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RESUMO
O presente artigo faz parte da pesquisa teórica para a escrita da dissertação intitulada “ A renda da
terra urbana na produção do espaço urbano de Vitória da Conquista-BA”. A discussão sobre a terra é
indispensável para compreensão da produção do espaço e a reprodução das desigualdades sociais e
contradições presentes no modo de produção capitalista. No entanto, nem sempre a terra foi vista e
entendida como mercadoria, mas é a partir do momento em que ela passa a ter valor de troca que as
contradições e a luta de classe se apresentam de forma mais evidente. Para entender esse processo foi
utilizado neste artigo o debate sobre a origem da propriedade privada o direito à herança. Autores
como Friedrich Engels (1985), Fustel de Coulanges (2011) e Karl Marx (1869) contribuíram para a
análise da renda da terra e da propriedade privada no espaço urbano e conduzem aos desdobramentos
dos questionamentos sobre a renda da terra urbana que estão em andamento na dissertação.
INTRODUÇÃO
O crescimento acelerado das cidades, nos últimos tempos, principalmente neste
início de século XXI, tem gerado desafios à sociedade e aos pesquisadores. A expansão
espacial das cidades conta com a transformação jurídica da terra rural em terra urbana. O que
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia -UESB-Brasil.Bolsista da Fundação
CAPES. Membro do grupo de pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as políticas de Reordenamentos
Territoriais (GPECT).
2
Docente/Departamento de Geografia – UESB-Brasil. Pesquisadora do Grupo Estado, Capital,
Trabalho e as Políticas de Reordenamentos Territoriais (GPECT)
também, acaba por endossar a discussão sobre a questão „cidade-campo‟3 que deve ser vista
para além das discussões de oposição e diferenciação.
A terra sempre teve um grande significado para as sociedades. Desde a Grécia antiga
a relação entre o solo, a família e a religião se tornava inseparável. Segundo Coulanges (2011)
a cidade grega surgiu com a união de tribos que formavam uma confederação, que respeitava
a consciência religiosa de cada tribo. Religião e sociedade se confundiam no surgimento da
cidade, por isso não se pode dizer que o progresso religioso provocou o progresso social.
Evidencia-se que ambos se desenvolveram ao mesmo tempo e em harmonia. A antiga crença
ordenava que o homem honrasse seus antepassados, daí surge o primeiro dever moral, bem
como a instituição da propriedade, a ordem da sucessão e todo o direito privado.
A importância da terra se modificou ao longo dos anos, no processo de consolidação
e expansão da sociedade capitalista, cuja produção e consumo das mercadorias se estabelece,
sobretudo, nas cidades. O processo de expansão urbana, muitas vezes subjuga espaços rurais e
os incorporam às cidades, intensificando a contradição campo-cidade, submetendo ambos a
produção do valor e a extração da renda da terra. A transformação de terras rurais em urbanas
também desenvolvem as contradições da produção do espaço urbano. As periferias são
ampliadas, o perímetro urbano é expandido, no entanto, por um lado, alguns bairros criados
permanecem com as mesmas características rurais, resistentes, distantes dos centros, o que
não significa que são subjugados. Por outro lado, bairros das chamadas „periferias ricas‟
passam pelo processo de valorização outorgado pelos Planos Diretores Urbanos e que fazem
dessas terras oportunidades de se auferir mais renda.
A propriedade privada garante a circulação do capital através da renda da terra, ainda
que a terra não seja uma mercadoria comum, e a cidade torna-se fundamento de poder, por
isso a revolução social deverá ser, conforme Lefebvre, uma Revolução Urbana.
3
Utiliza-se a expressão cidade/campo baseada no conceito de Sposito, M. (2010) com a intenção de denotar
indefinição dos limites entre o rural e o urbano. No entanto, não se trata do desaparecimento de uma ou outra
morfologia espacial, utiliza-se somente no contexto da expansão espacial urbana.
geradas por ela. O poder monopolista da propriedade privada é, portanto, tanto o ponto de
partida como o ponto de chegada de toda atividade capitalista (HARVEY, 2011, p.225).
O direito à propriedade privada foi fundamentado de forma diferente nas diversas
gerações e povos. Há povos que nunca instituíram o direito à propriedade privada, a exemplo
os antigos germanos, aos quais pertenciam a colheita, mas não a terra. De forma contrária as
populações da Grécia e da Itália desde a mais remota antiguidade, sempre se utilizaram da
propriedade privada. A religião e a propriedade privada estavam intrinsecamente ligadas. Em
princípio, não foram as leis que instituíram e garantiram o direito à propriedade privada, mas
a religião.
Para as sociedades gregas e itálicas cada família tinha o seu fogo sagrado e o deus
deveria ter uma morada fixa que perdurasse para sempre. Dessa forma, a relação entre o solo,
a família e a religião se tornava inseparável, assim o deus se instalava no solo, a família
tomava posse do solo e por dever e religião fixava-se na terra. A propriedade, portanto, era
inalienável.
A propriedade surge de tal modo inerente à religião doméstica que uma família não
podia renunciar nem uma nem a outra. A casa e o campo eram como que vinculados à família,
não podendo esta nem perdê-los nem abandonar-lhe a legítima posse (COULANGES, 2011,
p.89). A terra estava vinculada ao trabalho, a apropriação se dava relacionada à religião, mas
também ao trabalho que a família realizava na terra.
O deus doméstico estabeleceu o direito sobre a terra. Sob o fundamento da religião as
populações da Grécia e da Itália antiga não possuíam consciência para desapossar-se da
propriedade, o vínculo com a terra estava para além da simples vontade humana, e para além
da própria vida, uma vez que após a morte o homem sepultado no solo tornava-se um só com
a terra e a terra era propriedade de toda família formando um só sem dela poder separar-se.
Segundo Engels (1985), a origem da propriedade privada se dá com o surgimento da
organização familiar monogâmica, e esta com a necessidade da acumulação de bens. No
estágio superior à barbárie a acumulação de bens e terra, antes distribuída de forma
comunitária, é corroborada através da sucessão filial legítima, a herança paterna
desenvolve/perpetua a propriedade privada, estabelecendo uma nova forma de sociedade.
A ideia desenvolvida por Engels aponta, de forma clara, que a sociedade e sua
organização se fundamentaram na posse de terras e não nas relações afetuosas entre homem e
mulher. Ao lado da riqueza em mercadorias aparece a riqueza em terras. A terra agora podia
tornar-se mercadoria, podia ser vendida ou penhorada. Propriedade privada e herança estão
totalmente imbricadas e legitimadas pelo Estado burguês a fim de mediar os choques sociais e
perpetuar a organização econômica capitalista,
5
“A filha não se considera apta para dar sequência à religião paterna, pois ela se casa, e casando-se, renuncia ao
culto de seu pai para adotar o do esposo: não tem, pois, nenhum direito à herança. Se por acaso um pai deixasse
seus bens à filha, a propriedade ficaria divorciada do culto, o que não é admissível. ” Coulanges. Fustel. Estudos
sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. In: A cidade antiga. TraduçãoJ.Cretella Jr. e
Agnes Cretella.2ª edição. Revista dos Tribunais: São Paulo,2011.
Assim como apresentado por Engels (op.cit.) a propriedade privada na antiga
organização gentílica se consolida com a decadência do direito à herança como forma
religiosa. O direito paterno de atribuir seus bens aos filhos, facilitando a acumulação de
riquezas na família, torna esta um poder contrário às gens. A valorização da riqueza como um
bem supremo, acima de tudo, corrompe as gens para justificar a escravidão, a nobreza
hereditária, as riquezas individuais contra as tradições comunistas. A acumulação das riquezas
só necessitava de uma instituição que legitimasse e perpetuasse a divisão de uma sociedade de
classes em que há a exploração do homem sobre o homem. E essa instituição se constitui para
regularizar a organização social: O Estado.
Como forma de legitimar a propriedade privada, paulatinamente e incontroversa, a
proteção ao direito foi incorporado no seio das mais diversas legislações do mundo até chegar
à Constituição nas cartas magnas de vários países. Em Roma, por exemplo, a propriedade era
considerada, no ordenamento jurídico, um direito perpétuo e exclusivo de seu titular. No
Estado feudal, o poder concentrava-se na mão do monarca que junto com a Igreja impunham
a separação entre vassalo e suserano, o vassalo se utilizava da terra para moradia e
subsistência, mas subordinava-se ao senhor detentor das terras para cultivá-las, não podendo
vendê-las ou transmiti-las aos descendentes.
No Brasil, o direito à herança é considerado fundamental, sendo garantido por meio
do artigo 5º, inciso XXX, da Constituição Federal. Bem como é assegurado o direito à
propriedade artigo 5º, inciso XXII o que perpetua e corrobora com a acumulação de riquezas
individuais e a monopolização das mesmas.
Incumbe-nos a análise de como o processo de produção do espaço urbano, pautado
na apropriação privada do solo e na monopolização dessas terras, interfere na relação do
sujeito que produz o espaço, mas não se apropria dele, fazendo parte dessa relação conflituosa
e contraditória das forças produtivas com as relações de trabalho. O solo urbano enquanto
mercadoria torna-se restrito àqueles que têm o poder aquisitivo para se apropriar dele e o
Estado capitalista, enquanto agente do processo de construção e „ordenamento‟ da cidade atua
como mediador dos conflitos cabe-nos, portanto analisar esse papel do Estado, como ele cria
as possibilidades de regulamentação para monopolização das terras urbanas, e suas formas de
controle e opressão que intensifica as desigualdades na cidade.
A manutenção das contradições no sistema capitalista se desenvolve a partir da
ideologia administrativa do Estado e de sua legislação. A apropriação do espaço e a
transformação da terra em mercadoria possibilita a acumulação capitalista através da renda.
3.CONCLUSÃO
As primeiras considerações a serem feitas sobre a temática abordada é a
presença das atividades especulativas sobre a terra nas cidades e como o chamado „mercado
de terras‟ que surge com a propriedade privada e se instala com a legitimação do direito à
herança da terra, corrobora com a acentuação das contradições sociais. O Estado legitima a
propriedade privada e não a discute, cria conjeturas de perpetuação da propriedade privada
através da legislação e também através dela se cria as possibilidades de se auferir renda da
terra.
Uma espécie de „acordo‟ entre o Estado e os sujeitos que constroem a cidade, os
proprietários fundiários, os especuladores, a indústria civil, as construtoras fazem da cidade,
através da terra um „grande negócio‟ em detrimento da população trabalhadora que pagam a
acumulação de riqueza que é feito a partir do controle da terra. A ideologia administrativa do
Estado de conter o antagonismo de classes se reafirma com a legitimidade da propriedade
privada, a legislação como ideologia da administração do Estado promove, como aponta
Mészaros (2007) o consenso de uma sociedade que não pode ser superada com a divisão de
classes.
O domínio do capital subjuga a cidade ao seu poder. Mais do que a apropriação da
terra, a legitimação da propriedade privada também priva a humanidade de usufruir,
apropriar-se das riquezas socialmente produzidas, a apropriação do trabalho alheio, a mais-
valia (MARX, 2006), como discutido anteriormente.
REFERÊNCIAS
BRASIL.Constituição1988.http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.h
tm acesso em 08/12.
COULANGES.Fustel. A cidade antiga, Estudos sobre o culto, o direito e as instituições da
Grécia e de Roma.TraduçãoJ. Cretella Jr. e Agnes Cretella.2ª edição. Revista dos Tribunais:
São Paulo,2011.
ENGELS, Frederich.A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
Civilização Brasileira:Rio de Janeiro, 1985
HARVEY,David. A produção Capitalista do Espaço. Annablume: São Paulo,2001.
HENRIQUE, Wendel. O Direito à natureza na cidade. Edições UFBA: Salvador,2009.
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira; Sérgio Martins.
(do original La production de l´espace. 4ª Ed. Paris ÉditionsAnthropos, 2000). Primeira
versão – fevereiro de 2006.
MARX, Karl. Sobre o Direito de Herança, em Face dos Contratos e da Propriedade
Privada. In: Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim: Dietz, 1961, Vol.
16, pp. 367 e s. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1869/08/03.htm
__________. O Capital, Crítica da economia política. livro I, tomo I. Nova Cultural, São
Paulo,1996. p.104.
____________. Renda da Terra. In: Manuscritos Econômicos Filosóficos. Martin Claret:
São Paulo, 2006.
MÉSZÁROS, Istvan. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2007.
SPOSITO, M. E.B. A questão cidade-campo: perspectivas a partir da cidade. In: Cidade e
Campo relações e contradições entre o rural e o urbano.2 ed. Expressão Popular: São
Paulo, 2010.