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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


ESPECIALIZAÇÃO: TÉCNICA KLAUSS VIANNA

Rosemeire Alcantara Prado

OS PROCESSOS DE INDIVIDUAÇÃO NOS CAMINHOS DA APRENDIZAGEM

“A gente se acostuma com o ar poluído, com o céu sem estrelas. A gente se acostuma com a hipocrisia,
a falsidade, a corrupção. A gente se acostuma com a violência, as catástrofes. A gente se acostuma
com as palavras duras, a não ser notada. A gente se acostuma com a ignorância. A gente se acostuma
com a democracia parcial, a falsa liberdade. A gente se acostuma com as influências. A gente se
acostuma com um dia meio produtiva, uma noite meio dormida, uma vida meio vivida. A gente se
acostuma com o razoável, quando o que a gente merece é o extraordinário.”

(Emily Figueiredo Fernandes, Carolina Santos e Bianca Santos,


arte-educandas de Circo, 14 e 15 anos, na região do Capão Redondo/SP: 2014)

São Paulo
2014
 

 

1. OS PROCESSOS DE INDIVIDUAÇÃO NOS CAMINHOS DA APRENDIZAGEM.


Rosemeire Alcantara Prado

1.1 Introdução
1.Não decore passos, aprenda um caminho. (Klauss Vianna, apud
Neide Neves)

Antes de adentrar no tema escolhido, é importante esclarecer a opção


por discorrer sobre os “caminhos” e não processos, etapas, métodos ou conceitos. A
partir das reflexões deste texto, almejo observar alguns dos fenômenos que ocorrem
nas trajetórias da arte-educação, as relações que se desenvolvem, o que está por vir
e o que este corpomídia traz e produz mutuamente, o que é definido e descoberto aos
olhos do arte-educando, nas suas atuações que criam possibilidades dialogais. O arte-
educando como aquele que desenvolve e cria seu próprio caminho, ou caminhos, para
a aprendizagem e o artista-educador como mediador nestas trajetórias.
Inúmeras vezes, programas pedagógicos em artes apresentam
expectativas em relação ao arte-educando que desconsideram a mutabilidade das
afecções e dos afetos, bem como, de tudo que está ao entorno, fundamentais à
criação de imagens mentais, programas desconectados à organização do tempo e do
espaço, com proposições estéticas genéricas e fechadas que desconsideram a
complexidade das identidades performativas, que se constroem o tempo todo. Esta
situação gera um paradoxo no qual o próprio programa entra em embate com os
caminhos da aprendizagem, como se estes gerassem ruídos e resíduos a organizar
para que o processo pudesse se instaurar, como se o corpo precisasse (e pudesse)
ser “zerado” para que um novo conhecimento seja docilmente apreendido.
Observações sob o olhar de arte-educanda (ou aluna), nos caminhos
desenvolvidos durante o primeiro semestre nos estudos da Especialização em
Técnica Klauss Vianna, e como artista-educadora, em um projeto artístico-pedagógico
da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, servirão de base para este texto,
como elucidação do caminho em percurso e apreensão de meu corpomídia que, por
não se repartir, tanto aprende quanto ensina em todos os momentos.
 

 

1.2 A compreensão das esferas das subjetividades

A esfera central da subjetividade, compreendida como pré-individual,


compreende os aspectos básicos da comunicação em grupo e formação da
coletividade, considerando aspectos da língua histórico-natural, cultura geral,
cooperação social como tarefa, as dotações biológicas genéricas e outros elementos
que condizem a condição humana de forma geral em um determinado espaço de
cultura (comumente definido pelo tempo e o espaço) e suas percepções sensoriais. É
nessa esfera central que as primeiras teias das relações do olhar da arte-pedagogia
atuam para criar possibilidades a construção do conhecimento, fomentando um
espaço primordial de escuta, comunicação e mediação.
O primeiro encontro do artista-educador e o arte-educando ocorre nesta
esfera central, importante ponto inicial, porém a estagnação nesta esfera incidiria em
um risco de considerar uma história única, que muitas vezes fazem com que todos os
indivíduos de uma determinada região ou grupo recebam os mesmos olhares
apreciativos, como massa. Em uma conferência, a escritora nigeriana Chimamanda
Adichie narra sobre como as expectativas sobre suas origens preparavam para ela
previamente uma interlocução repleta de conceitos gerais e imagens envoltas em
mitos sobre o que a maioria das pessoas tinha como expectativa por uma nigeriana
e como ela mesma também tinha uma história única para pessoas que estavam em
classes econômicas inferiores a que ela pertencia, como pessoas que nada produziam
de belo, que apenas tinham uma dura realidade de miséria e nada mais as ocupava
ou caracterizava.
A permeabilidade do artista-educador como ser participante deste
processo é essencial para que os as singularidades possam permear e compor os
caminhos pedagógicos, nos quais artista-educador e arte-educando realizam uma
trajetória em conjunto, dialogal, considerando os afetos e afecções de ambos para a
composição e desenvolvimento do conhecimento, nestes processos de mediação, nos
quais a informação se constrói, ressaltando que:

2. A informação se constrói, inevitavelmente no “entre”, na “mediação”,


na ação inteligente dos signos. (Greiner, Christine: 2005)

Os processos desenvolvidos por aplicação de um programa pedagógico


genérico, que considere unicamente os aspectos gerais de um grupo e mantém o
 

 

artista-educador “excluído” do processo de aprendizagem, afastado como aplicador


de rotinas, exercícios e demais práticas, priva e restringe as possibilidades simbólicas,
ressignificativas e da possibilidade de novos estímulos e caminhos. O que se
caracterizaria como uma cegueira para os sentidos produzidos, lutando contra fluxos
cognitivos, desperdiçando os aspectos que caminham para a individuação, fechando-
se aos marcadores somáticos, que alimentam os passos do caminho artístico-
pedagógico, embora não sejam definitivos, são importantes pontos para a
compreensão, o desenvolvimento do raciocínio e as habilidades de decisão. Trilhar os
caminhos de aprendizado, junto ao arte-educando, infere em uma cumplicidade, que
permite com que os aspectos da individuação apresentem-se e colaborem nas
pesquisas. O afastamento do estado de aprendizado por parte do artista-educador,
muitas vezes, bloqueia os estados corporais dos arte-educandos, dificulta o
compartilhamento de imagens fundamentais aos caminhos criativos do corpo-artista,
bem como os fluxos de ideias, a comunicação entre os objetos (entorno, humano,
material e sensorial), o vislumbramento de novas possibilidades e criam um embate
aos processos de individuação, tratando o grupo como massa, dependente de uma
única condução, como uma representação de um biopoder em uma sala de aula,
quanto menos o artista-educador envolve-se, é afetado e tem seus próprios processos
de individuação em movimento em sala, mais a ideia de “arte-educandos-massa” é
reforçada, menos a individuação desses arte-educandos é percebida e considerada,
menos estados corporais são considerados e consequentemente atravancam a
formação do raciocínio.
3. Em qualquer circunstância, o primeiro caminho para a conquista da
atenção do aprendiz é o afeto. Ele é um meio facilitador para a
educação. Irrompe em lugares que, muitas vezes, estão fechados às
possibilidades acadêmicas. Considerando o nível de dispersão,
conflitos familiares e pessoais e até comportamentos agressivos na
escola hoje em dia, seria difícil encontrar algum outro mecanismo de
auxílio ao professor mais eficaz. (Cunha, Eugênio: 2008)

Embora o contexto em que Cunha trata a expressão “afeto” não seja


totalmente equivalente ao conceito estudado nos processos de individuação,
derivados da definição que Spinoza realiza como um indicador para sabermos se o
encontro com uma afecção foi bom ou ruim, que gera um aumento ou diminuição de
nossas potências, podemos correlacionar este afeto (Cunha) com a disponibilidade à
afecção, a ser atingido, tocado por ações de um outro corpo, de fazer parte dos
desenhos descobertos dos caminhos artísticos, em um esforço para que estes
 

 

encontros (afetos) sejam bons e permitam permear, adentrar em vias que o estado
impermeável de comando não poderia adentrar.
Complementarmente, é de suma importância perceber que a
observação da pré-individuação não é nociva, apenas é insuficiente aos caminhos
pedagógicos, a individuação não substitui a pré-individuação, estas esferas manter-
se-ão sempre em conjunto. A individuação nunca chega a sua forma completa e
sempre irá conviver com os aspectos da pré-individuação.
Uma representação da ideia de multidão também pode ser notada em
um recorte de espaço de aulas, no qual não mais é suficiente receber e executar
comandos de um exercício para a satisfação expressiva do arte-educando, que
necessita afirmar sua singularidade nos processos artísticos.

1.3 Caminhos e imagens


4. Ao que tudo indica, a singularidade de um corpo está ligada à
identidade das suas ações em um ambiente e fluxo incessante de
imagens que não apenas o identificam em relação aos demais seres
vivos, mas o tornam apto a sobreviver. (Greiner, Christine: 2005)

No cotidiano em sala de aula e demais espaços de experimentação


artístico-pedagógica, em sua maioria ministradas nas periferias de cidades da região
conhecida como Grande São Paulo, direcionadas a crianças ou adolescentes, as
necessidades de ressignificação, compartilhamento e compreensão das imagens que
fazem parte do convívio diário dos arte-educandos mostra-se como algo urgente,
como um fluxo que se alimenta continuamente e multiplica-se de modo incontrolável,
transbordante. O esforço para permanecer na existência, identificado por Spinoza,
expressa-se pela incessante necessidade comunicacional, em caminhos compostos
por movimentos, sons e tantas outras manifestações, como as palavras que, segundo
Christine Greiner, são constituídas no cérebro primeiro como imagens verbais e em
seguida, como imagens não verbais, ou seja, conceitos.
A partir destes conceitos, o arte-educando cria possibilidades de
ressignificação, análise das realidades, criação artística e, principalmente, ao formular
seus próprios conceitos, vislumbra seu próprio caminho para o aprendizado e o fazer
artístico e sua potência expressiva, em um processo de individuação. Neste caminho,
a fala, como característica pré-individual, inicia um caminho do ato individual da
palavra quando:
 

 
5. A palavra explicita a consciência que vem da ação, e feita pergunta,
penetra a espessura sólida da situação, rompe o feitiço da passividade
frente à opressão. (Paul Ricoeur: 1970, apud Jesús Martín-Barbero)

Na aprendizagem de um caminho, se realizado de modo a contemplar a


autonomia do arte-educando, diferentes recursos são descobertos, criados e
chamados para compor as ações, alguns desses recursos são peculiares à cada
indivíduo e estão em constante mutação, dando espaço ao movimento não
padronizado, assim como cita Neide Neves sobre Klauss Vianna (Estudos para uma
dramaturgia corporal):
6. Acreditava que o corpo ao ser deixado disponível para se mover, a
partir de instruções adequadas, poderia acessar a memória e fazer
emergir intenções e significados, independentemente da vontade ou
não. Buscava a diversidade na peculiaridade, portanto, na organização
corporal, de cada intérprete. (Neide Neves: 2008)

Certa vez, juntamente a um grupo de crianças, em um exercício no qual


em pequenos grupos havia a proposta de buscar em livros com histórias variadas,
espaços diversos (geográficos, corporais, imaginados, da memória, entre outros),
durante o enunciado, ao compreender o que era o espaço da memória, uma das
crianças disse “A memória é um lugar cheio de gavetinhas, que a gente procura as
coisas quando precisa”, uma outra já respondeu prontamente, gesticulando conforme
sua observação: “A minha memória não está em gavetas, está toda misturada pelo
chão do quarto!”. Além de um divertido diálogo, nota-se a percepção e a expectativa
que cada uma tem sobre sua memória, que reflete nos caminhos criativos e no acesso
que cada uma faz às suas imagens.
Um grupo descobre um caminho de aprendizado por meio de sua
diversidade, das combinações entre suas singularidades, que se afirmam em um
caminho construído coletivamente, que não se perdem individualmente. Seria
infactível estabelecer um processo de aprendizagem que não se comunicasse com as
necessidades contemporâneas, nas quais os arte-educandos conectam-se com
mídias que lhes permitem buscar informações detalhadas e direcionadas às suas
necessidades e interesses, não somente de âmbito genérico, que se comunicam com
seus processos de individuação e chegam aos espaços de aprendizado já com
demandas que encontram estas necessidades, ao mesmo passo que não vislumbram
em suas rotinas a prática de delegar os cuidados do desenvolvimento de seus
conhecimentos a uma figura externa, vigilante e protetora. Sem considerar este
aspecto contemporâneo, no qual a singularidade afirmada na multidão não mais aceita
 

 

um processo verticalizado e generalizado de pesquisa artística, invertendo o que há


tempos atrás ocorria a partir, quase que unicamente, por meio do artista-educador,
nestes caminhos arte-educandos tornam-se propositores, protagonistas das
descobertas e estudos artístico-pedagógicos. E, ao contrário do que se possa
imaginar, a coletividade não é abandonada, esta torna-se ainda mais potente, pois,
além dos processos de pré-individuação, que continuam a existir e serem necessários
para manutenção da comunicação, a necessidade do coletivo se estabelece não mais
pelo poder “fusionante”, mas justamente pelo compartilhamento e necessidade das
afecções entre os indivíduos e pela busca dos afetos durante o caminho artístico-
pedagógico, nas suas expressões e no próprio esforço da existência, um grupo
representado por seus indivíduos.
7. Segundo Simondon, no coletivo busca-se afinar a própria
singularidade, ajustá-la segundo o diapasão. Só no coletivo, não no
indivíduo isolado, a percepção, a língua, as forças produtivas podem
se configurar como uma experiência individuada. (Virno, Paolo: 2013)

1.3.1 Conexões
O corpo que gera uma afecção a outro também recebe uma outra,
quando se observa um coletivo de arte-educandos nos princípios de multidão e não
de massa, respeitando suas subjetividades e considerando os processos de
individuação de todos, de modo algum isto significa que o artista-educador se abstém
de suas funções como mediador, provocador e ampliador nas práticas da pesquisa,
da busca e produção de saberes. Não se trata abandonar um coletivo ou criar práticas
que fomentem caminhos de indivíduos sem diálogo entre si, egocêntricas, isoladas,
lidar com estes arte-educandos-multidão é justamente participar dos caminhos de
ampliação de questionamentos, aprimorar e considerar as necessidades das práticas
que rompem e movimentam os desejos de geração de novas imagens, que não se
satisfazem em manter uma visão mecanicista do conhecimento, que anseia por
conexões em teias.
8. O bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno
até a intimidade do movimento do seu pensamento. Sua aula é assim
um desafio e não uma cantiga de ninar. Seus alunos cansam, não
dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu
pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas
incertezas. (Freire, Paulo: 1996)

Certa vez, em uma semana em que se comemorava o dia do Grafiti, do


Teatro e do Circo, antes da proposição de um exercício com arte-educandos das
 

 

linguagens de Artes Visuais e Circo, foi lançada a pergunta “Para vocês, qual o papel
da arte ?”, Bruna Borges (arte-educanda de Circo,17 anos) respondeu “Para quebrar
o automatismo do cotidiano”, outros adolescentes um pouco mais jovens
complementaram a ideia dizendo que sem quebrar este automatismo seria difícil
conseguir perceber o que e analisar o que acontece com este cotidiano, esta mesma
arte-educanda ainda disse que “a arte serve para expressar o eu lírico”, seguida de
outras observações que colocaram a função da arte como meio de expressão de si
mesmo. Dois elementos do conceito de multidão foram trazidos nestas reflexões: a
necessidade quebra de fluxo de algo que pertence ao geral (o cotidiano), mesmo que
isto gere unicamente uma reflexão, uma possibilidade de analisar sistemas e não
necessariamente de muda-los e de fazer isto a partir das expressões individuais,
daquilo que pertence a cada um a partir de uma conexão destas expressões: a própria
arte.
Em sua obra “O Corpo – Pistas para estudos indisciplinares”, Christine
Greiner discorre sobre a pesquisa de Damásio na qual o pensamento nada mais é do
que um fluxo de imagens responsáveis pela mudança de um estado corporal.
9. Assim, a fonte da subjetividade está sempre ligada à imagem de um
organismo durante o ato de perceber e de responder a uma entidade
externa. (Greiner, Christine: 2005)

O próprio subtítulo da obra de Greiner, nos faz pensar sobre estes


caminhos que se formam para a arte-educação, a conexão com a necessidade
contemporânea por um corpo multidão, que relaciona-se em redes com as entidades
externas, sobre um fluxo de imagens que, durante um caminho de aprendizado, passa
por diferentes vias.
Como arte-educanda, ou aluna (como geralmente é chamada a pessoa
participante de um curso de pós-graduação), percebo o conhecimento por meio de
diferentes canais sensoriais, uma cor ou uma temperatura, por exemplo, podem ser
fundamentais para que eu compreenda a noção de resistência na pesquisa de Klauss
Vianna, da mesma maneira que um arte-educando de Circo (Linguagem com a qual
trabalho na arte-educação atualmente) pode se apropriar, apreender e ressignificar a
ideia de impulsos e resistência na prática do acrobalance (trabalho de portagens,
conceito utilizado pela Linguagem circense, que dialoga com conceitos da Técnica
Klauss Vianna, porém sem exata significação) por meio do estudo dos apoios vocais
do Canto (música), nuances na comunicação do cômico circense (Palhaço) e
 

 

experimentações em Artes Visuais. Estas conexões fomentam a ampliação da criação


de imagens, do pensamento, à subjetividade que “está sempre ligada a imagem de
um organismo durante o ato de perceber e de responder a uma entidade externa“
(Greiner, Christine: 2005). Indisciplinarmente, para o pensamento (que compreende o
corpo) não há Circo, Canto, Artes Visuais, mas a percepção do próprio fluxo de
imagens que dialogam entre si, lembrando as falas das crianças sobre a percepção
de suas memórias, como algo que não está compartimentado em gavetas. Cabe ao
artista-educador fazer a mediação, suscitar espaços para questionamentos, ouvir
essa rede para entrar e contato e propiciar conexões desta, para que caminhos sejam
descobertos, trilhados, experimentados e novas afecções, novos fluxos sejam
movimentados, em direção à afirmação da autonomia do arte-educando, participar
ativamente nas descobertas deste caminho, não é induzir, nem mesmo criar
dependência restritivas, é aceitar a necessidade contemporânea do coletivo que se
estabelece como multidão, adentrando no modo comunicacional em rede de
singularidades, da qual o artista-educador, ser igualmente pertencente à
contemporaneidade, é parte. Seria ruidoso e extremamente penoso, desgastante, ao
artista-educador ir contra esta configuração, tentar configurar disciplinas
aprisionadoras e manter-se como força centralizadora de conhecimento para um
grupo que não opera nesta esfera, que historicamente está em outro modo de
comunicação, isto apenas provocaria uma linha abissal na interlocução deste com o
grupo e uma tentativa frustrada de formação compartimentada e vertical, incompatível
com os fluxos do conhecimento contemporâneo e denunciadores de propósitos aos
quais a multidão não compactua, colocando os anseios do artista-educador à frente
da autonomia do arte-educando.
10. Todavia, não são as áreas de conhecimento, mas sim as suas
disciplinas que tendem a se definir por uma coleção de objetos,
métodos e regras que capacitem a construção de seus enunciados,
cuja a função será a de controlar a produção dos seus discursos.
(Greiner, Christine e Katz, Helena: 2005)

1.3.2 Exercícios e práticas


Como artista-educadora da linguagem Circo, em um programa público
de cultura, no bairro do Capão Redondo (zona periférica sul do município de São
Paulo), ministro oficinas (ateliês, como chamam neste programa) para duas turmas
(crianças e adolescentes), sempre em dupla, característica peculiar da linguagem
neste programa, que prevê dois artista-educadores em sala para cada grupo de arte-
 
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educandos, tanto pela questão da atenção direta necessária para manter a segurança,
quanto pelas diferentes especialidades que a linguagem abrange (malabares
diversos, palhaço, acrobacias de solo, acrobacias aéreas, magia, equilíbrios de
objetos, equilíbrio corporal, apoios invertidos, bailados, entre outras), para as quais é
muito raro haver profissionais aptos a trabalhar plenamente em processos de ensino
com todas elas. Esta configuração traz ao planejamento, às preparações dos
encontros, uma pluralidade, pois são dois artista-educadores de origens profissionais
e artístico-pedagógicas muito distintas em seus conteúdos, embora semelhantes na
forma, ambos são igualmente atores e bailarinos (além de circenses), porém dentro
destes campos com especialidades e linhas de pesquisa muito distintas, ambos
acreditam no acesso ao conhecimento por redes de conexões e não como
transmissão depositória de saberes, o que abre um espaço para que já em princípio
ocorra uma primeira experiência comunicacional, na qual cada artista-educador tem a
sua identidade pedagógica, que de modo algum é abandonada nos percursos do
ateliê, mas também seja criado um terceiro caminho.
A seguir, narro duas das práticas que ocorreram recentemente nestes
ateliês.

1.3.2.1 Interface com a Biblioteca – Circo II (adolescentes) – Experimento: Livros para


não ler.

O planejamento do Circo II (adolescentes) tem como proposição


principal o estudo da palavra, como elemento passível de desmembramentos,
provocações, estudo das origens, consequências, diálogos, que desencadeiam e
disparam as comunicações com estudo do gesto/movimento. Na primeira etapa deste
processo o ateliê esteve em período de levantamento de referências e
reconhecimento de possibilidades de estudos sobre os diversos focos de pesquisa
que podem partir deste tema.

Como primeira interface, no espaço da Biblioteca, os arte-educandos


realizaram o seguinte programa (elaborado em conjunto por artista-educadores e
mediadores de leitura da Biblioteca):
 
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Pegue um livro qualquer (exceto literatura em quadrinhos) e, durante um


minuto, acompanhe as linhas do livro com o olhar, sem ler. As comandas para início
e fim serão: Abrir e Fechar. Ao final, constatar (sem compartilhar) as palavras que
ficaram na memória, mesmo sem a intenção de leitura.

Em seguida, cada arte-educando escolheu um espaço na Biblioteca


que nunca ou um muito pouco utiliza em suas permanências cotidiana, metade do
grupo foi vendado. Os demais disseram nos ouvidos destes as palavras que, mesmo
sem querer ler, ficaram residualmente em suas memórias durante o programa
anterior. Quais as palavras que mesmo que não queiramos nos atingem? Mais de um
arte-educando poderia dizer ao ouvido de um outro arte-educando vendado
(simultaneamente) as palavras que ficaram em suas memórias. Após o intervalo, na
sala do ateliê de Circo, os arte-educandos em conjunto com as auxiliares de leitura e
pesquisa (Karla e Susana) e nós artista-educadores realizamos um breve exercício
voltado ao aquecimento físico-sensorial, visando ampliar o estado de prontidão e
escuta, após este momento, os arte-educandos tinham como missão nos atingir
(artista-educadores e auxiliares de leitura e pesquisa), nos provocar com as palavras
que ficaram na memória, desde o momento que iniciamos o encontro do ateliê.

Neste dia, tivemos a participação não planejada dos arte-educandos de


Artes Visuais, devido à ausência do artista-educador desta linguagem, buscamos
inseri-los na ação, pois já estivemos juntos em estudos durante o semestre anterior,
porém poucos se prontificaram a experimentar as práticas, a maioria preferiu participar
somente assistindo. Certamente, alguns experimentos se diferenciam muito quando
há expectadores, mesmo assim foi possível colher importantes experiências deste
momento, tais como as indagações que partiram dos arte-educandos de Circo sobre:
Como somos invadidos por palavras que percebemos de onde vieram, como é
estranho e perturbador quando as palavras “chovem” sobre si, como elas se
transformam, o som das palavras pode incomodar dependendo de como estamos,
mesmo que sejam palavras com bons significados. A palavra pode “dar vontade de
fazer coisas com o corpo” (correr, se encolher, pular, etc). A palavra falada precisa do
gesto para completar seu significado (é diferente dizer a mesma palavra sentado, de
costas, olho no olho, com a cabeça baixa, olhando para o teto, sorrindo ou com cara
de mal-humorado, etc), também como é possível conduzir alguém a fazer algo
 
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somando o gesto e a palavra, mesmo que ela não queira (como no programa dos
“Livros para não ler”). Entre outras constatações expressadas pelos arte-educandos
que caminham para despertar uma curiosidade sobre a relação da palavra com o
gesto. Partimos da palavra grafada, escrita, que transformou-se em som (fala) e
consequentemente compôs o gesto. Estas constatações foram fundamentais para
estimular o desencadeamento de outras ações do processo que está em andamento
e aprimorar a qualidade do discurso das criações, identificando o elemento da palavra
como instrumento expressivo e disparador, ao que vai ao encontro com as premissas
de nossos planejamentos que primam pela ampliação das habilidades de
comunicação e conexões simbólicas. Durante um ano e meio trabalhamos juntos, na
mesma sala, com as mesmas turmas, em uma pesquisa que por si só traz uma
estrutura de divisão de proposições, além de uma proximidade corporal muito grande,
como é o Circo.

1.3.2.2 Interface entre Artes Visuais II e Circo II - Experimento: Do it.


(Dia do Circo, Grafiti e Teatro).

Inspirado na performance “Cut Piece”, realizada em 1965 por Yoko Ono,


os arte-educandos de Artes Visuais II e Circo II em conjunto, realizaram juntos o
seguinte programa:

Escreva em um pedaço de papel adesivo uma palavra e cole em alguém


ou algum lugar. Ao ler a palavra escrita nestes lugares realize uma ação de acordo
com a sua leitura desta palavra, a partir de elementos das linguagens de Artes Visuais
e Circo.

Realizado na arena externa, o espaço foi preparado com E.V.A.s para


proteger contra impactos e atritos comuns nas práticas circenses e três tapumes para
intervenções gráficas com tintas (spray e guache). Diferente das interfaces realizadas
até este momento (neste ano), esta incluiu a união de arte-educandos de dois ateliês,
desta maneira, iniciamos a prática (antes mesmo de apresentar o programa) com uma
roda de diálogos sobre o fazer artístico e a importância das interfaces e pontos em
comum entre as linguagens. Os questionamentos foram lançados, sem explanações
prévias, com o intuito de levantar impressões a serem refletidas sobre o assunto.
 
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Algumas das respostas foram: “A arte existe para nos expressarmos”; “Para estimular
a reflexão”; “Pelo eu lírico” (a arte-educando que disse isso, explicou dizendo que
referia-se à “expressão das subjetividades”, exatamente nestas palavras, o que nos
surpreendeu); “A arte serve para quebrar a rotina cotidiana”; “Quebrar o automático”;
“Humanizar a vida”. Segundo os arte-educandos, todas as artes tinham em comum
estimular a reflexão, o olhar crítico do público.

Imbuídos destes sentimentos e opiniões, os arte-educandos iniciaram a


prática. Algumas de suas constatações circundaram o espaço da palavra, refletindo
como estas podem ser alteradas ou alterar os espaços, a relação de pertencimento
de nossas ações ao espaço e do próprio corpo como objeto de expressão artística.
Outras observações também incluíram a ideia de que a palavra grafada, impressa tem
suas formas e que não deve ter sido ao acaso a escolha destas, sentir na pele
(literalmente) a escrita fez refletir e tentar refazer um caminho pelo qual a grafia destas
palavras foi inventada. Algumas sensações e expressões não foram descritas
verbalmente pelos arte-educandos e outras resumiram-se em “dia inesquecível!”,
“amo meus amigos”, “muita emoção”, “dia perfeito”. Houveram questões patrimoniais
envolvidas, mas acredito que neste texto é importante ressaltar a importância do
experimento para o processo artístico-pedagógico, muitas metáforas visuais e literais
(gestos verbais e de movimentos) foram construídas durante a vivência, desde o
momento da colagem dos papeis autoadesivos (“post-its”), que pouco se fixavam
devido ao vento e brincando alguém disse “O vento levou o amor” (palavra que estava
escrita), até a resposta de pintar de branco alguém que escreveu em si (como
proposta “do it”) a palavra “liberdade” (em um momento descontraído, o arte-educando
que pintou explicou que queria deixar em branco a pessoa pudesse escolher o que
fazer). Aos poucos, a proposição ampliou-se, em meio a tinta no corpo que já era
muita, a ordem proposição e ação, ação e reação, começou a ser insuficiente, entre
músicas que iam de sinfonias, a Mutantes, passando por algumas escolhidas pelos
arte-educandos, todas com estímulos rítmicos suaves ou muito alegres, após um
pouco mais de uma hora e meia, não era mais possível mais ver a cor da pele, os
tapumes à disposição estava todos pintados, e ninguém mais esperava ou procurava
um “post-it” para propor ou reagir.
Uma ação, não imaginada pelos artista-educadores, ocorreu quase ao
final do encontro, um muro do espaço foi grafitado pelo grupo, não como ato agressão,
 
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ou vandalismo, mas como cume da ação. Então aqueles seres, cobertos de tinta da
cabeça aos pés (do mesmo modo que nós artista-educadores), colocaram no muro
seus nomes, com frases e expressões de amizade e amor, um deles resolveu escrever
um palavrão em inglês “bitch”, palavra tão repetida nas músicas pop americanas
ouvidas frequentemente pelos adolescentes, que, apesar de ter virado um grande
problema para grandes reuniões com a supervisão, não teve um peso maior na
intervenção. Os seres-tinta traziam uma imagem que parecia com o próprio muro
que, cansado de ser somente cinza e de todas as negações sobre autorizações de
intervenções sobre ele, resolveu criar braços e se pintar. Como nós, artista-
educadores, pudemos imaginar que adolescentes que têm seus conceitos sobre o
papel da arte tão relacionados com o rompimento do status quo, têm espaço para a
expressão e descoberta de suas subjetividades, se organizam tão bem juntos como
coletivo, com constantes afecções e afetos que indicam, na grande maioria das vezes,
encontros que os satisfazem como bons encontros, se manteriam em uma proposta
fechada, tendo instrumentos de expressão tão potentes em mãos? Paradoxalmente,
em nossos caminhos do aprendizado, nós também caímos em uma “armadilha”,
lidamos com esses arte-educandos-multidão e talvez, em um ato falho, esperássemos
um outro tipo de resposta, como povo ou massa.

1.4 Considerações finais.

Poder observar a mutabilidade de um sistema social e sua relação com


espaço de aprendizado abre possibilidades realmente potentes e transformadoras
para a observação dos caminhos da educação, reconhecendo a todos como
corpomídia, não há diversos corpos para cada ser, o ser social que está fora da sala
é mesmo que está dentro. Relacionar-se em um processo de criação e descoberta de
caminhos para aprendizagem artística significa permitir-se também estar efetivamente
em aprendizado, é compreender que os fenômenos históricos permeiam o espaço de
aula, pois este não permanece estagnado, fechado à espera de aplicações de moldes
de planejamentos de aulas definidos em outras épocas históricas e reaplicados com
pequenas alterações repetidamente. Por muitas vezes, a busca pelo espaço de
mestre, daquele que detém unicamente o poder de definir os caminhos para o grupo
e permanece afastado deste ainda é almejada, por mera vaidade, insegurança ou
inabilidade do artista-educador, ou na tentativa consciente de suprimir os processos
 
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de individuação e gerar pessoas dóceis para alimentar um sistema de produção, um


controle e direcionamento expressivo, que mais se assemelha ao adestramento e
capacitação de operários, aquele que opera, afastado de suas funções cognitivas na
realização de seus trabalhos.
De modo algum, o artista-educador que relaciona-se com um grupo de
educandos, considerando estes processos de individuação e o conceito de multidão
torna-se mais frágil ou perde suas possibilidades de propor ao grupo ou a transmissão
do saber, muito pelo contrário, isto permite a troca de saberes que cria redes, amplia
e fortalece os canais da comunicação, os saberes apreendidos trazidos pelos
educandos permitem aprimorar as proposições e criar ambientes de aprendizado mais
prazerosos e ricos do ponto de vista artístico-pedagógico. Neste coletivo-multidão, o
papel do artista-educador está muito mais como mediador de saberes, aquele que
também transmite saberes, afinal ele não está abaixo de nenhum membro deste
coletivo, ele continua sendo uma figura importante, mas com uma tarefa muito
diferente de outras épocas, nas quais até mesmo o arte-educando esperava que o
artista-educador tivesse essa função tão marcada de direcionador comportamental.
Ao meu ver, os processos de individuação são menos visíveis ou ainda muito instáveis
na infância, que biologicamente ainda espera que o artista-educador a proteja e
organize o espaço para que ela possa realizar suas experiências artísticas.
Mas estes caminhos não se configuram como baderna, falta de
organização ou pesquisa artística, muito pelo contrário, as relações de
responsabilidade, organização e respeito mútuo potencializam-se fortemente, pois
permitem a cada indivíduo comunicar-se com o outro, não os fecha em carteiras
isoladas ou em espaços criados de restrição de olhar, a proximidade na comunicação
cria a necessidade de produzir boas afecções para que o espaço do coletivo continue
a existir, pela não transferência a uma única pessoa da responsabilidade de dar
manutenção ao bem estar do grupo e pela necessidade de individuação de cada um.
 
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1.5 Referências Bibliográficas:

GREINER, Christine. O corpo: Pistas para estudo indisciplinares. São Paulo:


Annablume, 2005

VIRNO, Paolo. Gramática da multidão. São Paulo: Annablume, 2013.

NEVES, Neide. Klauss Vianna: Estudos para uma dramaturgia corporal. São Paulo:
Cortez, 2008.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. A comunicação na educação. São Paulo: Contexto, 2014.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 1996.

CUNHA, Eugênio. Afeto e aprendizagem: Relação de Amorosidade e Saber na Prática


Pedagógica. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2008.

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