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Artigo original

MARCUSE CRÍTICO DE WEBER


A política no capitalismo tardio*
Caio Eduardo Teixeira Vasconcellos
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas – SP, Brasil. E-mail: caiovascon@hotmail.com.

DOI: 10.590/339704/2018

Introdução do materialismo interdisciplinar se notabilizara por


um adensado revigoramento do marxismo, aliando
A complexa relação dos autores da primeira ge- uma nova interpretação das bases sociohistóricas do
ração da teoria crítica com a sociologia de Max Weber capitalismo pós-liberal com as perspectivas de sua
é apontada por muitos dos seus principais comen- superação revolucionária, o movimento em direção
tadores como um elemento central para se com‑ a Weber seria coetâneo a uma visão mais pessimis-
preender mudanças internas no pensamento dos ta quanto ao destino da civilização ocidental. Des-
frankfurtianos. Segundo a matriz de análise bastante crevendo a modernidade tardia como uma espécie
influente, a maior aproximação com certos conceitos de arranjo unidimensional, no qual já não haveria
e temáticas weberianas que se verificaria sobretudo a espaço para mais nenhuma contradição estrutural
partir de meados da década de 1940 demarca uma objetiva e onde as possibilidades concretas de emer-
inflexão nos trabalhos de Max Horkheimer, Theo- gência de uma nova configuração social se reduzi-
dor Adorno e Herbert Marcuse.1 Enquanto a fase riam progressivamente, o período de crítica à razão
instrumental se descolaria da própria dinâmica his-
* A pesquisa de doutorado que forneceu subsídios para a
tórica das sociedades modernas no pós-guerras e se
elaboração deste artigo foi financiada pela Fapesp. Agra- enveredava em aporias teórico-conceituais imanentes
deço à Rafaela Pannain pela leitura e sugestões ao texto. (Benhabib, 1996, p. 81).
Todavia, em que pese a relevância de tais leitu-
Artigo recebido em 21/07/2016 ras, o propósito deste artigo é sugerir uma interpre-
Aprovado em 13/07/2017 tação distinta. Para tanto, gostaria de me concen-
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trar nas críticas de Marcuse à sociologia weberiana e dos antagonismos objetivos que estruturam a
presentes em “Industrialização e capitalismo na modernidade tardia.
obra de Max Weber”.2 Conquanto apontasse inú- Assim, no desenvolvimento da racionalidade
meros desencontros entre a configuração sociohis- capitalista a irracionalidade se torna razão: razão en-
tórica das “sociedades industriais avançadas”3 e os quanto desenvolvimento frenético das forças produti-
diagnósticos de Weber, o frankfurtiano procura vas, conquista da natureza e ampliação da riqueza de
articular suas considerações a respeito dessas fissu- mercadorias (e do acesso a elas mesmas para camadas
ras e inadequação a uma denodada reflexão sobre a mais amplas da população); mas irracional porque a
modernidade tardia. produtividade superior, a dominação da natureza e
Para Marcuse, é certo que o novo metabolis- a riqueza social se tornam forças destrutivas, destru-
mo socioeconômico colocava em síncope o antigo tivas não só no sentido figurado, na liquidação dos
elo apontado por Weber entre a condução da eco- chamados valores superiores, mas em sentido literal:
nomia a cargo da iniciativa privada individual e o a luta pela existência se aguça tanto no plano interno
ascetismo intramundano como orientador e código dos Estados nacionais como no plano internacional,
de conduta ética. Porém, de outro lado, o espeço e a agressão represada se descarrega na legitimação de
alinhavo entre a moderna democracia de massas, a crueldades medievais (a tortura) e no genocídio pro-
ampliação de um tipo de dominação burocrática e movido cientificamente. Houve uma previsão desse
sua relação de dependência com a ascensão de fi- desenvolvimento por parte de Max Weber? A resposta
guras de lideranças carismáticas confeririam uma é: não, na medida em que se acentua a “visão”. Contu-
estranha contemporaneidade ao sociólogo de Hei- do ela se encontra implícita em sua formação concei-
delberg. Quando lidas a contrapelo, as antinomias tual, e de modo tão profundo que aparece como ine-
pelas quais o pensamento weberiano se enredava re- vitável, como definitivo e por isso aparece novamente
velariam o caráter contraditório e enviesado da mo- como racional (no mau sentido) (Idem, p. 119).
dernidade ocidental em seu decurso tardio. Se os
valores e o modo de vida da burguesia nascente não
mais constituem uma força econômica progressista O “espírito coagulado” e suas cicatrizes
(Marcuse, 1998, p. 118), as fissuras em certos con-
ceitos da sociologia de Weber antecipam o momen- Os nexos entre os conceitos de capitalismo
to no qual a ratio se desnuda na efetividade social moderno, de racionalidade e de dominação consti-
como uma nova racionalidade de dominação. tuiriam, segundo Marcuse, o cerne do pensamento
Assim, após uma reconstrução das críticas de weberiano. A imbricação desses termos se corpo-
Marcuse ao conceito weberiano de razão, vou me rificaria de modo mais claro e preciso com a insti-
centrar nas considerações do frankfurtiano sobre tuição de um amplo e complexo aparato de domi-
as categorias de dominação burocrática e de lide- nação, estruturado por uma organização universal
rança carismática. A dinâmica interna e a retor- de funcionários tecnicamente especializados – a
cida imbricação entre esses conceitos prenuncia- moderna burocracia. Todavia, esse binômio entre
riam, conforme as interpretações de Marcuse, a racionalidade e dominação se constituiu em meio
ascensão de um novo padrão de dominação so- a um conjunto variado de práticas e instituições
cial e política peculiar às sociedades industriais sociais e, por conta disso, deixa-se vislumbrar em
avançadas. Ao acompanhar de maneira imanente todo o sistema da cultura material e intelectual das
o movimento da sociologia weberiana, o frank- sociedades modernas.
furtiano afirma ser possível compreender a irra- Pouco a pouco, mas incisivamente, a razão
cionalidade subjacente às sociedades modernas. ocidental avança sobre todos os domínios da vida
A teoria social de Weber pode ser interpretada, social. A forte coação exercida pelo espírito do ca-
portanto, como uma denúncia rigorosa daquilo pitalismo e por seu desencantado ascetismo intra-
que foi feito com os homens e com as coisas, re- mundano sobre as inúmeras formas de atividade e
velando, nesse sentido, aspectos das contradições de comportamento social, a pressão pela matema-
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tização progressiva do conhecimento e dos saberes técnica: produção e transformação de mate-


e pela obrigatoriedade de fornecer à ciência provas e rial (humano e de coisas) por meio do apara-
experimentos racionais, os critérios administrativos to construído metódica e cientificamente com
e os paradigmas operacionais vigentes na produção vistas à eficiência calculável, cuja racionalidade
material de mercadorias e, sobretudo, a rigorosa organiza e controla coisas e homens, fábricas e
disciplina atuante no interior das fábricas com- burocracia de funcionários, trabalho e tempo
põem os principais aspectos do que seria, segundo livre (Idem, p. 117).
Marcuse, a transição de uma razão teórica específica
ao Ocidente para a razão prática peculiar à configu- Porém, a questão que mais interessa a Marcuse
ração histórica da modernidade capitalista. é o caráter problemático inerente a esses conceitos.
Essa racionalidade, no entanto, não advém Pois, longe de indicar o período no qual o capitalis-
imediatamente da objetividade das coisas – é uma mo se torna triunfante e se reproduz sem mais ro-
lei da sociedade e não da física. Ela é uma espé- deios, no qual a dominação é internalizada placida-
cie de disposição subjetiva calcada em determi- mente e corresponde às verdadeiras necessidades e
nada formação social que age como dominação anseios humanos, ou ainda, em que a razão conduz
metódica, científica e racional sobre os sujeitos os homens e os rumos das sociedades, o que se vê
modernos, sobre as sociedades e sobre a natureza. é o seu contrário nas sociedades industriais avan-
Nos momentos em que Weber foi capaz de pro- çadas. O ascetismo intramundano despido de seu
duzir uma autocrítica aos pressupostos materiais fundamento econômico, as antinomias imanentes
e teóricos das sociedades modernas e ao próprio ao conceito de razão ocidental e a irracionalidade
conjunto de seu pensamento, a sua sociologia de uma formação socioeconômica cujo objetivo
mostrou-se apta a fomentar um discurso radical principal é garantir as condições para a acumulação
que denuncia a ratio em seus termos imanentes. ampliada de capital fazem da “rija crosta de aço”
Formada a partir das condições sociais, políticas e algo mais esquivo e errático.
econômicas no final da Idade Média, cujo espíri- A interpretação crítica da sociologia weberia-
to se desenvolveu por meio de uma racionalidade na, portanto, possibilitaria compreender que a ratio
formal imposta ao comportamento psicológico e transfigurou-se com sua plena efetivação e o resul-
econômico dos pregadores do processo capitalista tante clarão que cintila de maneira ofuscante é o
(Idem, p. 130), essa civilização acaba também por prelúdio de uma renovada escuridão. Malgrado as
abstrair, de maneira generalizada e impiedosa, o alterações substantivas nas condições básicas pre-
próprio homem e suas necessidades. sentes na emergência e consolidação do capitalismo
O radical processo de abstração da ratio por moderno e em seu decurso tardio, Marcuse encon-
meio do qual Weber procurou, acertadamente, tra na tessitura interna dos conceitos da sociologia
compreender as sociedades modernas parece querer de Weber a expressão de certos vieses que contri-
se dissociar completamente de sua matéria social. buiriam para efetivar tais desdobramentos.
Segundo Marcuse: É certo que, diante da desmesura do movimen-
to dos capitais no capitalismo avançado, o Homo
Como funcionalização universal (tal como se economicus weberiano parece ser alguém que se equi-
expressa economicamente no valor de troca) ela voca em seus cálculos cotidianos e se mostra indeciso
se torna pressuposto de eficiência calculável – sobre o destino de suas aplicações financeiras. Não
eficiência universal, na medida em que a fun- obstante, as agruras do desenlace posterior já esta-
cionalização possibilita domínio sobre todas riam contidas em aspectos não problematizados que
as particularidades (reduzidas a quantidades e rondam a antessala de seu pensamento – o denso ne-
valores de troca). A razão abstrata se torna con- voeiro no qual o seu conceito de ratio está envolto.
creta no domínio calculável e calculado sobre Assim, o método weberiano de definições
a natureza e sobre os homens. Assim a razão formais, a construção de um saber pretensamente
focalizada por Max Weber se revela como razão desprovido de valores, suas classificações e suas ti-
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pologias abstratas cristalizariam não apenas a época 2) portanto a existência dos homens a serem
na qual a qualidade se reduz à quantidade. Tal pos- sustentados é dependente das chances de ga-
tura intelectual de abstrair os conceitos e as catego- nho da empresa capitalista – uma dependência
rias das ciências sociais de seu material histórico e que adquire corpo de modo extremo no traba-
de aspirar pela produção de um saber axiologica- lho “livre” existente à disposição do empresário
mente neutro caracteriza também os limites internos (Idem, p. 117).
desse tipo específico de racionalidade, que incor-
pora de maneira acrítica o conteúdo social que dá Para Marcuse tudo se passa como se o conceito
origem a esta forma de abstração objetiva. weberiano de razão ocidental, apesar de a conce-
De acordo com o frankfurtiano, aquilo que a ber como algo etéreo, trouxesse reiteradamente as
dialética materialista concebe como o primeiro ato marcas de suas origens e de seus alicerces. O mais
histórico – isto é, a produção dos meios para a sa- grave, no entanto, é que sua procedência continua
tisfação das necessidades humanas – seria hiposta- a lhe impingir travas e barreiras. Tal qual a depen-
siado e apreendido como uma razão necessária por dência da economia às razões e aos motivos de au-
Weber. Embora houvesse esforços reiterados em seu toconservação do Estado alemão que Weber teria
pensamento de diferenciar a racionalização formal hipostasiado em sua aula inaugural na Universida-
do Ocidente de tipos distintos de racionalidade ma- de de Freiburg,4 a concepção weberiana de ciência
terial pertencentes a outras formações sociais, cujo também se liga a determinados valores substanti-
sustento econômico dos seus membros se derivaria vos. Se diante dos desafios históricos da Alemanha
de postulados ético-normativos, os conceitos webe- pós-Bismarck as políticas econômicas deveriam ser
rianos também estariam internamente vinculados concebidas a partir da expectativa de preservação
às precondições materiais e ideias de reprodução ca- da unidade nacional, a exigência de imparcialidade
pitalista da riqueza coletiva e de suas desigualdades. que recai sobre o ideal de ciência weberiano traz em
Mais do que simples descuido subjetivo, essa parcia- seu bojo a esperança na perenidade das estruturas
lidade brotaria da natureza da vida social moderna. de pensamento modernas e da base da produção
material do capitalismo liberal.
O conceito weberiano de razão até agora foi A sua teoria da neutralidade axiológica, que
definido de modo “formal”: como a abstração ambiciona uma ciência livre a fim de submetê-la à
quantificadora, abstração de todas as particula- influência de valores externos, mantém-se atrelada a
ridades, a abstração que possibilita a eficiência condicionamentos filosóficos, histórico-sociológicos
universalmente calculável do aparato capita- e políticos burgueses (Idem, p. 114). Com isso, a
lista. Mas agora se apresentam os limites da ebulição crítica do pensamento é arrefecida e a ciên-
razão formal: nem o para que da construção cia tende a se conformar à sua especialização sem
científico-técnica, nem a matéria da constru- precedentes e com uma crescente impotência em sua
ção (seus sujeitos e objetos) podem ser deduzi- capacidade de recusa e de rebeldia ante ao existente.
dos a partir do conceito de razão; rompem de
antemão o conceito formal “axiologicamente Se já o Discurso de posse subordinada de ma-
neutro” da ratio. Na racionalidade capitalista, neira provocativa a ciência da economia à po-
tal como Max Weber a analisa, esses elementos lítica, à luz da obra conjunta de Weber esse
previamente dados à razão, que a limitam ma- tour de force se revela como sendo a lógica in-
terialmente, aparecem em dois fatos históricos: terna de seu método: a ciência de vocês deve
permanecer “pura”, só assim vocês poderão
1) o sustento dos homens – o objetivo da prá- permanecer fiéis à verdade. Mas essa verdade
tica econômica – ocorre no plano das chances obriga vocês a aceitar o que a partir “do exte-
calculadas de ganho da economia privada, isto rior” determina os objetos da ciência de vocês;
é, no âmbito do lucro do empresário individu- sobre isso vocês não têm nenhum poder. A
al e das empresas individuais; neutralidade axiológica de vocês é tão necessá-
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ria quanto ilusória: a neutralidade só é efetiva- um meio para um fim fora dele. No que con-
mente real quando provida do poder de evitar cerne ao aparelho econômico do capitalismo:
interferências; quando não, ela se torna vítima não basta focalizar a satisfação das necessidades
e auxiliar de todo poder que pretende utilizar como sendo esse fim. O conceito é demasia-
(Idem, p. 125). do geral, demasiado abstrato no mau sentido.
Pois, como o próprio Max Weber constatou,
A ratio passa, então, a ser pensada como pura a satisfação das necessidades é muito mais um
técnica, como aquilo que supõe estar sob influxo produto lateral, de acompanhamento, do que
de reações mecânicas de um gélido corpo exangue. um fim do agir econômico capitalista – um
Não obstante, se acerta sobre sua temperatura, ela produto de acompanhamento subordinado ao
é incapaz de se desvincular de sua vocação política; lucro (Idem, p. 126).
não consegue se afastar de sua natureza de ser um
meio para um mesmo fim, qual seja, a dominação Haveria, por outro lado, uma miríade de pos-
dos homens e da natureza. A base material que sibilidades utópicas que as sociedades modernas
lhe dá origem e seus objetivos – que, na sociolo- frustram, à qual a sociologia weberiana faz vistas
gia weberiana, permanecem igualmente anteriores grossas. A pretensa formalidade da razão ocidental
a qualquer juízo crítico – selam o destino da ratio e e a imparcialidade e naturalidade pela qual as suas
conformam o conjunto da sociedade segundo seus instituições e práticas sociais aparecem em sua ime-
caprichos. Por tais meandros, erige-se uma figura diaticidade são construções históricas e, como tais,
inédita de domínio social e político. Comandados suscetíveis a toda sorte de transformações e ruptu-
por aquilo que se apresenta como necrose, os sujei- ras – sobretudo as revolucionárias. Além de trave-
tos modernos, as instituições sociais e a vida cultu- jada por condicionamentos políticos e sociais, a ra-
ral e política são submetidos a critérios tais como zão ocidental se assenta em regressões intelectuais e
os de eficiência maximizada, de férrea disciplina, de práticas sociais injustas. Embora, ao mesmo tempo,
precisão e de calculabilidade. ela também crie as condições para outro patamar
Em vez de iniciar uma etapa superior de civili- de civilização e de cultura, a ratio moderna incor-
zação, essa maneira hodierna de administrar os ho- pora em si um projeto de dominação política sobre
mens e as coisas repisa velhos chavões em uma gra- a natureza e sobre os homens que visa promover
mática aparentemente neutra. As antigas práticas e o seu fim último – a conservação do status quo e a
instituições abertamente violentas de domínio e de reprodução ampliada do capital.
controle social são substituídas por formas racio- A moderna opressão capitalista, portanto, só
nalizadas e reificadas de comando; se o seu modo pode ser superada mediante a supressão profunda
de atuação é menos hostil, o seu caráter permanece e radical de suas formas de sociabilidade e de sua
enviesado. A vida social continua a ser organizada a organização da produção material de mercadorias.
partir de critérios outros que não a satisfação plena Somente assim a humanidade deixa de ser um
e concreta das verdadeiras necessidades humanas. apêndice da máquina e mostra-se capaz de condu-
zir verdadeiramente a vida social conforme critérios
A administração científico-especializada do substantivos de racionalidade.
aparelho como dominação racional-formal: eis
a reificação (Verdinglichung) da razão – reifica- Enquanto a razão política, a razão técnica é his-
ção como razão –, apoteose da reificação. Mas tórica. Se a separação dos meios de produção é
a apoteose se converte em sua negação, precisa necessidade técnica, a servidão por ela organiza-
se tornar sua negação. Pois o aparelho que im- da não o é. Com base em suas próprias conquis-
põe sua própria administração objetiva consti- tas – a mecanização produtiva e calculável –,
tui ele próprio um instrumento, um meio – e esta separação adquire a possibilidade de uma
não existe um meio “em si”. Por mais produti- racionalidade qualitativamente diferente, em
vo, reificado que seja um aparelho, trata-se de que a separação dos meios de produção se
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converte em separação dos homens do pró- ideológica ao revelar o caráter ilusório pertencente
prio trabalho socialmente necessário mas que à moderna democracia de massas, sobretudo em
o destrói. No estágio da produção automática sua falsa igualização e assimilação dos contrastes
administrada pelos homens assim libertados, entre as classes sociais, eles revelariam um segredo
as finalidades formal e material já não seriam ainda mais recôndito das sociedades capitalistas.
necessariamente “antinômicas” – e nem a ra- De acordo com Marcuse, tanto nos acontecimen-
zão formal se imporia “indiferentemente” por tos políticos referentes à Alemanha pós-Bismarck
entre e por cima dos homens. Pois enquanto quanto nos relativos ao destino do Ocidente, a in-
“espírito coagulado” a máquina não é neutra; terpretação weberiana se colocaria diante de anti-
a razão técnica é a razão social em cada caso nomias características não apenas de um tipo ainda
dominante; ela pode ser transformada em sua ascendente de dominação social e política.
própria estrutura. Enquanto razão técnica ela Segundo a definição weberiana, a moderna bu-
só pode ser convertida em técnica da libertação rocracia deveria se portar conforme princípios de
(Idem, pp. 133-134). calculabilidade, de previsibilidade e de disciplina.
Porém, aquilo que se anuncia como governo do
Eivada de propósitos particulares, o tipo espe- aparato burocrático e dos seus funcionários especia-
cial de razão que justifica as volições de Weber a lizados não consegue cumprir o seu próprio concei-
respeito da neutralidade no conhecimento das ci- to. Em que pese o funcionamento normal e espera-
ências sociais manteria suas análises presas a valores do de suas regras e de seus procedimentos formais,
burgueses, revelando sua inegável determinação e nota-se um recorrente apelo a modos distintos de
orientação política (Gandesha, 2004, p. 191). organização da esfera política, e a administração
Na esfera da política, contudo, os vieses e as con- plenamente racionalizada lança mão de estratégias
dicionantes da ratio são de outro tipo. O problema irracionais para se perpetuar.
não seria mais a base material das sociedades moder-
nas que, concebida como uma privação de ordem téc- Mas, quando a administração burocrática em
nica, escamoteia a natureza de classe e a historicidade toda a sua racionalidade permanece meio e, por-
da civilização e da razão ocidentais. Apesar de se cor- tanto, dependente, então, enquanto racionalida-
relacionar internamente a esses fundamentos, o fenô- de, ela tem seu próprio limite: a burocracia se
meno perturbador da ordem é o fato de a dominação subordina a um poder extra-burocrático e supe-
burocrática perder reiteradamente o seu chão e não rior à burocracia – a um poder “alheio à empresa
conseguir cumprir os seus propósitos e nem respeitar produtiva”. E se a racionalidade se concretiza na
os seus princípios. Por força imanente do tipo de ra- administração e somente nela, então o poder
cionalidade que lhe é subjacente, a dominação buro- legislador precisa ser irracional. O conceito we-
crática tende a se subordinar a um centro de poder beriano de razão termina no carisma irracional
alheio. Em termos mais concretos, trata-se da perigosa (Marcuse, 1998, pp. 126-127).
associação entre a estrutura forte, racional e pesada –
isto é, autoritária – de um aparato estatal com a sedu- O sintoma da descontinuidade e da opacidade
tora figura de líder carismático e a de sua reprodução inerentes à esfera política surgiria nos primeiros escri‑
nas democracias de massas do Pós-Guerra. tos de Weber. Para Marcuse, a sua sociologia esta-
ria, desde o seu início, impregnada por uma turva
concepção que enxerga somente na politica impe-
O capitalismo moderno e sua política rialista a condição para a pacificação possível – se é
que esse termo se emprega – no interior das nações.
Essas ranhuras na racionalidade ocidental apa- Embora já advogasse a favor da neutralidade axio-
receriam de forma inquietante na trama dos con- lógica da sociologia, o seu pensamento documenta-
ceitos weberianos destinados a compreender a po- ria desde então sua contaminação com os limites e
lítica moderna. Além romper qualquer ocultação com as cisões das sociedades burguesas.
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Assim, em “O Estado nacional e a política eco- e incompatível a longo prazo com o interesse
nômica”, Weber diagnostica uma dissociação entre nacional que uma classe economicamente de-
os detentores do poder econômico na Alemanha na cadente mantenha em mãos a dominação po-
virada do século XIX e a sua vocação para a condução lítica. Mais perigoso ainda, contudo, é quando
da política. A rispidez do seu discurso floresce da cer- classes para as quais se movimenta o poder eco-
teza de não encontrar interlocutores nem entre seus nômico, e com isso a candidatura para a domi-
pares, nem nas demais camadas sociais. Não haveria nação política, ainda não estejam politicamen-
indícios de que alguém conseguiria reunir as aptidões te maduras para a condução do Estado. Ambos
necessárias para fomentar o desenvolvimento econô- esses perigos ameaçam atualmente a Alemanha
mico e, principalmente, assumir a missão perante a e nisso resido de fato a chave para os presentes
história de conformá-lo aos interesses de longo prazo perigos da nossa situação (Weber, 2003, p. 73).
da pátria alemã. Às voltas com os problemas decor-
rentes de sua decadência social, a camadas dos Junker Para Marcuse, as antinomias decorrentes desse
não poderiam responder aos requisitos de uma polí- contexto sociohistórico alemão seriam fruto de uma
tica de potência que a Alemanha precisava desempe- sociedade que deveria ser emancipada de suas restri-
nhar. Embora a classe dos trabalhadores reivindicasse ções econômicas e de suas contradições sociais, mas
de maneira legítima, já consciente de suas condições que se mantém presa a elas para preservar a antagô-
particulares de sobrevivência, o direito de representar nica ordem social estabelecida e a condução da eco-
os seus interesses, ela ainda não teria atingido o míni- nomia conforme o ritmo – ao mesmo tempo veloz
mo de maturação para assumir os postos de comando e mal-intencionado – da produção de mercadorias.
do Estado alemão, sendo constantemente assediada Se para Weber o indecoroso bramido de sua
pelas inconvenientes concepções internacionalistas do classe pelo surgimento de um novo regime cesa-
socialismo moderno. rista, que a preserve tanto das ameaças das cama-
A situação da burguesia alemã seria ainda mais das populares quanto das extravagâncias sociais e
inquietante. Perante a unidade nacional forjada sem políticas das antigas dinastias alemãs, deve-se a sua
a sua participação ativa, ela se acomodaria a um pa- jovialidade e à ausência de educação política, Mar-
pel secundário, alimentando veleidades de caráter cuse interpreta esse clamor de maneira distinta. É a
apolítico. Em um contexto no qual apenas a expan- caducidade da burguesia e das sociedades modernas
são da grande indústria poderia garantir indepen- que direciona o poder político nesse caminho in-
dência ao território alemão na acirrada disputa in- certo e obscuro segundo o frankfurtiano.
ternacional que se anunciava, as camadas burguesas Em vez de ultrapassar os seus limites internos,
se mostravam inertes diante da urgente tarefa de su- essa razão formalizada e o quadro técnico adminis-
perar os impasses da antiga ordem feudal, promover trativo da burocracia moderna denunciam qualquer
a modernização socioeconômica, a racionalização da tipo de racionalidade histórica qualitativamente
política e ainda conter as ameaças de uma revolução distinta. De acordo com Marcuse, a desconfiança
socialista. Oscilando entre embriagar-se com as con- e o ar debochado com os quais Weber julgava as
quistas do passado e buscar avidamente a paz para o experiências de transformação revolucionária do
futuro, a burguesia se satisfazia em engrossar o coro poder são tributários dessa acanhada compreensão
pela revivência de um novo regime cesarista, ainda do que é racional. Pensar a distribuição das riquezas
que a lenta e irresistível transformação na estrutu- materiais como uma libertação da economia – isto
ra socioeconômica posterior à unificação do Estado é, que a luta pela sobrevivência não mais controle a
prussiano não mais fosse condizente com essa forma conduta dos sujeitos –, as disputas políticas como
de organização da política. Segundo Weber: libertação da política, sobre a qual os indivíduos
não têm a menor influência, e a autonomia inte-
Em todas as épocas, atingir o poder econômi- lectual como libertação do pensamento das amarras
co foi o que permitiu a uma classe conceber-se da manipulação das massas é inadmissível dentro
como candidata ao poder político. É perigoso do espectro da razão ocidental.
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A esse respeito, tampouco a transformação ra- revolução radical das sociedades modernas, mas
dical das sociedades modernas seria suficiente para principalmente porque há bem pouca calmaria no
subtrair do aparelho burocrático a autoridade sobre interior de sua própria racionalidade. A propalada
o curso do mundo. De acordo com Marcuse, Weber fragilidade e imaturidade dos detentores do pode-
concebe o socialismo a partir da ideia regressiva e rio econômico na Alemanha não seriam distintas
questionável de que as conquistas do progresso tec- das inerentes ao poder político na modernidade
nológico e da industrialização – quais sejam, a vitó- tardia. Aquilo que Weber interpretava como uma
ria da disciplina sobre a satisfação das necessidades, languidez momentânea das classes e dos estamentos
a da dominação racional das coisas sobre os homens sociais alemães – sobretudo no que diz respeito à
e a eternização da luta dos homens entre si e pela burguesia de sua época – é intrínseco ao modo de
sobrevivência – seriam as únicas imagens plausíveis organização e de funcionamento da administração
do futuro. Toda possibilidade utópica permanece, política burocrática. As tentações de recorrer a figu-
assim, circunscrita ao restrito e enfadonho espectro ras personalistas de comando, de subverter a lega-
do passado. Dessa maneira, o socialismo, que se- lidade dos processos de escolha dos representantes
ria descrito por Weber como “o grande equívoco” eleitos ou de lançar mão de estratégias de manipu-
da história mundial, só pôde ser pensando a partir lação publicitária são utilizadas para contornar de-
dos mesmos paradigmas de racionalidade, de do- bilidades originadas nos pressupostos materiais das
minação e de organização da produção material de sociedades modernas e que se aspergem coercitiva-
mercadorias vigentes nas sociedades capitalistas. A mente pelo conjunto da vida social e política.
questão afasta-se de qualquer intelecção acerca das Nesse sentido, o vespeiro não estaria na supos-
possibilidades de outra forma de relacionamento ta imaturidade social e política da burguesia alemã
dos homens entre si e com a natureza, de uma nova contemporânea a Weber – sua força motriz pulsa
e progressista configuração da vida social e, por fim, mesmo do coração da ratio. É a própria razão oci-
de uma concepção verdadeiramente harmônica e dental, atuando segundo seus preceitos mais estri-
emancipada da própria humanidade. tos, que conduziria a política moderna a esse tipo
de irracionalidade. O poder político nacional trans-
Com estas palavras Max Weber cita uma tese forma-se em imperialismo no momento em que o
do socialismo; ele não a contesta, mas acredita capitalismo moderno aguça a luta competitiva en-
que também a sociedade socialista não mudará tre forças e poderes sociais desiguais, tanto no pla-
nada no fato básico da separação dos trabalha- no interno como na concorrência entre os países.
dores dos meios de produção, simplesmente Ademais, ao retirar da razão toda perspectiva
porque ela é a forma do progresso técnico, da de avaliação crítica sobre as formas de organização
industrialização. Também o socialismo perma- da sociedade, o abismo entre as reais exigências da
nece subordinado à sua racionalidade se pre- administração política e as demandas oriundas de
tende por sua vez permanecer fiel a sua própria processos econômicos desenfreados se radicaliza.
promessa da satisfação universal das necessi- A formalidade dos procedimentos de dominação
dades e da pacificação da luta pela existência. burocrática já não consegue realizar a sua missão
O domínio das coisas sobre os homens pode e escancara-se a ausência de continuidade entre
ser despojado de sua irracionalidade, segundo as esferas da economia e da política. Embora com
Max Weber, unicamente no domínio racional certa hesitação em aplicar o conceito de carisma às
dos homens sobre os homens. Portanto, inclu- sociedades capitalistas, Weber não teria deixado de
sive para o socialismo a questão que se coloca perceber essa dissociação entre a moderna raciona-
é: “Quem deverá assumir e comandar essa nova lidade econômica do capitalismo e essa forma de
economia?” (Marcuse, 1998, pp. 123-124). domínio social.
Em sua leitura da sociologia de Weber, Mar-
Porém, essa forma de dominação social se de- cuse encontra uma espécie de dinâmica interna aos
sestabiliza não somente pela possibilidade de uma tipos ideais de dominação social, pois, ainda que a
MARCUSE CRÍTICO DE WEBER  9

dominação racional e burocrática se construa sobre manece como dominação matematizada, tecno-
fundamentos sólidos e duradouros, ela não se quer logizada sobre pessoas, e o socialismo mais cien-
apenas permanente, mas sobretudo legítima. Segui- tífico, tecnológico é construção ou derrubada de
doras de uma espécie de “teodiceia da felicidade”, dominação (Idem, p. 124).
as camadas dominantes não se satisfazem em con-
centrar e em exercer o seu poder de mando – elas Marcuse ressalta aquilo que se petrifica por
querem que sua posição de destaque apareça como meio desse esvaecimento. Caso seja legítimo imagi-
justa e seja merecida. Se a institucionalização bu- nar uma transformação substancialmente racional
rocrática lhes garante uma vida longa e estável ao da dominação burocrática, ela não deve se conta-
ampliar sua zona de ação e sua capacidade de impor minar pelo magnetismo atávico de um líder caris-
seus ditames, a sua racionalidade caracteristicamen- mático. Quando isso ocorre, é sinal de que a vida
te fria e formal não suscita reverência suficiente en- política não corresponde ao estágio no qual as so-
tre os dominados. Mesmo sob o risco constante de ciedades humanas poderiam estar, mas se acomoda
dissolução após um breve instante dado a natureza às vicissitudes de um mundo social que dá as costas
instável do tipo de dominação carismática, a adesão para os homens e para a verdadeira razão. Menos
irracional a um demagogo moderno coroaria essa do que indicar um período de mudanças profundas
racionalidade da dominação de um tipo de venera- e revolucionárias, em que haja uma real criação de
ção inatingível às instituições burocráticas. novos valores e a emergência de modelos emanci-
Essa difusa dinâmica à qual os tipos weberianos pados de sociabilidade, se está diante de uma for-
de dominação burocrática e carismática estariam mação social que funciona a partir da profunda
submetidos prenunciaria as regressões e os desva- abstração de tudo o que seja humano ou histórico.
rios do tumultuoso movimento da esfera política A desumanidade e a negação da vida real são traços
no capitalismo tardio. Em certo sentido, ela acom- de normalidade de sua (ir)racionalidade corrente.
panha a ratio que despercebidamente transforma-se Mantendo-se sob esses estreitos limites, a esfe-
no curso de seu desenvolvimento e subordina-se, ra política repisa o agrilhoamento coetâneo da vida
por sua legalidade interna, à razão da dominação social. A reiteração da sequência de acontecimentos
(Idem, p. 124). A retorcida imbricação entre a con- que meramente repõe os fundamentos econômicos,
tingência da ascensão dos líderes carismáticos, a su- sociais e culturais da modernidade capitalista tolhe
focante ubiquidade e a fria previsibilidade dos pro- a fantasia que deveria reger as formas de organização
cedimentos das agências de dominação burocrática das sociedades. As questões e as indecisões concer-
atestariam esse aspecto sui generis constituinte da nentes à tomada do poder pela burguesia ascenden-
razão ocidental. te, que no caso alemão exigia a modernização do
Estado ainda pré-burguês, reaparecem nas socieda-
Justamente na medida em que essa racionali- des industriais avançadas. Incapaz tanto de evitá-las
dade formal não ultrapassa seu próprio nexo, quanto de levá-las às últimas consequências, a
tendo apenas seu próprio sistema como norma democracia nessas sociedades torna-se sinônimo de
de cálculo e do agir calculadamente, ela é de- uma ditadura plebiscitária.
terminada “a partir do exterior”, por algo outro Em um tempo no qual as boas-novas não pas-
que não ela mesma – assim, conforme a própria sam da reiteração dos velhos valores e das antigas prá-
definição de Max Weber, a razão se porta “ma- ticas sociais – quase um jogo de cartas marcadas –,
terial”. Pois não há nenhuma relação que não o carisma reverte-se em uma espécie de reafirmação
seja posta e, enquanto posta, seja dependente; de interesses privados previamente consolidados e
no continuum da história em que se desenvolve na tentativa de organizá-los a fim de que sua exis-
todo o agir econômico, toda razão econômica tência se propague indefinidamente. Simples ins-
sempre é a razão da dominação, que determi- trumento incapaz de propor para si objetivos ma-
na o agir econômico como histórico-social. O terialmente racionais, a administração burocrática
capitalismo “científico” mais matematizado per- desrespeita a expectativa de formalidade de seus
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procedimentos e sucumbe ante a irracionalidade de tema autoritário, desde que suas necessidades fos-
um destino que assume sua dependência dos feitios sem eficazmente atendidas.
e das particularidades de um líder carismático. É certo que essas demandas poderiam ser in-
terpretadas como a manifestação de “falsas necessi-
Entretanto, essa administração racional de massas dades”. Embora nenhuma outra instância senão os
e coisas não pode dispensar o ápice carismático próprios sujeitos possuiria autoridade para julgar a
irracional. Pois a administração, justamente na legitimidade de seus interesses, essa capacidade não
medida em que é efetivamente racional, tende- deveria ser encarada de maneira abstrata, pois é di-
ria à superação da dominação (administração de retamente dependente do grau de liberdade que se
coisas); mas o aparelho administrativo sempre foi tem para se fazer escolhas. Enquanto o conteúdo
edificado no plano da dominação, sendo instituí- e a função social de suas vontades e anseios forem
do com o objetivo de conservação e fortalecimen- impostos pela totalidade social, o desenvolvimento
to desta. Assim, à democratização exigida pela e a satisfação de tais necessidades seriam heterô-
administração racional corresponde uma paralela nomos. Ainda que haja forte identificação pessoal
limitação e manipulação da democratização. A com essa mecânica de submissão, seus desejos con-
dominação como privilégio de interesses parti- tinuam a ser produto de uma sociedade que exige
culares, por um lado, e autodeterminação como repressão das pulsões dos indivíduos.
expressão de interesses gerais, por outro, precisam Isso porque, se na aurora da modernidade a li-
assim ser forçados à reunião. Essa solução forçada vre iniciativa individual significava para a classe dos
e simultaneamente formal-racional, isto é, tecni- trabalhadores a liberdade de trabalhar ou morrer
camente eficiente, da contradição tem sua mani- de fome, sociabilizando a grande maioria da popu-
festação clássica na democracia plebiscitária, em lação pelo medo e pela insegurança, as sociedades
que as massas periodicamente depõem seus líde- industriais avançadas, a seu modo, não deixam de
res e lhes determinam a política – em condições ameaçar com restrições e carências. Conquanto o
preestabelecidas e bem controladas pelos líderes ascetismo intramundano tenha perdido suas jus-
(Idem, pp. 127-128). tificativas econômicas, nem por isso as exigências
de severidade e de austeridade no trato com seus
No âmbito das sociedades industriais avança- desejos abandonaram os homens modernos. Princi-
das, essa dinâmica interna aos conceitos weberianos pal responsável por inúmeras ameaças, a civilização
viria eclodir como essa espécie de fechamento do ocidental malversa não apenas sua base material e
universo político. Construindo barreiras às transfor- sua capacidade tecnológica em favor da preservação
mações qualitativas no seio da vida coletiva, a ratio da exploração capitalista do trabalho, mas também
avança até sobre as liberdades e direitos burgueses atrela as produções intelectuais e culturais e a pró-
mais tradicionais. Se, em algum dia, a independên- pria formação subjetiva dos indivíduos à engrena-
cia de pensamento, o direito de oposição política e gem de dominação socioeconômica, fazendo com
a autonomia individual figuravam entre os projetos que os esforços de subverter a sua ordem e sua ser-
utópicos a serem concretizados pela modernidade vidão apareçam, em sua imediaticidade, como os
capitalista, esses valores regrediram a uma imprensa maiores exemplos da mais pura irracionalidade.
que se autocensura, a uma democracia que restringe
a escolha a partidos equivalentes e a inclinações sub- Certamente também o capitalismo desenvolvi-
jetivas para se adaptar de maneira célere a uma vida do é construído sobre o “sacrifício”: a luta pela
mortificada, tornando a economia uma força mais existência e a exploração da força de trabalho
irresistível e o mundo em uma monotonia infernal. precisam continuar de modo sempre mais in-
Diante do crescente padrão de vida e da afluên- tenso se a acumulação ampliada deve perma-
cia dessa nova ordem social, pareceria ser quase necer possível; aqui a planned obsolescense (ob-
indiferente aos indivíduos que sua adesão a novos solescência planejada), a contrarrazão metódica
princípios e instituições fosse realizada em um sis- se torna necessidade social. Esse já não é o modo
MARCUSE CRÍTICO DE WEBER  11

da burguesia como classe que desenvolve as for- tagonismos imanentes ao sistema do que o presságio
ças produtivas – é muito mais o estigma da des- de uma nova vanguarda revolucionária (Giddens,
truição produtiva nos termos da administração 1998, p. 270). Cedo ou tarde, o desenvolvimento
total. E o cálculo capitalista da rentabilidade e econômico e os recursos tecnológicos poderiam in-
da eficiência matematizadas festeja seus maiores tegrar esse contingente de párias, enquanto as for-
triunfos no cálculo assumido do ocaso, do risco ças policiais e os órgãos de repressão cuidariam das
da destruição de si próprio frente à destruição movimentações mais ameaçadoras. De certo modo,
do inimigo (Idem, p. 118). essas sociedades teriam plasticidade suficiente para
inverter o sentido das lutas e dos embates sociais tra-
dicionais, transformando o que anteriormente fora
um fermento de mudanças e transformações históri-
Considerações finais cas em um meio de coesão social.
No entanto, além de fornecer uma miríade
Além de trazer à tona elementos que proble- de mercadorias supérfluas para uma população
matizam a suposta aproximação de Marcuse em cujas necessidades vitais já estariam satisfeitas, es-
relação à sociologia weberiana em seu período de sas sociedades não deixariam de produzir, de sua
maturidade intelectual, suas críticas à teoria social maneira, inúmeras e profundas novas desigualda-
de Weber permitem também perscrutar transfor- des (Loureiro, 2005, p. 18). Atingindo preferen-
mações na esfera política que, segundo o frank- cialmente os negros, as mulheres, os migrantes e
furtiano, caracterizariam a modernidade tardia. outras minorias, a produção de tais desigualdades
Embora a imbricação entre os procedimentos bu- demonstraria que sua pretensa unidimensionalida-
rocráticos de organização da politica e a ascensão de é, na verdade, uma simples aparência. A teoria
de lideranças carismáticas confluísse para a coesão crítica de Marcuse se abstém de uma formulação
interna dessas sociedades, bem como para amainar positiva dos modos e dos meios para a emancipação
os antagonismos entre as classes sociais, as antino- social que ultrapasse o abismo que separa o presen-
mias imanentes entre esses dois tipos de dominação te do futuro. O seu pensamento se restringe a pers-
social explicitam o caráter objetivamente contra- crutar as formas objetivas e as disposições subjetivas
ditório dessa etapa do capitalismo e da civilização que, apresentadas como um conjunto neutro de
ocidental em seu decurso tardio. instrumentos, coagem os indivíduos a assumirem
Ademais, quando vistas mais de perto, as análises uma impostura que instrumentaliza seus desejos e
de Marcuse apontam não apenas a produção de deter- neutraliza sua própria humanidade. Na esperança
minados mecanismos de arrefecimento dos conflitos e de que um dia a velha trava da história seja, de fato,
antagonismos sociais, mas também o modo particular removida, a sua função é somente dar o que seria
de funcionamento dessas sociedades. Este aprofunda- o verdadeiro nome às coisas e chamar atenção para
ria, em vez de mitigar, a distância entre o potencial suas fissuras e inconsistências internas. O fato de
histórico desenvolvido e as recompensas que ela dis- que Marcuse, como um “barômetro histórico sen-
ponibilizaria aos seus membros, podendo fomentar sível” (Kellner, 1984, p. 274), tenha identificado o
um amplo movimento de “Grande Recusa” ao exis- potencial de irrupção e efervescência social desses
tente. Conjuntamente à cisão entre o que é dado e o grupos marginalizados poucos anos antes da eclo-
que seria possível, entre as necessidades satisfeitas e as são dos movimentos de contracultura do final dos
necessidades não atendidas, haveria numerosos outros anos de 1960 revela a integridade de sua agudeza
indivíduos e segmentos de desprivilegiados que, às crítica. Em O homem unidimensional:
margens da afluência que distinguiria o período, expe-
rimentariam condições de vida mais aviltantes do que Entretanto, debaixo da base popular conserva-
as do início do capitalismo moderno. dora está o substrato dos proscritos e margina-
À primeira vista, esses setores marginalizados lizados, os explorados e perseguidos de outras
seriam mais a expressão das tensões e dos novos an- raças e outras cores, o empregado e o não-
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-empregável. Eles existem fora do processo de- BIBLIOGRAFIA


mocrático; sua existência é a mais imediata e a
mais real necessidade pelo fim das condições ALDENHOFF-HÜBINGER, Rita. (2012), “Os
e instituições intoleráveis. Assim sua oposição é cursos de Max Weber: economia política, polí-
revolucionária ainda que sua consciência não tica agrária e questão dos trabalhadores (1894-
seja. Sua oposição atinge o sistema de fora para 1900).” Tempo Social, 24 (1): 37-60.
dentro e, portanto, não é bloqueada pelo sis- BENHABIB, Seyla. (1996), “A crítica da razão
tema; é uma força elementar que viola as re- instrumental”, in S. Zizek (org.), Um mapa da
gras do jogo e, ao fazer isso, revela-o como um ideologia, Rio de Janeiro, Contraponto.
jogo viciado. Quando ficam juntos e vão para CARNEIRO, Silvio. (2009), O discurso ontológico e
as ruas, sem armas, sem proteção, de modo a a teoria crítica de Herbert Marcuse. Dissertação
pedir pelos mais primitivos direitos civis, eles de mestrado, São Paulo, FFLCH-USP.
sabem que têm enfrentar cães, pedras, bombas, GANDESHA, Samir. (2004), “Marcuse, Ha-
cadeia, campos de concentração e mesmo a bermas and the critique of technology”, in J.
morte. Sua força está por trás de cada manifes- Abromeit e W. M. Cobb (orgs.), Herbert Mar-
tação política pelas vítimas da lei e da ordem. cuse: a critical reader, Londres, Routledge.
O fato de eles começarem a recusar a jogar o GIDDENS, Anthony. (1998), “O guru imprová-
jogo pode ser o fato que marca o começo do vel: relendo Marcuse”, in _____, Política, socio-
fim de um período (Marcuse, 2015, p. 240). logia e teoria social: encontros com o pensamento
social clássico e contemporâneo, São Paulo, Edi-
tora da Unesp.
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Notas se and the crisis of marxism. Londres, Mac-
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LOUREIRO, Isabel. (2005), “Herbert
1 Para uma discussão mais aprofundada sobre essa rela- Marcuse: a relação entre teoria e prática”, in I.
ção de Adorno e Horkheimer e de outros aspectos sus- Loureiro e R. Musse (orgs.), Capítulos do mar-
citados por Marcuse com a sociologia weberiana, cito xismo ocidental, São Paulo, Editora da Unesp.
meu doutorado em sociologia (Vasconcellos, 2014).
MARCUSE, Herbert. (1998), “Industrialização e
2 Apresentado no XV Deutscher Soziologentag, em Hei- capitalismo na obra de Max Weber”, in _____,
delberg, no ano de 1964, em homenagem ao centená- Cultura e sociedade. Vol. 2, Rio de Janeiro, Paz
rio do nascimento de Max Weber, o ensaio de Marcuse
e Terra.
surge em um momento de importante inflexão na re-
cepção europeia e estadunidense sobre a sociologia we-
MARCUSE, Herbert. (2015), O homem unidimen-
beriana. Para uma discussão da importância histórica sional. São Paulo, Edipro.
desse congresso e das polêmicas suscitadas pela apresen- VASCONCELLOS, Caio. (2014), A teoria crítica
tação de Marcuse, ver Mommsen (1989). e Max Weber. Tese de doutorado, São Paulo,
3 Para Carneiro, com esse conceito de sociedades in- FFLCH-USP.
dustriais avançadas, Marcuse caracteriza tanto a estru- WEBER, Max. (2003), “O Estado nacional e a po-
tura social do capitalismo tardio quanto à soviética, lítica econômica”, in G. Cohn (org.), Weber:
durante o pós-guerra. Por meio dessa ampliação de sociologia, São Paulo, Ática.
escopo, Marcuse visava construir uma crítica capaz
de também superar os limites de algumas correntes do
marxismo de seu tempo (Carneiro, 2009, p. 3).
4 Weber assume a cátedra de economia política e finan-
ças em 1884, após grande repercussão de sua pesquisa
sobre a situação dos trabalhadores rurais no Império
Alemão. Essa aula inaugural fora proferida em 1885
(Aldenhoff-Hübinger, 2012, p. 20).
RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  13

MARCUSE CRÍTICO DE WEBER: MARCUSE AS A CRITIC OF MARCUSE, CRITIQUE DE


A POLÍTICA NO CAPITALISMO WEBER: POLITICS IN LATE WEBER: LA POLITIQUE DANS LE
TARDIO CAPITALISM CAPITALISME TARDIF

Caio Eduardo Teixeira Vasconcellos Caio Eduardo Teixeira Vasconcellos Caio Eduardo Teixeira Vasconcellos

Palavras-chave: Sociologia alemã; Teoria Keywords: German sociology; Critical Mots-clés: Sociologie allemande; Théorie
Crítica; Max Weber; Herbert Marcuse; theory; Max Weber; Herbert Marcuse; critique; Max Weber; Herbert Marcuse;
Racionalidade; Política. Rationality; Policy. Rationalité; Politique.

O objetivo deste artigo é analisar aspectos This paper aims to analyze Marcuse’s Le but de cet article est d’analyser des
da leitura de Herbert Marcuse da socio- reading of Max Weber’s sociology, focus- aspects de la lecture d’Herbert Marcuse
logia de Max Weber, privilegiando suas ing on his remarks about the changes in de la sociologie de Max Weber, tout en
considerações sobre transformações na es- the political sphere by the end of capital- privilégiant leurs considérations sur les
fera política desencadeadas com o fim do ism’s liberal phase. From an immanent transformations dans la sphère politique,
período liberal do capitalismo. A partir critique of Weberian thought, Marcuse qui ont eu lieu avec la fin de la période
de uma crítica imanente do pensamento correlates the overlap between the form libérale du capitalisme. À partir d’une cri-
weberiano, Marcuse correlaciona sua in- of rational-bureaucratic domination and tique immanente de la pensée de Weber,
terpretação da imbricação entre a forma charismatic type of leadership to the ob- Marcuse met en corrélation son interpré-
de dominação racional-burocrática e as jective bases ofadvanced industrial societ- tation du chevauchement entre la forme
lideranças de tipo carismático aos pressu- ies. More than just comment on a classic de domination rationnelle et bureaucra-
postos materiais das sociedades modernas of sociology, it is possible to reconstruct tique et les dirigeants du genre charisma-
em seu decurso tardio. Mais do que um aspects of his social theory through these tique dans les présupposés matériels des
simples comentário sobre um clássico criticisms of Weber’s thought. In addi- sociétés modernes dans leur déroulement
da sociologia, é possível reconstruir as- tion, if the same instrumental rationality tardif. Plus qu’un simple commentaire
pectos da teoria social do frankfurtiano colonizes various fields of social life, the sur un classique de la sociologie, il est
por meio das críticas ao pensamento de marcusean diagnosis moves away from a possible de reconstituer les aspects de
Weber. Ademais, embora aponte para o one-dimensional understanding of late la théorie sociale du francfortois par les
predomínio de uma mesma racionalidade modernity, emphasizing the role of its critiques à la pensée de Weber. En outre,
instrumental que se apodera de variados contradictions and antagonisms. quoiqu’il indique la prédominance d’une
domínios da vida social, o diagnóstico rationalité instrumentale qui s’accapare
marcuseano se afasta de uma compre- de divers domaines de la vie sociale, le
ensão unidimensional da “modernidade diagnostic marcusien s’éloigne d’une
tardia”, ressaltando a atuação de suas con- compréhension unidimensionnelle de la
tradições e seus antagonismos imanentes. «modernité tardive», mettant l’accent sur
la performance de ses contradictions et
ses antagonismes immanents.

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