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Número 11
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 6
SÚMARIO
DIREÇÃO TEATRAL:
FORMAÇÃO E PESQUISA
Cibele Forjaz
(São Paulo/SP)
7 | Sobre a direção de atores: uma reflexão
PRODUÇÃO EDITORIAL:
Marcos Coletta
JORNALISTA RESPONSÁVEL:
Luciene Borges (MG 09820 JP)
CONSELHO EDITORIAL:
Chico Pelúcio, Leonardo Lessa, Luciene Borges,
Marcos Coletta e Nina Caetano
REVISÃO ORTOGRÁFICA:
Élida Murta e Rachel Murta | Trema Textos
TRADUÇÃO:
Luis Carlos Herrera Ramírez
EDITORIAL
13 | Editorial
Editorial | 14
Na seção principal, nove textos traçam um panorama diversificado sobre a direção cênica
a partir de análises teóricas, relatos de práticas e reflexões pessoais. Cibele Forjaz introduz
um breve panorama sobre a encenação desde as vanguardas modernas às práticas
contemporâneas, apontando transformações no papel do diretor de teatro. Márcio Abreu
reflete sobre alguns de seus trabalhos à frente da Companhia Brasileira, de Curitiba (PR),
e com outros artistas para expor seu pensamento sobre a relação da encenação com o
espaço, a escrita e a atuação. André Carreira se utiliza de sua experiência como diretor
e professor universitário (UFSC) para traçar aproximações e diálogos entre a pesquisa
acadêmica e as práticas dos grupos de teatro. Tiche Vianna oferece um relato pessoal e
informal sobre seu percurso e formação como diretora, além de compartilhar pontos de
seu trabalho no Barracão Teatro, de Campinas (SP). Narciso Telles também aproveita sua
condição de pesquisador e professor acadêmico (UFU) para analisar a direção teatral à luz
de sua experiência como encenador no Coletivo Teatro da Margem, de Uberlândia (MG).
Grace Passô repassa momentos de sua trajetória como diretora e enfatiza a importância
de encontros com outros diretores, como Anderson Aníbal, na Cia Clara, de Belo Horizonte
(MG), Kenia Dias, na montagem da ECA-USP, Carne Moída, e com o argentino Daniel
Veronese, em O Líquido Tátil, do Grupo Espanca!, de Belo Horizonte (MG). Francis Wilker
apresenta o conceito da direção teatral a partir da ideia de “campo ampliado” e propõe
aproximações com outras linguagens como a arquitetura, o cinema, as artes visuais,
o circo e a dança contemporânea, usando como exemplo obras teatrais nacionais que
buscam habitar estas fronteiras.
Editorial | 16
Boa leitura!
Equipe do
Galpão Cine Horto
DIREÇÃO TEATRA
FORMAÇÃO E PE
AL:
ESQUISA
O PAPEL DO ENCENADOR:
DAS VANGUARDAS
MODERNAS AO PROCESSO
COLABORATIVO
Notas rápidas sobre a função do diretor de teatro
Cibele Forjaz 1
(SÃO PAULO/SP)
1 - Cibele Forjaz é diretora e iluminadora teatral,
“vanguardas modernas”.
23 | O Papel do Encenador:
das Vanguardas Modernas ao Processo Colaborativo
Até então, pelo menos no teatro dito “oficial”, o texto teatral era o
grande aglutinador do espetáculo. As montagens tinham por principal
função fazer “viver a peça”, tal como tinha sido escrita. Cabia ao ator,
2 - François-Joseph Talma (1763-
portanto, representar o seu papel; ao cenógrafo, construir o cenário;
1826), ator da Comédie française
ao figurinista, desenhar e cuidar da realização das roupas; e assim que criou uma forma pessoal e
por diante, segundo as indicações presentes no texto teatral. Cabia “intempestiva” de interpretar,
considerado como o ator mais
ao diretor ou ensaiador organizar o trabalho da equipe, mas quem famoso de sua época.
determinava o sentido da peça era o dramaturgo, vivo ou morto. Aos
3 - Henriette Rosine Bernardt
grandes atores, também chamados de “monstros sagrados”, cabia (1844-1923), atriz francesa
uma interpretação mais particular e, assim, o público poderia ir ver o conhecida mundialmente como
Sarah Bernardt ou “Divina Sarah”.
Hamlet de Talma2, ou o Hamlet de Sarah Bernardt 3.
4 - Há muita discussão, entre
os historiadores de teatro,
Com o “surgimento da encenação” ou o início da “era da
4
se é possível ou não falar de
encenação”, a função de interpretar ou reinterpretar o sentido “surgimento da encenação” no
do texto passa a ser conduzido por um artista: o diretor teatral, final do século XIX, na medida
em que, em outros momentos da
chamado também, a partir de então, de o encenador. Assim, história, há casos de diretores de
as várias linguagens que compõem o espetáculo passam a ser companhia (como, por exemplo,
os atores, diretores e também
orquestradas a partir de uma concepção única, visando a uma
dramaturgos Leonne d’Sommi,
coesão do espetáculo em torno de conceitos específicos a cada Molière ou Shakespeare),
montagem particular de um texto. De modo que o surgimento da que foram bem mais do que
ensaiadores, imprimindo uma
encenação é, em seu tempo histórico, um importante fator libertador interpretação pessoal aos seus
do fenômeno teatral, em relação ao texto. espetáculos.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 24
espetáculo Macunaíma,
Processo Colaborativo.
A constituição e desenvolvimento de um
processo em coletivo demanda novos
grandes desafios ao diretor teatral e
propõem uma relação intrínseca entre
a direção teatral e a pedagogia, assim
como uma relação maior entre a pesquisa
cênica e outras áreas do conhecimento
humano como a literatura, a história, a
sociologia, a política e a antropologia.
O teatro, como sempre, transforma-se
intrínseca e estruturalmente junto com
as sociedades humanas.
O Teatro da Vertigem no
(VLADIMIR MAIAKOVSKI)
37 | Pedaços de Pensamentos
Na minha memória de espectador precoce encontro meu olhar sempre atento ao que
aparentemente não deveria ser o foco das atenções. Lembro-me de olhar invariavelmente
para as coxias, para os refletores, tentando entender os ângulos e a mágica da luz, de olhar
para o público atrás de mim; lembro-me de observar a reação das pessoas, de olhar fixo
para o ator que escuta enquanto espera a deixa para dar sua réplica; lembro-me de ouvir
os barulhos acidentais vindos dos bastidores, tentando imaginar como seria o mundo por
trás de tudo, o avesso das imagens criadas diante de mim, o outro lado do bordado;
lembro-me da enorme dificuldade em ouvir e de como as palavras no teatro pareciam muitas
vezes desprovidas de impulso e sonoridade, como se, mesmo ouvindo, eu não conseguisse
escutar, como se, apesar de emitidas pelos atores, as palavras estivessem ausentes;
lembro-me de pensar nisso, de me achar surdo e do quanto isso me impressionou e
ainda me causa espanto.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 38
Muito cedo, a noção dos enigmas do teatro. Por que ouvimos alguns atores
e outros não? Por que ouvimos alguns textos e outros não? Por que estamos
sem estar? O que é a presença? O que é capaz de preencher um espaço? De
repente, um sentido novo emerge, ainda enigmático, e me faz perceber, ao
longo do tempo, a fundamental noção de vazio. A importância do vazio nasce,
para mim, da relação objetiva com uma espécie de sensibilidade que foi se
desenvolvendo a partir dessas e de outras questões e, hoje, em quase todos
os meus processos criativos eu começo no vazio para terminar nele.
Olhar de dentro
Inscrição no espaço
Formas de escrita
Nômades (2014).
45 | Pedaços de Pensamentos
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 46
47 | Pedaços de Pensamentos
O ator
Não entendo o ator como centro no teatro. Não se trata de haver centros ou bordas.
A criação teatral é necessariamente a coordenação de vários campos de ação, de ofícios os
mais diversos, de saberes complementares, de várias artes e de muitas pessoas. Não se trata
de dar mais ou menos importância a isso ou aquilo. Tudo é importante. Tudo é fundamental.
Não podemos abrir mão de nada. No entanto, é evidente que o aspecto presencial do teatro
é sua força e é o que o distingue de outras experiências artísticas. Nessa perspectiva,
o ator manifesta o fenômeno, se oferece ao encontro, convoca o público, se faz presença.
E é ali que tudo acontece, onde todos estão. E aí vem a maravilha. O ator inventor de línguas,
mastigador de palavras, incendiário de espíritos, ampliador de corpos e de espaços, pintor de
silêncios, arrebatador de almas, provocador de escândalos, formigador de risos, estripador
de chatos, politizador de mortos, sonhador de mundos, ladrão no escuro, pilantra de marca
maior, a dor de todo mundo, o trabalhador das madrugadas, o faminto depois das peças,
o doador universal!
Outra característica importante desse processo é a formação de uma nova camada de diretores
que têm seu primeiro movimento criativo no interior de disciplinas de direção teatral. Isso
constitui toda uma novidade para a cena brasileira na qual tradicionalmente a formação
dos diretores se deu no bojo das atividades das companhias. Talvez ainda seja cedo para
identificarmos todas as implicações disso na conformação do nosso teatro, pois a proximidade
do evento dificulta o estabelecimento de um quadro acabado. Mesmo assim, é possível dizer
que o aluno que se forma como diretor no contexto universitário tem pelo menos uma prática
de pensar a cena a partir de abordagem ampla que se relaciona com uma compreensão da
história do teatro e da estética teatral. O fato de que os alunos tenham aulas de história do teatro,
estética teatral e participem de eventos acadêmicos permite pensar pontos de partida para a
direção supondo abordagens questionadoras que terão pelo menos a capacidade de se situar
no complexo quadro da cena contemporânea para se estabelecer o próprio projeto de direção.
A formação oferecida nas universidades tem a tendência a não pensar a direção teatral apenas
como ofício, mas, sobretudo, como uma função criativa relacionada com a invenção da cena,
como ato de autoria que reinventa o teatro.
Apesar de que associamos pesquisa à proposta da direção e quase sempre estamos falando de
uma pesquisa a serviço de um projeto de montagem, é oportuno lembrar diferentes experiências
de investigação que têm como foco a técnica de atuação.
Podemos considerar que “pesquisar” para realizar um espetáculo é uma prática inaugurada pela
brilhante mente de Constantin Stanislavky, que percebeu a importância de produzir conteúdos
que sustentassem o processo criativo da interpretação da atuação e da direção. No entanto,
quando falamos, na atualidade, em pesquisa, é necessário considerar a instalação de processos
de discussão dos materiais do teatro com vistas à abertura de novas relações com a matéria
que constitui nossa arte. Pesquisar é, nesse caso, questionar sempre a natureza do nosso fazer
artístico. Estudamos quando queremos conhecer um objeto. Pesquisamos quando o conhecemos
suficientemente para penetrar suas estruturas de tal forma que possamos modificá-lo.
65 | A Direção Teatral e a Pesquisa: Escolas e Grupos
(BARÃO GERALDO/SP)
1 - Tiche Vianna é atriz, diretora e pesquisadora de teatro,
Para começar, digo que sou uma diretora que tem formação
de atriz, embora tenha escolhido ser diretora desde o início de
minha formação. Isso significa que não decidi me tornar diretora
enquanto aprendia a atuar, ao contrário, decidi estudar a atuação
para aprender a ser diretora. De certa maneira, isso já diz muito a
respeito do meu olhar sobre a direção teatral.
Neander Heringer.
Tiche Vianna, Ésio
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 70
Desde a fundação de nosso grupo, trabalhamos, como tantos outros, com a criação de
espetáculos que partem eminentemente da construção de uma dramaturgia coletiva. Isso
significa que, ao contrário do que ocorre nos processos tradicionais de criação, não partimos
de um texto, mas de ideias e necessidades de expressão sobre temas. Esse tema pode ser
proposto por qualquer um dos integrantes do grupo que sinta a necessidade de mexer com o
material proposto. A partir daí, certamente o propositor começa um trabalho, junto aos demais
integrantes, de “contágio”, que é feito por meio da sedução. Sedução? Sim, claro, sedução!
Ou como você acha que convence alguém de alguma coisa que você queira fazer?
em processo de criação.
71 | Planar no Abismo em Ótima Companhia
#1
Penso que devemos ser Homens-Teatro, tal como propõe Sartre
ao colaborar com o projeto pedagógico da Escola de Jacques
Copeau. Estarmos fazendo, ensinando, pensando, escrevendo,
dirigindo, atuando... Somos todos fazedores-pensadores-
ensinadores-aprendizes.
85 | #4 - Escritos Esparsos Sobre Direção e
Teatro de Grupo
#2
O Teatro de Grupo tem como característica um modo de criação
e produção teatral pautado na coletivização dos procedimentos
de criação. Nesse modo de fazer encontramos várias formas de
grupalidade. Grupos como: Galpão, La Candelaria, Tá na Rua,
Imbuaça, Teatro Taller, Yuyachkani, Ói Nóis Aqui Traveiz, entre
outros, são alguns expoentes do teatro de rua latino-americano
contemporâneo. Esses coletivos, surgidos nas décadas de
1970 e 1980, foram construindo um projeto estético próprio,
desenvolvendo sua pesquisa de linguagem, investigando de
forma diferenciada processos poéticos e formativos coletivizados.
As ideias de movimento e
identificação congregam-se, ao
observarmos as atividades artístico-
pedagógicas dos grupos. Muitos,
no decorrer de sua trajetória,
vão ampliando espaços de ação
direcionados para as atividades
educacionais. Quase todos
desenvolvem uma estrutura de
treinamento, para o aperfeiçoamento
de seus atores, e um conjunto de
oficinas de formação/aperfeiçoamento
de sua linguagem para outros artistas.
André Carreira ressalta a importância
que os grupos ocupam na formação
de atores nos contextos regionais.
Para ele, “esta prática pedagógica vai
além do objetivo de ensinar técnicas
teatrais, ela se articula como discurso
que funda um espaço ideológico e
político” (CARREIRA, 2006, p. 56).
#3
Nos processos do Coletivo Teatro da Margem (Uberlândia-MG), o
trabalho de direção parte sempre de uma questão mobilizadora:
em Canoeiros da Alma (2008), a pergunta era: como vivem as
pessoas que moram nas margens dos rios em Minas Gerais? Em
A Saga no Sertão da Farinha Podre (2012): quem somos nós nesta
cidade que sempre deseja ser metrópole? A pergunta potencializa
os caminhos para o levantamento de materiais cênicos. Em
nossos processos não partimos de um projeto de encenação
previamente concebido, mas pelo acúmulo de questões e
perguntas que movimentam o ato criativo e que nos afetam.
Assim, partimos de forma diferente, em cada trabalho, a levantar
materiais por meio de estudos e composições. Identificamos
essa prática como um devising, que se refere “a qualquer
processo criativo teatral que não respeite uma hierarquia de
materiais cênicos centrada no texto escrito por um dramaturgo
a priori. Nesse sentido o processo teatral torna-se em si o motor
fundamental para a criação” (SILVA, 2014, p.11).
#4
Para pensar a prática de direção, recupero pontos do texto de
Anne Bogart sobre o erotismo como um elemento necessário
ao processo criativo, para tecer algumas considerações
sobre a pedagogia do teatro. Anne diz que uma relação
apaixonada é construída por algo que nos arrebata e atrai, pela
desorientação, por um relacionamento prolongado e no qual
você é transformado de forma permanente. Esses aspectos,
segundo a diretora, produzem um ato erótico, uma excitação
dos sentidos, um ir ao encontro de algo perturbador, excitante e
romântico. O processo de direção de uma prática de montagem
pode constituir-se como uma prática erótica de aprendizado
artístico. Para além da apreensão de saberes institucionalmente
constituídos [aqui incluo as técnicas artísticas] e baseados em
regras de erudição e controle.
p.119-130.
DIREÇÃO TEATRAL:
ALGUMAS REFLEXÕES
EM 2014
Grace Passô 1
(BELO HORIZONTE/MG)
1 - Grace Passô é diretora, dramaturga e atriz.
01.
Em relação ao ator, ressalto a importância de propor limites para
o gigantesco universo de possibilidades do intérprete durante
sua criação. Uma peça de teatro é muita coisa ao mesmo tempo
e, quando o ator começa a criar, ele também deseja muitas
coisas. O processo de composição de um ator em um trabalho
teatral é uma grande caminhada e, quando diminuímos a estrada,
o ator passa a marchar para dentro da selva que rodeia esse
caminho, em direção ao aprofundamento do que cria. Um desafio
da direção é optar por direcionamentos que limitem os excessos
de suas possibilidades criativas.
No início dos anos dois mil iniciei uma parceria com o diretor Anderson Aníbal, época dos
primeiros trabalhos da Cia Clara de Teatro. Dentre alguns focos de pesquisa propostos pelo
diretor, um propunha algo novo em relação à maioria das técnicas de atuação comumente
vistas nos trabalhos dos atores belo-horizontinos da época. Aníbal pedia a nós, atores,
absoluta concentração na ação da fala, ao mesmo tempo que dispúnhamos de uma
quantidade bastante restrita de gestos, ações e movimentos para nossas composições.
Trabalhávamos a eminência do gesto, ação ou movimento e isto gerava uma expressão de
aparente imobilidade, em que a figura do ator era sublinhada através de uma composição
baseada na síntese. Como intencionalmente não tínhamos muitas cartas para jogar,
compúnhamos com a escuta, com a emissão da fala e pausas, o que valorizava o gesto, ação
ou movimento, quando estes ocorriam. Os limites que esses direcionamentos nos impunham
nos aproximavam da essência do ato, fazendo com que nos aprofundássemos na relação
fundamental do acontecimento teatral: aquela que se dá entre ator e plateia.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 102
Direção e dramaturgia
02.
Comecei este texto aproximando o trabalho da direção e a noção de
“distância” e recorro mais uma vez a este termo para pensar sobre a relação
entre o Espaço da cena e o Ator ou Público. Ora, a distância entre pontos
revela as dimensões de um espaço. Se uma pessoa olha um lustre que está a
cinco metros do chão, ela não só revela o lustre ao relacionar-se com ele, mas
também o espaço de que ambos fazem parte. Quando peças de teatro passam
a ocupar com frequência outros espaços que não são teatros com lugares
delimitados de palco e plateia, o Espaço da cena começa a ser compreendido
como elemento com novas possibilidades de composição. E técnicas
surgem para quebrar segundas, terceiras paredes, sugerindo outras formas
de interatividade entre atores, público e espaço. Técnicas como viewpoints
dotam atores do sentido do espaço, relevam a centralização do foco da cena
no corpo do ator e dissolvem noções restritas de espaço da cena como um
lugar onde se encontra o cenário. Com essa visão, muitas criações passam
a procurar silhuetas urbanas, distantes da moldura do palco tradicional.
Dentre vários atributos que isso vem trazendo para a prática contemporânea,
está o de que inúmeros trabalhos incorporam o significado e a memória de
espaços à dramaturgia de seus espetáculos. Peças em presídios, vilas, lugares
abandonados e terrenos baldios colocam o teatro em diálogo direto com as
cidades, expandindo até mesmo a noção de apresentação para a de ocupação,
radicalizando o teatro como ação política que é.
107 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014
03.
As fronteiras entre linguagens estão cada vez mais dissolvidas e muitos de nós,
diretores, estamos cada vez menos preocupados em limitá-las. Pelo contrário,
na aproximação a determinadas linguagens mora, muitas vezes, o caminho para
o rompimento de certos portos demasiadamente seguros da construção teatral.
04.
Nas práticas contemporâneas da direção muitas vezes residem
práticas antigas. E muitas vezes com intento. Em 2012 mergulhei
junto ao Espanca! no processo de criação de O Líquido Tátil , sob a
direção de Daniel Veronese. A vanguarda teatral não é feita somente
de novos procedimentos para criação, mas, sobretudo, do modo
de relacionar o teatro ao acontecimento artístico que sempre foi.
Apesar de Veronese também fazer uso de procedimentos e códigos
novos e próprios, o processo que vivemos com ele foi pautado
por uma rica simplicidade de procedimentos para nossa criação.
No primeiro dia em que chegamos à sala de ensaio, o cenário
já estava montado. Veronese usa o mesmo cenário para peças
diferentes e, por isso, estava trabalhando em outra montagem, no
mesmo espaço: um espaço-quina delimitado por duas paredes e
chão. Longe de ser um modismo ou mera praticidade, arrisco dizer
que, como bom ex-marceneiro, ele encontrou na concepção de
cenários valiosamente simples um abrigo para o universo poético
que desenvolve. Com o espaço já delimitado e o texto finalizado
e previamente decorado, íamos (atores) experimentando as
relações entre personagens através de direcionamentos nos quais
Veronese nos fazia entender o motivo de cada ação, paulatina
e repetidamente. Em momento algum referiu-se a histórias que
precedessem as histórias que os personagens contavam na peça,
ateve-se em dissecar as relações entre eles, por vezes nos fazendo
mergulhar em sentidos extremamente subjetivos, por outras nos
fazendo desapegar completamente de algumas arapucas do drama.
A clareza de cada intervenção que fazia me lembrava mais uma vez
daquilo que pretendo não me esquecer: é preciso ser franco, não
abrir concessões para cordialidades baratas na relação entre ator e
diretor. Assim, estabelece-se a direção como referência ética de uma
criação. Pois bem: nas ferramentas das direções contemporâneas,
reside a velha e boa prática em que o diretor conduz atores falando
sobre seu mundo e os fazendo compreender como devem conduzir
suas ações. E essa prática comum pode fazer muito sentido.
O diretor argentino Daniel Veronese
05.
O teatro não é mais necessariamente textocêntrico. Mas, para além do texto, o que a
contemporaneidade nos revela é a mobilidade do que está no centro de sua realização. Como
disse no início, peças teatrais são construídas com ou sem diretor e ressalto ainda que, assim
como esta função, outras também podem estar ali, não na figura de uma única pessoa, mas
dissolvida nas demais funções que ali estão. Se o mundo reinventa novas formas de convívio
coletivo, o mesmo acontece no teatro.
113 | Direção Teatral: Algumas Reflexões em 2014
06.
E aqui registro uma consideração sobre a relação entre direção e dramaturgia,
especificamente em relação à adaptação de textos teatrais. O teatro é
paradigmático no seu labor: relaciona-se com textos escritos no passado
ao mesmo tempo que sua natureza de linguagem se potencializa através de
ferramentas de presentificação. Essa aparente contradição obriga que seus
artistas trabalhem com memórias sociais ao mesmo tempo que desenvolvem
formas que dialogam com seu tempo. As adaptações, reinterpretações e
as “obras baseadas” caminham para uma ideia de relação dialógica com
textos clássicos e o nível de diálogo se dá não só em dramaturgias textuais,
mas também cênicas. Acho esse um dos grandes atributos das práticas
contemporâneas porque essa espécie de liberdade retira o texto teatral
do lugar de “guia do que fazer” e o recoloca como voz em dinâmicas de
repertencimento, em que culturas imprimem visões diferentes sob mesmas
obras. E através de formas cada vez mais radicais.
A ENCENAÇÃO
NO CAMPO
AMPLIADO
Francis Wilker 1
(BRASILIA/DF)
1 - Francis Wilker é pesquisador, professor e
diretor teatral. Integra o grupo brasiliense Teatro
do Concreto. Mestre em Artes, pela ECA-USP,
especialista em Direção Teatral, pela Faculdade
de Artes Dulcina de Moraes, e graduado em
Artes Cênicas, pela Universidade de Brasília.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 116
(MANOEL DE BARROS2)
117 | A Encenação no Campo Ampliado
século XIX, com ênfase no modernismo e no pós-modernismo. 3 - À medida que os anos 1960
Nesse percurso analítico e crítico, Krauss nos convida a lançar se prolongavam pelos 1970 e
que se começou a considerar
um olhar mais complexo para essas práticas e obras resultantes, como “escultura”: pilhas de
apontando rupturas, tensionamentos, maleabilidade e apontando lixo enfileiradas no chão, toras
de sequoia serradas e jogadas
que o campo do pensamento pós-moderno, devoto da noção
na galeria, toneladas de terra
de complexidade, poderia nos oferecer outros fios de análise escavada do deserto ou cercas
para pensarmos essas obras e seus contextos de produção, rodeadas de valas — a palavra
escultura tornou-se cada vez
questionando inclusive a pertinência do termo escultura para mais difícil de ser pronunciada
abranger categorias tão diversificadas de trabalhos. Portanto, (KRAUSS, 1984, p.130).
invoca por meio de suas reflexões a necessidade de pensar a 4 - Em inglês: Sculpture in the
escultura num campo ampliado ou estendido. Expanded Field.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 118
Desse modo, para mim, criar um trabalho cênico é mais que “montar
isto ou aquilo”, é o desejo de realizar um projeto, um plano que carrega
aspectos poéticos, éticos e políticos. Como diretor, algumas perguntas que
constantemente me assolam são: o que queremos com esse projeto? O que
esse projeto requer? O que esse processo está pedindo? O que esse processo
está nos dizendo? Para onde esse processo aponta? Como desejamos nos
relacionar com o espectador? As tentativas de responder a essas e tantas
outras questões têm gerado instigantes experimentações de linguagens e
motivado diretoras e diretores para a descoberta de novos campos. Não
interessa aqui criar classificações para posicionar um artista, por exemplo, no
campo do teatro ou do cinema, uma vez que a arte contemporânea já aboliu
a necessidade de barreiras entre as linguagens e o que parece interessar ao
criador é justamente o que se pode descobrir naquele espaço de encontro
entre um campo e outro, ou seja, nos motiva o entre, a brecha. É nesse campo
ampliado que nossas práticas e produções parecem se redimensionar. Um
campo esfumaçado, onde, debaixo da neblina que já não nos faz distinguir com
clareza entre isto ou aquilo, descobrimos preciosidades.
linguagens, ou parecem gerar um novo campo que não seria necessariamente mais dança
ou teatro, eliminando as margens disciplinares. Certamente, a coreógrafa alemã Pina Bausch
(1940-2009) figura como uma das referências mais importantes por explorar procedimentos
composicionais associados ao que veio a se chamar de dança-teatro. Entre os muitos exemplos
brasileiros, gostaria de destacar a coreógrafa Giselle Rodrigues, que criou com o grupo baSiraH
uma emblemática obra, De água e sal (2005), que se mostrou tão radical nas experimentações
da linguagem que, por vezes, o trabalho era recusado por curadorias de dança por entenderem
o espetáculo como teatro, bem como recusados por curadorias de teatro, que entendiam a
obra como dança. Recentemente, as diretoras Kênia Dias e Grace Passô levaram à cena Carne
Moída (2014), com formandos da EAD-USP, em que o diálogo entre a dança e o teatro parece se
materializar desde a composição da própria dupla de diretoras e transborda para a resultante
cênica que explorava justamente os “entrelugares” do jogo entre a palavra e o movimento, a
ação e a representação, a pausa e o fluxo.
133 | A Encenação no Campo Ampliado
Entre os temas que não terei tempo para discutir neste artigo,
mas gostaria de apontar, um diz respeito aos projetos que
propõem o encontro entre artistas com formações diferentes
na direção de um trabalho, por exemplo, um diretor de teatro
e um cineasta, como no caso da montagem mineira Sarabanda
(2014), com o cineasta Ricardo Alves Jr. e a diretora Grace Passô,
que criaram uma obra teatral inspirada no filme Saraband, de
Ingmar Bergman. Uma experiência exemplar de cruzamento
entre a poética teatral e a cinematográfica. O outro tema aponta
para a aproximação do campo teatral às práticas etnográficas,
tão estruturantes para a Antropologia. Intuo que essa discussão
renderia olhares significativos para as práticas de grupos teatrais
em contextos de pesquisa com tribos indígenas, populações de
rua, acampamentos rurais, travestis e transexuais, etc. Como
podemos ver, investigar as zonas de cruzamento entre o teatro
e outras linguagens e áreas do conhecimento, especialmente
na perspectiva da direção, é ainda um campo a ser mais bem
explorado e que guarda muitas contribuições às reflexões sobre
a cena contemporânea e evidenciam as transformações pelas
quais tem passado o papel ou função do diretor/encenador e seu
sentido, além das práticas recorrentes neste fazer.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 138
Bibliografia
A EQUAÇÃO HUMANA
Cada ator é diferente, e acho importante saber personalizar não só o que lhe é dito, mas também
como isto é dito. Como ele é ouvido, que tipo de indicações (concretas, abstratas, físicas) vão ser
dadas a ele... Tudo isso é importante. Pede muita atenção? Vou dar. Prefere fazer as coisas do seu
jeito? Então, não vou ser eu quem vai impedir. É do tipo inseguro e precisa de reforços positivos?
Ótimo, eu vou dar. Quer que diga que está fazendo mal e que é um desastre? Isso, normalmente,
não vou fazer, mas talvez seja um pouco mais duro com ele. Trabalhar o relacionamento
com todos e com cada um dos atores, e não apenas com os protagonistas, desde o início, é
fundamental. É o aspecto decisivo para instaurar o ambiente que me parece necessário trabalhar,
amigável e concentrado ao mesmo tempo. Não há nenhuma obrigação: há diretores que gostam
de trabalhar a partir do caos, outros que instauram o terror; eu gosto da amabilidade combinada
com a intensidade. E, para que reine esse ambiente, é essencial que o grupo esteja coeso, e que
a autoridade necessária ao diretor esteja baseada na total confiança da equipe.
A TANGENCIALIDADE
Tomemos, por exemplo, o primeiro ato de Rei Lear, quando o monarca explode de raiva
com sua filha Cordélia porque ela se recusa a lisonjeá-lo como suas irmãs Goneril e Regan
o fizeram. Essa cena pode ser resolvida apenas trabalhando com o ator que interpreta o rei,
com os oito ou nove atores que o acompanham no palco transformados em blocos sem
movimento e silenciosos à espera das poucas réplicas que lhes oferece a ira de Lear. Mas
também pode ser resolvida trabalhando sobre esses oito ou nove atores, decidindo para qual
personagem (Gloucester? Kent? Cordélia? Goneril? Regan?) o rei diz cada frase. Procurando o
que fez cada personagem para provocar esse verso que lhe foi dito nesse momento concreto,
como ele reage ao ataque. Trabalhar a partir da ideia de que essa é uma cena de grupo,
embora a maioria dos personagens mal fale. O ataque de fúria de Lear é causado por uma
situação determinada, na qual participam todos os personagens que estão no palco, e suas
palavras têm que estar carregadas pela indiferença camuflada de suas filhas mais velhas, por
como respiram os maridos delas, por como os cortesãos colocam o olhar para baixo, pela
forma como sua filha mais nova mantém o contato visual com ele, por como alguns tentam
acalmá-lo sem sucesso.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 150
É claro que essas ações devem ser calibradas de modo que não
perturbem o foco e não traiam a atmosfera da cena: isto também
é trabalho do diretor. Mas é bom lembrar que enriquecer a
interpretação de Kent, Cordélia ou Goneril nessa cena na qual
não falam serve para algo além de evitar que fiquem entediadas
e se tornem armários, que contam os minutos faltantes para sua
próxima réplica: são as reações, os detalhes destes personagens
silenciosos, mas vivos, que dão volume autêntico, textura e
relevo ao que Rei Lear está dizendo.
OS DETALHES
“[...] Vinte e três atores no palco, todos sentados, bebendo chocolate e dizendo
algumas breves respostas. A direção de Hammarén é mortalmente detalhada, e
exige uma paciência infinita: ‘Quando Kolbjörn diz sua resposta sobre o clima,
pega uma massa, em seguida, mexe o chocolate com uma colher. Por favor,
faça-o’. Kolbjörn ensaia. O diretor corrige. ‘Wanda serve o chocolate da jarra da
esquerda e sorri amavelmente para Benkt-Ake. Façam-no!’ Os atores ensaiam.
O diretor corrige. Impaciente, eu penso: esse cara é o coveiro do teatro, a ruína
da arte teatral. Hammarén permanece imperturbável: ‘Tore estica o braço para
pegar uma massa e acena a cabeça em direção a Ebba. Eles disseram algo
que não ouvimos. Procurem um tema de conversa adequado’. Ebba e Tore
propõem. Hammarén aprova. Ensaiam. Eu penso que aquele velho ditador
antiquado já conseguiu eliminar todo o prazer e a espontaneidade dessa cena.
Ele a petrificou. Depois de intermináveis horas de repetições, interrupções,
correções, ajustes e outros jargões, Hammarén considera que chegou o
momento de representar a cena do começo ao fim.
E o milagre acontece.
Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 152
INFLAR O TEXTO
OS MÉTODOS
Por outro lado, me parece ser possível falar sobre tendências. De estilos, de gestos de
interpretar, de lugares singulares aos que o diretor pode ir junto com o ator. Nesse sentido,
o mundo da interpretação teatral vai mais longe ainda que o mundo da interpretação
audiovisual, dominado de modo poderoso e implacável pelo naturalismo anglo-saxão há
décadas. Salvo contadas exceções, espíritos livres como David Lynch ou Aki Kaurismaki,
que propõem para seus atores registros de interpretação singulares, existe uma forma
essencialmente correta de atuar bem no cinema. A interpretação teatral, por outro lado,
admite outros vernizes e se tinge mais facilmente do zeitgeist, do espírito do tempo, e,
por este motivo, analisá-la pode ser mais fecundo.
Espetáculo La Presa,
AS TENDÊNCIAS
O bonito dessa história é que nesse Loucos fingindo ser Boa sorte.
barco de loucos todos sabem que essa lúcidos, seguindo um
ilha não existe. Mas também sabem louco que finge ser
que, se falarem isso em voz alta, se lúcido. Essa é a beleza
desconfiarem, não terão a capacidade do teatro, isso é a
de criá-la. E, então, eles não vão direção de atores.
chegar. Não há mais remédio: os
atores têm que assumir corajosamente
o desafio de seguir Ulisses. Têm que
aceitar o risco de acreditar nele e na
Ítaca da qual se fala.
SOBRE VIVER
EM GRUPO
Miguel Rubio 1
(LIMA/PERU)
1 - Miguel Rubio Zapata é membro fundador e atual
PARA O ODIN,
Possivelmente técnica mista é o termo que ficaria melhor para explicar a tentativa de
incorporar os sinais do caminho percorrido. Em nossa peça Sin título - Técnica mixta
converge uma série de linguagens de diferentes origens. Chegamos até aqui não apenas
como artistas, mas para exercer nossa legítima condição de cidadãos. Incorporando
documentos reais, fotografias, vídeo, instalação, dança e jogos, fazemos uma revisão das
diferentes maneiras de como, ao longo de nossa história, temos entendido a representação.
O suporte multimídia, a museologia, as intervenções urbanas são recursos para responder ao
nosso tempo com tudo o que temos à mão e, como consequência disto, estamos em zonas
híbridas, em novas fronteiras às quais chegamos nos identificando com aqueles que buscam
justiça, nos aproximando de outros parâmetros de verdade cênica. Este novo momento
traz consigo um ator-autor, participante ativo em um coletivo no qual se faz responsável
por aquilo que ele diz e o que ele faz em cena e fora dela. Essa prática lhe permite explorar
fontes diversas vindas do canto e da dança, bem como diversas culturas do corpo; neste
espaço ele vai cultivando disciplinas e guardando saberes que incorpora em sua preparação
corporal e vocal. Assim foi nascendo um treinamento físico e mental para estar preparado
e aberto para lidar naquele lugar pessoal que o coloca como “editor” de um processo
complexo e necessariamente multidisciplinar que convoca seu corpo no espaço, com
seus conhecimentos, perguntas, carências e imprevisíveis resultados dessa articulação de
componentes diversos. Nesse processo, o ator vai fazendo no reconhecimento de seu ofício
uma prática de criador, com autonomia no domínio de suas fronteiras para, daí, confrontar-se
com seus colegas e com o diretor.
181 | Sobre Viver em Grupo
Ana Correa em
A Fundação Nacional das Artes – FUNARTE, principal instituição responsável pelas artes
em nosso país, em um processo lento de raquitismo, está hoje sucateada, descapitalizada,
esvaziada de sentido e incapaz de propor uma intervenção no cenário artístico brasileiro.
Atua hoje, quando consegue, com editais defasados e que não conseguem atender nem a
10% de suas demandas. Para ficar só em um exemplo cito o Edital Myriam Muniz, com foco
no setor do teatro, que em 2012 teve 1.595 inscritos e contemplou 132 projetos (8,3%), em
2013 apresentou 1.807 candidatos para 108 contemplados (6,0%) e em 2014 foram inscritos
1.479 e eleitos 107 (7,2%). A mesma discrepância entre inscritos e aprovados se passa com
os outros editais gerenciados pela FUNARTE. É impensável admitir que tantos projetos
não tenham qualidade e relevância para serem fomentados por nosso Estado. Para além
desses percentuais, há outros pontos importantes de serem abordados sobre os editais: os
julgamentos são discutíveis, falta acompanhamento posterior de seus resultados e impactos
e, por seu caráter quase sempre generalista, não constituem investimentos estruturantes
para os diversos setores atendidos pela FUNARTE que, além das Artes Cênicas, atende
à Música e às Artes Visuais. É certeira a constatação de que esses instrumentos estão
esgotados. Os editais tiveram um importante papel no início do governo Lula, pois foram
a sinalização e o primeiro passo para colocar a escolha pública como critério de definição
de financiamento estatal, rompendo com a política de balcão anteriormente praticada
pela FUNARTE e pelo próprio MINC, bem como pelas instâncias estaduais e municipais.
Infelizmente, pouco se progrediu, e a FUNARTE não avançou na estruturação de um sistema
de ações que certamente teria os editais como ferramentas, mas não as únicas. A FUNARTE,
com a perda de sua importância interventiva e política, deixou de ser uma referência aos
criadores das artes no Brasil e, empobrecendo seu discurso, se viu incapaz de acompanhar
as profundas transformações que viveu nosso país.
211 | O Necessário Debate das Artes
• Rede Produtiva das Artes – Diagnosticar, pensar e ver como esta rede
se relaciona com outros setores da economia e como potencializar
economicamente nossos esforços artísticos é tarefa fundamental na
construção de políticas para as artes.
processo de criação de
O projeto de registro das entrevistas, entretanto, teve início bem 2 - Marcos Coletta é ator,
dramaturgo e coordenador do
antes dessa reunião. No começo de 2012, eu, amadoramente,
Centro de Pesquisa e Memória
carregava uma câmera filmadora digital, um pequeno tripé, do Teatro do Galpão Cine Horto.
um fio-cabo para extensão e seguia para a casa do primeiro Junto com Luciene Borges,
assumiu a coordenação do projeto
entrevistado: o veterano Elvécio Guimarães, ator que começou do documentário Primeiro Sinal
sua carreira no rádio em 1949. Comigo estavam a Hannah da - A história do teatro de Belo
Horizonte: dos primórdios até 1980.
Cunha e o Lúcio Mário – estagiários estudantes da PUC-Minas,
instituição que naquela época era parceira do projeto. No bolso, 3 - Chico Pelúcio é ator do
Grupo Galpão e diretor geral do
um papel com o roteiro da entrevista. Dias antes, essa equipe da
Galpão Cine Horto.
qual eu fazia parte, coordenada pela Luciene Borges5, definira
4 - Rodolfo Magalhães é
os três principais eixos temáticos das entrevistas: a produção
roteirista e diretor de cinema e
artística do entrevistado (estéticas, temas e procedimentos de vídeo. Os dois assinaram, juntos,
criação); sua formação e abordagens pedagógicas; e, por fim, a direção do documentário
Primeiro Sinal - A história do
sua atuação no campo da política cultural. Naturalmente, os três teatro de Belo Horizonte: dos
eixos deveriam convergir a experiência do entrevistado com primórdios até 1980.
Belo Horizonte é uma cidade jovem. Não é difícil diferenciá-la de outras grandes capitais do País.
A começar pela ausência de um “centro histórico” que foi deixado nas antigas províncias do seu
entorno. A capital de Minas, idealizada e planejada em fins do século XIX, nasceu sob o signo da
modernidade e do urbanismo almejados na época. Sua primeira casa de espetáculos, o Theatro
Municipal (mais tarde, Cine Metrópole – já demolido), foi construída em 1906, mas só recebeu
em seus palcos produções artísticas estrangeiras ou de outros estados do País. Só algumas
décadas depois é que foram surgindo os primeiros artistas locais em trabalhos ainda bastante
amadores. É uma história muito recente se comparada à produção teatral de outras cidades
do mundo. Talvez por isso haja ainda tão pouca preocupação em registrá-la. O jornalista Jorge
Fernando dos Santos, o ator e diretor Jota Dângelo e a historiadora Glória Reis foram uns dos
poucos que organizaram depoimentos, publicando-os em livro. A tarefa não é fácil. A matéria-
prima é, principalmente, a narrativa oral – e toda a construção e o apagamento de memória que
ela implica. Os acervos de imagens, matérias de jornais, vídeos, figurinos e materiais de cena,
em sua maioria, ainda são pessoais e mantidos em condições precárias de preservação. É uma
história difícil de ser encontrada e ainda pouco difundida.
243 | O Encargo da História
(Frame do vídeo).
possível estar em mais de um ao mesmo instante,
só se pode enxergar através dele. Essa ideia
poderia ser assustadora não fosse ela responsável
por dar também a cada ponto de vista sua
singularidade no mundo. Para esse documentário
tentamos ser plurais, mas, naturalmente, sob o
ponto de vista do qual avistamos o todo. Ao longo
de aproximadamente dez meses fizemos uma
série de cortes e revisões no material. Antes disso
já havíamos percebido a dimensão do trabalho
coletado e a necessidade de um recorte histórico O cinema, com toda a sua captação
para maior aprofundamento: decidimos seguir exata da realidade, que no início
a história até os anos 1980. Das cinquenta horas do século XX foi uma ameaça à
de vídeo, chegamos a oito, depois quatro, depois arte teatral (que na época se valia
duas, e por fim, uma hora e meia6. Tudo isso da estética naturalista), agora se
sob longas discussões e, confesso, engasgos na mostra como técnica e linguagem
garganta e apertos no coração! Ao longo desse capaz de fixar aquilo que o teatro
processo de edição percebemos a falta de algumas tem como inseparável atributo: a
importantes pessoas do teatro mineiro (lembradas efemeridade. Talvez o maior mérito
com cuidado pelo Chico Pelúcio) e, aos poucos, do documentário que fizemos esteja
fomos acomodando os depoimentos, organizando nessa tentativa de preservar a
as tramas e correndo atrás dos encaixes faltosos – memória do teatro, já que a intensa
trabalho encabeçado, com engenho, pelo faísca que se acende toda vez que
Rodolfo Magalhães. um espetáculo começa é, de fato,
provisória, escapável e única. Assim,
devido às finalidades iniciais desse
projeto (sem muitas pretensões,
destinado à mídia virtual), o filme não
primou por uma captação apreciável
de som e imagem, mas promove um
singular encontro com importantes
casos e figuras do cenário teatral de
Belo Horizonte.
247 | O Encargo da História
Lançamos o longa-metragem7, por fim intitulado Primeiro 6 - Todas essas versões (inclusive
as entrevistas na íntegra) estão
Sinal - A história do teatro de Belo Horizonte: dos primórdios armazenadas e permanecem
até 1980, no dia 11 de novembro de 2014, no Teatro Marília. disponíveis para acesso no Centro
de Pesquisa e Memória do Teatro
Nada mais justo que relembrar os caminhos do teatro belo-
do Galpão Cine Horto.3 - Chico
horizontino nesse espaço que foi um dos mais importantes para Pelúcio é ator do Grupo Galpão
a formação cênica da cidade. Na plateia, além do público quase e diretor geral do Galpão Cine
Horto. Rodolfo Magalhães é
todo formado por gente de teatro, lá estavam eles, os mesmos roteirista e diretor de cinema e
que apareceriam na grande tela posta sobre o palco. Ou quase vídeo. Os dois assinaram, juntos,
a direção do documentário
todos. Alguns, infelizmente, nos deixaram antes da primeira
Primeiro Sinal - A história do
exibição do filme: Haydée Bittencourt, Neuza Rocha, Raul Belém teatro de Belo Horizonte: dos
Machado e Ronaldo Boschi. Imagino que não seja necessário primórdios até 1980.
A R T I S TA S ENT
A L M E I D A , PA U L
FREIRE , RAIM
Belo Horizonte: dos primórdios até 1980.
Primeiro Sinal - A história do teatro de
Exemplares do documentário
ROGÉRIO FALAB
Foto: Flávio Charchar.
WALMIR JOSÉ
249 | O Encargo da História
R E V I S TA D O S PRESENTES NO D O C U M E N TÁ R I O :
E L Í C I O A LV E S , H AY D É E B I T T E N C O U R T , I O N E D E
S É M AY E R , J O TA D A N G E L O , J Ú L I O VA R E L L A ,
O C É S A R B I C A L H O , P E D R O PA U L O C AVA , P R I S C I L A
UM BALANÇO DAS
AÇÕES REALIZADAS
PELO GALPÃO
CINE HORTO EM 2014
Oficinão – 17ª edição: espetáculo “Madame Satã”, com o
Grupo dos Dez. Direção de João das Neves e Rodrigo Jerônimo.
Temporada de estreia com 12 apresentações e público de mais
de 1.800 pessoas.