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Antropologia do cinema.
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Leituras Afins
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Hollywood
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Michel Ciment
A Imagem – Tempo
Cinema 1
Gilles Deleuze
A Imagem – Tempo
Cinema 2
Gilles Deleuze
A Linguagem Cinematográfica
Marcel Martin
Sertão Mar
Glauber Rocha e a estética da fome
Ismail Xavier
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Massimo Canevacci
ANTROPOLOGIA DO CINEMA
Tradução:
Carlos Nelson Coutinho
2º edição
revista e ampliada
editora brasiliense
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ISBN: 85-11-22003-8
Primavera edição, 1984
2ª edição, revista e ampliada, 1990
Impresso no Brasil.
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Sumário
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historicamente. Por um lado, é necessário dilatar sua invenção temporalmente,
a fim de situar seus inícios no interior das formas mais arcaicas da cultura
humana; por outro, seu uso atual se expande sociológica e psicologicamente,
envolvendo vários estratos sociais, que não mais podem ser definidos somente
com base em inserções específicas nas relações de produção. Finalmente,
essa dilatação do tempo, no interior da dimensão histórica e pré-histórica da
humanidade, e essa expansão no espaço, no interior da dimensão psicocultural
da atual sociedade, têm canais subterrâneos de comunicação através dos
quais o passado consegue influenciar o presente. O homem sempre teve
necessidade de ideologias, desde quando — com a afirmação da consciência
de si — contrapôs-se à natureza e aos outros homens, a fim de exercer sobre
ambos sua própria dominação.
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exemplo, ao radicalismo dos “iguais” —, também eles foram postos fora da lei.6
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condições com base nas quais qualquer resposta dada não pode deixar de ter
uma forma ideológica.9 Isso significa que a ideologia não é determinada
somente pelo capital, a partir do momento em que — conquistado o poder —
ele tem de controlar o trabalho assalariado: ao lado dessa origem, sob ela e,
em parte, dentro dela, pode-se entrever como algo cada vez mais autônomo e
essencial a ideologia originária, ligada tanto aos modos de produção pré-
capitalistas quanto à mais ampla relação homem-natureza, que se realiza como
dominação sobre a natureza, sobre os outros homens e sobre o próprio si
mesmo, Os sedimentos mágicos, mitológicos e rituais dessa extensão da
dominação chegaram, com toda a sua carga subversiva-regressiva, até nossos
dias, transfigurados na e pela moderna ideologia.
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tomar em suas mãos o próprio destino. Ao contrário, isso não ocorreu e jamais
ocorrerá, porque as coisas são mais complicadas: qualquer pessoa de
escolarização recente é capaz de pronunciar uma filípica contra a manipulação
de massa com a mesma seriedade ritual com que outrora recitava o ato da dor.
E, todavia, a manipulação continua a se difundir hierarquicamente sem
obstáculos.
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10. M. TronO, Operai e capitale, Turim, Einaudi, 1966, p. 33. Essa análise é
interessante no que se refere à justiça da regressão ideológica do movimento
operário (“Marx não é a ideologia do movimento operário: é sua teoria
revolucionária”, p. 34); mas esquece de dizer que foi precisamente Lênin quem
usou o conceito (e não apenas a palavra) de ideologia em seu significado à
Destutt de Tracy, o qual se estendeu depois a todo o pensamento “terceiro-
internacionalista”. Em segundo lugar, esquece que a ideologia como
mistificação e justificação está presente tanto nas formas de produção pré-
capitalistas como no corpo da classe operária. Cf. Lênin, Chefare?, Roma,
Editori Riuniti, 1968, em particular p. 73 (cd. brasileira: Que fazer?, in Lênin,
Obras escolhidas, São Paulo, Alfa Omega, tomo 1, 1979), onde o editor, numa
nota de rodapé, na tentativa de solucionar a aporia leniniana, agrava-a ainda
mais.
11. Cf. o astucioso sucesso, com quatro Oscar, de um filme vulgar como Rede
de intrigas, que não casualmente realizou o verdadeiro objetivo para o qual fora
“imaginado”, com reapresentaçóes non-stop em todo o sistema de redes de
televisão norte-americanas, graças ao seu altíssimo “índice de audiência”.
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fazer com que se tornasse herança da esquerda “nova”. Tal afirmação é mais
reacionária — em seu determinismo positivista — do que as piores metafísicas,
as quais, pelo menos, continuam a se enganar na ilusão de que algo diverso
deverá de qualquer modo existir além dessa vida. Na era da comunicação de
massa, a ideologia perde aquela sua essência, que era característica de seu
significado e de sua função nos anos progressistas da burguesia, inclusive
graças à facilidade irrisória com a qual os mass media (em particular o cinema)
penetram na psique humana, posta na condição mais literal de espectadora.
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15. H. Marcuse, Eros e civilità, Turim, Einaudi, 1964, p. 97 (ed. brasileira: Eros
ecwüização, Rio de Janeiro, Zahar, 1968).
16. Ibidem. A citação de Freud é extraída de L ‘uomo Mosé e la religione mono:
eista, Turjm, Boringhieri, 1977.
17. Adorno-Horkheimer, Dialettica dell’Illuminismo, Turim, Einaudi, 1966, p, 247.
A citação é exemplificativa das pesquisas sobre o anti-semitismo e o
autontansmo, que haviam imposto a necessidade de ter de “sair” também da
sociedade contemporânea para compreender a origem dos mesmos.
18. Ibide,n
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lógico ou biopsíquico no interior da pesquisa social (reflexos, secreções,
hábitos corporais, remoções orgânicas, representações individuais e coletivas
inconscientes e não só conscientes) —, afasta-se dela substancialmente, na
medida em que restringe a dimensão histórica a um só nível e a exclui da
dimensão sociológica e psicofisiológica. É o limite do estruturalismo, jamais
resolvido, que anula o ponto de vista da transformação consciente quase como
se a tarefa das ciências sociais fosse fazer com que o indivíduo e o coletivo
aderissem à aceitação das estruturas inconscientes. Ao contrário, a dimensão
histórica ou diacrônica está presente — ainda que com tempos e modos
diversos — nos três níveis.
Do que foi dito, deduz-se que também para o cinema — máximo produtor de
ideologias mercantilizadas do século XX — vale a regra segundo a qual não
pode ser explicado nem no interior do sistema “cinema” (do cinema ao cinema,
através do qual se chegaria a nada menos do que o imaginário coletivo), nem
como desmascaramento inteiramente “politizado” das ignomínias executadas
em favor do sistema dos partidos (da política ao cinema), nem como recorrente
hipervalorização da “crítica da economia política”, que se ilude em poder
explicar o cinema através do simples desmascaramento das escolhas seletivas
do investimento pelo sistema de produção fílmica, como qualquer outra
atividade produtiva (da economia ao cinema). A estética no cinema — que
outrora, em seus melhores momentos, tentou uma síntese entre autonomia
fílmica, política progressista, crítica ao oligopólio das major companies — foi
reduzida ao “me agrada” ou ao seu contrário, “não me diz nada”, como afirma o
público distraído dos museus. A isso se reduziu o debate que teve lugar sobre o
“belo”: os profissionais da morte da arte, mal-entendida como apologia da
morte da “aura” e vitória da reprodutibilidade, acreditam ter de orientar os seus
“patroci-
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23. Um exemplo, para esse último caso, pode ser organizar a superação da
seleção que premia as mulheres que têm filhos.
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ramo. A crítica deve relaxar, e não ser muito exigente; assim, será possível sair
da crise cíclica sem rupturas e do modo já conhecido: com o fortalecimento dos
fortes.
Na refundação da crítica pode-se inserir a abordagem antropológica. Uma
antropologia filmica. O cinema deve ser reconsiderado globalmente, não
apenas em relação à conexão canônica estrutura/superestrutura, mas também
em face da terceira dinâmica, a hipo-estrutural. A triplicação dos planos
materiais remete à dialética que deve ser constituída — para cada filme, assim
como para o cinema em seu conjunto — entre: 1) estrutura do indivíduo e
estrutura da espécie; 2) composição de classe e composição de natureza; 3)
sistema de produção de valor e das mercadorias-ideologias.
A crítica antropológica, portanto, deve produzir uma síntese entre: 1) a crítica
interna às leis de movimento próprias do seu conceito de cinema, na
consideração da especificidade de suas técnicas, de sua morfologia estética24
e de sua produtividade de valor; 2) a crítica externa a todo não-cinema, tendo
em vista a reconsideração global de qualquer forma de expressão e sucessivas
ritualizações, incluindo o modo de vida cotidiano; 3) a crítica ao implícito, que
tem como referência particular, mas não exclusiva, a dinâmica hipo-estrutural.
Com esse termo, entende-se mais detalhadamente aquele complexo
hereditário, tanto biologicamente (no terreno dos instintos, das pulsões, do
inconsciente) quanto culturalmente (no terreno do comportamento vivido mas
não conhecido, cuja história é subterrânea, oculta entre as dobras do indivíduo,
da espécie e da história oficial). Ignorada pela dialética tradicional, essa
torrente hipo-estrutural tende constantemente a escapar do implícito e a impor
sua existência “pública” de modo cada vez mais dramático.
A crítica do cinema, como dialética entre uma nova sociologia da natureza e
uma nova antropologia da sociedade, deve explicar as formas — mediatizadas
histórica e ecologicamente
— da composição de classe e da composição da natureza, de
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identidade perversa, entre o ser humano e o ser das coisas. Desde sua origem,
as imagens pretenderam não apenas capturar, mas também ser a realidade. A
duplicação que o cinema produz
— capturando a consciência do espectador — deve ser interpretada a partir da
função originária exercida pela mimese, a qual, por assim dizer, refloresce em
todo filme singular. Também por isso, a ideologia do imaginário fílmico — como,
por bondade da lingüística, algo que é derivado do mesmo étimo “imagem”,
que caracteriza o filme e o seu duplo — é o último slogan adequado à
massificação escolarizada.
Toda mimese é uma tentativa de anular a cisão originária; e as imagens foram,
sempre, o instrumento da mimese para realizar sua ‘paixão”. Nas máscaras
funerárias dos reis de Micenas de dezesseis séculos antes de Cristo Centre as
quais a do célebre falso Agamênon), feitas com uma fina folha de ouro aplicada
à face do rei recém-morto, a fim de capturar através de uma mimese áurea a
imagem eterna a do indivíduo e subtrai-la à decomposição, fundem-se apesar
da imobilidade, que, de resto, já está presente em todo fotograma fixo — o
espírito e a técnica, a estrutura e a função, o significante e o significado, que
serão próprios, mutatis mutandis, da era das tecnologias reprodutíveis. A
atração que o fato de aparecer em um filme exerce — uma atração que
envolve aristocratas e proletários, burgueses e intelectuais — não deriva tanto
da sofisticação do desejo de se tornar momentaneamente público, mas da
crença de alcançar a imortalidade. Por isso, com justiça, o astro e a estrela são
assim chamados, e deles se diz que as obras (os filmes) lhes sobreviverão. E
esse é também o significado profundo de toda “identificação” do espectador,
enquanto transmissão e captura de papéis imortais.
O público dos espectadores é esmagado num status filo- genético e não resiste
à mimese conjugada com a rey’icação. Ele não é apenas reprimido numa
condição interciassista que prescinde de sua relação real com a produção;
porém, de modo mais profundo, sofre uma homogeneização enquanto espécie,
que elimina como supérfluos os resíduos da biografia.25 Em todo
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filme, repercorre-se — no interior da psicologia, da natureza e da cultura do
espectador — toda a história das mimeses humanas, desde as objetivações
icônicas arcaicas até as inquietantes holografias feitas com laser, que
reproduzem toda a tridimensionalidade em movimento do corpo humano. O
mais agudo dos críticos não consegue deixar de se envolver — apesar de sua
extrema malícia e desencanto — pelo terror evocado pelo filme “de horror”, que
continua a derrubar todas as barreiras de defesa, tanto do indivíduo como do
público, precisamente através do encanto mimético da representação.26
Já na era da livre concorrência, o Espírito Absoluto se revelava aos olhos da
crítica como versão idealista do Capital Absoluto. A expressão de Marx é muito
menos metafórica do que habitualmente se crê. O capital, com efeito, pode se
constituir enquanto tal e como “governo” somente se se colocar como
universal. E, para se organizar nessa dimensão, é fundamental — como vimos
— a ideologia, cuja finalidade consiste em universalizar a particularidade de
classe do próprio capitalismo, e que, nesse movimento, realiza a perfeição que
lhe faltara nos estágios precedentes. Desse modo também a mimese mítica
dos reis micênios era ideológica, na medida em que pretendia fazer passar
como algo dado a reconciliação entre particularidade contingente do indivíduo
(contanto que seja rei, de onde resulta o caráter arcaico da ideologia) e a
universalidade do Tempo e da Morte. A essência desse momento ideológico
consiste em expor a representação do cadáver como algo imortal através do
seu decalque em ouro. Ao contrário, na fase revolucionária da burguesia, a
relação entre Espírito e Capital colocou-se como conflito pela hegemonia em
face de dois diferentes modos de organizar tanto a produção como o conjunto
dos valores humanos. Conflito que cedo se resolveu em um pacto, formalizado
do ponto de vista do vencedor, que fez do Espírito o melhor aliado
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mente pertence, mas também uma pressão pulsional e ritual que submete o
mesmo espectador a uma dilatação intra-específica.
26. Essa impotência constitucional está presente na conhecida tese
introspectiva de Adorno, segundo a qual, “depois de qualquer projeção
cinematográfica, percebo, ao retornar, que, apesar de toda a vigilância, tornei-
me mais estúpido e pior”. Não saber resistir ao mecanismo psicofílmico do tipo
horror é uma experiência que me foi confiada também por alguns dos autores
cinematográficos mais preparados e sensíveis.
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O cinema é mimese que retorna não sob forma “eterna”, mas como
reprodutibilidade técnica e espiritual, que mantém em seu interior a memória do
passado mais remoto.
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“Aliás, uma tradição pretende que foi precisamente no Largo de Castelo que
aquele pregador, abandonado pelos seus ouvintes em troca de um polichinelo,
teria exclamado, mostrando o crucifixo, as famosas palavras:
‘Aqui, aqui, este é o verdadeiro polichinelo!’”.
B. Croce
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ma dos mortos, segundo a opinião antiga, são feitos de matéria sutil como um
sopro de ar, ou uma fumaça, assim também para os alquimistas o spiritus
significa uma essência sutil, volátil, ativa e vivificadora, tal como, por exemplo,
eram concebidos o álcool e todas as substâncias arcanas. Sobre esse plano, o
espírito é espírito de vinho, espírito amoniacal, fórmico, etc.” (3)
Finalmente, para a moderna ciência produtiva dos media, ele se torna filme; e,
com efeito, involuntariamente, o mesmo Jung nos dá uma preciosa definição de
cinema: “Conforme a sua primitiva natureza de vento, o espírito é sempre
essência ativa, alada e móvel, que vivifica, estimula, excita, inflama e inspira.
Para usarmos uma expressão moderna, o espírito é dinâmico, constituindo
assim o clássico oposto de matéria, isto é, de sua estaticidade, inércia e
ausência de vida. Trata-se, em suma, do contraste entre a vida e a morte”*(4).
E ainda: “Ao ente espiritual, pertence em primeiro lugar um princípio
espontâneo de movimento e de atividade; em segundo, a propriedade da livre
criação de imagens para além da percepção dos sentidos; em terceiro, a
autônoma e soberana manipulação das imagens” .
A potência desse fluxo não se esgota na sala ritual, mas se estende tanto no
modo de vida explícito e implícito das dimensões sociais e culturais, quanto na
profundidade da dinâmica intra-individual. Ele primeiro inibiu, depois pôs a nu a
especulação filosófica, ironizou a meditação teológica, confundiu a práxis
histórico-materialista; finalmente, resumiu numa nova síntese a antropologia
tardo-burguesa: é a ideologia reificada e luminosa.
A tela do cinema é um véu de Maia que esconde por trás de si o fato de que
não há nada a esconder, a não ser a potência mimética da repetição. A
repetição do igual como conteúdo do
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cinema é assim arrebatadora e transcendente, na medida em que reformula em
termos modernos um enigma constante, que a humanidade sempre arrastou
consigo e que sempre atualiza: como a potência da monotonia consegue aliar-
se com aquela “zona” que Freud situou além do princípio do prazer. a questão
da tendência à regressão inorgânica como essência do prazer, que porém —
diferentemente das hipóteses freudianas — não pode ser declarada imutável,
como
Também Hegel — ainda que em sua construção idealista, a qual, porém, está
mais perto da verdade do que muito estruturalismo — afirmava que “o espírito
é o eterno voltar a si através da negação da negação”.8 Assim, o “espírito” do
cinema põe em movimento a síntese entre o eterno retorno do inorgânico, para
além do princípio da história, e a reificação reproduzida monotonamente, para
além do princípio do prazer. É a reificação orgânica.
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Ocorrera que não havia compreendido o filme, já que não conseguia apreender
o desenvolvimento da ação narrativa sob forma visualizada, o que qualquer
criança da cidade era capaz de fazer sem esforço.
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“Um dos meus amigos moscovitas me contou o caso de sua nova empregada,
que chegara à cidade pela primeira vez, vinda de um colcós siberiano. Era uma
jovem inteligente, freqüentara a escola com proveito, mas — por uma série de
estranhas circunstâncias — jamais vira um filme. Seus patrões mandaram-na
ao cinema, onde se projetava uma comédia popular qualquer. Voltou para casa
palidíssima e abatida. ‘Gostaste?’, perguntaram-lhe. Ela ainda estava
emocionada, e, por alguns minutos, não conseguiu emitir nem uma sílaba.
‘Horrível’, disse finalmente, indignada. ‘Não consigo compreender por que aqui
em Moscou permitem que se assistam a tantas monstruosidades.’‘Mas o que
viste?’, retrucaram os patrões. ‘Vi’, respondeu a moça, ‘homens feitos de
pedaços: a cabeça, os pés, as mãos, um pedaço aqui, um pedaço ali, em
lugares diferentes.”6
Em nossa civilização, não mais levamos em conta “o complicado processo de
adaptação que foi necessário à consciência para se familiarizar com a
sucessão visual. Tratava-se, em substância, de recompor na consciência
imagens decompostas em seus elementos singulares e vistas em sucessão
temporal, que lhes dava unidade e continuidade”. Em pouco tempo, firmou-se
uma nova cultura visual.
“Hoje”, conclui Balázs, “não sabemos mais nem mesmo como foi possível
aprender em poucos anos a linguagem das imagens, e reconhecer as
perspectivas, as metáforas e os simbolos das imagens.”7
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22. Cf. o já citado livro de Kerényi, Miti e misteri, assim como a obra de E.
Rohde, Psiche, Bati, Laterza, 1970.
23. Kerényi, op. cit., p. 148.
24. O significado etimológico da palavra entusiasmo está em en-tousiasmos, ou
seja, numa forma que, “como todas as religiões místicas, busca fazer todo seu
o seu deus”, razão por que “a alma que escapa do corpo se une á divindade.
Agora ela está em, está dentro do deus”; o que “foi tomado está entheos, vive e
no deus” (E. Rohde, Psiche, op. cit., p. 355).
25. E. Rohde, op. cit., p. 356. Desse modo, pretendia-se explicar aqueles
fenômenos fora do comum, nos quais a alma dos “obcecados” não estava mais
“em”, mas sim “fora” do seu corpo. E, originariamente, os gregos queriam dizer
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No curso de toda a missa, o olhar assume uma função central na divisão entre
sacerdote e fiéis que estende a divisão do trabalho manual e intelectual àquela
entre quem olha e quem é olhado —, numa relação a dois feita de oposição e
de convergências, de acordo com as fases do rito, mas sempre com uma rígida
subordinação dos últimos ao primeiro. E também toda a estrutura interna da
igreja é construída segundo uma ordem precisa, de modo a encaminhar e
predeterminar os fluxos dos olhares: em particular, o “palco” onde ocorre a
representação sagrada é bem separado da “platéia”, onde se organiza a
participação cada vez mais passiva num rito transformado em espetáculo, com
tudo previsto num roteiro recitado infinitas vezes. Bem diverso era o espaço
reservado aos espectadores no teatro ático, onde a forma concêntrica e em
arquibancadas os elevavam a um status onde o olhar podia se espraiar, como
dizia Nietzsche, por “todo o mundo cultural que lhe estava em volta”. O
espectador católico, ao contrário do espectador trágico, sofre uma mutação que
o torna progressivamente cada vez mais passivo em face dos efeitos miméticos
e de ensimesmamento “entusiástico”. Torna-se um “fiel”, ao contrário do
coreuta, o qual — ao sair de si e atingir o deus — habitua-se, geração a
geração, a ser esmagado pelo poder divino e por aquele de quem o representa.
A missa não mais permite a mimese, mas a aceitação pública da subordinação
do espectador laico com relação à histeria já pré-selecionada. O católico não
se identifica com o padre oficiante, mas sofre a danação da condenação da e
na própria carne, até o momento da absolvição segura na confissão, premissa
a uma igualmente inevitável danação.
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33. Diz Nietzsche: “Põe algo em foco para que reste na memória: apenas o que
não deixa de fazer mal continua na memória. Esse é um axioma da mais antiga
(e, infelizmente, também da mais longa) psicologia da terra” (Genealogia deila
morale, Milão, Mondadori, 1979, p. 44).
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Mas esse escândalo tem uma razão interna ineludível, que tem uma rigidez
simétrica à liturgia. “Defendendo o caráter cênico da dramaturgia religiosa em
si, dos mistérios medievais, das representações sagradas do século XV, a
missa tridentina constitui essencjalmente o espetáculo da morte presente de
Cristo. Se
missa ortodoxa é sobretudo uma iniciação mistérica, e a ceia
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35. Padre Juglaris, Christus, hoc est Dei homini elogia, Lugdunj, 1642, cit. em
A. Fontana, “La scena”, in Storia dita/ia, op. cit., p. 807.
36. A. Fontana, op. cit., p. 806.
No original, há um jogo de palavras com “messa in scena”, que pode ser tanto
“encenação” como “missa em cena”. (N. T.)
Ibidem, p. 848. “Mas o belo é que — escrevia P. P. Vergerio em 1582 — aquele
evangelho da paixão é representado na forma de um palco”. Citado na p. 806.
Ainda em 1565, recorda A. Fontana em seu belo ensaio, “no primeiro sínodo
mi-
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O “mistério do quarto”
Essa dialética passado-presente que se produz no curso da missa (e, para nós,
também do filme) foi compreendida por
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38. Ibidem.
39. Ibidem.
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Ou seja: a missa tem a função de ligar a psique de quem dela participa com o
arquétipo; por isso, poucos conseguem resistir ao fascínio de seu rito (ainda
que estejam presentes passivamente) De importância central é o conflito entre
o Bem e o Mal, que passa do pensamento simbólicoreljgjoso — com um
maniqueísmo ainda mais absoluto — para o cinema. Diferentemente da
linguagem literária — à qual pertencem a introspeção psicológica, as
problemáticas do absurdo ou da angústia —, o cinema não enfrentou (a não
ser como exceções) as grandes questões da crise de civilização que
atravessamos, com a formação crítica adequada de um tipo antropológicoradj
em parte por causa da especificidade de sua linguagem e, em parte, porque
simplesmente não interessa. A máquina de filmar era e é etnocêntrj e o centro
em torno do qual gira a representação filmica é a civilização patriarcal cristã-
burguesa sob condições reificadas mesmo quando por trás das câmaras está o
“dialético” Eisenstein ou o olho “maoísta” do “Destacamento Vermelho
Feminino”. É difícil dizer com precisão quais são os componentes estruturais
internos ao medjum específico (sua forma lingüística que predetermina OS
conteúdos), ou, ao contrário, quais são os componentes de tipo cultural ou
hipo-estrutural; mas, certamente, não se pode afimar que a constância com a
qual a problemática gira em torno das questões do Bem e do Mal seja redutível
apenas ao aspecto técnico do ato de fazer cinema. A insuficiência da reflexão
certamente importante, mas não explica suficientemente a dialética dogmática
dos brancos cavaleiros teutônicos contra os negros soldados da grande
Rússia, ou a fisionômica mais vulgar na representação do contraste amigo-
inimigo. A concepção de tipo lombrosiano do herói e do seu antagonista
unificou todos os grandes diretores (além, natu-
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Deus, tal como é descrito no Velho Testamento, no segundo dia, depois de ter
criado as águas inferiores e superiores, não disse, como nos demais dias, o
que era bom: “e não o disse precisamente porque, no segundo dia, Deus teria
criado o Binarius, o número dois, a origem do mal”43. Desse modo, segundo
Jung,
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não há mais dúvidas sobre o fato de que “de vida comum não respiram apenas
o Pai e o Filho luminoso, mas também o Pai e a criatura tenebrosa”. Por isso, é
necessário combater o “reino do pensamento trinitário”, reconstituir a justa
relação entre Cristo e o Diabo, e restabelecer sua relação originária de
“opostos equivalentes”. A antítese entre eles deve representar “um conflito
levado ao extremo e, com isso, também uma tarefa secular para a
humanidade, até aquele ponto ou aquela virada do tempo em que bem e mal
começam a se relativizar, a se colocar em dúvida, e eleva-se um grito dirigido a
um para além do bem e do mal”.
Esse objetivo, sempre segundo Jung, não é possível na era cristã, na medida
em que a aceitação do mal numa “relação lógica com a Trindade” provocaria
conflitos demasiadamente violentos. Todavia, conserva-se a verdade, que é
pretendida pelo símbolo da especulação religiosa, não mais — e nem mesmo
Jamais — em forma trinitária, mas sim segundo o modelo desta formação
quaternária;
Inicio da imagem
Fim da imagem
Diz Jung: “Quando Deus revela seu ser e se torna algo determinado, ou seja,
um homem determinado, então seus contrários devem se cindir: aqui o bem, lá
o mal. Assim, os contrários latentes na divindade separaram-se na geração do
Filho e se manifestaram na antítese Cristo-Diabo”
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monta bem mais profundamente às memórias arcaicas e estratificadas das
ritualizações) e uma simbólica do espírito (cuja definição pertence à reação
psicanalítica e mitológica fundada sobre o arquétipo, sobre a remoção
“civilizada” do mistério do quarto excluído: a dupla oposição entre Diabolus e
Filius e entre Pater e Spiritus). Esse sistema quaternário determinou os
modelos de vida mais profundamente do que muita cultura “culta”, oficial ou
implícita (costume). O problema que nos colocamos é saber como interpretar a
singular correspondência entre elementos aparentemente tão diferentes e tão
distantes entre si (cinema e espírito), para compreender que enigma de
civilização se oculta por trás dele. A cruz de quatro figuras elaborada por Jung
transforma-se numa espécie de peneira hipoestrutural, que filtra e especifica
questões de ordem antropológica, relativas às crises cíclicas da economia
política quanto à repetição simbólica dos ciclos da natureza; tanto aos valores
da cultura pós-industrial (de elite, de massa e popular) quanto ao sistema
simbólico e inconsciente, em conexão não somente com os modos de vida,
mas também com o “retorno” das pulsões recalcadas tanto em manifestações
sociais como inter e intra-individuais. Os sistemas rituais têm uma dimensão
filogenética, não apenas ontogenética. Talvez essa peneira hipo-estrutural
consiga derrubar aquela máscara rígida (mas, apesar disso, expressiva) que
oculta as muitas repressões filogenéticas unidas e distintas das historicamente
determinadas pelo modo de produção, que “retornam” ou continuam a
reproduzir-se em nosso modo de vida cotidiano.
Inicio da imagem
Fim da imagem
Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
espacial, ponta direita: Hal (computador). De baixo para cima, Terra e Ciência e
técnica.
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2) Ivan, o Terrível
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Fim da imagem
Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Ivan, ponta
direita: Boiardos. De baixo para cima, Mãe Rússia e Estado.
Inicio da imagem
Fim da imagem
Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Luke, ponta
direita: Darth Vader. De baixo para cima, Leia e A força (obi).
4) Cidadão Kane
Inicio da imagem
Fim da imagem
Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Kane, ponta
direita: Política/ Capital. De baixo para cima, Rosebud (Infância) e Poder.
5) A mãe
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói (não-
consciente), ponta direita: Czarismo. De baixo para cima, Mãe Revolução e
Proletariado.
6) O encouraçado Potiômkim
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Marinheiros,
ponta direita: Oficiais/Padres/Fardas czaristas. De baixo para cima, Revolução
e Povo.
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7) WaltDisney
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Mickey,
ponta direita: João Bafo-de-Onça. De baixo para cima, Minnie (casa e família) e
Ordem (Coronel Garcia).
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
(Lumpen), ponta direita: Capacetes. De baixo para cima, Portorriquenha e O
poder da Gang.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói “a-
normal”, ponta direita: Sul/Normalidade. De baixo para cima, Moto-Estrada e
Prazer (sexo-droga-rock).
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
“normais” meninos, empregados, ponta direita: Incredulidade. De baixo para
cima, Imortalidade e Ciência e técnica.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
soldado, ponta direita: Índios. De baixo para cima, Mulheres-Fé-Amizade
Natureza e EUA (oeste).
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12) 1900
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
proletário, ponta direita: Anti-herói burgûes. De baixo para cima, Natureza
(campo) e Estado italiano.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Homem,
ponta direita: Falo. De baixo para cima, Mulher e Sexo.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
guerrilheiro, ponta direita: Nazistas. De baixo para cima, Mulher e Antifascismo.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Heróina,
ponta direita: Patrão. De baixo para cima, Consciência de classe e Comunismo.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Birkut
(pedreiro), ponta direita: Burocracia. De baixo para cima, A diretora e
Comunismo real.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Macho,
ponta direita: Hetaira. De baixo para cima, Eros e Tânatos.
18) o franco-atirador
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Caçador
soldado, ponta direita: Vietcongue (roleta-russa). De baixo para cima, Amor viril
e amor homossexual e Pittsburgh.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Ator
(bailarino), ponta direita: Som. De baixo para cima, Música-Dança e Cinema
(show).
20) Hair
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Hippie,
ponta direita: Pessoas Caretas. De baixo para cima, Sexo-Droga-Rock e
Guerra.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Joe, ponta
direita: Droga-Édipo. De baixo para cima, Mater (melodrama) e Pater.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Colegial,
ponta direita: Diretora. De baixo para cima, Motanha (fálica) e Estúdio.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Maestro,
ponta direita: Orquestra. De baixo para cima, Caos e Cosmos.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Klein, ponta
direita: Anti-semitismo. De baixo para cima, Raça e Classe.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Casal
“homo”, ponta direita: Casal “hetero”. De baixo para cima, Familia e Sociedade.
26) Rocky
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Rocky,
ponta direita: Campeão “pró”. De baixo para cima, Boxe e Hiererquia.
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27) A noite dos mortos-vivos
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Vivos, ponta
direita: Mortos. De baixo para cima, Natureza e Polícia.
28) Popeye
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Popeye,
ponta direita: Brutus. De baixo para cima, Olívia e New Deal.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Anto-herói,
ponta direita: Custer. De baixo para cima, Cheyenne e EUA (Oeste).
30) Ecce Bombo
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Estudante
Roma-Norte, ponta direita: Pai-A.Sordi Tédio-Vanguarda. De baixo para cima,
Cultura “de esquerda” e Comédia à italiana.
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Descrição: cruz com uma palavra em cada ponta. Ponta esquerda: Herói
camponês, ponta direita: Pecado. De baixo para cima, Fé Esperança Caridade
e Deus.
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Este esquema resume de modo eficaz (em sua interpretação invertida, decerto,
e não ortodoxa) a crise antropológica de civilização que a forma cinema revela
e reproduz nesse modo de produção. A monotonia do caráter dos personagens
quaternários consiste na reproposição de uma estrutura prototípica, no interior
de aparência de mudança num sistema de variações quantificáveis e
intercambiáveis ad infinitum.
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ÉDIPO (esquema Q 1)
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MEDÉIA (esquema Q 2)
Morfologia antropológica “quaternária e hipo-estrutural”
(um sistema de duplas oposições binárias cruzadas)
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(Esquema final n° 3)
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Desse modo:
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1) para todo cidadão Kane que morre, as últimas palavras não serão dedicadas
à nostalgia da infância perdida, mas ao capital que escapa juntamente com a
vida (cf. n 4);
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13) as virtudes cardeais de Olmi (Q 13) são a outra face do pecado; como se
sabe, vícios e virtudes têm uma sagrada e sádica tradição em comum;
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Pagina 76 – Em branco
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O gênero
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A cisão estratificada entre cinema “sério” e cinema “leve” tem a mesma função,
no plano da qualidade socialmente mascarada, que a da programação em
salas de “primeira” e de “segunda” exibição, no plano da quantidade. Falar de
“gênero” no cinema só tem sentido se se usar a categoria única da
estandardização: “Para todos é previsto algo, a fim de que ninguém possa
escapar: as diferenças são cunhadas e difundidas artificialmente, O fato de
oferecer ao público uma hierarquia de qualidade em série serve apenas para a
quantificação mais completa. Cada um deve comportar-se, por assim dizer,
espontaneamente, de acordo como seu levei determinado previamente por
índices estatísticos, e dirigir-se para a categoria de produtos de massa que foi
preparada para seu tipo. Reduzidos a material estatístico, os consumidores são
distribuídos, no mapa geográfico da administração dos estúdios (que não mais
se distinguem das agências de propaganda), por grupos de renda, em campos
vermelhos, verdes e azuis”.
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O Sucesso atrai o sucesso Não se pode deixar de assistir àquele filme que
bate recordes de bilheteria. Mas a análise não pode parar no registro desse
dado, já que precisamente ao assitir ao campeão de bilheteria — descobrese
que filmes como Guerra nas estrelas ou Contatos imediatos falam de um
assunto tratado infinitas vezes, desde o tempo do primeiro diretor “imaginário»,
G. Méliès com uma única modificação: a tecnológica Esta última aparece como
histó,co adequado ao nível do conhecimento cientffico dado como socialmente
compreensível e normalmente muito menos “aventuroso de qualquer manual
de introdução à física contemporânea A diferença de qualidade entre esses
dois filmes consiste apenas no uso, por Spielberg de uma câmara cujos
movimentos são progra05 por um computador somente (pelo menos, por
enquanto) no clímax Todo o resto é há muito E vale também para filmes mais
empenhados, como o 200j de Kubrick: o seu sólido “metafísico» o slogan “use
a força”, a paz externa “extraterrestre são o triunf0 do idêntico Seu “truque”
mais refina do não consiste, decerto, nos modelos espaciais, mas sim na
utilização do “carecimento de religião» de modo tecnicamente novo para
ressaltar na “alma” dos especdores o conceito de que, mesmo numa hipotética
sociedade pósrevolucionái os problemas seriam sempre os mesmos e o da
imortalidade estaria em primeiro lugar. Mas é justamente o cinema, enquanto
mediação entre indústria e natureza que se torna indestível e imortal A esse
“truque» não resiste sequer o Cidadão Kane de Orson Welles, ainda que ele
apareça aqui “laicizado». apesar de todos os seus movimentos de câmara
“ilegais”, não pode deixar de construir o enredo do filme sobre o mistério de
Rosebud como verdade profunda do Poder (e não apenas do poder da im-
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As salas dos cinemas de arte não só não escapam desse destino, mas
continuam a proliferar para sofisticar e completar até a utopia do esgotamento
a rede de distribuição, a fim de que cada vez menos espectadores escapem
aos vários “circuitos”.
O número médio dos elementos de dramatização é aquele e não pode ser
tocado, a não ser no caso de investimentos crescentes de capital para efeitos
especiais, número de stars ou paisagens exóticas. A seqüência bem conhecida
de pontos altos no intetior do enredo, até chegar à conclusão ultraprevista, tem
o mágico e regressivo poder de fazer sentir dentro do espectador a
reconfirmação dos modelos de comportamento social- mente permitidos. Com
relação ao possível “final”, a implacabilidade substituiu a inelutabilidade, desde
que o bappy end entrou em desuso, porque socialmente muito comprometido.
O filme estratificado é interior ao gênero cinema; e esse, por sua vez, distribui
privilégios, prêmios, discriminações, gratificações, entre todos os seus produtos
(de arte, de massa, de ficção científica, para crianças, para a natureza e para a
indústria, etc.), segundo a lei fundamental da produção que reduz o
heterogêneo, o belo, o qualitativo a grandezas abstratas, a fim de traduzi-los de
modo domesticado na certeza do direito.Sabe-se que as equações que
regulam a justiça burguesa foram extraídas da — se não “inspiradas” pela —
troca das mercadorias no mercado. A quantificação do equivalente, do justo
salário para um número determinado de horas de trabalho, torna démodée a
própria expressão “filme de autor”, conferindo-lhe um verniz forte e heróico,
como que para evocar os irmãos Lumière. O filme mais “révolté” é uma idéia
nova para a indústria cinematográfica, que pode se revelar um bom negócio,
como Sem destino (Easy rider); e mesmo o filme mais ignóbil pode fazer uma
bela figura na Mostra de Veneza.
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Ao público não ingênuo, deverá mais uma vez ser fornecida a diferenciação
culinária e funcional, em relação direta com a estratificação “espiritual” das
consciências, para domá-lo e reificá-lo. Já para o público popular e distraído,
tudo é mais simples, porém também mais custoso.
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mente as próprias películas sob seu controle, a fim de que não percam aquelas
tonalidades mediterrâneas filmadas na aurora — como em O recital (que
nenhum “filtro” pode recriar). Para ele, a montagem e o plano-seqüência
dissolvem as categorias centrais da era moderna — o espaço e o tempo —,
tornadas cientificamente repressivas com o a priori, e realizam um conteúdo
formal sintético, onde os fluxos temporais dos planos-seqüências contêm em
seu interior, sem solução de continuidade (cortes de montagem), os fluxos
espaciais, numa dialética entre mito e história, passado e presente. O mito
retorna; ele não se resolveu na epopéia, nem foi superado pela racionalidade
técnico-científica. Para eliminar a causa originária da sua alienação, o gênero
cinema deveria se tornar consciente de sua própria funcionalidade em relação
ao retorno reificado do idêntico, em vez de ser seu dócil instrumento.
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AntropomorfiSmo, fisionômica, cinecentrismo
O híbrido fílmico
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Agora que os vícios humanos não são mais projetados nos deuses — que,
todavia, podem continuar a ressurgir na forma metafórica do sólido euclidiano,
em Uma odisséia no espaço, ou na forma animista do dedo infantil, em O
iluminado (Shining) —, nem a angústia do incognoscível é projetada em Deus,
o robô e o hotel Overlook de Kubrick aparecem como nova válvula de escape
para canalizar as “inconfessáveis” questões da humanidade. Dizia ainda
Xenófanes: “Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que para os
homens é opróbrio e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas”.
Agora que os deuses estão démodés e que a epopéia foi substituída pelo
cinema, são as máquinas que sofrem a antropomorfização e se tornam objeto
da projeção dos vícios humanos:
seu espelho e sua tela. E nunca como nesse caso se revela de modo tão
evidente a não-libertação que essa projeção produz: e que — ao contrário —
continua a servir como ambígua socialização mitológica da relação entre
ciência e mito, técnica e fé. O antropomorfismo, em sua nova veste de “ficção
científica”, envolve o esplendor da tecnologia, e, ao mesmo tempo, esta última
regride ao animismo mais datado. Pouco importa à incessante progressão
tecnológica do cinema que o computador HAL, de 2001 (numa sutil alusão à
IBM, na medida em que o nome HAL antecipa cada uma de suas letras) não
seja mais do que uma repetição da conhecida história do Golem, transferida
pelo cinema sintético para o robô. A crueldade do homem deve continuar a ser
projetada em outro que não ele durante todos os séculos futuros. Nem mesmo
a inteligência de Kubrick consegue evitar o risco de todo filme de ficção
científica (de Méliès ao AIphaville de Godard, aos andróides de Lucas, até
Spielberg, que antropomorfizou tudo, primeiro um caminhão, depois um
tubarão e, finalmente, os discos voadores): a antropomorfização da máquina
cibernética, que exerce a mesma função outrora paradoxalmente exercida
pelas potências naturais divinizadas.
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sob a tradicional culpabilização de um bode expiatório, que, nesse caso, são as
máquinas. O robô, representante de uma subjetividade “débil”, preenche a
mesma função que foi a dos golem ou dos reds, e, em geral, do não-idêntico. A
ideologia antropomórfica de HAL é idêntica à da lua ingênua de Méliès. As
reflexões fí1micoantropológi15 não avançaram desde o dia dos primeiros
aparecimentos cinematográficos. Na trilha de Homero, também Kubrick pode
continuar a projetar “vergonha e lamentação” num terreno extra-humano, de
modo a que não se possam resolver as causas dos vícios etnocêntricOs: aos
deuses com olhos azuis e cabelos vermelhos, sucedem-se as luzes coloridas e
intermitentes dos computadores. 1-IAL é filmicamente “individualizado”: por
uma luz vermelha, como o olho único do ciclope. Se a análise da mitologia é
importantíssima para a compreensão da cultura grega, igualmente importante
se torna a análise antropológica das “projeções” fílmicas nas modernas
máquinas cibernéticas para a compreensão do atual modo de vida. Com efeito,
a analogia entre a Odisséia épica e a cinematográfica pára nos umbrais das
“metáforas monstmoas” relativas a HAL e Polifemo. A viagem de Odisseu —
como único sobrevivente entre os seus companheiros de aventuras —
representa o início épico do processo de civilização “iluminista”, que apaga os
monstros através da dialética produtiva de auto-sacrificio e auto-afirmação de
Si: “O prolongado percurso errante de Tróia a Ítaca é o itinerário do sujeito —
infinitamente débil, do ponto de vista físico, em face das forças da natureza, e
que está apenas em ato de formar-se como autoconsciência —‘ o itinerário do
si mesmo através dos mitos”.
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sem-sujeito). Assim como o mito havia criado o híbrido, homem ou mulher com
os signos da origem animal ainda marcados — símbolo ambivalente de
ameaçaatraÇã0 pela regressão sócio- biológica —, assim como o romance “de
horror” criou o golem e a indústria, o robô, do mesmo modo o cinema leva à
síntese, nos muitos 1-tAL de sua história, a modernização tanto da natureza
divina contemporânea (ciência e técnica) quanto da natureza humana (vícios e
homicídios). O híbrido mítico ou fascina ou põe enigmas (as sereias, a esfinge):
de qualquer modo, a ameaça de morte é sempre função do obstáculo que o
herói tem de superar para a sua hurnanização; ao contrário, o híbrido fílmico
põe apenas o escândalo de sua presença; a morte que ele promete é idêntica à
que recebe. Bem e mal são relativos, fungíveis e intercambiáVeis segundo o
andamento do box offlce.
“Um homem não pode se tornar criança sem se tornar pueril.”6 Mas a
ingenuidade da criança, lúcida e contrária ao princípio de realidade, não foi
reproduzida num nível mais alto de verdade; ao contrário, as ideologias
reificadas, a hierarquia do olhar, a ressurreição do “espírito” do cinema, o
estereótipo do Um primigênio implicaram como resultado socializado uma
puericultura de massa.
Assim, HAL pode pensar e falar tranqüilamente como um homem, agir como
um menino despeitado ou uma mãe protetora, e sofrer um final igual ao dos
golem de sempre: o sinal mági-
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O cadáver antropométrico
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mente convertida no neutro “passar o tempo”; e tudo isso sob o signo do “útil”,
e não apenas para as coiporations dominantes. O cinema significou, desse
ponto de vista, uma incrível regressão planetária, a partir dos fortíssimos
componentes ainda uma vez etnocêntricos, cuja realidade é reproduzida por
um medium intrinsecamente cêntrico. O cinema se dilata a “centro”, que torna
periferia e reduz a coisa tudo o que filma; a subjetividade da câmara
cinematográfica reduz a objeto todas as coisas, segundo os seus códigos
antropométricos, bem além dos níveis de inevitabilidade próprios de qualquer
olhar, O cinema antropomorfiza tudo: animais, máquinas, coisas. Ninguém
resiste à potência do seu maniqueísmo facial; a própria natureza se adequa à
sua lei fisionômica.
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não existe magia que não contenha pelo menos um fragmento de religião. A
noção de uma supernatureza existe apenas para uma humanidade que atribui
a si mesma poderes sobrenaturais e que confere à natureza, por sua vez, os
poderes da sua super- humanidade”.
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E, todavia, não basta. Como se sabe, havia operárjos que tinham uma
condição ainda mais ínfima na escala parametral, dentro e fora da fábrica: os
judeus e os ciganos. A conclusão profunda que se deve extrair sobre a função
exercida pela simbólica fisionômica (e que o cinema tem o poder de
“espiritualizar”) é a seguinte: ela absolve o homem do homicídio, permitindo-lhe
continuar a agir — inclusive no interior do equilíbrio psíquico do indivíduo —
como se o irrevogável jamais tivesse sido cometido. É tão grande a importância
desse momento crucial, que propomos utilizar o conceito de absolvição ritual
do homicídio através do homicídio.
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Cinecentrismo
Com o termo “centrismo”, entendemos “aquele aspecto da estrutura e do
processo vital de todo indivíduo pelo qual, tanto no nível cognitivo como
conativo, o mundo aparece em primeira instância e é desejado como ‘feito para
ele’, ou seja, como um conjunto de objetos à disposição de seus carecimentos
quer dizer, dos carecimentos daquele único sujeito — si mesmo — que ele
experimenta concretamente”. Segundo essa colocação, os níveis do centrismo
são três: físico, Psíquico, instrumental, O centrismo físico define aquela
tendência à autoconservação e à expensão da vida que é própria de todas as
espécies vivas, O centrismo psíquico é aquele carecimento fundamental que é
próprio somente do homem, e que consiste em ser reconhecido pelos outros,
satisfazendo desse modo aquela exigência que requer a disponibilidade das
outras consciências em relação a si mesmo. Finalmente, o centrismo
instrumental, para o homem, está finalizado tanto para o centrismo físico
quanto para o psíquico, na medida em que compreende uma produção de
carecimentos secundários, funcionais aos primários, tanto físicos quanto
psíquicos, com base “numa série de esquemas estratégicos e táticos
(genéticos ou não)”.
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dade”, várias vezes citada; mas Gehlen não enfrenta a racionalidade das final
idades pelo que toda invenção técnica teria urna “validade instintiva”. Racional
se torna o que é fisiológico, assim como a fisiologia é racionalidade. Sendo
apêndice, prótese, do corpo humano, a técnica não aparece mais nem sequer
corno “segunda natureza, mas volta a ser diretamente “primeira natureza”; e,
por força dessa autoridade objetiva, torna-se racional tudo o que realiza
racionalmente a finalidade de potenciar o corpo humano. Diz Geh}en: “Essa lei
expresa um processo irnanente à técnica, um decurso que não foi desejado
pelo homem em seu conjunto; essa lei se afirma, por assim dizer, pelas costas
ou instintivamente, através de toda a história cultural do homem. De resto,
segundo essa lei, não pode haver nenhum desenvolvimento da técnica além do
nível da completa automação, já que não é possível indicar novos âmbitos de
atividade humana que pudessem ser objetivados”.
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Desse ponto de vista, o centrismo foi aculturado, por assim dizer, no interior da
natureza técnica da máquina de filmar (MDF): gera-se um cineceritrismo que
reproduz imagens/ideologias no decorrer do processo de filmagem, cujo mundo
aparece corno “efeito para si mesmo”, para o próprio kino-olho, que escruta
coisas, homens, animais, natureza, como um conjunto de objetos à disposição
de suas exigências. O cinema, como máquina de produção e reprodução de
ideologias, tende a se colocar de modo autônomo de fllm-makers, ciné-pbiles,
espectadores-massa. A “natureza cêntrica” de tal medium, e, em particular, da
técnica da MDF, constrange num centro unificador os três níveis de centrismo
supracitados, sob o signo de uma reflcação espiritual que é fisica, psíquica,
instrumental. O cinecentrismo da MDF tende não tanto à autoconservação
quanto, sobretudo, à expansão dos próprios “pontos de vista vitais”,
necessitando como seu carecimento fundamental ser reconhecido pelos outros,
para “satisfazer a exigência que requer a disponibilidade das outras
consciências com relação a si mesmo”. Ele tem a capacidade de reproduzir ao
infinito carecimentos secundários, funcionais aos primários, com base em
esquemas operacionais não genéticos, mas tecnológicos, ou, se se preferir,
“tenogenéticos”.
Toda a mise en scène — que envolve tanto a chamada fiction como o cinema
direto —, objeto específico da filmagem, transforma-se em periferia funcional
do centrismo da reprodutibilidade. Não tanto os ambientes, a trucagem dos
atores ou o vestuário dos figurantes, mas os próprios enquadramentos, o uso
da montagem seja das atrações (que já foi chamada de “dialética”) ou das
repulsões (que podemos definir como “positivista”), o movimento espacial da
MDF (na horizontal, na vertical, obliquamente) subordina às exigências da
máquina o objeto da representação, que é por ela subvertido, ainda que
acentue a ilusão realista. A MDF tem um único ponto de vista: o próprio. Todo o
resto — homens e coisas, natureza e animais — deve ser reconduzido à sua
centralidade. A “natureza” intrinsecamente cinecêntrica da MDF transpassa —
com a força “objetiva” de uma prótese biotécnica — no olho ideológico do
diretor, termi-
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mas busca ricos e diversificados modelos de antecipação alternativa. Este
carecimento de relação requer o reconhecimento do outro e, ao mesmo tempo,
pelo outro; de tal modo que ego e alter se determinem reciprocamente na
relação entre “reconhecimento de’ e “reconhecimento por’ Tais oposições,
embora invertidas (mas, precisamente por isso, ainda mais interessantes e
plenas de força interpretativa), já as encontramos na simbólica de Pater e
Spiritus, de Filius e Diabolus: elas são as mais arcaicas oposições entre ego e
alter. Sua peculiaridade reside no fato de que, sendo as oposições mais
radicais em sentido metafisico, penetram na profundeza da nossa estrutura
psíquica, como ulterior demonstração de que a metafísica profunda contém
elementos materiais precisos, assim como o materialismo autêntico está
repleto de aspirações e angústias metafísicas. As formas históricas e culturais
que a necessidade de relação assume dependem das respostas que os
indivíduos, os grupos, as classes, os povos sabem dar à relação entre ego e
alter. E essas respostas, em quase todas as culturas de qualquer tempo e
lugar, orientaram-se no sentido de identificaçào de ego com Filius e de alter
com Diabolus. Ou seja: o alter— entendido como diverso e reprimido enquanto
tal — foi expulso pelo ego e projetado no bárbaro, no não-humano como fora
da norma, entendida como ortodoxia de uma cultura e demonização de todas
as outras, outras que sofreram os furores do estigma antropométrico em sua
exposição pública. As resistências por parte das ciências etno-antropológicas a
estudar o ego — ou seja, a nossa cultura — é similar às indignações mais
“severas” e “extremistas” que as próprias ciências mostram nas investigações
sobre os genocídios realizados contra as culturas de alter. É sempre preferível
uma metodologia de pesquisa autopunitiva que analise os malefícios cometidos
somente sobre os outros, contanto que não se realize a única vjrada radical
possível que a antropologia — enquanto ciência do homem — deveria
completar: o estudo de si mesma em relação com as outras culturas numa
perspectiva globalista. O etnocentrismo ocidental ressurge na proibição de pôr
no centro da reflexão não mais os resultados que a “nossa” cultura provocou
sobre os “diversos”, mas também e essencialmente
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esse nosso modelo de cultura, a fim de que se possa compreender pela raiz
como e por que a “gente normal” tenha realizado tais atos. Daqui resultam as
clamorosas denúncias dos malefícios etno-imperialistas cometidos contra os
“diversos”, que pretendem culpabilizar os “normais” e também disso é
necessário duvidar, por causa das válvulas de absolvição individual que o
sistema burocrático reproduz —, mas das quais eles saem imunizados, na
condição de não serem por sua vez “reduzidos” a objetos de pesquisa
culturológica. Aliás, o estudo do alter cindido do ego é o último álibi criado por
este último, como condição para não abordar um dos problemas fundamentais
da crise de nosso modo de vida nessa sociedade: o empenho das ciências
antropológicas em serem antes de mais nada auto-reflexão crítica do ego pelo
próprio ego, bem como — em perspectiva — objeto não reificado de estudo por
parte também de alter.
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O riso
“O riso, sereno ou terrível, marca sempre o momento em
que desaparece um temor”
Adorno-Horkhejmer
Quando entrarmos (no outro mundo), não ria. Não banque o estúpido. Se você
rir, Baba laga nos pega e estamos fritos.”
(De uma fãbula russa, citada por V.J. Propp)
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também para a estrutura psíquica. Precisamente tal anacronia entre esses dois
tipos de mudança é a causa das “ideologias absolutistas”, relativas tanto às
invariantes antropológicas quanto à pura mutabilidade sociológica. Aliás, em
certo sentido, essa as- sincronia é uma das causas de fundo da ideologia
originária.
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Disso resultaria que a pesquisa histórica sobre o passado ritual não tem
importância para a compreensão do presente, por isso nào se diz em que
consiste o nosso diferente modo de rir. Por isso, a metodologia histórica nega o
seu conceito, e não certamente porque talvez Propp se houvesse iludido
quanto à superação da “pré-história” na Rússia dos sovietes. De qualquer
modo, bem mais agudas (como também as de Eidl-Eibesfeldt) são suas
pesquisas sobre as várias fases históricas da forma riso: desde a fase mágica,
passando pela agrícola e pela cristã, até abordar em detalhe a função do riso
ritual no folclore da fábula e aqui, infelizmente, deter-se. Se Eibl-Eibesfeldt se
limitou à crueldade originária do riso, cuja função em parte irrefletida e em parte
ritualizada chegou até nossa sociedade, para Propp o riso assume a função
historicamente determinada de limite entre a vida e a morte: “Com o ingresso
no reino da morte, toda manifestação de riso é suspendida e proibida; ao
contrário, o ingresso na vida é acompanhado pelo riso”6. Por isso, “os mortos
não riem, e somente os vivos riem. Os defuntos, tendo chegado ao reino dos
mortos, não podem rir; e os vivos não devem fazê-lo”.
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imediata devia ser com os mortos. Com efeito, a morte faz desaparecer a
capacidade de rir e, por conseguinte, não só a vida deve alimentar o riso, mas
— vice-versa — o riso pode Suscitar a própria vida. Tanto é verdade que o tabu
do riso é rigorosíssjm0 nos mitos onde se narra a penetração no reino dos
mortos, onde as cócegas são um ótimo instrumento para verificar se uma
pessoa está viva ou morta. Por exemplo, quando uma viagem desse tipo é
realizada por uma alma esquimó, ela encontra no cume de uma montanha uma
estranj-íssjma velha: “Chama-se Estripadora das Entranhas. Tem uma bacia e
uma faca ensangüenta da. Bate num tambor, dança, fazendo par com a própria
sombra, e diz apenas estas palavras: ‘abertura de minhas calças’. Quando vira
as costas, mostra uma grande fenda, através da qual se entrevê um pequeno
pássaro. Se é olhada de lado, sua boca se contorce e se estende tanto que a
face aparece mais larga que longa. Inclinando-se, consegue lamber as
nádegas; e, quando se dobra de lado, bate sonoramente nos flancos com as
bochechas. Se se consegue olhá-la sem rir, não há nenhum perigo. Mas, tão
logo os lábios se contraem num esgar, ela joga fora o tambor, agarra o
insolente e o derruba por terra. Depois, pega a faca, abre-lhe o ventre, arranca-
lhe as entranhas, joga-as na bacia e as devora com avidez.
Decerto, a autêntica gag que Madame Estripadora realiza diante das almas que
aparecem à sua frente é digna de um grande clown, talvez do Carlitos, que, em
Luzes da ribalta, consegue fazer rir a infeliz bailarina. Mas talvez o mesmo
significado profundo contenJa muito mais elementos de afinidade do que se
possa suspeitar: a teimosia em obrigar à risada aparece idêntica em um como
no outro, embora os resultados sejam tão diversos no filme e no mito. De fato,
somente para os esquimós o riso parece se associar à morte.
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10. Diz Zaratustra: Para os homens, são ainda algo intermediário entre um
palhaço e um cadãve,’ (F. Nietzsche, osfpar/d Zaratustra, Milão, Adelphj, 1968).
E iSSO porque, como lhe diz subjtamente um homem, “a tua sorte foi que
rimos de ti: e, na verdade, tu falaste como um palhaço. Tua sorte foi te pores na
companhia deste cão morio”. Ou seja: precisamente de um equilibrista que se
despedaçara no solo.
11. Sobre as conexões entre riso e crueldade, podem-se ver também estes
dois exemplos: “Eis que me olham e riem: e, ao rir, também me odeiam Há gelo
no riso deles’ (F. Nietzsche op. cit., p. 12). “E morria de rir não por maldade,
mas pela mesma razão por que não podia ver cair um COXO na rua, ou tentar
falar com um surdo, sem começar a sorrir” (M. Proust. Sodoma e Gomorra in
Em busca do tempo perd ido ed. brasileira, Porto Alegre, Globo. 1957).
12. AdornoHorkeimer Dialletjca dell’Jllumjnjsmo op cii., p. 151. “Os desenhos
animados eram, em certo momento, expoentes da fantasia contra o
racionalismo. Faziam justiça aos animais e às coisas eletrizadas pela sua
técnica, já que — mutilando-os — conferiamlhes uma segunda vida. Agora nào
fazem mais do que confirmar a vitória da razão tecnológica sobre a verdade.
Há alguns anos, apresentavam ações coerentes, que se dissolviam apenas nos
últimos minutos do ritmo endiabrado das seqüências. Seu desenvolvimento
assemelhavase nisso ao velho esquema da slapstick comedy. Mas, agora, as
relações de tempo se deslocaram. Desde as primeiras seqüências do desenho
animado, anunciase um motivo de ação com base no qual, durante o curso da
mesma, é possível exercer-se a destruição: entre os aplausos do público, o
protagonista é puxado por todos os lados como um trapo velho. Assim, a
quantidade de diversão organizada transmudase na qualidade da ferocidade
organizada (..). Se os desenhos animados têm outro efeito além de habituar os
sentidos a um novo ritmo, é o de martelar em todos os cérebros a antiga
verdade de que o maltrato contínuo, a quebra de toda resistência individual, é a
condição de vida nesta sociedade. Pato Donald, nos desenhos animados tal
Como os infelizes na realidade, recebe pontapés para que os espectadores se
habituem aos que eles mesmos recebem”.
Fim da nota de rodapé
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O riso tem também uma origem sexual que deriva da sua primogenitura por
parte da deusa-do-parto — a Mulber-Procriadora de cuja capacidade se
ignoram as causas — e de sua posterior extensão não apenas à reprodução da
espécie, mas, finalmente, à vida enquanto tal. Somente mais tarde é que à
função especificamente sexual do riso se acrescentou a função erótica. Para a
cultura cristã, que percebera tais funções e seus perigos para sua própria
concepção do mundo, a representação figurativa da divindade não deve rir
nunca. “No cristianismo, quem ri é precisamente a morte, o diabo.” O riso volta
a ser tabu, desta feita na terra, não mais no outro mundo, como era afirmado
pelos mais arcaicos mitos agrícolas. O riso torna-se representação sensível da
danação da carne. A incontinência do riso é a mesma
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O riso era possessão simpatética com a Grande Mãe, cuja inchação mítica
gerava a vida; depois o riso estendeu sua conexão do ciclo vital ao ciclo
agrícola, da fecundação do ventre à de Géia, a Terra, de onde nasceram os
segredos iniciáticos de Deméter. Ria-se da inchação disforme e grávida da
barriga feminina. Portanto, o riso se modelou na incontinência masculina, no
modelo dionisíaco)8 A seguir o cristianismo marcou o riso
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A dialética do riso
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gag repetida bilhões de vezes manifesta que não tem o desejo de obstaculizar
— mas sim de favorecer alegremente — o processo de desumanização da
humanidade. No riso, há a afirmação de que agora se está pronto para tudo,
seguro da própria unanimidade conferida pelos índices multinacionais de
audiência. A associação — outrora irrefletida, depois ritual e, finalmente,
programada entre riso e cinema desmente de uma vez por todas a ideologia
dos reflexos condicionados, os quais são tais por causa tão-somente da
relação entre processo civilizatório e produção social.
Também os nomes talvez tenham a sua origem no riso: “os nomes são risadas
empedradas’, cuja função originária ainda hoje se conserva, de modo evidente,
nos apelidos. Nos títulos dos filmes, tais risadas, em vez de empedrarse
iluminam-se com o neon, coagulamse nos cartazes de publicidade: Piedone lo
Sbirro, Fantozzj; L ‘uno di Chen, Emanuelie Nera, Pasqualino Setebelezas
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Chaplin conseguiu elevar a uma síntese genial o novo medium “cinema” com
os instrumentos ligados à origem mais arcaica e irrefletida da humanidade: o
riso, o pranto, a mímica. E, se o cinema pôde construir seu próprio império
industrial e ideológico através da repressão e, portanto, da transformação tanto
da “natureza humana originária” como da historicamente determinada, Carlitos
não está isento — e seria absurdo pretendê-lo — desse “pecado original”. A
mfmica — na qual era realmente genial — foi a arte-artesã, parenta próxima da
arte mitológica, através da qual o cinema das origens, como indústria em
formação do espetáculo e da comunicação, pôde desbaratar todos os media
precedentes, do teatro ao circo e ao folhetim. Todas as capacidades
clownescas ou “romanescas” de Carlitos são, antes de mais nada, filmicas não
pertencendo ao específico do circo ou da literatura, embora sua origem seja
exatamente aquele, isto é, circense e folhetinesca. A genialidade de Chaplin
consiste em ter conseguido fazer com que o novo instrumento de
reprodutibilidade técnica universal aparecesse como um recurso que coagula
todas as anteriores astúcias de profissão, com o fim de celebrar os valores —
supostamente também “universais” — de toda a humanidade.
A arte de Chaplin se funda num cinema mimético que atua em parte com base
na tradição naturalista precedente e, em
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É errado afirmar que o riso de Carlitos tenha uma função purificadora “de
artista”, quase sempre progressista. Hugo disse que, “de todas as lavas que
saem da boca humana, essa cratera, a mais corrosiva é a hilaridade. Fazer o
mal alegremente: nenhuma multidão resiste a esse contágio”. O riso
freqüentemente é sádico, produz atitudes autoritárias, persecutórias,
predispostas a tomar como objetos os débeis, os diversos, os disformes,
particularmente no “tempo de divertimento”. Estamos habituados a rir
sadomasoquíStamente quando não há nada do que rir. Quando uma mulher
gorda escorrega numa casca de banana.’ Tende a ser cada vez mais rara uma
forma de riso libertadora, riso como instância de vida, que é tal não apenas
quando se produz na crítica social, mas também nas instâncias lúdicas,
alegremente agradáveis, que — em seu movimento específico — são privadas
da marca da crueldade ou do limite do medo dissipado. Não mais podemos rir
todos das mesmas coisas e dos mesmos truques. Por exemplo, Dano Fo nos
faz rir mais quando está subentendido que muitos não rirão de suas farsas. Por
isso, nada é mais hilariante do que ler a apologia da sensibilidade de Chaplin
para a alienação operária precisamente naquela mesma imprensa que sempre
legitima as condições de trabalho social-
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mente dadas. Chaplin afirmou que o sorvete de Carlitos deve cair no decote de
urna rica — e naturalmente gorda — e não de uma pobre mulher, para fazer
com que todos riam. E, com efeito, todos riem. Mas precisamente essa
indevida universalidade é falaz: riríamos com muito maior incontinência se
estivéssemos certos de que todas as ricas da platéia — sem sorvete no decote
e sem adiposidades — fossem impedidas de restabelecer as próprias certezas
de classe também através do riso delas, o qual parece ter mais a função de
tranqüilizar contra um medo potencial ou contra uma ameaça real.
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Pode ser legitimado somente o riso que destrói o horror, e não mais aquele que
o reproduz.
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O comportamento
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a ideologia das classes dominantes: a ideologia dominante aqui agora difunde-
se diretamente a partir das “entranhas” das mercadorias-fetiche Sua potência
espiritual é muito maior, e amplia- se cada vez mais à medida que se dá a
paralela extinção de idéias na classe política dominante (quem está mais
disposto a reconhecer uma “verdade ideológica” qualquer aos partidos
conservadores ou progressistas, de governo ou de oposição?), em sincronia
com a progressiva extinção do papel da classe burguesa tradicional. 1 o
conjunto desses processos sócio-culturais tende a aumentar
desmesuradamente aquela característica que já estava presente na época dos
triunfos da ideologia “clássica”: os dominados sempre levaram a moral dos
“seus senhores” mais a sério do que estes últimos. Essa tendência cultural
subalterna se amplia com a incorporação da ideologia ao interior das
mercadorias. Aqui, a nova relação entre coisas e idéias unifica consumo e
hierarquia, apesar de os movimentos de oposição conseguirem às vezes
quebrar a hegemonia dominante no terreno das relações sociais. Acentua-se a
perversidade polimórfica da moderna comunicação visual reprodutível na
difusão de valores, de comportamentos, de distrações. O tempo livre é usado
contra o tempo de trabalho, o privado, contra o público. E tudo isso ocorre no
momento em que a diferença econômica e cultural entre essas esferas
reczrocas foi tendencialmente unflcada pela expansão pós-industrial. A redução
das massas a espectadores enfraquece o seu antagonismo ativo e reforça a
passividade de quem se submete à hierarquia do olhar. Desse modo, no mais
profundo do eu individual, ocorre uma cisão que favorece a “passivização
reificada”. A perversidade polimórfica da cultura narcisista-visual — em sua
manifestação espiritualizada no cinema, último substituto sintético dos ritos
mágico-religiosos — seduz e cicatriza as eventuais contradições que
explodiram no “corpo” da acumulação.
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resposta será a extrema mutilação: a castração. O desejo, que intumesce o
pênis contra a própria vontade e que parece não poder causar à mulher mais
do que violência, é indicado como a fonte de todas as desgraças. A tomada de
consciência pelo homem dessa extrema contradição ocorre quando ele tenta
suspender as relações sexuais com aquela que será sua última mulher, não
sabendo resolver de outro modo a exigência dela de um amor não agressivo.
“Lembra-te”, ela lhe diz, como numa fábula, “de ser doce comigo. Doce...”.
Mas o homem é arrastado pela pulsão sexual e trai tudo e todos: a mulher, a
amante, a mulher do amigo, a sua dignidade. Parece que resta apenas uma
Opção: o acerto de contas com aquele órgão que aparece vinculado, em sua
essência, ao símbolo da dominação. E, então, tudo se põe em movimento
segundo a lógica das “coisas”. A mercadoria — rápida, funcional e cega —
impõe o seu poder. A faca elétrica, que já atuara metaforicamente sobre o
salame (que, por sua vez, o último homem usara como superpénis contra a
mulher e sua amiga), repete sua ação sobre o falo e o trincha inexoravelmente.
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classe contra classe. Esta última — que, quando era considerada central,
sempre foi entendida como única — tende a isolar o simples aspecto histórico,
na crença injustificada de suprimir o antagonismo homem-mulher através de
um movimento sincrônico à supressão do que existe entre classe e capital.
Apesar das aparentes diversidades, ambas essas concepções são resultado de
um materialismo mal compreendido, que é mecanicista tanto nas formas
unilaterais do biologismo quanto nas do economicismo. O pênis é agressivo
(como o seu portador) pela dupla interação entre o aspecto historicamente
determinado e aquele específico, mas não por sua “natureza” apriorística.
Contra toda utopia fácil, um uso alternativo do falo — aqui e agora — é muito
problemático, se não impossível (apesar das ingenuidades de Reich), assim
como é ilusório (e, entre outras coisas, sempre votado ao fracasso) um uso
alternativo das máquinas no sentido de uma dócil transição à utopia. O que
deve ser cortado sem lamentações é a máquina falo, mas não um falo singular
ou todos os falos enquanto tais, com afiadas máquinas automáticas. A
violência, a agressividade que o pênis absorveu nessa dupla interação,
adquiriu a forma de uma “segunda natureza”, que é confundida com a Natureza
(e não apenas por Ferreri), tal como ocorreu com as leis da concorrência. Mas,
assim como a natureza não pode ser suprimida, sob pena de se cair no reino
da idéia (ou de Deus), é igualmente metafísico cortar o pênis enquanto solução
última para a “tragédia da vida”. O que é antagônico e, portanto, superável é o
caráter fetichista e reificador do pênis, o seu ser máquina sob a lei geral da
prestação e da opressão, e não o seu ser corpóreo. O seu ser alienado em
relação a si mesmo, e não apenas em relação à mulher; e não o seu ser
objetivo, O pênis, mesmo se conservando em perene contradição em face da
mulher, pode ser transformado através da prática e da construção de uma nova
dimensão do Eros, do princípio da vida. Tudo se transforma e somente uma
concepção positivista da relação homem-natureza pode afirmar que o falo será
sempre assim, ou que é possível fortalecer reformisticamente a sua tendência
a oscilar entre crescimento e estagnação. A função dos órgãos pode ser
transformada também de um ponto de vista biológico-cultural, e não mais
apenas na imaginação mítica ou poética do andrógino, O nariz do homem
exercia outrora funções bem diversas e mais impor-
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A realização do ato sexual não mais more fera rum, mas de frente produziu o
nascimento do erotismo, com a descoberta micialmente abaladora (tanto como
prazer em ver o gozo do outro, quanto como sua condenação mítico-religiosa
sob a forma do sadismo e do pecado) do prazer nos olhos do parceiro. Disso
resulta o incessante domínio do olho enquanto órgão prioritário no momento da
escolha, do ato propriamente dito e do posterior repouso, em relação a quem,
como e o que dá prazer. A conexão eros-olho (que Batailie “viu” muito bem)
chega até o cinema, para ser completamente invertida: a tela cinematográfica,
luminosa como um espelho e ambivalente como uma máscara, coloca-se
diante do espectador como um parceiro com o qual se está tendo uma
conjunção carnal, O cinema-parceiro organiza com mestria a excitação do
outro — o público — com arte de publicar o prazer como se fosse o próprio
prazer no curso da representação. Por isso, é tão difundida a hostilidade
popular contra o cinema “sério”, na medida em que as pessoas se sentem
defraudadas pela suposta essência secreta do cinema, mas também pela
ausência da única motivação plausível pela qual se vai assistir a um filme
específico: o prazer. Essa hostilidade e essa pretensão explicam os muitos
“pecados originais” da forma cinema, os quais — partindo das primeiras
imediatas produções industriais de Edison, inclusive de conteúdo osée —
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punidos pela certeza do direito. A repressão da práxis como infração, que já era
imanente à lógica ritual originária, implicou a fatal cisão histórica entre ator e
espectador, em sincronia com aquela entre mão e mente, entre quem olha e
quem é olhado. Mas, muito cedo, também o primeiro será um simples executor
de ordens; e, para o segundo, falar de catarse é um nonsense. O cinema já
não conhece paixões; e o seu espírito reificado deixa atrás de si apenas terra
arrasada. Quando é preciso ser homem e amado, ao mesmo tempo, tanto
pelos “progressistas”, que buscam expiar antigos e recentes complexos de
culpa, como pelos “racistas”, que vêem realizado o seu mais universal desejo
— a destruição do diverso —, pouco ligando para as intenções do autor.
Instância crítica e apologia do crime se confundem. Para tal resultado, contribui
a continuidade com a estrutura simbólica quaternária: Pater, Filius, Spiritus,
Diabolus. A aparente inversão da carga do 7° Batalhão de Cavalaria, que passa
de liberadora a repressiva, continua a sua ineliminável função hipo-estrutural
como se fosse ontológica. Diabolus tonou-se Filius e vice-versa: as recíprocas
intercambialidades adequam-se às atmosferas dos enigmas de Pirandelio,
todos igualmente fungíveis. Mas, alteradas as vestes, toda a ordem da
representação, bem como os fluxos de imagens e de fisionômicas,
permanecem invariados. O truque é tão bem-sucedido que Lfe size é
condenado pelas mulheres, que apelam para a censura (o mais obscurantista
dos instrumentos patriarcais), e defendido pelos homens, que sublinham uma
sua inexistente problemática feminista, O filme Último tango em Paris, que
investe com brutal sadomasoquismo contra toda sexualidade não reprodutora,
e que idealiza até o extremo o fascínio da potência viril paterna e patriarcal, é
condenado à fogueira — como se fosse Giordano Bruno! — por uma censura
que se adequa sempre, precisamente, a tais modelos. O Ferreri recente de
Ciao maschio tem uma lógica da história idêntica ao primeiro Ferreri, o de L’ape
regina: da superioridade animalesco-biológica da mulher deriva a morte por
ingestão do macho ou sua “autodestruição crítica”, O catolicismo etológico,
com o qual é representada a mulher-abelha, transmuda-se no feminismo
virilmente sociológico da mulher-natureza, numa patente adequação e numa
astuta submissão dos roteiros às modas culturais do tempo. Sem soluções de
continuidade ou fraturas, traumáticas ou indolores, a ordem funcional é
invertida,
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mas a sopa é sempre a mesma. E, assim, também Manhattan de W. Allen tem
o mesmo final de uma célebre comédia de B. Keaton, a qual, aliás, é
geometricamente esplêndida, ao contrário do sofisticado remake: e ninguém se
lembra disso.7 Mas o cinema não tem memória. Somente nessa condição —
que é uma mutilação — é que o público pode suportar o eterno retorno do
idêntico, através do qual, experimentadas todas as variações possíveis, tudo o
que é representável foi representado. O pattern, agora, é o remake. Em todo
filme cômico, há uma réplica do L ‘arroseur arrosé dos irmãos Lumière; e em
todo filme de aventuras, de Cabina, de Pastrone.
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mas, a necessidade de tal função desapareceu. O espectador deverá assistir
impotente a história maravilhosa ou de horror, a aventuras com mulheres
lindíssimas ou a atrocidades inenarráveis, a fim de marcar com letras de fogo
em sua consciência que tais coisas jamais poderão se passar com ele. Filius e
Spectator se cindem. Esse é o motivo da irrelevância cada vez maior do que foi
o Código Hays com relação ao novo modelo unitário da representação. O
espectador deverá se resignar cada vez mais ao fato de não poder mais viver,
nem mesmo no nível da evasão imaginária, as aventuras que velozmente fluem
diante de seus olhos. Em vez de distanciamento crítico de tipo brechtiano, isso
difunde remissão e cinismo. E mais. Agora, o happy end suscita imediatamente
a aberta desconfiança do público, que se sente quase como que ironizado por
um final cor-de-rosa, tal como durante anos ele havia sido codificado. O
eventual Mr. Smith, que fosse inteiramente só a Washington para resolver os
problemas de justiça e liberdade (ou seja, de ideologia), ou o seu antecessor, o
sargento York, que partira para a Europa, levariam a que um tal roteiro — na
era de Watergate, da Lockheed, do Vietnã — fosse atirado na cesta pelo mais
patriótico dos produtores. E apenas porque seria um fracasso financeiro. Agora,
no lugar de F. Capra ou de H. Hawks, temos os Sam Peckinpah e os Cimino. O
franco- atirador desse mesmo Cimino realiza feitos mirabolantes — mata os
ctiets, foge, se salva, volta aos Estados Unidos e depois a Saigon, nos dias da
queda — somente por causa de um inconfessável amor homossexual pelo seu
amigo. À vida maravilhosa, a Roosevelt e espinafres, sucede a vida mais
obscura de Hobbes, o extermínio geral de todos contra todos. Sem outra razão
que não seja a de mostrar, não sem um tom de advertência, a vitória da morte
segundo os modos mais sangrentos. Não devemos nos alegrar, e nem mesmo
ficar tranqüilos, diante do desaparecimento do happy end. Ao contrário. Com
sua adocicada ingenuidade, ele parecia conservar a utopia do restabelecimento
perene da justiça e da felicidade. Agora se diz explicitamente que a felicidade
não chegou e não poderá chegar nunca. Esse é o único realismo atualmente
vendável como mercadoria filmica. Para A. Penn, Wild Bill Hickock é um
beberrão; para Peckinpah, Pat Garret é um vendido ao mais forte, para não
falar das mutações cíclicas do general Custer. Talvez um dos primeiros tenha
sido Kazan, que, para expiar seu pecado de ex-gauchiste, em Viva
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Nosso olho foi educado para retirar prazer da visão do sofrimento, o que
Nietzsche chamou de “olho estimador” dos deuses que amam os espetáculos
cruéis, O olho que observa a dor e goza com ela consente na repetição da
justiça “primitiva”, restabelecendo em cada espetáculo de castigo a apologia do
crime. Uma dessas “coisas boas” é o cinema, que reduz a memória à repetição
ritual do sempre igual, para marcar com seu fogo racionalizado espiritualizado
a crueldade reprodutível da dominação de classe, de sexo, de intelecto sobre
uma população “inorgânica”: o público dos espectadores. O cinema parece
prevenir o crime antecipando e espiritualizando as punições; sua finalidade é
racionalizar as atrocidades passadas, para esquecer a falsa superação das
presentes. A memória das “mutilações mais repugnantes” — que ressurgem
nas representações de Oshima e de Ferreri —, instrumento inadequado para a
nova moral, é substituída pela memória que não tem nada a recordar, salvo o
rito de “passar duas horas em paz”, forma de suicídio por tempo limitado. O
filme, produto parcial, segmento pulsante do cinema, deve ser esquecido tão
logo é rompido o contrato social do bilhete de ingresso colorido, O apêndice
que o filme cômico ou de autor pretende prolongar nas discussões
imediatamente posteriores, quando não determinadas pela intenção de
enganar o tempo redescoberto, são mimeses da representação, exercício
mnemônico sobre a neutralização da memória. A confusão entre tempo de
produção e tempo de distração dirige-se no sentido de recompor o todo sob a
fatalidade atemporal e a-histórica da dominação. A liberdade de pensamento se
realiza no fato de não ter de prestar contas a ninguém pelo que se pensa. Em
troca, obtém-se a segurança de ser incluído num sistema de instituições e de
relações que constituem a suprema lei de reciprocidade no controle social, O
que ainda resiste, sobrevive naquele espectador que — insatisfeito — mudará
sempre de lugar ou encontrará meios de conversar obstinadamente com o seu
vizinho: todo conhecido seu se assemelhará a algum ator e vice-versa. Assim,
se se perguntar o que “dá prazer” num filme de sucesso, não se poderá eludir a
dúvida de que prazer e não-prazer são conceitos inadequados. Foram
substituidos pelo “reconhecer”: efeitos especiais, truques, amigos. Proximidade
e estranheza se juntam na sala cinematográfica. Os vizinhos são sempre muito
barulhentos, fumam ou nos impedem de fumar;
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se está na frente, é muito alto; respira em nossa cabeça se está atrás, cospe
em nós se pigarreia, sussurra com o amigo, comenta, gosta dos trechos
barulhentos, é feio, é um conhecido que não queríamos ver, é um casal
excessivamente efusivo, é uma mulher só contra a qual se deve ficar em
guarda, é um homem que não nos deixa em paz, é um “diferente” que nos põe
à prova, agita-se muito, come pipoca e amendoim (cuspindo as cascas),
resfolega em toda cena de nudez, é um entendido que desmascara em voz alta
todos os significantes, é um cínico, O espectador é obrigado a tentar fugir no
tempo livre adequando-se precisamente áquilo de que está cansado e já não
suporta mais. Assim, o círculo se fecha, O momento da “escolha” entre o
“gênero” policial e o cômico é a mola que adiciona tédio e cansaço, para
subscrever apressadamente o primeiro que apareça. O resultado ótimo para o
cinema é produzir entusiasmo, enquanto para o filme — em secreta aliança
com aquele — é provocar a invectiva. Adesão e raiva, assim unidas, tendem —
numa falsa complementaridade — a reproduzir-se ao infinito e a desenvolver
estruturas caracterjais autoritárias ou narcisistas. Um filme atinge o máximo
sucesso autopropulsivo quando o fato de não tê-lo visto (ou o seu contrário, o
de não ter querido vê- lo) significa sentir-se excluído da unificação cultural de
massa; e quando, depois de tê-lo visto, pode-se declarar a própria desilusão.
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Também para o cinema vale o que Adorno afirma da arte em geral: “A essência
da arte não é certamente dedutível de sua origem como se o primeito momento
fosse uma base na qual tudo que veio depois tivesse se apoiado, para ruir tão
logo aquela sofresse um abalo”.
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logia que, antes de qualquer outra, buscou resolver esse enigma: o mito. Para
o cinema, o dualismo realismo-fantástico esconde o antigo paradoxo da
reprodutibilidade imediata do real através de media artificiais: é causado por
uma lógica que é ainda análoga àqueles esforços com o qual o xamã,
assumindo atitudes horripilantes, com caretas e imprecações, pretendia
derrotar o mal imitando-o. Mesmo que as consciências do xamã e do doente
“primitivos” não tenham dúvidas sobre a veracidade instrumental da duplicação
ritual, essa mimese continua a ser algo irredutivelmente “outro” do que ela
busca reproduzir. E, ainda que a terapia xamânica tivesse razão, sua ação
mimética é um ritual e nunca algo idêntico ao mal. Assim, no cinema “realista”
jamais há a realidade captada e reproduzida em sua substancialidacle: sempre
se afirma na reprodução um momento anti-realista, mesmo no mais puro
cinema direto. E, ao mesmo tempo, também o cinema “fantástico” — longe de
fundar uma previsão imaginária entre utopia e futuro — é uma reprodução das
condições sócio-culturais e biopsíquicas ineliminavelmente contemporâneas
sob uma aparência de alteridade.
“Talvez não seja irrelevante”, observa Adorno, “que a mais antiga pintura
parietal, que tão prazerosamente é declarada naturalista, conserve uma
extrema fidelidade precisamente na representacão de corpos em movimento,
como se já pretendesse imitar (...) a indeterminação, a não-apreensibilidade
das coisas. Então, o impulso da pintura parietal não seria o naturalista, mas —
desde o início — seria uma objeção à recação.”
O preconceito que tenta ligar à origem da arte ou do rito suas essências futuras
— segundo o qual o significado se manteria “imerso” de uma vez para sempre
dentro da “forma” inicial da invenção — deve ser submetido a
desencantamento, percorrendo-se novamente a linha dos elementos de
transformação (além dos de imutabilidade) rituais explícitos e implícitos e
exaltando as tentativas de protestar contra a reificação. Se com tal conceito se
entende a inversão das relações humanas em coisa, sua conotação de
“mercantilização” torna-se específica das
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Adorno diz ainda: “Várias coisas — como, por exemplo, produções ligadas ao
culto — transformam-se, mediante a história, na arte que não eram; várias
outras que eram arte não o são mais. A questão, posta pelo alto, de saber se
um fenômeno como o filme é também ele arte ou não, essa questão não leva a
nenhum lugar (...). Pode-se esclarecer a arte somente com base em sua lei de
movimento, não mediante invariantes. A arte se determina em relação ao que
ela não é. O que há nela de especificamente artístico deve ser deduzido de seu
outro: conteudisticamente. Somente isso pode satisfazer de algum modo a
exigência de uma estética materialista-dialética”.
Essa metodologia pode ser aplicada (e, em parte, tentamos fazê-lo neste
trabalho) à antropologia do cinema, do qual é necessário captar não a
invariabilidade ora econômica, ora imaginária, mas as potencialidades
presentes não no interior do cinema, mas no movimento real e utópico do todo
não-cinema. Atualmente, porém, enquanto a arte desmente a idéia de uma
produção pela produção e opta por um estado da práxis para além do domínio
do trabalho”8, o cinema faz a apologia da art pour l’art, proclamando como já
realizada a conciliação de prá- xis e felicidade, de razão e instinto, em seu
consumo continuado aqui e agora. Essa centralidade do momento do consumo
produz uma substancial modificação: “O valor de uso na época da
superprodução tornou-se, por sua vez, problemático, e deixa espaço para a
fruição secundária do prestígio, do ‘eu também existo’; em suma, do caráter de
mercadoria”9. Com efeito: “Das mercadorias culturais, consome-se o seu
abstrato ser-para-o-outro, sem que elas sejam verdadeiramente para OS
outros; ao com
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Com o cinema, tal pretensão de ser credor — se não de outra coisa, pelo
menos no preço do ingresso ou da suposta escolha do filme — amplia-se sem
encontrar mais limites, corroborada nisso por todo o aparato publicitário,
incluída a crítica. E, desse modo, tais emoções — reduzidas a “resíduos
miméticos” e convertidas em exigência de sentir-se in group — podem ser
projetadas na tela, para ligar-se às reificações numa interação em espiral.
Cada vez mais parece que atualmente o que é fmído, por um lado, é o valor-
de-troca e não mais o valor-de-uso. Por outro, através da reprodução ampliada
do sempre igual, o cinema se comunica com o mito. A tela torna-se afim à
máscara. Um é o estereótipo e a outra, o protótipo: ambos estão a serviço da
ideologia, escondendo e mostrando ao mesmo tempo. Já no “fotograma eterno”
da máscara facial do falso Agamênon, está presente o enigma e o fascínio da
“reprodução fiel”, que o cinema socializará como valor de massa e não só dos
reis. Nela se evoca a imortalidade: a imagem busca escapar da decomposição.
Essa tentativa “ideológica originária” — que tem a ambição de fazer passar por
eterna, através da rigidez áurea, a caducidade e a mobilidade facial — é
também um momento produtivo do que Adorno definiu como uma objeção
contra a reificação. Decomposição e reificação se fixam na tela-máscara. A
imagem busca ser de novo realidade como presume tê-lo sido outrora.1’ W.
Wenders, em seu filme mais lúcido — Com o passar do tempo —,
compreendeu e conseguiu representar esse conceito em dois momentos:
durante o jogo
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clownesco de sombras chinesas por trás da tela, apagada e inútil, por obra dos
dois amigos, e com a tomada final, dialeticamente negativa, da tela branca,
símbolo de máscara fúnebre, de ideologia do luto: “Mas, tal como é agora, é
melhor que não exista mais nenhum cinema a existir um cinema como o atual”.
São as palavras finais da dona do cinema. A morte da arte, na qual ninguém
jamais acreditou seriamente, finge ser morte do cinema, mas esse, segundo a
lei mais canônica, terá o sucesso de massa com a aceitação das regras do
jogo de O amigo americano. Assim, tudo pode continuar a girar em tomo do
tríptico máscara- tela-ideologia, unificado na articulação de mostrar e esconder.
Mas esse moderno tríptico parece revelar a seguinte modificação com relação
ao protótipo: a imortalidade, outrora miticamente, magicamente, tragicamente,
fabulescamente, religiosamente, filosoficamente buscada, transpassa — na
grande indústria — na indestrutibilidade. A máscara esgota o seu período mais
elevado com a Declaração (ideológica) dos Direitos do Homem;13 a tela se
inicia com a sociedade de massa, que inaugura a igualdade (ideológica)
imaginária dos espectadores.
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falado não apenas não aboliu a feiúra enquanto “sinal de deus” — como afirma
também um ditado popular —, mas levou até as extremas e estereotipadas
conseqüências essa modelística cultural, inclusive quando era inteiramente
injustificado fazê-lo. A função social da feiúra é um dos sintomas mais
inquietantes da profundidade funcional das simbólicas hipo-estruturais. O feio
filmico não imita mais o terror para aplacá-lo, mas para difundi- lo. Como para
um cinema que se venha a transformar tão profundamente que não é simples
imaginá-lo, também “a arte deve assumir como algo próprio o que é recusado
como feio, não mais para integrá-lo, para mitigá-lo ou para torná-lo algo
aceitável por meio do humorismo, mas sim para denunciar, no feio, o mundo
que o cria e o reproduz segundo sua própria imagem”15. Na sobrevivência do
feio como estigma, há o testemunho de que a crueldade — da qual ele tira seu
alimento — se reforça, e que os sistemas de crueldade remetem aos “pecados
originais” de toda forma ritual, que prevê e prescreve o tema do domínio da
natureza e que recorda, entre a humanidade atual, as suas cicatrizes.
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“Nesse sentido, quisemos nos medir com o imaginário coletivo, conceito que,
mesmo permanecendo um pouco misterioso e inapreensível, há tempos já é
objeto de pesquisas aprofundadas e do qual, bem ou mal, derivam nossos
atuais comportamentos e modos de vida. E que melhor definição poderíamos
encontrar do que o cinema, que realmente pode ser considerado o imaginário
em obra? E se pensarmos que a própria palavra imaginação é a síntese de
imagem e ação, parece-nos que o cinema, local privilegiado da imagem em
ação, tem o poder de condensar, em seu aspecto natural que é o filme, junto à
coisa imaginada também a faculdade de imaginar”.
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é ressarcido bem além da sua obra restauradora, para se tornar press agent de
siogans neoplatônicos de sucesso.
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