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Não necessariamente no significado dos dicionários, 1. que foge a um padrão; desproporcionado, irregular,
deformado 2. sem forma; feio, grotesco, deforme, porém sem uma forma pré-estabelecida.
Depois, Maria dos Remédios lê o diário do marido e começa a escrever um diário também,
não deixando claro se ela inicia um pessoal ou se escreve no mesmo diário que ele. Esse é um
leve momento que inicia o estranhamento, pois temos um pensamento pré-concebido à ideia
do diário ser um objeto pessoal, privado e intransferível, então, forçamos-nos mais um pouco
a pensar na possibilidade de cada um ter o seu. Ainda seguindo a ordem, Aleixo descobre o
diário do Humberto e resolver também escrever no/um diário, o que aumenta nosso
estranhamento, pois a partir deste momento as datas que estavam em ordem cronológica
começam a ficar em desordem e a voz do narrador se torna plural e uníssona, ou melhor,
“uni-gráfica”, pois começamos a não saber mais quem está narrando. A partir deste ponto
começamos a ver a condensação dos personagens.
Nas passagens a seguir reparamos a estratégia que nos ajuda a confundir e que, de
fato, isso é intencional:
Outra parte que podemos ver a condensação das personagens é quando a ex-esposa do
Humberto e a Maria dos Remédios se tornam uma única pessoa chamada Julieta. Em vários
momentos encontramos o eu e o tu se encontrando e se tornam um ou, minimamente, tendo o
interesse de ser o outro:
Neste momento, sou o Humberto que sonha ser o Aleixo ou sou o Aleixo que sonha
ser o Humberto? Ou o Humberto que sonha ser a Maria dos Remédios, que por sua
vez sonha em ser o Aleixo, que por sua vez sonha em ser o Humberto, que por sua
vez sonha… Ou o Aleixo que sonha em ser a Maria dos Remédios, que por sua vez
sonha em ser o Humberto que sonha por sua vez… Ou a Maria dos Remédios que
sonha ser o Humberto que sonhar ser… (ABELAIRA, 1978)
A relação existente entre os personagens cria um sensível comum. A idiossincrasia de
cada personagem se torna de todos. O diário individual se torna coletivo. A vida privada, de
certo modo, se torna pública.
2
Sartre nomeia coisa a inércia do objeto que é aquém às espontaneidades conscientes. (SARTRE, 2009, p. 7).
3
Frase utilizada pelo poeta simbolista Rimbaud e pelo teórico Tzvetan Todorov.
formando uma aglutinação cultural-pessoal. O diário, agora, tem uma essência e uma
autonomia inerte.
Outro filósofo que pode nos ajudar nesta análise é o Merleau-Ponty. No capítulo “O
Entrelaçamento - o Quiasma”, do seu último trabalho inacabado intitulado “O Visível e o
Invisível”, Ponty nos diz que pré julgamos o que vemos, mas há possibilidade de ser
concomitante e confusamente sujeito e objeto, existência e essência; essa oferta nos daria
meios para a redefinição. Neste momento, sinto-me deveras aliviado e, consequentemente,
incomodado, pois acredito ter trazido, minimamente, um questionamento de que o objeto
diário no romance Bolor é um personagem, mas para trazer à luz o que estava velado tenho
ainda que utilizar de meios formais e pré estabelecidos de referências. A legitimidade
científica ainda é a técnica que nos coloca em modo de aceitação.
Merleau-Ponty ainda nos diz: “cabe-nos reformular os argumentos céticos fora de
todo preconceito ontológico, justamente para sabermos o que é o ser-mundo, o ser-coisa, o
ser imaginário e o ser consciente” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 127-8). Agora afirmo e
completo que o diário é um personagem-coisa, mesmo sendo sabido que as afirmações
podem ser desfeitas.
Esses pensamentos de Merleau-Ponty nos faz perceber o quão enquadrados estamos
na sociedade e como nosso pensamento crítico também é formado e constituído para uma
coletividade. Acreditamos que tudo o que temos hoje é uma evolução inerente ou,
minimamente, uma construção exata e completa, mas na verdade é uma padronização do
coletivo que não aceita diferenças e desvios. Tudo é construção social.
Dito isto, podemos pensar na construção textual de Abelaira no livro Bolor como uma
relação entre a arte e a sociedade. A arte pela arte, como o movimento Nouveau Roman crê,
não tem vez nesse momento. Se desvencilhar das questões sociais não é agora e não foi para
o neorrealismo uma possibilidade. Se somos seres políticos, fazemos política. Se a fala é uma
ação, a escrita é, pelo menos, uma representação dela.
Como já vimos, no romance as personagens estão insatisfeitas com a vida que levam e
tem o desejo de ser o outro. Tudo isso se passa num âmbito privado. Se pensarmos que o
livro foi escrito no período da ditadura salazarista, podemos relacionar às personagens um
descaso com as relações que circulam a sociedade, mantendo, assim, um foco entre
personagens (Humberto, Maria dos Remédios, Aleixo e o diário). Há um distanciamento dos
acontecimentos sociais das personagens, individualizando suas questões e essas questões são
largamente compartilhada pelos narradores.
A racionalização do indivíduo e o ego como fonte principal para nosso bem-estar e
pensamento crítico é um marco muito importante para nos entendermos enquanto centro de
nós mesmos. Theodor Adorno e Max Horkheimer em seu ensaio “Dialética do
Esclarecimento”, questionam a forma técnica de civilidade no Iluminismo na construção da
liberdade individual, o que chamam de “razão instrumental”. Para eles, os processos racionais
são operacionalizados e dentro de uma lógica cultural do sistema capitalista. No capitalismo,
esse progresso técnico é quando o sujeito toma noção do seu conhecimento e usa-o para
dominação de outros. O salazarismo português - ditadura referente ao período do romance
Bolor - é nada mais nada menos que um exemplo desse movimento de dominação autoritária
sobre o outro; domínio este que indivíduos em estado de poder tem sobre a grande massa e
cria um padrão massificador do qual a sociedade se apropria e internaliza. A ciência, como
dito anteriormente, entra no jogo e reforça certas ideologias do sistema atual, como no
positivismo.
A indústria cultural se apropria de tudo e de todos; o sujeito se transforma em objeto e
é manipulado direta ou indiretamente por vários meios de comunicação que reforçam a
reprodução ideológica de um sistema, reorientação de massas e imposição de
comportamento. Tudo induz positivamente àquele sistema vigente.
Após essa análise sobre os termos de Adorno e Horkheimer, lanço olhares sobre o
romance abelairiano e, rapidamente, crio relações. Sempre considero, por questão pessoal, a
relação de influências em todas as relações; assim como a literatura influencia a sociedade, a
sociedade influencia a literatura; assim como a obra nos influencia, nós influenciamos a obra
- que não discursa a partir das minhas influências, mas marcam gritos visuais. Como os
personagens, ao meu ver, estão num sistema como o descrito acima, vemos as marcas
capitalistas e modernas do indivíduo e da relação com o outro. O sistema tenta coletivizar
culturas para melhor adesão de seus produtos e a individualização se dissolve. Quando, por
exemplo, colocamos coisas nossas em redes sociais, colocamos o privado como público, esse
privado se torna, muitas vezes desejo de consumo de outras pessoas; assim começa uma outra
relação de dominação, só que micro e influenciado pelo macro (que é o sistema).
Por fim, neste pensamento, vemos que a condensação dos personagens pode trazer
uma referência à perda de identidade e o desejo de ser o outro encontrados na sociedade e em
sistemas capitalistas, como a padronização nos sistemas autocráticos. A objetificação do
individualismo é jogado avanço e todos podem participar dessa padronização.
No livro, o desejo de mudança é forte, mas a ação para que isso ocorra não existe. Há
desejo pela mudança, mas inexiste a revolução, criando um comodismo. Como disse
Merleau-Ponty, “(...) as coisas e meu corpo são feitos do mesmo estofo” (MERLEAU-
PONTY, 2003).
Nota: Esclareço aqui que muitas informações são baseadas em referências tradicionais
incutidas na nossa sociedade e em mim, mas as questões trazidas não precisam dessas
confirmações para existir e podem se afirmar por si mesmas (caso queiram).
Bibliografia