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O Elefante de Marfim
“Fabrico um elefante de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira tirado a velhos móveis, talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão, de paina, de doçura.
A cola vai fixar suas orelhas pensas.
A tromba se enovela, é a parte mais feliz de sua arquitetura. (...)”
Carlos Drummond de Andrade
Aos amigos,
melhores inimigos, empates.
ॐ
Índice:
~ Projeto de Próera:
0. Introdução ao Projeto: Página ॐ
1 . Projeto Conceitual: Página ॐ
2 . Objetivos Conceituais: Página ॐ
3. Objetivos Processuais: Página ॐ
4 . Justificativa Processual: Página ॐ
5. Interlocuções: Página ॐ
6. Plano Criativo: Página ॐ
7. Aeongrama: Página ॐ
8. Orçamento: Página ॐ
9. Poesia Escrita no Mapa do Museu: Página ॐ
10. Justificativa Conceitual: Página ॐ
11 . Carta da Compositora: Página ॐ
~ Libreto de Ópera:
12 . Projeto Dramático: Página ॐ
13. Simbologia do Texto Dramático: Página ॐ
14 . Personmargens: Página ॐ
15. Prólogo no Teatro: Página ॐ
16. Prelúdio: Página ॐ
17. Ato Primeiro: Página ॐ
18. Segundo Ato: Página ॐ
19. Ato Final: Página ॐ
~ Portitura de Ciberfonia:
20. Projeto Aural: Página ॐ
21 . Personmargens Aurais: Página ॐ
22. Ópera Elefante: Página ॐ
ॐ
O Elefante de Marfim
Projeto para Próera em Três Interatos
“Se você houvesse nascido nas costas do elefante,
rapidamente aprenderia a ver a mentira da terra.”
Provérbio Hindu
ॐ
0. Introdução:
1.5. Todas estas possibilidades enredadas sob um mesmo gesto coletivo formam a próera proposta,
onde os próprios agentes da produção, mediação e consumo artísticas são suas personagens (uma tragédia da
comedia de l'arte):
1.5.1 . O museu e os papéis que o compõem: administradores, faxineiros, cozinheiros,
galeristas, arquitetos, curadores, visitantes, monitores, educadores, seguranças, advogados,
vendedores, propagandistas, colecionadores, jardineiros, artistas.
1.5.2 . Os espaços de virtualização da arte: teatro, cinema, revistas de arte, publicações críticas,
internet, rádio, TV, etc. &
1.5.3. O público participador: através de um chamamento coletivo de atualização do projeto
por parte de artistas profissionais e diletantes em museus de suas cidades mundo afora.
ॐ
2. Objetivos Conceituais:
2 .1 . Um projeto que seja uma obra de arte conceitual em si mesmo e assim seja julgado, inquirindo
avaliadores sobre a relação de interação, empatia e nepotismo nas redes de seleção de obras de arte, enquanto
intervenção sistêmica (próera).
2 .1 .1 . O projeto deve ser entregue integralmente ao público, como programa da próera ,
em qualquer apresentação ou exposição vinculada ao mesmo.
2 .2 . Conectar e partilhar experiências na produção simbólica de um encontro de distintas
pessoas produzindo uma rede de obras em um atravessamento de mídias numa transcuradoria (Gesamt) que
potencialize as micro-redes de criação estética social mundo afora.
2 .3. Somar uma camada de experiência da alteridade no público quanto ao que possa ser
arte através da realização de um gesto simbólico que atravesse o museu enquanto ícone cultural, signo
curatorial, sintaxe museológica, símbolo social, dado estético do atual modo de vivência do campo sensível
(Kunst).
2 .4 . Perceber os limiares da saturação na produção humana de bens de consumo e arte
subjetiva (Werk), além das amálgamas cibernéticas potencializadoras das singularizações que despontam no
ruído informacional; e propor uma culturfagia (remythx).
2.5. Instaurar o conceito de Ab_Ismo : o in-manifesto da rede de vanguarda contínua
contemporânea imperceptível (Welt), onde: a música se torna ab_surdo, a dança ab_gesto, a pintura ab_strato,
a escultura ab_ate, a performance ab_rigo, a poesia ab_sê.
ॐ
3. Objetivos Processuais:
3.0. De modo a ressoar nos procedimentos de feitura a poética do cuidado do encontro de que
trata o projeto, buscamos uma série de interações durante a criação coletiva que convergem, inicialmente, nos
seguintes processos:
3.1 . Encontros presenciais (com telepresença ubíqua) semanais para organizar o plano de ação e
ainda caminhadas, visitas a museus, e procedimentos a serem encontrados.
3.2 . Uma performance no museu de Inhotim a ser coreografada com precisão e gravada de modo
que consigamos um vídeo de alta qualidade cinematográfica.
3.2 .1 . Inúmeras obras plásticas , de diversas técnicas e materiais, dos diversos
colaboradores e interlocutores com suas proliferações poéticas da obra servem de referência às poéticas
da intervenção.
3.3. Um vídeo de alta qualidade cinematográfica [videomapping] que servirá de cenário em
realidade expandida para uma ópera.
3.4 . Uma peça de teatro musical (ópera) que atua no campo simbólico da intervenção sobre a
cultura através de uma história comparada dos elefantes com a de artistas de todos os tempos.
3.4 .1 . Uma dança a ser transversalmente à ação narrativa e áudio-visual da ópera,
dando-lhe um corpo.
3.4 .2 . Cenografia integrada com as obras realizadas na ópera a intervenção artística.
3.4 .3. Uma peça de video-arte com as gravações da ópera e da intervenção mescladas.
3.5. Um edital de chamamento para que as pessoas façam intervenções inspiradas na performance
e na ópera.
3.5.1 . Inúmeras obras de diversas técnicas e materiais de pessoas mundo afora com suas
proliferações poéticas da obra.
3.6. Uma exposição (instalação) com o material adquirido a ser executada simultaneamente em
museus interessados.
3.7. Uma intervenção poética no sistema artístico a que chamamos de Negociação Social da
Dádiva que sirva como colaboração ao que Christoph Schlingensief chamou de Escultura Social.
ॐ
4. Justificativa Processual:
5.1 . ‘O Elefante de Marfim’ é, antes de mais nada, uma prece de agradecimento, uma meditação sobre
a escuta que a arte séria demanda do espectador. Na obra estão diálogos silenciosos com pessoas e grupos (estes
faróis conceituais num mar de desencanto e piadas) que formaram minha compreensão da experiência artística
enquanto revolução estética continuada e educação dos próprios sentidos. Provavelmente me esquecerei de muitos
nomes, e esta lista não deve ser lida como um cânone nem tampouco segue algum tipo de ordenação
hierárquica, até porque seria muito difícil saber onde termina um e começa outro coletivo.
5.2 . Não buscamos uma legitimação, mas sim não perder de vista o atual estado da arte. Para além do
revisionismo, que sempre elege seus heróis, buscamos apontar pontos de ação criativa que geram condições
para que as questões continuem atuais, ganhem adeptos, sejam expostas, extrapoladas em novas formas de
sensibilidade. Tudo vai virar arte pra vender souvenir, mas são os gestos de resistência cotidiana por uma
cultura livre e de cultivo coletivo que nos importam. O caso local só serve para propiciar uma soma de camada
de leitura à rede dos acontecimentos. Você também está no ab_ismo.
5.3. A todxs, imensa gratidão por vossas escutas e meus pequenos préstimos.
•Baobá Voador com sua cultura de sustentabilidade e cuidado, com
sua paz...
•Barulho.org com sua alegria exposta, com a abertura de campos
socializantes...
•Bijari com suas máquinas de sobrevivência, com seus vírus
sistêmico, com suas estratégias...
•Catadores com a câmera ovo, as micro-intervenções sutis no
cotidiano, as terapêuticas para tempos de transição poética, pelos
silêncios e os gritos, por não ceder perante a violência...
•Circuitos Compartilhados , com seus mapeamentos de locais
abandonados em plena cidade, seu posicionamento preciso, sua
entrega à escuta dos outros, como o delicado humor de filmar amigos
desligando seus televisores...
•Contato & Fora do Eixo com sua organização transversal...
•Coro com sua imensa capacidade de conciliação e de abertura de
diálogos, com sua simplicidade e doçura...
•GNU com sua abertura dos códigos de produção de consumo...
•Descentro & Submidialogia com suas compreensões de
intervenção diagonal sistêmica, com sua calma e paciência para
empreender gestos singulares, com seu diálogo com comunidades
afastadas bem como com grandes instituições...
•E/Ou Descartógrafos com suas resinificações dos locais, com
suas mitologias inventadas para coisas prosaicas...
•Eco com sua força impactante de atuação...
•Empreza com sua fuleiragem, com seus desabrigos, sua crueza...
•Escola Nômade com sua potencialização do saber enquanto
possibilitador prático, com sua criação de ferramentas para o
pensamento...
•Esquizotrans com sua ampliação das possibilidades afetivas além
dos gêneros, com os prolegômenos de uma ontologia andrógina, com
os domínios do demasiado...
•Etc com seus errorismos, com sua versatilidade e ironia...
•Experiencia Imersiva Ambiental com sua atuação sobre o corpo encarcerado e sobre as relações
urbanas, com seus jogos de desmontar regras...
•GIA com sua alegria e seus gestos coletivizantes...
•Ibrasotope com sua precisão e preciosismo, com sua seriedade de pesquisa e rigor de atuação...
•Matilha Cultural com seu atravessamento de fronteiras em prol de necessidades reais...
•Metareciclagem com sua reatualização contínua de si, com sua lucidez e pragmática...
•Naborda com seu incansável trabalho de manter todas estas pessoas reunidas e trabalhando nesta zona
poética, sem nunca esperar reconhecimento...
•Neomitosofia com seus hipermetasimbolismos e ampliações da literatura imagética...
•Núcleo de Subjetividade & Escola Nômade com sua potencialização dos saberes e das relações entre
eles...
•Opavivará com seu tesão enorme de viver, suas tomadas de naturalização dos artifícios...
•Orquestra Organismo & Movimento dos Sem-Satélites com sua expansão contínua das
possibilidades linguísticas, com sua apreensão do erro enquanto estética, com o hacking artístico na
programação cultural, com a escuta mais ampla que já conheci...
•Pharmakón com sua dança de poéticas, com sua entrega...
•Poesia Maloqueirista com sua irreverência e vitalidade...
•Poro com a delicadeza e sutileza, com o senso da beleza do tempo não esculpido...
•Pravida , Riverão & Exorcity com sua memória e inteligência, com suas experimentações de si, com suas
palavras nos muros, todas aquelas poesias em guardanapos soltas ao vento...
•Rádio Livre com a abertura do espectro da escuta, com a insubmissão a desmandos autoritários, com suas
táticas...
•Radioatividade & Frente 3 de Fevereiro com suas incansáveis intervenções precisas e alegres, com
suas pedagogias práticas, com suas danças de limpeza...
•Rizoma.net & Mídia Tática com sua interlocução e sabedoria conectiva, sua alquimia cognitiva...
•Ruidocracia com a hidráulica das conexões afetivas, com as redes de conhecimento libertador...
•Transnoise com seu ruído corporal, sua alegria, seu porno terrorismo...
•Universeless com o toque, com o vestir que não mascara, com o aconchego, com a disciplina e
perseverança contínua, com o erotismo dos signos...
ॐ
6. Plano Estratégico:
7.1 . Não trabalhamos com cronograma . O trabalho segue um tempo próprio, fora das normas de
regimentação extrativista da experiência de duração, de modo a que seu processo possa ser sentido
presentificadamente. Este projeto foi todo escrito levando-se em conta a ambientação temporal da ópera O
Elefante de Marfim, este tempo elefante. Segundo seu tempo mítico, estamos na era (kalpa ou éon) Kali Yuga,
a era de marfim (ou segundo Ovídeo nAs Metamorfoses “a era do ferro”), os tempos da loucura onde o
elefante cosmóforo se sustenta sobre uma só perna e só nos resta um quarto da sabedoria humana.
7.2 . O conceito de Idade o qual estamos acostumados a lidar é atrelado ao conceito de período
histórico, que, por sua vez, é determinado por premissas culturais que resultam na “historiografia oficial” e
num controle dos períodos rítmicos contrabiológicos. Esse modo de determinar o fluir da consciência
histórica é de conformação totalmente sinárquica e plutocrática, onde os fatos históricos são valorados de
acordo com o processo geral da sinarquia destinados ao cumprimento de determinadas pautas culturais e
ativação de determinados arquétipos. A divisão do fluir temporal é determinada pelo período de manifestação de
um mito, onde uma era é o espaço temporal dominado entelequialmente por um deus (centro tonal
mitológico) e a estrutura arquetípica por ele condicionada, de forma cíclica.
7.2 .1 . Æon: Este é o conceito
arquetípico do tempo fora do tempo que
vislumbra este pleno de várias eras, ou etapas,
ou períodos; e uma destas etapas dá lugar à
outra quando a influência arquetípica de um
modo de experiência, o seu predomínio
cultural e simbólico, é substituído por outros.
Por exemplo, a era viking acaba quando o
poder de Odin sobre o sujeito anímico coletivo
daquele povo já desfaleceu (aliás esta é a
própria essência do Ragnarok), a era Asteca
conclui quando os espanhóis substituem
Hutzilopochti pela cruz cristã (mas claro que
isto envolve inúmeros outros fatores
arquetípicos que foge ao nosso escopo). O
mesmo que ocorre com deuses pode ser
vislumbrado em mitologias mais laicas e
prosaicas (como bem o nota Roland Barthes),
em períodos artísticos sendo superados por
novas técnicas de expressividade. Após esta
“derrota”, o mito anterior ainda permanece
encrustado no inconsciente coletivo do povo o
qual ele animava, sujeito a revigorar sua força
arquetípica novamente quando da formação de
uma determinada estratégia psico-social que
trabalhe a atualização dos símbolos que
sustentam a manifestação desse deus. Que tipo
de implicações este conhecimento tem para a
vivência do tempo no cotidiano de uma operação
artística? Qual o teu Aeon?
7.2 .2 . A Era de Kali está caracterizada pelo completo desequilíbrio temporal já presenciado
na humanidade, nunca antes na história (de acordo com as fontes védicas) houve um período em que a
sabedoria (conhecimento com amor) estivesse tão degenerada e debilitada devido à desarmonia entre
os mitos pessoais de cada um consigo e com os outros. O fatalismo hindu diz que isto faz parte de um
ciclo, sendo impossível revertê-lo, “salvar” a humanidade. Estamos presos neste tempo por força do
próprio tempo. Quais as implicações de se colocar fora do tempo social, num aeon, neste sentido? Acredito
que a musicalidade que almejo esteja justamente neste fora do contemporâneo crônico, e esta próera se
desenha como uma saída para minha escuta, não por métodos ascéticos como no caso dos brâmanes
hinduístas, mas na via oposta, por um excesso que leve a um limite a cognição crônica.
7.2 .3. Os aspectos sensíveis da degeneração, como
vislumbrados na cada vez maior perseguição ao
conhecimento e às relações afetivas, são apenas o
manifestar desta idade sombria na intimidade dos
legisladores e controladores dos meios de produção. Se não
existissem as drogas e outras formas de entorpecimento e
(des)controle social, o Kali Yuga ainda estaria em marcha,
a degradação espiritual se manifestaria de outras maneiras.
A manifestação da queda espiritual (para além do tempo)
funciona exatamente como o princípio fundamental do
aprisionamento do espírito à matéria: doar sentido aos
entes; as barbaridades presenciadas no nosso tempo não são
o motivo final delas mesmas. Quando o tempo se torna
uma forma de controle das valorações de experimentações,
a aproximação da enteléquia de todos os arquétipos sociais
se vê tomada por pedágios semióticos, cessamos a doação
de sentido aos entes potencialmente úteis ao
desenvolvimento humano, e iniciamos a doar sentido aos
entes puramente úteis à realização dos desejos anímicos do
animal-homem. Quais as implicações na feitura artística deste tipo de utilitarismo sincrônico?
7.3. De acordo com King Parikshit, embora haja tantos males na era de Kali, é de grande importância,
porém, que lembremos suas benesses: a
apreciação da sabedoria que nas outras eras
tomavam toda uma vida agora podem ser
realizadas em um piscar de olhos, os males de
um implicavam em punições a todos e na era de
Kali a punição tende a crescer exponencialmente
no próprio feitor dos males, etc. Podemos notar
que as pessoas com modos de vida mais simples
são exatamente as que menos caem vítimas da
degradação do Kali Yuga, por seu modo aiônico
(em termos musicais, pulsional) de lidar com o
fluxo das experiências vitais. Da mesma maneira
podemos notar que o advento da religião é
sincrônico com a degradação das sociedades
tradicionais e impõe a industrialização da fé e a
burocratização dos encontros. Cada povo partiu
para se degenerar aos seus próprios modos, tal como fizemos todos com os povos paquidermes e de outras
espécies não-humanas. Qual o peso (gramma) das eras (aeon) em cada gesto?
ॐ
8. Valores, Orçamento Elefante:
Corvos de algodão
a humildade da ave
olhos abertos e úmidos
com a serpente ao bico
chilra, assui, issia, canta
cantamos
Sinos de Vigas
na montanha
o escaravelho
a dança dos lagos
abaixo do monte, fosso
onde se ouve
Spem in Nunquam
(onde a plateia se torna invisível)
palco
coxia (no palco)
palco
(seu coro de máquinas e coribante código)
O Espetáculo da Sociofonia
especificidade instantânea
nada
deita,
balança
a rede, a rocha
o mausoléu do vício
in ars
T ’ração
geodésica dos signos
fractoflora de caleidozoma
escorrendo creme ocor pó da lâmina
quimera terrena da bruma
raízes, mapas, mesas, cadeiras, c’asa
Mar de carne
goteira de sangue
ver-m’v-lho
azurre jogo cerâmico
chaminaves if ’ ungos
Abraçados somos um
orquídea e tronco
Palimpsecto
destratos, pingos
metálicos estruturas
no peso da elasticidade
veneno contratos
Odútos
montanhas bailarinas
em mármore livre queda
valor de velar
subterfício da malha
esferam entre véus
ao carmesim ó
Inútil Panarquitextura
amenos
despasso
docaos
Sacrossilente
escuta o som interior
fresta, festa, resta dos sentidos
a obscultar a mão e a...
fratura, fatura, atura
esta do engenho
embaralhadores de motores
contagem dos hilos às brumas
vesséis desviam a transparência do desejo
dluz
deixada a forma cabeça
no corpo do outro, no chão
Sob
orio
ecoavoã
ॐ
10. Justificativa Conceitual:
10.4 .3.1 . Imaginemos que seja paciente esta figura proboscídea vinda da constelação
de Cepheus: examinaria vinte e dois, mil e um museus, e acabaria por se aperceber que os
testemunhos materiais correspondem a um sistema coerente, que os edifícios têm uma
orientação de percurso, que alguns elementos se repetem (notadamente os que não são arte, a
princípio). Jamais conseguiria reconstituir o pensamento artístico conceitual, mas chegaria a
afirmar, na sua xenolinguística, que existe qualquer coisa de simbolicamente elevado por detrás
dos documentos incompreensíveis. Chegaria sem dúvida a uma reconstrução espantosamente
falsa de um culto religioso que mantém uma certa aproximação da entropia.
10.4 .3.2 . Foi o método de degustação da arte contemporânea que seguimos até
agora, renunciando a tudo o que se encontra nas obras de arte, tentando fazer um inventário
de tudo o que os museus deixaram de sensações experimentáveis na superficialidade do
efêmero, uma metamuseologia. Não nos preocupamos em dançar ao redor de um escultura ou
ajoelhar diante de tal jardim das delícias, mas sim tentamos absorver reflexivamente a que
correspondem a generalidade destas ideias na harmonia contextual da cultura, baseando-nos
naquilo que podia deixar testemunhos figurados (como este projeto). Será que precisamos
seguir adorando tais ídolos? E caso precisemos, será esta a maneira mais honesta de honrá-los?
ॐ
10.5. Anatomias Elefantes: Uma obra
de arte é o transbordamento de uma produção de
desejo social e histórica culminada através de
sacrifícios de uma rede cognitiva em prol de um
modo de experienciação e vivência. Neste sentido,
a crítica e a curadoria, agem como anticorpos da
arte, prevenindo que seus gestos poéticos tenham a
ressonância social devida. Uma obra de arte nunca
poderia caber em seu projeto. E um museu é uma
ópera onde o coro é impedido de cantar e as
personagens são obras dispostas no palco de modo
a manter sua aparência de neutralidade.
10.5.1 . Os participantes de uma ópera (como os
funcionários de um museu), enquanto operação sobre a
interação, contribuem em conjunto, para uma única
definição geral da situação. Não se trata de um acordo real
sobre o que de fato existe (fora do teatro ou do museu, no
mundo, ou dentro à obra), e sim um que se refere às
pretensões pessoais do compositor (que neste caso é o
colecionador ou investidor), temporariamente acatadas por
um grupo com interesses nesta execução simbólica. Trata-se
de um consenso operacional, que varia segundo cada cenário,
e que deve ser levado a cabo em nome de uma real
possibilidade de ainda fazermos arte dentro às instituições
culturais. A projeção inicial dos indivíduos os prende àquilo
que estão tentando ser, exigindo que abandonem outras
pretensões (um segurança não deve agir como conhecedor
das obras).
10.5.1 .1 . Modificações acontecem,
mas devem seguir a proposição inicial para continuar a serem aceitas, as obras devem ser
questionadoras mas não do próprio processo do museu e do teatro. A primeira impressão é de
muita importância, e é aí que a metalinguagem do poder assume suas formas de controle
simbólico sobre a arte. Quando o indivíduo passa a agir de maneira contrária à que havia
projetado aos outros, numa intervenção, todos se vêem envolvidos em uma interação para a
qual a situação havia sido definida erroneamente. Ela se torna, assim, não definida, dando à
personagem operística sua humanidade, seus traços afetivos. A ópera é uma solução
idiossincrática, da complexidade relacional: um elefante.
10.5.1 .2 . Ao desempenhar um papel, o indivíduo solicita que seus observadores o
levem a sério (e quanto mais alto seu papel social, mais hipocrisia e violência utiliza nesta
empreitada, sr. maestro), que acreditem que o personagem tem os atributos que aparenta
possuir (disse a compositora da próera pós-contemporâneo), que trará as consequências que
pretende à obra. De modo geral, ele pretende que as coisas sejam o que parecem ser
(metateatralidade da transparência apolítica de uma metamuseologia inerente à obra).
10.5.1 .3. Ser uma espécie de pessoa não consiste meramente em possuir os atributos
externos necessários, mas também manter os padrões de conduta e aparência que o grupo
social do indivíduo associa a ele (metateatralidade e harmonia contextual). Daí que seja tão
imprescindível concatenar montagens modernas a peças clássicas (arte contemporânea em
uma museologia antiga), com delicadeza.
10.5.1 .4 . Uma condição, posição ou lugar social não são coisas materiais passíveis de
posse e, em seguida, exibidas. São modelos de condutas apropriadas, adequadas e bem
articuladas com relação a um ponto de representação neural do teatro tornado máquina de
reflexão. A representação não é uma simples extensão expressiva do caráter esquizo de seu
autor ou autora. Ela serve, frequentemente, para expressar as características não deste
indivíduo, mas da tarefa que executa. Num nível social, não é próprio de um diretor de uma
companhia de ópera escutar sugestões de seus subalternos atores.
10.5.1 .4 .1 . Heroínas
e heróis devem agir, ou atuar,
de uma forma específica
porque toda uma plateia,
formada pela multidão
anônima de espectadores
possíveis, as está observando e
espera que elas ajam em
conformidade com sua
identidade. Assim, pode-se
vislumbrar a necessidade do
precariado cognitivo de
manter-se em anonimato
como mantenimento de sua humildade heroica. O papel que as anti-heroínas exercem
as obriga a tais ações, a partir dos modelos de conduta esperados de tal categoria de
humanos nos sistemas sociais impostos à sensibilidade cultural atual.
10.5.1 .5. A relação entre atores e plateia (funcionários e público-criativo), formada
pela multidão (e não mais a massa de consumidores de entretenimento), exige tal
comportamento, tratando-se de uma exigência moral e religiosa da ordem como organização
espacial. Por atuarem nesse papel, garantem o direito de serem tratadas de forma adequada,
segundo a posição social e a identidade que desejem manter. Tal padrão de comportamento
demonstra uma aceitação das regras e restrições
de maneiras de agir, impostas por um processo de
identificação. Há aqui uma ironia latente no
sorriso do elefante: a arrogância da arte
contemporânea se alimenta da ignorância
programada pela falta de contato real com a arte
por parte daqueles que a fruem, e mesmo
intermediam seu contato.
10.5.1 .6. Produção da escassez cognitiva: Esse
processo de identificação também pode ser reconhecido
na maneira como cada um destes lê a sociedade (uma
ópera para cada intérprete). O referido padrão de
comportamento seria, portanto, além de um processo de
identificação, uma relação entre ator e plateia (entre
artista representando os funcionários da burocracia
artística e público), na qual um papel específico é esperado
dos protagonistas. A glória do heroísmo necessita desse
mecanismo que coloca a atuação das grandes mulheres e
homens de frente a uma plateia (massa dispersa). A héroa
e o heroíno deixam-nos com a doce sensação de que não
precisamos nos responsabilizar pelo mundo.
ॐ
10.5.1 .6.1 . Essa plateia, uma multidão anônima (em nós), serve justamente
para, em primeiro lugar, colocar o herói e a heroína em evidência e, por fim, para
policiar os feitos dessas mulheres e homens, elementos que garantem as honras
especiais que recebem e os diferenciam dos demais. Somente com esse ato de
observação da atuação do herói e da heroína pela plateia, formada pela multidão, pode-se
garantir que as glórias publicamente conquistadas sejam revertidas nas honras devidas. A
internet já se ocupou de gerar o policiamento imanente de cada um dos agentes
sociais, só falta-lhes o reconhecimento e o poder para realizar obras mais abrangentes
e precisas. O compositor da ópera só quer ser reconhecido por ter aprendido a lição destes.
Quem teme uma ampliação da meritocracia compreende a corruptibilidade humana.
10.5.2 . Consequências materiais de uma disputa identitária: Tanto o conceito de identidade,
quanto a ideia de se entender as interações sociais por meio da metáfora operística de um museu, com
atores em obras e plateia, se estruturam a partir de um movimento relacional. No entanto, também
não se configura como uma ilusão que depende exclusivamente da subjetividade. A construção da
identidade acontece no interior de contextos sociais que determinam a posição de seus agentes,
orientando representações e escolhas. Tais fenômenos são dotados de eficácia social e produzem
efeitos sociais reais, estando longe de serem ilusões. A diminuição do conhecimento sensível da
natureza simbólica dos mitos locais é uma prática da diminuição do valor agregado ao trabalho local.
10.11 .0. A maioria dos escritos sociológicos assumem uma omnisciência autoral enquanto
uma instância básica. A raridade extraordinária de um elefante branco deu valor para a ideia de que este
é uma encarnação “pelo menos, de algum ser em um estágio avançado da viagem ao Nirvana.” Mas
então, depois de ter controle completo da narrativa, o autor pode invocar uma variedade de outras
técnicas representativas. A arte denota a superação de um afeto triste por parte do seu fruidor, uma visão
menos controversa é que um elefante branco é “um sinal exterior, sacralizado pelo costume antigo, da
grandeza do poder”, daí o desejo de possuir uma obra.
10.11 .1 . Pode-se fazer um uso seletivo de um número individual de pontos de vista,
emprestando um ângulo de visão a um personagem específico de acordo com seus propósitos. Por esta
razão, a descoberta de um elefante branco, particularmente no início de um reinado, traziam bons
augúrios. As vanguardas sempre foram recebidas com festivais e alegria, quando surgiram, mas isto
não quis dizer a compreensão do que diziam. Pode-se usar o teatro de ‘mostrar sem dizer’, para o
momento apresentando uma visão bem objetiva das coisas. Mensageiros dessas “novas gloriosas” eram
devidamente recompensados. Pode-se analisar sobre a história pelo uso de comentários críticos e
generalizações. De acordo com um conto estrangeiro, do reinado do Rei Mongkut Rama IV
(1851-1868), o portador de um elefante branco “era submetido à operação dolorosamente agradável de
ter sua boca, ouvidos e narinas recheadas com ouro.” Pode-se tomar uma visão panorâmica dos
eventos, dando conta dos acontecimentos simultâneos ou cenas dissociadas que o narrador-agente
pôde ter encoberto pelo uso dos mais improváveis dispositivos.
10.11 .2 . Nem todo mundo privilegiado o suficiente para encontrar um elefante branco fica
impressionado, porém. Em 1895, um nobre inglês comentou em seu diário (para
circulação privada): “As descrições românticas não têm
contrapartida na realidade, e o elefante branco
se prova ser mais ou menos uma ‘fraude’.
Pode-se descobrir múltiplos tratos e facetas dos
personagens e culturas sob o estudo, sem no
entanto dar proeminência a nenhum deles. Em geral a
arte é experimentada como um embuste.
“Ele não é nada branco, mas empoeirado”. O
especialista tenta convencer(-nos) que a cor é um
pouco cinzenta clara, e chama a atenção
para os olhos cor-de-rosa e ao branco das
unhas das patas. Mas tudo em vão!
10.11 .2 .1 . Vislumbramos no elefante branco três usos principais da metáfora:
enquanto dispositivo didático e ilustrativo da valoração social de um objeto ou
sujeito, sua participação na elaboração de um modelo de conduta econômica das subjetividades
neste tipo de relação de forças, e no enraizamento deste paradigma estético-social do zoopoder
valorado do qual muitos outros modelos podem ser encontrados.
10.11 .2 .2 . Manny Farber distinguiu duas formas de arte a partir de sua experiência
com o cinema: a arte termita que foca nos detalhes da sensibilidade e nas sutilezas das
sensações (como em Tarkovsky e nos coletivos de ação que homenageamos aqui) e a arte
elefante branco das obras sérias e complexas (como em Federico Fellini e Christoff
Schlingensief ).
10.11 .2 .2 .1 . Ele aponta três características principais da arte elefante branco:
elas constroem a ação sobre plano indefinido, colocam cada personagem, feito e situação
em um friso de continuidades, e tratam cada centímetro do meio como uma área em
potencial de criatividade digna de prêmio.
10.11 .2 .2 .2 . Aqui a megalomania deste projeto elefante branco encontra seu
equivalente na humildade delicada dos gestos quase anônimos do artistas do ab_ismo,
deixando o ridículo de nossa enorme falha aberta a um público camp.
10.11 .3. A comunicação
humana pode ser um relato de fatos
reais ou uma tentativa de sugerir
coisas e situações que não existem
como tais. Ganapati, gênio das
florestas de signos. A distorção e a
perversão de fatos ferem a essência da
comunicação humana. A batalha
sensorial contra o conceito de verdade
e a sensação de beleza como ilusões
parece ser incessante. A penetração
contínua em nossos espíritos de
ruídos de propaganda e de
argumentos incessantemente
martelados pode provocar duas
espécies de reações. Pode levar à apatia e à indiferença, a reação do “não me importo”, ou a um desejo
mais intenso de estudar e compreender. A primeira reação é a mais popular.
ॐ
10.11 .3.1 . Narrativas elefantes: As palavras nos permitiram elevar-nos acima dos
animais, mas também é pelas palavras que não raro descemos ao nível de seres demoníacos. As
narrativas buscam uma maneira de tecer as distintas partes de um todo complexo, dando-lhe
fluência melódica (mesmo quando a maioria de seus elementos seja ruidística). Rompida a
quarta parede do palco (ou ainda avançada esta até a porta do teatro e dentro das telecapturas
midiáticas), o público se vê abandonado aos desejos da compositora da ópera. Temos aí o
estado de desequilíbrio inicial de nossa narrativa que advém do desejo, como uma cobra caída
ao nosso ombro. Com a percepção do encantamento teatral sobre si, os personagens rompem
novamente o ritual da representação, quebrando o encantamento da narrativa sobre a plateia
que é obrigada (agora em potência exponencialmente maior) a se posicionar como atuante e
interventor da realidade.
10.11 .3.2 . Hipersurrealismo: Os acontecimentos sobrenaturais (assim como os mitos
sobre os elefantes) intervêm
rompendo o desequilíbrio
mediano da normalidade
aparentemente natural da
realidade, provocando uma série
de tensionamentos que
provocam por fim este
desequilíbrio reverso onde o
surrealismo aparece como mais
real que o realismo fantástico. O
sobrenatural aparece na série de
episódios que descrevem a
passagem de um estado prosaico
e cotidiano a outro, um vão da
razão em seu mais puro
anti-humanismo
(Vampyroteuthis Infernalis).
Retira o véu de realidade crua do
que se passa com os próprios
sentidos perante a obra, espelho
neural através de um olho
caleidoscópico. O transtorno da
assombração (o fantasma-ópera)
traz a narrativa do libreto como
algo não só fora da situação usual da ópera e do cotidiano do espectador, mas fora do próprio
mundo natural que gera as obras de arte e os estupros. O fantástico na narrativa coloca a
questão ética num outro lugar que o da moral: no da lógica sensível (Lewis Carroll).
10.11 .3.2 . Transrealismo: A próera (narrativa elefante), é o abismo entre real e irreal:
transreal. De maneira mais geral, ela contesta toda a dicotomia simplificadora e sintética do
pensamento operístico num clara abertura da representação à intervenção simbólica dentro da
sensibilidade espectadora. É a própria natureza da artificialidade recortando o dizível em
pedaços descontínuos, explicitando o belo canto como vômito e o piano como cadáver de
elefantes. O nome, pelo fato de escolher uma ou várias propriedades do conceito que ele
constitui, exclui todas as outras propriedades do conceito que ele possui. Eis a irrealidade da
palavra na voz. O timbre e a intonação vocal, o melonema, constituem uma camada
subliminar da palavra teatral, são a comunicação infralógica da mesma como a comunicação
sísmicas dos elefantes através de seus estômagos soantes e seus pés que ouvem.
10.11 .3.2 .1 . Tal como a literatura com a linguagem, a poesia com a narrativa,
como o ruído com a música, a próera disrompe a ópera a partir do cerne intencional de
sua empresa subjetivante. A
obra além da obra demanda
um espectador além do
humano e um teatro que se
reconheça enquanto tal. A
situação é sempre mais
complexa: pela hesitação de
qual dimensão de leitura está
a atuar em nós, a próera
questiona sua necessidade e
estratégica de atuação
mesmas. Leva assim a ópera
à sua conclusão óbvia (além
do musical de revista e do happening neural): A próera nos leva a rever a
representatividade da obra de arte total num mundo totalmente artificial. Libera a
escuta pelo excesso de amarras.
10.11 .3.2 .2 . O desvario é o resíduo mimético da arte, o preço de sua
impermeabilidade. Este momento, enquanto resíduo de algo de irredutível estranho à
forma, de bárbaro, transforma-se ao mesmo tempo na arte em mediocridade,
enquanto esta o refletir em si sem o perscrutar. O puro desvario cai facilmente no
kitsch da forma e no camp do gesto. A arte, implica o kitsch com o aspecto social, de
tal modo que, caso contenha-se para agradar a uma gama maior de espectadores, para
sublimar esse momento, pressupõe o privilégio cultural e a relação de classes
incorrendo então na pena de se tornar entretenimento. Contudo, os momentos de
desatino das obras
de arte estão
muito perto dos
seus estratos
não-intencionais,
constituindo o
segredo das
grandes obras, ao
mesmo tempo
misteriosas e
estranhamento
risonhas. Temas
insensatos como
os da Flauta
Mágica e do
Freischütz, graças
à música tomam
um sereno tom
jocoso, enquanto O Anel dos Nibelungos arrisca toda a música por tentar abraçar toda
a escuta com uma consciência séria. Há um certo humor nietzscheano na ópera
wagneriana: o que é uma comédia perto de uma casa de ópera? O valor de sua entrada é
a entrada na instância da valoração capital.
ॐ
10.11 .4 . Descobridores de talentos e pesquisadores de tendências artísticas bem o sabem, agem
como cornacas procurando pelos
desvios padrões repetíveis dentro
da economia cognitiva e
mantêm-nas sob controle por, na
maioria das vezes, mais
estipêndios que seus contratados.
Os artistas excepcionais, são assim
tratados como animais de circo,
homens elefantes. Musicais de
revista lotados, óperas vazias,
experimentalismos tidos como
freak-shows. De qualquer
maneira, o artista pode ser
censurado socialmente, com a
melhor das obras e das intenções.
O sistema da arte é forjado para
manter este espetáculo de sacrifício poético, de modo semelhante a como, eras atrás, os sistemas
védicos tomaram os mitos animistas dravídicos ou como os atlantes (do oceano Atlântico) dominaram
os povos de Mu (Polinésios)
10.11 .4 .1 . Elefantes palhaços: No
elemento burlesco, próprio das óperas, a arte
relembra com satisfação a pré-história no
mundo animal das origens. Os elefantes
antropomorfos dos contos infantis executam
em comum o que se assemelha a atos de
palhaços. A conivência das crianças com os
palhaços , é a mesma que os adultos recusam à
arte e mesmo aos animais. O gênero humano
não conseguiu um tão pleno recalcamento da
sua semelhança com os animais que não a possa
reconhecer subitamente e ser então inundado
de felicidade e fúria; a linguagem das
criancinhas e dos animais parece identificar-se,
são cruéis e adoram o palhaço, como os adultos
esperam o sacrifício da casta diva. Flüsser trata
de apenas duas modelizadas de animais: os
humanos imperfeitos como um elefante que
poderia andar sobre duas patas em cima de um
patinete; e as aberrações humanas, como o
Vampyroteuthis Infernalis. Num certo sentido,
o elefante de marfim é uma mistura dos dois:
uma aberração das imperfeições animais em nós
humanos dentro deste mesmo pensamento ético e
moral (vigente). Na semelhança dos palhaços
com os animais, ilumina-se a semelhança
humana aos elefantes; a constelação
animal/louco/palhaço é um dos estratos
fundamentais da arte.
10.11 .4 .2 . Fezes de elefante: a música é alimento do espírito, a ópera seus restos
simbólicos. Soar é antes de tudo uma necessidade fisiológica, mas sobre estes aspectos da vida
muito pouco é dito, por tabu. Como pensar uma educação para a defecagem, de modo a
melhorarmos o sistema gástrico subjetivo. Há uma metáfora fantástica aqui. O caráter
enigmático das obras de arte permanece intimamente ligado à história, como as fezes fossilizadas e
os estudos da nutrição antiga. Por isto também foi tão importante a cultura de massa do século
XX: embora às custas do menticídio e sensibilicídio de milhões, agora sabemos o valor da arte
enquanto enigma do espírito perante a animalidade instintiva. A arte seria o cogumelo
psicoativador nascendo das fezes. Mesmo num futuro lendariamente melhor, a arte não poderá
renegar a lembrança dos terrores acumulados; de outro modo, vã será sua forma.
ॐ
10.12 . Símbolos Elefantes: Elefante é um símbolo da complexidade, da cifra que entranhada torna o
todo maior que as partes. Neste sentido é um metasímbolo, - Ganesha, representação da indizível divindade - da
linguagem das artes como semiótica da abstração. Gajanana, primeira entidade a ser reverenciado em todos os
rituais Hindus, à semelhança dos exus no candomblé e umbanda. Nas portas dos templos e casas protegendo as
suas entradas e saídas. Vakratunda, remove todos os obstáculos, protetor de todos os seres.
Imagem-conhecimento. Lambakarna, o sábio, o pensamento animal nos gestos humanos em plenitude, os
meios de realização. Sua figura revela um significado sempre maior e mais profundo que demanda que o
pensamento se torne mais amplo e flexível como a flor de lótus em suas mãos.
10.12 .0. Erepato Pirijete: O sentimento de que a única maneira de nós verdadeiramente
apreendermos as coisas seja através da arte e da linguagem é uma opinião contemporânea que aponta
nossa dependência em símbolos e representações. Primeiro contam as histórias, que Ganesha tem um
corpo físico criado por Shakti (Parvati), a matéria perecível, ou seja que é humano. Não conhece o pai
- Shiva, a Realidade Suprema. O fato de que, originalmente toda arte era sagrada, isto é, pertencente a
uma esfera separada da vivência cotidiana, testemunha ao seu status e função originais. Da mesma
maneira o tabu concernente ao assassínio de elefantes e seu posicionamento entre os animais sagrados
entre os asiáticos. Na China, a inocência (qi xi'ang) é uma criança sobre o elefante (xi’ang).
10.12 .0.0. O espectador (e os artistas também o são com a teatralização da vida
cotidiana), não distingue mais o âmago real de sua vivência subjetiva. Não se sente mais sob
seu próprio controle, mas como objeto de um fogo cruzado de coerções mentais. Não tendo
personalidade própria, experimenta a arte e a leitura com pressa, come sem mastigar, aprende
de cor milhares de fatos inculcados e, cada vez que toma fôlego, aspira dogmas e slogans. Os
símbolos o soterram até que transforme-se num apático emudecido ou num dócil pedante
recheado de informação, mas sem real noção sobre como utilizá-la para sua liberdade com
sabedoria.
10.12 .0.1 . A arte religiosa, sublevou-se da sensação primária de incômodo, sem
dúvida também sutilmente, mas com distúrbios poderosos
advindos de sua novidade e sua invasão progressiva nos
rituais materiais de sobrevivência. Shiva coloca uma
nova cabeça de elefante no filho que renasce pelas
mãos da mãe, nasce do supremo. O avanço em
sabedoria e liberdade supõe esquecimento
seletivo e mudanças de condutas
constante (revolução imanente
permanente). Parvati, ficando
contente com as promessas de
Shiva de que seu filho seria
reverenciado no início de
todos os rituais e cerimônias e,
antes de qualquer
empreendimento, abençoou a
humildade materna e a perda da
individualidade como ganho do absoluto,
da plenitude da dádiva. O ajustamento
vigilante exige mudança de padrões, disposição
para o descondicionamento (perder a cabeça
antiga), mesmo que estes pareçam monstruosos à
primeira vista. É preciso assumir um analfabetismo novo
para que aprendamos outra língua.
10.12 .0.2 . Senhor dos obstáculos, Dhumravana decepa os apegos aos objetos, fonte
de felicidade. Corta a falsa identificação com o corpo,
elimina os obstáculos para que possamos ter uma
mente tranquila, e possibilita o conhecimento. Se
tínhamos esta visão da busca artística motivada pelas
de-satisfações cotidianas de falta de uma expressão
mais completa e profunda de um sentido para as
experiências com as “soluções culturais” da tecnologia
e do entretenimento, a arte se tornava uma experiência
supérflua e propositalmente desagradável, posto que
nos levava a reconhecer o estado de ausência de nossos
próprios gestos, um avesso perverso do ideal de Adorno
onde “um mundo sem alienação não necessitaria de
arte”, o camp generalizado ridicularizou nossas
experiências mais íntimas e delicadas, relegando nossas
sensibilidades à esquizofrenia. Ganesha Sravanam, escuta o ensinamento e Mananam, reflete
sobre ele.
10.12 .1 . Airavata, a arte é tida como uma linguagem e como tal, evidentemente, é ritual (a
gramática de si entrevista por Kristeva). O intelecto desvinculado do mundo está sempre preso entre
os pares de opostos (as presas). A vida da fantasia inconsciente, ou consciente, passa a superar o
contato atento com a realidade. Elefante, lembra-nos a não sermos mais afetados por essa dialógica
(frio-calor, prazer-dor, alegria-tristeza,etc) tendo atingido um estado de equanimidade complementar
da complexão, representado por uma das presas quebrada (ou a surdez de um ouvido). Alternam-se
inércia e fanatismo. Essencial para a transcendência do cultural nos assuntos humanos, o ritual não é
apenas o meio de alinhar ou prescrever estados estéticos sensíveis através de uma rítmica sintática; é
também uma formalização que está intimamente conectada com hierarquias e regras formais sobre
indivíduos num dado contexto cultural.
10.12 .1 .0. Assim como elefantes, todos as sociedades tribais e civilizações
embrionárias tinham uma estrutura ritualística e um sistema conceitual compatível a este;
revoluções culturais em geral
deram nascimento a expansões
ritualísticas e ampliaram os
leques de religiosidades (o
jainismo surgindo no seio
bramanista, por exemplo). O
artista e pensador sério, frente à
cultura camp, esconde-se cada
vez mais por trás de sua cortina
de ferro, no imaginário país do
sonho e refúgio que idealizou
para si (a vingança literária de
Dante). Gauriputra, elo que
aparece entre as religiões
asiáticas, reúna ritual e
experimentos em prol do
conhecimento. O artista, então,
regride a uma forma de
comportamento infantil, vegetativo e rejeita tudo o quanto a sociedade lhe ensinou.
ॐ
10.12 .1 .1 . Há exemplos de elo entre rituais e desigualdade, ocorrendo até
anteriormente à agricultura. São visíveis nos estudos históricos (Gans e Conkey). A realidade,
por exigir, como exige, contínuos e renovados ajustamentos e verificações, passa a ser
importuna à concepção da obra, pois põe em perigo sua ilusória força divina. A tromba
Viveka, capacidade de discriminação entre Nitya o eterno e ilimitado, e Anitya, o efêmero. Os
ritos servem como uma válvula catártica de descarregar as tensões geradas pelas emergente
divisões sociais e trabalham por criar e manter a coesão social enquanto a obra serve para
coadunar estes fragmentos numa mesma potência dentro do artista.
10.12 .1 .1 .1 . Ganesha, perfeito equilíbrio entre força e bondade, poder e
beleza, muladhara, chakra primeiro, do instinto de conservação e sobrevivência.
Anteriormente não havia necessidade de dispositivos de unificar o que, num contexto
de não divisão do trabalho, ainda é totalitário e não-estratificado. A arte era portanto
inútil. Agora vemos um momento em que nossa relação com a unificação simbólica
imanente sofre grande risco, nos deixando aos pedaços. Ganesha, distingue a ilusão da
verdade e abençoa com pureza a verdade imaculada, a prosperidade e o destemor. O
símbolo atua na abertura de estruturas do real que são inacessíveis ao observador
empírico, mas também distingue, mistifica e santifica certas tarefas e papéis e assim os
torna desejáveis. Quem há de querer tornar-se um faxineiro da casa de ópera ao invés
de compositor de ópera depois de ler este texto, este será o herói. O compositor deve
ajudar na limpeza de sua obra.
10.12 .1 .2 . Ostensivamente oposto ao estranhamento do mundo detrás das coxias e o
lixo carnavalesco que produz, a ópera, enquanto ritual delusório, facilita o estabelecimento da
ordem cultural (mesmo que
criticando-a), leito de pedra de
uma teoria e prática alienada.
Ganesha, filho da disciplina,
aniquilador da ignorância.
Embora hajam óperas que
quebrem a quarta parede e
tratem do espetáculo da
sociedade, as estruturas de
autoridade ritual (compositor,
maestro, produtor, diretor,
coreógrafo...) têm um
importante papel na organização
da produção (a divisão do
trabalho) e avança ativamente a
vinda da domesticação. Com a
intromissão da política na arte,
desmorona a ilusão esquizo de
controle sobre o universo
criado , o artista cria uma ilusão
secundária que mantém a
primeira intacta (neste caso, em geral, sobre si). Ganesha, satisfação da plenitude que se
alcança com um caminho de disciplina e auto conhecimento. Como compor então uma próera
enquanto um ritual de liberação destas regras hierárquicas, tal que cada participante seja criador
de sua própria interpretação do que sucede? (“Como tornar os intérpretes livres, sem torná-los
estúpidos?”)
10.12 .2 . Benappu: As categorias simbólicas são armadas para controlar os selvagens e
alienígenas (como GG Allin e Jonathan Meese); parte fundamental desta mudança se dá com o
advento da agropecuária territorialista na subjetividade, e o acréscimo do cerimonialismo nas relações
corporais da coreografia, por exemplo, que cria os modos de conduta para corpos encarcerados a
dogmas de movimentação cotidianos. Trishula (arma de Shiva, similar a um Tridente) na testa, o
tempo (passado, presente e futuro) e a superioridade de Ganesha sobre Ganesha. A catatonia segue-se
ao estado de auto-negação na esquizofrenia, quando o assalto da violência exterior é internalizada.
Iniquidade social parece vir acompanhada de sub-julgamento em uma esfera não-humana, contra toda
a lógica interna dos mitos religiosos. A natureza só pode ser destruída após a corrupção do clérigo que
passa a desaprovar a fisicalidade. Catatonia espiritual.
10.12 .2 .0. Através das ações rituais vemos o
surgimento dos xamãs, não apenas os primeiros
especialistas por seus papéis nesta área, mas também os
primeiros praticantes culturais em geral. O terreiro mítico,
ancestral do teatro de ópera e do museu. Teu ventre,
Ganesha, contém infinitos universos, benevolência da
natureza e equanimidade, a habilidade de sugar os
sofrimentos do Universo e proteger o mundo. A arte mais
antiga era acompanhada por xamãs, enquanto eles
assumiam a liderança ideológica e designavam o conteúdo
dos rituais. Os padres segregavam-se para poder realizar
somente suas abluções. Os esquizofrênicos introvertidos
preferem a vida automatizada, rotineira, do hospício,
desde que lhes seja permitido entregar-se às suas secretas
fantasias. O computador centralizou as funções espirituais
e cognitivas numa mesma postura de digitação. Ganesa, a
posição de suas pernas (uma descansando no chão e a outra
em pé), a importância da vivência e participação no mundo
material assim como no mundo espiritual, a habilidade de
viver no mundo sem ser do mundo.
10.12 .2 .1 . Curandeiros: Estes primeiros
especialistas se tornaram os reguladores das emoções
coletivas, e enquanto as potências dos xamãs crescia, havia
um decréscimo correspondente na vitalidade psíquica do
resto do grupo (ver Lommel). A casa de ópera alimenta a
fuga das realidades amedrontadoras da vida para dentro do
ventre materno virtual do estado. A autoridade
centralizada, cresceu da posição elevada do xamã em sua
parceria com a administração política e bélica dos chefes
tribais. Ganesha, seus braços são os quatro atributos do
corpo sutil, que são: mente (Manas), intelecto (Buddhi),
ego (Ahamkara), e consciência condicionada (Chitta);
faz-nos agir com sapiência sem submissão. Não nos deixe
crer que o pensamento é supérfluo ou exclusividade de
ninguém. Sri Ganesha, pura consciência - Atman - que
permite que estes quatro atributos funcionem em nós, se
nos fazem regressar a um estado intra-uterino, dai-nos a
sabedoria fetal (muladhara) do que nasce agora.
ॐ
10.12 .2 .1 .1 . Animais de Poder: Os xamãs são inspirados pelos animais, os
sacerdotes pelos humanos imolados, os aedos pelas musas. São sempre as vítimas que
comovem a escuta musical. A história da música é a literatura dos derrotados, dos
troianos, das loucas, dos lazarentos. As panicadas são carne crua de Orfeu. As obras
(ópera) não são o feito de pessoas livres. Tudo o que opera está ocupado. É a preocupação
do desgosto. Imitar os gritos que ouvimos sair da goela dos pássaros-serpentes de asas
de ouro e presas de javali. Fazer soar a tíbia, a flauta vertebrada, voz da górgona.
Interroguemos os laços que a música entretém com o sofrimento sonoro.
10.12 .2 .1 .2 . Terror e música: Sexo e o pano que o reveste. Objetos cobrindo
nossas escutas, crostas musicais sobre a ferida que sangra cera. Dissimulando a nudez
do ruído que envergonha. Grito primevo da respiração animal. O conservatório, o
consolatório. Me defendo compondo, tocamos o que queremos calar. O vestígio
anuncia o tempo que fará. É possível que ouvir música consista menos em desviar o
espírito do sofrimento sonoro do que esforçar-se por refundir o alerta animal. A
característica da harmonia é ressuscitar a curiosidade sonora defunta assim que a
linguagem articulada e semântica se estende em nós.
10.12 .2 .2 . O espectro de complexidade social é,
porém, encarnado nos operadores sociais (xamãs mahouts),
convergindo o poder simbólico em outro totem. Os
colonizadores souberam bem disto: mortos os xamãs e
pajés, a tribo se entregava com facilidade à corrupção, já que
não se sentiam mais criadores subjetivos da realidade
simbólica. Não estamos vivendo isto ainda entre nós? O
regime capital assume todo o peso das culpas pela violência
dos indivíduos e fornece-nos uma lista já preparada de
milhares de justificações e desculpas pela liberação de nossos
instintos sádicos. Ganesha, as grandes orelhas abertas da
sabedoria, habilidade de escuta compassiva das pessoas que
procuram ajudar e a reflexão sobre as verdades espirituais.
Quantos pequenos crimes não cometemos sem querer, só
por nos ausentarmos de pensar sobre a distribuição de renda
e cultura, por exemplo? A importância de escutar para poder
assimilar todas as faces da complexidade. Ganesha, senhor
cuja forma é Ohm.
10.12 .3.Radha: No poema erótico “Canção do Rebanho”, o deus incarnado como Krishna
tem por deusa-esposa a insaciável consorte Radha, a elefanta. A arte age como produção desejante na
divinificação do símbolo material, metasigno da linguística num nível ulterior (que chamamos de
linguância ou harmonia contextual). Sob a pressão da propaganda contra a seriedade, nos identificamos
com a quadrilha simbólica dominante e temos de demonstrá-lo consumindo besterias, ou ao menos
aprovando a submissão de todos os impulsos humanos ao consumo. O Kama Sutra designa “homens
elefantes” e “mulheres elefantas” àquelas pessoas com os maiores genitais e mais voracidade e apetites
sexuais. Cada novo produto e nova piadinha estabelece novos laços de fidelidade e de inescrupulosa
obediência sobre nossos desejos mais íntimos. Embora Radha fosse inteiramente humana, descrita
como mera mulher, ela é também tida como “o objeto de devoção ao qual até Deus, seu Criador
mesmo, se curvou.” O círculo vicioso do controle desejante, no qual os meios são tomados como fins
em si mesmos, se transforma em cínica conspiração, recoberta por cínica bandeira de decência e
idealismo. O desejo erótico abstraído das questões corporais é a própria arte ética, a poética da estética é a
cópula do afeto e da razão.
10.12 .3.1 . Musth: Essas perversões também se incorporam em grandes mitos
artísticos (Lichtenstein) e o desejo artístico de fazer algo heroico se torna cada vez mais o
desejo de fazer algo violento. O museu é uma câmara de gás subjetiva, que mata a subjetividade
dos espectadores de modo a manter as ilusões de grandeza de artistas e curadores. O elefante
em musth, como um humano desiludido e duro tomado por delírios de grandeza, precisa
estuprar, matar, exterminar, fazer guerra. Nenhum remorso atalha, nem nenhum sentimento
moral (que mesmo os elefantes têm). A violência tida como base da conduta animal,
aproximada do desejo erótico, é um grande meio de controle do poder institucionalizado e desculpa
para a institucionalização da violência do Estado. Não nos esqueçamos que o erotismo também se
aproxima do cuidado e
das relações de
compaixão surgidos por
nossa extrema
fragilidade por longo
período, enquanto
espécie. Não somos
fortes e violentos
como elefantes, e
ainda estamos aqui.
No rito Ganapati da
tradição saptarsi, os
noivos tem nozes
amarradas às suas
vestes.
10.12 .3.2 . Seleção sexual: Interessante notarmos que o musth está diretamente
relacionado à competitividade entre machos em relação à abstinência sexual perante fêmeas
fecundáveis, tal como a relação da competitividade entre artistas em relação a museus e
galerias disponíveis. Estudos como o de Joyce Hathaway Poole sugerem que a razão pela qual
os grupos matriarcais se reúnam nas estações molhadas em grupos maiores, seja uma forma de
incitar a competitividade entre machos, tal como os grandes festivais de música e as redes de
intercuratorialidade. Quando Darwin nos lembra que “Nenhum animal no mundo é tão perigoso
quanto um elefante em musth.” nos diz algo sobre as propensões populares dos estilos e técnicas
musicais voltados a temáticas eróticas bem como da sedução meramente estética em voga.
10.12 .4 . Kuvalayapida: A religião erótica da arte, contribuiu a uma gramática simbólica comum
necessária para a ordem cultural vigente com suas fissuras e ansiedades. Krishna mata o elefante Kuvalayapida,
enviado por Kansa para matá-lo nos portões de Mathura, arremessando-o do
alto de uma pedra como se fosse uma serpente insignificante. A formulação de
vastas mentiras de propaganda e as palavras de engodo fraudulentas têm
propósitos muito bem definidos. A palavra latina religare remete a religar,
reunir, reconectar, dos diversos pontos de vista do que é o elefante e a integração
social dos modos de vida é evidentemente o ímpeto religioso. As palavras
adquiriram, a serviço do poder, uma função especial, que podemos chamar de
verbocracia. É a resposta às inseguranças e tensões selvagens, promessa de
resolução e transcendência para a vivência cultural e civilizada da domesticação e
do encarceramento do corpo por meios simbólicos. A tarefa dos propagandistas é
compor imagens apropriadas ao desejo da população, de forma a que, por fim, ela
não enxergue e não ouça com seus olhos e ouvidos, mas apenas sinta tudo através
de um nevoeiro de palavras de engodo. O elefante vence o humano que vence o elefante, Ganesha.
ॐ
10.12 .4 .1 . Crítica e propaganda: Para artistas, as religiões constituem um vasto
território de representações que, sob forma de mitos e de ritos, agenciam-se em combinações
diversificadas. Salvo aos olhos dos crentes (e artistas os são, ao menos de seus gestos), as
combinações parecem, em uma primeira
abordagem, irracionais e arbitrárias. O
uso multiforme dos símbolos com
múltiplos sentidos funciona como um
ataque à nossa lógica afetiva em prol da
competitividade que mantêm a
escravidão, por exemplo. Krishna
conversa com Ganesha enquanto vence
Kuvalayapida, o mau elefante. A religião
da arte que aceita a fé em tudo, até na
falta de fé, atua no campo da
arbitrariedade da criação como
pressuposto do livre arbítrio do bem. A
questão que se coloca é então a de saber
se é preciso ir até às coisas e
simplesmente descrever o que não
podemos explicar, ou se, por detrás da
desordem aparente das crenças, práticas
e costumes da arte, é possível descobrir
uma coerência afetiva que trata de soluções abstratas para problemas próximos, que servem de
modelo para resoluções mais amplas.
10.12 .4 .2 . Pareidolia: Agora que o pensamento filosófico e científico racionou os
excessos artísticos da re-ligião, mal
utilizada por uns formulando e
encantando conceitos sem verdade
epírica, o pensamento mítico funciona
com ajuda de imagens emprestadas do
mundo sensível. Das religiões sobrou
sua arte, dos grandes mestres seus
personagens, dos mitos fica sua
sabedoria. Ao invés de estabelecer
relações entre ideias, a arte opõe o céu
e a terra, a terra e a água, a luz e a
obscuridade, o homem e a mulher, o
cru e o cozido, o fresco e o passado. O
logocídio (assassinato da palavra)
realizado pela demagogia que poluiu o campo de atuação da linguagem a grandes amontoados
de tipos sem uma sintaxe relacional. Nascido dos restos do ovo da ave-guerreira Garuda
(Orfeo), tua maldição é vencer a serpente de mil e uma cabeças Naga. A arte elabora uma
lógica das qualidades sensíveis: cores, texturas, sabores, odores, barulhos e sons. A verbocracia
transmuda espectadores em agnósticos simbólicos, pessoas só capazes de imitação, incapazes de
senso indagador de objetividade e de perspectiva, que leva a interrogar, a compreender e a
formar ideias individuais. Arte, elabora sobre estas elaborações, ainda, em afetos e conexões
cognitivas. E quando um espectador se decide a falar, é enviado ao final da longa fila de artistas
desempregados. Arte, escolhe, combina ou opõe essas qualidades para retransmitir uma
mensagem de alguma maneira codificada.
10.12 .4 .3. Mas quando a arte se interroga sobre a nossa ordem social, nós mesmos
apelamos para a história para explicá-la,
justificá-la ou acusá-la. Essa maneira
de interpretar o passado varia em
função do meio ao qual pertencemos,
de nossas convicções, de nossas atitudes
morais. Para um cidadão da Costa do
Marfim, a revolução de 1789 na França
explica a configuração da sua sociedade
atual. E se julgamos essa configuração
boa ou ruim, não concebemos a
revolução de 1789 da mesma maneira, e
aspiramos a diferentes futuros. Em
outros termos, a imagem que fazemos
de nosso passado próximo ou distante é muito
largamente da natureza do mito.
10.12 .4 .4 . Nalagiri: O que os mitos fazem
para as sociedades sem escritura: legitimar uma
ordem social e uma concepção de mundo, explicar o
que as coisas são por meio do que elas foram,
encontrar a justificação de seu estado presente em
um estado passado e conceber o futuro em função,
então, desse presente e desse passado, esse é também
o papel que nossas civilizações emprestam à história.
Buda, com uma flor, faz o elefante Nalagiri se
render. Os museus são patuás de mitologias que podem
e devem ser questionadas. Profanar o sagrado é alvo
óbvio das artes em sua irreverência corriqueira, mas
como profanar o profano sem incorrer no controle
religioso das possibilidades míticas ou na violência,
ópera?
10.12 .4 .4 .1 . Os mitos (inclusive os
da arte) parecem cada um contar uma
história diferente, e descobrimos que é com
frequência a mesma história, cujos episódios
estão dispostos de outra maneira. A vitória
violenta de Krishna sobre Kuvalayapida é a
rendição de Nalagiri por Buda. Inversamente,
acreditamos voluntariamente que não há
senão uma História da Arte, quando na
verdade, cada curador, cada rede
museográfica, cada artista e fruidor às vezes
conta uma história diferente e a utiliza,
contrariamente ao mito, para se darem razões
para esperar, não que o presente reproduza o
passado e que o futuro perpetue o presente,
mas que o futuro diferencia-se do presente da
mesma maneira que o presente, ele-mesmo,
diferenciou-se do passado.
ॐ
10.12 .5. Elefantes souvenir: Toda civilização diminuiu
a saúde ambiental ao seu redor e consequentemente a sua
própria. A diminuição da complexidade do símbolo elefantino
no ocidente (bem como do papel animal do erotismo), relegado
a presente vingativo e imagem do peso e lentidão. Nas palavras
de Horkheimer: “A destruição da vida interior é a penalidade
que pagamos por não pagar respeito a nenhuma forma de vida
que não a nossa.” A violência dirigida afora é a mesma que nos
aflige internamente (o ascetismo da arte e a castração
desejante), ao limite da impossibilidade de percepção da beleza
e a ausência de experiências estéticas. Annone, o elefante dado
como mau presente ao papa morre em poucos anos no
Vaticano (como a arte de lá, talvez?) e este lhe encomenda uma
escultura. Se as ferramentas são para o fazendeiro ou o cornaca
um instrumento de controle, para os primeiros humanos ela
era uma revelação. Mas sempre queremos mais, queremos o
delírio dos elefantes rosas e dos elefantes voadores com seus
treinadores ratos.
10.12 .5.1 . Os elefantes foram uma extravagante
novidade simbólica no velho mundo, assim como o desenho
outrora foi, ocasionalmente, um alegre passeio pelo luminoso
bosque de signos de um dadivoso pintor a um bem aventurado
fruidor, agora, como no caso de Borges, uma única linha pode
levar diretamente ao caos do labirinto. Mas ela também pode
crescer e formar uma escultura de força bíblica ou védica,
quando por exemplo, a colombiana Doris Salcedo rompe o
maciço chão de concreto da Tate Modern em Londres com
uma irresistível fenda.
10.12 .5. Souvenir elefantes: Estamos tomados em
uma lógica cultural de objetificação e uma lógica objetificante
da cultura, tal que aqueles que perpetuam “rituais sagrados”
(como o da ópera clássica) e outras formas representacionais
(teatro tradicional e artes plásticas) enquanto rotas a uma
existência re-encantada não conseguem encontrar o sentido de
seus próprios gestos tornando a um consumismo estético das
experiências. Eu vi o elefante no circo, mas não é grande coisa.
Mais do que tem falhado (como o primitivismo da arte
moderna) por tanto tempo dificilmente poderá ser a resposta.
A arte não deve se preocupar em repetir a forma artística, mas
buscar um tipo de sabedoria praticado espontaneamente e a
rejeição daquilo, que na sociedade atual, é a loucura real do
racismo psíquico que sobrepujou a discriminação aberta
enquanto um dos aspectos mais negativos de nossa sociedade.
A participação imaginativa que ocupamos na criação da
identidade coletiva em outras culturas, aquelas com as quais
vivemos.
10.12 .6. Um elefante no servidor de dados: Uma obra de arte pode usar a linguagem tanto
quanto quiser, e até mesmo expandir e aperfeiçoar essa linguagem
enquanto a usa. Mas o que nos toca numa obra é aquilo que não se
coloca em palavras. O que é significativo e valioso nela pode ser
justamente o que não é articulável. Toda obra de arte precisa
resolver uma dualidade entre sua execução e seu propósito. E o
par execução/propósito é similar ao par sinal/significado que é o
mecanismo fundamental da linguagem. Assim, o vocabulário da
teoria da linguagem (sinal, código, referência, redundância…)
facilita falar sobre arte e, imagina-se, estudar linguagem ajuda a
entender arte. E parece que de fato é assim. O risco é que por
desenvolver demais a comparação acabemos forçando a arte a se
tornar linguagem mesmo naquilo em que não é (distinção entre
Ganesha e Nalagiri). Não se faz uma ópera sem linguagem (e no
caso das artes plásticas, sem um repertório sensível ou cânone
visual), mas o que diferencia uma boa música de uma ruim é algo
bem diferente de linguagem. A ópera que mais seguir as regras
musicais corre o risco de não ter muito a dizer. Mais do que
palavras e sons, existe vida em La Via Intoleranza. Existe uma
partícula de humanidade indescritível, inexplicável. E
brilhantemente Schlingensief usa as linguagens dos seus
excluídos como um elemento da construção dessa vida.
10.12 .6.1 . Uma diferença entre execução/propósito e sinal/significado é que o
aperfeiçoamento da execução, na arte, não leva ao desaparecimento do meio, à transparência,
mas ao risco do virtuosismo. Numa acepção simplista do camp, o virtuosismo é exatamente o
desenvolvimento extremo da capacidade comunicativa da arte, e esse desenvolvimento do
meio de expressão esvazia a arte. Para nos apegar ao paradigma linguístico, teríamos de dizer
que a obra tenta comunicar algo que não é exatamente a informação que de fato transmite, mas aí
ficamos perdidos ao tentar descobrir exatamente que coisa é essa. É fácil descartar o
virtuosismo na vivência da arte, mas exatamente porque ele parece difícil de explicar?
10.12 .6.2 . Virtude artística e rotulomania: É curioso que o virtuosismo na música
esteja quase sempre relacionado à instrumentação e na
dança quase sempre à coreografia. É raro acusar um
compositor de virtuosista, mas comum falar de um
coreógrafo virtuosista. Já em artes plásticas seria difícil
separar o virtuosismo em um ou outro dos dois contextos,
digamos uma composição virtuosista que não fosse pintada
de forma virtuosa. Quando as palavras e os símbolos
perdem sua função própria, de comunicar, adquirem
progressivamente uma outra, de amedrontar, de regular, de
condicionar. As palavras e símbolos oficiais (com poder
monetário) devem ser obedecidas. A dissenção e o
desacordo se tornam um luxo ao mesmo tempo físico e
emotivo, que é despejado naqueles abaixo nas hierarquias de
micropoder como descarga de tensão. A injúria, com todo o
poder que ela encobre, é a única lógica permitida.
Suprimem-se e deturpam-se os fatos contrários à ideologia
mercadológica. Nozes para Atri, Vasistha Kasyapa,
Visvamitra, Gotama, Jamadagni e Bharadvaja.
ॐ
10.12 .6.2 . Elefantes Símbolos: A arte começa com uma exceção de execução, e assim
pensar arte é inevitavelmente pensar um tipo de ação anti-natural. Os trabalhadores levando
sacas de milho podem ter criado o culto Ganapati de Ganesha. A intencionalidade faz parte de
todas as ações humanas, quer clara quer obscuramente. A ceifa (presa única) dizimando os
ratos destes cultivos. A intenção de um ato de comunicação é transmitir informações. Mas a
intenção de uma ação artística é algo mais complexo. Ganapati, culto da colheita. A diferença
entre significado e propósito nos leva para a dimensão em que a arte pode ter um valor e,
talvez, portanto, ao ponto do qual tira seu poder. A comida de Ganesha depende da colheita,
mas em geral, é uma espécie de canjica de arroz doce e coco ralado. Seja ou não seja linguagem,
a arte usa a linguagem em suas formas mais avançadas.
10.12 .6.2 .0. Uma versão ingênua da arte enquanto linguagem seria imaginar
um plano dos significados
artísticos e cada uma das várias
formas de arte como uma
tradução dele para planos de
expressão mais mundanos, num
projeto por exemplo. O problema
(dessa e de outras versões mais
complicadas) é que a arte parece
não se limitar a nenhum tipo de
conteúdo, e até mesmo se
esforça por quebrar quaisquer
limites que venham a ser
percebidos no conjunto de “o
que a arte pode dizer”. Parece se
sentir aprisionada quando esses
“significados” ficam destilados
e claros. Parece evitar tipos de
interpretação semelhantes e
previsíveis. A arte desafia
fronteiras, como o elefante
desafia o “símbolo”. A suástica
é um símbolo do pré-ariano
Ganapati, sol montado sobre o rato da noite. A curadoria se tornou uma performance, e
os projetos devem seguir o mesmo rumo tornando-se uma das belas-artes.
10.12 .6.2 .1 . A experiência da arte é mais poderosa que a interpretação da
arte, a próera O Elefante de Marfim supera o projeto e qualquer de suas justificativas.
Padrões auspiciosos são desenhados com cânfora no chão. A ideia é que a obra é
fundamentalmente não-legível pela extensão enorme de reflexões internas e prévias
do artista. Ou que se o objetivo da coreografia fosse “expressar um elefante”, um papel
escrito “marfim” seria tão bom quanto dançar com o braço imitando uma tromba.
Toda obra tem ideias como componentes, mas para que essa obra tenha algum valor é
preciso que a experiência da obra seja mais do que a tentativa de adivinhar qual era essa
ideia. Ari e Holigattu. Uma obra de arte não é um enigma, nem uma exemplificação, e
nem se encontra num meio termo entre os dois. A obra de arte deve transcender as ideias
que levaram à sua construção, sob pena de deixar de ser arte e passar a ser doutrina.
10.12 .6.2 .2 . A sentimentalização cria exatamente o mesmo reducionismo.
Uma obra provocar alguma emoção
(“Senti tanta paixão com Church of
Fear!”) muitas vezes serve a propósitos
artísticos (como identificação com o
personagem ou sensibilização para
alguma perspectiva) mas raramente
parece suficiente para constituir uma
obra. Abusar dessa resposta emocional
pode facilmente impedir um trabalho
de atingir todo o seu potencial. A
música chegou a este ponto no final do
século XIX. Ainda que seja difícil
evitar dizer que “tal obra me faz sentir
algo”, essa sensação não é a mesma
coisa provocada por um
acontecimento não artístico. Perder
um filho e rever suas atitudes não é o
mesmo que assistir Romeu e Julieta. A
experiência da arte vai além das
experiências cotidianas de formas que
não tem nada a ver com a intensidade
das emoções sentidas. A legibilidade da
arte conduz (rapidamente) a um
problema que tem a mesma estrutura
do virtuosismo: Reificação, coisificar a
obra. Pegar um processo complicado,
cheio de ambiguidades e idiossincrasias e
transformá-lo em algo simples, claro e
definido. É tratar a arte como uma
história com lição de moral no final. A
crítica deve ser, enfim, entendida como
uma forma de poética.
10.12 .6.3. Uma linguagem é uma
ação, mas uma ação que se oferece
exclusivamente à interpretação. Uma fala faz
parte do jogo da vida apenas enquanto promete
ou resgata outras ações, e a arte quando fala, o
faz para provocar experiências muito maiores
que palavras. Colocar a arte enquanto
linguagem enfatiza esse falar, mas desenfatiza
a provocação. Enevoa o poder. Tratar a arte
como linguagem tende a retirá-la da política e
da cultura, das vidas e das formas de viver.
Tende a dizer que isso são elementos
acessórios, opcionais, processos que afetam a
arte, mas não participam dela. E pode até ser
possível fazer essa separação, mas ela não é
nem espontânea nem desejável.
ॐ
10.12 .6.3.1 . A arte está constantemente se chocando com questões como a
complexidade, a vivência, os valores, a incomensurabilidade e a transcendência.
Ganapati é um demônio elefante que deve ser apaziguado, que deu origem ao Ganesha
védico. Não adianta fazer uma cirurgia plástica e fazer sua cabeça semelhante a um
elefante para compreender-se Ganesha. Essas são questões difíceis, que não basta
enunciar ou descrever, que não se acabam numa declaração de posicionamento, mas
que adquirem sua forma enquanto lidamos com elas. No léxico sânscrito, a palavra
gana é dada como sinônimo de samuha, que significa “um agrupamento” ou “um
coletivo”. Ao tratarmos a arte como linguagem inconscientemente perdemos todo
esse dramático conflito que é muito presente no nosso momento: Como artear uma
vida? Como viver uma arte?
10.12 .6.3.2 . Behemoth & Leviatan: O risco de dizer é que estamos
determinando uma essência para a arte, tentando baixar uma lei sobre sua natureza,
como nomear um elefante. Que embora seja forte e complicado, ainda é devorado
pelas forças do tempo, ainda maiores. É claro, ao colocarmos esse argumento estamos
caindo na exata mesma armadilha. A serpente é uma série de elefantes conectados.
Um elefante é uma serpente no tempo, pontos que se somam numa lenta caminhada,
medindo a cada passo uma mudança do contrato social, suave transvaloração. E como
não podemos prever o futuro e ter ao certo se um dizer artístico-religioso é apenas
uma busca por efeito de sedução, encaramos os preconceitos da valoração do
simbólico sob o administrativo.
10.12 .6.4 . Valores Elefantes: Manipulamos os campos de significado que estão ao
redor da arte e na arte para evitar uma essencialização do processo estético. Mas esse é um
passo de elefante, um estratagema grande, porém lento, entre outros. Não o único, não o
primeiro e não o melhor.Outro passo,
outra estratégia, é combinar: Bater os
pontos de vista uns contra os outros,
encaixá-los até de formas erradas,
misturar e criar sentidos através da
mistura. Não só aceitar as diferenças,
mas apropriar-se delas. A moeda romana
forjada por Caesar com um elefante que
esmaga uma cobra numa face e os
instrumentos sacerdotias do outro.
Imagina-se, através desses (e outros)
procedimentos, a arte expandindo-se,
não só numa acumulação de ideias
diferentes, mas no abandono de suas
suposições e preconceitos e barreiras.
Descobre-se que os pressupostos, mesmo
quando acertados, diminuem a visão.
Esse processo não é o aprendizado de
uma gramática ou vocabulário, mas a sua
subversão. Não se trata do abandono de
todas as estruturas, mas de descobrir (ou
criar) estruturas cujo sentido é vivido profundamente, ao invés de simplesmente veiculado. A
arte não é um auto-falante ou mural, receptáculo de sentidos, mas um ritual onde o sentido é a
própria estrutura. A arte não reproduz (descreve) uma realidade, ela cria realidade(s).
10.12 .6.5. Logotipos elefantes: A
maioria das empresas consultadas já disse que
o projeto é belíssimo: “Você, sempre
inventando, heim? Parece o Boal! Porém não
combina com os nossos produtos.” Os
comerciantes querem vender: nada mais
lógico. Loucura nossa pensar que uma
heroína-prostituta, que morre tuberculosa no
quarto ato, fosse capaz de vender molho de
espaguete ou pertences de feijoada, por
exemplo. Deveríamos, talvez, ter procurado
um fabricante de armas de matar elefante:
erro nosso! O suicídio do artista porém seria
também assimilado e tornado numa força a
mais para controlarem a arte. Diriam:
“Viram como a arte, sua sensibilidade e
conhecimento, em sua radicalidade, levam à
loucura e à morte! Precisamos controlar este
monstro com entretenimento e cinismo!”
Fariam elefantes de pelúcia odiadores da arte
e fariam um dia do elefante de marfim,
quando haveria uma festa do elefante.
10.12 .7. Elefante cósmico:
Mesmo no que concerne à ordem do
mundo, a ciência passa hoje de uma
perspectiva histórica. O cosmos não
nos aparece mais, como no tempo de
Newton, regido por leis eternas como
a gravidade. E=mc2, eis o símbolo
religioso de nossos tempos. Um deus
zoomórfico marca o princípio do
pensamento hibridista, pluriforme e
polissêmico. Para a astrofísica
moderna, o cosmos tem uma
história, as teorias unificadoras não
encontram o cerne dos bóssom de
Higgs mas também historicizam os
campos de atuação particular
subatômicos. Ele começou há quinze
ou vinte milhões de anos devido a
um único evento (dito em inglês big
bang ou barulhão), se dilatou,
persegue sua expansão, e, de acordo
com as hipóteses, continuará
indefinidamente no mesmo sentido
ou se alternará em ciclos de expansão
e contração assim como os átomos
entre energia e materialização.
ॐ
10.12 .7.0. Equações Elefantes: Como Lorenz pomos de lado o tempo e procuramos
modos simples de produzir um comportamento complexo.
Encontramos um num sistema de apenas três equações (modos
de concatenação simbólicas). Impomos aos termos destas
equações, expressões de relações que não são rigorosamente
proporcionais (lambda). As relações lineares da física clássica
que modelaram as linhas de montagem podem ser estabelecidas
com uma linha reta num gráfico (behaviorismo simbólico).
10.12 .7.0.0. As relações lineares são de
compreensão fácil: quanto mais, melhor. Sua natureza modular os torna aptos a serem
desmontados e novamente montados (como as grandes teorias e os franchising de
estilos artísticos). Dão-nos a enganosa sensação de que sabemos, são adequadas para os
manuais técnicos de controle mental (se você produzir mais, vai ter mais prazeres). A
utilização de sua terminologia nas ciências humanas causou danos às relações e ao
psiquismo da espécie humana no simples fato de reduzir todo a complexidade da
subjetividade a um desejismo (Freud o nota com enorme ironia). Os sistemas
não-lineares não podem, em geral, ser solucionados e não podem ser somados uns aos
outros.
10.12 .7.0.1 . A Origem das Clades: O diferencial da rede em relação à captura
é que suas pesquisas são orientadas à busca, ao consumidor (ao ouvinte, ao espectador)
e não aos interesses dos anunciantes (aos compositores, aos vendedores, aos ideólogos).
Mas ainda assim, a serendipidade se perde na pregação ao coro, já que só se inscrevem
os interessados. Ao contrário de mapear a produção hierárquica de morfologia
genética, a cladística atua na hipertextualidade da influência: não na legislação de
autoridade do direito de autoria e citação, mas nas ressonâncias autopoiéticas das
diferentes escalas.
10.12 .7.0.2 . Modelos Elefantes: Pensamos em termos de algum modelo
generalizado ou abstrato que evidencie o comportamento do próprio modelo em
relação ao mundo exterior do qual ele próprio trata. Decerto, todo o empenho é para
nos colocarmos fora do âmbito usual daquilo que chamamos estatística. Ao terem
visões breves e incertas do funcionamento da natureza, os cientistas sentem a enorme
vulnerabilidade sob a máscara da angústia sobre a
confusão da incongruidade. Mas é justamente esta
incongruidade que modifica a maneira como o
cientista sente que torna possíveis os avanços mais
importantes. Na visão de Kuhn, a ciência normal (que
se nega o papel criador) consiste, em grande parte, em
operações de limpeza e não de sobreposições como
gostaria. Os experimentos se repetem de maneiras
minimamente distintas, as teorias acrescentam novos
desdobramentos simbólicos que modificam a visão
dos experimentos, como filtros novos. Todo cientista
que se voltou para a complexidade e para o caos tem
uma história de desestímulo, ou de hostilidade clara.
Os primeiros trabalhos de uma nova disciplina
retomam uma linguagem simples, porque precisam
retomar às origens em busca de uma base estável para uma nova intuição.
10.12 .7.0.3. Caosismo Complexista: Com a estruturação de uma nova
linguagem, porém, os trabalhos de uma nova disciplina começam a soar evangélicos.
Pode-se notar isto na performance atual ou na cibernética e teoria do caos da década
de 1970. Declaram novos credos e com frequência terminam com pedidos de ação. Os
resultados experimentados e comprovados um número mínimo de vezes, parecem a
quem os experimenta ao mesmo tempo entusiasmantes e altamente provocativos de
reais mudanças sociais. Uma imagem teórica da transição para um novo
entranhamento complexo quer-se um início e não um fim. O coração do caos é
matematicamente acessível, o coração da matemática é caoticamente acessível. Para
aceitar o futuro não precisamos renunciar todo o passado.
10.12 .7.0.4 . A Computabilidade da Vertigem: Novas esperanças, novos
estilos e, o que mais nos comove, novas maneiras de sentir. As revoluções não ocorrem
aos poucos. Uma explicação da natureza substitui outra. Velhos problemas são
percebidos sob novos prismas. O sabor da comida muda com novas formas de talheres.
Esta não-familiaridade com as velhas obras das mais distintas artes, revigoram sua
aura com o infinito. O camundongo de laboratório já não é o pêndulo, mas a explosão
onírica de significações. Não seu corpo, mas o transbordamento de eurecas. A questão
da harmonia contextual está diretamente ligada à estruturação das dinâmicas escalares.
Um ser humano com o tamanho ou peso de um elefante teria seus ossos destroçados,
uma obra de arte é um sintoma de um encadeamento simbólico escalar. Há algo de
grotesco na hipervalorização do trabalho de Leonilson. Mas há também, num campo
mais distante da zoomorfia, uma geometria fractal que transcende as escalas. A nuvem
é o furacão, como um passo na terra vibra tal e qual um terremoto. A obra de Mehretu
em miniatura segue impressionante. As obras de arte afetiva tentam recuperar os laços
de sangue e saliva com a escala e o tamanho próprio de cada gesto, destruídos pela
zoofobia subjetiva; já as obras de arte científicas (e nisto mais extremas, próximas do
ruído e do musical) libertam o espectro da dimensão.
ॐ
10.12 .7.1 . Nébula do Elefante: Contudo, ao mesmo tempo em que a ciência progride,
ela nos convence que nos tornamos cada vez
menos capazes de matriciar complexidade pelo
pensamento de fenômenos que, dadas suas ordens
de grandeza espacial e temporal, escapam às
nossas capacidades mentais e mesmo espirituais.
Nesse sentido, a história do cosmos se torna,
para o comum dos mortais, um tipo de grande
mito: ela consiste no desenvolvimento de eventos
únicos e que, porque só são produzidos uma
única vez, não poderemos jamais provar a
realidade. A história do cosmos é uma ópera
picaresca sobre um elefante cósmico.
10.12 .7.2 . ética: Todos acreditam de
maneiras diferentes (mesmo que acreditem não
acreditar em nada através da estética e ou da
ciência), mas suas crenças não têm realidade. A
realidade é o que somos todxs juntxs, o que
fazemos e pensamos e suas relações. A crença na
divindade (da e ou através da arte) é apenas um meio de fugir de uma vida monótona, estúpida
e cruel. Além disso, a crença - de qualquer tipo - divide as pessoas: há artistas ciganos,
advogados judeus, administradores cristãos, críticos hindus, a lista não tem fim. A crença e a
ideia dividem, nunca reúnem as pessoas. Podemos juntar algumas pessoas em um grupo, mas
este grupo se opõe a outro grupo. Crenças e ideias nunca são unificadoras.
10.12 .7.2 .1 . A crença na beleza está espalhando feiura pelo mundo
(pensemos em como Saartjie Baartman foi tratada pela sociedade europeia). Embora
possa trazer consolo momentâneo, na verdade tem trazido mais desgraça e destruição
do que bem-estar, em forma de guerras subliminares que se embasam em
pressupostos estéticos, perda de sentido estético, divisão de classes pelo controle
relacional, alienação com os recursos de hipnose fornecidos pela arte e divisão entre os
indivíduos pela segregação.
10.12 .7.2 .2 . O que é a beleza num campo de pura estética como a arte? O que
seria uma cosmo-ética enquanto modo de ser da organização? Não sabemos nada,
juntamos nossas próprias memórias de (raras) experiências extáticas e palavras de
outras pessoas a respeito delas, pensamos o processo do tempo, juntamos em símbolos
das metamorfoses que se reconfiguram entre si. Se gana significa coletivo, Ganapati,
aquele que vê o agrupamento,era o indivíduo de um clã, que tinha o elefante para seu
totem e vislumbrava seu clã em relação a outro clã, que tinha o rato (ou leão, ou touro,
ou serpente) como seu totem. De todas as complexas misturas destes elementos,
captamos ondas que advém com a necessidade pragmática e sacrificamos o resto em
prol de um gesto poético numa simbologia.
10.12 .8. Simbologia elefante: Qualquer sistema simbólico que não desperte a transcendência
dos símbolos em prol dos campos energéticos que estes carregam, se vê desprovido de sua função
primordial. A arte de uma sociedade livre, que
queira evitar tanto o ruído puro como o
sufocamento pelas fantasmagorias, consiste em
conservar um código simbólico e, em seguida,
manter o destemor de revê-lo e ampliá-lo, para
assegurar que o código sirva àqueles que se propõem
a tal tarefa sensível. Através da reverência, uma
re-visão efetua-se naturalmente na veneração mais
profunda, o símbolo torna-se uma presença
visionária e é revisto, quando necessário, pela
luminosidade silente em que ele se expõe.
10.12 .8.1 . Método elefante: Em
relação ao método-baleia, que deixa
lentamente os plânctons acumularem-se
em sua boca até que lhe alimente, como
podemos pensar um método elefante, no
qual o todo do processo seja mais valioso
que o produto final? A criação de regras
demanda mais criatividade que a destruição
das regras vigentes. Tais regras criadas, não
limitam a liberdade do gesto poético, mas
entranham de maneira mais complexa tal
gesto nas regras já existentes. A
compreensão da harmonia contextual nos
permite um gesto simples e singelo na
modulação das entrescutas. As diversas
alterações nos sistemas simbólicos locais
geram os distintos totens simbólicos.
ॐ
10.13. Totens Elefantes: A simbolização é a própria cópula entre o raciocínio lógico e a intuição
criativa que gera e gere a
decantação icônica dos processos
coletivos em cânones referenciais.
Antepassado comum ao clã,
signo guardião e auxiliar, o totem
embora seja perigoso aos que não
respeitam suas regras internas,
reconhece e poupa aqueles que
vigoram seus tabus. Ganapati é o
justo e vitorioso Indra, mas
também seus adoradores
corruptos, na geração seguinte.
Assim como a totemização
contemporânea se desenha por
um conjunto de práticas
simbólicas condensadas durante a
adolescência em humanos, entre
os elefantes é nesta fase também que vemos as hordas se estruturarem. Quais as consequência do abandono das
gerações adolescentes sem modelos ancestrais arraigados sob a tutela de propagandistas de produtos? Primeiro os
colonizadores matam o centro de pensamento e ritualização simbólica da tribo, os outros se matam sozinhos.
A cultura antiga dos mahouts não se mostrou em nada menos extrativista e violenta que os métodos de cárcere
moderno zoológicos. A criação de uma cultura massificante, principalmente na adolescência, tem como
intuito separar possíveis insurgências contra o poder centralizador através da criação de tabus sobre os
processos de intelectualização e sensibilidade relacional. Os preconceitos e o bullying se encaixam neste projeto
de desagregação social programada. A arte é o tabu do entretenimento totemizado. A arte é o totem do tabu
desejante.
10.13.0. Totem Elefante: Aqueles que se põem frente ao signo totêmico da arte tendem a
cultuar o reestabelecimento de ideais familiares e sociais, isto sempre embasado no erotismo fálico (do
gesto poético) que incutem tanto à sabedoria quanto aos relacionamentos. Como são seduzidos pela
complexidade, procuram seduzir pela virtude em cada gesto com paciência e precisão. Observam o
cuidado mútuo para com os mais jovens e respeito pelos mais velhos, frágeis e doentes. Absorvendo
força em si mesmos, buscam servir de fundação para as grandes pessoas e sociedades. A mitologia
védica claramente indica que a posição dos deuses muda de acordo com as vicissitudes da vida cultural
de seus adoradores. Neste alinhamento entre o sígnico e a psique, o admirador do elefante tem a
oportunidade de rever seus laços, sentir-se parte da comunidade e do todo, e clamar por sua mais
primordial e gentil realeza.
10.13.0.1 . Totem de Ganesha: No sistema ganapati védico, Ganesha mesmo se torna
um totem através do tempo ampliando a noção mais simples e popular de seu mito
(aproximada a vida de Krishna). Cada encarnação de Ganesha no Mugdala Purana tomou lugar
em diferentes eras cósmicas, expressando cada uma delas complexos conceitos filosóficos, com
seus demônios e batalhas específicas, associados com a progressiva criação do mundo. Cada
encarnação representa um estágio do absoluto enquanto este floresce em criar-se. Vakratunda
(“tromba torcida”), primeiro da série, representa a agregação de todos os corpos, uma
encarnação da forma molecular da energia universal (Bhraman). O propósito desta encarnação
é a de superar o demônio Matsaryasura (inveja, ciúme). Sua montaria (vahana) é o leão.
10.13.0.2 . Defensor dos excluídos: Manu, maior comentador clássico dos Vedas,
descreve Ganapati como a divindade das classes oprimidas,
os Shudras (em geral nômades ou estrangeiros). Em
contraste pleno a Sambhu (“prosperidade acima de tudo”),
divindade dos Bhrâmanes. A Índia é uma civilização
antiga, o Brasil uma cultura antiga. Impossível não notar
uma classe de artistas que defendem os direitos e as
subjetividades dos excluídos juntarem-se. Os Ganapatis
foram por muito tempo rotulados como violentos, por
questionarem os desmandos ímpios dos poderosos.
Apareciam mesmo como trono de Manjusree, chamado de
vighmantaka, o “criador de catástrofes”. A transição
hierárquica de Ganapati, passa pelo mesmo processo que as
vanguardas, de uma condecoração de ornamentos e sofisticação. Essa mudança se dá de
maneira abrupta e repentina nos Puranas finalizando mesmo no Narada dizendo: “Aquele que
entregar este texto em oito cópias, a oito brâmanes, está certo de conseguir sucesso no
aprendizado e isto graças a Ganesa.” Tal mudança se dá porque Ganesha, passando pela perda
da cabeça, passa de criador de confusões a arquétipo de má condução, compreendida e
modificada. Ekadanta (“presa única”), representa a agregação de todas as almas individuais,
uma encarnação da natureza essencial da energia universal (Bhraman). O propósito desta
encarnação é superar o demônio Madasura (arrogância, vaidade). Sua montaria é o rato.
10.13.1 . Devorar o próprio totem: Se uma elefanta é a esposa de Krishna (e do pai de Cristo,
Javé), Ganesha tem por consorte o rato Gajamukha que, com seu jeito inquieto, simboliza a mente
humana, sempre correndo de lá para cá, perdendo-se em experiências, pensamentos ou fantasias. A
mente, assim como o rato, está sempre nervosa, faminta e com medo, e fica continuamente
procurando novas experiências para alimentar seus infinitos desejos. E, assim como o rato tem hábitos
noturnos, a mente parece estar sempre escondendo-se e fugindo da luz do espírito, preferindo caçar
furtivamente nas sombras do desejo. Gajamukha deriva da palavra sânscrita “muushhaka” que advém
de “muushha” (ouro). O princípio da
valoração. O Nome Ganesha deriva
da combinação de duas palavras:
gana (mais comumente grafada
guna) e isha. Os “ganas” ou “gunas”
são os ingredientes que determinam
a forma do universo dentro deste
sistema simbólico, ou melhor, as
formas em que a natureza se
auto-organiza na razão sensível:
inércia, ação e equilíbrio (tamas,
rajas e sattva). “Isha” significa
inteligência, controle, controlador.
Ganesha, o vermelho, a inteligência
que dirige e organiza as forças da
natureza. É por isso que Ganapatya
é, entre outros atibutos, senhor do karma, aquele que controla e dirige a lei de causa e efeito. Mahodara
(“grande ventre”) é a síntese de Vakratunda e Ekadanta. É o absoluto enquanto este adentra o processo
criativo. É uma encarnação da sabedoria da energia universal (Bhraman). O propósito desta
encarnação é superar o demônio Mohasura (ilusão, confusão). Sua montaria é um rato.
ॐ
10.13.3. Tabus Elefantes: Os padrões de acasalamento dos elefantes nos oferecem informações
importantes sobre as estruturas familiares e
ciclos comportamentais de suas vidas. Os
editais e prêmios artísticos são processos de
julgamento, tabus que geram totens. Seus
padrões de acasalamento são únicos, desde que
os elefantes não se limitam a acasalar em um
momento específico do ano. A situação que se
desenvolve põe os machos a perseguir as
fêmeas até que ela esteja pronta para
montagem. Como porém pode-se pensar
numa justiça da beleza que não acene à
perseguição da feiura? Quando o elefante
deseja atividade sexual, ele se aproxima do
rebanho matriarcal. Uma vez que o macho
termina, ele se junta ao rebanho bachelar (de
machos) ou segue por conta própria. O jurado
é um demagogo na posição de acusador e o
artista é um réu hipnófilo de hipnose. É esse o
comportamento masculino padrão, que
destaca a família das elefantes matriarca. O
demagogo, sabe como fascinar o povo, como
criar uma espécie de sugestão em massa. Em
alguns casos os machos seguem os
matriarcados a distância, cuidando deles. Se o
projeto demonstra que o artista se tornou, por algum tempo, física e mentalmente automatizado,
submisso, então o projeto pode ser aceito. Gajavaktra ou Gajanana (“face de elefante”) é a
contrapartida de Mahodara. O propósito desta encarnação é superar o demônio Lobhasura (ganância).
Sua montaria é o rato.
10.13.3.1 . Tabu familiar-nepótico: Uma família de elefantes é liderada por uma
matriarca, a matriarca é a mais velha e mais experiente da manada. O julgamento serve como
um instrumento de intimidação contra o que realmente quer dizer o artista, ao mesmo tempo
que encobre as máfias de simpatias afetivas dos julgadores. A sociedade matriarcal consiste de
sua prole fêmea e seus filhotes. Em alguns casos pode incluir uma das irmãs da matriarca e sua
prole também. É esse contato e relacionamento que permite que o resto dos elefantes
adquiram o conhecimento necessário para a sobrevivência. Como artistas sem máfia, ou com
máfias que não servem aos seus propósitos, lidam? Os locais onde os grupos bachelares mais
violentam os matriarcados (centroeste africano e china) são também onde mais sofreram
extermínio, talvez devido ao esquecimento destes conhecimentos. Os artistas atuam
justificando suas obras, desculpando-se em testemunhos subjetivos. Agem como testemunhas
de realidades inteiras como estratégia de aceitação, fazem-se notar como importantes
servidores públicos e passam mais tempo tentando parecê-lo que de fato sendo-o. Os elefantes
machos se excitam pela competitividade com outros machos e não pelas fêmeas. Alguns
elefantes africanos machos formam casais e trios homossexuais. Vivem juntos em cópulas
(homossexualismo e orgia) ao mesmo tempo que nos matriarcados são vistos casos de
homoerotismo. Lambodara (“ventre pendente”) é a primeira das quatro encarnações que
correspondem ao estágio onde os deuses purádicos são criados. Lambodara corresponde a
Shakti, o puro poder das energias universais (Bhraman). O propósito desta encarnação é a
superação do demônio Karodhasura (ira). Sua montaria é o rato.
10.13.3.2 . Tabu mortal-histórico: Algumas elefantas se recusam a abandonar o filhote
em caso de morte. Há o direito de silenciar e conseguir outro trabalho que não a própria arte.
Mas é vital pensarmos sobre a viabilização de uma arte sustentável e que sirva de molde de
sustento social. Pagar pelo ócio e não pela produção, pagar espectadores, assim como os elefantes
pagam tributos aos ancestrais mortos. A morte para o sistema, ou a reclusão e fuga nos tira
quantos sábios líderes solucionadores de tensões, em prol da vontade excessiva de alguns
violadores? Kafka, por exemplo,
quanto precisou sofrer para
testemunhar sobre este silêncio
mortuário que é a censura econômica?
Ocorre uma extorsão mental do
artista, que pode ter suas ideias
roubadas pela máquina burocrática e
seus julgadores, e mesmo ser punido
por suas intenções que nem mesmo
venha a conseguir realizar. Vikata
(“forma inusual”, “malformado”)
correspode a Surya. É uma encarnação
da natureza iluminante da energia
universal (Bhraman). O propósito
desta encarnação é superar o demônio Kamasura (luxúria). Sua montaria é o pavão.
10.13.4 . Clãs Elefantes: Os matriarcados e bachelares (bull bands), mesmo depois de separados
mantêm uma associação entre si, isto inclui viajarem em
proximidades (embora os machos necessitem ir mais longe).
Que acontece com as pessoas que são chamadas a separar a
verdade da mentira, o belo do feio, a fim de pronunciar
vereditos justos e imparciais sobre quais as obras mais
necessárias para a atual situação? Tais grupos de ligação, são
chamados clãs elefantes. Este é um campo de estudo
complicado e ainda com pouca documentação, devido em parte
à pouca compreensão que temos da comunicação elefantina,
ficando toda à observação dos cerimoniais de cumprimentos
que demandam mais estudos por parte dos biólogos. Os jurados
enfrentam a difícil tarefa de julgar e indagar com base apenas
nos fatos, mas como no caso de um processo artístico que nem
foi realizado ainda? Mas maior dificultador desta pesquisa
(bem como da transmissão de conhecimento social entre os
próprios elefantes), é a morte prematura de elefantes por
marfim. Os jurados são influenciados pela atmosfera de
emoção coletiva, suas necessidades e gostos, que envolvem
questões controvertidas de subjetivação. Se são artistas
também, por exemplo, hão de se preocupar com a competitividade e talvez hajam em prol de uma
reserva de mercado. Vighnaraja (“rei dos obstáculos”) corresponde a Vishnu. É a encarnação da
natureza preservativa da energia universal (Bhraman). O propósito desta encarnação é superar o
demônio Mamasura (possessividade). Sua montarial é a serpente celestial Shesha.
ॐ
10.13.5. Aves elefantes, mamutes e o tótem da extinção. Os propagandistas
da hegemonia capital são muito engenhosos em despertar em nós latentes
sentimentos de culpa, repetindo sem cessar quão criminoso foi o mundo contra
povos inocentes e pacíficos e como corrompeu ideais honestos. Ridicularizam os
pensadores e artistas sérios, humilham os líderes revolucionários que falharam
(camp), lançando mão de atitude crítica latente em cada um de nós, em relação a
qualquer artista e chefe de campanha. Já há programas televisivos que buscam os
“novos gênios da arte”! Algumas vezes, eles usam a tática do tédio para
embalar-nos a adormecer sob o sonho da coexistência pacífica sob a cultura do
entretenimento cínico. Buscam que rompamos com todos os laços de lealdade
que nos ligam ao passado, e uns aos outros, separando pais e parentes, amigos e
convivas. Toda estratégia que visa despertar medo e suspeita tende a isolar o
indivíduo inseguro até que ele ceda a forças mais poderosas que seus amigos
anteriores. Temos que aprender a medir e não medir nossas palavras, e a combater
o exaustivo bombardeio de palavras totalitárias (e há muitas delas, como um
exercício mental, neste projeto). É preciso, cada vez mais, que a função de jurado
esteja imbuída de amor e sabedoria. Precisamos estabelecer símbolos de
concentração de energia simbólica que não cedam à pressão da massificação
campal. Dhumravarna (“cinzento”) corresponde a Shiva. É a encarnação da
natureza destrutiva da energia universal (Bhraman). Seu propósito é a superação
do demônio Abhimanasura (orgulho, apego). Sua montaria é o cavalo.
10.13.5.1 . Mapeamentos, distorcidos em recorte de gênero (25
homens e 4 mulheres)ou precisão das informações referentes aos
trabalhos independentes acabam por permitir que se apaguem as lutas e
políticas existentes no interior destas apropriações. Um dos delírios mais
coercivos das ferramentas de julgamento meritocrático artístico é o
delírio de explicação. No entanto, o que insistimos em esquecer (ou como
em matrix, o que apagam de nossa memória) é que todos os sistemas são
afinal programados pelos grupos dominantes. Cabe somente a nós
escrevermos e refletirmos sobre nossa história, livres do pensamento
mágico da onisciência que demanda a burocracia. Compartilhemos os
códigos, químicos como Mckenna ou arquitetônicos como Fuller, enfim.
Este projeto é uma tentativa de abrir os códigos da cultura, através da
artística.
10.13.5.2 . Cerimonial: A (des-)apropriação tecnológica, em
referência ao design cognitivo, aplica-se às novas gerações de
instrumentos sócio-técnicos “coloca-se como uma questão de
necessidade, de linguagem e de consciência; o problema da quantidade se
sobrepõe ao da qualidade (…) [em] que países como o Brasil não podem e
não querem pretender atingir a qualidade dos países desenvolvidos pois
suas necessidades repelem o alto custo de aperfeiçoamentos tecnológicos
contínuos que acabam por beneficiar apenas uma pequena parcela do
povo.” O pensamento mágico da produção técnica e criativa, suscita
respeitabilidade e submissão daqueles que se sentem premidos pela
necessidade de explicar racionalmente os fenômenos que não
compreendem. É neste sentido que achamos bem longe das iniciativas
financiadas e governamentais a imaginação radical da apropriação
tecnológica brasileira. Que nome dar a esta encarnação atual de Ganesha,
que uniria todos os seus aspectos?
10.13.5.2 .1 . É necessário mais que nunca (Paulo Freire) em nossos trabalhos,
ensinar tecnologia como se estivéssemos nas trincheiras, (nunca saímos delas). É
necessário que estabeleçamos novos parâmetros de colaboração em que a arte, a política, a
autonomia e o anticapitalismo sejam princípios e não palavras soltas ao vento. Urge a volta
da micro-política em rede, das pessoas sinceras e suas nervosas inquietações, espaços
de convívio e trabalhos onde a liberdade não seja um conceito único mas uma proposta
político-pedagógica-cultural a ser construída em nossas práticas, por nossas
colaborações, nossas próprias mãos, nossos livres saberes, nossos manifestos, que
sempre estarão à frente do sistema, que por sua vez, sempre virá atrás – seja para nos
reprimir, copiar ou cooptar.
ॐ
10.13.6. O sistema totêmico se organiza visando questões puramente práticas, destinadas a
atender à mais natural das necessidades humanas. A burocracia é um processo intelectual projetivo,
um projeto em si mesmo. Joga-se com as regras e com as ideias, intuições e conceitos, sem realmente
participar dos empreendimentos culturais de suas épocas, pois passar um projeto polêmico envolve
grandes riscos. A burocracia é o sistema totêmico atual que atua como exemplo, um modelo em
grande escala de “magia cooperativa”. Se apropria dos processos de poder sobre o saber, controlando os
fluxos de pessoas que abrem os mais diversos códigos físicos e psíquicos, pouquíssimas vezes se
questionando sobre seus próprios códigos. A burocracia também é feita de subjetividades e não
somente de máquinas. O sistema totêmico da burocracia cria uma reunião mágica e intermediata entre
produtores e consumidores de produtos abstratos. Vamos dar a eles novos mitos, nossas selvas de leis,
nossas belxs metasubcibertrans anti-heroínas.
10.13.7. A burocracia de
julgamento refugia-se no isolamento
intelectual e numa filosofia de torre de
marfim, provocando muita hostilidade
e suspeita por parte dos que recebem as
pedras da lei em vez do pão do
reconhecimento. Cada clã totêmico
encarrega-se da parte de garantir um
abastecimento copioso de determinada
nutrição e manterem apaziguadas
certas forças. Os intelectuais e artistas
desempenham, no mundo democrático,
um papel relevante de mestres das ideias
e sensações; todo ensino, porém,
envolve uma relação emotiva. Já que no
sistema totêmico cada clã não pode
comer os alimentos de seu próprio
totem, as realizações de cada clã devem
nutrir a todos os outros clãs. Devem
sobrar editais de produção de arte, e de
maneira nenhum haver competição
àqueles que se empenham nas sagradas
funções de produzir nossos sonhos. Eis
uma simples saída à pobreza inventada
pelos egoístas, um mundo de artistas,
uma reserva natural da criatividade
humana.
10.13.8. Na civilização ocidental, o desenvolvimento dos meios de comunicação coletiva
intensificou a influência da pressão das massas, tanto sobre nossos preconceitos quanto sobre a
imparcialidade do nosso pensamento. Na filosofia burocrática, a espontaneidade nunca é
compreendida, nem o são o poder criador e a coincidência históricas e sincronicidades. Vivemos num
mundo de ruídos constantes, que nos aprisionam, mesmo quando não o percebemos. Já temos o
problema da voz solitária, que prega no deserto. Estou convencido de que há, entre nós, muitas
pessoas sábias cujos ensinamentos nos auxiliariam a corrigir, em nossos pensamentos, o que é produto
do delírio; e que estas vozes estão sendo sistematicamente, e também pelo excesso de ruído, abafadas.
A tecnologia baseada na filosofia burocrática é fria e sem padrões conectivos, crente na ausência de fé,
contrafeita ao próprio mundo em prol de regulamentos impraticáveis.
10.13.8.1 . Um totem de logomarcas e produtos: Em nossa sociedade totêmica do
consumo, não podemos mais comunicar simplesmente a sabedoria e seus conhecimentos, para
sermos ouvidos demandam que anunciemos e fortaleçamos nossas palavras com a
discursividade vigente, com o poder dos megaciclos e dos rótulos oficiais. Mas justamente
estes abafam junto à contínua produção de palavras vazias de entretenimento e humor camp e
hipercomplexificação científica isolada da realidade social. Além de que para sermos ouvidos
pelo sistema, precisamos ter por trás uma organização, para garantir que falaremos na hora
exata em que haja ouvintes para receber a mensagem patrocinada. E se não tivermos um titulo
reconhecido e um diploma, nossas palavras serão perdidas.
10.13.8.2 . Enfrentar os tabus das massas é
uma das tarefas mais difíceis do participante numa
democracia. A pressuposição da liberdade exige que
cada cidadão tenha o direito de experimentar todas as
formas de emoção e pensamento coletivas. Esta prova
só é possível quando estimula constantemente a
autocrítica, pessoal e coletiva. A democracia precisa
enfrentar a tarefa de preservar a mobilidade do
pensamento e da criação, a fim de se libertar das
amarras de temores cegos e da magia do conforto. O
combate e o entrechoque deve ocorrer com leveza e
amor, para não ser defendido como violência e
terrorismo. Neste exato momento, o mundo todo
dança ao redor de um totem, a ideia mágica de que os
poderes, materiais e militares, colocados por trás de
um argumento aproximam-nos da verdade, que o
poder pueril do humor e da fé possam nos afastar da
seriedade do sublime nos confortando na mera beleza.
10.13.9. Agora, evoquemos o espetáculo, uma refeição totêmica ampliada por alguns prováveis
aspectos que ainda não pudemos considerar (os ocasos da singularidade da montagem). O clã se acha
celebrando a ocasião cerimonial pela matança cruel de um elefante e está devorando-o cru, o coração
ainda pulsa – sangue, carne, marfim. Os membros do clã lá se encontram vestidos à semelhança do
totem e imitam-no em sons e movimentos, como se procurassem acentuar sua identidade com ele.
Devoram também a si mesmos neste espetáculo. Cada um ali na casa de ópera se acha consciente de que
está executando um ato proibido ao indivíduo e justificável apenas pela participação de todos, não
podendo ninguém ausentar-se da matança nem da refeição. Quando termina, o animal morto é
lamentado e pranteado.
ॐ
10.13.9.1 . O luto é obrigatório, imposto pelo temor de uma desforra ameaçada que
renega a responsabilidade da matança. O luto é depois seguido por demonstrações de regozijo
festivo, instintos liberados, permissão para as gratificações complacentes. Encontramos aqui
um fácil acesso à compreensão da natureza dos festivais em geral (Fausto perante à Valburga).
Um festival é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório, a ruptura solene de uma
proibição. Não é que os humanos se sintam felizes em conseqüência de alguma injunção que
receberam. O caso é que o excesso faz parte da essência do festival, o sentimento festivo é
produzido pela liberdade de fazer o que, via de regra, é proibido. Mas e quando os festivais dos
incontáveis clãs (nichos culturais) se somam, e esta liberação violenta e irresponsável dos desejos
impunes se torna a regra, ao mesmo tempo que os sacrifícios seguem continuamente debaixo de
nossos olhos?
10.13.9.2 . Quantos mais precisarão ser sacrificados para que percebamos o real valor de
nossa cultura artística de entretenimento e seus cultos hedonistas de luxúria à estética até que
compreendamos que somos um mesmo clã sob o totem de uma figura humana (Burning Man) que
compactua com o extermínio e a escravidão? A arte grega fala de refeições totêmicas no período
de sua protofilosofia. Tenho em mente a mais antiga ópera, a tragédia. Um conjunto de
indivíduos, com nomes e vestimentas iguais, cercava uma figura isolada, todos eles
dependendo de suas palavras e cantos e atos: Coro e Herói-Heroína. O único ator. Orfeo
devorado pela mênades. A Heroína-Herói deve sofrer, por sua rebelião contra alguma
autoridade humana ou divina. O Coro segue-lhe com comiseração, tenta reter-lhe ao perigo,
advertir-lhe e moderar-lhe o ímpeto, pranteando seus atos quando encontra o que sente ser a
punição merecida por seu ousado empreendimento.
10.13.9.3. Mas por que deve o heroísmo sofrer? A cena em um palco é sempre um
totem criado a partir de uma cena
histórica tabu através de um processo
de deformação sistemática (desde sua
concepção no seio dos interesses
individuais do artista, passando por
todos os processos de ‘produção’) de
um produto de refinada hipocrisia,
pode se dizer. O Coro, os espectadores
do espetáculo, são os causadores do
sofrimento de Herói-Heroína.
Primeiro como tragédia, lamentam
matar a arte em prol do
entretenimento e da necessidade de
controle burocrático; em seguida
como farsa a ópera se torna musical e
arte museificada, em ambos os
movimentos o crime de alienação é
imputado aos artistas. A culpa jogada
nos ombros da Heroína-Herói, a
presunção e a rebeldia contra uma
grande autoridade, era precisamente o
crime pelo qual os membros do Coro,
o conjunto de irmãos, eram
responsáveis; e que o Herói-Heroína
queria mostrar-lhes. Assim, a
Heroína-Herói veste os erros do Coro
para mostrar-lhe um espelho
fidedigno de seus atos, redimindo-os
em seu testemunho.
10.13.10. Ressonância corporal do totem: Vishnu inventou os chacras como forma de controle
dos humanos. A serpente enrolada nos chacras é o símbolo da kundalini. A kundalini apoia-se num
elefante, cujas sete trombas representam os sete minerais indispensáveis para o sustento do corpo
físico e dos próprios sete chacras que alimentam o corpo psíquico. Segundo os Ganaptya Purana, a
existência humana compõe-se de muitos corpos, cada um contendo diversos centros nervosos,
hemoglobina, oxigênio, carbono, etc.; o corpo astral - o corpo psíquico, o grande inconsciente -
compõe-se de muitos aspectos ou dimensões; uma delas é um agregado de símbolos geométricos;
outra compreende vibrações sonoras - o mundo dos mantras. Kundalini está adormecida, feito uma
cobra enrolada no chakra muladhara.
10.13.10.1 . Dentro do muladhara existe uma formação semelhante a um nó,
conhecida como o Brahma Granthi. Quando este nó e desfeito, shakti, o poder da kundalini,
começa a subir pelo nadi sushumna, no interior da espinha dorsal. Parece-se com a irrupção de
um vulcão, onde a lava escondida em seu interior é expelida para fora. Tal descarga pode conter
o carma de muitas encarnações passadas, extraído subitamente do depósito inconsciente do
muladhara. Se lembre, porém, o chakra cardíaco ajna deve ser ativado antes de qualquer outro,
assim essas poderosas forças inconscientes podem ser controladas com segurança.
ॐ
10.14 . Sensações Elefantes: Clamando o totem
corporal: Os elefantes têm uma forte proeminência corporal sobre
seus aspectos metafísicos, o que já levou à tolice de acreditar-se
que não tivessem emoções ou mesmo inteligência. Assim,
indicaram melhorias e tornaram-se um símbolo para o primeiro
chakra, na cultura corporal mais antiga do mundo. Este chakra
terreno, abertura de todo o complexo sistema de pensamento
corporal da ioga, na base da espinha serve de fundação ao corpo
todo. Localiza-se no períneo (a região entre o anus e os órgãos
genitais, plexo coccígeo) e tem referência às funções erógenas pré
genéricas, o sexo anal em Freud. Este é o chacra mais utilizado por
uma plateia sentada, observando uma ópera. Ligado diretamente
aos testículos, está associado aos nervos sensoriais que os
alimentam. No corpo feminino, localiza-se no colo do útero. As
antigas escrituras iogues associam-no ao olfato e ao nariz, à cor
vermelha. O primeiro chakra é o mais específico e limitado nível
de energia no sistema. Um limite é uma fronteira separando algo de
seu entorno de modo a defini-lo, separando-o de modo a termos algo
inteiro e específico, uma singularidade.
10.14 .0. A desconexão do corpo, a automatização interna e o retraimento mental da
esquizofrenia são epidemias culturais. Seja pela falta de cultivo que gera medo, ansiedade,
tensionamento, perda de foco,
desorganização, falta de limites; ou
por seu excesso que se traduz numa
fixação material, em ganância, apatia,
preguiça cansaço, medo de mudança,
vício em segurança, limitações
rígidas. As tecnologias (científicas e
psíquicas) estimulam sem cessar
novas insatisfações e a produção de
extravagâncias desnecessárias, sem
mesmo sabermos por quê. De todas
as perdas nos rompendo hoje, esta
alienação pode ser a mais alarmante
porque separa-nos de nossa própria
existência. Com trabalhos
degradantes em postura que nos tolhem, rotinas automáticas em ambientes que aniquilam os sentidos,
perdemos o prazer que se desenvolve de uma conexão dinâmica com o estar presente.
10.14 .0.0. A dissociação produz ações perigosamente desconexas. Assassinatos sem
sentido e atos terroristas que tratam o outro como objeto sem vida e encontram a fascinação
mórbida de espectadores anônimos. Mulheres aniquilam ou inflam suas curvas para se
encaixar em modelos plásticos. Homens engrandecem seus músculos sob submissão para
construir um sentido de poder, usualmente anestesiando suas sensações e sentimentos. As
tecnologias como um fim e não como um meio oferecem-nos a ficção da simples igualdade,
em lugar da incessante procura por liberação, diversificação e singularidade das dignidades
humanas. Milhares de adictos aos mais diversos vícios, se alienando com alimentos, drogas, ou
atividades compulsivas. Crianças são espancadas, molestadas, e doutrinadas à obediência deste
desregramento corporal. Sem um corpo como figura unificadora, nos fragmentamos
reprimindo a vitalidade e nos tornando facilmente manipuláveis.
10.14 .0.1 . Somos ensinados a controlar o corpo através da mente, que consideramos
muito superior. Mas o corpo tem uma
inteligência cujos mistérios a mente
pouco compreende. Lemos em livros
como comer, vemos nos filmes como
fazer amor, ouvimos as obras de arte
dizer-nos como ouvir, quanto devemos
dormir, e impomos estas práticas ao invés
de voltar a escuta adentro. As tecnologias
se esquecem que a perspectiva científica
do mundo não passa de uma gradação do
mito. A desvalorização do corpo é
perpetuada pelo ódio da cultura e das
religiões com relação a ele, tido como
“raiz de todos os males”, mera “ilusão”
ou apenas “insignificante”. Poucos
artistas dão papel à corporeidade de seus
gestos poéticos e à postura do espectador em
relação à obra. As universidades de música e artes plásticas não incluem em seus programas
anatomia, nutrição, movimento, ioga, alinhamento neuromuscular, bioenergética, ou mesmo
massagem. As óperas deveriam ser assistidas dançando. O artista não é incentivado a tocar.
Num certo sentido, quase toda a arte contemporânea é conceitual!
10.14 .0.2 . Suhdras: E nos espanta ainda que igualmente ignoremos os arredores
físicos de nossos corpos (abandonados e encarcerados, estuprados por nossas incontáveis
ideias), prejudicando o corpo planetário de modo a perpetuar nossa sobrevivência dissociada. O
crescimento da mendicância é uma metáfora para nossa própria desabrigância cultural, sem
pílula para tomar, nem cura mágica. As tecnologias, produtos da fantasia e visão corajosas,
ameaçam matar essas mesmas visão e coragem, sem as quais nenhuma mudança é possível. A
arte não pode oferecer ainda um anestésico quando o entorpecimento passar e o espectador se
vir no meio de um teatro de ópera sob as restrições e abusos que tinha previamente aceito.
Assim como a mente está para o corpo, a cultura está para o planeta. Conectar-se com sua própria
identidade corporal é o primeiro passo para reconectar a cultura ao mundo real.
ॐ
10.14 .1 . Sobrevivência: O primeiro chakra está ligado ao primeiro período de vida, desde a
concepção fetal intra-uterina aos doze meses de vida. O elemento que subjaz à consciência da fundação
da própria obra é o instinto de sobrevivência. Este instinto é arcaico, fundamental, inevitável e baseia a
manutenção de nossa existência física. Quando satisfeito, este instinto se recolhe a um ruído de fundo,
permitindo-nos engajar nossas consciências em outras atividades. O espírito concebido como um
computador mecânico é o resultado de uma racionalização e generalização compulsiva do mundo.
Quais as consequências físicas da música empreendida hoje em salas de concerto? Há tempos não vejo
pessoas de fato bailando nas festas. Assim tem sido desde o tempo dos primeiros pensadores. Esse
conceito implica em negar a vida emotiva ou em lhe atribuir reduzida importância (da mesma maneira
que a redução do corpo a uma mera ilusão ou mal) e em fazer da mesma uma zona marginal da
consciência. Quando continuamente ameaçado, muladhara domina todas as funções conscientes.
10.14 .1 .1 . Medo: Quando a sobrevivência é
ameaçada, sentimos medo. O medo aumenta nosso
alerta e transborda o corpo com químicas naturais
(como a adrenalina) que o energizam para a ação. O
medo chama nossa atenção ao aqui e agora para
responder à ameaça, mas foca a atenção para fora e
nos chacras superiores da percepção e atividade
mental. O medo é o ruído afetivo. Nos tornamos hiper
vigilantes, inquietos, ansiosos. Podemos dizer que a
arte pós-moderna é uma arte do medo, não
conseguimos assentar, relaxar ou deixá-la vir e ir.
Quando continuamente ameaçado, muladhara
domina todas as funções conscientes, dificultando o
foco e a calma, impossibilitando-nos de relaxar.
Pessoas em situação de rua, sem-tetos, e a população
pobre em geral, têm este tipo de sintoma. A paranoia
coletiva da cultura atual, aponta um desarranjo das
potências de sobrevivência que são em grande parte
causadoras da violência social. O menticídio começa
pelo abandono mental do corpo.
10.14 .1 .2 . Quando vivemos em um ambiente de perigo e privação contínuo, como no
caso dos elefantes, o medo se torna um programa primordial de sobrevivência. A sensação de
medo traz um sentimento paradoxal de segurança, por nos sentirmos hiper vigilantes e nos
sentimos desconfortáveis com a fragilidade de relaxar. Pessoas em situação de rua, sem-tetos, e
a população pobre em geral, têm este tipo de sintoma. Não teria a cultura humana não tornou
elefantes mais violentos do que eram? O desenvolvimento da indústria na cultura ocidental
afastou-nos dos ritmos naturais nos quais conseguimos sentir e pensar; da mesma maneira, a
cultura da indústria afastou a beleza das situações cotidianas. A paranoia coletiva da cultura
atual aponta um desarranjo das potências de sobrevivência que são, em grande parte,
causadoras da violência social. O menticídio começa pelo abandono mental do corpo e o abandono
corporal daquilo que a mente julga certo ser executado.
10.14 .1 .3. Os padrões mentais do medo tratam de um desarranjo harmônico entre a
subjetividade e as forças externas do mundo que atuam sobre esta. O medo é um adversário
sagrado, que nos ensina
muito, quando ouvido,
compreendido, e enfrentado
no mundo e em nós. Para
enfrentar o medo é
necessário juntar dados
sobre o assunto que nos
preocupa, reunir recursos
para efetivamente nos
depararmos com situações
similares no futuro. Isto
inclui a criação de uma
auto-estima (vida enquanto
obra de arte), ajudar pessoas
com problemas próximos ao
que sentimos experienciar,
melhorar nossas capacidades
de tratar de nossos temores. O medo é o tipo de problema que só pode ser vencido quando o
percebemos como uma solução.
10.14 .1 .3.1 . Esperança e medo são dois sentimentos com qualidades similares.
O medo é a crença de que algo ruim acontecerá, a esperança a crença de que algo bom
acontecerá. Ambas sensações se baseiam numa projeção de futuros possíveis, que como
no caso de um projeto de arte (como este, por exemplo), pode modificar as estruturas
das crenças pessimistas e arrazoáveis da produção de medo, tortura e menticídio por
um otimismo mínimo, razoável e natural.
10.14 .2 . Enraizamento e nutrição, manifestação e prosperidade: Até as maiores árvores foram
sementes que demandaram seu terreno. A nutrição é a mais básica das artes, que suporta o corpo todo
e toda a subjetividade. Um elefante é uma semente de quê? Sem nutrição, colapsamos. É vital o acesso
irrestrito de todxs à arte e ao conhecimento. Mantenha os dois pés no chão. A sustentabilidade de uma
obra e a subsistência de um artista na sua comunidade tem muito a ver com a nutrição, que modos de
vida e que tipos de arte se consome. Há muitos artistas que se têm na conta de gênios, sem nunca
porem à prova seus ideais metafísicos no mundo, sem nunca ouvirem outras possibilidades de fazer.
Há outros também com obras delicadas que se sentem tolhidos pelo excesso de produção e nunca se
exibem tampouco. Para manifestarmo-nos é preciso aceitar limitações, focar no que queremos,
perceber a que escutas falamos. Temos de
nos unir à especificidade escolhida por
tempo o bastante para que a manifestação
da obra ocorra, e normalmente este tempo
é maior do que prevíamos mentalmente.
Eu precisei sentar-me por meses para
finalizar este projeto, sem querer apaguei
tudo quando já havia atirado os
manuscritos ao fogo, mais meses me
tomam tentando eu mesma entender estes
escritos e vislumbrar aonde me apontam,
mas este é só o final de um processo de
onze anos de escrita sobre a escuta.
ॐ
10.14 .2 .1 . Há muitas pessoas muito inteligentes e talentosas, especialmente no
ab_ismo e nos círculos da contracultura (pós-digital), que não conseguem manifestar
prosperidade. Temem se fragilizar ou tornarem-se alienados na alegria sem violência. Nota-se
que este grupo tem um apego irrealista à liberdade, uma indisposição a aceitar limitações o
bastante para manifestarem suas necessidades. A desvalorização da mente humana individual,
substituído pelas redes neurais mecânicas, lembra-nos do delírio totalitarista (clã majoritário).
Há uma forma de orgulho vaidoso na arte, que nos afasta da humildade do corpo. Este apego à
genialidade e à liberdade gera um aprisionamento às formas da sobrevivência, do medo e da
sobrevivência que só compactuam com o menticídio generalizado propagando a luta de todos
contra todos num estado de eterna competição contra a cultura da dádiva.
10.14 .2 .1 . Eu mesma, sempre temi ter prosperidade e manifestar minha
escuta. Passei
anos sem
conseguir
emprego,
lutando contra
a cultura de
patrocínios e
editais, cheguei
a morar por
um tempo nas
ruas de Buenos
Aires e São
Paulo sem que
ninguém
soubesse por
onde andava. Desapareci. Eu era livre das restrições dos sistemas de produção, das
hierarquias, mas também era pobre demais para fazer qualquer coisa com minha
liberdade. Não foi até que aceitei meus limites com graça que consegui manifestar
alguma prosperidade para mim mesma. Quando cooperamos com nossas próprias
limitações, nossas energias erigem e naturalmente resolvem de maneira suave e sutil,
problemas que só aumentávamos com nossas revoltas. É preciso aceitar as limitações
para ultrapassá-las, é preciso aceitar o nosso foco de escuta do audível para poder ressoar
nossa aura.
10.14 .3. Afetos de fetos: A arte é a produção de uma cultura ainda por nascer. Sua pré-história
se deu no século XX, no útero maquínico do estado capital. O elefante (esta complexidade de
potencialidades infinitas) é um feto (que numa tremida devasta os Tarkus ainda sobreviventes) que
abre os olhos e vê imagens borradas de pinturas abstratas e ouve ruídos insuportáveis e mais altos do
que nunca antes. Está com medo e com fome. Algo atira seus lábios em direção à terra de onde suga
leite de lava. Relaxa temporariamente sentindo-se seguro. Nascer é a mais difícil tarefa, seja para uma
obra, uma pessoa e mesmo ao poderoso elefante. Nos primeiros tempos de vida, não se consegue fazer
nada por si mesmo. Não se compreende a linguagem dos seus próximos ou dos objetos, não se
consegue fazer-se compreender tampouco, só as próprias sensações ressoam sua existência, e ainda
assim a sobrevivência depende de que suas necessidades sejam supridas. Embora grandes empenhos
sejam necessários para a execução das tarefas mais simples, as necessidades não são mais resolvidas
automaticamente. Aumentam as demandas e diminuem as recompensas.
10.14 .3.1 . Presenciamos as primeiras vagas
sensações de individualidade da arte em relação à
experiência humana, é um período de intensa
reflexão sobre o papel humano no mundo. A arte
contemporânea reflete instintos primários de gozo e
dor, respostas nervosas instintivas à
autocompreensão do sistema planetário. Assim como
a criança é muito sensível ao seu ambiente, a cultura
também o é. O regime inumano se torna alvo a
atingir, um produto da tecnocracia e da
desumanização sensibilicida e que pode ter como
consequência a brutalidade organizada e o
esmagamento de toda espiritualidade e intuição do
bem. E da mesma forma que presenciamos uma
passagem do animismo à estruturação sistemática da
religiosidade na ancestralidade, agora a arte
(animismo dos objetos de consumo) começa a ser
sistematizada numa rede formal de arquétipos. Se a
mãe bebe petróleo, a criança crescerá adicta. Ainda, a criança não tem conhecimento de sua
individualidade por algum tempo, onde é doutrinada ou educada para a liberdade pelos pais
(the slime on the web).
10.14 .3.2 . Confiança e desconfiança: A experiência do corpo materno se torna a
primeira experiência de si. Afastados do chão envenenado por eras, sem poder plantarmos
nosso próprio alimento, encarcerados sob a frieza da ausência de contato, qual seria uma arte
realmente planetária? Ou esta que
ironiza e ridiculariza os afetos,
que colabora com a falsidade e
com o menticídio e sensibilicídio,
ou outra que enfrenta a descrença
com alegria e propõe formas de
novas de harmonização
relacional. As obras violentas
(como a de Jonathan Meese) são
sintomáticas neste sentido: um
choro de criança pedindo por
comida, carinho, e conforto; os
espectadores se identificam com
isto e embasam seus discursos da
ditadura do artifício camp para
não ter que tocar em suas próprias
infantilidades sensíveis e
intelectuais. As obras de arte
violentas compactuam com a
desconfiança imposta à arte que
desmerece os artistas que propõem
soluções factíveis e viáveis com a
visão de que a arte como um todo
não merece ser ouvida.
ॐ
10.14 .3.2 .1 . Tal desconfiança com relação ao
instinto de produção subjetiva, em pleno período
senso-motor do corpo social, é criada como uma estratégia
de sensibilicídio que mantém a escravidão da maior parte da
população humana e animal em prol de desejos prima de
uma minoria. Assim como uma criança herda os traumas de
seus pais, a cultura traz consigo a predominância intelectual
sobre os aspectos físicos da sobrevivência de todxs, reflexo
programado para justificar a hierarquia das classes
controladoras dominantes sobre obreiros criativos. Há
grandes semelhanças entre as relações das crianças e dos
elefantes. Não demonstram sinais da arrogância ou inibição
de suas necessidades corporais, que faz com que os civilizados tracem uma linha rígida entre
sua própria natureza e a dos animais. A perda deste estado de conexão e naturalidade corporal,
gera enormes desconfianças. Não propomos um retorno de qualquer forma prévia, tida como
animal, mas de uma liberação para a reinvenção do humano, ainda por fazer-se
10.14 .4 . O direito de estar aqui: Como você se sente lendo este projeto? E assistindo esta
ópera? Mal? Então pare! Esta obra não é pra você. Propomos que você sempre leia como quem canta,
que assista como quem dança, que saia desta experiência massageando seus queridos, que leia
escrevendo uma continuação ainda mais bonita pra isto tudo. Do seu jeito! Relaxe e faça com prazer do
melhor jeito possível. Imagine só como é o sexo dos elefantes. A compositora está escrevendo tudo isto
num embate, sim! Mas quanto prazer não sente nas entrelinhas destes. Sinta seu corpo enquanto
assistir a qualquer obra de arte. Eu gozo sem me masturbar. Preste-se atenção especial sob as distintas
influências estéticas. Que isto muda no teu gosto? Agora recoste-se e sinta como te arrancamos as presas.
ॐ
10.15. Marfim: A história da ópera trata de compositores revolucionários, que em geral
utilizaram-se das linguagens mais acessíveis e subutilizadas (transmutando o apelativo em intenso), assim
como uma presa de marfim nada mais é que dente polido. Em geral, como músicos, aspiram ao absoluto, mas
não o encontram nas religiões em vigor: é a arte que lhes aparece como sua melhor encarnação. O marfim de
presas de elefante é tradicionalmente esculpido em produtos como jóias, estatuetas e ornamentos. A partir daí,
uma dupla relação se estabelece entre a atividade artística e a vida social. De um lado, para que a arte se
desenvolva, a sociedade deve lhe oferecer as condições mais favoráveis possíveis; por outro a música deve
questionar com base nos conhecimentos absolutos da harmonia as condutas sociais através, por exemplo, da
ópera enquanto performance trágica.
10.16.8.1 . A nossa ciência, a nossa poesia, a nossa religião, são apenas camadas
superficiais de um estrato muito mais velho que atinge uma grande profundidade. Devemos
estar sempre preparados para convulsões violentas que podem abalar o nosso mundo cultural e
a nossa ordem social nas suas fundações. Quantos produtos abandonados para que pudéssemos
vivenciar esta gama de conforto? Quantos projetos artísticos e quantos artistas precisaram
sofrer para que uma peça qualquer para pianos pudesse ser ouvida? Quantos deuses com faces
kitschmórficas?
10.16.8.2 . Linguística da comunidade elefante: Onde aqui se ler eu, trata-se da
valoração do interesse, a autovalorização do artista. Como emerge a comunidade? Qual o seu
fundamento? Não há espelhos, mas coordenação
de ações. A relação como ação dual, recíproca no
entre, é seu único antecedente. Há na relação uma
metafísica do inaugural (ascendente). A gramática
paquiderme estipula todos os campos de atuação
de um problema, escuta todas as insurgências
contra o mesmo e veicula respostas singulares a
cada um dos casos específicos. Wagner e Buber. A
comunidade é seu próprio fim e meio. Uma ópera
comunitária toma o inevitável aspecto de rito
prosaico da própria vivência cotidiana. Quando
pessoas se inter-relacionam no dialógico e todos
estão integrados num centro ativo, só aí pode
haver uma comunidade. A linguística aqui
demanda para além de um herói-heroína se
debatendo contra a escuta de antípodas, a polifonia como próprio cerne da criação
comunicacional. Urge à poesia despertar as linguagens para a escuta de outras gramáticas
sinestésicas das complexidades sígnicas. Para que isto ocorra é necessário que as multidões se
despojem de muitas vantagens e privilégios particulares para o bem da comunidade. O
compositor da ópera deve abrir mão do sentido desta, por exemplo. É necessário a inaudita
pluriescuta, a saber, que as multidões queiram a comunidade com toda força de suas escutas.
10.16.8.2 . A ação recíproca que se instaura no diálogo exige para a total efetivação da
comunidade que cada pessoa, que cada membro desta comunidade, que cada pessoa, confirme
o outro. É preciso a dádiva da compreensão do papel de todos na ópera. A confirmação do
outro naquilo que ele é, une a comunidade na pluralidade. A confirmação possibilita a
identidade pessoal e a distinção a partir da honestidade dos fatos. Esta confirmação não deve
ser buscada no próprio indivíduo (heróico), numa atitude de pura autonomia, ou através de
sua inserção hierárquica no coletivo. Estes dois tipos de confirmação (individualismo e
coletivismo) identitária são ilusórios e perigosos, mas uma comunidade de fato orgânica, não
premeditada, na qual a confirmação ocorre num processo eminentemente recíproco de
interação a partir de interesses sensíveis na experiência vital. A comunidade não pode
tornar-se, portanto, um princípio nem responder a um conceito quando surge, mas a uma
situação. A realização da comunidade (como da linguística em oposição às legislações
gramaticais cânones), não se dá de uma vez por todas e de modo universalmente válido, mas
sempre apenas como resposta de momento para uma questão de momento.
10.16.9. O artista elefante: Podemos ver que a atual estrutura social na Ásia, na África, na
Europa, na América e em todas as partes do mundo está rapidamente se desintegrando, enquanto as
emergências de poderes (éticos, etológicos ou estéticos) cristalizam, e experimentamos ambos em
nossas próprias vidas: cristalizados e desintegrando. Quem ainda se interessa pela poesia do ser para
dizer “Se o estanho, golpeado, soa como trombeta, não é mérito dele”? A céu aberto ou subterrânea, a
mineração modifica intensamente a paisagem, tanto na extração como na deposição de seus estéreis e
rejeitos. Tanto Kafka como Brecht e Drummond fixaram a realidade em suas parábolas. Procuraram
uma representação “alienada” dessa realidade. Como não se afastar da feitura do mundo na alienação
mítica, nem incorrer na destruição maciça da fantasia que demanda cada mínima produção? “O
Elefante de Marfim” é um experimento onde o artista vivencia esta alienação e tenta explicar-se os
motivos de sua arte para si, e vislumbrando esta vertigem da obra, sente sua inevitabilidade. Aliás,
estéreis – no sentido de inócuos – é o que esses resíduos (da arte e dos minerais) não são para o meio
ambiente físico e subjetivo.
10.16.9.1 . Os brain trusters da administração, não obstante os seus problemas íntimos
com a figura artística (que Nietzsche toma como ponto de vista no caso Wagner), têm um
papel significativo no desenvolvimento da nossa história da arte. Nosso espírito é
profundamente afetado pelo seu. Paralelamente, nós, o público, exercemos influência sobre
eles e tanto os podemos
levar, por nossos
impulsos mais
civilizados, a encontrar
o caminho certo, como
os impelir, por força de
influências e impulsos
primitivos, a
precipitar-nos a todos
numa catástrofe
generalizada que parta
da cultura à sociedade
em geral. Podemos
vislumbrar como isto se
dá no caso de Wagner,
tanto no interior quanto
nas repercussões da obra.
ॐ
10.16.9.1 .1 . O caso Gesamtkunstwerk: Queremos compreender a arrogância
megalomaníaca da escuta de Wagner perante a melodia infinita, sua interpelação pelo
drama (aqui no sentido de fazer) como saída ao camp que iniciava sua constituição.
Precisamos com Schlingensief perdoar os arroubos artísticos de Wagner e vislumbrar
as potências de expansão da vida e da sensibilidade que podemos extrair de seus gestos.
Wagner percebe a prisão administrativa da arte, suas óperas já se encontram no museu
enquanto ele as escreve. A intrusão da mentalidade administrativa fica ainda mais
sujeita às contingências individuais quando os padrões de procedimento das autoridades
constituídas não são fiscalizáveis pelas comunidades que controlam. Nessas condições, é
fácil estabelecer-se o predomínio da arbitrariedade e do preconceito, como se pode ver
num museu de arte contemporânea que não se abre para diálogo com a comunidade
produtora em sua contemporaneidade.
10.16.9.2 . Máscara elefante: Como o embaralhamento das feições possíveis dos
“scramble suits” antevistos por Philip K. Dick, podemos pensar as complexidades dos
problemas como máscaras para uma postura de real posicionamento. O discurso complexista,
como por exemplo em Marx, podem dar vazão a que tudo seja discutido e nada de fato ocorra
como nas intermináveis querelas sobre o marxismo. O artista individual, tem servido de
máscara à arte ou ao poder capital? Podemos assim, chamar alguém de artista? A sociedade
enseja um esgotamento da espontaneidade da pessoa, da ação dialogal na sua emergência,
tornando-nos supérfluos ou egóticos, peças de um mecanismo. Daí resulta a negação da
vontade, da apatia quanto às decisões, da responsabilidade do agir em comum, recíproco, do
diálogo, enfim, da liberdade e da unicidade das pessoas.
10.16.9. Contra o esfacelamento da pessoa pelo mecanismo da sociedade de interesses
(coletivismo), alienante da real situação do aqui-agora em que ela se encontra, não se deve
procurar por soluções em um
igualmente fictício
ensimesmamento no privado
da composição (em outro
mergulho no eu), mas através
da saída da aparência deste eu
no espaço público (feito
palco) do entre-nós, abrir as
fronteiras entre palco e os
cadeirantes espectadores.
Próera enquanto
ópera-performance, com
oficinas, gente cozinhando e
conversando. Próera
organismo. É a ação é
dialógica o início de um
espaço comunitário
realmente político. A
redescoberta do comum passa
pela revolução no
pensamento do comunitário
que, mais do que através de
uma previsão organicista,
emerge pela prudência do juízo posto em prática no contato direto entre as pessoas.
ॐ
10.16.9.1 . Na pluralidade complexante as pessoas vêem assegurada a
singularidade de sua condição humana. Na comunidade a pessoa não é reduzida à mera
função de uma massa, a
um papel numa classe. Se
o anonimato prevalecer, a
comunidade degenera em
dispersão tirânica (onde é
questionada e negada toda
personalização), ou então
em concentração
totalitária que esmaga os
indivíduos com
mentícidio e
sensibilicídio, até que se
tornem uma massa
amorfa onde toda responsabilidade desaparece. A massa, negativo de povo, consiste
numa totalidade de indiferença onde nenhum elo comum, seja social ou político, une
os elementos deste agregado para fazer dele uma comunidade. A ópera massificada se
tornou as novelas televisivas com suas trilhas sonoras recheadas de “sucessos”. Ao
contrário, o que está no princípio da massa é a atomização extremada de indivíduos
não como formação social mas como socialidades amorfas.
10.16.9.2 . Privados do intervalo, do “entre” fundador do vínculo dialógico,
os indivíduos que compõe a massa não são agregados senão por seu isolamento mútuo.
Experimentam assim a desolação como experiência absoluta de não-pertencimento.
Esta ausência de intervalo gera a impressão de liberdade e de entranhamento das
potências vitais com o que ocorre no instante, mas privado de poder real de atuação é
uma perigosa arma de alienação. Isto pode ser experienciado nas festas-produto e nas
performances falsamente interativas, nas quais ninguém se diverte para se sentir igual
a todos.
10.16.10. O paradoxo da ópera natural: Associa-se a isto aquela superação da
aparência pela indeterminação dos
casos e modelos gradramáticos. A
voz monárquica (polifonia de
arcadas de mônadas) é usada pela
propaganda pelo simples fato de
que funciona, mas há ainda uma
outra voz inaudita dos elefantes,
num tom cada vez mais impaciente
e vingativo demandando uma
escuta compassiva. Podemos
ouvi-los da beira do mar a muito
tempo e apenas nunca de fato ter se
perguntado sobre um enorme
campo da escuta, abaixo dos bassos
e violoncellos, mesmo de Caruso,
talvez nos ventos. Vencer uma conversa é perdê-la: Uma Linguística dos Pássaros remonta
àquela conversa brilhante, triunfal mas ainda uma tentativa de pôr em prática regras do
espírito. O mocho e o grou sobre o elefante ao entardecer. Um colóquio é contrário à
conversação, divide-na no tempo. Que personagem dirá isto solenemente?
10.16.11 . Festas Elefante: Dos planejadores de insurreições psíquico-políticas aos
organizadores de
distração toda a história
da arte (e a ciência
criadora inclusa) se
desenrolou até a síntese
analítica da impotência
do gesto poético. Assim
vai a fábula democrática:
Quando os pobres
enriquecem e formam a
classe média, não
dedicam seu tempo livre
à política nem à cultura, e
sim primeiramente à
diversão. A república
platônica expulsa os seus
poetas com o nobre
objetivo de libertar o
povo das algemas da
necessidade e elevá-lo à
dignidade de indivíduo político pelo civismo e pela educação. Fábula cômica, irônica em sua
metalinguagem performática. A saída da miséria e da incultura deveria se mesclar com a
apropriação de cada um de sua humanidade plena, mas ao contrário o que vimos foi a divisa do
conhecimento ser estabelecida sem resistências já que para uma maioria o embrutecimento
delicioso dos prazeres tem primazia sobre os múltiplos modos de engajamento e
desenvolvimento pessoal com suas complexidades relacionais.
10.16.11 .1 . Elefante no Meio da Festa: A surdez é prazeirosa no ponto em que
alimenta a vaidade de se acreditar no topo da pirâmide social dos prazeres. O cultura
passa, neste divertimento contínuo, a cumprir a função de tornar a banalidade não só
suportável como preferível. Ao mesmo
tempo que aniquila a curiosidade, tira o
desânimo cotidiano: ela é a continuação da
apatia por outros meios e se integra, como
elemento fundamental, na imensa panóplia
de futilidades descartáveis. Colocar as
responsabilidades de organização
simbólico-aural e das políticas do audível
(totalidade das escutas) na música
infantilizada (e infantilizadora) que é o pop
não é nocivo apenas ao diálogo cultural sobre
as funções da escuta e as relações harmônicas
entre as possibilidades de soação, é ainda
sobrecarregá-la com uma gigantesca carga
ideológica com a qual ela não sabe como agir,
que tira-lhe o gozo e leva a uma apatia
quanto à sua mais proeminente qualidade
( profundamente debilitada): a de fazer
dançar e divertir.
ॐ
10.16.11 .2 . Tornar a diversão hegemônica lhe dá um papel que é de todo
não-divertido. Dançar se tornou um ato de alienação consentida, de submissão a um
fascínio consumista. Se paga (caro) para dançar. E isto não quer dizer que djs
(censores) e músicos da vida noturna estejam sendo melhor remunerados, pelo
contrário. O infantilismo da música erudita está todo em Mozart, e nisto não há nada
de pejorativo, como os chocolates que levam seu nome são uma excelente companhia
para uma visita ao Museu da Música em Viena.
10.16.12 . Elefantolândia: A pedagogia às avessas do divertimento tem seu espaço
privilegiado, que é como um resumo de todas as mitologias da época no parque de diversões.
Não à toa os santuários de
elefantes e os ecomuseus se
mirem no seu exemplo de terra
prometida da pieguice.
Interessante que quando
Bernanardo Paz trata de seu
interesse de criar Inhotim, ele
soe como Disney que dizia
querer criar “um parque
encantado onde adultos e
crianças poderiam se distrair
juntos”. O país das maravilhas é
uma ilha para onde vogamos a
fim de nos lavar dos
aborrecimentos. Esse
falanstério é um parêntese no
interior desse mundo, e
entramos nele com os mesmos
rigores que passamos pela
alfândega de uma fronteira
nacional, mas com a pompa de
um umbral religioso.
10.16.12 .0. A metafísica do divertimento está no simbolismo mesmo deste
afastamento da fantasia realista: tudo é calculado para nos arrancar da sua ideologia.
Um aspecto
inquietante desse
feliz pot-pourri é
sua formação se dar
segundo as leis da
assepsia. Uma
cosmococa sem
cocaína, um museu
de arte
contemporânea do
passado recente já
limpas de sua carga
artística e
insurgente, sem relações contemporâneas se dando em tempo real. O parque de
diversões só oferece o perfume falso das épocas passadas, não sua realidade.
10.16.12 .1 . Montanha Russa dos Afetos: Disney sugeriu o protótipo da
museografia e expografia que o
sucedeu, sugerindo o mal para
melhor neutralizá-lo, reduzindo o
universo simbólico à dimensão de
um fabuloso brinquedo, despoja-o
de qualquer característica de
inquietação, de perigo. Raças,
espécies, civilizações, crenças, povos
podem se frequentar sem risco, já
que foram antecipadamente
esvaziados, limpos de suas asperezas,
reduzidos ao seu aspecto folclórico.
Essas diferenças, fontes de disputas, não têm mais importância e não impedem a
ampla corrente de simpatia e de bondade ardente que circula ali. Esta bondade aparente
(também visível na disneyficação da música jovem)suprime a discussão que a obra de
Oiticica traz ou a torna ainda mais venenosa? Dominados pelo parque de temas, o
mundo exterior é apenas uma impureza anódina, um lixo, já que dele existe uma
duplicata em que o proibido, a pobreza e a maldade já foram anuladas pela mesma
violência que as cria. Este projeto é um mapa proibido de museu.
10.16.13. Vernissage elefante: O exemplo das festas noturnas de vernissage me parece
relevante aqui: A idéia de desalienação se tornou tão importante entre nós, que quando você
está num destes eventos, o encontro e a sensação de comunhão se dão justamente no âmbito
onde as pessoas se entreolham com a máscara do conhecimento e da sensibilidade extremada
(blasé) e dizem virando os olhos: “Nós compreendemos a alienação desta situação e não
dançaremos porque superamos esta.” A desalienação aliena como nada. A liberdade é a mais
plangente arma de controle. São os prazeres que fundamentam os massacres.
ॐ
10.17. Massacre Elefante: Vivemos num zoológico de escravidão programada da maioria da
população, onde quem
questiona este ponto é usado
como bode expiatório para a
própria acusação por parte de
uma parcela cooptada das
pessoas. Um exemplo: Se um
artista reclama das condições de
trabalho artístico, artistas bem
pagos fazem questão de
desmerecer tal questionamento e
as companias de fomento
apontam tal gesto como um dos
motivos para a diminuição dos
auxílios. Somos coagidos a não
sermos o que somos, como
crianças que nunca chegam a
poder se responsabilizarem pela autonomia. De modo semelhante operam os cáculos de superpopulação
elefante dos organizadores de safari quando usam um ataque elefante a uma colheita, por exemplo. Mas quem
não deixou territórios onde os elefantes pudessem sobreviver? Se a arte sofre uma censura positiva antes
mesmo de sua criação, como ela colabora com a cultura hegemônica do massacre e da planificação das
singularidades complexas numa massa homogênea?
10.17.0. Limpeza Estética: É inegável que ocorra uma purificação formal da sensibilidades
que leva a uma dizimação da diversidade estética e técnica, o sensibilicídio. No caso da escuta
especificamente, o auricídio foi particulamente cruel, utilizando-se de um discurso das minorias
políticas (o estilo de música periférica mundial, chamado de ghetto tech, por exemplo) criou um
abandono quase que total da
experiência de escuta fora do
consumo de modo de
postura social e da produção
de divertimento. Está
ocorrendo um massacre
estético de minorias
semióticas em prol de um
homogeneização das formas
de contato com o sonoro,
bem como de soação. O
maximalismo gosta de se ver
como a mais pura linhagem
natural da música erudita,
assim como os estilos
populares mais ouvidos
sempre disfarçam-se sob os
nomes antigos como samba,
rock, brega, cumbia e
sertanejo. Em ambos os
casos podemos perceber um
formalismo abstracionista da música, porém. Onde a exigência de pureza política e abstenção de
consciência contextual, na realidade, pode pesar para qualquer dos lados.
10.17.0.1 . Pureza Política: A escuta da pureza identitária tende a se concentrar em
um estilo inimigo: o erudito nega o popular
visto como pouco rigoroso enquanto a pureza
política estética faz uma varredura do corpo
comunicacional em busca de suas dissonâncias
que se prestam a mudanças estruturais da escuta
para os colocar em ostracismo. Então, embora
haja uma relação de dissonância entre estilos, há
ainda uma perseguição geral aos modos de
produção de sonoridades que alterem a escuta do
consumo hedonista de produtos musicais
oficiais que gera a criminalização da música
espontânea e tira o foco das questões de políticas
de produção de ruídos. Uma vitimização gerada
a partir do medo da dissonância simbólica uma
cristalização infantilista das escutas, seja com
relação à música erudita (sempre antiga) ou popular (sempre nova). Desengajada de si mesmo,
a música pode ainda adentrar o engajamento macro-político ideológico, nos lembremos da
ironia de um compositor aristocrata se posicionar como marxista e uma banda de rock
engajado trabalhar para uma grande gravadora e da perseguição por músicos da mpb ao brega
por uma patrulha ideológica que o tinha na conta de alienados a favor da ditadura. O único
engajamento possível à arte é não se render a nenhuma ideologia que não a própria arte.
10.17.1 . Massacre estético: Massacre é a forma de ação, o mais frequentemente coletiva, de
destruição de não combatentes.
As sensibilidades
não-competitivas estão sendo
perseguidas coletivamente por
métodos de controle social da
produção artística e subjetiva.
Casos extremos de tentativa de
resistência a este modelo de
entretenimentização da
subjetividade coletiva apontam
para as performances enquanto
suplícios auto-infligidos. Essa
encenação extremamente
ritualizada do sofrimento
corporal, visa restaurar, de
maneira espetacular (como
demandam as leis de incentivo
e permissão) a integridade
simbólica da sociedade. Tal papel da performance é, portanto, um sintoma e um paliativo. O que
tentamos com O Elefante de Marfim é mostrar que os poderes, amaldiçoam os que os buscam por não
satisfazerem seus desejos de controle social, levando-os a não hesitarem em destruir em grande
número os corpos e as almas, maciçamente, e com esse intuito se apoiam em retóricas que se remetem
ao imaginário e ao sagrado. Utilizam o simbólico de modo a destruir as relações simbólicas entre as
pessoas. A pureza estética se refere à figura do traidor sempre que deparada com o multiforme, ainda
não identificável.
ॐ
10.17.2 . Escatologias Grotescas: Os esforços de uma pesquisa, para compreender, podem ser
paralisados pelo caráter assustador do objeto. Isto se havia esperado. Mas quem realmente está
preparado para o choque do relato da crueza em sua terrificante nudez? Ainda mais porque o estudo do
comportamento do carrasco incita-nos a perguntar o que faríamos com os poderes em nossas mãos. É
preciso que tenhamos uma escuta compassiva, mesmo dos massificadores culturais. A emoção pode
nos contaminar com nojo, e confesso que por algum tempo me enojei de ser compositora. A arte (e
neste caso, mais ainda a música) nos leva à fronteiras do humano e do desumano, profissão de risco
para os afetos e para os pensamentos (àquelas que lhe dão a profundidade devida da vertigem).
Trata-se, precisamente, de uma exploração nos extremos que põe à flor da pele a sua sensibilidade,
provocando igualmente extremas sensações de rejeição e paixão. O neo-barroco poético bem poderia
ser um elogio da (fenomenológica) paixão serial eletroacústica, onde a morfologia das formas faz
sucumbir os desejos melômanos.
10.17.2 .1 . A inversão das sirenes: Pássaros atraem humanos com um canto
sobrenatural no lugar coberto de ossos onde eles se abrigam: humanos atraem pássaros com
um canto artificial no lugar coberto de ossos onde eles se aninham. As sereias são a vingança
das aves. A próera é a vingança de Orfeu contra Aristeu. Os caçadores paleolíticos enganavam
de maneira mimética os animais que eles caçavam e dos quais eles não se distinguiam. A
origem da música é o segredo da caça, tal como a função exponencial é o segredo do fazedor de
machados. Iniciação ao canto, aprendizado dos chamamentos assassinos. Se os animais vão sendo
deificados pelo estatuto celeste, aos quais os caçadores deixavam uma parte das presas que eles
abatiam no instante ritual do sacrifício (dos despojos da pele, do talhe dos membros e da
divisão dos órgãos e das carnes) os chamarizes foram também teologizados como
instrumentos sacros.
10.17.2 .2 . Sacrifício Divino: A música passa a ser o canto que atrai os deuses para
perto dos humanos, após ter atraído as presas para perto dos caçadores. Trata-se de uma
segunda etapa, mas a função é a mesma. As músicas sacras atraíram os deuses para serem
devorados pelos ritos laicos. A música não consiste em fazer entrar numa roda humana o
divino, mas em zoologizá-los. Os deuses são só mais uma espécie semiótica. Após a destruição
ela assegura a domesticação. Um chamariz já é um domesticador. Um apelante já um
domesticado.
10.17.2 .2 .1 . A casa de ópera é o domicílio do simbolismo domesticado. O apelo
do canto não salvou ninguém da morte. Qualquer ópera, mesmo antes de se entregar
ao enredo particular que encerra, é por si mesmo uma história de engodo (uma ficção,
uma armadilha) para acalmar a alma dos animais atacados.
10.17.3. O Império Sobre Os Sentidos: O auricídio e o massacre das sensibilidades constitui a
prática mais espetacular de que um poder dispõe para afirmar sua transcendência, marcando,
martirizando, destruindo os sentidos dos indivíduos e as relações estéticas que estes mantinham entre
si. A canção vencedora do prêmio de melhor do ano ser um besteirol é um exemplo deste tipo de gesto
(para não termos de pensar no assassinato do artivista amigo pela polícia secreta), tira a disputa da
escuta do campo da meritocracia, esconde os fatores referenciais da disputa sob a arbitrariedade
hedonista, e refaz o fluxos de movimentação capital de disciplina musical e controle sobre as escutas.
O sucesso de Jeff Koons e o primado da escuta nacional brasileira ser o sertanejo não são portanto,
uma inocente escolha natural pelo afeto e pela simplicidade jocosa. São antes de tudo uma maneira de
alimentar o sonho de ser como estes, que mantém o ciclo da decadência das artes e da música.
10.17.4 . Ruído e esteticídio: O ruído como o genocídio é impensável. Poder diferencial do
buraco negro, que atrai sempre pela identidade, que nos clama sempre dispostos a recomeçar o
trabalho. Para tornar-se atraente numa competição imagética pela novidade, é preciso uma diferença.
Para encontrar esta diferença de soação sem sair das regras auto-impostas pelo hedonismo musical, é
preciso uma mudança mínima. Mas o aumento da diferença mínima é inflacionário e seu crescimento
é exponencial. Quero dizer, que num certo contexto é possível imaginar em breve, grupos lutando por
uma variação estética mínima tal como já se faz por literaturas ditas sacras. O ruído é uma operação de
alteridade do espírito: uma maneira de se ver o outro. A música ruído (noise music ou rúsica) opera no
mesmo sentido que a performance de acontecimento corporal-ambiental (happening), como sintoma e
abafador, levando a escuta a seus extremos, fazendo com que ela compreenda seus limites e lide com suas
alteridades. Trazem à tona uma pergunta simples, mas que não deve ser colocada somente sobre suas
figuras ( já que o ruído por si, não permite autoria, porque sempre outro): Como isso é possível?
10.17.4 .1 . As lógicas da violência: A música ruído nos pergunta como seres humanos
podem se transformar em carrascos de seus
semelhantes. Schoenberg é o arlequim solar
deste conhecimento da serialização das escutas,
desta desumanização das relações (mesmo
musicais). As dinâmicas sociais que podem levar
a uma limpeza estética ou étnica já se
encontram em estado latente nos pátios das
escolas ou nos bairros. Regras silenciosas de
escárnio compartido. As crianças adoram pegar,
de vez em quando, um bode expiatório como
saco de pancadas. As lógicas da violência se
apoiam em tudo isso: na designação de bodes
expiatórios, na radicalização de antagonismos
amigos/inimigos e, mais ainda, no extermínio
como ato purificador. Já disse que não quero
participar do seu grupo de compositores. Isto
reverte na estilização e no fechamento de um
grupo identitário de diferenciação. A música de
pesquisa da escuta (dita erudita) está, ao
contrário do que é dito, muito mais próxima do
ruído que a música popular, porque se identifica
justamente com a escuta do sistema geral de produção de auralidades.
ॐ
10.17.5. Excesso informacional: Quando um número exagerado de coelhos fica confinado em
um mesmo cercado, eles começam a se matar, para a garantia do espaço vital. Sabendo que o
subdesenvolvimento favorece a
natalidade, como lidamos com a
produção subjetiva em tempos de
democratização da produção?
Podemos pensar na destruição dos
papéis críticos e filtros
meritocráticos como lados
positivos desta abertura da escuta,
por outro lado, porém, este
processo apenas mascara um
processo de censura capital tardia
que leva a um irremediável
popularismo criativo. Assim como
a guerra é o infanticídio tardio, a
guerrilha semiótica da música
noise, e o poder que esta demonstra através do ruído, são o sensibilicídio numa sociedade que não se
permite mais censurada em nenhum de seus desígnios por nenhuma instância que não seja o poder e
seu símbolo, o dinheiro. O ruidista é antes de tudo o humano que crê que o ruído ainda exista.
10.17.5.1 . A destrutibilidade dos imaginários sociais se baseia numa série de ilusões
identitárias, a começar pela separação destas esferas, bem como pelo axioma hedonista de
prazer da escuta como único vértice de “qualidade sonora”. A qualidade, sendo justamente o
que não é quantificável, não permite uma comparação hierarquizante de melhor ou pior, mas
apenas uma postulação de diferenças de natureza. Mitos culturais violentos estão associados à
história dos povos. Mas isso não significa que esses povos necessariamente caiam na selvajeria.
Pelo contrário, tais mitos catárticos podem ser explorados por outros povos a pretexto de um
impulso vingativo contra um inimigo. A perseguição ao eruditismo mascarada sob a vingança
da perseguição às culturas de massa sofrida durante o apogeu da meritocracia. O apoio do
folclore ao poder escravagista sendo protelado pelos novos punks. Num limite primordialista,
diolíneos e aposíacos riem das outras tantas escutas do Tártaro ao Terreiro. É claro que o
ecletismo pode bem ser também uma mera fachada para uma perseguição a uma escuta singela
e pura do aqui e agora, mantendo sempre tudo no âmbito da citação e na construção de nichos
de mercado.
10.17.5.2 . A Culpabilidade: Quando o maestro Julio Medaglia diz que “Tudo na
rádio é um lixo.” aponta a causa de nossos sofrimentos, gerando um culpado, sem o qual ao seu
ver tudo seria ótimo. Só se esqueceu de dizer que “Tudo na música e na arte é um lixo.” A
pobreza real de condições de vida, mas principalmente a subjetiva de experiências abstratas de
sensibilidade são grandes disparadores de massacres. Massacre e pilhagem andam juntos, e o
problema das máfias é sua expansão contínua. A rádio é um objeto fascista por excelência. O
consenso é cultura, toda cultura é modo de ignorar certos aspectos do mundo ou como estes
nos afetam. À primeira audição, a repressão parece capaz de tudo sufocar, tudo esmagar.
Livremo-nos, então da ideia simplista de poderes fantasmagóricos tiranizando povos
inocentes (a teleacusmática). A servidão voluntária impregna tais poderes despóticos da voz
popular (através de pesquisas de mercado), o déspota procede dos anseios cotidianos da
sociedade do qual são produtos culturais. O político corrupto se elege pela negativa da
população em tocar nas suas próprias corrupções. Cada um tem os ídolos que merece, mas
sendo ídolos eles já abarcam um sistema de meritocracia baseado na ideologia vigente (no
nosso caso a da luxúria consumista). E que vençam o melhor com os piores!
10.17.6. Trauma Cultural: Em uma situação em que as referências antigas parecem
naufragar, em que as ameaças se tornam cada vez mais aflitivas, como podemos reagir? Com uma
reforma econômica? Com novas medidas de especulação imobiliária para novos centros de compra?
Todos esses dispositivos técnicos e demais planos de salvação não parecem à altura do que está em jogo.
Pois é o simbólico que, em tais circunstâncias, parece afetada, desnorteada, paralisada. Como quando
da morte da matriarca elefante. As referências fundamentais destas coletividades tramáticas fazem
com que seus membros digam: “nós a vanguarda”, “nós os músicos eruditos”. O “nós” se torna
queixa, dor moral, sofrimento. O que se passa num país onde a linhagem artística sofreu um rompimento
radical por motivos militares e posteriormente monetários? O teatro do oprimido persiste oprimido.
10.17.7. Cooptação: São os artistas agentes sociais e políticos que, com seus discursos e ações
vão se encarregar das emoções coletivas, associadas ao traumatismo em massa. Um Gabriel
D'Annunzio do Brasil atual,
poderia bem se utilizar do trauma
do subdesenvolvimento para uma
destruição colossal dos recursos
naturais, por exemplo. Mas fora o
artista que decide por defender
estes impulsos infantis, há ainda a
cooptação ideológica das ideias. As
obras relacionais têm uma grande
facilidade neste quesito: uma obra
autobiográfica familiar facilmente
embasa um discurso de capital
simbólico e consegue patrocínio, já
que a postura junto à opinião
pública é prioritariamente afetiva.
O folclorismo e o populismo
artístico são naïf neste ponto: pois,
ao saber falar ao povo como um deles, usando metáforas e símbolos que têm forte ligação cultural com
a sua história, estão na verdade embasando um sistema que vai de encontro às lições mesmas destes
folclores, a saber, de cuidado da situação local contra a usurpação. É claro que há outros folcloristas e
artistas populares que denunciam esta estupeficadora demagogia, mas os agentes que sabem bem
utilizar essa ferramenta do imaginário têm, em todo caso, uma arma poderosa que lhes permite pensar
em conquista do poder sobre o mito oficial.
ॐ
10.17.10.3.3. Pelo contrário, pode lhe dar meios para ser mais engenhoso no
exercício da violência ou até mesmo da crueldade. A música erudita pode ser uma
emancipação da escuta mas também só uma demonstração de exclusivismo
aristocrático. Instrução não torna o homem melhor, o torna mais eficaz. Essa é uma
das desculpas preferidas pelos políticos para o fechamento dos canais de difusão do
conhecimento, mas bem sabemos que apenas monopoliza o poder de atuação sobre a
vida coletiva, problema que gera aflições ainda maiores e o terror da sensação de
impotência generalizada. A música é uma arte do coração à escuta.
ॐ
10.17.11 . A Fabricação de Mitos Próprios insere sua criação no sistema oficial de mitologia
ideológica (que pode
incluir os massacres de
favelados em prol da
especulação imobiliária,
por exemplo), mas
criação de tudxs: é
anônimo. Cada qual, à
sua maneira, com os
instrumentos próprios das
suas artes e utilizando a
linguagem das suas
disciplinas, pode
contribuir para tornar a
ideologia mais atraente
para um público que
ultrapasse aquele restrito
dos círculos previamente
convencidos; já os
dissidentes da ideologia só
podem pregar para o coro.
O mito fabrica seus criadores. Mas o que estou dizendo? A identificação de uma música típica
brasileira responde a este ímpeto, transferindo o ressentimento colonial para o campo da produção de
ícones da música, mas sem de fato atentar às diferenças nos modos de produção de música dos povos
locais.
10.17.12 . O Estado Simbólico, este mito da ideologia oficial é claro no nacionalismo até
mesmo ufanista, ainda bastante vigente. No caso da ditadura da propaganda a que nos vemos
submersos, onde o símbolo fabricado e fabricador é ocultado e a cidade se torna um mercado. A moeda
é o símbolo do mercado enquanto Estado Global. De Bach aos padres ídolos de música pop
carismática percebe-se um movimento cabal de utilizações do discurso do poder sobre a produção de
escuta religiosa-estética.
10.17.13. Igrejas Elefantes: Mais precisamente convém observar as declarações e posturas das
igrejas, ao se cometerem atos de violência contra os inimigos designados pelo Estado em paralelo ao
tipo de incentivo na produção artística sacra. As reações - ou ausência de reações - diante dos atos de
violência constituem, então, um indicador fundamental da capacidade de uma igreja enquanto centro
de conexão simbólica coletiva de confirmar sua legitimidade para com os seus símbolos e regras de
conduta interna. Kant, Bach, Offenbach, Sade. As catedrais de Klossowski.
10.17.14 . Se mostra cada vez mais necessário uma estética da libertação religiosa, para os
crentes nos mais diversos sistemas simbólicos (incluindo os científicos e
laicos). Não se pode servir ao símbolo da mistura, a moeda, ao mesmo
tempo que se procura manter uma pureza de símbolos específicos de
uma religiosidade. Ria! Com o político, que deveria conter a
especulação e o predatorismo, fazendo apelo à violência competitiva
pública das eleições e o religioso não se atrevendo a se apoiar em sua
própria tradição para condenar tais usuras e desmesuras. Quem pode
conter esta ideologia mercantil aplicada a todos os campos da experiência
humana? A lei é tudo, a morte é tudo, o sexo é tudo, tudo é relativo e
explode no tempo.
10.17.15. O Caso Música: A solução atual das escutas que nos é proposta pela mercantilização
da arte sonora não oferece, com efeito, perspectiva
alguma de compromisso. Suas análises, fundadas
em uma afirmação de identidade radical, consistem
exatamente em essencializar as diferenças: música /
ruído, entretenedor/ terrorista. Elas legitimam um
enfrentamento existencial entre “eles” que não
sabem ser felizes e “nós” que gozamos dos prazeres.
É a identidade artística que se coloca ao espectador
como sendo de natureza ameaçadora. Não há, por
isso, negociação possível, pois a diferença se impõe
como intangível. Com a interferência do Estado,
muda-se de escala e passa-se à projeção de uma
escuta oficial com incentivos que funcionam como
censura positiva através de remuneração de pensamento condizente com a ideologia (capital) vigente,
levando a produção a uma natural homogenia.
10.17.15.1 . Tortura de Elefantes: Deve-se reconhecer: a força da literatura sadista
permeia o tema deste projeto (como à arte).
Ao longo das páginas, e mais
particularmente nesta justificativa extensa e
lenta, estivemos à procura do que sentem, do
que pensam os carrascos no próprio
momento da tortura de um elefante. Pois
bem, Sade dedicou longas passagens, aliás
repetitivas e demoradas, a expor seus
argumentos, a descrever suas emoções no
momento fatídico. À sua maneira, é claro:
cada cena (e toda cena o é, numa instância
psicológica) de tortura, de estupro, de morte
é precedida ou acompanhada por longas
explicações dadas pelo carrasco à vitima,
antes de lhe infligir sevícias. Detalhe
também extraordinário nos retratos de
personagens (avesso de Francis Bacon) é que
nenhum deles parece ser louco, são no
máximo frios, mas sempre polidos.
Monstros, mas não anormais. Movidos
sobretudo pelo egoísmo e pela cupidez. Vê-se
que a arte já assume o papel que lhe cabe de
invasão sensível a partir do simbólico. Todos
os vícios do teatro estão presentes já em
estado latente (literário): O sentimento de impunidade, a embriaguez da violência sobre o
afeto alheio, a marcação dos corpos com símbolos, a vontade de romper todas as proibições, de
fazer saltarem todas as barreiras sexuais e geracionais numa orgia dos sentidos. A arte impõe
aos sentidos a transgressão total das situações de extrema violência que fundam a alma
humana, para que se reconheçam seus feitores na vida real e que aqueles que assim desejem,
possam lhes conhecer para evitar. Mengele não usa seus filhos como cobaias, Sade se usa como
testemunho da importância de conhecermos as fantasias dos carrascos, suas faculdades de
imaginação recalcadas e seus caprichos, com as quais sustentam-se os delírios de poder.
ॐ
10.17.16. Mídia Elefante: Alimentar o medo e o ressentimento são o papel da mídia. A
manipulação das emoções ocupa um lugar central na ideologia cultural da idolatria competitiva. A
arte opera como propaganda deste novo universo de sentidos hegemônico para todxs. Imprensa, rádio,
televisão e, agora com atos como o SOPA também a internet são convidados ou literalmente
obrigados a se tornarem os vetores permanentes dessa visão de mundo. A propaganda passa a ser, desse
modo, um sistema de envolvimento geral da população. Nas músicas, leitmotivs e standards fazem
soar as tarabands de jingles da moosak sem fim, e ei-nos na pureza da escuta dócil. O princípio básico é
sempre o mesmo: fabricar a emoção, documentar o vivido, servir de modelo. Canções e filmes que
tratam sobre todos os assuntos, mas de um único modo, nos dizem: Não tem escolha.
10.17.16.1 . Os grandes feudos e capitanias midiáticas da sensibilidade e seu controle do
espectro de comunicação social através da sensação de que o que une os humanos é a sensação
infantil de simplicidade e pureza, a complexidade é colocada como inimigo a ser combatido em
prol da identidade da ignorância disfarçada de igualdade. A propaganda procura impor a todxs
uma interpretação do mundo, apresentada como vital, a partir do grupo a que ela pertence. E
então brada: conosco ou contra nós? Seria preciso lembrar que se estabelece assim um sistema
totalitário sobre a imaginação e produção subjetiva e simbólica sobre as mais diversas
populações a homogeneizando?
10.17.17. Desenvolvimentismo Elefante: Os traumas de um subdesenvolvimento da infância
da espécie (e dos povos) levam à sacralização
do progresso. A zoofobia nos leva a crer que
somos a espécie eleita que supõe a
edificação de um altar global de sacrifício
simbólico para queimar tudo e todxs
designados pelos micropoders
compactuantes com a ideologia mercantil
como Outro, estranho ou perigoso. A
exclusão artificial é necessariamente
constitutiva do movimento de veneração de
si, do “nós”. A cultura é narcisismo e os
processos de violência são expurgos da
dissonância subjetiva que demanda a
observação de nossas parcelas de culpa neste
processo. O desenvolvimento cultural dessa
dinâmica social sacrificial não dissolve a
presença do religioso nas suas
movimentações simbólicas (seus mitos,
como estudados por Barthes). Mas esta dinâmica do progresso infinito, do crescimento exponencial
em busca do paraíso perdido, entra em concorrência com a lógica própria do sagrado que para cada
passo que dá, precisa atravessar novamente todo o universo referencial pelo qual já passou.
10.17.17.1 . O Valor do Marfim: Fatores históricos e culturais presidem a designação
vitimária de genocídios e massacres. A crise dos papéis de gênero e a crise da consciência, por exemplo,
estão intimamente ligados à perseguição homofóbica e à proibição das substâncias psicoativadoras
(denominadas pejorativamente de drogas). No campo das artes, esta perseguição se dá pelo ostracismo,
pelo esquecimento e pela recusa de reconhecimento das artes relacionais. O símbolo cumpre um papel
de nos relembrar de um sacrifício, o marfim é não só a prova de poder sobre o elefante, mas também a
demonstração de sua entrega a nós, sua devoção. Em um mundo incerto, a violência cristaliza a
identidade: cria uma certeza, ali onde reinava a incerteza, edificando barreiras intransponíveis. É uma
maneira de reforçar o viver junto do nós com o sacrifício do elxs. A violência sacrificial se pretende
prática sagrada de purificação.
ॐ
10.17.17.2 . A necropolítica se utiliza deste poder sagrado de seus gestos de violência
inexplicável. Apoia-se para tal nos enquadramentos culturais da crença religiosa ou mágica,
específicas a cada localidade. Como viver juntos em crise contínua? - te perguntam com olhos
lacrimosos - Compreender as dissonâncias é próprio da escuta compassiva, compreender
somente as consonâncias é complacência aural. Sabe-se de uma cultura auditiva pelo que ela
deixa de ouvir. Os atores tem um texto que sua voz lê e outro que é sua intenção.
10.19.3. Televisão Elefante: É que a tela é promessa permanente de divertimento que supera a
ritualização da responsabilidade sensível. E se a música deve tudo à partitura, a sonorização é
cinemática, cinematográfica. O divertimento televisivo não proíbe nem comanda, não critica mas
torna inútil e tedioso tudo o que não seja ela. Da mesma maneira que a privação sensível a que se
submetem os elefantes em treinamento dócil. Ela não controla o pensamento nem a leitura, torna-os
supérfluos. Mas nós não vemos como elefantes.
10.19.3.1 . O encanto do divertimento, e por consequência, da cultura ideológica da
propaganda, é autorizar uma escuta flutuante por um zapping informacional que nunca nos
permite sintetizar ou analisar a completude de sua narrativa subliminar. A televisão está ali e
funciona e uma vez agarrados, nos faz aptos a olhar e ouvir praticamente qualquer coisa com
uma indulgência sem limites (de programas religiosos com cenas de sexo como demonstração
do que deve ser combatido a novelas com narrativas claramente ideológicas).
ॐ
10.19.3.2 . A arte televisiva (e sua influência em todos os campos da subjetivação), nos
distrai de tudo, inclusive dela mesma. Longe de
implantar a ditadura audiovisual, ela empobrece
(no sentido agostiniano) nossa percepção,
faz-nos desaprender a olhar e ouvir e sentir o
mundo. Porque ela se quer acessível a todos
imediatamente, sua produção homogênea na
faixa média da sensibilidade consagra o
esgotamento daquele que a percebe. Sua forma
devora seus conteúdos, liquida os contrastes, coloca
o sinal de igual entre as obras e as publicidades,
entre a poesia e a ideologia.
10.19.3.3. Jinglescape: É esse mesmo
papel de dama de companhia que desempenha a
narcomania musical onipresente e que impede
sempre e em toda a parte a menor possibilidade
de silêncio nos meios urbanos. Música de espera
no telefone e nas secretárias eletrônicas, músicas
ambientes nos pátios e elevadores, no metrô, no
teleférico, emissão radiofônica de festas nos
bairros ou ruas, musak de supermercados, vídeos
tagarelas somam-se ao burburinho dos restaurantes, realejos melódicos, sempre e em toda
parte há um carpete sonoro e a musicalidade é sempre a mesma a amortecer a dureza da
realidade sonora, a mascarar com perfumes fedidos o odor do mundo, a poupar as latências das
transições, a suavizar e impossibilitar os contatos.
10.19.3.3.0. Mas, se saturamos o espaço de ruídos (ruidocracia), de imagens, de
cores, é também para nos certificar que não estamos abandonados, de que pensam em
nós: esse xarope sonoro é uma marca de interesse e quase de afeição. Assim como essas
cerimônia em que gritam para espantar os demônios, esse sussurro contínuo quer
afastar a melancolia, dissipar a escuridão, quebrar o isolamento nesta guerra semiótica
e trazer a loja para o campo de batalha.
10.19.4 . Irrefutável: Estamos numa feira de arte. logo compreenderemos que estamos no
Jardim das Delícias, no Paraíso Terrestre, no Santuário dos Elefantes. Todos os Sonhos da Idade de
Ouro, todos as Wonder Chambers acalentados pelos sonhos
humanos estão aqui agrupados. A imensidão dos locais, a
extraordinária variedade de produtos simbólicos expostos, a
luz que jorra, os quilômetros de corredores, a engenhosidade
da expografia utilizada para as vitrines são de uma utopia viva.
Permitam-nos um pouco de cinismo. Esses templos do
mercado subjetivo cantam a vitória da sociedade capitalista
sobre a carência e sobre a liberdade do onírico em relação à
realidade ideológica capital. No amontoado de riquezas há um
excesso de tudo, e esse excesso é esmagador. Antes de escolher
esse ou aquele objeto, de se deixar inebriar pela sinfonia de
cores e de sentidos contraditórios - pois tudo nessa exibição é
classificado, organizado, arrumado segundo uma estratégia da
visibilidade absoluta, nos inebriamos pelos bens que não poderemos adquirir e que apenas acariciamos
com nossa cobiça evitando as verdades de tais obras, que num espaço como este de uma feira, nunca
poderemos penetrar. Mindlin tem algo a ensinar a Bernardo Paz, e ambos ouvindo Facção Central.
10.19.5. História Elefante: A história não explica o conteúdo arquetípico, pertencendo esta ao
domínio do imaginário. Em cada um dos
focos possíveis de seu fluxo (suas fases), a
imaginação encontra-se inteira, numa
dupla e antagonista motivação: pedagogia
da imitação, do imperialismo das imagens e
da arquétipos tolerados pela ambiência
social, mas também fantasias adversas da
revolta devidas ao recalque deste ou daquele
regime de imagem pelo meio e o momento
histórico. A pedagogia da imagem não
segue assim um sentido histórico
determinado, o mito é uma função em si,
independente da realidade objetiva, do
contexto, e principalmente da imposição
desejante de seu proferidor.
10.19.6. Conservatórios de Imaginário Elefante: A função fantástica participa na construção
teórica e não se resume a um refúgio afetivo das
restrições sociais. Outrora os grandes sistemas
religiosos desempenhavam o papel de grandes
conservatórios dos regimes simbólicos e das correntes
míticas. Hoje, para uma elite cultivada, as belas-artes, e
para as massas, a imprensa e o entretenimento
midiático, veiculam o inalienável repertório de toda a
fantástica permitida. Por isso, é necessário a uma arte
que se deseje pedagógica, que venha esclarecer, senão
ajudar, esta irreprimível sede de imagens e sonhos. Seu
mais imperioso dever seria trabalhar para uma
pedagogia da preguiça, da libertação e do lazer.
Demasiadas pessoas vivem neste século de
esclarecimento usurpadas da necessidade básica
(convertida em luxo) da fantasia noturna (da escuta
sutil). “Cantaste para mim... Tanto faz!” disse a formiga à cigarra, no cúmulo da idolatria ao trabalho e
sua mistificação. A melodia da cigarra.
10.19.4 .1 . Ouvidoria do Consumidor: Não censuramos tanto o consumismo
simbólico por ser débil mental e
destruir nossos sentidos, e sim por
não cumprir suas promessas de
aniquilamento subjetivo. A
quinquilharia midiático-cultural da
ideologia comercial competitiva só
esboça uma miragem do sagrado:
ela se mostra incapaz de dar conta
da subjetividade em sua
completude, incapaz de implantar o
que permanece o apanágio das
religiões: uma topologia da
transcendência.
ॐ
10.19.4 .2 . Apesar do seu esforço em nos resgatar a todos da tarefa árdua do
pensamento e da
sensibilidade, coletiva e
pessoalmente, ela não é
suficiente (assim como os
televangelistas não
conseguem manter uma
coerência metodológica
mesmo superficial). Uma
vez obtido todos os
objetos que desejamos,
desejamos o que nenhum
objeto cultural pode nos
dar: a salvação laica, a
transfiguração, e
oscilamos entre o
abatimento de ter demais
e o medo de não ter o
essencial. A escuta transfigurada em noite decai sobre os ruídos da rede elétrica. A ideia de que
a felicidade pode ser comprada nos atrai como o caminho mais fácil, mas levou-nos ao beco
sem saída que é o ouvido(olvido).
10.19.5. Consumo Elefante: Ninguém domina essa selva de tesouros que sugere despesas
monstruosas, uma
gigantesca máquina de
produção e de organização,
um infinito de
possibilidades culturais.
Nessas catedrais do
supérfluo, nosso erro não
está em desejar demais, e
sim, em desejar de menos.
Se a pobreza é não ter o
supérfluo enquanto a
miséria é a falta do
necessário, todos somos
pobres gerando a miséria
das maiorias: tudo nos
falta, já que tudo está em
excesso produzindo a
necessidade da falta (pela
projeção da falta de necessidades). A escuta (e a sensibilidade) contemporânea é miserável, porque lhe
falta a necessária abertura para o seu próprio contexto. Miséria mascarada de pobreza que tem como
único prazer desejar o que não é necessário. As belezas acumuladas nas lojas não respondem a
nenhuma lógica da utilidade, mas têm relação com o milagre, com uma fecundidade sem fim do
mercado cultural. Os catálogos de arte, os selos musicais, tem papel semelhante ao do bufê em grandes
restaurantes de colônias de férias (que são os centros culturais) baseados no princípio do desperdício, de
conjurar a penúria com os sinais de prodigalidade.
10.19.5.1 . Estupros Fantásticos: Uma pesquisa atual indica que entre 31% e 57% das
mulheres entrevistadas têm fantasias em
que são forçadas a ter relações sexuais contra
sua vontade, e para 9% a 17% das mulheres
são uma frequente ou experiência de
fantasia favorita. Fantasias eróticas de
estupro são paradoxais: elas não parecem
fazer sentido. Por que uma pessoa tem uma
fantasia erótica e agradável sobre um evento
que, na vida real, seria abominável e
traumático? Neste artigo, as principais
teorias das fantasias de estupro são avaliados
tanto de forma racional e empiricamente.
Estas teorias explicam os estupros fantásticos em termos de masoquismo, evasão da culpa
sexual, a abertura à sexualidade, desejabilidade sexual, cultura do estupro masculina, a
predisposição biológica para se render, ativação simpática fisiológica e transformação no(e do)
adversário. Este artigo que eu lia avaliava a teoria e a pesquisa, fazendo acordos provisórios
sobre quais as teorias mais viáveis, e passava à tarefa de integração teórica para chegar a uma
explicação mais completa e internamente consistente do porque muitas mulheres se envolvem
em fantasias eróticas de estupro. Minha intuição, aonde mais há de me levar esta operação?
10.19.6. Os Sobreviventes da Abundância: Uma elefante que foi solitária e viveu num circo a
vida toda é motivo de chacota por outros elefantes na reserva distante do clima natural à espécie. Como
produzir “nossa escuta” para “Nossa Música” ou me ponho de novo a consumir mais outras na minha?
Sofremos porque nunca seremos completamente redimidos por nossas compras (nem de obras de arte
contemporânea) e espetáculos, mas sempre voltaremos a estes produtos e processos catárticos que nos
consolam e reanimam. Miseráveis milagres charlatanescos a serem descartados, nos despojem de nós
mesmos nas desilusões do progresso, nos embruteça na sua maquiagem que odeia a beleza, nos fascine
pelo feérico espetáculo comercial. Reclamar da obra (e do professor e do pensador) que nos critica é um
de nossos direitos de consumidor, e seguimos nosso dever de consumir.
ॐ
10.19.7. Usuários de Museus, Cidadãos Artísticos: O consumismo só nos educa para ele
mesmo. Ser usuário (termo utilizado também para
viciados em substâncias ilegais) é ocupar-se da
defesa exclusiva dos seus interesses, permanecer
arraigado à sua particularidade, mesmo que seja a de
um lobby (ou máfia), enquanto ser cidadão é tentar
superar seu caso particular, abstrair-se de suas
condições para associar-se a outros para a gestão da
vida pública, tornar-se co-partícipe do mundo.
Existe arte quando o artista e o espectador aceitam
suspender seus pontos de vista particulares para
levar em consideração o bem comum, para entrar no
espaço público do simbólico, onde nos falamos do
ponto de vista de subjetividades. A muito tempo o
consumismo deixou o cerco do supermercado para
se tornar uma lógica midiático-cultural que se
apresenta como solução universal para todos os
problemas.
10.19.8. Gula Elefante: Tudo o que era
difícil ontem se tornará acessível para nós em um
piscar de olhos, o divertimento da cultura sem
ideologia pode substituir o estudo, em suma,
podemos desenvolver o paladar infantilizado pelas
satisfações imediatas e fáceis. A ideologia consumista
camp do sensibilicídio tem um talento para investir
em setores em crise (a arte, a educação, a
representação política), e extenuá-los até, por fim
fantasiá-los, esvaziá-los de substância. Triunfo da
sociedade camaleão que pode adotar todos os
discursos, inclusive o da crítica, substituir-se a todas
as ideologias, pois não acredita em nenhuma,
reencenar em farsas as grandes paixões políticas e
religiosas. Tudo o que não seja ela, a história, a ética,
os ritos, as crenças, gulosamente ela os devora. É um
estômago capaz de digerir qualquer coisa, um código
insubmersível que recupera sua própria contestação
para melhor ressuscitar. É revoltando-se contra seus
conteúdos que melhor lhe obedecemos. Suprema
ironia do consumismo: deixar-nos pensar que ele
desapareceu quando não existe uma área que ele não
tenha contaminado. Como sobrevive um elefante alimentado com marfim?
Ideografia Dinâmica: Nós não pensamos fazendo deduções lógicas ou seguindo regras
formais, pensamos através da manipulação de modelos mentais que, na maioria das vezes,
tomam a forma de imagens. Isso não significa que as imagens se assemelham à realidade
visível, são mais uma dinâmica de mapeamento. A próera, enquanto uma ideografia dinâmica,
constitui uma imaginação assistida por pensamento. Isso nos ajuda a construir modelos
corporais sinestésicos muito mais complexos do que podemos fazer somente com as estruturas
da nossa mente e nos permite compartilhar esses modelos mentais com os outros ainda de
uma maneira comunicável. Cibernética, arte das maquetes e modelagens.
10.19.9. Cenografias Elefantes: O que fazemos com essas ferramentas? Dê às pessoas modelos
de tipos de ambientes com um certo número de atores-objetos-ideogramas capaz de um grau de
interação entre si e com o usuário. O
que a pessoa faz? Cenários possíveis
com base nesses modelos: considera o
cenário padrão fornecido, altera o
comportamento dos atores, inventa
outros cenários, etc, e então talvez
envia o novo cenário de volta ao
remetente do cenário padrão ou
compartilha-o com os outros. É
evidente que tais micro-mundos
poderiam ter consequências
econômicas, industriais, ecológicas ou
políticas, tornando interativas
representações imaginadas do
fenômeno coletivo que nos interessam. A semibiótica como a est.ética (estética da responsabilidade)
têm muito a contribuir para todxs, de paisagistas a criadores de telejogos.
10.19.10. Música Muladhara: Algo de menos sonoro que o sonoro, música. Algo que liga os
ruídos separando as escutas. Pedaço
sonoro semântico desprovido de
sentido. A infância é irreparável, terror
das lembranças. Depósito semântico
sem significações. Podemos fazer as
memórias gritar, abrimos a escuta como
abrimos uma ferida para extrair seus
pontos podres e infeccionados. A
cicatriz da infância, como a do que a
precedeu e que se espalha no noturno
do som. O silêncio é rítmico. Larva.
10.19.10.1 . Sons
servindo para suprimir: No
seio da natureza as línguas
humanas são os únicos sons
que são pretensiosos. São os
únicos sons, na natureza que
pretendem dar um sentido a
esse mundo. São os únicos
sons que têm arrogância de
pretender buscar um sentido
em troca dos que eles
produzem. O fluxo das
palavras, a massa de uma
multidão empurrando o
humano que cai no vácuo
vertical que separa seu canto
do mar. Música, sons de morte.
ॐ
10.19.11 . Corpo Música: Acolher o visitante e evitar-lhe a angústia do silêncio, bem como, o
que é mais paradoxal, arrancá-lo à eventualidade da oração. A oração é um animal selvagem imóvel
cercado por cães. Além do que é semântico
está o corpo da linguagem: música. Quando a
música era rara, sua convocação era
perturbadora, assim com sua sedução
vertiginosa. Quando a convocação é incessante,
a música se torna repugnante e é o silêncio e o
ruído que vem chamar e se torna solene. O
silêncio tornou-se a vertigem moderna,
constituindo um luxo à escuta. Webern o
sentiu. A música que se sacrifica a si mesma
atrai agora o silêncio como o chamariz atrai o
pássaro elefante.
10.19.12 . Desencanto: Subtrair o
poder do canto. Fazer mal ao mal, fixá-lo em
outra coisa. Cessamos de sermos submetidos a
uma obediência física aos sons da natureza,
para sermos repentinamente submetidos à
obediência social a melodias europeias
nostálgicas das inquisições e torturas
medievais. Desenfeitiçar nossas sociedades de
sua obediência. O gosto pela ordem musical e
pela sujeição em nossas sociedades virou uma
histeria histórica (histeoria). As guerras mais
cruéis estão diante de nós. Elas serão as
contrapartidas cada vez mais pavorosas, o
pagamento sacrificial da proteção social,
médica, jurídica, moral e policial dos tempos
de paz. Os tubarões de Bretch.
ॐ
10.20. Som Elefante: Som marfim. Maior
profundidade é conseguida onde o compositor dá a
devida atenção a ambos os campos da escuta (abstrata e
concreta) ao mesmo tempo, observando as estruturas
sociais permeando os alicerces transimétricos da música
bem como deixando ambos os modos de soação livres,
para que se potencializem em solidão, soltando a poesia
destas vigas do pensamento. Este modo
esquizopatológico de atuação sonora sofre o perigo de
levar a um desleixo do soador em relação à estrutura, pois
este acha que sua ideofonia basta; ou no caso inverso leva
a uma alienação do virtuose. Em ambos os casos a peça
ausente é a mitologia como intermediadora entre a
linguagem lógica e a linguística afetiva.
10.20.1 . Entre O Imaginário e O Real: Os artistas cooptados, para se disfarçarem e
desculparem buscam na matriz do imaginário infantil do fazer artístico as maneiras de se
posicionarem sem pender a nenhum dos lados. As relações entre imaginário e real são contraditórias
apenas em aparência. É mesmo nas representações
imaginárias do carrasco que, primeiro, se constrói a figura
da vítima, da “sua” vítima. O pop inventa a imagem do
pesquisador erudito como alguém sem tesão, erudito mas
sem compreensão das delícias de dançar. A ópera criou o
poder artístico administrativo, de modo a posicionar a arte
na política das produções estéticas sociais. Nos momentos
de alta tensão social, todo terceiro mediador acaba
desaparecendo, e a relação conflituosa se reduz ao
confronto radical. A criação de uma arte da escuta surge
desta necessidade, bem como de uma ampliação da
compreensão do consumo como produção de desejo.
10.20.2 . O Papel da ideologia sobre o sonoro
(ideofonia): Obviamente pode-se ver no maximalismo
enquanto escola limítrofe da eletroacústica acusmática uma
perseguição à escuta musical dos cancionistas ou das pistas
de dança. Mas que se saiba que a consequência de sua
perseguição apenas apontam suas fraquezas, seu medo e
instinto de sobrevivência, o enorme desejo de poder de
alguns de seus baluartes antes disto tudo acontecer.
Compreendamos estes também, que estas pesquisas são
justamente como a fábula ou o sonho de alguém que não
tem mais aonde ir e tampouco quer perpetuar outras
batalhas pelo musical. Há obviamente um papel de
fantasmagoria na acusmática, no ouvir sem ver, na ausência
de imagem social de um modo de soação. Meu anonimato se
chama Escuta. A coexistência entre a lírica, a imagem e a
música está no campo da construção de coerência e de
bloqueio da angústia dos indivíduos. A ideologia funde o
imaginário e o real, num discurso fundado em argumentos,
ao mesmo tempo racionais e irracionais, que se constrói contra o “outro” maligno. Mas a escuta não
conhece amigos, bem como a música não tem inimigos. A próera é uma ópera pós-ideia, acusmáquina.
10.20.2 .1 Complexismo ab_surdo: É necessário que percebamos os processos de
soação do ab_ismo como um complexismo ab_surdo, um pós-maximalismo que não pode
mais se pautar apenas pelo máximo do máximo sem notar sua irremediável falta de
perspectiva, nem tampouco conseguiríamos nos esconder atrás do ocaso quando todos os
"dados" estão viciados. O complexismo ab_surdo tem formulações plurais em modos diversos de
poetização da escuta, sedimenta as representações imaginárias em todas as dimensionalidades
da escuta, da acusmática à ópera, mesclando seus extremos na complexificação
acusmática-operística da próera.
10.20.2 .2 . As retóricas fundamentais da música, suas ideologias sobre as escutas e o
vocabulário manipulado nunca são inocentes. No nosso caso, buscamos pôr fim às três
ferramentas de controle sobre a soação
operando através da musicalidade:
identidade sonora, pureza formal e
segurança aurática. Remetendo-nos à
vida, à morte e ao sagrado, não
deixamos lugar à indiferença: falamos
de todxs e a todo mundo, misturando
imaginário e realidade somos o sintoma
de um mundo sem intimidade onde
não há motivos para nos religarmos
que não o consumo dos outros por
nossos desejos, a arte se tornando assim
uma janela de vazio no ruído. A
brutalização das relações sociais numa
sociedade oral tem a ouvir com a
surdez para a escuta (bruit em Mcluhan), preconceitualização estética para o mantenimento
das microperverções na violência íntima.
10.20.3. Ámoda: Das discursividades totalitárias (“Se hoje sofremos, não é nossa culta:
fomos vítimas da História.”), e do
mantenimento de uma lista de
proibições de escutas tabus, o ciclo
da moda totemiza-se tal que gera a
ausência de um movimento real da
escuta. Esta expiação de certos
modos de soar são claros e englobam
todas as formas de eruditismo e
dissonância, produções sem autoria,
rituais simbólicos, etc. como meros
sons, sem afeto, proibindo assim
tanto a complexidade na música
quanto proibindo as pesquisas das
relações entre afetos e ciência. A
moda artística é o ressentimento coagulado de modo que não se torne angústia, ressignificação
contínua da repetição. O loop é o símbolo mór da escuta contemporânea, que combate o “terror” da
diferenciação continuada tida como ruído. Cada compositor verticaliza um tipo de gesto sonoro,
somando-se a uma ecologia dos modos de escuta. “Não levo a música tão a sério assim, e a nuvem é a
obra de artes plásticas mais maravilhosa que vi.” bradam triunfantes seus sussurros. Há tantas rodas de
modas distintas já, porém.
ॐ
10.20.3.1 . Ethnos e Demos: Entre uma comunidade imaginada e uma cidadania
comum redefinida há uma tribalização dos nichos comerciais em prol de uma ecologia
econômica (economologia) dos ruídos intertribais. A escuta da maioria popular (demos) se
torna portanto o mercado de significação subjetiva do modelo de mercantilização dos músicos
enquanto produtos vazio de conteúdo propriamente musical (basta ver estes programas de
talentos) e os nichos se tornam espaço de uma "escuta de qualidade" onde o requinte de ouvir
o desconhecido se sobrepõe ao produto musical. As obras de redes de artivismo em geral são
transformadas em mais um nicho de coleção, a serem tratadas dentro de um sistema de
conteúdo artístico propositadamente vazio. Esta mitologia cultural constitui uma causa
longíqua e fundamental para o esteticídio generalizado.
10.20.4 . Saúde Auricular: O ideal de pureza formal anódina da música se conjuga ao da
saúde e da assepsia na “produção profissional”. A
musicoterapia também se rendeu aos
tratamentos meramente consoantes indo dos
ritmos pulsionais às harmonias binaurais, mas
quais as modificações que as frequências
complexas e os ruídos inesperados geram nos
organismos ouvintes? A que ponto, esta
ideologia da saúde correlacionada à consonância
não embasa a perseguição às dissonâncias e a
diminuição da variabilidade da produção
subjetiva soante? Indo um passo além, quanto o
ideal de pureza e simplicidade musical não
colabora com a superficialidade nas discussões
sociais acerca de temas de complexidade inevitável, propiciando preconceitos e tomadas de partido
passionais que privilegiam a hegemonia de uma minoria?
10.20.4 .1 . Quantos massacres não se baseiam nesta perseguição à dissonância de modo
de vida? Perseguição aos pobres, aos eruditos, aos silenciosos, aos autistas, aos que não desejam
sexo, aos religiosos, aos que não desejam mais competir, etc. Aquele que questionar-se estes
pressupostos é tratado como inimigo do capital e assim, como inimigo da classe artística “que
precisa se alimentar”. Mas o questionamento de uma escuta institucional da música
demanda-nos a compreensão do entranhamento entre a saúde da escuta individual nas
consequências desta para aharmonia de escutas. São, portanto, duas purezas: uma identitária
onde se nega a ouvir qualquer coisa de fora do seu estilo de escuta, outra política onde se nega a
ouvir qualquer coisa que contenha dissonâncias ideológicas e(ou) formais com a produção de
consumo subjetivo musical.
10.20.4 .2 . Ópera Sopa de Norminhas: A quem falam as óperas? Quem ainda está
disposto a conhecer as óperas contemporâneas numa época de perseguição à dissonância
ideológica? Os indivíduos, de fato, mantêm uma certa capacidade crítica de decodificação da
propaganda e de reinterpretação das mensagens, em função de sua experiência própria e das
pessoas à sua volta. Se determinada propaganda se mostrou eficaz, não foi, certamente, apenas
graças a seu conteúdo. Foi graças - talvez principalmente - à receptividade de quem a ela se
expôs com suficiente boa vontade para acreditar nela e se negar a ver por detrás desta os
processos de controle psíquico, como as pesquisas de opinião, por exemplo. Enquanto uma
sessão de ópera ainda exige deslocamento, espera, obrigação de horários fixos e de silêncio,
vizinhança desconhecida numa sala, em suma todo o ritual, ligamos a televisão para ver a
novela (que é toda programação) quando queremos, sem sair de casa, posso assistir a ela
deitados, agachados, de pé, comendo, trabalhando, conversando, cochilando.
10.20.4 .2 .1 . Infantilismo Cultural: A regressão à irresponsabilidade é a
contrapartida cultural ao dever de consumir.
Além da necessidade de proteção, legítima em
si, o infantilismo é a transferência para o
centro da maturidade dos atributos e
privilégios da ignorância infantil, sua
idolatrada inocência. Dois aliados objetivos o
alimentam e o excretam continuamente: o
consumismo e o divertimento, ambos
baseados no princípio da surpresa permanente
e na satisfação ilimitada que geram. No caso
da cultura, é visível na preocupação com a
independência sincrônica à demanda de
cuidados e assistência, na combinação do não-conformismo com a exigência
insaciável. A cooptação cultural das periferias por parte de uma população de alto
poder aquisitivo e pelo discurso do poder busca vantagens imerecidas, colocando os
outros em posição de devedores subjetivos a si próprios. A onda da periferização da
escuta, o ghetto tech mundial, nos mostra esta onda como uma vitimização da escuta
consumista burguesa.
10.20.4 .2 .1 . 0. A vitimização é aparente nas obras de protesto, bem
como nos estilos de entretenimento violento que mostram com horror os limites da
infantilização. O heavy-metal e os filmes de terror são uma amostra limítrofe
do “vamos vomitar o lixo de volta em vocês”, a tratar dos males
“contemporâneos”, mas o que tornaria os humanos mais infelizes hoje do que
antes? A emancipação coletiva e a pessoal eram uma só. Porém, assim que
desapareceram os grandes pretextos ideológicos que nos permitiam atribuir
nossas misérias a um capitalista ideal no topo da pirâmide, e tivemos que lidar
com os satãs em nossos próprios desejos, o adversário à consonância começa a
surgir dentro das famílias médias.
10.20.4 .2 .1 .1 . A partir desta estética da violência e da estetização da
miséria é formado um verdadeiro mercado do sofrimento. E este tipo de
empreitada é visto com bons olhos pela população global, como atenuante
desta violência simbólica sob os regimentos do comércio e como propulsor de
produtividade. Em toda parte a indústria dos direitos simbólicos prolifera e
cada um se torna porta-voz da sua particularidade, inclusive o indivíduo, a
menor minoria que existe, e reivindica a permissão de perseguir os outros, que
lhe fazem sombra. Se você pode estabelecer um direito e provar que lhe
privam dele, então obtém o status de vítima.
10.20.4 .2 .1 .2 . Por que seria escandaloso simular o infortúnio
quando nada nos aflige? É que usurpamos assum o lugar dos verdadeiros
deserdados. A música das minorias é a majoritária, a verdadeira minoria
musical é a de escutas extremas e ritualísticas. Ora, os verdadeiros sofredores
do sistema competitivo hierárquico não pedem derrogações nem
prerrogativas, apenas o direito de serem humanos como os outros. (E não
elefantes)? Aí está toda a diferença. Os pseudodesesperados do graffiti classe
média querem se distinguir, exigem privilégios para não sere confundidos com
o comum dos mortais pixadores, os poetas pós-concretos exigem justiça com a
linguística apenas. Quais as reais minorias artísticas e subjetivas? Quais as
minorias que mais sofrem? Quais as relações reais entre elas?
ॐ
10.20.4 .3. O ritual é parte do ruído da arte. É o contexto de recepção da propaganda
que a torna mais eficiente, por isto é possível
considerarmos toda a programação midiática
e a maior parte dos programas culturais
como produção de propaganda ideológica do
consumo e do desenvolvimentismo. A partir
disso, mesmo que a informação não seja
verossímil, pode-se acreditar nela. O medo de
crise e desemprego são temperados pelos
jingles das propagandas onde um carro anda
sozinho nas ruas da cidade sem tráfego e se
defronta com um elefante, você pode chegar
lá no deserto. Em contraposição à novela
televisiva (soup opera) que fala à massa da
mediocridade máxima, onde só há
consonância com os preconceitos sociais, a
ópera fala somente àqueles que se dispuserem a ouvir tudo. O sensacionalismo da violência
midiática vende produtos de segurança e empodera as forças de controle. Fora falarmos então
em formação de público e crise de protagonismo, deveríamos pensar a formação de espetáculos por
parte de um modo de publicidade. Nellie, the Ellie Phant.
10.20.5. Silêncio Elefante. A Espiral do Silêncio: Um outro fenômeno subjetivo subjaz como
avesso à espiral do ruído e sua surdez, através da mercantilização da arte e sua subsequente cultura da
consonância ideológica: é o da espiral de silêncio que, ironicamente, gera o ruído social. O artista sente
medo não só de não sobreviver sem os apoios dados ao embasamento da doutrina oficial, mas também
de se ver isolado de seu próprio grupo de filiação. O ideal de profissionalismo na arte leva a não mais se
ver como artista aquele que não “vive do que faz”, e o melhor artista é o que tem melhores
possibilidades materiais e sociais de expressão. Para não se sentir isolado, ou até ser banido, o indivíduo
eventualmente renuncia a expressar sua própria opinião. Essa tendência à conformação, de fato, é uma
das condições de sua integração social. O silêncio acusmático dos primeiros tempos no aprendizado
pitagórico da escuta aqui dão lugar ao silêncio da música com relação ao seu papel como paliativo de
massacres cotidianos, como por exemplo, o apartheid econômico do conhecimento nas universidades e
dos espaços de produção simbólica nos museus ditos públicos.
10.20.6. Técnicas Elefantes: Para um profano, e a maioria de nós é, o mistério que existe num
televisor ou num transistor é o mesmo que existe na fórmula de um mago que inventa sabões em pó
(aliás eletrônica e informática são palavras cabalísticas encarregadas de designar o inexplicável). A
complexidade das operações mentais necessárias à fabricação de um simples chip de computador torna
esses instrumentos impenetráveis aos usuários. Isto explica as relações de raiva, de adoração e de jogo
que mantemos com eles. As relações com a arte a partir de sua técnica se dão por um viés similar,
exigem uma dedicação sem falhas e em cada uma das suas dissonâncias com nosso desejo vemos uma
ação contra nós. O espectador, no entanto, para se vingar dispõe de um recurso eficaz: a substituição.
A técnica (e a arte pode ser vista como somente uma) nos fascina tanto quanto se banaliza.
10.20.6.1 . Cópias Elefantes: A música multiplicada ao infinito, como a pintura
reproduzida em livros, revistas, cartões-postais, filmes, sítios virtuais, arrancaram-se de sua
unicidade. Assim, perderam sua realidade. A multiplicação lhes tirou de sua aparição. O direito
autoral alimenta este dever de cópia, ao não permitir os desdobramentos fractais da
criatividade sobre a fonte “original”. Cópias, e não instrumentos mágicos, fetiches, templos,
grutas, ilhas. A ocasião da música durante milênios, foi tão singular, intransponível,
excepcional, solene, ritualizada, quanto podiam ser uma assembleia de máscaras, uma gruta
subterrânea, um santuário, um palácio principesco ou real, um funeral, um casamento.
10.20.6.2 . Audição Elefante: A alta-fidelidade se tornou o fim da música erudita
escrita. Ouvimos a fidelidade material da reprodução, e não mais a campainha espantosa do
mundo da morte. Uma simulação excessiva do real suplantou o som que se desenvolve e
submerge no ar. As condições do concerto e do ao vivo chocam cada vez mais o ouvinte cuja
erudição tornou-se também tão tecnológica quanto maníaca.
10.20.6.3. A audição acústica: É a escuta do que dominamos, do que podemos
aumentar ou diminuir o volume,
que podemos interromper, ou que
podemos com um dedo e com um
olhar, desencadear o poderio. O
escuta ruidosa é mais inapta que
incompleta. Não somos mais
humanos, mas refrões. A voz do
muezim força os judeus como o
carrilhão da grande missa o faz
com os muçulmanos. Somente os
ateus preconizam o silêncio que
não podem impor. Certamente eu
não teria apreciado o olifante de
Rolando, mas detesto a campainha
telefônica. A humanidade está mais
próxima dos sofrimentos da
audição do que da visão angélica.
Pela primeira vez, desde o início da
era histórica, isto é, da narrativa, os humanos fugimos da música. Eu fujo da música
intangível, por isto esta próera.
10.20.7. Rítmica Simbólica: O musth modifica as hierarquias sociais a partir de um incidente
puramente fisiológico apontando a
dominante sexual que aparece em
todos os níveis com caracteres
rítmicos sobredeterminados. Os
jogos das crianças apresentam um
caráter ecolálico, estereotipado,
prefiguração coreográfica, de algum
modo, do exercício da sexualidade. A
rítmica sexual ligada à sucção,
digestão erótica do mar uterino,
estar no outro sem sermos alimento,
nascemos devorados. A genética dos
fenômenos sensório-motores
elementares é também o princípio da
metáfora, a simbologia nasce do diálogo do corpo consigo. O corpo inteiro colabora na constituição da
imagem. O mito é uma repetição rítmica, com ligeiras variantes, de uma criação. Mais do que contar,
como faz a história, o papel do mito parece ser o de repetir, como faz a música. Essas repetições das
sequências míticas têm um conteúdo semântico que, no seio do sincronismo, a qualidade dos símbolos
importa tanto quanto a relação repetida entre as personagens do drama. A ópera prop de Greenaway com
seus cem objetos antepostos diante do Bach satelital demanda Tulse Luper. É que o sincronismo das
variações do mito não são apenas um refrão, são música. E música é encantamento.
ॐ
10.20.7.1 . Jogo Elefante: Xiàngqi ( jogo elefante) é a modalidade de xadrez chinês.
Quem se preocupa em comprar as peças de marfim está disperdiçando tempo que deveria usar
estudando as regras e(ou) jogando. Os ideogramas para ministro e elefante são diferentes porém
homófonos, e ambos significam aparência ou imagem. Como é agradável deixar-se levar, ser
joguete de estratégias comerciais diversas, que repouso nesse abandono, que ventura nessa
passividade que é ser espectador do jogo de cena! Sem seus nichos de felicidade, não haveria
nada para nos recuperarmos da violência, das ações, do esforço extenuante. O consumo é
consolo. A pessoa saciada quer sempre mais que o que lhe foi dado, pois o que ela deseja
ninguém lhe pode dar, ser uma esponja embebida de um eterno presente da informação através
da memética em melodias taraband: Um ouvido insaciável pobre de mundo. Escolher não jogar
o jogo, muda o jogo.
10.20.8. Semibiótica: Postulo que a próera é a prática dos conhecimentos de uma nova área do
conhecimento, ainda delicada, a dos estudos da vida mediada por sistemas simbólicos e das buscas dos
símbolos vitalizantes e das pesquisas das comunicações vitais, a semibiótica. A comunicação
não-violenta e a escuta compassiva constituem aspectos destas práticas cotidianas. Neste sentido ela é o
contrário da biossemiótica que é um campo crescente que estuda a produção de ação e interpretação
dos sinais do reino biológico. Se o cinema (movimentação sinestésica) é o signo do caos, a próera
(intervenção semibiótica) é um índice da complexidade contígua numa operação. Uma taxonomia de
nossas compreensões aponta para uma arrogância e ingenuidade terrível caso apoiemos o fato de
nossos modos de apreciação estético estarem prontos: Uma linguagem verdadeiramente humana
deveria ser compreendida por elefantes e demais espécimes, para tanto. Se há uma lição a ser aprendida
com os cornacas mahout é esta: ainda não sabemos apreciar uma obra de arte tão singela quanto um
elefante e nos comunicarmos com ela.
10.20.9. Canto: Ar acumulado e rejeitado. Todo o auditório interno e mesmo o futuro teatro
respiratório refletem com ênfase as emoções que o corpo sente. A linguagem se organiza com um
corpo zoológico que inspira e expira sem descanso. O som que já ressoa é o resultado de uma verdadeira
competição sonora. Cada espécie de animal adaptada ao ar e dotada de uma cantilna que lhe permite se
diferenciar das outras espécies, participando a um sistema sonoro onde ela só desempenha a parte que
se espera dela para se associar à sua manada sonora, em superposição e em negação das outras partes
que ela é capaz de ouvir. Nós nos imitamos a nós mesmos imitando. Não é somente a infância. Uma
espécie de manutenção sonora, de ressonância e de comparecimento incessante fundam, trabalham e
precisam sem descanso cada língua no sistema das vozes do mesmo modo que ela funda e alerta cada
som na floresta sonora.
10.20.9.1 . Curiosamente, a música protege os sons. As primeiras obras de música dita
barroca eram cheias do desejo de se extirpar do latido do sonoro a partir da modulação própria
da linguagem humana e
da organização de seus
afetos. A invenção da
ópera resultou desse
desejo de renascimento
afetivo, de muda ou de
triagem sonora, de
sacrifício sonoro em
prol de uma
hiperrepresentação. A
voz infantil que puxa
para si a linguagem
materna é pele de
serpente. A música e a
voz maravilhosa, a voz
domesticada e a
castração estão ligadas.
10.20.10. Audição e
vergonha. Ruído de seus passos
fora da harmonia social. A
música nos imobiliza e comove.
A música é a impessoalidade
não privada da fusão ideológica
das escutas. A satisfação sádica
de ouvir uma harmonia bela
enquanto tantos vivem uma
vida desarmônica e ruidosa,
atonal. A música nos campos de
concentração é um ritual de
humilhação. Primo Levi
colocou a nu a mais antiga
função da música: a hipnose do ritmo contínuo que aniquila o pensamento e adormece a dor. A função
secreta da música é convocativa à obediência. Como ouvir de fora da música? A música é uma
convocação à tortura e quando difundida em massa, ao massacre.
ॐ
10.21 . Escuta Marfim: Escuta elefante. O que ocorre com você
quando escuta uma música que toca? Através de que magia (dionilínea e aposíaca) esta
mensagem tem o poder de induzir em você uma metamorfose? Num primeiro
momento, você sente, enquanto ouvinte, que está escutando a música. Mas na medida
em que é ‘tocado’, como se diz, você descobrirá que de fato não é você que escuta, mas
que é a música que o escuta, que escuta uma presença de cuja existência você se
esqueceu e que, pelo fato de ser escutada, passa a reviver e a lhe ser dada. Mesmo os
erros, os atos falhos dos intérpretes, os cacoetes dos maestros, os espirros da platéia,
sempre me pareceram de uma infinita precisão.
10.21 .1 . Escuta infantil: O Imaginário Feroz do recém nascido e seus
fantasmas arcaicos de devoração e de onipotência, rompem com o mito da inocência infantil. A mãe
oferece e nega o seio, amor e ódio à mãe. A orelha dentata. Segundo
Klein, essas primeiríssimas sensações estariam, então, na base de nossa
percepção primária do bom e do mau, do bem e do mal, do amigo e do
inimigo. Há uma tanatologia erótica da escuta, uma depressão natural
da entrega de ouvir quanto uma paranóia na forçação de uma análise
auditiva. O que perdemos com uma cultura tipicamente
musical-depressiva, que se abstém do ruído e suas paranóias, mas
também da análise e da crítica? A musicalização e legislação aural à
ordem e à harmonia consonante pode ser eficaz para inibir a violência
individual, mas esse organizador psicológico não impede a guerra
semiótica e a explosão dos volumes e os massacres de sensibilidades.
10.21 .2 . Racionalidade Delirante: A lógica paranóica da música (análise projetada na soação),
sua matemática dos afetos, é desvirtuada pela paixão, que a leva a uma
interpretação delirante da realidade. Suas ideias se orientam por uma crença
a priori. A dúvida e a autocrítica são tão estranhas ao paranóico quanto ao
músico. Seu raciocínio, aparentemente racional, na verdade tem uma
natureza hiperafetiva e, no final das contas, representa apenas a justificativa
das suas tendências emocionais. Ao não perceber o aspecto ruidístico que é
o próprio gesto compositor sobre os sons, o músico raciocina exato, mas
partindo de premissas falsas: a música é o afeto dos cálculos. A
característica principal da racionalidade delirante das artes é a de se
pretender instrumental: visa garantir, para si, os meios concretos de alcançar seus objetivos. Trata-se
de pôr em ação um projeto (aonde queremos chegar com este projeto: eis a obra), uma estratégia para
fazer o que se diz. Não há, neste sentido, uma arte disto ou daquilo, e os estilos e escolas são demonstrações
abertas de preconceito aceitos. E aqui podemos observar a pureza estética da eletroacústica, onde a
justificativa contextual é sempre deixada de lado em prol de uma metapoética do processo de geração
sonora, de modo que a harmonia contextual.
10.21 .3. Ideologia Irracionalista: Partindo desta irracionalidade afetiva da música mantém-se
uma ideologia irracionalista que sufoca as análises da escuta de modo a evitar o confrontamento com
as dissonâncias internas e contextuais. A música extrema do
século XX, disfarçou os afetos nesta discursividade fria dos
matemas. Esta ideofonia ruidocrática, que é o sistema musical,
estrutura a industrialização da surdez seletiva. Que fique claro,
as pessoas não estão surdas para tudo, mas somente para o que
não querem ouvir e nisto podemos negar Cage: O ouvido pode
sim adquirir pálpebras. Pode-se viver uma vida inteira na
miséria só se ouvindo consonâncias. A negação da angústia
acarretada pelo ruído de fundo do universo está na base da
ideologização sobre o musical. Colocar uma letra ou um
programa (mesmo que fantástico) sobre uma música é uma das
consequências desta necessidade de não ouvir o abismo. O
ressentimento com a erudição tem de ver com os sacrifícios
desejantes necessários à pesquisa científica (a negação necessária
dos afetos presentes aos sons para a sonologia, por exemplo). Isto não é aparente somente nas culturas
popularescas mas mesmo quando se fala de arte e tecnologia ao invés de arteciência, se quer o celular
moderno mas não pensar nas guerras necessárias para conseguir o diamante que vai no chip. Os meios
justificam os meios. Fins.
10.21 .4 . Escuta reacionária: A vontade de
controle sobre todos os membros de um estilo tende a
ser total. É um processo bastante lógico: se a
mobilização de identidade teve como origem a sensação
de ameaça coletiva de um modo de soação próprio
minimamente diferente de outro (que conseguia
vantagens) tende naturalmente a ceder ao estilo
majoritário, dito mainstream, posto que este é a forma
esvaziada desta técnica de controle. O controle do
mercado sobre todos os estilos tende a ser total também,
o que leva a uma perseguição às próprias variantes que
identificam os estilos. Ou seja, o intuito de
hegemonização homogeniza as escutas e as obras
artísticas à caricatura cultural vigente.
10.21 .4 .1 . Um verdadeiro tradicionismo
artístico se contraporia às lógicas de mercantilização
de suas diferenças, mas como o poderia fazer sem ser
tido como um traidor da identidade comum de
consumo cultural? Para isto se tem o estilo musical
do experimentalismo. O totalitarismo hegemônico
da harmonia consonante em pulsos rítmicos e
desenhos melódicos hipnóticos captura a “imagem
do audível”, não dando a entrever a ruidocracia que a
sustém. O imaginário da unidade global esconde sob
os signatários protetores deste conhecimento, os
compositores laureados e sonólogos das grandes
instituições musicais, o ruído social e físico
necessários para a produção desta cultura. A arte é o
lixo da cultura.
ॐ
10.21.5. Lixos Elefante: Há em todos nós um pouco a sensação de que chegamos ao topo da
escuta, escalamos todas as
dificuldades da música erudita
ocidental por pura necessidade,
mas agora nada disto é mais
necessário: encontramos a pureza
maravilhosa da consonância
infinita de delirantes afetos simples
e, principalmente, de pureza
formal. Todos sabemos o que é
lixo, a sujeira musical é bem
aparente, ela mantém as coisas
artísticas fora dos meios de
entretenimento. Com as outras
artes ocorre o mesmo, a pintura
tem como fim a decoração e assim
por diante.
10.21.5.0. A ecologia sonora está
contra a economia musical de remédios,
pois tem um aspecto de controle de ruído
que são importantes com o advento de
cada vez mais barulhos por conta da
industrialização crescente, mas é também
tomada por uma luta ideológica sobre o
que a move. A pureza comporta um apelo
ao sagrado: a necessidade de purificação é
uma mola propulsora do religioso,
constituindo um verdadeiro trampolim
para que se desencadeiem as perseguições
purgadoras. A laicização dos rituais
litúrgicos, dos templos e de suas músicas,
são um sintoma de que o entretenimento
é a religião subjacente à ideologia capital.
Os ruidistas da rúsica com certeza se
sentem numa santa cruzada pela
expansão da escuta e defender a pureza da
civilização contra a corrupção da
modernidade é o leitmotiv de
tradicionistas ao folclore livre.
10.21.5.1 . Desperdício do Ecletismo: Não vamos a lojas com o intuito apenas de
comprar, mas para constatar que tudo está ali, ao alcance, graças ao deus da riqueza vivo e
presentificado em toda sua complexidade. Para a ideologia eclética do desperdício não existe
além-abundância, ela é irrefutável. Quem preferiria ruído a uma boa música? Quem preferiria
uma obra de arte de difícil cognição e assimilação afetiva em relação a uma peça de
entretenimento suave? Os saques simbólicos (dos mashups e das colagens em geral) do morno
inferno infectado de bem-estar, são uma homenagem involuntária à nossa sociedade de
obsolescência programada, já que as mercadorias estão destinadas a serem suprimidas e
substituídas.
10.21.5.1 .1 . Os vândalos artistas
(ruidistas plunderphonics, por exemplo) são
consumidores subjetivos apressados, que
queimam etapas e vão diretamente ao final
do ciclo de consumo: a devastação e
produção de lixo. A festa do progresso
desenvolvimentista (des-envolvimento) não
para de seduzir os incautos nunca,
tranquilizando o duplo impasse da angústia
(não deixando entrever a ausência do
necessário aos Outros) e da saturação (pois o
desejo é eternamente solicitado para ser
dispensado em seguida). O consumismo, em
suas consequências abstratas e subjetivas
(portanto, simbólicas [logo, filosóficas,
religiosas e políticas]), só traz respostas e
não faz nenhuma pergunta, estende para nós
mãos sempre cheias para que não vejamos o
sangue necessário para conseguir-se o
marfim.
10.21.5.2 . Modas Elefantes: A moda parodia a cultura tal qual a história dos estilos
musicais está intrinsecamente ligada às inovações das aparelhagens técnicas. A ruptura deve ser
sempre doce e a inovação minúscula: quase sempre a mesma coisa, espanto sem surpresa. A
novidade age essencialmente no plano dos acessórios, das pequenas modificações. No fim, essa
agitação equivale à quase imobilidade subjetiva, uma arte insensível, insossa. E quanto mais os
estilos artísticos, mais instrumentos e gadgets desfilam vertiginosamente, sem que no entanto
nada modifique nos modos de experienciação.
ॐ
10.21.5.2 .1 . Constrói-se através da cultura uma imitação de perenidade sobre
o perecível: e a função desse
tumulto superficial é tecer
uma continuidade sem falhas,
de encobrir os buracos da
surdez programada às
demandas dos necessitados, de
remendar os pedaços
disparatados dos preconceitos
dos poderosos, de nos distrair
para que não nos
desorientemos da ideologia
hegemônica: Saborear a
felicidade individualista,
acalmar a inquietação diante
do sofrimento do outro. Eis
“O Segredo Simbólico”: O sofrimento é desejo que vem por magnetismo com o
conhecimento, a ignorância é benção e quem não obedecer a este mandamento
subliminar será perseguido.
10.21 .6. A homogeneização das escutas se baseia na identidade compartilhada para produzir a
mínima diferença ao mesmo tempo que compactuando sempre com a hegemonia consoante da hipocrisia
(menor das crises). Mas a crise é sistemática, global e requer respostas complexas que visões parciais só
vão atrapalhar. Nossos prazeres não são apenas usados para nos controlar, pelos poderes semióticos
instituídos, eles geram estes poderes. Esta guerra pelo progresso reifica as pessoas: são reduzidas às
suas funções de micropoder. Aceitem ou não aderir à competitividade, o mercado os incorpora em um
papel, uma função, mesmo que de traidor, terrorista ou herói nacional. Ainda dispomos de alguma
margem de ação para rejeitá-la? Vários exemplos atestam que sim. Esse desejo de se desvincular das
responsabilidades é exatamente o que aproxima a plateia toda, é neste distanciamento que se afirma sua
conformidade e sua aceitação do narcisismo da diferença mínima. O esforço de se fazer notar, ainda que
pelos meios mais extravagantes, eis a experiência da massificação e o espelho pelo qual o artista é
vislumbrado.
10.21 .6.1 . Planeta Elefante: De maneira mais geral, como se pode notar com as
tabulas rasas culturais, o estado de competitividade não
abala só a relação com os outros, mas também as noções
de espaço e de tempo. O espaço se torna sinônimo de
insegurança (locais a não frequentar ou a se competir para
conseguir dominá-los) ou de refúgio (loja casa). De qualquer
um dos dois modos, não nos é mais permitido nos
relacionar com os lugares com o cuidado simbólico
necessário. O tempo, por sua vez, se torna -o da incerteza
programada: não se sabe mais como será o dia de amanhã,
mas ainda assim não podemos deixar a rotina
massacrante de buscar segurança. Populações inteiras são
tomadas por estados depressivos gerados por modelos de
conduta e ingestão cultural ao mesmo tempo que
apresentam manifestações de hipervigilância paranoica (a
música-ruído, as performances, etc.). O tempo parece
suspenso e a vida passa a ser experienciada num limbo à
deriva, pantomina de títeres da falência.
10.21 .7. Estética Estatística Estocástica: Nada mais sintomático a esse respeito do que a
depressão engendrada pela sociologia. Essa disciplina é professora de humildade por lançar sobre cada
um a luz do grande número e transforma nossos mais íntimos gestos em estatísticas. Com a sociologia
torno-me previsível, meus atos estão escritos antecipadamente, qualquer espontaneidade é a mentira
de uma ordem molecular que se escreve atrás de mim. Ela traz um flagrante desmentido ao sonho de
uma liberdade que desabrocharia apenas no ritmo dos meus impulsos: para que me inventar se uma
ciência me diz o que sou e o que serei não importa o que eu faça (no que a sociologia é tanto descritiva
quanto prescritiva)? Com ela sou expulsa de minha pretensão ao ineditismo, à novidade (própria à
arte). Por exemplo, penso que sou uma amante requintada cujo coração só vibra pelas mulheres
excepcionais; por uma pesquisa sou informada de que compartilho os mesmos gostos com 75% das
mulheres homossexuais de meu meio profissional. Pensava transcender qualquer definição particular,
qualquer determinismo preciso: minhas escolhas amorosas só fazem sublinhar minha vinculação
genérica e de classe. Com a sociologia, minha única liberdade é agir como os outros, ser ao mesmo
tempo conforme e equivalente mesmo que neste impulso pelo impensado. A cultura de massa não
engendra arte pelo simples motivo de que a arte é o ponto de singularidade de um gesto.
Rarxs,
Antes de mais nada gostaria sinceramente de agradecer a inspiração que me foi concedida para realizar
esta próera pelas pessoas que amo, suas singelezas e poesias cotidianas. Esta obra em nenhum ponto se trata da
realização de um desejo, mas adveio da necessidade de agradecer a tudo que me ocorreu até agora e em perdoar-me
pelos longos silêncios e intempestivos ruídos. Meu prazer está em cuidar das plantas que resgato no lixo, em olhar o
mar e tocar as peles que me habitam os sonhos.
Desde pequena um sonho me acomete: Eu sou um garoto autista com elefantíase na alma (como explicar a
sensação deste mastigamento amorfo?) sonhando que desperta no colégio como uma mulher madura de trinta anos,
nua. Pulo o muro e caminho pela cidade e, por conta de um ser luminoso caótico (que em infância chamava de
“Pli-plis”), percebo uma horda de pessoas engravatadas com cabeças de animais me perseguindo pelo mesmo parque
cinza. O chão parece que cede, às vezes vou ter nos subterrâneos. Talvez eu tenha sido um minerador em outra
metempsicose, temo as galerias. Os carros se atiram sobre mim e me desvio porque dança. Fogos fátuos. Vou ter num
prédio noveau (que tive a impressão de conhecer em Praga) e aquela multidão se aglomera pelas escadarias
lideradas pelo homem elefante e vêm ter comigo no topo do edifício. Até este momento todas as criaturas agem com
violência e furor. A partir deste ponto, o sonho se desdobra a cada vez que surge em minha vida (sempre em
momentos precisos de mudanças). Às vezes o elefante me abraça, ou todos tomamos chá, ou me empurram ou como
na noite de ontem para hoje, quando finalizei o libreto: levito.
Este processo me foi de profunda angústia e revelação mas também de gozo e devaneio. Noites insones,
solidões tépidas, a traição de amigxs, o resgate advindo de estranhos; mas também de iluminações e ampliações
profundas e sinceras em minha sensibilidade e força vital. Abandonei-me e perdi o que me conectava ao mundo,
senti uma enorme tristeza ao me deparar com as forças que me impediam de agir. Me sinto imensamente maior e
mais conectada comigo mesma agora, mas isto não me tirou a tristeza profunda que sinto perante as formas que
encontramos de convívio, nos nossos tratos cotidianos competitivos ou em âmbitos mais complexos. Tamanhos pesares
e a imensa tristeza trazida neste projeto junto aos arroubos de inspiração e delícias, fizeram com que as
iluminações e abismos tomassem o que em mim havia de contribuição aos meus irmãos e irmãs de todas as espécies.
Que seja de serventia a vossas caminhadas e nossos encontros.
Deixo este singelo gesto como despedida, abandono minha escravidão e meus ímpetos enquanto compositora.
Desisto da música. Lhes peço com todo o amor que há em mim, que divulguem estes dados, levem isto às ruas de
suas maneiras, não desistam da escuta nem pelo prazer nem pela dor. Pois por outro lado, e alguns de vocês
acompanharam isto com pesar, venho sendo ameaçada de maneiras já não tão sutis como de costume. Começo a
temer por minha própria vida, o que abala até mesmo meu desapego. Peço-vos que me esqueçam e permitam que a
obra exista anonimamente. Amem-na como a todas as outras.
Sigo, e quem sabe eu ainda veja com meus próprios olhos um elefante nesta vida.
Sofia Harmonia