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Cientistas em busca de uma reaproximação
entre ciência, filosofia e religião
RAYMOND RUYER
A GNOSE DE PRINCETON
Cientistas em busca de uma religião
Tradução
UL1ANE BARTHOD
EDITORA CULTRIX
São Paulo
L a Gnose de P rin ce to n
EdiçAo __________Ano
i-2-a-4-n-e-T-a-a.io 8 9 - 90- 01- 92- 03- 94-05
PRiAElRA PARTE
A dêncía neognôstíca
35
I.
II.
O mundo peto lado avesso e o mundo peto lado direito
Cosmología dos "aqur e cosmotogia dos “Eus"
40
54
III. A visftoito sl-mesmonâo requer olhos
'57
IV. As chaves dominials e os hótons
62
V. A consdénda cósmica
65
VI. A visão sem olhos e o Cego absoluto
68
VII. Um ruídode fundo originário nào pode criar a palavra
78
VIII. Os escotedore8 incorporados
82
IX. O organismo 6 um cérebro primário
84
X. A evoluçto biológica tsm um anverso
89
XI. Estamosrivos desde o prindpo do mundo
93
XII. O jogo dolempo Inveròdo
99
XIII. Os paridpávete e o Partlcipável universal
105
XIV. A lihguanatema" universal
111
XV. As InfoinçOes no espaço e as Informações no tempo
127
XVL A “desvKulaçfto" {unbundting) da mente no universo
132
XVII. A tBotojjweognósIlca
XVIIL O homeil um "giganta temporaT
SEGUNDA PARTE
A sabedoria e a fó neognóstcas
143
XIX. Oorgaitopsfiquioo
155
XX. A edtafb psicológica
169
XXI. As "mortpns" e os “Jogos" com o universo
191
XXII. As “mofípns de miséria"
XXIIL A morteiifrnortaldade 196
CondusAo
216
220
BijSograSa
Prefácio
(1 9 7 7 )
Nos últimos dois séculos tem s id o moda no Ocidente, nos meios “adiantados”,
falar de Deus como se fosse um mito.
Não se refuta um mito ou um co n to , mas a história é narrada “de outro modo":
“ Deus está morto” , “ Deus não atende m ais, desligou seu telefone” - ou ainda, citando
uma versão menos conhecida, de autoria do chevalier de Revel:1
“Deus morreu antes de ter acabado sua obra... Tinha os mais belos e vastos pro
jetos do mundo e todos os meios à disposição. Já tinha em andamento vários desses
projetos, um pouco como se ergue andaimes para uma construção. Mas, em meio ao
seu trabalho, morreu... De modo que, atualmente, tudo está feito com vistas a um obje
tivo que não existe mais. Nós, particularmente, sentimo-nos destinados a algo do qual
não temos a mínima idéia. Somos como relógios que não tivessem mostrador e cujo
mecanismo, dotado de inteligência, continuasse girando até o desgaste, sem saber por
que, e sempre dizendo a si próprio: uJá que estou girando, devo ter algum objetivo”.
A Gnose da AntigGidade, essa estranha religião helenístco-crístã dos primeiros
séculos de nossa era, afirmava quase a mesma coisa, porém num tom mais sério.
Deus, o verdadeiro Deus, o Deus bom, não morreu antes de ter acabado sua obra, mas
foi traído por maus contramestres, que tomaram-se os Arcontes do mundo e separaram
o Deus bom dos pobres homens, mal governados, inconscientes - até que os Envia
dos do Bem, atravessando 08 Abismos separadores, revelem aos homens em abando
no a Verdade salvadora e neles reacendam a centelha divina, através do verdadeiro
Conhecimento.
Para os G nósticos cristãos, Cristo era um desses Enviados. Para Marcion, o
Deus do Antigo Testamento não era o verdadeiro Deus bom, o verdadeiro Pai revelado
peto Cristo, mas um mau Demiurgo que traiu o verdadeiro Deus Pai, um malvado e im
piedoso Legislador. Ao ensinar o “ Pai Nosso", Jesus queria com isso afastar os ho
mens do Deus m au da Lei judaica, para que pudessem reencontrar o verdadeiro Deus.
Ou seja, tanto os G nósticos como Marcion “ contavam o mito de outra maneira".
“Contar o m ito de outra maneira” ainda é, apesar das aparências, o fundo da filo
sofia moderna desde o século XVIII. A fé na evolução, no progresso, na Dialética equi-
1. DedaraçAo, essa, aprovada por Benjamín Constant que a transcreveu em sua carta, oacrita em
1790, a Madame de C harrièra.
vale a não mais dizer; "Deus criou”, ou “Deus morreu", ou ainda “Deus foi trafcto” , mas:
“ Deus ainda não existe totalmente; talvez, umdia venha a existir”, ou: “C onsolém onos,
n ó s, pobres v/Umas, pois um Deus se cria com os nossos prantos”. Condorcet, Hegel,
O Céu, a Ordem do Céu, o Tao, asede de existir, a Iluminação, são mitos só
brios, dificilmente “narráveis”. Mas permanecem mitos, projetados peto homem sobre o
universo, um universo mais adivinhado doque conhecido.
*
«É
*
**
•
••
... Nossa Gnose é de fato, antes de tudo, astronomía-cosmología, é evidente que não vamos
encontrar Deus em algum recanto do céu astronômico, assim como não é num canto do cérebro que se
encontra a alma de um homem. Como vocô disse justamente, o Pai celeste é tão pouoo encontrável no
Cosmo visfcel quanto oda bossa da paternidade no cérebro humano. No entanto, um lato notável d que
Newton, embora pertencesse ô pró-história da ciôncia, chegou a considerar o espaço astronómico gra-
vitadonal como sendo, na verdade, o sensorium de Deus, isto é, o espaço sensIVel de um sujeito cons
ciente - ao mesmo tempo em que considerava o cérebro humano como o aspecto material do nosso es
paço sensível, do nosso pequeno dominio consciente. Com isso, Newton mostrou ser um autântioo pre
cursor da nossa Gnose. E está na hora de admitimos que ele era um grande teólogo, tanto quanto um
grande dentista.
Ouvimos com demasiada freqüência esse tipo de declaração por paite de jovens colegas para
que ainda achemos Isso divertido... toso pode acabar mal, não para nós, mas para a própria dônda, e
também para a América e para todo o Ocidente... Entretanto, renunciamos a todo espirito missionário.
Mas são os anti-americanos que eslão se tomando fanáticos e Imperialistas. E eles tôm, aqui, dentro
das universidades de nosso pafe, propagandistas atfvos e missionários entusiastas.
*
**
13
Para entender essa reação, é preciso conhecer as duas direções que a Nova
Gnose tomou desde 1974. A primeira, que já tivemos aoportunidade de esboçar nesta
obra, visa uma sabedoria individua), um a sabedoria náo-mfoca e nóo-mísbca, con base
em “m ontagens” livres e cuidadosamente experimentadas. A segunda, mais inespera-
O fato é que, como a experiência mostrou, o que ocorre com os fenômenos pa
ranormais é o mesmo que ocorre com os milagres das religiões estabelecidas: em pou
co tempo, os fiéis acabam enxergando apenas mlagres, exigindo apenas mlagres.
Com isso, deixam de ver o grande, o verdadeiro milagre de sua própria existência den
tro de um Cosmo vivo. Interessar-se por fenômenos paranormais logo passa a signifi
car interessar-se exclusivamente por eles. Os Gnósticos - salvo algumas exceções -
não querem que os pequenos milagres, as pequenas luzes, passem a ocultar a grande
luz, assim como as luzes elétricas ocultam a luz do dia.
Arthur Koestler salientou uma analogia muito instrutiva dos fenômenos paranor
mais, em psicologia, com as experiências sobre a hereditariedade dos caracteres ad-
& Expusemos esta concepção dos Gnósticos americanos numa obra recentemente publicada pela
Fayard: Les Cent procbatns sièctes (Os Cem próximos séculos), com o seguinte subtitulo: O destino
histórico do homem segundo a Nova Gnoee americana
14
quiridos, em biologia.4 A s experiências exatas e cuidadosas de laboratório quase sem
pre desmentem os que acreditam na hereditariedade dos caracteres adquiridos. Quanto
mais profundas as observações, menos se pode provar, por exemplo, que os descen
dentes de ratos que fizeram a aprendizagem de um labirinto herdam uma ciência infusa
desse labinnto ou, até mesmo, economizam, por pouco que fosse, no tempo de
aprendizagem.
E, no entanto... Como entender a evolução se rejeitarmos por completo toda
noção de hereditariedade da experiência adquirida? Afinal, todas as espécies de pássa
ros não constituem, no fundo, um indivíduo único que, desde o seu estado de réptil an
cestral, foi progressivamente aprendendo a voar? É preciso que tenha havido uma
espécie de filtração-participação de algum tipo dos individuos para a espécie, dentro da
grande marcha da natureza - apesar do fracasso das experiências de laboratório em
captar essa filtração.
É provavelmente o mesmo caso que ocorre com os fenômenos ditos paranor
mais. Não há dúvida de que existem comunicações de seres entre si, de seres oom a
grande Consciência, assim como existe uma comunicação de indivíduos com sua
espécie, muito além dos intercâmbios de sinais materiais. Mesmo assim, quando o Sr.
X, ou a Sra. Y declara que "Deus lhe falou", ou que “Deus o(a) curou", ou anda que
“por sua vontade, a colher foi entortada*’, os positivistas não têm geralmente nenhuma
dificuldade para encontrar explicações mais plausíveis e mais terra-a-terra.
Determo-nos sobre os fenômenos paranormais seria enfraquecer a nova Gnose,
em lugar de fortalecéis* A informação por participação é um grande fato na ordem da
vida. Todo indivíduo em formaçôo ou em processo de regeneração, todo indivíduo se
xuado ou animado pelo instinto sexual, ué participado” pela espécie. É verdade que os
indivíduos devem, de alguma maneira, informar também a espécie, reciprocamente. É
verdade que outras participações suprabtológicas existem, mesmo se as tentativas de
verificação sempre parecem malograr.
Muitas vezes nos esquecemos que o sistema de Copé mico esbarrou, durante
quase três séculos, no veredito negativo das observações dos paralaxes estelares:
não se conseguia detectar nas estrelas o mais leve movimento aparente, movimento
esse que deveria ser produzido pelo “jogo de balanço” da Terra ao redor do Sol.5 E, no
entanto, a Terra se movia!
Raymond Ruyer
4. Cf. Le Chevaf dans Ia tocomotwe, CaJmarm-Lévy, 1 968, L 'Etretnte du crapaud, 1972, e Les Racb
nes du nasarú, 1 972, do mesmo editor.
5. Hoje em aia, é fid l ver o qua náo se conseguiu ver até 1838, ano em que Bessel viu mover-se
uma estreia da oonstsiaçáo do Cisne. Em 1954, “vw-se” o movimento de 10.250 estrelas, eeesenú
mero aumenta em m as da 100 a cada ano. Foi preciso para isso que oe insfrumentos de obeervaçAo ti
vessem o grau adequado de sutileza. Assim ocone, provavelmente, oom a atual observação da heredi -
tariedade da experiência adquirida.
15
Introdução
1. Expressão de H. Dngle.
2. Alusão so lamoso telescópio do Monte Palomar. O movimento “gnóstico" começou em Pasade
ra, antes do que em Princeton. O livro - bastante atmpllsta - de G. S*romberg: A Alma do Universo, toi
eadnto em Pasadena em 1938.
3. É bom notar que Einstein provavelmente não teria seguido os (¿nósticos por muito tempo, apesar
desse defamo semi-humorístico. Sua correspondência com Bom não deixa nenhuma dúvida quanto a
isso.
16
presença, nos laboratórios, de físicos japoneses ou chineses e, através d& les, a presen
ça do pensamento budista. Os recentes caçadores de partículas e, sobretudo, os teóri
cos sutis criadores dos “quadros" que subtendem os sistemas de partículas, suas inte
rações, intercâmbios e interinformações, fizeram homenagem ao Budism o da "Óctupla
Senda” , batizando uma partícula maciça com o nome de Buda.
Os asiáticos americanizados estavam assim unindo-se ao gosto inglês e ameri
cano pela sabedoria oriental: a Ioga, o Taoísmo, o Zen. A "ciência" budista e a “ ciência”
bramamsta estavam se unindo à ciência cristã - só que no mais elevado nível mental,
longe do pantanal onde estão a chapinhar os últimos discípulos de Mme. Blavatzky.
Mais do que tudo, ô preciso se ter uma idéia do ambiente tão peculiar dessas
comunidades cientificas, realmente “tibetanas” , que se sentem como se estivessem
sentadas sobre o teto do mundo - de um mundo que elas dominam através da inte
ligência, e não do poder; de um mundo que lhes parece um tanto repulsivo.
Na Europa, e sobretudo na França, quando a vertigem das alturas não se trans
forma numa vertigem de presunção, isso se traduz principalmente em ideologias políti
cas e na ambição de se refazer a sociedade. Isso também ocorre na América. E os
“positivistas” estão muito mais propensos a isso do que os Gnósticos. Os Gnósticos,
por sua vez, assumem uma posição apolítica, em oposição a esse clericalismo dos
cientistas.
Eles mantêm, com a sabedoria dos monges da Alta Idade Média, o oásis de seus
“mosteiros" ou de suas corporações quase religiosas. Mais uma vez na história, as re
lações entre mestre e aprendiz ou entre mestre e discípulo engendraram uma comuni
dade religiosa não eclesiástica e um Estado conventual, análogo ao do antigo Tibete ou
ao do monte Athos, separado do Estado político. Os “Gnósticos” consideram os “Ideó
logos” da mesma forma que os monges - antigamente e ainda um pouco hoje - consi
deravam os padres da Igreja: como clérigos seculares que se perderam no mundo.
Também se parecem com os sábios da época helenística, que testemunharam,
dentro de impérios de contornos indefinidos, a dissolução do velho mundo político das
cidades.
As universidades americanas têm acolhido muitos cientistas vítimas dos nazis
tas. Acontece que, sobretudo de uns dez anos para cá, a cidade americana vem evo
luindo do mesmo modo preocupante como a Alemanha depois de 1930, embora num
sentido completamente diverso. Os esquerdistas, por ignorância ou má fé, muitas ve
zes acusam o governo americano de fascista ou nazista. Os Gnósticos mantêm-se na
turalmente longe dessa tolice. Eles percebem que as nações, em vez de se confederar
numa sociedade supranacional com que sonhavam os cientistas no início do século, na
verdade se dissolvem em vários setores ideológicos, numa perigosa rivalidade. O bom
humor natural dos homens inteligentes mantêm os adeptos do Novo Movimento numa
singular mistura d e otimismo e pessimismo. Encolhem os ombros, ou antes, sorriem
diante das pretensões de seus colegas universitários - os do clã Galbraith, do clã Mar-
cuse ou ainda d o clã Chomsky - de querer constituir a nova classe dirigente, pós-
econômica, e co ntrolar a formação de uma nova ordem social. Eles se recusam a ser
os “controladores d a s mutações" e a pregar a revolução ou a reforma.
Nisso, tam pouco, eles são “clérigos" e, sim, “monges” .
Também querem se parecer com os sábios das escolas do fim da Antigüidade,
com os epicuristas e os estóicos.
17
De fato, de todos os pontos de vista, as escolas estóica ou epicurista s ã o ainda a
melhor referência para se apreender o verdadeiro sentido desse novo movimento. Es
sas escotas da Antigüidade tinham também sua raiz na ciência da época, na física - a
do atomismo maleriaista ou do dinamismo vítatela. Proporcionavam normaa de vida
deduzidas da ciência e resultantes de uma meditação sobre as grandes leis d o univer
so. Por isso, a apresentação que vamos tentar fazer da nova doutrina muito se asse
melhará aos tratados teóricos eslóicos e ao De Natura Rerum, com quase o s mesmos
capítulos sobre os átomos, os simulacros da percepção, a evolução do cosm o, a agi
tação dos homens, ou ainda a febddade do sâbio destituido de ambição e d e falso te
mor religioso ou mágico. O conteúdo, é claro, é totalmente diferente e muitas vezes até
mesmo oposto. Mas o estado de espírito é o mesmo. Os Neognósticos, assim como
Lucrécio, parecem sempre estar se dirigindo a Memmius, a um Memmius eterno como
a fraqueza humana.
O título hoje aceito de Gnósticos (mas que poderá mudar no futuro) não deve en
ganar-nos. A Gnose, como se sabe, nascida no Mediterrâneo oriental no sócuio I de
nossa era, trazia a salvação através do conhecimento, através da ciência. A G nose é o
conhecimento da realidade supra-sensfvel, "invisivelmente visível num eterno mistério".
O supra-sensível constitui, dentro do mundo sensível e além deste, a energia m otora de
toda forma de existência. A Gnose revela o que somos, o que nos tomamos, o lugar de
onde viemos e aquele onde calmos, e a meta para a qual caminhamos. Mas tratava-se
então da ciência de Deus; era uma teosofía, um Conhecimento de iluminação e sal
vação, que não se referia nem ao mundo no sentido técnico da palavra, nem ao "eu” tal
como é visto pela Psicologia. A aquisição dessa ciência estabelecia de forma mágica
uma conexão misteriosa entre o Iniciado no conhecimento e a própria força desse co
nhecimento. Assim como a luz, ela propiciava a vida - como a luz, mais do que como a
visão.
O iniciado aprendia uma história cósmica e teológica cujo tema era a Queda, não
a do homem pecador, como no Cristianismo, mas a de subdlvindades, más e infiéis, os
Arcontes rebeldes que haviam traído o bom Deus superior, cavando monstruosos
abismos de espaços e de tempo entre Deus e o mundo, mundo esse onde os homens
sofriam em completa “derretiçôo". Salvadores, então, transpunham o abismo e ajuda
vam o homem, através da Gnose, a reacender a centelha de sua alma e a alcançar no
vamente o Deus de Luz.
Os Novos Gnósticos assemelham-se aos antigos no falo de acreditarem no co
nhecimento e na ciência, mais do que na ação ou no poder. Porém, é evidente que a fí
sica e a biologia modernas constituem uma busca de caráter técnioo, e em nada se pa
recem com o que se pode chamar de iluminação-revelação. O Logos sperm aticos
estóico e-gnóstico- cujo culto levou às estranhas e chocantes contorções rituais dos
barbebgnósticos e dos discípulos de Basikdes,4 ritos esses que fariam oom que as
obscenidades dos hippies mais sujos parecessem brincadeira - não se assemelha em
nada ao Logos participável, que os Novos Gnósticos se comprazem em buscar atrás
das descobertas da Física e da Biologia contemporâneas.
4. Eles tomavam “spermaticos” na mais crua acepção biológica da palavra, e agiam de acoido. Ba-
silides, um dos mais famosos Gnósticos, viveu em Alexandria por volta de 120-140 d.C.
CL H. Leèsegang, La Gnose, Ed. Payot, 1951, Cap. V, p. 132 (Nota de 1977).
18
Seja como for, o termo “Gnósticos" foi aceito, mostrando assim que eles buscam
o verdadeiro Conhecimento não subordinado à utilidade prática ou pelo menos à utilida
de imediata, pois o objetivo final é mesmo a "existência realizada” .
Vindo de americanos, isso parece, de fato, um tanto surpreendente (se é que po
demos ainda nos surpreender com qualquer atitude não americana na América). Nesse
sentido, o movimento aparenta-se, em seus princípios, às comunidades hippies, aos
secessionistas da sociedade industrial. Não obstante, os Neognósticos possuem uma
verdadeira aversão física pelos hippies barbudos e cabeludos, pelo cheiro que exalam,
pela sua promiscuidade, pela sua mística de drogados. Ao contrário dos intelectuais
franceses, sentem horror por todo tipo de louco, tanto na vida como na literatura.
Entretanto, admitem que existe esse parentesco, da mesma forma que a Igreja,
queira ou não, é obrigada a reconhecer seu parentesco com as seitas dissidentes, as
sim como os grandes socráticos eram forçados a viver em boa harmonia com os pe
quenos socráticos. Mas esse parentesco náo deixa de irritá-los. Quando se quer apro
fundar o assunto com eles, a resposta que dão é que o movimento hippie na América é
apenas um início errado numa direção certa - uma cruzada de crianças, ou cruzada
dos pobres, antes da cruzada dos fidalgos. Cruzada dos loucos, antes da cruzada dos
sábios. Entretanto, a Nova Gnose tem seu lugar em certos grupos hippies, aqueles que
renunciam à droga e se dedicam à meditação. O panteísmo vem a ser o denominador
comum.
Os Novos Gnósticos são, sob muitos aspectos, ainda mais diferentes do ameri
cano típico, tal como era visto em 1950, do que o são os hippies da Califórnia.
O movimento é aristocrático em todos os sentidos possíveis da palavra. Isso
constitui sua fraqueza aparente, mas, quem sabe, também sua força. Pois é provavel
mente um preconceito acreditar que os movimentos religiosos, para serem fortes, de
vem surgir das camadas populares. A história tende a provar justamente o contrário. O
Confucionismo teve uma origem aristocrática, e igualmente o Taoísmo. A religião de
Jeová também, e também o Bramanismo e o Zoroastrismo, bem como o Estoicismo e,
até mesmo, o Epicurismo. O Cristianismo só não se perdeu em seitas supersticiosas,
tanto na Palestina como nos bairros pobres de Roma, de Antioquia ou de Corinto, por
que logo se tornou aristocrático. A Reforma e a Contra-Reforma também vieram de ci
ma.
O Movimento é conscientemente aristocrático, na medida em que renuncia a todo
proselitismo, a toda publicidade. Não chega a ser secreto, porém é discreto. Os
Neognósticos consideram que a atração que todo mistério exerce ê vulgar. Eles renun
ciam ao pitoresco, a tudo o que eles chamam de “pequeno simbolismo”. Condenam is
so com um rigor que eu considero excessivo. Sua sabedoria é semelhante à dos isola
dos de Port-Royal, unidos em comunidade por convicções apaixonadas, porém indivi
duais, que os atraíam um para o outro. É preciso que cada um encontre por si próprio o
Caminho, a Verdade, convertendo-se por meio de um aprofundamento científico, e não
atravôs de alguma iniciação ritual.
Naturalmente, eles repudiam qualquer tipo de cerimonial. E isso representa em si
uma originalidade na América, onde são tão prezadas as sociedades pseudo-seeretas
e as maçonarias de todo tipo. pelos brasões que gratuitamente proporcionam. Eles até
repudiam qualquer cerimonial intelectual, pois cada um se auto-inicia, no seu próprio
19
momento, reinventando a Regra assim como no jogo de cartas inventado por um deles
(o jogo chamado “ Eléusis") onde é preciso descobrir a regra, e nao tentar aplicá-la
usando a astúcia. No “Elêusis", o banqueiro do jogo (cada um por sua vez se toma o
banqueiro do jogo) estabelece uma regra secreta (que ele escreve num papel a ser
á6erfcTnõ~fim do jogo para verifÍcação)7 determinando como as cartas dos jogadores
deverfio se enquadrar nessa regra. Ele coloca urna carta na mesa, e vai aceitando ou
recusando a carta apresentada pelos jogadores, e colocando-a & dreita da anterior
conforme esteja ou não de acordo com a regra. Aquele que mais ou menos descobre a
regra do jogo Kvra-se mais cedo de suas cartas. Há várias fases do jogo, e contagens
diversas dos pontos. Este jogo fez muito sucesso dentro das universidades e atraiu
tambóm pesquisadores de todo tipo, devido à analogia que ele apresenta com o método
habitual de pesquisa.
A Nova Gnose 6 como o Elóusis: cada um se inicia a si próprio. Cada um 6, al
ternativamente ou ao mesmo tempo, jogador e banqueiro do jogo. Há uma espécie de
cooptação, livre e mútua - porém rígida, pois a regra fixada é sutfl. Os Gnósticos con
sideram, além disso, que o seu sistema inèciâtico representa o próprio sistema da vida
real, onde cada ser deve descobrir por si mesmo e por sua própria iniciativa o que é
esperado dele por parte do desconhecido Banqueiro do Jogo.
5. Expressões americanas que servem para designar os Intelectuais ou as pessoas que afetam gos
tos “culturais" refinados.
20
ração por esses dois grandes demoliòores modernos que foram Marx e Freud, conside
rados como “quebradores", redutores e desagregadores da filosofia e da sociedade.
Mas eles abominam seus seguidores, seus comentaristas e continuadores, em particu
lar Wilhelm Reich e Herbert Marcuse. Na verdade, os Gnósticos olham mais adiante,
com o objetivo declarado de tentar acabar com o período de dissociação e redução que
já durou demais e só acumula estragos. Aliás, uma definição bastante adequada para
caractenzar a Nova Gnose é sua ambição “orgânica", em oposição ao esnobismo de
sorganizador que corrói todas as sociedades civilizadas. Segundo eles, somente para
as mentes superficiais é que os “redutores” tornaram antiquado o pensamento orgânico
central e normal da humanidade, tal como é traduzido pelas crenças tradicionais, irra
cionais ou transracionais, e por filosofias que visam aprolundar essas crenças sem
contudo dissolvê-las. Os “redutores” só têm uma visão muito local do homem, uma
visão muito antropocôntrica e cientificamente ultrapassada. Os Gnósticos, ao contrário,
possuem uma visão cosmocôntrica - para não dizer teocêntrica - conforme, segundo
afirmam, à ciência contemporânea e à sua cosmologia "fechada". Eles não querem
uma religião humanista, limitada à comunidade humana. O homem deve manter no
mundo o seu modesto lugar de Símio que, momentaneamente, se saiu bem.
Fazer girar a filosofia, a religião, em torno da organização social ou econômica
(ou melhor, de alguma modalidade acessória dessa organização), ou em torno da orga
nização policial dos Estados, ou ainda em tomo do modo como se satisfaz a libido des
se Símio ou da maneira como esse macaco sem pék) fala e comunica suas impressões
aos outros macacos congêneres, tudo isso parece, aos olhos dos Gnósticos, uma idéia
cômica, uma revolução mental anticopemicana. O macaco sem pêlo fica maravilhado
diante do momentâneo êxito biológico de sua espécie. A densidade do fervilhar humano
obnubila os indivíduos, assim como a densidade do formigueiro ou da colméia isola os
insetos individuais do mundo exterior, obcecando-os com a presença e o contato de
seus congêneres e com a mútua regurgitação do seu alimento.
Existe, observam eles, uma tendência natural de todas as populações densas a
se fecharem sobre si, por assim dizer, a se retraírem diante do universo, com umas
formas de interação intensas e ilusoriamente autônomas. Hoje, a massa biológica huma
na praticamente só cuida de sua própria organização. Acha que pode dispensar qual
quer finalidade exterior. Vive passando e repassando suas informações, seus docu
mentos e textos, numa espécie de intestino coletivo em circuito fechado. Enquanto os
homens eram tão raros e espalhados quanto os ursos das cavernas ou os javalis, en
quanto os caçadores ou os pastores caldeus, em meio a vastidões semidesérticas, fi
cavam olhando as constelações e os “ sinais deslizantes do céu”, seu antropocentris-
mo só podia ser superficial e perdoável, mágico, semelhante à ilusão dos habitantes
das ilhas da Polinésia, que acreditam que os cargueiros dos brancos vêm do país de
seus mortos6 - ilusão alimentada e transfigurada pela visão sempre presente do hori
zonte oceânico, do mar e do céu. É somente no fervilhar das grandes cidades, onde
cada um reabsorve indefinidamente as idéias dos outros, que os filósofos acabam se
convencendo de que "todo o universo gira em tomo da organização do Estado, ou do
sexo, ou da linguagem".
6. Ver o livro de Peter Lawrenoe: Le Mythe du Cargo, traduzido para o francés e publicado pela Fa-
yard em 1974, na coleçflo “ Arthropotogie critique", dirigida por Alam GheerbranL (Mota do Editor -
1977).
21
Quando eu objetava a um Gnóstico eminente7 que os filósofos, na Europa, são
tão anti-humanistas quanto antitefstas, e proclamam tanto “ a morte do homem" quando
“a morte de Deus", a resposta, Invariavelmente, era: "Ou seus pensadores n fio querem
dizer nada com isso e. nflo pensam nada, ou enfio estão no caminho daJSova Gnose»
Pois achamos, com efeito, que o homem nfio pode definir-se como uma espécie de Ví
vente absoluto dentro de um universo vazio, vazio de qualquer sentido. Todas as suas
todas as suas culturas, de que vocôs, Franceses, sempre falam, lhe vêm do
universo. Se o homem participa desse universo, é somente do modo como o fazem to
dos os seres. Se ô isso o que seus pensadores querem dizer, eles têm razão. Mas,
nesse caso, é preciso parar de dizer que “Deus está morto". Para entender as leis da
organização social, do amor ou da linguagem, se não queremos atribuí-las & obra arbi
trária dos homens, temos que recorrer a uma Fonte, a uma Unidade, a uma Ordem uni
versal. Não se pode ser ao mesmo tempo o Ptotomeu e o Copé mico da cultura.
E, recorrendo a uma de suas idéias prediletas, acrescentava: Quando, ao fazer
girar um recipiente cheio (fágua, ‘criamos’ uma força centrifuga, não estamos criando
absolutamente nada, apenas constatamos a presença de uma inércia, a qual, por sua
vez, não teria sentido nem poderia existir se não houvesse o conjunto de todos os ele
mentos existentes no oosmo. Logo, podemos afirmar, a exemplo de Mach8, que é o
Universo que, ao girar em tomo do balde d*égua, atrai a água para as suas paredes. O
que não se aceita é que vocês falem de uma massa e de uma néráa separadas.
O conceito de Mach - cuia «osota, aliás, eles náo apreciam - é uma das raleréndu constantes
dos fstcos gnósticos. Ela está sempre presente sn suas mentes. Sabemoe que Flnirtoin nela se Inspirou
no InJck). Muitos Hfhxra gnósticos estâo reassumindo a teoria, ainda controvertida, de Eddinglon, se
gundo a qual oe fenómenos atômicos e suas dimenaóesestâo emcocrelaçftoertretocom ocoemoco-
mo um lodo - ou cosmo uranótde, e nAo poderiam produzir-se num universo vazio. Sdama^FredHoyle
e oukos admitem que a intensidade das interações locais está sob a dependência das condiçfoa oóami -
cas gerais.
Náo sem uma atitude de prudente cortesia - pois ele sabia que eu era de origem
católica ele acrescentava: “O fato de a Igreja Católica ou, melhor dizendo, de alguns
padres esnobes fazerem coro com os humanistas extremistas e, sem ousar afirmar
abertamente que “Deus está morto", considerarem que o homem Jesus deve ser o úni
co e verdadeiro Deus para os homens, prova a que ponto os eclesiásticos chegam a
ter a mente confusa ou pervertida pelos modismos. Pois é de se perguntar para que
pode servir uma igreja de pedra ou de madeira, a não ser para voltar o olhar dos ho
mens em direção a outra coisa que não seja o formigueiro humano.
"Nosso Samuel Butler, acrescentava ele, gostava de ver as igrejas anglicanas do
final do século XIX como *bancos musicais' onde eram feitas pseudotransações em
moeda espiritual, com base em pseudocapitais ‘reembolsáveis a cada trinta mil anos.
Os rígidos capitalistas da Inglaterra vitoriana proclamavam como sendo os únicos ver
dadeiros valores os dos bancos musicais, mas nem por isso teriam se arriscado a
ofender seus oficiais de justiça e seus banqueiros, pagando-lhes seus honorários e
22
suas prestações em moeda espiritual. Hoje em dia, vocês transformam as igrejas em
partidos pseudopopulares ou em clubes de jovens guitarristas. Vocês transformam os
bancos musicais em ‘sindicatos musicais’ - o que não é melhor. E, até mesmo, pode-
se preferir a música de órgão ao jazz ou à música popular de jovens vigários
demagogos.”
De minha parte, eu contrapunha a seus argumentos as audâcias da sua própria
Igreja, e de livros tais como Honest to God de John A. T. Robinson, bispo de Wollwich.
“O bispo Robinson não é um Neognóstico. Como Gnósticos, nós não somos
‘cristãos’. Se alguns entre nós continuam venerando Jesus - assim como outros vene
ram a própria mãe, ou a esposa, ou algum mestre isso é assunto deles. Tudo pode
servir de ‘janela’ pessoal sobre a profundidade do universo ou sobre a Unitas. Se Ro
binson se preocupa com o futuro da Igreja, essa é a sua função como bispo. O fato de
a Igreja se denominar cristã leva necessariamente seus adeptos a certas contorções
mentais a fim de dar a Jesus um lugar central dentro do cosmo.9 Pois, é evidente que,
sem o nome próprio de Jesus Cristo, a Igreja Cristã é ‘inominável e inexistente’. Mas,
de qualquer modo, essas contorções são vãs. Foi Jesus quem morreu, assim como
morreram bilhões de homens e bilhões de bilhões de seres nos milhões de galáxias
existentes. Não foi Deus. Detestamos essas ‘filtragens de insetos’ e esse modo de ‘en
golir camelos’ [Gnat strainings and carne! swattowing], essa maneira de pretender enca
rar uma questão de frente enquanto se faz tudo para evitá-la, essa dissimulação de
uma inefável insinceridade sob uma aparência de inefável candura. Nós deixamos Je
sus aos hippies e ao show business. Ao adotá-lo, eles o tomaram ¡nfreqüentável."10
9. O Jesus “agente cósmico" do nosso Teilhaid de Chardin d considerado um puro absurdo pelos
Novos Gnósticos. Eles apontam para o tato de que o S/mio que se ergueu sobre suas patas traseiras
desempenhou na evolução do espirito humano um papel muito maior do que Jesus.
10. Há algumas nuanças nas alludes dos GrxJeUcoe. Por exemplo: “Jesus! Eu te amo, apesar de
todos os teus defetos!" (Wilh a jí thy fautts I tove tiee stillf), ou então: “ Na época do Cristo, eu não teria
sido um de seus discípulos. Êu o teria condenado. Mas sem orgulho! Talvez eu tivesse sido tentado!" [a
ser seu discípulo].
23
vulcânicas ou a erosão, e muito menos previsível. Para eles, Deus está no cosmo, em
cada ser e na unidade dos seres, na história geral dos seres e em seus progressos
biológicos - mas nAo na história dos povos. A história dos povos não ó deificávei - ou
então, a existência de Deus nessa história é apenas superficial ou indireta. Nela, ele
colabora com o acaso, na moidageni da superfície do planeta por exemplo, no surgi
mento das cordilleras, nas falhas geológicas e nos terremotos. Ê uma infeBeldade ter
de viver numa época de desmoronamentos sociais, de guerras e de revoluções, assim
como ó uma infelicidade ter-se uma casa numa região de falhas na crosta terrestre. Só
que não podemos mudar de época assim como nos mudamos de uma região para ou
tra. Mas é igualmente inútil querer lutar contra as massas revolucionárias e contra as
ejeções do magma terrestre; é igualmente inútil combater a erosão demagógica e a
erosão geológica. Só podemos proteger nossa casa por um certo tempo, ou procurar
construMa obedecendo a técnicas anti-sísmicas.
Esta falta de uma doutrina social, ou melhor, política, parece-me ser, confesso,
uma grande lacuna da Nova Gnose. Porém, esta lacuna é perfeitamente consciente e
desejada. Para os Gnósticos, isso é, no fundo, uma questão de honestidade. Eles con
sideram leviano e, até mesmo criminoso fazer experimentos na pele humana. Podemos
nos permitir fazer experiências e cometer erros em nossa própria vida. O que não te
mos o direito de fazer é fingir que sabemos o que convém aos outros, quando os outros
sabem isso melhor do que nós.
Os Gnósticos mostram-se ao mesmo tempo fascinados e irritados diante dos
inúmeros debates sobre a “futurfstica" e as pesquisas sobre os “tuturíveis". Alguns de
les contribuíram muito para esses estudos. Fizeram parte dos fundadores da World Fu
ture Sodety (criada em Washington em 1967). Mas acabaram afastando-se desta, pre
ferindo aderir ao projeto de um serviço de avalação da tecnologia (que iria sustar os
planos por demais ambiciosos).
“A crise religiosa nos Estados Unidos, reconhecem os Gnósticos, é, de longe,
muito mais grave do que a crise econômica de 1929. Mas não podemos fazer um New
Deal social. Aquilo que é possível para a sociedade econômica não o é para a socieda
de em geraL Nós não temos a pretensão, como a seita budista de Nichiren Shoshu, de
iniciar a Terceira civilização". Toda doutrina social ou pol/tica é destinada a ser apenas
uma ideologia, ou seja, uma teoria falsa. Os responsáveis políticos, ou os que são in
vestidos de algum poder momentâneo quando as formas tradeionais são destruídas,
passam de um expediente a outro. Fabricar instituições sociais é algo tão impossível
quanto fazer, em laboratório, um organismo vivo complexo. Mas, hoje em dia, pode-se
fabricar moléculas pré-orgânicas, reconstituir um vírus depois de té-k) decomposto, ou
suscitar moléculas pré-vitals elementares numa “sopa de MUer"-.11 Queremos, através
de nossa religião básica, fazer uma “sopa de MiHer” social, contando com a colabo
ração do acaso e da consciência, para podermos ir aJém das "grandes moléculas”.
Haverá, nessa atitude, alguma desesperança secreta diante da situação pertur
bada da América de hoje?
11. Alusão às misturas de hldrocarburetos e amoníaco a partir das quais Urey e Miller conseguiram,
em 1955, ácidos aminados. O termo “ sopa” é de J. B. S. Haldane que, a exemplo de Oparine, tentou
imaginar o amDiente quente e salgado onde a vida tena sido elaborada.
24
“ Nenhuma das grandes religiões tem dado qualquer receita política. Elas estão
acima disso. Não queremos perder nosso tempo refazendo ‘a República’ de Platão, na
certeza de que estaríamos, como Platão, atrasados em relação à história humana. Os
Estóicos, os Epicuristas, os Cristãos e os Antigos Gnósticos que procuravam uma sal
vação individual, ao mesmo tempo estavam lançando, embora sem querer, as bases de
uma ordem social e política realmente nova."
I. O último suspiro de Cásar. Estaremos ainda respirando algumas das moléculas do ar que Julio
César expiou quando foi assassinado? A resposta, segundo um cálculo multo simples, ó: “Provavel
mente sim, algumas dezenas a cada Inspiração.”
II. A xícara de chà: Enche-se uma xícara exatamente até a borda. A superficie do liquido não é
plana, mas segue a curvatura esférica da Tenra. Ao levantar a xícara a um meto de altura, a curvatura
diminui ligeiramente e, sem a tensão superficial, algumas moléculas deveriam, então, cair. Se pudés
semos utilizar a energia total dessas moléculas segundo a fórmula de Einsteire E = mc2, o que po
deríamos esquentar com ela? Uma gota de chá? Uma xícara de chá? Outra chaleira? A resposta é:
“Outra chaleira"
IN. Diminuir a velocidade da Terra: Ao subir ao alto do Empire State Buildng, um homem diminui
a velocidade da Tenra e aumenta a duração do dia (devido à oonservaçâo do movimento emético). De
quanto? De um segundo (ao todo) pare cada 1022 anos.
13. Alusáo aos aviões para amadores, preparados para que seja vnpossfvel uma brusca perda de
velocidade.
26
A “ cosmología básica”
Seguiu-se, entretanto, uma outra fase (p o r vo lta d e 1970), m arcada pela decisão
coletiva de se esboçar uma basic cosm ology - na v e rd a d e , nada m enos do que uma fi
losofia ou uma teologia fundam ental.14 O term o “ co sm o lo g ía " faz alusão a esse novo
capitulo da física, iniciado por Einstein e de S itte r a n te s m esm o da descoberta, por
Hubble, da expansão do universo. Há todo um grupo de físico s, quase todos anglo-
saxões: Eddington, Lem aitre, E. A. Milne, G ôdel, W h itro w , von W eizsãcker, H. P. Ro-
bertson, Sciam a, Bondi, H oyle, calculando ou e sp e cu la n d o sobre o universo em sua to
talidade, náo só espacial como tem poral. A co n te ce q u e , espe cu la r sobre o universo
com o um todo significa pensar, queiram os ou n a o , em te rm o s teológicos. A cosmotogia
não pode s e r como os demais capítulos da fís ic a . N áo se trata m ais de estudar fenô
menos que se produzem num espaço e num tem po in d e fin id o s e neutralizados, homo
geneizados, laicizados por essa "indefinidade” . T ra ta -se , agora, de “ pensar o espaço"
com o um todo, fechado como um andador para cria nça , e de “pensar o tem po" como
algo finito em direção ao passado, o qual partiu de um ponto singular, teve um começo
e, também, parece ter um fim, revelando ta lve z, assim com o o espaço, certas curvatu
ras (se é que existem linhas "do tipo tem po" fech a da s) de um m odo ainda inconcebível,
m as do quai a cosm otogia de Gôdel já nos dá algum a idéia.
O infinito, ou melhor, o indefinido, é silencioso, eterno, mudo como o túmulo. Se o
espaço é finito, e provavelmente hiperesfórico, e se o tempo é, ou tem uma história, ir
reversível ou fechada, isto ô um primeiro sinal para a ciência de que ela não pode ser
“positivista". O silêncio dos espaços infinitos náo é eterno, se ele começou com o Big
Bang (isto é, a explosão inicial, início da expansáo). Em todos os campos da física e da
astronomia, apresentam-se os problemas da gênese. Quer se concorde ou se recuse,
por motivos religiosos ou, o que vem a ser quase o mesmo, por motivos anti-religiosos,
em especular sobre a origem, o fato é que o universo se encontra, sem dúvida, em de
sequilíbrio: as estrelas se desmaterializam; o hidrogênio transforma-se em hélio; a
matéria ainda está em excesso em relação à irradiação, mas derrete-se em irradiação,
assim como o açúcar numa xícara; o tempo passa ou avança. Nada mais se apresenta
estático, tudo está num vir-a-ser ou em processo de criação. Nâo se acredita mais na
permanência de substâncias. Os que ainda se escandalizam com a idéia de uma
criaçáo absoluta de matéria (segundo Hoyle) estâo admitindo a criação de espaço (vis
to que o universo está em expansão). Os que querem compensar a criação de infor
mação aqui, por um aumento pelo menos tfto grande de desordem alhures, admitem,
portanto, que existem domínios onde a informação possa nascer.
É verdade que existem cosmólogos que adotam uma atitude positivista, como H.
P. Robertson, e que rejeitam os resíduos de anglicanismo em E. A. Milne,15 de quake-
14. A limitação de créditos ocorrida, sobretudo em Pasadera, desde 1970, levou um certo número
de cientistas ao serrodesemprego. Nos Estados Unidos, a reação não ó, como acontece na França, a de
promover agitação sindical e política.
15. Milne (Edward Arthur) (1886-1950), asfrônomo e matemático inglôs, estudou em particular a
termodinámica das estrelas e a estruture da malária estelar. Também desenvolveu uma teoria original
sobre a expansão do Universo. (Nota de 1976.)
27
rismo em Eddington e de catolicismo em Lemaítre. Mas, mesmo para aqueles, entre os
Princetonianos, que vêem com desconfiança as idéias de E. A. Milne, é difícil exagerar
sua influência. O vocabulário religioso é um jogo, mas um jogo sério, para Hoyle e para
Gamow. E o era para Einstein, que já via no universo uma Inteligibilidade” misteriosa,
como se, por trás de tudo, houvesse um “Sabe-se” (na forma impessoal).
O termo baslc è mais diffdl de explicar. Nfio é tomado aqui no sentido que se usa
quando se fala de baslc engüsh ou mesmo do francês básico.16 Não se trata de estabe
lecer uma espécie de cosmología (ou de filosofia religiosa) minimalista - embora o pro
cesso dos antiparadoxos às vezes lembre algo parecido. Trata-se menos ainda de uma
"ciência religiosa” , ou de uma “ religião científica". O que os Gnósticos entendem por
este termo é o seguinte: uma cosmología totalizante para o espaço e o tempo deve tota
lizar tanto os observadores como os observados, tanto os pontos de vista como os
pontos vistos, tanto os "ego" como os “aqui e agora” , tanto os Mego” como os alhures,
passados ou futuros, tanto os moventes ou os deformantes, como os movimentos ou
as deformações.
Isso foi o que Milne tentou fazer com a chamada teoria da relatividade cinemáti
ca.17 Os Gnósticos conservam pelo menos a ¡déla de sua tentativa. Eles se recusam a
opor o espírito à matéria, o subjetivo ao objetivo, a consciência à coisa. Recusam-se a
acreditar nessa dualidade, nessa “bifurcação” da natureza, que tomaría totalmente in
compreensível o “ Sabe-se" ou o “Pensa-se” no universo.
Psicossíntese
A fase basic cosmology levou à última fase, propriamente gnóstica, que poder-
se-ia caracterizar como urna tentativa de “ psicossíntese" (a palavra é pouco usada pe
los Gnósticos), em contraste com a psicanálise, da qual os Gnósticos, ao mesmo tem
po, se inspiram e da qual desconfiam. A doutrina tomou-se sabedoria e técnica de sa
bedoria, à maneira de um novo estoicismo ou epicurismo, porém aberto e vinculado à
ciência viva em vez de relacionado com filosofias simplistas e pseudocientfficas. Esta
fase dura desde 1971, e talvez n&o seja a última. Ela ó ao mesmo tempo interessante e
decepcionante para os que tém um espirito científico rigoroso, pois a equipe compacta
e firme de físicos e astrónomos que fundou a Nova Gnose é hoje um tanto sufocada pe
los novos recrutas, principalmente por biólogos e médicos, muitos deles notáveis e to
dos inteirados das ciências físicas, mas carecendo do espirito que caracterizou os pri
meiros fundadores.
16. Ou então, seria preciso que a “ base” tosse o conjunto dos "cnptotipos", das “categorias implíci
tas", segundo B. L Whorf.
17. Ct. cap. II, pág. 43.
28
Uma última palavra, desta vez pessoal. Foi durante um “jantar Samuel Butler”,
em Londres, que conheci o movimento gnóstico americano.18 Pois este faz de Butler -
o que eu não sabia - um de seus grandes mestres. Esses jantares eram extremamente
saborosos, em todos os sentidos da palavra. Sabíamos - “nós”, isto é, os membros da
Sociedade Butler - que Butler, que náo havia sido tão feliz em suas especulações na
Bolsa de Valores como o fora com La Vie et 1'Habitude, sofrera muito por ter de se con
tentar com refeições parcas. Seguindo sua teoria da imortalidade por procuração,
tentávamos fazô-lo aproveitar da boa comida por intermédio de seus admiradores.
Nessa ocasião, eu havia sugerido timidamente a idéia de que Samuel Butler fora
em sua época uma espécie de hippie antes do tempo, mas um hippie inteligente, o que
mudava tudo. Pois ele havia se dedicado à grande Obra, à Pedra Filosofal, de seu tem
po e de todos os tempos: reconciliar Deus e Mammón. E o Manmon de Butler não fora
dos mais gordos.
Eu também acrescentara que desejava um movimento, uma doutrina, que fosse
para as extravagantes convulsões dos hippies o que o estoicismo ou o epicurismo ha
viam sido para as contorções dos cínicos ou dos cirenaicos. Hoje, só temos “pequenos
socráticos”. Onde estarão os grandes?
Naquele momento, percebi que eu havia como que tocado uma mola secreta nos
Butterianos americanos, que, desde então, passaram a se interessar por mim. E, a par
tir dali, os “amigos de Samuel Butler” se fundiram com o Movimento Gnóstico.
Os Gnósticos, cuja atitude, normalmente, é desprovida de qualquer pose, têm en
tretanto uma pequena pose antipose . Eles afetam uma atitude de reverência para com
Mammón, o dinheiro, e pflra com os que sabem fazer dinheiro com inteligência (cha
mam a isso “encarnar Deus"). Na verdade - e isso logo verifiquei - , eles são as pes
soas mais desinteressadas, mais verdadeiramente ascetas que conheci. Sentem-se
sinceramente constrangidos quando recebem altos salários. Contudo, não toleram a hi
pocrisia, quase tão difundida nos Estados Unidos quanto na França, que consiste em
desprezar o dinheiro com as palavras enquanto se leva uma vida de epicurista dissimu
lado. Do mesmo modo, afirmam interessar-se pela gastronomia mas, na verdade, vi
vem muito de sanduíches.
Assim, foi essa circunstância que, mais tarde, me fez conhecer, bastante intima
mente, os principais fundadores da Nova Gnose.
Não tenho certeza, entretanto, de ter conhecido o m estre- ou a mestra - do Mo
vimento. Quando se referiam a esse personagem, era de modo tão vago que, tanto po-
18. Samuel Butier (1840-1902) tomou *8® um cláasJco da literatura Inglesa oom sua famosa utopia
Erewhon (1872) e seu romanos autobiográfico póstumo: The Way o f ali Flesh (1903). Mas Butler
também escreveu obras de tttosotla biológica, como LaV ieet 1’Habitude (1878), a única traduzida para
o francés. Butler potemizou oom Oarwin e foi considerado injustamente um amador. Suas principais
obras neste campo foram: Evoluüon Okt and New (1079), Unoonsdous Memory (1880) e Luck or
Cunning? (1886). A Sociedade Butler á qual nos referimos nesta obra é, na ventada, a segunda. Uma
primeira sociedade (“Os polares Erewhon") teve, em julho de 1914, sua última reunido, preskfda pela
sra. Bemaid Shaw. (Nota de 1977.)
29
deria se tratar d e uma Bona Dea mítica como de um personagem real (por exemplo, da
esposa ou da mãe adorada e venerada de um dos fundadores).
Esses Gnósticos tão inteligentes, e diante dos quais, apesar de sua extrem a oor-
tesla, eu me sentia muitas vezes como um garoto, principalmente quando um a pergunta
que eu fazia e que acreditava pudesse ser inteligente, despertava neles um sorriso mal
reprimido - esses Gnósticos, então, lamento ter de dízê-to, conservavam um gosto,
que pessoalmente eu achava excessivo, pela ficção científica - para a qual continua
vam trazendo fascinantes contribuições. Sabemos que a ficção científica, nos Estados
Unidos, é muitas vezes a oportunidade para experiências mentais de grande alcance fi
losófico. Alguns G nósticos chegam quase a pensar que trabalhos de ficção científica
poderiam ser mais úteis do que dissertações, testes ou, como na China dos Mandarins,
a composição de poemas, nos exames e concursos acadêmicos, ^ ilto e outros,
porém, lutam contra essa inclinação. Os estetas, argumentam eles, são levados a crer
que um filme ou uma peça de teatro constitui uma prova social ou politica. "Nós, os
dentíficos, não devemos incorrer no mesmo erro e acreditar que uma ficção de ficção
científica pode constituir uma prova.”
Alguém poderá querer me perguntar por que náo achei mais simples traduzir e,
assim, apresentar algumas de suas obras escritas. A resposta é fácil: essas obras náo
existem ainda, e provavelmente não irão existir antes de alguns anos. Não devemos
esquecer que, hoje, os Gnósticos declarados ainda náo passam de uns poucos milha
res.
O Movimento, sem chegar a ser secreto, pretende ser discreto. Os temas gnós-
tioos são principalmente falados, discutidos e, no máximo, mimeografados. Os cientis
tas, que constituem a maioria dos adeptos, têm como norma náo publicar senão o que
for estritamente cientifico. Eles têm uma grande preguiça quando se trata de publicar -
embora levem o assunto muito a sério - o que se refere a tudo o que eles chamam in
distintamente de theotogy.
•
• *
Foi pelo menos nesse sentido que eu consegui, durante muito tempo, entender
sua discrição e seu gosto peb segredo, o qual, porém, continuou a intrigar-me, pois os
Gnósticos estão cada vez mais com ares de mistério. Pouco a pouco, percebi uma ou
tra razão, mais importante.
O Movimento começou entre os físicos e os astrónomos, depois envolveu os
médicos e os biólogos, e depois os membros da alta administração. Porém, mais re
centemente, tem atraído um grande número de eclesiásticos, sobretudo entre as altas
esferas da Igreja. Pelo que entendi, muitos bispos são gnósticos — como teriam sido
deístas na Inglaterra do século XVIII - e haveria até mesmo muitos bispos católicos
que peb menos simpatizam com o Movimento. Com isso, sua situação se torna delica
da. Eclesiásticos podem se dizer ateus sem que isso represente um grande inconve
niente ou seja motivo de escándate. Afinal, o Budismo, o Confucionismo são Igrejas
atéias. Os católicos franceses progressistas proclamam-se facilmente “antideístas" por
amor a Jesus Cristo e aos seres humanos. Mas uma Igreja que se denomina “ cristã”
dificilmente pode proclamar que não acredita mais no Cristo, que só acredita agora em
Deus. Isto poderia ser aceito apenas no sentido extremo de um misticismo exaltado, no
30
sentido em que Georges Fox interrompeu um pregador, dizendo: “Não i Escritura, mas
o Espírito Santo", no sentido de que Jesus é apenas a expressão de uma generatio ae
terna, um mensageiro que deixa de interessar, quando se conhece o Autor da m ensa
gem.
Mas os Neognósticos não são pessoas místicas e, é em nome doDeus do cos
mo, do mundo, científica e socialmente respeitável, que eles deixam Jesus Cristo e
seus apóstolos para os hippies. Uma atitude, no fundo, honesta e louvável, mas difícil
de confessar coram poputo, considerando-se a etimologia da palavra cristianismo. Es
sa necessidade de segredo acabou, então, estendendo-se a todos os adeptos.
Há um outro ponto, mais delicado e mais secreto, talvez até mesmo subcons
ciente. Os Neognósticos de origem judaica (e são muitos) muitas vezes pensam como
se esperassem uma espécie de conversão, ou de reconversão do cristianismo para o
monoteísmo israelita original - enquanto muitos cristãos pouco esclarecidos, mesmo
quando simpatizam com os judeus, ainda consideram o judaísmo como um estágio reli
gioso primitivo que o cristianismo teria ultrapassado.
Acontece que os Neognósticos cristãos, por sua vez, não estão muito longe do
ponto de vista dos Neognósticos judeus, e parecem quase desejar uma espécie de re
conversão do cristianismo para o judaísmo.
Mas essas são coisas difíceis de confessar, até mesmo a si próprio - sobretudo
quando se é pastor ou bispo de uma Igreja cristã.
O homem invisível
A Nova Gnose, pelo menos na sua primeira fase, na qual se inspira em Edding-
ton e em Milne, aceitando seu panpsiquismo mas rejeitando seu idealismo (“O mundo
como subproduto do nosso modo de construí-lo” ), não passa de uma transposição, de
uma fiel inversão da ciência. O cosmo é uma tapeçaria que a ciência descreve fielmen
te, só que pelo avesso. A Gnose consiste em conhecer, além ou através dos elemen
tos observáveis da ciência, a própria vida dos seres. E ó nisso que ela é conhecimento
propriamente dito (Gnôsis) e não uma simples preparação de conhecimento, como a
ciência.
Somos todos “gnósticos”, e não apenas “cientistas conhecedores", quando ten
tamos conhecer bem uma pessoa íntima, procurando ir além do conhecimento de sua
pressão arterial, de sua taxa de colesterol ou, até mesmo, dos resultados de seus tes
tes psicológicos. Seria ridículo, numa atitude de purismo positivista, nos contentarmos
com a simples leitura de instrumentos médicos ou com um mero apanhado de suas
reações.
38
Somos todos gnósticos, de um modo mais geral, quando entendemos uma men
sagem, quando lemos uma carta muitas vezes em suas entrelinhas, quando apreen
demos um significado através dos sinais, uma expressão através das formas estéticas.
Não se trata, nesses casos, de um conhecimento que vai além do conhecimento, o
qual exigiria dons transcendentes ou milagrosos; trata-se do conhecimento propriamen
te dito, que assim pode ser chamado quando não se limita a uma observação anterior e,
sobretudo, quando não considera os seres observados como espécies de puros ele
mentos observáveis, ou seja, corpos sem alma existindo apenas na condição de corpo.
O conhecimento gnóstico não é mais imaginativo do que o conhecimento científi
co pois, na verdade, é imaginação, também - mas enganosa acreditar que uma flor
seja apenas a “sua descrição botânica", uma “descrição” que tivesse existência pró
pria, independente e fora do âmbito das páginas de um livro de botânica. Imaginar ou
pensar a alma dos seres, recolocar em pensamento as figuras da tapeçaria no lado di
reito, é simplesmente estender a todo o universo o que fazemos espontaneamente com
as pessoas mais íntimas.
Essa transposição não se limita à primeira fase de uma simptes inversão animan
te, de uma tradução literal de estofo material em estofo espiritual {mind stuff). Porém, a
reconhecida necessidade dessa transposição, a necessidade de se corrigir a aparên
cia pela transparência, serve de fio condutor para resolver enigmas insolúveis para o
positivismo científico.
Os Gnósticos não se detêm nessas generalidades. Eles elaboraram a tese mais
tecnicamente, partindo das concepções de Milne e utilizando o processo dos antipara
doxos. Tentaremos a seguir, dar alguma idéia dessas pesquisas.
Capítulo II
"Pensa-se no universo*'
Exercfcio /. - Durante urna note estrelada, passar a noite sobre a areia de uma praia, depois de
ter lido alguma coisa sobre as nebulosas espirais, os quasares, asestólas de ndutrons, etc. Tentar re
presentar-se os braços da Galáxla, o seu centro (em direção a Sagitário). Procurar localizar, se se tem
bons olhos, a nebulosa de Andrómeda, nossa vizinha - o que ajuda a ver a Via Láctea como que de fo
ra. Sobretudo, tentar ao mesmo tempo ver a si próprio num dos braçoe da Galáxia, e Imaginar-se em
movimento, arrastado pelo Sol a duzentos e cinqüenta quilómetros por segundo em torno do centro
galáctico. Pensar, enquanto Isso, nas teorias fbicas sobre a formação das estelas, sobre o “caldo pri
mitivo*' da vida sobre a Tenra, sobre a formação dos ácidos aminados e das molóculas auto-reproduto-
ras.
40
Exercício II. - Imaginar o Universo ainda próximo da explosão inicial, ou antes da lormaçáo das
estrelas, dos planetas e das moléculas complexas. Ou, então, imaginar a Terra ainda em seu estado ds
aglomerado de poeiras cósmicas e continuando a receber chuvas de meteoritos (o detalhe não importa),
e, então, dizer para si mesmo: "Haverá pensamento no Universo”.
Exercício III. - Imaginar a Tetra tendo voltado a ser inóspita e estéril, ou até mesmo o Universo
em “ degradação" (por conversão da matéria em irradiação, equalizaçâo térmica, esgotamento do com
bustível nuclear, etc.), e, então, dizer a si mesmo: “ Houve pensamento no Universo."
41
Contudo, as moléculas e os átomos sabem o que fazem melhor do que os físi
cos. Pois, o que os físicos ainda não sabem sobre os átomos, quem mais poderia
sabô-k) a não ser os próprios átomos?
O “ corpo", o “ Ele", o “Aquilo", o “Vocô” , o “ Movimento” , o “Alhures”, são exem
plos de lusõeç recíprocas entre consciôncias-eu, em repouso, “aqui”. Os seres nunca
passam de uma consciència-eu em repouso aqui, mas eies só se vêem uns aos outros
como um corpo, lá, um ele ou um você em movimento. Acredito vê-lo como corpo, si
tuado ali, e em movimento, mas ele é Eu, consciência, aqui, imóvel, e ele me vê como
corpo, aqui (que, para ele, está “alhures"), em movimento, quando na verdade sei per
feitamente que eu estou aqui, consciente, imóvel. As relações entre os pronomes, as
sim como entre o Aqui e o Alhures, como entre os elementos móveis (e, podemos
acrescentar, como entre as direções) só podem ser reais para uma terceira consciên
cia envolvente, para um domínio supra-ordenado, que pode continuar “dizendo" eu-
aqui-e-agora, imóvel, pois os movimentos que vê dos seres envoltos não a impedem de
estar aqui-imóvel, assim como a visão dos veículos em movimento que eu observo da
minha janela não me impede de estar aqui e imóvel.
Os Gnósticos, como Milne, oonsideram a teoria da relatividade como uma teoria das interações
através de um intercâmbio de sinais entre “sujeitos”, e como base de uma cosmotogia monadotógica -
cosmología que, por sua vez, serve de base à tfsica.
O Universo espacial ô um sistema de aparências observadas de uma infinidade de pontos de
vista (por observadores-sujeitos). Milne dissocia (até certo ponto) o aqui e o agora, ao considerar que,
para cada observador, a passagem do tempo: agora... agora... agora... é um dado imediato, enquanto
que o espaço métrico é uma consfrução intelectual que possibilita uma comunicação sistematizada entre
observadores.
A passagem do tempo, segundo Milne, traz consigo para cada “ eu” uma ordem irreversível, e
até mesmo uma métrica (ou melhor, uma contagem) elementar. Agora... agora... agora... ordena-se em
Depois... depois... depois... Ao paaso que Aqui... aqui... aqui... não me possibilita saberse estou me
deslocando e com que velocidade eu me desloco no espaço. Pois não se deve oonfundir "o movimento"
da física com a locomoção voluntária, na qual tenho a impressão (sensbel) de mudar de "aqui” . Parece,
portanto, mais indicado começar pela medição do tempo. Um únioo "eu” já tem o seu próprio relógio,
art)Variamente graduado, mas ordenado natoralmente. Dois, e depois vários “eus” podem, então, defi
nir um tempo, uniforme, cada um lendo sobre o relógio do outro, por sinais luminosos. O comprimento
só pode ser definido de acordo com a distância (medida pela ida e volta do sinal). Milne retoma a geo
metria hiperbólica de Lorentz,1 mas sem o realismo einsteiniano do espaço.2 Ele considera ter feito uma
1. Lorentz (Hendrik, Antoon) (1653-1926), físico neerlandés, principal autor da teoria eletrônica da
matéria, e cujos trabalhos permitiram a Einstein elaborar sua teoria da relatividade. {Nota de 1977.)
2. Jacques MERLEAU-PONTY: Cosmología du XXe. siècie, p. 442. Esta obra trata do tema cosmo
logía melhor do que tudo o que tol publicado na América.
43
análise melhor da passayem dos tempos particulares para o tempo e o espaço públicos.
Os Gnósticos conservaram o princípio da tese de Milne, que sustenta, em oposição aos concei
tos “ positivistas” , que o “observador” ó, de talo, essencialmente um “ego", e que a palavra “observa
dor” nSo é uma simples abreviatura para designar um relógio registrador que, mecanicamente, perfu
rasse um cartão quando da passagem de uma onda luminosa ou de uma partícula.
Os ffeicos alertam os comentaristas contra a idéia de que o “ observador” , munido de réguas, de
relógios e que numera os acontecimentos de que fala a teoria ffeica, seja um sujeito antropomdrflco. Pa
ra o físico, eleéum aparelho passivo que registra elementos observáveis, com uma régua e um relògto
"perfurador" e que não tem a mínima necessidade de ser consciente. Não é um sujeito que pudesse
modificar seu objeto.
A advertência dos físicos 6 totalmente justificada. Mas só um equívoco grosseiro nos levaria a
concluir que: “ Logo, não há nada a ser procurado além da ffeica dos elementos observáveis e dos “ ob-
servadores-aparelhos” , e não cabe considerar o mundo dos “ Eus” ou dos “ aqui-e-agora" como domí
nios conscientes.” O fato de que a descrição científica do avesso da tapeçaria seja coerente, e de que
náo se deve fazer intervir intempestivamente interações do lado direito sobre o lado avesso, não é moti
vo pare desistir de olhar a tapeçaria pelo seu lado direito.
A roda de crianças
Crianças se dão a mão para formar uma "serpente” . A roda serpentina ondula,
rompe-se, volta a formar-se. Ela não é um ser, mas as crianças são seres, e sua “ idéia
de jogo" se expande sobre a roda que formam. Elas se queixam de ter se machucado
ao puxar com muita força. Se a roda de crianças não é um ser, o Mississipi ou o Rio
Amazonas o são menos ainda. Por isso, eles são cegos. Mas eles subsistem pela
subsistência, fundamentalmente semântica, das moléculas de água que “se dão
a mão".
A paisagem
A Luae os cosmonautas
a Pauli (WoHgang) (1900-1958), físico suíço de origem austríaca, criador, junto com Helsenberg, da
teoria quârrtlca doe campos; a ete se deve o famoso princípio de exclusão que leva seu nome, e do qual
derivam a Interpretação das valôndas e a impenetrabilidade da matéria (Nota de 1977.)
47
mofeeulas se constituem a partir dos átomos, as moléculas cristalizam, etc., como se
tossem ao mesmo tempo as peças do quebra-cabeça e as imagens dessas peças den
tro do cam po visual da criança que as ordena.
A ordenação do quebra-cabeça pela criança, essa façanha cerebral, é, portanto,
apesar d e sua complexidade, o “modeto" de ordenação dos seres dentro do espaço-
tempo. É a inércia tola das peças do quebra-cabeça que engana, e que representa um
caso excepcional, requerendo a chegada excepcional de uma consciência distinta - a
criança— para ser recolocado dentro da norma de toda realidade. Normalmente, toda
matéria já é espírito, no sentido em que “vê” a si própria e ela mesma se organiza em
seu cam po de visão.
A Gnose, que é antimaterialista, não é exatamente estruturalista. Ela é, antes,
“m atriciaista". Uma matriz é um quadro de dados que podem ser completados ou dis
postos conforme um sentido. As estruturas (no sentido dos lingüistas) são um caso
particular de matriz, com regras de formação em parte naturais, em parte convencio
nais. Isla estrutura de uma frase, não hâ princípios de exclusão ou de diferenciação que
sejam tão rigorosos, tão “não-convencionais" quanto na organização de um conjunto de
átomos ou de um campo eletromagnético.
4. Segundo o famoso modelo de Crick e Watson, a molécula de DNA é composta de duas cadeias
de nucleótktes enrolando-se em hélice em volta de um eixo comum e paralelas uma à outra. (Lembra
mos que ONA ¿ a abreviatura de ácido desoximbonucleico, constituinte do núcleo celular e dos cromos
somos.)
CL A Dupla Hélice de James D. Watson (prflmlo Nobel de Medicina), traduzido do Inglôs, Laffont, 1968,
coleção “Science nouveile” .
49
calcular os n íve is energéticos de um átomo. Mas, evidentemente, não consegue isso
de modo perfeito. A molécula sabe claramente o que faz, muito mais do que ele pode
imaginar.
Dizia-se, brincando, que o físico era uma invenção do átomo que queria saber,
através do fís ic o , qual era a sua estrutura. Esta é uma idéia engraçada, e obviamente
errada O átomo sabe o que faz, e o sabia antes e muito melhor do que Niels Bohr,6 as
sim como o coração de Harvey6 sabia o que fazia muito melhor do que o próprio Har-
vey poderia im aginar em sua consciência cerebral E, tanto Crick como Watson não te
riam existido s e a "dupla hélice" não tivesse presidido a reprodução de seus genes
muito antes que eles chegassem a estabelecer o seu esquema.
0 vago ê “ vertical”, a precisão é “ horizontal". Além disso, a consciência cerebral
sobreposta à consciência orgânica, como um computador numa empresa, é tributária
de internações nfio só imperfeitas como deturpadas e, muitas vezes, trapaceadas. Ela
sofre impulsos disfarçados. Ao passo que o animal obedece a seus impulsos instinti
vos, sem entender mas, também, sem deturpar nada, e o organismo sem cérebro é o
mais capacitado para tratar os problemas sem se distrair. O caráter “vago" (ou melhor,
temático) de uma consciência aparece, de modo mais geral, nas suas relações oom os
domínios de consciência subjacentes ou suprajacentes. Cada domínio de consciência,
dentro do seu respectivo nível, é lúcido. A "missão recebida” por ele é que pode ser,
ore precisa (quando o instinto traz sua própria técnica), ora apenas temática.
Encontramos um exemplo típico disso na sexualidade. Os impulsos da fibido são
"vagos" para a consciência cerebral. Mas a consciência orgânica, que preside à for
mação dos gametas através de um rigoroso processo de fabricação, que instala, na
embriogênese e , depois, na puberdade, a complicada aparelhagem dos órgãos, ô tão
precisa e detalhada quanto uma empresa técnica onde tudo é calculado com lucidez. A
consciência cerebral, que sofre os surdos impulsos da ibido, volta a ser, em seu pró
prio campo, em seu próprio nível, lúcida e precisa para executá-la. Um Don Juan arqui
teta planos e artimanhas, ou desenvolve uma verdadeira estratégia (como o protagonis
tadas Liaisons dangereuses).
Cada domínio, em seu respectivo nível, é capaz de atuar de modo preciso (tanto
no nível inferior como no superior), é a passagem “vertical” de um nível para outro
(neste caso, a dos genes para a embriogênese, e da embriogênese para o comporta
mento) que ocorre através de um impulso ou missão. Essa passagem parece ser um
salto difícil, uma semi-ruptura de causalidade, compensada por sinais evocadores, es
timuladores, por chamadas em direção a um potencial, por determinações orientadoras
sem determinismo, por participações ou possessões mnêmicas e por pressentimentos
ou chamadas.
Em cada nível, o domínio consciente trabalha inteligentemente sobre os dados
matriciais. De um nível para outro, os impulsos são, sem dúvida, significativos, expres-
5. Bohr (Nleb, Henrlk, David), nasddo em 1885 na Dinamarca; prflmlo Nobel de física nuclear
também dedtoou-se â mecânica ondulatoria e quântica. (Nota de 1977.)
6. Harvey (William) (1578-1657), módico inglés, descobriu a drculação sangüínea e fez também
pesquisas essenciais sobre a geração: ele foi o primeiro a estabelecer o axioma omne vivum ex ovo, e o
demonstrou afravés de experiências. (Nota de 1977.}
50
sivos e, se quisermos, até “falantes", mas, gramaticalmente, são vazios, como essas
frases cheias de pronomes e de palavras que podem servir para qualquer situação:
“Alguma coisa será feita por mim, logo nesse sentido...” .
O vago "vertical", entre domínios de consciência horizontalmente lúcidos é, para
os Gnósticos, característico de todo o universo. O universo é como um prédio de mui
tos andares, onde somente os locatários do mesmo andar chegam a se conhecer bem,
sendo que mal se conhecem de um andar para outro. Com a diferença deque, no uni
verso, a situação se complica: há locatários gigantes que furam os tetos, ocupam vá
rios andares ao mesmo tempo e, em conseqüência, conhecem mal a si próprios e só
se comunicam com os outros no nível de cada andar. Um diálogo entre namorados tem
pouca consciência das técnicas dos gametas machos e fêmeas - e vice-versa. E tem
pouca consciência, também, do que deseja a espécie no andar superior. Um homem
adulto se comunica muito mal com a espécie humana, com a Árvore da Vida, com a
Consciência Cósmica, com Deus. Ele tende a considerar ilusórios os andares superio
res, dos quais, no entanto, recebe missões - assim como recebe dos andares inferio
res impulsos, que ele só conhece através das pesquisas científicas.
Não só todo ser é tão inteligente quanto outro, como também todo ser ô tão inteli
gente, dentro de seu próprio contexto, quanto Deus (ou quanto à suprema Chave*
consciente). Os seres são tão inteligentes quando a Suprema Inteligência” como di
ziam os deístas do século XVIII. Nisso, não há nada de particularmente paradoxal. To
dos os seres são dotados de eternidade e de ubiqüidade em seu respectivo domínio.
Todos dispõem de um modo inteligente seu próprio domínio, restrito, assim como
o Dominus supremo dispõe o dele, que sustém o universo, ou se sobrepõe a ele. As
“maravilhas da criação", como se costuma dizer, são indistintamente atribuídas às vá
rias criaturas que as realizam, ou ao criador, que reúne a todas sob a sua autoridade.
Esta comunidade de inteligência, e somente ela, nos permite “entender que se
possa entender" e que o universo seja inteligível - embora não o seja na sua totalidade,
visto que o nosso domínio é dirigido por domínios mais abrangentes, e que intervém,
então, o vago “vertical". Somos tão inteligentes quanto Deus no mesmo sentido em que
uma de nossas células é tão inteligente quanto nós.
Aiyuns Gnósticos mostram-se reservados em relação a esse último ponto - sem que seja dada,
no entanto, yranúe Importância a essas restrições, que lembram as objeçôes que Duns Soot fazia aos
teólogos da sua época. Não somos suficientemente inteligentes para definir a inteligência em geral. Po
de haver, ao mesmo tempo, semelhança essencial e diferença entre a inteligôncia dos seres e a Inte
ligência cósmica, como há entre o seu sere o dela
Aqui está um exemplo de uma diferença possível. Deus - ou a Unidade cósmica - se comunica
“verticalmente" com os outros níveis de conscidncia apenas do modo vago e temático que já definimos,
7. Esses apresentam-se como quadros com entrada dupla e funcionamento mecánico, e cujas colu
nas correspondem aos critérios de estrutura dos objetos, e as linhas, aos significados conexos.
Pode-se criar ligações entre colunas e linhas “condicionando-se” a máquina. Ao apresentarmos à má
quina determinada estrutura, ela pode deduzir seu significado, e inversamente. Pode-se também fazer
a máquina procurar compatibilidades ou incompatibilidades entre estruturas e significados, e encontrar
analogias inesperadas. Cf. Raymond Ruyer: La Cibemétique, Flammarion, 1967, p.226. (Nota de
1977.)
* Em rei. ao sinai gráfico ({) usado para abranger vários elementos de uma mesma categoría. (N. T.)
52
por impulsos ou por missões? Ou ele participa também mais diretamente d e todas as consciências do-
miniais e ae todas as memórias? Se aceitam os a primeira tese, temos, entáo, de aceitar também a
existência de um Deus semelhante ao da A ntjga Gnose: quase tuao da realidade escapa ao Seu con
trole, apesar ce Ele servir de suporte para essa mesma realidade e definir suas grandes linhas, suas
constantes fundamentais, seus ‘‘tijolos’’ e norm as de construção (velocidade da luz, constante cósmica,
quantum de ação, número de átomos do universo), ínter-relacionados de u m modo inteligível, segundo
Eddington, nas antecipações que esse autor tez sobre uma ciência ainda futura. Desses materiais e
normas de construção, Ele aguarda os resultados - eufórico com a saúde d o universo, assim como nos
sentimos eufóricos com o bom funcionamento de nossos órgãos ou, ao contrário, sombno como um
reumático, ou “ inflamado pela ira’’ como o Deus da Bíblia quando estalam suas juntas.
8. Expusemos isso em Dieu des rehgions, Dieu de Ia Science, Flammarion, Paris, 1970.
53
Capítulo III
1. Incapacidade de reconhecer um objeto, de dizer, “ô tal ou tal coisa” , embora a visão sensorial
seja normal (Nota de 1977.)
54
Exercitar-se no sentido de apagar a impressão falsa de que “eu" estou diante do
meu campo visual. É meu corpo (com meus globos oculares) que está diante dos obje
tos reais observados. Mas o campo visual, uma vez conseguido, não está mais diante
de mim. O que me confunde, é que ele contém a visão vaga e periférica das minhas
sobrancelhas, do meu nariz, dos meus braços e do meu peito. Daf a ilusão de que as
imagens visuais dos objetos estão diante do meu corpo como os próprios objetos vis
tos, e que um olho espiritual ou mágico ainda deve olhar o que meus olhos orgânicos e
meu centro visual produziram, a saber, meu próprio campo visual como um estado de
meu campo orgânico em seu "anverso” .
Não há nada de paradoxal, neste sentido, em dizer que o olho não é essencial na
visão. Os Gnósticos não se referem, aqui, à “percepção extra-sensorial” de Rhine,2
que eles consideram, se não um mistificador, pelo menos um mau experimentador; re
ferem-se ao fato de que aquilo que “ vê" é uma superfície cortical determinada, um teci
do orgânico que não é mais “mágico" do que qualquer outro tecido orgânico, e que po
deria ter sido derivado de algum outro esboço embrionário. Se pudéssemos conduzir,
com ordem, os fótons ou os estímulos correspondentes diretamente sobre o córtex vi
sual, provavelmente haveria visão. Aquilo de que a visão não pode prescindir é de uma
área orgânica unitária que corresponda a um aqui-e-agora dominial. O olho é um mero
transportador fiel. Pode-se conceber, e tentou-se realizar, para os cegos, aparelhos
capazes de suscitar diretamente a visão cortical. Um homem assim equipado estaria,
de início, menos tentado em "ver" seu campo visual diante dele. Logo em seguida,
aliás, ele adotaria a atitude, falsa porém prática, que consiste em fazer como se as
imagens visuais estivessem diante dele, como se ele tivesse de olhar ainda - como
que fora dele - o efeito da visfio.
A atitude dos Gnósticos em relação a Rhine é muito característica (oonvém lembrar aqui que ho
mens como A. Koestler ou Eccles que, sem serem Gnósticos, estão muito próximos deles, continuam a
levar Rhine a sério). A percepção extra-sensonal de Rhine é mágica. O indivíduo deve poder ver ex
tra- sensorialmente que carta, tísicamente Inobservável, será puxada de um maço colocado sobre a me
sa e contendo vinte e cinco cartas de cinco figuras (pelo menos com éxitos estatisticamente superiores à
pura sorte.
Para os Gnósticos, o campo visual não é explicável mecânica ou fisiológicamente (no sentido
comum da palavra). A área visual 6 um domínio absoluto de espaço-tempo. Mas não se deve confundir
"nào-mecântco" e “mágico". Pois, nesse caso, toda a física contemporânea seria mágica. Um campo
eletromagnético ou nuclear tampouco d explicável através de um modelo mecânico.
Para que haja visão, é preaso que as informações sejam levadas fisicamente, de um modo ou
de outro, atá o córtex. Mas o próprio córtex não é um aparelho mecánico, um ajuntamento parecido com
2. São conhecidas as famosas observações estatísticas feitas por Rhine e 9eus alunos, com caitas
contendo cinco figuras que as pessoas devem identificar sem vô-las. Segundo Rhine, os Indivíduos tes
tados estariam cometendo menos erros estatisticamente do que um individuo “tentando adivinhar ao
acaso”. (Nota de 1977.)
55
o dos elementos de um computador. Pode-se supor que, para um microffeico, estese apresente como
um enorme sistema com ligações deslocalizadas, como um tecido cuja malha fosse urna molécula ou
um ajuntamento de moléculas oomligaçõesdeslocalizadas. O córtex, assím como todo o organismo, na
medida em que náo recorre a sistemas de ligações auxiliares, é, na escala macroscópica, umsistema
“mterotfeico” onde as zonas de intefaçftonãosâo indtvidualmenle atribuíveis. As redes de libras nervo
sas, com suas ligações emcadela, constituemapenas umsistema auxiliar, urna técnica sobressalente.
C apítulo IV
57
É evidente, que um campo visual consciente não é pontual. Meu própno corpo,
visto como objeto por um observador exterior, não pode ser localizado por meio de pon
tos por esse observador, já que o meu corpo é o conjunto coordenado dos órgãos no
espaço e no tempo. Os Gnósticos rejeitam, assim, como já o fizera Whitehead2 - um
dos “antepassados” da Nova Gnose a tese ingônua da localização simples". Os
“aqui-e-agora” pontuais são apenas uma idealização matemática. Com eles, não seria
possível entender o universo. Um ser ou um acontecimento pontual náo poderia ser por
si mesmo. Nenhum “eu” poderia surgir dele. Ele não seria capaz de nenhuma interação
visto que, em toda interação, 6 preciso que a e b, interatuantes, existam por um mo
mento numa unidade dominial.
Sabemos que a microffsica já verificou essa impossibilidade. Há limites para a
análise espacial e temporal Náo se pode localizar um elétron sobre sua órbita e nem
dentro do nêutron, antes que o nôutron se decomponha em próton, elétron e neutrino.
Não se consegue deinear, numa molécula de água, as zonas de interação entre o áto
mo de oxigênio e os átomos de hidrogênio. O princípio de exclusão regula conjuntamen
te os possíveis estados conjugados das partículas constituintes de um sistema, mesmo
quando essas se apresentam, diante de nós, à distância uma da outra.
As dificuldades atuais da flsica dos núcleos atômicos são absolutamente da
mesma ordem que as dificuldades da neurologia diante dos campos corticais. Os para
doxos surgem assim que insistimos em localizar além de um determinado nível os ele
mentos constituintes. O antiparadoxo da náo-localização simples não resolve todos os
problemas como por mágica, mas nos permite abordá-los sem ingenuidade. O fato de
que as partículas só podem ser criadas e aniquiladas por pares implica, obviamente,
que seus “aqui” estão conjugados. Toda lei de conservação é uma lei de simetria entre
o espaço e o tempo, e uma simetria é dominial por definição.
A biologia molecular encontra em toda parte o fato estranho do “reconhecimento”
à distância de uma molécula por outra: na transmissão nervosa, no nível celular e mo
lecular; na transmissão hormonal, onde a célula reconhece a mensagem hormonal por
ela conter moléculas (A.M.P. cíclicas, as “segundas mensageiras” de E. W. Suther-
land) capazes de reconhecer à distância a forma da molécula hormonal; na trans
missão genética, onde moléculas do citoplasma são capazes de reconhecer a forma-
mensagem das moléculas de R.NA, e estas, por sua vez, a forma das moléculas de
D.N.A. Esse fato estranho é um mistério insolúvel se nos obstinamos numa concepção
“pontualísticaN. Ao contrário, parecer-nos-â perfeitamente natural se admitirmos a idéia
de uma “auto-supervisão dominial”, sem olho supervisor. As duas moléculas (vizinhas
no espaço) “vêem” (sem olhos) suas próprias formas conjugadas; uma sabe da outra,
não através de um mensageiro n + 1, intermediário entre n mensageiros, mas porque
elas são uma forma dominial única.
A impossibilidade de definir no espaço uma direção absoluta, mas apenas uma
diferença de direção, a impossibilidade de definir a velocidade de um móvel, mas so
mente a velocidade relativa de dois móveis ou uma aceleração, é igualmente um fato
dominial. E o domínio pode ser grande como o universo. Ao lado das interações nuclea-
2. Whitehead (Alfred, North) (1861-1947), ffsico, matemático e filósofo británico, um dos fundadores
da lógica matemática. {Nota de 1977.)
58
res (fortes ou fracas) de muito curto alcance, as interações eletromagnéticas, as inte
rações de gravitação, as “ interações cósmicas" que fazem a inércia ou a curvatura do
espaço e a expansão no tempo das nebulosas espirais, essas interações têm o univer
so total por domínio. A minha inércia (que me desequilibra e m e faz cair dentro de um
ônibus que freia de repente) vincula-me às massas ou à existência do conjunto do uni
verso, assim como estou ligado ao campo gravitacional da Terra. Quando o ônibus Ireia
bruscamente, minha queda mostra que deixei de ser solidário com o veículo e com a
própria Terra, tornando-me solidário com todo o universo. Os cosmonautas mesmo es
tando longe de qualquer massa de atração, nem por isso deixariam de ser .pressiona
dos contra os seus assentos assim que fizessem funcionar a espaçonave, pois se en
contram no universo.
Segundo o princípio de Mach, a torça cenWfuga ó dominial. Podemos entáo adm itir que ó o uni
verso que gira em tomo do balde onde a água é pressionada contra as suas paredes e que, se o univer
so que gira nôo expenmenta, por sua vez, nenhuma torça centrífuga, é porque náo está envolvido por
um supra-universo que gira em tomo dele.
A filosofia de Mach, seu ultrapositivismo inspirado em Berkeley, ô dos mais contestáveis, e sa
bemos que Einstein, que o tinha como seu mestre, acabou se afastando de suas teorias. Pois Mach pre
tende explicar a inércia, náo pela teoria do "canpo" e, sim, pela inftudncia causal dos corpos (no senti
do restito), isto é, das massas materiais afastadas, enquanto que, para E in s te in , o campo é o essencial,
sendo a matéria — no sentido tradicional da palavra — apenas uma zona do campo.
Mach desconfiava da idéia de campo como sendo uma construção dos físicos sem perceber
que era o campo (ou o aqui domlnlal nfio-pontual) o verdadeiro “ material do felco” , e náo os “aqui”
quase pontuais da matéria, tomada no sentido
Contudo, o princípio de Mach, o caráter cósmico da inércia, independ ente d a filosofia de Mach,
aplicado ao campo e náo á matéria (e, até mesmo, ao campo vazio de m a té ria no sentido clássico) per
manece sólido. De qualquer modo, inércia e yravitação gstfrp estreitamente aparentadas. Sciama con
seguiu reconciliar Mach e Einstein pois, para ele, a gravitaçáo não passa de um caso de interação está
tica das interações de inércia.3
Explicando isso de modo grosseiro - porém náo inexato - os campos de gravrtaçáo, os campos
eletromagnéticos podem ser considerados como “corpos observáveis” , no sentido amplo, tanto quanto
os corpos materiais sobre os quais se reflete a luz.
A diferença é que os campos sáo observáveis de forma mais indireta, através dos desvios que
produzem nas ondas ou nos corpos de testes. Mas esses desvios sáo um fenômeno físico - material se
quisermos - tanto quanto o ricocheteamento dos tótons sobre a matéria no sentido dãssico.
As críticas que Lenln fez á filosofia de Mach não deixam de ser pertinentes, com a ressalva de
que ele comprova o realismo achando que está comprovando o materialismo, e confunde o mau idea
lismo de Berkeley-Mach com um panpdquismo A maneira de Leibniz que, longe de ser incompatível
com o “materialismo" - ou antes, com o realismo - da física, representa ao contrário a condição para a
sua existência: a “malária" só pode subsistir por si mesma, independentemente de qualquer “ conhece
dor", se ela náo lor “coisa", puro objeto, mas pode possuir a si própria, em sua forma e comportamento
ativo.
Os campos, os sistemas de ligações e de interação dominiai ligados em chaves são seres tão
auténticos quanto os subdomínlos ligados em subchaves. Eles tôm uma massa, viqjam. Só que, neles,
concebemos mais facilmente que o aspecto "corpo" seja apenas o avesso do um campo de consciência
de ligaçfio, Inobservável como ligação unificadora e tematizante, e observável somente, como corpo,
através de seus efeitos físicos.
3. Dennis W. Soiama: The Physical Foundations of General Relatívity, Nova York, 1968.
59
Terminaremos este capítulo com o que os Gnósticos chamam de testes de “sen
sibilidade cosmológica”.
4. Exemplo de Martin Schwarzschlld, citado por E. F. Taylor e J. A. Wheeler em: Space-Time Phy-
sics, Sáo Francisco, 1966.
60
percurso desta quando não há nenhuma freada ou perturbação acidental, e o corrige
quando há perturbação. O que, ou quem está pilotando essa “consciência” (e a nave
quando não há freada)? E que tipo de conexão existe entre elas, se a “consciência"
não precisa intervir? As leis de Newton? O princípio de Mach? A natureza local do es
paço? De onde a massa recebe as ordens que regem seu deslocamento?
A CONSCIÊNCIA CÓSMICA
1. Eddington (1882-1944), astrónomo e ffsioo britânico, famoso por seus trabalhos sobre a tempe
ratura e a constituição central das estrelas; dedicou-se também à cosmología e às teorias sobre a ex
pansão do Universo. Haldane é o autor de pesquisas fundamentais em biologia. (Nota de 1977.)
2. CL supra, p. 55.
62
e não se pode conceber uma Visão sem estabelecer a existência de um Olho. E, visto
que não há nada fora do Absoluto, é preciso que este se desdobre em Olho e Espelho,
de modo que possa olhar a si mesmo: “ Ele é assim o seu próprio Espelho, no qual ele
se reflete e se olha, um Olho ou um Espelho côncavo; um Olho que é visto e que ao
mesmo tempo vê”.3 Os filósofos menos ingênuos dizem mais ou menos a mesma coi
sa, em frases mais abstratas e menos divertidas. Seu "sujeito", com ou sem maiúscula,
continua sendo o Olho de Jacob Bõhme.
A Unitas cósmica é, em certo sentido, um Deus pessoal. Em outro sentido, entre
tanto, ela não é um Deus pessoal. Ela é um Deus pessoal - que poderia dizer “ Eu” -
senão através da mesma ilusão (projetada sobre o universo) que me faz acreditar que
“eu" estou diante do meu campo visual. A analogia entre o meu domínio de consciência
(como superfície-sujeito) e o domínio universal é válida. Mas náo devemos, a partir daí,
nos equivocar sobre o modo de ser que é o meu domínio. Eu não sou um ser abstrato,
um puro indivíduo que olha seu próprio campo de consciência. Eu sou apenas a unida
de do meu campo de consciência, o sujeito de uma superfície-sujeito. Do mesmo modo,
Deus ou a Unitas não ô um Ser, um indivíduo, que olharia o universo de fora. Ele é a
Unidade dominial, a Unidade-Eu dessa Superfície-sujeito total.
Tenho, quanto a mim, alguma justificativa pragmática para falar de mim como uni
dade biológica, e sobretudo como unidade social. Mas não há evidentemente nenhuma
para falar de Deus, ou da Unidade do cosmo, como de um “Eu” quase biológico ou so
cial. A menos que não recuemos diante do mito - como fazia, por divertimento, J.B.S.
Haldane, uma das mentes mais livres do nosso tempo, que fazia do nosso universo e
do seu pseudo “Eu" o membro de uma sociedade de deuses mais ampla. Aliás, J.B.S.
Haldane só falava em Diretor — ou Diretora4 - da Via Láctea, para evitar, dizia ele, de
falar de infinidades.
Samuel Butler também esboçou um mito desse tipo.5 Naturalmente, ele não se
referia, em 1879, ao espaço-tempo cósmico. Mas considerava o conjunto de todos os
seres vivos como um tipo de Grande Ser Vivo, cujos organismos de todas as espécies
formavam as células. A ele referia-se como a Árvore da Vida. Uma árvore é composta
de uma multidão de árvores subordinadas, sendo cada broto um indivíduo quase que
distinto sobre um vasto esqueleto, mais “mineral" do que orgânico. A verdadeira co
nexão entre eles não é visível; ela consiste na participação de cada broto, de um
mesmo Espírito, isto é, de uma mesma Visão das coisas e de um mesmo tipo de com
portamento. Contanto que essa Unidade se manifeste, a presença ou ausência de um
esqueleto “mineral”, unificando as partes constituintes por laços visíveis e mecânicos,
não tem muita importância. E existem árvores-quimeras produzidas por enxerto, cujos
ramos carregam frutos diferentes.
66
tozoário ordena-se a si mesmo e improvisa uma boca, um estômago, pseudópodes,
porque ele “se vê” em sua própria unidade. Os neurônios de meu córtex são subdomf-
nios dentro da área cortical, e supradomímos das áreas moleculares.
O exemplo da criança brincando de colocar em ordem as peças de um quebra-
cabeça é tão complexo que pode chegar a enganar. Dir-se-ia o Espírito vindo ordenar a
Matéria. Mas a análise mostra que não há nem matéria nem espírito; há simplesmente
sobreposição de domínios que se entrelaçam uns aos outros em chaves mais ou me
nos amplas ou em “hólons" mais ou menos vastos. Quanto mais amplo for o domínio
onde se ordenam os domínios subordinados, mais este terá um aspecto espiritual.
Quanto mais houver pó de microdomfnios insuficientemente coordenados, mais existirá
ali um aspecto material. Não é, portanto, surpreendente que o domínio entre os domí
nios, isto é, o universo, o espaço-tempo em sua unidade cosmológica, nos apareça
como o Espírito por excelência, como Deus, especialmente quando ele parece estabe
lecer uma Ordem dominial unitária ou faz uma Ação unitária. Mas, também, não é sur
preendente que ele nos pareça Matéria inconsciente quando domina mal a multidão e o
pó dos domínios menos amplos que ele abarca.
Pois há tipos diversos de interação e unificação, e a extensão do domínio unitário
não é tudo. O espaço-tempo (da gravitação e da inércia, no conceito de Mach) não é o
Cego absoluto mas, aparentemente, não é tampouco uma espécie de córtex visual em
todas as suas propriedades, pois as percepções e movimentos que ali acontecem só
estão muito sumariamente conjugados. O Espírito cósmico “sabe” que tal planeta e tal
meteorito de grandes proporções estão se aproximando um do outro, mas nada faz pa
ra evitar sua colisão. É como se ele fosse uma consciência muito distraída ou muito in
diferente ao detalhe. Parece-se com um departamento de trânsito urbano que cuidasse
apenas do plano geral dos itinerários sem preocupar-se com os acidentes, deixando
aos motoristas a incumbência de cuidar dos mesmos.
Capitulo VII
70
O viticultor luta contra a erosão de seu terreno e contra a proliferação dos
pulgões, os quais vão se tornando imunes aos inseticidas quando seus cromossomos
e DNA “inventam" (sem querer) formas mutantes resistentes. Dessas duas calamida
des, uma - a erosão - é uma degradação de forma; e a outra, um aparecimento intem
perante de formas, mas ambas são automáticas.
Para a Nova Gnose, essa maneira de ver é superficial, e essa teoria tão contra
ditória que acaba tornando-se um dos melhores argumentos a favor da Nova Gnose.
No princípio, dizem os Gnósticos, não há nenhum Grande Informante universal,
pelo menos nenhum Grande Informante cujo cérebro cósmico ou cujo pensamento pu
desse conter de antemão todas as formas que apareceram, desde os chifres do rinoce
ronte até a plumagem do pavão, todas as mensagens escritas, todas as palavras pro
nunciadas até hoje.
Mas, pensem apenas no seguinte: Num sistema estelar feito quase exclusiva
mente de hidrogênio e de hélio, e quente demais para que moléculas complexas pudes
sem subsistir ou para que o carbono pudesse queimar “molecularmente”, não nos sur
preende o fato de surgirem, assim que as circunstâncias se tornam favoráveis, essas
moléculas complexas que nos paracem, então, virtualmente presentes antes mesmo de
existirem, numa espécie de quadro das “possíveis ligações” e dos “possíveis corpos
resultantes dessas ligações". Aos nossos olhos, isso não é mais surpreendente do que
o aparecimento do gelo quando a água se esfria. Na Terra e, provavelmente, em muitos
outros planetas galácticos e extragalácticos, existem hoje milhões de compostos quí
micos e, também, milhões de espécies vivas cuja estrutura, segundo os geneticistas, é
uma espécie de formação molecular ou de cristal aperiódico.5 Essas espécies não se
organizam em quadros tão regulares e tão bem preenchidos quanto o quadro de Men-
deleíev6 ou o quadro dos carburetos saturados. Acontece que as espécies orgânicas,
segundo a genética molecular, se formam a partir das espécies químicas. Sendo esse
processo aparentemente automático, logo a "informação” dessas espécies orgânicas
estava então virtualmente contida nas partículas da estrela e, a seguir, nas moléculas
do planeta e nos seus tipos de ligações, assim como podemos elaborar todas as mon
tagens possíveis a partir de um jogo de construção, ou assim como todas as possíveis
jogadas de xadrez podem virtualmente ser calculadas por um computador, ao qual fos
se dado o tempo necessário - um tempo astronômico, apesar da rapidez da máquina -
para calculá-las.
5. Um cristal normalmente d periódico, isto é, do tipo: abc abc. Schiodinger pressentira que a repro
dução dos organismos devia basear-se na reprodução de moléculas ordenadas de um modo não-repe-
titivo, como as letras de uma mensagem. (Nota de 1977.)
6. Classificação periódica dos elementos químicos, estabelecida em 1879 pelo químico russo Men-
deleTev (1834-1907). MendeleTev tivera a idéia de deixar neste quadro alguns compartimentos vazios
que deviam corresponder a certos oorpos desconhecidos cujas propriedades químicas poderiam ser
previstas. As descobertas do gálio, do escândio e do germânio logo vieram confirmar essa hipótese.
(Nota de 1977.)
71
Segundo a genética molecular, é um fato esperado ver os organismos se forma
rem a partir de um “caldo primordial", num planeta que levou consigo os elementos
químicos desse “ caldo” - assim como é um falo esperado o aparecimento dos com
postos ferro sos e dos sicaAos, ou o ascender de um fósforo por fricção.
O acaso desempenha algum papel no detalhe histórico do surgimento das formas
vivas, como no detalhe da formação das moléculas complexas ou no detalhe do acen
der de um fósforo. Mas trata-se de um papel inteiramente subordinado.
As ligações markovlanas
Uma cadeia de Markov é uma seqüência semifortuita: os elementos são escolhidos ao acaso,
oomo no jogo de cara ou coroa, mas com uma probabilidade definida de fransiçâo de um elemento para
outro. Se estabelecermos, por exemplo, que, depois de cara, coroa terá duas chances de aparecerem
cada três, e não uma em cada duas, e que, depois de coroa, cara terá uma chance em cada três, tere
mos então uma cadeia de Markov elementar. A ligação markoviana pode ser feita de modo a se achar
dependente, não apenas do sorteio anterior, mas dos dois ou trôs sorteios anteriores. Independente
mente do significado, a sucessão das letras numa mensagem inteligível e num dado idioma pode ser
considerada oonfonne a uma cadeia de Markov. Em francés, a legra q é sempre seguida poru; em in
glês, t é seguido por h em mais de cinqüenta por cento dos casos. Em francés, depois de um /, a proba
bilidade de se ter um u é bastante reduzida (existem apenas algumas palavras: sciure, reliure, diume); o
h é precedido por c em quase a metade dos casos; o s é de preferência, seguido por t quando há um e
antes do s, sendo que Isso nunca acontece quando há uma consoante antes do s.
O autômato escritor, diante de uma máquina não “seqüenciada" de princípio markoviano, come
ça a produzir primeiro: w l - l d q v h r n m j x h i d ? - z e .
Em seguida, se o teclado foi montado de modo a levar em conta as ligações prováveis, em
francês, com a letra anterior, pode-se obter alguma coisa desse tipo:
agüe po paurer le sous Igelique.
Depois, levando-se em conta as seqüências prováveis com as três letras anteriores [em
francês], teremos algo como:
les net Pourra ten danges leurs organiements, et ent fait
Ou, em Inglês:
in no ist lat why eracüct froure birs grocid ponde name of demonstraturos ofthe Reptagin is.
Esse “ Reptagin” ô quase digno do Jabberwocky de Lewis Carroll,7 observa G. A. Miller, que
fomeoeu o exemplo que apresentamos.
Entretanto, segundo os Gnósticos, ô pouco provável que o dinossauro tenha nascido de umjogo
de azar desse tipo, apesar da semelhança formal que existe entre uma montagem markoviana numa
máquina de escrever e o comportamento das moléculas pré-vitais replicativas capazes de reconhecer-
se entre si pelo processo de encadeamento, e de formar complexos náo-covale rites.
Podemos, por último, introduzir na máquina de escrever ligações de ordem superior segundo as
seqüências prováveis das palavras e seguido certas regras de sintaxe. Podemos também programar
0. Exemplo: ”We are going Io see him is not corred to chuckle budly and depart from home... [Va
mos vé-lo náo 6 correto rir por entre os dentes oomo criança e sair de casa...]
9. Exemplo: Bulletin de versement tout mon sang et l'intelligence grats je ne veux ríen fichez-moi la
paix ni crier ni me taire ni chimique vulgarité de 1‘absolu..
["Ficha de depósito todo meu sangue e a inteligência grátis não quero nada deixem-me em paz nem
gritar nem caiar nem química vulgaridade do absoluto.."] (Tristan Tzara).
74
Primeiro caso: O autômato bate ao acaso sobre um teclado, sem nenhuma co
nexão markoviana. Mas, atrás dele está um homem querendo compor uma mensagem
inteligível, cuja idéia ele já tem, visto que ele a formulou em seu cérebro. A mensagem
pode, por exemplo, ser a seguinte: “No princípio, era a subjetividade cósmica." Ou seja,
uns cinqüenta sinais e espaços em branco. Se o homem aguardar, sem interferir, que o
autômato consiga compor essa mensagem de uma só vez, ele terá de aguardar mais
de mil bilhões de séculos (ou seja, muito mais do que a presumível duração do cosm o).
Mas, se ele escolher uma após outra as letras certas, eliminando (mental ou fisicam en
te) as erradas, poderá ir quase tão rápido como se ele fosse bater diretamente sua
mensagem. Há oitenta e quatro sinais. Podemos supor que o autômato dá uma batida
no acaso a cada segundo e pode, portanto, bater em média uma letra certa em dois mi
nutos. A mensagem poderá então ser elaborada em menos de duas horas.
Nesse caso, a existência e o papel do Escolhedor tomam-se evidentes. Muito
superficialmente, o Autômato é que é ativo (ele toma a iniciativa da batida), e o Esco
lhedor é que é passivo - ou negativamente ativo (ele aguarda as letras certas e limita
se a eliminar as erradas). De um ponto de vista menos superficial, é óbvio que tudo o
que existe de mais positivo e de positivamente ativo nesta história é devido ao Esco
lhedor.
Segundo caso: O Escolhedor pode, também, tentar eliminar a si mesmo progres
sivamente, tornar-se cada vez menos indispensável, aplicando ao Autônomo escritor
limitações e conexões markovianas tiradas de estatísticas entre as seqüências das le
tras e palavras no idioma utilizado. Ele se afasta e aguarda. O Autômato fará, então,
num tempo muito breve, uma frase que terá, em inglês ou em francês, a aparência de
uma frase, para um leitor muito distraído. Mas será tão difícil como no primeiro caso ele
conseguir fazer a frase inteligível que o Escolhedor tinha em mente. E, além do mais, se
o Escolhedor voltar e tentar escolher entre as produções do Autômato, ao qual foram
aplicadas limitações markovianas, ele não poderá ser tão rápido em suas escolhas
como o seria com o Autômato batendo ao acaso letras desconexas. Ele será impedido
ou arrastado, sem querer, pelas montagens auxiliares.
Porém, em ambos os casos, a tarefa acaba sempre sendo concluída, não pelo
acaso sozinho - o qual não poderia fazer nada - , mas pela consciência que escolhe,
que elimina ou conserva. A única diferença é que, no segundo caso, a consciência es
colhe conexões de acordo com sua experiência prévia do inglês ou do francês, e acaba
fazendo as vezes das mesmas, limitando-se em suas possíveis escolhas atuais. A
consciência poderá achar vantajoso acrescentar ou diminuir o número de conexões
canalizadoras, conforme a natureza da sua tarefa. Se ela se contenta com um resulta
do aproximativo, as conexões são vantajosas. Mas se ela deseja realizações precisas
de alguma idéia prévia, nesse caso, ela precisaria de um máximo de desconexão.
Como se sabe, imprimia-se muito antes de Gutenberg. Sua invenção foi a de
dessolidarizar os sinais. O tipógrafo vai muito mais rápido pegando as letras em seus
respectivos compartimentos do que procurando palavras ou seqüências já prontas.
Mas, ainda é preciso uma consciência captadora, seja o acaso puro ou canalizado de
antemão por uma consciência que escolheu montagens markovianas, em vez de esco
lher tiragens totalmente aleatórias. A consciência poderá estar momentaneamente au
sente se ela montou captadores automáticos que a substituem: armadilhas, composito
res automáticos, captadores de flutuações, canalizações, etc., que podem funcionar
75
serr e la . Mas ela teve de estar presente para escolher o tipo de funcionamento e o “jo
go" aleatório no funcionamento em si.
76
tempo, para sua criação, leis universais, montagens gerais, por um lado e, por outro,
acasos ínfimos, históricos e individuais. Por que razão Deus iria trapacear, montando
aparentes jogos de azar para depois alterar esse azar, fazendo por exemplo os cro
mossomos x y escolherem, na base de cara ou coroa, menino ou menina, e depois al
terando esse resultado para fazer nascer um menino desejado numa familia de que ele
fosse cuidar em particular? Os fatos levam, antes, a acreditar que a Consciência pri
mordial utiliza o método markoviano de invenção, sem recuperações falsificadas, dei
xando a natureza falar seu próprio jargão, pelo menos dentro de amplos setores.
Isso é particularmente marcante nas formas vegetais. Um pinheiro, uma bétula,
um plátano e um salgueiro formam uma cadeia de Markov completa. Conforme a espé
cie, cada ramo cresce segundo uma probabilidade definida de subir ou de descer, de bi
furcar ou de crescer, única e retilínea. Cada espécie tem seu próprio jeito, seu próprio
estilo, dirigido pelas montagens materialmente inscritas em seus genes ou fixadas em
sua memória. As mutações genéticas eventuais não modificam diretamente sua forma,
mas modificam as montagens que levam à forma, e as próprias mutações são marko-
vianas, no sentido que elas são ao mesmo tempo livres (ou probabilísticas), canaliza
das, e não simples mutações indefinidas.
Os animais são menos markovianos, exceto em seus órgãos ornamentais. Estão
mais estritamente sujeitos ao sentido (utilitário) de seus órgãos vitais. É o conjunto dos
seres vivos que tem um jeito markoviano - daí a comparação natural com a Árvore da
Vida, ou com o caráter “piramidalMde cada espécie.
O mesmo ocorre com as produções e obras dos seres vivos, principalmente com
os idiomas. O inglôs não foi criado a partir de um pseudo-inglês fabricado por máquinas
aleatórias, e sim, criou a si próprio através de semi-automatismos conscientes (a pala
vra importante, aqui, é “conscientes"). Se podemos fazer um pseudo-inglês em cadeia
de Markov, é porque o inglês, como todos os idiomas, é parcialmente markoviano, ao
mesmo tempo em que 6 estruturado unitariamente numa consciência improvisadora.
Os hábitos fonéticos e semânticos predominantes nos seres falantes, suas montagens
psíquicas e biológicas, suas escolhas habituais conferem a cada idioma uma carac
terística que pode ser reconhecida de longe, como a silhueta de um pinheiro ou de uma
bétula. Um desenhista consegue imaginar facilmente um salgueiro ou uma bétula, fa
zendo atuar livremente - mas conforme suas “montagens” habituais - o tipo salgueiro
ou o tipo bétula. Um computador faria o mesmo, e poderia fabricar também ornatos do
tipo maia ou asteca - com a condição de que um engenheiro tenha analisado as
seqüências prováveis desses ornatos, e tenha programado o computador de acordo
com essas seqüências. Poderia também fabricar histórias, contos épicos, seqüências
dramáticas ou mitológicas, arquiteturas barrocas ou românticas, e até mesmo vegetais
fantásticos - enfim, toda uma natureza e toda uma cultura pelo seu lado avesso, vazia
de significado e sem vida, parecida com a natureza viva e consciente, da qual teria em
prestado, tomando-os mecânicos, seus processos.
77
Capítulo VIII
OS ESCOLHEDORES INCORPORADOS
No teste clássico que consiste em “ achar o intruso”, por exempla ipê, pinho, plátano, trigo, co
mo no teste que consiste em “ preencher um espaço em branco", ó indispensável: a) perceber, alavés
dos elementos de hífonreçAo apresentados, qual o tema, a Idéia, a relação generativa; b) a partir do
tBma, descer novamente para as Informações fornecidas a fim de completá-las, ou retificá-las.
79
D ú v id a s podem ocorrer com freqüência, ás vezes impossíveis de resolver.
S e m p re será possível, teoricamente, atribuir um tema diferente daquele que nos parece ser o
tema n a tu ra l É arriscado corrigir um texto que oontóm erros (embora a hesáaçáo multas vezes náo seja
permitida.) quando não há contexto suficiente com superabundânda de Indícios (redundâncias). O equí
voco das correções justamente expMca os muHoe erros de reprodução, os quais, ao se acumularem, ta-
zem as le n ta s evoluçâes das espécies vivas e das diferentes cukures. Por “reprodução”, é preciso en
tender u m a reprodução consciente, e não um simples decalque materiaL
O b tootoo matriciais mullas vezes sáo equípeos. Como também os testes de “achar o inkuso” .
■ □ O □ □
T o d a s as figures acima são “ inüusas", até mesmo o pequeno quadrado oco de traços cheios, o
único a apresentar-se sempre como a maioria: pequeno, oco, quadrado, de traços cheios.
9 O
N A o, o intruso náo é a menina, é o triângulo, a única figura masculina.
E a q u i temos um teste-matiz equívoco:
a b ab
c d cd
ac bd ?
acbd ou abcd ?
De qualquer modo, 6 inútil imaginar que tudo pode ser explicado por meio do úni
co plano do espaço, e que podemos dispensar a dualidade espaço-transespaço. O cé
rebro vivo é “ suporte mágico”, em contraste com os suportes materiais: papel, ar, fio
elétrico, pois ele estâ em relação, em estado de tensão bipolar, com a região do tran-
sespacial; ele 6 uma superfície absoluta unitária (sem nenhum ponto de supervisão ex
terior), ao mesmo tempo em que é uma superfície “material” onde os elementos de in
formação podem projetar-se como se fosse sobre uma tela.
Esta dualidade superfície m aterial = superffcie-em-ressonância-com -a-região-
dos-tem as-significativos, desempenha o mesmo papel que a dualidade Autômato escri
tor teclando ao acaso e homem atrás dele escolhendo as boas letras.
Se o homem é um poeta original e escreve diretamente sua mensagem poética,
ele se desdobra. Seu cérebro, como máquina nervosa com memórias semimateriais e
de funcionamento sem ¡-automático, fornece-lhe materiais num fluxo verbal semi-orde-
nado. Mas, como superfície absoluta relacionada com a região dos temas e das idéias,
ele faz uma escolha entre esses materiais (procurando, se assim o exigir a moda, dei
80
xar bastante desordem e, até mesmo, aumentá-la, para dar a im pressão da vida - mais
expressiva do que insipidamente significante).
O cérebro vivo é "suporte mágico” das informações m aterializadas que ele rece
be porque realiza, sob uma forma mais sutil, a dualidade “ consciência escolhedora e
autômato teclando ao acaso” . Ele é superfície, ou domínio, ou tela material no espaço
mas, pela sua unidade dominial absoluta, está em ressonância com a “ região" transes-
pacial dos temas significativos. Um homem, seja ele poeta ou não, está sempre em diá
logo consigo mesmo. Ele se faz perguntas: “O que isto significa? Com o isso pode ser
feito?” Ele se informa ativamente. Ele se faz perguntas e o faz sobre todas as coisas.
Ele “se pergunta se...". E esse diálogo é um vaivém contínuo entre o espaço e o sobre-
espaço, entre o significado e a ordem ou a desordem material.
O cérebro vivo é um conversor de dupla direção: dos temas em figuras e das fi
guras em temas. Assim como um dínamo converte o movimento em corrente e a cor
rente em movimento, o cérebro converte a informação tematizada em informação estru
turada, e inversamente.
O tema das palavras pronunciadas ou ouvidas, que opõe-se às palavras realiza
das (transformáveis por máquina em corrente modulada), ó uma forma "potencial" de
informação materializada. Representa, relativamente à informação que interessa a um
engenheiro das Comunicações, uma quase-informação, invisível, que ele não pode ob
servar. Mas, é evidente que não se trata de uma não-informação, ou de uma desinfor
mação ou degradação de informação já que, segundo o princípio de Shannon, a desin
formação por rufdo-de-fundo não se converte por si só em informação, ao passo que a
informação-sob-fomna-temática-ou-potencial acaba reconvertendo-se (através do cére
bro e do organismo) em informação estruturada, ou reconstituindo a estrutura, mesmo
que esta se encontre um tanto deteriorada.
Na ordem da vida em geral (e não mais apenas da vida cerebral consciente), é
impossível alguém confundir uma informação potencial, temática, com uma desinfor
mação. Um ovo de galinha ou uma galinha embrionária não pode ser confundida com
uma galinha-que-se-tornou-cadáver-de-galinha, por decomposição. O ovo reconstitui
uma galinha viva, com a ajuda do memento genético. A galinha morta não ressuscita
mais.
A informação, no sentido habitual da palavra, é dupla, ao mesmo tempo espacial
e transespacial, e a análise do engenheiro ou do químico biólogo é que é o artifício. O
significado não é nenhum fantasma invadindo a estrutura espacial; é um constituinte
ativo essencial. Falar em conversor “mágico" ou “feérico", como os Gnósticos gostam
de dizer, fazendo alusão ao jogo de xadrez de Lewis Carroll (que inventara regras e
peças novas), é, da parte deles, uma simples brincadeira provocadora. Pois, na verda
de, é toda informação, e toda forma auto-subsistente - portanto, toda a natureza quan
do não a vemos pelo seu avesso como o faz o douto engenheiro- que é “mágica” ou
“feérica” . A informação mecânica é apenas uma informação mutilada, uma perna
mecânica que seria confundida com um ser que anda.
81
Capítulo IX
Uma consciência, ao fazer sua escolha segundo determinado tema, não pode es
tar totalmente ausente do organismo em formação, para só aparecer depois da consti
tuição - supostamente sem nenhuma temática consciente - do cérebro. Seria como
admitir que um rio seco é capaz de transbordar e inundar as planícies vizinhas, fertili
zando-as. A consciência cerebral criadora não pode nascer num organismo que, por
sua vez, fosse derivado de algum funcionamento mecânico cego e que elaborasse,
sem o saber e de modo não-intekgente, algum órgão capaz de inventar.
Capítulo X
84
tentação e consolidação que fixam esses padrões de acomodação nos mecanismos
genéticos (como as calosidades que aparecem nas partes da pele onde a avestruz se
acocora, onde o javali africano “se ajoelha" para escavar; ou como a curvatura da re
gião cervical da foca, facilitando o nado de cabeça erguida).
As iniciativas de comportamento sempre desempenharam um papel fundamental
na evolução. Os peixes dipneustas rastejaram sobre a terra firme, levando assim ao
aparecimento dos anfíbios. Certos insetívoros primeiro pularam, depois planaram e por
fim voaram. Certos mamíferos terrestres começaram a alimentar-se de peixes e a mer
gulhar. Inúmeras espécies preferiram parasitar outras espécies. Pré-homens acostu
maram-se à marcha bípede, utilizaram sua laringe para emitir sinais vocais. As mu
tações surgiram a partir daí. E, não foi o meio, como molde côncavo, que desempenhou
a função de "programa” , regulador e captador das mutações fortuitas; foi - admitem os
genetícistas - o novo comportamento escolhido.
Mas, assim, voltamos à situação normal da Consciência que escolhe os acasos,
da Consciência que controla automatismos subordinados. É fácil entender que as ex
plicações pela seleção natural sejam tantas vezes calcadas sobre as explicações pela
divina Providência, e não exijam muito mais esforço dos biólogos para a interpretação
das finalidades de fato constatadas. É fácil entender que se possa substituir, em todas
as frases, "a Providência” por “a Seleção" (ou inversamente). O esquema dos dois ti
pos de explicação é o mesmo: uma Consciência dominial e tematizante, que inventa di
retamente, ou que controla e utiliza acasos e mecanismos subordinados. Em ambos os
casos, há sempre uma Consciência que antecipa e escolhe, tenha ela ou não de espe
rar pacientemente mutações consolidantes.
2. Lamarckismo: Teoria proposta por Lamarck (1744-1819), criador do transformismo, para explicar
a evolução; baseava-se em duas regras, que não resistiram à experiência: a regra do uso e do nSo-uso
(a necessidade cna o órgão, etc.), e a regra da hereditariedade dos caracteres adquiridos. (Nota de
1977.)
85
s ámente, mas deve aguardar, como o Escolhedor atrás do Autômato, os felizes acasos
d«sse Autômato interno que é o sistema genético, em vez de “escrever” diretamente no
e spaço.
O Seletor ativo pode ser uma consdéncia distinta da consdénda do organismo envolvido. Exis-
tsm , ocmo sabemos, seleções desse tipo na natureza, antes do aparedmento do criador humano. As
lo re s s s u a s lormas muitas vezes curiosas equase>signiflcanleslflm sido selecionadas pelos insetos e
p o r seu campo visual ou olfativa Os ornamentos sexuais tém sido selecionados pelo campo visual dos
radMduos do sexo oposto.
O temaUsmo seletivo encontra-se, entretanto, na makxia das vezes, no próprio organismo, onde
• le pode atuar em vários níveis: no nfvel de um comportamento geral escolhido pelo organismo adulto
(escoiha do alimento, do terreno ou da técnica de caça, da postura habitual, do modo de locomoção);
n o nfvel do organismo jovem ou larval: no nfvel da embriogónese e dos prooessoe de formação.
Este último nível é, provavelmente, o mais importante. Con efeito3 existem pelo menos dois tipos
d istintos de fd aptwgfo anatómica, que podemos denominar tipo A e Upo B. O tipo B corresponde às
adaptações que podem ser precedidas por usos comportamentais: modo de articulação dos ossos lon
gos, disposição contarme as pressflos e tensões das trabéculas ósseas, espessamentos locais da epi
dem ia, etc. Mas o Upo A é multo mais Importante (por exemplo: as bolsas de arque tomammais leves
o s ossos dos pássaros, a transparência das células que formam a córnea, a modificação das células
epidérmicas que as faz secretar o suor, etc.). Essas adaptações tipo A, ó Impossível concebó- las como
a continuação de um comportamento geral Inicialmente improvisado. Não é de tanto olhar afravés de
urna epiderme opaca ou ligeiramente translúcida que essaepiderme pode tomar-se mais transparente.
Nlada tez su por que qualquer tentativa de vôo tenha tido por efeito Introduzir as bolsas de ar nos ossos.
Aparentem ente, a explicação pelas mutações ao acaso, conservadas por seleção cega, parece
prevalecer. Porém, os fatos da embriogénese apontam com toda a evidência para temas formativos do
minando o jogo dos instrumentos químicos; apontam para "comportamentos de formação” , paralelos
aos oomportamentos adultos, porém mais fundamental^ mais próximos da oonsaénda orgánica matri
cia l, estruturando seu domínio de modo inteligente, como uma “ palavra cruzada" que preenchesse os
seus próprios espaços. A futura oómea toma-se transparente quando em contato com a bolsa ótica em-
orionária (a futura retina), através de aigum estímulo, chamada ou evocação emanada dessa bolsa para
que a córnea se tome transparente. Essa chamada é uma mensagem química, assim oomo a mensa
gem telefônica 6 eléWca. Mas trata-se de uma verdadeira mensagem, portadora de significado para um
informado que entende. Sabe-se que urna oómea transparente pode ser induzida na epiderme comum
se urna bolsa ótica (a pré-rettna) for colocada em contato com a epiderme, seja pelo experimentador ou
p or algum acidente no desenvolvimento, em fase precoce. A epiderme é "competente" - como dizem os
embriologistas, usando urna metáfora que na verdade não o é - para receber e entender as mensagens
do tecido pré-retínlano. Sem essa competénda, o vefculo químico da mensagem nada é - assim como
as palavras da mensagem telefónica nada são para um surdo ou para um homem que sofre de surdez
verbal.
Esses interajustas através de mensagens - que colocam os olhos bem diante das órbitas - estáo
por sua vez relacionados com o fundo do domínio de consdénda primário orgánico, asskn como cada
canto da palavra cruzada temática está relacionada com o fundo do conjunto. Se assim náo fosse, essa
competénda da córnea de tomar-se transparente, assim como náo poderia justificar-se, na vida do
adulto, pelo simples esforço de olhar, náo poderla tampouco ser explicada pelos únicos aperfeiçoamen
tos e interajustes secundários. O tematismo do desenvolvimento orgánico, a exemplo do comportamen
to consciente nas adaptações do tipo B, é distribuido durante o desenvolvimento de modo que cada es
boço, urna vez determinado (no sentido embriológico da palavra, isto é, “ uma vez orientado para...” ), é
semelhante a urna matriz dentro da matriz geral, que vai se completando segundo seu próprio significa
do numa independência provisória ou definitiva, corrigida por mensagem química de ajuste. Assim co-
3. Elta distinçáo foi salientada por P. B. Medawar em: “Problems of Adaptabon” {New Biotogy,
1951,11).
86
mo um projeto idealizado em comum, e depois distribuído a cada um dos agentes da execução, deve
ser aperfeiçoado através de inúmeros telefonemas. Fatos análogos aparecem também nas induções
recíprocas.4
Atribuir tudo ao simples acaso de mutações quaisquer, no caso das adaptações do tipo A, é ain
da mais inverossímil do que fazê-lo em relação às adaptações do tipo B pois, neste último caso, ainda é
possível aleyar a escolha, pelo animal, de um comportamento geral que pudesse canalizar as mu
tações. Se o organismo em formação não “visse" a si mesmo, na sua consciência primária, ele não po
deria fabricar para si mesmo olhos a fim de adaptar essa autovisão à visão (sensorial e cerebral) do
mundo exterior.
4. Sobre as quais Etienne Wott justamente insistiu: os membros òo embrião de galinha desenvol
vem-se sob a influência indutora recíproca do mesobiasto do broto do membro e do epiblasto que o re
veste. (Nota de 1977.)
87
de ríanos denominar adaptações do tipo C, e que constituem todas as técnicas exter
nas, ferram entas e máquinas mediante as quais a evolução biológica se prolonga em
evolução cultural. Os instintos animais já utilizam toda urna técnica externa: o uso de
materiais p a ra a construção dos ninhos, para delimitar o território, ou ainda o caso de
um pintassilgo-verde das flhas Havaí, que usa espinhos de cacto em lugar do próprio
bico para caçar insetos (ao passo que seus congéneres das espécies vizinhas já pos
suem um b ic o comprido anatomicamente adaptado). No homem, o cérebro é uma área
orgânica q u e permanece indefinidamente no estado de esboço embrionário, de modo a
poder reproduzir, sem envolver-se organicamente, órgãos externos, ferramentas e má
quinas, ao passo que os demais esboços embrionários acabam diferenciando-se, irre-
versr/elm ente, no próprio lugar onde se encontram, em órgãos internos. O fato de o es
boço ca rd ía co tomar-se coração, ou de o esboço nervoso tomar-se cérebro não. repre
senta um fenômeno diferente daquele mediante o qual o cérebro adulto se torna, por
sua vez, u m a espécie de esboço para a realização, em técnica extema, de bombas in-
dustrais ou de máquinas de calcular- de acordo com o estado já existente dessa téc
nica na cultura humana, assim como a embriogenia dos órgãos e dos aparelhos orgâni
cos se produz de acordo com o estado da técnica interna, de acordo com a fase da
“cultura” orgânica.
Não fa z nenhum sentido tentar procurar alguma relação direta entre determinada
mutação desse molde para enzimas - que o g e n e -, entre alguma nova forma molecu
lar e algum comportamento instintivo adaptado a um circuito externo. Que alguma mu
tação genética tenha alongado o bico de uma espécie de pintassilgo, é um fato con
cebível. M as isso não significa que ela tenha provocado em seu cérebro a idéia de
usar, em lugar do bico, um espinho (cujo uso teria antes, por efeito, interromper as mu
tações anatômicas tomadas inúteis, assim como a técnica humana dispensa o homem
de mutações anatômicas e, em primeiro lugar, de acomodamentos fisiológicos).
É falar e náo dizer nada, tentar associar a uma série de mutações um comporta
mento instintivo complexo, de construção ou de comunicação, no qual o animal deve
reconhecer determinadas situações, ser alertado por sinais-estímulos que voltam a
despertar sua atividade no momento certo. Qual o gene resultado de mutação, qual a
forma molecular génica poderia explicar o fato de uma térmite se pôr a construir um pi
lar quando cada pequeno torrão de terra atingiu certa densidade crítica? Ou o fato de
uma abelha usar uma dança agitada para indicar às suas congéneres a direção de al
guma provisão de alimento em relação à posição do Sol, levando em conta também a
hora? E, se o mutacionismo é uma pseudo-explicação para o instinto, somos levados a
pensar que ele também poderia ser insuficiente para explicar as formas anatômicas: o
ferrão da abelha e não apenas a sua Mlinguagemn; o bico dos pintassilgos e não apenas
o uso de um espinho de cacto à guisa de bico.
Segundo a tese dos Gnósticos, se a evolução biológica pode ser “interiorizada” -
nas iniciativas instintivas, nas técnicas voluntárias, na cultura humana - , é porque ela
sempre foi “interior" - nas iniciativas dos instintos formativos, na técnica orgânica, na
Uculturan orgânica sob a forma de uma consciência primária.
Os Gnósticos se recusam a acreditar que o universo seja um Cego absoluto, ou
uma bengala de cego dirigindo um cego, primeiro inconsciente e que não vai para lugar
algum, até transfonmá-lo milagrosamente numa Consciência que se pusesse a querer ir
para algum lugar.
88
Capítulo XI
Dizer "Eu já estou morto” é pura loucura. Dizer ‘‘Eu ainda não morri” é enunciar
um antiparadoxo. A asserção se verifica por si mesma.
Mas os Gnósticos vão mais longe- mais uma vez seguindo a filigrana da ciência
mais positiva. Eles propõem a seguinte fórmula: “ ‘Eu’ ainda nunca morri, desde o
princípio do mundo”. Basta tomar o "eu” num sentido amplo, como sinônimo de “indivi-
dualidade-sujeito”. As duas células germinais de onde o “eu” se originou se fundiram
sem aniquilar-se, sendo cada uma resultado de uma bifurcação celular que, tampouco,
representou qualquer aniquilamento. A individualidade biológica de onde emergiu o meu
“eu” remonta sem interrupção, de geração em geração, às células vivas mais primiti
vas, e essas, por sua vez, às moléculas pré-vitais, às individualidades “físicas” que
subsistem no tempo pela continuidade semântica de sua atuação. Nenhuma consciên
cia que diz “eu”, nenhum neurônio cujas ligações manifestam essa consciência no es
paço, nenhuma célula de um ser vivo atual jamais morreu - nem mesmo aquela célula
epidérmica que se resseca e acaba destacando-se de minha pele. Nenhum ser vivo
atual jamais morreu. Todos remontam, como eu, ao princípio do mundo.
A probabilidade a p riori de uma tal sobrevivência por parte de uma célula viva
atual é incrivelmente baixa (muito mais baixa do que ganhar mil vezes em seguida na
loteria). Quantas das sementes formadas por aquela bétula, ou dos ovos formados por
aquele arenque, ou dos espermatozóides formados por aquele homem conseguirão de
senvolver-se até a fase adulta? E, qual seria a proporção dos sobreviventes-entre-os-
sobreviventes-anteriores, se levarmos em conta uma longa seqüência de gerações?
Por outro lado, porém, a continuidade vital-consciente, longe de ser precária e
frágil, é ao contrário essencialmente sólida, e deve essa solidez a todas as suas “mon
tagens” orgânicas ou mecânicas. Todos os mecanismos, todos os instrumentos fa
lham, param de funcionar; os mecanismos auxiliares antifalhas também param, por sua
vez, de funcionar. Somente vulgarizadores sem conhecimento ou cientificistas dogmá
1. Que noe seja permitido lembrar aos leitores franceses que, também sobre este ponto, já havíamos
sustentado teses análogas às dos Gnósticos americanos.
tico s conseguem acreditar que máquinas cibernéticas sejam capazes de automanu-
tenção, de auto-restauração e de auto-aperfeiçoamento, sem a supervisão humana. Só
a consciôncia-vida é absolutamente antifalha - e o demonstra, de fato, ao durar indefi
nidamente.
O que induz em erro é que a quase-totalidade dos seres vivos atuais, e de suas
células ou elementos constituintes vivos, está fadada a morrer dentro de alguns anos
ou de alguns minutos. Como o dizia um físico de Prínceton, um espermatozóide tem na
verdade pouquíssimas possibilidades de se tomar presidente dos Estados Unidos-
com o também tem pouquíssimas chances de se tomar um ser humano adulto, embora,
sem chegar a ser um homunculus, como os “espermatistas" acreditavam no século
X V III,2 ele possa virtualmente dizer “eu”.
Os cemitérios estão lotados. Como canta Omar Khayyam em meio às suas li-
bações, caminhamos sobre os cadáveres de antigos seres vivos. Milhões de espécies
desapareceram, e nem sequer temos seus esqueletos - ou suas conchas. Sim, porém
há milhões de espécies e bilhões de animais e homens que ainda subsistem. E é isso
que é preciso ver e entender, antes de entender - muito facilmente - a morte de antigos
seres vivos ainda mais numerosos, levados à morte pela precariedade de suas máqui
nas subordinadas.
E a vida consciente que dá sua resistência às máquinas, e é a fragilidade das
máquinas, e não a da vida, que provoca a precariedade - totalmente secundária - da
vida. Ao lado dos cemitérios humanos, temos os cemitérios de automóveis. Fora dos
cemitérios, outros homens vivem e outras máquinas rodam. Mas é evidente que, se
elas rodam, é porque homens vivos as construíram, “pensando-as”, e cuidam de sua
manutenção. Muitos homens são vítimas de acidentes de automóvel: os cemitérios de
automóveis são a causa de uma parte dos cemitérios dos homens. Mas não é porque
os homens são frágeis que os automóveis são frágeis. Ao contrário, é pelo fato de os
homens serem muito menos frágeis e, até mesmo, serem antiacaso, antifalha, antimor
te, que ainda existem automóveis.
E totalmente absurdo inverter as coisas e associar a subsistência dos homens e
dos organismos à subsistência mecânica, em alguma parte de seus corpos, de suas
máquinas internas: moléculas em estado de conservação, ou NDA. Bilhões de mãos ou
de olhos humanos transformam-se em pó nos cemitérios. Mas a môo, como tipo de
órgão vivo, subsiste e vem evoluindo desde os primatas, nossos ancestrais, e a partir
dos órgãos, de tipo diferente, dos quais deriva semánticamente - ao passo que as
obras que essa mesma mão produziu só subsistem, em seus ‘'descendentes" mecâni
cos, se continuarem a ser “pensadas" por seres vivos. É absurdo associar a sub
sistência da mão viva como “tipo" à subsistência da minha mão atual em sua qualidade
de tenaz muscular sólida. E é igualmente absurdo associar essa subsistência típica à
subsistência mecânica ou química de algumas moléculas nos cromossomos. Isto equi
vale a explicar o automobiiista pelo automóvel, por uma espécie de “automóvelinterno”
que o transportaria, sem nenhuma falha no motor, através do tempo, durante milhões de
anos, independentemente de sua vontade e sem ele saber disso.
90
As continuidades “ infladas” no tempo
92
C apítulo XII
95
aniquilaçào de pares
VJ/ ^
\ / 9 \
1
e -\ e+ / ^ e -\
criação de pares
tempo
1. ignora-se em que consiste a carga de uma partícula. Mas, ela pode ser positiva ou negativa, por
tanto análoga ao que podem ser “um objeto e sua imagem" em um espelho, ou “ um movimento e sua
imagem" em um filme projetado ao contrário. Os diagramas de Feynman esquematizam as transfor
mações das partículas em colisão e podem ser lidos nos dois sentidos. (Nota de 1977.)
2. Cf. R. Gouiran: Particules et accélérateurs, Hachette, 1967, p. 130: “ O verdadeiro fenômeno in
vertido, no tempo, da explosão de um nêutron que gira ao contrário seria aquele onde veríamos precipi
tar-se, um contra o outro, um próton, um elétron e um antinêutron, para criar um nêutron que girasse no
bom sentido."
96
rada no espaço-tempo, como se previsse que um físico fosse fazer uma experiência de
materialização ou de desmaterialização. O que seria um feito ainda mais improvável do
que o da fumaça acorrendo de todos os cantos do horizonte para entrar no buraco da
chaminé, ou o animal desviando-se de obstáculos que ele próprio náo percebe.
O mesmo pode ser dito da operação P (inversão por espelho espacial). Meu
quarto, visto num espelho, nada tem de absurdo. Mas se eu quiser fazer um desenho
seguindo a imagem do espelho, terei certa dificuldade devido aos meus hábitos psíqui
cos, isto é, devido às minhas melodias mnêmicas temporais. O que permite supor que,
na microfísica, a não-conservação da paridade (ou a conservação da imparidade) está
ligada, ela também, a uma espécie de hábito quase-psfquico das partículas envolvidas
(nas interações fracas com neutrino3). Por isso, um físico gnóstico propôs chamar o
neutrino de “mnêmico” .
A “ elasticidade” semântica
3. O neutrino 6 uma partícula emitida simultaneamente com o elétron durante a radioatividade beta.
(Nota de 1977.)
97
e s p a ç o , nelas mesmo e ao seu redor, mas ainda porque conservam e recolhem seu
p ró p rio passado, ao mesmo tempo em que inserem temas transespadais no espaço,
num a memória inventiva ou numa invenção auxiliada por memória.
Capítulo XIII
Talvez esteja aquí a chave de toda a filosofía dos Gnósticos. Para toda individua
lidade dominial, consciente e subsistindo no tempo, existem dois modos de ser infor
mado: por observação e por participação; observando os outros no espaço, graças aos
fótons, ou aos fónons, ou a outras partículas ou ondas que esses emitem ou reemitem,
e participando de temas transespaciais ou do seu próprio passado - o qual, lembra
mos, já que nenhum ser vivo jamais morreu, estende-se para muito além do nascimento
individual, remontando até o princípio da vida e do universo.
Ficamos informados sobre os outros observando-os, ou antes, observando seus
comportamentos manifestados, suas obras, olhando-os ou ouvindo-os, já que a telepa
tia ou a intuição simpática - presumindo-se que ela exista - não está cientificamente
comprovada. Informamo-nos sobre nós mesmos, não “consultando” a nossa própria
memória, ou observando a nossa memória, como se esse fosse algum registro ou livro
de imagens - como costuma-se dizer, às vezes, por metáfora - mas participando dos
nossos outros “eu” mnêmicos evocados pelo “eu" atual ou que se apoderam do “eu”
atual por sua própria iniciativa.
Náo se fala a própria língua materna consultando alguma gramática ou dicionário
interior, assim como um computador faria, fazendo passar certos circuitos, de acordo
com seus programas, por suas memórias magnéticas. Ao falar, "eu" sou “participado”
pelo francês ou pelo inglés que me informa, que faz de mim um "eu" misto, “possuído” ,
ao mesmo tempo ídeo-motor, e mnémico ou inventivo segundo temas geradores. Minha
língua materna me toma nas trajetórias que lhe são próprias, me inspira como um “ pon
to" íntimo, me assimila, depois de ter sido assimilada subconscientemente na minha
infância. A aprendizagem tardia de uma língua estrangeira (que começa com infor
mações objetivas) quase sempre acaba transformando-se, quando bem-sucedida, nu
ma quase-participação (que provavelmente se aproveita da prévia assimilação de uma
língua materna, já que as “crianças selvagens”, passada a época de assim ilação
lingüística, nunca mais aprendem a falar).
O instinto é manifestamente muito semelhante a uma língua materna, para o ani
mal. A única diferença é que o animal é participante de... (ou é participado por...) um ou
tro “eu” que guia, que não é um outro “eu” individual mas, sim, um “outro” supra-indivi-
dual, uma memória específica cujo poder informante não é percebido pelo animal, e que
99
náo é nenhum objeto para a sua consciência e, sim, um sujeito ativo dentro dele. Esse
"sujeito instintivo”, essa participação instintiva prolonga naturalmente a participação de
desenvolvimento. Os instintos de comportamento prolongam os instintos formativos, is
to ó, o ato de participar nos outros “ eu" mnêmicos, responsáveis pela embriogênese.
O anim al em desenvolvimento não é como uma peça fabricada, moldada numa
máquina automática de acordo com um gabarito preexistente no espaço. No princípio,
uma simples célula, depois um esboço ou domínio de esboços, ele se desenvolve e se
diferencia, assim como a consciência do adulto possuído pela “aura” de uma lembran
ça, se diferencia e passa do esboço mnêmico para a realização estruturada da
lembrança.
O organismo é “um desenvolver-se", assim como a consciência cerebral é “for
madora d e imagens", “memoriante” , “ falante” , na forma ativa, e não é nenhum recipien
te de imagens quase-materiais ou de “padrões’' já prontos de comportamento. Sua ati
vidade não é livre, já que, normalmente, a embriogênese repete a espécie. Não é livre,
mas náo é tampouco um-fundonamento-segundo-um-determinismo. A “determinação”
de que falam os embriologistas, quando querem dizer que um esboço está destinado a
uma certa diferenciação, não é “determinista” , apesar da etimologia da palavra. Mas
tampouco ó “livre". Estâ além dessa oposição convencional. A atividade formadora é
uma atividade possuída, participada. O esboço embrionário, primeiro sem orientação, e
depois determinado pela chegada de um indutor que desempenha o papel de evocador
mnêmico, é captado por um tema informante, por um “outro eu" biológico.
É um postulado náo verificado admitir uma única fonte de informação: um objeto
observado e conhecido. Podemos nos informar também “pela outra extremidade” , par
ticipando de um “segundo sujeito” , já informado- assim como, além da alimentação
normal para um organismo, existe a alimentação por sonda ou por injeção intravenosa.
Enquanto o conhecimento comum é informação trazida por um objeto, a participação é
informação trazida por um sujeito. Trata-se de uma telepatia interna. Além disso, en
quanto a observação se faz no espaço, do aqui para o aqui, a informação por partici
pação ocorre do transespacial para o espaço. Pois o “outro eu", mnêmico, biológico,
lingüístico, situa-se fora do espaço.
É sobre esse ponto que a Nova Gnose mais se afasta da ciência clássica. A
ciência positiva clássica não pode, é claro, desconhecer um fato tão importante como a
participação. Só que ela o disfarça, reduzindo-o ao simples funcionamento de uma es
trutura atual, de uma memória inscrita nas proteínas orgânicas ou cerebrais. Ela faz do
homem que se lembra, do animal que segue seu instinto, do organismo que se desen
volve, uma estrutura atual, que funciona no atual e faz passar simplesmente os circui
tos de efecção pelo desvio da “leitura” de algum estoque mnêmico semelhante ao de
uma fita magnética. Ou então, no caso do desenvolvimento embrionário, ela considera
o desenvolvimento como uma espécie de transcrição, em tradução ao pé da letra, das
informações inscritas nos genes. Ou seja, considera auxiliares mnemotécnicos como o
essencial da memória.
As contradições da memória-vestíglo
Participação e telepatia
101
Uma participação pura como a do tempo participando dele mesmo, do tempo pre
sente participando do tempo passado, não poderia tampouco conhecer-se como tal.
Essa participação pura se reaMza, entretanto, de modo aproximativo, no sonho - essa
memória desordenada, ou memória demasiado triunfante - no qual o “eu” atual ó cap-
lado pelos "eu* mnômicos e náo sabe que é captado, e também no instinto, onde o ser
ó
vivo náo sabe que ele se lembra. Na verdade, uma participação nunca pura a não ser
de modo aproximado. Ela nunca é um puro retomo. O presente sempre prevalece sufi
cientemente para enriquecer-se do passado, sem confundir-se completamente com o
passado: a desordem do sonho ou do instinto é sempre recuperada pela ordem.
Observáveis e participéveis
A ciência pretende conhecer apenas elementos “observáveis”, objetos que emi
tem ou refletem ondas diversas, ou que produzem efeitos que, por sua vez, podem ser
observados. Ela ignora os elementos “participáveis” , ou pretende reduzi-los a não se
rem, na realidade, mais que elementos observáveis. Daí as teorias como a da memória
estruturada nas proteínas cerebrais, ou a do desenvolvimento embrionário como fun
cionamento das informações genéticas. A ciência desconhece os participáveis porque
eles não estão no espaço. Por isso, está condenada a nunca entender as epigêneses
temáticas, as morfogêneses no sentido próprio da palavra, as inyençóes de formas, ou
a nunca entender as continuidades individualizadas, os seres capazes de participar do
seu próprio passado e de dizer virtualmente “eu". Tal desconhecimento é grave, e limita
o alcance do conhecimento científico. Pois são os participáveis, em si mesmos intêm
poras ou destemporalizados (na memória), que fazem do tempo algo mais do que um
tinción amento de estruturas espaciais, e dão um sentido (tomado, ao mesmo têmpo,
como direção - úme's arrow - e como significado - meamny - ) ao tempo.
Os participáveis são de três ou, talvez, de quatro espécies. Primeiro, os parti-
cpâveis da memória individual. Depois, os participáveis da memória biológica (instintos
específicos de formação ou de comportamento). Desses, devemos distinguir os parti
cipáveis culturais, que se assemelham a uma memória biológica, tais como os idiomas.
Finalmente, é natural considerarmos como participáveis os tipos e essências supra-in-
dividuais e supra-espec(ficos. Esses participáveis não mnémicos são intemporais e a-
espaciais, num sentido mais forte do que o intemporal mnémico, que conserva alguma
afinidade eletiva para certos “aqui-e-agora" - os participáveis da memória psicológica
sendo, inclusive, reservados para um único indivíduo, seguindo-o em toda parte em
suas viagens espaciais. Além disso, não trazem para o participado informações total
mente constituintes que ele só tivesse de atualizar, da mesma forma que um animal
atualiza o instinto específico, mas trazem apenas regras, normas que tomam a ação
possível ou impossível, válida ou náo, precária ou não.
Esses participáveis supra-individuais e supra-especlficos, é natural que os con
sideremos, por analogia, como pertencendo ao Domínio dos domínios, à “Consciência
universal" da qual todos os seres participam, ou ainda - para levarmos a analogia até a
uma metáfora semimítica - ao Passado universal, que é também o Futuro universal, a
um “ Eu" ou a um “Si” universais dos quais toda a atualidade do universo é o “aqui" e
“agora".
102
Os partlclpáveis e a filosofia religiosa
Enquanto que a ciência, até hoje (exceto nos últimos desenvolvimentos da física
das partículas e da cosmología) nunca admitiu a informação por participação, a filosofía
e, sobretudo, a teología, erudita ou popular, a aceitaram há muito tempo. Porém, infeliz
mente, sob urna forma mítica e em certos campos onde a participação, por mais real
que seja, é difícil de captar, ou então contestável por estar nos limites da sua esfera. E,
ao mesmo tempo, filosofía e teologia tôm desconhecido a participação justamente nos
campos onde ela ó certa e fácil de ser detectada, ou seja, na psicologia da memória e
do sonho, na biologia do desenvolvimento e na estrutura dos idiomas.
A participação já foi um tema filosófico banal. Basta lembrarmos o “ineísmo” , a
“visão em Deus", as teorías do Logos, do "Eu" transcendental, do Espirito absoluto,
etc. Ela tem sido, tambóm, um tema religioso por excelência: a inspiração profética (ou
inversamente, a possessão demoníaca), a graça, as vozes e os sonhos premonitórios
ou de mandamento.
Em todas as religióes esclarecidas, Oeus é, antes, um Participável do que um
Observável. Logo, é um Incognossível no sentido comum. Todas as experiências reli
giosas tradicionais são, em certo sentido, experiências psicológicas, transpostas miti
camente. O “outro eu" mnêmico, ou instintivo, ô ali interpretado como sendo Deus, ou o
Diabo, ou ainda o Demônio inspirador.
Mas podemos também - e nisso consiste toda a Nova G nose- considerar que a
experiência psicológica, biológica e lingüística da participação é, de fato, uma espécie
de revelação natural, de valor religioso. Assim como a teoria da seleção natural — do In
formador que escolhe atrás do Autômato — opõe-se apenas aparentemente à tese pro-
videncialista, assim também as "reduções" psicológicas da experiência religiosa, de
Hobbes a Feuerbach e a Freud, nfio são tão opostas quanto parece à fé do crente que
vê toda experiência psicológica onde intervém participáveis como uma experiência do
divino, uma experiência onde ele participa de Grandes Seres, ou do Grande Ser, de
grandes domínios, ou do Domínio supremo que nos é supra-ordenado.
103
A Gnose consiste em querer fazer com que os participáveis e a participação se
jam introduzidos, tanto na ciência como na filosofia religiosa, pelo portão principal, e não
pelo p o rtã o anexo de uma psicologia suspeita, ligeiramente cientifica e vagamente ocul
tista, p e lo portão principal da mcroflsica, da biologia do desenvolvimento, da psicologia
compreensiva, da lingüística não-pavioviana, a de B. L Whorf ou de N. Chomsky. Ela
consiste em mostrar que a cióncia tem revelado a participação, mas vendo-a somente
pelo s e u lado avesso.
Capítulo XIV
Os seres agem e, até mesmo, percebem (já que a percepç&o, como a ação, é
sempre temática e impregnada de significado) somente através de sua participação
num supra-universo - tesouro inobservável, mas participável à maneira de uma língua
materna. Não um tesouro constituído e, sim, constituinte, e também, em parte, consti-
tuível pelas ações individuais dos “falantes". Os lingüistas estabelecem uma distinção
entre o idioma e a palavra, entre a estrutura do idioma e os costumes atualizantes. O
estruturalismo tem usado muito essa distinção, bem como, de modo geral, as análises
dos lingüistas, em todos os campos, e não sem certos abusos. Os Gnósticos vão ain
da mais longe, já que eles generalizam a distinção “paiavra-idioma,,l chegando a aplicá-
la à cosmología. Mas fazem questão de salientar que a “língua cósmica" não é realmen
te uma língua, pois o universo “sensifica" sem “significar". Ele não se utiliza originaria
mente de sinais; ele manifesta sentidos. Existem gramáticas, dicionários, códigos para
os significados. Esses não existem, originariamente, para as manifestações de sentido.
A comparação com uma língua materna refere-se mais ainda a “materna" do que a
"língua".
Consideremos um organismo vivo complexo, não observado de fora, mas em
seu próprio “si-mesmo“ . Ele vive e mantém a sua forma no tempo. Seu comportamento
é dotado de sentido, ou temático, segundo intenções implícitas. Sua forma, elaborada
em sua fase embrionária e que ele mantém e repara, é ela mesma “dotada de sentido”.
Seus órgãos são “dotados de sentido" (o rim é um “filtro", o olho, um “vigia de fótons",
etc.). Ele vive em sua própria duraç&o, assim como um homem fala, forma frases, com
iniciativas, mas segundo um sistema específico, segundo uma língua “biológica” , in
temporal, estruturada (no sentido lingüístico da palavra) num supra-espaço, ou num su-
pra-espaço-tempo, n&o-observável mas participável. Seus atos e comportamentos se
guem ao mesmo tempo as normas dessa língua biológica e as circunstâncias atuais
sobre as quais ele procura informar-se mediante observação, percepção de sinais ou
de mensagens emanados dos outros seres. Através dessa participação, seu “eu” (vir
tual) é também um ueleH, ou antes, um “outro eu", executando frases-tipo da "língua
biológica”.
Mais uma vez, não devemos levar longe demais a comparação lingüística. Uma
língua onde os “falantes” não “significam” não é língua. O ser vivo encama, atualiza
105
significados ou temas válidos. Ele fala-a-sua-vida, muito mais fundamentalmente do que
ele significa, comunica, envia mensagens - o que certos seres vivos também conse
guem fazer, mas ocasionalmente. Ele fala-a-sua-vida com muito mais freqüência do
que fala da sua vida a outros seres vivos. Ele ouve sua própria melodia, sua própria pa
lavra; e le “sensifica" enfim, e só raramente significa. Ele é como o seu próprio cripto
grama ou, ainda, ele é como uma encarnação dessas línguas ameríndias onde os
“constituintes’’ estão reunidos como num composto químico, com “funções” no sentido
químico, combinando mutuamente, e onde podemos expressar temas do tipo “ação da
mão sobre um objeto que se dobra e resiste” , ou certos efeitos plásticos, unindo por
exemplo: “espécie de caibro" com “forma de haltere”. O ser vivo só excepcionalmente
informa os outros seres vivos através de mensagens conscientes. O que ele faz, an
tes, ¿ dar “informações de presença", sem dirigir-se a ninguém em particular, que ser
vem de alimento psíquico aos “informados", que sustentam e consertam seu organismo
psíquico (o que a linguagem humana também faz, mas numa função acessória.1)
Um morcego não voa como um pássaro ou como uma mosca. Sua “língua bioló
gica' materna é muito diferente. No entanto, todos esses animais voam de um modo
funcionalmente eficaz, assim como seres falantes conseguem expressar os mesmos
temas significadores, em seus respectivos idiomas, através de processos lingüísticos
bem diversos - e que chegam a modificar ligeiramente os temas, por influência “remon
tante". O “vôo" nfio é uma mensagem. 0 “típico” e a “adaptação funcional" em biologia
só vagamente correspondem ao “típico” e ao “funcional” dos lingüistas. As comuni
cações entre seres vivos - entre órgãos, entre indivíduos da mesma espécie, entre in
divíduos de espécies diferentes - consistem, na maioria das vezes, não em mensa
gens ou sinais e, sim, em sinais qufrnicos ou óticos com freqüência involuntários: as
sim, o tipo de vôo pode servir de sinal para o predador ou para o caçador.
1. Cf. Raymond Ruyer, Les N ourritures psyehiques, Paris, Ed. CaJmanrt-Lôvy, 1974, Coi. "Liberté
de l'e s p ftr dirigida por R. A rori. (Nota do e d ito r, 1977.)
106
O universo “sensificante” primordial não deixa de ser, entretanto, a condição de
vida dos seres excepcionais que, no universo, “ significam". A própria existência das
línguas humanas constitui, sozinha, a prova de que o universo não é um universo mate
rial, leito de átomos ou de combinações espaciais de átomos que, por milagre, se pu
sessem a talar- para não dizer nada.
Não haveria talantes, no sentido próprio da palavra, se não houvesse “ falantes"
no sentido mais geral, isto é, seres que encarnam e expressam significados. E não ha
veria “falantes”, nesse sentido geral, se não existisse uma língua materna universal.
Como o expressou multo bem B. L Whort, que teria sido um Gnóstico nâo tosse sua morte pre
matura, um mundo numeral - de hiperespaço de dimensão superior - aguarda ser descoberto por todas
as ciências sob o seu aspecto primordial: o dos domínios, das chaves estruturantes... Esse mundo
apresenta uma indiscutível afinidade com o complexo sistema da Ifngua, e engloba as matemáticas e a
música. Ele já foi pressentido na idéia dos "aspectae preensfveis” , de Whitehead, e no continuum da tí
sica relativista... Existe, na linguagem ou na sublinguagem mental, a premonição de um mundo desco
nhecido mais vasto no qual o aspecto físico representa apenas a superficie ou a e no qual, entre
tanto, nós estamos e ao qual pertencemos. Esse mundo tem um caráter serial ou hierárquico, com uma
sucessão de planos ou de níveis, manifestando-se cada um deles através de estruturas que contôm ou
tras estruturas, em “moflvos" (no sentido decorativo da palavra) contidos uns dentro dos outros: “ A pa
lavra é o que o homem tez de melhor. Mas, sem dúvida, Deus tenha entendido que o ato nível no qual
se situa um fenômeno tão organizado como esse foi de uma certa torma extorquido do universo".2
Lee Whort a quem nfio desagradava um pouco de provocação e que a lingüistica transformara
em teósofo, chega até mesmo a evocar, ao lado de Whitehead e da Ifeica relativista, o Tertium Organum
de Ouspensky. Ele também admirava muito Fabre d'Olivet® e sua Ifngus hebraica restaurada, bem co
mo suas análises do hebraico em filosotemas pslcollrtgúfsbcos - pelo menos sua tradução do Gênese
na “ língua dos reis", ou na "língua dos deuses”:
1. Pnmeiramente-em-princfpk), ele-cnou-EIohim, ELE-os-deuses, o Ser dos-seres, a ipseida-
de-dos-céus e a ipseidade-da-terra.
2. E-a-terra existia força-contngente-de-ser numa-torça-de-ser e-a-escuridão (torça com-
pressiva e endurecedora) estava-sobre-a-supe rífete do-abiamo (torça universal e con tin gen te de ser);
e-o-sopro d'ELE-os-deuses era generativamente movediço sobre-a-supertfcie-das-águas (passivida
de universal).
Obviamente, trata-se aqui de um hebraico “ bramanlzado”. Mas, se tentamx», como lingüista
científico, traduzir realmente de acordo com os esquemas classificadores da língua traduzida, de aoordo
com o segundo-plano mental aos falantes, uma língua multo diferente do Indo-europeu, com freqüência
chegaremos a eleitos do mesmo tipo. Assim, o Apache, por exemplo, para construir uma frase que, tra
duzida para a nossa língua (e numa tradução inflei) seria "é uma tonto que cone", o faz deste modo:
*Como água, a brancura se move para-baixo". Ou, em dialeto nootka: “ Ele convida peaso** para um
banquete” á expresso por uma só palavra: “ Ferver” , seguida de cinco sufixos, o que nos dá algo como:
“ Ferver, cujo resultado é comido pelos homens que ele tol convidar." Uma tradução fiel ficaria parecida
oom uma tradução de Fabre d’O ltvet
A admirável organização das formas características de cada Idioma não provém do círculo estrei
to da consaénda pessoal, a qual tem tão pouca consciência dessa quanto dos ralos cósmicos.
2. Benjamín Lee Whort Language, Thought and fíeattty. Traduzldo em Irancês sob o titulo: Linguis-
tique etanthropoiogie, Denoêi-Gonthéer, Paris, 1969 (ver principalmente p. 185 e sega.).
3. Faore d'Olivet (1766-1825), lamoso Muminlsta francés do século XVIU, também conheddo como
um precursor dos fédbres, com seu compêndio de poesias languedodanas: Le Troubadour, poésies
occilaniques du XHIe siède (1803). (/Vota de 1977.)
107
T udo acontece como se a mente individual que escolhe as palavras, mas que esqueceu os mo
d e lo s aos quais elu se reterem, estivesse sob o domínio de uma mente superior, muito mais intelectual,
para a qual os oonceilos de casa, de cama, de panela tossemmais ou menos estranhos, mas que con-
aeguisse manipuksistemase matemáticas axn urna fadUdadeenum nfvel tal que nenhum matemático
de noasas eecola*jarnabalcançou.4
Todos os sares interagem, estão ligados por interações em chave que os fazem
e x is tir e entrar no sistema universal (gravitaçâo, interdependência da inércia e do con
ju n to das massas, interdependência dos subsistemas: ligações eletromagnéticas, li
g a ç õ e s fortes ou fracas, ligações orgânicas). Todos os seres individualizados e domi-
niai8 “ sensificam". Muitos “assinalam” e agem conforme sinais. Alguns dentre eles
“ s ig n ific a m " e percebem sinais. Alguns dentre eles (os homens e os humanóides) falam
e enten d em uma linguagem.
Tudo é “ significante” na embriogénese, e os sinais químicos agem, não como
c a u s a s mecânicas, mas como orientadores do significado. A situação dos esboços
em brionários, de sua fase de diferenciação, só pode ser traduzida por frases abstratas.
Tudo acontece como se um esboço dissesse, ou dissesse a si mesmo: "Eu cefalizo"
ou "caudifico", “ Eu ventralizo”, ou “Estou fazendo uma parte dorsal", "Sou um esboço
de p a ta direita, ou esquerda, de pata anterior, ou posterior", “Ajeito-me em forma de
bolsa, de ranhura, de tubo", "Voume desdobrar”, “ vou fusionar".
Imaginemos que um cientista positivista quisesse ridicularizar e caricaturar essa
interpretação, sugerindo uma tradução do mesmo tipo para um aparelho mecânico, por
exem plo, para o funcionamento das rodas e engrenagens de uma bicicleta. “Tudo acon
tece — traduziria ele, ironicamente - como se a roda dissesse a si mesma: ‘Eu sou ro
da; logo, giro em tomo do meu eixo...’ ‘Eu sou engrenagem, ou roda dentada, logo, eu
e n g re n o .'" Ele apenas estaria salientando, sem querer, a diferença entre um funciona
m ento e um comportamento inteligível. Sua tradução nada acrescenta; é apenas um di
vertim ento verbal As rodas dentadas engrenam empurrando-se por processo de enca-
deamento. As rodas giram, sem que nada nelas sinta a necessidade de dizer "Estou
rodando” . Mas, para os comportamentos do embrião e de seus esboços, as palavras e
as frases abstratas são o modo descritivo obrigatório dos fatos. Como expressar em
linguagem puramente mecânica, ou química, que um esboço ocular tomar-se-á um
olho? E de que modo o esboço pode se diferenciar se, por ser ele um puro ajuntamento
de moléculas, nada sabe do sentido do que está fazendo? Um ovo de rã fecundado -
na chamada fase do “crescente anzento" - tem uma parte dorsal, cefálica, direita, an
tes mesmo de qualquer outra diferença observável dessas partes, “evocadas" a partir
do ponto fortuito de rompimento do espermatozóide. E mais, se perturbarmos suas dife
renciações precoces, o ovo terá a capacidade de se ajustar. Ele reconstituirá sua “fra
se formativa" completando-ade outro modo. Ele 6 igual ao inventor humano das rodas
e das engrenagens, que pode falar, e cuja ação inventiva pode “ser falada". Não é igual
à engrenagem em funcionamento, cujos movimentos não podem “ser falados", já que
resultam de uma estrutura já existente no espaço.
Estará o átomo mais próximo do embrião ou da roda dentada? Isto não teria sido
motivo de controvérsia antes de 1900. A resposta teria sido então: “da roda dentada".
4. Oo. d t, p. 201.
108
Mas sabemos hoje que o átomo náo funciona segundo uma estrutura já existente no
espaço. Ele “se faz" no espaço-tempo, o que, apesar de todas as diferenças, o torna
mais próximo do embrião do que da roda dentada.
110
Capítulo XV
AS INFORMAÇÕES NO ESPAÇO
E AS INFORMAÇÕES NO TEMPO
* “Onde estfio as neves de oufrom?” (do poema de Françote Villorc Bailado des Dames du Temps
Jadis). (N.T.)
111
O olho-rede
Esse homem quç passeia pela floresta, se estiver caminhando devagar, terá a
impressão de estar vendo as mesmas árvores, e quase os mesmos desenhos minu
ciosos de seus ramos e folhas. No entanto, segundo a teoria científica das condições
físicas da sensação visual, a cada deslocamento, por menor que seja, são outras on
das luminosas, outros fótons que penetram em seu olho; não são as mesmas formas
vistas sob um ângulo diferente. Podemos substituir o olho do homem que caminha por
uma câmara escura móvel. Em cada “ponto", se for de dia, há no espaço fótons sufi
cientes para fornecerem uma imagem complexa e precisa. O olho não está colocado na
extremidade de uma espécie de “vara de luz", tateando até o objeto. Ele é, antes, uma
espécie de rede, que encontra em toda parte, exceto na escuridão completa ou atrás de
um écran, desenhos informativos emanados dos objetos iuminados, e que ele só tem
de recolher. Em cada pònto do espaço, pode-se fotografar uma paisagem terrestre ou,
à noite, estrelas aos milhões. O desenho complexo dos circos lunares deve “existir”
como conjunto de fótons, em todos os pontos em volta da Lua, já que uma nave espa
cial, habitada ou não, pode fotografá-los em todo lugar. A nebulosa de Andrómeda, visí
vel a olho nu para quem tem vista boa, “existe” numa esfera cujo raio é de um milhão e
meio de anos-luz, e em cada milímetro cúbico dessa esfera. O espaço é um oceano de
informações onde podemos pescar, praticamente em toda parte, milhões de elementos
de informação.
O rádio e a televisão tôm mostrado de forma sensível para todos essa riqueza do
espaço, já que, em qualquer ponto do planeta, pode-se captar concertos e espetáculos.
Mas é preciso não esquecer que o olho é um captador exatamente do mesmo ti
po que um receptor de rádio ou televisão. Passeamos com os nossos oihos pelo espa
ço assim como passeamos com o nosso ràdio-transistor. A única diferença é que a
multiplicidade dos emissores ou reemissores luminosos - cada detalhe de cada um dos
corpos que nos cercam é um emissor distinto - faz com que a recepção luminosa con
vide a consciência a desenhar espontaneamente o mapa geográfico dos emissores, ao
passo que o ouvinte que passeia com o seu rádio-transistor ouve a música que sai do
seu rádio seletor de freqüências sem se preocupar, normalmente, com a localização da
emissora ou com o mapa geográfico das emissoras que podem ser captadas. Um rá
dio-transistor que não fosse seletivo no sentido comum da palavra, mas que fosse ca
paz de selecionar a direção das ondas e que captasse, não o concerto de uma emisso
ra, mas todos os fragmentos de concerto de todas as emissoras, “desenhando” assim
a localização dessas, seria um verdadeiro olho para a “paisagem” das emissoras de
rádio. É exatamente dessa forma que existe uma “ rádio-astronomia”, por radiotelesco
pios - que captam ondas mais longas do que as ondas visíveis, capazes de localizar
com exatidão as fontes emissoras e de desenhar um mapa do céu que se possa so
brepor ao mapa ótico da astronomia comum. Um radiotelescópio constitui, assim, a
prova de que é legítimo comparar o olho da pessoa que passeia com o seu rádio-tran-
sistor.
No teatro, a imagem de uma atriz pode ser captada em toda parte ao redor dela.
O desenho do seu sorriso, de seus olhos, dos cachos de seus cabelos, está em toda
parte, como um sistema de ondas ou de fótons, onde o olho de um espectador possa
captá-lo.
112
Numa exposição de pintura, os visitantes que passeiam olhando para os q u a
dros, passeando a “rede” de seus olhos a alguns metros de distância das cornijas,
captam imagens luminosas que se encontram, portanto, em toda parte do salão, já q u e
eles as vêem de todo lugar quando outros visitantes não impedem a visão. A atriz s ó
está viva no palco; suas múltiplas imagens não vivem (ou revivem tão-somente n a
consciência de cada espectador). No salão de exposição, porém, as imagens captá-
veis não existem menos do que na tela dos quadros. Elas existem até mesmo m uito
mais, já que a pintura é, antes, uma arte visual do que uma manipulação de pigmentos,
e já que o pintor "pensou" de antemão as imagens visuais do espectador.
Imaginemos, finalmente, que o salão de exposição comporta espelhos paralelos.
A riqueza do espaço em termos de informações físicas torna-se então vertiginosa: de
todas as partes, posso ver a multidão das formas e gestos indefinidamente repetidos.
Logo, é em toda parte que essas formas existem- existem fisicamente.
114
Na linguagem dos físicos relativistas, cada corpo ou corpúsculo descreve no es-
paço-tempo uma “linha de universo” . A física, clássica e relativista, não faz distinção
entre a linha de universo de uma caixa de fósforos e a de um ser vivo, de uma marione
te mecânica e de urna bailarina. No entanto, a dança da bailarina só é uma verdadeira
dança por ela estar ao mesmo tempo no presente (ela segue o ritmo da dança) e no in
temporal do tema da dança, do qual a bailarina continua participando (o que Ihe permite
participar dos movimentos observados de seus parceiros).
Uma bailarina está dançando entre dois grandes espelhos paralelos. Ela é, em
princípio, refletida ao infinito. Em cada ponto do espaço situado entre os dois espelhos,
um espectador poderá captar dezenas de imagens da bailarina. O olho-rede tem bas
tante o que pescar e do que alimentar-se. Ele pode tanto observar as bailarinas em
imagens como a bailarina em carne e osso.
Quando um objeto se mexe num espelho, você diria que algo o empurrou Se um
senhor de cartola avança entre os espelhos, você irá perceber vinte ou trinta cartolas.
Se alguém chegar e fizer cair a cartola com uma varinha, as vinte ou trinta cartolas
cairão ao mesmo tempo. Não hesitamos em afirmar que é necessária alguma força pa
ra fazer cair a "verdadeira” cartola. Mas, e as vinte ou trinta cartolas restantes? Terão
elas caído sozinhas, por assim dizer? Ou se limitaram a fazer como as outras?3
Existirá uma diferença absoluta entre a queda da cartola real e a queda das car
tolas nas imagens dos espelhos? Não, pois os efeitos qué a verdadeira cartola exerce
não são elementos mais “forçadores” do que os movimentos conjugados de suas ima
gens nos espelhos. Ao girarmos o comutador elétrico num quarto escuro, modificamos
a aparência de todos os objetos que nele se encontram, e, no entanto, o centro causai
- a lâmpada acesa - age como informador, e não como “forçador”. Se os efeitos pro
duzidos pelo centro são movimentos, esses movimentos não devem ser interpretados
do mesmo modo que os movimentos de uma bola atingida por outra que lhe transmite o
seu próprio movimento. Eles se parecem, antes, com os movimentos de fuga de uma
multidão no meio da qual se soltasse um tigre am eaçador.4 Visto de cima e de longe, o
tigre parece exercer uma força de repulsão. Na realidade, as pessoas fogem por elas
mesmas, porque viram o tigre ou ouviram o seu rugido. Elas correriam com a mesma
rapidez se pudessem perceber essas ondas sem que o tigre estivesse ali.
E, assim como o tigre não repele, o Sol tampouco atrai. O Sol é, simplesmente, o
centro de uma família de movimentos. Seus rugidos são os "gravitons” que informam
De uma forma mais geral, todacausalidade se reduz a uma interação com “mensageiro": o mé-
son nas interações nucleares fortes, o neutrino e a partícula W nas interações tracas, o graviton nas in
terações de gravitação. Os ffsicos "materializam" os “mensageiros”, imaginando-os como se fossem
partículas que veiculam a interação e oscilam entre as partículas ligadas (assim, por exemplo, o fóton Y
entre elétron e próton em interação, oméson entre próton e nôutron), ou então imaginam o “mensagei
ro'* como se fosse uma nuvem que veste o nêutron durante uma parte do seu lempo”. Mas os ffsicos
não podem deixar-se iludir por essas imagens, pois as oscilações parecem ocorrer num tempo (10-23
segundos) e a nuvem parece ocupar um espaço (10~13 centimetros) no limiar da Incerteza quântica.
Mas, enquanto os “mensageiros" são virtuais como corpúsculos ou nuvens, as interações, por sua vez,
sAo reais, e podemos multo bem afastar essas Imagens e pensar que estamos, assim, não na in
formação “que viaja" (por mensagens e mensageiros), mas sim na informação "realizada”, "encama
da”, análoga â de umcampovisual consciente onde os detalhes não mais se encontram ô distância uns
dos outros, ou que ela ó análoga &informação-parücipaçâo de um oomportamento com memória tema-
Mzada e forma melódca, igual á dança da bailarina.
117
para um ser iluminado ou iluminável por sua participação no significado e na sua própria
m em ória do significado. Os fótons não são luminosos por si mesmos. O espaço, quan
do n ã o é “ pescado” por olhos vivos, é tão tenebroso quanto o centro da térra, mesmo
sendo tão repleto de informações em cada um de seus cantos quanto uma fotografia-
hologram a. O espaço torna-ee “luminoso”, informante, no sentido real, somente para
um s e r verdadeiramente temporalizado e “possuidor de um sentido”.
Topologia e semantismo
Alguns físicos murto próximos da Gnose, em particular L L Whyte, G .N . Lewis e David Bohm,
tôm desenvolvido o seguinte raaocíruo: Considerando que, nos diagramas relativistas, o intervalo que
separa dois acontecimentos ligados por um raio luminoso é Igual a zero, podemos, então, considerar
que esses dois acontecimentos estão em contato mútuo e podem reagir fisicamente um sobre o outro
por transterônaa direta de energia. Assim, quando observamos a nebulosa de Andrómeda, distante,
métricamente, de um milhão e meio de anos-luz, estamos em cordato direto - topologicamente - com
seus átomos emissores. Nós, terrestres, somos “tocados" pelos andromedianos.
Os sistemas de referônda no espaço-tempo tomecem-nos uma simples projeção de todo o pro
cesso, expressando corretamente determinadas relações e deformando outras. Uma teoria topológica
do espaço-tempo que cuidasse das incidências e contatos, e não dos Intervalos métricos, permitiria,
partlndo-se dos processos reais nos quais cada acontecimento está diretamente ligado a outros, cons
truir acessoriámente o espaço-tempo métrico. Toda ação, todo contato ó essencialmente um contato di
reto na velocidade da luz. As ações com velocidade menor provdm de contatos de segunda ou de ter
ceira ordem, e derivam dos contatos primários (na velocidade da luz). Sua trajetória é formada por uma
sórie de ziguezague (Zitterbewegungen) ou espirais.
Nesse sentido, a velocidade da luz ó a única “velocidade” . Todas as velocidades inferiores deri
vam das “ reflexões” da ação sobre indivíduos Intermediários.
David Bohm utiliza, aqui, o termo “reflexão" num sentido Muco, naturalmente. Masé preciso le
var em conta que a interpretação topo lógica está, por sua vez, subordinada a uma interpretação semân
tica mais profunda; por isso, o termo “reflexão” deve ser tomado aqui num sentido quase psicológico.
Cada átomo, num cristal onde se propaga um raio luminoso a uma velocidade aparentemente inferior à
velocidade da luz, leva por assim dizer um certo tempo, real, para “entender o que está acontecendo
oom ele", por referônda com o transespadal do qual ele partid pa. Daf o atraso. Os segundos ou os
centimetros que medem essa veloddade são apenas abstrações subordinadas. O tempo e o espaço
são feitos exclusivamente dessas “ reflexões” dos seres informados, que "entendem o que está aconte
cendo com eles” .
Retomando o exemplo citado acima, a Imagem luminosa do tigre solto no meio da multidão corre
na velocidade da luz. Poróm, o pánico só se propaga a uma velocidade bem menor, pois os espectado
res não “ficam dentes” do perigo instantaneamente. O tempo de “ficar dente" não ó o tempo ma-
croscóplco-môtrico da ffsica relativista, e nem o tempo topológico de Bohm. É um tempo mais primor
dial, simultaneamente ffeico e hlperffeico; é uma ação na qual o t (o tempo simbólico), que se combina
com a energia ou com o c (comprimento igualmente simbólico), que se combina com mv, a quantidade
de movimento, não é nem um tempo nem um comprimento no sentido comum, jâ que, na realidade, ele
significa uma partidpação elementar no transespaço-temporal. No entanto, esse tempo-mais-primor-
dial-que-nâo-ó-um-tempo faz o tempo comum, assim como o comprimento-que-náo-é-um-compri-
mento faz o espaço comum. Assim como, provavelmente, a carga positiva ou negativa, o spin, o núme
ro bariônioo, a própria massa, podem ser considerados relacionados com - ou como “ projeções de” -
as realidades mais fundamentais do hiperespaço ou do iso-espaço (o espaço isotópico), do iso-spin, da
hipercarga, ou “estranheza”.6
6. Haldane (numa conferônda de 1963) incitava 06 biólogos a não ficarem para trás em relação aos
físicos, e a considerarem que os “ acavalamentos quânticos” temporais e espaciais permitem que se fa
le, em certos casos, de um “estado vivo" de sistemas com interações deslocalizadas distantes, como se
tala de estado gasoso ou de estado líquido, de acordo com o alcance das interações.
118
Utilizemos provisoriamente, como David Bofim,7 a m etáfora (incorreta) dos vestfgios mnêmicos.
O espaço-tempo da lísica clássica, ou relativista, taz supor um conjunto contínuo de momentos coexis-
tentes. Mas tudo o que pode haver, na verdade, é o instante distinto. Quando um instante é, seu passa
do é sempre passado, e dele só permanece umvestígio. Seu futuro está sempre por vir, mas ele é ape
nas uma projeção ainda, ou uma hipótese. Um outro momento vem a seguir, no qual o momento ante
rior está contido sob a torma de vestígio. E ele contém igualmente uma projeção dos momentos que
virão depois. Existem, além disso, vestfgios indiretos (assim como lembramos que, ontem, lembrávamos
de anteontem). Em outras palavras, cada momento temseu passado e seu futuro.
Essa concepção é uma espécie de transcrição para físicos da monadologia leibniziana. A ordem
dos acontecimentos no tempo e no espaço está oontida dentro de cada momento, no sentido de que ela
faz parte da estrutura de cada aoontecimenlo dentro do processo total. Cada momento é ‘'interiormente
posterior" a todos os que nele deixaram um vestigio. O mesmo acontece com relação ao espaço, pois a
estrutura espacial de cada vestiglo reflete a estrutura espacial correspondente dos acontecimentos qus
deixaram vestigios. A estrutura Interna de cada acontecimento encerra implicitamente sua posição no
espaço e no tempo. Ela oontóm, enfim - para usar a linguagem psicológica de Leibniz - memória e
apetiçáo (para fazer o tempo passado e futuro), e percepção (para fazer o espaço).
O interesse que esta concepção representa para o físico é que ela permite \t alóm dos conceitos
clássicos (e relativistas) sobre eepaço e tempo, e além da teoria dos campos. Trata-se, então, para o fí
sico, de encontrar um modo de expressar matematicamente o conjunto das relações de vestígios, e de
vestígios de vestígios, que definem cada momento em função do seu passado e do seu meio. Acredita-
se ser isso possível por melo de ‘'matrizes” , no sentido matemático da palavra, que tenham a proprie
dade de serem os termos de uma determinada seqüônda, cada uma delas podendo ser conseguida a
partir da anterior mediante uma operação matricial característica Do mesmo modo, o espaço pode ser
considerado oomo um oonjunto descontínuo de estruturas (simplexos), de ajuntamentos lado a lado (no
caso do vazio), ou com buracos (quando há matéria), segundo relações de congruência ou de
homología.
Os Gnósticos desejam boa sorte aos físicos em sua busca dos grupos matemá
ticos (grupos de Lie, ou outros) graças aos quais poderão expressar com exatidão es
ses conjuntos de vestfgios de vestígios. Porém, não acreditam num sucesso total. E is
so porque os físicos “topologistas” ainda permanecem presos à metáfora da memória-
vestígio, ao postulado segundo o qual o aqui-e-agora elementar deve ser pequeno e,
até mesmo, quase-pontual, os fenômenos macroscópicos sendo componíveis e com
postos desses elementos. Ocorre que esse postulado leva a certas contradições, já no
nível da teoria física. Se o acontecimento presente comporta vestígios estruturados, ele
é dominial, e não pontual. Por mais que o seu aqui-e-agora seja presente, sem outro
passado ou futuro a não ser interno, e sem outro “alhures” senão o que consta aqui, ele
é, portanto, antes um "complexo" do que um “simplexo”. Assim sendo, por que postular
que, em sua “biografia” ou em sua “forma”, ele sempre deva ser, no sentido geral, mi
croscópico? Por que constituir o espaço-tempo comum com novos “átomos” que conti
nuam moldados, mesmo que de longe, sobre o velho modelo dos átomos materiais,
apesar de serem considerados átomos espaço-temporais de ações coordenávetô?
7. Cf. David Bohm, artigo publicado em The Sáentist Speculatos, obra coletiva dirigida por I. J. G o*
od. Traduzido emtincôs sob o título: üuand les savants laissent //ore cours à leur imaginatíon, Dunod,
1967 (p. 169).
119
crofísicí. Mas, obviamente, é extremamente duvidoso que se consiga expressar os es
tados sjcessivos do embrião por meio de matrizes (matemáticas) operáveis e de gru
pos “de congruência ou de homología". A sucessão de seus estados lembra muito mais
uma sucessão de "soluções de matriz" (desta vez, no sentido psicológico) ou de “pala
vras cruzadas’ temáticas, soluções essas nas quais o embrião, em sua unidade, é au
xiliado por indícios espaciais (comparáveis a vestígios, se quisermos), mas sobretudo
pelas rremórías transespaciais das quais ele participa, memórias transespaciais e,
também, transtemporais, onde o futuro, tanto quanto o passado, alimenta o presente
dominial sem ser propriamente lim vestígio ou uma projeção.
Se o universo, hipoteticamente falando, fosse constituído de um único embrião
em desenvolvimento, nem o tempo real, nem o espaço real, nem o espaço-tempo as-
semelha-se-iam aos diagramas de Minkowski. Na verdade, é pelo fato de existir uma
grande quantidade de desenvolvimentos (geralmente, muito mais “microscópicos" do
que um desenvolvimento orgánico) que o espaço e o tempo adquirem o aspecto ho
mogéneo e superficialmente ordenado (no sentido usado na física clássica). É por isso
que o conjunto dos acontecimentos tem uma direção geral que vai, paradoxalmente, no
sentido inverso do tempo de um desenvolvimento individual, e que a degradação das
formas, por suas interferências fortuitas e superficiais, parece predominar em relação
ao seu aperfeiçoamento. É por isso que o acaso parece prevalecer em relação à infor
mação ativa.
Mas os físicos, quando querem cavar mais profundamente por baixo desse as
pecto e aparência de homogeneidade e ordem por entropia máxima, cometem, obvia
mente, um engano em querer trabalhar ainda e tão-somente com base em aconteci
mentos ou “biografias" atômicas. Seu método pode ser momentaneamente compensa
dor na medida em que permite maior exatidão, mas não é difícil perceber por que esse
mótodo, tal qual, não leva a resultado algum. O embrião encadeia, por si mesmo, suas
próprias matrizes (psicobtológicas) de invenção-reprodução. Ele não obedece a ne
nhuma fórmula matemática de transformação.
As chaves dominial*
Cada domínio ô como um espelho que pode separar-se em duas partes, primeiro
semelhantes, não apenas em sua materialidade de espelhos como também na identida
de do que eles refletem. Depois, à menor diferença de orientação, cada uma dessas
metades passa a refletir outra coisa, uma outra parte do mundo refletido. As memórias
(transespaciais) de uma espécie, seus instintos formativos e de comportamento, são
assim “ refletidos” , numa distribuição diferenciada, no que diz respeito aos esboços, a
princípio semelhantes, de órgãos diferentes, aos segmentos do eixo orgânico, a ambos
os sexos, e às formas especializadas das espécies polimorfas.
Esta comparação tem a vantagem de fazer entender o caráter relativo do deter
minismo mnèmico. Um deslocamento mínimo do espelho ê necessário para que ele re
flita outra coisa. Mas esse minúsculo deslocamento não explica as diferenças do que é
“refletido”. Assim, algumas moléculas de uma substância elaborada a partir do cromos
somo X ou V orientam o embrião para o sexo masculino ou feminino. Mas seria absurdo
achar que se pode explicar a imensa complexidade do “saber ser macho” ou do “saber
ser fêmea” pela natureza da substância química.
A comparação é imperfeita na medida em que transforma em informação por
meio de elemento observável (o reflexo das coisas no espelho vivo) o que, na verdade,
é mais do que um reflexo; é informação por elemento participâvel. Ela substitui por um
esquema puramente espacial um acontecimento dominial, que fabrica estruturas espa
ciais a partir de temas transespaciais e que fabrica tempo-processo a partir do in
temporal.
121
S o m o s iludidos pela riqueza do espaço
Na história das idéias cientfficas, há sem dúvida uma relação Interessante entre as teorias da óti
ca e as teorias biológicas da reprodução por encaixe dos germes. Nos séculos XVII e XVIII, causava as
sombro a ótica da câmara escura e do olho, onde os raios luminosos eram capazes de concentrar-se o
suficiente para passarem por um minúsculo orifício, dispersando-se em seguida, o suficiente para de
senhar todos os detaJhes de uma paisagem. De uma toma mais geraJ, o microscópio deu a idéia de
uma informação infinitamente subi do espaço, onde os aparentes desenvolvimentos no tempo podiam
ser contidos. Assim, Adão continha, pelo encaixe dos germes, toda a humanidade futura. O problema
da “ passagem estreita” para tantas informações náo mais pareceu um problema. G. Bonnet extraiu dis
so toda uma filosofia. Teorias muito menos simplistas, no século XIX, são tributárias do mesmo “encora
jamento” . O corpo envia representantes de suas estruturas nos elementos germinais que tornam a dis
persar-se num novo corpo, assim como a imagem de um vasto espetáculo passa pelo orificio da pupila.
Hoje em dia, não se recorre mais a essas comparações óticas, mas continua-se
confiando na riqueza do espaço para entender a informação no tempo. Uma fita de gra
vador não contém todas as informações de uma sinfonia? Basta desenrolar e “ler” a fita
pelo processo mecânico do encadeamento. O cérebro tem espaço mais do que o ne
cessário para conter toda a memória psicológica de um indivíduo. Os genes e os DNA
representam informação espacial suficiente para que o desenvolvimento temporal não
seja um mistério. Não é por nenhum processo de mágica que, de todas as partes, a
quilômetros de distância, podemos ver uma paisagem; o fato é que essa paisagem
existe realmente em cada pequeno volume do espaço. Não é nenhuma mágica o fato
de podermos ouvir uma sinfonia desenrolando a fita magnética: em cada ponto, sua es
trutura molecular conserva o vestígio da passagem das ondas sonoras. Do mesmo
modo, o aspecto aparentemente mágico da formação embrionária e dos comportamen
tos instintivos explicar-se-ia pela leitura (mecânica) das informações espaciais contidas
nos genes.
Por mais que o estudo direto dos fatos da memória ou da formação embriogênica
manifestamente temática revele de forma imediata a impossibilidade dessa redução ao
espaço, essa redução contínua a se beneficiar de um prestígio científico totalmente ime
recido. Quando os embriologistas consideram que, no embrião jovem, qualquer parte
pode ser equivalente, em informação potencial, ao todo; quando Lashley considera que
a memória cerebral de uma aprendizagem não é locaiizável; quando os lingüistas mos
tram a impossibilidade de se entender a composição da palavra a partir de reflexos
condicionados, as mentes científicas continuam achando que devem manter a idéia de
base de que, ainda assim e em última instância, o espaço é rico o suficiente para expli
car tudo. O intencional, o sintático, o estrutural - no sentido não-mecânico - , a organi
zação interna da enunciação, como do desenvolvimento ou do comportamento, por
mais que se admita tudo isso, mantém-se a esperança de poder reduzir tudo, por fim, a
estruturas mecânicas e espaciais. Até mesmo N. Chomsky considera-se na obrigação,
para livrar-se da “ horrível" acusação de utilizar uma terminologia “mentalista”, de decla
122
rar, num parágrafo final:8 “ Podemos estar certos de que haverá uma explicação física
para os fenômenos em questão" - acrescentando apenas: “ Mas o conceito de expli
cação física provavelmente acabará sendo ampliado, exatamente como foi ampliado
para receber a força gravífica e eletromagnética.”
Segundo a tese gnóstica, essa ampliação será tal que o próprio termo "física"
acabará enganando, exceto se remontarmos ao sentido etimológico da física como
ciência da physis, da natureza, onde os seres crescem e vivem no tempo. Então, afas
tado qualquer preconceito cientificista, vemos que os temas do comportamento, partici
pados, dominam o infinito dos detalhes e não derivam deles, que a causalidade temáti
ca é descendente de chave em chave, e que só ó rem ontante, desde os detalhes su
bordinados até o tema, nos casos de aperfeiçoamentos cuja soma, integrada ao tema,
é sem dúvida muito importante — ela desenha o universo visível mas que só têm
sentido relativamente ao tema primitivo.
Mesmo na percepção e na “pesca dos observáveis” quando, por hipótese, o
domínio consciente se oferece passivamente à modulação pelos detalhes informantes,
se oferece aos acasos da pesca, um ser vivo, ainda assim, só toma no espaço o que
ele procura, de acordo com seus temas de percepção e segundo suas “gnosias” instin
tivas. O mundo percebido por uma espécie animal já vem inscrito de antemão em seu
potencial quase tão rigorosamente quanto seus instintos formativos. Em outras pala
vras ainda, tanto na percepção como na ação, o "distai” sempre prevalece sobre o
“proximal", o sentido geral prevalece sobre os detalhes. Se, no decurso da evolução da
espécie, a causalidade teve de ser “ascendente" para que a espécie pudesse aprender
o seu “ mundo" (Umwelt), provavelmente o encontrou, se não buscando-o diretamente,
pelo menos buscando um mundo onde pudesse viver e ampliando aos poucos seu
domínio.
Todo ser vivo - na verdade, todo ser real - é um artista, ao mesmo tempo inspi
rado e sempre alerta para utilizar o acaso. Se a arte “ aleatória”, se a música ou a pintu
ra informal, à base de combinações aleatórias, é possível, é precisamente porque o ar
tista espera poder tocar, apontando ao acaso, um significado ou alguma expressividade
transespacial. Ele "brinca com o espaço”, mas para sair dele, assim como se tenta ao
acaso várias chaves para abrir uma fechadura.
Para o comportamento ativo dos seres dotados de um sistema nervoso, isso é
ainda mais evidente. Os detalhes nervosos (neurológicos) da realização de algum ato
são de uma complexidade que parece indefinida.
Eccles conseguiu mostrar, em 1964, por quais mecanismos químicos os nervos
se excitam e se inibem um a outro, pela passagem de lòns através de uma superfície
interna polarizada, provocando sua despolarização. Já que os efeitos de nervo para
nervo, e de nervo para músculo são similares, uma versão generalizada da hipótese de
Eccles pode servir de modelo para todas as formas de excitamento e de inibição.9
123
Quando em repouso, a placa terminal (na junção nervo-músculo) ou a sinapse
(na junção nervo-nervo) tem os póros de sua parede receptora obstruídos. Ao desen
cadear-se a ação, a placa ou a sinapse libera uma substância mediadora armazenada
num lugar próximo ao póro, e combina-se com a molécula obstruidora de tal modo que
essa molécula rodopia para cima, abrindo o póro. íons passam, então, por essa abertu
ra e provocam a despolarização excitadora. Numa junção inibidora, passam lòns dife
rentes (os póros efetuam essa seleção pela carga elétrica de suas paredes) e, em se
guida, enzimas próximas do sitio no receptor destroem a substância mediadora, e os
póros voltam a fechar-se (tudo isso, num ou dois mifi-segundos). Os produtos que blo
queiam um sitio no receptor num excitamento não tôm nenhum efeito sobre uma junção
inibidora. Além disso, existe especificidade desses produtos de um nível para outro e,
mesmo, de um gânglio nervoso para outro gânglio vizinho, do cordão medular- assim
como existe, num grande edificio de escritórios, uma chave diferente para cada porta.10
Se esses complexos mecanismos se desenvolvem ao acaso, só se pode con
seguir um nível estatístico do tônus nervoso - o que não vem a ser uma ação mais do
que um ruido de fundo vem a ser uma mensagem, ou uma pulverização homogênea de
pequenos pingos de pintura viria a ser um quadro. Para qualquer comportamento dota
do de sentido, por menor que seja (por exemplo, enunciar uma frase ou fazer um sinal),
são necessários milhares de nervos descarregando-se num conjunto organizado, e mi
lhares de fibras musculares reagindo de maneira coordenada pelo processo de chave
de um esquema, elaborado na área motora cortical pela ação da consciência motora
habitual ou inventiva.
Eccles teve o raro mérito de estudar com minúcia detalhes como esses, sem
perder de vista a necessidade que havia de um mestre do jogo, de um senhor do domí
nio, supra-ordenado, e sem a tola pretensão de querer explicar o comportamento pelos
determinismos acumulados, pelo avesso (embora, para desempenhar esse papel de
Msenhor do dominio”, tenha cometido o erro de apelar para um “espírito mágico” , inspi
rado pelas experiências duvidosas de Rhine, e exercendo campos espaço-temporais
de influências sobre os milhões de elementos nervosos levados até um nível crítico de
excitabilidade).11
é muito mais simples rejeitar o postulado injustificável segundo o qual os domí
nios individualizados só podem ser “pequenos", e segundo o qual os domínios maiores
são apenas 'conglomerados de pequenos domínios que estaríam fazendo toda a reai-
dade do grande domínio. Em que a noção de um domínio cerebral de comportamento
unitário seria menos cientifica do que a noção de uma unidade celular, ou de uma uni
dade molecular? Uma flor composta possui tanta unidade quanto uma rosácea ou uma
papilionácea, e sabemos que os mesmos temas morfogenéticos operam, tanto na for
ma composta como na forma simples. Por mais que ensinemos às crianças que uma
margarida não é “uma” flor, não podemos impedi-las de dizerem que elas têm na mão
“uma" flor. O que não está totalmente errado pois, entre uma inflorescência muito con
densada e uma flor não existe um limite preciso. Favarger demonstrou que, em muitas
124
flores que parecem simples, devemos ver inflorescèncias condensadas e simplifica
das.12
Os lingüistas há muito tempo sabem que os esquem as lingüísticos não podem
ser compostos com microelementos, e sim, submetem-se a "modelos” temáticos. E
eles suspeitam da existência, por baixo desses modelos, de tem as instintivos e genera
tivos mais profundos.
O cérebro, no embrião, forma-se em seu conjunto. Quando adulto, ele funciona,
em parte, segundo diferenciações adquiridas e irreversíveis, porém conserva, da uni
dade dominial de sua formação em área “totipotente"13 para a neurulação, a possibili
dade de comportar-se, no sentido próprio da palavra, e de agir segundo temas signifi
cantes. O cérebro adulto ó, no organismo, uma área que, num certo sentido, permane
ceu embrionária, isto é, um esboço diferenciável (capaz de diferenciar-se) neste ou na
quele sentido, de acordo com as informações e chamadas mnômicas que recebe.
Nos vegetais, tambóm existem zonas que, no organismo adulto, permanecem embrionárias. No
animal, o coração encontra-se até certo ponto numa situação análoga à do cérebro, porém inversa. Seu
comportamento rítmico é autônomo e independente dos estímulos nervosos. O feixe de His, uma das
tontes desse ritmo autônomo, é, na verdade, um músculo embrionário que conserva a capacidade em
brionária de contrações rítmicas espontâneas. Sobrepostas a esse comportamento embrionário, estão
as regulações que funcionam por inibição e excitação para- e orto-simpáticas. Em resumo, no coração,
um funcionamento fica sobreposto a um comportamento. No cérebro adulto, o comportamento (análogo
ao comportamento inventivo mnémico do esboço oerebral) fica, pelo contrário, sobreposto aos funcio
namentos nervosos de efecçáo. É como se, no coração, o centro de His, bem como os nós auriculoven-
tricular e sinuso-auricular usassem como elector o sistema orto-e para-simpático. Na verdade, as dife
renças se atenuam. Pois, em todo o organismo vivo, náo existe nunca um funcionamento puro, a partir
de estruturas diferenciadas no espaço, mas um funcionamento sempre supra-lmposto ou subimposto ao
funcionamento-comportamento que constitui ou reconstitui as estruturas. Um organismo que náo con
serva mais nada de um esboço, autoconstltulnte por participação mnémlca, é um'organismo morto.
Holismo e reduclonismo
125
lação dominam as interações moleculares. Se tivessem procurado analisar direta e ex
clusivamente as interações moleculares (às quais eles chegam em alguns casos), a
embriologia científica não existiria. O exemplo de Eccles mostra que a tentativa de
compreender o comportamento global de um domínio, no caso, do sistema nervoso, não
ó em nada incompatível com a minúcia no estudo das interações nervosas ele
mentares.
Capítulo XVI
Todos os seres que não são simples aglomerados sem unidade verdadeira são,
em seu “anverso” , subjetivos, em plena posse de si mesmos. Eles se utilizam de si
próprios como um engenheiro montador se utiliza de um computador material. Como
unidade individual, eles são engenheiros montadores de seu próprio domínio, que eles
utilizam como teclado ou instrumento. Todos os seres são ao mesmo tempo engenhei
ros e máquinas, datilógrafos e teclados, pianistas e pianos.
O cérebro — ou antes o seu “anverso": o campo de consciência - representa
apenas um caso particular desse estatuto universal dos seres. Ele é primitivamente ao
mesmo tempo engenheiro em seu anverso e máquina em seu reverso observável de
tora. Ele é teclado e pianista. Porém, a riqueza do software cerebral - isto é, do recei-
tuário de montagens diversas - no homem, para quem as memórias culturais vêm
127
acrescentar-se às memórias biológicas, é tal que o que é indissociável ou pouco disso-
ciâvel nos outros seres dissocia-se no seu caso. A mente parece ser uma espécie de
engenheiro puro, de homem-mente no homem-corpo, dotado de milhões de receitas de
montagens e utilizando-se do corpo como de uma aparelhagem material disponível.
O “ eu" parece servir-se do cérebro para perceber. Nós náo recebemos - ou não
recebemos apenas - inúmeras informações de modo totalmente passivo; também pro
curamos as informações importantes dentro da confusão de ondas e fótons. Nós não
sofremos - ou não sofremos apenas - condicionamentos: nós nos condicionamos vo
luntariamente, nós “ nos montamos" conforme as necessidades da ação projetada.
Um ponto mais paradoxal é que não nos deixamos invadir pela nossa própria
memória, a qual, no entanto, por fazer nossa biografia individualizada, nos opõe ao es
paço; mas procuramos também lembranças úteis, lançando para isso correntes explo
radoras, assim como quem utiliza uma calculadora pode colocar em seu “ programa”
explorarem determinado momento as memórias magnéticas.
Ou seja, a “mente" parece ser um utilizador transcendente do “corpo” e, em par
ticular, do cérebro, servindo-se deste como de um instrumento, como de uma ‘ lataria
nervosa", ou como um pianista se utiliza de um piano. A Gnose pré-cientflica inventou
mitologias pitorescas e complicadas sobre esse tema: o Espírito, totalmente indepen
dente da Matéria, sobrevindo de um outro mundo e, às vezes, inimigo da matéria que
ele não consegue mais dominar.
Com efeito, o Espírito tomou-se - quase - um ser autônomo, pela enorme varie
dade das montagens possíveis, em contraste com a disposição padronizada - em toda
a espéde humana, e até mesmo em todas as espécies de animais superiores - do sis
tema nervoso central. A firma I.B.M., desde junho de 1969, vende separadamente, e fa
tura em separado, seu hardware e seu software. Esse método comercial foi batizado de
unbundíng (desvinculação ou desenfardamento). A natureza igualmente acabou fazen
do uma “desvinculação” da mente, mas isso de forma progressiva, primeiro nos seres
vivos com memória “independente” , isto é, não vinculada ao desenvolvimento e, de
pois, em maior escala, no homem, que tem uma memória cultural sobreposta à memória
biológica.
O que denominamos “cultura" é, na verdade, uma enorme coleção de “monta
gens", de “jogos” possíveis sobre o mesmo cérebro. Assim, por exemplo, a música de
piano é todo um mundo à parte em relação ao mesmo piano instrumento material, como
a variedade dos usos possíveis de um computador é um mundo à parte em relação ao
aparelho padrão. Os papéis sociais, as linguagens diversas, os ritos, os comporta
mentos culturais, indefinidamente variados, se desenvolvem, se inventam, se compli
cam e se diversificam em arquiteturas psíquicas variadas, que se utilizam do mesmo
instrumento cerebral, cujas variedades biológicas, raciais e até mesmo específicas
quase não importam mais do que importa a marca de um piano, comparada com as di
ferenças da música ou do executante, com a diferença entre Chopin e Gerschwin.
A história da música, da arte e da ciência, a história das idéias políticas e religio
sas, e das instituições em geral, é totalmente independente da história biológica do cé
rebro. Haendel é Haendel como músico ocidental do século XVIII muito mais do que
como homo sapiens nordicus. Durante sua vida terrestre, a “música do século XVIII" o
visitava, autônoma e sobre-humana como um anjo, e tocava no seu cérebro como ele
mesmo, depois, tocou no seu cravo. Após sua morte, sua música continua mais viva
128
do que nunca na mente de milhões de ouvintes. Podemos realmente (alar, como os e s
piritualistas mais entusiastas, ou como os devotos mais imbuídos de fraseologia devo
ta, ou como os Gnósticos antigos, em “ restos mortais” de Haendel.
O desenvolvimento do software (cultura, composição musical, etc.) é praticamen
te independente do progresso do hardware (o cérebro dos músicos).
Nesse sentido, todo homem, é um “ele", ou uma espécie de consciência impes
soal, dentro da constelação ou estrutura cultural, tanto quanto um “eu” com iniciativas
próprias.
Entretanto, essa disjunção Espírito-Matória na utilização do cérebro pela mente
não de ve iludir quando se trata do aspecto geral e da natureza da vida no cosmo. Essa
disjunção revela, sem dúvida, uma disjunção universal entre a forma como idéia temáti
ca e a forma como estrutura no espaço. Mas, ao revelá-la, acaba ampliando-a de tal
forma que pode chegar a iludir, dando origem às mitologias e às divagações da antiga
Gnose sobre o Pneuma e o Espírito, imaginados como sendo totalmente independentes
da Matéria na qual se atolam. Normalmente, a disjunção, ou bifurcação, permanece no
estado nascente. Nos fenômenos microfísicos, a disjunção já aparece, como vimos.
Ela se manifesta em particular pela dificuldade que se tem de processar a operação T
(a inversão do sentido do tempo) do mesmo modo que a operação P (a simetria no es
pelho), ou seja, uma inversão puramente geométrica. Contudo, ela acaba sendo imedia
tamente diluída em fenômenos coletivos estudados pela física comum.
O espirito predomina
Pensando bem, porém, ainda estaremos menos longe da verdade se adotarmos
as teses mais extremas e mais míticas do gnosticismo do Espírito-que-se-toma-maté-
ria-e-depois-a-dorrÉia, do que se assumirmos a tese cientificista extrema, da Matéria-
que-fabrica-o-Espíríto. O Espirito é modificado pelos seus instrumentos, pianos ou má
quinas. No entanto, é ele que os concebe primeiro, e que os realza. Só existem pianos
porque existem pianistas. Só existem músicos humanos porque existe uma música
universal.
Não há nenhuma contradição em considerar a Matéria como Espírito “ pulveriza
do”, dominável ou dominado, utilizável como material por um compositor de maior com
petência: um músico pode tanto se utilizar de coristas como de instrumentos; ao passo
que há contradição, ou apelo para o pensamento mágico, quando se pretende fazer sair
o Espírito do material que ele emprega. O Espírito se serve da Matéria (ou do Espírito
mais ou menos “ pulverizado”) da mesma forma como um ser falante se serve das pa
lavras e dos sons que constituem as palavras para se expressar.
Não é absurdo dizer que o pássaro-indivfcluo voa porque ele tem asas que se
põem a funcionar, ou dizer que o pintriho dá bicadas que rompem sua casca porque ele
tem um bico (fabricado com a ajuda da química de seus DNA). Não é absurdo dizer que
o seu conhecimento instintivo do vôo e da bicada (seu software) chega a ser quase in-
distingüível do funcionamento de suas máquinas, das quais é um mero utilizador, se
gundo um método de uso já montado no seu cérebro. O indivíduo encontra-se quase
que isento de genialidade - se bem que todos os indivíduos em fase de desen volvimerv
130
to, todas as crianças tenham genialidade até um certo ponto - porque os modelos de
comportamento já estão todos montados nele segundo uma memória específica.
Mas é impossível dizer da espécie o que pode ser dito, até certo ponto, do indiví
duo. Se os pássaros voam, se os répteis e os mamíferos andam, é porque seus ances
trais “quiseram" voar ou andar- e as mutações, lentamente, tornaram seus organis
mos mais aptos a efetuar essas montagens, a princípio, improvisadas de modo precá
rio.
As “espécies" (species) são “especialistas" (species is nothing, if it is not
speciaístic). Elas foram se modificando - acrobáticamente - ao modificarem o rumo
de seus interesses: “A forma organizada é a expressão de uma opinião organizada." A
adoção da postura vertical pelos peixes-chatos, a marcha bípede do homem, são acro
bacias primitivas consolidadas. A marcha bípede do homem talvez tenha sido, no hício,
considerada defeituosa ou afetada. Talvez fosse a imitação1 de alguma deformidade,
imitação esta destinada a agradar algum chefe semi-símio, que perdera seus braços e
não podia mais andar de quatro.
O universo inteiro é, assim, um teclado que ao mesmo tempo funciona para e é
improvisado pelo seu montador. É uma acrobacia consolidada do Espírito.
Não vemos em que pode ser mais, ou menos mítico, considerar que o Espírito in
tervém, seja sob a forma da vontade de voar, ou de andar, em determinados períodos
da evolução de certas espécies, ou sob a forma de invenções técnicas pek) cérebro
humano adulto, seja de uma maneira mais fundamental, como Inspirador universal de
todos os utilizadores do espaço e do tempo.
Sabemos que os vendedores de "montagens" (de software) são de duas espé
cies: os vendedores de “montagens sob medida” , e para um uso bem definido; ou os
vendedores — segundo o sistema denominado d e "package" - de esquemas de monta
gens genéricas, destinados a resolver problemas de um certo tipo enfrentados por em
presas diferentes, mas cujas atividades são suficientemente análogas para que seus
problemas tenham soluções análogas.
Assim como o unbundling da I.B.M. pode ser comparado ao unbundling da mente,
o sistema de package é perfeitamente comparável ao processo da vida, biológica e in-
frabiológica, que sobrepõe ou subimpõe às memórias e inteligências individuais memó
rias e inteligências especificas, e, a essas últimas, inteligências e memórias mais fun
damentais ainda, e que constituem todo o sistema do espaço-tempo. O grande Vende
dor de software realiza a “venda" segundo o sistema de package.
A TEOLOGIA NEOGNÓST1CA
1. Distai = Norma, objetivo distante. Um cego sente o objeto na ponta de sua bengala (distai), e nfio
em sua mão (proximal). (Nota de 1977.)
132
O sentido parece (historicamente) surgir do quase-sentido (markoviano), o qual,
por sua vez, parece nascer do “ não-sentido”. A história do universo (para uma ciência
superficial) parece contradizer a prioridade, racionalmente indispensável, do sentido.
Do mesmo modo que a observação científica converte automaticamente os seres
em “objetos” e os vê pelo avesso, a história científica do cosmo inverte a prioridade ló
gica do sentido, do antiacaso sobre o acaso, e coloca na origem o reino do acaso.
Essas duas inversões são, entretanto, muito diferentes. Não se pode dizer que a
história do cosmo seja urna simples "ilusão do observador". Não nos enganamos acre
ditando que a Terra onde vivemos e pensamos já foi inicialmente “informe e nua”, ou
"deserta e vazia”, antes de produzir a grama “ ...e árvores que produzem frutos confor
me sua espécie, e grandes quantidades de animais” (tradução Dhorrr^ou, segundo a
curiosa tradução de Fabre d’Olivet, que os Gnósticos americanos vieram a conhecer
através de B. L. Whorf, "... antes que as Águas emitam em abundância os principios
vermiformes e voláteis de urna Alma de vida, movente sobre a terra, e esvoaçando na
expansão etérea dos céus”.
Essa inversão “ histórica” , essa visão “em espelho” do surgimento histórico do
significado e do antiacaso, que parece impor-se à ciência, requer imperativamente, co
mo corretivo, uma Consciência ou um Sentido que seja primordial, independente do
tempo e da história cósmica, por trás dos “teclados” aparentemente desconectados do
espaço-tempo, teclados, esses, destinados desde a origem à Língua e à Escrita cós
micas.
Aliás, devemos acrescentar que a cosmología científica contemporânea, inde
pendentemente de qualquer teologia ou teosofía, está começando a corrigir a inversão
histórica das cosmogonías cientificistas. No princípio não havia os átomos, mas muito
provavelmente o Átomo inicial, no qual, e não sem motivo, não havia leis estatísticas ou
leis coletivas, visto que não havia coletividade alguma e, portanto, nenhum reino primiti
vo do acaso.
Deus é o Espírito recolocado no seu verdadeiro lugar, fundamental e primário,
apesar das aparências “emergentistas" que enganam as cosmogonías superficiais. O
Espírito transforma-se em teclado material antes de tocar, sobre ele mesmo transfor
mado em teclado, suas próprias melodias.
Toda ação acaba, por fim, ‘‘linearizando-se” em fecho éclair subordinado depois
de ter descido, de chaves em chaves, até os mecanismos terminais, até as várias
“máquinas de costura" do tempo.
Os dois limites da ação são, por um lado, o Intemporal, que envolve tudo, a Lín-
gua-Mãe, o Espírito e, por outro, o tempo linearizado, palavras pronunciadas, máquinas
funcionando instante após instante. É absurdo partir do “instante após instante" para
entender o tema e o significado de uma determinada ação, ou pretender entender o ins
tinto pelos reflexos, a escrita pelas letras, o organismo pelas moléculas, assim como é
absurdo partir das máquinas para entender o significado e a invenção técnica das má
quinas, da carburação para entender o motor, do motor para entender o sentido dos
deslocamentos com a ajuda do motor, dos desgastes energéticos de funcionamento
para entender o uso da energia para a ação. É absurdo partir das palavras pronuncia
das para entender a formação mental da frase, e das frases para entender o pensa
mento. Na falta de telepatia, somos forçados, como ouvinte e interlocutor, a partir das
palavras de um outro para entender o seu pensamento, mas não o pensamento em ge
ral, e o modo como ele se traduz em palavras nos "conversores cerebrais”.
Tentar entender o universo eterno através do universo instantâneo podia ainda
fazer algum sentido dentro de concepções tão infantis quanto as dos atomistas da an
tigüidade que acreditavam em “pedaços de matéria” subsistindo no vácuo: esses áto
mos estão presentes “agora” , e estiveram e sempre estarão “presentes" no universo,
pois eles sáo coisas eternas - eternas no sentido de “sempre presentes”.
Mas, então, é de se perguntar, para que existe um presente? E, o que os átomos
fazem dentro dele, já que, nele, nada fazem de particular?
O mesmo acontece com relação a concepções “infantilmente científicas” (por
assim dizer) de um universo onde há conservação de energia ou, de forma mais geral,
leis de conservação e de simetria. Se a energia se conserva eternamente, para que
existe um presente? Para que as transformações reversíveis? Leis de conservação
são indispensáveis ao cientista para ele desemaranhar as complexidades da experiên
cia, assim como a audição das palavras pronunciadas e o conhecimento do código da
língua são indispensáveis para entender um interlocutor; mas não podem fazer enten
der, do ponto de vista filosófico e geral, o universo eterno além do presente e das con
servações e transformações energéticas, etemo no sentido de: “que garante a passa
gem do tempo”, “que garante o atual pela atualização”.
A concepção gnóstica do universo - a única verdadeiramente científica — com
“genidentidades" semánticas, e náo materiais ou energéticas, com informações-partici-
pações - é de qualquer modo incompatível com a pretensão de se compreender, uni
camente através do presente e da simples presença do som das palavras, o sentido de
135
uma frase. Além disso, ela faz entender o porquê do atual, assim como a frase faz en
tender o uso das palavras. Ela faz entender o papel do presente: trabalho por enca-
deamento, “ costura" que realza o modelo de um costureiro, o qual está além do “enca-
deamento” .
É absolutamente incontestável a experiência segundo a qual "se eu ainda nunca
morri” , "eu" (como individuo distinto da minha linhagem) n&o me flz nascer, e nfio con
cebi a mim mesmo. "Eu” só falo e ajo com base num "outro eu” mais fundamental.
Acontece com um indivíduo o que acontece com uma lembrança evocada. Ele é a pró
pria evocação, a evocação suscitando o evocador que ela contém, como uma espécie
de vetor próprio dirigido sobre ela mesma. A atualização de uma idéia toma-se: "Tenho
uma idéia” , e, a seguir: “Eu tenho uma idéia”. O tema atualizado assim como a lem
brança evocada é uma "consciência ativa”, depois, uma "consciência de atividade", e
depois, “ a consciência de ser um ‘eu’ ativo”. O atualizador particular nada tem de subs
tancial (pelo menos no sentido material ou energético); ele não é um ser que, depois,
agina. A ação se produz (como sentido representado) e, na medida em que ela não é
um puro funcionamento, faz existir um "eu” como novo ser, ao mesmo tempo livre e
expressando a liberdade criadora de um "outro eu” mais fundamental, e, por fim, de um
"outro eu” universal, ou de Deus, para usarmos a terminologia tradicional. Assim como,
ao pronunciar uma longa frase, ãs vezes esquecemos a oração principal e tomamos
autOnoma uma idéia incidente que deveria ter sido subordinada, a Unidade do universo,
o Logos, pronuncia frases tão longas que as subordinadas tomam-se independentes e
pronunciam-se por si mesmas, entretanto, sempre separadas por vírgulas, e nunca por
pontos.
136
Capítulo XVIII
1- Nano-segundo = 10~®segundo.
Temas paitidpâveto
(Futuro ‘lomado a p e to ")
*
l
I
l
1
Memórias participáveis
(Passado mnêmlco)
138
Sobre esse ponto, é provável que os povos primitivos, ou antes, as línguas primi
tivas saibam mais, às vezes, do que a nossa ciência.
139
Para se r franco, achamos que existe um pouco de esnobismo por parte dos Gnósticos em dar
tamanhaônfase à “metafísica” Hopi. Eles poderiam ter evocado muitas outras filosofias não-ocidentais,
como por exem plo, as teorias filosóficas e psicológicas da índia que, muito mais do que os Hopis ou os
ZuKjs, há m u ito tBmpo já entendeu a situação do homem entre o seu passado e o presente, a oposição
mente eoorpo (sob a forma da opoeiçâo entre “corpo sutil” e “corpo grosseiro"), o papel da consciên
cia, receptora das percepções atuais como que condicionadas pela massa dos rastos inconscientes
acumulados e organizados em todas as vidas anteriores, e instrumento de ação que dita as condutas
através de um a escolha metódica de suas várias etapas (oque, como vamos ver, corresponde perfeita
menteaoque os Gnósticos chamam de “montagens”).
Contudo, existe nos Estados Unidos tamanha quantidade de publicações de toda espócie e de
valor muito irregular sobre o pensamento indiano, que podemos entender a reserva dos Gnósticos.
140
'S Y .V .V iN O A
K Sabedoria e a
'Çé ^eogn ósticas
Capítulo XIX
O ORGANISMO PSÍQUICO
Obscurantismo
Esse obscurantismo é bastante estranho, mas, pensando bem, 6 menos estra
nho do que perece. Ocorre um fenômeno Inverso e simétrico com os ultrepositívistas,
oomo o são, por exemplo, os neogenettdstBS. Esses acreditam que o universo é um
Cego absoluto, que a própria vida 6 uma crlstalzaçáo cega. Acontece que é com mais
entusiasmo ainda que eles adotam como ideal a conquista da verdade dentffica; eles
querem orientar para a dénda o esaendal das atividades humanas. Do mesmo modo,
ainda, os deterministas acreditam na liberdade (poHtica), sendo os predestinadonistas
143
os mais entusiásticos e preocupados na tentativa de salvação pela fé. Ao passo que,
inversamente, os espiritualistas, os que acreditam na liberdade filosófica e teológica,
costumam se r, no campo social e político, conservadores e autoritários.
Os Gnósticos curiosamente obedecem a essa lei de inversão. Sendo o universo
forma, informação» saber, o papel do homem é, antes, tomar-se um ser suficientemente
opaco e espesso para ser obscuro, e náo transparente, e para não perder-se numa luz
anónima.
Os Gnósticos execram os rios de impressos e imagens que submergem os civi
lizados. Deploram a inflação do ensino, principalmente do ensino literário e artístico (sa
be-se que existem professores para romancistas ou para dramaturgos nas universida
des americanas).
Na própria ciência, pela superabundância de informações, estamos de volta ao
tempo em que, por falta de informação e de comunicação, os cientistas, se estavam
geograficamente dispersos, não podiam ter lido as mesmas coisas, ter feito as mesmas
leituras de base.
As intoxicações cerebrais pela instrução são, para eles, bem mais graves do que
as intoxicações pelos subprodutos da indústria; os atravancamentos de informações,
bem mais graves do que os atravancamentos de máquinas e utensílios; as indigestões
de siglas, bem mais graves do que as intoxicações alimentares. O flagelo do material
impresso, dizem eles, seria ainda pior não fosse ele compensado por essa invenção ar
tesanal que é... o cesto de papel.
Mas eles também falam de modo mais sério. No organismo, existem órgãos de
proteção contra as informações intempestivas ou excessivas: pálpebras, filtros nervo
sos da zona reticulada, sono, etc. O espaço é “hotogramático" mas, pelo menos, nele
as informações (ou o material dessas informações) passam sem deixar vestfgios. Ao
passo que o espaço social está, hoje, saturado de informações que deixam vestfgios
perigosos. E, contra esses, faltam as instituições que pudessem exercer a função das
pálpebras ou das zonas reticuladas cerebrais. Como as serpentes que, não tendo pál
pebras, dormem de olhos abertos, os homens só conseguem salvar-se através do so
no e do entorpecimento. Só podem escolher entre a indigestão e o embrutecimento.
Em qualquer sociedade semi-instintiva e tradicional, existem órgãos de censura
extremamente enérgicos e filtros de informação. Os informadores intempestivos, os he-
reges, os ideólogos acabam sendo implacavelmente eliminados. É a esse preço que as
sociedades duram indefinidamente; e a maioria das sociedades acaba extinguindo-se
por não ter podido proteger-se contra as intoxicações informacbnais.
Outras perecem, aparentemente, peto motivo oposto, por terem tampado os olhos
e os ouvidos em demasia, e por falta de adaptação a um mundo em transformação. Em
qualquer caso, porém, para poderem durar, as sociedades devem filtrar as infor
mações, estabelecer censuras, cortinas de ferro. Devem pegar um tanto, e largar outro
tanto entre todas as informações que as invadem, e assimilar o que resolvem aceitar.
Seria, pois, muito pueril desconhecer essa lei biológico-social e considerar como
um ideal a abertura sem discriminação, o não-protecbnismo mental. O liberalismo é
uma palavra que soa bem e encobre, ou a fraqueza mental e a incapacidade de julga-
144
2°) A expressão religiosa náo vale mais do que a expressão do esquizofrénico, e
ó preciso abandonar toda essa figuração, tanto coletiva como individual.
3*) Finalmente, podemos também dizer "É preciso rejeitar todos os tabus sociais
e, depois, estudar com veneração os complexos dos cérebros perturbados, pois ó ne
le s que reencontramos os verdadeiros principios de um novo humanismo, além do hu
manismo úogentíeman ou do homem honesto."
Somente a primeira conclusão é razoável.
Simbolismo e fetichismo
O símbolo, o rito simbólico, como base e material para a construção da alma, so
fre da impossibilidade em que estamos, hoje, de transpor o símbolo em “magia podero
sa ", pela qual aquilo que se pretende significar é considerado aigo presente e atuante,
como nos “ sacramentos" de uma religião primitiva. Quando o batismo, os santos óleos
e a comunhão deixam de ser considerados como agentes mágicos, acabam conver-
tendo-se em cerimônias vazias. Eles podiam ter um conteúdo válido, social, quando
náo científico e "verdadeiro”. Mas, uma vez destruída a magia fixativa, o símbolo tor
na-se oco. Instintivamente, os interessados procuram preencher esse vazio com ideo
logias, mais falsas ainda do que o conteúdo primitivo, porém mais quentes e mais ple
nas, e que apelem para determinadas paixões, tais como o ressentimento, a vontade de
poder, a vontade de aristocratismo.
Na falta de crenças mágicas inculcadas desde a infância, os ritos das “ordens”
filosóficas, maçônicas ou gnósticas, arcaicas, nos quais os adultos iniciam sem con
vicção outros adultos, são vazios de significado e frios.6
Os Novos Gnósticos quiseram a todo custo evitar esse tipo de cerimônia. Eles
consideram que ó uma forma de fragilizar a alma e não de solidificá-la, querer recons-
truf-la com esse papier-mâchô. Eles acham que é defender mal as sacralizações ou os
tabus indispensáveis, fetichizá-Jos deste modo. Para resistir aos desmistificadores pro
fissionais, não convém dar motivo para qualquer suspeita de mascarada.
Não obstante, para construir a arquitetura psíquica, são necessários materiais
psíquicos, crenças, e não meros saberes. O problema parece insolúvel. Os Novos
Gnósticos, entretanto, nunca provaram tanto a originalidade e a força do seu movimen
to como ao proporem a solução por meio das “montagens” . Assim, evitam ao mesmo
tempo as ideologias e os símbolos-fetiches.
Para o conhecimento, a Gnôsis propriamente cttta, eles adotam como quadro de referência os
quadros científicos. Pare a ação e a sabedoria, o que eles adotam não são montagens referenciais, mas
montagens-açOes do Upo “esportista” (isto 6, análogas às montagens-atitudes de um esportista que
corre os cem metos ou os trda mil metros), que tôm a vantagem de não serem “ nem verdadeiras nem
falsas". Para sua atitude religiosa, adotam a fé “de Jò". isto é, excepcionalmente, uma montagem “ re
ferenciar, porém virtual ou aberta â maneira de uma montagem-ação - que se situa aiém dos referen-
6. Os vínculos ente Gnósticos e tranco-maçons, embora dfbeis de serem definidos, visto que as
diversas correntBS da maçonaria nos Estados Unidos sAo ostreramente ramificadas, existem sem dúvi
da, com empréstimos recíprocos. Mas os Gnósticos são hoelis ao simbolismo.
162
o ais que podem ser verdadeiros ou falsos, e que forçam uma dedsáo de ordem científica sobre a “ba
lança” entre os termos II e III.
Os estudos male posttvoe sobre os organismos unicelulares evidenciam fatoe que mudóse as
semelham ft passagem de um puro tema Improvisado do comportamento pare uma materiaJfeaçflo
anatômica, cujo funcionamento regulado chega, com aumentada eficácia, ao mesmo resultado que o
comportamento Improvisado.
Se compararmos, por exemplo, a ameba a outros protazoários que parecem mais evoluídos (In
fusónos ciliados), passamos de uma simples polaridade no oomportamenlo, que Improvisa uma espdde
de "cabeça" provisória e lábil, para uma polaridade de cetaüzaçfio m ais regularmente alternante e, por
163
fim, para uma polaridade permanente e para uma espóde de quase-cabeça anatômica. A cabeça, os
pós e o tubo digestivo são, assim, montagens ativas antes de serem esfruturas anatômicas. Por isso, no
homem, a m fio-ârgáo é como o hardware da “ mSo" oorticaJ que knprovlsa suas utilizações - mão que
oe se divertem desenhando-a sobra o homúnculo da área motore - e o olho-árgfio 6 o har
já
dware da área vteual oorBcaL Todo aer vtvo possui uma faculdade de auto-mgutaçâo que se manifes
ta nas reações metabóNcas, antee de qualquer edificação de um sistema nervosa O que permite supor
que esea edificação é guiada por bed-tiock temáNooa e stgnNcantse.
As montagens • a “sabedoria"
As montagens resolvem melhor o problema prático do "comportamento” do que o
recurso aos símbolos, aos ritos simbólicos e aos tabus. Ritos e tabus Ôbase de símbo
los são eficazes para reforçar as montagens, numa sociedade tradteional e protegida.
Todavia, no momento em que podem ser considerados falsos, eles colocam em perigo
as próprias montagens. É possível conceber um rito puro, sem crença teórica, um rito-
açáo. Mas, então, das duas uma: se ele pretende, por magia, atuar sobre o mundo,
acaba malogrando, e cedo ou tarde é abandonado; se ele age apenas sobre a psicolo
gia do executante, toda a sua substAnda está na montagem que o subtende. Dentro do
ambiente decapante da civilização contemporânea, é melhor ater-se ao "núcleo” não
contestável.
Sendo um órgão improvisado, uma montagem não é em si mais verdadeira ou
mais falsa do que um órgão constituído. Serve para a conservação e para o aperfei
çoamento vital, ou então não serve; é tudo o que se pode dizer a seu respeito. Uma
montagem não impNca crenças especulativas ("acreditar que»."), sempre criticáveis e
“falsificáveis”, e sim, apenas crenças ativas, tão pouco refutáveis quanto a Mbido ou o
instinto de conservação. Uma montagem pertence ao âmbito da açfio, não do conheci
mento. Ela é uma idéia encamada. Visa uma idéia - mas, aqui, a palavra "visar” é im
própria: uma idéia não é um elemento observável - arrtes, participa dela. Ora, uma par
ticipação, na medida em que representa uma resolução, voluntária ou não, nem é ver
dadeira nem falsa. Um artista agnóstico em relação ao universo pode acreditar na arte
pela arte (ou seja, adotar a atitude de.-). Um cientista positivista pode refugiar-se na
ciônda pela ciência. Ele não é mais refutável do que um entusiasta colecionador
de selos.
Um Gnóstico não é mais refutável do que um agnóstico, quando resolve adotar
alguma atitude, alguma crença-fé. E, além disso, ele é mais coerente. Ele sabe que es
sa adoção voluntária de uma atitude é o caminho típico de todos os seres. Ele seria cri-
ticável e refutável se pretendesse deduzir suas atitudes práticas da teoria gnóstica, se
dissesse, por exemplo; "O mundo é feito de formas ou de informações dotadas de sen
tido”; logo, “esforcemo-nos por pensar corretamente”, ou “dediquemo-nos a difundir as
luzes”, etc. Mas ele não diz nada disso. Ele admite a Gnose teórica sem, por isso, fa
zer do seu conteúdo teórico o princípio da sua conduta.
164
O Gnóstico apenas tem a satisfação de saber que, ao adotar voluntariamente
qualquer atitude (até mesmo e, inclusive, a atitude obscurantista), está fazendo o que
fazem todos os seres do mundo. Os seres vivos têm utilizado os processos mais va
riados para locomover-se ou defender-se: dão picadas, coices, mordidas, envenenam,
se escondem, assustam o inimigo ou fogem. Eles não precisam, antes de iniciar seu ti
po de defesa, teorizar previamente sobre a anatomia e a fisiología gerais dos seres vi
vos. Inventaram suas armas, suas patas ou suas asas sem nenhuma dedução lógica
das leis e das formas gerais da vida das quais participam na realidade.
Para edificar o homem, os iniciadores de comportamentos, os inventores - mui
tos deles anônimos e desconhecidos- de novas montagens, os profetas e fundadores
- que acreditavam ter descoberto uma verdade mas que traziam, antes, um novo órgão
vital - têm sido mais eficazes do que os “teoréticos” .
O fato de uma montagem não ser nem verdadeira, nem falsa, não significa que
não deva ser nem boa, nem ruim, no sentido amoral da palavra. Ela pode ser eficaz ou
ineficaz, útil ou perigosa. Certas armas orgânicas, certas invenções de órgãos, certas
escolhas de comportamento, têm se revelado mais eficazes do que outras. Uma in-
venção-criação de órgãos, embora não possa ser julgada teoricamente, acaba, no en
tanto, sendo julgada, em última instância, pela seleção natural, por essa face negativa
do cosmo que antigamente era chamada, no sentido positivo, de Destino, Tao, Fatum,
Providência.
Pode ocorrer que determinadas condutas e atitudes “virtuosas" só consigam le
var os virtuosos ao desastre. Pode acontecer também que outros sejam maus, sem se
alterarem com isso - pelo contrário, como o caso do vegetariano de Butier, que se
censurava muito por comer carne às escondidas, mas que se dava muito bem com is
so, embora sua consciência o reprovasse. Nesse caso, aliás, é de se desconfiar que
eles não são tão maus como se acredita, e como acreditam ser.
A palavra “montagem” , em francês, tem infelizmente um sentido às vezes pejora
tivo que os termos correspondentes em inglês não têm. Uma “montagem” é também
uma mentira, uma trapaça, uma emissão de ações sem garantia, um rombo financeiro.
Aliás, a palavra “ invenção" tem também com freqüência esse sentido pejorativo. Mas
as montagens-mentiras nunca são montagens puras: são conseqüência de erros es
peculativos semivoiuntários; são obra de uma função fabuladora, ao passo q u e não há
nenhuma fabulação no aconselhar uma atitude tal como: “Suporte e absten ha-te", ou
então: “Pratique a não-ação”.
As montagens são extremamente poderosas, tanto pera o bem como para o mal,
quando não são mais sentimentalmente neutras, quando náo são mais montagens
“técnicas” de orientação, de percepções e de ações subordinadas, e quando corres
pondem a crenças ”quentes”.
Mesmo "neutra”, ou puramente “técnica”, sem gravidade, uma montagem já é
muito poderosa. Manter o pé durante horas sobre o acelerador do carro que se está di
rigindo numa ionga viagem parece algo até agradável para muita gente. Manter o pé do
mesmo modo, ficando na garagem e por ordem de alguém, seria um suplício. Um ma
caco cosmonauta morre de terror ou de tédio ali onde o homem sobrevive porque com
preende e, sobretudo, porque está mentalmente preparado. Um trabalho imposto, em
geral requer menos esforço do que um esporte violento, mas é muito mais cansativo. A
vida num campo de prisioneiros é muito mais penosa do que uma vida monacal
consentida.
Os efeitos divergem cada vez mais, ou para a neurose, ou para uma edificação
psicológica. E, se valores pessoais estiverem em jogo, os efeitos cumulativos incons
cientes podem levar a torturas insuportáveis. Daí as causas ridículas de divórcio: ”Meu
marido ronca!”. Ao passo que uma mulher que ama o marido diz, emocionada: uO coi
tadinho dorme tão bem!”. Desprezar aquilo que se é forçado a respeitar exteriormente,
ter consciência da inutilidade ou da nocividade do que nos forçam a fazer, ter a sen
sação de ser explorado por um patrão em vez de trabalhar para a edificação de um
166
mundo novo, ser incompreendido, ser castigado injustamente, tudo ¡sso pode criar um
despeito que chega a dominar o resto da vida - mesmo indo contra o interesse pessoal
- e que sobrevive às crises provocadoras.
As montagens, como atitudes espirituais à base de valorização entusiástica, co
mo escolha fundamental, como fé numa causa, num ideal coletivo ou sobre-humano,
obviamente não são todo-poderosas. As maiores invenções dos Fundadores se per
dem no esquecimento, na indiferença, nos deslocamentos, nas perdas ou nas in
versões de significado. Os estoicistas podem muito bem não ser mais estóicos. Os bu
distas se esquecem de que devem extirpar a sede de existir, os cristãos se esquecem
de que devem amar o próximo, os místicos se perdem na política, os revolucionários se
transformam em reformadores complacentes.
As evoluções e revoluções das montagens, nas culturas, ao mesmo tempo em
que se assemelham às montagens de órgãos da evolução biológica, contrastam com
essas quanto à duração e à profundidade. Sem falar das “atitudes em voga", efêmeras
sobre o efêmero, e até mesmo das atitudes mais profundas, da “personalidade básica",
das tradições étnicas e nacionais, que passam e se sucedem sem deixar rastros apa
rentes. Elas moldam fortemente o psiquismo dos indivíduos, moldam a vida individual,
mas não parecem corroer a espécie nem modificar, como se diz, o genotipo. Não existe
hereditariedade-de-caracteres-adquiridos-por-montagens. Em relação à espécie bioló
gica Homo, as culturas, as crenças filosóficas e religiosas, não deixam maior im
pressão, aparentemente, sobre a pele humana do que deixaria qualquer cálculo particu
lar sobre uma máquina de calcular, ou qualquer texto sobre uma máquina de escrever.
Não devemos levar o contraste demasiado longe, como Chomsky o mostrou pa
ra a linguagem. As etnias históricas e seculares são realmente um primeiro passo para
o estado que produziu as raças milenares e pré-históricas. Numa escala de milhões de
anos, a natureza biológica não passa de um hábito.
A diferença, na escala da história humana, não deixa contudo de ser enorme, e
isso representa ao mesmo tempo um mal e um bem. Se mutações biológicas tivessem
“consolidado” o comportamento dos povos caçadores ou colhedores, esses povos ja
mais poderiam ter se tomado povos agricultores e, depois, industrializados. Se mu
tações tivessem consolidado o estágio do animismo ou da magia, o homem jamais po
deria ter inventado as grandes reigiões como o cristianismo ou o islamismo, ou ter
criado a ciência. Provavelmente os ressurgimentos da magia se devem um pouco às
inércias biológicas - a ponto de os biólogos sugerirem que o cérebro humano manifesta
“fenômenos de rejeição" em relação à atitude cientifica. Mas eles são devidos princi
palmente a inércias culturais.
Costuma-se lamentar que os civilizados ainda não passem de bárbaros mal saí
dos do seu estado selvagem. Contudo, isso é também uma boa coisa - pelo menos pa
ra os que gostariam de decivilizar ou reorientar a civifização.
167
Nisso, os Gnósticos retomam a matéria de todos os grandes Fundadores, que
menosprezaram a ¡déia de criar programas políticos ou ideológicos e pregaram novas
atitudes mentais. A diferença é que os Gnósticos não pregam, não querem fundar ne
nhuma nova religião, e só agem sobre si próprios.
Há um lado experimentalista na Nova Gnose, figado à profissão geralmente
cientffica dos primeiros Neognósticos. Diante da existência, eles são como os jogado
res do Elôusis cuja regra consiste em adivinhar a regra do jogo. Mas, como eles são ao
mesmo tempo honestos, acham fora de questão experimentar atitudes sobre os demais
- à diferença dos ideólogos que, com uma monstruosa leviandade, quando julgam ter
uma idéia, propagam-na e procuram impor essa idéia. Essa honestidade reforça sua
vontade de abstenção política e os leva a buscar montagens e atitudes “perante o uni
verso”, antes do que “ perante os homens". Toma-se às vezes difícil separar comple
tamente as duas atitudes, mas seria criminoso, em sua opinião, "brincar com os de
mais”, à maneira dos neuróticos de Eric Beme.
Capítulo XXI
O livro de Eric Berne: GamesPeople P lay,' foi traduzido em francês2 sob o título:
Des Jeux et des hommes. Seria melhor algo como: “Táticas psicológicas”, ou “As
Comédias que as pessoas representam", pois, na verdade, não se trata, de forma al
guma, de jogos alegres. Esses jogos, ao contrário, são desprovidos de qualquer humor.
Eric Berne inspirou muito os Gnósticos. Berne é um médico psicólogo, inventor da
“análise transacional” em psicoterapia.
1. Grove Press, Nova York, 1964 (IU: “ Os Jogos que as Pessoas Jogam”).
2. Stock, Paris, 1966.
169
Vejamos alguns exemplos, segundo E. Beme.
O jogo uSem Vocé”. Uma mulher se convence de que o marido a impede de realizar algo de
que, na realidade, ela tem fobia: “ Nôo ó que eu tenha medo; ô que eie me Impede. Sem ete, eu viaja
ría, teria uma vida sodaT, etc. Na realidade, o marido está poupando a mulher de sofrer medos neuróti
cos, dando-lhe uma confortável posição de mártir.
O Jogo do “ Alcoólaira” d jogado em d rico: o Alcoólatra, o Perseguidor, o Salvador, o “ Bobo da
histeria" (a mãe que dá o dinheiro ou o dono do bar que vende a cródto) e o Abastecedor (o barman). O
que o Alcoólafra procura, nfio ó tanto o prazer de beber ou de drogar-se, e sim, de tornar-se um "ho
mem que deve aer salvo", um náufrago, que atrai a atenção da fam ília, das organizaçóes filantrópicas
ou religiosas, um “ prato cheio" pare a censura ou para a generosidade piegas.
No "SchlemieT (termo ifdche), o Individuo A oomete uma gato, ou qualquer ato vil ou grosseiro
para com B - nSo por prazer destrutivo, mas pare conseguir o perdão de B, numa “cena de perdáo".
Em "A Perna Mecânica” , o sujeito representa o papel de enfermo, real ou Imaginário: “O que
vocôs podem esperar de um homem que fez a guerra da Coróia ou do Vletoá? De um homem que vive
numa sociedade captalsta? De um homem cujos pais se ¿bordaram? De una pobre viúva? De um
professor a cuja disposição o Estado se recusa a colocar um grande computador?"
Em "O Cavalheiro e sua Dama” , o Indivíduo A, geralmente um homem sem intenções reais de
conquista, aproveita cada oportunidade para extasiar-se com as qualidades de B (uma princesa distan
te). Eie pode, assim, manifestar diante dela sua criatividade, originalidade, virtuosismo na aite dos elo
gios. B responde oom urru "Vocé é form idável". O objeto é a “acfrrtraçáo mútoa".
3. Cosmic Games.
170
Na verdade, somos muitas vezes um jogador de má fé com o universo, e trapa
ceiro também. Com ele, assumimos o papel de criança e até mesmo de pai ou mãe.
Mesmo que a religião nem sempre seja uma neurose, como Freud sustenta, a verdade
é que muitas neuroses, quando projetadas na esfera religiosa, tendem antes a agra
var-se do que curar-se. Fazer sozinho as perguntas e as respostas diante de um Muro
e de um Mudo, é uma atitude essencialmente neurótica. Assim como continuar, como
uma criança alucinada, um diálogo durante toda a vida adulta com Isvara, com Ali, com
"Jesus" ou com a “ Virgem Maria” , ou, como o neurótico do famoso filme Harvey e o
Coelho, com o grande coelho de pelúcia de sua própria infância.
171
leva o paciente a tomar atitudes mais realistas e mais verdadeiramente benéficas, tais
como a coragem de buscar “o bom uso da doença”.
Os “sentimentos transcendentes”
Arthur KoestJer, que tem, como já saientamos, um estreito parentesco com os
nossos Gnósticos, propôs que se estabelecesse, com relação aos sentimentos ou às
“emoções” , uma distinção entre as emoções que os psicólogos e neurologistas vivem
estudando - a raiva, o temor, a tensão sexual, etc. - que tendem a suscitar uma ativi
dade motora aberta, agressiva ou defensiva, de ayto-afirmação (SA), e as que não
suscitam nenhuma atividade aberta - a simpatia, a admiração artística, a adoração, o
amor nâo-sexual mas produzem uma espécie de bem-estar.4 KoestJer chama a es
tas últimas de emoções transcendentes (S.Tr.). São, por assim dizer, as bastardas da
psicologia moderna, consideradas como uma categoria suspeita de pseudo-emoções
que não merecem a atenção dos laboratórios. E, ó verdade que elas muitas vezes são
hipócritas sob o ponto de vista social. Mas, quando são sinceras e feitas com base em
“montagens” de boa fó com o universo, elas acaJmam o nosso corpo e a nossa alma.
São “comoventes” sem nos fazer “mover em direção a— ". Seu denominador comum 6
um sentimento de participação, de identificação, de pertencer a um Todo que pode ser
a Natureza, ou a Alma do mundo, que se expande para além dos limites do individual. O
reflexo fisiológico característico, associado a essa categoria de emoções, consiste em
chorar, numa espécie de relaxamento, de apaziguamento catártico de todo o organismo
- mas aqui a catarse não é negativa; ela abre o ego para os Grandes Seres que o en
volvem. O riso, em contraste com as lágrimas, expressa a percepção do cômico, mas
vem geralmente acompanhado de uma excitação agressiva, que aumenta o tónus e
proporciona apenas um relaxamento superficial para um Eu que se afirma e se defende
contra o Outro.
172
As satisfações de uma intimidade com o Outro, livre de qualquer jogo, são tão
grandes que, até mesmo pessoas de personalidade frágil, depois de experimentá-las, e
quando tiveram a sorte de encontrar um parceiro adequado, podem, com toda a segu
rança, com toda a alegria, desistir dos seus jogos.
A “intimidade" é a sinceridade espontânea, a libertação da criança que a pessoa
tem dentro de si, mas num sentido sadio, sem intenção fraudulenta, da criança ingênua,
carinhosa, cuja sinceridade mobiliza sentimentos positivos, nela própria e no outro.
173
Como ter essa intimidade com um cosmo destinado por fim à desinformação, à
volta ao estado de pó, do tipo “superfície lunar"? Perspectiva curiosa para um universo
gnóstico do Espírito, esse desaparecimento final do Espírito, que deixa, no espaço e no
tempo, como único vestígio, a “lataria” das máquinas e dos organismos que ele mesmo
montou, e inclusive uma lataria destruída, despedaçada. Perspectiva final que, aliás,
muito se parece com a perspectiva inicial, na qual as partículas, os átomos, as energias
e os materiais parecem preexistir aos princípios de organização dos quais surgiram os
seres vivos, os homens, o mundo espiritual, e na qual as obras e os seres futuros só
existiam no estado de “luminescências esparsas de hidrogênio".
O que se pode dizer é que todas as experiências- para nós que estamos entre
esse começo e esse fim - manifestam a existência e o predomínio da consciência so
bre os materiais que ela organiza. O fato de esse predomínio ser precário, difícil, sujeito
aos atrativos ou às falhas de sua matéria, em nada altera o fato de que o Espírito, isto
é, a consciência e o significado, nela se manifesta. A idéia que temos - com a ajuda da
ciência- do começo e do fim do cosmo, é suficiente para esfriar nossas boas in
tenções de intimidade com o universo. Mas não pode fazer vacilar a fé gnóstica no
Sentido, além do pó e dos cadáveres, além das nebulosas amorfas ou das estrelas
“degeneradas” .
Suponhamos que um homem, favorecido pelos deuses ou pela sorte, tivesse co
nhecido a feliz intimidade com um outro ser, com a mãe ou a mulher querida. Quando
esse outro ser morre, ele se vê num mundo que, para ele, perdeu a alma, numa terra
que lhe parece tão vazia, tão fria como se ele tivesse sido transportado para os gelos
do planeta Netuno. E, no entanto, o universo foi capaz de lhe dar esse momento de in
timidade com um Outro que, como ele, surgiu do mundo. A intimidade humanei, displi
centemente destruida pela marcha inflexível do universo, foi-lhe dada, no entanto, pelo
próprio universo; ela saiu da intimidade subjacente da Unitas. Para aquele que continua
a ver sobre a face do céu o rosto de quem amou, são as “luminescõndas esparsas de
hidrogênio”, ou os gelos de Netuno, que parecem superfidais. Quando esse Rosto, so-
breimpresso sobre a face aparente do universo - e revelando assim, sem contestação
possível, um Fundamental vivo e dotado de sentido sob uma aparente desolação mine
ral - , quando esse Rosto o acompanha sempre, o Sábio não tem, assim, nada em co
mum com o neurótico que sempre vem acompanhado do grande coelho de pelúda de
sua infância.
Entre a má fé dos “jogos” análogos aos jogos com os homens, e que visam ma
nobras, e a intimidade difícil- conseguida sem ter de recorrer a um misticismo que os
Gnósticos rechaçam, que apagaria o mundo, que o aniquilaria como uma ilusão entre
Deus e nós, e faria do sentimento “oceânico", não um limite raramente alcançado, mas
um estado permanente, destruidor de toda forma, mais seguramente do que o pior nii-
lis m o -, resta então o recurso de procurar o meio termo das montagens e das atitudes
corretas.
Sei que os Gnósticos, em determinada ópoca, tiveram o projeto de uma espécie de Repertório,
semelhante a um tratado sobre a colheita dos cogumelos. Um repertório nâo-aentffico, porém prático,
174
oom as indicações de: “comestível” , “delicioso”, "indigesto”, "perigoso", “mortal” i É uma pena que te
nham desistido desse projeto. Mas nada nos impede de retomá-lo, na forma de um esboço. Ele é muito
característico da sabedoria, toda prática, dos Gnósticos, baseada na experiência psicológica e histórica.
Esse Repertório náo poderia ser científico. O que interessa ao colhedor de oogumelos, náo é a
sistemática dos gêneros e das espécies (pois na mesma espécie podem coabitar os deliciosos e os ve
nenosos, como as amanitas falóides e as amanitas comestíveis); o que interessa ao colhedor é uma boa
identificação. Também não poderia ser científico por esta outra razão: a de que “montagens” muito an
tigas, como as atitudes estóicas, epicuristas, budistas, ainda são vivas e utilizáveis em relação às mon
tagens inventadas em época mais recente e ainda para serem inventadas.
Que nos seja perdoada a falta de ordem da nossa enumeração. Mas é precisamente essa de
sordem que dará a idéia mais justa da sabedoria gnóstica, empírica e seletiva dentro de um comporta
mento tateante. Se o homem ocidental ainda estivesse numa cultura tradicionalista, que foi se adaptan
do durante uma longa história tranqüila, as montagens seriam “ordenadas" em todos os sentidos da pa
lavra. Não haveria problemas teóricos ou práticos. Mas o fato é que já passamos dessa fase, e é por is
so que o Gnóstico deve agir como Edison, experimentando centenas de materiais que possam servir de
acumuladores de eletricidade, e não como Newton ou mesmo Ptolomeu, pondo em ordem a astrono
mia de posição de seus prodecessores.
É um fato patente que, tudo o que é conforme uma longa tradição é “boa mon
tagem" quase que por definição, e que toda montagem tradicional deve ser considerada
digna de atenção. Tudo o que se apresenta bem equilibrado provém, por definição, do
“estado de repouso” das coisas e dos comportamentos: a família, os costumes, os
processos artesanais, os trabalhos e as festas habituais.
As montagens tradicionais constituem, hoje, uma espécie de paleontologia social.
Mas ainda merecem ser estudadas e analisadas quanto ao seu processo geral, pois
eram “orgânicas” , conformes de antemão ao que pede a sabedoria gnóstica. Apoia
vam-se sobre uma forte estruturação do mundo, do tempo e do espaço, sobre “leituras”
à base de artificios, porém muito eficazes para estruturar, por indução, a psique. Des
sas, deve-se reter algo a contrario. Constitui um perigo para o equilíbrio mental tudo o
que é desorganizante, desestruturante: os estudos teóricos universitários interminá
veis; as viagens industrializadas, tão nefastas quanto eram benéficas as romarias tra
dicionais; o ócio, as férias prolongadas, enquanto que as férias escassas e regulares,
ao contrário, ajudam à estruturação do tempo; as festas muito seguidas e permanentes
(ideal tolo de certos culturalistas), ao passo que as festas raras e regulares são benéfi
cas como peregrinações temporais.
Sabemos que foi a “montagem", luterana, da santificação do trabalho que fez a
grandeza da Alemanha, assim como a santificação calvinista do ôxito comercial e in
dustrial foi responsável pelo sucesso do capitalismo liberal, e assim como o aprimora
mento religioso na busca da habilidade técnica por conformidade ao Tao, fez a grande
za da China clássica, quando combinava - ao mesmo tempo em que se opunha a eles
- com o respeito confuciano dos ritos e a minuciosa estruturação do tempo bem como
do espaço.
175
uma maçada necessária à qual devemos sujeitar-nos com boa vontade para podermos
ser livres por outro lado.
Subindo mais um grau, chegamos à alta sabedoria do estóico, que concorda em
representar qualquer papel, porque pode livremente brincar de representá-lo tão bem
quanto possfveL
Entretanto, pode existir também um antagonismo entre as "montagens” e os
papéis sociais. Concordar em representar qualquer papel significa desprezar esse pa
pel. E esse desprezo pode chegar ao desprezo anarquista - “E se eu me recusasse a
ser um ator, não importa se bom ou ruim?” “ E se eu saísse de todo esse sistema fun
cional social para poder entrar na liberdade absoluta?".
É sempre sutil a distinção entre uma atitude “religiosa" e uma atitude anarquista.
Toda “montagem com o universo", qualquer que seja, comporta necessariamente um
certo despreendimento social que ó preciso controlar.
As montagens-revoltas
Às vezes pode ser necessário “pôr as garras de fora” para defender-se, ou ter
algum escudo, se deixou de predominar a boa vontade ou o utilitarismo inteligente na
sociedade, e se esta se tornou uma selva. Mas, numa sociedade assim degenerada, o
melhor é o desprezo irônico, sem amargura, e o retiro. Com, miticamente, o desejo de
ser invisível e, na prática, a vontade de reduzir ao mínimo os contatos com os homens,
sem ferir seu amor-próprio, que tem as garras de uma fera. A luta de Zoroastro em fa
vor do Bem, contra o Mal, só ô louvável quando o Bem já é ou ainda é majoritário. Caso
contrário, não passa de uma ilusão, de uma cruzada desesperada e desesperadora,
onde. a pessoa desgasta inutilmente sua mente e sua vida.
Os Gnósticos, rompendo com uma longa tradição americana, fazem questão de
manter-se “despoütizados” ou, antes, udesproselitizadosN, e não lutam por nenhuma
causa humana.
As revoltas satânicas ou byronianas contra Deus, contra o destino ou contra o
universo, são totalmente pueris. O “jogo da derrelição" dos antigos Gnósticos, retoma
do pelos existencialistas, o jogo do “Maldito” , de “Caim", do pacto com o Demônio, são
dignos de Bedlam (ou de Charenton).*
176
É preciso que Deus me ouça
O "É preciso que Deus me ouça" de Jó, de Prometeu, é uma montagem um pou
co diferente. Assemelha-se, antes, ao “jogo” de Eric Berne,6 no qual o cliente de uma
agência exige o direito de suscitar reclamações, não para ter seu desejo satisfeito, mas
para poder ser ouvido pelas autoridades responsáveis. Nesse caso, as autoridades
não devem procurar levar em conta as reclamações; também não devem acusar o
queixoso de ser exigente demais. Devem limitar-se a ouvi-lo pacientemente, mostrando
sinais de interesse. O queixoso não pede mais do que isso. O que ele quer é reivindi
car, não necessariamente conseguir (o que muitas vezes poderia embaraçá-lo).
É o caso dos jovens dentro da sociedade, que não sabem o que querem, exceto
que querem “dizer umas verdades” aos adultos.
Essa montagem pode ser válida se, ao formular sua queixa a Deus, o queixoso
se torna depois consciente de sua atitude pueril, chegando, assim, a exemplo de Jó, a
uma consciência mais profunda - e verdadeiramente gnóstica - do universo.
“O eterno retomo”
As montagens-bravatas
Muitas atitudes de revolta contra Deus (ou o universo) são como bravatas do “la
drão que deseja ser preso”, como no jogo infantil da Polícia e do Ladrão. O ladrão-que-
quer-ser-preso, à diferença do calculista, deixa pistas, umanchasn, insultos, “ advertên
cias” . Do mesmo modo, na política, há dois tipos de revolucionários e de inimigos da
sociedade. Ao lado dos calculistas há os falastrões que se expõem, se mascaram,
“sujam”, desafiam, insultam.
Perante o universo, os epicuristas egoístas - que não devem ser confundidos
com os utilitaristas benéficos — são como ladrões calculistas, quando dissimulam seu
egoísmo. Ao passo que os ateus fanfarrões desejam ser presos — para, naturalmente,
serem salvos no fim, e preferidos até mesmo aos devotos. Existirão, estes, no tempo
do “ Deus está morto7 Sem dúvida, e eles aguardam uma espécie de prêmio Nobel
cósmico, uma prisão-panteão ou um martírio-apoteose.
O “Mendigo de Deus"
Já nos referimos ao paralelo existente entre o jogo do Náufrago, caído na sua li
xeira, e o jogo do Alcoólatra. O jogo do Náufrago, do Mendigo de Deus, tem a vantagem
de transformar o universo num pai, severo porém indulgente, que se compadece e in
tervém. Uma associação anthalcoóüca ou antidroga cósmica há de acolher o infeliz, em
quem ela entrevó um santo. O Mendigo de Deus se dirige a um público mal-definido,
meio social, meio cósmico: “Considerem e observem... se há no mundo um pecador,
que só quer ser o maior dos santos”. Ele se apresenta como o refugo, o detrito, mas
também como o “desviador", o contrary one do cosmo, o qual, ele presume, deve estar
muito interessado no seu caso.
178
demais. O desempregado, por seu lado, procura trabalho mas, a exemplo do herói do
Colosso de Maroussi, de Henry Miller, sem nenhuma intenção de encontrar algum: “ Por
mais desesperado que eu achava que estivesse, eu nem me dera ao trabalho de per
correr as colunas de ofertas de emprego."
Essa atitude é muito freqüente perante o universo. Os agnósticos são, com
freqüência, desempregados religiosos que fingem estar procurando, e acabam tranqüi
lizando-se com a idéia de que não há solução. Essa atitude se expressa pela revalori
zação do mistério do Incognoscível, não como uma reserva positiva a ser conquistada
mediante o invento de engenhos psicológicos, e sim, como um oceano para o qual,
graças a Deus, não temos nem barco nem vela. Os velhos sábios são consultados
apenas pró-forma. O consulente deixa a entender que eles não são mais sábios do que
ele, e que ele não tem que “procurar emprego” - metafísico ou religioso.
Os humanistas difíceis
Goefie, ainda jovem, inicia seu Fausto ou seu Wilhelm Meister, e decide de antemão que o jogo
consistirá em não ter nenhum ôxito. Quando Fausto acredita estar a ponto de ter ôxlto, fica entendido
que está a malograr. Sabemos que Goethe, mais tarde, mudou de atitude e acredhou nas “ boas monta
gens’', positivas, no saint-simonismo, no trabalho produtivo, sem magia ou sem teatro, na aristocracia
por cooptação. A Société de Ia Tour, com o curioso personagem Makário que experimenta pela sua
sensibilidade o estado do cosmo, dirige oom sabedoria e secretamente a educação dos neófitos bem-
intencionados, que pretendem respeitar tudo o que é respeitável, tanto no homem como em tudo que
está acima do homem.
O Suspeitador universal
181
Os veneradores dos loucos
Até certo ponto, os loucos nos ensinam uma certa sabedoria: eles são um exem
plo, visto sob uma lente de aumento, dos processos universais da vida para operar
montagens à base de tabus, de ritos, de crenças e de atitudes simbólicas. Exatamente
como o estudo das monstruosidades orgânicas, dos desdobramentos anormais, das
más harmonizações de esboços embrionários é um guia de informações preciosas pa
ra os embriologistas.
Todavia, seria ridículo considerar um monstro de duas cabeças ou um microcéfa-
to como sendo tão normal quanto um ser normal, sob o pretexto de que o conceito de
normalidade não é científico (segundo os preconceitos positivistas). Mais ridículo ainda
seria achar que os monstros tôm revelado maior criatividade do que os seres normais,
e tomá-los como guias para uma nova direção da evolução. A evolução biológica é feita
por montagens ou comportamentos novos e heróicos nos seres normais (consolidados
eventualmente por mutações). Ela não é, como se afirmou, uma “teratología fecunda” .
O mesmo ocorre com a evolução das culturas. É verdade que a veneração dos
loucos é freqüente nas culturas primitivas. Nelas, a loucura é vista como uma manifes
tação divina, uma teofania. Nas culturas adiantadas, em todos os campos onde a razão
e o cálculo nada podem fazer, como no caso da decisão de soberania legítima, das
grandes escolhas políticas, da guerra ou da paz, dos jogos caprichosos da história-
evento, os homens se sentem tentados a se entregar ao acaso deificado, ao acaso da
hereditariedade ou da descoberta do novo Dalai-Lama, ao acaso dos presságios, às
entranhas das vitimas - ou aos loucos e profetas para sair do impasse e da inde
cisão, em virtude do princípio racional de que, uma forma qualquer é melhor do que ne
nhuma forma. O que não deixa de apresentar certos riscos podendo levar a resultados
catastróficos"
Mas a história-cultura não tem nenhuma razão para ser considerada da mesma
forma. Existem acasos na invenção, logo, uma certa esquisitice na aparência da novi
dade. O que é lamentável é superestimar sistematicamente todo artista, por exemplo,
que manifesta alguma anomalia crua, não superada, e recusar ver qualquer genialidade
em tudo o que é sadio. As boas épocas da cultura sempre mostraram o triunfo dos se
res normais sobre os excêntricos, sobre os beberrões, os poetas de bares ou os fuma
dores de ópio. As decadências começam quando os sábios imitam os loucos e procu
ram passar por loucos.
182
como a crença nos demônios, é uma forma de politeísmo. A Nova Gnose é profunda
mente monoteísta.
Com o “ anseio pela técnica”, ficamos mais próximos da região das boas monta
gens, tanto para com o universo como para com os homens. O anseio por urna boa
técnica tem isso de útil: ela foge ao duplo inconveniente da extrapunitividade (“ É culpa
do outro... da sociedade... do mundo... do destino”) e da autopunitividade (“É minha cul
pa... Eu sou um fracassado” , etc.). No diálogo quase permanente que o ego mantém
com ele próprio, o mais "eu” dos dois egos do diálogo desempenha o papel de urna
espécie de Deus, testemunha humorístico. O "eu” testemunha diz para si mesmo, ou
diz para o “eu" ingênuo que ele observa: “ Você não usou a maneira certa, mas tem
condições no futuro de usar o jeito cedo".
Na história biológica, todos os progressos importantes foram resultado de monta
gens de boa técnica. Deus sive Natura é visivelmente amante da técnica mais do que
de moralidade ou de justiça.
Ele não tem piedade alguma pelos maus técnicos. As normas dominam em todos
os campos, ao contrário das crenças ingênuas dos idealistas da liberdade, da fé, da
criatividade arbitrária. E essas normas são técnicas, e não morais. Do ponto de vista
econômico, social, demográfico, político, todos os êxitos são técnicos. Só que o uso
das boas técnicas nem sempre é devido a um anseio consciente prévio pela técnica, e
sim, ao contrário, a crenças mitológicas que não visam de forma alguma qualquer êxito
técnico.
Uma vantagem psicológica imediata desse anseio consciente por uma boa técni
ca - como montagem - é que ela é uma atitude adulta, e não de “ criança” ou de “pai".
Aquele que deseja ajudar a si próprio, que diz para si mesmo: “ Serei o meu próprio
conselheiro” , que nos acontecimentos incertos, pratica o “Vamos esperar para ver” ,
que confia em si próprio porque ele quer trabalhar - e não representar - , aprende a
respeitar o universo ao mesmo tempo em que tem respeito por si próprio, sem por isso
levar-se a sério - ou apenas na medida em que trabalha com seriedade. Ele deixa de
ser a criança, com seus vários salvadores, religiosos ou ideológicos. E, também, deixa
de ser o pai ou o guia para os outros. Ele se coloca frente a frente com um Deus adulto,
com o qual nem sempre tem uma intimidade mística, mas cujos métodos ele procura
seguir, e com o qual procura manter-se em sintonia: “ Seguir o Caminho, o Tao. Viver
‘em harmonia’ ”, etc.
O erro do Oriente - ou, antes, dos “orientalizantes" - sempre tem sido o de pro
curar uma intimidade pura - e em curto-circuito - com o universo. A intimidade (no sen
tido de Eric Berne) vale muito, pois vai além dos jogos de má-fé e, até mesmo, das
montagens - e das técnicas. Mas ela só consegue envolver essas montagens, essas
técnicas e as formas constituídas, ou então transfigurá-las, assim como a graça nasce
de uma arte perfeitamente dominada. A intimidade pura continua tão insustentável entre
o “Eu” e o universo como o seria entre dois jovens e tolos amantes que pretendessem
“viver seu amor” sem nenhuma técnica familiar ou social, sem atividade profissional,
numa viagem de núpcias perpétua.
Obviamente, muitas variedades de “montagens técnicas” têm valor duvidoso.
183
O “ tecnólogo pedante”
O fariseu
Há muito o que dizer a favor do fariseu, se entendermos por fariseu o homem que
mantém uma certa postura social e religiosa, que se apega ft fachada e ao decoro, que
manifesta a confiança que ele tem em si mesmo e no seu próprio sistema de vida ape
sar dos tempos difíceis, que não se deixa perturbar, afastando os suspeitadores, e
desprezando-os, e que tem o sentimento de constituir urna aristocracia humana tanto
quanto social. Ele se empenha nisso. A exemplo dos pioneiros americanos dos séculos
XVII e XVIII, ele ó o seu próprio exército, a sua polícia, o seu corpo militar de engenha
ria técnica. Cré em Deus e no seu direito. Toda aristocracia toi assim constituida por
um equilíbrio entre trabalho, sacrifícios e privilégios legítimos, conquistados à viva força.
O farisaísmo apresenta algo de positivo frente &s análises intemperantes que de
compõem todos os postulados de conduta, destronam todas as virtudes, reduzindo-as
à pura sorte, e inocentam todos os crimes ao explicá-los pelas circunstâncias psicoló
gicas ou sociais. “ Eu não quero saber disso” é, muitas vezes, uma interrupção ne
cessária da decomposição.
O abuso só começa quando surge o ritualismo, a presunção, o esgotamento do
esforço interior por trás da fachada, com os “Vejam como eu venci na vida", “Vejam a
minha boa saúde, os meus êxitos, a prosperidade da minha familia”. O fariseu, então,
em seu diálogo consigo mesmo, atribui a seu mérito técnico o que, na verdade, é devi
do à sorte, à sua situação de prebendado social ou de ser biologicamente favorecido.
Ele só agradece a Deus para melhor admirar a si próprio.
Hoje em dia, aliás, o farisaísmo dos revolucionários-que-admiram-a-si-próprios é
muito mais difundido do que o farisaísmo dos conservadores.
O taoísta modesto
Num certo sentido, por ela ser um início de criação orgânica, toda montagem
consiste em viver além das próprias possibilidades. Trata-se de uma antecipação ou
sada, baseada em possibilidades ainda imperfeitas; trata-se de um em préstim o náo re
embolsável, de uma petição de princípio. Toda a evolução biológica se fez d e s ta manei
ra: o arqueopterix não tinha meios de voar bem, os pré-homens cam inhavam e comuni
cavam com dificuldade. A mente sempre tem governado uma matéria rebelde e insufi
ciente. Ela sempre tem estado à beira do déficit.
185
Os Gnósticos constatam que, na civilização contemporânea, tem havido um ex
cesso momentâneo e artificial de meios técnicos, que atrapalha e, sobretudo, que ar
rasta. Mas não estamos destinados a usar tudo. No mundo físico, como observou um
físico gnóstico, reina o principio “da tirania absoluta” : ‘Tudo o que é permitido ó obri
gatório” . (Se um certo "salto quântico’ é permitido, podemos estar certos de que ele irá
ocorrer). Os homens também tendem a “ realzar tudo o que é permitido”. É possível
voar mais rápido do que o som? Então, vamos fabricar aviões supersônicos, etc.
Porém, ao contrário dos demais seres do mundo físico, os homens também conseguem
livrar-se - os ascetas provaram isso - do “principo da tirania absoluta”, através de
“montagens de abstenção”.
Assim como seria absurdo “quebrar” a técnica, como o querem os extremistas
da contracivilização, é uma atitude sensata viver um pouco aquém das suas possibili
dades.
Em virtude desse princípio, muitos Gnósticos desistem, não do conforto mas do
luxo inútil - não apenas de objetos materiais como tambôm de informações pouco as
similáveis. Eles desistem das residências de verão, dos cruzeiros marítimos, da tele
visão, do cinema, restringem a compra de livros, de revistas, de discos, de equipamen
tos esportivos. Eles se recusam até mesmo a interessar-se pela etnografía, e chegam
às vezes a ter uma certa aversão pelo material impresso, praticando o “culto do cesto
de papéis” e repudiando a cultura-de-gente-culta. E, obviamente, boicotam tudo o que é
filme, peça, obra pornográfica, sádica ou demagógica.
É preciso, no entanto, acrescentar que há outros Gnósticos que não aprovam to
das essas restrições e contestam o fato de que poderia haver realmente supera-
bundância dos meios técnicos e até mesmo das produções industriais. Eles admitem
que os homens, afinal, sabem o que querem melhor do que os high brows ou os head
eggs que pretendem impor aos outros seu próprio gosto.
186
O Sócrates dos Novos Gnósticos: Samuel Butier
Desde a fusão dos "Amigos de Samuel Butier" com o Movimento, muitos Gnósti
cos vêm considerando Samuel Butier como o seu Sócrates. Todos manifestam por ele
a maior admiração e todos encontram motivos particulares para admirá-k). Os físicos
descobrem que ele é um dos muito raros antecipadores da mecánica ondulatória, e
mesmo da mecânica “matricial" (em Unconscious Memory). Os biólogos aprovam suas
criticas sobre a seleção darwiniana mecânica, bem como seu mnemismo (Life and Ha-
bit, Evolution Oíd and New). Os sociólogos estimam que a sua versão do materialismo
ou, antes, da tecnologia histórica, supera a de Marx (em Erewhon), e que ele soube
prever como seria a atual crise das Igrejas estabelecidas.
Um homem digno deste nome: 1e, deve ter um ideal elevado: 2*. deve deixar terminantemente
esse ideal de lado ao primeiro sinal do senso comum.
Mas o que vem a ser o senso comum, assim erigido paradoxalmente como juiz
supremo por cientistas e sábios? Butier se diverte personificando-o na deusa Ydgrun -
disfarce transparente de “ Madame Grundy” , a respeitabilidade encarnada:
A despeito de todo o barulho que os Erewhonianos lazem em tomo dos seus (dolose dos padres
que eles mantém, nunca consegui me convencer de que a religião que professam conesponde, neles, a
um sentimento muito profundo. Mas eles tinham outra religião, a da deusa Ydgrun, que os dirigía em to
das as suas ações. Na realidade, ela era o seu guia supremo e a bússola de suas vidas... Os que mais
alto clamavam que Idgrun não era suficientemente elevada para eles mal haviam se elevado ató a altura
de Ydgrun. Aoonteda-me com freqüência encontrar urna certa classe de homens que eu costumava
chamar comigo mesmo de ‘Os altos ydgrunistas’, e que me pareciam ter alcançado toda a perfeição de
187
que a natureza humana é capaz. Eram gentíeman em toda a força do termo. E o que mais se poderia d i
zer quando se diz isso?
188
mentaneamente as costas às tolices triunfantes e em reconstituir uma pequena socie
dade do senso comum, contando com a seleção natural, eliminadora das tolices.
Vejamos uma comparação que será mais elucidativa para o leitor francês, pois
refere-se à moda. Por um longo tempo, a moda feminina parisiense deu o tom ao mundo
civilizado ocidental - não a moda muitas vezes feia e excêntrica lançada pelos costu
reiros, mas a moda filtrada pelo bom gosto, médio e espontâneo, das parisienses de to
das as classes. Hoje, esse bom gosto médio “explodiu". As “desviadoras” são quase
majoritárias, vestindo farrapos exóticos e pseudo-etnográficos. Quase não há mais na
moda uma “linha central". As mulheres sensatas não resta outra opção senão tornar-se
“desviadoras dos desvios" e voltar, como momentânea minoria, à linha central do “sen
so comum do vestir” .
Os verdadeiros feministas
O Valorizador do mundo
“Louvar a beleza do mundo” - é uma atitude que parece pueril. Equivale muitas
vezes a se fazer de criança diante do mundo, a jogar flores sob os pés dos deuses que
nelas pisam sem vô-las. Um jogo divertido, quando é superficial. Às vezes reconfor
tante, quando vivido profundamente. Pois, com efeito, a natureza é mais bela do que a
Dama idealizada pelo seu Cavalheiro. Um jogo também mais positivo que a atitude
schopenhaueriana, pois a contemplação estética Nberta da prisão da vontade.
Do hino de Akhenaton ao disco solar, ao Cántico dei Sole de São Francisco, os
poetas religiosos tém enaltecido a beleza do mundo, e as ideologias naturistas ou teís
tas auxiliares não fazem muita diferença entre o Rei e o Santo:
Tu te ergues belo do horizonte do céu, Aton, Sol vivo, que vives desde a origem... Encheste to
das as nações oom a tua beleza... Estás no semblante dos homens e tuas vindas nos sAo desconheci
das... Através de ti, o pintinho que está no ovo tala na casca... Tu lhe dás no ovo o poder de rompê-lo.
Ele sai do ovo para gritar o quanto pode e, quando sai, caminha sobre suas próprias patas.
Sede louvado, oh Deus, particularmente pelo Altíssimo Sol que, por sua espléndida beleza, re
presenta a Vossa Imagem... Sede louvado pela Branca Lua, pelas estrelas enantes.8
Mas talvez seja mais digno de um adulto louvar ao mesmo tempo a beleza do
mundo e sua impiedosa ferocidade, e, como William Blake, louvar tanto o tigre como o
cordeiro. O louvador transforma-se, então, em valorizador.
O valorizador é o inverso do desmistificador. Mas ele ó o verdadeiro desmistifi
cador dos valores artificiais em prol dos valores naturais, mesmo no seu aspecto ater
rador. A fé gnóstica admite, como a fé de Jó, certos limites à Gnôsis teórica:
O rugido dos leões, o uivo dos lobos, a fúria da tempestade... são porções de eternidade gran
des demais para o olhar do homem.10
Capítulo XXII
AS “MONTAGENS DE MISÉRIA”
O quietismo
É evidente que um Gnóstico não pode, assim, brincar de criança com o universo
- e todas essas montagens são próprias de uma criança. A atitude do quietismo tem
algo de mais profundo: entrega afetiva, e não união intelectual com Deus, renúncia ao
julgamento, puro amor, sem Gnose e sem prática, mística sentimental. Há ainda um la
do infantil no quietismo, mas os Gnósticos conseguem, entretanto, aproveitar algo des
se lado, precavendo-se contra a atitude de serenidade olímpica do homem que preten
de brincar de velho sábio; ou contra a arrogância do pedante tecnólogo, ou contra a ati
tude impassível e desdenhosa do índio “atado ao poste de tortura" e encarando o seu
adversário; ou contra a presunção do crente convencido de que faz parte do povo de
Deus e do exército celeste, ou contra a presunção do peregrino heróico à Ia Bunyan,
em busca da sua salvação, desprezando a Cidade da Perdição.1
O quietismo é positivo quando é uma busca de intimidade com o universo e
quando se toma uma montagem do tipo: "Valorizar o presente e deixar para Deus ou
para os deuses - isto é, para os grandes domínios intermediários - a preocupação com
o futuro e com o universal”. O universo e o universal são tanto mais vivos no presente
1. A Viagem do Peregrino (1678) de John Bunyan (1628-1686), obra alegórica que narra a viagem
de Chrisüan (o cristão) da Cidade da Perdição atô a Cidade Celesta, bi na Inglaterra do século XVII
quase tão lida quanto a Bíblia (100.000 exemplares foram vendidos em dez anos). (Nota de 1977.)
191
na medida em que representam menos preocupação, física ou metafísica e constituem
um pano-de-fundo transfigurador, e não um objeto de cálculo. Meu “aqui-e-agora” só se
pode fundir harmoniosamente no Eterno na medida em que náo fica totalmente absorto
em cálculos a longo prazo, e consegue desfrutar o presente. Depois da minha morte,
as árvores ainda estarão aí, mas eu não estarei mais aí para vê-las, ou para ver, pelo
seu “avesso", a “Árvore da Vida": “ Essa é a razão que me permite olhá-las agora, com
a maior intensidade possível." O sino-americano Lin Yu Tang, inspirado por outros sá
bios chineses e pelos grandes anônimos de todos os tempos, Gnósticos sem Gnose,
soube expressar muito bem essa atitude em seu Importance of Living.
O reino de Deus vive no mais profundo das almas, na submissão alegre às leis
inevitáveis e, para os científicos, no divertimento das invenções de todo tipo. Este é,
numa visão futura, o “programa de sonho" dos Gnósticos de Princeton. Mas eles estáo
cientes da dificuldade prévia de transformar primeiro o mundo comum numa Disneyián-
dia princetoniana, antes de transformar por sua vez a Disneylândia em reino de Deus.
Assim sendo, preferem a realidade ao sonho.
Quando identificamos nossa vida com uma ideologia qualquer, não é de surpre
ender que a vida sempre acabe parecendo inútil e vazia. Quando se vive o dia de hoje
sem a preocupação do amanhã, de uma refeição à outra, de cansaço em descanso, do
dia para a noite, o que poderia haver de vazio nessa rede de encadeamentos ondeos
fios aprazíveis se entrelaçam em maior número com os desagradáveis? Mas é preciso
combinar esse otimismo “de textura" com uma falta absoluta de ambição ou de vaida
de. Os Gnósticos adotaram, combinando-a com as fórmulas butlerianas, a fórmula da
felicidade segundo Edgar Poe: o amor de uma mulher, a ausência de ambição, a vida
ao ar livre (ou “uma vida tão natural quanto possível"), e a busca de uma nova beleza
(os Gnósticos preferem: “a busca da verdade científica” ).
“E o vento levou”
Não podemos afirmar que nossa vida não tem sentido. Mas ela certamente não
tem nenhuma importância. Não devemos confundir sentido com importância. Poder di
zer: HE o vento levou” , sem amargura e, até mesmo, com um otimismo cósmico e um
sentimento “oceânico” , é um passo decisivo em direção à sabedoria.
A MORTE E A IMORTALIDADE
A morte é uma pedra de toque para a Nova Gnose - conno também para todas as
doutrinas fibsóficas ou religiosas porém mais aínda para a Gnose, pois ela parece
ao mesmo tempo confirmar e infirmar a doutrina.
Ela infirma a doutrina. Já com a perspectiva - científicamente provável - da mor
te do cosmo por equalização térmica, esgotamento das “bombas H" estelares, trans
formação da matéria em radiações, desmateriaizaçflo em irradiações das estrelas, de-
generescôndas diversas da matéria nas estrelas anfis brancas ou nas estrelas de nêu
trons, ou nos residuos de supernovas ou nos quasares. Seja como for, a morte certa
da Terra e do sistema solar, fadados a espalhar em vão no espaço o pó dos nossos
cadáveres, essa morte cósmica, perfeitamente natural para uma concepção materialis
ta do universo, é inadmissível para uma filosofia que acredita na prioridade do Espirito
sobre a Matéria, do software sobre o hardware, do significado e do fim sobre os meios,
e que acredita nas “gerúdentidades" e continuidades semánticas, mais do que ñas
substâncias materiais indefinidamente subsistentes alóm de suas degenerescéncias
eventuais, ou na conservação da energía alóm das suas degradações.
Já, para a ciência - uma ciência, na verdade, muito extrapolada e conjetural - , a
matéria e a energia surgem (no Big Bang inicial ou através da criação contínua de hi
drogênio no espaço em expansão) antes da vida e da consciência, no sentido comum
dessas palavras. Para a ciência, matéria e energia são também destinadas a prolongar
sua existência como matéria e energia degeneradas muito além da fase- comparati
vamente curta - da vida e da consciência 'informadas*.
Ao menos localmente. Embora o conceito de um tempo cósmico não seja mais
uma noção clara e simples, desde a relatividade generalizada e os seus prolongamen
tos cosmológicos, embora não se possa mais falar de um presente simultâneo para o
conjunto do cosmo ou da vida - neste momento - de seres conscientes nas nebulosas
em recessão, embora nem mesmo se saiba mais, como o sugerem K. Gõdel e G. L.
Omer, se, na ausência do tempo cósmico unitário, não há linhas-do-tipo-tempo fecha
das, com a conseqüência de que poderíamos teoricamente voltar para o passado sem,
entretanto, percorrer o tempo ao contrário, tudo isso não impede que, localmente, po
demos em toda parte definir um sentido do tempo, uma passagem da morte para a vida
196
(por nascimento e ingresso de informações), e da vida para a morte (por destruição ou
degradação).
A morte individual dos seres vivos e dos homens parece desmentir violentamente
a Gnose. A vida de um homem, tanto orgánica como psíquica, é de fato, conforme à te
se gnóstica, uma "continuidade de significado", e não de energias ou dei materiais. Ma
terias e energias limitam-se a passar nas formas significantes dos órgãos, garantindo
sua solidez tísica, subordinada à sua solidez semântica. A morte, porém, parece des
mentir tudo isso. Uma “pane" de funcionamento, um acidente na resistencia física (par
ticularmente a quebra de um encanamento ou urna ruptura de aneurisma), náo só pro
voca o desmoronamento do corpo como também apaga a consciência, a mente, como
se a continuidade semântica fosse tributária da continuidade material, ao contrário do
que reza a doutrina.
Numa execução orquestral, uma corda de violino que quebra não destrói a parti
tura musical, nem sobretudo a música “pensada-. Numa máquina de informação, uma
pane nos circuitos elétricos não atinge o software - pelo menos o software “despaco-
tado” e que se apresenta como uma “partitura" para o engenheiro. Num organismo vi
vo onde entretanto, o software, como vimos, predomina - na qualidade de constituinte
n a embriogênese, dominante no comportamento, e reparador quando a pane ou o aci
dente é benigno qualquer pane grave o aniquila, fazendo assim com que pareça, por
fim e tudo analisado, uma resultante precária daquilo que ele parecia, entretanto, consti
tuir e dominar durante a vida.
O mais extraordinário, porém, neste paradoxo, é que a morte confirma também a
tese gnóstica. Uma prova, poder-se-ia dizer, de que as informações, as ligações de
sentido, os temas, mnêmicos ou originais, que progressivamente foram diferenciando
os esboços orgânicos e transfigurando os funcionamentos em comportamentos, eram
de fato constituintes e dominantes, é que, uma vez desaparecendo tais informações, só
permanecem do ex-ser vivo alguns quilos de ágia, carbono e cálcio, um pó ou uma nu
vem de moléculas, indistinguíveis dentro da massadas outras moléculas.1
Segundo os mitos prim itivos, a alma seevola, sai pela boca do moribundo com o
último sopro. Sobram os restos corporais, que
n§o desaparecem instantaneamente.
Esses mitos não dão a devida im p o rtâ n cia à W , e são iludidos por uma aparência.
Se as estruturas corporais não subsistissem por algum tempo, por efeito de uma sim
ples coerência física totalmente secundária, o cesaparecimento ou a salda da “alm a"
ou
teria por efeito instantâneo um desaparecimento uma volta do corpo ao pó. Tería
mos, então, uma visão mais correta da lurçâodaalma. Poderíamos assim “ver”, por
assim dizer, a "forma” deixando o espaço; elaseria“vista” negativamente, pelo desmo
ronamento instantâneo que a sua salda provocaria no espaço. Desse modo, a alm a
não poderia ser tão facilmente concebida comounsimples sopro amorfo, saindo de um
corpo estruturado por si mesmo e conservando aa estrutura ainda por um longo perío
do de tempo. Ela não poderia ser imaginada cono umsimples calor vital. Seria vista -
de modo mais verídico - como a própria toma®corpo, como o conjunto das Igações
constituintes que fazem do corpo um corpo organizado, diferente de um simples amon-
Contudo, seria uma partida por uma estrada doravante interrompida. Mais maravi
lhoso ainda do que a máquina de explorar o tempo, que vai do presente ao passado ou
ao futuro, o organismo v iv o - e particularmente a cabeça humana - “vai” do tempo ao
intemporal, e do intemporal ao tempo. O místico 6 considerado, tradicionalmente, como
remontando em direção ao Uno, ao Eterno, para além de toda técnica. O músico, quan
do não é um simples “fabricador” , mas “recebe" um tema inspirado, sente, para alóm
do tema, algo “indizível" que ele expressa, fazendo com que nós, também, seus ouvin
tes, possamos entrevé-io.
A morte, ao destruir a máquina orgânica, parece de fato destruir qualquer possibi
lidade, tanto de compreender como de expressar. Uma máquina reversível, uma vez
destruída, seu trabalho pára, tanto num sentido como no outro. Foi preciso a técnica ce
rebral para que o místico pudesse considerar-se além de qualquer técnica.
Um místico, após a sua morte, não se assemelha, aparentemente, a um místico
em estado de transe. O desmoronamento brutal de todas as suas máquinas orgânicas
pode dar a impressão de que ele simplesmente deixou, um pouco mais rápido do que
de costume, nosso baixo mundo a fim de alcançar o mundo da Contemplação e do
Uno. Mas ele também dá a impressão de que uma estrada acaba de ser irremediavel
mente interditada por alguma catástrofe. Parece-nos difícil acreditar que uma catástrofe
possa ser o aspecto que toma, aos nossos olhos, uma crise de inspiração um pouco
brusca.
O lugar misterioso de onde descia a inspiração do místico ou do músico certa
mente ainda subsiste. Mas, de que modo o místico ou o músico, se é que algo dele ain
da existe, saberia reencontrá-lo, quando todos os seus instrumentos, que o fazem mo
ver-se ao longo da dimensão hipergeométrica, guando todos os seus órgãos viraram
cinza? O caminho não tem mão única, mas para percorr&-lo em qualquer sentido, é
preciso estar vivo.
O Outro
Mas, como poderá o homem só, conceber o Outro ao qual ele está ligado? Cha
mando-o de "Você" e perguntando-lhe por que ele o suspendeu deste lado dos céus?
Ou dirigindo-se a ele como se fosse um HEun superior esquecido, uma Alma transcen
dente transformada em Alma do mundo? Isto seria, então, como imaginar, do outro lado,
um segundo homem semelhante a ele, tão monstruoso e abandonado quanto ele pró
prio, embora tivesse o poder de segurar por uma corda sua pobre duplicata.
Não se pode, com efeito, deixar de admitir que deveria haver alguma forma hu
mana, ou o tema de uma forma humana também no além, já que esse tema penetrou no
espaço durante o desenvolvimento. Mas, além desse além relativo, ê preciso que haja
ainda mais um, que seja mais “outro” . Se o universo fosse reduzido a uma serpente ou
a uma mosca em lugar de ser reduzido a um homem, dever-se-ia então admitir a
existência de um Deus-serpente ou de um Deus-mosca? Um Deus antropomórfico é
tão absurdo quanto um homem deificado. Saímos de um absurdo para cair em outro.
A única solução, se é que ela poderia ser considerada como tal, é admitir um
Deus-campo, incompreensível e incomensurável. Nesse Deus, toda vida se encontra
submersa, como num campo de gravitação. Mas trata-se de um campo de gravitação
hiperfísico, no qual experimentamos, não sensações de peso, mas de atrações “ideati-
vas"2 Ele rege o nosso comportamento, deixando-nos a liberdade de execução e de
adaptação. Ele nos guia e domina, não por uma corda ou por um fio de marionete, mas
fazendo-nos “participar".
200
Já que não podemos tomar ao pé da letra a imagem da corda, não podemos con
ceber a morte individual como um rompimento da corda. Nossos vínculos com Deus,
dominador de todos os domínios, princípio da unidade de todos os campos, são muito
mais estreitos. Deus é, em nós, o proprio campo orgânico, a alma do corpo. E é Deus
mesmo que, à nossa morte, abandonando o corpo material, deste só deixa subsistir
o pó.
Na verdade, como já sabemos, na retórica contemporánea, a morte de Deus nfio significa nada
aJóm da morte dos mitos religiosos como sentidos animadores da arquitetura psíquica do homem e da
arquitetura ideológica das sociedades humanas. Os que lançam essa “ demitfflcagfio” compreendem
muito bem que o desvanecer dos mitos nAo transforma a arquitetura psíquica ou a organização social
201
MOmB • ■ nonUM M O in iM IIIM ia n a
A alma individual, isto 6, o conjunto das Rgações informantes que seguram as ar
quiteturas orgânicas e psíquicas, é feita principalmente de inform ações-partidpações,
de informações modificadas por acúmulo de memórias biológicas ou sociais. A morte
individual não é a morte, nem da cultura que “pousara" sobre esse portador entre mui
tos outros, nem da espécie que continua. As ligações físicas s&o, ou parecem ser (ex
ceto na ficção científica) não destacáveis da "matéria", pois a matôria-energia comum,
que parece não ter memória, conseqüentemente parece ser eterna. E as ligações físi
cas que fazem a matéria, conseqüentemente, parecem tão eternas quanto a matéria em
si.
Ao contrário, ligações orgàrüco-psfquicas, mnômificáveis por participação, são
destacáveis do seu suporte material e formam um sistema, um complexo ou uma estru
tura semântica, não eterna ou imortal, porém mais durável do que os portadores indivi
duais. O músico morre, mas a música e sua evolução quase autônoma continuam du
rante séculos. A andorinha morre, mas a espécie continua e mantém seus representan
tes no espaço e no céu dos campos e das cidades. As espécies morrem, ou se trans
formam, mas a Arvore da Vida, enquanto o planeta for habitável, sobrevive à queda de
suas folhas e de seus ramos.
Muitos homens estão dispostos a contentar-se com essa imortalidade intermediá
ria . Quando uma célula resseca e se desprende de nossa epiderme, essa célula que,
com o todas as células do nosso organismo, jamais havia morrido, visto que provinha
e m linha contínua de uma outra célula viva, por definição - nós não costumamos nos
compadecer dela. Achamos que foi uma honra para ela fazer parte do nosso ser “ supe
rio r” . Assim também, quando tivermos de morrer, teremos de admitir que foi uma gran
d e honra para nós conseguirmos fazer parte, tanto de uma cultura social mais preciosa
d o que a nossa ínfima contribuição, como também de uma espécie Homo em relação à
q u a l nossa morte individual não passa de uma escamação insignificante.
Podemos até mesmo pensar que só morreremos de modo muito relativo, voltan
d o , antes, a fundir-nos no conjunto do qual participávamos. A cultura, social ou biológi
c a , era tudo o que havia de mais precioso em nós - sendo nossa individualidade sepa
r a d a um mero celofane envolvente que se rasga e recoloca seu conteúdo na massa, ou
n o “ complexo semântico” do qual tirava todo o seu valor. Vivfamos por participação im
p e rfe ita . Sobreviveremos de modo impessoal numa fusão mais perfeita, numa reidentifi-
c a ç & o com o “ participado” intermediário do qual bifurcamos.
Em suas obras de ficção, como também em obras mais sérias,3 Hoyle foi o prin
c ip a l defensor da "imortalidade intermediária". Segundo ele, náo podemos nem deve
m o s decentemente desejar uma sobrevivência pessoal ou, antes, individual. Qual o in
3. Frod Hoyle: The Black Ctoud e The Nature of lhe Universe (Ct. J. Merieau-Ponty, op. c it, p.
2 4 -« -2 4 9 ).
202
teresse em agarrar-se a um invólucro de celofane, quando temos certeza de que o con
teúdo não está perdido?
A sociedade industrial desperdiça as embalagens. A natureza também. E esta
usa processos melhores do que os nossos para evitar as embalagens não-biodegradá-
veis. Seria ridículo queixamno-nos. Um artista sincero prefere sua obra à sua vida. Uma
jovem mãe atirar-se-ia no fogo para salvar a vida dos seus filhos. Muitos animais pos
suem esse tipo de heroísmo instintivo. Eles se sacrificam facilmente em prol da sobre
vivência da espécie às vezes no próprio instante da reprodução.
Contudo, há algo que soa errado nessa concepção. A participação dos indiví
duos, tanto da espécie como da cultura, é por demais íntima e ativa para ser represen
tada como uma simples embalagem em copo de plástico, como uma apropriação pas
sageira e reversível de uma memória coletiva. O indivíduo também inventa e, ao inven
tar, ele visa, para além do momento cultural ou biológico, valores não-intermediários e
que ele espontaneamente considera universais e supremos. A própria arte parece si
tuar-se para além do “momento cultural” . Um escritor, ao mesmo tempo em que venera
a sua língua materna, deseja ser traduzido, e ele gostaria que sua obra tivesse um valor
universal. As religiões não querem ser uma simples forma religiosa entre outras; cada
uma procura estar mais no âmago do mistério da existência.
A natureza desperdiça mais os indivíduos do que desperdiça as espécies. Mas
também desperdiça as espécies. Se o desperdício possui em alguma parte alguma
contrapartida de “ capitalização” - ou de passagem para o eterno essa contrapartida
deve, portanto, valer tanto para os grandes “complexos” como para os individuos, e
tanto para os individuos como para os domínios intermediários. Não hâ nenhum motivo
para se querer salvar uns pelos outros. O velho conceito da volta para Deus - do re
tomo universal - pode ser um mito mas, em termos de verossimilhança, vale tanto
quanto o mito das ¡mortalidades ou das sobrevivências “intermediárias” por retomo, ou
transferência para os Grandes Domínios.
Também as línguas, como as espécies vivas, morrem quando seus talantes se tornam raros e
acabam extinguindo-se; este foi o caso do "polábio" e do "cómico", no século XVIII.4 Mas, na maioria
das vezes, as línguas que morrem deixam algo no idioma que as absorve. E, naturalmente, tanto para
as línguas como para as espécies biológicas, ao lado dos ramos estárels, certos ramos se transformam
indefinidamente. A morte, como a imortalidade, é relativa.
4 .0 polábio d uma língua eslava do Norte. O cómico, Ifogua céltica daCornualha, está extinto desde
o século XVIII; chegou-se a conhecer a pessoa - uma andfl - que, por um cuito periodo de tem po, foi a
única a falar o cómico. (Nota de 1977.)
205
muito produtivos na evolução, como os peixes rastejadores e os símios bípedes, perde
ram-se na multidão e são ainda mais esquecidos do que os gênios na história das cul
turas humanas. AJém disso, trata-se, afinal, apenas de uma imortalidade intermediária,
no sentido de Hoyle, ou de uma imortalidade dos hótons no sentido de Arthur Koestler -
sendo os hólons, ou os Grandes Seres cósmicos, eles próprios mortais.
Haverá transferência para a Unitas cósmica das memórias das espécies vivas
que desaparecem? Se raciocinamos por analogia com a morte individual, isto parece
bastante improvável. Sendo a hereditariedade dos caracteres adquiridos - isto é, a
transferência da memória individual para a memória específica - já tão contestável e
precária, uma espécie de hereditariedade dos caracteres cósmicos por transferência
para a Unitas da memória das espécies (e eventualmente de outros Grandes Seres,
supra-individuais e supra-especfflcos) é ainda mais difícil de se imaginar.
Mas não é totalmente inconcebível. Com efeito, não se pode dizer que o universo
não possui memória. Do mesmo modo como não só é cabível como obrigatória a hipó
tese de que "Existe pensamento no universo", visto que pelo menos alguns seres -
dos quais nós mesmos - são pensantes, também é obrigatória a hipótese de que “ E-
xiste memória no universo". Disso nfto se pode concluir que "Existe uma memória do
universo” ou que "O universo, em sua unidade, é 'memorante' ”. Mas isso pelo menos
toma a proposta não absurda, digna de estudo e concebível.
Os tipos de ligações que a física conhece parecem n&o possuir memória. O es-
paço-tempo, na sua unidade, n&o parece estar participando do seu passado, como o
faz uma individualidade viva; nfio parece conservar nenhum vestígio das curvaturas,
deformações, distorções ou passagens diversas que o informam a um dado momento.
O software do mundo físico, o que o anima, nfio parece ter a possibilidade de tomar-se
autônomo, à maneira do software biológico capaz de pular de um suporte individual pa
ra outro, ou à maneira de um soñware mental, capaz de resistir às degradações fisioló
gicas moderadas do cérebro et até mesmo, de passar de uma geração para outra, co
mo o espírito de uma cultura.
O que devemos admitir, no entanto, é que as individualidades com capacidade de
memória não podem surgir no universo por emergência milagrosa, e devem ter suas
raízes nas propriedades pré-mnêmicas dos seres e das ligações físicas aparentemente
sem memória, assim como a vida tem suas raízes nas propriedades pré-vitais das
moléculas. A não conservação da paridade para certas partículas pode nos dar alguma
idéia disso, ou a não invariãncia, em relação ft inversão do tempo, das interações
“fracas".
A irreversibilidade do tempo, o fato de que o tempo passa, indica por si só uma
espécie de memória do mundo físico, ou pelo menos alguma forma de sobrevôo do
tempo que o faz escapar da pulverulência dos "instantes" como também da pulvemlên-
cia dos “aqui". O espaço-tempo cósmico possui uma história, visto que o universo se
encontra em expansão - o que implica alguma forma de memória.
Existe um tempo cósmico irreversível, mais fundamentalmente do que pelo único ele tio da lei dos
grandes números da mecânica estatística e das misturas i Ia CamoL A irreversibilidade estatística nfio ô
suficiente, par si só, para justificar o sentido do tempo. O tempo nfio pára, mesmo quando a mistura al
cançou o estado estacéonáno. Ao principio de entropia crescente, é preciso acrescentar um princípio de
interdição que impede a leitura ao contrário, em retrodiçâo e nfio em prediçfio, de alguma fórmula,
mesmo de um fenômeno nâo-estatístico, como uma eméssfio de irradiações. A remateriailzaçfio da Irra-
206
diaçáo é um fato muito mais raro do que a desmaterializaçáo em irradiação. A famosa fórmula E = MC2
deveria ser indicada com a seta MC2 -» E. Pois ela significa muito mais a possibilidade de se tirar ener
gia da desintegração da matóha do que de se extrair matória a partir da reintegração de energia irra
diante. Há uma evolução global não compensada A expansão assemelha-se à degradação estatfstca,
mas é mais fundamental.6
Quanto às teorias cosmológicas baseadas na periodicidade (alternância de expansão e de con
tração): a) ou essa periodicidade ó perfeita, dentro de um universo fechado e oscilante, segundo a hipó
tese de Pachner - que não se deve confundir oom a teoria cosmológica de Gódel, onde não existe
orientação única do tempo e onde as linhas do tempo se reúnem por si mesmas, independentemente da
expansão ou da contração. A hipótese de Pachner consiste em admitir que os períodos são indiscri
mináveis, e que o tempo é finito, confundindo-se o inído do ciclo do tempo com o fim, confundindo-se o
antes com o depois. Um filme invertido do universo seria indiscriminável de um filme normal; estaria
simplesmente invertendo a expansão e a contração, as ondas adiantadas e as ondas retardadas, assim
como o filme invertido das ondas, produzidas sobre a superfície circular de uma bacia cheia de água por
uma excitação central com expansão para as bordas e, a seguir, retomo das ondas em direção ao cen
tro, redispersão, e re-retomo, seria indiscriminável de um filme normal; b) ou então a periodicidade ó
imperfeita, o que faz com que os períodos sejam discemíveis e se produzam, então, sobre a base de um
tempo irreversível onde ó possível numerá-los, em período 1,2,3 etc.
210
Embora não se deva tomar totalmente ao pé da letra esses nivelamentos, e por
mais que todos eles participem de um Transversal do qual não nos dão muito bem a
chave por simples analogia, a consideração e o estudo de que são objetos proíbem, en
tretanto, de se falar grosso modo, como o fazem os místicos, da Natureza como Maya,
como um véu a ser rasgado para se alcançar o Absoluto.
Alan W. Watts8 define Deus, à maneira oriental, como “o interior profundo das
coisas". Tendo falado assim, nos diz ele, diante dos seus filhos, ele os vê cortarem um
bago de uva e, a seguir, cortarem novamente a metade, para ainda encontrarem ape
nas um “exterior do interior” . Mas Deus, explica-lhes Watts, não é o “interior exterior";
ele é o “interior interior” , inacessível. A Gnose tem, da mesma forma, perfeita consciên
cia da superficialidade, não só dos interiores geométricos como também das consciên
cias em vários níveis. Ela também admite que estamos alienados da nossa própria infe
rioridade, e que não iremos encontrar Deus abrindo-nos a nós mesmos mais do que se
fôssemos abrir um bago de uva. Somos como uma mancha de tinta sobre o mata-
borrão que, suspeitando que está numa obra de arte, procurasse encontrar a consciên
cia do artista, seja em seu próprio centro, seja em seus contatos com as outras man
chas.
8. Alan W. Watls: Nature, Man and Woman. Tradução francesa de P. H. Gonthier 90b o titulo:
Amour et Connaissance.
211
um conceito muito mais profundo do que a crença na sobrevivência, ou mesmo que a
crença na imortalidade individual. A morte é um ato ritual por ser considerada uma pas
sagem para uma outra forma de vida. E a representação dessa “outra forma”, desse
“ além", precede e rege a representação da forma de vida do indivíduo no além. A so
brevivência pura e simples não é a imortalidade, que é reservada aos deuses. As reli
giões que pregam a salvação consistem justamente em prometer que a sobrevivência
será, além disso, uma participação dos iniciados na imortalidade dMna. Se os “deuses
imortais” desaparecem, sendo substituidos pelo Deus eterno, a imortalidade da alma
vem a ser, então, um retomo para o Deus eterno. A imortalidade individual passa,
então, a parecer tão mítica quanto a sobrevivência individual, mas a morte, com isso,
não deixa de ser - muito pelo contrário - um ato sagrado, uma passagem religiosa.
Além dos mitos da sobrevivência e da imortalidade individual, existe o “mito ver
dadeiro” do EspAito divino. Para os Neognósticos, todos os seres individualizados e
temporalizados não passam de “ Idéias" divinas, a quem é concedida provisoriamente
uma certa autonomia. As consciências individualizadas apresentam-se, assim, como
uma espécie de inconsciente divino, de “sonho de Brama” , como espécies de “outros
eus de Brama aos quais Brama se deixa levar, ao mesmo tempo em que deles par
ticipa “transversalmente".
Quando Brama acorda, o sonho, em sua autonomia, se desvanece. A memória
interior do sonho deixa de estar fechada sobre si mesma, perde seu "invólucro de celo
fane , é transferida para o Despertado. O sonhador humano também consegue se lem
brar de seu sonho: o “outro eu", o "eu mnêmico" passa, então, a fundir-se no “eu" atual,
central. Podemos tanto dizer que o sonhador desperta (e aniquila o seu sonho ou, an
tes, a autonomia do seu sonho), como dizer que o sonho desperta, se aniquila a si pró
prio na sua autonomia, para se fundir na “consciência-eu" única, e ainda ver a si pró
prio, mas do ponto de vista do ser que despertou e que recorda o seu sonho, e náo
mais do ponto de vista do sonho que vive por si mesmo e se vê dentro da sua própria
esfera fechada.
Assim, neste sentido, morrer não significa retomar para o nada, e sim, voltar a
ser o Deus único. Os indivíduos vivos são os "outros eus", fascinados, de Deus. A
morte abre essas fascinações fechadas.
Alguns entre os nossos Gnósticos, que não desejam romper sua afinidade com a
maçonaria mística, adotam as expressões maçõnicas para a morte: passagem para o
Oriente etemo, Iniciação suprema, etc.
Essa é a doutrina fundamental. Mas, para os “fracos", os Gnósticos propõem
uma série de exercícios auxiliares9 contra a ansiedade do desaparecimento da indivi
dualidade.
9. Para os quais os Gnósticos muito nos honraram servindo-se de nossa obra: Paradoxes de Ia
Conscience et Limites de /'Automatismo, Albín Michel, 1966.
212
II. O irmão não nascido: Mesmo pertencendo a uma família numerosa, de nove fi
lhos, poderíamos ter tido um décimo irmão. No entanto, não nos viria à mente compa-
decermo-nos desse décimo irmão não nascido por ele não estar vivo hoje. No entanto,
ele teve uma vida pré-natal tanto quanto nós, sob a forma germinal.
III. Voltar a ser o recém-nascido que fomos: Você recebe a promessa de que, no
instante mesmo da sua morte, voltará a ser instantaneamente - por uma curva espiral
do tipo Gõdel ou, antes, do tipo Reichenbach, em sua linha de tempo10- o recém-nas-
cido que você foi. O que isso viria acrescentar para você, já que suas experiências
serão, por hipótese, exatamente as mesmas, constituindo ou não uma segunda vida
(numericamente falando) ou uma enésima vida? E em que "sobreviver” seria muito dife
rente de "recomeçar a sua vida” ?
V. “Não se pode perder” a vida: É daro que ninguém perde a vida, por definição,
já que não há mais perdedor. Chorar os mortos é absurdo - absurdo, aliás, reconheci
do pelo senso comum. Não obstante, o senso comum vacila quando alguma vida pro
missora é cortada prematuramente: “ É uma pena." Mas, obviamente, é uma pena para
os outros, não para o ex-ser vivo. Vemos a vida do desaparecido como se fosse com
posta pela parte real e pela parte virtual, aniquilada. Mas para ele a vida não é aniquíla
10. Segundo Reichenbach, nfio seria oonfrário à lógica que um ser fizesse uma curva espiral no
tempo de modo a reencontrar o tempo comum, assim oomo se reenconta um caminho, depois de ter
andado em círculo pelos arredores do mesmo. Gõdel acredita que poderíamos voltar ao início geral do
tempo. (Nota de 1977.)
11. Cf. supra, p. 204.
213
da. Se ele se viu morrer, ele de fato sofreu, mas como ser vivo. A morte, como se diz,
übertou-o - o que, em última análise, não se pode dizer, pois o “eu” não existe mais,
tanto no acusativo como no nominativo embora, como na Morte de Ivan imtch, de
Tolstoi, seu último pensamento de moribundo possa ter sido, por antecipação, o de um
atfvio, de uma toertaçâo, depote de tantos pensamentos de agonia.
O fundo da questão ó que o “mal" não 6 o negativo, mas o “complexo", o des
perdicio, por colisão e hlbrídação, a "morte-em-vida", a doença, o luto dos sobreviven-
tes, a lembrança-parUcipação que esbarra dolorosamente com a idéia de que o partici
pado não existe mais.
VI. A morte e a corrida de Aquiles e da tartanjga: Existe uma analogia entre a cor
rida de Aquiles, que não chega a alcançar a tartaruga, pois nunca consegue alcançar o
ponto onde ela estava e ainda tem sempre de atingir o novo ponto onde eta está, que se
toma então o ponto onde ela esteva - e a corrida de um ser vivo que vai para a morte.
Em cada idade, ele tem uma esperança de vida, calculável por estatística, que diminui
mas nunca chega a ser nula. Ele sempre tem a mesma possfcidade, uma possibilidade
calculável, de ultrapassar essa esperança de vida e poder brincar de cara ou coroa pa
ra ver se consegue superar a próxima fatia de vida, sempre menor do que a preceden
te. Quando perde, não recupera nem ultrapassa nada. Pois não há mais corrida.
Vil. ■Ele precisava m orrer... Mas, como uma criança que não consegue adorme
cer e fica agitada e chora, ele não conseguia encontrar seu último sono."
A morte, depois de uma doença bastante grave ou de uma vida exaustiva, é uma
necessidade natural. Mas seria preciso deixá-la no estado “natural” , sem todos aqueles
artifícios que lhe são acrescentados, sem as cerimônias médicas, sociais, religiosas,
fiscais. O animal que morre naturalmente, de cansaço ou velhice, na natureza solitária,
não deve sofrer muito.
Na divertida comédia filmada O Pai da Noiva - uma sátira dos ritos sociais do
casamento nos Estados Unidos, cada vez mais complicados— , a moça, na véspera do
grande dia, mostra-se preocupada e nervosa. O pal acha que ela está inquieta diante
da iniciação ao amor físico: “ Não se trata disso, pai, pois é uma coisa natural. E, por
que iria eu ficar apavorada com o que é natural? O que me preocupa é a perspectiva de
tantas cerimônias sociais.”
A morte, natural como o amor, não deveria ser mais apavorante do que isso.
VIU. Pequim e o ano 2000: A morte é uma limitação no tempo: eu não verei o ano
2000, e nenhum ser atualmente vivo viverá o ano 3000. Por que, então, sofrer por essa
ümítação no tempo quando, por outro lado, não costumo sofrer com a minha limitação
no espaço? Eu riunca verei Pequim, e ninguém sobre a Terra jamais verá os habitantes
da nebulosa de Andrómeda.
Por que essa dissimetria sentimental entre os dois componentes do espaço-tem
po? Provevelmente, porque todo ser vivo é, de fato, velho como o mundo, ao passo que
nunca foi vasto como o mundo. Por isso, o Hmite final do seu tempo parece-lhe mais
cruel do que o limite do seu espaço.
X. A vida consciente não tem “extremidades”: A vida consciente não tem mais
extremidades do que o campo visual consciente. Nossa retina material tem extremida
des, mas a visão, não. O “eu” da consciência não pode ver as extremidades da sua
visão pois, como unidade da visão, não pode colocar-se simultaneamente sobre a
visão e a não-visão, e ver assim a fronteira. Podemos ver a extremidade doente da
nossa retina que se desprende, assim como um moribundo se vê morrendo. Mas não
podemos mais ver a extremidade da retina uma vez que a parte doente é destruida pela
coagulação cirúrgica. Uma consciência não consegue, no tempo, ver-se iniciar ou
ver-se acabar.
fís ic a e c o s m o lo g ía
Náo faremos, aqui, nenhuma referência a esses pré-gnóstkx» que foram Eddington, Whitehead
eJeans, mas citemos:
E. A. M lne: Modern Coetrology and the Chnsban Idea ofG od (Oxford, 1952).
220
Entre os autores franceses:
Jacques Meruead-Ponty, professor na faculdade de Nanteire: Cosmoiogie du XX6 siécle
(Gallmard, 1965), e (oom Bruno Morando): Les Trois Etapas de la Cosmoiogie (Laftont, 1971). Já assi
nalamos o grande Interesse desta obra, que não tem nenhum equivalente, mesmo na América.
o. costa de Beauregaro, direta de pesquisa no C.N.R.S.; suas idéias são muito próximas da
Nova Gnose: La Notion de temps (Hermann, 1963); Le Second Principe de la Science du temps (Le
Seuil, 1963).
BIOLOGIA E PSICOLOGIA
Além das obras de J. C. Eccles, já antigas mas que continuam clássicas, sobretudo The Neu-
ro-Physiological Basis oí Mind (Oxford, 1953), e dos livros de ficção ctentltica (mais do que suas obras
sobre a genética e a origem da vida) do famoso biólogo J. B. S. Haldane: Possible Worids] Callinicus',
My Fnend Mr. Leakey (George Alien, Londres), podemos mencionar aquí:
J. Marquano: Life, its Nature, Origins and Distributioris. Publicado na França por Dunod em
1972, sob o tftulo: Qu'est-co que la vie?
W. M. Elsasser: Atom and Organism (Prlnceton Untversity Press, 1966). Este professor, conhe
cido em Princeton, físico de origem, pubttoou multas outras obras sobre o assunto.
W. S. Beck: The Riddle ofLUe, Essays in Adventuros otthe Mind (Nova York, 1960).
E. P. WK3NER, professor no California Institute: Remarques sur les relations de l'esprit etducor-
ps, publicado por L J. Gooti na obra coletiva The Sdentist Speculatos. Traduzido em francés por Du
nod, París, 1967.
A rthiw K oestier: ins,ght and Outlook (Mac MHIan, Nova York, 1949). Todos os livros desle fa
moso romancista estflo mullo próximos das doutrinas neognósticas. A KoeaUer também colaborou na
obra coletiva de I. J. Good.
B. L W horf: Language, Thought and Reality. Traduzido em francés sobo tftulo: Linguistique et
anthropologie (Denoól, 1969). B. L Whorf morreu prematuramente, mas fot, antes do tempo, urrnéo-
gnósüco.
ERIC Berne, médico e psiquiatra no seminário de psiquiatria social de San Francisco: Analyse
Iransacüonnelle en psychothárapie (Evergreen, 1961); Games People P la y. Traduzido em francés sob o
tftulo: Desjeux et des hommes (Stock, 1964).
Acrescentamos, aqui, duas obras de nossa autoría que oontfim (por antecipação) o espirito
gnóstico: L'Animal, L’Homme, la Fonctíon Symbolique (Gallimard, 1964); Raradoxes de la consnence
et limites de /'automatismo (Albin Michel, 1966).
Durante estes últimos dois anoa/os Neognóstioos tãm se interessado sobretudo, pelo funciona
mento e peto comportamento do cérebro. Neste porrto, também, eles p a rte n da obeervaçâo deMfflca
mais estrita, aparentemente mais ‘ materialista” . Mas estão, na verdade, realizando a “ reversãopxtoti-
ca". Não nos foi possfvei aprofundar esse assunto na presente obra p o is 6 por demais recente «mere
ceria um estudo à parte. Os Neognóstioos também lém se dedicado a o s campos biopsíqulcos “çiase-
fnagnátjoQe", ao btofeed-òacdc, às ondas csrebrals. aos “ estados a lte ra d o s " de conedônda, à tunçâodo
rinsncéfato, ao sonho, à memória como fenômeno cerebral esupracerabraLe aos fenômenosdavisão
como hoiograma. Sobre estes assuntos, consultar:
A. H. Maslom, presidente do departamento de peiootogia d a Untyenidade de Brandas ReH-
gious Valúes and Peak Experiences (Ohto State Universtty Press, 1962); TowardaPsychotogyolBetng,
em francés pela Fayard, em 1972, sob o tftuto: Vers une paychotoge del'ê*e.
C. K Taht: AMerod States ofConsctousness (J. Wiiey. 1970).
j. Whtte: The HigherStatae otConadousness (Anchor/Doubledsiy. 1972).
V. Levy: Le Mystèredu Cerveau (ed. Mtr, Moecou-Paris. 1972).
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A GNOSE DE PRINCETON
Cientistas em busca de uma reaproximação
entre ciência, filosofia e religião
Raymond Ruyer