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Ano XII Out 15

Número 11
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 6

SÚMARIO
DIREÇÃO TEATRAL:
FORMAÇÃO E PESQUISA

PÁGINA 20 PÁGINA 34 PÁGINA 52


O PAPEL DO PEDAÇOS DE A DIREÇÃO TEATRAL
ENCENADOR: DAS PENSAMENTOS E A PESQUISA:
VANGUARDAS ESCOLAS E GRUPOS
Marcio Abreu
MODERNAS
(Curitiba/PR) André Carreira
AO PROCESSO
(Florianópolis/SC)
COLABORATIVO
Notas rápidas sobre a
função do diretor de teatro

Cibele Forjaz
(São Paulo/SP)
7 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

PÁGINA 56 PÁGINA 82 PÁGINA 98


PLANAR NO #4 - ESCRITOS DIREÇÃO TEATRAL:
ABISMO EM ESPARSOS SOBRE ALGUMAS
ÓTIMA COMPANHIA DIREÇÃO E TEATRO REFLEXÕES
DE GRUPO EM 2014
Tiche Vianna
(Barão Geraldo/SP) Narciso Telles Grace Passô
(Uberlândia/MG) (Belo Horizonte/MG)
SÚMARIO
DIREÇÃO TEATRAL:
FORMAÇÃO E PESQUISA

PÁGINA 114 PÁGINA 142 PÁGINA 164


A ENCENAÇÃO SOBRE A SOBRE VIVER
NO CAMPO DIREÇÃO EM GRUPO
AMPLIADO DE ATORES:
Miguel Rubio
UMA REFLEXÃO
Francis Wilker (Lima/PERU)
(Brasilia/DF) Ferran Utzet
(Barcelona/ESPANHA)
TEATRO E GALPÃO CINE HORTO
POLÍTICA EM FOCO EM FOCO

PÁGINA 202 PÁGINA 220 PÁGINA 238


O NECESSÁRIO UM ESTRANHO O ENCARGO
DEBATE DAS NO NINHO: DA HISTÓRIA
ARTES A GERÊNCIA
Vinícius Souza
EXECUTIVA NO
Marcelo Bones (Belo Horizonte/MG)
GRUPO GALPÃO
(Belo Horizonte/MG)
Fernando Lara
(Belo Horizonte/MG)
EXPEDIENTE
Subtexto – Revista de Teatro do Galpão Cine Horto
no. 11 – ISSN 1807-5959

PRODUÇÃO EDITORIAL:
Marcos Coletta

JORNALISTA RESPONSÁVEL:
Luciene Borges (MG 09820 JP)

CONSELHO EDITORIAL:
Chico Pelúcio, Leonardo Lessa, Luciene Borges,
Marcos Coletta e Nina Caetano

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO:


André Carreira, Cibele Forjaz, Fernando Lara, Ferran Utzet, Francis
Wilker, Grace Passô, Marcelo Bones, Márcio Abreu, Miguel Rubio,
Narciso Telles, Tiche Vianna e Vinícius Souza.

REVISÃO ORTOGRÁFICA:
Élida Murta e Rachel Murta | Trema Textos

TRADUÇÃO:
Luis Carlos Herrera Ramírez

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:


Filipe Costa e JM Emediato | Lampejo
CPMT – Centro de Pesquisa e
Memória do Teatro do Galpão Cine Horto

Rua Pitangui, 3613 – Horto. CEP 31030-065


Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil / Tel. +55 31 3481 5580
http://galpaocinehorto.com.br/cpmt/
centrodepesquisa@galpaocinehorto.com.br

A Revista Subtexto é uma publicação independente.


Todas as opiniões expressas nos artigos são de
responsabilidade exclusiva dos autores.

Publicação Eletrônica. Versão em Português.


OUTUBRO DE 2015.
Editorial | 12

EDITORIAL
13 | Editorial
Editorial | 14

A VIRADA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX


marcou um momento crucial para o teatro ocidental, quando o
surgimento da encenação moderna e da figura do encenador detonou
um movimento de evolução e revolução das práticas e ideias acerca
da direção cênica. Nas décadas seguintes multiplicaram-se as
maneiras de conceber uma obra teatral e conduzir o trabalho do ator:
o método Stanislavski, o distanciamento épico-dialético de Brecht,
os laboratórios de Grotowski, o espaço vazio de Peter Brook, as
criações coletivas do Living Theatre, a antropologia teatral de
Eugenio Barba, e também as referências nacionais, como o Teatro
Oficina, o Opinião, o Arena, o CPT de Antunes Filho, o processo
colaborativo conceituado por Antônio Araújo são alguns exemplos.

O imenso leque de proposições para a encenação construído ao longo do


século passado culminou na diversidade estética e técnica das práticas
contemporâneas que hoje presenciamos. De fato, assim como as demais artes,
o desenvolvimento do Teatro não se fia a uma cronologia linear, mas acumula
experiências, referências, conceitos e práticas que se interpenetram
e constroem um imenso “caudal de ferramentas” para os diretores,
encenadores e atores de agora. Mas, ainda que influenciados pelas
experiências do passado, esses criadores se pautam cada vez mais em suas
realidades e seus contextos na busca por linguagens e assinaturas pessoais.
A coexistência de trabalhos tão diversos quanto singulares reflete a pluralidade
e a heterogenia da contemporaneidade, como, também, o aperfeiçoamento da
ideia de coletivização e a horizontalização das funções criativas, aproximando
e integrando os profissionais envolvidos na criação. A abertura dos cursos
profissionalizantes e superiores de teatro nos últimos trinta anos também
repercute diretamente na cena teatral nacional, formando atores, diretores
e encenadores que também são professores e pesquisadores teatrais,
em um diálogo cada vez mais dinâmico entre a prática e a reflexão teórica.
15 | Editorial

Em sua décima primeira edição, a Revista Subtexto deseja


dar mais uma contribuição a esse ininterrupto debate sobre a
direção teatral, a partir de textos inéditos escritos por diretores,
pesquisadores e professores de diferentes estados do País e do
exterior acerca do tema “Direção Teatral: Formação e Pesquisa”.

Na seção principal, nove textos traçam um panorama diversificado sobre a direção cênica
a partir de análises teóricas, relatos de práticas e reflexões pessoais. Cibele Forjaz introduz
um breve panorama sobre a encenação desde as vanguardas modernas às práticas
contemporâneas, apontando transformações no papel do diretor de teatro. Márcio Abreu
reflete sobre alguns de seus trabalhos à frente da Companhia Brasileira, de Curitiba (PR),
e com outros artistas para expor seu pensamento sobre a relação da encenação com o
espaço, a escrita e a atuação. André Carreira se utiliza de sua experiência como diretor
e professor universitário (UFSC) para traçar aproximações e diálogos entre a pesquisa
acadêmica e as práticas dos grupos de teatro. Tiche Vianna oferece um relato pessoal e
informal sobre seu percurso e formação como diretora, além de compartilhar pontos de
seu trabalho no Barracão Teatro, de Campinas (SP). Narciso Telles também aproveita sua
condição de pesquisador e professor acadêmico (UFU) para analisar a direção teatral à luz
de sua experiência como encenador no Coletivo Teatro da Margem, de Uberlândia (MG).
Grace Passô repassa momentos de sua trajetória como diretora e enfatiza a importância
de encontros com outros diretores, como Anderson Aníbal, na Cia Clara, de Belo Horizonte
(MG), Kenia Dias, na montagem da ECA-USP, Carne Moída, e com o argentino Daniel
Veronese, em O Líquido Tátil, do Grupo Espanca!, de Belo Horizonte (MG). Francis Wilker
apresenta o conceito da direção teatral a partir da ideia de “campo ampliado” e propõe
aproximações com outras linguagens como a arquitetura, o cinema, as artes visuais,
o circo e a dança contemporânea, usando como exemplo obras teatrais nacionais que
buscam habitar estas fronteiras.
Editorial | 16

Pela primeira vez, fechamos a seção principal com dois


convidados internacionais. O catalão Ferran Utzet desenvolve
um texto reflexivo e afetivo sobre sua experiência como diretor,
em especial na sua relação com os atores, articulando uma visão
crítica e pessoal sobre conceitos, tendências e métodos para a
encenação. E, por último, em um texto inédito no Brasil, o diretor
peruano Miguel Rubio, condutor do longevo Yuyachkani, presta
uma homenagem ao trabalho de Eugenio Barba - e o Odin Teatret
-, reconhecendo-o como uma de suas principais inspirações e
traçando paralelos entre suas práticas e pesquisas ao
longo dos anos.

Na seção Teatro e Política, o diretor e programador Marcelo


Bones convida o leitor ao debate das artes em um momento em
que o Ministério da Cultura parece, segundo o autor, acordar
de um apagão político e representativo, querendo lançar um
novo olhar sobre a cultura na dimensão federal. Na seção
Galpão em Foco, Fernando Lara relata desafios, mudanças e
potencialidades gerados pela criação de uma gerência executiva
dentro do Grupo Galpão a partir de sua entrada para a equipe.
E a seção Cine Horto em Foco traz o depoimento do dramaturgo
e pesquisador Vinícius Souza sobre sua participação na criação
do documentário Primeiro Sinal – A história do Teatro em Belo
Horizonte: dos primórdios até 1980, a partir de sua condução nas
entrevistas gravadas com artistas veteranos da capital mineira.
17 | Editorial

Em sua décima primeira edição, a Subtexto se lança


impulsionada por diversas novidades. Pela primeira vez, deixa de
ser publicada em papel e passa a ser uma revista eletrônica. Além
disso, todo o seu conteúdo é apresentado em edição bilíngue
(português e espanhol), em consonância com a inserção de textos
de autores internacionais. Tais mudanças refletem um desejo
de renovação e atualização no formato da revista, em busca de
um diálogo maior com o meio digital e de uma distribuição que
possa alcançar outros países. Iniciando a sua segunda década
de publicação, a Subtexto acompanha também o atual processo
de reflexão e reinvenção do Centro Cultural Galpão Cine Horto,
mirando o futuro sem se esquecer de sua história.

Boa leitura!

Equipe do
Galpão Cine Horto
DIREÇÃO TEATRA
FORMAÇÃO E PE
AL:
ESQUISA
O PAPEL DO ENCENADOR:
DAS VANGUARDAS
MODERNAS AO PROCESSO
COLABORATIVO
Notas rápidas sobre a função do diretor de teatro

Cibele Forjaz 1
(SÃO PAULO/SP)
1 - Cibele Forjaz é diretora e iluminadora teatral,

professora e pesquisadora. Graduada em Artes Cênicas

com habilitação em direção teatral pela Universidade de

São Paulo (1989), Mestrado em Artes (2008) e Doutorado

em Artes Cênicas (2013), pela Universidade de São Paulo

(USP). É docente e pesquisadora do Departamento

de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes

da Universidade de São Paulo desde 2006. É diretora

artística da Cia. Livre de Teatro (SP) e trabalha em parceria

com outros grupos e companhias do País.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 22

DESDE OS ANOS 1960 que a figura do diretor de teatro como


um grande pai devorador, autoridade inquestionável do processo
de criação teatral, gênio absoluto ou “O” criador fundamental
do espetáculo vem se desmontando progressivamente. Não
cabe aqui detalhar esse processo, mas apenas fazer um esboço
histórico muito rápido (e por isso mesmo, um tanto leviano
e generalizante) que nos leve a pensar sobre a mudança das
funções da direção teatral para o século XXI.

Cabe antes notar, no entanto, que a ideia do encenador como


“o grande criador” do conceito e das formas do espetáculo
teatral, por sua vez, também faz parte de um processo de grande
mudança do teatro, que data do fim do século XIX e início
do século XX e acompanha, de modo decisivo, a criação das
1

“vanguardas modernas”.
23 | O Papel do Encenador:
das Vanguardas Modernas ao Processo Colaborativo

Até então, pelo menos no teatro dito “oficial”, o texto teatral era o
grande aglutinador do espetáculo. As montagens tinham por principal
função fazer “viver a peça”, tal como tinha sido escrita. Cabia ao ator,
2 - François-Joseph Talma (1763-
portanto, representar o seu papel; ao cenógrafo, construir o cenário;
1826), ator da Comédie française
ao figurinista, desenhar e cuidar da realização das roupas; e assim que criou uma forma pessoal e
por diante, segundo as indicações presentes no texto teatral. Cabia “intempestiva” de interpretar,
considerado como o ator mais
ao diretor ou ensaiador organizar o trabalho da equipe, mas quem famoso de sua época.
determinava o sentido da peça era o dramaturgo, vivo ou morto. Aos
3 - Henriette Rosine Bernardt
grandes atores, também chamados de “monstros sagrados”, cabia (1844-1923), atriz francesa
uma interpretação mais particular e, assim, o público poderia ir ver o conhecida mundialmente como
Sarah Bernardt ou “Divina Sarah”.
Hamlet de Talma2, ou o Hamlet de Sarah Bernardt 3.
4 - Há muita discussão, entre
os historiadores de teatro,
Com o “surgimento da encenação” ou o início da “era da
4
se é possível ou não falar de
encenação”, a função de interpretar ou reinterpretar o sentido “surgimento da encenação” no
do texto passa a ser conduzido por um artista: o diretor teatral, final do século XIX, na medida
em que, em outros momentos da
chamado também, a partir de então, de o encenador. Assim, história, há casos de diretores de
as várias linguagens que compõem o espetáculo passam a ser companhia (como, por exemplo,
os atores, diretores e também
orquestradas a partir de uma concepção única, visando a uma
dramaturgos Leonne d’Sommi,
coesão do espetáculo em torno de conceitos específicos a cada Molière ou Shakespeare),
montagem particular de um texto. De modo que o surgimento da que foram bem mais do que
ensaiadores, imprimindo uma
encenação é, em seu tempo histórico, um importante fator libertador interpretação pessoal aos seus
do fenômeno teatral, em relação ao texto. espetáculos.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 24

Dou voz direta a Edward Gordon Craig, um dos principais arautos


do encenador como a figura que centraliza tanto a concepção do
espetáculo quanto os conhecimentos técnicos necessários para
realizá-la, permitindo ao teatro uma independência como obra de
arte, libertando o teatro das amarras do realismo (assim como da
influência nefasta dos produtores teatrais sobre os artistas):

O Encenador: [...] Mas espero um Renascimento.

O Amador de Teatro: E quem o provocará?

O Encenador: O aparecimento de um homem que reúna, na sua pessoa,


todas as qualidades que fazem um mestre do teatro e a renovação do teatro
como instrumento. Quando esta se completar, quando o teatro for uma
obra-prima de mecanismo, quando se tiver inventado a sua técnica
particular, engendrará sem esforço a sua própria arte, uma arte criadora. [...]

O Amador de Teatro: Quer dizer, pelo vosso encenador ideal.

O Encenador: Precisamente. No começo desta conversa disse-vos que


o Renascimento do Teatro tinha por ponto de partida o Renascimento do
encenador. No dia em que este compreender a adaptação verdadeira dos
atores, dos cenários, dos figurinos, das iluminações e da dança, saberá,
com o auxílio desses diferentes meios, compor a interpretação e adquirirá,
5 - CRAIG, Edward Gordon.
Segundo diálogo entre um a pouco e pouco o domínio – do movimento, da linha, da cor, dos sons,
profissional e um amador de das palavras que escorrem naturalmente, e, nesse dia, a Arte do Teatro
teatro. In: Da Arte do Teatro.
(primeira edição 1905). Lisboa:
retomará o seu lugar, será uma arte independente e criadora, e não mais
Ed. Arcádia, 1963, p.191. um ofício de interpretação.5
25 | O Papel do Encenador:
das Vanguardas Modernas ao Processo Colaborativo

A ideia de “encenação” possibilita ao teatro moderno


reinterpretar peças de teatro, clássicas ou contemporâneas,
em uma relação direta com o tempo histórico da montagem do
espetáculo (e não, apenas, levando em conta o tempo histórico
em que se passa a ficção) e, portanto, a partir da estética, ética
e ideologia (explícita ou implícita) dos seus criadores, com a
linguagem específica de um encenador teatral.

No entanto, a partir da contracultura dos anos 1960, a figura


do diretor como “o grande criador” do espetáculo passa a ser
questionada pelos movimentos coletivos. Em consonância com
os movimentos políticos e universitários de maio de 1968, os
grupos de teatro também vão para as ruas. O grupo assume um
lugar de destaque na criação teatral e, como resposta, surge a
criação coletiva, que tira o diretor do centro da criação e coloca o
“coletivo” em seu lugar.

No Brasil, a criação coletiva ganha espaço nos grupos do final


dos anos 1960 e início dos 1970. O Teatro de Arena e o Teatro
Oficina fazem novos experimentos, com criação coletiva, teatro
de coros, participação direta da plateia dentro da cena e ativismo
teatral. Em 1971, a ala jovem do Teatro de Arena escreve em
criação coletiva o espetáculo Doce América, Latino América e o
Teatro Jornal, Primeira Edição. Também em 1971, o Teatro Oficina
faz uma grande viagem pelo Brasil chamada Utropia (Utopia
dos Trópicos), apresentando O Trabalho Novo - manifestações
teatrais na rua em formato de happenings – que, por sua vez, dá
origem, em 1972, a Gracias Señor, também construído em criação
coletiva. Em 1973, o Teatro Oficina, que sempre se organizara
como uma pequena empresa teatral, vira a Comunidade Oficina
Samba e parte para o exílio...
O Teatro de Arena no espetáculo

Arena Conta Zumbi (1965).

Foto: Benedito Lima de Toledo/

/Acervo Flávio Império.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 26
27 | O Papel do Encenador:
das Vanguardas Modernas ao Processo Colaborativo
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 28

Nos anos 1970 e início dos 1980 é a


vez de grupos jovens de atores, que
também criam seus espetáculos em
coletivo, como Asdrúbal Trouxe o
Trombone (RJ); Pod Minoga e Ponkã
(SP) e Grupo Galpão (MG).

Em 1976, Antunes Filho e Naum Alves


de Souza reúnem jovens atores em
uma pesquisa cênica a partir do livro
Macunaíma, de Mário de Andrade.
Foram aproximadamente 18 meses
de pesquisa cênica dos atores - já
então chamados de workshops - sob a
regência de Antunes, que deu origem
ao espetáculo Macunaíma (1978), do
grupo Pau Brasil. Essa experiência se
transfere para o Centro de Pesquisa
Teatral, do SESC, coordenado por
Antunes, como uma metodologia de
trabalho para adaptar obras literárias
brasileiras para o teatro.
O CPT do SESC no

espetáculo Macunaíma,

dirigido por Antunes Filho (1978).

Foto: Emilio Luisi.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 30

Essas experiências passam de boca em boca


e chegam, no meio dos anos oitenta, às
universidades, escolas de teatro e aos grupos de
teatro amador ou universitário, e são incorporadas
de formas diversas.

No início dos anos 1990, na Escola Livre de Santo


André, Antônio Araújo e Luís Alberto de Abreu
nomeiam a prática desses grupos e escolas
com o nome de:
31 | O Papel do Encenador:
das Vanguardas Modernas ao Processo Colaborativo

Processo Colaborativo.

No processo colaborativo6, a pesquisa cênica é realizada


coletivamente, através de cenas criadas pelos atores, porém, ao
contrário da criação coletiva, a finalização do texto é realizada
por um dramaturgo; a encenação cabe ao diretor; o desenho do
cenário, ao cenógrafo; e assim por diante, ou seja, são mantidas
as funções de uma equipe de criação do espetáculo teatral. Porém,
o conceito da escritura do texto e da encenação é pesquisado em
sala de ensaio, a partir da elaboração coletiva sobre um tema, um
mito, uma obra literária ou qualquer matéria original a ser adaptada
para o teatro, que é desconstruída e reconstruída cenicamente.
Normalmente o procedimento de reconstrução parte de workshops
realizados pelos atores durante a primeira fase do processo de
trabalho. Esses workshops são cenas combinadas ou improvisadas
que pressupõem um conceito, uma proposta pessoal idealizada
por um ator que, nesse momento da criação, pode propor uma
cenografia, uma luz ou uma adaptação textual própria, urdidos
da forma que o autor da cena considerar importante para a plena
comunicação de sua ideia cênica. Em um segundo momento,
o dramaturgo e/ou o encenador realiza seu trabalho de criação,
lançando mão da pesquisa realizada por todos. Dessa forma, por
exemplo, costumamos dizer que o texto é escrito pelo dramaturgo,
em processo colaborativo com um grupo ou coletivo de teatro. 6 - Sobre o processo colaborativo,
Exatamente por ser uma prática realizada por grupos de teatro que ver a tese de doutorado de
Antônio Araújo, no programa de
têm um trabalho continuado, cada grupo acaba desenvolvendo
pós-graduação em Artes Cênicas
procedimentos específicos de trabalho em processo colaborativo. da Escola de Comunicações e
Em quase todos os casos, por mais que a finalização do espetáculo Artes da Universidade de São
Paulo: A Encenação no Coletivo:
dependa dos diferentes criadores, em suas funções determinadas, o desterritorializações da função do
conceito do trabalho é coletivo. diretor no processo colaborativo.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 32

A partir dessa rápida contextualização,


podemos perceber como a encenação
deixou de ser uma função que depende
da criação centralizada em uma única
pessoa, o diretor ou encenador, como
propunha Gordon Craig.

No entanto, se o diretor deixou de ser o


centro das formas do espetáculo, por outro
lado, ele é o responsável por construir os
caminhos da criação em coletivo.

A constituição e desenvolvimento de um
processo em coletivo demanda novos
grandes desafios ao diretor teatral e
propõem uma relação intrínseca entre
a direção teatral e a pedagogia, assim
como uma relação maior entre a pesquisa
cênica e outras áreas do conhecimento
humano como a literatura, a história, a
sociologia, a política e a antropologia.
O teatro, como sempre, transforma-se
intrínseca e estruturalmente junto com
as sociedades humanas.
O Teatro da Vertigem no

espetáculo O Paraíso Perdido.

Direção de Antônio Araújo (1992).

Foto: Cláudia Calabi.


PEDAÇOS DE
PENSAMENTOS
Marcio Abreu1
(CURITIBA/PR)
1 - Marcio Abreu é dramaturgo, diretor e ator.

Criou e integra a Companhia Brasileira de Teatro,

sediada em Curitiba (PR). Desenvolve projetos de

pesquisa e criação de dramaturgia própria,

releitura de clássicos e encenação de autores

contemporâneos inéditos no País.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 36

EU ESTIQUEI MINHA ALMA COMO UMA CORDA


MALABARISTA DE PALAVRAS EU ANDO SOBRE O VAZIO.

(VLADIMIR MAIAKOVSKI)
37 | Pedaços de Pensamentos

O vazio a cada vez

Meus primeiros impulsos em relação ao teatro provavelmente estão ligados ao fascínio


pelo desconhecido, à curiosidade irresistível por aquilo que não está em primeiro plano,
pelo que não é evidente numa primeira camada de percepção, pela necessidade
incontrolável de trocar de roupa, trocar de pele, falar novas línguas, inventar um mundo e
viver nele. Uma espécie de negação inconsciente da realidade ou do que o senso comum
costuma chamar de realidade. O medo atávico da vida ordinária organizada em seus rituais e,
sobretudo, uma mistura contraditória de medo e desejo de tocar o outro.

Na minha memória de espectador precoce encontro meu olhar sempre atento ao que
aparentemente não deveria ser o foco das atenções. Lembro-me de olhar invariavelmente
para as coxias, para os refletores, tentando entender os ângulos e a mágica da luz, de olhar
para o público atrás de mim; lembro-me de observar a reação das pessoas, de olhar fixo
para o ator que escuta enquanto espera a deixa para dar sua réplica; lembro-me de ouvir
os barulhos acidentais vindos dos bastidores, tentando imaginar como seria o mundo por
trás de tudo, o avesso das imagens criadas diante de mim, o outro lado do bordado;
lembro-me da enorme dificuldade em ouvir e de como as palavras no teatro pareciam muitas
vezes desprovidas de impulso e sonoridade, como se, mesmo ouvindo, eu não conseguisse
escutar, como se, apesar de emitidas pelos atores, as palavras estivessem ausentes;
lembro-me de pensar nisso, de me achar surdo e do quanto isso me impressionou e
ainda me causa espanto.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 38

Muito cedo, a noção dos enigmas do teatro. Por que ouvimos alguns atores
e outros não? Por que ouvimos alguns textos e outros não? Por que estamos
sem estar? O que é a presença? O que é capaz de preencher um espaço? De
repente, um sentido novo emerge, ainda enigmático, e me faz perceber, ao
longo do tempo, a fundamental noção de vazio. A importância do vazio nasce,
para mim, da relação objetiva com uma espécie de sensibilidade que foi se
desenvolvendo a partir dessas e de outras questões e, hoje, em quase todos
os meus processos criativos eu começo no vazio para terminar nele.

A consciência de certa noção do vazio, ainda intuitiva,


atrelada às minhas primeiras impressões do teatro,
foi ganhando dimensão na minha vida e, mais tarde, na
minha experiência como artista. Ao escrever um texto, toda a
elaboração prévia que, eventualmente, eu possa ter feito dá
lugar ao momento presente do embate com as palavras.
Ao encenar uma peça, todo o trabalho anterior de concepção
de um espetáculo dá lugar ao encontro real com os atores e a
equipe numa sala de ensaio. Faço, com frequência, o exercício
do esquecimento. Tento evitar processos nos quais o caminho
seja uma linha reta da ideia inicial até a execução da mesma.
Não entendo a criação como a execução de uma ideia, mas
como um movimento rizomático, mais complexo, permeável
ao imprevisto, aberto às influências externas, alimentado e
redirecionado conforme seus múltiplos impulsos internos,
capaz de reverberar-se como experiência e não apenas de
realizar-se de maneira eficiente como projeto.

Por isso, o vazio a cada vez, o começo e o fim de


tudo, em que a presença é convocada a vibrar, em
que o movimento em direção ao outro reinaugura
novas possibilidades de vida, em que uma palavra
enunciada ganha consistência de corpo, em que
o corpo expande-se em poesia, em que o mínimo
gesto adquire concretude e imagens se formam e
sentidos se desdobram.
39 | Pedaços de Pensamentos

Olhar de dentro

É recorrente a atribuição do “olhar de fora” ao encenador.


Frequentemente encontramos, mesmo entre profissionais,
a noção sobre essa pessoa que vê os ensaios e dá um retorno aos
atores ou, mais especificamente, o sujeito que tem uma visão do
todo e, protegido por ela, não tem o mesmo nível de exposição
individual como pode ter um ator.

Evidentemente esse pensamento tem bases históricas, já que


a figura do encenador é bastante recente na história do teatro.
Anteriormente encontramos referências, por exemplo, em
Aristóteles, que se refere à execução técnica do espetáculo, e
em Hegel, que se refere à execução exterior da obra dramática.
Ambas, noções que ajudam a corroborar a ideia do “olhar de
fora”. Foi em 1887 que André Antoine abriu o seu Teatro Livre e
assinou pela primeira vez uma obra como diretor (ou encenador).
Antes disso não havia um termo para designar essa função,
já que era associada simplesmente à reprodução de padrões.
Somente no século XX, com o teatro moderno, é que ela ganha
verdadeiramente status de invenção. Antonin Artaud dirá que a
encenação é “numa peça de teatro a parte verdadeiramente e
especificamente teatral do teatro”.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 40

Um encenador habita o cerne de uma criação, a parte mais


interior de uma experiência. Seu olhar é de dentro, mesmo que
consiga e deva olhar de fora em momentos cruciais. No que se
refere ao meu trabalho, estou quase sempre no olho do furacão,
urdindo de lá toda uma rede de relações estéticas, pessoais e
sensoriais que, pouco a pouco, vão se organizando segundo as
regras próprias de cada processo criativo.

Sempre que um colega ou um ator me pede para ser um “olhar


de fora”, não entendo muito bem o que quer de mim. Se olho
de fora, estou fora, completamente. Então não precisam de mim.
Procuro ser íntegro em tudo o que faço, procuro estar presente.
Só estou se for dentro. Se olho uma paisagem, estou dentro
dela, percorrendo seu relevo. Se olho uma fotografia,
meu olhar percorre internamente sua narrativa imagética.
Se olho um ator que ensaia uma cena, sou o ator e a cena.
Se tenho uma ideia sobre algo, sou tomado por ela. Se quero
estimular sensivelmente um ator, preciso estar lá, com ele.
Se quero me lançar no desconhecido, não posso enviar alguém
no meu lugar. Posso convidar pessoas e vamos todos juntos,
o que é bastante frequente. Se crio imagens, faço parte da
composição, ainda que sutilmente, discretamente ou de
maneira quase imperceptível, o que é sempre melhor.

Inscrição no espaço

“A imagem jamais é uma realidade simples”,


diz Jacques Rancière no seu livro O destino das
imagens. E complementa dizendo que a imagem
na arte não é uma exclusividade do visível,
que existe o visível que não produz imagem e
existem imagens que são totalmente produzidas
por palavras.
41 | Pedaços de Pensamentos

No teatro certamente podemos produzir


imagens através das palavras, mas não apenas isto.
O agenciamento de tantos elementos que confluem
para a manifestação de algo, um recorte preciso
de tempo, um lugar determinado, dimensões
específicas, sonoridades escolhidas, cores, texturas,
vibrações, presenças determinantes, tudo isso
concorre para a criação de uma peça sob o ponto
de vista da encenação, mas não apenas isto.

Em 2010 escrevi e encenei a peça Vida, junto com a Companhia


Brasileira de Teatro. Dramaturgia e encenação são indissociáveis
na perspectiva desse trabalho, assim como em quase todos
que tenho criado nos últimos anos, mesmo em encenações de
textos preexistentes. Em Vida, a sala vazia onde os personagens
se encontram é tão fundamental quanto o texto que o Rodrigo
fala no prólogo, descrevendo obviedades astronômicas como se
fossem grandes novidades. A irrupção muda e molhada da Nadja
meia hora depois de começada a peça é tão importante quanto
as palavras emocionadas do Ranieri depois de mostrar todas as
suas tatuagens. O choro-riso histérico da Giovana é tão gerador
de sentidos quanto a grande parede que se desloca ampliando e
reduzindo o espaço. Os diálogos prosaicos são tão poeticamente
ativos quanto a poesia mais pura capturada do anônimo polonês
ou as palavras escritas por mim ou inspiradas nos atores e nos
ensaios. As músicas e os silêncios são “textos”. A luz, discreta
na maior parte do tempo e espetacular em algumas cenas
específicas, tem função dramatúrgica. A duração do espetáculo
provoca percepções, assim como a cena no escuro ou a fuga de
um ator desesperado que atravessa a parede.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 42

Num espetáculo de teatro, tudo se inscreve


no espaço, como se num livro fosse.
Um livro tridimensional, pulsante, vivo.
Imagens múltiplas, perceptíveis na cena e na
projeção do imaginário de cada pessoa que
faz parte do público. O lugar da encenação é o
“entre”, onde todas as imagens nascem e morrem
simultânea e constantemente, onde o que emana
da cena é recriado em e por cada pessoa do
público, onde tudo é necessariamente efêmero e
jamais poderá se repetir. E, quem sabe, essa pode
ser sua maior e melhor dimensão política hoje.

Sempre que sou chamado a pensar sobre


encenação e possibilidades acerca de sua prática
me dou conta de sua potência como ato criativo
e, ao mesmo tempo, do quanto seu lastro
histórico é recente. Sempre que me vejo diante do
enigma dessa arte e suas frequentes revoluções,
parece-me inevitável abordar seus pontos de
indissociabilidade com o campo da dramaturgia.
Foto: Marco Novak
Vida (2010).
43 | Pedaços de Pensamentos
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 44

Formas de escrita

E são muitas as formas de escrita e daquilo que


eu chamo de “inscrição”. As que conhecemos
e as que esperam ser inventadas. Refletindo
sobre alguns dos meus trabalhos recentes,
tentarei destacar aspectos bastante diversos
de seus processos e estruturas.

Nômades é uma peça que estreei em outubro


de 2014, no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro,
com as atrizes Andrea Beltrão, Mariana Lima e
Malu Galli. O texto foi escrito por mim e pelo
filósofo e dramaturgo Patrick Pessoa, com a
colaboração das atrizes e a participação de
Newton Moreno no período de pesquisas.
Grande parte dessa dramaturgia foi criada
simultaneamente à própria peça, durante
o período de ensaios. Texto e cena são
absolutamente complementares. Há cenas
sem palavras, mas que estão no corpo do texto.
Sua estrutura absorve a experiência da sala de
ensaio e filtra todas as referências pessoais,
teóricas, literárias e musicais estudadas.
Foto: Nana Moraes.

Foto: Nana Moraes.


Nômades (2014).

Nômades (2014).
45 | Pedaços de Pensamentos
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 46
47 | Pedaços de Pensamentos

Enquanto estamos aqui é um trabalho solo de dança contemporânea, com a coreógrafa


Marcia Rubin, que dança e atua na peça. A estreia foi em 2013 no Espaço Sesc, no Rio de Janeiro.
A dramaturgia é fortemente influenciada pelo corpo e foi criada por mim em parceria com a
Marcia e o dramaturgo Pedro Kosovski. O dispositivo da peça é uma grande mesa ao redor da
qual o público se instala. A cena acontece principalmente sobre a mesa, mas também nos espaços
em torno. O texto contém uma sequência de descrições de imagens, interpolação de poesia, lista
de ações, falas diretas ao público, tudo isto num contexto narrativo múltiplo em articulação com o
corpo e o espaço. A dramaturgia são todos esses aspectos, assim como a encenação.

Esta Criança é uma peça dirigida por mim, com texto


do dramaturgo francês Joël Pommerat. É a primeira
colaboração entre a Companhia Brasileira de Teatro
e a atriz Renata Sorrah. Nós estreamos em outubro
de 2012 no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de
Janeiro. O texto é uma composição de dez cenas que
têm como ligação o tema – relações extremas entre
pais e filhos – e a radical concisão. As situações que
constituem cada uma das cenas são o motor dessa
dramaturgia, na medida em que se evidenciam em
primeiro plano, antes dos personagens, desviando
do drama e ampliando-se como objeto teatral. Nossa
experiência foi, resumidamente, a de verticalizar na
essencialidade dessas situações habitadas por vinte
e dois personagens abordados por apenas quatro
atores – Renata, Giovana Soar, Ranieri Gonzales e
Edson Rocha – e de mergulhá-los num ambiente
escultórico, quase como uma instalação, que rompe
as fronteiras entre palco e plateia. Além disso, a
sonoridade e a luz com função dramatúrgica.
Foto: Gilberto Evangelista.
Esta Criança (2012).
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 48
49 | Pedaços de Pensamentos

Taubira é uma performance que criamos em 2013 durante


as pesquisas para a peça brasil, que ainda vamos estrear
em setembro de 2015, com a Companhia Brasileira. Fomos
convidados pelo Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, para
criar uma cena curta na sua comemoração de 15 anos. Taubira
é um estudo sobre discursos contemporâneos e sobre a escuta.
Estão em cena Nadja Naira e Rodrigo Bolzan, dirigidos por mim.
A dramaturgia, colaborativa, é uma recolha de discursos da
ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, reorganizada
entre pausas, erros e gravações em off na voz dos atores e
articulada com a manifestação da presença de ambos, diante
do público, em estado de escuta e reação afetiva ao que
ouvem. A ação se desenvolve na ampliação da experiência em
compartilhamento radical com o público e reconfiguração dos
lugares sociais preestabelecidos numa sala de teatro. A certa
altura, atores e público beijam-se, trocam afetos e humores e
ouvem o discurso agora diretamente enunciado pelos atores.
No ato está a encenação.
Foto: Guto Muniz
Taubira (2013).
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 50

O ator

Não entendo o ator como centro no teatro. Não se trata de haver centros ou bordas.
A criação teatral é necessariamente a coordenação de vários campos de ação, de ofícios os
mais diversos, de saberes complementares, de várias artes e de muitas pessoas. Não se trata
de dar mais ou menos importância a isso ou aquilo. Tudo é importante. Tudo é fundamental.
Não podemos abrir mão de nada. No entanto, é evidente que o aspecto presencial do teatro
é sua força e é o que o distingue de outras experiências artísticas. Nessa perspectiva,
o ator manifesta o fenômeno, se oferece ao encontro, convoca o público, se faz presença.
E é ali que tudo acontece, onde todos estão. E aí vem a maravilha. O ator inventor de línguas,
mastigador de palavras, incendiário de espíritos, ampliador de corpos e de espaços, pintor de
silêncios, arrebatador de almas, provocador de escândalos, formigador de risos, estripador
de chatos, politizador de mortos, sonhador de mundos, ladrão no escuro, pilantra de marca
maior, a dor de todo mundo, o trabalhador das madrugadas, o faminto depois das peças,
o doador universal!

Tenho tido a chance de trabalhar em companhia e desenvolver ao longo do tempo parcerias


com atores inestimáveis em reiteradas criações. Trabalhar muitas vezes juntos, certamente,
ajuda a verticalizar as propostas, a entender funcionamentos, a aprimorar técnicas e a refinar
sensibilidades. No diálogo constante, encontramos códigos, inventamos outros, construímos
nosso léxico e os resultados incorporam os frutos da troca em longo prazo.
51 | Pedaços de Pensamentos

Por outro lado, é importante encontrar novos parceiros, colocar-se


em novas relações. Dentro ou fora da companhia. Percebo que,
na minha história com a Companhia Brasileira, tem sido essencial
a abertura, a permeabilidade e os encontros. Essa dinâmica de
existência e funcionamento me estimula e me interessa.

Tenho pensado o teatro como forma de vida há muito tempo.


Escrever e encenar requer dedicação absoluta, alma aberta,
escuta apurada, leitura constante e voraz, vontade de mudar,
alguma utopia, percepção e sensibilidade social, politização, amor
pelo outro, necessidade de gente, pensamento estético, horas
sem dormir, espírito contraditório, estômago, humor, interesses
múltiplos, disposição pra inventar o que ainda não existe.
A DIREÇÃO TEATRAL
E A PESQUISA:
ESCOLAS E GRUPOS
André Carreira 1
(FLORIANÓPOLIS/SC)
1 - André Carreira é diretor dos grupos Experiência

Subterrânea (Florianópolis) e Teatro que Roda

(Goiânia). Professor do Programa de

Pós-Graduação em Teatro e Mestrado

Profissional em Arte (UDESC).


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 54

ESTE ARTIGO BUSCA REFLETIR sobre como nos últimos


anos é possível observar uma aproximação entre pesquisa
universitária e as práticas dos grupos de teatro. Esse processo
tem produzido influências tanto nas práticas criativas grupais
como na esfera da universidade, criando um ambiente rico em
novas experiências artísticas.

A reflexão que apresento aqui tem como objetivo mostrar como


é importante pensar sobre como as atividades dos grupos têm
repercutido nas pesquisas universitárias, criando um espaço
estreitamente relacionado com a experiência criativa, o que
tem aberto novos caminhos para o teatro considerado de
1

experimentação. Por outro lado, este texto também pretende


discutir como as práticas das universidades têm modulado
formas de trabalho dos grupos, criando vasos comunicantes
cada vez mais comuns entre ambos os campos.

Pensar as interfaces entre esses dois universos que parecem


cada vez mais articulados e mutuamente comprometidos é hoje
uma forma de colocar em discussão os projetos curriculares dos
cursos universitários, bem como é tratar de olhar criticamente
para os discursos e experiências grupais. Faço isso desde
minha perspectiva de professor universitário e pesquisador que
também é diretor, com um trabalho constante no contexto do
teatro de grupo.

55 | A Direção Teatral e a Pesquisa: Escolas e Grupos

Para começar a abordar o tema deste artigo é preciso reafirmar


que o teatro de grupo se caracteriza por sua ampla diversidade
de formas e modelos de organização, o que dificulta pensar
esse teatro como um todo homogêneo cujos processos sejam
de fácil identificação. Mesmo que seja impossível identificar
uma homogeneidade, podemos observar que o teatro de
grupo representa um movimento que define um campo teatral
específico que produziu novidades na cena brasileira nos últimos
trinta anos. Interessa particularmente compreender como esse
movimento, através de suas práticas políticas e de discursos que
particularizam as produções teatrais pela marca dos processos
coletivos, representa a reivindicação de uma independência
com relação aos modelos expressivos da indústria cultural.
Exatamente por isso podemos visualizar um campo de trabalho
bem estabelecido que permite pensar o teatro de grupo para
além de uma identidade claramente formulada.

Também considero importante identificar, nesse contexto, um


teatro que podemos chamar de “teatro de experimentação”, que
pode ou não ser produzido na modalidade grupal, mas cujo espaço
na cena nacional pode ser percebido como força alternativa ao
teatro do mercado do entretenimento e, portanto, estaria próximo
à ideia da pesquisa tal como estou discutindo neste artigo.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 56

Certamente, tais delimitações são incapazes de descrever a


complexidade da cena teatral e, por isso, são apenas tentativas
de organizar o olhar que busca compreender os processos que
marcam o teatro tanto no seu aspecto organizacional como
no que se refere aos seus procedimentos criativos. Do mesmo
modo, me refiro à “universidade” sabendo que não é possível
dizer que todos os departamentos e programas de pós-graduação
de nossas universidades sejam idênticos. Sei da diversidade, mas
penso que há um campo que reconhecemos a partir de práticas
assemelhadas. Então, desde já, temo pelas generalizações nas
quais meus argumentos podem incorrer, mas penso que isto será
consequência do esforço por refletir sobre um quadro complexo
de ideias, culturas e práticas criativas.

Ao refletir sobre os vínculos entre as práticas realizadas nas


universidades e nos grupos teatrais, particularmente aquelas
práticas consideradas como pesquisa, é interessante observar
que nos últimos trinta anos se deu um fenômeno de aproximação
entre o mundo dos artistas e o das universidades. Isso se deveu
ao fato de que muitos artistas buscaram as universidades como
sítio de trabalho, como uma alternativa de manutenção de
seu trabalho profissional criativo. A expansão dos cursos de
graduação e pós-graduação em artes cênicas em todo o território
nacional abriu um mercado de trabalho que absorveu - e
absorve - inúmeros artistas com trajetórias consolidadas em seus
respectivos contextos locais e regionais, e até mesmo nacionais
e internacionais. O trabalho na universidade oferece estabilidade
financeira, e isto permite uma liberdade que repercute, via de
regra, em projetos grupais que exploram territórios teatrais
experimentais. Ao não depender da venda de espetáculos para
sua subsistência cotidiana, muitos desses atores-diretores-
professores podem optar livremente pelo teatro que mais
desejem realizar. Isso é mais comum no caso dos diretores
porque existe uma aproximação entre a especificidade dessas
duas funções: o falar, o organizar, o encabeçar projetos como
eixo da tarefa criativa, e dar aulas.
57 | A Direção Teatral e a Pesquisa: Escolas e Grupos

Tal vínculo, ao permitir a subsistência de tais artistas e permitir


um amplo espaço de trabalho, tem contribuído para a fixação
destes em suas cidades, e também produz uma interface de
procedimentos criativos. E esse é um elemento central na
intensificação dos discursos dos grupos teatrais que se referem
à pesquisa, e no avanço de formas de trabalhar que incorporam
muitos elementos que pertencem originalmente à pesquisa
realizada nos âmbitos universitários.

Ainda há os aspectos políticos relacionados com a reivindicação da pesquisa como um


lugar de poder. Ao buscar novos espaços políticos e de financiamento, artistas da área das
artes cênicas ocuparam lugares institucionais, especialmente universitários, e começaram a
reivindicar que o fazer artístico era também pesquisar. No seio desse processo, que se deu
particularmente durante a última década do século XX, foi se consolidando um pensamento
que compreende nossa produção de espetáculos em condições de igualdade como a
produção de artigos e livros, e foi isto que permitiu a inclusão das artes no sistema nacional
de pesquisa e ampliou o espaço da área nas avaliações do CNPq e da CAPES2.

A implantação do sistema universitário relacionado com o ensino


do teatro pode ser considerada bastante recente no Brasil. Trinta
anos atrás eram escassos os cursos de graduação em teatro ou
dança e inexistentes os programas específicos de pós-graduação
na área. Atualmente, a presença de tais cursos na quase
totalidade das capitais, e muitas vezes a existência de mais de um
curso de graduação por cidade, além dos cursos de mestrado e
doutorado, criou um ambiente que se expande constantemente.
Isso gerou movimentos de criação de grupos e coletivos que
nasceram dentro das universidades, mas já não como os antigos
grupos amadores oriundos dos claustros universitários3, senão
2 - Comissão do Aperfeiçoamento
como agrupações que se organizam para construir alternativas
do Pessoal do Ensino Superior,
de criação e profissionalização. Certamente, os membros de agência federal que regulamenta
tais coletivos trazem em sua experiência elementos da pesquisa e fomenta a pós-graduação no
Brasil.
tal como ela é realizada na universidade, e, mesmo quando se
estrutura uma crítica a tal forma de pesquisar, sua substância 3 - Cito como exemplo o Oficina,
que nasceu na Faculdade de
estará ali como elemento constituinte, ainda que mais não seja Direito do Largo de São Francisco,
que como baliza contra a qual o grupo pode se opor. em São Paulo.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 58

Outra característica importante desse processo é a formação de uma nova camada de diretores
que têm seu primeiro movimento criativo no interior de disciplinas de direção teatral. Isso
constitui toda uma novidade para a cena brasileira na qual tradicionalmente a formação
dos diretores se deu no bojo das atividades das companhias. Talvez ainda seja cedo para
identificarmos todas as implicações disso na conformação do nosso teatro, pois a proximidade
do evento dificulta o estabelecimento de um quadro acabado. Mesmo assim, é possível dizer
que o aluno que se forma como diretor no contexto universitário tem pelo menos uma prática
de pensar a cena a partir de abordagem ampla que se relaciona com uma compreensão da
história do teatro e da estética teatral. O fato de que os alunos tenham aulas de história do teatro,
estética teatral e participem de eventos acadêmicos permite pensar pontos de partida para a
direção supondo abordagens questionadoras que terão pelo menos a capacidade de se situar
no complexo quadro da cena contemporânea para se estabelecer o próprio projeto de direção.
A formação oferecida nas universidades tem a tendência a não pensar a direção teatral apenas
como ofício, mas, sobretudo, como uma função criativa relacionada com a invenção da cena,
como ato de autoria que reinventa o teatro.

Logicamente, tal ponto de vista não descreve a totalidade do que


acontece nos nossos cursos universitários, mas considero que
representa uma imagem bastante acurada daquilo que ocorre
em grande parte dos nossos campi. Nossa tradição universitária
em artes cênicas não é a formação para o mercado. É lógico que
nem podemos ter certeza da existência de um mercado tal como
podemos identificar nos Estados Unidos, por exemplo, onde os
programas universitários têm um claro perfil relacionado com a
demanda das diferentes camadas da indústria do entretenimento,
ou dos sistemas alternos a tal indústria.
59 | A Direção Teatral e a Pesquisa: Escolas e Grupos

No caso do Brasil, podemos considerar que a universidade tem


cumprido um papel fundamental de construção do campo do
teatro e da dança, especialmente o experimental. Não é raro
perceber a existência do curso de teatro como responsável pelo
crescimento dos espetáculos na cidade, pela abertura de políticas
públicas de financiamento, e até eventuais institucionalizações
de espaços de crítica nos meios de comunicação de massa, ainda
que muito incipientes.

A expansão mencionada acima tem como principal repercussão


a consolidação de sistemas teatrais locais que cada vez mais
criam tensões criativas com a centralidade de São Paulo,
reforçando a lógica local do fazer teatral. Apesar de que
a corrente migratória que se dirige a esse centro ainda se
mantenha, podemos dizer que isto tem se dado cada vez
mais sob o formato do coletivo que busca conquistar espaços
artísticos em São Paulo, sem, no entanto, abandonar suas
respectivas cidades como lugar de trabalho. É difícil imaginar
tal fenômeno sem a contenção que as instituições universitárias
oferecem para vários artistas que não querem abrir mão de sua
independência criativa em prol de uma subsistência puramente
baseada no mercado da circulação de espetáculos.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 60

Destaco como umas das principais contribuições do movimento de


teatro de grupo no período mencionado anteriormente, além dos
discursos sobre o coletivo, a reivindicação do fazer teatral como
prática de pesquisa. Isso pode ser facilmente observado pelo fato
de que se fez comum nas falas de diretores e atores a referência às
suas práticas como experiências de pesquisa. Também é possível
constatar o crescente número de livros publicados por grupos
de teatro que não se dedicam apenas a registrar a produção e a
história dos coletivos, mas, sobretudo, estabelecer as bases das
pesquisas grupais, buscando difundir princípios e procedimentos
descritos como resultado de investigação.

Para pensar sobre isso é necessário discutir, ainda que


brevemente, de que tipo de pesquisa estamos falando. Ainda
que seja possível ampliar o conceito de pesquisa de forma a
contemplar os processos artísticos como prática de pesquisa,
não se pode considerar que todo e qualquer processo de criação
seja necessariamente parte de uma pesquisa, porque existem
peculiaridades em cada uma destas práticas.

Atualmente, até as agências de fomento de pesquisa como o CNPq4


contemplam a produção artística como produção de pesquisa,
mesmo assim, fazer a distinção entre a arte como pesquisa e a
livre criação artística não é simples. O mais prático, nesse caso,
seria compreender que o artista pesquisador sempre busca ir além
do seu objeto de criação, e seus processos não se esgotam na
conclusão do seu espetáculo. Mas, certamente, isso é só uma forma
de instrumentalizar nosso olhar sobre essa complexa realidade que
envolve muitas formas de trabalhar, investigar, registrar e refletir
sobre os processos artísticos. É importante considerar que o simples
4 - Conselho Nacional de pensar o ato da criação como pesquisa já implica introduzir no
Desenvolvimento Científico e cotidiano do trabalho criativo a possibilidade de que os processos
Tecnológico, órgão federal
dedicado ao fomento da pesquisa
de encenação estejam comprometidos com a transformação da
científica. própria linguagem teatral.
61 | A Direção Teatral e a Pesquisa: Escolas e Grupos

Apesar das comuns generalizações, o que podemos


considerar pesquisa na área do teatro? Em primeiro
lugar, é importante dizer que pesquisa não é apenas
aquilo que se faz no contexto de uma universidade, e
muito menos seria somente aquilo que tem um formato
supostamente científico, estruturado sob regras e
procedimentos estabelecidos pelas normas acadêmicas.
Compreendo pesquisa como uma atividade que
questiona a linguagem artística produzindo novas
formas e novos procedimentos de criação.
Pesquisar é produzir pensamento sobre o teatro.

Pesquisar é diferente de estudar, e perceber tal


diferença é importante para compreender a dimensão
do ato de pesquisar como parte do processo de
criação artística. Quando nos dedicamos a conhecer
um determinado objeto, temos que estudá-lo, e será a
partir dos conhecimentos adquiridos que poderemos
levantar questões que nos permitam empreender
processos de investigação, a partir dos quais
poderemos produzir novos conhecimentos. Assim,
a pesquisa será aquilo que nos leva a reinventar
nossa arte colocando em questão os conhecimentos
já consolidados na área, ao mesmo tempo que
aprimoramos os instrumentos de análise das formas
artísticas e dos procedimentos de criação.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 62

Exatamente por isso, relaciono de forma mais direta a pesquisa com os


processos de direção teatral, ainda que no contexto dos grupos isto não
seja uma exclusividade. A direção é a função que surge exatamente no
momento em que a cena moderna coloca a tarefa de reformular o teatro,
rompendo com os modelos canônicos do romantismo. No final do século XX
começou-se a pensar o processo de criação teatral como um processo
interpretativo cuja presença da direção implicava a autoria daquilo que
posteriormente se usou chamar como “texto espetacular”. Essa autoria pode
ser entendida também como uma forma de pesquisar a linguagem,
pois dirigir é uma função que vai além do ofício de montar textos dramáticos
de acordo com os preceitos da dramaturgia.

Além disso, podemos considerar que os procedimentos de atuação também


têm sido foco de interesse da pesquisa e que os próprios atores têm se
dedicado a abordar suas práticas com um olhar investigativo. Experiências
como as de Jerzy Grotowsky e de Eugenio Barba, entre outros, estimularam a
entrada em cena de atores como sujeitos da pesquisa teatral, o que fez ainda
mais complexa a abordagem desse tema.

Para aprofundar essa questão é importante também entender como a


influência de grupos estrangeiros, particularmente europeus, contribuiu para
introduzir entre nós a ideia tanto da cena como pesquisa, consorciada como a
preocupação com a realização de práticas pedagógicas. Nesse sentido,
podem-se destacar as visitas ao continente sul-americano de grupos
relacionados à Internacional School of Theatrical Anthropology (ISTA).
63 | A Direção Teatral e a Pesquisa: Escolas e Grupos

É impossível não considerar o aparecimento de novas formas


de trabalho que atualmente são associadas com o teatro de
grupo sem perceber como predominam as ideias de um projeto
pedagógico baseado em pesquisa coletiva que se fundamenta em
exercícios de teorização sobre as práticas grupais. Isso estimulou
a instalação no ambiente dos coletivos de procedimentos
que, partindo do treinamento do ator e se combinando com o
registro das práticas criativas, evoluíram para a ideia da pesquisa
grupal. Esse fenômeno favoreceu a articulação dos grupos com
as práticas universitárias, o que posteriormente produziu um
retorno da universidade ao grupo, em um círculo que teve tanto
aspectos virtuosos como viciosos.

Outro aspecto importante a discutir, quando pensamos a


pesquisa dos grupos teatrais, é o fato de que ela aparece
associada com a implementação de projetos didáticos. Isso
contribui para o fortalecimento dos coletivos, pois favorece a
construção de elementos identitários, o que pode ser considerada
como uma das principais estratégias de sobrevivência dos
coletivos na atualidade. Então, pesquisar seria também articular
discursos que dariam coesão aos grupos, na medida em que
perceber o trabalho criativo como pesquisa implicaria aprofundar
as relações com o próprio processo de criação, e compreender
tais processos para além de práticas de realização de produtos
para o consumo no mercado da cultura. Talvez possamos
dizer que isso particulariza o campo do teatro de grupo, daí a
importância da ideia de pesquisa como eixo da criação. Não
vemos isso associado ao teatro de um modo geral, mas, sim,
com aquele teatro que se define a partir do projeto grupal.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 64

Nesse contexto, que representa uma renovação de procedimentos, a figura da direção


teatral cumpre um papel central como vetor das pesquisas estéticas e técnicas dos grupos.
Historicamente a ideia de pesquisa esteve relacionada com o projeto estético da encenação, e a
direção funcionou como porta-voz da pesquisa. Observando as trajetórias de grupos modelares
do nosso teatro, tais como o Oficina e o Arena, é possível notar como as dinâmicas dos seus
respectivos diretores favoreceram a que estes grupos estabelecessem projetos que hoje em
dia poderíamos considerar como suas “pesquisas”, mas que sempre estiveram fortemente
relacionados com os discursos e práticas de Zé Celso e Augusto Boal.

Apesar de que associamos pesquisa à proposta da direção e quase sempre estamos falando de
uma pesquisa a serviço de um projeto de montagem, é oportuno lembrar diferentes experiências
de investigação que têm como foco a técnica de atuação.

Podemos considerar que “pesquisar” para realizar um espetáculo é uma prática inaugurada pela
brilhante mente de Constantin Stanislavky, que percebeu a importância de produzir conteúdos
que sustentassem o processo criativo da interpretação da atuação e da direção. No entanto,
quando falamos, na atualidade, em pesquisa, é necessário considerar a instalação de processos
de discussão dos materiais do teatro com vistas à abertura de novas relações com a matéria
que constitui nossa arte. Pesquisar é, nesse caso, questionar sempre a natureza do nosso fazer
artístico. Estudamos quando queremos conhecer um objeto. Pesquisamos quando o conhecemos
suficientemente para penetrar suas estruturas de tal forma que possamos modificá-lo.
65 | A Direção Teatral e a Pesquisa: Escolas e Grupos

A função da direção compreendida desde uma perspectiva


que se projeta para além do ofício do sujeito que articula
espetáculos respondendo a uma demanda dada, e pensa
que tal função deve ser exercida como prática que repensa
o teatro como arte, é o que nos permite associar de forma
estreita ‘fazer’ e ‘pesquisar’. Toda pesquisa deve implicar
a possibilidade de uma completa transformação da
compreensão do objeto pesquisado. Este é o risco e esta
é a graça da pesquisa: poder transformar o nosso objeto
de estudo, e ser transformado no processo. Não haveria,
portanto, pesquisa sem o risco do desconhecido, justamente
porque pesquisar é ir além do que conhecemos e somos, é
inventar nossa arte, e reinventar o que esta arte pode.
PLANAR NO
ABISMO EM ÓTIMA
COMPANHIA
Tiche Vianna 1

(BARÃO GERALDO/SP)
1 - Tiche Vianna é atriz, diretora e pesquisadora de teatro,

formada pela Escola de Arte Dramática (EAD/ECA- 1987)

da Universidade de São Paulo. Lecionou (1991/1993) e

coordenou (1997) a Escola Livre de Teatro de Santo André

(SP) e foi professora de improvisação, interpretação e

máscaras no Departamento de Artes Cênicas da Unicamp

(1994/1999). É uma das fundadoras do BARRACÃO

TEATRO – espaço de investigação e criação teatral, onde

coordena o Núcleo de Atores Pesquisadores.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 68

CARO LEITOR OU LEITORA, estamos começando uma


conversa sobre teatro, especificamente sobre a direção teatral
no processo de criação contemporânea, que toma por base o
caráter coletivo e as relações horizontais. Diante disso, não seria
justo que eu não situasse você no contexto a partir do qual faço
minhas reflexões.

Para começar, digo que sou uma diretora que tem formação
de atriz, embora tenha escolhido ser diretora desde o início de
minha formação. Isso significa que não decidi me tornar diretora
enquanto aprendia a atuar, ao contrário, decidi estudar a atuação
para aprender a ser diretora. De certa maneira, isso já diz muito a
respeito do meu olhar sobre a direção teatral.

Acredito que o teatro é eminentemente a arte do ator, isto é,


compreendo que o fenômeno teatral só acontece no encontro
entre o ator e o espectador, através da cena. Então, como
diretora, eu penso: para haver teatro algo precisa acontecer entre
duas partes e, no momento em que isto ocorre, o diretor não é
uma delas. Um diretor pode até estar na plateia, mas, exatamente
quando o teatro acontece, ele não pode fazer nada nem pelo ator,
nem pelo espectador, nem pelo espetáculo.
69 | Planar no Abismo em Ótima Companhia

Um raciocínio como esse me coloca uma pergunta fundamental:


se um diretor não faz parte do ato de realização do fenômeno
teatral, que é uma arte do presente, do acontecimento, então qual
é o seu papel e qual é a sua função no teatro? No meu modo de

Foto: Rodrigo Zanotto


máscaras com atores.
Tiche em trabalho de
pensar e agir, o diretor de teatro pertence ao processo de criação
do espetáculo, que, por sua vez, é o material estético, poético e
político que será utilizado como meio, extremamente importante
na provocação e realização de um acontecimento potente
entre o ator e o espectador.

processo de criação. Foto:


Magalhães e atores em

Neander Heringer.
Tiche Vianna, Ésio
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 70

Então, agora que já disse a você um pouco de como eu


penso e vejo minha função, vou tentar apresentar o modo
como trabalhamos aqui no Barracão Teatro - espaço de
investigação e criação cênica, pra que você possa imaginar
como esse pensamento se dá na prática.

Desde a fundação de nosso grupo, trabalhamos, como tantos outros, com a criação de
espetáculos que partem eminentemente da construção de uma dramaturgia coletiva. Isso
significa que, ao contrário do que ocorre nos processos tradicionais de criação, não partimos
de um texto, mas de ideias e necessidades de expressão sobre temas. Esse tema pode ser
proposto por qualquer um dos integrantes do grupo que sinta a necessidade de mexer com o
material proposto. A partir daí, certamente o propositor começa um trabalho, junto aos demais
integrantes, de “contágio”, que é feito por meio da sedução. Sedução? Sim, claro, sedução!
Ou como você acha que convence alguém de alguma coisa que você queira fazer?

A sedução nada mais é que a apresentação de materiais que possam


contagiar os demais integrantes do grupo. Esses materiais podem vir
através de dinâmicas práticas: treinamentos, improvisações, exercícios e
todo tipo de experimentação cênica, ou por textos técnicos ou literários,
vídeos e filmes que o grupo lê e assiste. Essas propostas são escolhidas
e apresentadas pelo interessado em desenvolver o tema em questão e
acolhidas pelos demais integrantes do processo. No meio dessas ações
também acontecem as conversas e os debates, às vezes com convidados.
Tiche Vianna,

Ésio Magalhães e atores

em processo de criação.
71 | Planar no Abismo em Ótima Companhia

Foto: Neander Heringer.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 72

Contando assim, em parágrafos, linhas, pontuações, sentada


diante do teclado e digitando, apagando, voltando o texto,
revendo palavras, tudo parece extremamente organizado e
simples, mas não é nada disso. Definir processos de criação
dessa maneira é caótico, intenso, por vezes estressante e bem
pouco harmonioso. Isso porque todos queremos fazer a mesma
coisa: um trabalho de criação que consiga expressar os desejos
mais profundos, capazes de afetar espectadores de todos os
tipos, com as mais diferentes vivências e experiências humanas,
e de fazer alguma diferença na vida deles, assim como na nossa.

Nesse primeiro momento de um processo de criação, não há a


menor diferença de função ou a menor diferença hierárquica entre
um diretor e qualquer outro artista criador. Todos têm o mesmo
peso e a mesma medida nas decisões, escolhas, dinâmicas de
experimentação, etc., e todos colaboram com todas as áreas,
questionando, complementando e organizando o trabalho.
73 | Planar no Abismo em Ótima Companhia

Bem, um trabalho que começa assim já tem em sua base uma


compreensão de que a arte teatral é uma arte de criação coletiva
por natureza, pois a intersecção de todos os desejos é que será
definidora do percurso a ser seguido pelos artistas. Essa criação
não é definida a priori por uma função, não parte do pressuposto
de que a proposta vem de um único lugar e que os demais
artistas são integrados a esta proposta inicial para realizá-la a
partir de suas especializações ou especificidades. Na criação de
caráter coletivo partimos do pressuposto de que todos serão
transformados pelo processo e de que seu ponto de partida pode
ser completamente diverso do seu ponto de chegada. Todos têm
a ver com tudo, de modo que, quando chegamos ao final, sequer
sabemos de quem foi essa ou aquela ideia, essa ou aquela cena.
Pois muito bem, então vamos falar agora desse diretor teatral, de
um diretor que não sabe qual espetáculo está dirigindo antes de
dirigir o espetáculo que está criando junto com diversos outros
criadores. Como? Já vou explicar!
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 74

Certa vez, conversando com Abreu (Luiz Alberto de Abreu,


dramaturgo) em uma de nossas empreitadas no Projeto 3X4,
do Galpão Cine Horto, concordei com uma afirmação em que
ele dizia que o dramaturgo e o diretor eram os criadores que
estavam sempre no futuro da criação. Eles tinham a função de
pensar por onde a “coisa” seguirá e como a “coisa” será feita.
Hoje, já não concordo. Talvez concorde apenas em relação ao
dramaturgo ou à dramaturgia, pois compreendo que mesmo em
um processo em que tudo está sendo feito aqui e agora, em que
“desenhamos e pintamos ao mesmo tempo”, é necessário que
alguém nos dê pistas para os caminhos a seguir, uma vez que
o envolvimento com a montagem do trabalho e sua criação nos
coloca em um mergulho tão profundo, que não conseguimos
olhar para o que estamos fazendo com distância suficiente para
analisá-lo. Aí, nos perdemos nos tantos caminhos que se abriram
durante o percurso. Então é o dramaturgo quem se distancia da
prática de criar e montar cenas, vasculha a própria imaginação a
partir do efeito da criação sobre ele mesmo e traduz isso tudo em
forma de caminho a seguir.

Acredito que com a direção é diferente e, aqui, entraremos de


fato na questão: que diretor é esse, afinal?
Espetáculo Diário Baldio.

Direção de Tiche Vianna (2010).


75 | Planar no Abismo em Ótima Companhia

Foto: Neander Heringer.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 76

No meu entender, o diretor de grupo - aquele que não chega


com um projeto de espetáculo para montar a priori e escala
um elenco, mas chega para dirigir um grupo de atores e atrizes
que se relacionam criativamente - não está diante de uma só
maneira de fazer teatro, não está diante de uma única linguagem
teatral expressiva. Ele está diante de diversas possibilidades de
expressão cênica e precisa, além de conhecê-las, relaxcioná-las.

Esse diretor de teatro não é responsável pela solução cênica


de um espetáculo, mas pela maneira de relacionar as melhores
soluções cênicas apresentadas por todos os criadores envolvidos,
para criar coletivamente o espetáculo. Assim, esse diretor não é o
“dono” do espetáculo. Ele, como os demais, é parte integrante de
uma composição criativa e coletiva.

Muito bem, então o diretor faz o quê no processo?


Dirige os atores para que sejam os melhores criadores
possíveis até o momento.
77 | Planar no Abismo em Ótima Companhia

- Ah! Ensina a fazer “direitinho”? - você poderia pensar.

- De jeito nenhum! - eu responderia, sem titubear!

Diretor não é professor, nem é faxineiro. O diretor cria a partir da


criação dos artistas que estão no processo.

Pense comigo: o ator tem suas ferramentas através de seu corpo,


voz, pensamento, imaginação, etc., não tem? Não costumamos
dizer que o ator cria através de si mesmo e de suas relações
com o mundo? Não podemos dizer que o instrumento de
criação do ator é ele mesmo, diferentemente de um pintor, cujos
instrumentos são pincéis, telas, tintas...? Pois bem, quais são
os instrumentos de criação de um diretor de teatro? O ator? O
cenógrafo, o figurinista? Não! Não são eles, mas a criação deles!

Portanto, o que faz um diretor quando dirige um espetáculo


teatral? Procura fazer com que os demais artistas criadores tenham
a certeza de que dispuseram ao trabalho o melhor de sua criação.

Estando do lado de fora da cena, também é o diretor que vai


extrair aquilo que é comum a todas as criações, aquilo que
dialoga e o que está mais próximo ou mais distante da concepção
escolhida por todos para o trabalho.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 78

Trocando em miúdos, em termos práticos, o


diretor é um “assistidor” experiente, que faz
perguntas sobre a lógica do caminho escolhido,
oferece obstáculos para que se descubram outras
possibilidades de criação, duvida do que parece
ser perfeito, revela o que está por trás de uma
aparência tão pertinente, desestabiliza o terreno
onde os criadores, muitas vezes, desejam se
acomodar, tenta se assegurar de que o que está
sendo produzido artisticamente não é mero reflexo
de um senso comum, inclusive do seu.

Esse diretor também sugere possibilidades de


caminhos, mas não porque deseja ver sua ideia
realizada, e, sim, porque ele, como criador,
também está em risco com seus palpites e precisa
solucionar suas questões através dos artistas, que
podem, a todo momento, surpreendê-lo - e como
isto é bom quando acontece! - com realizações
nunca imaginadas por suas melhores ideias!
Espetáculo O ponto alto da festa.

Direção de Tiche Vianna (2013).

Foto: Neander Heringer.


79 | Planar no Abismo em Ótima Companhia
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 80

Às vezes, me penso quase como uma jogadora que dá lances


segundo seu entendimento de como o jogo está sendo jogado
pelos demais jogadores. Estudo artimanhas e estratégias para que
o outro não descubra a jogada antes de jogá-la. A diferença com o
jogo é que meu desejo não é vencer, mas compor,
a partir de cada lance.

Essa dinâmica só é possível quando temos tempo e generosidade,


rigor e grande disponibilidade. Por isso, a criação em grupo é mais
demorada. Porque esse tipo de diretor não deseja que os artistas
profissionais saibam o que fazer. Esse diretor deseja que os artistas
arrisquem o que não sabem a partir de tudo o que sabem fazer,
simplesmente porque a criação é um ato inédito por natureza.

Esse modo de pensar e trabalhar não é exclusivo de um ou


outro diretor, de um ou outro grupo. Descrevi, a partir da minha
experiência, o que aprendi com muitos artistas de teatro e na
observação prática de diretores de outras linguagens artísticas.
81 | Planar no Abismo em Ótima Companhia

Creio que hoje, já tendo vivido quase uma década e meia


do século XXI, nós, pessoas de teatro, já entendemos
que há algo nessas relações criativas que precisa se
transformar. Escolas, faculdades, grupos, artistas de
teatro e espectadores da cena buscamos algo que ainda
não conhecemos exatamente. Só sabemos que é de
extrema importância que o encontremos. Talvez isso
seja bastante determinante para rascunhar a ideia do
papel de um diretor de teatro nesta atualidade: um artista
que se disponha a provocar mergulhos em abismos
profundos, fazendo ver que ele é o primeiro a se lançar!
#4 - ESCRITOS
ESPARSOS SOBRE
DIREÇÃO E TEATRO
DE GRUPO
Narciso Telles 1
(UBERLÂNDIA/MG)
1 - Narciso Telles é ator, Diretor e Professor do

Curso de Teatro e do Programa de Pós-Graduação

em Artes da Universidade Federal de Uberlândia

(UFU). Membro do Coletivo Teatro da Margem,

Pesquisador do CNPq, da FAPEMIG e GEAC-UFU.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 84

CONVIDADO PARA ESCREVER NESTE DOSSIÊ,


que tem seu foco em estudos de Direção Teatral, resolvi
apresentar 4 (quatro) escritas esparsas a partir de minha
experiência neste (entre) lugar da pesquisa acadêmica que
desenvolvo na Universidade Federal de Uberlândia e na prática
artística junto ao Coletivo Teatro da Margem. Este (entre) lugar me
oferece a possibilidade de transitar, de me colocar em movimento
(entre) esses dois espaços sem a fixação discursiva, ou seja,
mantenho meus escritos e pensamentos ao sabor e saber do
meu desejo como artista-pesquisador.

#1
Penso que devemos ser Homens-Teatro, tal como propõe Sartre
ao colaborar com o projeto pedagógico da Escola de Jacques
Copeau. Estarmos fazendo, ensinando, pensando, escrevendo,
dirigindo, atuando... Somos todos fazedores-pensadores-
ensinadores-aprendizes.
85 | #4 - Escritos Esparsos Sobre Direção e
Teatro de Grupo

#2
O Teatro de Grupo tem como característica um modo de criação
e produção teatral pautado na coletivização dos procedimentos
de criação. Nesse modo de fazer encontramos várias formas de
grupalidade. Grupos como: Galpão, La Candelaria, Tá na Rua,
Imbuaça, Teatro Taller, Yuyachkani, Ói Nóis Aqui Traveiz, entre
outros, são alguns expoentes do teatro de rua latino-americano
contemporâneo. Esses coletivos, surgidos nas décadas de
1970 e 1980, foram construindo um projeto estético próprio,
desenvolvendo sua pesquisa de linguagem, investigando de
forma diferenciada processos poéticos e formativos coletivizados.

Nesse sentido, podemos pensar que os grupos são estruturas


constituídas por um movimento de identificação entre seus
membros, que se associam num projeto artístico/estético/
ideológico que vai gradativamente sendo repensado e redefinido
por movimentos oscilatórios de articulação – hibridismo – e de
tensão entre seus membros.

Ideia similar é apontada por Beti Rabetti: “[...] itinerância,


identidade em permanente reelaboração, procurando escapar à
nossa constante necessidade de apreensão, ou fixação do que se
quer sempre em vida, movimento” (RABETTI, 1993, p. 13).
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 86

As ideias de movimento e
identificação congregam-se, ao
observarmos as atividades artístico-
pedagógicas dos grupos. Muitos,
no decorrer de sua trajetória,
vão ampliando espaços de ação
direcionados para as atividades
educacionais. Quase todos
desenvolvem uma estrutura de
treinamento, para o aperfeiçoamento
de seus atores, e um conjunto de
oficinas de formação/aperfeiçoamento
de sua linguagem para outros artistas.
André Carreira ressalta a importância
que os grupos ocupam na formação
de atores nos contextos regionais.
Para ele, “esta prática pedagógica vai
além do objetivo de ensinar técnicas
teatrais, ela se articula como discurso
que funda um espaço ideológico e
político” (CARREIRA, 2006, p. 56).

O grupo estabelece, ao longo de sua


história, seus pressupostos técnicos
necessários ao seu modo de fazer
teatral, o que também acarretará,
de certa forma, uma especialização
de seus membros em determinados
procedimentos. Esse processo ocorre
Direção de Narciso Telles (2008).
Espetáculo Canoeiros da Alma.

muitas vezes por afinidade.


Foto: Lili Moraes.
87 | #4 - Escritos Esparsos Sobre Direção e
Teatro de Grupo

Essas conformações do Teatro de


Grupo em suas especificidades
vão se aproximando da formação
universitária em Teatro a partir da
migração de artistas formados, em
sua maioria, na prática coletiva para
as instituições universitárias, iniciando
uma ‘nova’ possibilidade de ação
formativa como artistas-docentes.
Com a inserção acadêmica destes
diversos artistas formados em
práticas de Teatro de Grupo,
um novo movimento de influência
e retroalimentação entre a
pesquisa universitária e a artística
vai ocorrendo.

Processos e funções do diretor vão


ocupando as salas de aula dos cursos
universitários, reconfigurando práticas
de ensino-aprendizagem teatrais mais
próximas às questões trazidas pela
cena contemporânea. Destaco, aqui,
o processo colaborativo e a retomada
da criação coletiva como práticas
constantes nos cursos de licenciatura
(quando pensada para o professor-
encenador), como nos bacharelados
em interpretação e direção. Diante
de uma pedagogia da experiência,
na qual estudantes e professores-
diretores embarcam numa experiência
prática de montagem, num lançar
ao (des)conhecido, como prática
formativa de atores e diretores.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 88

#3
Nos processos do Coletivo Teatro da Margem (Uberlândia-MG), o
trabalho de direção parte sempre de uma questão mobilizadora:
em Canoeiros da Alma (2008), a pergunta era: como vivem as
pessoas que moram nas margens dos rios em Minas Gerais? Em
A Saga no Sertão da Farinha Podre (2012): quem somos nós nesta
cidade que sempre deseja ser metrópole? A pergunta potencializa
os caminhos para o levantamento de materiais cênicos. Em
nossos processos não partimos de um projeto de encenação
previamente concebido, mas pelo acúmulo de questões e
perguntas que movimentam o ato criativo e que nos afetam.
Assim, partimos de forma diferente, em cada trabalho, a levantar
materiais por meio de estudos e composições. Identificamos
essa prática como um devising, que se refere “a qualquer
processo criativo teatral que não respeite uma hierarquia de
materiais cênicos centrada no texto escrito por um dramaturgo
a priori. Nesse sentido o processo teatral torna-se em si o motor
fundamental para a criação” (SILVA, 2014, p.11).

Aos atores cabe a ação propositiva de criação de cada uma das


cenas a partir de composições elaboradas no decorrer dos ensaios.
Segundo Tina Landau, “a composição é a prática de selecionar e
combinar componentes da linguagem teatral em um trabalho de
criação de cenas, um método para revelar nossos pensamentos
e sentimentos sobre o material que estamos trabalhando para a
criação de cenas curtas” (LANDAU, 1996, p.26). Compor é fazer
escolhas, seja pelos atores, seja pelo diretor.
Espetáculo Canoeiros da Alma.

Direção de Narciso Telles (2008).

Foto: Daniel Zimmerman.


Teatro de Grupo
89 | #4 - Escritos Esparsos Sobre Direção e
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 90

O procedimento de criação das composições é estabelecido


pela direção. O diretor apresenta uma ‘lista de ingredientes’ na
qual os atores acionam um campo psicofísico e imaginário para
trabalhar com o material colhido na pesquisa de campo que
sempre realizamos nos processos de criação desses espetáculos.
Em Canoeiros da Alma fizemos uma etnografia do sensível em
cidades do Vale do Jequitinhonha que gerou várias composições
cênicas, que se constituíram como células para a criação do
espetáculo. A etnografia do sensível constitui-se em uma
pesquisa de campo na qual os atores buscam texturas, imagens,
sons, odores, cores, relações espaciais e corporais com o local
que escolhemos a partir da pergunta-guia. Nesse caso foram
as cidades de Araçuaí e Itinga e a relação de seus moradores
com o rio. Em seguida, com os ingredientes da composição
vai-se montando o que foi colhido a partir das perguntas: Criar
o quê? Criar para quem? Qual é a estrutura ou forma que você
pretende dar ao material? Desse modo, os atores possuem
‘certa liberdade’ para essas articulações. Após essa etapa, as
composições são apresentadas para todos os membros do
Coletivo e podem sofrer mudanças conforme os comentários
e as propostas dos demais atores e da direção, ou mesmo ser
acrescidas de algum material, como uma música, por exemplo.
91 | #4 - Escritos Esparsos Sobre Direção e
Teatro de Grupo

Em A Saga no Sertão da Farinha Podre, nossa imersão foi nos documentos


históricos do município de Uberlândia. Jornais, fotografias, decretos, histórias
pessoais foram as fontes de trabalho para as composições. Aqui a função
da direção foi organizar o material para os atores e provocá-los para essa
entrada no espaço da cidade, visto que se tratava de um espetáculo de rua. A
cidade aqui também foi experimentada com a criação de percursos e derivas
realizados pelos atores a partir das fontes. Descobrimos que vários espaços
tiveram seus nomes alterados para ‘glorificar’ atos de militares e ‘pessoas de
bem’ e como o discurso de modernidade enterrou práticas sociais que ainda
estão submersas nessa ‘cidade ideal’.

Com esse material começamos o processo de composição, em um primeiro


momento, na sala de trabalho e depois na rua, percebendo as influências
do espaço no trabalho. Como diretor, ficava observando essa fricção entre
a proposta dos atores e o espaço da cidade. As cenas eram organizadas
como uma bricolagem a partir de um trabalho conjunto com o dramaturgo
Luiz Carlos Leite, que ia textualizando todo o processo e colaborando para a
construção da linha narrativa da obra. Esse mesmo procedimento já havia sido
utilizado quando da criação do espetáculo Canoeiros da Alma.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 92

Diz Luiz Leite:

A tarefa do dramaturgo não era a de escrever o texto, mas sim a


de despertar a sedução da força narrativa que se apresentava. Em
determinados momentos, o processo parecia estar equivocado,
sobretudo, quando atores ainda relutavam em entregar-se ao fluir
das sensações, posicionando-se como pesquisadores diante de
um objeto folclórico. Outros ainda pautavam-se pela preocupação
em registrar, catalogar, produzir uma vasta iconografia a ser
posteriormente racionalizada, mas sem vivenciar a experiência. Nem
tudo eram flores, aliás, estas foram pouco vistas, só que também
contraditoriamente a experiência de cada um foi se consolidando
nesse rápido período. (LEITE, 2010, p.12)

Nessa prática de direção teatral estamos sempre emergindo


“do abismo do desconhecimento e, por isso, a problemática
do argumento, dramaturgia, personagens, estrutura e estilo
é sempre uma constante em todo o procedimento, e também
porque isso se constrói ao mesmo tempo” (SILVA, 2014, p.17).
A partilha do processo criativo no qual os atores colaboram
de forma contínua com a direção faz com que esta função
seja movente ao longo do processo. Ora de forma mais ativa,
determinando caminhos, ora de forma mais passiva, escutando
os atores e suas propostas. Direção de Narciso Telles (2012).
no Sertão da Farinha Podre.

Foto: Diego Aragão.


Espetáculo A Saga
93 | #4 - Escritos Esparsos Sobre Direção e
Teatro de Grupo
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 94
95 | #4 - Escritos Esparsos Sobre Direção e
Teatro de Grupo

#4
Para pensar a prática de direção, recupero pontos do texto de
Anne Bogart sobre o erotismo como um elemento necessário
ao processo criativo, para tecer algumas considerações
sobre a pedagogia do teatro. Anne diz que uma relação
apaixonada é construída por algo que nos arrebata e atrai, pela
desorientação, por um relacionamento prolongado e no qual
você é transformado de forma permanente. Esses aspectos,
segundo a diretora, produzem um ato erótico, uma excitação
dos sentidos, um ir ao encontro de algo perturbador, excitante e
romântico. O processo de direção de uma prática de montagem
pode constituir-se como uma prática erótica de aprendizado
artístico. Para além da apreensão de saberes institucionalmente
constituídos [aqui incluo as técnicas artísticas] e baseados em
regras de erudição e controle.

Pensar as práticas de (trans)formação/direção/criação em teatro


é, para mim, pensar como podemos constituir atos eróticos
com nossos parceiros de trabalho. Como criar tensão erótica
e provocar a desorientação (ou mesmo a deseducação) como
potência de instaurar um vazio, um não-saber, um outro-saber
prenhe de possibilidades.

O Coletivo Teatro da Margem foi fundado no Curso de Teatro


da UFU em 2007 e hoje se tornou um coletivo independente
Espetáculo A Saga no Sertão da Farinha

Podre. Direção de Narciso Telles (2012).

da Universidade. Tem sua sede no Teatro de Bolso do Círculo


Operário de Uberlândia e pode ser conhecido pelo blog: http://
cteatrom.blogspot.com.br/
Foto: Renzo Schröder.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 96

Com quem conversamos neste texto

BOGART, Anne. A preparação do diretor. São Paulo:


Martins Fontes, 2011.

CARREIRA, André. Formação do ator e teatro de grupo:


periferia e busca de identidade. In: MALUF, Sheila;
AQUINO, Ricardo Bigi de (org.). Dramaturgia em cena.
Maceió; Salvador: EdUFAL/EDUFBA, 2006, p.49-60.

LANDAU, Tina. Source-work, the viewpoints and


composition: what arte they? [tradução: Narciso Telles]
In: DIXON, M. Smith; JOEL, A. Smith (org.). Anne Bogart:
viewpoints. New York: Methuen Drama, 1996, p.13-30.

LEITE, Luiz Carlos; HIGA, Nádia Yoshi. Processo de criação


do espetáculo Canoeiros da Alma. Revista Cavalo Louco.
n.08. Terreira da Tribo, Porto Alegre, 2010, p.12-13.

RABETTI, Maria de Lourdes (Beti Rabetti). O ‘Festival


Teatro D’Outras Terras’: apontamentos sobre a matéria de
que são feitos os sonhos que vagam mundos. Programa
da peça A moça e o hipopótamo. Rio de Janeiro: Museu
da República, 1993. p.9-14.

SILVA, Óscar. Devising e os processos criativos no teatro


contemporâneo. A[L]BERTO. Revista da SP Escola de
Teatro. n.06. São Paulo: 2014, p.11-18.
Direção de Narciso Telles (2012).

TELLES, Narciso. Pedagogia do teatro e o teatro de rua.


Sertão da Farinha Podre.

Porto Alegre: Mediação: 2008.


Foto: Andressa da Mata.
Espetáculo A Saga no

______; GOIS, Getulio. A Saga no sertão da Farinha Podre


e as Máscaras de Clóvis: rasuras[#] do processo criativo.
In: BRONDANI, Joice; CAMPOS, Vilma; TELLES, Narciso
(org.). Teatro-Máscara-Ritual. Campinas: Alínea, 2012,
97 | #4 - Escritos Esparsos Sobre Direção e
Teatro de Grupo

p.119-130.
DIREÇÃO TEATRAL:
ALGUMAS REFLEXÕES
EM 2014
Grace Passô 1
(BELO HORIZONTE/MG)
1 - Grace Passô é diretora, dramaturga e atriz.

Trabalha em parceria com artistas e companhias

teatrais brasileiras. Dentre seus últimos trabalhos

como diretora estão Contrações (Grupo3 de Teatro),

Carne Moída (EAD/USP), Os Bem Intencionados

(Grupo LUME). Cofundadora do Grupo Espanca!,

no qual permaneceu por dez anos assinando a

dramaturgia de espetáculos como Marcha para Zenturo,

Amores Surdos, Por Elise e Congresso Internacional do

Medo; sendo diretora dos dois últimos trabalhos.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 100

SE EXISTE ALGO EM COMUM nas diversas práticas de


direção de trabalhos teatrais é a noção de que a direção opera
no distanciamento, criando relações consistentes entre as tantas
subjetividades que habitam uma criação e a realização comum.
Essa operação pode ser praticada até mesmo sem a presença
de um diretor, em criações nas quais esta função não existe,
mas é fato que o olhar da direção reside nesta prática. Abro este
texto, portanto, relativizando a função do diretor no teatro, já que
a prática de qualquer função na construção das obras teatrais
atuais vem subvertendo noções estáveis do objetivo de cada
uma delas e já que “generalizar”, definitivamente, não é um verbo
pertinente para o nosso tempo.

Ainda sobre o distanciamento: quando nos distanciamos de algo,


criamos uma relação entre dois pontos, entre ator e público,
entre ator e espaço, entre a imaginação do ator e a realização
de formas cênicas, entre técnica e estilo, entre dramaturgia e
texto teatral, dentre vários outros “entres”. O diretor que trabalha
nesse “entre” é aquele que se atenta ao fato de que tudo está
“em relação a”, sem, no entanto, esquecer-se de que é preciso
verticalizar as buscas de cada um desses pontos. E como existem
muitos pontos de vista diferentes enquanto se cria uma peça,
vamos por partes.
101 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014

01.
Em relação ao ator, ressalto a importância de propor limites para
o gigantesco universo de possibilidades do intérprete durante
sua criação. Uma peça de teatro é muita coisa ao mesmo tempo
e, quando o ator começa a criar, ele também deseja muitas
coisas. O processo de composição de um ator em um trabalho
teatral é uma grande caminhada e, quando diminuímos a estrada,
o ator passa a marchar para dentro da selva que rodeia esse
caminho, em direção ao aprofundamento do que cria. Um desafio
da direção é optar por direcionamentos que limitem os excessos
de suas possibilidades criativas.

No início dos anos dois mil iniciei uma parceria com o diretor Anderson Aníbal, época dos
primeiros trabalhos da Cia Clara de Teatro. Dentre alguns focos de pesquisa propostos pelo
diretor, um propunha algo novo em relação à maioria das técnicas de atuação comumente
vistas nos trabalhos dos atores belo-horizontinos da época. Aníbal pedia a nós, atores,
absoluta concentração na ação da fala, ao mesmo tempo que dispúnhamos de uma
quantidade bastante restrita de gestos, ações e movimentos para nossas composições.
Trabalhávamos a eminência do gesto, ação ou movimento e isto gerava uma expressão de
aparente imobilidade, em que a figura do ator era sublinhada através de uma composição
baseada na síntese. Como intencionalmente não tínhamos muitas cartas para jogar,
compúnhamos com a escuta, com a emissão da fala e pausas, o que valorizava o gesto, ação
ou movimento, quando estes ocorriam. Os limites que esses direcionamentos nos impunham
nos aproximavam da essência do ato, fazendo com que nos aprofundássemos na relação
fundamental do acontecimento teatral: aquela que se dá entre ator e plateia.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 102

Alguns anos depois, ao dirigir o primeiro


espetáculo do grupo Espanca!, propus aos atores
que compusessem seus personagens utilizando
uma ou duas ações escolhidas de acordo com o que
cada um significava na ficção da peça. Esse limite
fez com que essas ações ganhassem dinâmicas
de ressignificação ao longo da narrativa da peça
Por Elise, originando um jogo de composições
poéticas no qual correr, cair, falar, proteger
ou latir paulatinamente iam expandindo seus
significados comuns. Esse direcionamento era uma
continuidade da pesquisa que vinha desenvolvendo
junto a Aníbal e o fato de, desta vez, dirigir com um
texto que eu mesma havia escrito fizeram com que
eu pudesse instaurar um estilo de linguagem com
traços mais definidos. E pontuo essa passagem
com dois exemplos de como a direção teatral se
coloca em prática nos nossos dias.

O primeiro exemplo diz respeito ao fato de que


Processos Colaborativos aproximam atores das
funções fundamentalmente conceptivas das
montagens. E assim como eu, diversos atores
passam a se interessar pelo campo da direção e
da dramaturgia. Esse fato é bastante visível na
trajetória de coletivos teatrais e são inúmeros
os exemplos possíveis de atores que, depois
de passarem por muitos processos desse tipo,
começam a dirigir e escrever para teatro. Os
Processos Colaborativos (aqui escrito no plural
porque cada coletivo entende essa prática de
uma forma) aproximam atores da concepção da
obra teatral e, como vinha há alguns anos de
experiências colaborativas, interessei-me por
compreender a fundo as práticas da direção
e da dramaturgia.
Grace Passô em cena do espetáculo

Todas as belezas do mundo, da Cia Clara de

Teatro. Direção de Anderson Aníbal (2002).


103 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014

Foto: Guto Muniz.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 104

O segundo exemplo diz respeito


a atores que, sobretudo por
pertencerem a companhias e gozarem
de certa intimidade coletiva de
linguagem, trabalham em duas,
três ou mais funções criativas
concomitantemente. Apesar de
essa prática não se restringir à
contemporaneidade, está na gênese
de vários trabalhos teatrais atuais.
Atuar numa peça que também
se dirige traz não só ao diretor,
mas também à criação potências
interessantes. Primeiro porque aquela
máxima que diz “falar é fácil, fazer
é difícil” dá ao diretor que atua uma
relação de muita concretude com a
criação. E, segundo, porque coloca
o diretor em ação e este passa a
comunicar suas intenções de direção
também através das formas que
imprime em sua atuação.
Espetáculo Por elise.

Direção e dramaturgia

de Grace Passô (2004).


105 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014

Foto: Ana Alvarenga


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 106

02.
Comecei este texto aproximando o trabalho da direção e a noção de
“distância” e recorro mais uma vez a este termo para pensar sobre a relação
entre o Espaço da cena e o Ator ou Público. Ora, a distância entre pontos
revela as dimensões de um espaço. Se uma pessoa olha um lustre que está a
cinco metros do chão, ela não só revela o lustre ao relacionar-se com ele, mas
também o espaço de que ambos fazem parte. Quando peças de teatro passam
a ocupar com frequência outros espaços que não são teatros com lugares
delimitados de palco e plateia, o Espaço da cena começa a ser compreendido
como elemento com novas possibilidades de composição. E técnicas
surgem para quebrar segundas, terceiras paredes, sugerindo outras formas
de interatividade entre atores, público e espaço. Técnicas como viewpoints
dotam atores do sentido do espaço, relevam a centralização do foco da cena
no corpo do ator e dissolvem noções restritas de espaço da cena como um
lugar onde se encontra o cenário. Com essa visão, muitas criações passam
a procurar silhuetas urbanas, distantes da moldura do palco tradicional.
Dentre vários atributos que isso vem trazendo para a prática contemporânea,
está o de que inúmeros trabalhos incorporam o significado e a memória de
espaços à dramaturgia de seus espetáculos. Peças em presídios, vilas, lugares
abandonados e terrenos baldios colocam o teatro em diálogo direto com as
cidades, expandindo até mesmo a noção de apresentação para a de ocupação,
radicalizando o teatro como ação política que é.
107 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014

03.
As fronteiras entre linguagens estão cada vez mais dissolvidas e muitos de nós,
diretores, estamos cada vez menos preocupados em limitá-las. Pelo contrário,
na aproximação a determinadas linguagens mora, muitas vezes, o caminho para
o rompimento de certos portos demasiadamente seguros da construção teatral.

Recentemente dirigi em parceria com Kenia Dias


a turma 63 da Escola de Artes Dramáticas da USP,
no espetáculo Carne Moída. Ali, desenvolvemos
dramaturgia e direção de atores com limites
definitivamente tênues entre dança e teatro.
Algumas cenas eram construídas a partir
de situações, mas muitas outras partiam da
investigação corpórea de coleções de movimentos
propostos pelos atores. Uma dramaturgia teatral
direcionava o desenvolvimento das partituras ao
longo da narrativa, mas suas criações tangenciavam
a forma como muitos dançarinos criam. Essa e
algumas outras experiências que tive me auxiliam
no direcionamento de atores a uma espécie de
poética do movimento, em que os limites da
ilustração ou simples repetição de gestos cotidianos
restringem o universo da teatralidade. E há ainda
outra questão: é comum em minhas práticas
dramatúrgicas o uso de situações, objetos e até
personagens camuflados de “realidade cotidiana”.
No entanto, como se trata de simples camuflagem,
anseio por direcionar atores para expressões
muitas vezes absurdas e, por isso, determinados
exercícios típicos de práticas da dança dilatam as
possibilidades expressivas dos intérpretes.
Espetáculo Carne Moída.

Direção de Grace Passô e

Kenia Dias (2014).

Foto: Thiago Moreira.


109 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 110

04.
Nas práticas contemporâneas da direção muitas vezes residem
práticas antigas. E muitas vezes com intento. Em 2012 mergulhei
junto ao Espanca! no processo de criação de O Líquido Tátil , sob a
direção de Daniel Veronese. A vanguarda teatral não é feita somente
de novos procedimentos para criação, mas, sobretudo, do modo
de relacionar o teatro ao acontecimento artístico que sempre foi.
Apesar de Veronese também fazer uso de procedimentos e códigos
novos e próprios, o processo que vivemos com ele foi pautado
por uma rica simplicidade de procedimentos para nossa criação.
No primeiro dia em que chegamos à sala de ensaio, o cenário
já estava montado. Veronese usa o mesmo cenário para peças
diferentes e, por isso, estava trabalhando em outra montagem, no
mesmo espaço: um espaço-quina delimitado por duas paredes e
chão. Longe de ser um modismo ou mera praticidade, arrisco dizer
que, como bom ex-marceneiro, ele encontrou na concepção de
cenários valiosamente simples um abrigo para o universo poético
que desenvolve. Com o espaço já delimitado e o texto finalizado
e previamente decorado, íamos (atores) experimentando as
relações entre personagens através de direcionamentos nos quais
Veronese nos fazia entender o motivo de cada ação, paulatina
e repetidamente. Em momento algum referiu-se a histórias que
precedessem as histórias que os personagens contavam na peça,
ateve-se em dissecar as relações entre eles, por vezes nos fazendo
mergulhar em sentidos extremamente subjetivos, por outras nos
fazendo desapegar completamente de algumas arapucas do drama.
A clareza de cada intervenção que fazia me lembrava mais uma vez
daquilo que pretendo não me esquecer: é preciso ser franco, não
abrir concessões para cordialidades baratas na relação entre ator e
diretor. Assim, estabelece-se a direção como referência ética de uma
criação. Pois bem: nas ferramentas das direções contemporâneas,
reside a velha e boa prática em que o diretor conduz atores falando
sobre seu mundo e os fazendo compreender como devem conduzir
suas ações. E essa prática comum pode fazer muito sentido.
O diretor argentino Daniel Veronese

dirige atores do Espanca!

no espetáculo O Líquido Tátil (2012).


111 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014

Foto: Aline Vila Real


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 112

05.
O teatro não é mais necessariamente textocêntrico. Mas, para além do texto, o que a
contemporaneidade nos revela é a mobilidade do que está no centro de sua realização. Como
disse no início, peças teatrais são construídas com ou sem diretor e ressalto ainda que, assim
como esta função, outras também podem estar ali, não na figura de uma única pessoa, mas
dissolvida nas demais funções que ali estão. Se o mundo reinventa novas formas de convívio
coletivo, o mesmo acontece no teatro.
113 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014

06.
E aqui registro uma consideração sobre a relação entre direção e dramaturgia,
especificamente em relação à adaptação de textos teatrais. O teatro é
paradigmático no seu labor: relaciona-se com textos escritos no passado
ao mesmo tempo que sua natureza de linguagem se potencializa através de
ferramentas de presentificação. Essa aparente contradição obriga que seus
artistas trabalhem com memórias sociais ao mesmo tempo que desenvolvem
formas que dialogam com seu tempo. As adaptações, reinterpretações e
as “obras baseadas” caminham para uma ideia de relação dialógica com
textos clássicos e o nível de diálogo se dá não só em dramaturgias textuais,
mas também cênicas. Acho esse um dos grandes atributos das práticas
contemporâneas porque essa espécie de liberdade retira o texto teatral
do lugar de “guia do que fazer” e o recoloca como voz em dinâmicas de
repertencimento, em que culturas imprimem visões diferentes sob mesmas
obras. E através de formas cada vez mais radicais.
A ENCENAÇÃO
NO CAMPO
AMPLIADO
Francis Wilker 1
(BRASILIA/DF)
1 - Francis Wilker é pesquisador, professor e
diretor teatral. Integra o grupo brasiliense Teatro
do Concreto. Mestre em Artes, pela ECA-USP,
especialista em Direção Teatral, pela Faculdade
de Artes Dulcina de Moraes, e graduado em
Artes Cênicas, pela Universidade de Brasília.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 116

DEUS DEU A FORMA. OS ARTISTAS DESFORMAM.


É PRECISO DESFORMAR O MUNDO:
1

TIRAR DA NATUREZA AS NATURALIDADES.


FAZER CAVALO VERDE, POR EXEMPLO.
FAZER NOIVA CAMPONESA VOAR – COMO EM CHAGALL.

(MANOEL DE BARROS2)
117 | A Encenação no Campo Ampliado

O título deste artigo foi inspirado em um conhecido texto de 1979


em que a historiadora e crítica de arte americana Rosalind Krauss
discute e problematiza a noção de escultura3 ao considerar a
prática de alguns artistas nas décadas de 1960 e 1970. Gostaria de
tomá-lo, aqui, apenas como metáfora ou ponto de partida para a
reflexão que pretendo tecer acerca da encenação contemporânea.
Seu texto ficou conhecido no Brasil como A escultura no campo
ampliado4. Entre os assuntos tratados pela autora, destacaria a
transformação da escultura desde sua ligação histórica à lógica
do monumento e suas novas conformações a partir do final do 2 - BARROS, 2013, p. 324.

século XIX, com ênfase no modernismo e no pós-modernismo. 3 - À medida que os anos 1960
Nesse percurso analítico e crítico, Krauss nos convida a lançar se prolongavam pelos 1970 e
que se começou a considerar
um olhar mais complexo para essas práticas e obras resultantes, como “escultura”: pilhas de
apontando rupturas, tensionamentos, maleabilidade e apontando lixo enfileiradas no chão, toras
de sequoia serradas e jogadas
que o campo do pensamento pós-moderno, devoto da noção
na galeria, toneladas de terra
de complexidade, poderia nos oferecer outros fios de análise escavada do deserto ou cercas
para pensarmos essas obras e seus contextos de produção, rodeadas de valas — a palavra
escultura tornou-se cada vez
questionando inclusive a pertinência do termo escultura para mais difícil de ser pronunciada
abranger categorias tão diversificadas de trabalhos. Portanto, (KRAUSS, 1984, p.130).

invoca por meio de suas reflexões a necessidade de pensar a 4 - Em inglês: Sculpture in the
escultura num campo ampliado ou estendido. Expanded Field.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 118

Ao me deparar com o tema da direção ou da encenação


como pesquisa de linguagem para o teatro na fronteira com
outras artes, a primeira lembrança que me ocorreu foi a leitura
desse texto comentado acima. Procurando compreender
essa associação tão espontânea, me parece que falar da
direção no nosso tempo faz mais sentido na medida em que
a compreendemos desde esta perspectiva: a de um campo
ampliado.

Na década de 1990, quando comecei a fazer e estudar teatro


na região Centro-Oeste do Brasil, o meu campo era bastante
reduzido e, para o menino que adentrava esse mundo das artes
da cena, pensar a direção parecia estar associado a escolher
um caminho técnico e metodológico, que se dividia mais ou
menos assim: por um lado, Stanislavski; por outro, Brecht;
numa outra via, Grotowski ou Eugenio Barba, para citar aqueles
mais divulgados na época. Naquele tempo, cheguei a pensar,
ingenuamente, que eu precisava optar por um desses caminhos,
abertos por outros homens de teatro, para seguir a minha vida
artística com mais intencionalidade, qualidade e consistência.
Ledo engano! Seguindo essa pista das memórias, outra frase
comum de ouvir era que “o teatro englobava todas as artes”,
sendo possível identificar dimensões das artes visuais nas
cenografias e nos figurinos, na relação com a literatura vinculada
ao próprio texto teatral, às vezes na música e também na dança.
Nesses momentos eu pensava: nossa! Esse negócio de teatro é
bem generoso, cabe tudo!
119 | A Encenação no Campo Ampliado

Parto dessas simples reminiscências para tentar algumas


aproximações com o que estou chamando de direção ou
encenação no campo ampliado, de modo a explorar alguns
aspectos que se mostram presentes na produção teatral
contemporânea, focalizando mais diretamente o trabalho
do diretor. Parece-me que o primeiro aspecto diz respeito ao
hibridismo de técnicas, metodologias ou abordagens para
pensar o trabalho com os atores, a relação com o espectador,
com o espaço, com o texto ou tema, bem como com as demais
dramaturgias da cena. Ainda que uma ou outra obra possa
apontar maior interface com alguma perspectiva metodológica
no que diz respeito ao trabalho da direção, especialmente com os
atores, nos nossos dias, cada diretor ou diretora parece recorrer a
diferentes estratégias na realização do seu ofício.

O segundo aspecto diz respeito ao diálogo imbricado, e


praticamente intrínseco, entre teatro e outras linguagens
artísticas. Basta pensar que nossa tradição teatral ocidental parte
do rito grego que, por natureza, mistura o canto, a dança, algum
nível de representação e texto. Nessa perspectiva, parece integrar
o fenômeno teatral a relação, em maior ou menor grau, com
diversas outras linguagens que ultrapassam o seu campo mais
estrito. Isso pode nos indicar que a função da direção demanda a
capacidade de diálogo, interação e produção conjunta com outras
áreas.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 120

Além desses aspectos apontados acima, discutir a produção


cênica atualmente requer tatear outras transformações
empreendidas nos seus modos de operar. Nos últimos anos,
no epicentro das tentativas de leitura da cena contemporânea
ocidental a partir da década de 1960, especialmente a europeia,
os estudos de Hans-Thies Lehmann e sua discussão acerca
do que denomina de teatro pós-dramático irão enfatizar, entre
outros elementos, a autonomia das diferentes linguagens ou
dramaturgias da cena. Essa construção de autonomia estaria
também relacionada à superação da perspectiva de construção
de um sentido totalizante para a cena e que devia ser convergente
com o sentido proposto pelo texto. A pesquisadora Josette
Féral fará uso da expressão “deslize do sentido” ao abordar a
capacidade do performer de confundir o sentido único do texto
e instaurar a ambiguidade, a pluralidade de sentidos para a
cena (FÉRAL, 2009, p.204). A abordagem dessa autora em torno
do conceito teatro performativo também tem agregado ricas
contribuições às reflexões sobre a encenação contemporânea.
Sua argumentação retoma as proposições de Schechner sobre
a ação, para demonstrar como o fazer, claramente se opondo à
ideia tradicional de representação mimética, foi um dos aspectos
da performance que contaminaram boa parte da produção teatral
contemporânea no Ocidente.
121 | A Encenação no Campo Ampliado

Nessa conversa tecida com você até aqui, podemos destacar


alguns elementos para seguirmos a discussão sobre direção na
fronteira com outras linguagens. São eles: hibridismo conceitual,
metodológico e técnico nas práticas de direção; autonomia das
distintas dramaturgias da cena (luz, visualidades, sonoridades,
etc.); superação do texto como vetor totalizante na construção
de sentido para a cena; contaminação com elementos da
performance, entre eles, a noção de ação/presentificação em
contraponto à ideia de representação. Esses aspectos, aqui
tratados de modo bastante sintético e panorâmico, nos ajudam
a refletir sobre um considerável número de produções cênicas
dos nossos dias nas diferentes regiões do País. Para além disso,
configuram um contexto em que nós, diretores, criamos e
atuamos.

Desse modo, uma primeira questão que gostaria de compartilhar


diz respeito à compreensão da direção/encenação como um
projeto poético que se constrói numa zona de contaminação/
colaboração com outros criadores, sejam eles atores,
iluminadores, dramaturgos, músicos, coreógrafos, etc. Sendo
assim, o diretor ou diretora tem por função configurar um ponto
de vista por meio de suas escolhas de encenação e também
ser um agenciador e mediador nessas equipes de trabalho,
entre tantas outras dimensões de sua prática, principalmente
em processos colaborativos de criação. Esse aspecto torna-se
bastante evidente nas proposições do diretor Antônio Araújo:
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 122

[...] o olhar específico do encenador produzirá, sim, uma


leitura ou recorte do material levantado. A diferença é que
ela se constrói simultaneamente com os outros elementos
do espetáculo, sofre contaminações e contraposições a
todo tempo e se modifica ao longo do percurso criativo.
O encenador, portanto, precisa ser capaz de perceber os
pontos de referência ou os núcleos vibratórios de sua visão
particular, ao mesmo tempo em que se mantém permeável
às derivas, às hibridações, enfim, aos campos de força dos
outros colaboradores [...]. (SILVA, 2008, p.189).

O diretor teatral se situa num campo de atuação que é constantemente


atravessado por colaborações diversas que são por ele desenvolvidas, negadas,
redimensionadas, transformadas. É comum ouvirmos também que a direção
tem como função a tarefa de se colocar como um “olhar de fora”, que procura
lidar com a criação como um organismo complexo e que envolve muitos
elementos. Aqui cabe uma ressalva, afinal, ainda que se coloque como o “olhar
de fora”, não significa que a construção do discurso de uma obra represente
apenas a visão do diretor, ao contrário, em processos mais horizontais é
comum esse discurso se esforçar por traduzir a voz de um coletivo criador.
123 | A Encenação no Campo Ampliado

Gostaria agora de retomar duas palavras que se mostram


fundamentais à nossa discussão: projeto e processo. A noção
de projeto, palavra herdada do latim e que significaria “algo
lançado à frente”, nos remete a uma espécie de elaboração de
um plano para o percurso construtivo de uma obra. Já processo,
também de origem latina, se relacionaria à ideia de método,
sistema, modo de agir. No campo artístico, a pesquisa de
Cecília de Almeida Salles relacionada à crítica de processo se
propõe a investigar o percurso de construção da obra de arte
buscando “compreender as redes de interações em continuidade
e inacabamento, ou seja, o processo de criação como uma
rede complexa em permanente construção” (SALLES, 2008,
p.169). Se são da natureza do processo criativo noções como
rede, complexidade e inacabamento, parece-me que a direção
no campo ampliado se mostra desejosa por intensificar as
potências que essa rede pode revelar por meio de diversificadas
possibilidades de interação, contaminação e fricção.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 124

Percebo hoje que pensar a direção/encenação requer considerar um projeto


e um processo em que um grupo de pessoas se lançará. Com isso, quero
dizer que as escolhas de direção e a criação de maiores ou menores zonas
de contaminação e diálogo com outras linguagens e áreas do conhecimento
estarão diretamente associadas às motivações, aos interesses, tendências e
recursos de um projeto e que, consequentemente, ganharão ou não concretude
e novas transformações ao longo de um processo.

Desse modo, para mim, criar um trabalho cênico é mais que “montar
isto ou aquilo”, é o desejo de realizar um projeto, um plano que carrega
aspectos poéticos, éticos e políticos. Como diretor, algumas perguntas que
constantemente me assolam são: o que queremos com esse projeto? O que
esse projeto requer? O que esse processo está pedindo? O que esse processo
está nos dizendo? Para onde esse processo aponta? Como desejamos nos
relacionar com o espectador? As tentativas de responder a essas e tantas
outras questões têm gerado instigantes experimentações de linguagens e
motivado diretoras e diretores para a descoberta de novos campos. Não
interessa aqui criar classificações para posicionar um artista, por exemplo, no
campo do teatro ou do cinema, uma vez que a arte contemporânea já aboliu
a necessidade de barreiras entre as linguagens e o que parece interessar ao
criador é justamente o que se pode descobrir naquele espaço de encontro
entre um campo e outro, ou seja, nos motiva o entre, a brecha. É nesse campo
ampliado que nossas práticas e produções parecem se redimensionar. Um
campo esfumaçado, onde, debaixo da neblina que já não nos faz distinguir com
clareza entre isto ou aquilo, descobrimos preciosidades.

Para estimular a reflexão sobre a direção no campo


ampliado, gostaria de compartilhar algumas
experiências de diretoras e diretores brasileiros.
Essas obras logicamente não se reduzem ao
aspecto que procuro apontar abaixo, simplesmente
parecem evidenciar com maior nitidez esses
campos em interação.
125 | A Encenação no Campo Ampliado

Arquitetura e urbanismo – os projetos que buscam uma


relação com o espaço urbano têm provocado aproximações
contundentes entre o campo teatral e as áreas da arquitetura e
do urbanismo. Diretores como Antônio Araújo, André Carreira,
Stefan Kaegi, entre outros, articulam jogos poéticos com a cidade
de modo a propor renovadas experimentações para atores/
performers e espectadores. Nesse contexto, noções ligadas
a campos como: deriva, urbanismo unitário, psicogeografia,
situacionismo, errância, etc. constroem um rico arcabouço
de possibilidades para os encenadores. Como exemplo da
aproximação entre essas noções citadas acima e experiências
artísticas em nossos dias, poderia destacar o procedimento da
deriva que operou como importante dispositivo no processo
de criação do espetáculo Bom Retiro 958m (2012), do Teatro da
Vertigem. Recentemente, em minha pesquisa de mestrado, pude
estabelecer algumas relações entre princípios de um movimento
da arquitetura inglesa denominado Archigram5 e aspectos
da encenação no espaço urbano a partir da prática do grupo
brasiliense Teatro do Concreto no espetáculo Entrepartidas (2010).

Cinema – na linguagem cinematográfica podemos identificar


alguns elementos estruturantes como edição, corte,
enquadramento, plano, luz, sequencia, fusão, etc. Parecem ser
também esses elementos objetos de ricas experimentações
nas pesquisas da diretora Christiane Jatahy, em obras como, 5 - Movimento criado pelos
por exemplo, Corte Seco (2009), em que a diretora lidava com arquitetos David Greene (1937),
Peter Cook (1936), Michael Webb
(1937), Warren Chalk (1927-1987),
Ron Herron (1930-1994) e Dennis
Crompton (1935) – cuja produção
se organizou em torno de uma
publicação homônima, informal e
independente, entre 1961 e 1974.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 126
O Teatro da Vertigem no espetáculo

Bom Retiro 958m (2012).

Foto: Flávio Morbach Portella.


127 | A Encenação no Campo Ampliado
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 128

a edição ao vivo fazendo uso de câmeras de


segurança e incorporando à cena situações que
ocorriam nos camarins e no entorno do teatro.
Já em E se elas fossem para Moscou? (2014),
Christiane parte do texto clássico de Anton
Tchekhov (As três irmãs) para falar de utopia e,
neste contexto, cria uma obra díptica: o espectador,
ao chegar à bilheteria, decide se quer apreciar o
trabalho na versão “teatro” ou “cinema”, de modo
que duas plateias separadas, num mesmo dia e
horário e em salas diferentes, num mesmo local,
assistem a essa criação que cria uma instigante
zona de fricção entre cinema e teatro.

Artes Visuais – elementos como cor, luz, sombra,


forma, linhas, perspectiva, volume e planos se
mostram bastante reconhecíveis quando pensamos
na linguagem visual. O trabalho dos irmãos Adriano
e Fernando Guimarães revela uma intricada relação
entre as poéticas visuais e os procedimentos
notadamente teatrais. Somam-se aos aspectos
de Christiane Jatahy (2014).
para Moscou? com direção
Cena de E se elas fossem

Foto: Leonardo Pastor.


129 | A Encenação no Campo Ampliado
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 130
131 | A Encenação no Campo Ampliado

que listamos acima noções como as de instalação,


performance, objeto de arte, que também
interagem no campo de trabalho dos encenadores.
Obras como Nada, uma peça para Manoel de
Barros (2012-2013), em que dividem a direção com
Miwa Yanagizawa, que revela um espaço cênico
composto por uma verdadeira instalação com tubos
de ensaio, talvez como uma possível referência ao
universo simples e delicado presente na obra do
poeta que inspirou essa criação. Já na performance
Respiração + (2002), os diretores fazem uso de dois
grandes aquários onde os performers realizam o
seu jogo com o ato de respirar, que é condicionado
pelos toques de uma campainha, levando-os
ao extremo na tentativa de passar mais tempo
submersos. Independentemente do ponto de
partida temático, é inquestionável a investigação de
elementos da linguagem visual nas composições
cênicas desses diretores.

Dança contemporânea – Relativamente mais


próxima do campo teatral, a linguagem da dança
no cruzamento com as práticas teatrais opera
procedimentos de direção que desenvolvem
trabalhos de um hibridismo que, muitas vezes,
parecem tensionar ao limite a relação entre as
Manoel de Barros (2012).

Foto: Ismael Monticelli.


Nada, uma peça para
Atores e cenário de
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 132

linguagens, ou parecem gerar um novo campo que não seria necessariamente mais dança
ou teatro, eliminando as margens disciplinares. Certamente, a coreógrafa alemã Pina Bausch
(1940-2009) figura como uma das referências mais importantes por explorar procedimentos
composicionais associados ao que veio a se chamar de dança-teatro. Entre os muitos exemplos
brasileiros, gostaria de destacar a coreógrafa Giselle Rodrigues, que criou com o grupo baSiraH
uma emblemática obra, De água e sal (2005), que se mostrou tão radical nas experimentações
da linguagem que, por vezes, o trabalho era recusado por curadorias de dança por entenderem
o espetáculo como teatro, bem como recusados por curadorias de teatro, que entendiam a
obra como dança. Recentemente, as diretoras Kênia Dias e Grace Passô levaram à cena Carne
Moída (2014), com formandos da EAD-USP, em que o diálogo entre a dança e o teatro parece se
materializar desde a composição da própria dupla de diretoras e transborda para a resultante
cênica que explorava justamente os “entrelugares” do jogo entre a palavra e o movimento, a
ação e a representação, a pausa e o fluxo.
133 | A Encenação no Campo Ampliado

Circo – elementos vinculados à tradição circense


na interação com o campo do teatro renderam um
dos clássicos da história do teatro brasileiro.
Romeu e Julieta (1992), do Grupo Galpão, com
direção de Gabriel Vilela, nos ofereceu um
retrato preciso da potência que a investigação de
linguagens em zonas de contaminação pode gerar.
Tínhamos um texto clássico levado para as ruas em
pernas de pau, uma atuação clownesca, atores com
a “menor máscara do mundo”, o nariz de palhaço,
truques e artimanhas dos picadeiros como gags,
acrobacias e malabares dando vida a uma das
obras mais universais da literatura. Nesse caso,
temos um cruzamento que perpassa o processo
criativo desde o treinamento dos atores até a
resultante cênica.
O diretor Gabriel Villela

ensaia Romeu e Julieta

com o Grupo Galpão (2012).

Foto: Guto Muniz.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 134
135 | A Encenação no Campo Ampliado
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 136

Poderia seguir apontando possíveis descobertas de diretores


e diretoras no cruzamento entre o campo teatral e outras
linguagens, porém, creio que foi possível com os exemplos acima
oferecer algumas pistas da discussão aqui empreendida. Soma-
se a esse contexto uma compreensão acerca do modo como,
na produção contemporânea, a própria noção de encenação
se mostra contagiada por procedimentos da performance.
Segundo Pavis (2013), “a partir do último decênio do século
XX, a tendência à aproximação de encenação e performance
confirmou-se”. Nas reflexões de Antônio Araújo, notamos nessa
aproximação com a performance a configuração do que pode ser
chamado de “encenação performativa”, justamente por envolver
elementos como o cruzamento entre diferentes linguagens
artísticas; a ênfase na noção de presença em oposição à de
representação; o foco no corpo como produtor de presença; o
campo autobiográfico que marca essas produções; a relação
com a especificidade do espaço destinado ao evento cênico; a
perspectiva processual ou mesmo de revelação dessa feitura da
obra na sua materialidade como resultante; a busca por produzir,
na relação com o espectador, um campo de experiência aberto,
inclusive, aos atravessamentos do inesperado.

Evidentemente seria de uma riqueza incomensurável termos mais


publicações com registros das práticas de direção/encenação
de diferentes diretores e diretoras. Há em seus processos uma
produção de conhecimento que se constrói na experiência e que
muitas vezes se torna tão efêmero como o próprio ato teatral.
Daí a importância de diários de encenação, artigos, dissertações
e teses que se dediquem à reflexão sobre o tema e que possam
inspirar novos desdobramentos e invenções.
137 | A Encenação no Campo Ampliado

Entre os temas que não terei tempo para discutir neste artigo,
mas gostaria de apontar, um diz respeito aos projetos que
propõem o encontro entre artistas com formações diferentes
na direção de um trabalho, por exemplo, um diretor de teatro
e um cineasta, como no caso da montagem mineira Sarabanda
(2014), com o cineasta Ricardo Alves Jr. e a diretora Grace Passô,
que criaram uma obra teatral inspirada no filme Saraband, de
Ingmar Bergman. Uma experiência exemplar de cruzamento
entre a poética teatral e a cinematográfica. O outro tema aponta
para a aproximação do campo teatral às práticas etnográficas,
tão estruturantes para a Antropologia. Intuo que essa discussão
renderia olhares significativos para as práticas de grupos teatrais
em contextos de pesquisa com tribos indígenas, populações de
rua, acampamentos rurais, travestis e transexuais, etc. Como
podemos ver, investigar as zonas de cruzamento entre o teatro
e outras linguagens e áreas do conhecimento, especialmente
na perspectiva da direção, é ainda um campo a ser mais bem
explorado e que guarda muitas contribuições às reflexões sobre
a cena contemporânea e evidenciam as transformações pelas
quais tem passado o papel ou função do diretor/encenador e seu
sentido, além das práticas recorrentes neste fazer.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 138

Para concluir, arriscaria apontar quatro categorias que podem


oferecer algumas pistas em relação ao modo como se dá esse
movimento da direção teatral e de tantos grupos rumo a outras
paragens, colocando diretores e diretoras no campo ampliado:

1 - Desejo de aprofundamento temático


- muitas vezes, é o interesse em ampliar
o olhar para um tema que faz com que
diretores e seus parceiros busquem
cineastas, filósofos, psicólogos, sociólogos,
antropólogos, urbanistas e tantos outros
profissionais para rodas de conversa,
debates, entrevistas e ensaios abertos;

2 - Demanda técnica – em alguns


casos, demandas que surgem no próprio
processo de criação, como, por exemplo,
na preparação dos atores, convoca para
as salas de trabalho e para a interação
coreógrafos, artistas plásticos, profissionais
que trabalham com práticas meditativas,
com lutas marciais, etc.;
139 | A Encenação no Campo Ampliado

3 - Cruzamento ou contaminação entre


linguagens como mote – o ponto de
partida do projeto é exatamente o desejo de
experimentar a zona de contaminação entre
as linguagens. Nessa perspectiva, o diálogo 4 - A natureza intrínseca do material
entre áreas ou linguagens artísticas não criado – o próprio material criado ao
nasce de uma demanda temática ou técnica longo de um processo artístico se revela
revelada e nem da natureza do material criado potencialmente híbrido, contaminado por
ao longo de um processo. Ele (o desejo desse natureza, ainda que o ponto de partida do
diálogo) é o próprio motivador do projeto, a projeto possa não ter tido essa intenção
origem. Por exemplo, diretores que desejam premeditada (a diretora pode não ter tido
investigar as relações entre teatro, intervenção como foco a criação de um trabalho de
urbana e performance, de modo que esse dança-teatro, porém, a resultante apresenta
interesse determina a organização das essa natureza ou materialidade). Numa
etapas do trabalho, as escolhas temáticas e a investigação mais vertical, talvez, isso
composição da equipe; se explique pelas características ou
pelo histórico de formação dos artistas
envolvidos; pelas referências que possam
ter atravessado o processo de criação; pela
capacidade do tema escolhido em imantar
diferentes materialidades e recursos para
expressá-lo; pelo ambiente de criação, etc.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 140

Gosto de pensar a encenação como um percurso


entre dois pontos: o “vir a ser” e o “dar-se a ver” de
uma obra. Nessa perspectiva de uma compreensão
ampla do que seja encenação/direção, me parece
que esse movimento cada vez mais intenso e
habitual do teatro rumo às outras linguagens é uma
ponte fundamental para pensarmos a formação do
diretor hoje, e um indutor de potências para que
a arte que produzimos no nosso tempo encontre
modos de afetar as sensibilidades de agora.

*Agradeço a Bárbara Tavares, Glauber Coradesqui,


Júlia Guimarães e Marcos Coletta pela leitura atenta
e pelas contribuições na revisão deste texto.
141 | A Encenação no Campo Ampliado

Bibliografia

BARROS, Manuel de. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013.

CARVALHO, Francis Wilker de. Teatro do Concreto no concreto de Brasília:


cartografias da encenação no espaço urbano. São Paulo: Escola de
Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 2014 (Dissertação de
Mestrado).

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo.


In: Revista Sala Preta. São Paulo: PPGAC/USP, v. 9, n. 1, 2009. pp. 197-210.

KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. In: Gávea – Revista do


Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil. Rio de
Janeiro: PUC-Rio, n.I, 1984. pp. 87-93.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

PAVIS, Patrice. A encenação contemporânea: origens, tendências, perspectivas.


Tradução Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2013.

SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação: construção da obra de arte. 2.ed.


Vinhedo: Editora Horizonte, 2008.

SILVA, Antônio Carlos de Araújo. A encenação no coletivo: desterritorializações


da função do diretor no processo colaborativo. São Paulo: Escola de
Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, 2008 (Tese de doutorado).
SOBRE A DIREÇÃO
DE ATORES:
UMA REFLEXÃO
Ferran Utzet 1
(BARCELONA/ESPANHA)
1 - Ferran Utzet é ator e diretor catalão.

Formado em Barcelona e na Ucrânia com diferentes

mestres (Fernando Griffell, Christophe Marchand,

Sergei Ostrenko, Oriol Broggi). Tem trabalhado como

diretor em diversos teatros de Barcelona e da Espanha.

Dedica-se, também, à docência teatral, ministrando

workshops e oficinas em diferentes espaços e,

sobre- tudo, apostando no teatro universitário.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 144

LEMBRO-ME DA PRIMEIRA VEZ


em que participei de um ensaio profissional.
Oriol Broggi, diretor a quem admirava e que,
apesar de sua juventude, já tinha construído
uma sólida carreira com sua companhia La Perla
29, tinha me contratado como assistente de
direção para sua nova montagem, Natale in Casa
Cupiello, de Eduardo de Filippo. Eu tinha estudado
interpretação e, depois, dei meus primeiros passos
como diretor... Mas isso era diferente. Isso era jogar
na série A. Era trabalhar com atores de renome,
era ser membro de uma companhia de teatro de
prestígio, era ser o assistente do melhor diretor do
momento. Eu estava ansioso.

O processo de ensaios começava com um encontro


da equipe artística: atores, cenógrafo, figurinista,
iluminador e diretor, para fazer uma primeira leitura
do texto. Eu tinha lido a peça dezenas de vezes,
e cheguei à sala de ensaio ansioso. Eu estava
morrendo de vontade de ver como um diretor
experiente iluminava a equipe com suas ideias
sobre o trabalho que nos esperava. Eu estava
ansioso para ouvi-lo falar sobre objetivos, conflitos
e superobjetivos dos personagens, para ver como
ele desvelava as intenções e os subtextos ocultos
em repetições aparentemente banais, para saber
qual dramaturgia e quais ideias estéticas proporia
para a equipe. Era um dia muito importante!
145 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

Eu chegava nesse primeiro ensaio convencido de que o diretor tinha que


ser o macho-alfa da cena, pensando que sua missão era dominar, com sua
sabedoria inquestionável e seus conhecimentos esmagadores, uns atores
inicialmente altivos e desconfiados. Eu estava preparado para ver uma luta sem
trégua na qual um grande e nobre espírito iria esmagar algumas feras e as iria
transformar em mansas ovelhas. E, uma vez domadas, seguiriam sem reclamar
o caminho indicado por esse líder, por esse dorso prateado, por esse messias
de quem eu era assistente.

Fiquei surpreso com a rapidez com que o grande diretor despachou a


apresentação. Foram apenas cinco minutos: é uma peça muito fácil, ele disse.
Depois, ele resumiu o argumento de forma esquemática e, sem parar de fazer
piadas, começamos a ler. Ele está se reservando, pensei. Quer que confiemos
nele. Vocês vão ver quando ele começar a falar sobre estímulos, motores,
antagonistas e arcos dramáticos! Vai deixá-los perplexos, boquiabertos,
desconcertados!

No entanto, enquanto o ensaio avançava, percebi que Oriol não usava


tecnicismo nenhum nem sofisticação nenhuma para transmitir suas ideias.
“Aqui mais alto, esta frase um pouco mais lenta. Na Itália, eles dizem mãe ou
mamma?” - e coisas nesse estilo. Nós líamos mais de vinte páginas em uma
atmosfera extremamente descontraída e agradável. Não havia lutas pelo poder,
não havia monólogos profundos nem intelectualidades. Quando o ensaio
acabou e eu perguntei sobre quais ele acreditava serem os objetivos ocultos
dos personagens, ele me disse que à tarde os explicaria para mim. Mas o que
fez pela tarde foi pegar suas filhas na escola e me deixar esperando na sala de
ensaio. Há rachaduras, ele disse, e isto desconcentra os atores.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 146

Desse momento em diante, tentei não fazer perguntas


“profundas” e me dediquei a olhar com mais atenção como
Oriol trabalhava com atores. Fui vendo como as indicações que
ele dava eram superficiais só na aparência, já que apontavam
os pontos fracos do desenho do personagem proposto pelos
atores. Às vezes, para dinamitá-lo; às vezes, para melhorá-lo; às
vezes, para questioná-lo; às vezes simplesmente para manter
viva a inquietude criativa. Essas pequenas indicações, sutis,
formais, escondiam uma intuição profunda do processo que os
atores vivenciavam. Oriol dirigia os atores desde a forma, desde
a superfície, desde a recepção. De forma descontraída, após
o ensaio, dialogava com eles sobre o significado, a essência,
os antecedentes, sem impor sua visão, sem sofisticações. No
meio, uma caixa preta sobre a qual não se falava: ela continha a
estratégia seguida por cada ator para avançar durante o processo
de ensaios. A caixa preta que registrava, como nos aviões, as
chaves de um processo no qual ele não interferia, já que este
processo era o pequeno tesouro, o segredo de cada ator.

Passaram os anos e foram muitas as vezes em que o diretor que


começava o processo de ensaio com uma pequena conversa era
eu. Processo a processo, gerindo cada vez melhor essa estranha
mistura de euforia e inquietude que me domina no primeiro dia,
continuo aplicando algo que aprendi nesse primeiro ensaio: que
meu trabalho é dar forma a partir do exterior sem me intrometer
no complexo processo psicofísico e emocional que cada ator
vivencia, acompanhando-o com intuição, respeito e amor. A arte
de dirigir atores é a arte de dar forma ao que é vivo, trabalhando
com uma pessoa que está envolvida em um processo interno,
inconsciente, contraditório e extremamente frágil; um processo
atores a peça Translations.

do qual pode surgir (ou não) algo maravilhoso. Na grande


Ferran Utzet ensaia com

Foto: Marina Raurell

dificuldade em acompanhar esse processo, em facilitar o parto,


radica a incomparável beleza desse ofício.
147 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

A EQUAÇÃO HUMANA

Para mim, dirigir um ator começa


por tentar conhecer e compreender
a pessoa da maneira mais simples
possível: conversando. Começar
dessa forma ajuda a instalar um
relacionamento saudável e fluido,
algo essencial no estranho e íntimo
processo que vamos vivenciar juntos,
mas também para começar a adivinhar,
sem malícia, como eu vou me
relacionar com ele na sala de ensaios.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 148

Cada ator é diferente, e acho importante saber personalizar não só o que lhe é dito, mas também
como isto é dito. Como ele é ouvido, que tipo de indicações (concretas, abstratas, físicas) vão ser
dadas a ele... Tudo isso é importante. Pede muita atenção? Vou dar. Prefere fazer as coisas do seu
jeito? Então, não vou ser eu quem vai impedir. É do tipo inseguro e precisa de reforços positivos?
Ótimo, eu vou dar. Quer que diga que está fazendo mal e que é um desastre? Isso, normalmente,
não vou fazer, mas talvez seja um pouco mais duro com ele. Trabalhar o relacionamento
com todos e com cada um dos atores, e não apenas com os protagonistas, desde o início, é
fundamental. É o aspecto decisivo para instaurar o ambiente que me parece necessário trabalhar,
amigável e concentrado ao mesmo tempo. Não há nenhuma obrigação: há diretores que gostam
de trabalhar a partir do caos, outros que instauram o terror; eu gosto da amabilidade combinada
com a intensidade. E, para que reine esse ambiente, é essencial que o grupo esteja coeso, e que
a autoridade necessária ao diretor esteja baseada na total confiança da equipe.

Eu diria que o lugar onde essa coesão tem que


ser atingida não é apenas a sala de ensaio.
É também a cozinha, o bar, o local onde alguns
fumam um cigarro durante o intervalo. Eu acho
que é essencial que a companhia se conheça,
converse e se divirta. O descanso deve ter a
importância que merece, porque é nele que os
grupos se formam, quando a humanidade flui,
quando os atores secundários entendem que são
tão importantes quanto os principais, quando o
espírito da companhia é criado. É aí que se tem
que enraizar uma ideia que eu gosto de enviar de
forma firme e constante na sala de ensaio: que
todos os atores são fundamentais, e todos nós
estamos atuando na mesma peça.
149 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

A TANGENCIALIDADE

Eu gosto de dedicar muita atenção a todos os atores da


companhia. Gosto que, para além de um motor interno, um
ator esteja constantemente estimulado pelo que propõem seus
companheiros. Trato de trabalhar a partir da tangencialidade,
ajudando e dando pistas a atores que não estão no foco
para provocar as mudanças que quero observar nos atores
que estão no foco. Não é somente uma questão de repartir a
atenção entre todos os integrantes da companhia para fazer
visível um posicionamento ideológico (que o teatro é um
trabalho de equipe, que todos são importantes). É também um
posicionamento estético.

Tomemos, por exemplo, o primeiro ato de Rei Lear, quando o monarca explode de raiva
com sua filha Cordélia porque ela se recusa a lisonjeá-lo como suas irmãs Goneril e Regan
o fizeram. Essa cena pode ser resolvida apenas trabalhando com o ator que interpreta o rei,
com os oito ou nove atores que o acompanham no palco transformados em blocos sem
movimento e silenciosos à espera das poucas réplicas que lhes oferece a ira de Lear. Mas
também pode ser resolvida trabalhando sobre esses oito ou nove atores, decidindo para qual
personagem (Gloucester? Kent? Cordélia? Goneril? Regan?) o rei diz cada frase. Procurando o
que fez cada personagem para provocar esse verso que lhe foi dito nesse momento concreto,
como ele reage ao ataque. Trabalhar a partir da ideia de que essa é uma cena de grupo,
embora a maioria dos personagens mal fale. O ataque de fúria de Lear é causado por uma
situação determinada, na qual participam todos os personagens que estão no palco, e suas
palavras têm que estar carregadas pela indiferença camuflada de suas filhas mais velhas, por
como respiram os maridos delas, por como os cortesãos colocam o olhar para baixo, pela
forma como sua filha mais nova mantém o contato visual com ele, por como alguns tentam
acalmá-lo sem sucesso.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 150

É claro que essas ações devem ser calibradas de modo que não
perturbem o foco e não traiam a atmosfera da cena: isto também
é trabalho do diretor. Mas é bom lembrar que enriquecer a
interpretação de Kent, Cordélia ou Goneril nessa cena na qual
não falam serve para algo além de evitar que fiquem entediadas
e se tornem armários, que contam os minutos faltantes para sua
próxima réplica: são as reações, os detalhes destes personagens
silenciosos, mas vivos, que dão volume autêntico, textura e
relevo ao que Rei Lear está dizendo.

OS DETALHES

Muitos diretores dão importância aos detalhes no final do


processo, quando a peça já esta resolvida. Nesse ponto se
dedicam a polir e aperfeiçoar gestos, olhares, intenções, ritmos.
Eu gosto de trabalhar os detalhes desde o princípio. Desde o
pequeno, quase invisível, eu construo a partir do detalhe já no
primeiro ensaio. Eu tento transmitir ao ator a sensação de que
estou colocando atenção em cada olhar, em cada ritmo na frase,
em cada intenção. Eu gosto que os atores compreendam não só
que não vou perder nada, mas também que repetiremos o gesto,
por mais banal que possa parecer, até obter a qualidade justa.
Penso que é muito mais interessante trabalhar a partir do detalhe
atoral do que a partir da leitura intelectual da obra, que é algo
que eu mesmo descubro durante o processo de ensaio e que eu
tendo a pensar que está latente na obra.
151 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

Assumindo o risco de ficar preso, começo do pequeno, e evito os grandes


debates “sobre o personagem” ou sobre “o que o autor quer dizer”. Dedico-
me para ser minucioso e muito exigente nos acabamentos desde o início,
aplicando o já mencionado princípio de trabalhar de fora para dentro e me
concentrando em conseguir que os personagens expliquem a história e tenham
volume, densidade, textura e relevo. Penso que quanto mais rápido eu ajudar
o ator a matizar, ainda que seja matizar a forma como ele lê o jornal, mais
rapidamente ele construirá o resto da personagem e vai preencher as lacunas
de forma cada vez mais autônoma e intuitiva. É interessante recordar como
Ingmar Bergman explica o primeiro ensaio que viu de seu mestre Hammarén:

“[...] Vinte e três atores no palco, todos sentados, bebendo chocolate e dizendo
algumas breves respostas. A direção de Hammarén é mortalmente detalhada, e
exige uma paciência infinita: ‘Quando Kolbjörn diz sua resposta sobre o clima,
pega uma massa, em seguida, mexe o chocolate com uma colher. Por favor,
faça-o’. Kolbjörn ensaia. O diretor corrige. ‘Wanda serve o chocolate da jarra da
esquerda e sorri amavelmente para Benkt-Ake. Façam-no!’ Os atores ensaiam.
O diretor corrige. Impaciente, eu penso: esse cara é o coveiro do teatro, a ruína
da arte teatral. Hammarén permanece imperturbável: ‘Tore estica o braço para
pegar uma massa e acena a cabeça em direção a Ebba. Eles disseram algo
que não ouvimos. Procurem um tema de conversa adequado’. Ebba e Tore
propõem. Hammarén aprova. Ensaiam. Eu penso que aquele velho ditador
antiquado já conseguiu eliminar todo o prazer e a espontaneidade dessa cena.
Ele a petrificou. Depois de intermináveis ​​horas de repetições, interrupções,
correções, ajustes e outros jargões, Hammarén considera que chegou o
momento de representar a cena do começo ao fim.

E o milagre acontece.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 152

Começa uma conversa leve, descontraída e divertida com todos


os gestos sociais que estão presentes em uma chocolatada:
olhares, insinuações e condutas conscientemente inconscientes.
Os atores, que se movimentam seguros no marco ensaiado com
precisão, sentem-se livres para agir. Improvisam com fantasia
inesperada e bem humorada. Nunca invadem o terreno de um
companheiro, mas respeitam a tonalidade e o ritmo. Eles vão
descobrindo suas possibilidades dentro de limites claramente
definidos. Satisfeitos, aguardam o momento em que podem
colocar em jogo a própria criatividade. A chocolatada não se
desmoronava nunca [...].”

Nessa bonita reflexão há, porém, um aspecto que é


negligenciado e que me parece essencial. A imposição de limites
e diretrizes que transmitem segurança e cotidianidade para os
atores é eficaz e muitas vezes necessária, mas creio que de uma
ótica um pouco menos individual do que sugere o fragmento
de Bergman. Eu penso que é trabalho do diretor entender o
que o ator está propondo a cada momento. Um ensaio jamais
pode consistir em chamar a atenção do ator quando ele faz algo
diferente do que pensávamos quando líamos confortavelmente
sentados em nossa poltrona favorita. O diretor tem que ter a
capacidade de entender o que o ator está propondo e saber
discriminar nesse momento se aquilo é interessante ou não. E
não falo apenas sobre aquilo de que o ator está ciente, mas mais
especialmente sobre aquilo que ele está propondo de forma
intuitiva ou embrionária. O diretor deve perceber com precisão o
que o ator está sugerindo, para aprimorá-lo, matizá-lo ou rejeitá-
lo, pois é por meio dessa via inconsciente que mais fortemente se
produz a conexão com o público.
153 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

Penso que a sensibilidade do ator se traduz justamente nessa


ocasions, com direção de

capacidade de propor inconscientemente (uma maneira de andar,


Espetáculo Les millors

um tom de voz, uma forma de respirar) a partir de uma profunda


compreensão da peça. A sensibilidade do diretor está na outra
Ferran Utzet.

extremidade da cadeia de comunicação: na capacidade de perceber


com precisão as mensagens que o ator envia inconscientemente e em
detectar se estas mensagens distorcem ou enriquecem a leitura da obra.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 154

INFLAR O TEXTO

Penso que com muita frequência nós, diretores, desdenhamos a


poderosíssima cultura ficcional do nosso público, e transmitimos este
desdém (com frequência disfarçando-o de amor pela alta cultura) às nossas
equipes artísticas. É ingênuo, se não francamente arrogante, pensar que
o consumo contínuo de filmes, seriados e comerciais (aquelas pequenas
histórias contadas em menos de um minuto) não tiveram efeito nenhum
sobre a capacidade receptiva dos espectadores. O cidadão comum pode
não saber sobre mitologia grega, como parece acontecer na Inglaterra
elisabetana, mas domina a narrativa, entende muito rapidamente sobre
do que trata uma história, intui quais personagens escondem segredos
(e quais segredos) e percebe na hora os maus atores. Penso que uma das
grandes dificuldades do teatro nesta era da velocidade e da hiperinformação
é precisamente manter o interesse do espectador quando ele já entendeu,
e muito provavelmente previu, todo o enredo. Por essa razão, penso que
os atores e os diretores que os dirigem têm hoje a tarefa extra não só de
interpretar de forma convincente os personagens das peças, mas também
de inflá-los. Com essa palavra quero dizer adicionar relevo, complexidade,
densidade, textura, perigo, possibilidades ao personagem e à situação. Eu
não falo sobre uma escavação psicologista, algo que me falta interesse, nem
sobre uma intervenção radical no palco que modernize ou atualize a peça,
nem que confunda o espectador. Falo sobre dar à interpretação um nível de
profundidade e perigo que faça com que nós, espectadores, percebamos
uma vida latente, um suspense que nos exija uma concentração máxima.
Devemos oferecer para o espectador atento universos de complexidade,
respeitando a estrutura da peça. Daniel Veronese é o mestre absoluto dessa
técnica, que sobressai quando é executada por atores argentinos. Seus
trabalhos baseados em Tchekhov (Los hijos se han dormido; Mujeres soñaron
caballos; Un hombre que se ahoga) são exemplos conseguidos de forma
extraordinária usando essa técnica de difícil descrição. Às vezes uma imagem
ajuda: compreender o texto teatral como a lona de um balão inflável. Então, o
trabalho do ator é a chama que aquece o ar, infla o texto e permite que a peça
voe, confundindo e surpreendendo, agora sim, os espectadores. Um balão
vazio não voa. Ou pior, ele espatifa. O texto tem que ser inflado.
155 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

OS MÉTODOS

Tendo a pensar que os métodos de interpretação


“ortodoxos” servem para estudar, não para
trabalhar. Servem para ajudar a percorrer o
caminho uma vez, para que o pedagogo tenha uma
linguagem a ensinar anos após ano, para que os
estudantes da escola aprendam essa linguagem
comum que outros aprenderam antes deles.
Eu, inclusive, diria que os métodos servem para
esconder a enorme dificuldade inerente ao ofício
de atuar, assim como o horizonte se esconde na
imensidão do mar.

Os métodos são úteis para “chegar” uma vez, talvez duas,


seguramente não mais de três (e quando digo “chegar”, falo
sobre essa estranha sensação, tão estranha e deliciosa, que se
apropria do ator quando ele entende que realmente atuou bem).
Depois, esses métodos vão perdendo forma, se adaptando, se
transformando, se deixando esquecer e acabam se tornando
uma somatória terrivelmente pessoal de estratégias, recursos,
intuições. O ator seleciona o que é útil para ele e o que não é,
e se enriquece com cada novo trabalho, aprende algo de cada
diretor. Não falo sobre o que eu gostaria que acontecesse: falo
do que acredito que acontece. Algo parecido (ou ainda pior)
acontece com os métodos de direção de atores. Existem alguns
manuais, mas quase sempre baseados em algum método:
Stanislavski, Lecoq, Meisner, etc. Escutei sobre um método que
se chama Viewpoints, mas, para falar a verdade, ele está presente
essencialmente no mundo anglo-saxão, e no panorama catalão
sua presença é pouco mais que um testemunho.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 156

Por outro lado, me parece ser possível falar sobre tendências. De estilos, de gestos de
interpretar, de lugares singulares aos que o diretor pode ir junto com o ator. Nesse sentido,
o mundo da interpretação teatral vai mais longe ainda que o mundo da interpretação
audiovisual, dominado de modo poderoso e implacável pelo naturalismo anglo-saxão há
décadas. Salvo contadas exceções, espíritos livres como David Lynch ou Aki Kaurismaki,
que propõem para seus atores registros de interpretação singulares, existe uma forma
essencialmente correta de atuar bem no cinema. A interpretação teatral, por outro lado,
admite outros vernizes e se tinge mais facilmente do zeitgeist, do espírito do tempo, e,
por este motivo, analisá-la pode ser mais fecundo.
Espetáculo La Presa,

com direção de Ferran Utzet.

Foto: Mas Segura


157 | Sobre a direção de atores: uma reflexão
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 158

AS TENDÊNCIAS

Quais tendências, então, temos na direção de atores? Não é


simples responder com critério a esse questionamento, e eu me
considero um homem de teatro mais em sua dimensão artesanal
que em sua dimensão acadêmica. Cheguei ao teatro depois de ter
estudado Matemática durante muitos anos, e o que me seduziu
neste mundo não foi, em absoluto, o que de acadêmico pode
ter, mas fui atraído pelo humano, pelo grupal, pelo efêmero.
Talvez por esse motivo, e pelos mestres que tenho encontrado,
desconfio do excesso de intelectualidade no âmbito cênico. Mas
vou me aventurar a fazer uma análise, e desde já me desculpo
por não ser um expert: vou expressar uma valoração puramente
pessoal e, com toda segurança, incompleta.

Permitam que eu comece apresentando meu habitat. Barcelona,


a “célula de produção teatral” na qual habitualmente trabalho,
é a capital da Catalunha, uma comunidade autônoma envolvida
em um complexo processo de autodeterminação e possível
independência da Espanha. A Catalunha apresenta, de forma
inquestionável, uma identidade cultural singular, que começa por
uma língua própria, o catalão, e continua com uma idiossincrasia,
com uma forma de viver em comunidade também própria e
reconhecível. Penso que a melhor forma de descrever o caráter
catalão é, em poucas linhas, explicando que na Espanha
a Catalunha é percebida como “europeia” (fria, comercial,
organizada, trabalhadora, rígida) e, por outro lado, na Europa é
considerada como “latina” (cálida, festiva, caótica, espontânea).
Imagino não haver país que não oscile entre esses dois
posicionamentos vitais, mas continua sendo curioso que as duas
grandes influências que impactaram o teatro catalão venham,
justamente, destes dois eixos opostos que aparentemente o
definem: um é claramente latino e o outro, claramente europeu.
159 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

Em primeiro lugar, temos o olhar argentino, que


aprendemos com diretores como Daniel Veronese,
Rafael Spregelburd ou Javier Daulte. A forma
argentina de conceber a teatralidade teve um
profundo impacto nos âmbitos dramatúrgicos
e atorais (antes falávamos sobre métodos: uma
escola de interpretação de Barcelona oferece
cursos do que chama de método Daulte). Os atores
argentinos propõem personagens muito bem
construídos, de uma veracidade e organicidade
supremas, com um nível de escuta interna
grandioso, combinado com uma formidável
intensidade. Esse conjunto de características,
unidas ao fato reconhecível de que os personagens
costumam falar ao mesmo tempo, um em cima do
outro, transmitem uma sensação de facilidade e
naturalidade fascinantes.

Existe algo importante e subjacente às propostas


argentinas em relação à dimensão coletiva do
fazer teatral. Parecem conceber o ato teatral
como um lugar de encontro eminentemente
lúdico, dionisíaco, embora, por não estar longe
do intelectual, seja menos contundente. Penso
que essa ausência de responsabilidade liberta os
diretores e, especificamente, os atores argentinos
de uma carga, e, de alguma forma, “naturaliza”
seu gesto.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 160

As cargas intelectual e moral que o teatro pode ter são


assumidas pela outra grande influência que age sobre o
teatro catalão: a do teatro “nórdico”, para dar algum nome,
representada pelos diretores alemães (Frank Castorf e Thomas
Ostenmeyer), belgas (Ivo van Hove e Peeping Tom) e holandeses
(Jan Louwers). Esses diretores levaram a Barcelona peças
frequentemente desconcertantes, às vezes excessivas, quase
sempre de um altíssimo nível técnico. São propostas com uma
grande profundidade dramatúrgica e que costumam oferecer
experiências cênicas muito poderosas. Os atores que melhor
encarnam essa corrente estética são uma espécie de “atletas
das emoções,” usando uma expressão de Artaud. Com um
grande treinamento físico e psicoemocional, são atores que não
precisam do naturalismo inglês e são capazes de transmitir o
expressionismo, a abstração ou a estranheza com uma facilidade
surpreendente e uma conexão emocional extraordinárias. A
calidez desses atores não é epidérmica, ela é subterrânea, e
eles propõem personagens que, geralmente, estabelecem uma
relação de algum modo distante com o espectador. O impacto
dessa corrente estética tem sido particularmente forte no âmbito
da direção cênica.
161 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

Penso que é na encruzilhada entre esses dois universos que


se encontra neste momento não apenas o teatro catalão,
mas também todo o teatro contemporâneo. Não deixa de ser
significativo, agora eu entendo, que sejam esses dois universos
que se enfrentaram na última Copa do Mundo, tanto na final
(Argentina x Alemanha) quando no jogo pelas terceira e quarta
posições (Holanda x Brasil). Latino ou europeu, católico ou
protestante, eficaz ou feliz, espontâneo ou rígido, preguiçoso ou
trabalhador, anárquico ou disciplinado, físico ou mental, pobre ou
rico… Quem tem a razão nesse duelo de clichês, de estereótipos,
de lugares comuns que finalmente não deixam de expressar duas
posturas vitais opostas?

Posso dizer que, pessoalmente, prefiro o olhar latino, apesar


de saber que sou portador - mesmo que seja de um modo
inconsciente - do olhar europeu. Por isso, e como bom
representante da proverbial diplomacia e do espírito conciliador
catalão, profissionalmente tenho a tendência a pensar que é bom
aproveitar as duas influências e incorporar ambos os olhares.
Mantendo a metáfora do futebol, tenho tentado fazer o que
de forma muito exitosa Pep Guardiola fez com o Barça, esse
curioso híbrido entre espontaneidade e ordem, entre facilidade e
preparação, entre disciplina e liberdade, entre rigor protestante
e espontaneidade mediterrânea. Vocês podem ver, não consegui
evitar: usei a grande metáfora, o futebol. Deve ser o espírito de
nosso tempo. Ou, talvez, que eu tenha que ir terminando.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 162

ENTÃO, VAMOS TERMINANDO

O diretor segura o leme e aparenta segurança: finge saber aonde


ele vai, fala com entusiasmo de uma ilha maravilhosa. Garante
saber qual é o caminho para chegar até ali, pede confiança para
sua tripulação, tenta transmitir força, otimismo, confiança. Não
submete, ele trata de convencer. Mas não faz ideia alguma. Pior
ainda: ele sabe que essa ilha, essa Ítaca, não existe. Porém, sabe
também que Ítaca pode existir. Que a força da imaginação, do
trabalho e do amor pode gerar essa pequena ilha que se sonha
e que se fala com emoção. No entanto, não pode dizê-lo. Intui
que não precisa ser arrogante, mas sabe perfeitamente que deve
transmitir certezas e não dúvidas ou promessas vagas.
163 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

O bonito dessa história é que nesse Loucos fingindo ser Boa sorte.
barco de loucos todos sabem que essa lúcidos, seguindo um
ilha não existe. Mas também sabem louco que finge ser
que, se falarem isso em voz alta, se lúcido. Essa é a beleza
desconfiarem, não terão a capacidade do teatro, isso é a
de criá-la. E, então, eles não vão direção de atores.
chegar. Não há mais remédio: os
atores têm que assumir corajosamente
o desafio de seguir Ulisses. Têm que
aceitar o risco de acreditar nele e na
Ítaca da qual se fala.
SOBRE VIVER
EM GRUPO
Miguel Rubio 1
(LIMA/PERU)
1 - Miguel Rubio Zapata é membro fundador e atual

diretor do Grupo Cultural Yuyachkani (1971), no qual

postula um teatro de criação e pesquisa a partir do

material produzido pelos atores. Tem como base a

pesquisa da cultura peruana e sua aplicação nas

expressões artísticas contemporâneas. Tem leci-onado

em universidades de Porto Rico, Estados Unidos, Cuba,

Itália e Brasil. No ano de 2010 o Institu-to Superior de

Arte da Universidade de Havana lhe outorgou o

Doutorado Honoris Causa em Arte.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 166

PARA O ODIN,

COMPANHEIROS FORJADORES DE CAMINHOS.


167 | Sobre Viver em Grupo

A meio quarteirão da casa de minha infância havia uma pequena


ferragem onde eu gostava de entrar, sempre com algum pretexto
para sentir os cheiros de tinta, ver as latas cheias de cores em
pó que eram cuidadosamente pesadas na velha balança que
estava sobre o balcão de madeira, totalmente salpicado de cores.
Adorava observar as ferramentas e os acessórios que estavam
atrás do balconista, pequenas caixas com parafusos e pregos de
diferentes tamanhos na tampa, prateleiras com gavetas fechadas
cujo conteúdo eu imaginava. As pessoas que compravam lá
chegavam com a amostra do que precisavam na mão ou faziam o
pedido com muita exatidão: pregos de duas polegadas, parafusos
de meia, pregos sem cabeça para concreto, pregos para madeira
ou chave phillips, entre outras. Às vezes, o atendente ia para a
sala ao lado para trazer o pedido; nem tudo era visível, nem tudo
se podia tocar como acontece agora nas grandes lojas, onde
tenho o costume de ir para tocar tudo o que posso e descobrir
o uso dos artefatos, alguns ainda artesanais e outros muito
sofisticados, que são os que menos me interessam.

Essa é a imagem que se apresenta quando penso no Odin,


que conheci há 35 anos: um grupo que tinha consigo algo
como um caudal de ferramentas que se deixavam sentir em
seu treinamento e em suas obras, algumas visíveis e outras não,
mas estavam ali.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 168

A técnica é a destreza para reconhecer e selecionar a ferramenta


justa, a que faz falta em cada momento do processo para construir
ou modificar algo; temos que ser exatos para encontrar o acessório
preciso e, caso seja necessário, adaptá-lo ou inventá-lo. A invenção
tem sido a chave em nosso processo e na qual chegamos por
mandato dos mestres, com eles ou em discussão,
ou inclusive negando-os.

A técnica - ou a ausência dela - é parte da mitologia de nosso


ofício. Abraçá-la é nosso tema recorrente e nossa utopia,
tão distante e impossível como o jogo do cão que persegue a
lebre e se aproxima dela, mas raramente consegue alcançá-la.
Pensar muito sobre isso sem ter um norte pode ser um desgaste;
essa aspiração de atingi-lo apenas se afina e se aprimora quando
é concreta e tem um porquê para além do domínio da forma,
da exibição dos alardes ou da preciosidade, em que geralmente
aparece vazia.

Se eu tivesse que definir como temos enfrentado a busca de


técnica, eu diria que foi enfrentando nossas crises. A técnica é a
procura da ferramenta necessária para abrir os processos,
para fazer perguntas e, quando a pergunta é encontrada,
aparece uma pequena luz.
169 | Sobre Viver em Grupo

Agora entendo o porquê da imagem da ferragem de minha


infância quando penso em meus irmãos do Odin, que levam 50
anos de vida intensa. Quando os encontramos em Ayacucho, no
ano de 1978, para mim, eles eram um caudal de ferramentas.
Devido a essa curiosidade, fomos ao encontro do grupo. Parecia
uma caixa hermética que guardava princípios que não podiam
ser mudados, exercícios que necessariamente deveríamos
realizar para atingir o ofício. Durante todos esses anos temos
ficado por perto desse referente prático e teórico. Agora nem
eles nem nós somos os jovens daquela época, nossos corpos
acusam o recebimento do tempo. Alguns membros da família do
nosso grupo já nos deixaram, “estão à nossa frente”, como dizia
minha mãe. Não somos nem seremos os mesmos depois dessas
ausências, como também não é a mesma a querida Huamanga
que nos acolheu em Ayacucho, onde apenas dois anos depois
de nosso encontro começou uma história de dor e morte, da
qual ainda não nos podemos separar; mas, para falar a verdade,
embora a guerra tenha começado em 1980, a prostração e a
violência vêm de muito tempo atrás. Não tenhamos ilusões, não
era melhor antes da guerra, nem é melhor agora.
Eugenio Barba, diretor

do Odin Teatret conduz a pesquisa

Theatrum Mundi, em Bologna/Italia (1990).

Foto: Fiora Bemporad/Acervo Odin Teatret


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 170
171 | Sobre Viver em Grupo
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 172

Esse tempo de violência nos deixou marcas


profundas e também novas perguntas. Para que
serve o que fazemos? Em que lugar do conflito nos
posicionamos? Nós, que cantamos “punho em alto”
quando as batatas ainda nem estavam tão quentes?
O que o teatro pode fazer ou dizer perante a morte
impune? Os massacres diários, as sepulturas
clandestinas... E daí? O que aconteceu com a
imagem da ferragem e da caixa de ferramentas?
E o Odin, com sua técnica perfeita e seus
atores coloridos?

Essas perguntas condicionaram nosso caminho,


nosso ofício que nunca abandonamos. A técnica
foi, então, contestada pelos tempos e nos obrigou
a procurá-la enfrentando nosso espanto que se
transformou em crise. A técnica não é nada se não
passa pela vida, se não percorre as palpitações
do dia a dia, dos tempos sombrios de que Brecht
falava. Nisso estivemos e nisso ainda estamos.
Essas perguntas também nos irmanam com o Odin.
173 | Sobre Viver em Grupo

É claro que eles podem ser mais cínicos; a emoção ainda


costuma ganhar de nós. Isso parece ser algo que nos torna
diferentes, porém, no que nos parecemos, é que agora a técnica
em si não é o objetivo final, ela importa apenas o necessário
ou, melhor dizendo, tem seu lugar, está no corpo e na mochila
que carregamos nas costas, e sabemos que render culto à
técnica, nestes tempos, pode ser uma prática francamente
frívola. Compreender e aceitar a diferença têm sido um exercício
fundamental para sermos os amigos e irmãos que somos,
aprender as teatralidades diversas tem sido um caminho comum.

No início, estávamos obcecados com a identidade


de nosso teatro e, aparentemente, nós gestávamos
essa identidade baseados na função da rejeição
do outro, daquilo que se apresentava a nós como
ameaçador. Agora, mais que pensar em uma
identidade de forma estática, temos aprendido a
compreender que as identidades têm movimento,
viajam no tempo, transformam-se. Penso no
reconhecimento mútuo como base para o diálogo,
e este reconhecimento supõe aceitar a convivência
na diferença.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 174

O encontro com o Odin e nossa abertura para outras culturas


teatrais do mundo têm sido fundamentais para nos olharmos. Dar
um lugar a nossas fontes, fortalecer a nossa memória e, acima de
tudo, nos sentirmos parte desse fantasma que percorria o mundo
e que era o teatro de grupo.

Desde meados do século passado ocorrem mudanças


importantes na história do teatro da América Latina, mudanças
marcadas pelo que poderíamos chamar de uma reapropriação do
teatro em vastos setores populares que o tomam para si. Dessa
forma, a cena se revitaliza com a aparição de novos temas, novos
personagens, novos espaços, como também de novas formas de
organização baseadas na desierarquização de papéis tradicionais:
companhia, empresário, autor, diretor, ator, técnicos, entre
outros, isto é, mudanças nos modos da produção e aparição de
comunidades autogestionárias para a produção teatral.

Historicamente, o teatro de grupo foi a resposta a uma estrutura


de organização teatral conservadora, que nada tinha a ver
com os ventos de liberdade que nos despertavam no teatro,
fornecidos pela força que sentíamos ter para realizar o teatro de
que precisávamos. Encontrar liberdade para criar tem sido, em
minha opinião, o mais interessante; o que deixa a experiência
da criação coletiva, uma atitude antes ética do que estética, e
que teve como consequência a convicção para inventarmos o
teatro que fazemos.
175 | Sobre Viver em Grupo

Considero que o que permite nos mantermos unidos é o desejo de


continuar aprendendo juntos. Mas nisso também conta-se com o
acaso, são as vidas das pessoas e as relações entre elas que, em
última instância, determinam a história de um grupo. Os grupos
geram sua vida e também as condições para desaparecer. Há
momentos em que é natural que alguns membros do grupo entrem
e saiam dele, que o deixem; mas há momentos em que a saída de
um torna-se uma perda. Em um grupo com mais de quarenta anos
de vida, tenho sentido isso algumas vezes.

É necessário aprender a compreender “o grupo” em cada momento


de sua vida como um corpo vivo e em constante movimento. O
crescimento de um grupo supõe estimular que cada um encontre
seu lugar e que seu lugar seja uma tarefa, uma função determinada
que requer ser tão exata quanto é no palco.

Um elemento essencial na vida de um grupo é a tensão gerada entre


individual e coletivo. Nossas relações têm se fortalecido na tentativa
de combinar os espaços coletivos com os individuais, estabelecendo
vínculos entre o que é a cultura pessoal de cada membro e o que é a
cultura do grupo, para que o resultado seja um enriquecimento mútuo
e não uma frustração. Aprender a incorporar os matizes dos indivíduos
tem sido uma das chaves para continuar andando juntos. Essa prática
tem nos ensinado a apreciar o sentido pessoal e até mesmo secreto
do que incorporamos no trabalho coletivo, construindo uma memória
comum, matizada pela experiência de cada um.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 176
177 | Sobre Viver em Grupo

Mas não foi sempre assim. Se eu


voltar às origens, na década de 1970,
os grupos de teatro eram como as
famílias, em cujas peças se anunciavam
a conquista do pão e da felicidade. Em
nossos trabalhos tentava-se refletir
a realidade política e social de nosso
país. Temos vivido e visto como nossas
peças, carregadas de esperança em seus
inícios, aos poucos foram se tornando
quase inventários do terror: personagens
vítimas de violência, imigrantes,
deslocados e desaparecidos começaram
a povoar nossos cenários e nos fizeram
abordar novos problemas éticos e
estéticos em meio ao choque e à dor.

São muitos os caminhos cênicos que


temos percorrido para que nossa
comunicação seja efetiva em contextos
tão diversos e em um país em constante
estado de agitação, encontrando
espectadores interessados na reflexão
e na mudança.
Yuyachkani no espetáculo

Con-cierto Olvido (2010).


Artistas do grupo

Foto: Paola Vera.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 178

O caráter cênico se faz sentir nos movimentos sociais e no


teatro; personagens historicamente invisíveis e sem voz agora
aparecem como protagonistas de novas histórias, que refletem
o desenraizamento, a migração, a injustiça, a memória, os
sonhos de um mundo novo. Nesse contexto, aparecem os
“teatros de grupo” como comunidades de pesquisa teatral nas
quais a criação coletiva aparece como alternativa prática para
superar carências e resolver, coletivamente, os desafios de iniciar
processos criativos sem ter necessariamente um texto prévio
para montar.

Tudo isso nos leva a argumentar que, se falamos do cênico,


após esse processo, já não podemos pensar como única
alternativa nem o edifício que hospeda atores que representam
personagens nem o texto previamente escrito. Essas mudanças
têm implicações também na formação de um novo ator, que é
ao mesmo tempo autor, treinado para assumir novos papéis e
ocupar espaços não tradicionais; um ator criador multidisciplinar
cultivado em saberes diversos cuja característica mais
importante, em minha opinião, é seu compromisso com seu
tempo e sua capacidade de olhar para o todo.
179 | Sobre Viver em Grupo

Hoje em dia, o que acontece no palco é necessariamente


multidisciplinar. O teatro como um conceito tem se expandido,
tem se enriquecido ao se encontrar com outras práticas que
se infiltram e se intrometem, gerando uma poluição saudável.
Percorrer essas estradas nos causou questionamentos e quebras
significativas, enriquecendo o horizonte cênico. É evidente que
não podemos continuar atribuindo ao teatro um lugar onde o
texto literário predomina como o substancial à sua identidade de
origem, assumindo, então, que essas “outras linguagens”, que
aparentemente vêm de fora, como a dança ou as artes visuais, lhe
fossem alheias, sendo na verdade o contrário. Todo esse processo
que ganha força desde meados do século passado tem gerado
complexas hibridações entre a tradição e a contemporaneidade;
um tecido de linguagens diversas, claro reflexo dos complexos
processos sociais que vivemos no mundo.

Yuyachkani, grupo com mais de quatro décadas de vida, tem


sido parte e testemunha privilegiada de um processo e um
movimento de teatros de grupo que começaram na América
Latina há mais de cinquenta anos, no qual o teatro era discutido
a partir de polaridades que confrontavam a emoção à razão, a
sala à rua, o corpo à palavra. Uma teatralidade construída com
base nas oposições. Mas o mais importante tem sido sentir
novos públicos, novos espaços, novos personagens, novos
temas: o desafio de inventar o teatro. Esses são os sinais de
uma experiência vivenciada em um teatro de grupo, em que
continuamos pesquisando sobre as novas rotas que aparecem ao
longo do caminho.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 180

Possivelmente técnica mista é o termo que ficaria melhor para explicar a tentativa de
incorporar os sinais do caminho percorrido. Em nossa peça Sin título - Técnica mixta
converge uma série de linguagens de diferentes origens. Chegamos até aqui não apenas
como artistas, mas para exercer nossa legítima condição de cidadãos. Incorporando
documentos reais, fotografias, vídeo, instalação, dança e jogos, fazemos uma revisão das
diferentes maneiras de como, ao longo de nossa história, temos entendido a representação.
O suporte multimídia, a museologia, as intervenções urbanas são recursos para responder ao
nosso tempo com tudo o que temos à mão e, como consequência disto, estamos em zonas
híbridas, em novas fronteiras às quais chegamos nos identificando com aqueles que buscam
justiça, nos aproximando de outros parâmetros de verdade cênica. Este novo momento
traz consigo um ator-autor, participante ativo em um coletivo no qual se faz responsável
por aquilo que ele diz e o que ele faz em cena e fora dela. Essa prática lhe permite explorar
fontes diversas vindas do canto e da dança, bem como diversas culturas do corpo; neste
espaço ele vai cultivando disciplinas e guardando saberes que incorpora em sua preparação
corporal e vocal. Assim foi nascendo um treinamento físico e mental para estar preparado
e aberto para lidar naquele lugar pessoal que o coloca como “editor” de um processo
complexo e necessariamente multidisciplinar que convoca seu corpo no espaço, com
seus conhecimentos, perguntas, carências e imprevisíveis resultados dessa articulação de
componentes diversos. Nesse processo, o ator vai fazendo no reconhecimento de seu ofício
uma prática de criador, com autonomia no domínio de suas fronteiras para, daí, confrontar-se
com seus colegas e com o diretor.
181 | Sobre Viver em Grupo

Pergunto-me o que são as técnicas senão


ferramentas, orientações para a aprendizagem.
O corpo é o lugar onde nascem a experiência e
a proposta. O treinamento geral é a preparação
básica, sustentada em exercícios que têm como
propósito o autoconhecimento sobre como
somos feitos: estrutura física, energia, forma e
comportamento. Conhecer esses níveis é essencial
para poder manejá-los e dispor deles ou reconstruí-
los em variadas formas que envolvem dinâmicas
diferentes de estruturas e manejo de energia,
diferentes de como nosso corpo se articula na
vida cotidiana. Os exercícios estão orientados
para reconhecer o corpo e experimentar com
ele, localizando suas limitações e dificuldades,
oferecendo ao corpo nova informação sobre
a estrutura, o peso, o equilíbrio, a energia, as
oposições, o design e a composição, entre outros.
Em suma, dar a ele informação para combater a
automação, iniciando um caminho para reaprender
e se aproximar do “estar” presente no aqui e agora.
Yuyachkani no

espetáculo Sin título,

Técnica Mixta. (2004).

Foto: Elsa Estremadoyro.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 182
183 | Sobre Viver em Grupo
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 184

Um corpo treinado no básico permite ao ator iniciar uma


busca por diferentes possibilidades de comportamento cênico.
Assim, de forma orgânica, aparece uma nova articulação
que se corresponde com o corpo em ação que cada trabalho
(espetáculo) demanda. Esse é um momento diferente e
específico que chamamos de treinamento aplicado e que,
como seu nome sugere, é orientado para a procura concreta
do que precisamos na peça que fazemos. Às vezes, esse
treinamento tem sido o ponto de partida para as peças: a
proposta se antecipa e é a que sugere caminhos a explorar,
ou seja, não necessariamente decidimos qual peça fazer e
depois procuramos o treinamento, mas o treinamento também
determina a experiência. O importante é estarmos atentos
e abertos para nos deixar surpreender com o que acontece
no espaço. A prática e a experiência nos levam a reconhecer
esse pequeno salto, que contém e condensa uma mistura
de informação física e sensível que se torna presença e
personagem, concreto resultado da procura do ator com seu
corpo no espaço. A partir desse território revisitamos nossa
memória ancestral. Assumimos que, na origem, a dança e o
teatro eram parte inseparável do comportamento cênico em
um nível de performatividade.

O Taki, uma palavra quéchua que significa “dançar e cantar ao


mesmo tempo” é descrito nas crônicas das índias de Barnabé
Cobo como uma forma de representação que os europeus
encontraram. No grupo, tomamos a inspiração tanto dessa
noção de performatividade pré-hispânica como da observação
e da prática de danças tradicionais que temos utilizado para
criar um treino que encontre equivalências com os princípios
da “Antropologia Teatral”, sustentada por Eugenio Barba. O ator
dançarino nos permitiu aproximarmos do reconhecimento
de nossos corpos em uma dinâmica reconstruída com nova
informação, proveniente de diversas fontes culturais.
185 | Sobre Viver em Grupo

A dramaturgia do ator é a primeira dramaturgia. Um ator


reconhece em seu corpo qualidades diversas de energia com as
quais pode ser capaz de escrever no espaço. Se eu pensar em
dramaturgia, penso em devir, em oposições, em elos e correntes
de comportamento, em acontecimentos, em núcleos de conflito–
resolução–novo conflito. Em suma, penso na dramaturgia como
a organização da ação no corpo e no espaço. Isso implica um
nível de desenvolvimento da cultura do ator não só lutando
por sobreviver no espaço, mas como um ator no domínio do
seu material e de seu território. A primeira abordagem pode
ser uma partitura de sequência física que se reconhece e se
repete com precisão, como os passos de uma dança, sem que
necessariamente isso signifique dançar. É tão importante estar
Wna sequência quanto sair dela; entrar e sair da partitura
é também um bom exercício para combater um possível
automatismo sofisticado. Penso que o ideal é encontrar um novo
estado de comportamento que, sendo preciso, tenha a liberdade
suficiente para saber esconder a partitura: um estado físico e
mental aberto à sensibilidade e a partir do qual aparece a
presença e o personagem.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 186

Já me perguntei muitas vezes, especialmente quando somos


requeridos por atores jovens: o que é a criação coletiva para nós
agora, depois que tanta água já correu por baixo da ponte? Não
me parece fácil falar sobre nosso trabalho sem sentir o peso do
tempo vivido. Os grupos velhos têm que fazer grandes esforços
para que o passado não se torne nosso único presente. Os
jovens às vezes vêm à procura de receitas, e é sempre necessário
repetir que a criação coletiva não é uma fórmula e não supõe
necessariamente um método. Então, nós temos que explicar
que é mais uma atitude aberta à proposta, uma disposição para
se confrontar sentindo o outro, um exercício de admiração e de
constante mudança. Portanto, não podemos reduzir a criação
coletiva à técnica ou às técnicas de criação nem ignorar sua
origem. Seus motivos iniciais têm mais a ver com ética do que
com estética, com o desejo de agir sobre a vida social, a intervir
conscientemente em nosso tempo, porque é aí que a criação
coletiva aparece como um recurso para aludir àquilo que não
estava escrito e que, portanto, tinha de ser feito. A técnica ou
as técnicas utilizadas são posteriores à vontade de fazer e seu
estudo não é alheio ao contexto social que o gera: a criação
coletiva aparece como uma necessidade.

Sou um diretor que trabalha com atores-autores, não começamos


a partir de um texto prévio. Em nossa experiência de criação
coletiva, o texto ou os textos são construídos no próprio processo
de trabalho. O texto, como Eugenio diria, nos remete à textura, a
compreender a dramaturgia como um enredo, como tear, como
um tecido que se constrói em cena com a luz, o espaço, com a
forma como intervêm o figurino e os acessórios; tudo preenche
essa teia impossível de ser limitada nos termos da razão.
187 | Sobre Viver em Grupo

Acumulação sensível é um termo que nos ajuda muito no processo de criação


coletiva. Chamamos de processo de acumulação sensível esse momento do
trabalho no qual nos lançamos no jogo, explorando sensações, reconhecendo
imagens e outros impulsos que podem nos sugerir o tema ou a ideia que
começaremos a trabalhar. É um espaço de livre associação, que apenas requer
que se atreva a jogar com liberdade; é um deixar-se levar, sem espaço para a
autocensura e para a racionalidade.

A atitude de não se prender à primeira coisa que aparece é necessária para um


processo de criação. No entanto, é importante aprender a guardar o que vamos
encontrando nas improvisações. Assim, poderemos voltar ao material quantas
vezes seja necessário e investigar as várias possibilidades que o caminho da
criação nos suscita. Saber de antemão e com muita certeza aonde se pretende
chegar é contraproducente, é trair o processo; não me imagino ilustrando um
caminho previamente estabelecido. Isso não significa não ter enquadramentos,
estratégias, linhas temáticas ou possíveis esboços argumentais, entre outros.
Acima de tudo, é necessário estar atento e não nos deixar vencer pelo sentido
utilitarista e pela resolução imediata, às vezes causados pela necessidade de
sentir que encontramos algo.

Para que o processo de acumulação sensível aconteça com verdade e


plenitude, devemos permitir que a cultura pessoal de cada ator se manifeste.
Esse todo que nos constrói e que incorpora os estímulos que fazem parte da
nossa identidade pessoal, daquilo que nos faz particulares, tão simples quanto
reconhecermos nos materiais ou referentes que fazemos nossos: música,
leituras, filmes, objetos que armazenamos, etc. Com essa familiaridade vamos
incorporando aquilo que faz sentido, que tem a ver com os limites do trabalho.
Não existe nada estabelecido, talvez a única constante seja saber que o
caminho será quase sempre extenso, como tudo aquilo que, por estar vivo,
exige tempo para se gestar. Um trabalho necessita processo, um resultado
precoce se coloca claramente em evidência.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 188

Estar no processo de acumulação sensível supõe se entregar


às sensações e texturas que nos aproximam de materializar os
impulsos que aparecem como sensação: é um ataque em muitas
direções, é um processo intenso, intuitivo, que vai estabelecendo
a própria lógica, buscando que estoure e se revele, aparecendo
a forma, que precisa se converter em signo, e que irá se tornar
fragmento de algo que se quer ser. Assim vão aparecendo
materiais que se convertem em partes que vão se distribuindo
no espaço para serem organizadas em uma ordem nova,
que será a estrutura recebedora dessas partes. Esse já é o
caminho para a montagem.

Quando acreditamos encontrar algo que intuímos que funciona,


isto é, guardado no que chamamos de elo: uma pequena unidade
que tem um começo, meio e fim e espera se ligar a outro elo,
a fim de continuar construindo uma corrente. Cada elo deve
ser independente e pode ser trocado de lugar. Chamamos
de elo mãe a unidade que tem vida e força suficiente para
acomodar pequenos elos avulsos, que parecem não ter lugar
e aparentemente não podem crescer. Essa parte do processo
faz lembrar o que eu vi um jardineiro fazer, quando colocava
novamente na terra, por um tempo, seus bonsais enfraquecidos
para que eles ganhassem força telúrica antes de voltar para seus
pequenos vasos.

Todo esse processo é uma constante transição entre claros e


escuros. Muitas vezes, podemos sentir uma estranha sensação
de que tudo o que parece coerente no final de uma sessão de
trabalho no dia seguinte pode perder a força e enfraquecer
seus sentidos. Pode-nos parecer inútil e até mesmo banal se
não sabemos como guardar isso com exatidão. É o momento
das decisões mais importantes, no qual devemos descartar ou
guardar em função da criação da estrutura que será a base.
189 | Sobre Viver em Grupo

No início, quando comecei meu treinamento como diretor, me


debatia entre aceitar ou rejeitar tudo. O mais difícil foi encontrar
a distância necessária para aprender a selecionar encontrando
o equilíbrio. Agora, eu valorizo muito tomar decisões desde o
início, mesmo sabendo que não será definitivo e que o mais
provável é que aquilo que selecionamos será modificado durante
o processo. Guardar provisoriamente ajuda a conter, a concretizar
as sensações que foram recebidas. Se não guardamos, não
temos nada, não podemos reconstruir, não podemos recuperar.
Guardar é como fazer rabiscos até chegar àquilo que é
visualmente próximo de uma textura, que nos diz, que nos revela
algo que devemos continuar procurando. Ficaram no passado
os dias nos quais acumulávamos material e não ficávamos com
nada, ou quase nada, até o final.

O processo de acumulação sensível se apoia justamente na


subjetividade. É o caminho inevitável que nos aproxima do
desconhecido. Podemos imaginar onde começa esse processo,
mas quando é que ele acaba? Penso que o processo de
acumulação sensível é como uma grande porta de entrada, um
limiar no qual está permitido quase tudo, as regras vão sendo
colocadas a cada dia, o que nos ajuda no cerco, nos aproxima de
uma textura, até que vai se tornando o esboço que será o padrão
contendo a matéria-prima fornecida pelos atores. Dessa forma, a
estrutura vai aparecendo. Esse é um recurso para que a razão não
ganhe de nós, e assim podemos buscar um material orgânico,
integral, com emoção e entendimento.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 190

O princípio é jogar com os elos de diversas maneiras e em ordens


diferentes; dessa forma, vamos criando uma correlação entre
situação-espaço-ação-presença-personagens. Esse é um material
em permanente processo de reedição e que se orienta pela ação
principal. A liberdade para jogar com pequenas unidades de
ação revela momentos inesperados e imprevisíveis na situação,
levando-nos longe do caminho linear para o conflito principal.

De maneira nenhuma quero que este testemunho sobre nossa


experiência seja entendido como critério absoluto. Prefiro não
falar sobre o método, mas, sim, sobre ferramentas, instrumentos
de trabalho que são úteis para nós. Cada projeto nos obriga a
usar ferramentas diferentes. Sempre que nos lançamos em novas
buscas é porque nos encontrávamos com os limites de nossas
técnicas e tínhamos que questionar o relativo e o passageiro
daquilo que acreditávamos saber.
191 | Sobre Viver em Grupo

Vista no tempo, a obra de Yuyachkani poderia ser lida em paralelo com


momentos essenciais de nossa realidade social e política. É nesse lugar onde
têm sido gestados nossos diferentes processos criativos, porque é de nosso
interesse dialogar com nosso tempo e propor um teatro crítico, inconformado.
Essa prática nos levou por caminhos desconhecidos, nos quais tínhamos que
estar dispostos a trabalhar em espaços muito diversos para gerar cenários
e entender que as artes cênicas têm nas expressões populares uma fonte
inesgotável que vem da dança, da máscara, da música, do vestuário e do
uso do espaço. Isso nos conectou até hoje com uma memória ancestral
cênica que, de maneira simples, costuma-se chamar de “folclore”. Muitas
vezes, essas expressões culturais fazem alusão a formas genuínas disto que
chamamos de teatralidade, e que, no entanto, não têm lugar na história oficial
das artes cênicas. Desde então percorremos um caminho híbrido que nos
aproxima desses níveis de teatralidade presentes nas culturas tradicionais,
na dança, na música e no uso dos espaços. A vida nos deu o privilégio de
percorrer e conhecer quase todo o nosso país fazendo teatro, atingindo
públicos muito diversos. Nosso trabalho cênico se nutre de fontes culturais
diversas; nele há lugar para um amplo diálogo multidisciplinar e para todas
as misturas possíveis que vêm do que pesquisamos no plástico, no musical,
no performativo, nas diferentes culturas corporais, nas ações em espaços não
convencionais, etc. Dessa forma, nosso ator tem alimentado sua bagagem
cultural, sua memória emocional e corporal, seu imaginário, não com um
sentido utilitário imediato, mas para expandir e moldar seu conhecimento,
procurando e encontrando o próprio caminho de criação.
A atriz do Yuyachkani

Ana Correa em

Rosa Cuchillo (2002).

Foto: Fidel Melquiades.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 194

Também é verdade que, tentando organizar o material,


nos encontramos, não poucas vezes, “acomodados”, talvez
por força do hábito, dentro de estruturas dramáticas
convencionais, quase esperando que a narração verbal
resolvesse a estrutura. Dramaturgia é uma palavra que deveria
se escrever no plural porque há muitas no tecido cênico.
Temos na improvisação uma ferramenta fundamental
para cercar o material e transformá-lo em ação dramática:
improvisar para escrever no espaço e não apenas para
encontrar o caminho que nos leve para o texto literário.

Partimos da ideia de que o público que vem assistir a nossas


peças está tão interessado no resultado quanto no processo. É
de nosso interesse que o público conheça o que sua presença
motiva nos atores. Não consigo pensar em um espetáculo sem
imaginar um espectador que tenha sido constantemente evocado
no processo, porque, finalmente, nós trabalhamos para gerar
um vínculo com ele. Quando tomo decisões cênicas, costumo
pensar em espectadores que localizo imaginariamente na sala,
enquanto eu mesmo me coloco na cabeça e na presença deles.
Dessa forma, tento criar uma proposta que seja diversa, em
diferentes direções, e aponte para vários tipos de sensibilidade
de espectadores concretos. Se alguém me pergunta o que eu
entendo por dramaturgia agora, diria que é a organização de
ações para provocar uma experiência de atores e espectadores
no espaço comum.
195 | Sobre Viver em Grupo

É preciso ousar para enfrentar o caos que nem sempre


estamos dispostos a ver, nos entregarmos a ele e, em seguida,
tentar sair do turbilhão causado pela profusão de materiais
diversos que aparecem mais em torno do corporal e do
visual; em que as diversas texturas, que reclamam conexões
que lhes permitam habitar um espaço comum, acabam
revelando uma lógica diferente da que segue o caminho
da dramaturgia convencional, que privilegia a exposição, o
enredo e o desenlace. Tenho presentes os dizeres de Artaud:
“O limite do teatro é tudo aquilo que pode acontecer no palco,
independentemente do texto escrito”.

Aspiro a que nossos espetáculos sejam como sessões


abertas que convoquem a vivenciar uma experiência, com
uma estrutura-base que gere sentidos diversos. Há mais de
cem anos, o teatro não é mais a história que se conta, não
é apenas o que é narrado ou dito. Insistir nesses limites é
desistir das possibilidades infinitas de nosso trabalho projetado
no imaginário do espectador. Por mais de quarenta anos de
ofício tenho compartilhado de forma privilegiada a busca de
meus companheiros para encontrar um novo corpo, atento,
determinado, dilatado, memorioso, ou, em uma única palavra,
presente. Tenho visto e acompanhado os longos processos de
trabalho que visam a atingir um estado físico e mental para estar
nessa outra dimensão da realidade que a cena demanda.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 196

Presença poderia ser o fio condutor e a palavra-chave para


sinalizar o caminho de aprendizagem sobre o qual nos
orientamos desde o início. Esse caminho teve acentos e
peculiaridades no tempo, de acordo com nossa vida de grupo.
Poderíamos chamar de presença heroica o que procurávamos
corporalmente durante os primeiros anos, sem dúvida
influenciados pelo realismo socialista e pelo romantismo
revolucionário, expressados nas óperas-modelo da Revolução
Cultural Chinesa. Um corpo especialmente tenso, categórico,
de punho cerrado, de alguma forma oposto à presença de estar
que procuramos agora, sustentada na pergunta, na incerteza
e no espanto. Isso implica um lugar além da busca codificada;
é uma reação orgânica do corpo que aprendeu e respondeu.
Para chegar até aqui nós já passamos por explorações diversas:
desde os exercícios coletivos que fazíamos no início, procurando
a “expressão corporal”, até o “treinamento pessoal” que cada
ator foi encontrando. Exercícios que nos levaram a incorporar
sequências físicas, investigando qualidades diversas de presença
a partir de culturas do corpo de diferentes origens: artes marciais,
danças orientais, danças tradicionais do Peru. Tudo isso em uma
confluência passada pelo filtro pessoal de cada ator.
197 | Sobre Viver em Grupo

Assumimos o grupo como uma diversidade, na qual há


interesses opostos e complementares. O pessoal tem um
lugar. Talvez uma das razões pelas quais nos mantemos juntos
é porque, como dizem nossos músicos itinerantes, temos
aprendido a respeitar a música do outro, a conviver em meio às
diferenças, a priorizar aquilo que nos une e incentivar espaços de
procura pessoal em que a ética e a estética não estão separadas,
coexistem dentro de um projeto que não esconde sua postura
política necessária à realidade em que vivemos. Ser coerente
continua sendo o desafio de sobreviver em um grupo.
Yuyachkani em

El Ultimo Ensayo (2009).

Foto: Taina Azeredo.


Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 198
199 | Sobre Viver em Grupo
TEATRO E
POLÍTICA
O NECESSÁRIO
DEBATE DAS ARTES
Marcelo Bones 1
1 - Marcelo Bones é diretor de teatro, foi Diretor de Artes

Cênicas da FUNARTE/MINC, é consultor e programador

de festivais de teatro no Brasil e Diretor Executivo da

Platô – Plataforma de Internacionalização do Teatro.


Teatro e Política | 204

UMA COISA FICA, PORÉM, DESDE JÁ, FORA DE DÚVIDA:


SÓ PODEREMOS DESCREVER O MUNDO ATUAL PARA O
HOMEM ATUAL NA MEDIDA EM QUE O DESCREVEMOS
COMO UM MUNDO PASSÍVEL DE MODIFICAÇÃO.
(BERTOLT BRECHT)
205 | O Necessário Debate das Artes

É sempre desafiador escrever um artigo para uma


revista de envergadura como a Subtexto, refletindo
sobre coisas do momento presente. Principalmente
quando temos a política como elemento norteador
da reflexão e dos acontecimentos do dia a dia.
O risco é produzirmos um texto e ele, muito
prontamente, se tornar antigo e desatualizado.
E coisa chata é escrito datado, lido quando sua
importância já se tornou quase nada ou zero.
Arriscando, tentarei abordar um tema da hora,
ainda não definitivamente encaminhado pelos
agentes envolvidos, prometido, mas em movimento
de construção. Mesmo não controlando a
relevância das ideias deste artigo no futuro, ouso
“pitaquear” sobre algo muito próximo e ainda em
processo: o debate e a construção de uma política
para as artes hoje no Brasil.
Teatro e Política | 206

Inicialmente é importante contextualizar por que este é um tema do presente.


Depois de quatro longos anos de um apagão no Ministério da Cultura, de 2010
a 2014, temos, no governo que se inicia em 2015, a volta de Juca Ferreira ao
MINC. Isso significa a retomada de um projeto que valoriza os grandes debates
relacionados à cultura e a seu importante papel como um dos eixos centrais
do desenvolvimento do País. Em diversos momentos, o ministro sinalizou que
entre suas principais ações estariam o debate e a construção de uma robusta
Política Nacional para as Artes. Durante os oito anos das gestões de Gil e Juca
(2003 a 2010), avançou-se muito na consolidação de um status e um novo
olhar para a cultura na dimensão federal, com uma sensação de refundação do
Ministério, mas, por outro lado, deu-se menor atenção às artes. Agora, nesta
retomada, Juca Ferreira coloca o debate da construção de uma política para
as artes como um dos desafios a serem enfrentados pela nova gestão, como
disse em seu discurso de posse: “Trago da experiência anterior a convicção de
que o Brasil precisa de uma vigorosa política para as artes, em escala nacional
e com efetiva capacidade de penetração em todos os territórios e rincões do
País. É por via deste caminho que afirmaremos definitivamente o Brasil como
uma potência estética global, surgida do encontro entre as humanidades, da
orgulhosa mestiçagem das culturas que aqui coexistem e que mutuamente se
transformam neste nosso país do remix”.
207 | O Necessário Debate das Artes

A partir de então, o ministro anunciou ações, capitaneadas pelo


MINC e pela FUNARTE como a constituição de uma comissão de
articuladores, uma plataforma virtual e uma série de seminários,
objetivando o debate nacional dessa política e a apresentação,
no prazo de aproximadamente um ano, de um ousado projeto
para as artes no Brasil.

Esse processo está se constituindo neste momento com a


anunciada composição dessa comissão e o lançamento dos
seminários e da plataforma digital. Assim, me atrevo a,
já neste início de processo, fazer algumas contribuições e
pontuações, mesmo que num futuro bem breve este texto
perca sua relevância.
Teatro e Política | 208
209 | O Necessário Debate das Artes

Em verdade, consenso entre muitos, não temos


um diagnóstico preciso e uma proposição robusta
que possamos chamar de uma política para as
artes. Uma sociedade que se tornou nas últimas
décadas muito complexa, assumiu protagonismo e
projeção internacional, incluiu na cidadania milhões
de pessoas e construiu avanços significativos nos
processos de participação popular no Estado não
deu conta de mergulhar no debate de fundamental
importância da arte em todos esses processos
disparados, principalmente, nos oito anos do
governo Lula. Todos os arranjos institucionais do
Estado, que deveriam dar conta das políticas
para as artes, se mostram hoje atrasados,
defasados e obsoletos.
Caravana da Cultura do MINC

Foto: Arquivo do MINC/Flickr.


em Santo Amaro/BA (2015).
Teatro e Política | 210

A Fundação Nacional das Artes – FUNARTE, principal instituição responsável pelas artes
em nosso país, em um processo lento de raquitismo, está hoje sucateada, descapitalizada,
esvaziada de sentido e incapaz de propor uma intervenção no cenário artístico brasileiro.
Atua hoje, quando consegue, com editais defasados e que não conseguem atender nem a
10% de suas demandas. Para ficar só em um exemplo cito o Edital Myriam Muniz, com foco
no setor do teatro, que em 2012 teve 1.595 inscritos e contemplou 132 projetos (8,3%), em
2013 apresentou 1.807 candidatos para 108 contemplados (6,0%) e em 2014 foram inscritos
1.479 e eleitos 107 (7,2%). A mesma discrepância entre inscritos e aprovados se passa com
os outros editais gerenciados pela FUNARTE. É impensável admitir que tantos projetos
não tenham qualidade e relevância para serem fomentados por nosso Estado. Para além
desses percentuais, há outros pontos importantes de serem abordados sobre os editais: os
julgamentos são discutíveis, falta acompanhamento posterior de seus resultados e impactos
e, por seu caráter quase sempre generalista, não constituem investimentos estruturantes
para os diversos setores atendidos pela FUNARTE que, além das Artes Cênicas, atende
à Música e às Artes Visuais. É certeira a constatação de que esses instrumentos estão
esgotados. Os editais tiveram um importante papel no início do governo Lula, pois foram
a sinalização e o primeiro passo para colocar a escolha pública como critério de definição
de financiamento estatal, rompendo com a política de balcão anteriormente praticada
pela FUNARTE e pelo próprio MINC, bem como pelas instâncias estaduais e municipais.
Infelizmente, pouco se progrediu, e a FUNARTE não avançou na estruturação de um sistema
de ações que certamente teria os editais como ferramentas, mas não as únicas. A FUNARTE,
com a perda de sua importância interventiva e política, deixou de ser uma referência aos
criadores das artes no Brasil e, empobrecendo seu discurso, se viu incapaz de acompanhar
as profundas transformações que viveu nosso país.
211 | O Necessário Debate das Artes

Isso posto, acredito que mesmo que esse processo


de construção de uma política para as artes seja
coordenado pela FUNARTE, recuperando seu
protagonismo, é preciso criar uma onda política
maior, capaz de reencantar os artistas e até
mesmo os cidadãos, incluindo-os na formulação
da política. Acredito que a constituição de uma
comissão, sem as amarras da gestão cotidiana, com
articuladores conhecedores dos processos artísticos
e dos movimentos políticos, capazes de levantar
os ânimos, seja fundamental para despertar o
interesse nesse debate.

Pode ser que ao final desse mergulho se chegue à


conclusão de que será necessário um novo desenho
institucional, com a criação de outras instituições
ou agências que possam dar conta da diversidade
dos processos das artes e mesmo que a FUNARTE
tenha novo papel e novas missões.
Teatro e Política | 212
213 | O Necessário Debate das Artes

Outro aspecto importante para se pensar neste


momento é a incorporação necessária dos vários
acúmulos de debates e movimentos acontecidos
nas últimas décadas. Se, por um lado, acredito
que não temos um projeto de Política Pública já
desenhado, reconheço que temos um debate já
consolidado em relação a diversos aspectos da
reflexão de uma política para as artes. Ao distinguir
avanços e acúmulos, temos que contemplar nas
discussões os colegiados setoriais, que foram
fóruns importantes de debates e formulações, as
três conferências nacionais de cultura, além de
experiências territoriais, estaduais e regionais,
planos setoriais, reflexões da academia e de outras
instâncias, movimentos e redes que de alguma
maneira pensaram o fazer artístico e sua relação
com o Estado. Desejo também que a construção
das Políticas Públicas para as Artes seja maior que
a somatória de todas as contribuições acumuladas
até aqui. O mediano é muito pouco para as artes e
necessitamos elevar nosso sarrafo, obrigando-nos a
fazer um salto bem alto e de qualidade.
em Belo Horizonte/MG (2015).
Caravana da Cultura do MINC

Foto: Arquivo do MINC/Flickr.


Teatro e Política | 214

Assumindo também um posicionamento mais pragmático,


aproveito para deixar como contribuição questões que entendo
como norteadoras para avançarmos nessa mobilização.
Sem a pretensão de dar conta da infinidade de pontos,
faço uma listagem, sem aprofundar muito, de alguns que
considero fundamentais:

• O específico e o geral de cada linguagem – Acredito que será um dos maiores


desafios do processo: consolidar o debate amplo e nacional e ao mesmo tempo
escutar e atender às necessidades específicas de cada linguagem artística.
A música, o circo, a dança, o teatro, as artes visuais e a literatura têm processos
históricos diversos, diferentes formas de atuar na sociedade, cadeias produtivas
separadas, mas estabelecem transversalidades e complementaridades
fundamentais para a consolidação de uma política para as artes.

• Mapeamentos dos Setores Artísticos – É impossível construir uma política


pública sem conhecermos a real dimensão da produção artística em nosso
território e seu impacto na sociedade.

• Arte e Educação – Já virou lugar comum o discurso da importância


desta reaproximação. Mas esse tema não foi colocado no centro da
prioridade do governo.

• Financiamento da Arte – É certamente um dos temas mais importantes,


principalmente quando temos hoje um mecanismo poderoso que coloca na
mão dos diretores de marketing das empresas a definição do que vai ser
publicado, montado, gravado, visto e colocado à fruição.

• Circulação dos bens artísticos – Temos um desafio gigantesco para pensarmos


numa circulação abrangente, universal, potente e capaz de criar um movimento
de autoconhecimento do Brasil. O trânsito da arte brasileira por todo o País é a
possibilidade de criar uma transformação no imaginário subjetivo e simbólico
de todos, hoje povoado pelo que há de pior na indústria do entretenimento.
215 | O Necessário Debate das Artes

• A infraestrutura das artes no Brasil (salas de artes cênicas e música,


lonas de circo, espaços de exposições, estrutura técnica e sua qualificação,
bibliotecas, etc.) – Hoje grande parte do investimento do governo federal é
feito diretamente junto aos artistas. Acredito ser importante rever essa lógica
e desenvolver um plano, mesmo que de longo prazo, para criar uma rede de
espaços e estruturas de fruição da arte.

• Internacionalização – O diagnóstico que temos hoje sobre a presença da arte


brasileira no exterior é certeiro e definitivo: existe um abismo entre a nossa
volumosa, potente e diversa produção e a circulação de nossas obras em
outros países. Temos que encarar urgentemente esse desafio e criar agências e
programas específicos para promover a circulação internacional de nossa arte.

• Rede Produtiva das Artes – Diagnosticar, pensar e ver como esta rede
se relaciona com outros setores da economia e como potencializar
economicamente nossos esforços artísticos é tarefa fundamental na
construção de políticas para as artes.

• Formação – É urgente pensarmos em como são formados nossos artistas e


também os técnicos que gravitam no fazer artístico, remodelando o papel das
instituições já existentes e criando outras possibilidades de aperfeiçoamento.

• Marcos Regulatórios – É urgente discutirmos e mudarmos os marcos


regulatórios para a cultura e as artes. Nosso sistema tributário, previdenciário
e trabalhista não consegue responder nem de longe às necessidades
do fazer artístico.
Teatro e Política | 216

Espero muito que este debate seja frutífero e vibrante.


Acompanhei duas experiências do Ministério da Cultura,
na anterior gestão do ministro Juca, que a meu ver foram
fundamentais para consolidar o MINC como protagonista do
pensamento ativo e de vanguarda da cultura no País. Os debates
da Lei Rouanet e dos direitos autorais mostraram que é possível
promover apaixonadas e calorosas contendas e, em seguida,
pactuar propostas, ações e soluções com importantes setores
da sociedade. Se assim foi com a Rouanet e os Direitos Autorais,
torço para que o debate das Políticas das Artes assuma o
protagonismo merecido nesta retomada do MINC na abordagem
dos grandes temas nacionais.

Por último, deixo mais uma preocupação: seremos capazes


de gerar um desenho institucional novo num país em que a
burocracia, a legislação e os marcos legais são tão perversos para
com cultura e para a arte em especial? Como seremos capazes
de criar movimentos e instituições ativas e empoderadas, com
riqueza de conteúdo e práticas positivas? Lembrei-me de uma
historinha, com a qual finalizo:
217 | O Necessário Debate das Artes

A Parábola do prédio vazio

Escutei esta história, não sei onde e quando:

O Estado, qualquer Estado, tinha um pequeno prédio sem uso.


Com medo de manifestações e invasões, o governante ordenou
que ele recebesse vigilância. Foi então destacado para lá um
vigia. Pouco depois, após mais um alerta, concluíram que teriam
que vigiar o prédio dia e noite. Assim, enviaram para lá mais três
vigias, dois para render turnos e folgas e outro para as férias. Foi
necessário, então, um coordenador, logo depois uma secretária,
depois alguém do serviço de pessoal, um coordenador geral que
depois foi promovido a gerente, uma copeira e mais faxineiros,
boys, etc. Ao cabo de alguns anos o prédio estava totalmente
ocupado por divisórias, mesas, telefones, computadores. E gente,
muita gente. Muitos processos e fluxos. Tudo funcionava: ofícios,
despachos e, inclusive, a segurança. Mas ninguém sabia para que
servia, e o que se fazia ali naquele prédio objetivamente.

Espero participar ativamente do urgente e fundamental debate


sobre a política pública para as artes no Brasil. As artes têm
importante papel de vanguarda na sociedade. Espero que o
debate reflita esse conceito e promova uma renovação de
formas e conteúdos com a ruptura de modelos preestabelecidos.
AVANCEMOS!
GALPÃO EM
FOCO
UM ESTRANHO NO
NINHO: A GERÊNCIA
EXECUTIVA NO
GRUPO GALPÃO
Fernando Lara 1
1 - Fernando Lara é Graduado em Comunicação Social

pela UFMG. Desde 2004 atua no setor cultural nas áreas

de gestão, comunicação, estratégias institucionais e

planejamento de ações culturais. Atualmente exerce o

cargo de Gerente Executivo do Grupo Galpão. Também

foi Diretor de Comunicação da Orquestra Filarmônica de

Minas Gerais; Chefe de Gabinete da Secretaria de Estado

de Cultura de Minas Gerais; Superintendente de Fomento

e Incentivo à Cultura e Diretoria do Fundo Estadual de

Cultura; e Assessor de Captação e Marketing da Fundação

Clóvis Salgado/Palácio das Artes.


Galpão em Foco | 222

ESCREVER SOBRE GESTÃO CULTURAL no contexto


brasileiro é, ao mesmo tempo, um exercício de fé e
1

desilusão. Se por um lado é frustrante constatar que um


dos maiores acervos simbólicos e criativos do mundo sofre
de uma indisfarçável falta de investimento e priorização,
por outro é esperançoso e animador saber que existe
muito a fazer e que uma das profissões capacitadas para
participar da construção de uma nova relação entre a
cultura e outros campos do conhecimento humano é a
gestão cultural. É entre os dois extremos desse pêndulo
que o gestor cultural passa a maior parte do seu tempo.

Minha aproximação com o campo da gestão se deu por


diferentes motivos, todos eles um pouco acidentais,
mas sempre ordenados por uma vontade inconsciente
de estar perto do lugar da criação. Sem ter exercitado
nenhuma prática artística ao longo da vida, a mim restava,
felizmente, a possibilidade de trabalhar na articulação dos
diferentes processos de suporte aos criadores. Mesmo sem
conhecer a profissão de gestor cultural, sempre caminhei
em direção a ela.
da Montanha com a preparadora vocal

Depois de percorrer, ao longo de dez anos, um trajeto


Galpão ensaia o espetáculo Gigantes

um tanto fragmentado, mas razoavelmente coerente, fui


Francesa Della Monica (2013).

convidado a assumir uma função que seria criada na estrutura


do Grupo Galpão, que naquele momento comemorava
seus 30 anos. A criação do cargo de Gerente Executivo, até
Foto: Guto Muniz

então inexistente no organograma do Grupo, foi um dos


principais apontamentos finais de um trabalho de consultoria
desenvolvido por um escritório paulista especializado em
gestão cultural, por ocasião do aniversário do Galpão.
223 | Um Estranho no Ninho:
A Gerência Executiva no Grupo Galpão
Galpão em Foco | 224

Ao longo das três décadas do Grupo, seus atores


foram – e, em parte, ainda são – responsáveis
por coordenar e até executar diferentes atividades
de caráter administrativo e gerencial. Ainda que
existissem áreas estabelecidas e ocupadas por
profissionais muito bem preparados, a participação
e o olhar permanente dos atores eram necessários
para que aqueles projetos que não estivessem
umbilicalmente ligados à existência da companhia
permanecessem em pauta.

No entanto, quando tratamos de um grupo com


uma das maiores frequências de viagem em todo
o País, a realidade é menos compreensiva. Durante
uma turnê um pouco mais longa, por exemplo,
as ações que dependessem do envolvimento dos
atores seriam inevitavelmente paralisadas. E, nesse
arranjo, as funções vitais do Galpão iam muito bem,
mas novos projetos ou qualquer proposta acessória
aconteciam num ritmo inconstante.

Essa participação direta dos atores em diferentes


funções foi um dos pontos que mais me causaram
surpresa e admiração. Minha última experiência
profissional antes de chegar ao Galpão havia
sido na área da música de concerto, em que as
funções são bastante hierarquizadas e ninguém
extrapola o espaço que lhe fora delimitado.
Maestros regem, músicos tocam, comunicadores
comunicam e por aí vai. Encontrar atores de um
das principais companhias do Brasil, com mais de
30 anos de estrada, carregando sem cerimônia ou
constrangimento os adereços cênicos antes e depois
das apresentações foi um primeiro e grato sinal de
que as artes cênicas – e, em especial, o teatro – eram
mesmo um campo gravitacional distinto.
Galpão em processo de criação de

novo espetáculo com a preparadora

corporal Kenia Dias (2015).


A Gerência Executiva no Grupo Galpão
225 | Um Estranho no Ninho:

Foto: Gustavo Pessoa.


Galpão em Foco | 226

Esse mesmo aspecto, no entanto, talvez tenha adiado a constatação


da necessidade de ter um cargo responsável por articular processos
entre diferentes áreas ao longo de todo o ano, independentemente
da presença dos atores ou da realização de longas viagens. O
cenário, naquele momento, era um grupo com um esqueleto
administrativo e gerencial muito bem construído, mas com
uma articulação entre suas diferentes áreas um pouco menos
desenvolvida do que deveria. Daí a necessidade da criação da
Gerência Executiva2.

Cabe aqui um devaneio sobre a curiosa esquizofrenia exigida por


um cargo como esse. É difícil encontrar, em um país cujo setor
cultural praticamente sofre de inanição, profissionais preparados
para construir ou controlar extensas planilhas financeiras,
contratos e termos jurídicos e, ao mesmo tempo, sensíveis o
bastante para entender quais processos da criação artística
devem ser defendidos a todo custo e o porquê de se fazer isso. A
formação técnica e acadêmica disponível no Brasil para gestores
culturais é, até hoje, muito escassa. Com raras exceções, torna-
se um gestor cultural empiricamente, trabalhando em diferentes
funções deste campo e, geralmente, sem muita lapidação
formal. É muito comum que as trajetórias se iniciem no campo
da criação – atores, bailarinos, artistas circenses – e depois
migrem, por indesejada necessidade, para funções de produção,
2 - Vale ressaltar aqui que trato
comunicação, desenvolvimento de projetos e outros. Um
unicamente da estrutura direta caminho mais justo seria aliar formação acadêmica, experiência
do Grupo Galpão. O Galpão Cine
prática e um imprescindível percurso de experimentação estética
Horto, centro cultural do Grupo,
vivia uma realidade bastante em diferentes fazeres e suportes.
distinta, com uma Coordenação
Geral – e articuladora de todas
as áreas - em pleno vigor já há
muitos anos.
227 | Um Estranho no Ninho:
A Gerência Executiva no Grupo Galpão

O cenário que encontrei no Grupo Galpão poderia ser encarado,


a depender do ângulo escolhido, como um mar de possibilidades
ou um oceano de riscos. As áreas já estavam muito bem
criadas3 e o Grupo, através de inúmeros acertos e uns poucos
erros, havia encontrado a própria fórmula de funcionamento e
de continuidade – que, por sinal, influenciou um considerável
número de companhias em todo o País. As mudanças não
poderiam em nenhuma hipótese ameaçar uma estrutura
construída de forma tão bonita quanto sincera, principalmente se
levarmos em conta a fragilidade de qualquer instituição cultural
no Brasil, sempre dependente de financiamentos instáveis,
incertos e insuficientes.

Por outro lado, existiam bases sólidas e muito especiais para


permitir e sustentar novas ideias e novos ares. E talvez esse seja
um dos maiores méritos e uma das idiossincrasias mais lindas do
Grupo: a abertura ao novo, ao risco, ao não trilhado. Igualmente
marcantes também eram e sempre vão ser a espontânea
generosidade no trato diário e um convívio com o máximo de
harmonia que se pode esperar de um encontro de pessoas tão
numeroso, diverso e longevo.

Sem poder ameaçar o que já havia sido posto de pé, tentando


não afetar o clima amistoso e leve que existia na equipe,
sem contar com grandes quantias a serem investidas e ainda
precisando me equilibrar nos ritos do financiamento à cultura,
comecei a desenhar os contornos desse novo cargo. Como não
haviam sido previstos suas responsabilidades, urgências e seus 3 - No início de 2013, se
meios de interação com as outras áreas, essas e outras definições encontravam em funcionamento
as coordenações de Produção,
foram sendo construídas e testadas empiricamente, como Comunicação, Planejamento e
seguimos fazendo até hoje. Administrativo-Financeira.
Galpão em Foco | 228

Um fator muitíssimo bem-vindo e que merece


consideração era a capacidade do Grupo e de sua
estrutura de gestão de operar – e muito bem – sem
a intervenção da Gerência Executiva. Ao mesmo
tempo que essa independência impunha um
desafio muito peculiar, o de conquistar um espaço
de articulação entre áreas que até então não haviam
experimentado a presença de um articulador, ela
possibilitava um tempo fundamental e poucas
vezes disponível para observar o funcionamento de
uma estrutura de certa distância.
novo espetáculo (2015).
processo de criação de

Foto: Gustavo Pessoa


Atores do Galpão em
229 | Um Estranho no Ninho:
A Gerência Executiva no Grupo Galpão

Talvez não se possa, por limitação de


espaço nesta publicação, ou não se
deva, por falta de um distanciamento
temporal que permita análises
menos irresponsáveis, detalhar as
mudanças que foram elencadas
e iniciadas a partir da criação do
cargo, assim como o resultado desse
trabalho. Os projetos e as mudanças
iniciadas iam desde a redefinição
– compactuada com todas as áreas
– de limites e responsabilidades de
cada coordenação, assim como a
padronização da marca do Grupo,
a reformulação de seu site, o início
da venda on-line dos produtos do
Grupo, implementação e revisão de
procedimentos jurídicos, lançamento
de novos livros e DVDs com maiores
investimentos, assim como o início do
trabalho de redesenho dos processos
administrativos e financeiros, entre
tantos outros esforços.
Galpão em Foco | 230

Um bom exemplo de um ajuste sutil, porém necessário, foi


o tratamento dado à identidade gráfica do Galpão. Naquele
momento, a qualidade da tradução gráfica dos projetos do
Grupo era irregular, indo de peças muito bem elaboradas e
esteticamente coesas até campanhas pouco coerentes com o
sólido trabalho artístico do Grupo.

Lembro-me claramente de uma longa argumentação com todos


os atores, pouco tempo depois da minha chegada, no início de
2013, na qual eu questionava a grande variação percebida na
identidade gráfica do Galpão quando os produtos do Grupo eram
colocados lado a lado. Mais do que isso, em algumas ações –
principalmente aquelas ligadas aos registros audiovisuais – a
qualidade do produto final era perigosamente irregular. Ao
expor meus argumentos, recebi uma resposta que até hoje me
acompanha: “acreditamos que um registro razoável vale mais do
que um ótimo registro não feito”.

O Grupo sempre foi extremamente consciente da importância


de sua memória e da disponibilização das informações que
coletou e processou ao longo de 30 anos e, certamente, levaria
tais propostas a cabo de qualquer maneira – uma decisão muito
coerente, por sinal. No entanto, com a possibilidade de melhor
articulação entre áreas e um planejamento global dos recursos
disponíveis, talvez fosse possível continuar registrando, mas
também levar a força e a qualidade artística de seus trabalhos
para registros e produtos.
Atores do Galpão em

processo de criação de

novo espetáculo (2015).

Foto: Gustavo Pessoa


Galpão em Foco | 232

Outro ponto importante foi uma aproximação gerencial entre


o Grupo Galpão e o Galpão Cine Horto, instituições siamesas,
mas que conviviam e ainda convivem com certa independência
de processos. O objetivo de médio prazo é a construção de uma
lógica única de gestão para que a fusão entre as duas partes se
dê de forma harmônica no momento de mudança para a nova
sede do Grupo; um projeto ainda um pouco distante, mas como
todas as ousadias da história do Galpão, bastante possível.

Uma questão pela qual sou constantemente perseguido dentro


do Grupo é a extensa rotina de reuniões que foram criadas
ou, em alguns casos, formalizadas. Todos os atores se reúnem
ao fim do mês para serem informados e tratar de questões
gerenciais em uma reunião rapidamente apelidada de “G12”.
Paralelamente, as questões artísticas são tratadas no Conselho
Artístico e em frequentes conversas que os atores mantêm entre
si, durante ensaios e viagens. Há ainda uma reunião mensal de
planejamento, uma reunião semanal com todas as coordenações
e duas reuniões mensais daquele que se mostrou o ponto central
da condução gerencial do Grupo, o Conselho Executivo, formado
pelos três atores com maior ligação às questões administrativas
e gerenciais do Galpão – Beto Franco, Chico Pelúcio e Eduardo
Moreira –, além da Coordenadora de Produção, Gilma Oliveira, e
da Gerência Executiva.

O número de reuniões e a dificuldade de conciliar a agenda de


todos foram custos relativamente baixos quando comparados
aos benefícios gerados. O fluxo da informação, mais consistente,
e uma pauta sempre atualizada de assuntos, problemas e
medidas necessárias diminuíram bastante as chances de
iniciativas relevantes serem deixadas de lado.
233 | Um Estranho no Ninho:
A Gerência Executiva no Grupo Galpão

Outro ponto atacado pelo calendário fixo de reuniões foi aquilo


que havia sido apelidado de “democratismo”. Por ser um grupo
de atores sem uma direção permanente, o Galpão construiu um
modo de funcionamento no qual as questões são extensamente
debatidas até que se chegue a uma decisão consensual ou, pelo
menos, definida pela maioria dos atores. No entanto, um dos
poucos pontos negativos que essa prática pode trazer é certa
lentidão no processo de tomada de decisões. Também aqui as
reuniões quinzenais e incanceláveis do Conselho Executivos e as
reuniões mensais do G12 impuseram um ritmo mais acelerado
nesse processo, com assuntos que não saíssem da pauta até que
se chegasse a uma definição.

Uma vez concluída essa primeira etapa de reorganização das


estruturas e dos processos gerenciais, o foco passará a ser,
prioritariamente, a sustentabilidade e o futuro do Galpão. Ainda
que muitas mudanças já concluídas ou em curso tratem desses
temas e incitem a um pensamento em médio e longo prazos
sobre a própria existência do Grupo, essas questões ainda devem
ser – e certamente serão – trazidas para o centro absoluto das
atenções e dos esforços gerenciais. Com o passar dos anos e
significativas mudanças conjunturais do setor cultural brasileiro,
torna-se impossível adiar um revisão da fórmula construída ao
longo das três últimas décadas.
Galpão em Foco | 234

Nesse contexto, é difícil apontar quais


serão os caminhos escolhidos pelo
Galpão, mas é possível afirmar que
seus próximos passos serão sempre
sinceros, generosos e marcados
pela mesma paixão que a trupe
demonstra desde 1982.
Espetáculo De tempo somos,

Direção de Lydia Del Picchia

e Simone Ordones (2014).

Foto: Guto Muniz.


235 | Um Estranho no Ninho:
A Gerência Executiva no Grupo Galpão
CINE HORTO
EM FOCO
O ENCARGO
DA HISTÓRIA
Vinícius Souza 1
1 - Vinícius Souza é dramaturgo, ator, diretor,

pesquisador e produtor cultural. Foi roteirista, junto com

Rodolfo Magalhães, e coordenador de entrevistas do

documentário Primeiro Sinal - A história do teatro de Belo

Horizonte: dos primórdios até 1980. No CPMT foi gestor

de conteúdo do Portal Primeiro Sinal.


Cine Horto em Foco | 240

NÃO É FÁCIL CONTAR UMA HISTÓRIA. Talvez eu já


soubesse disso. Mas a incumbência para a qual eu, de repente,
estava convocado confirmou a suspeita. O encargo: entrevistar
diversos artistas veteranos do teatro mineiro e, depois, roteirizar
1

um documentário audiovisual que contasse a história do teatro


em Belo Horizonte.

Confesso, de antemão, que escrevo este texto com certo


cansaço. Muitas vezes eu me sentei para escrevê-lo. O fracasso,
Nunes em 1980. Foto: Acervo pessoal
Reinauguração do Teatro Francisco

indelevelmente, percorreu todas as tentativas. Tentei tomar


as mais justas notas sobre o que foi a experiência de coletar
as histórias do teatro em Belo Horizonte. Mas tal qual o
documentário resultante dessa experiência, este texto também se
Cidinha Campos.

aflige ao constatar sua incompetência para descrever a totalidade


dos acontecimentos, a exatidão do que agora é memória e,
sobretudo, o turbilhão que é todo e qualquer episódio ao qual
entregamo-nos com intensidade.
241 | O Encargo da História

Percorri minha caixa de e-mails passados e encontrei uma mensagem do Marcos


Coletta2 no qual ele propunha a primeira reunião para o dia 23 de janeiro de
2014. Às 17h30 estávamos lá, no Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do
Galpão Cine Horto: Chico Pelúcio, Rodolfo Magalhães3, Marcos e eu. Na mesa:
uma lista com cerca de vinte nomes de entrevistados, todos eles personagens da
história do teatro mineiro; uma encadernação de quase cem páginas com guias e
transcrições de cada depoimento; e um HD com pelo menos cinquenta horas de
gravações em vídeo. Ninguém esperava que esses registros audiovisuais fossem
virar um filme. Eram, antes, gravações para serem editadas em pequenos vídeos
e postadas na internet através do Primeiro Sinal4, um portal virtual dedicado à
pesquisa e à memória do teatro, mantido pelo CPMT.

O projeto de registro das entrevistas, entretanto, teve início bem 2 - Marcos Coletta é ator,
dramaturgo e coordenador do
antes dessa reunião. No começo de 2012, eu, amadoramente,
Centro de Pesquisa e Memória
carregava uma câmera filmadora digital, um pequeno tripé, do Teatro do Galpão Cine Horto.
um fio-cabo para extensão e seguia para a casa do primeiro Junto com Luciene Borges,
assumiu a coordenação do projeto
entrevistado: o veterano Elvécio Guimarães, ator que começou do documentário Primeiro Sinal
sua carreira no rádio em 1949. Comigo estavam a Hannah da - A história do teatro de Belo
Horizonte: dos primórdios até 1980.
Cunha e o Lúcio Mário – estagiários estudantes da PUC-Minas,
instituição que naquela época era parceira do projeto. No bolso, 3 - Chico Pelúcio é ator do
Grupo Galpão e diretor geral do
um papel com o roteiro da entrevista. Dias antes, essa equipe da
Galpão Cine Horto.
qual eu fazia parte, coordenada pela Luciene Borges5, definira
4 - Rodolfo Magalhães é
os três principais eixos temáticos das entrevistas: a produção
roteirista e diretor de cinema e
artística do entrevistado (estéticas, temas e procedimentos de vídeo. Os dois assinaram, juntos,
criação); sua formação e abordagens pedagógicas; e, por fim, a direção do documentário
Primeiro Sinal - A história do
sua atuação no campo da política cultural. Naturalmente, os três teatro de Belo Horizonte: dos
eixos deveriam convergir a experiência do entrevistado com primórdios até 1980.

o contexto sociocultural da cidade. O que não foi nada difícil. 5 - http://www.primeirosinal.com.br.


Quase todos os artistas ouvidos começaram suas carreiras entre
6 - Luciene Borges foi fundadora
as décadas de cinquenta e sessenta – tempo em que o teatro e coordenadora do CPMT de
moderno mineiro também criava as próprias pernas. 2005 a 2014. Junto com Marcos
Coletta, assumiu a coordenação do
projeto do documentário Primeiro
Sinal - A história do teatro de Belo
Horizonte: dos primórdios até 1980.
Cine Horto em Foco | 242

Belo Horizonte é uma cidade jovem. Não é difícil diferenciá-la de outras grandes capitais do País.
A começar pela ausência de um “centro histórico” que foi deixado nas antigas províncias do seu
entorno. A capital de Minas, idealizada e planejada em fins do século XIX, nasceu sob o signo da
modernidade e do urbanismo almejados na época. Sua primeira casa de espetáculos, o Theatro
Municipal (mais tarde, Cine Metrópole – já demolido), foi construída em 1906, mas só recebeu
em seus palcos produções artísticas estrangeiras ou de outros estados do País. Só algumas
décadas depois é que foram surgindo os primeiros artistas locais em trabalhos ainda bastante
amadores. É uma história muito recente se comparada à produção teatral de outras cidades
do mundo. Talvez por isso haja ainda tão pouca preocupação em registrá-la. O jornalista Jorge
Fernando dos Santos, o ator e diretor Jota Dângelo e a historiadora Glória Reis foram uns dos
poucos que organizaram depoimentos, publicando-os em livro. A tarefa não é fácil. A matéria-
prima é, principalmente, a narrativa oral – e toda a construção e o apagamento de memória que
ela implica. Os acervos de imagens, matérias de jornais, vídeos, figurinos e materiais de cena,
em sua maioria, ainda são pessoais e mantidos em condições precárias de preservação. É uma
história difícil de ser encontrada e ainda pouco difundida.
243 | O Encargo da História

Universitário da UFMG de 1961 a 1980.


Entrevista com a diretora Haydeé

Bittencourt, que dirigiu o Teatro

Fui aluno de duas das principais escolas de teatro da cidade. Uma de


profissionalização, outra de graduação. Em nenhuma delas passei por
(Frame do vídeo).

alguma disciplina que tivesse em seu programa a história do teatro


mineiro. Estudamos teatro brasileiro, tratando quase exclusivamente
da produção paulista e carioca. Imagino que, como eu, quase toda a
jovem geração teatral de Belo Horizonte ouviu e contou muito pouco,
quase nada, sobre aqueles que levantaram as bases do teatro que
fazemos hoje na cidade. Ingenuamente, inventamos a roda sem saber
que ela gira faz tempo: constatação a que cheguei já nas primeiras
entrevistas. Imagine as surpresas e os estranhamentos de um jovem
artista de teatro frente aos seus precursores (quase bandeirantes), até
há pouco desconhecidos por ele. Eles me contaram sobre os pioneiros
das décadas de quarenta, os anos cinquenta e as inquietações que
fizeram nascer o teatro moderno na cidade, a trabalhosa criação do
Teatro Universitário, a rotina daqueles que faziam teleteatro, os pontos
de encontro da classe teatral (que ainda são os mesmos!), as peças
mais marcantes, a luta política e artística nos anos de ditadura militar,
a formação dos primeiros grupos profissionais, a organização da
classe nos anos oitenta, e por aí vai. Sem pieguice, essa foi uma das
experiências mais marcantes da minha vida. Foi como se, de repente,
eu me desse conta de um percurso do qual faço parte – isto nada mais
é que construção de identidade. E identidade não se edifica só sobre
fatos históricos e dados numéricos, mas sobre o complexo e íntimo
funcionamento humano: memórias, afetos, sensações, humores.
Cine Horto em Foco | 244

Os casos mais secretos e engraçados, evidentemente, só


me eram contados depois que a câmera já estava desligada,
enquanto tomávamos um café. Eu me arrependi várias vezes
de ter desligado a filmadora logo após o fim da entrevista. Mas
pensar que as histórias se constroem também sobre aquilo que
se confidencia, que se inventa, que se aumenta ou que não se diz
me aliviava. Tampouco as memórias se restringem às narrativas
contadas: os entrevistados eram e são eles próprios a história
– narração viva, que está no corpo, no trato, no silêncio. Há um
momento em que a entrevista não é mais daquele que pergunta,
nem se basta nas questões prévias do papel: é quando, de fato,
a memória – ou o esquecimento – se faz presente e já não é mais
só uma tentativa de lembrança, é vida.

Quais e quantos filmes todo esse material


gravado poderia resultar? Eu me perguntava isso
a caminho da nossa primeira reunião, depois de
quase todas as entrevistas realizadas. Discutimos
cronogramas, orçamentos, etapas e modos de
elaboração do filme. Mas, pra mim, que arriscava
pela primeira vez os traços de um roteiro de
documentário audiovisual, desvendar que filme
teríamos no fim de tudo isso ainda era a principal e
essencial questão. Qual história resultaria daquelas
todas outras histórias? Que casos eleger como
fundamentais à memória teatral da cidade?
Que assuntos abordar? Que pontos de vista eleger,
se, além dos nossos roteiristas, havia também,
discrepantes, os de cada entrevistado?
Que palavras fundir? Que silêncios deixar ressoar?
Que tempo, que sequência, que filme?
Espetáculo Oh! Oh! Oh!

Minas Gerais, dirigido por

Jota Dângelo em 1967.


245 | O Encargo da História

Foto: Mauro Sérvulo.


Cine Horto em Foco | 246

Entrevista com o cenotécnico


Uma das frases mais repetidas do teólogo

e cenógrafo Felício Alves.


Leonardo Boff diz que todo ponto de vista é a
vista de um ponto. Estando num ponto, e nunca é

(Frame do vídeo).
possível estar em mais de um ao mesmo instante,
só se pode enxergar através dele. Essa ideia
poderia ser assustadora não fosse ela responsável
por dar também a cada ponto de vista sua
singularidade no mundo. Para esse documentário
tentamos ser plurais, mas, naturalmente, sob o
ponto de vista do qual avistamos o todo. Ao longo
de aproximadamente dez meses fizemos uma
série de cortes e revisões no material. Antes disso
já havíamos percebido a dimensão do trabalho
coletado e a necessidade de um recorte histórico O cinema, com toda a sua captação
para maior aprofundamento: decidimos seguir exata da realidade, que no início
a história até os anos 1980. Das cinquenta horas do século XX foi uma ameaça à
de vídeo, chegamos a oito, depois quatro, depois arte teatral (que na época se valia
duas, e por fim, uma hora e meia6. Tudo isso da estética naturalista), agora se
sob longas discussões e, confesso, engasgos na mostra como técnica e linguagem
garganta e apertos no coração! Ao longo desse capaz de fixar aquilo que o teatro
processo de edição percebemos a falta de algumas tem como inseparável atributo: a
importantes pessoas do teatro mineiro (lembradas efemeridade. Talvez o maior mérito
com cuidado pelo Chico Pelúcio) e, aos poucos, do documentário que fizemos esteja
fomos acomodando os depoimentos, organizando nessa tentativa de preservar a
as tramas e correndo atrás dos encaixes faltosos – memória do teatro, já que a intensa
trabalho encabeçado, com engenho, pelo faísca que se acende toda vez que
Rodolfo Magalhães. um espetáculo começa é, de fato,
provisória, escapável e única. Assim,
devido às finalidades iniciais desse
projeto (sem muitas pretensões,
destinado à mídia virtual), o filme não
primou por uma captação apreciável
de som e imagem, mas promove um
singular encontro com importantes
casos e figuras do cenário teatral de
Belo Horizonte.
247 | O Encargo da História

Lançamos o longa-metragem7, por fim intitulado Primeiro 6 - Todas essas versões (inclusive
as entrevistas na íntegra) estão
Sinal - A história do teatro de Belo Horizonte: dos primórdios armazenadas e permanecem
até 1980, no dia 11 de novembro de 2014, no Teatro Marília. disponíveis para acesso no Centro
de Pesquisa e Memória do Teatro
Nada mais justo que relembrar os caminhos do teatro belo-
do Galpão Cine Horto.3 - Chico
horizontino nesse espaço que foi um dos mais importantes para Pelúcio é ator do Grupo Galpão
a formação cênica da cidade. Na plateia, além do público quase e diretor geral do Galpão Cine
Horto. Rodolfo Magalhães é
todo formado por gente de teatro, lá estavam eles, os mesmos roteirista e diretor de cinema e
que apareceriam na grande tela posta sobre o palco. Ou quase vídeo. Os dois assinaram, juntos,
a direção do documentário
todos. Alguns, infelizmente, nos deixaram antes da primeira
Primeiro Sinal - A história do
exibição do filme: Haydée Bittencourt, Neuza Rocha, Raul Belém teatro de Belo Horizonte: dos
Machado e Ronaldo Boschi. Imagino que não seja necessário primórdios até 1980.

descrever a emoção do encontro. 7 - O documentário foi viabilizado


com apoio da Fundação Municipal
de Cultura de Belo Horizonte
através do programa “Adote um
bem cultural”.
Cine Horto em Foco | 248

A R T I S TA S ENT

Não é fácil contar uma história. Se aqui cabem CARLOS ROCHA


provisórias considerações finais, elas não só
apontam para os desafios de tentar remontar a
história do teatro em Belo Horizonte, mas também
para as dificuldades encontradas nela mesma, GUIMARÃES , F
na própria história. Fazer teatro neste País foi,
e ainda é, tarefa árdua e corajosa; mais ainda para
aqueles que tinham à sua frente um cenário vazio,
à espera de um teatro para ser (a)firmado.
Entrego o meu especial encargo certo de que a
MEDEIROS , JO
história não é nunca um objeto morto ou estático:
contá-la já é fazer parte dela e dar-lhe, ainda mais,
rumo. Esse encargo, pra ontem, é de amanhã.
MÁRCIO MACHA

A L M E I D A , PA U L

FREIRE , RAIM
Belo Horizonte: dos primórdios até 1980.
Primeiro Sinal - A história do teatro de
Exemplares do documentário

ROGÉRIO FALAB
Foto: Flávio Charchar.

WALMIR JOSÉ
249 | O Encargo da História

R E V I S TA D O S PRESENTES NO D O C U M E N TÁ R I O :

, DÉCIO NOVIELLO , EID RIBEIRO , E LV É C I O

E L Í C I O A LV E S , H AY D É E B I T T E N C O U R T , I O N E D E

S É M AY E R , J O TA D A N G E L O , J Ú L I O VA R E L L A ,

ADO , MARIA OLÍVIA , NEUZA ROCHA , NILDA

O C É S A R B I C A L H O , P E D R O PA U L O C AVA , P R I S C I L A

MUNDO FARINELLI , RAUL BELÉM MACHADO ,

ELLA , RONALDO BOSCHI , RONALDO BRANDÃO ,

, WILMA HENRIQUES , WILMA PAT R Í C I A .


Cine Horto em Foco | 250

UM BALANÇO DAS
AÇÕES REALIZADAS
PELO GALPÃO
CINE HORTO EM 2014
Oficinão – 17ª edição: espetáculo “Madame Satã”, com o
Grupo dos Dez. Direção de João das Neves e Rodrigo Jerônimo.
Temporada de estreia com 12 apresentações e público de mais
de 1.800 pessoas.

Pé na Rua – 10ª edição: espetáculo “À tardinha no Ocidente”,


com o grupo Primeira Campainha. Direção coletiva e dramaturgia
de Marina Viana. 6 apresentações e público de mais de
1.240 pessoas.

Projeto Cena-Espetáculo – 7ª edição da Mostra Rascunhos de


Cena: 12 cenas com total de 341 espectadores. Cena vencedora:
Rosa Choque, concepção de Cristiane Moreira e Guilherme Théo;
direção de Cida Falabella; dramaturgia de Assis Benevenuto e
Marcos Coletta. Temporada de estreia de Rosa Choque:
9 apresentações e público de 677 pessoas.

Festival de Cenas Curtas - 16ª edição: 165 inscrições de


16 estados do país. 16 cenas selecionadas. Público de
mais de 900 pessoas.

Cursos Livres de Teatro : mais de 300 alunos, divididos em


19 cursos. Público de 1.100 pessoas nas Mostras dos Cursos
(1º e 2º Semestre).

Núcleos de Pesquisa: 6 Núcleos de Pesquisa: Cenografia,


Figurino, Teatro para Educadores, Sonorização, Dramaturgia e
Jornalismo Cultural, com total de 186 participantes.
Oficinas de Verão: “A Fotografia nas Artes Cênicas”, com
Guto Muniz; “Preparação do Ator”, com Lydia Del Picchia e
“Treinamento Físico e Vocal para Atores”, com Elisa Toledo.
Público de 44 alunos.

Oficinas de Inverno: “Atuação para a câmera”, com Ana Regis;


“Encontrar esse lugar”, com Ferran Utzet (Espanha). Público
de 23 alunos.

Cine Horto na Estrada: 21 apresentações teatrais em 8 cidades


do interior do estado de Minas Gerais.

Projeto Conexão Galpão: 61 apresentações. Mais de 8.300


crianças do ensino fundamental.

Ações Formativas: 4 oficinas realizadas para um total de


60 professores participantes.

Projeto Grupo Galpão: Memória Feita à Mão: Mais de 600


visitas ao Ateliê Aberto; mais de 3.000 visitas à exposição física
no Galpão Cine Horto; mais de 2.000 acessos ao Blog do Projeto.
Portal Primeiro Sinal de Teatro: mais de 16.000 acessos.
Mais de 50 novos conteúdos publicados (artigos, vídeos,
exposições, entrevistas).

Lançamento do filme documentário “Primeiro Sinal:


A história do teatro em Belo Horizonte – dos primórdios a 1980”,
com direção de Chico Pelúcio e Rodolfo Magalhães. Distribuição
gratuita de 500 DVDs.

Lançamento dos livros comemorativos de 15 anos do


Centro Cultural Galpão Cine Horto, contendo os volumes:
“Galpão Cine Horto: uma experiência de ação cultural” e
“Do Grupo Galpão ao Galpão Cine Horto: uma experiência de
gestão cultural”.Tiragem de 2.000 exemplares.

Curadoria da programação teatral do Cine Teatro Brasil


Valourec, com 25 espetáculos e oficinas de todo o Brasil.

Mais de 120 apresentações ocuparam o Teatro Wanda


Fernandes.

37.626 pessoas atingidas pelos projetos do


Galpão Cine Horto em 2014.
EQUIPE
GRUPO GALPÃO
Atores |

Antonio Edson Inês Peixoto


Arildo de Barros Júlio Maciel
Beto Franco Lydia Del Picchia
Chico Pelúcio Paulo André
Eduardo Moreira Simone Ordones
Fernanda Vianna Teuda Bara

Conselho artístico | Antonio Edson, Eduardo Moreira e


Júlio Maciel
Conselho gestor | Beto Franco, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira,
Fernando Lara e Gilma Oliveira
Gerência executiva | Fernando Lara
Coordenação de produção | Gilma Oliveira
Produção executiva | Beatriz Radicchi
Assistente de produção | Evandro Villela
Coordenação de planejamento | Ana Amélia Arantes
Assistente de planejamento | Roberta Henriques
Coordenação de comunicação | Beatriz França
Analista de comunicação | Ana Carolina Diniz
Coordenação administrativo-financeira | Wanilda D’artagnan
Assistente financeiro | Cláudio Augusto
Assistente administrativa | Andréia Oliveira
Recepção | Cídia Santos
Serviços gerais | Lê Guedes
Coordenação técnica e iluminação | Rodrigo Marçal
Cenotécnico | Helvécio Izabel
Sonorização | Vinícius Alves
Auxiliar técnico | William Teles
Consultoria de planejamento | Ravel Cultural - Romulo Avelar
Assessoria jurídica | Drummond & Neumayr Advocacia
Gestão financeira de projetos | Ofício Escritório de Projetos –
Fernanda Werneck, Vanessa Fonseca e Jonathan Sobral
Assessoria contábil | Inforgrupo – Maurício Silva
EQUIPE GALPÃO
CINE HORTO
Direção Geral: Chico Pelúcio
Conselho Gestor: Beto Franco, Chico Pelúcio, Marcelo Santos,
Lydia Del Picchia e Romulo Avelar.
Coordenação geral: Marcelo Santos
Coordenação de Produção: Andreza Coutinho
Produção Executiva: Graziella Medrado
Coordenação Técnica: Rodrigo Marçal
Técnicos: Orlan Torres (Sabará) e Wellington Santos (Baiano)
Comunicação: Sosti Reis e Gigi Favacho
Criação gráfica: Estúdio Lampejo
Coordenação de Planejamento: Taís Oliveira
Coordenação de Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT):
Marcos Coletta
Bibliotecário do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT):
Tiago Carneiro
Assistente do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT):
Bárbara Ribeiro
Coordenação Pedagógica: Lydia Del Picchia
Coordenação Pedagógica dos Cursos, Oficinas e Projetos
Especiais: Fábio Furtado
Coordenação Pedagógica dos Núcleos de Pesquisa:
Ana Luísa Santos
Secretaria de Cursos: Felipe Messias
Equipe Pedagógica: Camila Morena, Fábio Furtado, Gláucia Vandeveld,
Juliana Martins, Kelly Crifer, Leandro Acácio e Letícia Castillo
Coordenação do Projeto Sociocultural Conexão Galpão:
Reginaldo Santos
Atores- Monitores: Dayane Lacerda, Érica HoffMan e Fabiano Lana
Coordenação Administrativo-Financeira: Maria José dos Santos
Auxiliar Administrativo: Leandro Dias
Coordenação Operacional: José Lúcio da Silva Martins
Recepcionista: Dayane Nonato
Porteiro: Eberton Pereira
Serviços Gerais: Juarez Pereira e Rita Aparecida Rosa da Silva
Gestão Financeira de Projetos: Patrícia Gontijo
Assessoria Contábil: Infogrupo – Maurício Silva
Familia Tipográfica utilizada, Univers
Centro cultural Galpão Cine Horto
Primavera de 2015

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