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Luiz Femnado Carvalho. Brasil: [S.n], 1998, 5. Género e sexualidade em Tomboy, de Céline Sciamma RAFAEL KALAF COS! ista_graduado ui lade de Séo Pai 50 Teoria, técnica e estratégias espe © mestre em Psicologia ci Obra 801! Gnemae Pscondlise Volume 3: Fes que cram Tombey € um termo que designa uma menina que apresenta comportamentos ¢ aparéncia masculinizados, ou seja, uma crian- 2 do sexo feminino que desenvolve a pratica de atividades, adora ‘o vestuério ¢ um estilo corporal mais préximos do que é comum a0s meninos. Tombgy (2011), 0 sobretudo, a construgdo da identidade sexual a partir da suposta incoeréncia que a protagonista evidencia: 0 sexo de seu corpo néo acompanha seu género sexual. Sciamma explora um tema caro & psicanalise, 0 universo dos sexos e dos géneros. Existe toda uma tradicdo de filmes que se focam na questo do transito entre os géneros — do cémico Tootsie (1982) ao dramati- co Meninos néo choram (1999). Tombay traz frescor a essa linha- gem. Primeiro, por localizar essa encenago na pré-adolescéncia. © “embuste” da protagonista esté entre a brincadeira infantil e a experimentacio sexual tipica da adolescéncia — ambiguida- de sustentada do inicio ao fim por Sciamma. Em segundo lugar, porque o filme recusa psicologismos rasos. Laure, a protagonista, do € vitima de um lar desestruturado ou filha de pais inade- quados, nada indica que passou por um trauma; também néo aparenta padecer de algum distirbio ou doenga mental, muito pelo contratio. © filme anterior de Sciamma, seu primeiro longa-metragem, Lirios d'agua (2007), também trata com delicadeza o tema da sexualidade a ser descoberta — foca o despertar do desejo sexual em trés meninas adolescentes — e, 14, j& transparecia seu talento para a direcdo de jovens atores. Zombay (2011) foi aclamado pela critica especializada e Sciamma € considerada um dos grandes nomes do futuro cinema francés. 0 filme foi © ganhador do Teddy Bear, prémio para produgées com temas gays no Festival de Berlim, dentre outros, como nos festivais Genero sexualdade em Iamboy, de Céline Scomma |. 81 de Sao Francisco, Filadélfia e Torino, Por aqui, fol o vencedor do festival Mix Brasil, também dedicado a producées gays, em novembro de 2011. ‘Sciamma opta pelo simples, tanto em termos de camera como de didlogos. As cenas transcorrem com maior frequéncia no cam- po, onde as criancas brincam e jogam. Ar bucélico e cenas longas, nas quais a diretora desenvolve a histéria sem qualquer pres- a aparente. Imprime-se um tom naturalista a fotografia, o que contribui para a criacéo de uma atmosfera crua, sem recorrer a ‘grandes aderecos: a grandiosidade esta na sutileza, tanto estética quanto na atuacéo dos atores. £ um fllme em que cada detalhe é precioso, diz o fundamental sobre o assunto sem desperdicar uma ‘inica imagem, palavra ou gesto. © roteiro € enxuto e direto, mas esté longe de tratar de uma temética pequena. A diretora ganhha a cumplicidade do espectador Por discutir de forma singela, mas nunca superficial, caricata ou moralista, o tema da construcdo da identidade sexual no contexto da pré-adolescéncia, tocando numa questéo que é comum a todos os seres falantes e que, principalmente neste periodo da vida, cheia de mal-entendidos e, por si s6, muito inguietante (no caso de Laure, também dolorosa). 0 elenco é principalmente mitim: Zoe Héran (Laure) e Mallon Lévana (Jeanne) esto exuberantes. A figura carismatica da protagonista, aliada a uma aparente fragi- lidade, reforca 0 elo com o piblico. Muito astuta a escolha de Sciamma por tratar duma proble- mética to espinhosa a partir do mundo divertido das criancas, alegre, despreocupado e livre. Grande parte do filme se passa no bosque, na “natureza’— tal cenério & associado a algo “fora da let", fora do mundo adulto civilizado. Porém, mesmo na infancia, Periodo da vida que se costuma idealizar como puro e ingénuo, jé 82 | Ghema ePscondlse Volume 3: Fmes que corm afloram os germes do preconceito e da discriminacao. Sciamma do cai no lugar comum de bipolarizar infancia e vida adulta, aquela marcada pela inocéncia e esta pela moralidade. Pelo con- trario: se a mae cede a um impulso de truculéncia ao descobrir que a filha se apresentava como menino, é no ambiente infan- til que Laure enfrentard seus maiores entraves. Sdo flagrantes a crueldade, rivalidade, a intolerdncia e a segregacdo, j& manifes- tadas pelas criancas. Por sinal, ha muito tempo Freud jé insisti que a Infancia néo é um periodo tao imaculado como se costuma- va pintar, muito menos em relacio a sexualidade ‘Tratar da construgio da identidade sexual a partir deste perfo- do pré-piibere tem o mérito de deslocar a questéo para além da sexualidade reduzida a uma prética sexual, incluindo para a dis- cussdo a funcdo do reconhecimento do outro neste processo, 0 pa- pel do nome e, principalmente, como a cultura heterossexista jé rnos marca desde muito cedo. Muitas outras questdes so desper- tadas. Laure passava por uma crise de identidade? 0 conflito era com ela prépria ou com a rea¢do que ela conhecia da cultura em relacdo a seres que se portam como ela? Trata-se de patologia? No alto dos seus 10 anos, ela j tina estabilizada sua identidade sexual (omo menino)? Ou melhor, o género se estabiliza, o que é género, como tal fator se relaciona com a diferenca sexual..? Ow Laure estava brincando, se fazendo passar por uma experiét Em tiltima instancia, o filme, com muita elegancla, aborda a capacidade que temos de lidar com a diferenca, sem a pretenséo de tomar um partido: nao é panfletério ou militante, no cai na tentacdo comum de se atribuir causas répidas aos comportamen- tos dos personagens nem aponta para nenhum “germe patdge- no". Néo hd julgamento, vulgaridade ou ridicularizacéo. Nada std definido a respeito da construcio da Identidade ou quanto 20 desejo sexual de Laure. A questo permanece em aberto. Genero e sexualdade em Tomboy, de Céline Séamma \ 83 5.1 Enredo e narrativa Se néo soubéssemos do titulo do filme, provavelmente n&o saberiamos o sexo da linda crianca que aparece logo na primeira cena (seria importante saber?). Os cabelos curtos 2 camiseta amul ¢ larga ndo séo decisivos, o que prevalece é a imagem de fada, de pé dentro do carro, com meio corpo para fora do teto so: Jar, ao vento e & luz que salpicava as folhas das drvores. A cena seguinte também € uma preciosidade, com ela no colo do pat ao volante, onde as maos de ambos se alternam na conducao do veiculo, 0 que jé faz pensar sobre quem conduz 0 qué e até que ponto os pais t8m a direc do percurso que a vida do filho vai te. Laure é uma menina de 10 anos que se muda com a familia (0 filme dé a entender que jé se mudaram outras vezes) para um condominio da periferia de Paris. £ extremamente doce ¢ brin- calhona com a irmé Jeanne, de seis anos. Todos da familia séo muitos carinhosos uns com os outros e o ambiente de casa parece muito harménico, cada um desempenhando seu papel. Sabe-se que os pais t8m por volta de 30 anos ea mae esta gravida. Os da- dos que temos de Laure € que ela quis que seu novo quarto fosse pintado de azul e que tem um visual mals préximo do estereétipo masculine. ‘Um microevento é muito revelador, a leitura de uma passagem de 0 livro da selva, de Rudyard Kipling. Nao € & toa a referéncia a tal obra. Laure 1é para a irma 0 momento em que Mogll se as- ssusta e arregala os olhos frente & aparigdo do urso monstruoso, © que jé serve de antincio para a grande revelacéo que seré feita no filme e o grande espanto decorrente dela. Mogli foi criado na floresta pelos lobos, onde aprendeu a viver de acordo com os re- sgulamentos do meio, sob os valores de honra € moral, aprenden 4 lutar, mantém relagées afetivas com os animais, etc. Perdido € 84 | Gnemae Psicandlse Volume 3: Filmes que com contente, maravilhado em estar. Na sequéncia da histéria, Mogli empreende uma jomada em direcio a civilizagao. Contudo, néo se adapta a esta nova vida, sente falta da liberdade da selva, no coaduna com certas marcas do humano como o preconceito, a inveja ¢ a ganancia, 0 que culmina em seu retomno & selva. Sciamma traz, assim, uma pista fundamental para o entendimen- to da historia de Laure. A primeira erianga que conhece em novo ambiente é Lisa, que aparenta ter a mesma idade que a sua. Lisa a “confunde* com um. menino ¢ Laure néo desfaz este mal-entendido. Questionada sobre seu nome, Laure diz se chamar Michael e, assim designado, serd introduzido ao grupo dos garotos. Laure, ento, que optara por uma aparéncia masculina, passa a se intitular sob um nome de ho- ‘mem. A questdo do reconhecimento e da nominagao é fundamental ara nossa discussio e é em tomo dela que se constitui o momento decisive da trama. Afinal de contas, o sujeito € 0 que se nomeia. Mesmo sabendo se tratar de um Tombgy (2011), nao é sem surpresa para 0 espectador ouvir pela primeira vez, o que se di pela boca da mde, a protagonista ser chamada pelo seu nome proprio, Laure, e quando esta se levanta da banheira, dando a vista seu corpo de menina. Agora est confirmado! A imagem do corpo sexuado de mulher “bate o martelo” a respeito do que © nome ja anunciara. Laure brinca com a irma “coisas de menina”, mas séo nitidas sua pouca empolgacéo e preferéncia pela companhia dos meni- nos. Laure/Michael € livre para expressar sua identidade sexual ‘masculina, seus pais néo a reprimem nem parecem se incomo- dar com isso, haja vista a bonita cena em que eles entregam as chaves da casa para Laure, que agora pode entrar e sair quando guiser, ¢ ela as ata ao cadarco do seu ténis de menino. Mas é livre até certo ponto. Genero e sexualidade em Tomboy, de Céline Scammma | 85 Laure/Michael nao parece ter multas dificuldades em adotar © género masculino: tem todo um jeito de se movimentar tfpico do estilo dos meninos, é bom parceito de jogo, é valente ¢ néo foge as brigas, paquera Lisa, ete."Vocé néo é um menino como os outros”, diz esta titima a Laure/Michael. De fato, do € mesmo. £ mais educado, atencioso, sensi jcado que os outros, dé atengdo & Lisa, ndo zomba dela, danca com ela ¢ até se deixa ma- quiar um pouco. Lisa nao esconde seu deslumbramento. Desta forma, a protagonista insere-se no grupo dos meninos sem levantar suspeitas. E vero, tempo de férias escolares, as criancas brincam no bosque-natureza, onde a civilizagdo ndo fez ainda sua entrada ~ parece um tempo idilico. Ao mesmo tempo em que jé se nota certa erotizacao nas relacdes de menino e menina, ainda assim tudo é muito leve, dando a entender que se trata mai de experimentacées, de uma época de descobertas, tanto do beijo quanto do gosto da urina. Mas néo seré sempre assim: de um con- to de fadas no bosque passamos & entrada na sociedade humana, 0 espectador € colocado ora fora da trama, como observador, ora convocado a se pér na pele de Laure. Nao sem aflicéo, teme que seu corpo de menina se dé a ver, justamente por prever uma possivel reacao negativa do outro frente a tal revelagéo. Sciamma € muito perspicaz na escolha de epi que s4o aparentemente banais, mas que podem ser muito conflitives para um pré-adoles- cente, destacando-se a cena em que os meninos urinam uns na frente dos outros no bosque, a cena do nado na lagoa ou frente a ideia de como seria sua vida na escola, quando fatalmente sua identidade civil seria revelada. Desta forma, pequenas tensies atravessam toda a narrativa (serd Laure desmascarada?), mas tal componente de suspense é astutamente manipulado para nao se revelar enquanto tal; @ profundidade da descricéo das persona- gens é 0 que tem mais forca, 86 | Gremae Pecans Volume 3: Filmes que carom Laure/Michael sabe de sua simulacdo e que a qualquer mo- mento ela pode ser posta as claras, dafcria estratégias espertas de disfarce. A cena em que modela a massinha para esta adqui- rir 0 formato de um pénis a ser colocado sob a sunga que aca- bara de customizar recortando seu maié de menina é um primor de cinema: ela sabe a importéncia que a imagem tem, fica se espreitando longamente no espetho, sabe que na nossa cultura © corpo deve andar junto com género ¢ © quanto o olhar dos. outros nos enclausura e nos condena a um padrao de normali- dade ao qual Laure/Michael se esforga para se adequar. Depois do banho na lagoa, guarda o “membro” na mesma caixinha onde estao seus dentes de leite — sinal de transicéo, simbolo concreto de uma época passada que ndo volta mais. Prevalece © cardter Iidico: mechas se transformam em bigode — Laure e a irma se divertem, Nao h4 como néo admirar a habilidade e a termura com que Sclamma enfoca 0 terreno movedico dos sexos e dos géneros. Estamos no verdo, o periodo é de desenraizamento e transicao, de descobertas e de insercdo. 0 espectador acompanha com vibracéo ‘quando Laure/Michael tira a camiseta no jogo de futebol e cospe no cho, imitando outro menino. Temos uma marca de coragem, tomada de decisto, afirmacao puiblica de pertencer ao grupo dos meninos, Uma identidade em formaao? Porém, a “farsa” € revelada e sua graciosa irma é a primeira a saber. Jeanne a questiona, mas ndo a condena. Aceita jogar o jogo de Laure, pois ganha em troca algo muito valioso para ela: um Irmao que a protege e que a faz se sentir a escolhida, a preferida dentre as outras meninas. f o olhtar puro e livre de preconceitos, fora da contaminacao dos padrées que ditam regras de norm: dade e que acarretam discriminacao ¢ intolerancia, = oF Género sexuoldade em Tomboy, de Cline amma | 87 Quando meninos do condomfnio ficam sabendo do embus- te, fazem Lisa confirmar o sexo de Laure, exigem que olhem seu. corpo. Em nossa cultura, 6 0 olhar para anatomia o que defint- tivamente determina se € homem ou mulher — éa légica da vi- sibilidade que, servindo de miragem félica, decide onde se esté na partilha dos sexos. Mesmo na infancia dos dias de hoje, tal discurso prevalece — 0 género sexual que nao € coerente ao corpo sexuado que se dé ao olhar ainda causa espanto. Na sequéncia, 08 meninos condenam Lisa por ter beijado outra menina, repug- nando tal situacdo. Como Sciamma faz questao de enfatizar, néo sem impacto para o piiblico, as criangas do século XXI ainda séo regidas pelo modelo da “heteronormatividade”, para usarmos 0 termo de Butler. No filme, do mundo dos adultos, sabe-se muito pouco. Porém, séo eles quem engendram uma solugéo para a trama. Os pais de Laure so permissivos, encaram-na como se ela estivesse brin- te a no ser ultrapassado. O ponto de virada se dé quando a mae descobre que a filha passou a se apresentar como menino, sob o nome de um homem. Consequentemente, a mde constrange a fitha a assumir seu sexo perante 05 outros, alegando ser obrigada a exigir tal retra- Go de Laure. Obrigada por quem? Pelo Outro simbélico, que ela representa, ¢ pelos outros, pelas instituigées, pela sociedade que no tolera o que foge & primazia da Le a. Até porque 0 periodo escolar jé estd para se iniciar. Sua mde mostra, assim, que todos estamos submetidos inescapavelmente a Lei, portanto ‘no se troca um nome proprio, ndo se altera a identidade civil a esmo, sem @ autenticacéo do Outro. Ninguém encara a Lele @ liberdade nao ¢ ilimitada — este € um dos precos a se pagar pelo. ingresso em nossa cultura. Volume 3: Fimes que cura 5.2 Género e identidade O que leva Laure a adotar o género oposto ao seu sexo? Trata- -se de uma determinacdo patolégica? Embriao de homossexus dade, j4 que Laure demonstra interesse em estabelecer uma pr tica sexual com um ser do mesmo sexo, ou de transexualidade nascente, pois é evidente que seu sexo discorda vigorosamente do género sexual que expressa? A sexualidade sempre foi um ter- reno privilegiado pela psicandlise. Neste sentido, Tombay (20' provoca muitas reflexdes aos psicanalistas. Em outro microevento do filme, Laure ¢ seu pai jogam o jogo de cartas das sete familias. Cada carta traz estampada um mem- bro de uma determinada familia. Tem-se por objetivo constituir familias inteiras. O interessante é que consta no funcionamento do jogo enderecar aos outros a pergunta se estes possuem as car- tas de certos membros da familia que faltam ao jogador — em caso afirmat carta € apanhada pelo jogador desejante. A carta desejada, um membro da familia, € solicitada ao outro. No filme, o pai solicita Laure a Laure, e quem vem € Michael? Ou 0 pai solicita Michael a Laure, jé q ce cerveja.e diz que gostaria que ela jogasse poker: cerveja e poker compéem fortemente o esterestipo masculino. Sabemos que mui- tas confusdes identitérias decorrem do fato do outro desejar que 0 sujeito se apresente genericamente as avessas do género que seu corpo deveria corresponder. Freud formula ao longo de sua obra uma teoria sobre o de- senvolvimento da identidade sexual. Rapidamente falando, a bissexualidade € condicdo origindria de todo sujeito, assim como (08 tragos perversos polimorfos. 0 advento do Edipo permi sujeito concentrar as pulsdes na zona genital e se identi , na mesma cena, ele Ihe ofere- Géneroe seruadade em Tomboy, de Céline comma | 87 no final deste percurso, com 0 pai, no caso dos meninos, ¢ com a mae, no das meninas, e adotar os seres do sexo oposto a0 seu como objeto de inal. Mas Laure néo se identifica com a mae, identifica-se com 0 pai. A cena descrita anteriormente abriria esta possibilidade? Freud adota a heterossexualidade como estado natural e toma 0s dois sexos como incomensurdveis. & como se em Freud a dis- tingdo de género se desse como consequéncia da decisiva dife- renciagdo dos érgéos sexuais, a partir da entrada no campo da cultura via Edipo. A ndo coeréncia entre sexo e genero relega 0 sujeito ao campo da patologia. Na esteira desta concep¢ao, decor- re 0 lacanismo dos anos 1950, munindo-se do arcabougo teérico do estruturalismo e da linguistica: € sob a incidéncia do signi- ficante Nome do Pai que o sujeito se constitul, posiciona-se na partilha dos sexos e assume sua identidade sexual. Foi o psicanalista americano Robert Stoller quem introduziu ‘a nocéo de génera. Na sua obra Sex and gender, de 1964, Stoller pretendia descobrir como se dava a formacao da identidade sexual e forja 0 conceito de “mticleo de identidade de género", a marca fundadora e decisiva do género sexuado a ser determinada, contra Freud, antes do advento do Edipo, e para tanto se volta a pesquisa do transexualismo. A nocéo de género entra na psicandlise pelo viés da psicopatologia: Stoller (1982) entendia 0 transexualismo como fruto de um disttirbio egoico, j4 que 0 sexo do individuo nao concordava com seu género. Evidentemente, a psicandlise citada acima autentica a tradi- ao do pensamento ocidental modemo - que concebe 0 sexo € 0 sgénero como fatores bindrios e opostos, herdeira dos cédigos do patriarcado, que adota o discurso biologizante como referéncia e 0 modelo da reproduco sexual como paradigma. 0 erro aqui & conceber que “sexo” e “género” tém cardter fixo e anistérico, 90 | Cinema e Pscanlse Volume 3: Filmes que cum assim como o “natural” & que tais fatores andem juntos. Ao lon- g0 da histéria, 0 sexo néo foi entendido tal como é hoje. Antes do século XIX, por exemplo, prevalecia 0 modelo de isomorfismo corporal, ou seja, 08 corpos homem e mulher no eram radical- mente opostos pela anatomofisiologia, mas diferenciados a partir da quantidade de um material metafisico comum, como o calor dos corpos (Laqueur, 2001). Ha até quem sustente que devemos pensar sexo e género para além do modelo de oposicées bindias, ideia desconstrucionista forte nos estudos queer. De toda forma, ‘exo € género séo frutos de discurso e determinados por relacées de poder. Nos termos de Judith Butler (2003), a matriz heteronor- mativa vigora e determina que os seres que no mantém relaco de coeréncia e continuidade entre sexo, género, desejo e praticas sexuais séo relegados ao campo da patologia. Laure sabe disso e, logo ao final do filme, depois de ser desmascarada, 6 ao bosque {assim como Mogli) que recorre e retira o vestido que escondia as roupas de menino abaixo dele. Lé estd sozinha, em meio ao silén- cio acolhedor da natureza, que nao Ihe opée barreiras nem impoe enquadramentos 20 modo da civilizacdo heterossexista. Importante insistir que o estatuto da matriz heterossexual néo é 0 da natureza, mas decorre de uma prética de poder. Além do mais, ndo existe uma determinacdo natural para o género, seu cardter € imitativo e totalmente dependente do momento histéri- co; 0 que existe é a parédia de género. Género é um ato performa- tivo e s6 existe enquanto € encenado. Lacan, no seminario XVIII, critica a concepcdo stolleriana da identidade de género. Na ética lacaniana deste momento, tal formacdo identitéria ndo consiste em se acreditar homem ou mulher, néo deriva da sensagdo de se pertencer a este ou aguele sexo, como queria Stoller. Ainda segundo Lacan, nao é a Géneroe seruokdade em Tomboy, de Céline Scomma | 91 biologia nem uma operagéo de nominacdo (Vocé é uma menina! Vocé é um meninol) 0 que assegura ao sujeito seu ser sexual A identificagéo sexual consiste em levar em conta que existem mulheres, para o menino, e existem homens, para a menina. Neste sentido, nao hé como o pensar “homem” ou “mulher” dis- sociados um do outro: homem s6 pode ser definido com relacéo a mulher, ¢ vice-versa. Os géneros ndo tém substancia intrinse- caa.les, £ aqui entra o semblante na sua dimenséo sexualiza- da: trata-se de “parecer-homem” ou “parecer-mulher” (LACAN, 2009/1971. p.30-33). ‘Nota-se um encontro interessante entre Lacan e Sciamma. 6 Lisa quem reconhece pela primeira vez Laure como menino. E é frente & Lisa que ela se denomina pela primeira vez como Michael. Laure/Michael $6 € menino porque foi reconhecido e autenticado como tal por uma menina. Sciamma persiste nesta ideia: na il tima cena do filme, € frente & Lisa, novamente, que Laure vai se retratar, revelando seu verdadeiro nome. A psicanélise tem um didlogo muito proficuo com 0 mundo das artes. Mas ndo deverfamos nunca ceder a falacia de diagnos- ticar os personagens. Nada pode ser afirmado categoricamente a respeito do caminho que a sexualidade de Laure vai tomar. E Sciamma nao dé brechas. A dramaturgia foge do Sbvio o tempo todo, nao cai na vala comum do “cinema comercial”: ndo explica, as motivacées da menina, ndo indica causas de nenhuma ordem ‘que supostamente justificariam seu comportamento, nem apon- ta qual seria seu futuro. Na iiltima cena do filme, nao ha mais pistas, s6 um siléncio que grita e um pequeno sorriso gracioso de Laure. Como se escuta quando estdo todos a volta do irmaozinho re- cém-nascido que acabara de acordar: despertar nao ¢ fécil. 972 | Cinema e Psicandise Volume 3: Filmes que cxram Referéncias bibliograficas BUTLER J. Problemas de género: feminismo e subversao da iden- tidade. Rio de Janeiro: Civilizagéo Brasileira, 2005. FREUD, S. Edicdo standard brasileira das obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. KIPLING, R. Le livre de la jungle. Franca: Hachette jeunesse, 2009. LACAN, J. 0 semindrio: livro 18: de um discurso que nao fosse semblante. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. LAQUEUR, T. W. Invencando o sexo: corpo e género dos gregos a Freud. 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