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“A gente se acostuma com o ar poluído, com o céu sem estrelas. A gente se acostuma com a hipocrisia,
a falsidade, a corrupção. A gente se acostuma com a violência, as catástrofes. A gente se acostuma
com as palavras duras, a não ser notada. A gente se acostuma com a ignorância. A gente se acostuma
com a democracia parcial, a falsa liberdade. A gente se acostuma com as influências. A gente se
acostuma com um dia meio produtiva, uma noite meio dormida, uma vida meio vivida. A gente se
acostuma com o razoável, quando o que a gente merece é o extraordinário.”
São Paulo
2014
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1.1 Introdução
1.Não decore passos, aprenda um caminho. (Klauss Vianna, apud
Neide Neves)
encontros (afetos) sejam bons e permitam permear, adentrar em vias que o estado
impermeável de comando não poderia adentrar.
Complementarmente, é de suma importância perceber que a
observação da pré-individuação não é nociva, apenas é insuficiente aos caminhos
pedagógicos, a individuação não substitui a pré-individuação, estas esferas manter-
se-ão sempre em conjunto. A individuação nunca chega a sua forma completa e
sempre irá conviver com os aspectos da pré-individuação.
Uma representação da ideia de multidão também pode ser notada em
um recorte de espaço de aulas, no qual não mais é suficiente receber e executar
comandos de um exercício para a satisfação expressiva do arte-educando, que
necessita afirmar sua singularidade nos processos artísticos.
1.3.1 Conexões
O corpo que gera uma afecção a outro também recebe uma outra,
quando se observa um coletivo de arte-educandos nos princípios de multidão e não
de massa, respeitando suas subjetividades e considerando os processos de
individuação de todos, de modo algum isto significa que o artista-educador se abstém
de suas funções como mediador, provocador e ampliador nas práticas da pesquisa,
da busca e produção de saberes. Não se trata abandonar um coletivo ou criar práticas
que fomentem caminhos de indivíduos sem diálogo entre si, egocêntricas, isoladas,
lidar com estes arte-educandos-multidão é justamente participar dos caminhos de
ampliação de questionamentos, aprimorar e considerar as necessidades das práticas
que rompem e movimentam os desejos de geração de novas imagens, que não se
satisfazem em manter uma visão mecanicista do conhecimento, que anseia por
conexões em teias.
8. O bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno
até a intimidade do movimento do seu pensamento. Sua aula é assim
um desafio e não uma cantiga de ninar. Seus alunos cansam, não
dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu
pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas
incertezas. (Freire, Paulo: 1996)
linguagens de Artes Visuais e Circo, foi lançada a pergunta “Para vocês, qual o papel
da arte ?”, Bruna Borges (arte-educanda de Circo,17 anos) respondeu “Para quebrar
o automatismo do cotidiano”, outros adolescentes um pouco mais jovens
complementaram a ideia dizendo que sem quebrar este automatismo seria difícil
conseguir perceber o que e analisar o que acontece com este cotidiano, esta mesma
arte-educanda ainda disse que “a arte serve para expressar o eu lírico”, seguida de
outras observações que colocaram a função da arte como meio de expressão de si
mesmo. Dois elementos do conceito de multidão foram trazidos nestas reflexões: a
necessidade quebra de fluxo de algo que pertence ao geral (o cotidiano), mesmo que
isto gere unicamente uma reflexão, uma possibilidade de analisar sistemas e não
necessariamente de muda-los e de fazer isto a partir das expressões individuais,
daquilo que pertence a cada um a partir de uma conexão destas expressões: a própria
arte.
Em sua obra “O Corpo – Pistas para estudos indisciplinares”, Christine
Greiner discorre sobre a pesquisa de Damásio na qual o pensamento nada mais é do
que um fluxo de imagens responsáveis pela mudança de um estado corporal.
9. Assim, a fonte da subjetividade está sempre ligada à imagem de um
organismo durante o ato de perceber e de responder a uma entidade
externa. (Greiner, Christine: 2005)
educandos, tanto pela questão da atenção direta necessária para manter a segurança,
quanto pelas diferentes especialidades que a linguagem abrange (malabares
diversos, palhaço, acrobacias de solo, acrobacias aéreas, magia, equilíbrios de
objetos, equilíbrio corporal, apoios invertidos, bailados, entre outras), para as quais é
muito raro haver profissionais aptos a trabalhar plenamente em processos de ensino
com todas elas. Esta configuração traz ao planejamento, às preparações dos
encontros, uma pluralidade, pois são dois artista-educadores de origens profissionais
e artístico-pedagógicas muito distintas em seus conteúdos, embora semelhantes na
forma, ambos são igualmente atores e bailarinos (além de circenses), porém dentro
destes campos com especialidades e linhas de pesquisa muito distintas, ambos
acreditam no acesso ao conhecimento por redes de conexões e não como
transmissão depositória de saberes, o que abre um espaço para que já em princípio
ocorra uma primeira experiência comunicacional, na qual cada artista-educador tem a
sua identidade pedagógica, que de modo algum é abandonada nos percursos do
ateliê, mas também seja criado um terceiro caminho.
A seguir, narro duas das práticas que ocorreram recentemente nestes
ateliês.
somando o gesto e a palavra, mesmo que ela não queira (como no programa dos
“Livros para não ler”). Entre outras constatações expressadas pelos arte-educandos
que caminham para despertar uma curiosidade sobre a relação da palavra com o
gesto. Partimos da palavra grafada, escrita, que transformou-se em som (fala) e
consequentemente compôs o gesto. Estas constatações foram fundamentais para
estimular o desencadeamento de outras ações do processo que está em andamento
e aprimorar a qualidade do discurso das criações, identificando o elemento da palavra
como instrumento expressivo e disparador, ao que vai ao encontro com as premissas
de nossos planejamentos que primam pela ampliação das habilidades de
comunicação e conexões simbólicas. Durante um ano e meio trabalhamos juntos, na
mesma sala, com as mesmas turmas, em uma pesquisa que por si só traz uma
estrutura de divisão de proposições, além de uma proximidade corporal muito grande,
como é o Circo.
Algumas das respostas foram: “A arte existe para nos expressarmos”; “Para estimular
a reflexão”; “Pelo eu lírico” (a arte-educando que disse isso, explicou dizendo que
referia-se à “expressão das subjetividades”, exatamente nestas palavras, o que nos
surpreendeu); “A arte serve para quebrar a rotina cotidiana”; “Quebrar o automático”;
“Humanizar a vida”. Segundo os arte-educandos, todas as artes tinham em comum
estimular a reflexão, o olhar crítico do público.
ou vandalismo, mas como cume da ação. Então aqueles seres, cobertos de tinta da
cabeça aos pés (do mesmo modo que nós artista-educadores), colocaram no muro
seus nomes, com frases e expressões de amizade e amor, um deles resolveu escrever
um palavrão em inglês “bitch”, palavra tão repetida nas músicas pop americanas
ouvidas frequentemente pelos adolescentes, que, apesar de ter virado um grande
problema para grandes reuniões com a supervisão, não teve um peso maior na
intervenção. Os seres-tinta traziam uma imagem que parecia com o próprio muro
que, cansado de ser somente cinza e de todas as negações sobre autorizações de
intervenções sobre ele, resolveu criar braços e se pintar. Como nós, artista-
educadores, pudemos imaginar que adolescentes que têm seus conceitos sobre o
papel da arte tão relacionados com o rompimento do status quo, têm espaço para a
expressão e descoberta de suas subjetividades, se organizam tão bem juntos como
coletivo, com constantes afecções e afetos que indicam, na grande maioria das vezes,
encontros que os satisfazem como bons encontros, se manteriam em uma proposta
fechada, tendo instrumentos de expressão tão potentes em mãos? Paradoxalmente,
em nossos caminhos do aprendizado, nós também caímos em uma “armadilha”,
lidamos com esses arte-educandos-multidão e talvez, em um ato falho, esperássemos
um outro tipo de resposta, como povo ou massa.
NEVES, Neide. Klauss Vianna: Estudos para uma dramaturgia corporal. São Paulo:
Cortez, 2008.