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SOBRE DIREITO, CIÊNCIAS SOCIAIS E OS DESAFIOS DE NAVEGAR

ENTRE ESSES MUNDOS: uma entrevista com Álvaro Pires // Álvaro


Penna Pires1, Carmen Silvia Fullin2, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer3, José
Roberto Franco Xavier4

Conhecido como um dos mais importantes pesqui-


sadores da punição criminal contemporânea, Álvaro
Pires teve ao longo das últimas três décadas uma
produção acadêmica de suma relevância para aque-
les que tentam compreender a racionalidade dos
sistemas penais. Titular da Cátedra de Pesquisas do
Canadá em Tradições Jurídicas e Racionalidade Pe-
nal e professor há mais de 30 anos do Departamen-
to de Criminologia da University of Ottawa, Canadá,
seus trabalhos são um exemplo notável de um olhar
sociológico sobre o direito que leva a sério a comple-
xidade desse objeto de pesquisa. Nesta entrevista,
ele fala de sua trajetória acadêmica entre o direito e
as ciências sociais e de como a questão da interdisci-
plinaridade é mais uma construção do pesquisador
do que uma realidade já dada sobre a qual ele se
apoia. Trata também de algumas questões epistemo-
lógicas importantes, como os limites da observação
científica, a impossibilidade da pesquisa em mais de
um quadro disciplinar e as dificuldades que a dicoto-
mia realismo/construtivismo coloca para a pesquisa
social. Comenta, por fim, as dificuldades teóricas da
pesquisa em criminologia, ressaltando os problemas
de uma crítica pré-construída.

1 Formado em direito pela pela antiga UEG (Universidade do Es-


tado da Guanabara), mestre e doutor em criminologia pela Uni-
versité de Montréal. Atualmente é professor do departamento de
criminologia da University of Ottawa.
2 Formada em ciências sociais pela UNICAMP e em direito pela
PUC-Campinas, mestre em sociologia pela USP e doutora em an-
tropologia social pela USP. Atualmente é professora da Faculdade
de Direito de São Bernardo do Campo.
3 Formada em ciências sociais e em direito pela USP, mestre e dou-
tora em antropologia social também pela USP. Atualmente é pro-
fessora do departamento de antropologia da USP.
4 Formado em direito pela USP, mestre e doutor em criminologia
pela University of Ottawa. Atualmente é professor da Faculdade
Nacional de Direito da UFRJ.

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ON LAW, SOCIAL SCIENCES AND THE CHALLENGES TO NAVIGATE
THESE TWO WORLDS: an interview with Alvaro Pires // Álvaro Penna
Pires, Carmen Silvia Fullin, Ana Lucia Pastore Schritzmeyer, José Roberto
Franco Xavier

Known as one of the most important researchers of


contemporary criminal punishment, his work is of
the uttermost relevance for those who are interested
in understanding the rationality of criminal systems.
Professor Pires holds the Canada Research Chair in
Legal Traditions and Penal Rationality and is a full
professor at the Department of Criminology at the
University of Ottawa. His works are a notable ex-
ample of a sociological look at law committed to the
complexities of this research object. In this interview,
he talks about his academic trajectory between law
and social sciences and how the question of interdis-
ciplinarity is more of a construction on the part of the
researcher than an actual given reality. In addition,
it touches upon relevant epistemological questions,
such as the limits of scientific observation, the impos-
sibility of doing research in more than one disciplin-
ary framework and the difficulties that the dichotomy
realism/constructivism poses for social research. Fi-
nally, he comments on the theoretical difficulties of
criminological research, highlighting the pitfalls of
using a pre-constructed critique.

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José Roberto Xavier: Agradecemos mais uma vez a O Lyra Filho já me havia introduzido à filosofia do di-
gentileza de nos conceder esta entrevista. Tendo em reito; o Libânio me introduziu à filosofia e à teologia.
vista que estamos no contexto de uma Revista de Es- Com esse grupo do Libânio, eu comecei a ter tam-
tudos Empíricos em Direito, o meu interesse primordial bém uma fortíssima formação interdisciplinar, pois
nesta entrevista é na pesquisa que se ocupa do direi- éramos jovens oriundos de várias disciplinas: ciên-
to. O senhor tem formação inicial em direito, na antiga cias sociais, direito, filosofia, matemática, biologia,
Universidade do Estado da Guanabara, e toda a pós- medicina, engenharia, psicologia, serviço sociais,
-graduação em criminologia, num departamento de ciências das religiões e teologia, etc.
ciências sociais, na Universidade de Montreal. Sua pes-
quisa é conhecida por lançar mão de todo um aparato Graças ao Libânio, pude também trabalhar com
teórico da sociologia, mas com grande interesse por o professor Henrique Vaz, que naquela época era
algumas categorias do direito penal. Diante disso, eu um expoente do conhecimento de Hegel na Améri-
queria que o senhor nos contasse um pouco sobre sua ca Latina. Nessa ocasião fui aluno e me aproximei
trajetória acadêmica e sobre as dificuldades e virtudes também do professor Pedro Demo, que havia feito o
de navegar entre o direito e as ciências sociais. seu doutorado em sociologia na Alemanha. Com ele,
fui introduzido à epistemologia das ciências sociais;
Eu sou da geração dos anos 1960; 1968 foi meu pri- aprendi um pouco de lógica e o “método dialético”
meiro ano de universidade, na faculdade de direito. em ciências sociais. Fui introduzido também aos
Estávamos no Brasil, em um período absolutamente trabalhos do físico e filósofo francês Gaston Bache-
explosivo, e aquele ano foi particularmente marca- lard, que acabou tendo um papel central na minha
do por grandes greves, manifestações e tudo. Na- formação epistemológica.
quela época, as faculdades de direito e medicina – e
isso é curioso – estavam à frente das manifestações Quando penso nisso tudo hoje, chego a não acre-
estudantis do Rio. Então nesse contexto comecei a ditar em todas as oportunidades que tive (e que
minha formação em direito. soube aproveitar) para ter uma formação tão in-
terdisciplinar e justamente durante um período
No começo, e isso é uma coisa muito estranha, es- de ditatura. Parece até uma contradição... Naque-
tava indo na direção do direito comercial e do direi- la época, nos movimentos estudantis, emergiam
to civil. Lembro que entrei num escritório de direito também algumas leituras extracurriculares que
especializado em direito comercial. Eu até trabalhei até pareciam leituras obrigatórias para todo mun-
no caso da falência do Jornal Correio da Manhã que do. Liamos, é claro, Marcuse e Ivan Illich, mas tam-
era um jornal importantíssimo no Rio. No entanto, bém, no marxismo, Henri Lefebvre, Althusser, Pou-
fui aluno informal do Roberto Lyra, que já estava lantzas, Garaudy, Erich Fromm, Ernst Bloch, Rosa
aposentado, mas que animava na sua casa um Luxembourg etc. No pensamento estruturalista,
pequeno grupo de estudantes que se interessavam líamos Lévi-Strauss, que estava na moda naquela
pelo direito penal e pela criminologia. O Lyra me co- época. Nessa fase no Brasil, li também os primeiros
locou em contato com o seu filho, Roberto Lyra Filho, trabalhos de Foucault: A Arqueologia do saber, O
que ensinava filosofia do direito na Universidade de Nascimento da Clínica, A Verdade e as Formas Ju-
Brasília. Pouco a pouco fui seguindo em direção ao rídicas (este um texto chave para mim que durante
direito penal. muito tempo só existiu em português).

Quando estava no terceiro ano de direito, comecei No entanto, eu continuava dentro do direito penal,
a me formar como “estudante livre” em sociologia muitas vezes acompanhado pelo professor Rober-
na PUC do Rio. Me juntei a movimentos de esquer- to Lyra Filho – com quem guardei, aliás, um conta-
da católica liderados pelo padre João Batista Libâ- to epistolar durante muito tempo. Vim a conhecer
nio. Ele se tornou rapidamente uma espécie de guia também o professor Heleno Fragoso no Rio. Ficamos
intelectual e existencial para mim e muitos outros amigos e trocávamos ideias e trabalhos, algumas
amigos e amigas que faziam parte daquele grupo. vezes até nos encontrando em colóquios.

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Bom, daí houve razões para sair do Brasil. Uma de- Por um capricho do destino (e uma sorte incrível),
las foi uma razão política: uma infiltração no nosso virei aluno do Baratta no Canadá, quando ele
grupo de uma menina que era do DOPS. Quando veio ser professor visitante e eu estava começan-
isso aconteceu, o Libânio me aconselhou a sair por- do o doutorado. Naquela época, a Universidade
que eu era o segundo no grupo, logo depois dele. Ele de Montreal, em criminologia, estava com uma
me falou: “eu sou mais intocável, mas acho melhor abertura intelectual enorme, convidando muitos
você ir se refrigerar um pouco do lado de fora”. Então professores estrangeiros na vanguarda da discipli-
eu comecei a buscar bolsas de estudo fora do país. na. Para dar uma ideia muito rápida, nesses anos
Passei num concurso na Alemanha e fui para uma eu fui aluno de professores como Louk Hulsman,
formação em sociologia do direito por lá. Fiquei um Christian Debuyst, um dos raros psicólogos críti-
ano e acabei saindo para o Canadá, onde fiz o meu cos em criminologia nessa época, Philippe Robert,
mestrado e doutorado na Escola de Criminologia da Claude Faugeron que trabalhava com o Philippe
Universidade de Montreal, que estava inserida na no CESDIP na França, e o próprio Lode Van Outrive.
Faculdade de Ciências Sociais (e não na Faculdade Na Universidade de Montreal, fiz o meu mestrado
de Direito). Eu nunca larguei completamente o estu- com um professor de origem espanhola, José Ma-
do do direito. Pelo contrário, intensifiquei minha for- ria Rico, e o doutorado com Pierre Landreville que
mação em teoria e filosofia do direito, embora após me introduziu ao problema das prisões, à questão
a pós-graduação tenha ficado claro para mim que dos direitos dos presos (ele foi um dos percursores
eu tinha me transformado em um pesquisador de ci- desse movimento no Québec) e a grupos e asso-
ências sociais. Todo esse processo foi marcado pela ciações de ex-prisioneiros. Fui aluno em Montreal,
contingência, pela sorte dos encontros com muita de uma das primeiras professoras feministas em
gente boa, e muita coisa aconteceu de maneira não criminologia, Marie-Andrée Bertrand. Ela havia
planificada. As decisões foram se encadeando em participado do evento do fechamento da escola de
função dos acontecimentos... criminologia em Berkeley por causa do nascimen-
to da criminologia radical, era amiga do Anthony
Carmen Silvia Fullin: E a passagem pela Alemanha? Platt, que eu conheci mais tarde, e começou a fa-
zer logo parte de uma espécie rara de feministas
Acho que a passagem pela Alemanha teve uma influ- em matéria penal: daquelas poucas que não eram
ência, mas não sei descrever exatamente como, pois repressivas quando tratavam de temas como
só fiquei um ano. É claro, fui levado a aprender o ale- prostituição, violência contra as mulheres, etc. Na
mão, e isso vai ter por si só a sua importância. Tinha época, Carol Smart (Inglaterra) e Dorothy Klein
muito interesse também em me encontrar por lá com (Estados Unidos) faziam parte dessas exceções e
o Alessandro Baratta, mas esse encontro acabou não eu aprendi o feminismo com elas. A minha esposa,
acontecendo naquele momento. Colette Parent, também professora de criminolo-
gia na Universidade de Ottawa, passou pela Uni-
Eu tinha tomado conhecimento da existência do Ba- versidade de Montréal naquela época e se tornou
ratta e havia me interessado em ler os seus trabalho. uma criminóloga feminista seguindo essa mesma
Para mim, Baratta representava (e ainda represen- orientação. Bem, aí fiquei com o feminismo dentro
ta) a melhor reflexão marxista que já houve no cam- de casa, mas numa perspectiva que ainda hoje é
po da criminologia. O New Criminology, de Tayor, “peixe raro” no nosso campo.
Young et Walton, publicado na Inglaterra em 1973,
constituía na época uma excelente crítica do saber Além disso, durante todo o meu mestrado mantive
criminológico anterior, mas no que toca à aplicação trocas epistolares com o Roberto Lyra Filho. Eu lhe
do marxismo, o livro era muito pobre. Temos que re- enviei a minha tese de mestrado que ele adorou
conhecer que não era tampouco o seu tema. Mas Ba- e também outros trabalhos de curso. Ele recebia,
ratta desenvolveu uma posição muito mais fina com lia e mandava comentários. Uma dessas trocas
relação à contribuição do interacionismo simbólico foi até muito divertida e deu bastante “pano pra
e da perspectiva da etiquetagem que esses autores. manga”, no sentido de ter dado todos os elemen-

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tos para uma viva discussão intelectual entre nós técnica com qualidade, mas estava perfeitamente
sobre a criminologia crítica, sempre com esse pano claro que eu conhecia a maneira de pensar. Por
de fundo de uma grande e sólida amizade, mas no outro lado, quando eu estava em sociologia, como
plano intelectual, a troca de argumentos era feita eu tinha tido também uma formação muito grande
sem concessão. O ponto de partida foi justamente em sociologia – inclusive chegando ao Canadá fui
um paper escrito para o seminário do Baratta (em assistente de Guy Rocher, um grande sociólogo ca-
1978) com o título “La criminologie à la recherche nadanense, muito conhecido internacionalmente e
de son objet: dualisme vs monisme critiques”. O com livros publicados no Brasil –, eu estava com o
Roberto não se conformou com esse trabalho e conhecimento dentro da sociologia.
chegou a publicar uma longa carta que me escre-
veu (e que quis que ficasse completamente anôni- JRX: Não houve nenhum estranhamento nessa sua sa-
ma, embora eu o tivesse autorizado a me nomear). ída do direito para uma faculdade de ciências sociais?
A carta saiu com o título “Carta aberta a um jovem
criminólogo”. Essa carta foi muito interessante e eu Não, não tive estranhamento, talvez por causa dessa
fiz também uma longa resposta, mas como ficou história toda de interdisciplinaridade. E eu já tinha
decidido em favor do anonimato, nem me lembro começado no Brasil cursos de sociologia na PUC.
mais o porquê exatamente, a resposta nunca foi
publicada. Claro, mais de 30 anos depois, não me Mas lembro-me que o Pedro Demo me disse quando
lembro de grande coisa. Só me lembro que achei leu meus primeiros trabalhos que eu ainda “escrevia
que ele não havia percebido bem a minha hipó- como um jurista” e que tinha que aprender agora a
tese central naquele paper. Lembro-me também “escrever como um sociólogo”. Algo assim, mas eu
que fiz uma crítica à criminologia marxista alemã, entendi o recado. Sobre isso, é claro, eu tive que me
excluindo o Baratta, e que tratei da “invenção do adaptar e adquirir outra maneira de me posicionar
crime”, nos termos do Foucault em A Verdade e as e de escrever. Comecei a prestar atenção na manei-
Formas Jurídicas. O Roberto que era mais ligado à ra pela qual os sociólogos e os filósofos escreviam e
formação dialética hegeliana, me disse: “não Álva- fiz até um caderno de expressões para me habituar.
ro, está muito cedo para tirar essa conclusão!”. Me Quando terminava de escrever um texto, relia o meu
deu um esculacho histórico nessa carta, mas nada caderno para encontrar outras maneiras de formu-
disso nunca abalou nossa amizade. Dois planos di- lar melhor uma ideia e retocava o meu texto. Muito
ferentes. E eu respondia e ele aceitava também a trabalho, mas eu queria me livrar do estilo jurídico
discussão. Aprendi muito com ele. que consiste em escrever para apresentar e defen-
der uma tese sem submetê-la a um exame crítico.
Então com Roberto Lyra, com Fragoso, eu conti- Por outro lado, como bacharel em direito, eu tinha
nuei a tratar de direito penal, a ler direito penal. aprendido a olhar os detalhes e a buscar a dar um
Foucault talvez também tenha me influenciado sentido mais preciso às frases, e isso me ajudou em
sobre isso, porque ele trabalhava sobre “sistemas sociologia. O filósofo também faz isso, mas percebi
de pensamento” e sempre tomava conhecimento que muito sociólogo usa termos que são importantes
da maneira de pensar do sistema sobre o qual ele para ele sem se preocupar em precisar o sentido.
estava trabalhando mais especificamente: a medi-
cina, a psiquiatria (no caso da loucura), etc. Achei Fora esse esforço, a passagem foi feita suavemente,
então sempre importante conhecer as ideias do sem que eu percebesse muito ou tivesse clara consci-
sistema social sobre o qual você está trabalhando, ência do que estava se passando. E é claro que isso
e nisso a pouca experiência profissional que tive não significa que eu tivesse um conhecimento igual-
em direito ajudou também. Eu fiquei, então, nessa mente profundo em cada disciplina que lia. Isso não.
intersecção entre o direito penal e a sociologia. É Mas em sociologia e nas questões do direito penal
como se eu tivesse duas camisas. Quando eu falava nas quais fui me especializando, o problema das pe-
com o pessoal do direito, eles viam que eu conhe- nas e das tentativas de reforma do direito penal no
cia o direito – eu podia não conhecer uma ou outra Ocidente, aí sim eu tinha um conhecimento cada vez

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mais avançado. Como disse, em direito penal eu fiz dentro da sociologia, enquanto que o Treves esta-
algumas especializações. Por exemplo, eu abando- va distinguindo a “sociologia do direito” feita pelos
nei um pouco a teoria do ilícito para me concentrar sociólogos daquela feita pelos juristas.
sobre as teorias da pena que me pareciam cada vez
mais importantes para compreender a dificuldade Uma outra coisa. Estou de acordo com essa ideia
de evolução do sistema de direito criminal. Sobre a que é o próprio acadêmico que constrói a inter-
teoria do ilícito, lia de vez em quando um bom livro disciplinaridade. Mas você sabe que “interdiscipli-
ou tese de doutorado sobre o tema. A mesma coisa naridade” é um medium que pode tomar várias
sobre processo penal. A punição foi um dos temas formas. Eu vejo rapidamente três formas que são
centrais da minha carreira acadêmica, como vocês reiteradas frequentemente.
sabem. A minha própria evolução intelectual na lon-
ga duração não foi planejada. Foi acontecendo. A primeira, como você disse há pouco, pode desig-
nar algumas “disciplinas de encruzilhada” – nesse
Ana Lucia Pastore Schritzmeyer: Por mais que haja caso vou dar o exemplo mais claro da criminologia.
vários profissionais hoje na intersecção entre direito e O termo se refere aqui a um circuito comunicacio-
ciências sociais, parece-me que ela é algo a ser cons- nal específico, que se formou em torno de um tema.
truído também por cada pesquisador nas suas aven- Nesse circuito participam operadores vindo de di-
turas em terrenos desconhecidos. Por mais que haja versas disciplinas ou horizontes, mas pressupõe-se
disciplinas interdisciplinares – antropologia do direito, que todos conheçam ao menos o mínimo do que
sociologia do direito, etc. – creio que uma boa forma- as diversas disciplinas dizem, mesmo quando esse
ção interdisciplinar continua sendo uma construção conhecimento chega perto de ser caricatural. Esse
do intelectual. Parece-me que o senhor mais construiu circuito regula as comunicações em função de cer-
a sua interdisciplinaridade do que se valeu do que já tas regras. Por exemplo, quem se comunica nesse
estava construído... circuito ganha pontos quando não é completa-
mente ignorante sobre o que outras disciplinas fa-
Acredito que essas expressões não indicam a priori lam sobre o mesmo tema; quando pode dizer como
interdisciplinaridade, mas sobretudo “sub-cam- elas observam o que se passa nesse campo, etc.
pos”, “temas” ou “objetos” (para usar a lingua- Nesse circuito, não é permitido se subtrair comple-
gem tradicional) de uma disciplina. Às vezes até tamente aos outros saberes e ficar exclusivamente
a maneira de abordar um tema, mas não neces- na sua disciplina, não tanto do ponto de vista do
sariamente a disciplina. Isso é até intrigante. Por que você escreve, mas do ponto de vista do que
exemplo, o Renato Treves, entre outros depois dele, você conhece e que pode se prevenir ou se diferen-
assinalou que podemos encontrar uma sociologia ciar quando escreve. O observador que não adere
do direito feita por sociólogos, que não conhecem a essas regras aparece mal no circuito ou como um
muito o que os juristas escrevem sobre o direito, e outsider que pode até ter feito uma contribuição
também uma sociologia do direito escrita por juris- fundamental, mas sobre quem vai ser dito, dentro
tas com conhecimentos sociológicos insuficientes. do circuito, que “ele ou ela é só socióloga (só isso
Isso não significa que o que cada grupo escreve ou aquilo)”, “não é um criminólogo”, etc.
não tenha interesse ou que esteja necessariamente
errado, mas simplesmente que o termo “sociologia O segundo sentido de interdisciplinaridade se re-
do direito” varia e que o termo “interdisciplinarida- fere a uma equipe de pesquisadores oriundos de
de” se aplica mal nesses dois casos. Luhmann disse diferentes disciplinas que trabalham juntos numa
também em duas ocasiões (mas com um sentido mesma pesquisa ou sobre um mesmo tema, par-
um pouco diferente) que havia duas sociologias tilhando os conhecimentos que cada um possui.
do direito: uma sociologia do direito com o direito Esses livros sobre a história dos saberes sobre o
(ele entrava nessa categoria) e uma sociologia do crime e a pena que escrevi com Christian Debuyst
direito sem o direito. Nesse caso, o Luhmann esta- (psicólogo e jurista) e Françoise Digneffe (filosofia e
va se referindo a duas maneiras de tratar o direito sociologia) é fruto de um trabalho interdisciplinar

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(também) nesse sentido.5 Note que alguns ou to- desse estudante. Levou-me a tomar consciência do
dos os participantes podem já possuir uma cultura que havia acontecido comigo.
interdisciplinar própria a cada um deles. Quando
digo cultura própria, estou querendo dizer que são ALPS: O senhor mais construiu a interdisciplinaridade
divergentes do ponto de vista de cada particular do que se valeu do que já estava construído...
implicado na equipe: o meu conhecimento do di-
reito vai ser diferente do conhecimento de direito Sim, sim. Exatamente. Nesse terceiro sentido é isso
do Christian que também estudou direito além da que acontece. Mas fui também confrontado com
psicologia, sua disciplina de base. uma interdisciplinaridade fora de mim e até mes-
mo nos outros. Por exemplo, comecei a valorizar o
O terceiro sentido de interdisciplinaridade é esse conhecimento indisciplinar que eu observava em
que você está buscando acentuar: ele se refere a outros autores. Também trabalhei num circuito de
interdisciplinaridade (ou não) de cada observador comunicação interdisciplinar: a criminologia. E tra-
em particular. Alguns observadores possuem uma balhei em equipes de pesquisa ou grupos de estu-
cultura interdisciplinar extraordinária, por exem- do interdisciplinar. Eu não posso dar o peso exato
plo, Foucault e Luhmann, que vocês conhecem de todas essas coisas. É claro que o que se passa
bem. Umberto Eco é outro exemplo. Isso não signi- dentro do nosso sistema psíquico é sempre interno,
fica que eles comunicam em várias disciplinas ao não tem jeito de escapar disso. Mas isso não signi-
mesmo tempo. Nem Luhmann nem Foucault comu- fica que ele seja transparente para nós mesmos.
nicavam como psicólogos ou como historiadores, Se fosse o caso, a psicanálise pelo menos nunca
mas conheciam e podiam utilizar de alguma ma- teria existido. Além disso, há uma forma de inter-
neira a psicologia e a história no que escreviam. Al- dependência e de autossocialização com as nossas
guns podem até ter desenvolvido a capacidade de experiências e com o nosso ambiente. Isso significa
mudar de papel: escrever às vezes como sociólogo que a interdisciplinaridade que já está formada na
e outras como jurista, mas isso não é nem fácil nem comunicação conta muito para que eu me torne,
frequente. O que eu faço às vezes é mudar o meu dentro de mim, interdisciplinar! É claro, eu posso fi-
universo de referência. Quando estou falando ou car indiferente a essa interdisciplinaridade externa
escrevendo sobretudo para um público de juristas ou posso assumi-la à minha maneira.
(ou de sociólogos), eu adapto as minhas referên-
cias literárias, as minhas conexões de conhecimen- ALPS: Há aí então um lado criativo importante...
to, esclareço mais certas coisas para esse ou aque-
le público, etc. Mas perdi a habilidade de escrever Criativo, sim, pois estamos sempre selecionando o
como jurista no sentido próprio e não sinto que te- que nos aparece no horizonte. Captamos apenas
nho mais o direito de me apresentar como “jurista”. uma parte do que nos é dado, do que se encontra
Se já tive isso, perdi. Só escrevo como sociólogo. disponível nas comunicações das quais participa-
Lembro-me uma vez de um comentário que um es- mos (ao menos no sentido de ser o leitor ou o ou-
tudante de direito colombiano me fez quando dei vinte, isto é, aquele sistema psíquico que compre-
uma conferência numa faculdade de direito em endeu algo, bem ou mal, do que foi dito ou escrito).
Bogotá. Ele me disse: “professor, é um tanto estra- Eu sempre digo aos meus estudantes, e vocês já
nho, quando o escutamos percebemos bem que o escutaram isso várias vezes, que ler fora da disci-
senhor conhece o direito e a nossa maneira de pen- plina e fora do campo de especialização aumenta
sar, mas percebemos também que o senhor não é a probabilidade da criatividade, da qualidade do
jurista, que o senhor não fala como nós do direito”. produto que fabricamos, e também a probabilida-
Achei deliciosa e muito instrutiva essa intervenção de de sair das “caixas arrumadinhas” ou dos “qua-
dros usuais de análise”, para falar como Goffman,
que toda prática profissional ou acadêmica pro-
5 Debuyst, C.; Digneffe, F.; Pires, A. P.; Labadie, J. M. (2008). Histoi-
re des savoirs sur le crime et la peine (3 vols). Bruxelles, Belgique: duz. Isso ocorre, entre outras coisas, porque onde
Larcier. 2008 estamos é sempre um terreno muito batido ou po-

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liciado por nós mesmos, o que faz com que criemos são uma reflexão como ela seria feita por um pe-
hábitos de ver e de refletir. Quando você sai e troca dagogo. Ela é mais elementar, de base, como qual-
de ares, é como se estivesse fazendo uma viagem quer operador que não desenvolve uma reflexão
para ver outra coisa. Tem que ser essa a atitude, o elaborada sobre o sistema onde trabalha, sobre o
espírito. Aí, você pode voltar para o teu terreno com quadro de análise onde está inserido.
algo novo na mão, para continuar com essa metá-
fora. E você pode até ficar mais rapidamente cria- É essa a diferença que existe, num sentido inverso,
tivo do que ficaria se só ficasse cavando do lado de entre o meu papel, de pesquisador dos quadros
dentro. Você volta com ideias novas que estão apa- onde o direito criminal está inscrito, e o dos juí-
recendo do lado de fora mas que ainda não estão zes, promotores e advogados que estão operando
dentro do terreno onde você trabalha. dentro e, por assim dizer, na base desse sistema.
Quando eles refletem, eles podem fazer duas coisa.
JRX: E, em que pese a interdisciplinaridade e a sua só- Frequentemente eles vão fazer o que eu faço como
lida formação em direito, seu ponto de observação é o professor: vão refletir a partir da experiência sobre
da sociologia... o que estão fazendo, a partir da experiência que
têm. Note que eu já não posso fazer isso em relação
Sim. É curioso, é como se eu pudesse ser, ou pudes- ao direito, não do mesmo jeito, não com uma ex-
se ter sido, mas não sou (mais) jurista. Nossa “cul- periência operacional semelhante. Para levar em
tura” numa disciplina é insuficiente para nos trans- conta isso, tenho que aprender com eles.
formar num operador dessa disciplina. A maneira
de comunicar não é a mesma, nem mesmo quando É claro, se os juristas reservarem tempo e energia
eu faço o maior dos esforços diante de um público para isso, eles podem também, em graus diversos,
jurista que frequento muito e gosto muito. Na ver- refletir sobre o quadro de análise do sistema onde
dade, eu não faço esforço para ser jurista; eu faço estão. Nesse caso, eles se aproximam de mim, tal-
esforço para ser compreendido pelos juristas, para vez não fazendo pesquisas, mas lendo pesquisas
compreendê-los também, e para contribuir com e teorias e fazendo uma reflexão orientada na
uma reconstrução do direito criminal. mesma direção. Alguns fazem efetivamente isso,
o que é excelente, inclusive para a qualidade do
Mas, por outro lado, estou também convencido de trabalho profissional deles. Mas note que, nesse
que só esse jurista ou operador do direito (promo- ponto, eu estou em posição mais confortável: pos-
tor, juiz, advogado) que talvez me escute pode real- so refletir sobre o quadro no qual eles operam mais
mente transformar o direito escrevendo e decidin- facilmente do que eles, por ter mais tempo e mais
do como jurista. Eu, de fora, não posso fazer isso. recursos materiais. Emotivamente, eu também es-
É o limite da minha contribuição. Eu tenho que me tou mais livre ou menos potencialmente ameaçado
encadear nele ou ele tem que se conectar de uma pelo que vou pensar. É isso que queremos dizer em
maneira ou de outra comigo, quero dizer, com a metodologia quando recomendamos tomar uma
comunicação na qual participo. Mas só ele ou ela certa distancia do seu tema. Trata-se de fazer um
pode realmente reconstruir o direito. Isso não se esforço para não se sentir obrigado a pensá-lo já
faz de fora. É o que nos ensina pelo menos a teoria numa forma condicionada, bem enquadrada e ob-
dos sistemas de Luhmann e também Foucault. ter uma espécie de liberdade emotiva para não de-
cidir mentalmente muito rapidamente o que está
Observe isso: sou pesquisador, operador do sistema certo ou errado.
ciência, e sou professor, operador em parte no sis-
tema de educação, mas não sou pedagogo. Quan- O sociólogo alemão Simmel falava nessa necessi-
do estou refletindo sobre o programa universitário dade de guardar um “elemento frio” para tratar do
onde trabalho, o tema central não é a ciência, mas nosso tema. É a contribuição que posso fazer para
a educação. Entretanto, as minhas observações eles, como os pedagogos fazem para mim quando
como operador desse programa de educação não eu sigo seus cursos de formação ou leio os seus

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trabalhos. De todo modo, só esse operadores e os no nosso campo a probabilidade de repetição das
juristas, acredito eu, poderão mudar o sistema. coisas é muito maior do que a possibilidade de in-
Até os políticos terão que aprender com os juristas troduzir rapidamente algum conhecimento novo,
uma nova visão do direito criminal, caso os juristas uma maneira nova de observar e de refletir. In-
se lancem nesse projeto de reconstruir o direito cri- troduzir significa sempre adotar, mas adaptando,
minal no que toca às penas. transformando. Então hoje eu me vejo mais como
um sociólogo que está escrevendo sobre o direito.
O problema hoje é que tantos os juristas crimina- Eu teria vergonha de me apresentar como juris-
listas como os políticos utilizam, cada um do jeito ta, porque para ser um jurista me faltam alguns
deles, as mesmas teorias da pena que obstaculi- conhecimentos que não tenho mais e não pode-
zam uma evolução de patamar do sistema. Aí, a ria mais pretender ter. Então, se eu estou com um
inovação fica muito difícil e a acabamos por repetir problema que preciso compreender melhor tecni-
erros que são ultraconhecidos, como aumentar as camente de forma jurídica, aí tenho que realmente
penas para valorizar as normas de comportamen- consultar meus colegas juristas para isso.
to. Ou seja, cada vez mais da mesma coisa que não
funciona ou que cria uma ilusão fundada numa A questão sobre o ponto cego é um pouco mais
autossatisfação e que termina por atropelar ra- complexa. É impossível escapar disso. Hoje, epis-
dicalmente os valores que o próprio sistema quer temologicamente, a condição para se ver alguma
valorizar. Um paradoxo. Para mostrar que a “vida” coisa é ficar cego em relação a outras. Paradoxo:
é um valor a ser protegido, você condena à morte é graças aos pontos cegos que podemos ver. Se eu
ou a 20 anos de prisão. Isto é, uma “morte social a quero ver a obra de arte que está diante de mim
fogo lento”, como disse de maneira crítica o jurista não posso ver (ao mesmo tempo) a obra de arte
e historiador italiano Italo Mereu.6 que ficou nas minhas costas. Não é absolutamente
possível ver tudo ao mesmo tempo e não é possível
JRX: Como disse, a sua produção é sociológica, mas nem mesmo remediar todos os pontos cegos
muito carregada com as categorias do direito. Você faz
aquilo que, invocando novamente Luhmann, podemos Uma primeira constatação: a noção de ponto cego
chamar de uma sociologia do direito com o direito. não é inteiramente negativa. Ela não indica apenas
Quais são as vantagens desse ponto de observação e o que está faltando. Ela é também positiva: graças
quais são os pontos cegos? O que isso dá como forma- a ela, podemos ver algo. Às vezes, até ver melhor.
ção para observar o direito e o que isso esconde?
Segunda constatação: nunca podemos ver tudo,
É gozado, acho que quando nós temos uma forma- nem mesmo com a ajuda do tempo. Temos que re-
ção interdisciplinar, vivemos num paradoxo: nun- nunciar a essa ambição. O exemplo da obra de arte
ca saímos de uma disciplina, nunca conseguimos não é bom para visualizar isso. Pelo contrário, ele
escrever em duas disciplinas ao mesmo tempo. pode dar a ilusão de que basta virar o rosto para
Quando escrevemos sempre estamos dentro de o outro lado para eliminar o ponto cego. Para os
uma disciplina. Então, do ponto de vista do obser- problemas complexos de sociedade, a história
vador, o que eu vejo como interdisciplinaridade é é outra. Você pode virar de um lado para o outro
uma abertura ao conhecimento que está fora do até ficar tonto que nunca vai ver tudo, nem mesmo
que normalmente o seu campo produz e reproduz, tudo o que você gostaria de ver sobre um tema no
e isso é uma parte do pensamento criativo. Quando qual trabalha há 40 anos! Então um dos problemas
conseguimos adquirir esse conhecimento, é uma das ciências sociais é que sempre reconhecemos
espécie de paradoxo: conseguimos criar de manei- que toda visão é parcial, mas sempre almejamos
ra diferente do nosso campo. Quando estamos só resolver esse problema pensando que seria possí-
vel contorná-lo lendo os outros, fazendo pesquisas
6 Mereu, I. (2005). A morte como pena – ensaios sobre a violência etc. Enfim, acreditava-se que em algum momento
legal. São Paulo: Martins Fontes. chegaríamos a ter uma visão da totalidade. Isso,

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entre esses mundos /Álvaro Penna Pires et al.
do ponto de vista da nova teoria da observação observamos, observamos sem lacunas, sem man-
em ciências (naturais e humanas), é um mito. Te- chas. Tudo parece ter sido visto, pelo menos tudo
ríamos muito a ganhar se o eliminássemos. Dizer de pertinente para o que vemos. Por isso é que é
que alguém tem um ponto cego não é em si mesmo difícil encontrar o erro.
uma crítica; é mais uma descrição empírica bem
banal. Ganhamos se virmos isso de forma autológi- Então, e isso seria uma quarta constatação, essa
ca, isto é, aplicando o conceito a nós mesmos e não noção do ponto cego faz com que fique muito difícil
apenas aos outros. eu responder a sua pergunta, porque o meu verda-
deiro ponto cego eu ainda não vi para poder falar
Dessa forma, e aqui uma terceira constatação, o dele. Se tivesse visto, já não seria ponto cego. Foi,
problema se modifica. O problema não é ter ou não talvez, mas no passado. O que eu posso, no máxi-
ter um ponto cego, pois isso todos temos, e é até mo, dizer é o que eu ainda quero investigar, o que
necessário ter para ver (talvez melhor) algumas eu sei que não sei, o que eu acho que está faltan-
coisas. O problema é encontrar o ponto cego que do, as dúvidas que já estão presentes como dúvi-
temos mas não gostaríamos de ter para fazer das etc. Mas o erro desconhecido ou o ponto cego
melhor alguma coisa ou para refletir melhor sobre pertinente para mim, esses ainda estão ignorados,
algum tema que nos interessa. Isto é, temos que estão embutidos e não identificados na minha ilu-
buscar (ou estar pronto para aceitar) o ponto cego são de verdade (para falar um pouco nos termos do
pertinente para o problema em pauta. Quando Foucault), no que eu vejo como verdade. São verda-
temos um ponto cego que é importante para nós deiros OVNIs circulando nas minhas comunicações.
mesmos, aí gostaríamos de poder nos livrar dele. Mesmo uma melhor maneira de ver pertinente para
Mas isso continua não dando acesso à totalidade mim, mas que ainda não descobri, faz parte dos
e não elimina o problema da “verdade”. Então é a meus pontos cegos. É por isso que ser dogmático,
pertinência do ponto cego para com o que você no sentido de não querer aprender por motivos polí-
está fazendo que se torna interessante e impor- ticos ou outros, é cegar-se a si mesmo. Dizendo me-
tante eventualmente de superar. lhor: é querer conservar a cegueira acreditando que
isso é útil para salvar o mundo. É alimentar as pró-
Mas, repito: isso não significa que podemos ver prias ilusões. O preço disso é elevado. Então, sobre
tudo e que não existam outros pontos cegos per- os meus pontos cegos, eu não posso dizer nada de
tinentes ainda não identificados ou descobertos. É inteligente, salvo ficar modesto. Paradoxalmente,
por isso que o ponto cego é um ponto cego. Como você está em melhor posição e talvez mais habilita-
disse Von Foerster,7 o ponto cego acontece quando do do que eu para responder a isso.
não vemos e também quando não vemos que não
vemos. Aí, estou de fato cego. Se já vi que não vi Quando eu escuto esse tipo de crítica, “o senhor (ou
tal coisa, já não é mais ponto cego. Posso ignorá-lo, tal observador) não viu isso” ou, pior ainda, “não
não querer tratá-lo porque ele me incomoda, posso viu tudo”, eu fico meio ansioso querendo ver o que
até buscar escondê-lo dos outros. Mas aí ele já não vai ser indicado ou dito em seguida. O fato de não
é mais um ponto cego. É essa a definição que eu ter visto algo pode até ter sido bom para mim. Evitei
mais gosto: o ponto cego é aquilo que você não vê derrapar ou desviar a minha atenção do que esta-
e que você não vê que não vê – e eu acrescentaria: va buscando descobrir ou elucidar. Nesse caso, vou
e que é sobretudo pertinente para você mesmo. dar graças a Deus por não ter visto aquilo ou não ter
Von Foerster diz mesmo que o ponto cego é aquele visto daquele jeito. Teria errado (na minha perspec-
que “não é de todo percebido, nem como algo de tiva) ou perdido de vista exatamente o que estava
presente nem como algo de ausente”. O que nós querendo mostrar.

A partir do momento que eu tomo consciência dis-


7 Von Foerster, H. (1994) “A construção de uma realidade.” In P.
Watzlawick. A realidade inventada: como sabemos o que cremos so, já não posso criticar o trabalho dos outros da
saber? São Paulo: PSY II. mesma maneira. Não basta dizer “o senhor ou a

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senhora não viu isso ou aquilo”. É preciso mostrar refletida (o que não significa que não esteja erra-
que, não vendo isso ou aquilo, algo de pertinente da). Na perspectiva do crítico, ele tem razão, porque
e de importante para aquele observador ou para ele não viu na comunicação, mas isso pode ser ape-
o seu tema ficou perdido. Preciso mostrar tam- nas fruto das escolhas que o autor fez para redigir
bém que ele poderia ter considerado aquilo sem aquele texto. É por isso que muitas vezes acontece
prejudicar o que está mostrando, se o que ele está de fazermos críticas aos colegas que terminam sim-
mostrando tem valor segundo a nossa apreciação. plesmente em esclarecimentos adicionais ou refor-
Contribui efetivamente para uma melhor compre- mulações para reduzir os possíveis mal entendidos.
ensão do tema? Se descubro com a ajuda de uma
crítica que eu perdi de vista algo importante, ou CSF: Falamos aqui de sociologia, mas como é para o
que errei, aí eu posso readaptar a minha maneira senhor se denominar criminólogo?
de observar, rever ou abandonar um caminho que
tinha pego para tomar outro. O efeito pertinente Nos meus textos eu não utilizo nem a palavra “so-
negativo daquele ponto cego se esvanece, mas ciologia”; utilizo “ciências sociais”, para dar um
sem que eu nunca possa dizer que não tem um ou- sentido mais amplo. Eu não tenho problema com
tro ponto cego pertinente em algum lugar. Agora, a etiqueta de criminólogo, mas é uma etiqueta
pontos cegos genéricos do tipo “não entrar em tal que socialmente às vezes tem problemas porque
tema” ou “não tratar disso ou daquilo” vão sempre tem significados muito particulares, regionais.
existir, mas não é bem aí que está o problema. Se Por exemplo, o termo “criminólogo” aqui no Bra-
estiver, a razão tem que ser apresentada e discuti- sil é visto mais como o jurista que trabalha com a
da, examinada mais de perto. questão de crime. Não tenho problema com essa
etiqueta. Mas se eu estiver, por exemplo, em uma
Então, eu mesmo quando estou construindo uma conferência em antropologia ou sociologia, eu não
teoria sobre certos problemas, não posso introdu- me apresento como criminólogo, porque já crio
zir todos os elementos possíveis e imagináveis de expectativas no auditório de coisas que sei que es-
explicação. Impossível. Sou obrigado a selecionar tão na cabeça das pessoas. Então prefiro falar de
e é bom que a seleção seja feita da melhor forma ciências sociais. Quando estou falando com juris-
possível. A teoria que não seleciona não é teoria, é tas, me apresentar como criminólogo é muito mais
caos. E a compreensão fica, também, caótica. É por neutro. E no Canadá, mesmo em um departamento
isso que acho importante, na medida do possível, de sociologia, esse título não leva ninguém a pen-
balizarmos de vez em quando o nosso percurso e sar automaticamente que você não é sociólogo.
as nossas principais seleções: “olha, estou fazendo Na França, a palavra “criminólogo” em ciências
isso por causa dessa maneira de ver”, “estou dei- sociais também não funciona bem. Já na Bélgica,
xando de lado tal e tal tipo de explicação por essa e país vizinho e em parte francófono, não tem pro-
essa razão”, etc. É claro que quando escrevemos um blema nenhum.
texto, nunca conseguimos fazer isso integralmente.
Usualmente os textos são curtos, de forma que mui- Temos que conhecer os hábitos linguísticos. A his-
tas vezes não conseguimos entrar nessas questões. tória da criminologia institucional nas universida-
As “informações” que colocamos numa mensagem des foi tão variada no Ocidente – às vezes como
são sempre uma seleção dentro de um corpo muito departamento autônomo dentro das faculdades
maior de informações disponíveis sobre o tema em de ciências sociais, outras como subdepartamento
pauta. Consequência: quando um texto nosso apa- das faculdades de direito, ou até como como pro-
rece e alguém que leu esse texto faz uma crítica di- grama de ensino implicando professores de vários
zendo que você não considerou “x”, na verdade ele departamentos e até faculdades – que o sentido da
nunca pode estar absolutamente certo disso (a me- palavra não ficou estabilizado de forma generali-
nos que você o tenha dito). No texto, pode até pa- zada. No Brasil, a criminologia como curso univer-
recer efetivamente como um ponto cego, mas pode sitário se desenvolveu primeiro dentro do direito,
ser para o autor do texto uma seleção muito bem como na Europa continental em geral, mas a pes-

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quisa empírica criminológica ficou mais por conta que quero, que traí os meus amigos de corrente de
da antropologia e da sociologia, mas não com essa pensamento, etc. Em resumo, um problema. E com
etiqueta. Acho até que, no início das pesquisas em- relação a observadores externos, como o senhor,
píricas, pelo menos no que toca polícia e tribunais, eu facilitaria demais a crítica e estimularia uma es-
a antropologia se interessou mais rapidamente do pécie de preguiça intelectual. O meu crítico externo
que a sociologia. O tema da violência e da seguran- vai criticar mais o que ele conhece da etiqueta do
ça pública fundiu em parte essas duas disciplinas. que aquilo que eu escrevi realmente sobre tal ou
Mas isso é pura impressão minha. tal tema. A crítica já fica pré-construída, antes de
você escutar o meu discurso”. Aí ele acrescentou
Eu dou pouca atenção a essas etiquetas, fico relati- algo assim: “então, se você tem necessidade de me
vamente indiferente. Só me interesso quando vejo classificar de tal ou tal jeito, pode fazê-lo. Faça isso
que isso está criando uma visão estereotipada que do jeito que você se sinta mais à vontade, mas não
pode afetar a credibilidade do que está sendo dito. venha buscar o meu consentimento” (risos). Eu es-
Não deveria acontecer isso em ciências sociais ou tava ou no mestrado ou no doutorado e essa fala
em direito. Deveríamos prestar atenção no conte- me influenciou muito também.
údo da comunicação e não no uniforme do falan-
te, mas infelizmente não podemos sempre ignorar Eu comecei a ficar com receio até de utilizar o ter-
esse fato. As etiquetas, em algumas circunstâncias, mo “crítico”, sociólogo crítico, criminólogo crítico.
produzem muito rapidamente um pré-julgamento. Eu comecei a fazer economia dessas etiquetas to-
O “labelling approach” nos ensinou isso. das. Por que eu comecei a fazer economia? Além do
que o Foucault disse, e que eu aceitei, também pelo
Eu me lembro que o Foucault tinha uma reserva fato de que o termo “crítico” tem problemas. Um
enorme com relação às etiquetas. Ele detestava deles é que se eu me convencesse que eu era crí-
que lhe fixassem uma. Ele passava de uma para tico, talvez eu me tornasse menos crítico com boa
outra ou evitava todas para confundir aquele que consciência; melhor dizendo, eu ia enfraquecer a
ousava fixá-lo em algum lugar (frequentemente minha “(auto-)vigilância epistemológica”, para
para bombardeá-lo depois sem muito esforço, ain- usar um termo do Bachelard. Eu poderia começar
da que sem perceber que errava o alvo). Uma vez a pensar que, pelo fato de ser crítico, esse estado
eu estava no auditório da Universidade de Mon- natural do meu ser me levaria a ser necessaria-
treal, onde ele tinha dado uma palestra, e alguém mente crítico com relação a tudo. Deu para sentir
se levantou e lhe perguntou: “bom, professor Fou- o tamanho do problema? Eu poderia desenvolver
cault, o senhor é estruturalista, neomarxista, anar- a ilusão de não ter erros, de não ser nunca conser-
xista, etc.” – saiu propondo várias etiquetas que lhe vador (como se isso fosse uma doença). “Senhores,
atribuíam. E acrescentou – “e como é que o senhor eu já sou crítico, o que é que vocês querem de mais
se coloca em relação a essas etiquetas?”. O Fou- evidente?” Estou fazendo aqui uma paráfrase bem
cault respondeu (claro, não me lembro dos termos livre de uma passagem do Sartre, em Saint Genet,
exatos da resposta): “Olha isso é um problema do comediante e mártir. (Algo assim: “Eu roubei. Não
senhor, não é um problema meu; não estou preo- disseram que eu sou ladrão? Então, eu sou ladrão.
cupado em me atribuir nenhuma dessas etiquetas. Algo pode ser mais evidente do que isso?”). “Crí-
Até porque isso poderia causar vários tipos de pro- tico” vira um estatuto permanente colado na tua
blemas. Eu posso me deixar aprisionar pela minha pele, como uma tatuagem, e onipresente em tudo
etiqueta, e sair repetindo erros só para guardar que você faz. Ora, eu estava cheio de ver críticos
uma coerência com a minha etiqueta, ainda que serem absolutamente conservadores, particular-
essa coerência seja ilusória. Vou me sentir preso mente quando os desprevenidos entram no ter-
com essa etiqueta e eu gosto de poder me deslo- reno minado do direito criminal. Eu mesmo, com
car à vontade, me sentir livre. Se eu tentar me des- toda a experiência nesse terreno, tentava sempre
locar depois que eu me coloquei uma etiqueta, aí caminhar com cuidado, mas mesmo assim perce-
vão dizer que entrei em contradição, que não sei o bia um pouco mais adiante que havia cometido

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erros... Quando alguns acadêmicos da área saíam compreender porque estamos pensando desse jei-
do tema nos quais eram realmente críticos (no meu to e não daquele outro em tal situação e elucidar
modo de ver) e entravam no campo das penas e da esse fato. Eu não gosto de supor que a pessoa que
punição... bem, aí a música ia tocar de outro jeito. se diz crítica é de fato sempre crítica e tem sempre
Vi marxista em direito penal preferir o retributivis- razão. E vice-versa. O conservador pode ter razão,
mo ao utilitarismo. Isso é como escolher entre mor- mas ele não tem nem deixa de ter razão pelo fato
rer esfaqueado ou com um tiro: os dois matam o de ser conservador ou de se ver como conservador.
espírito crítico do mesmo jeito. A diferença é muito Tem conservadores brilhantíssimos e tem gente crí-
sutil para valer a pena de fazê-la. Já falei aqui que tica que diz uma série de besteiras (sempre do meu
o movimento feminista assumiu e continua assu- ponto de vista). Então acho que temos que nos di-
mindo várias posições muito conservadoras em rigir a problemas coletivos e importantes que para
matéria penal sob a bandeira crítica nós todos foram ou são ainda problemas, colocan-
do um pouco entre parênteses essas cascas de ovos
ALPS: É meio auto elogioso o termo, não acha? que nos impedem de avançar e de rever as nossas
próprias posições. Resultado: eu abandonei essa
Sim, além de poder criar também um problema de etiqueta de crítico também.
comunicação. Por exemplo, às vezes eu participava
de cursos de formação para juízes. Nessas ocasiões, JRX: Ainda quanto às etiquetas disciplinares. Eu lancei
chegar lá e dizer que eu era da criminologia crítica há pouco uma distinção de Luhmann entre a sociolo-
criaria uma pré-disposição completamente nega- gia do direito com direito e a sociologia do direito sem
tiva desde o começo. Quando eu estava justamen- direito. Uma das críticas de alguns acadêmicos de di-
te querendo ter um diálogo, aprender com eles e reito é de dizer que essas pesquisas – dos antropólo-
transmitir-lhes alguma coisa, era o comportamen- gos, sociólogos e economistas que fazem pesquisas
to mais inadequado para se ter ali, entende? Eles sobre o direito – são realizadas sem que haja ali uma
podiam entender que, do meu ponto de vista, eu compreensão do direito. Eu sei que não há uma hierar-
não erro, só eles; que sou sempre crítico e eles, na quia nessa distinção, mas gostaria que o senhor discor-
melhor das hipóteses, só raramente conseguem ser resse sobre essa crítica que mencionei, porque isso me
críticos; que não tinha nada a aprender com eles. parece uma preocupação importante para algumas
pessoas nas faculdades de direito
Uma vez, mesmo ficando quietinho no meu canto,
me fizeram essa maldita pergunta. Um juiz, que A expressão do Luhmann não se aplica somente à
depois eu soube que tinha fama de conservador, sociologia, mas a todas as outras disciplinas. Po-
me perguntou nos primeiro minutos de um desses deríamos falar de uma antropologia do direito sem
cursos para os profissionais da justiça: “professor, o direito, uma antropologia do direito com o direi-
o senhor é da criminologia crítica?”. Isso aconte- to, por exemplo. Eu reconheço no trabalho da Ana
ceu na Argentina. Confesso que, assim, de cara, Lúcia [Pastore Schritzmeyer] uma antropologia do
antes de eu ter aberto a boca, aquilo me pegou direito com o direito, porque ela deu um mergu-
de surpresa. Respondi assim: “olha, sinceramente, lho dentro do direito. Mas isso não significa que se
eu não sei muito bem o que é que isso significa ou deva ver isso como uma ordem hierárquica, como
quer dizer. Eu sei que esse termo circula, mas eu se uma fosse boa e a outra ruim.
não consigo ver bem o valor ou a vantagem des-
se termo. Quando estou trabalhando com alguém, A distinção em Luhmann era puramente descriti-
não é importante saber se ele se vê como conser- va. O que eu compreendi é que ele simplesmente
vador ou como crítico. Um não é necessariamente chama de sociologia do direito sem o direito uma
mais ou menos inteligente do que o outro. Os dois sociologia que aplica a mesma aparelhagem con-
podem errar. Ou virarem críticos em relação a al- ceitual, independentemente do seu objeto ser o di-
guma coisa e conservadores em relação a outra reito, a escola ou a medicina. Então, por exemplo,
coisa num outro momento. O que me interessa é na escola, você está preocupado em saber como é

Sobre direito, ciências sociais e os desafios de navegar 238


entre esses mundos /Álvaro Penna Pires et al.
que os professores dão notas aos alunos e pergun- sistema. Às vezes, a contribuição que estou fazendo
ta, “como é que funcionam as notas de curso? Há tem duas faces: uma útil para a sociologia e outra
disparidade de nota, ou não? Tem relação entre a que possa ser útil – pelo menos é o que espero –
atribuição de nota pelo professor e a classe social para o pessoal do direito, para eles repensarem,
dele ou a dos alunos?” Você pode olhar o tribunal e recriarem e reconstruírem o sistema deles. Então,
perguntar: “Como é que os juízes dão as sentenças? como eu tenho essa ambição de comunicação com
Há relação entre a sentença do juiz e a classe social quem está dentro do direito eu tenho que ser capaz
do juiz ou a do culpado?” Então você está produ- de, pelo menos, fazer uma primeira operação de
zindo um conhecimento em que você não está se tradução para que minha ideia seja compreendida.
perguntando exatamente “qual é a função da edu-
cação”, qual é a “função do sistema de direito” e Eu me lembro de quando trabalhei numa comissão
não está também interessado exatamente pelo de reforma do direito do Canadá. Eles estavam in-
tipo de objeto que você trabalha. Você não está tão teressados em problemas de disparidade de sen-
interessado no sistema de pensamento dos outros, tenças. Ou seja, o direito estava interessado sobre
porque não é o tipo de contribuição que você está a disparidade de sentenças e pediu ajuda da socio-
fazendo. Podemos até mesmo encontrar hoje em logia, da antropologia. Tinha também psicólogo
dia juristas que fazem pesquisa dentro do direito para poder compreender esse fenômeno e fazer
sem o direito: “será que o juiz está discriminando reforma interna. Então você está vendo? Tudo pode
o sexo, a raça e tudo o mais?” Se um jurista estiver servir para tudo. Acho que o mais importante é que
fazendo isso, mesmo que ele tenha o conhecimento o pesquisador, quando toma um ângulo, quan-
do direito, ele não o está usando nessa pesquisa. do escolhe um tipo de contribuição, que ele não
Essa pesquisa é uma pesquisa de sociologia do di- coloque isso em ordem hierárquica. Ele não pode
reito sem direito. considerar que essa é a melhor maneira de fazer
isso, mas apenas uma boa maneira de fazer isso.
Agora, quando eu faço uma sociologia do direito Porque além de ser arrogante (considerar o seu
com o direito eu utilizo positivamente conhecimen- ângulo como o melhor), temos sempre que ter em
tos do direito para operacionalizar metodologica- mente que cometemos erros. Como pesquisadores
mente as coisas. Por exemplo, eu estava querendo temos que ter uma atitude altamente modesta e
fazer uma tipologia para observar as transforma- altamente aberta para o conhecimento de todos
ções legislativas. Fui às ciências sociais, porém não aqueles que estão contribuindo para o campo em
encontrei nenhum critério útil para classificar o que estamos trabalhando. É uma tarefa coletiva
tipo de norma que estava sendo mudada. Por quê? e o que devemos visar não é necessariamente ser
Porque quem tinha trabalhado tipos de normas melhor, ou que todo mundo entre no nosso objeto
eram filósofos do direito e juristas. Os sociólogos a partir da nossa perspectiva teórica. Acho que te-
não trabalharam isso, com algumas exceções mui- mos que abandonar esse tipo de ethos.
to grosseiras. Então fui ler os juristas, aprendi como
é que eles classificavam as normas e de lá trouxe CSF: Seguindo esse raciocínio, o senhor diria que é
para a sociologia, apliquei na minha pesquisa e problemático o entendimento de que a pesquisa empí-
criei uma categoria que agora está parecendo rica em direito é melhor quando fixada na perspectiva
sociológica, mas que foi construída com outro co- utilitária da chamada “pesquisa aplicada”?
nhecimento. Então o conhecimento jurídico serviu
diretamente para enriquecer a minha própria dis- JRX: Complementando a pergunta, observa-se que
ciplina, a sociologia. há no Brasil um fenômeno de expansão de pesquisa
empírica nas faculdades de direto. Nesse fenômeno há
Outro ponto importante é o seguinte: estou vendo duas representações que considero problemáticas. De
um problema do direito, estou vendo a função dele um lado uma expectativa de cientificismo, de encon-
e preciso conhecer o modo de pensamento dele trar “verdades”: “agora vamos fazer pesquisa ‘científi-
para poder fazer uma contribuição posterior a esse ca’ então vamos encontrar as melhores soluções para

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poder sugerir/sustentar decisões mais abalizadas”. Ou e começaram a abrir um pouco mais isso. Esse fenô-
seja, uma certa aliança entre direito e ciência com uma meno foi bem analisado por uma comissão portu-
pretensão de verdade muito mais forte até que em ou- guesa, a Comissão Gulbenkian num relatório com o
tras áreas do conhecimento. De outro lado, uma outra título “Para abrir as ciências sociais”.8
representação que também considero problemática: a
resistência de alguns acadêmicos de direito que olham Desde o começo, pelo menos dentro do sistema do
essa expansão como um desvirtuamento – “o direito é direito moderno, o jurista sempre teve a prática
o lugar da doutrina, o lugar da dogmática. Pesquisa em- de legislar. Desde o século XVIII o jurista também
pírica? Não entendemos qual o papel disso. Vocês estão tem um papel de preparar códigos, fazer leis etc.
fazendo sociologia, ciência politica, economia, há mui- O jurista tinha uma função de criar, renovar o pró-
to pouco de direito nisso”. Como é que o senhor vê isso? prio sistema, criar leis mais adaptadas. Só que as
universidades não davam para ele uma formação
Esse fenômeno de expansão que você observou tão completa para fazer isso. Agora, com a intro-
pode-se notar em vários países, incluindo Estados dução da pesquisa no âmbito do direito, abre-se
Unidos e Canadá. A faculdade de direito da Uni- um pouco mais o diálogo com as ciências sociais
versidade de Ottawa também está desenvolvendo e, com isso, a possibilidade de ter juristas com mais
essas duas tendências. Eu participei recentemente conhecimentos para trabalhar dentro da sua pró-
de um comitê para a escolha do novo diretor da fa- pria disciplina. Quando ele for avaliar, escrever ou
culdade de direito e uma das preocupações era a de propor um projeto de lei, se tiver um conhecimento
selecionar alguém que respeitasse os dois tipos de empírico e teórico maior do que aquele da dog-
pesquisa: a pesquisa tradicional em direito e as no- mática, ele é capaz de fazer contribuições prova-
vas pesquisas empíricas. Isso foi um critério para a velmente melhores não só para a sociedade, mas
escolha daquele que deveria dirigir a faculdade de para o direito. Isso substitui o conhecimento dele
direito. Tinha que ser alguém que tivesse uma aber- da dogmática? Absolutamente, não. Porque na
tura para sustentar as duas posições e que não pen- hora de traduzir o que aprendeu, o que fez como ci-
sasse que uma estaria tomando o lugar da outra. ência ou como pesquisa, em forma de lei, vai preci-
sar desse outro conhecimento também. É bom que
Esse debate é velhíssimo, acontece o mesmo em tenha esse outro conhecimento, senão ele vai ficar
metodologia. Quando apareceu a pesquisa qua- só como pesquisador de ciências sociais, mas não
litativa na América do Norte pensava-se que todo vai conseguir fazer a função de jurista, participan-
mundo deveria virar pesquisador qualitativo. De- do da renovação interna do próprio sistema.
pois teve a fase do quantitativo em que todo mundo
devia ser quantitativo. E por trás desses debates ti- Vemos o jurista como alguém que só está ali para
nha sempre esse fantasma de que uma coisa esta- responder à consulta de um cliente privado ou para
ria aparecendo para substituir a outra, quando as oferecer uma pista ao juiz sobre a melhor maneira
duas coisas devem ser vistas como insubstituíveis. de ler ou interpretar uma lei – o juiz aí funcionando
Na verdade nenhuma consegue tomar o lugar da como puro cliente –, mas não vemos a função do
outra porque elas dão contribuições diferentes. jurista dirigida ao sistema político. É importante
melhor instruir o sistema político sobre como fazer
O que está acontecendo nas faculdades de direito leis, sobre como modificar as coisas. É importante
– e eu não sou especialista em sociologia da educa- apontar como certas propostas de lei feitas pelo
ção, então é com muita cautela que eu vou falar dis- sistema político não são boas do ponto de vista do
so – aconteceu também nas disciplinas de ciências direito, porque estão batendo de frente com direi-
humanas. Antes, nos departamentos de ciências
sociais só entravam diplomados nas próprias disci-
8 Moreira, A. M.; Moreira, J. P.; Santos, B. de S. (1996). Para abrir
plinas, era um negócio fechado. Na América do Nor-
as Ciências Sociais: relatório da Comissão Gulbenkian sobre a rees-
te nós passamos por uma fase de abertura em que truturação das ciências sociais. Lisboa: Mem Martins Publicações
pessoas com outras formações começaram a entrar Europa-América.

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entre esses mundos /Álvaro Penna Pires et al.
tos com os quais não podiam bater de frente. ta sobre a pesquisa científica quantitativa, como se ela
autorizasse as melhores respostas. Eu vejo aí um dis-
Então, o que as faculdades de direito estão fazendo curso problemático do jurista que se inicia na pesquisa
agora é complexificar a formação dos intelectuais quantitativa e que considera que enfim tem a “verdade”
do direito e, nesse tipo de fenômeno, sempre há in- para ser o conselheiro do rei. Parece haver uma percep-
tercâmbios: tem um que vai para um lado, tem ou- ção problemática que “agora temos conhecimento tanto
tro que vai para outro, tem outro ainda que vai tra- do direito quanto da ciência”, sem uma crítica aos limites
balhar nos dois lados, mas isso não deve ser visto do que a pesquisa pode de fato trazer como verdades.
com alarme, nem com escândalo. Vi muitos bons es-
tudantes que tinham começado em ciências sociais Bom, primeiro eu não estou completamente segu-
se dirigirem para o direito e bons estudantes do ro de que em todas as faculdades de direito esteja
direito que às vezes vão para ciências sociais. Pode havendo predominância exclusiva do quantitativo.
haver troca de figurinhas, e essa troca é enriquece- Quando observo o que está acontecendo na Uni-
dora para o conjunto da sociedade. Não podemos versidade de Ottawa, vejo muita pesquisa qualita-
ver isso como uma perda. Temos que ver isso mais tiva sendo feita, talvez até mais que quantitativa.
como contribuição que a organização da universi- Precisaria averiguar isso. Mas há – e sempre hou-
dade faz para a sociedade. Tudo isso é um ganho. ve – uma espécie de repetição dos problemas. Às
vezes, alguma coisa que foi debatida no passado
Eu, quando recebo estudantes de direito que vem ou foi vivida no passado dentro de uma disciplina
fazer formação comigo, sou obrigado a ensinar so- se reproduz em outra, quando essa outra começa
ciologia, porque ele está trabalhando comigo. Se a se transformar. Então esse debate quantitativo
recebo um estudante de sociologia, tenho que ensi- versus qualitativo que hoje já pode ser considera-
nar direito, porque senão ele vai fazer algumas in- do como relativamente superado dentro das ciên-
terpretações um pouco bárbaras. No tipo de objeto cias sociais, renasce dentro do direito. Ele parece
que estou trabalhando, ele precisa do conhecimen- ter vida longa, parece aquela hydra de sete cabe-
to do direito para poder fazer bem a coisa dele. En- ças. Cortamos uma cabeça e ela renasce em outro
tão fico trocando esse tipo de informação. E o que lugar e precisa ser cortada de novo (risos). Então
sai daí? Sai gente que vai para as ciências sociais e reaparece o debate de que a cientificidade está de-
gente que vai para o direito. De qualquer forma, os positada no método e não na construção dos obje-
que são de ciências sociais continuam com o objeto tos. Método, sendo o caminho, nada mais do que o
“direito” e permanecem em contato com o pessoal caminho, tem que ser diferente dependendo para
que foi para o direito. Ou seja, quando não é dire- onde você está indo.
tamente, é indiretamente que a contribuição está
sendo feita. Sobre isso não se pode ter controle. E Então esse debate quantitativo versus qualitativo
também não acho que devemos circunscrever ter- não é novo. A vantagem agora é que, quando ele
ritórios, ficar protegendo territórios reaparece no direito, já temos um capital de conhe-
cimento que nos permite questionar: “esse debate
CSF: O O senhor comentou sobre movimentos ora em já não deu certo na sociologia e vocês querem re-
favor da pesquisa qualitativa, ora em favor da pesquisa produzir ele aqui?”. Eu me lembro disso também na
quantitativa. Tenho notado um certo apreço das pes- medicina. Uma vez fui chamado por um hospital de
quisas empíricas em direito pelo quantitativo. Eu tenho Montreal para dar uma conferência sobre amos-
visto vários encontros em que se vê exatamente esse tragem para a equipe médica de pesquisadores
movimento de pesquisadores do direito indo para te- do hospital. E por que me chamaram? Eles me cha-
mas que antes eram pesquisados nas ciências sociais, maram porque a maior parte era de pesquisadores
mas vão sempre muito com um instrumental ou bus- quantitativistas, mas estavam vendo aparecer as
cando uma legitimidade quantitativa... pesquisas qualitativas, e, no trabalho que tinha
escrito sobre amostragem, eu tinha apontado di-
JRX: Parece haver também um olhar um tanto positivis- ferenças e semelhanças entre quantitativo e qua-

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litativo. Eles pediram uma conferência porque os para o meu doutorado sobre o objeto que eu tinha
pesquisadores quantitativos queriam entender o na cabeça – observar os efeitos dos contatos com
valor da amostragem qualitativa. Então eu notei a justiça penal sobre a trajetória social das pes-
que dentro da própria metodologia, quando um soas de diferentes classes sociais – e percebi que
pesquisador escolhe um método porque ele está a pesquisa quantitativa que eu estava tentando
bem adaptado àquele método, há ali também operacionalizar estava me dando resultados ab-
uma tendência a criar uma ideologia profissional solutamente banais. Disse para meu orientador de
de que aquele é “o” método. doutorado “com o método que eu estou não dá”. Aí
eu fui buscar uma formação em qualitativo para
Isso aconteceu na história da sociologia america- resolver isso.
na nos dois sentidos. Por exemplo, nos primeiros
anos da escola de Chicago, nas décadas de 1910 Então, quando comecei a escrever artigos de me-
e 1920, se falava que o método por excelência em todologia qualitativa no começo dos anos 1980 foi
ciências sociais é qualitativo. No entanto, dizia-se, gozadíssimo, porque eu era identificado pelo pes-
quando não há bastante tempo para fazer a pes- soal do qualitativo como “ovelha negra”, porque eu
quisa, é possível usar o quantitativo que também nunca endossava o discurso de que o qualitativo
vale, quebra um galho, é melhor do que nada. era melhor que o quantitativo. Era “ovelha negra”,
“Mas, se você tiver um pouquinho mais de tempo, mas ao mesmo tempo pioneiro. Na época apa-
faz o qualitativo, que é mais longo, mais chato.” A receu um texto na França apontando os pouquís-
partir dos anos 1935/1940 aconteceu o contrário. A simos trabalhos que questionavam essa divisão
recomendação era a seguinte: “olha, se você quiser e entre eles estava o meu, porque afinal eu tinha
fazer uma coisinha exploratória preliminar, para atravessado de um lado para o outro. Mas hoje
ter umas ideiazinhas, umas hipóteses para depois acho que está mais tranquilo. Nos anos 1960/1970,
verificar realmente o teu próprio terreno, faz o qua- se você fizesse um projeto de pesquisa qualitativa
litativo. Aí, quando você tiver melhorado suas ideia- havia claramente o risco de perder a subvenção
zinhas, você faz um verdadeiro survey quantitativo da pesquisa. Houve um período de conflito, mas
para obter provas verdadeiras, sólidas etc”. E nos hoje a maior parte dos pesquisadores quantita-
anos 1960/1970 estourou tudo de novo. O qualita- tivos e qualitativos de ciências sociais não estão
tivo voltou nos anos 1960 e 1970. Na primeira etapa mais atirando pedra um no outro. Agora, é claro
de sociologia americana ele era colonizador, depois que esse debate tem a tendência de se reproduzir
virou colonizado e nos anos 1960 e 1970 começou a ainda dentro do direito. Não é surpreendente que
reagir como o colonizado que está se emancipando. isso aconteça, isso faz parte das doenças infantis...
(risos) Quando uma disciplina reintroduz alguma
Eu me lembro que escrevi um artigo “As letras e coisa, ela acaba pegando essas doenças. É como
os números9 no começo desse movimento. Eu fui catapora que pega, e é sempre bom pegar, porque
no princípio identificado como pesquisador quan- depois imuniza.
titativo, porque eu tinha começado toda minha
formação universitária – inclusive o doutorado em JRX: E quanto à pretensão de verdade de certas pesqui-
ciências sociais – fazendo pesquisa quantitativa. sas empíricas em direito? Refiro-me ao entendimento
Quando entrei no meu primeiro curso de metodolo- de que essas pesquisas melhor subsidiariam políticas
gia qualitativa, não resisti muito tempo. Logo pen- públicas porque contariam com a chancela do direito e
sei: “não, esse negócio é muito impreciso”. (risos) da ciência. Como é que o senhor vê essa questão?
Tentei fazer umas observações, mas não resisti.
No terceiro curso, abandonei, tranquei a matrícu- Bom, o problema da verdade é complexo porque em
la. Aí comecei a fazer uma pesquisa quantitativa ciências sociais ele teve toda uma representação até
o final dos anos 1960, começo dos anos 1970, com o
9 Pires, A. P. (1987). Deux thèses erronées sur les lettres et les chi- debate do neopositivismo, a discussão da própria de-
ffres. Cahiers de recherche sociologique, 5 (2) 85-105. finição da verdade como correspondência com a reali-

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entre esses mundos /Álvaro Penna Pires et al.
dade, dentro da filosofia da ciência... Eu me lembro de você fez corresponde à realidade. Empírico significa
uma conferência dada por Foucault na Universidade um corpo de observações que você construiu de ma-
McGill no Canadá – acho que em 1971 – sobre Nietzsche neira sistemática. São observações sobre a realidade,
e a verdade.10 Ali Foucault já estava começando a mos- feitas por um observador. É isso que é empírico. Nin-
trar que, quando se está produzindo conhecimento, há guém pode sair da sua própria pesquisa, olhar a pes-
sempre uma luta contra a aparência do conhecimento quisa de um lado e olhar a realidade do outro, do lado
precedente. Mas o novo conhecimento vai ficar subme- de fora de si mesmo. Não tem jeito.
tido a alguns elementos que só mais tarde verificamos
que contêm também aparência de verdade. Ele inclusi- Hoje, nas posições mais avançadas da epistemologia,
ve introduz uma distinção muito interessante dizendo o código verdadeiro/falso é um código de avaliação,
mais ou menos o seguinte: “há dois tipos de verdade: como também o são os códigos bom/mau, justo/injus-
as verdades verídicas e as verdades falsas”. O que o to, legal/ilegal. Ou seja, são códigos que você utiliza
Foucault está dizendo com isso? Verdadeiro/falso é um para avaliar. Por exemplo, o legal/ilegal. O próprio
código de avaliação que utilizamos para filtrar e rea- sistema judiciário reconhece que faz erros. O que é um
valiar os conhecimentos que estão sendo produzidos. erro judiciário? Ele diz que alguém é culpado aqui e
mais para frente reconhece que aquele que era culpa-
“Verdade” não é correspondência com a realidade do não é culpado, é inocente. O que eles estão fazen-
necessariamente. Aliás, a própria teoria da corres- do aqui? O culpado na primeira decisão correspondeu
pondência com a realidade, mesmo agora dentro do à realidade? Correspondeu. E na segunda decisão
campo dos que se chamam realistas, está sendo colo- judicial, a inocência correspondeu à realidade? Cor-
cada em questão. Os próprios realistas não estão mais respondeu. Como isso é possível? O que ocorre é que
utilizando a teoria da referência porque eles estão se o sistema jurídico empregou um código para avaliar
perguntando: se eu digo que isso acontece desse jei- uma situação num momento e o mesmo código para
to, o que eu estou dizendo a mais quando eu digo que avaliar num outro momento.
isso corresponde à realidade? Não estou dizendo mais
nada. Eu estou fazendo uma observação que deve ser A biologia produziu em massa pensamento racista
examinada, questionada, mas dizer que ela corres- durante o século 19. Era pensamento científico? Era.
ponde à realidade não acrescenta nada novo ao que Continua sendo pensamento científico? Claro. Por quê?
eu já tinha enunciado antes. Porque foi produzido pela ciência. “Científico” não é
igual a “verdadeiro”. “Cientifico” é igual a produzido
Enfim, acho que a noção de verdade continua impor- pela ciência, nada mais do que isso. Se é verdadeiro ou
tante, mas não importante como correspondência, falso, é a própria ciência quem vai dizer no caminho.
como eu tendo adquirido a realidade. Isso é um en- Hoje a ciência olha para certas produções biológicas
torpecente. Se você disser “o que eu produzi aqui é a sobre o crânio, o formato do crânio, as comparações de
verdade”, você está drogado. Você acabou de eliminar crânios de macacos, de negros, de índios, de mulheres e
o que podia sobrar do teu espírito crítico, porque você de homens e diz: “pensamento científico errado, falso”.
não vai rever mais aquilo. Você pressupõe que não co- Pode considerar isso tudo até racista, sexista. Mas isso
meteu erros e pressupõe que está correspondendo a é um código de reavaliação de um discurso utilizado.
algo que é muito mais complexo, e que você não pode
sair de você mesmo para ver, que é a realidade. Então, do ponto de vista do pesquisador, o que ele ganha
enquanto pesquisador quando vê a verdade não como
Dentro da teoria dos sistemas se faz uma distinção algo que ele descobriu e que é um objeto real, concreto,
entre o empírico e a realidade. Quando você faz uma mas como algo que ele está avaliando ali? Ele continua
pesquisa empírica, você ainda não mostrou que o que sendo pesquisador. Em outras palavras, ele continua
sendo alguém que reconhece que pode haver erros e
que, embora tenha descoberto algo que pareça impor-
10 Essa confererência apareceu também num dos cursos de Fou-
cault no Collège de France. M. Foucault (2014). Aulas sobre a vonta- tante e que possa ser submetido aos outros (pesquisado-
de de saber. São Paulo: Martins Fontes. res), essa descoberta ainda pode ser questionada.

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Weber já tinha notado que quando olhamos para uma ALPS: E que é de um iluminismo autoritário.
obra de arte feita antes da invenção da perspectiva,
ela continua sendo tão bela hoje quanto um quadro Claro, exatamente. Hierárquico, autoritário, deten-
pintado depois da invenção da perspectiva. Os dois tor da verdade.
são belos. Na ciência não acontece isso. Na ciência, o
que foi inventado muito tempo atrás está perdido. Já ALPS: Uma mentalidade que quer fazer do cientista
estamos em outra. Então, temos que aprender que os aquele que tem que ditar as políticas públicas. Estava
nossos produtos nasceram, em boa parte, para desa- pensando aqui o quanto a antropologia, ao menos no
parecer. Podem ser retomadas algumas ideias aqui e Brasil, escapa um pouco disso. Por mais que “etno-
ali, mas não mais o conjunto. Temos um sistema em grafia” seja um termo muito mal empregado – alguns
que o código verdadeiro/falso ou verdade/erro é o có- dizem que fizeram etnografia porque passaram uma
digo principal de avaliação das coisas. Também não tarde com um grupo deixando a conversa rolar –, acho
adianta dizer “a ciência não precisa do verdadeiro/ que só realmente quem não tem nenhuma informação
falso”. Ela precisa avaliar os conhecimentos que pro- vai dizer que a etnografia leva a alguma verdade. Pois
duz, não tem jeito. Toda disciplina precisa avaliar os está implícito na etnografia a tomada de posição, o
conhecimentos que produz. A teologia muda, a filoso- viés, o filtro do pesquisador. Ela não serve muito para a
fia muda, o direito muda... porque a ciência não vai ideia de legitimar uma política pública como a melhor.
mudar? Então, quando vemos isso como código, temos Porque a etnografia visa, quando muito, a um mapea-
dois efeitos positivos: primeiro, ficamos mais modes- mento do que talvez possa ser uma boa política públi-
tos; segundo, ficamos mais abertos em termos de vigi- ca. O que ela vai indicar é que o sucesso dessa política
lância de produção de coisas. depende sempre de questões conjunturais, de quem
são os atores, os grupos envolvidos. São eles que têm
Isso introduz a crítica da ideia do pensamento com- que falar o que é melhor para eles mesmos.
pleto, que às vezes está misturado aí. Se eu fiz tal pes-
quisa quantitativa ou qualitativa sobre tal ponto não Isso mesmo. Mas acho que temos que tomar cuida-
quer dizer que tudo o que se precisava saber sobre isso do porque normalmente passamos de um extremo
está ali, porque normalmente as chances disso acon- ao outro. Quer dizer, essa constatação sobre a etno-
tecer são nulas. Então é necessária uma mudança de grafia não deve levar a uma banalização completa
atitude do pesquisador. Do ponto de vista de uma ética do conhecimento e nem ao relativismo total. O re-
da pesquisa, diria que é a modéstia, é o reconhecimen- conhecimento de que “não possuo a verdade” não
to de que o conhecimento é uma coisa muito comple- significa que qualquer enunciado sobre a realidade
xa, que é uma tarefa coletiva, que podemos aprender vai ser considerado igual. Uma etnografia feita em
com os outros, que podemos aprender com pessoas uma tarde não se compara a um trabalho de campo
de perspectivas diferentes, com métodos diferentes, etnográfico mais cuidadoso. Os dois conhecimentos
com coisas diferentes. Isso faz parte do nosso traba- produzidos não são necessariamente iguais. Quan-
lho como pesquisador. Acho que essa precipitação que do dizemos que um conhecimento é melhor do que
existe em ciências sociais de dizer que uma coisa é ver- outro é porque ele é mais fundamentado por causa
dadeira e outra não é insustentável. Isso não dá. O que de tal e tal observação, por causa de tal e tal cuida-
acontece é que às vezes se está muito muito preocupa- do. Não quer dizer que um outro também não possa
do em obter imediatamente um determinado tipo de ir mais longe do que já fomos. Mas também não esta-
mudança social. E isso nos precipita e nos faz exagerar mos aqui num discurso politicamente correto de que
ou mesmo absolutizar o valor do conhecimento que tudo é igualzinho, de que qualquer um, com qual-
estamos produzindo para quase dizer: “olha, se os se- quer conhecimento, faz a mesma coisa, como se toda
nhores quiserem salvar a sociedade e o mundo, é esse a camada de conhecimento tivesse só um plano. Por
conhecimento aqui que eu acabei de produzir que os exemplo, quando se vai construir um avião, deseja-
senhores têm que utilizar, e só ele; por favor, não leiam -se alguém que conheça realmente a matéria. Não
os outros”. Isso não dá. se pergunta ao porteiro do aeroporto como construir
um avião porque daí você não vai querer entrar den-

Sobre direito, ciências sociais e os desafios de navegar 244


entre esses mundos /Álvaro Penna Pires et al.
tro do avião (risos). está só parado, sentado, observando.

Em ciências humanas, quando houve essa crítica da Então esses debates sobre as técnicas refletem ide-
hierarquização do saber, da presunção de estar por ologias do pesquisador, mas no sentido de falsas
cima, houve um extremo de dizer que qualquer um representações que nós construímos pelo fato de
que fala, qualquer ator que fala, tem exatamente o utilizarmos uma técnica mais do que outras. Nor-
mesmo valor do que o outro. Mas isso depende. De- malmente as pessoas que fazem objeção a um tipo
pende do que se entende por valor. Mesmo na lingua- de técnica conhecem muito pouco as pesquisas
gem cotidiana, há pessoas que são muito mais ama- feitas com essa técnica e quando as leem ficam
durecidas e falam muito melhor sobre certos temas surpreendidas. Temos menos preconceito com o
do que outras. Temos que tomar cuidado para não que estamos mais familiarizados, e aquilo que nos
sair de um extremo e chegar ao outro, em que o pes- causa menos preconceito passa mais fácil. Outras
quisador pensa que o melhor serviço que ele pode fa- coisas são mais surpreendentes. Mas quando você
zer para a humanidade é se anular completamente e tem oportunidade de mostrar para essas pessoas
só deixar o outro falar. o tipo de pesquisa que está sendo feita e como é
que está sendo feita, muitos delas vão mudar de
JRX: Assim como se hierarquizam métodos hierarqui- posição porque vão começar a perceber que as coi-
zam-se, muitas vezes, técnicas de pesquisa. Algumas sas não são tão simples assim. E que você pode ler
pessoas acreditam que certas técnicas vão trazer res- com muito prazer e aprender muito com pesquisas
postas mais precisas, mais “verdadeiras”. Questiona- que estão utilizando métodos ou técnicas que você
-se, por exemplo, a relevância do uso da entrevista na desvalorizou num primeiro momento, em razão do
pesquisa empírica em direito, considerando-se que ou- que você selecionou, devido à sua percepção, à sua
tras técnicas poderiam ser melhores. O senhor vê esse formação, ao seu conhecimento...
problema também?
A vida se tornou tão complexa em termos de produ-
Quanto a isso, perdeu-se de vista o fato que a téc- ção de conhecimento! No século XIX, Quetelet, por
nica metodológica adotada depende do objeto que exemplo, podia ser ao mesmo tempo astrólogo, es-
você está querendo investigar e não da técnica em tatístico, sociólogo, tudo ao mesmo tempo. Tinha
si. Depende do tipo de informação que você quer seis livros de uma área, três daquela outra... Hoje
produzir. Isso aconteceu também nas duas faces, você não consegue fazer isso. Nem dentro do seu
tanto no quantitativo quanto no qualitativo. Na campo de especialização você consegue ler tudo.
face do quantitativo, a valorização do survey e, E como não se pode ler somente no seu campo de
dentro do survey, da amostra aleatória. Ora, den- especialização – ou é melhor que não o faça – o seu
tro da própria pesquisa quantitativa há uma série tempo vai ter que ser gasto lendo um pouco fora..
de amostragens que não são aleatórias e que se
fossem feitas ao acaso, seriam destruídas. O qua- Pensávamos que o aumento do conhecimento re-
litativo também fez esse tipo de coisa. duziria o campo da ignorância, mas isso é uma
antiga representação. Dizia-se: “cada vez que o
Com relação às entrevistas, o pessoal dizia “não, conhecimento aumenta, o campo de ignorância
a entrevista é o que permite que o autor fale, se vai diminuindo”. Era uma representação completa-
afirme, conte a sua história oral, etc”. Depois houve mente hidráulica do conhecimento. Hoje sabemos
uma retomada e, então, quem defendia a entrevis- que quanto mais o conhecimento aumenta, mais
ta cometia exatamente o mesmo erro, no sentido o campo de ignorância aumenta. Por que ele au-
inverso, dizendo “não, a entrevista é muito melhor menta? O conhecimento produz questões novas
do que a observação direta de terreno, a etnogra- que não existiam antes. Hoje temos consciência,
fia, o survey”. Não é. Até porque é muito confuso, pela grande quantidade de produção científica
quando você faz uma etnografia, muitas vezes, e não cientifica que existe e que seria importante
você tem as entrevistas misturadas ali. Você não conhecer, de que não somos capazes de patrulhar

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Brazilian Journal of Empirical Legal Studies
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tudo isso. E que dependemos do trabalho de outros fazendo uma distinção epistemológica, dentro das
pesquisadores, que às vezes fazem síntese e apre- ciências sociais, entre, de um lado, o construtivis-
sentam certas coisas dos outros campos. mo e, de outro lado, o realismo. A utilização dessa
distinção me parece, hoje em dia, caduca. Creio que
JRX: Nosso objetivo era produzir uma entrevista desti- deveríamos abandonar completamente a ideia da
nada sobretudo às pessoas que vêm de uma tradição oposição realismo/construtivismo por duas razões.
do direito e começam a fazer pesquisa. Nesse sentido, Uma razão teórica-filosófica e uma razão que eu
eu acho que esta entrevista teve vários méritos desmis- chamaria de empírica.
tificadores: em relação à não-hierarquização do conhe-
cimento da sociologia do direito com ou sem o direito, A razão empírica é que, quando eu olhava o traba-
em relação ao quantitativo e ao qualitativo, em relação lho de alguém que se dizia construtivista, eu achava
ao amplo leque das técnicas de pesquisa e ao fato que uma quantidade sem fim de enunciados realistas,
todas elas têm sua contribuição para a produção do não-construtivistas. E quando eu lia um trabalho
conhecimento... Mas, e aqui voltando para o começo que dizia que era realista, havia uma quantidade
da entrevista, me interessa bastante o discurso sobre enorme de enunciados construtivistas. E quando o
a trajetória acadêmica. Para quem sai de uma faculda- autor não dizia o que era, eu não conseguia classi-
de de direito nem sempre é fácil entrar no mundo da ficar; porque se utilizasse sistematicamente os cri-
pesquisa. Em geral, não se tem formação metodológi- térios de um e os critérios de outro, eu classificaria
ca adequada e nem contato com pesquisa. Enfim, há esse autor dos dois lados.
uma navegação entre o direito e as ciências sociais que
o senhor faz há vários anos que não é nada evidente Cheguei a fazer exercícios práticos com isso. Peguei
para quem começa uma carreira. Nesse sentido, creio um texto que tinha uma reputação de ser construti-
que esta entrevista é uma grande contribuição para es- vista e o distribuí para um grupo de estudantes. Era
ses novos pesquisadores. Finalmente, só para encerrar, o texto, de Rosenhan, “Sobre ser são em instituições
gostaria de saber se o senhor tem mais alguma coisa a insanas”11, que tratava de uma equipe de médicos e
acrescentar pensando nesse público. de psicólogos que entraram em um hospital psiqui-
átrico se apresentando como doentes para ver como
Quanto a essa questão da formação, eu tive experi- seriam diagnosticados. Todos foram diagnosticados
ências nas pesquisas conjuntas que fiz, por exemplo, como doentes e quando começavam a dizer que não
com a Maíra Machado na Fundação Getúlio Vargas. eram, isso era visto como sinal da doença. Nesse tex-
Nesse caso era uma pesquisa, em boa parte quanti- to, o autor não diz que ele é construtivista nem rea-
tativa, sobre produção legislativa no Brasil. A assis- lista. Ele diz, no entanto, que a doença mental existe
tente que convidamos para trabalhar conosco era realmente, e tem uma série de enunciados realistas
da faculdade de direito e com uma formação rapi- ali. Bom, então eu distribuí esse texto no seminário,
díssima fez um trabalho excelente, melhor que mui- falei das características do construtivismo e do rea-
tos assistentes que tive vindos de sociologia. Fiquei lismo, e pedi para os estudantes tentarem identifi-
muito contente de ter uma assistente com forma- car o texto como estando em um desses dois pólos.
ção em direito porque ela estava mais atenta para O grupo ficou dividido mais ou menos assim: 40% re-
algumas coisas. Às vezes, ela dizia: “olha, mas esse alista, 40% construtivista e 20% não saberiam dizer.
projeto de lei aqui tem uma confusão em tal coisa e Deu um debate maravilhoso.
tal coisa”. Se ela não tivesse o conhecimento jurídi-
co, não teria me indicado aquilo. Então, isso é outra Então nós vemos hoje, por exemplo, autores que se
coisa que precisamos desmistificar: eu não consigo dizem completamente realistas como Searle que
classificar a qualidade do trabalho dos meus estu- escreve um livro com o nome “The Construction of
dantes segundo a formação original deles.
11 Rosenhan, D. (1994). Sobre ser são em instituições insanas. In
Uma outra coisa que gostaria de abordar para P. Watzlawick. A realidade inventada: como sabemos o que cremos
concluir é essa questão da verdade. Continuamos saber? São Paulo: PSY II

Sobre direito, ciências sociais e os desafios de navegar 246


entre esses mundos /Álvaro Penna Pires et al.
Social Reality”. Você pega Berger e Luckmann, com da realidade social construída na qual ele está. Não
“A Construção Social da Realidade”, metade do livro tem o mesmo sentido. Dentro da realidade social, o
é construtivista e metade do livro é realista. Vocês pesquisador não consegue ficar fora do objeto dele
chegam para Foucault e perguntam “Foucault, a porque ele está construído pelo saber mesmo que
doença mental existe ou não existe?” Paul Veyne ele está analisando. Então, esse novo paradigma
tinha um texto nesse sentido. Resposta clássica do epistemológico mudou a pergunta. Esse novo pa-
Foucault “olha, eu nunca disse que a doença men- radigma começou a se desenvolver a partir de uma
tal não existe. Isso até poderia ser dito, mas isso não perspectiva interdisciplinar da observação, que foi
quer dizer que ela seja nada.” (risos) “Pode-se dizer criada em parte por construtivistas, mas em parte
que ela não existe, mas não quer dizer que não exis- por autores que não se diziam nem realistas nem
ta nada aí de problema, de real, de alguma coisa”. construtivistas.
Essa é a resposta. Agora olha e tenta classificar esse
enunciado do Foucault de um lado ou de outro. Im- Nesse novo paradigma, a pergunta é a seguinte:
possível! Então essa foi a razão empírica. “como X observa?” “Como X conhece?”. Reparem
que se vocês tentarem responder “eu sou realista”,
A razão teórica é que, no meu modo de ver, está se isso não é uma resposta para essa pergunta. “Eu sou
processando uma transformação de paradigma construtivista” também não serve. Você não me dis-
na epistemologia. Isso que eu estou falando e do se ainda como é que você observa. Então o binômio
jeito que eu estou falando eu assumo a responsa- construtivismo/realismo estourou: não só empirica-
bilidade, porque ainda não vi afirmado desse jei- mente não serve para nada, mas teoricamente já
to. Mas o conteúdo do que eu vou dizer já foi dito. não é mais a locomotiva. Esse novo paradigma en-
Posso dizer que está havendo uma mudança de tão descarta a noção de sujeito/objeto, substituin-
paradigma, e que nessa mudança de paradigma do-a por uma noção que é observador/observação
a questão que pedia uma resposta – realismo ou ou operação de observação/observação. O que a
construtivismo? – caiu, apodreceu. A epistemolo- observação faz? Você acha que a observação pode
gia clássica partia da seguinte questão: o que é ser exata em relação à realidade? Será que a sua ob-
que X conhece da realidade? Quando você parte servação, o que você observa, pode existir?
dessa pergunta, você só tem duas respostas extre-
mas e um meio de terreno. As respostas extremas O que acontece aqui? É que na concepção sujeito/
são: X conhece a realidade (realismo); ou X conhe- objeto há uma distância muito grande entre os
ce o que ele projeta sobre a realidade (construti- dois; já com observador/observação, essa distân-
vismo). No meio do terreno, tem a dialética que diz cia está muito mais próxima. Do ponto de vista
que não sabe o que é realista nem o que é subje- epistemológico, o observador que está conhecen-
tivista, mas diz que tem uma mistura dos dois. O do sabe que a observação é um produto dele, mas
sujeito e o objeto estão misturados ali. O sujeito ele pode dizer “o que eu estou observando existe”.
determina o objeto e o objeto determina o sujeito. Isso não é um problema. Com esse fenômeno, a
É claro que nunca dizem como é que o objeto de- oposição construtivismo/realismo cai em desuso.
termina o sujeito. Então tem essas três posições. Já não é mais pertinente do ponto de vista de uma
nova epistemologia que está preocupada com
Dentro dessa categorização aparecia a distinção como nós conhecemos e não com o que X conhe-
clássica sujeito/objeto, na qual o sujeito é tido como ce da realidade. Mas, é claro, aí tem um trabalho
algo externo. O sujeito tem vários objetos e tenta sa- enorme de reconstrução interna das nossas apa-
ber como é que ele se aproxima, se o objeto é uma relhagens epistemológicas e metodológicas. Den-
projeção dele ou se não é, mas trabalha, de qual- tro disso, o problema das técnicas também vai ser
quer forma, com essa distinção sujeito/objeto que mudado, o problema de amostra vai ser mudado...
veio da física. Lá, isso tinha um certo sentido, porque A questão é que o nosso capital escrito de livros de
o físico não faz parte da natureza no mesmo senti- metodologia e de formação ficaram antiquados
do que o pesquisador de ciências sociais faz parte de repente.

Revista de Estudos Empíricos em Direito 247


Brazilian Journal of Empirical Legal Studies
vol. 2, n. 1, jan 2015, p. 226-248
JRF: Professor Álvaro, em nome da Revista de Es-
tudos Empíricos em Direito, muito obrigado mais
uma vez por ter nos concedido esta excelente en-
trevista

Sobre direito, ciências sociais e os desafios de navegar 248


entre esses mundos /Álvaro Penna Pires et al.

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