculto, buscar a intenção?” (PESAVENTO, 1995, p. 24).
“[...] uma realidade tão presente quanto aquilo a que poderíamos chamar de vida concreta,
uma dimensão tão significativa das sociedades humanas como aquilo que corriqueiramente é
encarado como realidade efetiva [...] sistema ou universo complexo e interativo que abrange a
produção e circulação de imagens visuais, mentais, verbais, incorporando sistemas simbólicos
diversificados e atuando na construção de representações diversas.” (BARROS, 2004, p. 92-94).
27
(1988) dedicou boa parte de suas pesquisas para entender este fenômeno e o
quanto ele ainda afeta a vida africana.
Nesta relação dialética na qual os valores da cultura europeia são
intencionalmente sobrepostos aos traços culturais dos povos africanos, existe pouco
espaço para transformação do modo como se observam os fatos. Esta situação era
imposta tanto no período colonial quanto no pós-colonial. Portanto, estava presente
no universo vivido por Amadou Hampaté Bâ.
24
De acordo com Paula Carvalho (1994) o etnocentrismo consiste em dar privilégio a um
universo de representações, propondo que o mesmo seja um modelo a ser seguido. Com isto,
reduzem-se à insignificância os outros universos e culturas.
32
Essa análise de Appiah faz com que tenhamos o cuidado necessário para nos
aproximarmos do outro, já que estando imbuídos de valores culturais próprios
tendemos a estabelecer um juízo de valor à outra cultura baseando-nos na nossa
própria cultura e referência civilizatória, o que faz com que uma representação
acabe por sobrepor-se à outra, influenciando a sua constituição. A responsabilidade
científica, em especial nas ciências humanas, exige que se tenha essa atenção
despertada. Portanto, essa aproximação requer critérios e métodos próprios, que ao
serem estabelecidos permitem a condição de um diagnóstico coerente e sensato a
partir do nosso lugar. Nesse cenário é sempre fundamental compreender a
representação no seu contexto, na sua perspectiva dada, como afirma Chartier
(1999).
No entanto, parece que para o objetivo que se pretende alcançar, que é o de
responder qual o papel da oralidade na educação africana, a partir da obra
supracitada, o que se faz necessário é compreender o contexto dessa cultura, e isto
já foi dado por intelectuais africanos em obras que ainda carecem de mais estudos.
A proposta de avançar em uma investigação sobre a África, a partir de um
fenômeno específico, neste caso a oralidade, requer que se entenda a sua
construção, o que de fato levou aquela determinada estruturação simbólica e
representativa. Sendo assim, para entender o que Hampaté Bâ (2003) diz sobre a
tradição e a sua veemência em validar a relevância dessa prática é essencial tentar
compreender o que ele vislumbrou ao deparar-se com as condições tanto coloniais
como pós-coloniais, e quais aspectos educacionais que sentiu ser necessários para
a constituição dessa identidade africana tão almejada pelos líderes africanos no
período pós-colonial.
Houtundji na obra Sur la philosophi africaine (1976) para explicitar a forma como
muitas vezes se vê a África, como um continente único, sem distinções, sem
diversidade cultural, sem características continentais.
O conceito de afropessimismo também é refletido por Paulin Houtundji (1976)
na mesma obra supracitada, e trata-se de antecipadamente atribuir-se uma negação
ao continente africano; consiste na afirmação da incapacidade africana na
superação dos seus problemas históricos e dificuldades emergenciais.
O unanismo é construído social e ideologicamente e impede uma
aproximação com o continente africano dificultando o entendimento das culturas e
dos povos, impossibilitando desta forma qualquer avanço na comunicação. De
acordo com Hountundji, o unanismo deve ser desconstruído de maneira emergencial
para que se avance nas possibilidades de um diálogo. A representação africana é
fragilizada quando permeada por estes dados, já que eles tendem a despersonalizar
as características próprias de cada país africano, de cada cultura africana.
Appiah afirma que toda e qualquer forma de construção ou reconstrução da
identidade africana deve procurar superar a ideia reducionista do unanismo e da
desvalorização contida no afropessimismo.
Esses conceitos devem ser analisados quando introjetados pelos próprios
africanos. Tal reflexão é alertada por Appiah, que chama a atenção sobre os
discursos de unidade africana que muitas vezes podem estar sendo cooptados pela
perspectiva do unanismo, o que retira de cada um desses povos a reflexão histórica
própria e as particularidades de sua cultura. Para Appiah, o discurso de unidade
africana deve ser pautado nas perspectivas socioeconômicas que colocam hoje
grande parte dos países africanos após a experiência colonial em condição bastante
assemelhada entre si, no sentido de ocupação de espaço efetivo no cenário político
e econômico mundial.
O unanimo é perigoso, pois pode manifestar-se de modo estratégico nas mais
variadas instâncias, desde as mais evidentes, tais como a percepção cultural
africana em sua forma estética, que tende a organizar ritos e símbolos africanos de
grupos étnicos distintos em um lugar comum, até as mais sutis, ligadas ao
pensamento africano que muitas vezes são quase imperceptíveis ao primeiro olhar.
Essa maneira de observar o continente africano tem em alguns dos modelos
educacionais ocidentais uma excelente forma de propagação. O mesmo acontece
com modelos de educação que apenas retratam a África como um continente
34
atrasado e selvagem, que, quer seja por ignorância ou intencionalidade, faz com que
a imagem africana permaneça em uma esfera única.
Da mesma maneira acontece quando se olha para os seus povos, sendo
todos igualados e nivelados em um ambiente comum, sem distinções de nenhum
tipo, e quando essas distinções parecem surgir, são então colocadas em outra
perspectiva comum, a diferença igualada no atraso civilizacional que representam.
Vejamos o que nos diz o historiador brasileiro, especialista em África, Anderson
Ribeiro Oliva,
25
Este termo refere-se ao processo de negação das próprias características, da própria
imagem. No caso dos africanos e seus descendentes, refere-se à negação ou vergonha da própria
cultura e da cor da pele. Para saber mais sobre este fenômeno é relevante a leitura da obra Pele
negra, máscaras brancas (2008) do psiquiatra Frantz Fanon (1925-1961).
37
dos colonizadores, ou no Brasil, por todo o período, ainda bastante recente, em que
os materiais escolares que se referiam à África apenas como um paraíso selvagem,
a terra dos grandes animais e dos homens nus -, a estratégia de não permitir ou
possibilitar ao negro o acesso a sua cultura e história, foi eficientemente
desenvolvida, momento em que se efetiva um olhar e se fortalece uma
representação a ser seguida.
De acordo, com o que diz Eliane dos Santos Cavalleiro,
27
Psicoterapeuta de origem holandesa.
40
28
Algumas reflexões sobre essa temática podem ser conferidas no livro Psique e Negritude: Os
efeitos psicossociais do racismo (2008), que reúne entrevistas e depoimentos das experiências de
trabalho do Instituto AMMA organizados pela sua diretora Maria Lúcia da Silva.
29
Esse conceito é trabalhado de modo parecido com o olhar africano na antropologia filosófica
de Max Scheler (1874-1928).
41
A descrição que foi feita da África, assim como a ideia a ela atribuída, tem
como marca fundamental a noção de raças humanas30, e nesse contexto a
classificação racial entre superiores e inferiores. De acordo com M´Bokolo (2009), o
olhar para África foi, e muitas vezes ainda continua sendo, um olhar de racialização,
no qual estão embutidos valores construídos ao longo dos séculos e que procuraram
de maneira pseudocientífica justificar e autorizar a invasão e dominação dos países
africanos. Essa estratégia, de acordo com Certeau, é a marca de quem está no
poder, e com isso profere um discurso de legitimação. Esta análise coincide com o
que Chartier (1999) procura despertar a atenção para que as relações de
representação sejam devidamente analisadas em seus contextos. Nesse caso, a
representação feita pela Europa para si mesma foi a da superioridade intelectual e
espiritual, já a África e outros povos do mundo fariam parte da barbárie e da
selvageria. A percepção social que cada povo tem de si e que se coloca num lugar
central de onde profere seu discurso se enuncia nos dizeres de Chartier,
30
Sobre a questão racial, especialmente no Brasil, indicamos o livro O espetáculo das raças:
cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930) da historiadora e antropóloga Dra.Lilia
Moritz Schwarcz.
42
Esse olhar foi muito bem constituído ao longo da história por renomados
intelectuais europeus, que em sua necessidade de atender a interesses de uma
época souberam eficazmente construir ideologias que pudessem dar conta de
minimizar ou destituir essa região do globo e seus povos de uma condição humana
legítima. Aqui é interessante analisar o tom incisivo do militante negro Stokely
Carmichael31,
Portanto, a situação que temos é que a história foi escrita, mas na realidade
ela foi assim distorcida. Acho que uma das maiores mentiras que a
sociedade ocidental podia ter dito era de dar a si própria o nome de
civilização ocidental. Agora por toda a história vimos estudando a civilização
ocidental, e isso significava que tudo o mais era incivilizado. E as crianças
brancas que hoje leem isto, jamais reconhecem que lhes estão dizendo que
elas são superiores a todos os outros porque produziram a civilização (...)
sim a civilização ocidental tem sido tudo, menos civilizada. Na verdade, tem
sido extremamente bárbara. Somos informados de que a civilização
ocidental começa com os gregos, e o epítome disso é Alexandre Magno. Só
que posso lembrar a respeito de Alexandre Magno é que aos 26 anos de
idade, ele chorou porque não tinha mais gente para matar, assassinar e
saquear. E isso é a epítome da Civilização Ocidental. (1968, p.50).
32
(1929-1968) – Um dos mais importantes líderes mundiais no enfrentamento do racismo e na
busca pelos direitos humanos.
33
(1897-1975) Líder religioso de um seguimento dissidente do Islã, chamado Nação do Islã, que
pregava uma ideia de separação racial.
34
Al Hajj Malik Al-Shabazz é conhecido como Malcolm X (1925-1965), um dos mais
representativos líderes da comunidade negra norte-americana. Abandonou métodos radicais para
seguir uma perspectiva de diálogo entre os homens. Sua visão de mundo foi alterada quando fez a
sua peregrinação a Meca, cumprindo o ritual do hajj, e lá viu pessoas de diferentes culturas e origens
étnicas convivendo em igualdade e respeito.
44
Segundo Edwin Black em sua obra “Guerra contra os fracos” (2003)35, quando
Francis Galton, primo irmão de Charles Darwin, emprestou muitos dos elementos da
teoria da evolução das espécies para criar a sua própria teoria de evolução do
homem, soube também com muita propriedade caricaturar com nome de ciência
uma ideologia que pretendeu legitimar a superioridade dos povos não negros sobre
os demais. Essa teoria foi bem desenvolvida atingindo outros povos, sendo
financiada por empresas conhecidas no cenário mundial, entre elas a IBM 36 e a
Ford, ajudando nos investimentos dessa pesquisa inventada sobre dados imprecisos
e irreais, que declarava explicitamente a valorização de um ser humano sobre outro,
pautada em valores terminantemente raciais, dividindo a espécie humana em raças,
cujas funções sociais eram estabelecidas pela maior ou menor possibilidade do uso
da razão. Tal empreita não atinge mais somente os povos africanos e negros de
modo geral, mas também ciganos, entre outros, que, quer seja por uma atribuição
racial, opção sexual ou religiosa, estavam marcados pela condenação diante de uma
sociedade estruturada em valores ideológicos homogêneos e fechados.
35
Nesta obra Edwin Black trata do pensamento eugenista e dos seus desdobramentos na
sociedade contemporânea.
36
Ver também de Edwin Black a obra A IBM e o holocausto (2001).
46
plenitude do nazismo sob a égide endeusada de Adolf Hitler37, que fez revelar ao
mundo, à custa de uma estética distorcida, aquilo que pretendia ser uma raça
perfeita, a raça ariana. Esse momento da história traduziu muito bem a ambiguidade
da condição humana, a da sapiência e a da demência. Se somos capazes de amar e
criar, somos capazes de odiar e destruir; estava, pois, dada a fragilidade de muitas
de nossas reflexões.
Porém, a experiência eugênica teve na África o seu início mais aterrorizador.
Autores como Catherine Coquery Vidrovitch38 desenvolvem pesquisas que revelam
que foi no massacre do povo herero da Namíbia que as experiências com campos
de concentração tiveram início. Nesse país foram desenvolvidas pesquisas em seres
humanos, levando muitos deles à morte. A Namíbia sofreu com esta ação em 1840,
ou seja, 100 anos antes do episódio nazista. No entanto, o massacre do povo herero
ainda é pouco conhecido e divulgado.
Essa representação forjada ao longo de séculos na Europa foi imposta ao
mundo pela força militar, pela mídia, pela educação e cultura. O que temos então é
um cenário constituído por uma representação que, mesmo já estando desgastada
em muitos aspectos, não deixa de se sobrepor as outras.
Tem-se ainda a busca pelas constituições de representações dos outros
grupos, mas ainda fortemente influenciados pelas características deixadas e
herdadas da perspectiva europeia. Hampaté Bâ (2004) reflete essa situação como
um confronto cultural em que os grupos subordinados procuram com um esforço
muito grande lembrar-se do que são, da cultura que possuem, mas também é
enorme o esforço daquele que a todo preço insiste em ocupar a posição de
centralidade e referência.
O teólogo e filósofo Leonardo Boff, na sua obra A voz do Arco Irís (1998), fala
da necessidade do outro, em que as diferenças entre as pessoas não deveriam, e
não devem ser utilizadas como muros que as separam, mas sim, como pontes para
novos encontros.
37
Sobre o pensamento de Hitler é indicada a leitura de seu texto autoral Mein Kampf: Minha
luta, no qual descreve as suas motivações e esclarece a maneira eugênica pela qual acreditava que a
sociedade alemã devesse ser estabelecida.
38
Historiadora francesa especialista em estudos sobre a África. Autora de vários livros sobre a
temática da colonização e o seu impacto nas civilizações africanas. Entre estas obras estão Afrique
Noire: permanences et ruptures ( 1985 ) e L´Afrique occidentale au temps des Français, colonisateurs
et colonisés: 1860 – 1960 ( 1992 ).
47
39
(1944-). A autora é uma especialista em religiões afro-brasileiras, possuindo trabalhos de
relevância nesta área. No entanto, questiona de modo incisivo as políticas de ação afirmativa, em
especial as cotas. Para saber mais http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/03/em-
entrevista-professora-yvonne-maggie-afirma-racas-nao-existem.html acesso em 20/08/13.
40
O autor nasceu em 1958. Ver a obra Uma gota de sangue: história do pensamento racial no
Brasil (2009).
49
41
As políticas de ação afirmativa representam o resultado de anos de lutas do movimento
negro em busca da condição de uma cidadania plena. Essas políticas visam atender as principais
necessidades desse seguimento da população, oriundas tanto do processo escravista quanto de uma
república que não garantiu direitos legítimos à educação, ao trabalho, à moradia e à saúde. Em um
processo bastante tardio no Brasil essas políticas passaram a fazer parte da realidade das
discussões públicas voltadas à população negra. As cotas universitárias são apenas um exemplo de
políticas de ação afirmativa. Vale dizer que o termo cota tem causado estranhamento em boa parte
da população brasileira, porém se o entendermos como reserva, notamos que a sua prática é
histórica no Brasil. Veja por exemplo a reserva para trabalho, moradia e educação destinadas aos
imigrantes que vieram para o país. Ver Decreto nº 4.228, de 13 de maio de 2002 que institui, no
âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4228.htm Acesso em
20/08/13.
42
Ver Lei n. 3353 de 13 de maio de 1888.
50
O vento que as levou soprou a partir das Américas, tendo como origem
provável os Estados Unidos, passando pelo Haiti, seguindo seu caminho até
a Europa, manifestando-se na Inglaterra para se cristalizar, enfim, na
França, em Paris, no Quartier Latin. A partir daí alastra-se, cobrindo toda a
África negra e os negros da diáspora, isto é, as Américas. (MUNANGA,
2009, p.45).
43
Região de Paris que abriga escolas e fica próxima a Universidade Sorbonne.
53
aspectos culturais que compõem os povos africanos e que a ideia racial não dá mais
conta de dizer o que são estes povos e suas civilizações.
O ideal desses intelectuais talvez seja pensar um dia a identidade não mais a
partir da questão racial, já que esse pressuposto carrega marcas bastante
complexas para serem trabalhadas, oriundas de uma falsa perspectiva científica.
Porém, negar a existência do racismo e do mote racial nos processos de dominação
como querem alguns intelectuais é, segundo Munanga (2009), tentar apagar os
traços de responsabilidade social que têm sua origem nesse contexto e se refletem
até os dias de hoje.
Até 1880, em cerca de 80% do seu território, a África era governada por
seus próprios reis, rainhas, chefes de clãs e de linhagens, em impérios,
reinos, comunidades, e unidades políticas de porte e natureza variados. No
entanto, nos 30 anos seguintes, assiste-se a uma transmutação
extraordinária, para não dizer radical, dessa situação. Em 1914, com a
única exceção da Etiópia e da Libéria, a África inteira vê-se submetida à
dominação de potências europeias e dividida em colônias de dimensões
diversas, mas de modo geral, muito mais extensas do que as formações
políticas preexistentes e, muitas vezes, com pouca ou nenhuma relação
com elas. Nessa época, aliás, a África não é assaltada apenas na sua
soberania e na sua independência, mas também em seus valores culturais.
(2010, p.3).
pode-se notar que a relação que a Europa constituiu com a África em seu período
colonial baseia-se especialmente no primeiro tipo, a de caráter racional, já que foi
planejada e calculada e concentra-se em um tipo de representação que justifica e
legitima tais atos. De acordo com Vieira45 (2006, p.47) “a sociologia da dominação
de Weber tem como centralidade a preocupação latente pelo entendimento do
exercício do poder e do conceito de dominação social”. É exatamente esta questão
que se coloca em questão para entendermos os reflexos do colonialismo no
continente africano.
A África sob o jugo europeu estava à mercê não de suas necessidades, mas
das necessidades que o colonizador lhe impunha. Este fardo sufocava em grande
parte a possibilidade de uma identidade africana consolidar-se de modo efetivo. A
própria imagem da África para os africanos estava diluída na perspectiva do
negativismo, da ausência do espaço político e da desvalorização cultural imposta
pelos europeus. De acordo com Hampaté Bâ (2003) era comum que aqueles
africanos ainda próximos às suas heranças culturais denominassem os africanos
que passavam a seguir os padrões da cultura externa ou de certa forma afastavam-
se de suas culturas originais de “negros – brancos“.
Para Hampaté Bâ (2004) essa rejeição da própria cultura tem levado ao poder
líderes descompromissados com a realidade africana, que, por não acreditarem na
capacidade dos seus próprios países e seus povos superarem crises, acabam por
desenvolver governos que atendam interesses pessoais, constituindo verdadeiras
fortunas que são soberbamente alimentadas por capitais estrangeiros que procuram
estabelecer seus interesses nas economias internas desses países. Aliás, esse
quadro tem permitido que os modelos coloniais, agora sob uma nova bandeira
neocolonial, continuem mantendo seus monopólios na África. Dessa maneira,
possibilitaram o surgimento de governos ditatoriais.
Esses governos podem ser refletidos a partir de outro conceito associado a
Weber, o patrimonialismo, que diz respeito à perda da noção do público com o
privado, ou seja, a posse de um determinado espaço político de representação
pública é vista apenas como extensão de interesses particulares, e em decorrência
disso as ações desses governantes passam a se perder do comprometimento com o
45
O Prof. Dr. César Romero Amaral Vieira é o coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Metodista de Piracicaba e tem pesquisas relacionadas a instituições e
suas representações sociais.
57
povo que representam, mas antes passam a seguir uma perspectiva pessoal, de
interesses particulares. No entanto, esse conceito estaria mais ligado à perspectiva
das relações tradicionais e poderia ser melhor refletido nos governos antigos e
medievais, nos quais na realidade essa noção pública e privada nem sempre era
definida. Essa noção de distinção está mais presente nos governos atuais. No caso
dos governos africanos contemporâneos Bruhns (2012) faz-se perceber que o uso
do termo neopatrimonialismo seria mais apropriado para analisar esses governos, já
que esse conceito tem condições melhores de observar os diferentes e múltiplos
fenômenos sociais que ocorrem em um estado contemporâneo.
E desse modo Hampaté Bâ afirma,
invadidas pelo colonizador, mas estes colonizadores não perceberam que com esta
ação, juntamente com o processo de escravização, fizeram por conduzir estas
aldeias para o mundo, e este seria transformado de um modo significativo. Esses
encontros culturais nunca são inertes. Esta análise tem correspondência com a
composição de Gilberto Gil chamada Chuck Berry Fields Forever = Eternos campos
de Chuck Berry46.
Esta composição de Gilberto Gil faz menção com o título da letra dos Beatles,
chamada Strawberry Fields Forever ou os Eternos campos de morango. A letra de
Gil fala da música africana chegando a Europa e sendo transformada nas Américas
e Caribe.
Vejamos a letra desta música,
Trazidos d´África pra Américas de norte e sul
Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou
E neve, garça branca valsa do Danúbio Azul.
Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou.
Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol.
Rachado em mil raios de Xangô
E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rhythm´n blues
Tornaram-se os ancestrais, os pais do Rock and Roll
Rock é o nosso tempo, baby
Rock and roll é isso
Chuck Berry Fields Forever
Os quatro cavaleiros do após calypso
O após calypso
Rock and Roll
Capítulo um
Versículo vinte
Sículo vinte
Século vinte e um
Versículo vinte
Sículo vinte
Século vinte e um
(RENNÓ, 1996)
46
O cantor e instrumentista negro estadunidense Charles Edward Anderson Berry (1926- ),
conhecido como Chuck Berry, é considerado o pai do rock in roll.
47
Ver as obras: Negros, estrangeiros: Os escravos libertos e sua volta à África (2012) de
Manuela Carneiro da Cunha e Agudás, os brasileiros do Benin (2000) de Milton Guran.
59
48
Sobre esta discussão e o que tem sido feito mais recentemente para promover o avanço dos
países africanos é relevante visitar o site da UA – União Africana no seguinte endereço www.au.int
60
Mas a dificuldade é que a África não pode viver a sua vida sem levar em
consideração as contingências internacionais. Aliás, nenhum país pode mais,
no mundo de hoje. Somos todos interdependentes. A revisão do início, bem
como a revisão do processo em curso, precisa ser universal, e não reservada
apenas à África. É um problema mundial. (2004, p.11-12).
O Estado atual, instância média, seria uma federação dos poderes que
operam na base e que correspondem às realidades concretas. Assim, não
seria preciso destruir as fronteiras atuais, mas superá-las. Como levar em
conta, por exemplo, os fatos senufo, haussá e sonrai num reordenamento
da África Ocidental? É difícil gerir certas realidades em que há tensões
atualmente. Ora, será necessário tornar as fronteiras atuais o mais leves
possível, fazendo delas linhas pontilhadas em vez de muros de concreto, e
transformá-las, de estruturas belígeras, em fontes de prosperidade e
locomotivas de novas configurações. (KI ZERBO, 2009, p.82-83).
49
Grupo étnico.
62
A partir da análise que Hampaté Bâ (2010) faz da cultura, pode-se pensar que
os valores culturais africanos estão permeando as suas civilizações, em especial as
chamadas populações tradicionais. Esses mesmos valores podem e devem,
segundo o autor, ser colocados à disposição do homem contemporâneo, pois muitos
deles encerram valores universais, cabíveis à constituição do ser humano.
De acordo com o que pudemos apreender com Hampaté Bâ (2003) o ser
humano é em sua vida, e esta vida é qualificada pela sua capacidade de elaborar
encontros e dar sentido a sua jornada. Essa noção permite que se reconheça que o
ser humano não nasce pronto, mas que ele se faz ao longo de sua vida, daí a
relevância e a necessidade da educação. Essa perspectiva de análise é válida tanto
ao olhar para os sujeitos individuais, quanto para as culturas e civilizações
existentes. As experiências civilizatórias e suas respectivas culturas vão sendo
maturadas através de processos de interação, de capacidade de reciprocidade e
autoavaliação dos seus processos históricos.
No caso da África, não se pode destituí-la dos seus problemas, e
consequentemente da responsabilidade que se deve ter sobre eles. De acordo com
Appiah (1997) o não reconhecimento e enfrentamento desses problemas pode
ocasionar uma limitação no entendimento de algumas discussões já universalizadas,
que transcendem aspectos específicos de uma determinada cultura.
Um exemplo desta questão registra-se em alguns grupos étnicos em que a
prática da infibulação50 e extirpação do clitóris nas meninas ainda em sua primeira
infância é justificada em nome de uma cultura com caráter religioso e social. Esta
prática tem levado muitas meninas à morte precoce, até mesmo pela precariedade
com que é realizado o ato, na grande maioria das vezes sem nenhum recurso
médico ou sanitário mais adequado. Além disso, mesmo as meninas que
sobrevivem a tal manipulação, ao crescerem não podem vivenciar o sexo livre de
dores, na qual a ausência do prazer é bastante comum. A prática da infibulação
ainda se faz presente em algumas culturas também na África ocidental. Embora
esse tema não apareça no relato de Hampaté Bâ (2003), neste está contido um
cenário a ser investigado sobre a condição da mulher na sociedade do oeste
africano tradicional e na contemporaneidade.
50
A infibulação feminina consiste na costura dos lábios vaginais e do clitóris. A extirpação do
clitóris é a remoção desse órgão. Ver o caso da modelo somali Waris Dirie (1965- ), descrito na obra
Flor do deserto(2001). E também http://jus.com.br/artigos/21078/flor-do-deserto-mutilacao-genital-
feminina-e-direitos-humanos#ixzz2cNAf4AKT
64
51
O Prof. Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos da Casa das Áfricas tem desenvolvido estudos
nesta área, em especial na Costa do Marfim.
52
Ver AMIN, Samir. Eurocentrismo: crítica de uma ideologia. Lisboa: Dinossauro, 1994.
65
É por isso que é preciso favorecer as redes de grupos que criem um projeto
para “o homem novo“ no séc. XXI. Um homem aberto a alteridade e que,
sobre uma base econômica e social mínima esteja aberto às relações, às
ligações humanas, a uma ética universal e aos valores. Quando falo de
valores, penso nos valores morais, psicológicos, ideológicos e religiosos,
mas não só. Proponho, pois, um projeto que seja como um foguete com três
estágios: os bens econômicos, as ligações sociais (que compreendem as
relações humanas, os serviços e a organização humana) e os valores. Esse
projeto humano não visa simplesmente maximizar o consumo material. Será
construído com base nos valores da solidariedade, convivência, alteridade,
compaixão, autocontrole, piedade e equilíbrio... (2009, p.156-157).
53
Ver FARIAS, P. F. de Moraes. Afrocentrismo: entre uma contranarrativa histórica universalista
e o relativismo cultural. Afro-Ásia, 29;30. Salvador, 2003, p. 317-343.
66
Capítulo II
A questão da memória
um dado temporal. Nesse sentido, podemos pensar também uma relação com a
linguística, pois será que tudo o que é lembrado pode ser falado? Já que a memória
se realiza não no passado, mas no presente de uma situação, de uma relação, de
uma ação.
Assim, se discute se dados que foram rememorados são de fato descritos tal
como aconteceram, caso haja algum impedimento social ou mesmo moral que
impossibilite essa descrição tal como tenha acontecido. Além do mais, pensa-se
ainda que mesmo que se diga de fato aquilo que se viu, ao relatá-lo em um presente
as impressões do sujeito que se lembra, o lugar de onde se lembra e como se
lembra já não alterariam essa descrição?
Nota-se que o desafio da memória não é tão simples de ser resolvido, e,
portanto, o pesquisador, ao aprofundar o seu caminho de investigação através da
memória, deve assegurar-se de alguns cuidados e limites. Paul Ricouer, na sua obra
A memória, a história e o esquecimento (2007), dirá
ocidente, mas apresentam justificativas que dão sentido e coesão para os povos que
a praticam, assim como tornam legítimas as suas ponderações, a partir do mundo
que representam.
De acordo com Prins (1992, p.170), “um dos efeitos de se viver em uma
cultura dominada pela palavra escrita é, devido ao rebaixamento da palavra falada,
cauterizá-la.” Por isso, esse será um desafio a ser superado para aproximar-se da
cultura oral do oeste africano, sem desqualificá-lo antecipadamente, baseando-se
em conceitos estabelecidos fora do contexto cultural africano. Ainda nos diz Prins
(p.170): “os historiadores tradicionais, orientados por documentos, buscam três
qualidades em suas fontes, nenhuma das quais os dados orais manifestamente
possuem”. São elas: a precisão da forma; a precisão cronológica e registro marcado
(escrito) capaz de proporcionar comparação e comprovação. O próprio Hampaté Bâ
(2003) admite que nem sempre os relatos têm uma forma fixa, tampouco
apresentam uma precisão cronológica pormenorizada; antes se referem a períodos,
a fatos e acontecimentos, normalmente rememorados pela comunidade ou que
muitas vezes são preservados por alguns memorialistas, sendo assim um aspecto
subjetivo da memória. Por isso, segundo Prins (p.171) “para os historiadores que
não gostam da história oral, esses compõem campos suficientes para sua rejeição”.
No entanto, os defensores da história oral, alguns ligados à história cultural,
procuram justificar a sua metodologia e interesse pela oralidade e mais
especificamente a tradição oral, esta sim uma característica fundamental da cultura
do oeste africano, que veremos em nossa investigação de modo mais detalhado. A
oralidade, como já dissemos, tem na memória um alicerce, um fundamento para sua
existência.
Somos então levados a refletir sobre outro aspecto da memória, que é a
questão da memória individual ou coletiva, pois já que existe um questionamento da
lembrança de determinado indivíduo, será que esse questionamento permanece se
ela estiver expressa em um dado coletivo? Ou ao menos, será que ela se apresenta
do mesmo modo? Não seria o compartilhamento das lembranças, um elemento que
assegure a sua validade?
Deste modo, Paul Ricouer (2007, p.105) apresenta-nos uma questão
importante a ser resolvida: “a memória é primordialmente pessoal ou coletiva?”
Essa discussão apenas passou a tomar corpo entre os intelectuais a partir do
séc. XX, principalmente através da sociologia, devido ao conceito de consciência
71
coletiva57. Para Ricouer (2007), não houve o devido questionamento desse conceito,
sendo este naturalizado. Esse conceito construído por Emile Durkheim diz que,
apesar das características individuais de uma pessoa em determinado grupo, existe
uma série de dados coletivos referentes ao grupo que se sobrepõem às pessoas,
aos indivíduos; essa consciência coletiva se ocupa da consciência individual, sendo
esta sempre determinada pela consciência do grupo. Segundo Ricouer, essa
reflexão de Durkheim foi transportada para a reflexão sociológica de modo
exagerado, sendo incorporada também aos estudos sobre a memória.
Para Ricouer (2007, p.106), essa situação polêmica, que coloca praticamente
a memória individual e a coletiva em rivalidade, revela que “elas não se opõem no
mesmo plano, mas em universos de discursos que se tornaram alheios um ao outro”.
O objetivo, segundo Paul Ricouer, é colocar um fim nessa discussão, a partir do
entendimento das especificidades dos discursos elaborados, sustentados de um
lado e de outro, além de propor caminhos de reencontro entre eles.
Nesses campos distintos, mas, segundo Ricouer, complementares, teremos
então os adeptos da memória individual, com uma proposta interior de abordagem
da memória, e os adeptos da memória coletiva, com uma proposta mais exterior de
abordagem da memória. Nessa perspectiva de memória coletiva nos deparamos
com o pensamento de Maurice Halbwachs, na obra Memória Coletiva (2006). Esse
sociólogo, morto em um campo de concentração em 1945, teve uma posição sólida
em defesa da memória coletiva, oriundo de um conceito anterior, também formulado
por ele, que é o de quadros sociais da memória que se baseiam em três aspectos: o
espaço, a memória/lembrança e a linguagem. Estes quadros somente são possíveis
a um grupo. São estes quadros que são facilmente perceptíveis no contexto das
tradições africanas.
Sobre essas características do espaço, da lembrança e da linguagem
podemos dizer que elas são também basilares para a condição humana, que solicita
um espaço, o outro e a palavra, ou seja, o homem somente se faz em totalidade, a
partir do momento em que tem assegurado estes quadros. No caso africano, mesmo
nos grupos nômades, a questão do espaço é significativa, pois o fato de deslocar-se
de um espaço a outro, não significa a perda da necessidade espacial: o próprio
espaço de locomoção, de deslocamento e a fixação temporária nas distintas regiões
57
Sobre o conceito de consciência coletiva é recomendado ler a obra As regras do método
sociológico de Emile Durkheim.
72
Foi então que minha mãe mandou construir uma casa bem grande para
mim e meus companheiros. Ali podíamos nos reunir, fazer as refeições e
até dormir. Nós a chamávamos de walamarou, “o dormitório da associação”.
Foi a partir deste momento que comecei mesmo a formar um círculo de
pessoas a meu redor e a desempenhar meu papel de chefe da waaldé.
(2003, p.174).
77
58
Associações de crianças e adolescentes
59
Le développement de la persone va s´accomplir au rythme des grandes périodes de la
croissance du corps, dont chacune correspond à un degré d´initiation. L´initiation a pour but donner á
la personne psychique une puissance morale et mentale qui conditionne et aide la réalisation parfaite
et totale de l´individu. (HAMPATÉ BÂ,1972,p.12).
60
La tradition considere que l avie d´um homme normal comporte deux grandes phases: l ´une
ascendant, jusqu´à soixante trois ans, l´autre descendante, jusqu´à cent vingt six ans. Chacune des
ces phases comporte trois grandes sections de vingt et um ans, composée de trois périodes se sept
ans. Chaque sectin de vingt et um ans marque um degré dans l´initiation, et chaque période de sept
ans marque um seuil dans l´évolution de la personne humaine.( HAMPATÉ BÂ,1972,p.12-13).
61
A circuncisão masculina na África do Oeste é oriunda tanto de práticas religiosas locais,
advindas das chamadas religiões nativas, como das tradições judaicas, como no caso da etnia ibô da
Nigéria, ou de influências do Islã, algo bastante presente na cultura de Amadou Hampaté Bâ. Na obra
Amkoullel, o menino fula, o autor descreve de modo mais detalhado esse universo. É válido dizer que
78
de criança para a vida adulta. Esses rituais normalmente são coletivos e marcam de
maneira especial o grupo que deles participa com experiências individuais, entre as
quais o medo, o espanto, a curiosidade, a coragem, a resistência à dor, enfim, uma
série de sensações vividas individualmente, mas que são celebradas em conjunto,
fazendo parte da vida daquelas pessoas, como uma memória comum, coletiva, na
qual todos os componentes são relevantes, as cores, os cheiros, os sabores, tudo é
componente a ser lembrado. Esse rito coletivo gera para o grupo que dele participa
um elo de proximidade e respeito que será levado pelo resto da vida. Este rito vivido
coletivamente será sempre lembrado e os elos entre essas pessoas ficarão
fortalecidos. “Uma quinzena de meninos do bairro deviam ser circuncidados ao
mesmo tempo. Como de costume, a cerimônia seria precedida por uma grande festa
que duraria a noite inteira, do pôr-do-sol ao amanhecer” (HAMPATÉ BÂ, 2003,
p.192).
A memória, nesse contexto, é quase uma fotografia para cada um dos
indivíduos que coletivamente viveram uma mesma experiência. Amadou Hampaté
Bâ dirá que “quando se lembra, não são apenas palavras que são recordadas, mas
cenas inteiras são visualizadas. Pode-se ver cenas passadas como em uma tela de
cinema. Para descrever uma cena só preciso revivê-la” (2003,p.13).
Tudo é motivo para que a lembrança aconteça, e esse tudo significa pensar
todos os envolvidos, todas as partes e os espaços em que os fatos ocorreram e a
maneira como são alçados a memória. Essa experiência possibilita que contextos
inteiros sejam retomados. A memória ligada ao espaço também é alvo do interesse
e reflexão de Halbwachs. O espaço conserva em si muitas lembranças, que se
registram em cada objeto em particular, e até mesmo “as pedras falam”.
Essa mesma memória contida no espaço é o que Hampaté Bâ (2003) chama
a atenção, pois todas as experiências vividas pelo grupo, os locais em que elas
aconteceram, são passíveis da rememoração, tão logo os espaços ainda existam,
mesmo que modificados, e as pessoas também existam. Essa é uma característica
também relevante no estudo da memória coletiva de Halbwachs. Por isso, o cuidado
pela preservação, no universo da cultura tradicional, dos espaços, das pessoas.
segundo a crença islâmica a circuncisão não é obrigatória para os homens, e muito menos para as
mulheres. No entanto, essa prática tornou-se comum em alguns povos islamizados, talvez por uma
herança do judaísmo. Já a circuncisão feminina é uma prática de algumas culturas, africanas ou não,
e que muitas vezes é atribuída erroneamente ao Islã. Na realidade esses povos adotaram o Islã
enquanto religião, mas não abandonaram algumas de suas práticas originais.
79
A história oral tem tido uma projeção cada vez mais acentuada nas últimas
décadas, isso se dá principalmente pelo encontro com grupos humanos, portadores
de outros valores civilizatórios, entre eles a maneira de se comunicar e registrar os
fatos acontecidos. A história oral tem como desafio elaborar uma metodologia de
apreensão desses diferentes falares, sem categorizá-los pelos próprios valores da
cultura letrada. Nesse sentido, cabe ao historiador procurar entender as diferentes
culturas que irá investigar. É assim que o diálogo com outras áreas do conhecimento
desenvolvidas no ocidente tem auxiliado no aperfeiçoamento metodológico para o
cumprimento mais apropriado das pesquisas.
Atualmente, tem-se em boa medida o consenso de que a história de
determinados grupos não pode ser construída esquecendo-se ou evitando este traço
importante do ser humano. Outrora, tal característica civilizatória era tida como
marca de inferioridade, de menor capacidade intelectual, o que serviu para legitimar
ações contra esses povos. No entanto, ao aproximar-se a história enquanto ciência
81
62
Para Munanga, a consciência histórica, refere-se à apreensão por parte das pessoas da
história comum, da história do grupo. Dessa maneira, define-se para o indivíduo a condição de
pertença ao grupo e o comprometimento em cuidar desta memória comum.
86
colonizador e que não faz referência a sua própria história e o local que habitam.
Eram, desse modo, levadas a aceitar a representação do dominador.
Segundo Munanga, ao analisar essa questão educacional na África e também
a comparando ao processo escravista no Brasil, é possível perceber que “... o
afastamento e a destruição da consciência histórica eram uma das estratégias
utilizadas pela escravidão e pela colonização para destruir a memória coletiva dos
escravizados e colonizados.” (2009, p.12).
Para Munanga, essa consciência histórica é mais sólida nas comunidades de
tradição oral, pois se preserva em muitas das narrativas dos memorialistas, que, ao
transmitirem os mitos fundantes da comunidade, dão continuidade a um processo
ancestral, portanto histórico.
A África tem sido despertada para sua história, uma história contada por ela
mesma, tendo na tradição oral os principais elementos que caracterizam um modo
de ser africano que propicia uma representação mais próxima de sua identidade
cultural. É assim que as representações do continente para si mesmo e para o outro
têm sido alteradas. O reconhecimento dos valores culturais africanos pelos próprios
africanos tornou-se o diferencial para muitos países do continente em seu processo
de independência e da sua autonomia pós-colonial. Alguns presidentes dos novos
países africanos procuraram impulsionar esses novos estados a partir dessa cultura
original do continente. Esse foi o caso, por exemplo, do presidente Sékou Touré da
Guiné, que em seu governo fez questão de apresentar a imagem do país, interna e
externamente, a partir de suas culturas tradicionais, todas elas amparadas na
oralidade.
É sob o comando desse presidente que começaram a eclodir na Guiné os
chamados Ballets africanos63, que levavam para os palcos nacionais e internacionais
as epopeias históricas narradas nas aldeias de toda a Guiné. É com essa
experiência que o mundo começou a ter contato com um universo de informações
63
Os ballets africanos, a partir do exemplo da Guiné, passaram ao longo dos anos a ser um
canal relevante de visibilidade das culturas dos países africanos no mundo. Através dos ballets a
tradição oral, a história, a música, a dança e o canto oriundos da África, e normalmente conhecidos
apenas em suas comunidades, puderam ser apreciados e compartilhados. Um exemplo desse
fenômeno foi a experiência do percussionista guineano Mamady Keita (1953 - ), que através do
ballet da Guiné conheceu a Europa, e hoje mantém uma rede de escolas de percussão tradicional
malinke (grupo étnico), espalhada por vários países e continentes. Ver http://www.mamadykeita.info/
e http://www.ttmusa.org/
87
64
(1190 - 1255) - A história do Rei Leão, como também era conhecido, é um dos grandes
marcos das narrativas que contam a saga de algumas etnias e civilizações da costa ocidental
africana.
88
A educação que está ligada ao universo da tradição oral busca uma educação
para a vida, para a totalidade das relações e interações humanas, assim como para
o autocontrole. A fala, ao ser portadora do poder da criação, deve ser observada,
medida, pois é a expressão do interior da pessoa. Diz-nos Hampaté Bâ: “falar pouco
é sinal de boa educação e de nobreza. Muito cedo, o jovem aprende a dominar a
manifestação de suas emoções ou de seu sofrimento, aprende a conter as forças
que nele existem...” (2010, p.178).
No entanto, aqui é importante compreender que no universo da cultura
africana de tradição oral, especialmente no Mali, existem diferentes funções sociais
e pessoas que se utilizam da palavra. Os que seguem um rígido processo de
iniciação e que são comprometidos com a verdade são os chamados doma, ou seja,
tradicionalistas ou memorialistas. Nestes, a memória é um documento válido e
verdadeiro. Já para os dieli ou griot, a disciplina da verdade não existe. De acordo
com Hampaté Bâ (2010), a tradição lhes concede o direito de travestir ou embelezar
os fatos, mesmo que de modo grosseiro, pois o objetivo é apenas divertir os
ouvintes.
No entanto, nos diz Hampaté Bâ,
que os mitos de origem das narrativas religiosas começam a fazer parte de uma
narrativa também histórica, sendo aceitos sem maiores dificuldades.
Essa reflexão nos ajuda a perceber um dado comum das civilizações e
culturas, em que o elemento místico-mítico se faz presente, constituindo-se em parte
da história dos povos. Essas características não são absurdas e tampouco
estranhas até o momento em que a razão passa a ser determinante da explicação
da origem dos povos. Essa crise de entendimento e percepção do ser humano que
fez aflorar determinadas características em detrimento de outras, fez com que na
Europa, primeiramente, se fizessem por gradativamente minimizar alguns aspectos
da percepção do homem no mundo, que estivessem ligados a outras dimensões
humanas, entre elas a espiritualidade, em favor de uma preferência pela razão.
No caso africano, esse olhar fragmentado do homem não é comum, e
percebe-se isto em todos os aspectos da vida. Por isso, Hampaté Bâ (2003) fala que
antigamente era comum uma pessoa ir procurar outra, motivada por um sonho. No
mínimo tal comportamento visto ao olhar racionalista pode ser percebido como
ingênuo. No entanto, tal a força das representações do ocidente, mesmo na África
de hoje, segundo Hampaté Bâ, este comportamento vem diminuindo, revelando que
tal aspecto já não é tão comum, o que pode significar que também essas culturas
africanas podem estar recebendo as influências, cada vez maiores, da lógica
ocidental que se impõe sobre o mundo, revelando a característica hegemônica que o
mundo ocidental ainda mantém com forte poder de sedução e persuasão.
Outro aspecto do qual seria relevante darmos conta antes de avançarmos é o
fato de um memorialista estar escrevendo. Como um homem da tradição oral,
transfere os saberes para uma forma escrita? Esse fenômeno é relevante e curioso,
pois Hampaté Bâ (2003) descreve parcialmente essa dificuldade de conciliar e
dialogar essas formas de transmissão do saber. Nesse sentido, vale lembrar a
referência que Hampaté Bâ (1972) faz ao seu grande mestre da tradição e membro
da confraria islâmica tidjaniya65 Tierno Bokar Saalif Tall, que dizia que “o saber é
uma coisa e que a escrita é outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber
em si.”.
Esse desafio tem sido estudado tanto por africanistas quanto por
pesquisadores das culturas orais, que dizem que quando esse memorialista escreve,
65
Ver os endereços sobre a Tidjaniya: na Argélia - http://www.tidjaniya.com/; na Costa do
Marfim - http://tidjaniyaci.org/; e no Senegal - http://www.tidjaniyya.org/
94
Porém, tem sido através desta oralidade escrita que temos podido contatar a
África de modo diferenciado. De acordo com Nunes, é uma escrita que tem cheiro,
sabor e muitas cores. Esse é o caso da obra Amkoullel, o menino fula. Devido a
estes textos, o caminho de aproximação para essa África subjetiva, torna-se mais
adequado e menos incerto. Esse já seria também um método ou forma que auxilia
no encontro com a África. No caso do Brasil, temos ainda outra possibilidade para
essa aproximação, a presença da oralidade nas culturas negras aqui desenvolvidas.
Em síntese, são culturas que possuem a sua base de formação e continuidade na
transmissão geracional por via da oralidade. Essa característica presente no
universo cultural brasileiro é uma herança africana que revela o próprio processo
educacional negro-brasileiro, mesmo fora do continente africano, e acaba servindo
como uma ponte de aproximação com o universo africano.
Pelo que pudemos apreender de Hampaté Bâ (2003) é enorme o papel de
relevância que a oralidade tem no processo educativo da África; é a partir dela que
se fundamenta o modo de ser e pensar do africano, e dessa maneira determina
como o mesmo se relaciona com o mundo.
95
Capítulo III
Saberes e Práticas Culturais
De acordo com Hampaté Bâ (2010) a tradição oral responde por todo tipo de
conhecimento e pela visão integrada do homem e do meio em que vive. Nesse
contexto, a educação é constante no dia-a-dia em atividades as mais corriqueiras.
Nesse universo do cotidiano, uma gama bastante vasta de conhecimentos é
transmitida, às vezes, de modos os mais inusitados e até controversos para o olhar
de outra cultura. Segundo Hampaté Bâ (2003), é nesse caso, por exemplo, que o
momento da alimentação, a maneira como se servem as refeições, os primeiros a se
96
Porém, nos diz Reis que “as sociedades humanas aspiraram sempre à eternidade, à
estabilidade, à unidade, a um presente eterno” (2009, p.31). Ainda de acordo com
esse autor, pensando através da obra de Lévi-Strauss66, existem sociedades que
admitem ser históricas, enquanto outras tentam não admitir esta apreensão pelo
tempo, buscando mecanismos de burlar essa lógica temporal linear (presente,
passado e futuro), através de ritos, mitos e símbolos que permitam certa fuga do
tempo. No caso africano, não se trata de uma fuga do tempo, mas de uma
compreensão dele em sua sacralidade, pois para o africano o tempo é visto por uma
perspectiva subjetiva e objetiva, podendo entender-se isto pela maneira como cada
um lida com o tempo e as necessidades do seu dia-a-dia, o ritmo; a maneira e o
modo como cada indivíduo responde a estas necessidades é bastante pessoal. Por
outro lado, todos estão sob uma lógica de tempo comum, no qual a história se
opera, a sociedade se organiza e as práticas se efetivam. É exatamente nessa
interação entre o tempo externo e o interno que existem o homem e suas vontades,
o homem como agente mediador e articulador desse tempo. Portanto, nessa lógica a
África não foge da história, da sua história, mas a compreende no contexto da
tradição que pode abarcar distintas interpretações do tempo, adequadas às
condições vivenciadas. Reis, nos diz que “a história, a experiência temporal, local
das ações humanas, é objeto de uma reflexão universalizante ética, estética e
política” (2009, p.38). Desse modo, ela ocorre com os africanos em acordo com a
sua percepção de mundo.
Quando o africano articula a sua reflexão sobre o tempo, ele o pensa como
um ritmo, um pulso, o mesmo que existe na palavra, na emissão do som. De acordo
com Hampaté Bâ (2010), o ritmo, o timbre e o pulsar da palavra são o próprio ritmo
do universo. A música africana mais tradicional, aquela expressa nos tambores e
outros instrumentos de percussão, é a extensão da voz humana, e o que os
tambores tocam é o que a voz humana expressa. De acordo com Santos e Bahi
(2010), Niangoran-Bouah, outro especialista em tradições orais da Costa do Marfim,
empenhou-se para que as tradições orais fizessem parte do ensino superior da
Costa do Marfim, dando ao seu método de trabalho uma atenção especial ao som
66
Antropólogo de origem belga nascido em 1908 e falecido em 2009. É considerado o fundador
da antropologia extruturalista.
99
dos tambores e a utilização dos textos dos tambores africanos de fala como suporte
aos estudos da oralidade67.
Na cultura tradicional do oeste africano na região do Mali, a palavra sagrada
das antigas práticas religiosas encontrou no islamismo outro elemento significativo
que influenciará a cultura tradicional e também recebeu a influência dessas culturas
nativas do continente. De acordo com Hampaté Bâ (2003) o Islã, integra-se à vida
africana subsaariana, de maneira relativamente tranquila, havendo aceitações e
concessões de ambas as partes. O Islã, segundo o autor, foi facilmente aceito no
continente africano, devido a sua relativa simplicidade ritual e à norma, segundo o
próprio Alcorão, de procurar o respeito e a convivência com as outras crenças. Essa
característica fez com que o Islã tivesse um rápido crescimento em solo africano,
sendo que muitos grupos étnicos se converteram em massa a essa religião, sem
que fossem ameaçados ou forçados a essa posição.
Segundo o teólogo e pesquisador saudita Ahmad Ibrahim (2008) o Islã é
totalmente contra o racismo e a injustiça, e faz essa afirmação baseado na seguinte
sura (versículo): “Ó humanos nós os criamos de um macho e uma fêmea e os
separamos em nações e tribos para que conhecessem uns aos outros.
Verdadeiramente, o mais nobre entre vocês para Deus é o mais piedoso.
Verdadeiramente Deus é Onisciente.” (Alcorão, 49:13).
Outro aspecto relevante destacado por Hampaté Bâ (2003) é o fato de o Islã
presente na região não confrontar-se doutrinariamente com as práticas religiosas
locais, já que em sua maioria estas não feriam os pilares fundamentais da fé
islâmica, na qual o mais importante é o reconhecimento do Deus único, como
supremo criador e ter em Muhammad o seu último mensageiro. Esta crença está
expressa na shahada (declaração de fé): “Ach hadu La ilaha ila Ala, ach hadu
Muhammad rassululah”, que significa “Afirmo que não existem deuses além de Deus
e afirmo que Muhammad é o mensageiro de Deus”.
Esta constatação de Hampaté Bâ (2003) é interessante, pois exige uma
reflexão sobre as religiões nativas da região do oeste africano, ao menos aquelas
descritas pelo autor. De fato é possível reconhecer netas distintas formas religiosas
67
Indicamos a leitura do texto SANTOS, Acácio Sidinei Almeida; BAHI, Aghi. Contribuições
de Georges Niangoran–Bouah ao estudo das tradições orais da Costa do Marfim. in: Cerrados:
revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.Literaturas e
Culturas Africanas.n.30, ano 19, 2010.
100
Os anjos são criados da luz. A palavra árabe para anjo é malak. De acordo
com a sua forma raiz, malak significa mensageiro, representante, enviado,
superintendente, e um ser poderoso. Os anjos formam relações entre o
mundo macrocósmico e o mundo material. Eles transmitem os
mandamentos de Allah a respeito da criação e da operação do universo,
dirigem os atos e as vidas dos seres (com a permissão de Allah), e
descrevem suas adorações em seus próprios domínios. (2009, p.70).
68
Senhor do Céu em idioma ioruba
69
Senhor do destino supremo em idioma ioruba
101
70
Um dos grupos radicais que atuam na Nigéria é o grupo Boko Haram que mantém ligações
com a rede Al Qaeda. Deve-se lembrar também do julgamento da nigeriana Safiya Hussaini Tungar
Tudu, condenada a ser apedrejada por adultério em um processo repleto de abusos e imprecisões.
Essa ação somente foi impedida devido a fortes pressões mundiais quando o caso tornou-se público.
Ver a obra Eu, Safyia - A história da nigeriana que sensibilizou o mundo. (2004).
102
praticados. As diferenças estariam no próprio modo de ser das pessoas, que não
abrem mão de sua cultura, bastante pautada no colorido das roupas, na alegria e
espontaneidade e a presença constante da música. O Islã africano, segundo
Hampaté Bâ (2004), se desenvolve principalmente por uma vertente mais mística,
denominada sufi, e com características bastante coletivas, com ritos e celebrações
diferenciados. As confrarias sufi da África ocidental são ligadas em sua grande
maioria ao Islã sunita (de sunna, a comunidade dos crentes) desde a época do
profeta Muhammad71, que tem sua linha sucessória, ou seja, os primeiros quatro
califas72 eleitos após a morte de Muhammad, pessoas do seu círculo de amizades.
Já outro grupo islâmico bastante conhecido são os xiitas73, que reconhecem a linha
sucessória do profeta Muhammad, apenas os membros de sua família, conhecidos
como os Alu Bait (membros da casa). O grupo sunita é o grupo mais numeroso até
os dias de hoje, e foi o responsável por avançar o Islã no continente africano,
incluindo a África subsaariana. A principal base do Islã sunita localiza-se na Arábia
Saudita.
De acordo com o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto ,
71
Ver Muhammad, o mensageiro de Deus (2007) do teólogo islâmico Abdurrahman al Sheha.
72
Os quatro califas são: Abu Bakr (632-634);Omar(634-644); Othman (644-656) e Ali (656-
661).Para os xiitas apenas Ali é reconhecido como sucessor verdadeiro do profeta Muhammad.
73
De shiia. Para maiores informações indicamos o site do Centro Islâmico no Brasil
(comunidade xiita) www.arresala.org.br
103
de práticas rituais locais, nas quais o caráter subjetivo do devoto também é bastante
preservado no culto à sua divindade particular, que, segundo pesquisadores como
Pierre Verger, ao observar a crença dos iorubas, refere-se ao modo de ser de cada
um. Todos fazem parte do culto e celebração coletiva, mas existe uma instância mais
íntima na qual cada pessoa possui um tempo e um espaço sagrado próprios. Neste
ponto nos deparamos com a questão da temporalidade sagrada que observamos
antes.
A ação, a devoção e o conhecimento são bases dessa formação humana, e
no sufismo, de acordo com Azevedo (1996, p.42), “são conhecidos como makhâfah
(temor), mahabah (amor) e marifah (conhecimento)”. Essas características têm no
sufismo e suas mais diversas Tariqahs (confrarias) um aspecto importante, o que
também fez aproximar essa maneira de interpretar o Islã, bastante comum na África
do oeste. Dentre as principais confrarias sufi do oeste africano, destacam-se: a
mouridya74, que tem no senegalês Ahmadou Bamba Mbaché75 o seu fundador; a
qadiriya76 de origem com o iraniano Abdul Qader Gilani Al Amoli77; e a tidjanyya,
esta última é a mesma confraria à qual Tierno Bokar e Amadou Hampaté Bâ
pertenciam, e que tem sua origem com o argelino Ahmad Al Tidjani78.
Torna-se marcante na vida de Hampaté Bâ (2003) a maneira como ele é
influenciado por essa escola de saberes e práticas, que aliados à cultura nativa de
seus ancestrais mais remotos permitiram-lhe uma leitura de mundo diferenciada que
busca estabelecer o encontro entre os povos, já que aprendeu desde a sua mais
tenra idade a conviver com o outro, seja ele próximo ou não culturalmente.
O encontro dessas culturas é intenso há muitos séculos no oeste africano,
tornando-se em alguns momentos difícil estabelecer no relato de Hampaté Bâ (2003)
uma separação ou mesmo uma distinção entre elas. Também é significativa a escola
europeia, na qual terá a sua educação nos conhecimentos e valores próprios do
ocidente que o habilitaram a chegar à França para a realização dos seus estudos
superiores.
Como já dissemos antes, no universo da cultura tradicional as práticas são
coletivas, e é nessa condição que os saberes são perpetuados, pois não há um
74
Ver os seguintes endereços: http://www.mourides.com/; http://www.mouridetv.net/#;
http://www.jazbu.com/ e http://www.cheikhibrafall.com/
75
Nasceu em 1853 e faleceu em 1927
76
Ver o seguinte endereço: http://www.qadiriyya.com/
77
Nasceu em 1077 e faleceu em 1166
78
Nasceu em 1737 e faleceu em 1815
104
saber de fato solitário, e tal como a memória, eles são construídos conjuntamente. O
saber é constituído no grupo, na interação e na relação entre as pessoas. Do
mesmo modo, procura-se entender os saberes na natureza, não apenas na razão
humana, mas pelo conjunto de possibilidades a serem apreendidas pelo homem em
todas as suas dimensões: psíquicas, sociais, emocionais, entre outras, sendo então
acionadas e contempladas em conjunto79. As características psíquicas, racionais e
espirituais do ser humano foram bastante refletidas pelo filósofo alemão Max
Scheler, que em várias de suas obras chamou a atenção para as dimensões do
homem e para a necessidade de percebê-las em totalidade e inteireza, algo que se
aproxima do conceito de inteireza presente no continente africano. A ideia de
totalidade no contexto das culturas tradicionais descritas por Hampaté Bâ (2003;
2010) não se restringe somente ao ser humano, mas também se refere à natureza.
Busca-se a interação do ser na natureza. É por essa característica que, de
acordo com Hampaté Bâ (2003), não é incomum ouvir de um africano tradicional
algumas expressões como as árvores me falaram, os peixes estão dizendo, entre
tantas outras possibilidades. No universo tradicional este tipo de comunicação é
totalmente aceitável e digno de valor.
Porém, quando é estabelecida uma relação desse universo com a maneira
pela qual o ocidente europeu procura entender o conhecimento e a relevância das
práticas sociais e culturais, percebe-se de imediato a distância entre esses mundos
conceituais. Por isso, também segundo Hampaté Bâ (2004), é relevante encontrar
no mundo ocidental as bases comuns que aproximem o diálogo e o entendimento
entre esses mundos.
De modo geral, o mundo ocidental tem priorizado a razão em detrimento de
outras dimensões humanas, o que torna a referência de percepção do mundo
africana alvo de estranhamento. Ki Zerbo (2009) chama a atenção para a
necessidade do despertar de um homem novo, que seja capaz a partir da sua
identidade reconhecer e até apreciar a identidade do outro. Hampaté Bâ (2004)
nessa mesma perspectiva nos diz da necessidade do diálogo para o conhecimento.
Portanto, um caminho, no caso do Brasil, de compreensão dessa simbologia
das práticas e saberes africanos seria procurar entender as práticas culturais negras
desenvolvidas em nosso país, nas quais a oralidade se faz presente. Até mesmo os
79
Para entender melhor essa noção a partir de uma perspectiva do ocidente, indicamos o livro
Antropologia Filosófica (1993) do filósofo e teólogo brasileiro Edvino Rabuske.
105
80
Educação não formal e educação formal se referem respectivamente a educação fora do
ambiente escolar e dentro do ambiente escolar.
106
diversidade cultural que forma o povo brasileiro. Sendo assim, o papel da palavra e
dos sistemas educativos africanos passa a ser um fenômeno de interesse e não de
descaso como outrora fora pensado.
tradição. É por isso que um líder político do continente que não conheça e não
respeite essa base de sua formação não reúne as condições necessárias para
compreender e representar o seu povo.
Essa reflexão coincide com a que o sociólogo brasileiro de origem baiana
Guerreiro Ramos81 também realizava ao analisar o comportamento de lideranças
brasileiras nos mais variados setores, que desconheciam, intencionalmente ou não,
algumas das principais realidades sociais e culturais do Brasil.
Uma liderança que, ao contrário, conhece e respeita essas tradições será
menos atingida pelo desejo de poder e o acúmulo desnecessário de bens, pois
considerará essa conduta social como sendo desequilibradora. De acordo com
Hampaté Bâ (2004), a civilização africana deve constituir-se com base em valores
humanos e éticos, presentes em sua cultura, aspectos estes que contribuem
também para uma sociedade mais fraterna. São esses aspectos que devem ser
compartilhados com outros povos e culturas.
De acordo com Hampaté Bâ, a palavra oriunda da tradição, articulada em um
tempo comum, de presença e atualidade, continua sendo geradora da vida, e é a
isso que a tradição se propõe, é isso que a tradição procura alcançar, para que
continue oferecendo saberes a sua própria civilização e ao mundo por
consequência. Ao oferecer e receber estabelece trocas e partilhas que são capazes
de gerar outros conhecimentos. O filósofo francês Maurice Merlou Ponty nos traz a
seguinte reflexão sobre a linguagem, que coincide em boa parte com a reflexão de
Hampaté Bâ (2010).
81
(1915 – 1982) Sociólogo negro de origem simples e que se dedicou a refletir também a
questão do negro no país. A partir de 1949 engajou-se ao TEN (Teatro Experimental do Negro), ao
lado de Abdias do Nascimento, outro importante intelectual brasileiro.
109
análise de Ponty percebemos o valor que a tradição africana procura dar a esses
encontros, a essas trocas de experiência.
Vejamos um exemplo interessante da tradição, que diz respeito à
convivialidade das diferenças étnicas, o aprendizado sobre elas e o diálogo possível
entre os povos e culturas distintas.
outras palavras, precisa confiar e reconhecer a sua própria história. Nesse contexto
é válido dizer que na contemporaneidade alguns modelos socioeconômicos,
mediados pela globalização, têm conduzido esses grupos tradicionais a uma perda
do sentido de suas práticas, ao mesmo tempo em que as mesmas são cooptadas
parcialmente, apenas em características externas e passam a fazer parte de um
mercado cultural exógeno. Um exemplo disso são algumas práticas culturais em sua
dimensão artística que têm sido exploradas e divulgadas, mas sem o devido cuidado
com os aspectos essenciais que a constituem, todo o universo simbólico e ritual que
lhe asseguram um sentido.
O desafio de interpretar essas práticas e adequá-las à atualidade está em ter
discernimento do possível, do válido e daquilo que poderia ser uma inovação
alienada dos interesses e sentidos daquela prática em sua origem. Essa ação
interpretativa em outros contextos sociais e históricos requer um cuidado, ensinado
na própria tradição africana, mas que, com o passar do tempo, tem sido esquecido.
Quando Hampaté Bâ (2003; 2010) fala sobre essa questão, ele lamenta, pois os
jovens africanos estão ficando distantes da sua principal base de formação, aquela
que lhes permite a constituição de uma identificação com a África, naquilo que
Mazrui (2010) denomina de África pelos próprios africanos.
Essa busca pela essencialidade, pela subjetividade que seria o fundamento
no qual se assenta a tradição, é que precisaria, segundo Hampaté Bâ, ser
apropriada pelas gerações mais novas para que em posse destes fundamentos
consigam estabelecer com coerência as condições comunicacionais em um tempo
presente. O conhecimento dessas bases é que possibilita que as tradições não se
percam em formalismos desnecessários e que impedem a sua compreensão e
sentido no mundo atual.
A apropriação apenas dos elementos exteriores da cultura tradicional forma
uma espécie de maquiagem da realidade dessas culturas; é aqui que Hampaté Bâ
reflete com muita atenção o modo como outras culturas têm se apropriado de
elementos exteriores da cultura africana, sem o devido entendimento dos seus
fundamentos, e principalmente sem o devido reconhecimento e respeito dos seus
legítimos criadores e mantenedores.
Esse modo de proceder também ocorreu com muitas das culturas negras
espalhadas pelo mundo a partir da diáspora. Essas culturas são alvo de
apropriações e transformações externas, que retiram delas o sentido primordial, ou
111
seja, aquilo que de fato a definiria. Esse fenômeno está, segundo Munanga (2009),
pautado ainda nas práticas discriminatórias das quais a população africana e seus
descendentes ainda são alvo. Ao pensarmos esta relação com outras práticas
culturais oriundas de outros povos como, por exemplo, os japoneses, a situação é
completamente diferente. Vejamos o judô (arte marcial japonesa), que tem em Jigoro
Kano o seu fundador. Em qualquer lugar do mundo onde seja praticado o judô, ao
adentrar-se o dojô (local de treino), é feita uma reverência ao mestre fundador
seguindo os elementos ritualísticos próprios da cultura japonesa.
No caso do Brasil, podemos pensar essa diferença de respeito em relação à
capoeira82. Houve um momento da história do Brasil em que a nacionalização tentou
promover a capoeira, contudo desconsiderando essa presença africana em sua
estruturação. Com isso, segundo a antropóloga brasileira Letícia Vidor de Souza
Reis em sua obra O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil (2000),
retirava-se ou tentava-se minimizar a presença do negro na cultura do país, até
mesmo nas práticas legitimamente de origem afro-brasileira como a capoeira.
Porém, graças ao esforço e empenho de muitos capoeiristas ligados tanto à tradição
angola como à regional83, temos assistido a um fenômeno interessante da
preservação dos seus valores rituais e simbólicos. Atualmente capoeiristas em
diversos países do mundo têm atuado como “embaixadores” dessa cultura,
garantindo em boa parte a sua prática dentro de uma coerência que respeite os
valores originais que ela carrega.
No entanto, essas práticas afro-brasileiras, assim como as africanas, têm na
própria tradição oral o seu principal mecanismo de preservação, e isso se dá no seu
processo de transmissão.
Em relação à corrente geracional tão relevante para a cultura tradicional, vale
destacar o papel dos velhos. O historiador Ki Zerbo (2009) diz que os velhos são
difíceis de lidar, podem ser sistemáticos, mas na cultura africana são valorizados
82
Arte marcial com vários traços culturais de origem africana, mas criada no Brasil pelos
escravizados.
83
A capoeira angola é denominada de capoeira mãe, a forma mais antiga desta expressão
cultural desenvolvida no Brasil, a partir da herança dos escravizados oriundos em boa parte de
Angola e outros países ao sul do Saara. Hoje está divulgada em vários países do mundo. A capoeira
regional foi criada na Bahia pelo Mestre Bimba na década de 1930, tendo por base os elementos da
própria capoeira angola, assim como de outras lutas que ocorriam no universo negro, tais como o
batuque e a bassula (luta de agarre). Também discute-se a presença de outras lutas estrangeiras na
sua formação. O primeiro nome dado a essa nova luta era de Luta Regional baiana; somente depois
passou a ser conhecida como capoeira regional.
112
Muitas vezes eu ficava na casa de meu pai Tidjani após o jantar para assistir
aos serões. Para as crianças, estes serões eram verdadeiras escolas vivas,
porque um mestre contador de histórias africano não se limitava a narrá-las,
mas podia também ensinar sobre numerosos outros assuntos, em especial
quando se tratava de tradicionalistas consagrados como Koullel, seu mestre
Modibo Koumba ou Danfo Siné de Buguni. Tais homens eram capazes de
abordar quase todos os campos do conhecimento da época, porque um
“conhecedor” nunca era um especialista no sentido moderno da palavra
mas, mais precisamente, uma espécie de generalista. O conhecimento não
113
A explicação dessa prática nos traz uma ação educativa para a vida.
114
Toda essa disciplina não visava torturar inutilmente a criança, mas ensinar-lhe
a arte de viver. Manter os olhos baixos em presença de um adulto, sobretudo
dos pais – isto é, dos tios e amigos dos pais – era aprender a se dominar e a
resistir à curiosidade. Comer diante de si era aprendera contentar-se com o
que se tem. Não falar servia para aprender a controlar a língua e praticar o
silêncio: é preciso saber onde e quando falar. Não pegar um novo punhado
de comida antes de haver terminado o anterior ensinava a dar prova de
moderação. Segurar a borda do prato com a mão esquerda era um gesto de
educação que ensinava a humildade. Evitar se precipitar sobre a comida era
aprender a paciência. Enfim, esperar receber a carne ao final da refeição e
não se servir sozinho conduzia ao controle do apetite e da gula. (HAMPATÉ
BÂ, 2003, p.172).
Hampaté Bâ, é praticamente impossível pensar na cultura da sua região sem colocar
em evidência a presença do Islã na formação das pessoas.
Quando cheguei à idade de sete anos, uma noite, depois do jantar, meu pai
me chamou. Ele me disse: “Esta será a noite da morte de sua primeira
infância. Até agora, sua primeira infância lhe dava liberdade total. Ela lhe
dava direitos sem impor qualquer dever, nem mesmo o de servir e adorar a
Deus. A partir desta noite, você entra em sua grande infância. Terá certos
deveres, a começar pelo de frequentar a escola corânica. Aprenderá a ler e
memorizar os textos do livro sagrado, o Alcorão, a que chamamos também
Mãe dos livros”. (2003, p.135).
Foi assim que num belo dia do ano de 1912, mais para o final do ano
escolar, o comandante da circunscrição de Bandiagara, Camille Maillet, deu
ordem ao chefe tradicional da cidade Alfa Maki Tall, filho do antigo rei
Aguibou Tall, de enviar-lhe dois meninos de boa família, com menos de
dezoito anos, para completar a cota da escola primária de Bandiagara.
(2003, p.210)
116
A palavra em sua relação com o sagrado, com o divino, ocupa uma posição
especial na cosmovisão e espiritualidade africanas. De modo geral, todos os
aspectos da vida tradicional são permeados pela presença do sagrado. Sendo
assim, não existe na maioria das vezes uma distinção formalizada em que se
estabeleçam os limites do sagrado e do profano. Ao contrário, nota-se que o sagrado
permeia o imaginário das pessoas e as ações cotidianas sempre carregam uma
perspectiva mística e metafísica.
É nessa perspectiva que adentramos o universo da palavra em sua maior
subjetividade, relacionada a toda uma percepção de mundo, a uma maneira de estar
no mundo repleto dos elementos mítico-místicos da espiritualidade e simbologia
africanas.
A espiritualidade pode ser entendida e pesquisada no contexto da religião
formal, porém é válido pensar que a espiritualidade também esteja relacionada com
a maneira como o ser humano se relaciona com o mundo, as suas motivações e
modos de interação. A espiritualidade africana é um modo de ser que independe da
religião formal. O pensamento religioso é considerado natural no universo da cultura.
Segundo os historiadores Tshibangu; Ajayie e Sanneh,
Essa característica religiosa que permeia o modo de ser dos africanos foi
utilizada pela Europa em vários momentos para classificar essas pessoas como
inferiores. Na perspectiva da racionalidade e da cientificidade, essa visão de mundo
aparece como atrasada, oriunda de um dado mitológico. E isso acaba por ser outro
desafio a ser superado no avanço desse diálogo. Pode-se pensar que a perspectiva
de religiosidade entre os africanos diz respeito à maneira com a qual o ser humano
se conecta, se comunica consigo mesmo e com o mundo a sua volta; a religiosidade
se expressa aqui em torno de uma motivação, de um sentido para vida, que
necessariamente não esteja ocupando um lugar formal em uma religião institucional.
No ocidente quando se pensa em religião é comum pensarmos em algo
bastante formal, com uma doutrina estabelecida e consolidada historicamente.
Porém, na África esse elemento formal é recebido subjetivamente e recriado dentro
de uma perspectiva endógena de olhar para o mundo. Um olhar de
complementação, esse sim, o olhar religioso, pois se refere a religar-se ou manter-se
ligado à energia original e a todas as energias dela oriundas, ou seja, todos os seres
criados.
A própria ideia da palavra tal como aparece nas tradições relatadas por
Hampaté Bâ (2003; 2010) nos faz lembrar a questão da origem divina da palavra na
sociedade judaico-cristã ocidental, oriunda da apropriação cultural dos mitos de
origem do oriente médio. Na tradição judaico-cristã temos a criação do homem por
Deus e este Deus se comunicava diretamente com o homem. De sua vontade e
palavra se fez o homem feito da terra. (Gênesis 1. 1-13). Também no Novo
Testamento temos a ideia de Jesus como o verbo de Deus. Desse fato provém a
crença cristã de que Jesus seja o filho de Deus e na doutrina oficial cristã, seja um
dos membros da trindade-una, que seria o próprio Deus em três pessoas distintas,
mas plenamente comunicáveis e inseparáveis: o Pai, o Filho e o Espírito Santo84.
Os mitos de origem, relatos que, segundo o especialista norte-americano
Joseph John Campbell em sua obra O poder do mito (1990), fazem parte da
narrativa de todos os povos, localizam-se na primeira grande questão humana,
quem somos e de onde viemos? Essa marca importante sobre os seres humanos é
84
Ver o livro Catecismo da Igreja Católica das Edições Loyola.
119
Boa parte desses mitos africanos era comunicável com a religião islâmica que
se instalou no continente, o que estabeleceu, de acordo com Hampaté Bâ, um
diálogo profícuo para ambas as culturas. O homem é visto em ambos os universos
religiosos como um ser especial criado por Deus, dotado de responsabilidades e
habilidades que o capacitam a ser o mantenedor, o cuidador das coisas criadas.
De acordo com Hampaté Bâ, o homem é um ser especial, ele é “síntese de
tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força Suprema e confluência de
todas as forças existentes. Maa, o homem, recebeu de herança uma parte do poder
criador divino, o dom da mente e da Palavra” (2010, p.171). Maa Ngala, a suprema
120
... todas essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro
dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha
colocá-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forças
começam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa
segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como a
materialização, ou a exteriorização, das vibrações das forças. (2010, p.172).
Em fulfulde, a palavra que designa “fala” (haala) deriva da raiz verbal hal,
cuja ideia é “dar força” e, por extensão, “materializar”. A tradição peul ensina
que Gueno, o Ser Supremo, conferiu força a Kiikala, o primeiro homem,
falando com ele. “Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os
Silatigui (ou mestres iniciados peul). (2010, p.172).
sua função reguladora das forças que regem o universo. A magia é capaz de
estabelecer a harmonia da existência, é conhecimento e saber. Portanto, a chamada
boa magia é aquela que provém dos mestres do conhecimento.
Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forças cósmicas que
dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana anima, coloca
em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas. Mas para
que a fala produza um efeito total, as palavras devem ser entoadas
ritmicamente, porque o movimento precisa de ritmo, estando ele próprio
fundamentado no segredo dos números. A fala deve reproduzir o vaivém
que é a essência do ritmo. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.173-174).
Então, “na tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e
operativo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da
harmonia no homem e no mundo que o cerca.” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.174). A
palavra no universo da tradição está imbuída de acompanhar a vida em todas as
suas nuances, além de ser o elo entre os vivos, o é também com o universo dos
ancestrais.
O aspecto religioso da fala africana tem uma correspondência significativa
com a palavra da tradição islâmica, pois se para o cristianismo o verbo divino se fez
carne na pessoa do Cristo, na tradição islâmica a palavra divina se fez livro, o
Alcorão. De acordo com Hampaté Bâ (2010) e Mazrui (2010), o islã chegou a essa
região da África, bem antes do séc. X, fazendo surgirem desde essa época
importantes centros de formação.
Para termos uma ideia de como essas culturas se entrelaçaram, vamos ver
neste trecho da obra Amkoullel, o menino fula como Amadou Hampaté Bâ faz
referência a sua mãe Kadidja, quando esta relata um sonho que teve com o profeta
do Islã Muhammad Ibn Abdullah:
No sonho a mãe de Hampaté Bâ, a então jovem Kadidja, sente-se punida pelo
Profeta, por não estar ao seu lado, assim como os seus irmãos estavam. Percebe-se
nessa narrativa o quanto a cultura islâmica se fazia e se faz presente na cultura
africana dessa região. Dessa maneira, o ser africano do oeste, ao menos a maioria
dos grupos retratados por Hampaté Bâ (2003; 2010), não podem ser entendidos em
seu imaginário e representação destituídos dessa parcela relevante de sua
formação. Nessa citação percebemos o quanto o Islã estará imerso nas tradições
locais, compondo então uma cultura própria.
Outro aspecto de relevância retratado por Hampaté Bâ está na maneira como
as escolas islâmicas instaladas no continente africano souberam respeitar e valorizar
os princípios da tradição africana, algo que foi bastante diferente da relação que a
escola europeia estabelecia com as culturas africanas.
123
Deste modo, houve um encontro cultural, uma troca de saberes que ampliou
possibilidades de entendimento entre os grupos.
Vejamos outro exemplo que Hampaté Bâ nos traz sobre o seu avô materno
Pâté Poullo e a sua decisão em abandonar tudo para seguir a vida religiosa na
companhia de El Hadj Omar, um mestre da confraria sufi Tidjania. Aqui Hampaté Bâ
nos dá o exemplo da narrativa memorialista ao contar o episódio vivido por seu avô,
lembrando cada palavra emitida por Pâté Poullo ao encontrar-se com El Hadj Omar.
Não vim a ti para as coisas deste mundo. Peço-te que me recebas no Islã e
te seguirei aonde fores, mas com uma condição: no dia em que Deus fizer
triunfar tua causa e dispuseres de poder e grandes riquezas, peço-te que
nunca me nomeies para qualquer posto de comando- chefe de exército,
chefe de província, chefe de aldeia, nem mesmo chefe de bairro. Porque a
um fula que tenha abandonado seu rebanho não se pode oferecer nada que
seja mais valioso. Se te sigo, é unicamente para que me guies na direção
do Deus Único. (2003, p.28).
De acordo com Hampaté Bâ (2013), o modo principal pelo qual o ser humano
em qualquer uma de suas civilizações transmite a cultura é a educação. Assim, a
relação cultura e educação são necessárias para o entendimento e aprimoramento
dessas interações humanas.
Os historiadores e antropólogos africanos Habte; Wagaw e Ajayi nos dizem
que,
tempo e espaço, que priorizam outro tipo de relação entre mestre e aprendiz
ou entre o (educador e o educando), que enfatizam formas diferenciadas de
sociabilidade, em que as formas simbólicas, a ritualidade e a ancestralidade
têm papel fundamental, e que assim privilegia nesse processo pedagógico,
outro sistema de valores, que não aquele presente na prática educacional
corrente em nossa sociedade. (2004, p.4-5).
CONCLUSÃO
Uma educação para emancipação do ser humano
A pessoa, assim, não está encerrada sobre si mesma, como uma caixa bem
fechada. Ela se abre em diversas direções, diversas dimensões,
poderíamos dizer, ao mesmo tempo interiores e exteriores. Os diversos
seres, ou estados, que estão nela, correspondem aos mundos que se
escalonam entre o homem e seu Criador. Eles estão em relação entre si e,
através do homem, em relação com os mundos exteriores. Antes de tudo, a
pessoa está ligada a seus semelhantes. Não se saberia concebê-la isolada
ou independente. Assim como a vida é unidade, a comunidade humana é
uma, e interdependente. (HAMPATÉ BÂ, 2014, p.3).
relações. Tal forma de olhar para as coisas, para o mundo, se revela tão significativa
para fazer pensar no que nos diz Latouche sobre o ter e a sua relação com o ser.
A cultura da África tradicional procura a todo custo, e como forma de valor
maior, preservar o ser, dando-lhe o sinal da escolha, da decisão e não tornando-o
um mero agente já escravizado pelo sistema por ele inventado, em que os métodos
de exploração e desenvolvimento econômico se apresentam de maneira a sufocar o
homem que o criou.
Para Hampaté Bâ (2014), o ser humano é chamado, é convocado para a
realização do ser, pois, enquanto ele não realiza a ordenação de si mesmo e do
mundo a sua volta, ele é apenas um homem ordinário que não se tornou apto ao
cumprimento de sua existência.
A proposta de Hampaté Bâ não está restrita a África ou a pensarmos uma
África isolada do mundo, mas, muito pelo contrário, trata-se de uma proposta
mundial, coletiva, de partilha e engajamento, na qual a educação deve estar voltada
para a emancipação do homem, tendo por base a sua própria humanidade
repensada e refletida. Mais do que conhecermos as diferenças que existem entre os
povos, entre as culturas, o que se aponta é o reconhecimento das mesmas e a
emergência de aprendermos com elas.
No caso da escola no Brasil é mais do que ministrar conteúdos sobre a África
nas escolas, mas ir além e pensar o modo de ser que essa cultura ensina e percebê-
la como agente viável na formação da pessoa humana também no Brasil. Dar
visibilidade e respeitar a presença negra no Brasil é, de acordo com Munanga
(2010), dar-lhe a condição de pertencer efetivamente ao universo de saberes que
compõem o ser humano. A adequação da LDB através das Leis Federais
10.639/2003 e 11.645/2008, é um caminho proposto que possibilitou a abertura de
portas de entrada a esse universo de modo mais concreto - oficial, diríamos -,
embora todo esse universo sempre se tenha feito presente na formação cultural do
povo brasileiro, como já descrito por Darci Ribeiro e outros tantos antropólogos e
sociólogos brasileiros. Porém, o seu conhecimento regular em ambiente formal o
retira da marginalização escolar, e, mais do que isso, colabora efetivamente no
reconhecimento da história do aluno negro, contribuindo, dessa forma, para que o
mesmo consiga elaborar a sua identidade e representação também a partir de
valores culturais e civilizatórios oriundos de uma história que lhe é familiar.
136
85
Esse gesto tem base na importância que se dá à palavra e à saliva tanto na cultura espiritual
tradicional africana quanto no Islã. Trata-se de uma benção especial.
86
Homens e mulheres que no Islã adotam a vida mística.
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ANEXO
154
Figura 2- Mapa da África Ocidental com delimitação dos países na colonização mas apresentando algumas
divisões anteriores, baseada nos territórios de alguns grupos étnicos. Imagem do livro Amkoullel, o menino
fula (2003).
156
Figura 3 – Mapa do Mali apresentando a região em que Amadou Hampaté Bâ viveu a sua infância e
adolescência. Nesta região viviam vários grupos étnicos entre eles: fulas, dogons, bozos, sereres, tucolores,
diwambés, entre outros. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003).
157
Figura 4 – Mapa mais detalhado da região em que viveu Amadou Hampaté Bâ que destaca a cidade de
Bandiagara. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003).
158