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palavras, sons, acções, imagens de sofrimen‑ doloroso e âmago – do nosso ser. É o nosso
to. Clínica onde procuramos estabelecer estas contra‑texto, e de vários autores que con‑
passagens das sensações mais primárias do ser sultámos, que procuramos colocar aqui.
à possibilidade de existir e de criar. Há assim uma analogia entre o trabalho psí‑
Neste sentido lembramos Simone Korff‑Sausse4 quico do clínico e o funcionamento psíquico
que estabelece uma analogia entre o impacto do espectador. Trata‑se de duas modalidades
que o discurso do paciente tem no clínico e o de conhecimento que conjugam arte e ciência.
impacto que a obra de arte tem no espectador. Há uma dimensão estética no trabalho clínico,
A autora diz‑nos que mais do que tradutor, como procuraremos sublinhar.
o clínico é um leitor de poemas. A recepção Arte e ciência provêm da mesma fonte, aque‑
do poema – e de toda a obra de arte – impli‑ la das primeiras simbolizações emergentes da
ca processos psíquicos compreensíveis através experiência emocional primária a partir da
do modelo da contratransferência. Tal como a sensorialidade. Daqui o nosso fascínio por estes
contratransferência do clínico traz clarificações dois criadores que falam do humano, da nossa
quanto à vida psíquica do paciente, o contra clínica, da dor e suas formas de comunicação.
‑texto, homólogo da contratransferência, traz S. Heenen‑Wolff5 propõe o termo de contra
clarificações novas sobre a obra e o seu autor. ‑movimento contratransferencial, numa
Toda a obra de arte compreende uma transfe‑ reacção violenta, para pensar o conceito da
rência potencial ou virtual, pressupondo sem‑ contratransferência. Contra‑movimento em
pre alguém a quem se dirige. O artista propõe a relação com um movimento em identificação
sua obra à simbolização. Não lhe chega tê‑la re‑ projectiva do paciente, onde uma angústia de
alizado, importa ainda que ela seja recebida por morte é depositada no outro (clínico e espec‑
alguém que participa no processo de criação e tador, acrescentamos nós), testemunhando
que partilha a experiência emocional, tornada não apenas uma necessidade de a evacuar,
experiência estética. O espectador não é passi‑ mas também a espera de que o outro possa
vo, sendo a experiência estética um verdadeiro metabolizá‑la, tornando‑a digerível e supor‑
trabalho psíquico. As grandes obras contêm os tável. Dor na tela, como dor na palavra ou na
traços ou as inscrições do processo que as criou. acção, contra o estilhaçar, a pulverização, a
Por isso olhamos e voltamos a olhar, e jun‑ aniquilação.
to, sentimos e experimentamos os quadros A contratransferência, e principalmente aque‑
de Frida e de Bacon. Voltamos lá porque a la que é acompanhada de movimentos violen‑
sua obra fala connosco, colocando‑nos em tos, está frequentemente em contacto com as
contacto com as partes mais primitivas da partes mais arcaicas do paciente. Da mesma
nossa existência, com o mais profundo – forma, alguma arte reenvia para estes elemen‑
tos mais arcaicos do espectador. Só recebendo bundos, aos quais o terapeuta procura dar abri‑
estas imagens, sendo impregnado por elas, é go temporário. Turbulência e violência, mas
que, clínico e espectador poderão conhecê‑las. também subversão, na mudança catastrófica
É impossível ver apenas um quadro de Frida que é operada nas obras de Frida e de Bacon.
ou de Bacon, são experiências que acontecem. A contratransferência, na clínica actual e na
Nicole Llopis‑Salvan6 refere como na clínica forma de a perceber, encontra um novo para‑
actual, mais distante do neurótico e do verbal, digma psicanalítico, passando a uma aborda‑
se reduz a distância eu – outro, ficando um gem de zonas não representáveis, onde a sim‑
“corpo‑a‑corpo” psíquico, surgem as passagens bolização é posta à prova. Não se trata tanto
ao acto, a identificação projectiva, os movimen‑ de interpretar as representações inconscientes,
tos paradoxais. É esta a clínica que encontra‑ mas de as tornar possíveis, constituir o psíquico
mos nas nossas instituições: pacientes limite, ou lá, onde ele não está. Não é isto o que nos sur‑
momentos limite de uma cura, em contacto di‑ preende, inquieta e fascina em Bacon e Frida?
recto com o inconsciente do clínico. Dá‑se uma
comunicação de inconsciente a inconsciente, O que impulsionou a composição de ideias,
como na arte. Em Bacon e Frida, encontramos informações e divagações que estão contidas
igualmente este corpo a corpo. Subversão na neste artigo são questões densas, dinâmicas
clínica e na arte que alteram a posição da escu‑ e conflituosas que fazem de nós o que somos.
ta e da recepção do poema/pintura/palavra. Pa‑ Seres que se ligam à vida com fervor: adoe‑
cientes e pinturas que arrombam, entram pelos cidos de tão intensos, amedrontados de tão
poros, fendem, instalam‑se no nosso interior, necessitados, loucos de tão desejosos. Há uma
numa comunicação orgânica. união secreta entre beleza e terror.
Simone Korff‑Sausse4 relembra Bion na ideia Na tentativa de nos mantermos vivazes, va‑
de que acedermos à comunicação não verbal mos gerando alternativas, criando artifícios e
implica deixarmos vir o desconhecido, o insó‑ desenvolvendo técnicas. Neste percurso, cujo
lito. Tal só é possível estando o clínico (ou es‑ único objectivo era mantermo‑nos vivos, al‑
pectador) numa “capacidade negativa”, capaz guns têm uma capacidade criativa que trans‑
de incertezas, “sem memória, sem desejo e sem borda o criador, ultrapassando o objectivo
compreensão”, na tolerância ao desconhecido, inicial. São eles os artistas, que nos brindam
pronto a receber um pensamento emergente com as suas obras de arte, tornando o nosso
nesta zona de incerteza e turbulência. Na clíni‑ próprio percurso mais fácil e mais rico.
ca verifica‑se a proposição bioniana de “pensa‑ Ao depararmo‑nos com uma obra de arte so‑
mentos à procura de pensador”. Pensamentos mos por ela tocados, transportados para uma
errantes e selvagens, sem proprietário, vaga‑ experiência universal e, ao mesmo tempo,
Francis Bacon nasceu em Dublin em 1909, posição é separada em três telas distintas
sendo o segundo de cinco filhos. O pai, um ho‑ que são coordenadas de forma a configurar
mem autoritário, tornou‑se treinador de ca‑ um tríptico. Este arranjo é de uma origina‑
valos após reforma do serviço militar. A mãe, lidade tão perturbante que Bacon voltará a
vinte anos mais nova, era sociável e culta. Em usá‑lo com frequência. (…) O tom laranja
1914 muda‑se para Londres. Sofre de asma espalhado sobre o espaço das três telas atin‑
crónica. As mudanças condicionaram a sua ge tão violentamente o observador como se
infância. Reconheceu a sua homossexualida‑ com o objectivo de lhe retirar todos os pode‑
de. Morre de ataque cardíaco em Madrid em res de percepção e eliminar a possibilidade
1992. de leitura das formas de acordo com con‑
“A teoria faz parte de um sistema racional, venções comuns de lógica racional”10.
e Bacon sabe, desde o princípio, que não se Lembramos aqui P. Luquet11 na sua observa‑
podem atingir estas conclusões utilizando o ção de que o artista e o pintor fazem um uso
pensamento racional, mas exclusivamente particular do símbolo: “Tendo condensado a
pela sua subversão. (…) É a capacidade maior energia pulsional possível, ele liga
que Bacon tem de atingir o mais profundo e ‑a a elementos sensoriais perceptivos (eles
obscuro dos nossos sentimentos que torna os mesmos associados a prazeres) para for‑
seus quadros extraordinariamente verda‑ mar complexos sensório – simbólicos muito
deiros e consequentemente reais” 10. carregados de desejo e de descarga”. Trata
‑se do elemento psíquico primário que serve
Contemplar um quadro seu é viver uma vio‑ a mentalização estética, e uma cor torna‑se
lência, o que é confirmado pelo escândalo que fria, uma tonalidade agressiva. São os comple‑
se deu após a sua primeira exposição em Lon‑ xos emocionais sensório – simbólicos. “Tais
dres em 1945. organizações que utilizam a condensação,
“Francis Bacon firmou o início da sua car‑ o deslocamento, o simbolismo, são a acti‑
reira artística com a obra Três Estudos para vidade do pré‑consciente metaprimário; ao
Figuras na base de crucifixação, em 1944 mesmo tempo que elas servem para a orga‑
(…). Esta obra manifesta uma terrível e ex‑ nização do ego”11.
pressiva violência. Não representa nenhum Bacon não se interessa em imitar a aparente
acto violento, mas uma indefinida e desu‑ realidade, sendo a pintura um acto indepen‑
mana violência que ocorreu num espaço dente, resultante das necessidades mais ín‑
invisível e num tempo fora dos limites do timas e instintivas do indivíduo, dominadas
quadro; imprimiu o seu horror nas formas pela profundidade, força bruta da expressão.
e nas cores da área que o rodeiam. A com‑ “O que a composição contraditória e dis‑
torcida da massa cinzenta dos corpos com tivo requer, sem distinção ou hierarquias entre
outras cores transmite em três estudos é a elas. Questão clara em “O Nu Acocorado” onde
lacerante expressão de um grito, indepen‑ “o acto pictórico é manifestado num con‑
dente da sua essência e causa. É um gri‑ texto de tons humildes. O efeito geral é mo‑
to reduzido à sua força bruta, aquém da nocromático, a fim de que qualquer peque‑
necessidade humana normal de identificar na diferenciação de cor seja ressaltada em
e resolver as causas do mal‑estar. Mais ani‑ relação à constante escuridão do cinzento,
mal do que humano, excessivo a ponto de do azul‑escuro e do preto que absorvem o
se tornar desconhecido das suas próprias matiz. O acto de pintar é uma batalha que
implicações expressivas: sem capacidade de revela os traços como cicatrizes, que são pos‑
comunicar seja o que for de compreensí‑ teriormente dissipadas na imagem”10.
vel”10. Mais à frente, do mesmo autor, lemos: Já o tríptico funciona como uma catarse, tragé‑
“A boca do monstro a rosnar, que é prota‑ dia que representa o drama sofrido. “Mas este
gonista em Pintura 1946, causa uma im‑ equilíbrio está sujeito à ameaça inerente na
pressão indefinida, entre um sorriso único qualidade das cores e das harmonias, no hor‑
e o efeito asmático de um impostor emer‑ ror, que é ainda mais perturbador quando se
gindo de uma pletórica e obscura pressão. afirma através de formas da mais alta qua‑
(…) Bacon começou com a intenção de lidade estética. É como se a beleza, que o tra‑
pintar uma paisagem. À medida que ia pin‑ balho consegue recriar de forma absurda nas
tando, inseriu um chimpanzé num terreno suas várias consequências, estivesse rodeada
coberto de erva que quase o submerge. Em pelas ameaças de forças obscuras, o caos ro‑
seguida desdobrou‑se numa ave de rapina, deando o Tríptico que foi momentaneamente
mas sucederam‑se mudanças até tudo estar dominado pela arte e parecia estar no ponto
misturado na imagem final, onde o campo de reconquistar a sua superioridade”10.
acaba por desaparecer, e só restam alguns Sobre o retrato Bacon disse: “Ao pintar no
traços do chimpanzé e do pássaro, ain‑ retrato, o problema é encontrar uma téc‑
da que tenham sido incorporados noutras nica na qual se possam transmitir todas
ideias ou impressões indecifráveis”10. as pulsações de uma pessoa… O modelo é
A pintura significa tudo para Bacon, e os seus alguém de carne e osso e o que tem de se
elementos são inteiramente resolvidos na ex‑ apanhar é a sua emanação”10. Estudo para
pressão cromática. Não é possível distinguir Auto‑Retrato revela como a pintura tem para
entre linha, cor e planos no espaço. Pintar é, Bacon uma função de ligação entre o mun‑
portanto, uma acção instantânea na qual ele do real da existência e o mundo subjectivo.
usa todas as ferramentas que o processo inven‑ Se os seus trabalhos exprimem o desconforto
tangular, plana, imóvel; o corpo (troncado, balhos de Bacon. No primeiro estádio a maté‑
desmembrado, sem pele), apresenta‑se num ria psíquica é vivida como líquida ou gasosa,
contexto de linhas e cores em que a intenção faltando‑lhe a consistência e a contenção que
não é de circunscrever; o vidro não é palpável; apazigúe as angústias de esvaziamento e/ou
o redondo não fechar indica o que escapa, o explosão, dada a ausência da função con‑
círculo serve de ponto de fuga, em sentido li‑ tentora do eu‑pele. Num segundo momento
teral; é o aplanamento que é fundo, é o plano estabelece‑se um contacto consistente com um
que abre uma profundidade ilimitada. Uma objecto de apoio, objecto contentor, surgindo
pintura cega, táctil, explora uma superfície uma tolerância aos orifícios abertos no enve‑
móvel e falsa, que dá existência inquietante lope psíquico dado os primeiros pensamentos
ao vazio. ligados à ausência e à falta – fase de identifi‑
Nesta vertigem aparece o informe em gesta‑ cação adesiva em que mãe e bebé partilham
ção, fabricando a carne arrancada aos líqui‑ uma pele comum, interface partilhada que su‑
dos amnióticos por uma energia monstruosa. gere a separação em construção, estabelece‑se
Nesta criação embrionária, a carne tende a a distinção dentro fora, através da membrana
cobrir‑se de uma película, mas fica despro‑ que permite a separação e contacto do Eu com
vida de estrutura óssea interna. Nos anos o mundo. Num terceiro momento acontece a
sessenta/setenta, Bacon vai repetir um outro tridimensionalidade.
paradoxo da relação figura‑fundo, a cabeça As pinturas de Bacon parecem traduzir o que
sem crâneo. Anzieu refere como a primeira forma do Eu
Enquanto que a cabeça morta, estrutura pura, ‑pele ‑ o envelope uterino, fornecido pelo útero
é um símbolo a meditar, as cabeças sem osso enquanto saco contentor, como um continente
de Bacon funcionam como a abjecção pura, anatamo‑psíquico dos fragmentos emergentes
confundem sexo e cabeça, cabeças sem corpos, de consciência no feto, organizam‑se as sensa‑
corpos sexuados sem cabeça, cabeças em forma ções de contenção física, de nutrição, de calor,
de sexo. Os esfíncteres são abertos e fechados ao num bem‑estar geral e difuso que constitui o
acaso, paradoxo de um corpo sem órgão e a ór‑ lastro. Numa segunda fase a diferença entre
gãos indeterminados, polivalentes, temporários. o self corporal e psíquico é assegurada pelo
Antinomia de um corpo sem esqueleto, susten‑ envelope habitat, aqui coexistem vivências
tado pelas suas contracções localizadas. de integração, na experiência de residência
Na génese do Eu‑pele, Anzieu12 refere‑se à da mente no corpo, com momentos de não
descrição que Houzel faz do espaço psíquico, ‑integração, de despersonalização. O envelope
processos de desenvolvimento que lembramos narcísico distingue o eu do não‑eu. O enve‑
aqui por nos parecerem representados nos tra‑ lope individualizante imaginário permite a
A pintura de Bacon desqualifica as noções a sua vida para sempre, levando‑a a constan‑
de prazer, de oralidade, de libido, de relação tes cirurgias e impossibilitando‑a de ter filhos.
de objecto. Não se trata de pôr em causa, mas “Por que estudas tanto? Que segredo estás à
de um não‑lugar radical. procura? A vida logo o revelará. Por mim, já
sei tudo, sem ler, nem escrever. Algum tempo
D. Anzieu3 compara Beckett, Bacon e Bion: os três atrás, talvez uns dias, eu era uma rapariga
colocam o irrepresentável na obra. Experimen‑ que caminhava por um mundo de cores cla‑
tando as fronteiras da ruptura psíquica, sobrevi‑ ras e tangíveis. Tudo era misterioso e havia
veram pela criação: na pintura, no romance e no algo oculto; adivinhar‑lhe a natureza era um
intelectual. Três pessoas que não colocaram so‑ jogo para mim. Se tu soubesses como é ter‑
mente a sua dor numa criação, mas que criaram rível obter o conhecimento de repente, como
uma obra à imagem e com a melhor semelhança um relâmpago iluminando a Terra! Agora
possível da sua dor irremediável. vivo num planeta sofrido, transparente como
Nos auto‑retratos de Bacon, o pintor vê‑se sem gelo. É como se houvesse aprendido tudo de
olhos ou sem dorso. Beckett ouve vozes inter‑ uma vez, numa questão de segundos. As mi‑
mináveis, de que não está certo nem da ori‑ nhas amigas e colegas tornaram‑se mulheres
gem nem do destino, estão elas em si, ou fora? lentamente. Eu envelheci em instantes e ago‑
Quem fala a quem e porquê? Debate de Bacon ra tudo está embotado e plano. Sei que não
com as sensações visuais: daí a sua vocação de há nada escondido; se houvesse, eu veria.”7
pintar. Debate de Beckett com as palavras en‑ “A natureza, talvez num intuito benevolen‑
tendidas: daí a sua vocação de escritor. Horror te, instilara no seu sangue um castigo de
do contacto nos dois. carácter nada científico: uma imaginação
O novo empirismo descreve o homem sem vivíssima que se mostrava nos seus sonhos
espécie, sem pessoa. Beckett dá‑lhe a palavra. e também no estado de vigília. Essa divisão
Bacon fá‑lo ver. Bion fá‑lo compreender. entre imaginação e intelecto predispunha‑o
a tornar‑se um artista ou um neurótico; ele
estava entre aqueles cujo reino não é deste
Subversão e Violência em Frida mundo” (Sigmund Freud, citado7).
Kahlo
A Questão do Trauma
Destacamos um trecho de uma carta que Frida “…Yo soy la desintegración…” (Frida Kahlo
Kahlo escreveu, aos 18 anos, ao seu namora‑ num dos desenhos do seu diário em 1942).
do, um ano após o grave acidente que marcou A observação da obra pictórica da pintora con‑
temporânea Frida Kahlo (1910 (1907?) ‑1954)7
e, particularmente, a leitura do seu “diário” e os significativa, como se através dos seus desenhos
dados biográficos de que dispomos conduzem e quadros realizasse um auto‑retrato íntimo da
‑nos a pensar mais detidamente na questão do sua vida, onde a dor e o corpo são as suas duas
“trauma” em psicanálise, particularmente, so‑ fontes de arte. Frida Kahlo foi, na verdade, uma
bre o “trauma acumulativo”7. mulher que despertou amor e ódio, admiração
Esta pintora devido às suas situações de vida e inveja de homens e mulheres. Paixão em al‑
e à forma como expressava as suas vivências guns dos mais importantes personagens do seu
e fantasias, através de desenhos e pinturas, tempo como Diogo de Rivera, Leon Trotsky e
permite‑nos abordar dois modelos de situa‑ André Breton. A pessoa Frida Kahlo é, também,
ções traumáticas: “o trauma” tal como defi‑ um exemplo de reacção ao trauma através da
nido por Freud, localizável no tempo e com os criação artística: inicialmente numa relação
seus aspectos metapsicológicos, e o “trauma falhada com a figura materna e logo a seguir
acumulativo”, resultante de microtraumas‑ pelo sofrimento com a poliomielite, aos seis
tismos decorrentes – sobretudo – da falha da anos. Em 1925 sofre um acidente de viação, no
mãe como “escudo protector”7. qual parte a bacia e traumatiza a coluna ver‑
Masud Khan desenvolve a concepção de que a tebral, além de sofrer vários outros ferimentos,
mãe exerce uma função de escudo protector inclusive nos órgãos genitais.
do seu bebé, observação que, de certa forma, Durante a prolongada convalescença começa a
já havia sido feita por Freud7. pintar. O acidente determinou que Frida reali‑
As distorções do ego que se originam do trau‑ zasse dezenas de cirurgias ao longo da sua vida.
ma acumulativo, isto é, resultantes do fracasso Esses ferimentos criaram dificuldades para que
da mãe na sua função de escudo protector, e as a pintora conseguisse engravidar. Sofreu vários
consequentes invasões na emergente integração abortos que foram de certa forma representados
do ego da criança, tornam‑se perceptíveis, ao que em desenhos e quadros, como aparece na lito‑
Freud chamou de “inconsistências, excentricida‑ grafia “Frida y el aborto o El aborto”.
des e loucuras dos homens”, um tipo de distúrbio A vida amorosa de Frida com Diogo Rivera,
de carácter e personalidade que, com frequência, conhecido pintor e seu marido, também se
são compatíveis com uma “vida normal”, ou ao caracterizou por situações de ruptura e so‑
que Winnicott13 determinou falso self. frimento. Vivendo e criando intensamente,
Frida Kahlo é hoje uma das mais significativas principalmente nos momentos de maior dor,
pintoras da América e os seus quadros figuram Frida Kahlo conseguiu ser e deixar a sua vida
nos mais importantes museus. A sua produção marcada na história das artes e dos homens.
artística representa, na maioria das vezes, as Magdalena Cármen Frida Kahlo y Calderón, nas‑
suas vivências pessoais de uma forma explícita e ceu no dia 6 de Julho, em Coyoacán, próximo da
Cidade do México. Posteriormente mudou a sua rem que tenha havido uma falha na função
data de nascimento apenas para 1910, a fim de da mãe da artista como “escudo protector”, no
prestar uma homenagem à Revolução Mexicana. sentido freudiano desse conceito, ocasionando
“Os seus pais foram Matilde Calderón Y o que Masud Khan considerou como “trauma
González, católica e mestiça, e Guilhermo acumulativo”. Várias outras produções pictóri‑
Kahlo, fotógrafo, judeu, descendente de ale‑ cas também são sugestivas para corroborar esta
mães austro‑húngaros. Foi a terceira filha hipótese: entre elas podemos referir Mi naci‑
do casal, depois de Matilde Júnior e Adriana. miento o Nacimiento, em que a cabeça da mãe
A sua mãe engravidou novamente quando está coberta por um pano, alusão à morte da
Frida tinha dois meses e então nasceu Cristi‑ mãe que coincide com a pintura do quadro, e a
na. Frida foi entregue aos cuidados de uma cabeça do feto expressa dor e sofrimento.
ama‑de‑leite‑índia, ‘que cheirava a pão de Outro aspecto importante que reforça a hipóte‑
milho e sabão, não falava muito mas can‑ se da falha da mãe como “escudo protector” é a
tava canções da sua terra, do Yucatan…”7. excessiva ligação de Frida com a figura paterna.
Numa entrevista com a crítica de arte Raquel Numa foto de 1926, vemos Frida junto da sua
Tibol, a artista contou factos da sua infância mãe e irmãs, vestida como um homem, revelan‑
relacionados com a sua mãe: “ A minha mãe do – talvez – uma dificuldade com a identifica‑
não me pôde amamentar porque quando ção materna e um forte complexo masculino. So‑
eu tinha onze meses nasceu a minha irmã bre o pai ela escreve num quadro pintado em sua
Cristina. Aleitou‑me uma ama a quem la‑ homenagem (1951): “Pintei o meu pai Wilhelm
vavam os seios cada vez que eu ia sugá Kahlo, de origem húngaro – alemã, artista fo‑
‑los. Num dos quadros estou eu, com cara tógrafo de profissão, de carácter generoso, in‑
de mulher e corpo de bebé, nos braços da teligente e fino, valente porque sofreu durante
minha ama, enquanto dos seus seios o leite sessenta anos de epilepsia, porém jamais dei‑
cai como do céu”7. A pintora refere‑se ao qua‑ xou de trabalhar e lutou, com fervor, contra
dro Mi nana y yo o Yo mamando. Parece, Hitler…Sua filha Frida Kahlo”7.
pela obra, reflectir uma relação fria, distante, O pai de Frida foi um fotógrafo retratista e po‑
sem contacto visual, com a ama, que apresen‑ demos ver que ela seguiu o mesmo caminho,
ta uma máscara negra de pedra. Frida Kahlo não com a máquina fotográfica, mas com os
considerava este quadro como um dos seus seus lápis e pincéis, retratando tanto a si pró‑
trabalhos mais fortes. pria (os seus trabalhos mais significativos são
As informações contidas nesse relato assim auto‑retratos) como aos outros.
como a pintura da relação de amamentação, Até agora as nossas observações disseram res‑
na obra Mi nana y Yo o Yo mamando, suge‑ peito ao “trauma acumulativo”, resultante da
recusa do público face à arte abstracta. Recusa tra organização enfraquecida”. Prótese, dor,
e escândalo também nas reacções às obras de violência, mas também subversão, mudança,
Bacon e Frida. reverberação, comunicação, criação.
Há um carácter de necessidade na sublima‑
ção. “Não somos nós, em primeiro lugar, Voltando à clínica, D. Kaswin – Bonnefond17
guiados pela necessidade de organização, fala‑nos na transferência negativa onde
de modelo, de coerência interior, por esta as pulsões se processam num “para além do
necessidade de base que nos leva a desco‑ princípio do prazer”, na compulsão à repeti‑
brir a identidade na diferença, sem a qual ção. A experiência de dor suscita o desinvesti‑
a experiência se torna um caos”16. Mas é pre‑ mento “desobjectalizante”.
cisamente o caos inaugural, a ausência de co‑ Bion, no seu conceito de ataque aos vínculos,
erência, essa inorganização primeira e primá‑ fala de um desastre primitivo e de uma catás‑
ria, fundadora e fundida, que Bacon e Frida trofe permanente que não pode ser resolvida.
representam, colocando‑nos numa viagem ao Desligamento na tentativa de destruir o ór‑
centro da terra, para o interior mais interior gão que sente a dor, como já falámos atrás
de cada um de nós. a propósito destes criadores. Quando as ex‑
Segundo Mancia8 é necessário que a criança periências com o objecto materno são más,
tenha ao seu lado uma mãe viva, que lhe me‑ um violento desinvestimento pode varrer a
tabolize as angústias, e não uma mãe morta memória da experiência e, no lugar da sa‑
– “objecto inanimado, deprimido, átono, tisfação alucinatória do desejo, emergir uma
insensível, distante”. Pelo que “a ‘mãe mor‑ realização alucinatória da dor14.
ta’ é essencialmente um objecto de desilusão Não é assim nas obras destes dois pintores?
para a criança, um objecto trauma que o É a repetida experiência de ruptura, do sen‑
obrigará a criar os seus próprios objectos sorial caótico, da tragédia, da penetração na
protéticos”. Questão que lembra alguns dos violência, é a pulsão pura que é expulsa e ex‑
dados que sabemos terem estado presentes/au‑ tinta. É a carne sem película, a película sem
sentes nas vidas destes dois pintores, e que são carne. O informe violento, a violência da for‑
espelhados, sem disfarces, nos seus trabalhos. ma. É a estética da subversão e da violência
P. Luquet11 refere como no caso da arte em nas obras de Frida Kahlo e de Francis Bacon.
sujeitos com patologia “a arte é, frequente‑ Estética da sensação, do corpo‑a‑corpo, da
mente, o último recurso que mantém, ‘em palavra devolvida à matéria.
vida psíquica’, sujeitos pré‑psicóticos. A fun‑
ção estética pode tornar‑se uma das bases Se encontramos em comum estas dimen‑
da estrutura do ego que substitui uma ou‑ sões em ambos os artistas, as diferenças