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CANEVACCI, Massimo.

Antropologia do cinema: do mito à indústria


cultural. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 1990. 175 p. ISBN
8511220038.

Página 01

Antropologia do cinema.

Página 02

Leituras Afins

Cineastas e Imagens do Povo


Jean – Claude Bernardet

Cinema Marginal (1968-1973)


Fernão Ramos

Os filmes de Kurosawa
Donald Richie

Hitchocock Truffaut

Entrevistas
François Truffaut

Hollywood
Entrevistas
Michel Ciment

A Imagem – Tempo
Cinema 1

Gilles Deleuze
A Imagem – Tempo

Cinema 2

Gilles Deleuze

A Linguagem Cinematográfica

Marcel Martin

Sertão Mar
Glauber Rocha e a estética da fome
Ismail Xavier

Página 03

Massimo Canevacci

ANTROPOLOGIA DO CINEMA

DO MITO À INDÚSTRIA CULTURAL

Tradução:
Carlos Nelson Coutinho

2º edição
revista e ampliada

editora brasiliense

Página 04

Copyright © by Massimo Canevaccim 1988


Título original em italiano: Antropologia del Cinema
Copyright da tradução brasileira: Editora Brasiliense S.A.
Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistemas
eletrônicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer
sem autorização prévia do editor.

ISBN: 85-11-22003-8
Primavera edição, 1984
2ª edição, revista e ampliada, 1990

Preparação de originais: Frederico G. Carotti


Copydesc: Francisco José M. Couto
Revisão: Maurício Bichara e Rosemery C. Machado
Capa: Ettore Bottini

Rua da Consolação, 2697


01416 São Paulo SP
Fone (011) 280-1222 – Telex: 11 33271 DBLM BR

Impresso no Brasil.

Página 05

Sumário

A ideologia, a hipo-estrutura e o cinema - 7


O “espírito” do cinema - 31
O gênero - 77
Antropomorfismo, fisionômica, cinecentrismo - 87
O riso - 109
O comportamento - 131
Conclusões: Pneuma mimético -157

Página 06: Em branco.


Página 07

A ideologia, a hipo-estrutura e o cinema

“Durante séculos, a humanidade preparou-se para Victor Mature e Mickey


Rooney.”
Adorno-Horkheimer

Introdução sobre a arcaicidade e a historicidade da ideologia

Nos planos da especulação tanto metafísica quanto racionalista, houve sempre


a obsessão de um controle forçosa- mente universal das camadas sociais
antagônicas às classes dominantes, em cada oportunidade, assim como dos
indivíduos singulares. Esse é o problema da ideologia, cuja essência mais
íntima é freqüentemente mal-entendida: ou seja, a ideologia é geralmente
considerada como uma consciência “falsa”, entendendo-se com isso uma
concepção do mundo errada, equivocada e, portanto, “irreal”, sem nenhuma
relação de verdade com a Concreticidade do próprio mundo. Ao contrário, o
que havia de falso na ideologia — e ainda há — é a pretensão de
universalidade, que tenta representar puras visões do mundo de toda a

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humanidade como algo socialmente realizado. Essa pretensão de absoluto,


que de resto teve mais sucesso do que se pensa, pôde conquistar seu objetivo
somente mediante a arte de esconder a sua intrínseca natureza de classe, ou,
melhor, de parte. A ideologia é uma particularidade facciosa que tem a ambição
de desenvolver uma hegemonia universal, a fim de exercer uma função de
controle no terreno da cultura e de poder em face da totalidade das pessoas às
quais se dirige, sem nenhuma exceção. Aliás, ela é obrigada a isso, na medida
em que alcança uma plena satisfação, adequada ao seu conceito e à sua
utilidade, somente quando realiza esse movimento dialético total e, ao mesmo
tempo, quando o esconde com o máximo cuidado’.
Por isso, a ideologia — mesmo sendo “falsa” (e, aliás, precisamente por isso)
— é prãxis concreta de classe e de parte, que, a partir do terreno das idéias,
atua sobre as relações sociais e culturais em seu mais vasto significado
antropológico. Essa relação social — a ideologia — tem uma origem material
arcaica, que penetra do interior do pensamento mágico e mitológico; para
compreender isso, é preciso que se deixe de confundir esse conceito de
“material” com algo brutalmente físico, mas se estenda a noção ao conjunto
das conexões histórico-estruturais e psicoculturais, também de tipo simbólico.

S é verdade que a origem do termo “ideologia” pode ser datada historicamente


no interior da dinâmica da Revolução Francesa — e, em certo sentido, é seu
resultado mais puro e “espiritual” —, isso não quer dizer que foi a era burguesa,
nos locais e nos tempos de seu máximo heroísmo, que inventou, por assim
dizer, essa questão 2 A ideologia, portanto, não é absoluta, como o pretendem
muitos “materialismos” que a ligam apenas à burguesia, ou tantos “idealismos”
que a consideram uma condição perene do ser humano: ao contrário, é algo
que se transforma

Nota de rodapé

1. Como veremos mais detalhadamente em seguida, essa acepção do conceito


de ideologia torna-a singularmente afim ao Conceito de máscara, tal como, em
particular, esse último foi desenvolvido num interessante ensaio de Alessandro
Fontana. Assim, a máscara ao mesmo tempo mostra e esconde, numa figura
ambígua e inapreensível, o não-dito do discurso, o não-enunciável da história,
aquilo que a razão nega, recusa ou rechaça” (“La scena”, em Storia d’Italia, vol.
1, Turim, Einaudi, 1972, p. 850).
2. É óbvio que a lei da gravidade existia antes de Newton, assim como a lei da
relatividade existia antes de Einstein.

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historicamente. Por um lado, é necessário dilatar sua invenção temporalmente,
a fim de situar seus inícios no interior das formas mais arcaicas da cultura
humana; por outro, seu uso atual se expande sociológica e psicologicamente,
envolvendo vários estratos sociais, que não mais podem ser definidos somente
com base em inserções específicas nas relações de produção. Finalmente,
essa dilatação do tempo, no interior da dimensão histórica e pré-histórica da
humanidade, e essa expansão no espaço, no interior da dimensão psicocultural
da atual sociedade, têm canais subterrâneos de comunicação através dos
quais o passado consegue influenciar o presente. O homem sempre teve
necessidade de ideologias, desde quando — com a afirmação da consciência
de si — contrapôs-se à natureza e aos outros homens, a fim de exercer sobre
ambos sua própria dominação.

Assim, a ideologia — mesmo não sendo redutível a uma lei de natureza,


apesar das ambições dos primeiros ideólogos (e dos últimos) — prolonga a
motivação mais profunda da sua origem até a oposição entre o homem social,
histórica, especificamente determinado, por um lado, e a natureza
objetivamente dada, por outro. Natureza com angústia, como aquele “outro”
irredutível que deve ser domado, controlado, tornado funcional aos interesses
da civilização. Natureza que não é somente a objetividade externa, mas
também a que é interior ao homem, o qual, em seus esforços para dobrar a
natureza às suas próprias necessidades, dobra também a si mesmo.3 Desse
modo, as raízes da ideologia mergulham até a mais arcaica mitologia, que pela
primeira vez se colocou como tarefa a conexão entre explicação e dominação
da natureza, e daí se transferem para a religião, a filosofia, as ciências
humanas e sociais.

Nota de rodapé

3. Cf. o trabalho de A. Schmidt, ii concetto di natura in Marx, Bari, Laterza,


1969, Nele, a reconstrução não acadmica do pensamento de Mara sobre a
natureza chega à conclusão de que a rção entre história e natureza, entre
sujeito e objeto, não é uma relação entre entidades cindidas entre si, mas sim
mediatizadas pelas práxis.
4. Urna importante análise histórica sobre esse tema, que vai das origens ao
crepusculo dos idéologues, está em S. Moravia, Tramonto dell’Jlluminismo,
Bari, Laterza, 1966. Bem mais penetrante, contudo, de um ponto de vista
sociológico caracterizado por uma forte marca interdisciplinar, é toda a obra da
escola de Frankfurt, para a qual o estudo da ideologia é uma constante difusa
em toda Pesquisa ou reflexão, Mais sistemático é o capítulo sobre a ideologia
das Lezioni di sociologia, do Instituto para a Pesquisa Social de Frankfurt,
editadas por

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Os ideólogos franceses — les idéologues4 — afirmavam que se deveria aplicar


também à ciência das idéias aquele mesmo rigor científico que, no século
XVIII, estava sendo cada vez mais aplicado a qualquer ramo da ciência da
natureza, para com isso realizar a mesma otimização de resultados
“cientificamente objetivos”. A ideologia — para Destutt de Tracy, inventor do
termo e um dos maiores idéologues — deve ser uma parte da zoologia e da
botânica.5 Aplicando matemática e física aos produtos das idéias, pode-se
finalmente chegar a uma objetividade universalmente aceita, que suceda à
“superstição” religiosa. O aspecto progressista desse materialismo sensualista
reside no fato de que, embora não faça distinções entre músculos, plantas e
idéias, afasta essas últimas — ou pretende afastálas — da sua suposta origem
metafísica. Desse modo, as idéias
— consideradas não mais divinamente criadas e, portanto, em certa medida,
algo sempre incontrolável por causa da sua origem transcendente — tornam-se
todas elas socialmente utilizáveis e fungíveis, sob a jurisdição da racionalidade
laica. E, todavia, essa utopia zoológica (que, entre outras coisas, diz muito
sobre os aspectos mais revolucionários do espírito burguês) foi vista com
suspeita por aquele mesmo poder que, desembocando no bonapartismo,
encarou como um perigo essa tentativa “objetiva” empiricamente projetada.
Assim, por mais moderados que fossem os idéologues — com relação, por
Adorno e Horkheimer, Turim, Einaudi, 1966, pp. 147-166 (ed. brasileira: M.
Horkheimer e T. Adorno (orgs.), Temas básicos da sociologia, São Paulo,
Cultrix, 1973, pp. 184-204).
Nota de rodapé

5. Destutt de Tracy, Eléments d’idéologie, Bruxelas, 1826; cf.


AdornoHorkheimer, Lezioni di sociologia, op. cit.: “O termo ‘ideologia’ deve-se a
um dos maiores fdéologues, Destutt de Tracy. Vincula-se ao empirismo
filosófico, que atomiza o espírito humano para esclarecer o mecanismo do
conhecimento e relacioná-lo com os critérios da verdade e adequação do
pensamento, mas a intenção de Destutt de Tracy não é nem gnosiológica nem
formal: ele não busca no espírito as simples condições de validade dos juízos,
mas quer chegar até a observação dos próprios conteúdos da consciência, até
os fenômenos ideais, decompô-los e descrevê-los tal como se faz no caso dos
objetos naturais (como, por exemplo, um mineral ou uma planta). A ideologia —
escreveu ele, de certa feita, com formulação intencionalmente provocativa — é
uma parte da zoologia” (ibidem pp. 208-209). E ainda: “A sua ciência das idéias
— a ideologia — deve alcançar certeza e segurança semelhantes ás da
matemática e da física; o rigor metodológico da ciência deverá pôr termo, de
uma vez por todas, à arbitrariedade e à variabilidade indiferente das opiniões”
(ibidem).

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exemplo, ao radicalismo dos “iguais” —, também eles foram postos fora da lei.6

A miséria da burguesia reside nisto: ela conseguiu chegar aos conceitos de


liberdade, justiça, igualdade, a usá-los para seus próprios interesses de classe
(ou seja, de absoluta parcialidade), mas foi imediatamente obrigada a bloquear
aquele movimento histórico-social que, de sua parte, levara a sério esses
conceitos, pretendendo sua imediata realização material. A paralisia e a
posterior reprivatização dos conceitos de liberdade, felicidade, etc., obrigou
assim tanto o pensamento quanto o Estado burguês a fazerem um acordo com
as formas pré-capitalistas da ideologia, em particular com a religião. Com
efeito, essa é uma forma de ideologia mais complexa do que a propriamente
burguesa, na medida em que tem uma elasticidade interior que lhe permite
adequar-se a modos de produção muito diversos entre si (especialmente
quando é depurada de seus próprios “peca- dos” temporais), qualidade que
provém em grande parte do fato de ter resolvido, mais do que qualquer outra
ideologia, a questão universal da morte, que o materialismo se obstina em
liquidar como um dado inelutável e “normal”. Além disso, a religião desloca a
conciliação entre conceito e realidade para o Apocalipse, ou, mais banalmente,
para o Reino dos Céus: por isso a felicidade — negada explicitamente neste
mundo — pode continuar a existir no outro. E, precisamente por causa dessa
defasagem, a ideologia burguesa — cujos interesses são todos profanos —
conseguirá inicialmente quebrar a hegemonia religiosa. Por isso, é “lógico” que
a clareza terminológica e projetual da ideologia nasça somente na era da
revolução burguesa, e que

Nota de rodapé

6. Diz Napoleão, numa passagem citada por Pareto: “É à ideologia, essa


tenebrosa metafísica que, investigando com sutileza as causas primeiras, visa
a fundar a partir delas a legislação dos povos, ao invés de adequar as leis ao
conhecimento do coração humano e às lições da história, que se devem
remontar todas as desgraças sofridas pela nossa bela França. Esses erros
deviam levar — e efetivamente levaram — ao regime dos sanguinários. Com
efeito, quem proclamou o princípio da insurreição como um dever? Quem
aduloú o povo, proclamando- lhe urna soberania que ele é incapaz de exercer?
Quem destruiu a santidade e o respeito pelas leis, fazendo-as depender não
dos sagrados princípios da justiça, da natureza das coisas e do ordenamento
civil, mas apenas da vontade de uma assembléia composta por homens
alheios aos conhecimentos das leis civis, criminais, administrativas, políticas e
militares?” (cit. em V. Pareto, Tratatto di sociologia generale, Milão, Comunità,
vol. II, S 1793, nota).

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sua aporia insolúvel resida em tornar pública a verdade (como a igualdade) e,


imediatamente depois, reprimi-la. Desse modo, não realizando a utopia de
universalidade objetiva segundo suas intenções, a ideologia regride cada vez
mais a ser justificação, terminando por se aliar com a mais velha e desgastada
religião.

O destino da ideologia será o de não ser jamais completamente verdadeira,


nem, ao contrário, completamente falsa. Isso significa que não é certamente
falso o conceito de liberdade, mas também que não é certamente verdadeira a
sua realização histórica. As ideologias “podem ser verdadeiras ‘em si’, como o
são as idéias de liberdade, de humanidade, de justiça, mas não são
verdadeiras na medida em que têm a pretensão de já serem realizadas” 7.

Em conclusão, a essência da ideologia deve ser estendida e articulada com o


conjunto das conexões histórico-sociais e psicoculturais, que não se referem
apenas à dimensão ontogenética do indivíduo singular, biológica e socialmente
determinado, com suas articulações dicotômicas relativas à estrutura de classe,
às relações de produção, à divisão do trabalho, mas também com a dimensão
filogenética (pouco materialisticamente ignorada pelo materialismo), relativa à
gênese da espécie, à dialética sujeito-objeto, assim como esta se constituiu
desde a mais arcaica humanização do homem, quando se cindiu e se
contrapôs ao resto do mundo animal.8 Aliás, pode-se definir a pergunta sobre a
origem do homem, a sua finalidade e o seu fim como a pergunta das
perguntas, que se reproduz em cada geração, independentemente dos
diversos modos de produção, e que coloca todas as

Nota de rodapé

7. Adorno-Horkheimer (eds.), Lezioni di sociologia, op. cit. p. 221. E mais: “a


ideologia, com efeito, éjusqficação” (ibidem p. 212). O grifo é dos autores.
8. “Se quiséssemos datar mais especificamente a gênese do homem,
escolheríamos o momento em que, entre os mamíferos, a família dos
homínidas distingui-se das outras famílias da ordem dos primatas. Essa
separação dos caminhos genéticos assinala um ponto do qual não mais se
retrocederá. Para os homínidas, ela eliminou a possibilidade de se tornarem
hylobatidae (por exemplo, gibões) ou pongidae (por exemplo, orangotangos,
chimpanzés, gorilas). Uma vez que os progenitores dos homínidas superaram
essa bifurcação (e a superaram tomando precisamente o caminho dos
homínidas), restaram-lhes apenas duas alternativas:
ou se tomavam humanos ou não conseguiriam sobreviver. Com efeito, o ónico
gênero da família dos homínidas que sobreviveu foi o gênero homo, e, no
interior do genus homo, a única espécie que ainda sobrevive é a do homo
sapien’ (A. J. Toynbee, Mankind and mother Eatrh, Oxford University Press,
1976; trad. italiana, II racconto dell’uomo, Milão, Garzanti, 1977, p. 32).

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condições com base nas quais qualquer resposta dada não pode deixar de ter
uma forma ideológica.9 Isso significa que a ideologia não é determinada
somente pelo capital, a partir do momento em que — conquistado o poder —
ele tem de controlar o trabalho assalariado: ao lado dessa origem, sob ela e,
em parte, dentro dela, pode-se entrever como algo cada vez mais autônomo e
essencial a ideologia originária, ligada tanto aos modos de produção pré-
capitalistas quanto à mais ampla relação homem-natureza, que se realiza como
dominação sobre a natureza, sobre os outros homens e sobre o próprio si
mesmo, Os sedimentos mágicos, mitológicos e rituais dessa extensão da
dominação chegaram, com toda a sua carga subversiva-regressiva, até nossos
dias, transfigurados na e pela moderna ideologia.

Talvez os próprios Marx e Engels tenham liquidado de modo muito apressado e


otimista aquela reprodução de ideologias que continua a ocorrer dentro desse
modo de produção, mas cuja origem — estando fora dele — remete àquela
relação homem-natureza que é mediatizada, mas não anulada, social- mente.
Por isso, as questões colocadas pela morte (que tinham sido enfrentadas pelo
materialismo antropológico de Feuerbach) ou pelo sexo (que o serão pela
psicanálise de Freud) não são determinadas apenas pelo sistema de produção.
Nem mesmo “em última instância”. O homem “natural” não é reassumido pelo
homem “social”, segundo o esquematismo sociológico imperante, assim como
tampouco ocorre o inverso, apesar das fixações de algumas escolas
etológicas.
Com relação aos problemas com que nos defrontamos nesta sociedade tardo-
capitalista, deve-se rechaçar a ilusão — também ela ideológica — segundo a
qual a ideologia seria o reflexo, ou “imediato” ou “dialético “, dos vários modos
de produção. Uma vez descoberto o truque — de resto, tão banal —, as
massas teriam de sair facilmente da “pré-história” para re

Nota de rodapé

9. Sobre essas questões, cf. Robin Fox (cd.), Biosocial anthropology,


Association of Social Anthropoiogist of Commonweafth, Londres, 1975, trad.
italiana, Antropologia biosociale, Roma, Armando, 1979. Deve-se ressaltar, em
particular, o conceito de “imprinting”, segundo o qual o organismo humano
parece ter penodos críticos para aprender certas coisas em determinados
momentos e não em outros. E ainda, C. S. Coon, The siory of mim, 1954 (trad.
italiana, Storia dell’uomo Milão, Garzantj, 1956), em particular a sua explicação
do mito de Pandora em relação à consciência da morte (pp. 78-79).

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tomar em suas mãos o próprio destino. Ao contrário, isso não ocorreu e jamais
ocorrerá, porque as coisas são mais complicadas: qualquer pessoa de
escolarização recente é capaz de pronunciar uma filípica contra a manipulação
de massa com a mesma seriedade ritual com que outrora recitava o ato da dor.
E, todavia, a manipulação continua a se difundir hierarquicamente sem
obstáculos.

A denúncia apenas histórico-estrutural da ideologia é, por sua vez, ideológica.


Trabalha astuciosamente para reforçar a dominação que se tornou cada vez
mais complexa e difusa em comparação com a clareza dicotômica do tipo
“operário e capital” de oitocentista memória (se é que alguma vez o foi).’° A
indignação contra a manipulação é o último “scoop “patrocinado pela
ideologia.’1 Por isso, o confinamento prescrito para as ideologias no limbo das
superestruturas — como se elas recusassem tanto o status de carne somente
pecadora quanto o de alma inteiramente santa — deve ser considerado sempre
como destino definitivo, de onde é presumível que não deverão jamais sair
materialisticamente purificadas, e, menos ainda, espiritualisticamente. E isso
porque a superestrutura jamais foi apenas superestrutural, assim como a
estrutura nunca foi apenas estrutural. Essa verdade é ainda mais evidente na
era da unificação pós- industrial. Assim, a afirmação segundo a qual somente
quando se realizar a socialização da produção será possível falar de libertação
e de felicidade é a mais vulgar das ideologias que a esquerda “histórica”
produziu, e que conseguiu, com pleno êxito,

Nota de rodapé

10. M. TronO, Operai e capitale, Turim, Einaudi, 1966, p. 33. Essa análise é
interessante no que se refere à justiça da regressão ideológica do movimento
operário (“Marx não é a ideologia do movimento operário: é sua teoria
revolucionária”, p. 34); mas esquece de dizer que foi precisamente Lênin quem
usou o conceito (e não apenas a palavra) de ideologia em seu significado à
Destutt de Tracy, o qual se estendeu depois a todo o pensamento “terceiro-
internacionalista”. Em segundo lugar, esquece que a ideologia como
mistificação e justificação está presente tanto nas formas de produção pré-
capitalistas como no corpo da classe operária. Cf. Lênin, Chefare?, Roma,
Editori Riuniti, 1968, em particular p. 73 (cd. brasileira: Que fazer?, in Lênin,
Obras escolhidas, São Paulo, Alfa Omega, tomo 1, 1979), onde o editor, numa
nota de rodapé, na tentativa de solucionar a aporia leniniana, agrava-a ainda
mais.
11. Cf. o astucioso sucesso, com quatro Oscar, de um filme vulgar como Rede
de intrigas, que não casualmente realizou o verdadeiro objetivo para o qual fora
“imaginado”, com reapresentaçóes non-stop em todo o sistema de redes de
televisão norte-americanas, graças ao seu altíssimo “índice de audiência”.

Página 15
fazer com que se tornasse herança da esquerda “nova”. Tal afirmação é mais
reacionária — em seu determinismo positivista — do que as piores metafísicas,
as quais, pelo menos, continuam a se enganar na ilusão de que algo diverso
deverá de qualquer modo existir além dessa vida. Na era da comunicação de
massa, a ideologia perde aquela sua essência, que era característica de seu
significado e de sua função nos anos progressistas da burguesia, inclusive
graças à facilidade irrisória com a qual os mass media (em particular o cinema)
penetram na psique humana, posta na condição mais literal de espectadora.

A ideologia se petrifica. Sua moldura utópica cai progressivamente; a


adequação às condições de existência dadas é a única possibilidade prevista,
exceto os desvios, que são ou suportados ou domesticados. Essa adequação
não é mais buscada pelas classes dominantes mediante a dominação explícita,
porém cada vez mais — na medida em que isso seja compatível
— tentando conquistar a psique das subjetividades que se coloca em oposição
através da difusão de novas formas “conciliadoras” da “espiritualidade
burguesa”. O exercício do controle indireto alia-se facilmente às zonas mais
secretas do id (contra o qual, outrora, dirigia-se apenas uma função
repressora), através da organização eficiente do agente do comando social
dentro do indivíduo que é o superego. Na sociedade contemporânea, o
superego torna-se cada vez mais ambíguo, como se fizesse um duplo jogo: por
um lado, como a tradição, pressiona o ego a reprimir o id, por outro, induz à
libertação de instâncias incontroláveis para melhor dominar o próprio ego.
Segundo Reimut Reiche, algumas tendências repressoras de dessublimação,
que nascem do superego coletivo e alienado, estabelecem uma “execrável
aliança” com algumas inundações pulsionais: “A situação que é assim
proposta, pelo menos em parte, é bastante inédita tanto para a psicanálise
teórica e prática quanto para a luta política. o superego alienado e fragmentario
se une com as unidades infantis do id, para criar uma frente única contra o ego,
uma frente diante da qual este rapidamente terá de ceder”2
12. R. Reiche, Sessualitá e lotta di classe, Bari, Laterza, 1969, pp. 202-203. O
texto, Infelizmente esgotado há tempos, tem ainda notável importância para a
investigação da práxis sexual no capitalismo avançado.
Página 16

O ego contemporâneo, portanto, tende a perder sua função clássica de


mediação entre id, superego e mundo exterior. Quanto mais razoavelmente
irracional se torna a sociedade, tanto mais o superego se adequa a ela e cada
vez menos autônomo o ego se torna. Essa aliança entre superego e id, entre
sociedade e pulsão, subverte o velho conceito de “interioridade”. A nova
ideologia convence mais porque não parece — por assim dizer — carnívora,
mas vegetariana; como um Fausto moderno, ela envolve o corpo somente para
conquistar a alma. Tem como objetivo não só a desarticulação da estrutura de
classe, mas também a capitulação da autonomia individual a fim de produzir
uma eficiente debilidade coletiva do ego, na medida em que o novo “espírito
capitalista” prefere alimentar-se das “entranhas” de quem enxerga como
antagonista (ou que poderia se tornar tal). Também isso difere do passado. Em
conexão com o superpoder da indústria cultural, medium universal da ideologia
pós-industrial, esta última obtém uma adesão mimética e narcisista com um
estilo prático e asséptico. Nenhum ideólogo e nenhuma forma de ideologia
buscam mais, como no passado, objetividade; as tensões universalistas do
passado heróico cedem lugar à operacionalidade fungível e à comunicação
ampliada. Não são mais as idéias das classes dominantes que são
dominantes; e isso não apenas por causa da decadência e da inutilidade das
idéias produzidas por essas classes, mas essencialmente porque as idéias
parecem ser geradas a partir do interior das mercadorias e situar-se sobre elas.
Tal como Atena nasceu da cabeça de Zeus, a ideologia brota do espírito interior
das mercadorias, O modelo é a partenogênese: o mito parece realizar-se nas
reificações.
Por um lado, a produção de mercadorias é também produção de ideologia; por
outro, a produção de ideologia contém sempre o momento formal das
mercadorias em seu “corpo”. Mudando sua própria natureza, a ideologia já não
organiza tanto a adesão ao consumo existente, mas se tornou sobretudo
mercadoria entre as mercadorias; foi subsumida à produção de valor, no
sentido de que se produzem mercadorias-ideologias como se produzem
televisões e blue-jeans. Pode-se dizer quer a ideologia realiza mais
intensamente a finalidade para a qual foi forjada no capitalismo na medida em
que se reflca ou simplesmente

Página 17

mente se objetiva.13 O sucesso das mercadorias-ideologias é o melhor


impulso da produção ao consumo, à ideologia das mercadorias. E, desse
modo, também as mercadorias — os produtos mais materialistas do
capitalismo — sofrem um processo de “espiritualização”, essa nova relação
histórica entre mercadorias e ideologia, numa espécie de viagem antropológica
que não elimina as etapas precedentes, mas as conserva todas com seus
efeitos específicos, articula-se com a própria origem da ideologia: a contradição
entre sujeito e objetd4. No interior dessa contradição das contradições, as
subjetiva ções, ou seja, o processo entre mutações natural-culturais através do
qual os indivíduos se estratificam em classes, sexos, raças, idades, etc.,
interagem com as objetivações, isto é, com os processos materiais de
intercâmbio orgânico do homem com a natureza. Essa dialética total foi
ignorada, removida, censurada. Dissemos que a ideologia consiste numa falsa
consciência que tem a ambição de definir o universal, quando, na realidade,
esconde não só precisos interesses de classe, mas também desejos,
necessidades, tensões culturais de grupos humanos genéricos (ou seja,
enquanto parte do gênero humano). Portanto, ela não é própria apenas do
capitalismo, mas também das pretensões de controle do universal através ou
de estratos organizados ou de individualidades singulares. Aliás, o modelo
originário da ideologia, que pretende sujeitar o todo à parte, é aquele
experimentado na infância — e mesmo antes dela. A restauração da
onipotência originária, na

13. Na sociedade atual, entrou em decadência a antiga função da ideologia;


por isso, é necessária sua reformulação, adequada à transformação do
conceito: “A falsa consciência, socialmente condicionada, de hoje não é mais
espírito objetivo (...); ao contrário, trata-se de algo cientificamente adaptado à
sociedade. Essa adaptação se opera mediante os produtos da indústria
cultural: cinema, revistas, jornais ilustrados, rádio, televisão, literatura de
grande difusão dos mais variados tipos, entre os quais têm um papel especial
as biografias romanceadas” (AdornoHorkheimer, Lezioni di sociologia, op. cit. p.
223).
14. A ideologia alemã deveria ser menos “alemã” e mais crítica da ideologia em
geral, tal como era afirmado no primeiro capítulo de Die Deustche ideologie,
Roma, Editorj Riuniti, 1958. Em particular, a relação de Marx e Engels com
Feuerbach deve ser reavaliada. Seria um importante objeto de pesquisa a
dialética real entre materialismo antropológico e crítica da economia política
(trabalho que, em parte, já foi iniciado por A. Schmidt em II materialismo
antropologico di L. Feuerbacb, Bari, De Donato, 1975). Muito facilmente se
pensou que essa última Critica” pudesse conter, em sua parcialidade, a solução
total para a libertação dos indivíduos das classes ou das etnias.

Página 18

qual a criança é o único centro e tudo o mais é periferia a seu serviço, é o


modelo primário de toda ideologia, inclusive daquela que põe o espírito do
capital como onipotente e eterno.

A história dos vários modos de produção, em particular deste último, interage


com a natureza da “natureza”, tanto externa quanto interna ao homem, vizinha
e passada, similar e diferente. O campo da pesquisa sobre a ideologia, do
ponto de vista crítico da transformação, não pode se esgotar na esfera da
ontogênese, mas deve enfrentar toda a perspectiva ecológica. Se a ideologia
encontra sua razão de ser inicial a partir da cisão entre sujeito e objeto (e já
que tal drama é vivido por cada indivíduo singular a partir de sua fecundação),
a formação ontogenética do homem, ou seja, o seu ser individual e
historicamente determinado aqui e agora, deve relacionar-se com a fundação
filogenética da espécie, ou seja, com sua constituição enquanto Homo sapiens.

Hipo-estrutura e cinema: a dialética antropológica “triádica”

Para realizar tal dialética entre conceito de natureza e consciência crítica, é


necessário um novo materialismo, que leve até o fim a autocrítica do
materialismo legitimado. Dessa perspectiva, não só a ontogênese — isto é, o
componente subjetivo do indivíduo como exemplar da espécie — deve ser
posta no centro da práxis do ponto de vista da transformação social, mas
também a sua base filogenética, que mergulha suas raízes na própria
constituição da humanidade. Essa base funda uma hipo-estrutura tão
importante quanto as duas únicas consideradas pelo materialismo tradicional
(estrutura e superestrutura), muito mais complexa não só do ponto de vista de
sua transformação, mas também por causa das enormes dificuldades que
coloca para a modificação substancial do presente histórico. Com o conceito de
hipo-estrutura, entendemos o momento biológico-instintivo do homem em seus
aspectos comportamentais, ou seja, aquele patrimônio biopsíquico que não se
esgota na dimensão da natureza, segundo um enfoque metodológico pelo qual
ela só é o que é na medida

Página 19

em que é mediatizada por uma re1ção consciente ou inconsciente com o Homo


sapiens. O legado de memórias pré-capitalistas, de tipo instintivo-ritual, é
herdado, transformado, mas não anulado em sua validade originária — que
conserva sempre um determinado nível de autonomia — pela atual fase.
Marcuse — que em parte se aproximou da fixação desse conceito, mas que
não o explicitou — afirma, no capítulo sobre a Origem da clvilização repressiva
(filogênese), que a análise da estrutura psíquica “é obrigada a remontar para
além da primeira infância, indo da pré-história do indivíduo à da espécie’5”. Isso
para afirmar que a “civilização continua a ser determinada pela sua herança,
arcaica; e essa herança, segundo a afirmação de Freud, compreende não
apenas disposições, mas também conteúdos ideativos, traços de memória das
experiências passadas. As implicações dessa concepção são de amplo alcance
no que se refere ao método e à substância das ciências sociais’6”.

Essa sua tese — que, de resto, é normalmente negligenciada pelas ciências


sociais — tem precedentes também nas pesquisas efetuadas pelo Instituto de
Frankfurt sob a direção de Horkheimer. Num dos apontamentos e esboços da
Dialética do Iluminismo, intitulado “Interesse pelo corpo”, afirma-se que “sob a
história conhecida na Europa corre uma história subterrânea. Ela consiste no
destino dos instintos e das paixões humanas reprimidos e desfigurados pela
civilização’7”. No atual sistema cultural, volta à luz “o que está oculto”; e
“inclusive a história evidente aparece em sua relação com aquele lado noturno”
8, obrigando também a crítica progressista a tomar consciência dele, O caráter
subterrâneo dessa história é determinado essencialmente pela necessidade
social de exercer, através da divisão do trabalho, a mutilação de sua relação
com o corpo.

Nota de rodapé

15. H. Marcuse, Eros e civilità, Turim, Einaudi, 1964, p. 97 (ed. brasileira: Eros
ecwüização, Rio de Janeiro, Zahar, 1968).
16. Ibidem. A citação de Freud é extraída de L ‘uomo Mosé e la religione mono:
eista, Turjm, Boringhieri, 1977.
17. Adorno-Horkheimer, Dialettica dell’Illuminismo, Turim, Einaudi, 1966, p, 247.
A citação é exemplificativa das pesquisas sobre o anti-semitismo e o
autontansmo, que haviam imposto a necessidade de ter de “sair” também da
sociedade contemporânea para compreender a origem dos mesmos.
18. Ibide,n

Página 20

“O corpo, como o que é inferior e subjugado, é ainda ironizado e maltratado, e,


ao mesmo tempo, desejado como o que é proibido, reificado, alienado.
Somente a civilização conhece o corpo como uma coisa que pode ser
possuída, somente nela ele é separado do espírito — quintessência do poder e
do comando — como objeto, coisa morta, copus. Com a autodegradação do
homem a coipus, a natureza se vinga por ter sido degradada a objeto de
denominação, a matéria-prima”.19

Conceitos análogos — embora no interior de um sistema lógico diverso foram


desenvolvidos por Lévi-Strauss. Na introdução a uma série de escritos de M.
Mauss (que, por sua vez, já haviam influenciado Adorno e Horkheimer), e
referindo-se em particular ao texto sobre “As técnicas do corpo”, ele afirma que
a constituição de Arquivos internacionais das técnicas corporais, além de se
contrapor aos preconceitos raciais, forneceria “informações de uma riqueza
insuspeitada sobre migrações, contatos culturais e empréstimos, que se situam
num passado longínquo; e gestos aparentemente insignificantes, transmitidos
de geração em geração e protegidos por causa de sua própria irrelevância, dão
freqüentemente informações mais confiáveis do que as próprias jazidas
ideológicas ou monumentos erigidos”20.

Uma pesquisa arqueológica sobre os hábitos corporais na Europa e em outros


lugares poderia dar “ao historiador das culturas conhecimentos tão precisos
quanto os da pré-história ou da filologia”. E, desse modo, a antropologia
poderia voltar a ser “um sistema de interpretação que levasse em conta
simultaneamente os próprios aspectos físicos, fisiológicos, psíquicos e
sociológicos de todos os comportamentos”21.

“O fato social total, portanto, apresenta-se com um caráter tridimensional. Deve


fazer com que coincidam a dimensão propriamente sociológica com os seus
múltiplos aspectos sincrônicos, a dimensão histórica ou diacrônica e,
finalmente, a dimensão fisiopsicológica.”22
Mas essa colocação, embora apresente afinidades com a nossa — com a
explícita vontade de introduzir o lado psicofisio-

Nota de rodapé

19. Ibidem, p. 249.


20. C. Lévi-Strauss, “Introduzione” à Teoria generale deila magia, de M. Mauss,
Turim, Einaudi, 1965, p. XIX.
21. Ibidem, p. XXX
22. Ibidem.

Página 21
lógico ou biopsíquico no interior da pesquisa social (reflexos, secreções,
hábitos corporais, remoções orgânicas, representações individuais e coletivas
inconscientes e não só conscientes) —, afasta-se dela substancialmente, na
medida em que restringe a dimensão histórica a um só nível e a exclui da
dimensão sociológica e psicofisiológica. É o limite do estruturalismo, jamais
resolvido, que anula o ponto de vista da transformação consciente quase como
se a tarefa das ciências sociais fosse fazer com que o indivíduo e o coletivo
aderissem à aceitação das estruturas inconscientes. Ao contrário, a dimensão
histórica ou diacrônica está presente — ainda que com tempos e modos
diversos — nos três níveis.

Para a reconsideração do materialismo, a dialética dual revelou-se insuficiente


precisamente em seu mais íntimo objetivo, ou seja, no momento mesmo em
que a compreensão de um determinado aspecto da vida histórico-social
deveria significar também a colocação das bases para sua superação. Em seu
lugar, deve-se organizar teórica e praticamente uma dialética triãdica hpo-
supra-infra-estrutural única capaz de compreender a totalidade das articulações
humanas; e isso para evitar que, no momento decisivo da superação, a história
“secreta” das pulsões, do instinto, do inconsciente, dos traços de memória não
faça pagar o seu preço: sua desforra contra qualquer real ou hipotética
transformação estrutural-superestrutural. A possibilidade de afirmação dessa
dialética triádica tornou-se ainda mais difícil por causa da práxis concreta
somente estrutural (ou, de fato, dialética monista), que o economicismo
sociológico imperante impôs, fazendo com que já a palavra “superestrutura”
seja sinônima de secundário e inessencial. O método hipo-estrutural deve
irromper como objetivo articulável na perspectiva da práxis e da cultura, tendo
como referência uma dimensão que não se esgota inteiramente na pura vida
cotidiana, embora não esteja cindida dela. A relativa autonomia hipo-estrutural
da espécie é a grande ausente do materialismo sociológico, razão pela qual
este último tende a fracassar na realização de todas as suas premissas (e
promessas) criticas, todas as vezes que se faz poder positivo. Na voragem
determinada dessa ausência, sempre cultivaram seu reino impertubável ou a
ontologia, enquanto ciência da imutabilidade, ou, no melhor dos casos, a arte,
enquanto anticiência do eterno retorno. Ao contrário, com essa in-
Página 22

versão radical do materialismo, o ser humano pode se reconciliar com sua


essência, não mais dada como imutável no reino da forma, e ligada (quase
“sujada”) somente nas partes “inessenciais” à contingência histórica, apenas à
qual pertenceria a possibilidade de mudanças no sub-reino dos conteúdos. Ao
mesmo tempo, a antropologia pode escapar do círculo mágico de “ciência das
invariantes”, assim como experimentou a falência de ciência das “difusões
relativas”, das “evoluções unilineares” ou da “tautologia funcionalista”, para ser
refundada como principal ciência crítica que busca a compreensão na raiz da
contradição entre sujeito e objeto, entre produção e natureza, entre espécie e
cultura. E jamais para anular, ex-cathedra ou expolitburo, de tanto em tanto, um
desses pólos, mas sim para exaltar sua especificidade humana de vida, a
autonomia deles, assim como a sua dialética “triádica”, com a única finalidade
de superar os sistemas de dominação historicamente determinados e os
sistemas de mutilação arcaicamente constituídos.23

Do que foi dito, deduz-se que também para o cinema — máximo produtor de
ideologias mercantilizadas do século XX — vale a regra segundo a qual não
pode ser explicado nem no interior do sistema “cinema” (do cinema ao cinema,
através do qual se chegaria a nada menos do que o imaginário coletivo), nem
como desmascaramento inteiramente “politizado” das ignomínias executadas
em favor do sistema dos partidos (da política ao cinema), nem como recorrente
hipervalorização da “crítica da economia política”, que se ilude em poder
explicar o cinema através do simples desmascaramento das escolhas seletivas
do investimento pelo sistema de produção fílmica, como qualquer outra
atividade produtiva (da economia ao cinema). A estética no cinema — que
outrora, em seus melhores momentos, tentou uma síntese entre autonomia
fílmica, política progressista, crítica ao oligopólio das major companies — foi
reduzida ao “me agrada” ou ao seu contrário, “não me diz nada”, como afirma o
público distraído dos museus. A isso se reduziu o debate que teve lugar sobre o
“belo”: os profissionais da morte da arte, mal-entendida como apologia da
morte da “aura” e vitória da reprodutibilidade, acreditam ter de orientar os seus
“patroci-

Nota de rodapé

23. Um exemplo, para esse último caso, pode ser organizar a superação da
seleção que premia as mulheres que têm filhos.

Página 23

nadores” em favor da operosidade industrializada dos produtos em série.


Nesse sentido, a estética do filme, mesmo em seus melhores componentes
“críticos”, adequou-se ao modo de produção do cinema, à natureza de sua
ideologia, à cultura das invariantes.

A estética, cujo nome já remete ao sensível, foi transformada em


prolongamento das mesmas coisas reificadas das quais inutilmente, outrora,
tentavam se distanciar mediante a “crítica”. “Crítica” que, por sua vez,
sobrevive apenas como termo designador da profissão de jornalista,
inteiramente esvaziada de qualquer irredutibilidade ao poder constituído.

Estética do cinema e filme singular se fundiram na mesma identidade


ideológica. A paralisia da crítica deriva de ela não mais conseguir se desligar da
viscosidade de seu objeto, precisamente o cinema. Ela não consegue
compreender a mutação ocorrida na função da ideologia, agora mercantilizada
como qualquer “res” reprodutível. A crítica não mais se distancia do cinema,
porém se confunde cada vez mais com ele, tornando-se seu apêndice. Isso se
manifesta não só na parte “ingênua” da resenha, onde o crítico deve contar o
enredo, mas também na parte “técnica”, onde a presunção do juízo parece
ainda mais seguir a decifração da linguagem autônoma do filme na medida em
que é um prolongamento dele. Por sua vez, o leitor desencantado, bem
treinado desde criança no iogo da repetição, passa rapidamente a vista pelo
artigo com o umco objetivo de descobrir o “me agrada” (ou não) do crítico
conhecido. A crítica está agora domada pelas leis da distribuição, qúe, por sua
vez, estão sempre cada vez mais vinculadas às da produção. O “mínimo
garantido”, que o oligopólio dos cinemas metropolitanos que lançam um filme
pela primeira vez oferece ou recusa à produção de filmes que já sabe que
conseguirão o máximo coeficiente de utilização dos lugares para projeção,
tornou-se o não mais oculto financiador “de massa” e “de elite” do cinema
mundial, que zela pela imodificabilidade do “enredo garantido”. Finalmente,
quanto mais o filme custa, tanto mais a “crítica” está predisposta à apologia.
Não porque seja cormpta, como quer o moralismo de tipo conformista, mas
precisamente porque é o esplendor de investimentos e tecnologias a ser
irresistível. E, depois, não se pode brincar com a atual recessão, se não se
quer ser corresponsável pela demissão de outros profissionais do

Página 24

ramo. A crítica deve relaxar, e não ser muito exigente; assim, será possível sair
da crise cíclica sem rupturas e do modo já conhecido: com o fortalecimento dos
fortes.
Na refundação da crítica pode-se inserir a abordagem antropológica. Uma
antropologia filmica. O cinema deve ser reconsiderado globalmente, não
apenas em relação à conexão canônica estrutura/superestrutura, mas também
em face da terceira dinâmica, a hipo-estrutural. A triplicação dos planos
materiais remete à dialética que deve ser constituída — para cada filme, assim
como para o cinema em seu conjunto — entre: 1) estrutura do indivíduo e
estrutura da espécie; 2) composição de classe e composição de natureza; 3)
sistema de produção de valor e das mercadorias-ideologias.
A crítica antropológica, portanto, deve produzir uma síntese entre: 1) a crítica
interna às leis de movimento próprias do seu conceito de cinema, na
consideração da especificidade de suas técnicas, de sua morfologia estética24
e de sua produtividade de valor; 2) a crítica externa a todo não-cinema, tendo
em vista a reconsideração global de qualquer forma de expressão e sucessivas
ritualizações, incluindo o modo de vida cotidiano; 3) a crítica ao implícito, que
tem como referência particular, mas não exclusiva, a dinâmica hipo-estrutural.
Com esse termo, entende-se mais detalhadamente aquele complexo
hereditário, tanto biologicamente (no terreno dos instintos, das pulsões, do
inconsciente) quanto culturalmente (no terreno do comportamento vivido mas
não conhecido, cuja história é subterrânea, oculta entre as dobras do indivíduo,
da espécie e da história oficial). Ignorada pela dialética tradicional, essa
torrente hipo-estrutural tende constantemente a escapar do implícito e a impor
sua existência “pública” de modo cada vez mais dramático.
A crítica do cinema, como dialética entre uma nova sociologia da natureza e
uma nova antropologia da sociedade, deve explicar as formas — mediatizadas
histórica e ecologicamente
— da composição de classe e da composição da natureza, de
Nota de rodapé

24. Para evitar equívocos, é bom dizer imediatamente que a metodologia de


Propp sobre a fábula não é adequada a essa finalidade, como alguns
desejavam, por causa da ilusão formalista de aplicar ao estudo morfológico da
fábula (ou seja, a uma expressão da cultura humana) o mesmo cânone
“morfológico” usado para a botânica (cf. V. J. Propp, Morfologia deliafiaba,
Turim, Einaudi, 1966, p. 3). Como vimos, trata-se do erro mais clássico dos
idéologues.

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cujos interiora nasceram as representações miméticas: o mito, o teatro, a


fábula, a religião, o enredo romanesco, chegando até a forma-cinema.

Somente a globalidade radical, que vai até a separação originária entre o


homem e a natureza, para refazer o percurso das mutações dos fetiches, pode
compreender a máquina-cinema aqui e agora. E isso porque, em sincronia com
essa cisão, funda-se a mimese originária, cuja “lógica” sobrevive nas relativas
transfigurações, para se recompor ao lado e no interior do enigma do cinema.
Entre outras coisas, o cinema é — por sua “natureza” — antropológico, na
medida em que não lhe é estranha a possibilidade de representar qualquer
momento cultural da história do homem no espaço e no tempo, com um
envolvimento da percepção bem superior às anteriores formas de narração. O
enfoque globalista é próprio de sua “razão interna”, ou seja, tanto de sua
técnica como de seu espírito. Technai e Logos são agora sintéticos no cinema,
no sentido de unificados, serializados e descarnalizados pela reprodução em
laboratório (estúdios e exteriores). A crítica antropológica, portanto, deve tender
a quebrar a ligação que envolveu a crítica enquanto tal, fazendo dela um
prolongamento do tríptico ideologia-mercadoria-filme: ela deve alcançar o
máximo distanciamento possível em relação à obra singular e, ao mesmo
tempo, mergulhar as mãos — como os antigos arúspices — nas vísceras da
forma-cinema, até o último fotograma, a fim de compreender o enigma mítico
do seu poder de atração. Desse modo, a forma-cinema se apresenta como
uma totalidade cujos membra disiecta pela ideologia — e pelas infinitas
publicações especializadas — devem ser recompostos numa nova síntese,
porém não mais apenas com base na história do cinema, mas também na sua
“natureza”.

A representação mimética sempre se deu formas de duplicação, na medida em


que sua ambição consiste em reconciliar numa síntese mágica a separação
originária entre sujeito e objeto, que cada indivíduo revive em sua própria
experiência, assim como revive a identidade arcaica entre orgânico e
inorgânico. Trata-se, em última instância, do pressuposto daquela angústia
sintética entre classe e capital, entre trabalho vivo e trabalho morto, entre
mercadoria e indivíduo, exigida pelo atual modo de produção. Angústia sintética
que elimina toda diferença, numa

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identidade perversa, entre o ser humano e o ser das coisas. Desde sua origem,
as imagens pretenderam não apenas capturar, mas também ser a realidade. A
duplicação que o cinema produz
— capturando a consciência do espectador — deve ser interpretada a partir da
função originária exercida pela mimese, a qual, por assim dizer, refloresce em
todo filme singular. Também por isso, a ideologia do imaginário fílmico — como,
por bondade da lingüística, algo que é derivado do mesmo étimo “imagem”,
que caracteriza o filme e o seu duplo — é o último slogan adequado à
massificação escolarizada.
Toda mimese é uma tentativa de anular a cisão originária; e as imagens foram,
sempre, o instrumento da mimese para realizar sua ‘paixão”. Nas máscaras
funerárias dos reis de Micenas de dezesseis séculos antes de Cristo Centre as
quais a do célebre falso Agamênon), feitas com uma fina folha de ouro aplicada
à face do rei recém-morto, a fim de capturar através de uma mimese áurea a
imagem eterna a do indivíduo e subtrai-la à decomposição, fundem-se apesar
da imobilidade, que, de resto, já está presente em todo fotograma fixo — o
espírito e a técnica, a estrutura e a função, o significante e o significado, que
serão próprios, mutatis mutandis, da era das tecnologias reprodutíveis. A
atração que o fato de aparecer em um filme exerce — uma atração que
envolve aristocratas e proletários, burgueses e intelectuais — não deriva tanto
da sofisticação do desejo de se tornar momentaneamente público, mas da
crença de alcançar a imortalidade. Por isso, com justiça, o astro e a estrela são
assim chamados, e deles se diz que as obras (os filmes) lhes sobreviverão. E
esse é também o significado profundo de toda “identificação” do espectador,
enquanto transmissão e captura de papéis imortais.

O público dos espectadores é esmagado num status filo- genético e não resiste
à mimese conjugada com a rey’icação. Ele não é apenas reprimido numa
condição interciassista que prescinde de sua relação real com a produção;
porém, de modo mais profundo, sofre uma homogeneização enquanto espécie,
que elimina como supérfluos os resíduos da biografia.25 Em todo

Nota de rodapé

25. Esse é o limite da análise — sob outros aspectos ainda interessante — de


A. Hauser, Storia sociale dell’arte, Turim, Einaudi, 1955 (ed. brasileira: História
social da arte, São Paulo, Mestre Jou, 1967), sobre o cinema. Sobre o público
espectador não atua somente a estrutura ifimica, que o retira da classe à qual
real-

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filme, repercorre-se — no interior da psicologia, da natureza e da cultura do
espectador — toda a história das mimeses humanas, desde as objetivações
icônicas arcaicas até as inquietantes holografias feitas com laser, que
reproduzem toda a tridimensionalidade em movimento do corpo humano. O
mais agudo dos críticos não consegue deixar de se envolver — apesar de sua
extrema malícia e desencanto — pelo terror evocado pelo filme “de horror”, que
continua a derrubar todas as barreiras de defesa, tanto do indivíduo como do
público, precisamente através do encanto mimético da representação.26
Já na era da livre concorrência, o Espírito Absoluto se revelava aos olhos da
crítica como versão idealista do Capital Absoluto. A expressão de Marx é muito
menos metafórica do que habitualmente se crê. O capital, com efeito, pode se
constituir enquanto tal e como “governo” somente se se colocar como
universal. E, para se organizar nessa dimensão, é fundamental — como vimos
— a ideologia, cuja finalidade consiste em universalizar a particularidade de
classe do próprio capitalismo, e que, nesse movimento, realiza a perfeição que
lhe faltara nos estágios precedentes. Desse modo também a mimese mítica
dos reis micênios era ideológica, na medida em que pretendia fazer passar
como algo dado a reconciliação entre particularidade contingente do indivíduo
(contanto que seja rei, de onde resulta o caráter arcaico da ideologia) e a
universalidade do Tempo e da Morte. A essência desse momento ideológico
consiste em expor a representação do cadáver como algo imortal através do
seu decalque em ouro. Ao contrário, na fase revolucionária da burguesia, a
relação entre Espírito e Capital colocou-se como conflito pela hegemonia em
face de dois diferentes modos de organizar tanto a produção como o conjunto
dos valores humanos. Conflito que cedo se resolveu em um pacto, formalizado
do ponto de vista do vencedor, que fez do Espírito o melhor aliado

Nota de rodapé

mente pertence, mas também uma pressão pulsional e ritual que submete o
mesmo espectador a uma dilatação intra-específica.
26. Essa impotência constitucional está presente na conhecida tese
introspectiva de Adorno, segundo a qual, “depois de qualquer projeção
cinematográfica, percebo, ao retornar, que, apesar de toda a vigilância, tornei-
me mais estúpido e pior”. Não saber resistir ao mecanismo psicofílmico do tipo
horror é uma experiência que me foi confiada também por alguns dos autores
cinematográficos mais preparados e sensíveis.

Página 28

do Capital, ambos unidçs contra as ameaças do trabalho vivo, que recusava


sua própria reificação. E assim se produz uma transubstanciação do Capital em
Espírito por meio da Ideologia, como um revival do mistério da Santíssima
Trindade. Esse movimento é necessário para completar, na esfera das idéias,
aquele outro movimento mais sangüineo, realizado na esfera do social e
dirigido no sentido de representar o capital como um dado “de natureza”,
inelutável e ineliminável. O capital torna-se verdadeiro deus e verdadeiro
homem.

Assim, a ideologia é a alienação do capital, o capital como se revela quando é


outro que não ele. Se a natureza é, para o idealismo, o tormento de deus, com
a sociedade pós-industrial, ou seja, com a extensão da produção das
mercadorias também ao mundo das ideologias, a alienação alcança sua
máxima dilatação e, portanto, também sua máxima eficiência, “revelando- se”
também no “espírito fílmico”. Tem-se o Estado da coerção mediatizada e cada
vez mais “espiritualizada”.

O cinema é mimese que retorna não sob forma “eterna”, mas como
reprodutibilidade técnica e espiritual, que mantém em seu interior a memória do
passado mais remoto.

O cinema é a forma fenomênica que sucede a Cristo, sua representação


sensível que assume como próprios todos os problemas da humanidade, que
desnuda todos os pecados da carne para absolvê-los, dissolvendo-os na
“espiritualidade” das imagens reprodutíveis.

A transcendência religiosa do cinema se conjuga com a reprodutibilidade


moderna e torna-se irresistível. Nenhum público pode resistir-lhe. Assim como
a religião expressava a alienação do homem em face de sua relação com uma
natureza não compreensível, do mesmo modo a fenomenologia do cinema
— sucessor dela — representa a auto-alienação da reificação ideológica.

O cinema continua a representar aquele mal-entendido do corpo, que — como


dizia Nietzsche — já fora o pecado filosófico por excelência, embora ele possa
falar de tudo, inclusive do mais audacioso hard core, mas com a seguinte
diferença em relação à filosofia: que aquele mal-entendido foi socializado,
produzindo uma gigantesca secularização da mimese, como não poderia
ocorrer nos mais audaciosos imperativos dos anciens philosophes. Ou seja: o
cinema venceu, teve êxito na tarefa de

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criar um mundo modelado pelos seus próprios valores espirituais, conquistando


a consciência pública e privada.
Assim, as antigas distinções entre cinema e filme (para mim, a arte — para ti, a
indústria), embora sempre tenham sido falsas, tornaram-se agora ridículas
(quem pensaria em contrapor o livro à literatura ou um quadro à pintura?): entre
um e outro, constitui-se, há algum tempo, uma síntese entre a sincronia
estrutural do seu ser cinema e a diacrônica mutabilidade de toda
individualidade fílmica.

A critica antropológica do filme deve partir do seu ser — um concentrado de


mimese, religião e filosofia — em sua relação de intercâmbio orgânico com a
natureza e inorgânico com a espécie. O juízo escolaresco sobre o “me agrada”
ou o seu contrário deve ser substituído pela fixação do olhar nas feridas
provocadas pela cisão sujeito-objeto (que estão presentes em toda verdadeira
obra de arte, nos mitos, nas fábulas); e no modo como precisamente o filme
busca fazer com que aquelas feridas se tornem suportáveis aqui e agora. A
crítica deve captar o nexo entre séculos de civilização (o filão subterrâneo dos
instintos e das memórias arcaicas, hipo-estrutura) e a tela produtivamente
triunfante (estrutura e superestrutura). Tomadas em si, as leis de ferro do ciclo
econômico — assim como as mais elásticas do “cinéma pour le cinéma” — não
bastam para explicar os valores que devem ser reproduzidos pelos filmes
individuais. E isso em medida tanto maior quanto esses “valores” foram
submetidos à expansão da valorização; e, por outro lado, foram ignorados pela
pesquisa sociológica, por causa da dificuldade em traduzir a pesquisa em
questionário.

O cinema — como subcultura interna ao sistema das novas ideologias — xem


necessidade de reflexões globais e radicais para responder às perguntas sobre
sua relação entre máquina- cinema e as modificadas categorias centrais da
humanidade: o tempo, o espaço, o rito, a fábula, a vida, o riso, o
comportamento na sala, o trabalho, o corpo, a morte, as classes sociais. E, por
isso, uma nova tentativa de compreensão do cinema pode ser colocada num
plano antropológico, com a condição de que a antropologia das invariantes seja
substituída por uma antropologia dialética, que ponha a transformação do
presente em relação com o seu correspondente e ineliminável sistema de
hereditariedade natural-cultural.

Página 30: em branco

Página 31

Capítulo: O “espírito” do cinema

“Aliás, uma tradição pretende que foi precisamente no Largo de Castelo que
aquele pregador, abandonado pelos seus ouvintes em troca de um polichinelo,
teria exclamado, mostrando o crucifixo, as famosas palavras:
‘Aqui, aqui, este é o verdadeiro polichinelo!’”.

B. Croce

O conceito de “espírito”, além de ser incômodo e embaraçoso, é dificilmente


definível em sua “veste” moderna, um pouco por prevenção (de resto,
justificada) contra ele, por causa dos inúmeros malefícios cometidos em seu
nome, e um pouco por tabu “materialista – dialético”. Isso implicou a sua
aposentadoria terminológica antecipada, ou a sua doação mais que imerecida
aos vários espiritualismos, que o conservam sob forma de cinzento monopólio.

Para as culturas “primitivas”, o espírito é a potência das forças da natureza


aprisionada em determinados símbolos; para teologia, é a essência
inapreensível e misteriosa do ser supremo, sem limitações de espaço e de
tempo, componente do dogma trinitário; para a filosofia idealista, é a verdade e
a meta final da natureza, a verdadeira realidade da

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ideia; para o materialismo histórico, é a ideologia que esconde relações sociais


historicamente determinadas, pelo que ele aparece agora como transfiguração
do capital; finalmente, para o revival parapsicológico, é a essência
desincorporada de um morto que retorna.

O espírito, portanto, pode ser em cada oportunidade e ao mesmo tempo


Natureza. Deus, Idéia, Capital, Fantasma. Pois bem: todos esses conceitos são
resumidos sinteticamente no cinema. Para parafrasear a terminologia hegelo-
marxiana, o espírito do cinema é a forma alienada através da qual o capital se
manifesta em sua fenomenologia; é a ideologia do capital que põe a si mesmo
como contingência, como aparição milagrosa, como parábola-fábulamito. È
espírito porque sua potência não é tanto de natureza físico-material imediata,
porém mais insidiosa, impalpável, luminosa, como que transfigurada. Nos
séculos passados, a auréola na pintura hagiográfica desempenhava uma
função análoga, embora ainda numa rigidamente simbólica, mas que parecia
quase invocar um resultado diverso, subentendido em sua representação
gráfica: um feixe de luz solar, que se espalha do centro da cabeça. Por outro
lado, o conceito de imaterialidade não exclui o de realidade, como pensam
muitos materialismos de tipo positivista, que consideram como sinônimos
matéria e realidade. O caráter “espiritual” no curso do filme é determinado pelo
fato de que o espectador não percebe o momento “materialista”, na medida em
que remove o operador, o “foco” (com exceção do iniciado), o projetor, que
simbolicamente (e não só fisicamente) estão atrás dele; aliás, o público tende a
se pôr em dócil sintonia com a alienação de luz, vento, ar móvel que constitui o
“fluxo pneumático” das imagens. Assim como a auréola expressa a natureza
interior divina, essas imagens elevam-se a uma potência psíquica que penetra
docilmente na alma do espectador, até as zonas mais profundas.
Um novo materialismo deveria entender o espírito não como verdade em-si e
para-si, mas como coágulo ambivalente — assim como se formalizou na
palavra e no significado (1) —

Nota de rodapé

1. Em nossa, o significado originário de “espírito’ deriva do tempo grego


pneuma, que significa “ar movido”, enquanto nas culturas ditas “primitivas” o
espírito é sentido como uma presença invisível similar a um “sopro”; o espírito
pode ser tanto o que se opõe à matéria (e, portanto, em ultima instancia, sinô-

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daquele impulso incessante do homem a superar a sua forma de existência


dada, cuja resposta pode ser metafísica com o Apocalipse, social com a
Revolução, ou fílmica com o tardo-capitalismo: ou seja, o modo como essa
civilização busca negar seus horrores apresentando-os como entertainement.
O espírito do cinema tem a sua epifania no cone piramidal luminoso que se
forma a partir do vértice do projetor e termina na base da tela. Uma figura
geométrica simbólica, afim à de Kubrick em Odisséia no espaço. Um feixe de
luz bem delimitado e, apesar disso, interiormente ultramóvel, que ilumina quem
quer que nele se introduza, do mesmo modo ofuscante com o qual, no final de
Contatos Imediatos, os “imortais” sobem na astronave. Um singular “sólido” de
luz com o qual todo espectador pelo menos uma vez, divertiu-se, tentando
inutilmente cortá-lo com a mão. Quem o toca inadvertidamente, recua de
imediato, como se houvesse cometido um pecado público; ao contrário, quem o
faz de propósito tem a mesma atitude descarada do pecador calejado. Ambos
obtêm apenas silhuetas involuntárias ou feias sombras chinesas: em qualquer
caso, coros de protestos. Somente mergulhando em sua antítese, a escuridão
igualmente significativa da sala, é que é dado ao espectador participar do rito.
Disso resulta a ambivalência entre o prazer desenfreado que leva ao gozo
quando se fica imóvel e a angústia apática de quem ainda permanece ligado à
intuição da unidade entre prazer e movimento. *(2)Diz Jung: “Como os espíritos
e a al-

Nota de rodapé

mo de Deus) quanto o conjunto dos bens intelectuais de uma determinada


civilização; mas, em ambos os casos, não foi superada sua essência de imago,
ou seja, de espectro, enquanto personificação da individualidade, de espírito
como fantasma ou alma de um morto. Finalmente, ele pode pertencer ou à
fisiologia cerebral endopsiquica, ou à alquimia, que precisamente com a
expressão ‘espírito” definia uma essência sutil, volátil, vivificadora, ou seja, o
álcool. O espiritismo e o espiritual, sempre afins (como, por outro lado, também
o Verbo e o Logos), foram utilizados unitariamente pelos primeiros
experimentos da fotografia oitocentista (que, com toda a sua ingenuidade
positivista, começou precisamente a fotografar “espíritos” no sentido de
espectros), e finalmente, foram sintetizados pelo cinema (bem superior à
vulgaridade daqueles truques), que produz com seu sopro pneumático uma
imago espectral, divina e filosófica, intelectual e alcóolica.
2. Por seu turno, a palavra e o conceito de cinema ligam-se aos de movimento,
que pode ser representado por esse medium em sua forma absoluta, ainda que
imperceptível pelo olho humano. Sobre a afinidade entre movimento e prazer,
recorde-se o final de Zabrinskie Poini, de Antonioni, onde — graças à técnica
de

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ma dos mortos, segundo a opinião antiga, são feitos de matéria sutil como um
sopro de ar, ou uma fumaça, assim também para os alquimistas o spiritus
significa uma essência sutil, volátil, ativa e vivificadora, tal como, por exemplo,
eram concebidos o álcool e todas as substâncias arcanas. Sobre esse plano, o
espírito é espírito de vinho, espírito amoniacal, fórmico, etc.” (3)
Finalmente, para a moderna ciência produtiva dos media, ele se torna filme; e,
com efeito, involuntariamente, o mesmo Jung nos dá uma preciosa definição de
cinema: “Conforme a sua primitiva natureza de vento, o espírito é sempre
essência ativa, alada e móvel, que vivifica, estimula, excita, inflama e inspira.
Para usarmos uma expressão moderna, o espírito é dinâmico, constituindo
assim o clássico oposto de matéria, isto é, de sua estaticidade, inércia e
ausência de vida. Trata-se, em suma, do contraste entre a vida e a morte”*(4).
E ainda: “Ao ente espiritual, pertence em primeiro lugar um princípio
espontâneo de movimento e de atividade; em segundo, a propriedade da livre
criação de imagens para além da percepção dos sentidos; em terceiro, a
autônoma e soberana manipulação das imagens” .

O fluxo de ar luminoso que se aliena do projetor e se manifesta na tela — tal


como se fosse uma moderna máscara tecnológica que, como a antiga,
continua a esconder e a mostrar — pesa como uma substância superior por
sobre a cabeça dos espectadores.

A potência desse fluxo não se esgota na sala ritual, mas se estende tanto no
modo de vida explícito e implícito das dimensões sociais e culturais, quanto na
profundidade da dinâmica intra-individual. Ele primeiro inibiu, depois pôs a nu a
especulação filosófica, ironizou a meditação teológica, confundiu a práxis
histórico-materialista; finalmente, resumiu numa nova síntese a antropologia
tardo-burguesa: é a ideologia reificada e luminosa.

A tela do cinema é um véu de Maia que esconde por trás de si o fato de que
não há nada a esconder, a não ser a potência mimética da repetição. A
repetição do igual como conteúdo do
Nota de rodapé

Uma super- rallenty – a explosão final dos objetos-mercadorias quer expressar


um momento espasmódico de libertação análogo ao orgasmo.
3. C. G. Jung, La simbólica dello spirito, Turim, Einaudi, 1959, p.19

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cinema é assim arrebatadora e transcendente, na medida em que reformula em
termos modernos um enigma constante, que a humanidade sempre arrastou
consigo e que sempre atualiza: como a potência da monotonia consegue aliar-
se com aquela “zona” que Freud situou além do princípio do prazer. a questão
da tendência à regressão inorgânica como essência do prazer, que porém —
diferentemente das hipóteses freudianas — não pode ser declarada imutável,
como

“Eterno retorno” à origem, sempre igual a si mesma enquanto dado perene da


condição humana*(6), (que somente a arte pode intuir em sua irracionalidade
irredutível à ordem lógica das coisas), mas como recíproca, sutil dialética com
os modos de produção. È um enigma - esse sim, materialista - que está entre
história e não-história. Essa aliança entre coerção libidinal à repetição e
consumo ritual do sempre igual é tão poderosa aqui e agora na medida em que
teve uma longuíssima experimentação no processo global de desenvolvimento
cultural, desde o mito até a fábula e a religião. A unidade estrutural dos mitos,
assim como a identidade morfológica das fábulas da magia, são o campo de
estudo no qual a interação entre “eterno retorno” e invenções históricas foi
amplamente analisada *(7). Ora, a mesma interação produziu a forma cultural
do cinema, cujo terreno, precisamente, foi adubado por séculos de civilização.

Também Hegel — ainda que em sua construção idealista, a qual, porém, está
mais perto da verdade do que muito estruturalismo — afirmava que “o espírito
é o eterno voltar a si através da negação da negação”.8 Assim, o “espírito” do
cinema põe em movimento a síntese entre o eterno retorno do inorgânico, para
além do princípio da história, e a reificação reproduzida monotonamente, para
além do princípio do prazer. É a reificação orgânica.

Nota de rodapé

6. S. Freud, Al di là del principio del piacere, Turim, Boringhieri, 1975. (há


edição brasileira das obras completas de Freud).
7. Cf. toda a obra de Lévi-Stratuss e, em particular, Antropologia strutturale,
Milão, II Saggiatore, 1966; V. J. Propp. Morfologia della fiaba, Turim, 1966, que
contém a fundamental polêmica entre o autor e o mesmo Lèvi-Strauss.
8. G. W. Hegel, fenomenologia dello spirito, Florença , La nouva Itália, vol. II,
capitulo “o espírito”, 1973, pp. 1 – 196.

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“Máscara”, ou a genealogia de imagens inconscientes não arquetípicas

Em épocas recentes, nenhuma corrente de pensamento foi mais longe do que


a psicologia junguiana na tentativa de dar uma maior dignidade científica à
potência da imutabilidade, ainda que no interior da ideologia religiosa, a qual,
por seu turno, tem o mérito de haver estudado e instrumentalizado em
profundidade a irresistível atração mimética do sempre igual. Seu interesse
atual reside precisamente na evidente falsidade das teses junguianas, já que —
precisamente na evidência do absurdo — tornam-se públicas as exigências
secretas ou “secundárias” que são uma verdadeira mina para a reflexão critica.
Há mais verdade em compreender a alienação religiosa, precisamente
enquanto distorção de demandas culturais reais, do que nas censuras ou na
indiferença “materialista” diante de tudo que se refere às questões do ser ou do
patrimônio hereditário simbólico.

Em nossa opinião, o cinema — em sua relação entre imagens e imutabilidade


— não realiza um prolongamento do arquétipo, num plano de fenomenologia
ritual de tipo substancial- mente mítico-religioso, em conexão com a pretensa
metodologia da imodificabilidade que é própria do ser junguiano. Todavia, o
cinema entra em “sintonia” com aqueles protótipos “da maneira humana do
existir”9, os quais, precisamente enquanto determinados pelo homem, elevam-
se a atividade simbólica em mudança do conflito e da aliança entre “espírito”
originário e transformação histórica. O protótipo ritual — que, do mítico- oral,
chega até o fílmico-reificado — não é configurável como variação cultural
insignificante do arquétipo; mas, enquanto é criado pelo homem, “não vai ao
encontro de uma sua suposta fundação extra-humana em formas perenes; vai
ao encontro de sua fundação somente enquanto se funda, contemplando — em
figuras que ele mesmo inventa — o próprio estar fundido com o mundo”10, O
cinema realiza à perfeição uma invenção repro-

Nota de rodapé

9. K. Kerényi, Miti e misteri, Turim, Boringhieri, 1979, p. 298.


10. F. Jesi, “Introdução” a MUi e misteri, op. cit., p. 17.

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dutível do “estar fundido”, inventada indiscutivelmente pelo homem, que traz


consigo a ressurreição dos mitos arcaicos no interior da nova capacidade
produtiva e reprodutiva.

Não existem arquétipos invisíveis e incriados, mas visões que — a partir do


filme — estabelecem uma gigantesca ponte entre a alienação vivida nessa vida
e a angústia existencial de séculos de civilização alienada. Para além do rito —
de qualquer rito —‘ não está o desconhecido, matriz invisível e arquetípica de
tudo o que é visível, mas o homem “responsável por toda imagem”. O arquétipo
é uma forma determinada do espírito, cujas imagens pertencem ao território do
inconsciente coletivo, do sonho, de onde foram recolhidas e modeladas pelo
mito: “Segundo Jung, os arquétipos são formas determinadas da psique, mas,
ao mesmo tempo, também potências carregadas de energia que, mesmo sem
serem conhecidas, atuam na alma. Aliás, confi‘nados no inconsciente, atuam
de modo ainda mais poderoso do que quando se tornam conscientes”11.

Já para Kerényi, o protótipo se concretiza na máscara — enquanto “flutuação


de imagens enrijecidas por excesso”2 —‘ que subentende, na sua fixidez, as
transformações perenes do ego. Nela, a consciência do “estar fundido” com o
mundo sensível adquire uma forma determinada, tal como no caso da máscara
áurea do falso Agamênon ou das máscaras com linhas do teatro cabúqui,’3
onde já se coloca o problema cinético dos olhos, das sobrancelhas e da boca
aos mestres artesãos, e que prosseguiu agora com a técnica reprodutível, O
filme é uma ulterior flutuação da máscara, onde a sua metamorfose consegue
escapar ao enrijecimento graças a 24 imagens por segundo.

Nota de rodapé

11. K. Kerényi, op. cit., p. 298.


12. F. Jesi, “Introdução” a Miti e misteri, op. cit., p. 19.
13. S. M. Eisenstein interessou-se pela expressão das máscaras japonesas,
através das quais estabelecia conexões entre teatro cabúqui e cinema.
Segundo o A., com efeito, enquanto o cinema japonês carece de montagem —
e o cinema é, “em primeiro lugar, montagem” —‘“o princípio da montagem,
todavia, pode ser considerado a alma da cultura figurativa japonesa” (Forma e
tecnica delfim e lezioni di regia, Einaudi, Turim, 1964, p. 28). Desse modo,
Eisenstein estabelece conexões entre os ideogramas e os princípios do cinema
antes da sua invenção; desse modo, conseguiu “escrever um livro sobre o
cinema de um país que não tem cinematografia; sobre o cinema de um país
que tem, na própria cultura, uma quantidade infinita de caracteres
cinematográficos, mas espalhados por toda parte, salvo.., em seu cinema”
(ibidem).

Página 38

É preciso não só “demolir” a colocação determinista do idealismo irracional e


mitológico, mas também saber captar seus momentos casuais de verdade, que
consistem na vontade de pesquisar uma genealogia das imagens inconscientes
não arquetípicas. Elas não são mais constituídas como formas do espírito, mas
sim num código hipo-estrutural” que se consolida, enriquece e transforma ao
entrar em contato com as novas formas das imagens. Assim, por exemplo, a
relação entre as atuais imagens reprodutíveis e a genealogia das imagens
prototípicas cria inicialmente uma fase de inovação fluida, até alcançar a
estabilidade em um novo equilíbrio. Essa é a dialética entre sincronia e
diacronia. O que acabamos de afirmar pode ser facilmente experimentado
fazendo-se com que uma pessoa adulta, que jamais assistiu a um filme, seja
levada a fazê-lo. Béla Balázs conta dois interessantes exemplos (que cada vez
mais dificilmente reaparecerão), o primeiro de um inglês numa colônia e o
segundo de uma jovem siberiana: “Durante a Primeira Guerra Mundial, um
funcionário colonial britânico encontrou-se numa fazenda no centro da África,
isolado do mundo, e, logo em seguida, foi obrigado a permanecer lá por um
certo tempo. Era um homem culto, recebia regularmente livros e revistas.
Estava também a par dos progressos do cinema e pode-se dizer que conhecia,
através das fotos dos jornais ilustrados, todos os astros e estrelas da época.
Lera enredos de filmes e críticas cinematográficas, mas jamais fora ao cinema.
Quando teve oportunidade de ir à cidade, dirigiu-se imediatamente ao cinema,
O filme que estava sendo exibido era simplíssimo: os meninos que estavam
sentados a seu lado assistiam a ele com extremo interesse. Por seu turno, o
funcionário colonial — homem culto e instruído — fixava a tela com os olhos
esbugalhados e fazia um visível esforço para compreender o que se passava.
No final do espetáculo, estava literalmente esgotado. (15)

Ocorrera que não havia compreendido o filme, já que não conseguia apreender
o desenvolvimento da ação narrativa sob forma visualizada, o que qualquer
criança da cidade era capaz de fazer sem esforço.

Nota de rodapé

14. Sobre a “gramática” do código hereditário genético, cf. Robin Fox,


Antropologia biosociale, op. cit.
15. B. Balázs, liflim, Turim, Einaudi, 1952, pp. 38-39.

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“Um dos meus amigos moscovitas me contou o caso de sua nova empregada,
que chegara à cidade pela primeira vez, vinda de um colcós siberiano. Era uma
jovem inteligente, freqüentara a escola com proveito, mas — por uma série de
estranhas circunstâncias — jamais vira um filme. Seus patrões mandaram-na
ao cinema, onde se projetava uma comédia popular qualquer. Voltou para casa
palidíssima e abatida. ‘Gostaste?’, perguntaram-lhe. Ela ainda estava
emocionada, e, por alguns minutos, não conseguiu emitir nem uma sílaba.
‘Horrível’, disse finalmente, indignada. ‘Não consigo compreender por que aqui
em Moscou permitem que se assistam a tantas monstruosidades.’‘Mas o que
viste?’, retrucaram os patrões. ‘Vi’, respondeu a moça, ‘homens feitos de
pedaços: a cabeça, os pés, as mãos, um pedaço aqui, um pedaço ali, em
lugares diferentes.”6
Em nossa civilização, não mais levamos em conta “o complicado processo de
adaptação que foi necessário à consciência para se familiarizar com a
sucessão visual. Tratava-se, em substância, de recompor na consciência
imagens decompostas em seus elementos singulares e vistas em sucessão
temporal, que lhes dava unidade e continuidade”. Em pouco tempo, firmou-se
uma nova cultura visual.

“Hoje”, conclui Balázs, “não sabemos mais nem mesmo como foi possível
aprender em poucos anos a linguagem das imagens, e reconhecer as
perspectivas, as metáforas e os simbolos das imagens.”7

O desequilíbrio entre imagens do “presente” e imagens do “passado” recente


cria incompreensão ou medo, até o momento em que se produz um novo
equilíbrio sintético, que chega não apenas e não tanto a penetrar no interior
das imagens, mas sobretudo a transformá-las. O cinema está realizando cada
vez mais em escala mundial (restam bem poucas exceções do tipo da jovem
siberiana) a homogeneização entre culturas muito diferentes da cultura cristã-
burguesa, onde o cinema nasceu; trata-se agora de reconstruir brevemente
aquele movimento de imagens pré-fílmicas de conteúdo ritual, que permitiu a
síntese do gênero cinema. E isso tem, por um lado, o objetivo de contrastar o
irresistível avanço da categoria de “imaginário coletivo”, versão cine-

Nota de rodapé

16. Ibidem, p. 39.


17. Ibidem, p. 40.
Nota de rodapé

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matográfica do arquétipo junguiano, e, por outro, de fixar essa metodologia de


imagens prototípicas em transformação.
Numa perspectiva globalmente antropológica, o rito se define como “um ato
que pode ser individual ou coletivo, mas que sempre — mesmo quando é
elástico o suficiente para comportar uma margem de improvisação —
permanece fiel a determinadas regras, que, justamente, constituem o que nele
há de ritual”8.

No rito, por sua vez, um componente sacro — o culto — se entrelaça a um


componente profano — a cerimônia. O termo latino ritus já designava aquelas
crenças, usos e costumes que se referiam tanto ao sobrenatural como a
simples hábitos sociais, unificados pela sua reprodução segundo determinada
invariância. De fato, “o rito propriamente dito se distingue de outros hábitos não
apenas devido ao caráter particular de sua suposta eficácia, mas também
devido ao importante papel que nele desempenha a repetição.”9 Ou melhor, a
repetição constitui a principal virtude do rito enquanto tal, que “é uma ação que
se distingue principalmente pela sua modalidade estereotípica”20. É sabido
que a religião cristã, onde quer que se tenha firmado, teve a capacidade de
levar a uma nova síntese sua própria origem mística e os ritos sagrados e
profanos anteriores.2’ O ato de nascimento do rito deriva daquela invenção
cultural que permitiu institucionalizar, graças ao excedente socialmente
produzido, a figura do xamã, o qual não apenas era isento do trabalho, mas
devia se dedicar principalmente, através da mimese, a paci-

Nota de rodapé

“Rito “: Mysteria — Tragédia — Missa


18. J. Cazeneuve, Sociologie du rite, Presses Universitaires de France, 1971,
trad. it. La sociologia dei rito, Milão, Ii Saggiatore, 1974, p. 13.
19. Ibidem, p. 14.
20. Ibidem — os grifos são nossos.
21. Sobre a elasticidade ritual do cristianismo, há uma enorme literatura. Cf.,
em particular, J. G. Fraser, Ii ramo d’oro, Turim, Boringhieri, 1965; V. J. Propp,
Édipo alia luce dei folclore, Turim, Einaudi, 1975; C. Ginzburg, “Folklore, magia,
religione”, in Storia d’Italia, vol. 1, pp. 630-678, Turim, Einaudi, 1972; A.
Metraux, Religione e riti magici indiani nell’America Meridionale, Milão, II
Saggiatore, 1971.

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ficar e/ou domar o incognoscível. Os mysteria da força da natureza tinham na


antiga Atenas o nome de determinadas festas em honra de divindades
particulares:22 essas festas “mistéricas”, antes de se enrijecerem num rito de
aspecto apenas cerimonial no período helenístico, eram — em sua
característica — essencialmente “um ritual que, todavia, não se esgotava na
imagem cultural da divindade (...), mas em pessoas humanas, que, desse
modo, tornam-se elas mesmas, de um modo particular, objeto e sujeito da
festa. O ‘mystes’ (ou seja, o participante no rito — M.C.) sofre os Mysteria: ele
se torna seu objeto, mas ao mesmo tempo participa ativamente dele”23.

Essa dialética sujeito-objeto na ação ritual situada na origem da civilização


helênica será decisiva para a posterior dinâmica histórico-cultural da pólis. A
não-excepcionalidade dessa dialética pode ser demonstrada por um outro rito,
que servirá como fundamento para o teatro ocidental: a tragédia, cuja origem
unificava o momento do culto com o da cerimônia. Sagrado e profano eram
indistinguíveis, unidos na “paixão” de Dioniso. A origem da tragédia não
conhece rigidez na cisão entre quem olha e quem é olhado, entre quem age e
quem sofre a ação, entre quem é publicamente móvel e quem é privadamente
imóvel. Quem participa da ação trágica — assim como da embriaguez
orgiástica em honra de Dioniso — mantém originaria- mente a dialética de ser
sujeito e objeto da história. Ao alcançar o entusiasmo24, o homem sai de sua
própria individualidade para ligar-se a deus, graças ao êxtase. Na origem, diz o
filólogo e amigo de Nietzsche, Rohde, “a ecstasis é uma condição na qual a
alma parece estranhada de si mesma. A expressão, que no uso posterior
perdeu muito de sua força, era originariamente usada em sentido próprio e
indicava que a alma ‘saía’ do corpo”25.

Nota de rodapé

22. Cf. o já citado livro de Kerényi, Miti e misteri, assim como a obra de E.
Rohde, Psiche, Bati, Laterza, 1970.
23. Kerényi, op. cit., p. 148.
24. O significado etimológico da palavra entusiasmo está em en-tousiasmos, ou
seja, numa forma que, “como todas as religiões místicas, busca fazer todo seu
o seu deus”, razão por que “a alma que escapa do corpo se une á divindade.
Agora ela está em, está dentro do deus”; o que “foi tomado está entheos, vive e
no deus” (E. Rohde, Psiche, op. cit., p. 355).
25. E. Rohde, op. cit., p. 356. Desse modo, pretendia-se explicar aqueles
fenômenos fora do comum, nos quais a alma dos “obcecados” não estava mais
“em”, mas sim “fora” do seu corpo. E, originariamente, os gregos queriam dizer
pré-

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O êxtase é um estado orgiástico de excitação, uma loucura passageira — aliás,


uma “loucura sagrada” —, na qual a alma, escapando do corpo, une-se a deus,
a Dioniso: quem alcança o entusiasmo “goza da plenitude de uma vida infinita”,
está no deus.
De modo análogo, para Nietzsche, a “matriz originária da tragédia” realiza “a
objetivação de um estado de espírito dionisíaco (através da) submersão do
indivíduo e de sua un!ficação com o Um primigênio”26. “É uma tradição
inconstestável que a tragédia grega, em sua forma mais antiga, tinha como
objeto exclusivamente as dores de Dioniso, e que, por um longuíssimo período
de tempo, o único personagem cênico existente era precisamente Dioniso”27.
Todas as mais diversas figuras do herói trágico — Prometeu, Édipo, etc. — são
diferentes representações ou, para usar o termo nietzschiano, diferentes
máscaras do herói originário Dioniso; este, nos ritos mistéricos, experimenta
em si “as dores da individualização”. Na morte e na ressurreição de Dioniso,
narra-se a sua “paixão” e, com ela, a de toda a humanidade, na medida em
que, para Nietzsche, “temos de considerar o estado da individualização como a
fonte e o fundamento de todo o sofrimento’° . A unidade originária do universo,
da natureza, resulta. desse modo “rompida em indivíduos”; a solução dos
mistérios trágicos, dos ritos dionisíacos, revela que “a teoria fundamental da
unidade de tudo o que existe (...) julga a individualização como a causa
originária do mal, enquanto a arte aparece como feliz esperança de que o
curso da individualização seja rompido, como pressentimento de uma
restauração da unidade (29).

Nota de rodapé

cisamente isso quando falavam de “êxtase” diante desses estados orgiásticos


de excitação. Esse êxtase é uma “loucura passageira”, assim como a “loucura
é um êxtase duradouro” (ibidem).
26. F. Nietzche, La nascita delia tragedia, Bari, Laterza. 1971, p. 89.
27. Ibidem, p. 101.
28. Ibidem, p. 27. Toda a história da humanidade e, em particular, da civilização
ocidental foi acompanhada pela necessidade de afirmação do indivíduo, sob
signo da dominação e do sacrifício, estreitamente articulada ao desejo de
anular a própria individualidade. Essa dialética do indivíduo tem em Nietzsche
um dos seus primeiros grandes intérpretes.
29. Ibidem, pp. 102-103. Esse tema será retomado, de um ponto de vista
psicanalítico, no conceito de narcisismo de Freud, ou na metapsicologia “além
do princípio do prazer”. Mas, com essa óptica, também é possível ler os
movimentos do espírito absoluto de Hegel, em particular na alienação e na
supressão de tal alienação.

Página 43

A unidade ritual originária, cujo desenvolvimento representa a celebração de


Dioniso, fundava uma relação estreita com a não-separação dos papéis. Todos
são atores e, ao mesmo tempo, espectadores da paixão de Dioniso. Somente
mais tarde é que se formaliza uma divisão entre “os espectadores dionisíacos”
e o coro trágico dos atores como representação dos sátiros:
“O coro dos sátiros é inicialmente uma visão da múltidão dionisíaca” 30. “Só
que é preciso ter presente que o público da tragédia atávica via a si mesmo no
coro da orquestra e que, no fundo, não existia nenhum contraste entre o
público e o coro, já que o todo não era nada mais do que um grande coro
elevado de sátiros dançarmos e cantores e de espectadores que se sentiam
representados naqueles sátiros.” Por isso, “o coro é o espectador ideal, na
medida em que é o único espectador do mundo de visões evocado no palco.
Um público de espectadores como é hoje o nosso era algo desconhecido pelos
gregos: em seus teatros, dada a forma concêntrica da construção do espaço
reservado aos espectadores, cada um estava perfeitamente em condições de
abarcar com o olhar todo o mundo cultural que lhe estava em torno; e podia,
em satisfeita contemplação, crer-se e sentir-se ele próprio membro do coro”31.
Através do coro como “coro dos sátiros”, do herói como “máscara de Dioniso”,
o público restaura sua própria identidade mimética com o deus, por meio do
entusiasmo e do êxtase. A identificação dos espectadores é, portanto, uma
mimese sagrada e sempre idêntica a uma única história que, apesar das
variações aparentes, é contínua e obsessivamente reproposta, com o objetivo
de escapar da maldição do próprio ser individualizado e separado: a “paixão”
de Dioniso. A mimese é restauração da unidade originária da natureza. Desse
modo, a tragédia grega é arte ritual na medida em que coro, herói, público são
aspectos diversos de uma única verdade: a totalidade dionisíaca.
A Igreja Católica compreendeu mais do que qualquer outra instituição, a
potência da imutabilidade, o seu fascínio irresistível de atração e de mimese.
Depois do período revolucionário inicial, durante a fase paleocristã, na qual as
relações de comu-

Nota de rodapé

30. Ibidem, p. 87.


31. Ibidem. E continua: “A forma do teatro grego assemelha-se a um vaie
Solitário que se abre num anfiteatro de montanha’.
Página 44

nidade se inseriram na tradição mais criativa e solidarista das formas rituais


precedentes, a formalização católica conseguiu conciliar numa síntese genial
cultos e cerimônias pré-cristãs com a rigidez obsessiva dos próprios mysteria. A
dialética entre tolerâncía em face dos hábitos arcaícos e absolutismo em face
dos próprios produziu uma gradual absorção e/ou sobrevivência dos ritos
pagãos dentro da totalidade católica, conseguindo finalmente dobrar a infinita
variedade dos hábitos culturais presentes em várias partes do mundo — uma
vez iniciadas as missões cristianizadoras — à unitariedade do dogma.
Instrumento principal da triunfante homogeneização católica foi a centralidade
da repetição cotidiana na missa. Cedo esgotada a instância comunitária, que
fazia reflorescer aquela tradição própria dos momentos mais criativos dos
mysteria e das tragédias — ou seja, a condição dialética de sujeito e de objeto
dos iniciados num determinado rito —, o que se reproduz é a potência da
monotonia da missa. Esse rito — fortemente simbólico e funcional, por sua
capacidade de restaurar os equilíbrios abalados pelas crises “temporais” —
consegue produzir uma nova e original síntese entre vida cotidiana e eterno
i’etorno, entre sagrado e profano. Jamais tal metodologia da imodificabilidade
foi aplicada cotidianamente com tanta capacidade profissional em todos os
recantos da terra. Seu código cultural e cerimonial é por excelência monótono,
popular, faustoso: é executado por um pessoal altamente especializado, que se
diferencia cada vez mais, do ponto de vista profissional, da originária
comunidade participante, até o momento em que o clero irá se contrapor —
como único “ator” socialmente reconhecido — a uma massa dos fiéis,
bloqueados em sua condição de espectadores laicos. E o coro só pode
sobreviver no sacristão, personagem de segundo plano, enquanto os cantores
são escondidos dos olhos, um pouco por pudicícia, um pouco para não afastar
os olhos do único sujeito pré-escolhido. A genealogia das imagens
inconscientes não arquetípicas sofre uma nova e formidável estruturação
historicamente bem determinada, com a obsessiva repetição do consumo ritual
do sempre igual: a forma missa. A divisão entre trabalho intelectual do clero e
trabalho manual do laico enrijece-se cada vez mais — em estreita conexão
com a estrutura de classe determinada pelo modo de produção —, na medida
em que a interpretação dos textos e a ação cênica se tornam patrimônio

Página 45

exclusivo da classe sacerdotal. Tende a se afirmar uma nova relação sócio-


cultural, que divide e contrapõe os homens não só em relação aos respectivos
papéis no processo de produção, mas também numa cada vez mais nova e
poderosa hierarquia do olhar, que penetra com incrível facilidade no interior da
estrutura psíquica e aí se liga às imagens prototípicas. Entre quem olha e quem
é olhado estabelece-se uma relação dicotômica e hierárquica informal, ligada
ao comportamento vivido mas não conhecido, e precisamente por isso ainda
mais poderoso e aceito, O ser objeto de olhares dirigidos para a própria pessoa
dá poder e prestígio e, ao mesmo tempo, reforça a subjetividade do próprio
papel.32 Quanto maior for a quantidade de olhares capturados, tanto maior
será o reconhecimento social da própria hegemonia. Ao contrário, quanto mais
se for obrigado ao papel de olhar, tanto mais o feixe do próprio olhar
estabelecerá a aceitação da própria subordinação. O fluxo dos olhares
estabelece as relações de poder e prestígio. Diferentemente das religiões
orientais, onde o olhar é interior e os olhos ficam fechados para alcançar a
plenitude da visão, a religião católica se funda nos fluxos públicos do olhar
social rigidamente predeterminados e imutáveis. Na arte, isso se torna ainda
mais claro: Buda é representado em meditação interior, com os olhos fechados,
enquanto Cristo — nos mosaicos bizantinos — aparece bem em pé e tem os
olhos completamente abertos. A elasticidade da organização católica prevê
também uma válvula de escape para a rigidez das funções hierárquicas do
olhar, com a possibilidade de ser admitido em seu vértice através do milagre.
Com efeito, o poder da visão concede também ao povo — jamais ao laico
genérico, mas sempre a um representante dos estratos sociais mais baixos —
a oportunidade de ser pré-selecionado entre os eleitos. Simultaneamente
admitindo, tolerando e por vezes favorecendo a veracidade de tais “milagres”
por parte das hierarquias institucionais, o clero não apenas obtém a
confirmação, mas um multiplicador socialmente “entusiasta” da sua própria
supremacia na hierarquia das visões. Não casualmente, quem “vê” o milagre
alcança o “êxtase”; e é figurado de tal modo nas

Nota de rodapé

32. Sobre a função hierárquica do olhar entre os primatas sub-humanos, cf. M.


R. A. Chance, “Coesione sociale e struttura dell’attenzione”, in Antropologia
biosociale (cd. por R. Fox), op. cii., pp. 125450.
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representações ingênuas — de joelhos, braços abertos, olhos esbugalhados —


que (como muitos sublinharam com facilidade) assimila cada vez mais o estado
extático com o orgásmico, em fiel conexão com a tradição pagã. Por sua vez,
ele será objeto do culto do olhar por parte de outros fiéis que acorrerão de toda
parte para “ver quem viu”, ou — post mortem — para “ver os lugares” onde o
miraculado viu.

No curso de toda a missa, o olhar assume uma função central na divisão entre
sacerdote e fiéis que estende a divisão do trabalho manual e intelectual àquela
entre quem olha e quem é olhado —, numa relação a dois feita de oposição e
de convergências, de acordo com as fases do rito, mas sempre com uma rígida
subordinação dos últimos ao primeiro. E também toda a estrutura interna da
igreja é construída segundo uma ordem precisa, de modo a encaminhar e
predeterminar os fluxos dos olhares: em particular, o “palco” onde ocorre a
representação sagrada é bem separado da “platéia”, onde se organiza a
participação cada vez mais passiva num rito transformado em espetáculo, com
tudo previsto num roteiro recitado infinitas vezes. Bem diverso era o espaço
reservado aos espectadores no teatro ático, onde a forma concêntrica e em
arquibancadas os elevavam a um status onde o olhar podia se espraiar, como
dizia Nietzsche, por “todo o mundo cultural que lhe estava em volta”. O
espectador católico, ao contrário do espectador trágico, sofre uma mutação que
o torna progressivamente cada vez mais passivo em face dos efeitos miméticos
e de ensimesmamento “entusiástico”. Torna-se um “fiel”, ao contrário do
coreuta, o qual — ao sair de si e atingir o deus — habitua-se, geração a
geração, a ser esmagado pelo poder divino e por aquele de quem o representa.
A missa não mais permite a mimese, mas a aceitação pública da subordinação
do espectador laico com relação à histeria já pré-selecionada. O católico não
se identifica com o padre oficiante, mas sofre a danação da condenação da e
na própria carne, até o momento da absolvição segura na confissão, premissa
a uma igualmente inevitável danação.

No rito da missa, a hierarquia do olhar alcança a máxima potência formal


“catolicamente” reconhecida no momento da elevação: quando o clero-ator
eleva o cálice, a hóstia e o olhar (verdadeiro sangue, verdadeira carne e
verdadeira visão de Cristo), a cabeça dos fiéis-espectadores deve inclinar-se
para

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baixo em sinal de homenagem e de resignação à própria condição humana.


Nesse clímax, quem recebe uma reconfirmação da própria investidura não é
tanto a simbologia divina, mas aquele que eleva e que ativa os olhares.

O protótipo ritual originário, posto em conexão com a monótona potência da


missa, alcança uma significativa metamorfose cultural em sua atividade
simbólica em transformação. Também nesse caso, a oposição monotonia-
transformação, culturalmente produtiva, resolve-se num fortalecimento
atualizado do protótipo. O consumo do sempre igual tem na missa a forma
ideal que acompanhou a constituição de uma hipo-estrutura caracterial —
modelada por séculos de repetição cotidiana daquele “espetáculo” —‘ desde
modos de produção pré-capitalista até a invenção capitalista da “forma
cinema”. O enredo da missa é fixo, os personagens são sempre os mesmos,
resumíveis num cânone que, por seu turno, é análogo em suas linhas gerais
tanto à “paixão de Dioniso” quanto ao roteiro de qualquer filme: o herói como
transubstanciação da “paixão de Cristo”; o seu antagonista como anti-Cristo; o
princípio da realidade de tipo patriarcal e instrumental, que produziu uma
determinada sociedade, com suas idéias, seu habitat, suas regras; o momento
passional, usualmente feminino ou “expressivo”, com seus valores
antiutilitaristas, eternos ou “naturais”. Também a sucessão dos elementos que
compõem o rito é sempre a mesma, e sua irreversibilidade canônica é análoga
ao enredo fílmico. A única variação cotidiana admitida é o sermão interpretado
pelo padre ou pelo herói no momento culminante.

O rito da missa funcionou como protótipo do cinema em- si e para-si. O


desenvolvimento da teogonia fascina e atrai precisamente na medida em que é
sempre igual. O modelo cultural forjado em nível multigeracional impele o
crente, através da coerção, a repetir, a esperar a réplica dos mesmos eventos
durante o drama do Gólgota, cujo modelo espiritual será reproduzido durante
todas as fases do ritual fílmico. O fato de que também nesse caso a história
reproduzida seja sempre a mesma não é algo indiferente, mas sim uma
exigência indispensável, com a finalidade de mostrar como sempre
reconfirmada a eterna e imutável ordem das coisas. A própria arquitetura das
duas salas e idêntica. Há platéia, galerias e corredores no meio. Como se
costuma dizer, para ambos os ritos o importante é participar, não

Página 48

no sentido de transformar a própria presença em práxis, mas de adaptar-se. O


sentido do drama cosmológico divino — nascimento, afirmação e morte do
herói, depois o sacrifício da ressurreição até a vitória do bem — é mimetizado
pelo espectador em seu comportamento para consumir o rito: a apresentação
do ingresso, a entrada na grande e escura sala de projeção, a reconfirmação
da aventura, a saída para o ar livre à guisa de ressurreição, o feliz retorno para
casa. Talvez a única distração seja permitida pelo ingresso na sala do último
degrau na hierarquia das respectivas instituições: o velhinho que vende doces
e pipocas, e o sacristão. E ambos esses marginais, discreta mas
irresistivelmente, tomam-nos os últimos níqueis. O fato de que se volte sempre
ao cinema (ou à missa) para ver sempre a mema história, saber que é preciso
revê-la e desejar a coerção para poder suportar a ordem de coisas existentes,
tem sua origem na articulação entre hábitos imprimidos nos anos da puberdade
e hábitos herdados hipo-estruturalmente desde a gênese da civilização. A pena
prevista para a infração é a danação eterna, como para qualquer genealogia da
moral que funcione. A modificação da história é permitida, para ambos os ritos,
pela combinação de elementos já preestabelecidos e universalmente
conhecidos, além da tolerância em face das variabilidades culturais. Exceções
são possíveis somente graças a maciços investimentos financeiros e à
participação dos mais importantes “atores” disponíveis no mercado para o
remake da Via Crucis no Coliseu ou do Quo Vadis? em primeira apresentação.
A transmissão direta da Missa dos Alpes celebrada pelo papa, ou a premiação
em Hollywood na noite das estrelas, são homólogos pela quantidade de
investimento necessária e pelo sucesso de público garantido. Ninguém pode
objetar nada ao siogan que faz propaganda do Jesus Cristo Superstar como o
maior espetáculo do mundo, O capital investido nos exteriores desse filme,
rodados nos locais originais, é da mesma “natureza” e do mesmo “espírito” do
investido no retorno do papa à Palestina. E taxa de juros é a mesma, O fascínio
da autenticidade, ainda

Nota de rodapé

33. Diz Nietzsche: “Põe algo em foco para que reste na memória: apenas o que
não deixa de fazer mal continua na memória. Esse é um axioma da mais antiga
(e, infelizmente, também da mais longa) psicologia da terra” (Genealogia deila
morale, Milão, Mondadori, 1979, p. 44).

Página 49

que mediatizado pelo cinema e pela televisão, assegura o aumento do índice


multinacional de audiência. Indignar-se com uma coisa e comover-se com
outra, como fazem com gosto rétro os católicos integristas, significa continuar a
não perceber que — apesar da diferença de estilos — é cada vez mais clara a
identidade entre os gêneros. No hic et nunc, o sagrado — que, durante
séculos, esteve na vanguarda da capacidade de penetração cenográfica
universal — não poderia dispensar o profano, o qual, em sua genial aplicação
nos media, continua por sua vez o mesmo sulco traçado por aquele. De outra
maneira, o risco que corre o sagrado, na progressiva universalização do palco,
é ser marginalizado das consciências. E do desenvolvimento do Espírito.
Assim, a aliança entre o sagrado e o profano, para a qual estão atentos os
católicos progressitas, pode mostrar no filme uma Madalena um pouco
feminista e um pouco asiática, capaz de tocar na carne de Cristo somente na
medida em que foi sublimada em película. E o Judas formato black power
consegue contentar a todos: conquista tanto as minorias raciais, a sociologia
avançada e os amantes do rock pesado, quanto os reacionários silenciosos
que sempre haviam pensado que não se pode confiar nos niggers. Já Cristo,
louro e de olhos azuis, tranqüiliza a estereotipia; e a obscura malvadez e a
pose de barítono de Caifaz confirmam a imutabilidade ontológica da
corruptibilidade, da perfídia de todo político e de toda razão de Estado. À
parábola, corresponde a moral do filme, assim como corresponde à
interpretação concedi- da exclusivamente ao clero, no caso das sagradas
escrituras, o critico oficial, inscrito no catálogo de profissionais, como condição
para estar habilitado à exegese encomendada do filme34. Numa contínua
inversão de posições, o sagrado recorre agora ao profano, descobrindo que a
dublagem é mais realista do que a língua original; e assim, lentamente,
conforme o seu método, a Igreja decidiu-se a “dublar” a missa do latim para as
línguas nacionais, a fim de atrair mais a atenção do público para o
desenvolvimento do drama e tentar frear a tendência ao afastamento.

Nota de rodapé

34. Sobre a crítica da interpretação, ver H. M. Enzensberger, “Una modesta


proposta per difendere la gioventó daile opere di poesia”, in Quaderni
Piacentini, ns 66-67, 1978, pp. 135-141. E também o comentário posterior do
seu tradutor, A. Berardinellj, “Chirurgia estetica”, ibidem, pp. 143-147.

Página 50

“Sobre o caráter espetacular intrínseco às vicjssjtudes de Cristo”, escreve, por


exemplo, no século XVII, o padre jesuíta Juglaris: “Theatrum circumductilefact
et mundo; / deserere te nesciunt avidi spectatores, / quibus identidem aperis / in
novo miraculo novam scenam./ Orchestra divinitatis tu es / in qua sub persona
trzlicis / idem semper te Deus actor exercet ‘. “

As autoridades eclesiásticas, através de rígidos procedimentos buscaram —


com pleno êxito — purificar e ao mesmo tempo salvaguardar a liturgia de
contaminações pagás. O Concílio de Trento sancionou a imodificabjji dade das
regras, bem como o cânone da “repetição (e não da comemoração, como será
sancionado pelo Concílio de Trento, contra a prática protestante) do evento
radical, fundador, primigênio da vida de Cristo, sob o olhar do Pai presente e
dos fiéis”. A dialética da “encenação “ — que une o momento profano do rito
(cerimônia) e o momento sagrado (culto) — está bem presente precisamente
em que deve cuidar da direção, quando a Contra-Reforma impõe a escolha de
sacralizar ainda mais a cena. Assim, com efeito, observa o jesuíta Juglaris:
“São músicos que cantam as Vésperas mas com os mesmos tumultos das
comédias ou dos bailes; quem não dorme se agita, ri, faz burla ou negocia; os
bancos das mulheres parecem a república das cigarras, as mais modestas
recitam a crônica semanal de suas aldeias; e as mais livres, que vieram apenas
para se mostrar, retêm os olhos e os ouvidos da juventude licenciosa; assim,
transformam-se em carnavais-do diabo as maiores solenidades de Cristo”37.

Mas esse escândalo tem uma razão interna ineludível, que tem uma rigidez
simétrica à liturgia. “Defendendo o caráter cênico da dramaturgia religiosa em
si, dos mistérios medievais, das representações sagradas do século XV, a
missa tridentina constitui essencjalmente o espetáculo da morte presente de
Cristo. Se
missa ortodoxa é sobretudo uma iniciação mistérica, e a ceia

Nota de rodapé

35. Padre Juglaris, Christus, hoc est Dei homini elogia, Lugdunj, 1642, cit. em
A. Fontana, “La scena”, in Storia dita/ia, op. cit., p. 807.
36. A. Fontana, op. cit., p. 806.
No original, há um jogo de palavras com “messa in scena”, que pode ser tanto
“encenação” como “missa em cena”. (N. T.)
Ibidem, p. 848. “Mas o belo é que — escrevia P. P. Vergerio em 1582 — aquele
evangelho da paixão é representado na forma de um palco”. Citado na p. 806.
Ainda em 1565, recorda A. Fontana em seu belo ensaio, “no primeiro sínodo
mi-

Página 51

protestante é sacramento e comunhão, na qual, através da palavra de


consagração que associa intimamente a comunidade de fiéis ao rito, Cristo
concede a salvação, mas não se oferece em holocausto, a missa romana —
fundada no princípio da transubstanciação das espécies eucarísticas — tem
sua essência na idéia sacrificial de Cristo’°.
O caráter cênico, ritual e simbólico da missa romana deriva do fato de que “a
comunidade, não chamada a ‘morrer’ com Cristo, mas a ‘assistir’ à sua morte,
toma parte na missa como num espetáculo, e será inútil a tentativa de
pregadores e moralistas, ao longo dos séculos, para pôr fim a tal atitude”39.
Essa tradição dará os seus frutos. Feuerbach afirmara que a especulação
inteiramente humana sobre o problema de Deus revela as angústias da
humanidade, já que é o homem que cria Deus e não o contrário: por isso, Deus
é espelho do homem. Ora, transformadas as relações culto-cerimônia em favor
do segundo ritual, é o cinema que irá transformar-se, por seu turno, em espelho
do homem. Deve-se mudar o modo de assistir a essas cerimônias modernas:
ver o filme deve significar refletir-se nele os tormentos dos desejos, da
violência, da morte, que ressurgem — ainda que deformados — nas figuras da
tela. Mas, mesmo para esse moderno espelho feuerbachiano, vale a objeção
que Marx já apresentara, segundo a qual esses tormentos refletidos não são os
do homem abstrato, mas aparecem como resultado da dialética humana entre
homem cultural, produtivo e hipo-estrutural. O filme, filiação do cinema, é
também filho de Deus. A hipo-estrutura “massifica” o cinema, ao passo que o
cinema “massifica” o rito.

O “mistério do quarto”
Essa dialética passado-presente que se produz no curso da missa (e, para nós,
também do filme) foi compreendida por

lanés, proíbe-se aos clérigos o uso da máscara e a participação em qualquer ti


pode entretenimento profano (...). Em 1585, Sisto V reafirma a proibição de tiue
clero use máscaras” (citado na p. 848).

Nota de rodapé

38. Ibidem.
39. Ibidem.

Página 52

Jung, ainda que no interior do seu habitual esquema arquetípj co.


Diferentemente do protestantismo, temos no catolicismo, “antes de mais nada,
o rito com sua função sagrada, que permite representar o vivo evento
significado pelo arquétipo e que, com isso, toca diretamente no inconsciente.
Quem é capaz, por exemplo, de escapar da impressão da missa, contanto que
dela se aproxime com um mínimo de compreensão?”

Ou seja: a missa tem a função de ligar a psique de quem dela participa com o
arquétipo; por isso, poucos conseguem resistir ao fascínio de seu rito (ainda
que estejam presentes passivamente) De importância central é o conflito entre
o Bem e o Mal, que passa do pensamento simbólicoreljgjoso — com um
maniqueísmo ainda mais absoluto — para o cinema. Diferentemente da
linguagem literária — à qual pertencem a introspeção psicológica, as
problemáticas do absurdo ou da angústia —, o cinema não enfrentou (a não
ser como exceções) as grandes questões da crise de civilização que
atravessamos, com a formação crítica adequada de um tipo antropológicoradj
em parte por causa da especificidade de sua linguagem e, em parte, porque
simplesmente não interessa. A máquina de filmar era e é etnocêntrj e o centro
em torno do qual gira a representação filmica é a civilização patriarcal cristã-
burguesa sob condições reificadas mesmo quando por trás das câmaras está o
“dialético” Eisenstein ou o olho “maoísta” do “Destacamento Vermelho
Feminino”. É difícil dizer com precisão quais são os componentes estruturais
internos ao medjum específico (sua forma lingüística que predetermina OS
conteúdos), ou, ao contrário, quais são os componentes de tipo cultural ou
hipo-estrutural; mas, certamente, não se pode afimar que a constância com a
qual a problemática gira em torno das questões do Bem e do Mal seja redutível
apenas ao aspecto técnico do ato de fazer cinema. A insuficiência da reflexão
certamente importante, mas não explica suficientemente a dialética dogmática
dos brancos cavaleiros teutônicos contra os negros soldados da grande
Rússia, ou a fisionômica mais vulgar na representação do contraste amigo-
inimigo. A concepção de tipo lombrosiano do herói e do seu antagonista
unificou todos os grandes diretores (além, natu-

Inicio da nota de rodapé


40. Jung, La simbo/ica dei/o spirüo, op. eis., p. 267.
Fim da nota de rodapé

Pagina 53

ralmente, dos pequenos), das mais diferenciadas concepções políticas. Talvez


a compreensão dos elementos hipo-estruturais — que estão presentes,
inclusive, nos autores que vivem as situações subjetivamente mais
revolucionárias — possa nos aproximar da solução do problema.

Isso coloca para o cinema a necessidade de resolver o “mistério do quarto”. Já


expressamos nossas idéias sobre Jung. Ele representa o que Marcuse definiu
como a ala direita da psicanálise, fautor de uma “pseudomitologia
obscurantista”: mas é ainda mais obscurantista continuar a ignorar todos os
problemas simbólicos (mito, rito, dogma), que as inquietantes ressurreições
religiosas demonstram que são muito enraizados na hipo-estrutura e são
perigosas quando dela escapam. Por motivos de espaço, mas também de
relativo interesse com relação a nossa argumentação, remetemos à leitura
direta do texto original para todas as interpretações junguianas sobre a
simbólica dos números três e quatro. Aqui basta recordar como, em substância,
ele critica a ausência — na história oficial da teologia cristã, da figura de
Satanás, o “adversário de Cristo”: “O diabo é autônomo; ele não pode ser
sujeito à soberania de Deus, já que, de outro modo, não seria adversário de
Cristo, mas apenas um instrumento de Deus. O um, o indefinível, na medida
em que se desenvolve em dualidade, torna-se algo definido, ou seja, o homem
Jesus, o Filho e o Logos. Essa afirmação é possível somente por meio de um
outro, que não é Jesus, nem Filho ou Logos. Ao ato de amor no filho,
contrapõe-se a negação de Lúcifer”.

Deus, tal como é descrito no Velho Testamento, no segundo dia, depois de ter
criado as águas inferiores e superiores, não disse, como nos demais dias, o
que era bom: “e não o disse precisamente porque, no segundo dia, Deus teria
criado o Binarius, o número dois, a origem do mal”43. Desse modo, segundo
Jung,

Inicio da nota de rodapé


41. Ibidem, em particular o cap. “Saggio d’interpretazione psicologica dei
dogma deila Trjnità”.
42. Ibidem, p. 250. Sobre a crítica da religião, cf. a obra de E. Feuerbach,
L’essenza dei cristjanesimo, Milão, Feltrineili, 1978. E a importante investigação
de A. Schmidt sobre esse filósofo. in II materialismo antropologico di L.
Feuerbach. Bari, De Donato, 1975. Finalmente, cf. S. Freud, “L’avvenire di una
ilusione”, in Ii disagio dei/a ciriutà, Turim, Boringhieri, 1971; E. Fromm, Dogmi,
gregari e riuoluzionari, Milão, Edizioni di Comunità, 1973; T. Reik, Psicoanalisi
deita Bibbia, Milão, Garzanti, 1978.
43.Jung, op. cit., p. 250.
Fim da nota de rodapé

Pagina 54

não há mais dúvidas sobre o fato de que “de vida comum não respiram apenas
o Pai e o Filho luminoso, mas também o Pai e a criatura tenebrosa”. Por isso, é
necessário combater o “reino do pensamento trinitário”, reconstituir a justa
relação entre Cristo e o Diabo, e restabelecer sua relação originária de
“opostos equivalentes”. A antítese entre eles deve representar “um conflito
levado ao extremo e, com isso, também uma tarefa secular para a
humanidade, até aquele ponto ou aquela virada do tempo em que bem e mal
começam a se relativizar, a se colocar em dúvida, e eleva-se um grito dirigido a
um para além do bem e do mal”.

Esse objetivo, sempre segundo Jung, não é possível na era cristã, na medida
em que a aceitação do mal numa “relação lógica com a Trindade” provocaria
conflitos demasiadamente violentos. Todavia, conserva-se a verdade, que é
pretendida pelo símbolo da especulação religiosa, não mais — e nem mesmo
Jamais — em forma trinitária, mas sim segundo o modelo desta formação
quaternária;

Inicio da imagem

Fim da imagem

Observação: solicite auxilio visual.

Diz Jung: “Quando Deus revela seu ser e se torna algo determinado, ou seja,
um homem determinado, então seus contrários devem se cindir: aqui o bem, lá
o mal. Assim, os contrários latentes na divindade separaram-se na geração do
Filho e se manifestaram na antítese Cristo-Diabo”

Inicio da nota de rodapé


44. Ibidem, p. 251.
45. Ibidem, p. 252. Apesar de alguns apelos esporádicos da máxima hierarquia
eclesiástica — como ocorre com o papa Paulo VI , o tormento da imagem do
diabo e de sua presença no mundo está em irreversível decadência: é algo que
serve, no máximo, a algum mau filme “espiritualista” como O exorcista, onde
essa decadência se torna proporcional à exigência de ter de se representar a
essência “diabólica” nào mais em termos de tentaçào da carne ou de
meditações sobre o espírito, mas na vulgaridade de vômito verde, olhos
amarelos, crucifixos defloradores, etc.
Fim da nota de rodapé

Pagina 55

A simbólica da quaternidade, com muito maior força que a da trindade, volta a


revelar a existência do diabo como verdade teológica originária: com efeito, o
quatro é o duplo de dois e “Binarius é o diabo do dissídio e também o
feminino”, O catolicismo oficial buscou atenuar essa sua verdade (utilizando a
figura da Madona), ao passo que a concreticidade do modo de viver e de
pensar cotidianos, ao contrário, conseguiu conjugá-la no curso de todo o
processo de civilização cristã-burguesa. Em todo dito popular ou filosófico, o
diabo é mulher e a mulher é o diabo. A unidade da figura dos dois é sincrônica
e estrutural, e não separável da contemporânea figura viril de Cristo. Jung tem
o mérito de explicitar uma verdade conhecida mas silenciada, naquela que
define como “a busca do quarto perdido”, cuja solução consiste em redefinir o
“Lúcifer caído”.

Se invertermos agora a interpretação ideológica de Jung através de uma


colocação antropológico-dialética, poderemos realizar uma descoberta de
grande interesse acerca da razão pela qual, no dogma da Trindade, o Espírito
Santo substitui a mulher na relação que, de outro modo, apareceria “familiar
por excesso” de Pai - Mãe - Filho: a troca é determinada pela preocupação de
eliminar qualquer dúvida sobre a origem da vida em geral e do Cristo em
particular, que poderia levar à certeza de ter sido o resultado de um
acoplamento sexual. Nem formas simbólicas da natureza primordial (exemplo:
Urano e Géia) nem muito menos da família normal (exemplo: Pai e Mãe) têm
dignidade mistérica capaz de poder representar a origem da vida. Ela, pela
simbólica do Spiritus, deve ter a forma e o conteúdo da partenogênese. Assim,
a expulsão da sexualidade como origem causal da vida pode se tornar modelo
geral da condenação da sexualidade enquanto tal, do princípio do prazer, que
termina por se concentrar apenas no corpo da mulher, Desse modo, a “fêmea”
eleva-se a símbolo de “natureza” e de diabolus e sofrerá a condenação de toda
uma civilização: “De nosso oposto ponto de vista, o dogma da Trindade deve
ser finalmente dissolvido enquanto expulsão drástica de qualquer referência à
sexualidade a fim de motivar a geração do mundo. A Trindade foi inventada e
dogmatizada contra a ‘conjunção’ de elementos naturais (inorgânicos) ou da
carne (orgânicos): e, para esclarecer esse conceito, a mulher foi expulsa da
imagem trinitária. A família arquetípica substituiu a gravidez feminina pelo
mistério

Pagina 56

da gravidez espiritual, O Espírito Santo é o sucedâneo sublimado do


destronamento do amor materno (e material), que o mito grego ainda
identificava com as funções primigênias: ‘a interpretação materna reduziria o
sentido específico do Espírito Santo um modelo primitivo’, diz Jung. A Trindade
— enquanto oscilação entre antropomorfismo e seu contrário (o Logos)
funciona como dogma precisamente enquanto assexuada, Já virgem Maria, ao
contrário, resiste o lado antropomórfico, que pode reivindicar os velhos direitos
matriarcais, na condiçáo de renunciar à penetração”.

Todavia, há mais verdade para a compreensão de séculos de repressão


nessas análises abertamente reacionárias de Jung do que na história oficial,
tendente a ocultar a função “mal-estar- mente civilizadora” * que teve o “espírito
diabólico”. A ecologia cristãburguesa não soube resolver essas suas escórias
interiores; e, em todas as vezes que se pôs em movimento uma dinâmica
sócio-cultural que deu forma e organização pública ao chamado “retorno do
reprimido”7 a totalidade do universo oficial — Estado, religião, intelligentsia —
capitulou sem excessiva resistência. Toda cultura de massa — positiva,
metafísica, materialista — continua a ter por objeto a demonização do outro e a
beatificação do próprio si mesmo e do próprio grupo.

Deve-se dizer, finalmente, que Jung não consegue mais — globalmente —


controlar as relações entre os quatro elementos, de modo que, depois de ter
compreendido a natureza simbolica mente feminina de Spiritus, volta a lhe
emprestar a definição tradicionalmente lógica (ou seja, teológica) enquanto
“explicitação da unidade do Pai na multiplicidade do Espírito Santo”. Todavia, o
quanto o esquema quaternário ou “satânico” tenha influenciado o sistema hipo-
estrutural do gênero humano de cultura cristã-burguesa (e a natureza do
cinema é, como veremos, etnocêntrica por excelência) é algo que pode ser
verificado

Inicio da nota de rodapé


46. M. Canevacci, Dialettjca dell’individuo Roma, Saveili, 1978, p. 93 (ed.
brasileira Dialética do indivíduo, São Paulo, Brasiliense, 1981), Jogo de
palavras com o título da famosa obra de Freud, O mal-estar na civilização. (N.
T.)
47. Os erros de nossa civilizaçào são como minas que é necessário explorar —
ainda que dolorosamente — a fim de compreender a origem do fascínio que,
apesar de tudo, exerceram e ainda exercem sobre o homem. Jung, op. cit., p.
254.
Fim da nota de rodapé

Pagina 57

se aplicarmos o mesmo esquema, certamente em sua forma invertida, ao


cinema enquanto tal. Esse método quer ser apenas uma espécie de chave que
penetra facilmente no cofre onde se oculta o segredo da demonização,
precisamente enquanto ela, por seu turno, é também demonizada. IJm uso,
portanto, nem neutro nem instrumental do esquema quaternário, mas
literalmente satânico, O similar é interpretado pelo seu similar; o sistema lógico-
teológico lê seu resultado empírico. Mas, antes, é necessário dar uma leitura
de transgressão (ou transversal) dessa simbólica quaternária, a fim de
explicitar os conteúdos formais e materiais nela presentes — ainda que em
forma invertida e espiritualizada, mas nem por isso menos concreta —, e os
modelos produzidos pela ordem da cruz arquetípica:
1) Fazer é tanto a origem de todas as coisas (arquifálica) como a determinação
histórico-social do ser, num contexto contemporâneo à ação. Em termos
psicanalíticos, representa o superego; em termos idealistas subjetivos, é, a
priori, condição do tempo e do espaço; e, em termos idealistas objetivos, é a
síntese primigênia, que começa a dar lugar ao processo de alienação de si, de
manifestação fenomenológica do mundo enquanto paixão de deus, a partir do
qual o seu sofrimento e o seu tormento darão forma àquela “viagem” que fará o
mundo retornar à sua realidade originária. Portanto, ele é — de qualquer ponto
de vista — o poder. Assim, para as relações de parentesco, é a potência genital
que dá vida à sucessão das gerações. No mito, é Laio; na epopéia, é Laerte;
na fábula, o rei; na religião, Deus; na economia, o capital: e, finalmente, no
cinema, é a síntese de tudo isso.

2) Filius: é a individualidade positiva, o Ego, ou o herói; representa um status


intermediário, de passagem, que encontra sua origem no Pater, e sua
finalidade em se tornar, por seu turno, sempre pater e, com efeito, a viagem é a
sua condição normal na ordem da narração. Ele viaja no conflito, dentro do
esplendor e da miséria do sensível; as provas que deve superar servem para
conquistar a meta da consciência individual e da racionalidade, Na figura do
herói, concretiza-se aquele processo que deve ter como fim o restabelecimento
do status inicial de tipo paterno, mas com um nível superior de
autoconsciência, determinado pelo fato de ter sofrido a “paixão” do mundo
fenomênico. No mito, é Édipo; na epopéia, Odisseu; na fábula,

Pagina 58

Ivan; na religiào, Cristo; na economia, o trabalho vivo; e, finalmente, no cinema,


é a síntese de tudo isso.

3) Diabo!, is; é contraposto a Filius, mas também lhe é contemporâneo. É a


individualidade negativa anti-Cristo e anti- herói, zona indistinta e incontrolada,
pulsionante e rebelde do id. As tendências à regressão pré-individual
configuram-no como similiar à morte, mas também ao prazer. A validação, por
assim dizer, jurídica de seu antagonismo ao herói lhe vem diretamente de sua
geração contemporânea à ação. Mais uma vez, o id se alia com o superego
contra o ego. No mito, é a Esfinge; na epopéia, o Ciclope, a Sereia, Circe, os
Comedores de Lótus; na fábula, Baba Jaga; na religião, Satanás; na economia,
o trabalho morto. No cinema, é a síntese disso tudo.

4) Spiritus: é a negação da negação, o elemento feminino irracional e


irrefletido, a fenomenologia da natureza. Como pré- consciente, está entre o
ego e o id: alia-se com Filius para derrotar (negar) a negação, e reconduzi-lo à
condição sintética de Pater, mas, ao mesmo tempo, a histeria binária de sua
natureza feminina leva-o aos braços de Diabolus. Aliás, é o seu alter-ego, nas
formas da tentação. No mito, é Jocasta; na epopéia, Penélope; na fábula, a
princesa; na religião, o Espírito Santo (mas também, numa heresia secreta
tolerada, a Madona enquanto ressurreição de Demeter); na economia, o tempo
“livre”. No cinema, é a síntese de tudo isso.

Não é certamente nossa intenção chegar a “fórmulas” que consigam explicar


tudo e elaborar uma síntese que compreenda a ampla multiplicidade de filmes.
Em qualquer fórmula — como na mandala, o círculo mágico que pretende
dividir a sacralidade do conhecimento da vulgaridade da empina —, conserva-
se a ilusão da reductio ad unum diante da multiplicidade do sensível. 49 A
desvalorização do que é material é a outra face da super- valorização do que
se estabeleceu — apesar e contra nossas intenções — entre uma simbólica do
cinema (que reflete, conscientemente e não, o etnocentnismo cultural de um
modelo de vida que produziu certamente a máquina-cinema, mas que re

Inicio da nota de rodapé


49. Sobre a simbólica do número um — que, não casualmente, Jung não
enfrenta mais do que em termos de hagiografia religiosa — e sobre sua função
prático-política, haveria muitíssimo a dizer no âmbito da esquerda em geral,
tanto na hierarquia dos partidos comunistas chinês e soviético, como na
hierarquia do ‘centralismo democrático”.
Fim da nota de rodapé

Pagina 59
monta bem mais profundamente às memórias arcaicas e estratificadas das
ritualizações) e uma simbólica do espírito (cuja definição pertence à reação
psicanalítica e mitológica fundada sobre o arquétipo, sobre a remoção
“civilizada” do mistério do quarto excluído: a dupla oposição entre Diabolus e
Filius e entre Pater e Spiritus). Esse sistema quaternário determinou os
modelos de vida mais profundamente do que muita cultura “culta”, oficial ou
implícita (costume). O problema que nos colocamos é saber como interpretar a
singular correspondência entre elementos aparentemente tão diferentes e tão
distantes entre si (cinema e espírito), para compreender que enigma de
civilização se oculta por trás dele. A cruz de quatro figuras elaborada por Jung
transforma-se numa espécie de peneira hipoestrutural, que filtra e especifica
questões de ordem antropológica, relativas às crises cíclicas da economia
política quanto à repetição simbólica dos ciclos da natureza; tanto aos valores
da cultura pós-industrial (de elite, de massa e popular) quanto ao sistema
simbólico e inconsciente, em conexão não somente com os modos de vida,
mas também com o “retorno” das pulsões recalcadas tanto em manifestações
sociais como inter e intra-individuais. Os sistemas rituais têm uma dimensão
filogenética, não apenas ontogenética. Talvez essa peneira hipo-estrutural
consiga derrubar aquela máscara rígida (mas, apesar disso, expressiva) que
oculta as muitas repressões filogenéticas unidas e distintas das historicamente
determinadas pelo modo de produção, que “retornam” ou continuam a
reproduzir-se em nosso modo de vida cotidiano.

Iremos agora aplicar a simbólica do espírito ao cinema, tomando como


exemplo cerca de trinta filmes, de estilos e épocas diversos, e conjugando os
quatro elementos da cruz arquetípica (Pater— Diabolus — Filius — Spiritus)
com as quatro simbólicas que todo filme reproduz, e que redefinimos
anteriormente numa interpretação “transversal”.

1)2001: uma odisséia no espaço

Inicio da imagem
Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
espacial, ponta direita: Hal (computador). De baixo para cima, Terra e Ciência e
técnica.

Pagina 60

2) Ivan, o Terrível

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Ivan, ponta
direita: Boiardos. De baixo para cima, Mãe Rússia e Estado.

3) Guerra nas estrelas

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Luke, ponta
direita: Darth Vader. De baixo para cima, Leia e A força (obi).
4) Cidadão Kane

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Kane, ponta
direita: Política/ Capital. De baixo para cima, Rosebud (Infância) e Poder.

5) A mãe

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói (não-
consciente), ponta direita: Czarismo. De baixo para cima, Mãe Revolução e
Proletariado.

6) O encouraçado Potiômkim

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Fim da imagem
Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Marinheiros,
ponta direita: Oficiais/Padres/Fardas czaristas. De baixo para cima, Revolução
e Povo.

Pagina 61

7) WaltDisney

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Mickey,
ponta direita: João Bafo-de-Onça. De baixo para cima, Minnie (casa e família) e
Ordem (Coronel Garcia).

8) Warriors, os selvagens da noite

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
(Lumpen), ponta direita: Capacetes. De baixo para cima, Portorriquenha e O
poder da Gang.

9) Sem destino (Easy rider)


Inicio da imagem

Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói “a-
normal”, ponta direita: Sul/Normalidade. De baixo para cima, Moto-Estrada e
Prazer (sexo-droga-rock).

10) Contatos imediatos de terceiro grau

Inicio da imagem

Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
“normais” meninos, empregados, ponta direita: Incredulidade. De baixo para
cima, Imortalidade e Ciência e técnica.

11) Western “padrão”

Inicio da imagem

Fim da imagem
Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
soldado, ponta direita: Índios. De baixo para cima, Mulheres-Fé-Amizade
Natureza e EUA (oeste).

Pagina 62

12) 1900

Inicio da imagem

Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
proletário, ponta direita: Anti-herói burgûes. De baixo para cima, Natureza
(campo) e Estado italiano.

13) A última mulher (L ‘ultima donna)

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Homem,
ponta direita: Falo. De baixo para cima, Mulher e Sexo.

14) Roma, cidade aberta

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
guerrilheiro, ponta direita: Nazistas. De baixo para cima, Mulher e Antifascismo.

15) A moça dos cabelos brancos

Inicio da imagem

Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Heróina,
ponta direita: Patrão. De baixo para cima, Consciência de classe e Comunismo.

16) O homem de mármore

Inicio da imagem

Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Birkut
(pedreiro), ponta direita: Burocracia. De baixo para cima, A diretora e
Comunismo real.
Pagina 63

17) o império dos sentidos

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Macho,
ponta direita: Hetaira. De baixo para cima, Eros e Tânatos.

18) o franco-atirador

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Caçador
soldado, ponta direita: Vietcongue (roleta-russa). De baixo para cima, Amor viril
e amor homossexual e Pittsburgh.

19) Cantando na chuva

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Ator
(bailarino), ponta direita: Som. De baixo para cima, Música-Dança e Cinema
(show).

20) Hair

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Hippie,
ponta direita: Pessoas Caretas. De baixo para cima, Sexo-Droga-Rock e
Guerra.

21) A lua (La luna)

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Fim da imagem
Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Joe, ponta
direita: Droga-Édipo. De baixo para cima, Mater (melodrama) e Pater.

Pagina 64

22) Hanging Rock

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Colegial,
ponta direita: Diretora. De baixo para cima, Motanha (fálica) e Estúdio.

23) Ensaio de orquestra

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Maestro,
ponta direita: Orquestra. De baixo para cima, Caos e Cosmos.

24) Mr. Klein

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Klein, ponta
direita: Anti-semitismo. De baixo para cima, Raça e Classe.

25) A gaiola das loucas

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Casal
“homo”, ponta direita: Casal “hetero”. De baixo para cima, Familia e Sociedade.

26) Rocky

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Rocky,
ponta direita: Campeão “pró”. De baixo para cima, Boxe e Hiererquia.

Pagina 65
27) A noite dos mortos-vivos

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Vivos, ponta
direita: Mortos. De baixo para cima, Natureza e Polícia.

28) Popeye

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Popeye,
ponta direita: Brutus. De baixo para cima, Olívia e New Deal.

29) O Pequeno Grande Homem

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Anto-herói,
ponta direita: Custer. De baixo para cima, Cheyenne e EUA (Oeste).
30) Ecce Bombo

Inicio da imagem

Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Estudante
Roma-Norte, ponta direita: Pai-A.Sordi Tédio-Vanguarda. De baixo para cima,
Cultura “de esquerda” e Comédia à italiana.

31) A árvore dos tamancos

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Fim da imagem

Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
camponês, ponta direita: Pecado. De baixo para cima, Fé Esperança Caridade
e Deus.

Pagina 66

Coloquemos agora sob os respectivos protótipos hipo-estruturais as várias


determinações que conseguimos obter, articulando a simbólica do cinema e do
espírito em nossa “peneira arquetípica”. Veja-se a tabela seguinte.
O resultado final que pode ser filtrado dessa “peneira arquetípica” é bastante
interessante. Sua relação com a verdade e a realidade deriva do fato de ser
uma chave de interpretação distorcida, e, precisamente por isso,
adequadíssima para penetrar na distorção antropológica presente nos valores
e nas simbólicas que o “espírito do cinema” reproduz. A monotomia formal das
características dos quatro personagens arquetípicos (Pater-Filius-Spiritus-
Diabolus) é evidente, apesar da variação quanto ao tema.

Este esquema resume de modo eficaz (em sua interpretação invertida, decerto,
e não ortodoxa) a crise antropológica de civilização que a forma cinema revela
e reproduz nesse modo de produção. A monotonia do caráter dos personagens
quaternários consiste na reproposição de uma estrutura prototípica, no interior
de aparência de mudança num sistema de variações quantificáveis e
intercambiáveis ad infinitum.

Inicio da nota de rodapé


50. No plano dos manuais técnico-profissionais, publicou-se nos Estados
Unidos uma série de volumes que cobrem todo o ciclo produtivo
cinematográfico, do diretor ao ator, do roteiro ao extra, com particular atenção
para a quantificação dos enredos. Veja-se o volume Industria culturale e
cinema in Usa negli anni dieci e venti, materiais documentários editados por A.
Abruzzese e B. Placido, Edizione “La Biennale” di Venezia, 1975. “Nesses
manuais norte-americanos, assistimos ao ponto de chegada do processo de
expansão social da arte que Hegel definiria como sua morte, e, assim como
desse processo ganhou vida, precisamente enquanto papel profissional e
técnico, a figura do diretor, do mesmo modo deriva de tal processo a
possibilidade de ‘fixar’ trinta e seis situações dramáticas, a partir de cujas
combinações pode-se construir o roteiro do filme, ou seja, ‘pescar’ a matéria-
prima necessária para a produção de uma determinada obra.” (Ibidem, p. 68).
Os volumes citados são o Palmerplan handbook e as duas Photoplay plot
encyclopaedia, publicadas pelo Department of Education de Los Angeles. Por
exemplo: analisa-se, com detalhes de tipo quase “estruturalista”, a “Terceira
situação: crime perseguido por vingança”, que prevê quinze tipos de vingança,
analisados em geral e detalhadamente. O texto é utilíssimo (veja-se a definição
do enredo na p. 100) para o conhecimento da metodologia da produção
cinematográfica. Exemplo: segundo uma “lei” que G. Polti formulou melhor do
que qualquer Outro, o “imaginário fílmico” é reproduzido por “apenas trinta e
seis situações dramáticas fundamentais, cujos matizes formam a base de todo
o drama humano” (Ibidem, p. 95).
Fim da nota de rodapé

Pagina 67

Inicio da imagem
Fim da imagem

Observação: solicite auxilio visual.

Pagina 68

ÉDIPO (esquema Q 1)

Inicio da imagem
Fim da imagem

Observação: solicite auxilio visual

Pagina 69

MEDÉIA (esquema Q 2)
Morfologia antropológica “quaternária e hipo-estrutural”
(um sistema de duplas oposições binárias cruzadas)

Inicio da imagem
Fim da imagem

Observação: solicite auxilio visual.

Pagina 70

(Esquema final n° 3)

Inicio da imagem
Fim da imagem

Observação: solicite auxilio visual.

Pagina 71

Desse modo:

— Filius é camponês, guerreiro, proletário, lumpen, soldado, guerrilheiro,


empregado, cosmonauta, maestro, estudante, showman, animal
antropomórfico, atleta, homo e heterossexual, macho,
— Dia bolus é boiardo, capitalista, czarista, padre, policial, índio, nazista,
vietcongue, pecador, integrado, computador, gângster, falo ereto, pai, monstro,
droga, comunista, hetaira.

— Pater é ciência, Estado, poder, povo, ordem, classe, guerra, cinema,


cosmos, hierarquia, New Deal, plano qüinqüenal, comunismo “real”,
comunismo “ideal”, anticomunismo, Deus,

— Spiritus é terra, pátria, mãe, revolução, infância, imortalidade, natureza,


consciência de classe, música, montanha, raça, amizade, família, sexo, caos,
fé-esperança-caridade.
Em síntese, pode-se afirmar que o protótipo arcaico atua no estereótipo e que,
vice-versa, a estereotipia reificada está no interior do sistema de protótipos.

Para superar a estereotipia, é necessário destruir os modelos prototípicos que


a nossa civilização arrasta antropolo,gicamente consigo, e, ao mesmo tempo,
para superar o protótipo é necessário destruir os modelos estereotípicos que o
nosso modo de produção reproduz continuamente.

O Cristo dos Evangelhos, canonizado todos os dias nos altares, e o Gary


Cooper de Matar ou morrer, reproduzido todas as noites nas telas, são modelos
muito mais afins do que se possa supor. O protótipo-Cristo e o estereótipo-
xerife fortalecem-se numa interação funcional, como “cisão inteligente” de uma
única exigência que fortalece os laços subterrâneos entre religião e cinema. A
supera ção da alienação mítico-religiosa (é o homem que cria deus, projetando
nele angústia e desejos que se reproduzem de geração em geração, mas que
mergulham suas raízes nas memórias arcaicas) não coincide com a supera ção
da alienação contemporânea (é o homem que cria as mercadorias, mas isso
não lhe é reconhecido, nem ele mesmo o reconhece, razão pela qual, em vez
de destruir o caráter de fetiche, é por ele subjugado a ponto de nele projetar a
satisfação dos mesmos desejos e angústias). Tornou-se necessário reivindicar
a superação de ambas, enquanto dois momentos separados e a separar,
mesmo que se apresentem como cada vez mais mesclados entre si, porém
nunca unificados — como ainda podia pensar Marx — pelo homem social.

Pagina 72

Mesmo as recentes inversões das funções de caracteriologia quaternária —


que fazem com que as características que foram as do herói, na fase do
cinema que é precisamente chamada de “heróica”, tornem-se aquelas de seus
antagonistas na fase mais propriamente multinacional da indústria
cinematográfica — não são mais do que atualizações no interior do mesmo
esquema. Era bem diferente a inversão das máscaras, que, na tradição
carnavalesca, costumam pôr em desordem os papéis do servo e do senhor. A
genealogia das imagens inconscientes não arquetípicas adequa-se às
exigências de produzir novos “arrepios” organizados. É a rotação das funções
aplicada
industrialização do tempo “livre”. Mesmo que alguns papéis de Filius e Diabolus
sejam intercambiáveis, continua sempre idêntica a função deles no interior do
esquema, na medida em que continua a mesma a lógica (ou o espírito) que os
constituiu nessa contraposição binária, que é tanto mais ideológica na medida
em que se põe como eterna. É o mecanismo de representação interno às
quatro figuras simbólicas que tende a reproduzir o retorno do idêntico,
independentemente de o ponto de partida ser racista, fascista, comunista, de
ficção científica ou de história em quadrinhos, O esquema de relação
permanece imodificado, marcando o caráter “diabólico” do antagonista, não nos
traços inferiores, mas nos exteriores, públicos, por assim dizer, precisamente
porque o espectador reconhece nessa dimensão o mal, de acordo com esse
preceito: a fisionômica fílmica deve uniformizar todos os componentes
ideológicos do cinema, no mesmo momento em que a antropologia criminal de
tipo lombrosiano — equivocada de modo demasiadamente evidente — é
“oficialmente recusada”.

A potência interior da máquina de filmar esmaga todas as diferenças sob o


medium do seu objetivo.
Porém, o que surpreende ainda mais não são apenas as conclusões sobre a
monotonia do caráter do herói e a inversão de suas funções, mas sobretudo os
resultados que se obtêm relacionando entre si as simbólicas das oposições
binárias — ou seja, Spiritus e Diabolus —, as quais, enquanto números pares e
ímpares, são afins entre si. Vimos que Jung se contradiz ao referir-se à
natureza “secreta” feminina como Spiritus, de onde deriva a conexão
arquetípica entre Satanás e Mulher, enquanto posteriormente reflui — talvez
temendo as conseqüências, no

Pagina 73

plano das conclusões lógicas — ao entender Spiritus segundo a ortodoxia


religiosa. E, com efeito, as conseqüências são precisamente temíveis, na
medida em que desmascaram — se não são mais usadas sob o signo
repressivo do arquétipo, mas da tentativa de compreender nossa crise de
civilização usando as mesmas redes conceituais que esse sistema produziu —
as afinidades culturais subterrâneas que a forma cinema reproduz. Desse
modo, o sistema de valores “de tipo rede” aparece completamente abalado: os
significantes opostos se homogeneizam, a fachada pública do filme singular
esconde os vícios privados do cinema como um todo. O mecanismo perverso
de civilização, no qual este último está imerso, revela os seus pecados sob a
forma de degenerescências revolucionárias ou de verdades reacionárias.
Vejamos agora como se relacionam entre si as afinidades das simbólicas
“negativas”, revelando como sendo convergente aquilo que parecia divergente:

1) para todo cidadão Kane que morre, as últimas palavras não serão dedicadas
à nostalgia da infância perdida, mas ao capital que escapa juntamente com a
vida (cf. n 4);

2) a mãe Rússia de Eisenstein (n 2) ou a mãe revolucjonárja de Pudovkin (n2


5) tendem secretamente a reproduzir uma estrutura social onde ressurgem os
modelos dos boiardos ou do czarismo;
3) a jovem portorriquenha que se põe a seguir os Warriors (n 8) deseja uma
sociedade de capacetes, mas isso é mais do que evidente a partir dos
discursinhos finais, idênticos aos de qualquer casal que está em vias de ser
aceito por um banco;

4) o filme subversivo on the road de Sem destino tem em seu interior o


conformismo cultural característico de qualquer indivíduo modelado no Sul
profundo e reacionário; com efeito, este último, além de matar o não-
conformista, ressuscita-o e lhe transmite sua aspiração de acomodar-se à
ordem (n 9);

5) o elogio supertecnicizado da imortalidade em Contatos imediatos revela toda


a incredulidade de Spielberg na ressurreição da carne (n 11);
6) a nostalgia da natureza e do campo em Bertolucci não é mais do que a
apologia do anti-herói burguês e metropolitano (n 12);

7) a autocrítica masculina de Ferreri sobre a agressividade fálica (Q 13)


esconde uma sua profunda obsessão — característica

Pagina 74

dessa cultura sexofóbjca —, ao ver a primeira como a última mulher atraída


pecaminosamente pelo falo;

8) a Leia de Guerra nas estrelas (n 3) visa a um poder intergalático idêntico ao


de Darth Vader; a Minnie de Disney (n 7), a um mundo modelado com base na
ilegalidade de João Bafo-de-Onça; Olívia Palito (Q 28), à violência de Brutus; a
consciência de classe da heroína do filme chinês (n 15), a uma consciência
produtivamente patronal;

9) a articulação entre amor viril e amor heterossexual de Franco-atirador — por


inexorável afinidade binária — a riscos tão supremos e inúteis quanto a roleta-
russa dos vietnamitas ou dos boys dos EUA (n 18);
10) o melodrama maternafista de Bertolucci (n 21) é apologia pública do seu
complexo de Édipo privado;

11) o caos Sócio-musical de Fellini (n 23) — que, infelizmente, jamais lerá o


Fido maestro sostituto de Adorno, a fim de não mais enfrentar apólogos
agripinos — situa-se inteiramente na multidão da orquestra;

12) naturalmente, a idéia de família na comédia de tipo francês (n 25) é de


evidente marca heterossexual;

13) as virtudes cardeais de Olmi (Q 13) são a outra face do pecado; como se
sabe, vícios e virtudes têm uma sagrada e sádica tradição em comum;

14) a admiração de A. Penn (n 29) pelos Cheyenne é análoga à que o cinema


americano de outrora podia experimentar, sem traumas, pelo general Custer.

Assim, o sistema de oposições que o cinema (tal como nossa cultura e a


herança hipo-estrutural) reproduz entre Filius e Diabolus é secundário com
relação às convergências que a afinidade “secreta” e “binária” consegue revelar
nos mesmos Spiritus e Diabolus. A peneira arquetípica hipo-estrutural põe na
forma de cruz quartenária as simbólicas de uma concepção do mundo
profundamente repressiva, co-presente em nosso esquema de civilização,
uniformizando sob seu signo as aparentes contradições progressistas ou
conservadoras O etnocentrismo interior da máquina cinema conseguiu dobrar
culturas diferentes entre si. Para retirar da civilização fílmica essa máscara,
enrijecida há algum tempo na fisionômica, é mais útil a aplicação de

Pagina 75

uma simbólica binária, na medida em que aquela penetra mais facilmente — se


invertida — nos segredos deformados pela repressão. Ambos — simbólica e
cinema — modelaram-se com base no mesmo etnocentrismo plurigeracional. É
necessário escapar do modelo antropológico que fez do diverso o feio; do
inferior, o terioforme; do superior, o deiforme; do idêntico, o belo. Somente a
perspectiva de superar essa maldição do maldito — ou o seu contrário, a
perfeição do perfeito —‘ nas esferas da cultura, da consciência e da práxis,
pode libertar a humanidade de um legado hipo-estrutural bastante articulado
com a comunicação pós-industrial. Jung diz que a imagem do “homem cósmico
primordial” — o Anthropos — passou de Jeová para Cristo, e deste para os
santos; e, para todos nós, também para Filius no espírito do cinema. Mas, dos
numerosos “simbolos terioformes” — ou seja, com forma de animal, presentes
na iconografia cristã —‘ Jung elege apenas três, em específica referência à
nossa cruz quaternária: o cordeiro para Cristo, a pomba para o Espírito Santo,
a serpente para Satanás.51 Não é casual, nem apenas o fruto de um respeito
teológico, que ele negligencie precisamente a primeira simbólica — a do Pater
—, a qual, enquanto permanecer oculta, impedirá qualquer tentativa de
libertação: ela representa o animal masculino adulto, que, como se deveria
saber, primeiro transfigurou e depois auto-representou sua figura patriarcal
como Deus.

Inicio da nota de rodapé


5LJung, op. cit., p. 261.
Fim da nota de rodapé

Pagina 76 – Em branco

Pagina 77

O gênero

“Também o diabo não tem nenhuma sombra; e é por isso


que deseja tanto a dos homens.”
O. Rank
O universo cinematográfico é o conjunto imediato de todos os filmes, histórias,
firmas de produção e distribuição (públicas e privadas), atores, técnicos,
diretores, etc., cujo movimento realiza a totalidade do gênero cinema. Do
mesmo modo como o conjunto dos contos de fadas constitui uma unidade que
tem como resultado o gênero fábula, cujos elementos são o enredo, a floresta
misteriosa, a grande casa, os presentes, as terras distantes, a esposa, etc. Se
se decompõe a estrutura íntima de cada filme para abstrair seus elementos
constantes e chegar à lógica global do cinema, à sua essência, descobrem-se
— não talvez sem arrepios — algumas subterrâneas afinidades (ao lado de
tantas diversidades) com as ritualizações precedentes, entre as quais, por

Inicio da nota de rodapé


1. Sobre essa questão, cf. Eibl-Eibesfeldt, Amore e odio, op. cit., em particular o
capítulo “Filogênese e ritualização”, pp. 5 1-76. Sobre a interpretação simbólica
do rito, cf. R. Firth, 1 simboli e te mode, Bari, Laterza, 1977, em particular o
capí
Fim da nota de rodapé

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exemplo, a fábula, até chegar ainda mais longe, ao mito e à mimese. Em


particular, é precisamente a mimese que constitui o principal elemento de
ligação entre passado e presente.

A função que a fábula exerceu no passado pré-capitalista, assim como o


esquema narrativo do rito religioso, é em grande parte herdada agora pelo
cinema em conexão sintética com todo esse passado. A morfologia do cinema
impõe a conclusão de que a história narrada — seu significado oculto e
evidente — é sempre a mesma, e que somente o acessório pode ser uma
variação socialmente aceita.2 A essa regra, adequou-se (de resto, como
veremos, há séculos) o público espectador, impelido por uma secreta pulsão a
ver reconfirmado o retorno do sempre idêntico, que não é apenas socializada
na infância pela família e pela sociedade, mas que parece também confirmar a
hipótese de uma gramática genética do comportamento A enorme variabilidade
de mitos, parábolas, fábulas escondia uma íntima essência unitária, que a
análise estrutural e morfológica teve o mérito de ser a primeira a destacar,
ainda que as relações entre cultura, estrutura e inconsciente fossem
insuficientes.

O eterno retorno, mais do que manifestação de subversão social ou vontade de


penetração nos mistérios do ser, tornou-se há muito um funcionário que
organiza os media e, em particulai o cinema, com garantia patenteada de
sucesso. As respostas que o gênero cinema consegue dar à ideologia do
eterno retorno, revivescência visual das conhecidas “invariantes
antropológicas” (além de continuar a mascarar as questões hipoestruturais
reais), reconfirmam a centralidade da mais perversa e perigosa das alianças,
que é reproduzida e socializada em escala de massa no capitalismo Pós-
industrial: pulsões, instintos, in-

Inicio da nota de rodapé


tulo “Posições da antropologia moderna sobre os processos simbólicos’ pp.
149-187; e o já citado texto de Frazer, li ramo d’oro.
2. A esse componente “genérico” do cinema tendem também aqueles filmes
que parecem pôr em discussão qualquer regra precedente, mas que servem
para experimentar as novas técnicas que — aperfeiçoadas e serializadas —
poderão enti-ar a pleno título no “gênero oficial”. CL, por exemplo, a utilização
de técnicas experimentais por Kubrick nas tomadas tanto da “viagem” final
intergalática e interindividual, em Uma odzsséia no espaço, quanto do interior
da tenda apenas com a luz da vela, em Bany Lindon; ou Warhol do underao
ouergrounci ou, finalmente, N. Moretti e a “ingenuidade” dos primeiros super-8.
3. Sobre essas questões, cf. o debate sobre Propp, Lévi-Strauss Kerényi,
Freud e Jung, do qual já fornecemos as referências bibliográficas.
Fim da nota de rodapé

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consciente são pré-formados no momento de sua “saída pública” da estrutura


produtiva em funcionamento, até o seu “reingresso privado” por obra do
superego, transformado agora em agente da reificação no interior de cada
indivíduo. Desse modo, a cultura (superestrutura) do gênero cinema forma um
sistema de relações que o articula, por um lado, com a produção de
mercadorias (estrutura) e, por outro, com a reprodução de pulsões e memórias
(hípo-estrutura).

A cisão estratificada entre cinema “sério” e cinema “leve” tem a mesma função,
no plano da qualidade socialmente mascarada, que a da programação em
salas de “primeira” e de “segunda” exibição, no plano da quantidade. Falar de
“gênero” no cinema só tem sentido se se usar a categoria única da
estandardização: “Para todos é previsto algo, a fim de que ninguém possa
escapar: as diferenças são cunhadas e difundidas artificialmente, O fato de
oferecer ao público uma hierarquia de qualidade em série serve apenas para a
quantificação mais completa. Cada um deve comportar-se, por assim dizer,
espontaneamente, de acordo como seu levei determinado previamente por
índices estatísticos, e dirigir-se para a categoria de produtos de massa que foi
preparada para seu tipo. Reduzidos a material estatístico, os consumidores são
distribuídos, no mapa geográfico da administração dos estúdios (que não mais
se distinguem das agências de propaganda), por grupos de renda, em campos
vermelhos, verdes e azuis”.

Essa auto-seleção é a única adequada à máxima funcionalidade do mercado.


O significado de todos os filmes é imprimir “com letras de fogo” a onipotência
dos investimentos, de sua ideologia, das pulsões reificadas, no “coração de
todos os expropriados em busca de emprego (...), independentemente do
enredo que a direção da produção escolha em cada oportunidade”. O

Inicio da nota de rodapé


4. Adorno-Horkheimer, Dialettica dell’Illuminismo, op. cit., p. 133.
5. Ibidem, p. 134: “Os detalhes se tornam fungíveis. A breve sucessão de
intervalos que se revelou eficaz num motivo, o fracasso temporário do herói,
que ele aceita esportivamente, as bofetadas que a bela recebe das robustas
mãos do astro, seus modos rudes com a herdeira viciada: tudo isso são, com
todos os detalhes, clichês prontos e acabados, a serem empregados ao bel-
prazer aqui e ali, e definidos inteiramente, em cada oportunidade, pela
finalidade que desempenham no esquema. Confirmar tal esquema, enquanto o
compõem, é toda a sua realidade. Pode-se sempre compreender
imediatamente, num filme, como irá
Fim da nota de rodapé

Pagina 80

consumidor fílmico tem de adequar-se e de absorver aquela aparente de


histórias que há muito já fora predisposta pela programação das casas de
produção e pelo seu budget.

O Sucesso atrai o sucesso Não se pode deixar de assistir àquele filme que
bate recordes de bilheteria. Mas a análise não pode parar no registro desse
dado, já que precisamente ao assitir ao campeão de bilheteria — descobrese
que filmes como Guerra nas estrelas ou Contatos imediatos falam de um
assunto tratado infinitas vezes, desde o tempo do primeiro diretor “imaginário»,
G. Méliès com uma única modificação: a tecnológica Esta última aparece como
histó,co adequado ao nível do conhecimento cientffico dado como socialmente
compreensível e normalmente muito menos “aventuroso de qualquer manual
de introdução à física contemporânea A diferença de qualidade entre esses
dois filmes consiste apenas no uso, por Spielberg de uma câmara cujos
movimentos são progra05 por um computador somente (pelo menos, por
enquanto) no clímax Todo o resto é há muito E vale também para filmes mais
empenhados, como o 200j de Kubrick: o seu sólido “metafísico» o slogan “use
a força”, a paz externa “extraterrestre são o triunf0 do idêntico Seu “truque”
mais refina do não consiste, decerto, nos modelos espaciais, mas sim na
utilização do “carecimento de religião» de modo tecnicamente novo para
ressaltar na “alma” dos especdores o conceito de que, mesmo numa hipotética
sociedade pósrevolucionái os problemas seriam sempre os mesmos e o da
imortalidade estaria em primeiro lugar. Mas é justamente o cinema, enquanto
mediação entre indústria e natureza que se torna indestível e imortal A esse
“truque» não resiste sequer o Cidadão Kane de Orson Welles, ainda que ele
apareça aqui “laicizado». apesar de todos os seus movimentos de câmara
“ilegais”, não pode deixar de construir o enredo do filme sobre o mistério de
Rosebud como verdade profunda do Poder (e não apenas do poder da im-

Inicio da nota de rodapé


quem será recompensado, punido ou esquecido, para não falar da música
ligeira, onde o ouvido preparado pode, desde as primeiras execuçdes do
motivo, adivinhar a continuação e sentirse feliz quando ela ocorre, O número
médio de palavras da sboa s!o determinado e não pode ser alterado. Também
as gags, os efeitos e as piadas são calculados assim como sua estruturu São
administrados por peritos especiais; e sua escassa variedade é, em princípio
dividida no escritório de administraçào ( ibidem p. 135),
Fim da nota de rodapé

Pagina 81

prensa), diante do momento fatal da morte, solitário em seu castelo “eterno”. E


o enigma se dissolve na evocação da felicidade que aquela palavra misteriosa
refere ao pequeno trenó, como infância lúdica, onde o calor materno protege
contra maus padrastos e contra o inferno do poder. Essa nostalgia da infância
como verdade última do poder está trucada, como todo “final” que decante a
potência do eterno retorno: isso vale para as espigas de trigo que ondulam ao
sol na última cena de O grande ditador, depois do apaixonado discurso de
pacificação do judeu Chaplin; ou para o gelo que se dissolve em A mãe, de
Pudovkin, como fluxo da revolução, que por ser “natural”, não pode ser contido.

Essa “marca de eternidade” enquanto copyright do cinema como tal é a outra


face da inelutabilidade da produção cinematográfica, como grande metáfora da
jneliminabjlidade do anexo produção-repressão, como apologia da eternidade
da natureza contra a barbárie transitória. É o triunfo de um medium que se
realiza como Santa Aliança entre a inteligência laica de Welles e de Chaplin e a
metafísica grosseira dos contatos de “terceiro grau”. Se o velho capitalismo
fazia derivar a bondade do seu sistema do fato de ser natural e, portanto,
imutável, o neo- capitalismo declara-se imediatamente indestrutível, como o
poliedro liso e perfeito de Kubrick ou a esfera de Welles.
O retorno cíclico do filme célebre, ao qual ninguém pode escapar graças à
reprodução adicional da TV e dos cineclubes, reconfirma a identidade e a
interfungibilidade dessas entidades invariáveis (os filmes). Atualmente as
televisões livres* — afirmando-se em sua real função demagógica anularam a
aristocracia do filme “de autor” contraposto à democracia do filme “popular”,
para afirmar, com a força do non-stop, o triunfo da quantidade sempre igual.
Essa impressionante seqüência de filmes uniformes esconde, por trás da
técnica do controle remo-

Inicio da nota de rodapé


6. A humanização marxiana da natureza não poderá jamais ser — tal como o
cinema, mais do que qualquer outro medium, vem propagandeando com base
numa tradição milenar — a sua antropomorfização. Desse modo, continuaria a
dominação do homem sobre a natureza, objeto de projeção instrumental de
nossos vícios e virtudes. Cf. K. Marx, Manoscritti economico-fllosoflci dei 1844,
Turim, Einaudi, 1968, p. 113.
- Depois de uma época de monopólio estatal, multiplicaram-se recentemente
na Itália as emissoras de televisão privadas, conhecidas como “livres” (NT).
Fim da nota de rodapé

Pagina 82

to, uma videodependência ainda mais fisiológica do que psicológica a um


sistema de reprodução de imagens sem fim nem origem. Elas, nem buscadas
nem interpretadas, acompanham todo mínimo fragmento do espaço e do tempo
do ciclo vital, O filme intercambiável adequa-se e se torna — mais ainda do que
autoritário — eterno.

As salas dos cinemas de arte não só não escapam desse destino, mas
continuam a proliferar para sofisticar e completar até a utopia do esgotamento
a rede de distribuição, a fim de que cada vez menos espectadores escapem
aos vários “circuitos”.
O número médio dos elementos de dramatização é aquele e não pode ser
tocado, a não ser no caso de investimentos crescentes de capital para efeitos
especiais, número de stars ou paisagens exóticas. A seqüência bem conhecida
de pontos altos no intetior do enredo, até chegar à conclusão ultraprevista, tem
o mágico e regressivo poder de fazer sentir dentro do espectador a
reconfirmação dos modelos de comportamento social- mente permitidos. Com
relação ao possível “final”, a implacabilidade substituiu a inelutabilidade, desde
que o bappy end entrou em desuso, porque socialmente muito comprometido.
O filme estratificado é interior ao gênero cinema; e esse, por sua vez, distribui
privilégios, prêmios, discriminações, gratificações, entre todos os seus produtos
(de arte, de massa, de ficção científica, para crianças, para a natureza e para a
indústria, etc.), segundo a lei fundamental da produção que reduz o
heterogêneo, o belo, o qualitativo a grandezas abstratas, a fim de traduzi-los de
modo domesticado na certeza do direito.Sabe-se que as equações que
regulam a justiça burguesa foram extraídas da — se não “inspiradas” pela —
troca das mercadorias no mercado. A quantificação do equivalente, do justo
salário para um número determinado de horas de trabalho, torna démodée a
própria expressão “filme de autor”, conferindo-lhe um verniz forte e heróico,
como que para evocar os irmãos Lumière. O filme mais “révolté” é uma idéia
nova para a indústria cinematográfica, que pode se revelar um bom negócio,
como Sem destino (Easy rider); e mesmo o filme mais ignóbil pode fazer uma
bela figura na Mostra de Veneza.

Hoje, o cinema d’essai é inculcado a preços reduzidos à parte mais relutante


do público. Ou seja: a quem não gostaria de ser reduzido a espectador e que,
com freqüência, na vida cotidiana,

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é protagonista da transformação numa sociedade onde os papéis já estão


dados. No ato formal de inscrição no cineclube ou na retrospectiva —
juntamente com a gratificação “clânica” de pertencer ao clube, com carteirinha
individual onde se lê nome, sobrenome, endereço —, parece sobreviver o
segredo dos ritos da iniciação, que distinguem os iniciados de todos os demais
e acompanham sua passagem de uma vida para outra. Morte e ressurreição.
Embora ambas diluídas, na medida em que a fratura entre cinema e sociedade
(apesar das agências do imaginário) desapareceu. Pertencer a um cineclube —
melhor ainda, a todos os cineclubes — significa afirmar a própria co-
participação no clã cinéfilo, cujo tótem, mítico e sagrado antepassado comum,
não é mais o sangue, como outrora, e sim a película. Que também no étimo
conserva, ainda que sob forma de diminutivo, a referência ao corpo. Já o seu
contrário, o tabu, é idêntico ao arcaico: rigorosa proibição de misturar
“substâncias” diversas entre si, rigorosa obrigação de respeitar as regras de
parentesco. Num espectador astucioso, assistir a um filme “popular” pode
provocar até o vômito, somatizando a infração das “regras” do mesmo modo
pelo qual um homem “primitivo” rejeita o alimento que havia ingerido sem
perceber que violou uma norma precisa. De modo análogo, um espectador “de
massa”, simplório e sem pretensões, que assista inadvertidamente ou por
desinformação a um filme de Bergman, só pode sobreviver anulando a própria
consciência, adormecendo ou fugindo horrorizado diante de tanta crueldade.
Desse modo, ele sublinha sua estranheza e não-responsabilidade diante de um
malefício semelhante ao que poderia lhe proporcionar o contato involuntário
com o imprevisto sangue menstrual de sua própria mulher. A afinidade entre o
comportamento do “primitivo” e do “civilizado”, que assume as formas idênticas
do vômito, do mal-estar, do sono, está no fato de que ambos consideram uma
infração mortal a mistura de “gêneros”, como comer certos alimentos ou tocar
no sangue menstrual. Na realidade fisiológica, não há nenhum perigo para
aquele alimento, aquele sangue, aquele filme, já que idêntico é o gênero
cinema, como idêntico é o sangue humano, enquanto o único perigo é de
natureza cultural. Isso não deve levar a concluir com simplificações, já que —
ao contrário — as questões de ordem cultural se apresentam como bem mais
complexas, na medida em que levam à autodestrui-

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ção, contanto que não se ponha em discussão a imodificabilidade universal da


própria cosmogonia.
Não existe uma autonomia do filme de autor, a não ser como exceção. Ela é
cada vez mais ideológica do que no passado, na medida em que tem a
ambição secreta de contrapor-se à pressão das necessidades das classes e
dos sujeitos dominados. que torna a aura da categoria “de autor” uma derrisão
para quem trabalha e vive na pura alienação. Nenhuma síntese é possível
entre duas esferas filmicas — uma “séria” e outra “ligeira”, dicotomia que vale
também para outros gêneros, como a música —, exceto a já realizada pelo
gênero cinema, que a buscou e realizou com programada premeditação.
Finalmente, os componentes dicotômicos — como para os filmes de amor ou
de guerra, on the road ou on tbe room, de aventuras ou político-sociais — são
ainda uma muda denúncia da má consciência tanto da indústria
cinematográfica como da sociedade inteira, na medida em que remetem à
divisão do trabalho de tipo manual e intelectual, bem como à divisão, também
dicotômica, dos tipos de escola. Dicotornias estruturais que o gênero cinema
tem precisamente a ambição de esconder.

Ao público não ingênuo, deverá mais uma vez ser fornecida a diferenciação
culinária e funcional, em relação direta com a estratificação “espiritual” das
consciências, para domá-lo e reificá-lo. Já para o público popular e distraído,
tudo é mais simples, porém também mais custoso.

Desse modo, arte e diversão — nascidas sob os princípios da reprodução


simples — são finalmente reconciliadas, sob o férreo comando dos princípios
da reprodução ampliada. E do estilo que é seu aliado fiel: a repetição, Com
deformada razão, portanto, o filme é analisado apenas do ponto de vista
técnico: o conteúdo é o estereótipo, enquanto o que varia é o incessante
desenvolvimento da tecnologia fílmica. A ideologia industrial inverteu as
prédicas do idealismo: não é mais a forma que é invariante, enquanto
emanação do Espírito, ao passo que o conteúdo seria o reino da variável
contigência mundana, mas o seu contrário. E também o materialismo histórico
— pelo menos em suas formas “estatizadas” —, com sua dialética forma-
conteúdo (que, de resto, sempre privilegiou este último e relegou à acusação
infamante de “formalismo” a primeira), foi atropelado pela neutralização do
enredo operada pelo gênero cinema. Não
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importa “o que” narrar, mas “como” fazê-lo. Afirma-se a arte de adequar o


esquema fixo às variadas condições histórico-ecológicas, para além do uso da
“grande-angular”. Assim, N. Moretti pôde refazer Pobres mas belos, adequando
aos anos 70 as piadas e a composição juvenil, sobre um pano de fundo
divertido - “esquerdês”. A última valsa, de Scorsese, mostra os músicos do
Band, que acompanharam as mais audaciosas inovações de poesia musical
nos anos 60-70, no interior daquele extraordinário movement político-cultural
(feminismo, questão juvenil, não-violência, antiautoritarismo, etc.), dar
entrevistas no auge da fama e antes de “deixar” cenas que — por monótono
sexismo e obtuso conformismo — são inferiores aos triviais acasalamentos do
tipo Boh Hope. Dentro de não muito tempo, seremos obrigados a rever
aventuras estelares, realismo erótico e musicais no esplendor “vivo” da
holografia a laser, assim como o “progressivo” Hair, de Forman, inova com a
quadrifonia na sala de projeção o “esplendor” de Myfair lady.

O cinema, como expressão alienada e “espiritualizada” do capital, deve


adequar-se a seus novos níveis. Dentro dessa adequaçào e dessa alienação
tecnológica, estão comidas as contradições que abalam essa sociedade
enquanto “roteiro” principal a repetir e imitar. As grandes temáticas da
libertação, portanto, são usadas pelo gênero cinema em seu conjunto, numa
forma invertida e “suja”, a fim de neutralizá-las e de inculcar a melutabilidade
do fracasso.

É o mais difundido lugar-comum do espectador, agora rendido à evidência dos


fatos, declamar — com relação a um filme no qual a crítica oficial e o êxito de
bilheteria colocaram o imprimatur do sucesso de qualidade — a convicta
“excepcionalidade da fotografia”, denunciando desse modo, inconsciente-
mente, mas do modo mais irrefutável, a indiferença pela estandardização dos
conteúdos e a infalibilidade da técnica. De resto, quando — raramente —
ocorre que algum autor consiga realmente inovar num campo onde foi dito
quase tudo, poucos irão vê-lo e pouquíssimos perceberão inovações de fundo
— por causa da potência da estereotipia —‘ razão por que técnicas e
conteúdos são inseparáveis e convertem-se uns nos outros com recíproca
verdade. Não casualmente isso vale para Anghelopoios, que compreendeu o
laço secreto entre mito, cultura popular e cínema, e que, ao mesmo tempo,
revela ciumenta-

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mente as próprias películas sob seu controle, a fim de que não percam aquelas
tonalidades mediterrâneas filmadas na aurora — como em O recital (que
nenhum “filtro” pode recriar). Para ele, a montagem e o plano-seqüência
dissolvem as categorias centrais da era moderna — o espaço e o tempo —,
tornadas cientificamente repressivas com o a priori, e realizam um conteúdo
formal sintético, onde os fluxos temporais dos planos-seqüências contêm em
seu interior, sem solução de continuidade (cortes de montagem), os fluxos
espaciais, numa dialética entre mito e história, passado e presente. O mito
retorna; ele não se resolveu na epopéia, nem foi superado pela racionalidade
técnico-científica. Para eliminar a causa originária da sua alienação, o gênero
cinema deveria se tornar consciente de sua própria funcionalidade em relação
ao retorno reificado do idêntico, em vez de ser seu dócil instrumento.

Inicio da nota de rodapé


7. Deve-se refletir sobre essa observação de Adorno-Horkheimer: “Para a
história dos esquemas da atual indústria cultural, pode-se remontar em
particular à literatura popular inglesa em sua primeira fase, em torno de 1700:
nela já estão presentes, na maior parte, os estereótipos que hoje nos
apresentam sua face caricatural nas telas de cinema e televisão” (Lezioni di
sociologia, op. cit., p. 223).
Fim da nota de rodapé

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AntropomorfiSmo, fisionômica, cinecentrismo

“O crime é masculino; o pecado, feminino”


Nietzsche

O híbrido fílmico

Entre os estigmas mitológicos que o homem traz consigo, desde a origem de


sua civilização até a cibernetização da produção, está o antropomorfismo. Dizia
Xenófanes: “Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com
elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de
deuses semelhantes a cavalos, e os bois, semelhantes a bois, cada (espécie
animal) reproduzindo a sua própria forma”1. E mais: “Os etíopes dizem que os
seus deuses são negros e de nariz chato, trácios dizem que têm olhos azuis e
cabelos vermelhos”.

Inicio da nota de rodapé


1. Xenófanes, fragmento 15, cd. brasileira in Os filósofos pré-socráticOs, org.
por
Gerd Bornheim, São Paulo, Cultrix, 1967, p. 32.
2. Ibidem, frag. 16.
Fim da nota de rodapé

Pagina 88

Agora que os vícios humanos não são mais projetados nos deuses — que,
todavia, podem continuar a ressurgir na forma metafórica do sólido euclidiano,
em Uma odisséia no espaço, ou na forma animista do dedo infantil, em O
iluminado (Shining) —, nem a angústia do incognoscível é projetada em Deus,
o robô e o hotel Overlook de Kubrick aparecem como nova válvula de escape
para canalizar as “inconfessáveis” questões da humanidade. Dizia ainda
Xenófanes: “Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que para os
homens é opróbrio e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas”.

Agora que os deuses estão démodés e que a epopéia foi substituída pelo
cinema, são as máquinas que sofrem a antropomorfização e se tornam objeto
da projeção dos vícios humanos:
seu espelho e sua tela. E nunca como nesse caso se revela de modo tão
evidente a não-libertação que essa projeção produz: e que — ao contrário —
continua a servir como ambígua socialização mitológica da relação entre
ciência e mito, técnica e fé. O antropomorfismo, em sua nova veste de “ficção
científica”, envolve o esplendor da tecnologia, e, ao mesmo tempo, esta última
regride ao animismo mais datado. Pouco importa à incessante progressão
tecnológica do cinema que o computador HAL, de 2001 (numa sutil alusão à
IBM, na medida em que o nome HAL antecipa cada uma de suas letras) não
seja mais do que uma repetição da conhecida história do Golem, transferida
pelo cinema sintético para o robô. A crueldade do homem deve continuar a ser
projetada em outro que não ele durante todos os séculos futuros. Nem mesmo
a inteligência de Kubrick consegue evitar o risco de todo filme de ficção
científica (de Méliès ao AIphaville de Godard, aos andróides de Lucas, até
Spielberg, que antropomorfizou tudo, primeiro um caminhão, depois um
tubarão e, finalmente, os discos voadores): a antropomorfização da máquina
cibernética, que exerce a mesma função outrora paradoxalmente exercida
pelas potências naturais divinizadas.

O desejo da pacificação entre microcosmo e macrocosmo, que o filme de


Kubrick augura (assim como aquele entre soviéticos e americanos, ainda que
sob o signo tranqüilizador dos vôos interestelares Pan-Am), é ideológico na
medida em que é representado

Inicio da nota de rodapé


3. Ibidem, frag. 11.
Fim da nota de rodapé.

Pagina 89
sob a tradicional culpabilização de um bode expiatório, que, nesse caso, são as
máquinas. O robô, representante de uma subjetividade “débil”, preenche a
mesma função que foi a dos golem ou dos reds, e, em geral, do não-idêntico. A
ideologia antropomórfica de HAL é idêntica à da lua ingênua de Méliès. As
reflexões fí1micoantropológi15 não avançaram desde o dia dos primeiros
aparecimentos cinematográficos. Na trilha de Homero, também Kubrick pode
continuar a projetar “vergonha e lamentação” num terreno extra-humano, de
modo a que não se possam resolver as causas dos vícios etnocêntricOs: aos
deuses com olhos azuis e cabelos vermelhos, sucedem-se as luzes coloridas e
intermitentes dos computadores. 1-IAL é filmicamente “individualizado”: por
uma luz vermelha, como o olho único do ciclope. Se a análise da mitologia é
importantíssima para a compreensão da cultura grega, igualmente importante
se torna a análise antropológica das “projeções” fílmicas nas modernas
máquinas cibernéticas para a compreensão do atual modo de vida. Com efeito,
a analogia entre a Odisséia épica e a cinematográfica pára nos umbrais das
“metáforas monstmoas” relativas a HAL e Polifemo. A viagem de Odisseu —
como único sobrevivente entre os seus companheiros de aventuras —
representa o início épico do processo de civilização “iluminista”, que apaga os
monstros através da dialética produtiva de auto-sacrificio e auto-afirmação de
Si: “O prolongado percurso errante de Tróia a Ítaca é o itinerário do sujeito —
infinitamente débil, do ponto de vista físico, em face das forças da natureza, e
que está apenas em ato de formar-se como autoconsciência —‘ o itinerário do
si mesmo através dos mitos”.

O fim é o controle eficiente do espaço e dos instintos pelo domínio da razão


sobre a natureza, para celebrar a identidade entre sexo (Penélope) e posse
(Ítaca): entre família patriarca1 e aristocracia guerreira predatória. Polifemo é
cegado graças à astúcia com a qual o sujeito — tal como os animais que,
diante do perigo inelutável, fingem-se de mortos — salva-se somente na
medida em que anula a si mesmo: Odisseu é Ninguém porque Ninguém é
Odisseu. “Polifemo e os outros monstros que Odisseu arrasta pelo nariz são á
os modelos dos pobres diabos
Inicio da nota de rodapé.
4. Adorno-Horkheimer, Dialettica dell’IllumifliSmO, op. cit., p. 55.
Fim da nota de rodapé.

Pagina 90

recriminantes da era cristã, até chegar a Shylock e a Mefistófeles”. O destino


de HAL, computador antropomorfo, segue a tradição civilizadora: apaga-se o
seu significante, o olho único vermelho, como uma cópia desgastada da
cegueira do olho ciclópico. Mas, em parte, há uma profunda divergência: HAL,
sucessor do pastor Polifemo, representa a identidade forçada do trabalho vivo
e trabalho morto. A angústia em face desse híbrido computadorizado causa a
violenta reação do neo-Odisseu, que mata o “diverso”, que ainda traz “na
garganta” os cantos improdutivos da infância. E o trauma por tal homicídio só é
superável pelo homem com a sua divinização: na identidade entre feto e
universo, entre microcosmo e macrocosmo, segundo a tradição alquimista, o
culpado se auto-absolve, O computador perfeito — que é humanizado com a
mesma lógica através da qual os antigos humanizavam os elementos da
natureza (o céu, o mar) —‘ projetado no futuro, reflete a ambivalência diante
das formas atuais da automação. Os “nossos” heróis recusam tanto a tradição
dialética iluminista entre sacrifício e desenvolvimento quanto a dialética que
quer superar a alienação das máquinas através da expansão liberada de toda
individualidade, O moderno Odisseu, no período da “automação da
sobrevivência”, conserva-se não mais negando a si mesmo, porém negando o
direito a qualquer subjetividade outra, que não é mais o símbolo de uma
natureza pré-histórica, mas de uma civilização futurista.

A transfiguração antropomórfica projeta alternativamente os vícios públicos


dessa cultura ou na esfera do superior onisciente (Deus ou natureza) ou do
inferior para-humano (golem, robô, esfinge, ciclope). O fantástico HAL participa
de ambas essas naturezas, um pouco deus decaído e malsucedido, um pouco
computador em mutação mas disforme (tal como negros, judeus, mulheres,
crianças são, para a ideologia dominante,
Inicio da nota de rodapé
5. Ibidem, p. 76. A utilização astuciosa do próprio nome por Odisseu “pertence
a um folclore bastante difundido. Em grego, trata-se de um trocadilho: numa
mesma palavra definida, o nome — Odisseu — e o significado — ninguém —
divergem entre si. Ainda ao nosso ouvido, Odisseu e Udeis têm um som
semelhante; e pode-se muito bem supor que, num dos dialetos falados no
trajeto da história do retorno a Ítaca, o nome do rei da ilha soasse inteiramente
como ‘ninguém’ (...). O que ocon-e, na realidade, é que o sujeito-Odisseu
renega sua própria identidade, que dele faz um sujeito, e se conserva vivo
assimilando-se ao amorfo. Ele diz que se chama Ninguém porque Polifemo não
é um Si Mesmo” (ibidem, pp. 76-77).
Fim da nota de rodapé

Pagina 91

sem-sujeito). Assim como o mito havia criado o híbrido, homem ou mulher com
os signos da origem animal ainda marcados — símbolo ambivalente de
ameaçaatraÇã0 pela regressão sócio- biológica —, assim como o romance “de
horror” criou o golem e a indústria, o robô, do mesmo modo o cinema leva à
síntese, nos muitos 1-tAL de sua história, a modernização tanto da natureza
divina contemporânea (ciência e técnica) quanto da natureza humana (vícios e
homicídios). O híbrido mítico ou fascina ou põe enigmas (as sereias, a esfinge):
de qualquer modo, a ameaça de morte é sempre função do obstáculo que o
herói tem de superar para a sua hurnanização; ao contrário, o híbrido fílmico
põe apenas o escândalo de sua presença; a morte que ele promete é idêntica à
que recebe. Bem e mal são relativos, fungíveis e intercambiáVeis segundo o
andamento do box offlce.

Marx, ingenuamente, perguntava como podia sobreviver a figura mitológica de


Vulcano diante da concreticidade industrial da Sociedade Roberts & Cia., ou
HermeS em face do Crédit Mobilier, ou Aquiles na época da pólvora. De fato, a
moderna indústria cinematográfica — sintetizando o sistema de herança
cultural cristã-burguesa, feito de mitos, dogmas, fábulas, romances —
conseguiu somente repropor, progredindo tão-somente na linguagem técnica,
urna difusão de massa para o modelo cultural que já Xenófanes criticava nos
etíopes e nos trácios.

“Um homem não pode se tornar criança sem se tornar pueril.”6 Mas a
ingenuidade da criança, lúcida e contrária ao princípio de realidade, não foi
reproduzida num nível mais alto de verdade; ao contrário, as ideologias
reificadas, a hierarquia do olhar, a ressurreição do “espírito” do cinema, o
estereótipo do Um primigênio implicaram como resultado socializado uma
puericultura de massa.

Assim, HAL pode pensar e falar tranqüilamente como um homem, agir como
um menino despeitado ou uma mãe protetora, e sofrer um final igual ao dos
golem de sempre: o sinal mági-

Inicio da nota de rodapé


6. K. Marx, Lineamenti fondamentali delia critica dell’economia política,
Florença, La Nuova Italia, 1968, p. 40. Esse trecho, merecidamente famoso e
tantas vezes citado, não foi nunca considerado do ponto de vista das
incidências que as memórias arcaicas (pré-capitalistas) continuam a exercer
sob condições estruturalmente diversas. Segundo nossa colocação
metodológica, o “fascínio eterno da arte grega” — a que Marx se refere — é
explicável em termos de atração hipo-estrutural e não só estética.
Fim da nota de rodapé

Pagina 92

co na cabeça e, depois, a morte, O Suspiro de alívio que, na sala de projeção,


acompanha o desligamento do cérebro de HAL e a deformação de sua voz é
análogo à ideologia da libertação (aleluia) que se repete há milênios quando da
morte de todo Judas, um concentmdo de bodes expiatórios. No final de um
filme moderníssimo como Ofrancoajrador eleva-se o hino God bless America
Ainda nos romances originais sobre o golem, este se tornava mau porque a
humanidade “normal” se recusava a lhe dar o amor que ele buscava. Agora, os
robôs fílmicos não sofrem mais a projeção de um amor utópico e “anormal”. A
conciliação do homem com os seus fantasmas não é mais prevista, na medida
em que mais ninguém crê em fantasmas. Ao herói astucioso sucede o
espectador advertido.

O cadáver antropométrico

A deturpação das proporções faciais e corporais, de modo geral, deve ter


imprimido publicament as leis da assimetria, na medida em que se trata de uma
evocação do primitivo, do arcano, do torpe, do satânico, do ridículo, até mesmo
do inimigo. Assim como nas culturas “arcaicas” o xamà busca expulsar a
doença imitando com esgares e contorções o mal — segundo as leis
simpatéticas da magia e dos exorcismos fílmico-católicos do tipo de Friedkin
—, do mesmo modo a civilização pós-industrial, fundada na imagem, busca
reduzir o mal ao feio. Só que agora deve estar claro que a representação
fílmica do mal como “diversidade pré-histórica” ou como “diabolus” não faz
progredir em nada as chances de libertação do mal, mas, pelo contrário,
confirma a pedagogia de cânones antropométricos Toda a tensão no sentido do
ideal do belo foi reduzida inicialmente ao “bom”, depois tornada comestível com
o “agradável”, final-

Inicio da nota de rodapé


7. Segundo Claudjo Magris, na introdução ao romance de Achim von Arnin,
Isabelia dEgito, Turim, Einaudi 1972 (uma “perfeita jóia” da imaginação escrito
em 1812), “o montículo de argila e poeira a que se reduz o Golem fêmea” surge
“quando, segundo a tradição, lhe é apagada da testa a primeira sílaba da
palavra Aemaeth (Aemaeth significa verdade; maeth significa morte)”, segundo
a terminologia judaica. (lbia’em, pp. XI1-XIII.)
Fim da nota de rodapé

Pagina 93

mente convertida no neutro “passar o tempo”; e tudo isso sob o signo do “útil”,
e não apenas para as coiporations dominantes. O cinema significou, desse
ponto de vista, uma incrível regressão planetária, a partir dos fortíssimos
componentes ainda uma vez etnocêntricos, cuja realidade é reproduzida por
um medium intrinsecamente cêntrico. O cinema se dilata a “centro”, que torna
periferia e reduz a coisa tudo o que filma; a subjetividade da câmara
cinematográfica reduz a objeto todas as coisas, segundo os seus códigos
antropométricos, bem além dos níveis de inevitabilidade próprios de qualquer
olhar, O cinema antropomorfiza tudo: animais, máquinas, coisas. Ninguém
resiste à potência do seu maniqueísmo facial; a própria natureza se adequa à
sua lei fisionômica.

Essa regressão mimética é tanto mais grave na medida em que, ao mesmo


tempo, estava se afirmando a crise da harmonia proporcional na música, na
pintura, na literatura. A dissonância na música, a dimensão da memória na
literatura, o cubismo, o expressionismo e surrealismo na pintura expressam a
crise de um modelo de civilização que, em vez de conseguir socializar o belo,
produz a amplificação do horror. O cinema reage à difusão da crítica que busca
desmascarar a ideologia harmonicista de nossa civilização; e essa reação
assume a forma da ilusão realista. A dissonância das formas musicais ou
pictóricas expressa uma dissonância de tipo social, e até mesmo mais vasta,
referindo-se aos destinos do indivíduo e da humanidade. Toda harmonia deve
ser vista com suspeita aqui e agora: ela é ideológica, na medida em que deixa
entender que foi superada a dissonância social.8 O etnocentrismo fisionômico
reproduzido pelo cinema teve a responsabilidade de fazer com que se
expandissem a desconfiança, a hostilidade, o tédio, o antagonismo popular de
massa em face de tudo o que não se conforma à assonância dominante.

Essa visão pan-lombrosiana do cinema teve (Deus meu!) entre os mais


sistemáticos prosélitos e divulgadores (além, naturalmente, de todo o cinema
hollywoodiano), não só o realismo

Inicio da nota de rodapé.


8. Sobre essas questões, cf. a obra de Adorno e, em particular, Dissonanze,
Milão, Feltrineili, 1974; Filosofia deila musica moderna, Turim, Einaudi, 1959
(cd. brasileira: Filosofia da nova música, São Paulo, Perspectiva, 1974);
Introduzione alia sociologia della musica, Turim, Einaudi, 1971. E, finalmente, a
fundamental Teoria estetica, Turim, Einaudi, 1975.
Fim da nota de rodapé.

Pagina 94

socialista de tipo burocrático, mas também o maior expoente do cinema


soviétjco..revolucionárj S. Eisenstein. Para retomar a linha inicial sobre a
ideologia (recordando sua exigência iluminista de estender também ao homem
o que é pertinente Zoologia), não se pode deixar de concluir que também
Eisenstein foi um seu renovado executor. Em Greve, as características fi
sionômjcas de três espiões da polícia czarjsta — três variantes de Diabolus,
portanto são aproximadas de três diferentes animais, a coruja, o macaco e o
buldogue, através da chamada “montagem das atrações”9 A moda de
representar os lineamen tos humanos através de semelhanças com os animais
floresceu nos séculos XVIII e XIX; naturalmente, a tendência a antropo morfizar
se satisfez atribuindo aos animais mais repugnantes ou mais aristocráticos
características humanas análogas, enquanto a fisionômica representa sempre
como irregulares os lineamentos antagônicos e vice-versa Lévi-Strauss define
essa ideologia como “o inverso do totemjsmo” u• Q totemismo com efeito,
naturaliza as ações humanas, considerandoas “como se fossem parte
integrante do determinismo físico”. Esse aparelho interpretativo da realidade
não pertence somente ao pensamento mágico, embora constitua a sua
essência, mas também ao pensamento religioso: “O antropomorfismo da
natureza (em que consiste a religião) e o fisiomorfismo do homem (mediante o
qual definimos a magia) constituem dois componentes sempre dados, dos
quais variam apenas as proporções, Como observamos antes, cada uma
implica a outra. Não existe religião sem magia, assim como

Inicio da nota de rodapé.


9. Cf. Serguei M. Eisenstejn Forma e tecnica dei fim, e iezionj di regia, Turim,
Einaudi, 1964, onde o diretor — com grande ligeireza — reduz a dialética da
forma cinematográfica a “conflito entre a edsténcja natural e a tendência
criativa” (ibidem p. 44). Desse modo, do choque dinâmico de paixões ostas,
passa-se ao choque entre enquadram05 independentes através da montagem.
Mas o resultado será sempre o maniqueísmo dos negros contra os brancos, de
fardas anônimas contra vestes individualizadas de mencheviques que dão sono
contra hoicheviques que despenam aplauso. Na realidade, o que é definido
como dialética — ou seja, a montagem das atrações —, ao alternar
assassinatos de operários a machadadas, putsch de Kerenski e Napoleões de
gesso despedaçados, é uma simplificação da realidade através de esquemas
fixos maniqueístas que produzem não “dinamização” (segundo as palavras do
autor), mas sim “manipulação emotiva”. O jogo da tese e da antítese se revela
expediente a favor dos nossos e contra eles. Mais uma vez, temos ego e alter,
Filias e Diabolus.
10. C Lévi-Strauss, Ilpensiero selvaggjo Milão, II Saggiatore 1964 (cd.
brasileira:
O pensa mento selvagem, Sào Paulo, Nacional, 1970)
Fim da nota de rodapé.

Pagina 95

não existe magia que não contenha pelo menos um fragmento de religião. A
noção de uma supernatureza existe apenas para uma humanidade que atribui
a si mesma poderes sobrenaturais e que confere à natureza, por sua vez, os
poderes da sua super- humanidade”.

Antropomorfismo e fisiomorfismo estão co-presentes no cinema inclusive em


seus picos insuspeitadamente mais “laicos” e “dialéticos”. São precisamente os
primeiros filmes de Eisenstein a manifestar tais componentes, no momento em
que o stalinismo e o jdanovismo ainda estavam distantes (Greve é de 1924),
num diretor que se situa entre os mais profundos na reflexão revolucionária
relativa ao cinema. Mas a visão pan-lombrosiana do cinema não admite
nenhuma exceção: o pope de Potiômkin assemelha-se a Süss, o Judeu; o
patrão, em A moça dos cabelos brancos, parece-se com a nobre conjurada dos
boiardos; Erich von Stroheim, em A grande ilusão, com o Darth Vader de
Guerra nas estrelas. E, sucessivamente, nazistas, vietcongues, índios,
generais, simples soldados, camponeses, sub- proletários sofrem uma
modificação fisionômica de acordo com o ponto de vista da ideologia que está
por trás de sua representação. Mas, em substância, o modelo é uniforme: no
outro que é diverso de si devem estar bem impressos, na relação geométrica
dos elementos faciais e corporais, as marcas da regressão a uma natureza
desregrada. A antropologia do homem fílmico é antropomét rica. A simbólica
teriomórfica pertence às muitas variações de Diabolus. O modelo cultural
reproduzido é idêntico ao que se pretende destruir. A suposta superioridade se
adequa à igualmente suposta inferioridade. A origem de tais valores é remota:
remonta à identidade entre nomes tribais e gênero humano. Banto é sinônimo
de homem, o que exclui de tal condição qualquer outro indivíduo: “Foi dito e
repetido, e não sem razão, que as sociedades primitivas fixam as fronteiras da
humanidade nos limites do grupo tribal, fora dos quais elas não vêem mais do
que estrangeiros, ou seja, homens inferiores, porcos e vulgares, quando não
chegam mesmo a ver não-homens: bestas perigosas ou fantasmas”.

Esse mecanismo não se limita às chamadas sociedades

Inicio da nota de rodapé


11. Ibidem, p. 242.
12. Ibidem, p. 184.
Fim da nota de rodapé

Pagina 96

“primitivas”, mas se estende também às mais “civilizadas” O cinema, em vez de


a’udar didaticamente a compreender, amplia desmesuradamente o mecanismo
de nós e os outros (in-group — out-group) graças ao poder persuasivo da
imagem. Aliás, a cultura ocidental em seu conjunto aperfeiçoou a fixação
dessas “fronteiras da humanidade” através da organização científica do
estigma impresso sobre tudo o que se presume “diverso”. É conhecido o que
se passava nos campos de concentração nazistas: menos conhecido, ao
contrário, é o vínculo que se instaurou nas fábricas alemãs durante a Segunda
Guerra Mundial, cujo modelo — segundo K. H. Roth — será transposto, com
poucas modificações, na organização do military industry complex pós-bélico:
“Se o senhor de escravos tinha interesse em conservar os próprios escravos
enquanto força de trabalho e lhes garantia um mínimo de subsistência, os
prisioneiros dos campos, enquanto ‘seres inferiores’ subumanos, não tinham
nenhum valor. A alimernação era tão pobre e reduzida, o trabalho de tal modo
duro e prolongado, sem contar os contínuos espancamentos e vexames por
parte dos vigilantes, que milhares deles pereciam pouco a pouco. Eram
aniquilados segundo um programa preciso; e muitos, ainda que tenham
sobrevivido a esse terror desumano, morreram pouco depois, em conseqüência
das lesões físicas e psíquicas sofridas.

E, todavia, não basta. Como se sabe, havia operárjos que tinham uma
condição ainda mais ínfima na escala parametral, dentro e fora da fábrica: os
judeus e os ciganos. A conclusão profunda que se deve extrair sobre a função
exercida pela simbólica fisionômica (e que o cinema tem o poder de
“espiritualizar”) é a seguinte: ela absolve o homem do homicídio, permitindo-lhe
continuar a agir — inclusive no interior do equilíbrio psíquico do indivíduo —
como se o irrevogável jamais tivesse sido cometido. É tão grande a importância
desse momento crucial, que propomos utilizar o conceito de absolvição ritual
do homicídio através do homicídio.

Girar em torno do cadáver, a fim de excogitar a justificação pública e


espetacular do homicídio, é uma das constantes origi-

Inicio da nota de rodapé


13. K. H. Rorh, L’altro movimento operaio, Milào, Feltrinejlj, p. 135. Como se
sabe, a divisão multi-mcjal da composiçào de classe na fábrica foi herdada em
toda a área ocidental pós-fascista.
Fim da nota de rodapé

Pagina 97

nárias do cinema. Durante todo o período áureo de Hollywood, existia uma


série de regras rigidíssimas, as quais — como se sabe — foram formalizadas
num cânone propriamente dito (o código Hayes) e, desse modo, reproduzidas
para milhares de exemplares fílmicos, sem que isso levasse ao tédio ou
provocasse suspeitas durante todo um período histórico. Aproximativamente,
urna série de ações que devia ser adequada à regra desenvolveu-se do
seguinte modo, quando — no “final” — Filius, o herói, contrapõe-se a Diabolus,
o antagonista: o primeiro devia apresentar-se inicialmente numa condição de
patente inferioridade (por exemplo, desarmado ou armado de modo claramente
inferior ao outro) em relação ao antagonista, que naturalmente é também o
agressor inicial. Depois de uma primeira fase de luta, o herói desarma o
anticristo realizando grandes prodígios, mas — incapaz de cometer o
homicídio, que repugna tanto sua natureza quanto a do espectador —
concede-lhe a vida, ou oferece-lhe novamente a arma para continuar o duelo
leal- mente. Nesse ponto, Diabolus torna pública toda a sua baixeza, buscando
atingir Filius pelas costas, ou ameaçando uma pessoa fraca e desarmada
(muito cara ao herói, como, por exemplo, sua noiva, um parente, etc.).
Somente por causa disso o homicídio do inimigo pode ser oferecido ao público,
quando até mesmo o mais pacífico espectador se tiver preparado para justificar
qualquer carnificina. Agora Diabolus morre, mas — ao mesmo tempo — o
suspiro de alívio do público (um sentimento de agradável libertação, em parte
similar ao falso relaxamento que se experimenta depois do orgasmo forçado)
significa que a remoção ocorreu, e que o espectador pode voltar a ser “ator”,
segundo o imperativo de Ardrey,11 que afirma ser o homem um animal
assassino. O esquema, como é evidente, é análogo à versão que todo Estado
oferece aos próprios cidadãos por ocasião de qualquer declaração de guerra.
Assim, finalmente, individual e universal se conciliam.

Inicio da nota de rodapé


14. Cf. R. Ardrey, L’instinto di uccidere, Milão, Feitrineili, 1968; veja-se também
The territorial imperative, Nova York, Deli Pubiishing Co., 1966.
Fim da nota de rodapé

Pagina 98

Cinecentrismo
Com o termo “centrismo”, entendemos “aquele aspecto da estrutura e do
processo vital de todo indivíduo pelo qual, tanto no nível cognitivo como
conativo, o mundo aparece em primeira instância e é desejado como ‘feito para
ele’, ou seja, como um conjunto de objetos à disposição de seus carecimentos
quer dizer, dos carecimentos daquele único sujeito — si mesmo — que ele
experimenta concretamente”. Segundo essa colocação, os níveis do centrismo
são três: físico, Psíquico, instrumental, O centrismo físico define aquela
tendência à autoconservação e à expensão da vida que é própria de todas as
espécies vivas, O centrismo psíquico é aquele carecimento fundamental que é
próprio somente do homem, e que consiste em ser reconhecido pelos outros,
satisfazendo desse modo aquela exigência que requer a disponibilidade das
outras consciências em relação a si mesmo. Finalmente, o centrismo
instrumental, para o homem, está finalizado tanto para o centrismo físico
quanto para o psíquico, na medida em que compreende uma produção de
carecimentos secundários, funcionais aos primários, tanto físicos quanto
psíquicos, com base “numa série de esquemas estratégicos e táticos
(genéticos ou não)”.

O centrismo, portanto, é a tendência biocultural que afirma o sujeito como único


centro, que torna periféricos todos os objetos e pessoas “outras”, Esse sujeito
pode ser um indivíduo, um grupo, uma civilização, dando lugar respectivamente
ao egocentrisrn, ao grupocentrismo ao etnocentrismo Deve-se sublinhar a
dialética entre o egocentrismo (que é prioritário com relação a todos os outros
“centrismos”, na medida em que o mecanismo de identificação se inicia no
interior do indivíduo singular e se estende ao grupo, à raça ou à sociedade) e,
contra- posto a ele, o onicentrismo dimensão realizada somente em formas
embrionárias, e na qual se afirma a auto-realização estendida a todos os
sujeitos, reconhecidos como tais numa relação de solidariedade universal.

Provavelmente, agora é necessário expandir a análise do

Inicio da nota de rodapé


15. A. Catemario Centrismo e valorj in Occidente, Roma, Buizoni, 1976, p 3.
16. Ibidem, p. 4.
Fim da nota de rodapé

Pagina 99

centrismo (e o que se segue é uma tentativa inicial nessa direção), não o


limitando às dimensões orgânicas. Às formas “cêntricas” próprias das plantas,
dos animais, dos homens, devem-se acrescentar as inquietantes tendências
cêntricas intrínsecas aos instrumentos de reprodutibilidade técnica. O
tecnocentrismo desenvolve um mecanismo simbiótico entre o homem e a
máquina. Para além das intenções subjetivas humanas (que, entre outras
coisas, fazem tudo para favorecer essa “mutação tecnocêntrica”), os mass-
media parecem cada vez mais levados a se constituir num sistema de evolução
tecnológica, mais ainda do que cultural, que torna periférico tudo o que é
reproduzido em imagem. Segundo Arnold Gehlen, existe uma conexão
imanente entre a técnica — tal como se desenvolveu em nossa civilização — e
a estrutura do agir racional com relação a finalidade. A história da técnica é
história da objetivação gradual das funções características do organismo
humano e de sua transposição sub specie de máquinas. “Em todos os casos, o
desenvolvimento técnico se adapta a um modelo interpretativo similar, como se
o gênero humano projetasse um depois do outro, no plano dos meios técnicos,
para se poupar das funções correspondentes, os componentes elementares do
âmbito funcional do agir racional com relação à finalidade, um âmbito que
inicialmente se liga ao organismo humano. Num primeiro momento, são
reforçadas e substituídas as funções do aparelho motor (mãos e pernas),
depois a produção de energia (do corpo humano), depois as funções do
aparelho sensorial (olhos, orelhas, pele) e, finalmente, as funções do centro de
controle (o cérebro)”.

Isso quer dizer que a técnica é um poderoso prolongamento fisiológico. A


utopia zoológica dos primeiros idéologues — para os quais se devia aplicar à
ciência das idéias a mesma metodologia que funciona para as ciências da
natureza — concretiza-se como práxis tecnológica, a qual, por sua vez, é uma
fisiologia estendida a mutação paragenética. A fisiologia transpassa na
tecnologia. Essa articulação entre técnica e corpo tem no seu centro a
categoria do “agir racional com relação à finali-

Inicio da nota de rodapé


17. J. Habermas, Teoria e prassi neila societã tecnologica, Bari, Laterza, 1971,
pp. 200-201. Essa conceitualização é tomada por Arnold Gehlen, como logo
após se verá.
Fim da nota de rodapé

Pagina 100

dade”, várias vezes citada; mas Gehlen não enfrenta a racionalidade das final
idades pelo que toda invenção técnica teria urna “validade instintiva”. Racional
se torna o que é fisiológico, assim como a fisiologia é racionalidade. Sendo
apêndice, prótese, do corpo humano, a técnica não aparece mais nem sequer
corno “segunda natureza, mas volta a ser diretamente “primeira natureza”; e,
por força dessa autoridade objetiva, torna-se racional tudo o que realiza
racionalmente a finalidade de potenciar o corpo humano. Diz Geh}en: “Essa lei
expresa um processo irnanente à técnica, um decurso que não foi desejado
pelo homem em seu conjunto; essa lei se afirma, por assim dizer, pelas costas
ou instintivamente, através de toda a história cultural do homem. De resto,
segundo essa lei, não pode haver nenhum desenvolvimento da técnica além do
nível da completa automação, já que não é possível indicar novos âmbitos de
atividade humana que pudessem ser objetivados”.

Desse modo, criticar a natureza “racional” da técnica significa pronunciar-se


contra as leis da evolução da espécie, que conseguiu empreender um processo
de transiação, englobando em suas entranhas também o desenvolvimento
tecnológico Na realidade, não se trata mais de debater sobre o pecado original
ou sobre a inocência política das forças produtivas, em particular na fase da
cientificização e tecnificação da produçâo; trata-se, antes, de entrar finalmente
nos detalhes dos resultados irracionais da racionalidade técnico-científica, nào
certamente para abjurar a matematização da produção, mas para estabelecer
um uso profundamente diverso da tecnologia operante aqui e agora, para
enfrentar os desastres ecológicos próprios do “agir racional com relação à
finalidade”, para intervir no plano projetual em direção a uma nova tecnologia
“leve”. A luta “didática” por um desencadeamento de massa não pode mais
reproduzir a separação entre meios e fins. O desencantamento radical deve
inventar urna relação concreta com modelos prefiguradores que funcionem
bem imediatamente. Não mais vás astúcias sobre o uso instru-

Inicio da nota de rodapé


18. A. Geblen, “Anthropologjsche Ansicht der Technik”, in Freyen, J. C,
Papalekas e G. Weipert (eds.), Technjk in lechnischen Zeitalter Düsseldorf
Schilling, 1965, p. 107. Citado por Habermas op. cit, p. 201.
19. Essas oposições expressas por Flabermas (in op. cii., p. 203) são
indubitavelmente esquematizações excessivas, em comparação com uma
argumentação mais articulada.
Fim da nota de rodapé

Pagina 101

mental dos meios, que continuam a recalcar os resultados bastante conhecidos


sobre a tendência do homem em se converter, por seu turno, em prótese do
“medium “; mas sim unidade de crítica da utilização e práxis projetual
radicalmente alternativa.

Desse ponto de vista, o centrismo foi aculturado, por assim dizer, no interior da
natureza técnica da máquina de filmar (MDF): gera-se um cineceritrismo que
reproduz imagens/ideologias no decorrer do processo de filmagem, cujo mundo
aparece corno “efeito para si mesmo”, para o próprio kino-olho, que escruta
coisas, homens, animais, natureza, como um conjunto de objetos à disposição
de suas exigências. O cinema, como máquina de produção e reprodução de
ideologias, tende a se colocar de modo autônomo de fllm-makers, ciné-pbiles,
espectadores-massa. A “natureza cêntrica” de tal medium, e, em particular, da
técnica da MDF, constrange num centro unificador os três níveis de centrismo
supracitados, sob o signo de uma reflcação espiritual que é fisica, psíquica,
instrumental. O cinecentrismo da MDF tende não tanto à autoconservação
quanto, sobretudo, à expansão dos próprios “pontos de vista vitais”,
necessitando como seu carecimento fundamental ser reconhecido pelos outros,
para “satisfazer a exigência que requer a disponibilidade das outras
consciências com relação a si mesmo”. Ele tem a capacidade de reproduzir ao
infinito carecimentos secundários, funcionais aos primários, com base em
esquemas operacionais não genéticos, mas tecnológicos, ou, se se preferir,
“tenogenéticos”.

Toda a mise en scène — que envolve tanto a chamada fiction como o cinema
direto —, objeto específico da filmagem, transforma-se em periferia funcional
do centrismo da reprodutibilidade. Não tanto os ambientes, a trucagem dos
atores ou o vestuário dos figurantes, mas os próprios enquadramentos, o uso
da montagem seja das atrações (que já foi chamada de “dialética”) ou das
repulsões (que podemos definir como “positivista”), o movimento espacial da
MDF (na horizontal, na vertical, obliquamente) subordina às exigências da
máquina o objeto da representação, que é por ela subvertido, ainda que
acentue a ilusão realista. A MDF tem um único ponto de vista: o próprio. Todo o
resto — homens e coisas, natureza e animais — deve ser reconduzido à sua
centralidade. A “natureza” intrinsecamente cinecêntrica da MDF transpassa —
com a força “objetiva” de uma prótese biotécnica — no olho ideológico do
diretor, termi-

Pagina 102

nando por chegar ao olho passivamente estimulado do especta dor. A história


tem a dupla qualidade de ser tanto o resultado biológjcoevojo da espécie Homo
sapiens constituído o olho-natureza — como o processo mimético
historicamente determinado — o olho-cultura Tudo isso, no decorrer do
desenvolvimento ontogenético produz variações relativas a sociedades
diferentes que têm sensibilidades perceptivas culturalmente diferentes, Essa
dialética “dentro” do olho Coloca esse órgão numa condição de medium entre
biologia e projetua1ida entre instinto reflexivo e razão irrefletida, entre disciplina
e permissivismo os quais, todos, educam-se recipro camente E nenhuma outra
fase de civilização anterior à pós-industrial submeteu a um tão tensionante
exercício pedagógico o próprio olho natural-cultural.

O cinecentro torna tudo periférico, desde os “primeiros planos” até os


“conjuntos”: tudo o que a MDF registra transforma-se em objeto que deve se
dobrar às necessidades perceptivas dela. A autonomia da MDF por exemplo,
sua mobilidade com relação à fixidez originária — é paga com o preço da
heteronomia do enquadramo e de tudo o que se insere nele. Assim, um cinema
mais descentrado deveria começar a explicitar até o fim esse “ponto de vista”
autoritário, para difundir autonomia, respeito e independência ao “assunto” da
filmagem; mas essa tensão está presente em poucos filmes, e a tendência
vitoriosa é no sentido de um seu declínio ainda maior.

O carecjmo de relação, que representa um dos carecj mentos psíquicos mais


importantes do homem — e que é atualmente satisfeito de modo frustrado,
reduzido a carecimento de fruição tecnocêntrica —, não somente é projetado,
pela utopia irredutível, da atual fase monocêntrica para a fase final onicêfltri ca
— onde as relações de solidariedade passam através do reconhecimento da
subjetividade de todos os “centros”, individuais, grupais, raciais, para a sua
recíproca auto-realização enquanto diversidade e não mais pura adequação ao
idêntico – ,

Inicio da nota de rodapé


20. “Nào é unto a identidade natural que se deve pretender afirmar, mas a
igualdade Sócio-cultural, como liberação daquelas condições históricas que
produziram diferenças reais, na perspectiva de pacificar a humanidade em face
de suas próprias diversidades”, cf. M. Canevacci Dia/ettica dell’jndivid00 Roma,
Saveili, 1978, p 17 (cd. brasileira: Dialética do Índjvuo São Paulo, Brasiliense, 2
ed., 1984). Diz Adorno: “Mas uma sociedade emancipada não seria o estado
unitário,
Fim da nota de rodapé

Pagina 103
mas busca ricos e diversificados modelos de antecipação alternativa. Este
carecimento de relação requer o reconhecimento do outro e, ao mesmo tempo,
pelo outro; de tal modo que ego e alter se determinem reciprocamente na
relação entre “reconhecimento de’ e “reconhecimento por’ Tais oposições,
embora invertidas (mas, precisamente por isso, ainda mais interessantes e
plenas de força interpretativa), já as encontramos na simbólica de Pater e
Spiritus, de Filius e Diabolus: elas são as mais arcaicas oposições entre ego e
alter. Sua peculiaridade reside no fato de que, sendo as oposições mais
radicais em sentido metafisico, penetram na profundeza da nossa estrutura
psíquica, como ulterior demonstração de que a metafísica profunda contém
elementos materiais precisos, assim como o materialismo autêntico está
repleto de aspirações e angústias metafísicas. As formas históricas e culturais
que a necessidade de relação assume dependem das respostas que os
indivíduos, os grupos, as classes, os povos sabem dar à relação entre ego e
alter. E essas respostas, em quase todas as culturas de qualquer tempo e
lugar, orientaram-se no sentido de identificaçào de ego com Filius e de alter
com Diabolus. Ou seja: o alter— entendido como diverso e reprimido enquanto
tal — foi expulso pelo ego e projetado no bárbaro, no não-humano como fora
da norma, entendida como ortodoxia de uma cultura e demonização de todas
as outras, outras que sofreram os furores do estigma antropométrico em sua
exposição pública. As resistências por parte das ciências etno-antropológicas a
estudar o ego — ou seja, a nossa cultura — é similar às indignações mais
“severas” e “extremistas” que as próprias ciências mostram nas investigações
sobre os genocídios realizados contra as culturas de alter. É sempre preferível
uma metodologia de pesquisa autopunitiva que analise os malefícios cometidos
somente sobre os outros, contanto que não se realize a única vjrada radical
possível que a antropologia — enquanto ciência do homem — deveria
completar: o estudo de si mesma em relação com as outras culturas numa
perspectiva globalista. O etnocentrismo ocidental ressurge na proibição de pôr
no centro da reflexão não mais os resultados que a “nossa” cultura provocou
sobre os “diversos”, mas também e essencialmente

Inicio da nota de rodapé


e sim a realização do universal na conciliação das diferenças” (Minima moralia,
Turim, Einaudi, 1954, p. 98).
Fim da nota de rodapé

Pagina 104

esse nosso modelo de cultura, a fim de que se possa compreender pela raiz
como e por que a “gente normal” tenha realizado tais atos. Daqui resultam as
clamorosas denúncias dos malefícios etno-imperialistas cometidos contra os
“diversos”, que pretendem culpabilizar os “normais” e também disso é
necessário duvidar, por causa das válvulas de absolvição individual que o
sistema burocrático reproduz —, mas das quais eles saem imunizados, na
condição de não serem por sua vez “reduzidos” a objetos de pesquisa
culturológica. Aliás, o estudo do alter cindido do ego é o último álibi criado por
este último, como condição para não abordar um dos problemas fundamentais
da crise de nosso modo de vida nessa sociedade: o empenho das ciências
antropológicas em serem antes de mais nada auto-reflexão crítica do ego pelo
próprio ego, bem como — em perspectiva — objeto não reificado de estudo por
parte também de alter.

De um ponto de vista antropológico, o etnocentrismo é a absolutização de urna


particularidade própria relativa a um povo, a uma raça, a uma estrutura social,
etc., que se eleva a modelo indiscutível, de modo a aparecer como uma
dilatação do eu mais singular, cuja crise poderia produzir a própria
autodestruição. Como se pode facilmente compreender a definição de tal
“vício” cultural (quem ousaria hoje se definir como “etnocêntrico”?) é
singularmente afim à “natureza” da ideologia, em seu significado de indevida
dilatação universal do que se quer esconder como particular, como nova
comprovação da função arcaica característica da ideologia. E isso aumenta as
inquietações, como no caso das afinidades entre máscara e ideologia, ou entre
o espelho e a tela. Com efeito, o carecimento de relação, tal como se tem
estruturado, vai se adequando às exigências de mediações postas pela
reprodutibilidade técnica, Os momentos onicêntricos embrionários — que, em
parte, tenderam a superar a oposição ego-alter enquanto socialização
demonizada da “diversidade” — não souberam enfrentar as ofensivas
sedutoras satisfeitas pelo cinecentrismo antropométrico

Estamos nos aproximando dos cem anos de sua invenção:

Inicio da nota de rodapé


21. Por causa da inutilidade de modernos Montesquieu com novas Cartas
persas. seria desejável que antropólogos que não fossem de cultura ocidental
estudassem esta última, como só parcialmente começou a se fazer. Cf. o
ensaio de William S. Willis Jr., “1 panni sporchi dell’antropologia” in
Antropologia radicale (ed. por Deli Hymes), Milào, Bompiani, 1979, pp. 133-
160.
Fim da nota de rodapé

Pagina 105

mas mesmo assim o cinema de ficção não contribuiu para a difusão de um


conhecimento que legitime a diversidade a ser o que é, ou seja, a ser aceita,
tanto pelo ego como pelo alter, por aqueles valores, hábitos, fisionomias e
fisiologias que podem e devem ser reciprocamente concedidos enquanto
diversos. Aliás, sua contribuição foi instrumento essencial e insubstituível
(especialmente em relação à já referida crise “realista” de toda a arte do século
XX) para a difusão de uma estrutura caracterial que deve apor a marca pública
do estigma — tanto fisiológico como psicológico — dentro e fora do alter.
Nenhum ego consegue jamais descobrir que, para alter ele é por sua vez alter.
O nosso mecanismo civilizatório impediu que, também para a subjetividade,
funcionasse aquele mecanismo sócio-cultural de oposições, que Mauss
descobriu como característico do dom, que prevê a obrigação indireta da
reciprocidade (todo dom deve ser restituído), e que Lévi-Strauss aplicou às
estruturas elementares do parentesco, pelas quais a lei da exogamia “impõe”
(de modo inteiramente inconsciente) para cada mulher dada como esposa a
restituição de uma outra mulher, a fim de superar aquela dinâmica destrutiva
que seria provocada pela concentração excedente de mulheres — o “bem
supremo” — num determinado grupo. O ego não é dado aos diversos. E essa
paralisia da reciprocidade egóica é uma das causas de fundo das ,tendências
autodestrutivas no interior do indivíduo, em parte análogas às funções
exercidas pelo incesto antes de sua “regulamentação” pela exogamia. Em certo
sentido, descobrir que o alter é também ego, transferindo para a consciência
das relações interindividuais a descoberta inconsciente de nossos
progenitores-fundadores, pode produzir uma dialética da libertaçào ainda maior
do que a invenção do tabu do incesto, O tabu oniegóico — que recusa
conceder aquele bem supremo, o eu, como direito à individualidade para a
totalidade do gênero humano — deve ter como correlato teórico-prático o
onicentrismo, a difusão recíproca do eu. Esse tabu oni-egóico tem como
aliados, por um lado, a harmonia da sociedade, graças ao etnocentrismo, e, por
outro, o equilíbrio dos indivíduos graças ao egocentrismo, ambos os quais o
solicitam ou o premiam de variados modos gratificantes em sentido
instrumental, psíquico e instintual. Ao contrário, a perspectiva onicêntrica, a
alteridade difusa do ego junto à difusão egóica do alter, deve “encastrar-se”
com a

Pagina 106

marxiana superação da pré-história (os homens fazem a história, mas não o


sabem22), a fim de que se aplique o momento da autoconsciência também à
metodologia triádica, que compreende o sistema hipo-estrutural das memórias
arcaicas, O processo de fortalecimento e de difusão do eu pode ser posto em
conexão com a redução tendencial do super-ego e do id, assim como do
monocentrismo, Essa perspectiva permite evitar também os riscos sufocantes
da estrutura “estruturalista” ou do inconsciente etnológico, dos quais se escapa
apenas abolindo esse modelo epistemológico, agora cada vez mais estreito, o
qual, sob outro aspecto, deu resultados de grande importância.

Em vez de ser pacificação e legitimação das diversidades, o cinema — o mais


convincente dos mass-medja para a psique do espectador, não só por causa
dos famosos 24 fotogramas por segundo, mas também em função do modo
público da visão ritual — foi o amplificador do etnocentrismo, em virtude da
reprodutibilidade fisionômica e de sua especificidade cinecêntrica. O
etnocentrismo — que estigmatiza o diverso e difunde personalidades
autoritárias — penetra cada vez mais facilmente no “público”, que, em seu
significado mais amplo, compreende não apenas o “espectador”, mas também
o “ator” em sua versão deteriorada, daquele que “atua” com base em
solicitações conscientemente organizadas segundo as necessidades técnicas
do roteiro, do cenário, da representação, da filmagem, da montagem: da
estrutura narrativa fílmica. Esse “ator público” tem como palco tanto a ação no
próprio “teatro” interno (id - ego - superego) como no externo (sociedade, raça,
cultura). A amplifi-

Inicio da nota de rodapé


22. A célebre frase de Marx não é apenas citada, mas interpretada por
LéviStrauss como unidade de dois procedimentos, o primeito dos quais se
refere à história, enquanto o segundo à etnologia. Mas tal ciência — que busca
produzir, para além das imagens conscientes, “um inventário das possibilidades
inconscientes, cujo número não é ilimitado” — entra em contradição com todo o
sentido da obra de Marx, inteiramente orientada na direção de permitir a
superação da “pré-históna” da humanidade, entendendo-se com essa
expressão todo o processo civilizatório no qual, precisamente, o homem não
tem consciência de sua ação histórico-social, Isso quer dizer que ou esse
método de Marx tende a abolir a etnologia com a realização de seu programa,
ou então que o estruturalismo é uma prisão metodológica que encarcera o
pensamento para bloquear a práxis. cf. Lévi-Strauss, Antropologia strutturale,
Milão, II Saggiatore, 1966, p. 36 (cd. brasileira: Antropologia estrutural, Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967).
23. Cf. M. Canevacci, Dialettica deita famigija, Roma, Savelli, 1974, pp. 18-21
(cd. brasileira: Dialética dafamiuia, São Paulo, Brasiliense, 2 cd., 1983).
Fim da nota de rodapé

Pagina 107

cação cinecêntrica de estruturas caracteriais narcisistas não é certamente


própria apenas dos diretores-massa, mas também dos diretores-vanguarda, de
Eisenstein a Welles, de Kubrick a Renoir, de Chaplin a Godard. Toda a história
do cinema deveria ser revista do ponto de vista da difusão de etnocentrismo,
fisionômica, antropomorfizações, estigmas, bodes expiatórios. Sua origem a
partir do filme mudo — que exasperava os personagens sem-palavra na
expressão facial — foi herdada sem modificações, ou mesmo pioradas, pelos
mais refinados efeitos especiais. A natureza do cinema é etnocêntrica de modo
atípico: o seu modelo geral torna homogêneas as mais diversas culturas, no
interior do padrão tecnológico-cristão-burguês. Quem faz cinema — do
“segundo”, “terceiro” ou “quarto” mundo — é como que sugado no interior do
pattern cinecêntrico. As exigências “cêntricas” desse medium submetem as
memórias hipo-estruturais às exigências das ideologias, através de um
comportamento em público dócil aos valores dominantes. As hipóteses de uma
refundação da MDF (sobre a qual falaremos no último capítulo), de uma
reforma de sua “natureza interior”, são complexas, na medida em que ela se
tornou um ponto de junção entre produção social sintética, modelos de culturas
e sistema hereditário de ritualizações arcaicas. Uma técnica de filmagem que
não absolutize seu próprio ponto de vista parece pôr em discussão a própria
funcionalidade da MDF, a sua sobrevivência. Ademais, esse “ponto de vista”
deve aparecer ao espectador como se fosse o seu próprio ponto de vista; ou —
como afirma a propaganda de grande parte da crítica moderna — o seu próprio
imaginário, em sintonia “cósmica” com nada menos do que o imaginário
coletivo. Mas a MDF embrionariamente onicêntrica foi usada apenas em alguns
filmes visionários e fenomenológicos, por algumas escolas do “cinema direto” e
por pouquíssimos filmes de fiction.

Pagina 108 – Em branco

Pagina 109

O riso
“O riso, sereno ou terrível, marca sempre o momento em
que desaparece um temor”
Adorno-Horkhejmer

Quando entrarmos (no outro mundo), não ria. Não banque o estúpido. Se você
rir, Baba laga nos pega e estamos fritos.”
(De uma fãbula russa, citada por V.J. Propp)

Etologia e antropologia da forma riso

A origem do riso é ambivalente. Pôr tal questão significa o desejo de esclarecer


o nosso método, que tem por finalidade fundar uma nova interpretação global
do cinema, que unifique o que é patrimônio hereditário do homem — ou seja,
ligado à constituição do Homo sapiens — com o que é cultural e social- mente
determinado. Não é mais suficiente, portanto, uma interpretação do cinema
como desencantamento da ideologia, do prazer, do imaginário ou da
mercadoria, mas sim — para além de tudo isso — é necessária uma
reconsideração das relações entre a crise da cultura aqui e agora e a própria
origem de nossa civilização. Nossa tese de fundo é que o mais profundo
significado do que se define como história — ligado à transformação das
relações sociais de produção, de divisão do trabalho, de estrutura

Pagina 110

de classe e, por conseguinte, também à difusão dos media — interage


simultaneamente em nossos modelos culturais, em nosso código instintual e
nas marcas de memórias arcaicas. A complexidade — e também a
ambigüidade — da questão está no fato de que a interação entre esfera da
cultura, esfera dos instintos e esfera da produção não é idêntica nos modos,
nos tempos e nos lugares. Por exemplo: os tempos hipo-estruturais são muito
mais lentos; os lugares, mais específicos; os modos, quase inexplorados, em
comparação com as duas outras dimensões. Se até mesmo a “mais simples”
relação entre história sócio-material e cultura — ou, em outras palavras, entre
infra-estrutura e superestrutura — jamais foi resolvida de modo satisfatório, a
relação entre história, natureza e cultura (ou seja, a dimensão histórica de
nossos instintos, os conteúdos ideativos das gerações passadas, a relação
entre imprinting e cultura) foi analisada em nível teórico nos termos de apologia
das invariantes antropológicas, tanto etológicas como metafisicas, ou de total
autonomia sociológica.

O riso é um fenômeno de cultura nõo-reflexiva que se determina


historicamente.

Na atual forma riso, interagem tanto os modelos sócio-culturais determinados


por esse modo de produção quanto as pulsões psico-institucjonais filogenéticas
não redutíveis a esse modo de produção. Vale também para o riso o que Marx
dizia do trigo, cujo sabor nada podia nos dizer sobre o seu modo histórico de
produção. A organização social da risada não se manifesta em sua simples
sonoridade. Mas nem por isso a produção de um e da outra deixam de se
transformar.

A ideologia das invariantes antropológicas se reforça graças à nova ideologia


da absoluta sociabilidade dos instintos. Na verdade, não existe aspecto da
natureza que não seja historicamente mediatizado e, portanto, transformável e
em transformação. Entre as causas dessas confusões e da reprodução dessas
ideologias, há a diversidade diacrônica com a qual a história incide sobre a
cultura e sobre a natureza. Os tempos dos instintos não são os tempos da
sociedade; mas nem uma nem outros podem prescindir da dimensão temporal.
Indubitavelmente, a base hipo-estrutural da humanidade se transforma, em
relação com os processos de civilização; mas essa evolução é mais lenta —
antes de se estruturar numa mutação antropológica — do que as exigências
das modificações sociais. Isso vale, naturalmente,

Pagina 111

também para a estrutura psíquica. Precisamente tal anacronia entre esses dois
tipos de mudança é a causa das “ideologias absolutistas”, relativas tanto às
invariantes antropológicas quanto à pura mutabilidade sociológica. Aliás, em
certo sentido, essa as- sincronia é uma das causas de fundo da ideologia
originária.

Assim, o riso — em aparência um fenômeno tão simplesmente “natural” — é o


resultado, por um lado, de nossa evolução instintual-irreflexa, e, por outro, das
transformações histórico-sociais. Todavia, essas dimensões permanecem
separadas por causa do atual ordenamento das ciências, que as divide, apesar
do interesse de pesquisas singulares. Com efeito, diz o etólogo EiblEibesfeldt:
“Uma forma de ameaça ritualizada e sociativa — o riso — é inclusive inata:
esse movimento expressivo surgiu provavelmente de um comportamento que
definimos como ‘ódio’; muitíssimos animais sociais ameaçam em comum um
estranho ou mesmo um congênere, e muitos macacos que vivem em grupo o
fazem mostrando os dentes e emitindo ritmicamente sons de ameaça: ambos
os elementos ainda estão contidos em nosso riso, que é decreto
fortissimamente motivado em sentido agressivo, rise de alguém, ridiculariza-se
alguém, e tudo isso é feito prazerosamente e em comum com outros. Quem ri
junto com outros sente-se ligado a eles através de tal ‘ódio’ ritualizado”.

De resto, é necessário aduzir que a função ameaçadora originária do riso


ritualizou-se, por sua vez, num “mostrar os dentes” sem rumor excessivo, de
modo absolutamente amigável, dando forma ao sorrisó, que exerce a
conhecida função de tranqüilização. Enquanto em todo riso permanece uma
defesa ansiosa contra um perigo, um sorriso desarma. Em diversos macacos,
foi observado um “esgar ansioso”, que o macaco de

Inicio da nota de rodapé


1. Eibl-Eibesfeldt, Amore e odio, Milão, Mondadori, 1977, p. 204. Esse livro de
um discípulo crítico de Lorenz tende a desfazer a crença de que ‘a etologia
ensina a invariabilidade da natureza humana e vê num instinto agressivo a
motivação principal do comportamento do homem” (ibidem, p. 11). Como se
sabe, as conseqüências seriam gravíssimas em caso contrário, ou seja,
levariam á ideologia da imodificabilidade da sociedade.
2. Para Eibl-Eibesfeldt, “podemos nos pronunciar com segurança sobre a
função e sobre a difusão, mas não sobre a origem do sorriso” (ibic4em, p. 211).
E essa função consiste em “mostrar os dentes” de modo absolutamente
amigável: “Dado que, no sorriso, se mostram os dentes, supôs-se que se
tratava de um movimento de ameaça ritualizado, o ( il — durante o curso da
evolução — teve seu significado invertido no sentido oposto” (ibidem).
Fim da nota de rodapé

Pagina 112

hierarquia inferior dirige ao superior para acalmá-lo, significando submissão, O


sorriso ritualizou o significado originário de ameaça, transformandoo em seu
Oposto; e tornou-se “o nosso mais importante sinal de amizade”3. Enquanto a
função de tranqüilização própria do sorriso inibe a agressividade no riso
propriamente dito estão presentes os resíduos da arcaica função ameaçadora.
A etologia abordou as conexões entre riso e crueldade, tal como se
desenvolveram nas várias sociedades, buscando deduzir as características
gerais de mutação natural-cultural, através da qual — a partir dos macacos
antropomorfos — a agressividade tornou-se pública. Mas, uma vez
demonstradas as várias ritualizações sucessivas do riso, a etologia — e este é
o seu limite — desinteressase pelas conexões sucessivas nos vários modos de
produção, quase como se a natureza fosse uma entidade eterna e externa com
relação à história do homem, ou seja, como se ela tivesse estancado
precisamente nas sociedades “de natureza” ou chamadas de “primitivas”,
enquanto nas sociedades também chamadas de “civilizadas” não mais haveria
problemas, exceto os resíduos dos “naturais”.

Ao contrário, trata-se de decifrar as formas históricas nas quais essas ameaças


encontram a sua expressão cultural. Também a etnografia analisou em
profundidade alguns aspectos histórico-sociais do riso, mas até agora ela
Continuou a reproduzir o supra-referido limite, que formaliza um verdadeiro
tabu em face da questão riso em nossa atual cultura (menos na passada). As
pesquisas de etnologia estrutural têm um limite ulterior, também ele
simetricamente inverso ao desinteresse histórico da etologia, ou seja, o de
negligenciar instintos e pulsões. O materialismo pode ser histórico em geral,
exceto para a natureza, enquanto para a etologia a crise da sociedade atual ou
é indife-

Inicio da nota de rodapé


3.“Com esse modelo comportamental inato, estamos em condições de revelar
amizade a pessoas completamente desconhecidas Um sorriso desarma: há
pouco tempo, li que um sargento americano, encontrando imprevistamente
diante de dois vietcongues e conservando o seu fuzil, sorriu-lhes: e, assim,
inibiu os adversários. Desconfiança e medo, porém, fizeram morrer
subitamente o contato assim constituído: o americano conseguiu matar os
adversários” (EiblEibesfeldt op. cii., p. 124). É uma problemática diversa da que
foi desenvolvida pelo diretor Cimino em seu filme O franco atirador
4. Para uma crítica detalhada das teses sobre o “chamado bem” de Eibl-
Eibesfeldt (contraposto ao “chamado mal” de Lorenz), cf. W. Lepenjes-H Noite,
Critica deii’antropologja, Milão, Feltrinelli 1978, em particular pp. 107-145.
Fim da nota de rodapé

Pagina 113

rente, ou é nela projetada — generalizando-as de modo pouco materialista —


as comparações com o mundo animal. A relação entre história e instinto deve
ser inteiramente reconsiderada.

À diferença do etólogo Eihl-Eibesfeldt. Propp escreve o seguinte em seus


estudos de etnografia histórico-estrutural: “O riso é um reflexo condicionado de
tipo particular, mas um reflexo próprio apenas do homem e, por isso, dotado de
urna história. Para resolver o problema do riso ritual, temos de renunciar
completamente ao nosso conceito de cômico. Rimos de um modo diverso do
que outrora se ria. E, provavelmente, não é possível dar uma definição
filosófica geral do cômico e do riso: essa definição só pode ser histórica”.

Disso resultaria que a pesquisa histórica sobre o passado ritual não tem
importância para a compreensão do presente, por isso nào se diz em que
consiste o nosso diferente modo de rir. Por isso, a metodologia histórica nega o
seu conceito, e não certamente porque talvez Propp se houvesse iludido
quanto à superação da “pré-história” na Rússia dos sovietes. De qualquer
modo, bem mais agudas (como também as de Eidl-Eibesfeldt) são suas
pesquisas sobre as várias fases históricas da forma riso: desde a fase mágica,
passando pela agrícola e pela cristã, até abordar em detalhe a função do riso
ritual no folclore da fábula e aqui, infelizmente, deter-se. Se Eibl-Eibesfeldt se
limitou à crueldade originária do riso, cuja função em parte irrefletida e em parte
ritualizada chegou até nossa sociedade, para Propp o riso assume a função
historicamente determinada de limite entre a vida e a morte: “Com o ingresso
no reino da morte, toda manifestação de riso é suspendida e proibida; ao
contrário, o ingresso na vida é acompanhado pelo riso”6. Por isso, “os mortos
não riem, e somente os vivos riem. Os defuntos, tendo chegado ao reino dos
mortos, não podem rir; e os vivos não devem fazê-lo”.

Desde a “descoberta”, a risada foi relacionada com algo enigmático e


misterioso. Com algo mágico. Sua referência mais

Inicio da nota de rodapé


5. V. J. Propp. Edipo alia luce dei folclore, Turim, Einaudi, 1975. Em particular,
cf.
o segundo capítulo, sobre o riso ritual no folclore. Sobre a fábula de
Nesmeiana,
a citação está na p. 48.
6. Ibidem, p. 54. Essa inseparável dialética está presente também nos funerais:
‘Uma pessoa de luto deve ser induzida a rir; e, ao lado das carpideiras, podem
se encontrar os bufões” (p. 47).
7. Ibidem, p. 77.
Fim da nota de rodapé

Pagina 114

imediata devia ser com os mortos. Com efeito, a morte faz desaparecer a
capacidade de rir e, por conseguinte, não só a vida deve alimentar o riso, mas
— vice-versa — o riso pode Suscitar a própria vida. Tanto é verdade que o tabu
do riso é rigorosíssjm0 nos mitos onde se narra a penetração no reino dos
mortos, onde as cócegas são um ótimo instrumento para verificar se uma
pessoa está viva ou morta. Por exemplo, quando uma viagem desse tipo é
realizada por uma alma esquimó, ela encontra no cume de uma montanha uma
estranj-íssjma velha: “Chama-se Estripadora das Entranhas. Tem uma bacia e
uma faca ensangüenta da. Bate num tambor, dança, fazendo par com a própria
sombra, e diz apenas estas palavras: ‘abertura de minhas calças’. Quando vira
as costas, mostra uma grande fenda, através da qual se entrevê um pequeno
pássaro. Se é olhada de lado, sua boca se contorce e se estende tanto que a
face aparece mais larga que longa. Inclinando-se, consegue lamber as
nádegas; e, quando se dobra de lado, bate sonoramente nos flancos com as
bochechas. Se se consegue olhá-la sem rir, não há nenhum perigo. Mas, tão
logo os lábios se contraem num esgar, ela joga fora o tambor, agarra o
insolente e o derruba por terra. Depois, pega a faca, abre-lhe o ventre, arranca-
lhe as entranhas, joga-as na bacia e as devora com avidez.

Decerto, a autêntica gag que Madame Estripadora realiza diante das almas que
aparecem à sua frente é digna de um grande clown, talvez do Carlitos, que, em
Luzes da ribalta, consegue fazer rir a infeliz bailarina. Mas talvez o mesmo
significado profundo contenJa muito mais elementos de afinidade do que se
possa suspeitar: a teimosia em obrigar à risada aparece idêntica em um como
no outro, embora os resultados sejam tão diversos no filme e no mito. De fato,
somente para os esquimós o riso parece se associar à morte.

Inicio da nota de rodapé


8. Ibidem, p. 51. De resto, todo rito de iniciação uma simulação da morte, razão
por que os iniciados são proibidos de rir; no final da cerimônia os jovens se
põem em fila: ‘Aparece então uma jovem mulher vestida de homem. Comporta-
se e fala Como um homem. Tem na mão uma lança de ponta de osso de peixe
e uma tocha acesa e anda ao longo da fila dos rapazes. Se nenhum dos
rapazes ri, ela passa em revista todos eles; mas, se algum ri, ela se alegra e
vai embora sem terminar a revista. Os rapazes são avjsad,s previamente da
aparição da jovem e se lhes recomenda severamente que n.u riam”. Trata-se
de uma cerimônia que tem lugar nas ilhas da Oceania, narrada por W. Schmidt
e citada por Propp, ibidem, p. 53.
Fim da nota de rodapé

Pagina 115

Contudo, a evolução do riso — como, em geral, o processo de civilização —


faz reaparecer no espetáculo ritual do filme o desejo de restaurar a ordem
mágica, sob a forma da coação a repetir a representação da própria liquidação.
Com efeito, o cinema recupera num novo e insuspeitado nível a originária
função social do riso sardônico, talvez o mais famoso exemplo de riso diante da
morte: “Entre a antiqüíssima população da Sardenha, os sardos ou sardônicos,
vigorava o hábito de matar os velhos. E, enquanto matavam os velhos, riam
sonoramente. Nisso consiste o famigerado riso sardônico”.

Essa forma de riso passou para a linguagem corrente como algo


particularmente cruel. Mas, com efeito, o significado originário desse rito é bem
diverso: a risada é um meio para anular a morte, para negá-la e invertê-la em
seu contrário; ou seja, aparecia como momento de técnica mágica que realiza
concretamente a passagem desta para a outra vida, O riso ritual sardônico
consegue tornar aceitável (e não apenas, como é evidente, pelos velhos),
como uma espécie de salvo-conduto para a “verdadeira” vida, o que seria na
realidade socialmente insuportável, sob pena da desagregação conflitual de
todo o grupo: a supressão dos anciãos, convertidos apenas em peso supérfluo,
e não mais produtivos, O riso ritual entre os sardônicos anulava o homicídio e
transformava-o em passagem para o fim da carestia e o começo da
abundância. É um tipo de riso que dá a vida matando, porque de outra forma
seria insuportável para os parentes aceitar o dever de suprimir a geração mais
velha, à qual estarão destinados a suceder.

O sentido desse rito espetacular, adequado a conciliar as exigências


alimentares e os conflitos afetivos do grupo, sobrevive na platéia do cinema,
ainda que agora ninguém creia mais que o riso durante um assassinato em
público (e muito menos durante o próprio) possa transformar a morte num novo
nascimento e, portanto, anular o homicídio. A proibição arcaica de rir depois do
ingresso no reino da morte — unida ao misterioso poder que tem o riso de
suscitar a vida — retorna nos finais

Inicio da nota de rodapé


9. Ibidem, p. 59. E ainda: “Comparando o riso sardônico com os fenômenos
análogos de outros povos, Reinach diz: ‘Os sardos riam ao sacrificar os seus
velhos; os trogloditas, ao enterrar os seus mortos; os fenícios, quando
suprimiam os seus filhos; os trácios, quando estavam prestes a morrer” (pp. 59-
60).
Fim da nota de rodapé

Pagina 116

cômicos. Buster Keaton captou — de modo inconsciente mas profícuo — essa


conexão subterrânea criando o seu personagem que jamais ri, mas que faz rir
inteligentemen com sua face de pedra. Uma face morta, portanto. Keaton faz rir
fingindo-se de cadáver; e seus primeiros planos servem para esclarecer esse
conceito1° As posteriores desventuras neuróticas de Pato Donald, Tom e Jerry,
até Fantozzi e Woody Alien, estabelecem uma conexão automática entre
explosão de riso e crueldade contra o socialmente fraco, com base num reflexo
que agora condicionado somente pelas leis de produção cinematográfica e de
controle social.’1 Ou seja, agora “se ri do fato de que não há mais do que rir”.

Em Roma, até o século XVII, durante o carnaval encenavam-se corridas de


“bípedes”, nas quais se apresentavam nus, numa “corrida humilhante”, judeus,
mulheres, velhos. Mais uma

Inicio da nota de rodapé

10. Diz Zaratustra: Para os homens, são ainda algo intermediário entre um
palhaço e um cadãve,’ (F. Nietzsche, osfpar/d Zaratustra, Milão, Adelphj, 1968).
E iSSO porque, como lhe diz subjtamente um homem, “a tua sorte foi que
rimos de ti: e, na verdade, tu falaste como um palhaço. Tua sorte foi te pores na
companhia deste cão morio”. Ou seja: precisamente de um equilibrista que se
despedaçara no solo.
11. Sobre as conexões entre riso e crueldade, podem-se ver também estes
dois exemplos: “Eis que me olham e riem: e, ao rir, também me odeiam Há gelo
no riso deles’ (F. Nietzsche op. cit., p. 12). “E morria de rir não por maldade,
mas pela mesma razão por que não podia ver cair um COXO na rua, ou tentar
falar com um surdo, sem começar a sorrir” (M. Proust. Sodoma e Gomorra in
Em busca do tempo perd ido ed. brasileira, Porto Alegre, Globo. 1957).
12. AdornoHorkeimer Dialletjca dell’Jllumjnjsmo op cii., p. 151. “Os desenhos
animados eram, em certo momento, expoentes da fantasia contra o
racionalismo. Faziam justiça aos animais e às coisas eletrizadas pela sua
técnica, já que — mutilando-os — conferiamlhes uma segunda vida. Agora nào
fazem mais do que confirmar a vitória da razão tecnológica sobre a verdade.
Há alguns anos, apresentavam ações coerentes, que se dissolviam apenas nos
últimos minutos do ritmo endiabrado das seqüências. Seu desenvolvimento
assemelhavase nisso ao velho esquema da slapstick comedy. Mas, agora, as
relações de tempo se deslocaram. Desde as primeiras seqüências do desenho
animado, anunciase um motivo de ação com base no qual, durante o curso da
mesma, é possível exercer-se a destruição: entre os aplausos do público, o
protagonista é puxado por todos os lados como um trapo velho. Assim, a
quantidade de diversão organizada transmudase na qualidade da ferocidade
organizada (..). Se os desenhos animados têm outro efeito além de habituar os
sentidos a um novo ritmo, é o de martelar em todos os cérebros a antiga
verdade de que o maltrato contínuo, a quebra de toda resistência individual, é a
condição de vida nesta sociedade. Pato Donald, nos desenhos animados tal
Como os infelizes na realidade, recebe pontapés para que os espectadores se
habituem aos que eles mesmos recebem”.
Fim da nota de rodapé

Pagina 117

vez, os socialmente fracos — em comparação com a unicidade do sujeito viril


— são objetos públicos de um riso sardônico, mas já sem nem sequer a
ideologia da anulação ritual da crueldade: “Em 1581, Montaigne assistiu ainda
a corridas de meninos, judeus, velhos nus; nos Avisos de 1662, pode-se ler que
‘houve uma corrida de corcundas nus que chamavam a atenção pela variedade
de suas costas deformadas’. As corridas de judeus, que pagavam as despesas
de preparação das festas de Agone e Testaccio, só foram suspensas em 1668,
sob Clemente IX.

De um outro ponto de vista, ainda que estritamente ligado ao precedente, uma


das possíveis causas da origem cultural do riso — segundo Propp — deve ser
buscada no espanto provocado no homem pela descoberta de que o ventre da
mulher (a mãe primigênia, a Grande Mãe e poderosa xamâ’) começava
misteriosamente a inchar. A ignorância da relação entre sexualidade e
reprodução devia produzir no homem uma angustiosa sensação que somente o
riso, num primeiro momento, era capaz de exorcizar. Portanto, o riso sardônico
— além de acompanhar a viagem da vida para a morte — pode ser reversível e
acompanhar a vida: “Se com o ingresso no reino da morte toda manifestação
de riso é suspensa e proibida, o ingresso na vida, ao contrário, é acompanhado
pelo riso. Aliás, se no primeiro caso vigorava a proibição de rir, no segundo o
riso se torna um dever, uma verdadeira obrigação”.

O riso tem também uma origem sexual que deriva da sua primogenitura por
parte da deusa-do-parto — a Mulber-Procriadora de cuja capacidade se
ignoram as causas — e de sua posterior extensão não apenas à reprodução da
espécie, mas, finalmente, à vida enquanto tal. Somente mais tarde é que à
função especificamente sexual do riso se acrescentou a função erótica. Para a
cultura cristã, que percebera tais funções e seus perigos para sua própria
concepção do mundo, a representação figurativa da divindade não deve rir
nunca. “No cristianismo, quem ri é precisamente a morte, o diabo.” O riso volta
a ser tabu, desta feita na terra, não mais no outro mundo, como era afirmado
pelos mais arcaicos mitos agrícolas. O riso torna-se representação sensível da
danação da carne. A incontinência do riso é a mesma

Inicio da nota de rodapé


13. A. Fontana, “La scena”, in Storia d’italia, op. cii., p. 828.
14. Propp, op. cii., p. 54.
Fim da nota de rodapé

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coisa que a iflCofltiflêncja da carne e sua incontrolável pecaminosidade. “Cristo


não ria nunca”, disse a Turguêniev o pintor A. A. quando Pintava o retrato de
Cristo.

Se, originariarne ria-se ao pôr no mundo um filho, este assume — na


concepção agrícola do riso — a função de meio mágico para a multiplicação da
colheita Nos campos, semeiase rindo; e, para favorecer a fecundidade,
copulase No riso pascal, permaneceu essa função pagã, que o cristianismo
conseguiu derrotar — como no caso de tantos outros ritos somente abso endoa
Fez-se com que a Páscoa coincidisse com as festas agrícolas da ressurreição
da natureza e com as festas mais especificamente pagás da ressurreição de
diversas divindades, antes de ser a ressurreição de Cristo. Ora, não só no
mundo antigo, mas durante toda a Idade Média e mesmo até flossos dias,
firmou-se o costume segundo o qual, “no dia de Páscoa, o padre pronuncia do
púlpito algumas brincadeiras para suscitar o riso dos paroquianos» E o padre
não se limitava a contar historinhas licenciosas, mas fazia “ver os próprios
sinais”, ou seja, cantava canções obscenas e fazia gestos de desnudamento.
E, tão logo se saía da igreja, ao cair da noite, realjzavamse coisas obscenjores.

O riso, portanto, remete a algo diverso: é uma metáfora que representamos


com nossa própria face que, com freqüência, o pudor obriga a censurar
cobrindo a boca com a mão. A ambivalência do riso sardônico consiste em sua
ligação com as crueldades ritualizadas — a supressão de quem, agora velho,
além de socialmente inútil, tornou.se também um déficit alimen tar e, ao mesmo
tempo, em querer negá-las evocando nada menos do que a vida. Ora, os
restos dessas ritualjdades ambivalentes retornam nas formas fílmjcas do riso.
sos sardônicos de uma parte da humanidade torna espectadora do sacrifício
próprio e alheio. O mesmo fenômeno riso que tinha a capacidade de multiplicar
o gênero humano o mundo animal e o vegetal, tem agora a função de
multiplicador de peliculas com gags matematizadas e programa que
reproduzem ao infinito risos

Inicio da nota de rodapé


15. Ibídem, p. 63.
16 Sobre essa questão, além do trabalho de Propp, ver Frazer, fl ramo d’oro,
Turim, Boringhierj, 1973, em paflicular, no vol. 11, os mitos de Osfris e Dioniso
17. Propp, op. ctt., pp. 65-66.
Fim da nota de rodapé

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ritualizados em reações automatizadas: uma forma riso estruturável em


diagramas cartesianos. Gags sardônicas. Desse modo, o riso regride à sua
arcana função mimética. Tende a coincidir com o que o provoca.

Também a origem da dança é de natureza mimética. Sua função mágica e


mímica era tal na medida em que a identificação com as forças da natureza e
sua reprodução para fins rituais tinha a finalidade de agir sobre a própria
natureza, ou melhor, por assim dizer, no interior dela. A dança acreditava poder
dobrar às próprias finalidades a natureza, penetrando em suas entranhas; era
possível aplacar a natureza tornando-a idêntica a si, ou seja, através da
mimese. Ou melhor: a dança mimética atinge sua finalidade quando consegue
subsumir o dançarino dentro da natureza. Disso resulta a possessão, que é a
perda da individualidade e o abandono ao êxtase. A dança era um esforço
convulsivo voltado para a ação sobre as coisas: depois, foi progressivamente
perdendo esse caráter, para se tornar arte separada (balé como espetáculo) ou
passatempo (baile em sociedade); em qualquer caso, cada vez mais coito
mimetizado, porém desincorporado eficientemente da natureza. Desapareceu a
diferença entre a coação a replicar o pas-de-deux no teatro e os golpes
pélvicos em primeiro plano na discoteca. O baile não busca mais tornar
benigna e, portanto, controlável a natureza, imitando suas representações; ao
contrário, aceita-a apenas na medida em que seja produtiva. Se não se
apresentar assim, a natureza é reprimida.
Também o riso sofreu tal destino antes de chegar às salas cinematográficas.

O riso era possessão simpatética com a Grande Mãe, cuja inchação mítica
gerava a vida; depois o riso estendeu sua conexão do ciclo vital ao ciclo
agrícola, da fecundação do ventre à de Géia, a Terra, de onde nasceram os
segredos iniciáticos de Deméter. Ria-se da inchação disforme e grávida da
barriga feminina. Portanto, o riso se modelou na incontinência masculina, no
modelo dionisíaco)8 A seguir o cristianismo marcou o riso

Inicio da nota de rodapé


18. O filão “quente” do riso, no qual rir é um ato liberador, lúdico e erótico, está
presente em Nietzsche, em sua celebração do momento dionisíaco. O riso
como embriaguez: “Do riso desse Dioniso, nasceram os deuses olímpicos; do
pranto, nasceram os homens” (La nascita deila tragedia, Bari, Laterza, 1967, p.
102). Ve
Fim da nota de rodapé

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com uma origem diabólica, metáfora “pública” circunscrita à expressão facial de


“privadas” sexualidades pecaminosas Agora o riso está subjugado uma vez
superada a fase austera da acumulação primitiva em parte luterana e em parte
Vitoriana — ao “espírito” alienado do capitalismo pós-industrial, o cinema.
Depois do riso, fica-se triste, assim como depois do coito sexual não erótico: o
riso deixa sem investimento libidinal, fator que fornece elementos probatórios
ao antagonismo “sincrônico” entre riso e coito.

Talvez na intensa alteração do rosto, na dilatação desmesurada da boca, na


respiração ofegante, nas convulsões irrefletidas dos membros, nas contrações
rítmicas do diafragma e das mandíbulas, até a irrupção, do mais fundo das
entranhas, de uma sonoridade descomposta e imprevista, bem como na
simultânea e incontrolável emissão de lágrimas e de urina, talvez em todas
essas convulsões rítmicas dos membros, que culminam numa descarga
irrefletida, permaneça a recordação daquele orgasmo ao qual é afim tanto o
riso quanto a epilepsia. A risada agrícola tinha na divindidade de Deméter —
Madame La Ferre o protótipo ao qual as várias princesas deviam ser
subordinadas. bO A risada fílmica tem no sucesso representado por Monsieur
Le Capital o estereótipo ao qual imeditamente se adapta a platéia multi-étnica
dos espectadores. E a alienação fílmica revela a função agressiva de sedução
quando as gags mostram seus verdadeiros traços distintivos, quase sempre de
natureza sexual, O que muda é o objeto a reproduzir. Assim como o ventre da
mulher se expande misteriosamente, assim como a terra ciclicamente se incha
e dá à luz os meios de subsistência, do mesmo modo o capital investido na
última dessacralizante “animal house” se auto-reproduz ilimitadamente num
gigantesco network ampliado, fecundados pelo sêmen-dinheiro e pelo
fertilizante do espectador. As risadas, do xamã a Deméter, chegando até às
crepitantes registradas nos vários Peny Como Show de vinte anos atrás,
representam a medida em que se estabeleceu a

Inicio da nota de rodapé


ia-se também o riso como “baixo” material e corpóreo em M. Baktin, L ‘opera di
Rabelais ela cultura Popolare Turim, Einaudi, 1979.
19. Propp, op. cii., pp. 68-76 (“1 contrassegni delia priflcipessa”).
20. E o “grande final” de todo filme cómico, onde se celebra o triunfo da
indústria do ente ainement
Fim da nota de rodapé

Pagina 121

relação entre o homem e o seu grau de apropriação da natureza. Dos


exemplos dados, resulta evidente como a função mimética da risada é igual
nos três casos. Só que o mecanismo mágico do show televisivo que evoca a
risada rindo — segundo o mais clássico dos princípios da magia produz efeitos
planetários por causa da sua difusão e da “natureza” do próprio medium. Mas
são ainda risadas “pré-históricas”. No curso do inteiro processo de civilização,
as várias formas de crueldade se ritualizaram. Por exemplo, nos povos
agricultores (e não coletores), os sacrifícios humanos originários foram
substituidos pelos animais e vegetais; a esses, sucederam-se
progressivamente genéricas “coisas” simbólicas. Mas o momento sacrificial
humano sempre reapareceu como “jogo” (basta recordar o circo romano) e
também como rito (toda a missa cristã gira em torno do sacrifício de Cristo):
agora, as ritualizações concentram-se no espetáculo cômico necessário e
ininterrupto e na dialética de seu arcano fetichismo. Em suma: da real
antropofagia de tipo “gastronômico”, passou- se à ritual, que quer incorporar
somente as “virtudes” do sacrificado; 21 das orgias dionisíacas, onde se devora
a carne crua do animal totêmico,22 passou-se aos banquetes non-stop
dissolutos e trimalquiônicos; do pão como “carne da minha carne” à hóstia, e
do sangue ao vinho; das refeições em quartos estilo Luís XIV aos restaurantes
públicos pós-Terror;23 dos clubes reservadíssimos aos jantares em casa diante
dos célebres enlatados chamados de TV clinner. Essas modificações rituais
ocorreram sem grandes traumas, através de extravasamentos culturais da
velha para a nova forma, dirigidos sucessivamente por xamãs e showmen,
clérigos e ideológos, filósofos e políticos. Das muitas

Inicio da nota de rodapé


21. A. Metraux, Religioni e riti magici neii’America Meridionale, Milão, 11
Saggiatore, 1971. O prisioneiro destinado a ser comido devia sofrer “a
humilhação da exibição no curso de certas festas. Ele aparecia nelas com as
pernas amarradas e era objeto de riso para todos. Extraía-se uma alegria
maligna do fato de maltratálo; e cada um indicava em sua pessoa os pedaços
que deselava” (ibidem, p. 50).
22. E. Rohde, Psiche, Bari, Laterza, 1970: “Assim, elas (as Bacantes)
enfureciam- se até a máxima excitação de todos os sentidos. Depois, invadidas
pelo ‘furor sagrado’, precipitavam-se sobre os animais escolhidos para o
sacrifício, agarravam-nos, dilaceravam-nos, arrancavam com os dentes a carne
sanguinolenta e
comiam-na crua avidamente” (ibidem, p. 346).
23. Aron, La Francia a tavola dail’Ottocenntro alia I3elie Epoque, Turim,
Einaudi, 1979. O nascimento dos restaurantes deriva da Revolução Francesa,
quando os cozinheiros a serviço da aristocracia ficaram sem trabalho.
Fim da nota de rodapé
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Weltanschauungen, construiu-se o star-system. Mas os motivos originários


expressos pela dinâmica desse “mal-estar na civilização” transferiram-se em
parte para as posteriores ritualizações enquanto símbolos, que contêm —
ainda que sob forma sublimada — todo o terror e crueldade originários; e, em
parte, foram removidos e, portanto, reprimidos para os estratos arqueológicos e
inconscientes de nossa psique. Mas as causas não foram eliminadas. Aliás,
elas tendem à socialização.

A difusão de tais modelos “arcaicos” até mesmo entre camadas sociais


diferentes entre si deve querer significar que a relação entre as transformações
históricas das simbólicas e o retorno do reprimido é um dos maiores riscos não
resolvidos; e que a dialética entre esse “retorno” e esses “ritos” tende a
socializar em forma sintética — pública e privada — o sistema herdjtário mais
arcaico com os “entretenimentos” de massa. As remoções filogenéticas se
combinam com as repressões ontogenéticas, dando vida a rituais de rebelião
ou de passivização não mais explicáveis com o materialismo tradicional.

O retorno do reprimido, em sua relação com o retorno do idêntico, vale


implacavelmente também para o riso, quando este explode irrefletido, nervoso
e forçado na escura sala do cinema.

A dialética do riso

Numa transmissão televisiva de alguns anos atrás sobre o desenho animado,


apresentada por M. Accolti Gil, foi projetada uma entrevista na qual Segar — o
inventor de Popeye — explicava uma invenção sua que aplicava técnicas
industriais à produção do riso, como se se tratasse de uma mercadoria como
outra qualquer. Ele projetara num diagrama cartesiano, por um lado, a evolução
da história quantificada temporalmente, e, por outro, os momentos da risada.
Pois bem: Segar descobrira uma relação “fixa” entre as várias fases de que se
compõe o cartoon e os momentos em que deviam “ser precipitadas” as gags
para produzir riso. Essa relação “fixa” foi formalizada num gráfico de curvas
rígidas, sempre iguais. Desenvolvendo todos os cartoons segundo esse
diagrama — que é uma espécie de estrutura da

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risada Jïlmica — estava assegurado o sucesso de público, uma vez preenchido


o esquema de uma combinação dos elementos cômicos dados, os quais, por
sua vez, como se sabe, são quantificáveis. O desencadeamento do riso de tipo
taylorístico e rooseveltiano do “progressista” Segar, precisamente enquanto
estruturado em tempos rígidos e preestabelecidos, obtinha inelutavelmente os
resultados exigidos. Rir no cinema tornara-se uma atividade cientificamente
programada. Ademais, os conteúdos desse riso reificado — a cuja ação
ultraprevista é difícil resistir — são cada vez mais, progressivamente,
sadomasoquistas. Esse mecanismo pode ser exemplificado por uma análise da
reação retardada. Com esse termo, definimos a gag que usa a defasagem que
se dá, por exemplo, entre caminhar no vazio como se nada tivesse ocorrido e a
percepção dessa incômoda posição, que, naturalmente, implica a inevitável
queda do personagem em ação. E é precisamente o momento da tomada de
consciência e do terror que deforma seus traços faciais que desencadeia
implacavelmente a excitação do público, embora — aliás, precisamente por
isso — essa gag já tenha sido reproduzida um infinito número de vezes, O
estereótipo da reação retardada leva à síntese a espera do arquiconhecido, a
reconfirmação de um eterno retorno reificado, o gozo sádico contra o “ator”
enquanto alguém socialmente débil, a solidariedade masoquista de se sentir
cúmplice enquanto espectador passivo. No fatal intervalo entre caminhar e cair
no vazio, o espectador sabe — diferentemente do “ator’ — a desgraça que está
para ocorrer a este último e é disso que ri. O riso fílmico não anula mais (como
ocorria no caso do arcaico riso sardônico) o despedaçar-se do “velho” lobo mau
ou do coiote ao cair no solo, mas o acompanha com o gosto da cumplicidade.

As antenas de televisão (como, de resto, os projetores do cinema) são o


medium através do qual se restabelece o “contato” entre as risadas registradas
nas salas de mixagem e o indivíduo perdido em seu apartamento. Na versão
italiana do Peny Como Show, um público muito bem treinado para perceber os
enganos — porque sofreu e continua a sofrer muitos — ri daqueles que riem,
numa co-participação cruel contra os “imbecis” (os espectadores norte-
americanos). E assim o círculo se fecha. Mesmo a tentativa de libertar-se da
coerção infeliz às risadas televisivas totalitariza a liberdade, O público que ri da

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gag repetida bilhões de vezes manifesta que não tem o desejo de obstaculizar
— mas sim de favorecer alegremente — o processo de desumanização da
humanidade. No riso, há a afirmação de que agora se está pronto para tudo,
seguro da própria unanimidade conferida pelos índices multinacionais de
audiência. A associação — outrora irrefletida, depois ritual e, finalmente,
programada entre riso e cinema desmente de uma vez por todas a ideologia
dos reflexos condicionados, os quais são tais por causa tão-somente da
relação entre processo civilizatório e produção social.

Também os nomes talvez tenham a sua origem no riso: “os nomes são risadas
empedradas’, cuja função originária ainda hoje se conserva, de modo evidente,
nos apelidos. Nos títulos dos filmes, tais risadas, em vez de empedrarse
iluminam-se com o neon, coagulamse nos cartazes de publicidade: Piedone lo
Sbirro, Fantozzj; L ‘uno di Chen, Emanuelie Nera, Pasqualino Setebelezas

A risada provocada pela torta na cara revela, na escuridão do cinema, tanto a


libertação do medo, o afastamento do perigo, como a permanência do sinal de
violência Por causa das enormes forças que se concentram por trás da
programação da risada filmica, nela retorna a erupção da natureza cega e
endurecida, não mais liberadora, por causa da absoluta inconsciência pública
com a qual ela se realiza. E essa não-libertação da potência destruidora
converte-se em aumento adicional da crueldade.

O riso coletivo parece ironizar a pretensão de felicidade do público. Ela tem


uma necessidade férrea de um bode expiatório que tanto mais levará à
gargalhada coletiva quanto mais, além de socialmente débil, for fisicamente
deformado, O riso se torna, cada vez mais, apenas ruptura do sentido de
proporção cultural- mente codificada do ponto de vista da apologia
etnocêntrica, grupocêntrica egocêntrica, O hábito de dar risadinhas quando
chega o momento, há muito previsto, da simulação do ato sexual simulação à
qual não escapa nem mesmo a atual representação hard-core - sublinha, por
parte dos espectadores, a impossibilidade, quando não a própria crença, de
alcançar o prazer. Essa sonoridade embaraçada é o indicador de um riso
canalizado numa repressão compulsiva. Até mesmo qualquer docu

Inicio da nota de rodapé


24. Adorno-Horkhejmer op. cii., p. 87.
Fim da nota de rodapé

Pagina 125

mentário “noturno” associa, como norma inderrogável, um comentário falado


fundado sobre a derrisão das imagens mais osées. O código de
comportamento num momento em que “público” e “privado” são achatados na
não-diferença — impõe que se ria da falsa sexualidade socialmente permitida e
realiza o puro neo-sadomasoquismo.

A insuprimibilidade do desejo encontra saída em sua supressão.

As histórias narradas no filme representam situações nas quais o espectador


não se encontrará nunca, mesmo tendo sido treinado para desejá-las em alto
grau. Mas será obrigado a rir desse desejo a fim de poder continuar a perceber
como aceitável sua própria condição. Essa é uma lei geral do cinema: mostrar
alguma coisa ao público e, ao mesmo tempo, privá-lo dessa coisa.

Assim, o divertimento realiza a resignação, ou seja, precisamente o que se


queria esquecer.

Chaplin conseguiu elevar a uma síntese genial o novo medium “cinema” com
os instrumentos ligados à origem mais arcaica e irrefletida da humanidade: o
riso, o pranto, a mímica. E, se o cinema pôde construir seu próprio império
industrial e ideológico através da repressão e, portanto, da transformação tanto
da “natureza humana originária” como da historicamente determinada, Carlitos
não está isento — e seria absurdo pretendê-lo — desse “pecado original”. A
mfmica — na qual era realmente genial — foi a arte-artesã, parenta próxima da
arte mitológica, através da qual o cinema das origens, como indústria em
formação do espetáculo e da comunicação, pôde desbaratar todos os media
precedentes, do teatro ao circo e ao folhetim. Todas as capacidades
clownescas ou “romanescas” de Carlitos são, antes de mais nada, filmicas não
pertencendo ao específico do circo ou da literatura, embora sua origem seja
exatamente aquele, isto é, circense e folhetinesca. A genialidade de Chaplin
consiste em ter conseguido fazer com que o novo instrumento de
reprodutibilidade técnica universal aparecesse como um recurso que coagula
todas as anteriores astúcias de profissão, com o fim de celebrar os valores —
supostamente também “universais” — de toda a humanidade.

A arte de Chaplin se funda num cinema mimético que atua em parte com base
na tradição naturalista precedente e, em

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parte, já avança de modo ingênuo no sentido da inovação tecnológica. Essa


ambivalência produz uma cisão entre o diretor Chaplin e o ator Carlitos:
somente esse último é que deve se mover diante da câmara, que deve
representar aquela exigência pura de movimento que é a própria do cinema.
Ninguém se moveu ou jamais poderá se mover diante da câmara como ele o
fez. Ademais, aquela extraordinária habilidade não se mantém estática, fixada
nos padrões das comédias, mas, ao contrário, tende a aumentar em função do
fascínio original do movimento mais rápido com relação ao movimento real
característico dos primeiros filmes. Isso contradiz a tese de Walter Benjamin —
embora se trate de uma tese genial — sobre a reprodutibilidade técnica, na
medida em que ela não capta também a profunda dialética que se estabelece
entre essa reprodutibilidade e a aura das formas artísticas precedentes. Por
isso, é agora teoricamente legítimo afirmar que as comédias reprodutíveis de
Chaplin têm uma aura, cujo fascínio atraente é irrepetível. Trata-se, com efeito,
do hic et nunc de uma comicidade original, cuja autenticidade se difundiu
também onde parecia que lhe devesse ser proibido: no tecnicamente
reprodutível. Desse modo, é irrepetível uma utilização da câmara que, pela
necessidade de filmar o mobilíssímo Carlitos, fique praticamente imóvel. A falta
de movimentos da máquina, portanto, não depende da ignorância técnica de
Chaplin diretor, mas da sabedoria metódica de Carlitos ator. Essa imobilidade
da câmara como pendant da mobilidade do mímico representa a permanência
das formas originárias do espetáculo e da comunicação pré-fílmicas no interior
do novo medium, o cinema. E, todavia, Chaplin-Carlitos só pode ser clown por
meio da câmara. No circo real, sua arte seria praticamente nula. Toda a
sabedoria clownesca de Carlitos é fílmica; e somente através do cinema pôde
se firmar. Essa é, precisamente, a aura da linguagem fílmica das origens, que
mantém — transformando-a e subordinando-a às exigências da produção
cinematográfica — a linguagem do romance de folhetim de fundo social,
reproduzida em milhares de fotogramas.

Inicio da nota de rodapé


25. Essa objeção está presente em Adorno, ainda que não referida especifica-
mente ao cinema: “A crítica dialética que poderia ser dirigida à teoria
benjaminiana seria a seguinte: na dicotomia entre a obra de arte inserida na
aura e a obra de arte tecnológica, Benjanlin suprimiu o momento unitário em
favor da diferença” (Adorno, Teoria estetica, Turim, Einaudi, 1975, p. 49).
Fim da nota de rodapé

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O cinema, como forma de expressão de nosso tempo, de suas contradições e


de sua cultura aqui e agora, desenvolveu-se — ao contrário — num sentido
oposto ao de Chaplin: ou seja, buscou afirmar a autonomia da câmara, a
autonomia de movimento da máquina de filmar.

É errado afirmar que o riso de Carlitos tenha uma função purificadora “de
artista”, quase sempre progressista. Hugo disse que, “de todas as lavas que
saem da boca humana, essa cratera, a mais corrosiva é a hilaridade. Fazer o
mal alegremente: nenhuma multidão resiste a esse contágio”. O riso
freqüentemente é sádico, produz atitudes autoritárias, persecutórias,
predispostas a tomar como objetos os débeis, os diversos, os disformes,
particularmente no “tempo de divertimento”. Estamos habituados a rir
sadomasoquíStamente quando não há nada do que rir. Quando uma mulher
gorda escorrega numa casca de banana.’ Tende a ser cada vez mais rara uma
forma de riso libertadora, riso como instância de vida, que é tal não apenas
quando se produz na crítica social, mas também nas instâncias lúdicas,
alegremente agradáveis, que — em seu movimento específico — são privadas
da marca da crueldade ou do limite do medo dissipado. Não mais podemos rir
todos das mesmas coisas e dos mesmos truques. Por exemplo, Dano Fo nos
faz rir mais quando está subentendido que muitos não rirão de suas farsas. Por
isso, nada é mais hilariante do que ler a apologia da sensibilidade de Chaplin
para a alienação operária precisamente naquela mesma imprensa que sempre
legitima as condições de trabalho social-

Inicio da nota de rodapé


26. V. Hugo, L’uomo que ride, Florença, Casini, 1964, p. 409. E prossegue
assim:
“Nem todas as execuções têm lugar no patíbulo; e os homens, quando se
encontram reunidos, seja numa multidão ou numa assembléia, têm sempre em
seu meio um assassino preparado, ou seja, o sarcasmo. Não há suplício
comparável ao de um miserável que é ridículo”.
27. Diz ainda Nietzsche: “Sem crueldade, não há festa; assim ensina a mais
longa e mais velha história do homem — e mesmo na pena há muito ar de
festa” (La genealogia deila morale, Milão, Mondadori, 1979, segunda
dissertação, 6. p. 50). Isso vale, mutatis mutandis, também para o cinema,
onde o cômico — verdadeiro herdeiro do clown e do bobo da corte — deve ter
marcadas na face e no corpo as “cicatrizes” de uma natureza arcaica e
disforme. A esse estigma antropológico acrescenta-se um sociológico, de
precisa discriminação de classe: somente o pobre é aceito como pessoa que
faz rir, enquanto ao rico é sempre reservado um papel de quem ri. Jamais
existirá um cômico rico (mas isso, como no caso dos pugilistas, não é um
privilégio dos pobres): a dialética servo-senhor não é determinada apenas pelo
trabalho, mas também pelo riso.
Fim da nota de rodapé

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mente dadas. Chaplin afirmou que o sorvete de Carlitos deve cair no decote de
urna rica — e naturalmente gorda — e não de uma pobre mulher, para fazer
com que todos riam. E, com efeito, todos riem. Mas precisamente essa
indevida universalidade é falaz: riríamos com muito maior incontinência se
estivéssemos certos de que todas as ricas da platéia — sem sorvete no decote
e sem adiposidades — fossem impedidas de restabelecer as próprias certezas
de classe também através do riso delas, o qual parece ter mais a função de
tranqüilizar contra um medo potencial ou contra uma ameaça real.

Sempre, em O homem que ri, o personagem principal tinha uma capacidade de


comunicar risadas irrefreáveis por causa do seu aspecto monstruoso. Com
efeito, sua face fora mutilada desde criança por cirurgiões do século XVII,
especializados em forjar estátuas vivas do horror para a delícia dos poderosos.
Eram esses — diz Hugo — os “compra-chicos”, ou seja, compradores e
vendedores de crianças: “O furto de crianças é uma outra indústria. E o que
faziam dessas crianças? Monstros. Para que monstros? Para fazer rir”.

Particularmente na boca de Gwynplaine, dilatada cirurgicamente até as


orelhas, estava impresso um riso indelével. Todos podem reconhecer nele o
riso do clown, com a diferença de que — numa época mais “civilizada” —
esses últimos têm a boca apenas pintada e não já deformada na carne, O
homem, durante séculos, foi habituado a rir dos deformados. Na Idade Média,
os aristocratas se cercavam de bufões, que eram os únicos
— na medida em que derivavam esse privilégio de sua monstruosidade — que
tinham a possibilidade de diverti-los, além de poderem dizer a verdade. Aos
olhos deles, o fato de que apenas pessoas monstruosas podiam constituir
exceção para a liberdade de palavras já era, por si só, um fato irresistivelmente
cômico. Lição que o poder compreendeu bem e tornou mais refinada até
nossos dias. Parece que as mutilações da natureza, as cicatrizes pré-históricas
de nosso passado — do que se reputa como tal —

Inicio da nota de rodapé


28. “Esse riso que vocês vêem em minha face foi um rei quem o pôs aí. Esse
riso expressa a desolação universal. Esse riso quer dizer: ódio, silêncio
forçado, raiva, desespero. Esse riso é um produto das torturas. Esse riso é um
riso de violência. Se Satanás tivesse esse riso, esse riso condenaria Deus (...).
O homem é um mutilado. O que me foi feito ao gênero humano” (V. Hugo, op.
cit., p. 468).
Fim da nota de rodapé

Pagina 129

produzem a descarga irrefletida do riso para expulsar os fantasmas de nosso


presente e restabelecer um universo aceitável e tranqüilizador. Algo de análogo
ocorre também com o arrepio — parente próximo do riso — que, com sua
descarga nervosa, consegue restabelecer a temperatura vital de nosso corpo.
Só que o riso é — por assim dizer — algo bem mais cultural e social. Ele
consegue transcender a sua “naturalidade”, não é um modelo fixo que se
reproduz para os tolos ou para o bom sangue, mas é ligado aos modos de
produção, como vimos, e também à organização religiosa e cultural de toda
sociedade.

Os fascistas ainda riem quando chamam um negro de macaco; e os


“companheiros”, quando falam das “corcundas” de políticos. Mas muitíssimos
exemplos poderiam ser dados sobre o modo como a indústria cultural organiza
formas sádicas de riso que penetram por toda parte. Também na esquerda.
Quando Fantozzi faz estourar de rir a platéia de um cinema “alternativo” (como
o Farnese, em Roma) dando uma martelada em seu dedo enfaixado e em
ereção, devemos todos nos preocupar. E mesmo eu não pude deixar de “rir
como um louco”, como na linha de montagem; porém, mais do que para
oprimir, isso é feito para homogeneizar as contradições de classe, de sexo, de
idade. É um riso sádico-industria4 que cria o hábito de rir da violência exercida
sobre os outros, sabendo bem e/ou intuindo que é dirigido principalmente e de
modo masoquista contra nós mesmos; e é difícil poder escapar desse riso.

A ironia do movimento contracultural dos anos 1970 em parte conseguira criar


um novo modo de rir. Um modo subversivo, precisamente na medida em que
era inaceitavelmente funério aos secretários de partido, ao último “quadro”
sindical ou à nova leva dos “dirigentes” terroristas. Se, na famosa cena de
Tempos modernos, quando Carlitos é engolido pela máquina de poupar tempo,
agora explodem de rir também os patrões, talvez exclamando “é assim mesmo,
é assim mesmo que eu os trato!”, então algo não funciona mais, ou sempre
funcionou de modo ambi,alente. Adorno se recorda de Carlitos durante o exílio:
“Havíamos sido convidados, com muitos outros, a ir a uma vila em Malibu,
praia perto de Los Angeles. Enquanto Carlitos estava ao meu lado, um dos
convidados retirou-se antecipadamente. Diferentemente de Chaplin, eu lhe
estendi a mão um pouco distraidamente, para depois retirá-la às pressas,
quase subitamente.

Pagina 130

Quem se estava despedindo era um dos principais atores de um filme que se


tornou célebre, Os melhores anos de nossa vida. Perdera a mão na guerra e,
em seu lugar, usava uma garra metálica, mas preênsil. Quando eu apertei a
garra e ela respondeu ao aperto, espantei-me visivelmente; mas de imediato
compreendi que de nenhum modo deveria deixar que o ferido compreendesse:
numa fração de segundo, portanto, transformei minha expressão de espanto
num trejeito circunstancial, que deve ter resultado bem mais desagradável. Tão
logo o ator se afastou, Chaplin repetiu a cena. Todo riso é muito próximo do
horror que o prepara; e somente em tal proximidade encontra legitimação o seu
significado de salvação. Que a recordação que tenho desse episódio e meu
agradecimento sejam minhas saudações pelo 75º aniversário de Chaplin”.

Pode ser legitimado somente o riso que destrói o horror, e não mais aquele que
o reproduz.
Pagina 131

O comportamento

“O esquema é simples: um deus sob o aspecto de criança é degolado por um


grupo concorde de Titãs, os reais do tempo antigo; cobertos de gesso com uma
máscara de terra branca, os homicidas se espremem em torno à sua vítima;
com gestos prudentes, mostram à criança brinquedos fascinantes: uma zorra,
um pião, bonecas articuladas, astrágalos, um espelho. E enquanto Dioniso fixa
a sua imagem capturada pelo circulo de metal luzidio, os Titãs o espancam,
quebram seus membros, colocam-no num caldeirão e depois o cozinham no
fogo.”
M. Detienne

Perversidade polimorfa na sala de projeção: Eros e hierarquia dos õrgãos


corporais

Dissemos que a ideologia contemporânea perdeu progressivamente aquelas


pretensões de universalidade que lhe eram características em sua forma
progressista-burguesa. A sua dialética interior — que a levava a publicizar
verdades universais e, imediatamente depois, a reprimi-las — primeiro se
esterilizou em justificação, terminando por encontrar estabilidade e
funcionalidade num papel de ativa reificação, no qual a própria ideologia
mergulha, por assim dizer, no interior mesmo das mercadorias. Disso resulta a
necessidade de ajustar o sentido da célebre definição de Marx, segundo a qual
a ideologia dominante numa dada época é

Pagina 132
a ideologia das classes dominantes: a ideologia dominante aqui agora difunde-
se diretamente a partir das “entranhas” das mercadorias-fetiche Sua potência
espiritual é muito maior, e amplia- se cada vez mais à medida que se dá a
paralela extinção de idéias na classe política dominante (quem está mais
disposto a reconhecer uma “verdade ideológica” qualquer aos partidos
conservadores ou progressistas, de governo ou de oposição?), em sincronia
com a progressiva extinção do papel da classe burguesa tradicional. 1 o
conjunto desses processos sócio-culturais tende a aumentar
desmesuradamente aquela característica que já estava presente na época dos
triunfos da ideologia “clássica”: os dominados sempre levaram a moral dos
“seus senhores” mais a sério do que estes últimos. Essa tendência cultural
subalterna se amplia com a incorporação da ideologia ao interior das
mercadorias. Aqui, a nova relação entre coisas e idéias unifica consumo e
hierarquia, apesar de os movimentos de oposição conseguirem às vezes
quebrar a hegemonia dominante no terreno das relações sociais. Acentua-se a
perversidade polimórfica da moderna comunicação visual reprodutível na
difusão de valores, de comportamentos, de distrações. O tempo livre é usado
contra o tempo de trabalho, o privado, contra o público. E tudo isso ocorre no
momento em que a diferença econômica e cultural entre essas esferas
reczrocas foi tendencialmente unflcada pela expansão pós-industrial. A redução
das massas a espectadores enfraquece o seu antagonismo ativo e reforça a
passividade de quem se submete à hierarquia do olhar. Desse modo, no mais
profundo do eu individual, ocorre uma cisão que favorece a “passivização
reificada”. A perversidade polimórfica da cultura narcisista-visual — em sua
manifestação espiritualizada no cinema, último substituto sintético dos ritos
mágico-religiosos — seduz e cicatriza as eventuais contradições que
explodiram no “corpo” da acumulação.

O produto fílmico é oferecido como uma guloseima. Reduz as feridas do tempo


de trabalho e do tempo de família socialmente necessários, estancando
temporariamente suas hemor

Inicio da nota de rodapé


1. Isso não deve ser entendido como uma previsão otimista de transformações,
mas sim no sentido de que — sob as atuais condições pós-industriais — é
cada vez mais necessário ver o funcionamento do Estado, em seu conjunto,
como produtor e reprodutor de capital e das relações sociais, em progressiva
substituiç o à classe burguesa tradicional. Cf. Claus Offe, Lo Stato nel
capitalismo maturo, Milão, Etas Libri, 1977.
Fim da nota de rodapé

Pagina 133

ragias, impedindo a irrupção do tempo de morte, produzindo cicatrizações bem


visíveis na face dos espectadores. A partir do momento da aquisição dos
ingressos coloridos e de sua divisão pela metade na passagem crucial da
entrada, que simboliza a diferença entre o dentro e o fora, por obra de um
porteiro — Minos , repete-se o momento mágico da iniciação. A entrada na
nova vida, nessas condições, é possível (aliás, é obrigatório) realizá-la
inúmeras vezes no curso da mesma jornada, e não mais — como nas culturas
“primitivas” — somente nas passagens cruciais do ciclo vital individual e
coletivo. Nas cores vivas e sempre diferenciadas dos bilhetes de ingressos
(amarelos, verdes, rosa, laranja, roxos), está estampada a figura mitológica de
um Orfeu que toca a lira, suavemente reclinado sobre um flanco, como se
estivesse num triclínio, com os tornozelos cruzados de modo alusivo e sensual,
a cabeça inteiramente voltada para cima, não tanto para buscar inspiração para
a música, mas para significar um contato de hierarquia ocular com quem está
no céu, com o Deus; e talvez também como extremo e indireto conselho
dirigido simbolicamente ao indivíduo não ainda espectador, para dissuadi-lo de
fixar o olhar para diante de si, a fim de não cair vítima de um sortilégio análogo
àquele de quem se deparava com os olhos da Medusa. Mas os bilhetinhos
policromáticos recordam o momento órfico em outro sentido: em vez de
despertar as potencialidades liberadoras em plantas e animais como sujeitos
desejantes que se humanizam, o eros órfico fílmico reduz o orgânico a
inorgânico, num processo inverso ao que ainda está presente na utopia
mitológica.
O modelo ideal do espectador, que foi viril e selfconscious, sofre modificações
geracionais e genitais. Os espectadores, infantilizados pela organização das
projeções, estão preparados para ser invadidos pelo superego fílmico — uma
vez superadas e neutralizadas as barreiras defensivas do eu — que penetra
até o interior do id, para fazer apelo às pulsões mais inconfessadas. Toda a
organização da sala é funcional a essa socialização da rendição. Quem teve a
experiência de entrar na

Inicio da nota de rodapé


2. Sobre os significados da escuridão na sala cinematográfica, muito foi dito
também por diretores argutos, como Bertolucci, o qual precisamente ao
explorar noções analógicas entre sala escura e líquido amniótico — continua a
repetir os próprios melodramas infantis ad infinitum.
Fim da nota de rodapé

Pagina 134

sala depois do início do filme, sem a presença do “lanterninha”, moderno


Virgílio que guia na descida aos infernos com sua luz manual, num momento
em que cenas noturnas provocam uma particular obscuridade, sabe que a
nítida e imprevista diferença luminosa entre dentro e fora, juntamente com o
impacto indistinto e confuso de sons, luzes, imagens, provoca a perda de
qualquer capacidade de orientação lógica, psíquica e motora. Desse
esmagamento pelo indiferenciado só se pode escapar permanecendo imóvel.
Na espera de que surja o sol no filme, ou de que se encontre o raio luminoso
da lanterna. Esta última, com efeito, é assim chamada precisamente porque é
mascarada não no sentido de maquiada, mas de escondida; como a máscara
seiscentista, ela continua a ocultar e a mostrar; suas capacidades miméticas, o
fato de ser sombra individual indistinta na grande sombra da sala, são de tal
natureza somente na medida em que conseguem descobrir o lugar ainda livre.

O modelo cultural do espectador reproduz uma estrutura caracterial marcada


pela passividade. Em O mal-estar na civilização, Freud — tão freqüentemente
mal-entendido no que se refere às suas teorias sobre a sexualidade feminina
— diz o seguinte; “Estamos habituados a dizer; todo ser humano revela
movimentos pulsionais, carecimentos, atributos tanto masculinos como
femininos; mas, enquanto a anatomia pode mostrar o elemento particular do
masculino e do feminino, a psicologia não pode fazê-lo. Para ela, o contraste
entre os sexos se esfuma naquele entre atividade e passividade, onde nós —
com excessiva facilidade — fazemos coincidir a atividade com a masculinidade
e a passividade com a feminilidade. E isso não encontra absolutamente
confirmação sem exceções no reino animal”.

Essa ambigüidade psicológica do indivíduo — um pouco

Inicio da nota de rodapé


“Lanterninha”, em italiano, é ma.schera (máscara) (N. T.).
3. S. Freud, II disagio deila ciuiltà, Turim, Boringhieri, 1971, pp. 241-242. E
continua assim: “A doutrina da bissexualidade apresenta ainda muitos lados
obscuros; a ausência, até agora, de uma conexão entre ela e a doutrina da
pulsão constitui um grave obstáculo para a psicanálise. De qualquer modo, se
admitirmos como um fato que todo indivíduo, em sua vida sexual, quer
satisfazer desejos tanto masculinos como femininos, não poderemos excluir a
eventualidade de que essas exigências não sejam satisfeitas pelo mesmo
objeto e que se perturbem reciprocamente, a não ser que não consigam se
manter separadas e guiar todo impulso para um canal particular que lhe seja
adequado”. Sobre essa nossa constituição, deformando suas possibilidades
liberatórias, atua a forma cinema.
Fim da nota de rodapé

Pagina 135

masculino e um pouco feminino —, que faz justiça a uma hipotética natureza


intrínseca da mulher como predeterminada pela passividade, é explorada por
pressões igualmente psicológicas internas à sala de projeção. Partindo da tese
de que houve uma precisa era histórica, caracterizada pela articulação entre
visões do mundo cristãs-patriarcais e produção de mercadorias, que legitimaria
os comportamentos “femininos” de passividade como se fossem próprios
apenas da mulher (e, enquanto tais, julgados negativamente), o cinema atua
seja com base bissexual, seja com base na ideologia patriarca1 dos
espectadores. O resultado é que esses últimos — não importa a que sexo
pertençam — são feminilizados na acepção cristã-burguesa do termo, o que
significa que são artificialmente solicitadas as latências homossexuais tanto do
homem como da mulher, fazendo-lhes sofrer com angústia e terror a perda da
própria identidade sexual. Feminização cristã-burguesa e homossexualidade da
mulher têm o seu momento de confirmação empírica na esmagadora
preferência pela escolha de nus femininos, duplicados em excessivas e
improváveis cenas de lesbianismo. Ao nu masculino, não restam mais do que
as possibilidades visuais dos vários cômicos “populares”, os quais — ao
suscitar o riso— ridicularizam as próprias potencialidades de representações
alternativas;4 quando não é assim, o modelo masculino é apresentado
segundo a própria suposta apologética; violento e agressivo. Cada vez mais
difundida é a ausência da doçura viril heterossexual. Pode parecer singular,
mas essa representação é ainda insuportável para um funcionamento higiênico
até mesmo desta moral permissiva. Recentemente, diretores como Oshima e
Ferreri atualizaram — ainda que numa forma aparentemente invertida — essa
tradição, representando duas castrações, de uma das quais tentaremos
aprofundar o significado antropológico. Em L’ultima donna (A última mulher), o
homem é uma eterna criança, que pode estar sempre nu e no centro da
atenção, e que deve satisfazer imediatamente todos os seus desejos. Quando
percebe que sua onipotência originária se choca com um mundo hostil, sua

Inicio da nota de rodapé


4. Talvez somente o filme de Jancsà Vícios privados e virtudes públicas tenha
representado visualmente as possibilidades hermafroditas, mas com notáveis
ambivalências de conteúdo, para não falar no pano de fundo “heliogabalesco”
da habitual Austria decadente.
Fim da nota de rodapé

Pagina 136
resposta será a extrema mutilação: a castração. O desejo, que intumesce o
pênis contra a própria vontade e que parece não poder causar à mulher mais
do que violência, é indicado como a fonte de todas as desgraças. A tomada de
consciência pelo homem dessa extrema contradição ocorre quando ele tenta
suspender as relações sexuais com aquela que será sua última mulher, não
sabendo resolver de outro modo a exigência dela de um amor não agressivo.
“Lembra-te”, ela lhe diz, como numa fábula, “de ser doce comigo. Doce...”.

Mas o homem é arrastado pela pulsão sexual e trai tudo e todos: a mulher, a
amante, a mulher do amigo, a sua dignidade. Parece que resta apenas uma
Opção: o acerto de contas com aquele órgão que aparece vinculado, em sua
essência, ao símbolo da dominação. E, então, tudo se põe em movimento
segundo a lógica das “coisas”. A mercadoria — rápida, funcional e cega —
impõe o seu poder. A faca elétrica, que já atuara metaforicamente sobre o
salame (que, por sua vez, o último homem usara como superpénis contra a
mulher e sua amiga), repete sua ação sobre o falo e o trincha inexoravelmente.

Mas a confusão (até sincera) de Ferreri capta apenas que a contradição


homem-mulher, por um lado, tem um aspecto espec flco (ou seja, relativo à
espécie), que é parte da mais fundamental das contradições: aquela entre
humanidade e natureza, entre sujeito e objeto. Ela mergulha suas raízes na
constituição da humanidade, ou seja, penetra na própria origem da vida, em
sua diferenciação e em sua alienação em face da natureza inorgânica. Por
outro lado, no interior de tal contradição, existe o antagonismo histórico entre
homem e mulher, determinado primeiro pela economia e pela cultura de tipo
classista pré-burguês, e, depois, pelo modo de produção capitalista. Contudo
— e este é o ponto central —, tal aspecto antagônico da contradição não se
esgota em si mesmo, mas, por causa da dialética triádica (que envolve a
economia, a cultura e os instintos), interage por sua vez com a contradição
originária e espécie-específica. Disso resulta que — se se equivocam aquelas
interpretações no feminino (apoiadas, ao que parece, por Ferreri) que afirmam
ser a contradição homem-mulher algo natural e, portanto, insuperável, ou
modificável apenas através de uma correlação de forças sexo contra sexo — é
tão ou mais clamoroso o erro das interpretações no masculino, que reduzem a
contradição a

Pagina 137

classe contra classe. Esta última — que, quando era considerada central,
sempre foi entendida como única — tende a isolar o simples aspecto histórico,
na crença injustificada de suprimir o antagonismo homem-mulher através de
um movimento sincrônico à supressão do que existe entre classe e capital.
Apesar das aparentes diversidades, ambas essas concepções são resultado de
um materialismo mal compreendido, que é mecanicista tanto nas formas
unilaterais do biologismo quanto nas do economicismo. O pênis é agressivo
(como o seu portador) pela dupla interação entre o aspecto historicamente
determinado e aquele específico, mas não por sua “natureza” apriorística.
Contra toda utopia fácil, um uso alternativo do falo — aqui e agora — é muito
problemático, se não impossível (apesar das ingenuidades de Reich), assim
como é ilusório (e, entre outras coisas, sempre votado ao fracasso) um uso
alternativo das máquinas no sentido de uma dócil transição à utopia. O que
deve ser cortado sem lamentações é a máquina falo, mas não um falo singular
ou todos os falos enquanto tais, com afiadas máquinas automáticas. A
violência, a agressividade que o pênis absorveu nessa dupla interação,
adquiriu a forma de uma “segunda natureza”, que é confundida com a Natureza
(e não apenas por Ferreri), tal como ocorreu com as leis da concorrência. Mas,
assim como a natureza não pode ser suprimida, sob pena de se cair no reino
da idéia (ou de Deus), é igualmente metafísico cortar o pênis enquanto solução
última para a “tragédia da vida”. O que é antagônico e, portanto, superável é o
caráter fetichista e reificador do pênis, o seu ser máquina sob a lei geral da
prestação e da opressão, e não o seu ser corpóreo. O seu ser alienado em
relação a si mesmo, e não apenas em relação à mulher; e não o seu ser
objetivo, O pênis, mesmo se conservando em perene contradição em face da
mulher, pode ser transformado através da prática e da construção de uma nova
dimensão do Eros, do princípio da vida. Tudo se transforma e somente uma
concepção positivista da relação homem-natureza pode afirmar que o falo será
sempre assim, ou que é possível fortalecer reformisticamente a sua tendência
a oscilar entre crescimento e estagnação. A função dos órgãos pode ser
transformada também de um ponto de vista biológico-cultural, e não mais
apenas na imaginação mítica ou poética do andrógino, O nariz do homem
exercia outrora funções bem diversas e mais impor-

Pagina 138

tantes do que as atuais. Era um órgão sempre ativo, de cuja perfeita


funcionalidade freqüentemente dependia a vida do sujeito, assim como aquele
prazer — o farejar — que hoje é percebido com desagrado ou caracterizado
como inferioridade animalesca. A excitação outrora exercida pelo suor das
axilas, por exemplo, foi destruída e pacificada pelos desodorantes. Mas o
perfume é um sucessor bem mais perigoso do que se possa crer, assim como
a indústria dos cosméticos com relação à natureza. Agora, o nariz é um resíduo
arqueológico orgânico, quase como se houvesse sido arrumado em plena
metade do rosto para tornar harmônicas as proporções entre as partes,
segundo os cânones vigentes do belo, que têm na matemática a medida de
sua compreensibilidade e comensurabilidade. O nariz foi transformado numa
excrescência carnosa, um pouco ridícula e quase inteiramente inutilizada, se
não fosse por causa do resfriado, ao qual sobrevive o seu ser metáfora (para
muitos macacos e para o homem) daquele outro apêndice situado entre as
pernas. Para este último, o “processo civilizador” iniciou há tempos uma
tendência dirigida no sentido de torná-lo inócuo e inofensivo (desde a cópula
reformista, programada para sábado à noite a fim de se ter eficiência e
mobilidade no trabalho, até a perfeição da impotência absoluta na sociedade
narcisista) ou violenta e persecutória (sadismo páleo-burguês e pós-industrial):
ambas essas formas, naturalmente, se opõem ao Eros. É necessário criar uma
terceira via, para quebrar a hierarquia dos olhares passivos que amplificam
cada vez mais as formas da divisão do trabalho, uma via que exalte todo
aspecto do eros que seja antagônico à sexualidade dominante, ou seja, à
genitalidade neo-sádica que, unida ao riso, difunde-se entre os dominados
reduzidos a espectadores. Um eros alternativo com relação aos atuais vínculos
inter e intrapessoais deve reconsiderar não somente a relação homem-mulher,
mas também — de modo mais geral — a hierarquia dos órgãos corporais, tanto
no interior do indivíduo quanto na inteira humanidade, em conexão com uma
natureza em mutação cultural. Assim, por exemplo, a constituição de um “novo
falo” pode ser uma perspectiva a partir da qual se possa organizar uma
mutação natural-cultural análoga, sob muitos aspectos, à que ocorreu com a
mulher durante a pré-história da humanidade: a autonomia em relação ao cio
ou seja, à disponibilidade da mulher para a cópula somente em certos dias do
ci-

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cio. Também para o macho, finalmente, poderia se realizar aquela libertação de


algumas necessidades biológicas, sobre as quais se formalizaram poderosos
simbolismos agora reduzidos a estereótipo que devem ser aposentados: o que
a mulher, ao contrário, realizou há muito tempo, numa forma mínima mas de
excepcional importância, na esfera da sexualidade. E talvez também por isso
— além, decerto, das causas estruturais — o homem deve ter optado por
oprimir a mulher: pelo terror de descobrir precisamente na mulher uma
autonomia em relação ao puro determinismo da natureza, que ele não
conseguia praticar dentro e fora de si mesmo, se não em termos de dom ínio
ou de sacrificio. Na mente viril, a mulher, autônoma em relação ao cio, aparece
com uma potencialidade sexual sem limites, diferentemente do próprio pênis,
sempre condicionado pelo momento decisivo da ereção.

Segundo Preud, a importância hierárquica dos órgãos corporais era bem


diversa no passado do homem. Em particular, a passagem central da
supremacia do olfato à da visão acompanha a definitiva afirmação do
comportamento ereto. Nessa fase, superado o status anterior no curso do qual
o forte odor produzido pelos órgãos genitais era um momento essencial da
excitação, assiste-se a um progressivo tabu dessas sensações, a ponto de
poder mesmo bloquear as capacidades sexuais. A nova forma de vida “erigiu”
poderosas defesas — como os recalques do eros olfativo — contra aquela
passada, em face da qual se era inconscientemente aterrorizado pela ameaça
de retornar a ela, e para a qual, por outro lado, se era também fortemente
atraído pelo desejo de quebrar a proibição. A cultura metropolitana — que tem
nos desodorantes um status symbol — hierarquiza o portador de odores
corporais, colocando-o numa condição de atraso vulgar, no caso dos
camponeses, ou mais explicitamente racista, no de negros, judeus, etc., e
sexista, no das mulheres. Diz Freud: “A periodicidade orgânica do processo
inegavelmente se conservou, mas sua influência sobre a excitação sexual
psíquica tendeu a se converter em seu contrário. Essa alteração liga-se
sobretudo à diminuição dos estímulos olfativos, por meio dos quais o processo
menstrual atuava sobre a psique masculina. Seu lugar foi assumido pelas
excitações visuais, que, ao contrário dos intermitentes estímulos olfativos,
podiam conservar um efeito per-

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manente. O tabu da menstruação deriva desse ‘recalque orgânico’ enquanto


defesa contra uma fase evolutiva superada; todas as outras motivações são,
provavelmente, de origem secundária (...). A diminuição dos estímulos olfativos,
de resto, parece ser a conseqüência do fato de que os homens se ergueram do
solo, da adoção da postura ereta, que tornou visíveis e carentes de defesa os
genitais até então ocultos e, desse modo, provocou a vergonha. No início do
fatal processo de civilização, portanto, estaria o fato de que o homem se elevou
do solo. A cadeia dos eventos, depois de ter passado pela desvalorização dos
estímulos olfativos e do isolamento do período menstrual, evoluiu no sentido de
atribuir preponderância aos estímulos visuais, à visibilidade dos genitais e,
mais adiante, à continuidade da excitação sexual, à fundação da família e,
desse modo, aos umbrais da civilização humana”.

A realização do ato sexual não mais more fera rum, mas de frente produziu o
nascimento do erotismo, com a descoberta micialmente abaladora (tanto como
prazer em ver o gozo do outro, quanto como sua condenação mítico-religiosa
sob a forma do sadismo e do pecado) do prazer nos olhos do parceiro. Disso
resulta o incessante domínio do olho enquanto órgão prioritário no momento da
escolha, do ato propriamente dito e do posterior repouso, em relação a quem,
como e o que dá prazer. A conexão eros-olho (que Batailie “viu” muito bem)
chega até o cinema, para ser completamente invertida: a tela cinematográfica,
luminosa como um espelho e ambivalente como uma máscara, coloca-se
diante do espectador como um parceiro com o qual se está tendo uma
conjunção carnal, O cinema-parceiro organiza com mestria a excitação do
outro — o público — com arte de publicar o prazer como se fosse o próprio
prazer no curso da representação. Por isso, é tão difundida a hostilidade
popular contra o cinema “sério”, na medida em que as pessoas se sentem
defraudadas pela suposta essência secreta do cinema, mas também pela
ausência da única motivação plausível pela qual se vai assistir a um filme
específico: o prazer. Essa hostilidade e essa pretensão explicam os muitos
“pecados originais” da forma cinema, os quais — partindo das primeiras
imediatas produções industriais de Edison, inclusive de conteúdo osée —

Inicio da nota de rodapé


5. S. Freud, Ii disagio deila civiltà, cit., p. 235.
Fim da nota de rodapé

Pagina 141

chegam a alguns cinemas experimentais dos EUA, onde, em salas separadas,


permite-se mimetizar o que se acabou de ver; na Itália, isso é tolerado, de
modo “atrasado”, nas últimas filas dos cinemas mal-afamados. A
expressividade manifestada pneumaticamente na sala sexualizada não permite
ao espectador chegar à experiência enriquecido, mas absorve a própria
experiência, da qual só permanecem traços na memória, O cinema deve
seduzir. Partindo-se desse pressuposto, pode-se compreender o sentido da
pergunta que homoeneíza o mais desiludido dos críticos ao último dos
espectadores: “Você gostou?”. Na resposta a essa pergunta, resume-se o
significado das expectativas que se realizam ou se adiam no curso do tempo
fílmico, mais ou menos idêntica à pergunta que — após o orgasmo — o amante
satisfeito dirige ao parceiro. Diferentemente do que jamais poderá crer qualquer
censura, o que é considerado obsceno não é o conteúdo mas sim o próprio
medium da representação fílmica, tal como se institucionalizou nas salas
cinematográficas. Inutilmente se persegue o chamado filme pornográfico, cuja
delimitação desaparece no tempo: desde as primeiras tentativas de reprodução
do movimento, o ato sexual foi o significado central — desejado e buscado —
da representação mimética. Pois movimento é prazer. E, contudo, ocorre —
com as vitórias das poderosas censuras indiretas, mais perigosas do que as
ministeriais — que a visão do movimento-prazer é realizada por pessoas
imóveis, sentadas: disso resulta a exclusão da possibilidade de se mover,
projetada inclusive no interior da lógica arquitetônica da sala cinematográfica.
O voyeurismo transforma-se de doença em legitimação. As cadeiras que
paralisam o espectador são instrumentos de censura substancial, do tipo da
que se vive sem ser conhecida e institucionalizada. Poderosa censura. As
cadeiras completam, além da feminilização — em sua acepção vulgarmente
repressiva cristã-patriarcal —, um segundo tipo de mutação pro tempore do
público, numa espécie de metamorfose simbólica que as torna semelhantes ao
trono: a infantilização. É inútil cruzar as pernas, esbarrar nos vizinhos, levantar
os ombros, impedindo quem está em torno de ver: as cadeiras, numeradas e
ordenadas umas atrás das outras, permitem a maximização do espaço e,
portanto, do lucro, mas também, e ao mesmo tempo, a paralisação do
movimento e do prazer. Somente nas salas modernas, que lançam o filme pela

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primeira vez, é que a distância entre as cadeiras aumenta em relação ao preço


do ingresso, de modo a iludir sobre uma suposta maior disponibilidade de
espaço-prazer concedido. A cadeira do cinema torna preciso o significado de
unidade e de identidade com a lógica, a produtividade, a funcionalidade, com a
ordem social em geral. A cadeira tayloriza o espectador, adequando-o a uma
posição de trabalho assalariado do tipo do empregado no setor de serviços. De
acordo com as sugestões da sociologia do trabalho, contemporânea à invenção
do cinema, as condições de paralisia do movimento são paralelas à paralisia de
reflexão. A simples hipótese de pôr o espectador em contato com os estímulos,
ainda que reificados, da tela-parceiro, e, por conseguinte, de romper a
passivização feminina e infantil, produziria imediatamente o desencadeamento
dos instintos reprimidos do público, tornado incontrolável pela exigência de ter
restituídas todas as promessas do prazer não cumprido. É por isso que,
quando no fim do filme se acendem as luzes e o público se aglomera no único
corredor por onde é permitido passar, os espectadores individuais caminham
lentamente — e não só por engarrafamento —, de cabeça baixa, como outrora
se fazia ao acompanhar um enterro (antes que ele se tornasse motorizado),
pausadamente, como acometidos por improváveis reflexões ou como se se
tivesse sofrido e/ou aceito o inelutável. E o sentimento mais difuso entre todos
é o fastio e o ressentimento recíproco, mal mascarado (ou melhor, revelado)
por desculpas circunstanciais por se ter inadvertidamente pisado um pé,
sentimento análogo ao que não se consegue deixar de experimentar quando
muitos estranhos, ou apenas dois, entram num elevador moderno. Tão logo se
chega à saída, evitando o fluxo igual e contrário do público que entra, excitado
e barulhento, tem-se um sentimento de libertação, respira-se a plenos pulmões:
“ainda é dia”, “já é noite”, diz-se, quase como uma lamentação pelo tempo que,
apesar de tudo, continuou a fluir. Enquanto isso, dentro da sala, os novos
espectadores continuarão a conversar pelo menos até depois dos créditos, até
que, pouco a pouco, entre alguns protestos e o enredo que triunfa, o único
rumor legitimado passará a ser o da trilha sonora. Sobrevive apenas o balbucio
de alguma velha senhora, a lamentação de uma criança, as vulgaridades de
um marginal. Os adultos — sérios e obedientes — são os primeiros a se
adequar.

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O fracasso (apesar de várias tentativas) de salas de projeção também olfativas


— que foram desejadas e previstas por muitos teóricos “revolucionários” do
cinema total — ocorreu porque o tabu contra a regressão a esses prazeres
olfativos, anteriores à postura ereta, foi há séculos imposto à humanidade
através da remoção orgânica. Bem antes que a humanidade se tornasse
espectadora, a simbólica do espírito condenou à imaterialidade os resíduos
corporais das zonas “ocultas”, dados como pecaminosos; finalmente, no
cinema, a humanidade espectadora celebra os triunfos da nova hierarquia dos
órgãos corporais, que coloca a vista mais acima dos genitais. O olho venceu
esmagadoramente o nariz: e não permite a mínima tentativa de restauração. A
perversidade polimórfica do cinema sensibiliza uma zona erógena diferente
daquelas tradicionais do desenvolvimento individual — oral, anal, genital —‘
concentrando-se e, por seu turno, desenvolvendo aquela mais adequada ao
“espírito” cinematográfico, caracterizada por fluxos “imateriais”: a zona ocular. A
espiritualização da reificação passa assim a coincidir cada vez mais com o que
ela mesma solicita à evolução, provocando a hegemonia do instrumento
psicofisiológico — o olho — mais capaz de receber a mensagem.

O destino da sexualidade é componente essencial da oscilação constante entre


progresso e regresso, até à completa derrota do primeiro diante do sucesso
das sociedades autoritárias e às atuais vinculações indissolúveis entre um e
outro. O mecanismo de sublimação como produtor de cultura, já por si
problemático, entrou em pane por causa das insolúveis aporias provocadas
pela “vingança” dos instintos reprimidos. Os recentes “desejos” de restauração
da supremacia genital são uma tentativa desbotada de liquidar o não-genital,
confundindo-o e camuflando-o com o pré-genital, adversário cômodo e
domesticado, bem simples de derrotar.6 O projeto de erotização da totalidade
do corpo e da natureza que lhe é exterior tem como problema de fundo a
relação entre a atual centralidade do olho e a periferização estratificada dos
“outros” órgãos. A redução do erotismo ocular a voyeurismo foi realizada até o
limite extremo por essa sociedade historicamente determinada, que deve fazer

Inicio da nota de rodapé


6. Veja-se F. Fornari, Genitalitã e cultura, Milão, Feltrineili, 1975.
Fim da nota de rodapé

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coincidir cada vez mais a visão do sexo e o espírito reificado do filme-


mercadoria No destino do erotismo do olho, bem como na erotização do corpo
inteiro — que certamente inclua os genitais, mas não exclua todo o resto como
algo “outro”, presente apenas como apêndice do órgão —, é que se baseiam
as possibilidades de uma nova forma de criatividade cultural, não mais a meta
inibida, mas sim a meta absorvida. Esse novo destino das pulsões deveria
rechaçar a chantagem da repressão orgânica de tal modo que não se desse
nenhuma capitulação diante da regressão, mas sim uma hipótese de solução
do “mal-estar na civilização”. É o caráter de fetiche da organização global da
mercadoria fílmica que define a imobilidade voyeurístjca do espectador; e será
a superação desse “arcano” que fundará a possibilidade de um novo erotismo
ocular, do qual deverá depender cada vez menos a higiênica funcionalidade
genital, que terá deixado de perseguir a própria supremacia hierárquica com
relação aos outros órgãos. Para causar o fim da repressão dos sentidos mais
arcaicos, sem por isso restaurar velhas hegemonias olfativas, pode-se imaginar
um cinema de prazer-movimento, lógico-sensorial, que substitua o atual cinema
estático. A dicotomja entre moviola privada e projetor público pode ser resolvida
mediante o deslocamento do seu conflito (relativo à potencialidade de
autogestão da projeção) para o interior das salas cinematográficas, a fim de
que não permaneça a hierarquia da primeira visão, usada pelos profissionais
do ramo, sobre a segunda, sofrida pelos espectadores. No final das contas, o
único motivo por que a moviola não é usada também em público, e por que
ninguém sequer tenha jamais formulado a hipótese de fazê-lo, consiste no fato
de que isso levaria à irrupção de uma programação não mais rígida, como é o
caso dos atuais tempos nas salas de projeção públicas, que são tais — como
dissemos — pela imposição de maximização taylorista (mais lucros e menos
subjetividade). Nada impede de “inventar” um modo de projeção diversamente
“desordenado”, como, por exemplo, permitindo um certo número de playbacks
com moviola, entregues a vários espectadores ou grupos de espectadores que
os tenham solicitado. A perspectiva a prefigurar deve orientar-se no sentido da
autogestão pelo menos da projeção, a fim de favorecer a ativação do
espectador. Naturalmente sem o alinhamento ordenado das poltronas.

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Espelho e tela: da infração à representação

A rápida sucessão dos fotogramas e dos “fatos” diante do espectador implica a


necessidade de sofrer essa conseqüência como objetividade (e não como
objetivação e, portanto, como resultado da práxis humana), sendo essa a
condição para não perder uma compreensibilidade dos eventos agora ligada —
“atada” — à prontidão de intuito, observação, competência (especialmente para
o cinéfilo), em 24 fotogramas por segundo. Essas capacidades específicas,
desenvolvidas ao extremo em cada filme, crescem juntamente com a paralisia
do pensamento causada pelas mesmas modalidades técnico-espirituais. Ao
captar o efeito especial, perde-se a reflexão. É impossível a pessoa destacar-
se do objeto, mas ela é sugada para o interior da objetivação, não
corporalmente, como o pequeno homem de Chaplin em Tempos modernos,
mas no conjunto das dinâmicas psíquicas. Dissemos que os dominados
sempre levaram a moral dos dominantes mais a sério do que esses últimos.
Agora que a moral foi abandonada pela própria evolução do entertainement,
não resta aos espectadores mais do que absorver a pregação, ou — no
máximo e também no melhor dos casos — a franqueza com que as regras do
jogo foram trucadas.

Segundo Aristóteles, a tragédia tinha uma função catártica para os


espectadores: purificava as paixões enquanto as apresentava. Mas isso era
ideologia já naquela época, na medida em que escondia a verdade sobre sua
origem dionisíaca. Na embriaguez ritual, o indivíduo — que se liga à natureza
de cuja identidade se está separando com atroz sofrimento, e que,
precisamente nesse processo, constitui-se como sujeito — ignora o papel de
espectador, na medida em que conhece e pratica apenas o de ator, em seu
significado mais pleno de participante direto, em primeira pessoa, não na
representação, mas na infração de todas as regras. O que, naquela fase
histórica, significa reunificação misténca do homem com o animal e a natureza
(sendo ambos manifestações do deus) pode se tornar hoje projeto de
libertação do mal-estar civilizatório: numa fase em que as infrações só são
admitidas enquanto representadas, superado (no sentido de demodé e não de
aufgehoben) o dilema entre progresso e regresso, todos os demais desvios da
norma são

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punidos pela certeza do direito. A repressão da práxis como infração, que já era
imanente à lógica ritual originária, implicou a fatal cisão histórica entre ator e
espectador, em sincronia com aquela entre mão e mente, entre quem olha e
quem é olhado. Mas, muito cedo, também o primeiro será um simples executor
de ordens; e, para o segundo, falar de catarse é um nonsense. O cinema já
não conhece paixões; e o seu espírito reificado deixa atrás de si apenas terra
arrasada. Quando é preciso ser homem e amado, ao mesmo tempo, tanto
pelos “progressistas”, que buscam expiar antigos e recentes complexos de
culpa, como pelos “racistas”, que vêem realizado o seu mais universal desejo
— a destruição do diverso —, pouco ligando para as intenções do autor.
Instância crítica e apologia do crime se confundem. Para tal resultado, contribui
a continuidade com a estrutura simbólica quaternária: Pater, Filius, Spiritus,
Diabolus. A aparente inversão da carga do 7° Batalhão de Cavalaria, que passa
de liberadora a repressiva, continua a sua ineliminável função hipo-estrutural
como se fosse ontológica. Diabolus tonou-se Filius e vice-versa: as recíprocas
intercambialidades adequam-se às atmosferas dos enigmas de Pirandelio,
todos igualmente fungíveis. Mas, alteradas as vestes, toda a ordem da
representação, bem como os fluxos de imagens e de fisionômicas,
permanecem invariados. O truque é tão bem-sucedido que Lfe size é
condenado pelas mulheres, que apelam para a censura (o mais obscurantista
dos instrumentos patriarcais), e defendido pelos homens, que sublinham uma
sua inexistente problemática feminista, O filme Último tango em Paris, que
investe com brutal sadomasoquismo contra toda sexualidade não reprodutora,
e que idealiza até o extremo o fascínio da potência viril paterna e patriarcal, é
condenado à fogueira — como se fosse Giordano Bruno! — por uma censura
que se adequa sempre, precisamente, a tais modelos. O Ferreri recente de
Ciao maschio tem uma lógica da história idêntica ao primeiro Ferreri, o de L’ape
regina: da superioridade animalesco-biológica da mulher deriva a morte por
ingestão do macho ou sua “autodestruição crítica”, O catolicismo etológico,
com o qual é representada a mulher-abelha, transmuda-se no feminismo
virilmente sociológico da mulher-natureza, numa patente adequação e numa
astuta submissão dos roteiros às modas culturais do tempo. Sem soluções de
continuidade ou fraturas, traumáticas ou indolores, a ordem funcional é
invertida,

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mas a sopa é sempre a mesma. E, assim, também Manhattan de W. Allen tem
o mesmo final de uma célebre comédia de B. Keaton, a qual, aliás, é
geometricamente esplêndida, ao contrário do sofisticado remake: e ninguém se
lembra disso.7 Mas o cinema não tem memória. Somente nessa condição —
que é uma mutilação — é que o público pode suportar o eterno retorno do
idêntico, através do qual, experimentadas todas as variações possíveis, tudo o
que é representável foi representado. O pattern, agora, é o remake. Em todo
filme cômico, há uma réplica do L ‘arroseur arrosé dos irmãos Lumière; e em
todo filme de aventuras, de Cabina, de Pastrone.

O comportamento no cinema — com o intermitente fascínio de sua atração —


oscila entre a escuridão e a luminosidade: essa dialética subentende, no
primeiro caso, a simbólica do isolamento privado, e, no segundo, do
envolvimento público. Toda a forma cinema é determinada pelo conflito,
insolúvel no atual modo de consumir o filme, entre esfera pública e esfera
privada, conflito que se exaspera histericamente cada vez mais, em proporção
ainda maior na medida em que, em sua substância, a relação entre as duas
esferas é uma espécie de agonia vivida sob o signo triunfante da publicidade.8
O fato de estar entre o público

Inicio da nota de rodapé


7. Poder-se-ia Continuar nessa trilha. Por exemplo, O franco-atirador, de
Cimino. entusiasma os “progressistas” pelo esplendor formal do uso do meio e
deixa os “conservadores” deprimidos por causa da exagerada parcialidade filo-
EUA e antivietnamita. As notas finais do God bless America transpassam em
leitmotiv para os títulos da coluna sonora, enquanto — ao contrário — o sound
amplificado e distorcido do hino nacional em Woodstock, emitido porJ. Hendrix,
aparece como apologia da nação, no único modo contraculturalmente
aceitável.
8. Sobre a transformação dos conceitos de “público”, “publicidade”,
“publicística”, cf. J. Habermas, op. cit., p. 205: “O mundo produzido pelos mass
media só é público na aparência. Mas também a integridade da esfera privada
— que, por outro lado, ele garante a seus consumidores — é ilusória. 6o curso
do século XVIII, o público burguês dos leitores encontrará meios de cultivar (...)
uma subjetividade capaz de expressar literariamente e que se referia à esfera
pública. (...) Já que hoje os mass media desnudaram a autocompreensão dos
indivíduos de sua cobertura literária, e servem-se dela como de uma forma
corrente para os serviços públicos da cultura de consumo, o sentido originário é
distorcido. Os modelos socializados da literatura psicológica do século XVIII,
em cuja base são elaborados os conteúdos do século XX para o human
interest e a nota biográfica, transferem a ilusão de uma esfera privada íntegra e
de uma autonomia privada intacta para relações que há muito tempo não são
mais fundamento nem de
Fim da nota de rodapé

Pagiana 148

é o significante do cinema, enquanto seu significado se dilui numa fruição


aparentemente privada, que imediatamente escapa da memória. Sem tal
oposição, temos a televisão, onde a excessiva privatização favorece urna
tirania pública. O narcisismo é bloqueado dentro das paredes domésticas: lá
tudo já foi visto e revisto. “Unidade sem conversação”: assim foi definida a
família que vê televisão. Já o público que vê um filme, além de ser uma
unidade sem conversação, é também urna comunidade heteroobservadora.
Aquela hierarquia dos olhares, que encontra sua válvula de escape na
circularidade compensatória de olhares recíprocos entre espectadores, ou
melhor, entre “público”, nos intervalos minuciosamente preestabelecidos entre
o primeiro e o segundo tempo, ou entre o “Fim” e o início seguinte, O
espectador público, ao contrário do privado “domesticado”, pode se deixar levar
pelos fluxos de narcisismo. Que são excitados e saciados na sala. Disso
resulta a ambivalência constitutiva do estar af no cinema, que estabelece fluxos
de olhares “interindividuais” na sala luminosa mas pública, e, imediatamente
após, agrupa fluxos de olhares privados na sala escura de espectadores agora
atomizados. Sem mais nenhuma possibilidade de intervenção, não resta a
todos mais do que fixar os movimentos da câmara. Na realidade, a atração
vitoriosa — porque mais secretamente buscada — é aquela escuro-desejante,
acolhida sempre com suspiros de agradecimento quando chega, inclusive
porque ligada à única forma de prazer socialmente admitida, que é individual e
oculta. Todavia, ela alcança sua finalidade graças à acumulação de libido
possível somente através do momento narcisista-luminoso da presença dos
outros, em cujas memórias hipo-estruturais sobrevivem os rituais arcaicos dos
envolvimentos coletivos desencadeados. A escuridão solicita a solipsista
consumação de um desejo onanista de solidão, que consegue “se carregar”
somente numa relação exibicionista no meio de urna multidão, O filme privado
na televisão é imediatamente soporífero; o público, no cinema

Inicio da nota de rodapé


uma nem de outra. Por outro lado, eles são superpostos também a fatos
políticos, de modo que a própria esfera pública se privatiza na consciência do
público; a esfera pública torna-se a esfera da publicização de biografias
privadas”.
9. J.B. Fine, Television and family hfe. A survey of two New England
communities, Boston, 1952.
Na Itália, as sessões de cinema são divididas em duas partes, entre as quais
— como é o caso do teatro — há um intervalo (N.T.).
Fim da nota de rodapé

Pagina 149

nema, é envolvido nos fluxos “entusiásticos”. Uma linha torta e subterrânea


(hipo-estrutural) liga a embriaguez participante dionisíaca à imobilidade
reificada no cinema. A possibilidade de um cinema dionisíaco, por mais remota
e irreal que possa parecer nessas condições, poderia se tornar projeto ao
quebrar todas as regras, não só desde a produção até o consumo, mas
também desde a ritualidade mágico-religiosa até aquela reificada. A decadência
metafísica — a morte de Deus — teve uma tão imprevista quanto poderosa
ressurreição no espírito do cinema. O cinema, para tornar-se “dionisíaco” —
entendendo-se com esse termo não a restauração do fascínio regressivo por
uma natureza animalescarnente divina, mas a libertação natural-cultural capaz
de recuperar, num nível bem diverso, a conceitualidade emotiva do “ator” —,
deve ser deicida. O que impõe o “suicídio” somente na medida em que se
esgote a centralidade ritualmente repetitiva do protótipo parental Pater-Filius-
Diabolus, Spiritus (que é uma Mater sublimada), em sua feliz conexão com a
dinâmica estrutural e a modelística cultural. Gostaria de dar um exemplo
extraído de minha experiência pessoal. Há cerca de dez anos, num cinema por
excelência gauchiste de Roma, vi o célebre Tchapaiev, de Guiorgui e Serguei
Vassíliev. Num certo ponto, um oficial ou comissário político pergunta ao herói
(Tchapaiev = Filius) com qual ele estava, se com a Segunda ou a Terceira
Internacional. Evidentemente embaraçado com a pergunta (trata-se de um
herói “popular”), ele reage, por sua vez, com outra pergunta: “E Lênin, com que
Internacional está?”. “Com a Terceira.” “Eu também”, exclama o bom Tchapaiev.
Diante dessa resposta, o cinema explodiu numa ovação fragorosa. Todavia,
refletindo à distância do tempo, pode-se dizer que a subordinação autoritária,
inteiramente delegada e hierarquizada de Fílius — dentro do qual se concentra
o processo de infantilização do público — a Pater (Lênin, único verdadeiro
“ator”), contra Diabolus (Martov e Cia.) e em favor de Spiritus (a Revolução
Russa como ‘Matei’), poucas vezes foi expressa de modo tão claro, nessa rede
hipo-estrutural que tem de ser abatida sem lamentações.

Inicio da nota de rodapé


10. Naturalmente, também eu aplaudi; mas sempre me ficou a dúvida sobre se
tinham agido bem ou não. Talvez só agora, com todas essas adesões à prática
do horror autoproclamada “revolucionária”, eu tenha compreendido por que
tantos de nós nos equivocamos.
Fim da nota de rodapé

Pagina 150

A ritualidade do cinema — a “dialética” luminosidade-obscuridade em que


transcorre o espetáculo —, o comfort progressivo, ar-condicionado, ice-cream e
pop com, são todas solicitações (inputs) para convencer até mesmo a última
resistência do sujeito a se quebrar. Todo esse entorno corporal e comporta-
mental dirige-se no sentido de deixar o espectador contente quanto à qualidade
do produto que lhe será oferecido. Não tanto pelas expectativas, que agora
todos sabem que não serão jamais nem respeitadas nem ressarcidas; mas
pelas suas exigências promocionais de status, de carências de relacionamento
e de fluxos oculares, a fim de recarregar o desejo voyeurista-exibicionista.
Mesmo se, ineliminável, continuar o lamento interior pelo melhor filme
engajado, pela cena bastante osée, pelas passagens arquiconhecidas, resíduo
de uma insatisfação não apaziguada, na qual sobrevive a hostilidade que a
natureza humana teve de superar antes de aderir aos níveis de civilização
permitidos, como o esgar que acompanha a tragada do cigarro ou o gole de
álcool. A tranqüila normalidade com a qual se afirma ir ao cinema para passar
duas horas é o sinal de que o limite de segurança foi alcançado e superado. O
divertimento coincide com o estar de acordo com tudo. O bocejo torna-se
sinônimo de concordância. O modelo de comportamento socialmente
necessário é o de “não pensar sobre isso”, o de esquecer durante exatamente
120 minutos as dores próprias e alheias, O comportamento cinematográfico
baseia-se em passar o tempo. O específico produtivo do modo de produção
fílmico, ainda mais profundamente do que a reificação espiritualizada, é o
Tempo. Na dimensão do Tempo, aliam-se secretamente os consumidores com
a produção e a distribuição. Proust e Taylor travaram uma batalha planetária
sobre o destino do Tempo para toda a humanidade; sem se conhecerem
pessoalmente, exemplifica-se neles o conflito entre dois modos de refletir, um
considerado decadente e o outro progressista (inclusive por toda a Terceira
Internacional), sobre a memória individual e de época. Nosso presente é
condicionado pela vitória — aqui e agora — do futuro sobre o passado: e nunca
como hoje os significados ligados a essas simbologias temporais foram mais
inadequados. O chamado “tempo livre” é, na realidade, tempo produtivo, tempo
subordinado ao espírito do ciclo produtivo. A produção de tempo, o tempo-
mercadoria, simplificou-se com a quantificação

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tecnológica.” O fato de que o tempo deva ser perdido expressa


involuntariamente a verdade do prolongamento do tempo de trabalho no tempo
livre, da invasão estrutural do primeiro dentro do segundo. Mas o desejo de
perdê-lo, de negar o fluxo temporal-produtivo, denuncia uma confusão
autodestrutiva que penetrou em nível de massa. Não se deveria jamais perder
a memória de que o Tempo, em sua verdadeira substância, é o fluir da vida, em
sua irrepetibilidade individual e coletiva; e que negar o tempo significa negar a
vida. Um comportamento antagônico deveria negar o tempo para si, ou seja, tal
como foi quantificado na atual fase histórica, e não o Tempo enquanto tal. Aqui
e agora produz-se tempo abstrato, fundado no trabalho abstrato: tempo que se
ergue como uma potência estranha diante do espectador, o qual —
reconhecendo-se em seu fluir — contribui involuntariamente, em vez de aboli-
lo, para a sua própria liquidação. O resultado é a acumulação adicional de
alienação e impotência. Em lugar da fuga temporária da má realidade, realiza-
se a aniquilação temporal da oposição. Quando aparece na tela a palavra
“Fim”, significa que se interrompeu o fluxo do tempo filmico: mas nem por isso
foi restabelecido um Tempo humanamente aceitável.

“Outrora, o espectador do filme via seu próprio casamento no do outro.”

Nessa breve frase, concentra-se a transformação sofrida pelo conceito


cinematográfico de identficação, à qual era obrigado o espectador da época
“clássica” e que se transformou progressivamente em contraposição. No
sentido de que deve estar claro que a história narrada não será jamais a de
quem está sentado somente para olhar. Essa é uma das causas da decadência
das funções tradicionais da ideologia, que tinha um espaço preciso entre a
organização da totalidade social e a representação criativa, na medida em que
justificava — por trás das aparências universalistas — interesses particulares
precisos. Ora, como já disse-

Inicio da nota de rodapé


11. Autores clássicos, como Hauser, Bazin, Morin, captam apenas a tradicional
tese da especialização do tempo e da temporalização do espaço, descoberta
que
já foi verdadeira, mas que agora é inadequada com relação aos problemas
presentes do específico filmico.
12. Adorno-Horkheimer, Dialettica dell’Illuminismo, cit., p. 157.
Fim da nota de rodapé

Pagina 152
mas, a necessidade de tal função desapareceu. O espectador deverá assistir
impotente a história maravilhosa ou de horror, a aventuras com mulheres
lindíssimas ou a atrocidades inenarráveis, a fim de marcar com letras de fogo
em sua consciência que tais coisas jamais poderão se passar com ele. Filius e
Spectator se cindem. Esse é o motivo da irrelevância cada vez maior do que foi
o Código Hays com relação ao novo modelo unitário da representação. O
espectador deverá se resignar cada vez mais ao fato de não poder mais viver,
nem mesmo no nível da evasão imaginária, as aventuras que velozmente fluem
diante de seus olhos. Em vez de distanciamento crítico de tipo brechtiano, isso
difunde remissão e cinismo. E mais. Agora, o happy end suscita imediatamente
a aberta desconfiança do público, que se sente quase como que ironizado por
um final cor-de-rosa, tal como durante anos ele havia sido codificado. O
eventual Mr. Smith, que fosse inteiramente só a Washington para resolver os
problemas de justiça e liberdade (ou seja, de ideologia), ou o seu antecessor, o
sargento York, que partira para a Europa, levariam a que um tal roteiro — na
era de Watergate, da Lockheed, do Vietnã — fosse atirado na cesta pelo mais
patriótico dos produtores. E apenas porque seria um fracasso financeiro. Agora,
no lugar de F. Capra ou de H. Hawks, temos os Sam Peckinpah e os Cimino. O
franco- atirador desse mesmo Cimino realiza feitos mirabolantes — mata os
ctiets, foge, se salva, volta aos Estados Unidos e depois a Saigon, nos dias da
queda — somente por causa de um inconfessável amor homossexual pelo seu
amigo. À vida maravilhosa, a Roosevelt e espinafres, sucede a vida mais
obscura de Hobbes, o extermínio geral de todos contra todos. Sem outra razão
que não seja a de mostrar, não sem um tom de advertência, a vitória da morte
segundo os modos mais sangrentos. Não devemos nos alegrar, e nem mesmo
ficar tranqüilos, diante do desaparecimento do happy end. Ao contrário. Com
sua adocicada ingenuidade, ele parecia conservar a utopia do restabelecimento
perene da justiça e da felicidade. Agora se diz explicitamente que a felicidade
não chegou e não poderá chegar nunca. Esse é o único realismo atualmente
vendável como mercadoria filmica. Para A. Penn, Wild Bill Hickock é um
beberrão; para Peckinpah, Pat Garret é um vendido ao mais forte, para não
falar das mutações cíclicas do general Custer. Talvez um dos primeiros tenha
sido Kazan, que, para expiar seu pecado de ex-gauchiste, em Viva
Pagina 154

Zapata representou o revolucionário profissional como intelectual “estrangeiro”


louco e renegado.

A substituição do happy end pelas chacinas proclama a impossibilidade da


conciliação entre homens, natureza e sociedade. Cinismo, ceticismo, misoginia
são a grandeza do jovem cinema americano e europeu. A virada de W.
Wenders com O amigo americano simboliza perfeitamente essa contigüidade.
Em vez de opor-se à necessidade, o acaso se integra com a planificação. O
happy end era ideológico porque pretendia ser de todos, quando na verdade
era-o apenas para a bilheteria; agora, pelo contrário, o final pacificado é
proibido. Vimos que, segundo Nietzsche, a genealogia da moral tem uma
história terrível: “Poder- se-ia mesmo ser levado a dizer que, onde quer que
ainda existam hoje na terra solenidade, seriedade, mistério, as cores
terebrosas da vida do homem e do povo, atua ainda algo da atrocidade com a
qual, antigamente, prometeu-se, empenhou-:;e, louvou-se em toda parte da
terra: o passado, o mais longo, profundo, desapiedado passado respira em nós
quando nos tornamos ‘sérios’. Quando o homem considerou necessário
constituir-se uma memória, jamais pôde fazê-lo sem recorrer ao sangue, ao
martírio, ao sacrifício: os sacrifícios e as penas mais horríveis (entre as quais, o
sacrificio do primogênito), as mutilações mais repugnantes (por exemplo, as
castrações), as mais cruéis formas rituais de todos os cultos religiosos (e, em
seu fundo mais remoto, todas as religiões são sistemas de crueldade): tudo
isso tem sua origem no instinto que intuiu na dor o mais poderoso auxiliar da
mnemônica. (...) Ah, a razão, a sociedade, o domínio das paixões, toda essa
coisa tenebrosa a que chamamos refletir, todos esses privilégios e esses
momentos faustosos do homem, como pagamos caro por eles! Quanto sangue
e quantos horrores estão no fundo de todas as ‘coisas boas’!”

O cinema “superou”, no originário significado dialético da palavra, tudo isso. A


violência espiritualizada de seu ritual não solicita mais a memória; todavia, o
projetor cinematográfico continua a respirar na tela o espectro de todas as
crueldades do passado. A amnésia fílmica não resolveu a pedagogia do
sacrificio.

Inicio da nota de rodapé


13. F. Nietzsche, Genealogia deila morale, cit., pp. 44-46.
Fim da nota de rodapé

Pagina 154

Nosso olho foi educado para retirar prazer da visão do sofrimento, o que
Nietzsche chamou de “olho estimador” dos deuses que amam os espetáculos
cruéis, O olho que observa a dor e goza com ela consente na repetição da
justiça “primitiva”, restabelecendo em cada espetáculo de castigo a apologia do
crime. Uma dessas “coisas boas” é o cinema, que reduz a memória à repetição
ritual do sempre igual, para marcar com seu fogo racionalizado espiritualizado
a crueldade reprodutível da dominação de classe, de sexo, de intelecto sobre
uma população “inorgânica”: o público dos espectadores. O cinema parece
prevenir o crime antecipando e espiritualizando as punições; sua finalidade é
racionalizar as atrocidades passadas, para esquecer a falsa superação das
presentes. A memória das “mutilações mais repugnantes” — que ressurgem
nas representações de Oshima e de Ferreri —, instrumento inadequado para a
nova moral, é substituída pela memória que não tem nada a recordar, salvo o
rito de “passar duas horas em paz”, forma de suicídio por tempo limitado. O
filme, produto parcial, segmento pulsante do cinema, deve ser esquecido tão
logo é rompido o contrato social do bilhete de ingresso colorido, O apêndice
que o filme cômico ou de autor pretende prolongar nas discussões
imediatamente posteriores, quando não determinadas pela intenção de
enganar o tempo redescoberto, são mimeses da representação, exercício
mnemônico sobre a neutralização da memória. A confusão entre tempo de
produção e tempo de distração dirige-se no sentido de recompor o todo sob a
fatalidade atemporal e a-histórica da dominação. A liberdade de pensamento se
realiza no fato de não ter de prestar contas a ninguém pelo que se pensa. Em
troca, obtém-se a segurança de ser incluído num sistema de instituições e de
relações que constituem a suprema lei de reciprocidade no controle social, O
que ainda resiste, sobrevive naquele espectador que — insatisfeito — mudará
sempre de lugar ou encontrará meios de conversar obstinadamente com o seu
vizinho: todo conhecido seu se assemelhará a algum ator e vice-versa. Assim,
se se perguntar o que “dá prazer” num filme de sucesso, não se poderá eludir a
dúvida de que prazer e não-prazer são conceitos inadequados. Foram
substituidos pelo “reconhecer”: efeitos especiais, truques, amigos. Proximidade
e estranheza se juntam na sala cinematográfica. Os vizinhos são sempre muito
barulhentos, fumam ou nos impedem de fumar;

Pagina 155

se está na frente, é muito alto; respira em nossa cabeça se está atrás, cospe
em nós se pigarreia, sussurra com o amigo, comenta, gosta dos trechos
barulhentos, é feio, é um conhecido que não queríamos ver, é um casal
excessivamente efusivo, é uma mulher só contra a qual se deve ficar em
guarda, é um homem que não nos deixa em paz, é um “diferente” que nos põe
à prova, agita-se muito, come pipoca e amendoim (cuspindo as cascas),
resfolega em toda cena de nudez, é um entendido que desmascara em voz alta
todos os significantes, é um cínico, O espectador é obrigado a tentar fugir no
tempo livre adequando-se precisamente áquilo de que está cansado e já não
suporta mais. Assim, o círculo se fecha, O momento da “escolha” entre o
“gênero” policial e o cômico é a mola que adiciona tédio e cansaço, para
subscrever apressadamente o primeiro que apareça. O resultado ótimo para o
cinema é produzir entusiasmo, enquanto para o filme — em secreta aliança
com aquele — é provocar a invectiva. Adesão e raiva, assim unidas, tendem —
numa falsa complementaridade — a reproduzir-se ao infinito e a desenvolver
estruturas caracterjais autoritárias ou narcisistas. Um filme atinge o máximo
sucesso autopropulsivo quando o fato de não tê-lo visto (ou o seu contrário, o
de não ter querido vê- lo) significa sentir-se excluído da unificação cultural de
massa; e quando, depois de tê-lo visto, pode-se declarar a própria desilusão.

O cinema foi sempre interpretado como duplicação da realidade, e, com efeito,


essa é sua origem. Mas, a partir de sua ascensão ao vértice dos mass media,
em aliança conflitual com a televisão — um herdeiro metade genro e metade
filho’ —, assiste-se a uma inversão da relação: é a realidade que aparece cada
vez mais como uma duplicação do cinema. Essa realidade parece se adequar
ao filme: o “heróico” terrorista usa uma linguagem que é uma suma da cultura
de história em quadrinhos e, ao mesmo tempo, o fruto de décadas de Douglas
Fairbanks — ambos levados a sério. Os “clubes 54” se difundem no mundo
como por

Inicio da nota de rodapé


14. De maneira semelhante ao sistema hereditário que tem o genro como
sucessor (o marido da princesa) — e que, portanto, é conflitual— e aquele cujo
sucessor é filho — e que é consensual —, cf. J. Propp, Edipo alia luce dei
folclore, op. cit., pp. 85-134. Talvez a televisão seja mais genro do que filho do
cinema, na medida em que, por assim dizer, casou com sua filha — a imagem
— para destronálo, mais do que para continuar de modo “consangüíneo” a
dinastia.
Fim da nota de rodapé

Pagina 156

clonação, depois de seu aparecimento fílmico. A reprodutibilidade técnica se


amplia na duplicação da realidade, que termina por sofrer aquela. A realidade
se camufla de filme. Vida e filme não devem mais se distinguir entre si, a fim de
que a primeira possa se submeter sem pretensões aos valores dominantes. A
progressiva e cada vez mais exata reprodução do mundo perceptivo de todos
os dias reconfirma no espectador a potência da duplicação da realidade
empírica enquanto duplicação da “realidade” fílmica. É esse o modo pelo qual
essa última penetra na imagem psíquica do espectador já sem defesas. Essa
inversão das relações entre essência e aparência parece restaurar um mundo
que pertencia ao animismo. A dublagem é mais realista do que o original; e sua
síntese perfeita — o mixing — é capaz de fazer aparecer como irrealista a
filmagem ao vivo. Diferentemente do tempo de leitura, que pode ser
interrompido subjetivamente para se refletir ou fantasiar, o tempo do filme é um
a priori que aceita pausas — como no caso da linha da montagem —, sob pena
de perder irremediavelmente a gag. O resultado é a atrofia do imaginário, da
especulação, da espontaneidade do sujeito sentado.

O sucesso do esp frito religioso deve ser vinculado à suprema promessa,


tomada pública através da evangelização que difundia a imortalidade. Agora,
sua comparação com o espírito Jflmico não pode deixar de lhe ser negativa,
por causa da nova publicidade oferecida no mercado: a indestrutibilidade. Essa
profunda religiosidade reificada foi bem entendida por Rollerball, que usa —
antes que se inicie o game homicida — as fugas de Bach. Templo do “jogo”
(rolierball). Templo da “diversão” (cinema), Templo da “fé” (igreja) coincidem.
Foram unificados pela totalidade tecnológica reprodutível ao infinito e sem
desgastes, em aliança com o mito mais antigo. O campeão de rollerball
continuará, indestrutível, a girar em torno da pista, entre os cadáveres e as
devastações do jeu de massacre: único sobrevivente da seleção esportivo-
homicida, ele pode com todo o direito levar as massas planetárias dos
espectadores ao paroxismo ululante e impotente, uma vez que tenham sido
bem protegidos por uma gaiola de ferro. Nesse filme, não há horrror “crítico”
em face de uma futura forma de tempo livre, mas o reflexo como num espelho
— o espelho dos Titãs que captura a imagem de Dioniso — dessa atual forma
fílmica. Por isso, a alegoria se despedaça contra a realidade, e o espectador
“vê” morrer na tela-espelho a sua imaginação dionisíaca.

Pagina 157

Conclusões: Pneuma mimético

“Um dos modelos da arte seria o cadáver na imobilidade de sua forma


incorruptível.”
T W Adorno, Teoria estética
O pneuma mimético, a máscara e o imaginário

Também para o cinema vale o que Adorno afirma da arte em geral: “A essência
da arte não é certamente dedutível de sua origem como se o primeito momento
fosse uma base na qual tudo que veio depois tivesse se apoiado, para ruir tão
logo aquela sofresse um abalo”.

A busca da compreensão do cinema — do ponto de vista de sua radical


transformação — deve explicitar a característica de tal medium como imersa na
modificação histórica. Nada é mais inadequado do que a tentativa de afirmar
uma espécie de essência originária do cinema, que o obrigasse a oscilar entre
um pólo realista — cuja descoberta remontaria a Lumière — e

Inicio da nota de rodapé


1. T. W. Adorno, Teoria estética, Turim, Einaudi, 1975, p. 5.
Fim da nota de rodapé

Pagina 158

um pólo fantástico — cujo inventor seria Méliès. Ao contrário: no cinema,


encontram-se e chocam-se diversos planos (que são irredutíveis entre si a uma
síntese imediata); alguns deles remetem às memórias hereditárias biopsíquicas
(restos mnésticos) de base hipo-estrutural, cujos traços comportamentais
transpassam fantasmagoricamente os diversos modos de produção. Disso
resultam as relações transversais do cinema com a magia, o mito, a fábula, a
religião, a filosofia. Já outros planos remetem aos modelos de socialização das
formas contemporâneas da cultura de massa. Partindo da complexidade
dessas articulações, seria ingênuo e ilusório formular a hipótese de que a
mudança da base estrutural possa implicar, seja de modo imediato ou
“dialético” (como se costuma dizer com freqüência cada vez maior), uma
transformação também da “natureza” do cinema. E agora, depois do fracasso
da politização de massa da reprodutibilidade técnica como superação do elitista
hic et nunc, é também socialmente regressivo. Esse erro de tipo
hipersociológico é o inverso daquele que confunde com “invariantes
antropológicas” as variações hipo-estruturais, que são relativamente mais
lentas do que as culturais e econômicas (hiperetologismo). Por trás da
ideologia da imutabilidade histórica e, ao contrário, da imediata potencialidade
para a mudança, esconde-se a apologia das condições dadas entre as classes,
os sexos, as gerações, as “normalidades”, etc. As possibilidades concretas de
uma mudança histórica consciente — referentes, portanto, não apenas ao
cinema, mas também à arte, à sexualidade, à agressividade, ao trabalho, a
uma política redefinida — poderão ser realizadas somente se forem
enfrentados de modo global os nossos condicionamentos arcaicos e presentes
como contemporâneos, no sentido de que ambos atuam no interior dos
sujeitos, num emaranhado complexo mas destrinçável. Um projeto cultural
“mutante” deve realizar a supremacia não mais “pré-histórica” da consciência
sobre o determinismo social. Desse ponto de vista, se o idealismo engana ao
proclamar como já ocorrido esse momento, o materialismo dominante exagera
ao não buscar nunca

Inicio da nota de rodapé


2. Essas, como se sabe, foram as conclusões de W. Benjamin em seu ensaio
L’opera d’arte nell’epoca della sua riproducibilitã tecnica, Turim, Einaudi, 1966
(há várias edições brasileiras; entre elas, cf. “A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica”, in revista Civilização Brasileira, n5 19/20, maio-
agosto de 1968, pp. 251-283).
Fim da nota de rodapé

Pagina 159

“prever” as formas da antecipação com as quais os modos do condicionamento


produtivo ou do pré-condicionamento biológico poderão ser superados pela
libertação tanto espontânea como projetada daquela característica
especificamente humana que é a cultura. De tal perspectiva, pode adquirir
novas valências antecipadoras de práxis a tese de que é também a consciência
que determina o ser social, aspiração profunda de todo materialismo crítico. Há
já algum tempo, a tese do ser social que determina a consciência conciliou-se
com a outra tese, segundo a qual o ser natural é que determina a própria
consciência. Primeira e segunda naturezas se reconciliariam sob o signo do
determinismo. E ambas essas versões “laicas” são arrastadas para a ideologia
originária que fundou esse modelo e o transmitiu às ideologias posteriores: a
ideologia da supremacia do ser divino com relação à contigência mundana.

O cinema não foi fundado a partir da invenção da primeira imagem ou do


primeiro fotograma, todavia, o seu pneuma não pode prescindir disso. Se, para
Adorno, as “tentativas de fundar a estética na origem da arte, considerando que
na origem esteja a sua essência, levam necessariamente à desilusão”3, ainda
mais claramente indefensável é o juízo sobre o cinema a partir das duas
escolas origínárias (realistas e visionários). Essas dicotomias, que já são
discutíveis no campo da estética — onde se contrapõem naturalistas e
realistas4 —, tornam-se ridículas no campo do cinema, que subordina visões e
realidade à supremacia da reprodutibilidade, e as expande “pneumaticamente”
no interior de um ritual que recolheu os aspectos mais rígidos das muitas
divisões (de sexo, do trabalho, do olhar, das normas) qüe o processo de
civilização produziu. O prestígio da palavra “origem” não é aplicável à estética,
como não o é ao cinema — e tampouco às raças, aos sexos, às classes —,
porque as suas confessas aspirações à ontologia, às invariantes
antropológicas, aos arquétipos psicológicos, ou, numa palavra, a pretensão a
estar além da história, são contraditadas pelo fato de arte, psique e sociedade
serem o resultado de um processo em constante transformação. De resto, o
fascínio que até hoje exerce a investigação sobre a origem deve ser
relacionado com aquela forma de ideo-

Inicio da nota de rodapé


3. T. W. Adorno, Teoria estética, op. cit. p. 458.
4. Cf. A. Hauser, Storia socíale deilarte, op. cit.
Fim da nota de rodapé

Pagina 160

logia que, antes de qualquer outra, buscou resolver esse enigma: o mito. Para
o cinema, o dualismo realismo-fantástico esconde o antigo paradoxo da
reprodutibilidade imediata do real através de media artificiais: é causado por
uma lógica que é ainda análoga àqueles esforços com o qual o xamã,
assumindo atitudes horripilantes, com caretas e imprecações, pretendia
derrotar o mal imitando-o. Mesmo que as consciências do xamã e do doente
“primitivos” não tenham dúvidas sobre a veracidade instrumental da duplicação
ritual, essa mimese continua a ser algo irredutivelmente “outro” do que ela
busca reproduzir. E, ainda que a terapia xamânica tivesse razão, sua ação
mimética é um ritual e nunca algo idêntico ao mal. Assim, no cinema “realista”
jamais há a realidade captada e reproduzida em sua substancialidacle: sempre
se afirma na reprodução um momento anti-realista, mesmo no mais puro
cinema direto. E, ao mesmo tempo, também o cinema “fantástico” — longe de
fundar uma previsão imaginária entre utopia e futuro — é uma reprodução das
condições sócio-culturais e biopsíquicas ineliminavelmente contemporâneas
sob uma aparência de alteridade.

“Talvez não seja irrelevante”, observa Adorno, “que a mais antiga pintura
parietal, que tão prazerosamente é declarada naturalista, conserve uma
extrema fidelidade precisamente na representacão de corpos em movimento,
como se já pretendesse imitar (...) a indeterminação, a não-apreensibilidade
das coisas. Então, o impulso da pintura parietal não seria o naturalista, mas —
desde o início — seria uma objeção à recação.”

O preconceito que tenta ligar à origem da arte ou do rito suas essências futuras
— segundo o qual o significado se manteria “imerso” de uma vez para sempre
dentro da “forma” inicial da invenção — deve ser submetido a
desencantamento, percorrendo-se novamente a linha dos elementos de
transformação (além dos de imutabilidade) rituais explícitos e implícitos e
exaltando as tentativas de protestar contra a reificação. Se com tal conceito se
entende a inversão das relações humanas em coisa, sua conotação de
“mercantilização” torna-se específica das

Inicio da nota de rodapé


5. Por exemplo; num filme de “ficção científica’ como Kin,g Kong, de
Schoedsack, há uma das melhores auto-análises da essência do sistema-
cinema.
6. Adorno, op. cit., p. 410. A importância desse conceito consiste no fato de que
também a reificaçào adquire uma dimensão arcaica.
Fim da nota de rodapé

Pagina 161

condições capitalistas, ao passo que no conceito de reificação enquanto tal se


conservam os traços mnésticos pré-capitalistas. A história estético-ritual é
periodizada também por tentativas de contraposição à inelutabilidade da
redução do que é humano a coisa e, portanto, a uma condição de rigidez e de
algo fixo. Na cultura que dá forma às várias objeções contra a reificação,
conserva-se o conflito vida e morte, sub specie de móvel e imóvel, de máscara
e de mímica.

Adorno diz ainda: “Várias coisas — como, por exemplo, produções ligadas ao
culto — transformam-se, mediante a história, na arte que não eram; várias
outras que eram arte não o são mais. A questão, posta pelo alto, de saber se
um fenômeno como o filme é também ele arte ou não, essa questão não leva a
nenhum lugar (...). Pode-se esclarecer a arte somente com base em sua lei de
movimento, não mediante invariantes. A arte se determina em relação ao que
ela não é. O que há nela de especificamente artístico deve ser deduzido de seu
outro: conteudisticamente. Somente isso pode satisfazer de algum modo a
exigência de uma estética materialista-dialética”.

Essa metodologia pode ser aplicada (e, em parte, tentamos fazê-lo neste
trabalho) à antropologia do cinema, do qual é necessário captar não a
invariabilidade ora econômica, ora imaginária, mas as potencialidades
presentes não no interior do cinema, mas no movimento real e utópico do todo
não-cinema. Atualmente, porém, enquanto a arte desmente a idéia de uma
produção pela produção e opta por um estado da práxis para além do domínio
do trabalho”8, o cinema faz a apologia da art pour l’art, proclamando como já
realizada a conciliação de prá- xis e felicidade, de razão e instinto, em seu
consumo continuado aqui e agora. Essa centralidade do momento do consumo
produz uma substancial modificação: “O valor de uso na época da
superprodução tornou-se, por sua vez, problemático, e deixa espaço para a
fruição secundária do prestígio, do ‘eu também existo’; em suma, do caráter de
mercadoria”9. Com efeito: “Das mercadorias culturais, consome-se o seu
abstrato ser-para-o-outro, sem que elas sejam verdadeiramente para OS
outros; ao com

Inicio da nota de rodapé


7. Ibidem, p. 6.
8. Ibidem, p. 19.
9. Ibidem, p. 26.
Fim da nota de rodapé

Pagina 162

tentar os outros, elas, na verdade, os enganam. A antiga afinidade entre


observador e observado é invertida (...). O ideal da identificação alcançada não
consistia em que o sujeito igualasse a obra de arte a si mesmo, mas que se
igualasse a si mesmo à obra de arte (...): o contrário da pretensão pequeno-
burguesa de que a obra de arte lhe dê algo”.

Com o cinema, tal pretensão de ser credor — se não de outra coisa, pelo
menos no preço do ingresso ou da suposta escolha do filme — amplia-se sem
encontrar mais limites, corroborada nisso por todo o aparato publicitário,
incluída a crítica. E, desse modo, tais emoções — reduzidas a “resíduos
miméticos” e convertidas em exigência de sentir-se in group — podem ser
projetadas na tela, para ligar-se às reificações numa interação em espiral.
Cada vez mais parece que atualmente o que é fmído, por um lado, é o valor-
de-troca e não mais o valor-de-uso. Por outro, através da reprodução ampliada
do sempre igual, o cinema se comunica com o mito. A tela torna-se afim à
máscara. Um é o estereótipo e a outra, o protótipo: ambos estão a serviço da
ideologia, escondendo e mostrando ao mesmo tempo. Já no “fotograma eterno”
da máscara facial do falso Agamênon, está presente o enigma e o fascínio da
“reprodução fiel”, que o cinema socializará como valor de massa e não só dos
reis. Nela se evoca a imortalidade: a imagem busca escapar da decomposição.
Essa tentativa “ideológica originária” — que tem a ambição de fazer passar por
eterna, através da rigidez áurea, a caducidade e a mobilidade facial — é
também um momento produtivo do que Adorno definiu como uma objeção
contra a reificação. Decomposição e reificação se fixam na tela-máscara. A
imagem busca ser de novo realidade como presume tê-lo sido outrora.1’ W.
Wenders, em seu filme mais lúcido — Com o passar do tempo —,
compreendeu e conseguiu representar esse conceito em dois momentos:
durante o jogo

Inicio da nota de rodapé


10. Ibidem.
11. Assim, em seu ensaio sobre as técnicas do corpo, M. Mauss refere-se às
exigências realistas das imagens fílmicas: “Tive uma espécie de revelação
quando estava internado num hospital de Nova York, Perguntava-me onde já
havia Visto moças que caminhavam como as minhas enfermeiras. Tinha todo o
tempo para refletir. Recordei-me, finalmente, que as vira nu cinema. Quando
voltei à França, notei .— sobretudo em Paris — como era freqüente esse modo
de andar; as moças eram francesas e caminhavam do mesmo modo. Com
efeito, graças ao cinema, o modo de caminhar americano começava a chegar
também até nós” (Mauss, Teoria generale de la magia, op. cit., p. 388).
Fim da nota de rodapé

Pagina 163

clownesco de sombras chinesas por trás da tela, apagada e inútil, por obra dos
dois amigos, e com a tomada final, dialeticamente negativa, da tela branca,
símbolo de máscara fúnebre, de ideologia do luto: “Mas, tal como é agora, é
melhor que não exista mais nenhum cinema a existir um cinema como o atual”.
São as palavras finais da dona do cinema. A morte da arte, na qual ninguém
jamais acreditou seriamente, finge ser morte do cinema, mas esse, segundo a
lei mais canônica, terá o sucesso de massa com a aceitação das regras do
jogo de O amigo americano. Assim, tudo pode continuar a girar em tomo do
tríptico máscara- tela-ideologia, unificado na articulação de mostrar e esconder.
Mas esse moderno tríptico parece revelar a seguinte modificação com relação
ao protótipo: a imortalidade, outrora miticamente, magicamente, tragicamente,
fabulescamente, religiosamente, filosoficamente buscada, transpassa — na
grande indústria — na indestrutibilidade. A máscara esgota o seu período mais
elevado com a Declaração (ideológica) dos Direitos do Homem;13 a tela se
inicia com a sociedade de massa, que inaugura a igualdade (ideológica)
imaginária dos espectadores.

“A feiúra arcaica, as máscaras litúrgicas cheias de ameaças canibalescas,


referiam-se a conteúdos: eram imitação do terror que espargiam em torno de si
como expiação.”Esses antigos espantalhos não apenas sobrevivem, mas se
reproduzem, aumentando desmesuradamente a sua capacidade de penetração
social com o cinema, e, ao mesmo tempo, perderam o momento da expiação
para desenvolverem o do entertainement. O terror mítico é substituído pelo
horror fílmico. O feio não é mais apenas o historicamente anterior, mas o
diferente da norma. Houve um momento em que se ligava o uso fílmico do feio
à origem do cinema mudo, o qual — privado de expressão verbal — devia
exasperar a linguagem facial, deixando claro para a massa que a dissonância
corporal era sintoma dos pecados cometidos. Depravação facial, psíquica e
social deviam formar um todo único. O cinema

Inicio da nota de rodapé


12. W. Wenders, Nei corso dei tempo, agora também em livro, editado por G.
Spagnoletti, Milão, Feltrineili, p. 155. Infelizmente, com o posterior O amigo
americano, o diretor voltou a uma aceitação das regras do jogo, com um nível
de auto-ironia adequado a modelos de recepção socialmente inócuos.
13. Esse é o juízo final do ensaio já citado de A. Fontana, “La scena”, in Storia
d’Italia, Turim, Einaudi, op. cit.
14. Adorno, op. cit., p. 69.
Fim da nota de rodapé

Pagina 164
falado não apenas não aboliu a feiúra enquanto “sinal de deus” — como afirma
também um ditado popular —, mas levou até as extremas e estereotipadas
conseqüências essa modelística cultural, inclusive quando era inteiramente
injustificado fazê-lo. A função social da feiúra é um dos sintomas mais
inquietantes da profundidade funcional das simbólicas hipo-estruturais. O feio
filmico não imita mais o terror para aplacá-lo, mas para difundi- lo. Como para
um cinema que se venha a transformar tão profundamente que não é simples
imaginá-lo, também “a arte deve assumir como algo próprio o que é recusado
como feio, não mais para integrá-lo, para mitigá-lo ou para torná-lo algo
aceitável por meio do humorismo, mas sim para denunciar, no feio, o mundo
que o cria e o reproduz segundo sua própria imagem”15. Na sobrevivência do
feio como estigma, há o testemunho de que a crueldade — da qual ele tira seu
alimento — se reforça, e que os sistemas de crueldade remetem aos “pecados
originais” de toda forma ritual, que prevê e prescreve o tema do domínio da
natureza e que recorda, entre a humanidade atual, as suas cicatrizes.

A apreensão de imagens pré-históricas era um momento de regeneraçào.


Frobenius fala de pigmeus que, antes de matar uma fera ao amanhecer,
reproduziam-na num desenho, e, depois do sacrifício, manchavam ritualmente
tal imagem com o sangue e os pêlos das vítimas para poder ressuscitá-la.
“Assim, as imagens das feras representavam eternizações, apoteoses e —
quase como estrelas eternas — colocavam-se no firmamento.”6 Todavia, ao
lado e talvez antes dessa cultura ritual — sem dar a isso nenhum significado de
algo fundante —, parece que também houve a idéia da proibição das imagens.
Os homens vivos sentiam como uma culpa para consigo mesmos a produção
da duração temporal das imagens: “O tabu tem origem num medo dos mortos
que leva também a embalsamá-los para — por assim dizer — conservá-los
vivos. Vários indícios falam em favor de quem pensa que a idéia da duração
estética se desenvolveu a partir da múmia” .1As representações rituais,
iniciadas com as fi-

Inicio da nota de rodapé


15. Ibidem, p. 71.
16. Ibidem, p. 395.
17. Ibidem. Sobre essa questão, cf. também, André Bazin, he cosa é ii
cinema?,
Milão, Garzanti, 1979, p. 3: “Uma psicanálise das artes plásticas poderia
considerar a prática do embalsamamento como um fato fundamental de sua
gênese. Na
origem da pintura e da escultura, encontraria o ‘complexo’ da múmia’
Fim da nota de rodapé

Pagina 165

guras de múmias, passaram posteriormente para a fiel reprodução dos corpos


na estátua mortuária figurativa. Em muitas culturas chamadas “primitivas”, o
crânio é a matéria-prima a ser esteticamente preenchida, uma vez descarnado,
para plasmar a imagem que deve ser eternizada. A decomposição da carne é
substituída pela fantasmagoria de símbolos precisos. A mumificação buscou
eternizar o cadáver imobilizando suas formas e entregando-o à memória dos
pósteros. Agora, a tela tornou substituível a imagem cadavérica, enquadrada
em movimento pela câmera, a fim de construir a amnésia do espectador. Tudo
deve ser esquecido: desde as imagens até o momento mori.

A mimesis foi sempre o instrumento (o medium) com o qual o sujeito


mediatizou-se com a objetividade da natureza, a fim de tentar fixar a própria
identidade através do ritmo atemporal e repetitivo da própria natureza. Do
ponto de vista ontogenético, a mimese permite à criança, durante a primeira
infância, identificar-se com a mãe e, em menor medida, com o pai; e, desse
modo, é um instrumento de aprendizagem. A posterior renúncia à mimese em
favor do comportamento racional voltado para uma finalidade constitui um
momento essencial da socialização. O cinema, agora há mais de 90 anos,
constitui um instrumento “perverso” de mimese secundária (que, porém, tende
cada vez mais a substituir a primária, por causa da decadência da figura dos
genitores), através da qual o eu do público se fixa com a objetividade
pneumática dos fluxos fílmicos e tende a repetir os modelos culturais
absorvidos durante a projeção, os quais, por sua vez, eram já uma projeção do
social. Também dessa maneira a esfera pública absorve a esfera privada.
Desse modo, assiste-se a uma interação funcional entre sociedade e cultura
(como costume), que Horkheimer define em termos de tradição mimética. Ela
persiste no tempo, graças à transmissão hereditária de características
chamadas de “naturais”, mesmo “quando as causas ambientais que as podiam
explicar desapareceram há muito tempo”°’. E ainda: “Todo o corpo é um órgão
de expressão mimética; e, graças precisamente a essa faculdade, o homem
adquire um

Inicio da nota de rodapé


18. Max Horkheimer, L’ eclisse delia ragione, Turim, Einaudi, 1969, p. 101 (ed.
brasileira: o eclipse da razão, Rio de Janeiro, Labor, 1976).
Fim da nota de rodapé

Pagina 166

seu modo particular de rir e de chorar, de falar e de julgar. Somente em


estágios posteriores da infância é que essa imitação inconsciente passa a se
subordinar a imitação consciente, com métodos racionais de aprendizagem”.

Mas o atual processo de civilização não conseguiu converter as atitudes


miméticas em atitudes racionais. “Adaptar-se significa identificar-se com o
mundo dos objetos por amor à própria sobrevivência. Essa identificação
intencional (que é o contrário da reflexiva) com o ambiente é um princípio
universal de civilização”. Esse mecanismo produziu uma série de
comportamentos destrutivos, os quais — sob o totalitarismo fascista —
assumiram a forma de sujeição ao demagogo, a quem era destinada, por
exemplo, a tarefa da imitação projetiva por parte do público: somente a ele era
permitido dar livre passagem aos impulsos miméticos socialmente reprimidos
no “momento culminante daquelas reuniões (...), quando o orador personificava
um judeu imitando aquele a quem queria destruir. A representação despertava
a maior hilaridade, porque se concedia a um instinto natural proibido a
possibilidade de se afirmar sem temor de punições ou reprimendas”21. Assim,
o retorno ao instinto mimético sofria o destino da regressão e da deformação.
Agora, a mimese fílmica deixa cada vez menor espaço ao demagogo. Com a
invenção do filme falado, o público tornou-se astucioso e parece levado a
refutar a demagogia direta e explícita, enquanto é cada vez mais vulnerável a
aceitar prazerosamente e com autogratificação a identificação com uma
poliedricidade de

Inicio da nota de rodapé


19. Ibidem.
20. Ibidem, p. 102. A mimesis progressista é destacada também por M. Jay, em
sua história do Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt, L ‘immaginazione
dialettica, Turim, Einaudi, 1979, pp. 424-425: “Em si mesma, todavia, a mimese
não seria fonte do mal (...) era tarefa da filosofia — sugeria Horkheimer, numa
de suas conferências em Columbia — despertar a recordação da mimese
infantil que fora obscurecida pela posterior socialização”. Sobre o mesmo tema,
cf. T. W. Adorno, Teoria estetica, op. cit., p. 466: Provavelmente, a atual perda
da experiência coincide amplamente em seu lado subjetivo, com o empenho
em reprimir a mimese em vez de transformá-la” (grifo meu).
21. M. Horkheimer, op. cit., p. 103. No mesmo capítulo, “A revolta da natureza”,
há algumas observações extraordinárias sobre o riso: “No século XVIII, a risada
da filosofia diante das palavras altissonantes soava como uma nota corajosa da
força libertadora (...). No século XX, o objeto do riso não é a multidão ansiosa
de conformismo, mas o excêntrico que ainda ousa pensar com a própria
cabeça” (p. 104).
Fim da nota de rodapé

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“gêneros”. Escapa ao público o momento sintético do “gênero cinema”, que


agora emana modelos soft, de elevada ironia, com alusões e cumplicidade em
alto nível de escolarização, cujo idealtypus é o nova-iorquino W. Allen. A
consciência não é mais capturada de modo brutal e direto, como antigamente,
pela forma demagógica da mimese, mas essa sofre uma espécie de “reforma”
adequada à ideologia metropolitana contemporânea, assumindo a forma
desencantada. A imitação não mais visa ao objetivo de exercer a perseguição
contra minorias — os bodes expiatórios —, porque todos são ao mesmo tempo
maiorias e minorias; e, portanto, a perseguição direta sofre a necessidade de
ser substituida por mecanismos refinados e indiretos de autoperseguição,
válidos em particular para os estratos sociais médio-altos, ao passo que, para
os “inferiores”, divulga-se uma violência sem-conceito, endereçada contra os
socialmente débeis. Para sermos mais exatos, numa espécie de ficção
universal (e tragicamente) aceita, organiza-se a representação da violência,
desencadeada contra a diversidade, de modo a se obter o máximo nível de
identidade com o público presente na sala de projeção. A organização social
das diferenças, enquanto mecanismo de produção de objetivos contra os quais
dirigir a necessidade de demonização da alteridade, alcançou o ponto extremo
de artificialidade numa sociedade de identidade programada e coercitiva. A
produção social de diferenças cada vez mais aparentes impõe a necessidade
de elevar o nível de agressividade substancialmente imotivada, na medida em
que é cada vez maior o nível de homogeneização; por essa razão, a
organização da violência deve sofrer um processo de maior cegueira e
absurdidade social e individual. O “outro” torna-se o bando de contemporâneos
perfeitamente idêntico ao próprio e, portanto, a si mesmo. Sobreviver hoje deve
significar contrapor-se a uma alteridade cada vez mais fictícia e que, na
realidade, é apenas máscara mimética do ego.

O despertar da recordação da mimesis infantil — obscurecido, segundo


Horkheimer, pela posterior socialização — poderia ter um aspecto progressista
se imitasse os aspectos auto-afirmativos da natureza ou o afeto do amor
materno. Já para Marcuse, a mimese pode desenvolver uma função
cognoscitiva, quando “desemboca no desmascaramento da infâmia do
fascismo em sua cotidianidade concreta, tal como aparece sob a di-

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mensão histórica oficial. Na forma estética, assim, o terror é chamado a


responder pessoalmente, a testemunhar e a denunciar a si mesmo (...). Graças
a essa vitória da mimese aquelas obras contêm a qualidade da beleza em sua
forma talvez mais sublimada, o Eros político22. Essa tese é uma derivação,
não inteiramente fiel, das teorias estéticas de Adorno, para quem, “em última
instância, a doutrina da imitação deveria ser invertida: num sentido sublimado,
a realidade deve imitar as obras de arte” 23 Na verdade, recordando o
testemunho não faccioso de M. Mauss, a realidade parece sempre seguir a
imitação das obras fílmicas. O cinema parece elevar à máxima potência o que
Adorno chamou de “aspecto egípcio” da arte: “Enquanto as obras querem
manter e fazer durar o transitório — a vida — e salvá-lo da morte, matam-no”.

A organização ritual do pneuma mimético, no decorrer do tempo fílmico, tem a


função de adequar as normas da introjeção aos novos cenários psicossociais.
Essas novas normas se tornam mais fáceis de assimilar devido ao sucesso
codificado de um novo instrumento ideológico na moderna caça às
consciências: a categoria do imaginário. A pretensão da imagem fílmica em se
tornar imaginário tout court é a última publicidade da distribuição em crise. Para
auxiliá-la, ocorreu a crítica mais “atenta”, que renunciou a submeter o conceito
de imaginário a uma verificação. Uma vez derrotada a imaginação, que
expressava ao nível da práxis a exigência da tomada do poder através da sua
própria dissolução, o público teve de se contentar com o imaginário construído
nos estúdios. E assim, ao “poder”, como se costumava dizer, subiu justamente
a ambigüidade lexical do imaginário.

O imaginário no poder é o sucedâneo da derrota da imaginação. Seu espaço


reservado é o tempo livre, cuja terminologia, e apenas ela, é uma denúncia de
não-liberdade.

A publicidade psicologicamente refinada difundiu como vencedora — e


vencendo! — a ideologia produtiva do imaginário, segundo a qual criar-se-ia
nas salas uma dialética entre pneuma fílmico e espectador, capaz de subverter
a ordem gramatical e política da projeção. Desse ponto de vista, as velhas

Inicio da nota de rodapé


22. H. Marcuse, La dimensione estetica, Milão, Mondadori, 1978, pp. 82-83.
23. Adorno, Teoria estetica, op. cit., p. 190.
24. Ibidem, p. 192.
Fim da nota de rodapé

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criticas contra a manipulação teriam sido suplantadas pela liberação de energia


psíquica nas salas. Tudo se torna possível, ou melhor, aconselhável de ser
visto, ou, ainda melhor, de ser revisto para aprofundar ou recuperar aquilo que
foi negado por uma primeira visão juvenil aproximativa. Dessa forma, o modelo
da revisita ção torna-se o modelo geral do ficar-no-cinema.

Assim, graças à aliança com a produção “espontânea” de ideologias através da


pura mercadoria-fílmica, a difusão “controlada” do nexo imagem-imaginação-
imaginário tornou-se a essência enfim “reencontrada” do cinema enquanto tal,
no interior do qual parece supérfluo contrapor o chamado cinema de autor ao
cinema de massa. Para compreender plenamente essa nova filosofia (que
pretende se disfarçar de neoplatônica graças a grosseiras referências ao mito
da caverna), pode-se refletir sobre o slogan cantado por Fred Astaire até os
anos 50 (1950) — it’s entertainement — ou sobre a ingenuidade antecipatória
segundo a qual “there is no business like show business”. Agora, pelo contrário,
o cinema é o todo.

“Nesse sentido, quisemos nos medir com o imaginário coletivo, conceito que,
mesmo permanecendo um pouco misterioso e inapreensível, há tempos já é
objeto de pesquisas aprofundadas e do qual, bem ou mal, derivam nossos
atuais comportamentos e modos de vida. E que melhor definição poderíamos
encontrar do que o cinema, que realmente pode ser considerado o imaginário
em obra? E se pensarmos que a própria palavra imaginação é a síntese de
imagem e ação, parece-nos que o cinema, local privilegiado da imagem em
ação, tem o poder de condensar, em seu aspecto natural que é o filme, junto à
coisa imaginada também a faculdade de imaginar”.

De Laurence Olivier a Betty Boop, de Drácula a Marilyn, de Hitchcock a Mano


Bava, através dos cine-jornais de época até os traile,s ou ao mais curto
cartoon: tudo é unificado ou unificável sob o signo do imaginário em ação. Tal
conceito se presta, segundo seus apologetas, a funcionar como ponte entre
indústria cultural e alquimia pré-industrial. Nesse sentido, nele age com
extrema e renovada penetrabilidade psíquica o clássico tema do duplo; e Jung,
ambíguo indagador de mitos e alquimias,

Inicio da nota de rodapé


25. Cf. Ii doppio gioco dell’immagina rio. Roma, Basilica de Massenzio, 1978.
Fim da nota de rodapé

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é ressarcido bem além da sua obra restauradora, para se tornar press agent de
siogans neoplatônicos de sucesso.

Imagem, imaginação, imaginário tornam-se um o crescendo do outro. Assim, o


anúncio de que a manipulação foi derrotada pela imaginação obtém
inesperados e cuidadosos sucessos. Do pressuposto do imaginário coletivo, de
onde derivariam também os nossos comportamentos e modos de vida atuais —
isto é, nossa antropologia dos invariantes —, segue-se um imaginário particular
em que a práxis é dissolvida ou dissoluta, e sua chegada ao poder,
inimaginável. E, assim, o cinema volta ao arquétipo, de onde definitivamente
nunca saiu, pelo menos segundo seus intérpretes vencedores, O eterno
retorno, reorganizado por uma elite de críticos oriundos dos cineclubes, pode
continuar a conceder o “arcano” do divertimento por imagens, como se fosse
um substituto do tarô. Nessa perspectiva, o enredo de um filme pode se
desenvolver apenas enquanto inserção, graças à direção de cenógrafos
selecionados, no interior de um esquema formalmente imóvel; mais ou menos
como nossa grade quaternária hipo-estrutural, que no entanto surgiu
historicamente como um modelo do domínio, depois de ter seguido suas
tramas em cada filme — e não como seu suporte.

O imaginário no poder significou a conquista, pela ide- ologia visual dominante,


do “eterno” Archetipus. A apologia das imagens-em-ação, como
desencadeadoras do imaginário, tenta confinar — paradoxalmente mas não
demais — tudo aquilo que transcende o dado sensível. Nesse contexto, é difícil
projetar um imaginário radical em busca de um imaginário negativo, que
demande uma genealogia de imagens não-arquetípicas, na direção de romper
a aliança “perversa” entre res e pulsões. A pergunta radical a se colocar só
pode se referir uma vez mais à possibilidade ou não de elaborar simbólicas
novas, para ajudar a desenvolver um salto mutante em relação ao nosso modo
de criação, distribuição e fruição da cultura.

Um imaginário desvinculado da potência das reificações, unido à coação em


repetir, deveria ter a capacidade “de perceber nas coisas mais do que elas
são”. Tal dialética pode criar uma nova estética fílmica que, através de um olhar
que transforme

Inicio da nota de rodapé


26. T. W. Adorno, Teoria estetica, op. cit., p. 466.
Fim da nota de rodapé

Pagina 171

em imagem aquilo que não o é, antecipe fantasmagoricamente uma


objetividade diferente do tecido social e categoria existente.

O imaginário não pode ser a restauração de um passado arquetípico e lúdico,


tampouco a apologia do presente como vida-totalmente-verdadeira na
sociedade-totalmente-falsa: mas prenúncio de um futuro que tenha abolido a
constrição à passivização, às múltiplas divisões sociais e individuais, naturais e
culturais do trabalho, do prazer, da criatividade, das relações inter e
intrapessoais. Nesse imaginário futuro, podem-se constituir projetos
emocionais diversificados da utopia, capacidade de invenções de uma
alteridade cujas previsões e prenúncios alternativos em parte já se
manifestaram ainda que agora pareçam repousar nas reservas, como fndios
aprisionados, mas também a serem protegidos com a máxima atenção
antropológica.
Para uma metodologia antropológica de intervenção no ambiente simbólico

A estrutura da fabulação pode ser projetualmente liberada do duplo legado


opressivo da dominação histórica e das mutilações arcaicas. Essa dupla
opressão travestiu-se — desde a ideologia do imaginário fílmico — de eterno
retorno do idêntico, primeiro sob o signo do ciclo-natureza e agora do ciclo-
cultura. Na realidade, há tempos estabeleceu-se uma combinação sintética de
ambos os elementos cíclicos. Os protótipos de civilização, que mergulham suas
raízes nas memórias arcaicas hipoestruturais, constituindo o patrimônio
biopsíquico do homem, entram em relação com os estereótipos de produção,
determinados pelas exigências de racionalização dos produtos e de
manipulação das consciências. Ambas compõem a estrutura da fabulação
fílmica. Em vez de esperarmos sentados pelas programações de imaginário
coletivo, fundados “entusiasticamente” no arquétipo, podemos desvincular a
imaginação da reificação a fim de criar modelos emocionais e racionais de
novo tipo. Para esse fim, é possível aventurar-se numa hipótese de
metodologia alternativa para uma elaboração antropológica de novas formas
simbólicas: “Temos freqüentemente a tendência a esquecer a história (ainda
que breve) do cinema e a supor, por isso, que o

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modo pelo qual utilizamos atualmente os filmes seja o mesmo do passado; e


não só isso, mas por vezes somos também levados a crer que o modo pelo
qual consideramos atualmente o filme não mudará no futuro. Poder-se-ia
afirmar que o meio século compreendido entre 1930 e 1980 possui todos os
requisitos para ser considerado, no futuro, como um período aberrante na
história do uso da imagem cinematográfica sonora”. Essa justa premissa de Sol
Worth radicaliza a crítica — no sentido próprio de ir às raízes —, como é dito
no título do livro onde está contido o seu importante ensaio, O conceito de
cultura modificou-se profundamente a partir do momento em que todo o planeta
se unificou por canais via cabo (pelo que se pode falar de planeta via cabo),
graças aos satélites televisivos, cuja origem — cabe recordar — deve ser
colocada na necessidade de vender.., um dentifrício. Durante estas décadas de
era cinematográfica, a produção e o controle da imagem fílmica (e, portanto,
também do suposto “imaginário”) “limitavam-se a pequenos grupos de pessoas
que controlavam os grandes recursos econômicos considerados necessários
para a produção de filmes e de programas de televisào’°. A produção
cinematográfica excluiu de seu sistema ideativo a esmagadora maioria da
população, para legitimar apenas produtores, artistas, anunciantes, jornalistas,
etc. Uma significativa inversão de tendência pode ser a dos antropólogos J.
Adair e 5. Worth, que ensinaram aos navajos, aos jovens negros dos slums,
aos jovens brancos dos campi, como usar a câmara em suas comunidades
específicas, sem solicitar suas próprias representações ao técnico estranho. A
facilidade do aprendizado e o conteúdo dos resultados levou os dois
antropólogos a concluírem que “o homem ‘primitivo’ está capacitado a aprender
a compreender um quadro ou um filme em brevíssimo tempo”, na medida “em
que os universais da comunicação visual entram em jogo bem mais
rapidamente que os da

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27. Sol Worth, Antropologia radicale (cd. por Deli Hymes, Milão, Bompiani,
1979, p. 323).
28. Ibidem, p. 326: “A solução de criar um outro canal via cabo para eliminar o
limite intrínseco à transmissão do sinal televisivo foi de tal importância que
quem a elaborou dificilmente percebeu o que ela implicava para o conceito da
cultura. A invenção que mais do que todas era capaz de maximizar os níveis de
homogeneidade cultural foi criada para vender um dentifrício”.
29. Ibidem, p. 328.
Fim da nota de rodapé

Pagina 173

linguagem verbal”. A conclusão dessa nova didática fílmica, que se difunde


entre os excluídos não para cobrir espaços de mercado, é importantíssima na
medida em que quebra com a rigidez etnocêntrica da máquina de filmar,
reduzida a prótese da cultura ocidental que exclui as subjetividades
antagônicas: “Ao mesmo tempo, descobrimos que povos e culturas diversas
fazem os filmes diversamente. Quando são instruídos apenas na tecnologia da
câmara e do filme, tendem a estruturar seus filmes de acordo com as regras de
suas linguagens, da cultura e das formas míticas particulares (como no caso
dos navajos); ou segundo seus papéis sociais e atitudes culturais, como no
caso dos jovens brancos e negros de nossa sociedade”.

Numa perspectiva dialética, é radical a difusão da câmara para as “outras”


culturas que não a dominante, que se tornou agora produtora apenas de
opressões monocêntricas; esse objetivo supera a função etnográfica de
Malinowski, segundo a qual o observador da “outra” cultura deve se pôr do
ponto de vista do seu portador. Nesse outro modo, ao contrário, a
representação — e, portanto, também o conhecimento — da própria cultura
deve ser enfrentada também a partir do interior dos seus sujeitos específicos,
os quais, também desse modo, emancipam-se da condição de ser apenas
objeto de pesquisa social e de filmagens (fazendo passar por folclore o que é
cultura de massa). Embora não possamos deixar de considerar como
precursores desse objetivo os autores — como Flaherty ou Rouch —, que
buscaram romper os muros da alteridade instrumental. Eles, recusando-se a
conhecer o outro somente em relação à centralidade do si mesmo ocidental,
tenderam ao conhecimento do si mesmo analisando o outro, e, ao mesmo
tempo, ao conhecimento do outro analisando o próprio si mesmo. “Uma
etnografia da comunicação desenvolvida com base apenas na linguagem
verbal não é capaz de operar com sucesso sobre o homem, numa época de
comunicação visual. É necessário desenvolver teorias e métodos adequados à
descrição e à análise dos modos pelos quais os homens evidenciam
reciprocamente o próprio ser e o próprio modo de ser. É necessário
desenvolver também teorias visualísticas que

Inicio da nota de rodapé


30. Ibidem, p. 329. Observe-se a maior articulação em comparação com as
anedotas contadas por Balázs, que contêm um nível de verdade mais
epidérmico.
31. Ibidem, p. 329.
Fim da nota de rodapé
Pagina 174

completem as teorias lingüísticas e sócio-lingüísticas, a fim de descrever,


analisar e compreender o modo pelo qual é compreendido, ou não, quem
organiza seus próprios filmes de maneira diferente da nossa. Precisamente
como os antropólogos, no trabalho de campo, devem aprender a linguagem
verbal da população que estudam, do mesmo modo chegou para eles a hora
de iniciar a aprendizagem da ‘linguagem’ visual”.

É possível projetar um sistema fundado na autonomia das culturas que foram


subalternas, para favorecer formas visuais que não substituam as expressões
verbais e escritas, mas que sejam uma ampliação e um aprofundamento
dessas últimas, O interesse das jovens gerações pelo cinema não pode ser
heterodirigido para a libertação de um imaginário coletivo deformado por
séculos da civilização etnocêntrica, mas deve favorecer uma autodireção que
seja diversificada com relação aos modelos hegemônicos. Um resultado
interessante dessa prática está presente no relatório de Carpenter,33 segundo
o qual se produziram grandes transformações na Nova Guiné graças à
introdução desse tipo de cinema, fazendo-se com que, por exemplo, após a
filmagem de um ritual de circuncisão, as pessoas tenham resolvido abandoná-
lo e substituí-lo pelas imagens. Na Europa, onde estamos bem longe de abolir
as formas rituais e narrativas da cultura etnocêntrica ocidental, é possível
aspirar à difusão de um cinema “diverso” a partir de um processo de
autonomização daqueles que Adorno definira como os “sem-sujeito”, ou seja.
os excluídos da cultura dominante. E seria apenas cumplicidade esconder a
completa subalternidade da classe operária ou genericamente assalariada aos
valores dominantes, tanto no consumo da indústria cultural (talvez
precisamente por uma afinidade perversa obtida entre tempo de trabalho e
tempo livre) quanto na fixação de “filminhos” todos-em-família e todos-iguais,
onde se assiste a um desaparecimento da biografia, para não falar na ex-

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32. Ibidem, p. 333: “A visualística se interessa, antes de mais nada, pela
determinação e codificação dos elementos visuais no uso que deles é feito pelo
produtor de imagens; em segundo lugar, pela determinação daquelas regras
das formas simbólicas, visuais ou pictóricas, graças às quais um observador
infere significado a partir das representações e interações cognoscitivas dos
elementos em seqüência e em contexto” (ibidem, p. 345).
33. E. Carpenter, Television meets the stone age. Tvguide, 16.1.1971, pp. 14-
16. Cit. em S. Worth, op. cit., p. 335.
Fim da nota de rodapé

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tinção da consciência de classe. Para os jovens, o discurso é outro: na Itália,


onde o movimento de oposição criou formas de comunicação novas e
antagônicas, as dificuldades são enormes no que se refere ao cinema.
Especialmente para as gerações mais politizadas, sobrecarregadas por um
excesso de “ideologia” enfim a-histórico, tanto a partir de um ponto de vista
teórico quanto semiótico em sentido estrito. Nos Estados Unidos, ao contrário,
através da comparação de filmes rodados por jovens negros, brancos e
navajos, revelou-se um aprofundamento das diversidades culturais.
Singularmente progressista é o enfoque dos jovens negros: “Os teen-agers
negros querem estar no filme; desejam que o filme lhes diga respeito e
consideram que a importância do papel e do status deles na realização do filme
consiste na construção do enredo ou da história e em serem atores. Eles
disputam o papel de ator e quase nunca o do diretor ou do operador que filmar
as imagens. Parecem atribuir escassa importância e status a quem dirige o
filme; aliás, parece que o consideram um encargo temporário a ser cumprido
rotativamente, a fim de que todos possam aparecer na tela. Negligenciam, com
freqüência, a máquina de filmar, esquecendo que, de qualquer modo, alguém
tem de fazê-la funcionar.

Já para os jovens brancos, o filme refere-se sempre “aos outros”, o exótico, o


remoto, o distante: “Raramente apresentam o próprio espaço, a própria casa, o
próprio eu”35. Para Sol Worth, isso é amargamente “natural”: “Também os
antropólogos são famosos por estudar todos, exceto eles mesmos”.

Contra a ideologia do cinema etnológico, como sempre tão somente dirigido


para os outros — “danças exóticas” e “seios nus” —, deve-se afirmar um
cinema antropológico, que estude a nossa cultura em comparação com a
cultura global; somente uma reflexão sobre o nosso “si mesmo” em relação ao
“alter” pode permitir uma retomada não indolor de um cinema não mais
fisionômico nem etnocêntrico: um cinema que não exerça o controle do
ambiente simbólico por conta das classes hegemônicas, um ambiente que tem
dimensões tão importantes como as do ambiente físico, biológico e social.

Inicio da nota de rodapé


34. S. Worth, op. cit., p. 337.
35. Ibidem.
36. Ibidem, p. 338.
Fim da nota de rodapé

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Sobre o Autor

Massimo Canevacci nasceu em Roma no ano de 1942. Desde 1975 é


assistente de Antropologia Cultural no Instituto de Sociologia da Universidade
de Roma.

Publicou Dialética da Família e Dialética do Indivíduo, ambos traduzidos e


editados pela Brasiliense.

Impresso na Prol Editora Gráfica Ltda

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