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HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
Introdução
A história é muito antiga e muito bem conhecida para não ser tomada
seriamente. Embora isto seja dito auto-depreciativamente, seu sentido é perfeitamente
claro. Como as últimas palavras de Sócrates, “Nós devemos um galo a Esculápio”,
refere-se ao pagamento de uma dívida. O filósofo está sendo escrupuloso ao final.
Sua vida inteira foi devotada ao serviço de uma única força, aquela da palavra falada.
Agora, antes de ser tarde demais, ele deve fazer uma reparação por não ter servido à
única força que modela a essência espiritual humana. Ele fará um último gesto de
reverência e gratidão ao poder da música: ele elevará sua voz numa canção ao menos
uma vez antes de morrer.
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HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
Os dois conceitos não são mutuamente exclusivos; não se pode dizer que um é
verdadeiro e o outro falso. Mas um deles é original e irrestritamente válido, enquanto
o outro é derivado e relativo. O conceito com o qual estamos familiarizados é o
derivado e relativo, e ao considerá-lo como universalmente válido desviamos nosso
pensamento do caminho e distorcemos nossa visão.
Para começar, é importante perceber por que o conceito que nos é familiar
pode ser chamado de relativo e derivado.
deve atingir sua obra por escutá-la com sua audição interna, e neste sentido ele
também se confronta com ela. Onde há uma obra, deve haver uma confrontação.
o exterior. O dom divino veio do lado interno; ele abriu o coração do homem e
desselou seus lábios. Outra lenda é igualmente clara sobre este ponto: os homens
primeiro levantaram suas vozes numa canção, quando testemunharam a morte do
herói jovem divinamente belo. No começo, a música veio do homem, não para ele –
ou, melhor, também para ele mas como repercussão. O cantor ou executante não pode
ajudar a audiência para a qual ele canta ou executa: o círculo precisa ser fechado.
Aqui a noção de confrontação entre ouvinte e obra não faz sentido. Música é tanto a
doação quanto o doador, o músico é tanto o doador quanto o recebedor.
para elas mesmas, e se alguma delas está ouvindo, é para aprender a melodia para
então cantá-la. (A balada na qual uma história é colocada em forma poética musical
marca a transição para o estágio de culminância). Novas melodias podem bem
ocorrer a alguns indivíduos, mas isto não faz deles compositores, uma pessoa
escolhida de modo permanente pelo grupo e encarregada de uma função especial. Ele
se distingue do grupo somente enquanto lança a nova melodia; depois que ele o faz,
funde-se outra vez com seus colegas cantores, os quais podem adotar sua
contribuição ou rejeitá-la. Quando certas linhas são pretendidas para uma voz solo, o
cantor solo não é um executante [performer] diante de uma audiência; sua voz
permanece como a voz do grupo, a qual pode unir-se de volta a qualquer momento,
como realmente acontece no refrão. A situação é de todos juntos, não de uma
confrontação. As três funções – compor, executar, ouvir – tão formalmente
diferenciadas na fase culminante são ainda facetas intercambiáveis de uma função
global residente no grupo. Isto é igual verdade quando a música aparentemente está
sendo feita de uns para os outros, como acontece com a música para dançar. Aqui
novamente, os outros não são ouvintes, eles são participantes, e a música e a
produção da música são parte de sua própria atividade. A música, como tal, está por
detrás deles mais do que propriamente diante deles. Igualmente no caso extremo do
rito mágico onde o mago usa certas fórmulas musicais as quais de fato são seu
próprio poder cuidadosamente guardado, as formulas não são endereçadas àqueles
presentes como se eles fossem uma audiência, mas juntamente com eles para o deus
ou o demônio então invocado. Outra vez, a música vem dos seres humanos, não para
eles.
natureza da música. O ato decisivo que traz a música à existência a precede, ou ainda
melhor, é uno com ela: a descoberta das notas musicais e do sistema de notas.
Aqueles que fazem a assim chamada música folclórica não são “povo” ou
“gentes”, mas “homens”. Não para algumas pessoas nem todas e certamente não
indivíduos específicos, mas para o homem enquanto tal, um daqueles atributos
inigualavelmente humanos é ser musical. Agora, faz sentido falar de “musicalidade”
não como a característica distinta deste ou daquele indivíduo mas como um atributo
humano por excelência: o homem como homem é musical. Não que primeiro ele era
um homem, o qual no curso do tempo adquiriu a música para tornar sua vida mais
atraente por aliviar a tensão do trabalho ou preencher seu tempo de lazer; mais
precisamente, homem e música estão tão fundamentalmente entrelaçados desde os
primórdios que um não existe sem o outro.
Estas afirmações são suficientes para indicar como o estilo deste pensamento
sobre música e a atitude que ela reflete diferem da nossa. As palavras associadas com
música não são “arte”, “artista” ou “obra de arte”, mas verão e inverno, separação e
união, amor e justiça, dissolução e estagnação. Onde nosso pensamento tende a
analisar e isolar, o sábio chinês contempla um todo ordenando. Ele não compara uma
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coisa com outra ou procura por traços que possam ter em comum ou progredir do
particular para o geral. Antes, ele se esforça por entender como a música, tal como
ela é, pode necessariamente encaixar-se no todo. (O todo não é o mesmo que o geral:
criações particulares separadas do geral são acidentais, enquanto a parte de um todo é
necessária. O geral permanece o mesmo quando um particular é removido, mas
quando uma parte é suprimida o todo não é mais o todo.) Aqui música é algo em si
mesma mas não para si mesma. Ela é uma metade de um par, um de dois pólos, o
outro pólo sendo os ritos. Outra vez, música e ritos não são tidos como existindo por
si mesmos, mas como mediadores, como mediadores terrestres entre dois poderes
supraterrestres cuja tensão polar mantém o universo em permanente equilíbrio.
Somente se os mediadores estão em equilíbrio e em um estado sadio está a sanidade
do todo garantida. A oposição entre os pólos é em realidade uma dependência mútua.
O perigo não está na ameaça da existência ou na força do outro pólo mas na sua não
existência e debilidade. Cada pólo deve querer a existência e a força do outro, e teme
sua não existência e debilidade. Se um pólo estava desaparecendo, a dissolução ou
estagnação do todo começava imediatamente a se manifestar. É óbvio que na
estrutura de tal pensamento, a idéia de um mundo sem música não encontra lugar.
O que está errado com este argumento é que ele usa o termo “experiência” em
um sentido muito grosseiro e estreito. Para ser claro, a confrontação com uma obra-
prima musical aparentemente divide as pessoas mais do que as une: somente uma
pequena faixa está sendo unida, agrupando-se em torno da obra, separados daqueles
que podem ter uma atenção ocasional e partir insensíveis e de todo o resto que está
muito distante para estar realmente ciente da música. Mas somente uma visão muito
superficial poderia concluir que a música não interessa a todos aqueles outros
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também, que ela não existe para eles de qualquer modo. Beethoven escreveu as
seguintes palavras “Do meu coração – possa ela atingir outros corações” antes dos
acordes de abertura de sua Missa Solemnis. Estava ele pensando somente nos
musicalmente dotados? Ele dentre todas as pessoas não teria sido consciente que
somente muitos poucos seriam capazes de seguir a alta complexidade e o pensamento
musical completamente abstrato desta Missa? E contudo o trabalho não é endereçado
a estes poucos ou a outros grupos maiores; ele é endereçado a todos, à totalidade da
humanidade, ao coração humano. Se houve alguma vez um só indivíduo capaz de
entender esta obra, ele seria o representante de toda a humanidade; em seu proveito
ele quereria alargar a compreensão do coração humano; em sua consciência quereria
estender seu alcance e através dele uma nova realidade poderia ter ingressado em seu
conhecimento. Pois o que tenha ocorrido é compartilhado por todos os homens,
realmente como muitos podem compartilhar uma nova iluminação sem verem a fonte
da luz. Neste sentido a grande obra de arte – e na verdade particularmente as grandes
– são, se não endereçadas para todos, criadas por todos. A evidência oferecida pela
confrontação na sala de concerto é superficial. Por detrás da superfície evidente nós
sentimos, embora não possamos obrigá-la a confessar, a realidade de um todo-
conjunto no qual todos – compositor, executante e ouvinte – permanecem juntos e
olham fixamente, por assim dizer, com os olhos da obra na mesma direção, a grande
situação que encontramos na fase dos primórdios. Nem são as paredes da sala de
concerto um limite cerceador: o todo-conjunto se estende além delas. O fato da obra
existir e ser entendida por uns poucos significa simplesmente que daí em diante
muitos outros quererão ser diferentes em sua poesia, em suas emoções, seu
pensamento, talvez equilibrando seus movimentos e sua respiração.
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Som e Símbolo: Segundo Volume
exatamente aqui? Claramente, eu não espero que seja dito que é porque certos
instrumentos produzem ondas sonoras particulares, portanto sendo responsáveis por
aquele acorde exatamente aqui. Pelo contrário, o que realmente me interessa é
compreender o significado deste acorde com referência à obra como um todo. Em
outros contextos, contudo – tais como “por que a lua é muito maior e avermelhada
quando ela está surgindo no horizonte do que quando está alta no céu?” – obviamente
eu quero uma consideração científica para o fenômeno, uma resposta nos termos de
sua causa. Na verdade, perguntar o que a ascensão da lua realmente significa parece
sem sentido em primeiro lugar. Isto não quer dizer, claro, que todas as questões
exigem respostas que caem nitidamente dentro de uma das duas classes mutuamente
exclusivas: causas e significados. Igualmente quando lidamos com fenômenos da
natureza é possível buscar e encontrar significados acima e além de qualquer mera
contabilização deles. Então, acredita-se geralmente que a única questão sobre as cores
do arco-íris é “Como elas são produzidas?” Mas Goethe pensou ser possível inquirir
sobre seu significado e encontrou uma resposta na concepção do Urphänomen, o
“fenômeno primordial”. Goethe também escreveu que as coisas efêmeras são como
uma reflexão – em outras palavras, que a suprema sabedoria consiste na busca do
significado, não das causas. Esta é uma atitude diretamente oposta àquela da ciência
destes últimos tempos, a qual elimina qualquer busca por significado e olha somente
para as causas – mais precisamente, para as leis específicas governadoras da
ocorrência sucessiva dos fatos observáveis. Nesta última perspectiva, a questão “Por
que as pessoas cantam?” seria automaticamente interpretada como uma questão a
respeito das causas, e seria conseqüentemente respondida no sentido da psico-
fisiologia. Nós nos referiremos a esta interpretação de nossa questão num ponto
posterior; estamos aqui interessados não nas causas mas no significado.
A primeira questão com a qual temos que lidar, então, concerne nem às causas
nem ao significado, mas ao objetivo imediato da música, especialmente da música
mais primordial avaliável por nós em alguma medida – a música folclórica. Quanto
mais para trás nós vamos, mais parece como se a música, longe de ser um fim em si
mesma (como ela tem eventualmente se tornando na “música artística” do Ocidente),
estivesse sempre subordinada a finalidades fora dela mesma – religiosa, social,
prática. Nem teria a música de hoje cessado de emprestar seu auxílio a tais esforços
extramusicais. Crianças até agora estão cantando para dormir, soldados ainda cantam
para dar coragem a si mesmos, e trabalhadores tornam mais leve seu trabalho com
canções. Os ritos religiosos do Ocidente não dispensam sua música, e ritos civis
parecem monótonos sem ela. E embora possa-se não prestar muita atenção a ela, uma
certa quantidade de música é ingrediente indispensável para muitos filmes.
Aí existe um tipo de música elaborada para este nível a qual não serve – ou, em
todo caso, não tão obviamente como outros tipos – como um meio para um fim. Onde
quer que a música folclórica ainda esteja viva, as pessoas se juntarão para cantar.
Para ser claro, muitas canções, como as melodias de dança, cantigas de ninar, árias
marciais, cantos religiosos e hinos têm um propósito específico e imediato; mas há
também outras que são cantadas por si mesmas, realmente pelo amor de cantar. O que
é o significado destas prática?
Pareceria, então, que igualmente nestas canções folclóricas onde a melodia não
é realmente o sentido de sua finalidade, sua função é claramente secundária. Poderia
mesmo ser sustentado que nas canções folclóricas a contribuição da melodia é menos
essencial do que em outras formas do fazer musical antigo. Nas danças e celebrações
sem acompanhamento musical falta algo essencial, ao passo que em um poema há um
todo independente, nada faltando.
Isto é sem dúvida verdade para o poema não vocalizado, o poema que eu penso
a respeito ou leio silenciosamente, talvez recitado para mim mesmo ou para alguém
para quem ele não é familiar; isto não é verdade para o poema que é na realidade
intencionado para ser vocalizado, para representar a voz de uma comunidade. Pode
alguém imaginar que pessoas se juntem para falar canções? Alguém pode, mas
somente como uma possibilidade lógica; na vida real isto seria absurdo. Isto tornaria
algo natural em algo expressamente artificial. Visto por este lado, o que as notas
musicais contribuem para a canção folclórica é essencial: somente quando ela é
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cantada a canção folclórica realmente existe. Jogue a melodia fora, e o que resta é
algo inteiramente diferente.
onde uma parte encara a outra é transmutada em uma situação de união, os muitos
diferentes indivíduos dentro de um grupo.
Se é este o caso, por que as pessoas não cantam simplesmente canções sem
palavras? Por que as palavras nas canções cedem lugar às notas somente em curtos
momentos, na maioria das vezes? Por que não há canções folclóricas que não sejam
poemas cantados?
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Pode o canto desta canção ser interpretado como a expressão dos sentimentos
que suas palavras permitem ao cantor?
Primeiro de tudo, o sentido como o qual o termo “expressão” é usado aqui deve
ser definido claramente. Palavras são ditas para “expressar” o que elas denotam;
gestos e gritos, para “expressar” a emoção que dá nascimento a eles; escritos, para
“expressar” a personalidade do escritor. Notas são ditas para “expressar” emoções
num sentido intermediário entre o primeiro e o segundo destes três sentidos, um tanto
mais próximo ao segundo. Aqueles que vêem a música como uma linguagem dos
sentimentos dizer que as notas expressam emoções de um modo similar (mas não
mais que similar) àquele no qual as palavras expressam as coisas que elas denotam,
isto é, que as notas servem como um meio de comunicar emoções. Pode ser mantido
pela mente, contudo, que a correlação de palavras e coisas é superficial e acidental.
Não há necessidade intrínseca de que um dado vocábulo denote qualquer uma coisa
mais que outra; vocábulos idênticos podem denotar coisas diferentes, e diferentes
vocábulos uma e a mesma coisa. Por contraste, toda emoção exterioriza sua própria
expressão característica, como uma flor o seu aroma; a correlação entre os dois é
direta, inerente, não deixa lugar para ambigüidade. Toda expressão emocional ela
própria – sob qualquer condição – desce a nuanças sutis em sua própria maneira
característica. Deste modo, ao passo que deve ser dito que as palavras da linguagem
significam a fim de entendê-las, não somente as pessoas mas ainda os animais
diretamente compreendem o significado de uma fúria ou de um gesto conciliatório,
nunca confundindo o choro de temor com o choro de alegria.
agita mas um certo estado receptivo no qual acontece estarmos. Diríamos, então, que
a melodia expressa as emoções que são permitidas em mim pelo meu humor sério.
Claramente, esta afirmação não nos leva muito longe, não contribui
significativamente para nosso entendimento da canção e o meio particular pelo qual
ela nos afeta. Há incontáveis humores sérios, incontáveis melodias sérias. A resposta
à nossa pergunta deve ser mais específica. Podemos dizer, por exemplo, que a
melodia expressa as emoções do cantor quando a transição – não realmente as coisas
sem valor, mas precisamente as coisas naturais e inocentes do mundo – nos é
colocada a par tão vigorosamente quanto ele é pelas palavras de nosso poeta.
Igualmente esta formulação é ainda muito vaga, muito geral: ela ainda não
abarca o conteúdo desta canção em particular. Claro, ninguém estará isento de ser
afetado por sua vigorosa evocação da transitoriedade de todas as coisas mundanas,
claro, a cor da emoção que ela desperta é consoante com o tenor de nossa melodia.
Mas esta emoção, tomada em seu sentido geral, não é mais que um fundo
monocromático para as diversas imagens sugeridas pelas palavras, visto que a
melodia é muito mais que um mero fundo musical para as palavras. O que ouvimos
não é meramente alguma música suave acompanhando o recital do poema, mas mais
propriamente uma íntima e indissolúvel união de notas e palavras; a melodia, por
assim dizer, funde-se com as palavras, move-se em completo acordo com elas, sílaba
por sílaba, nuança a nuança. É esta concordância que determina a alta qualidade da
canção, e é esta concordância que está em questão aqui e que nós estamos tentando
entender. Aqui a teoria da música como uma linguagem das emoções falha em passar
no teste da experiência. Ao invés de clarear a experiência, esta teoria a torna
ininteligível.
A segunda estrofe mostra que o problema pode ser estabelecido sem ir adentro
daquelas sutilezas.
– para realizar pela primeira vez que o efeito do final permanece precisamente
sobre a repetição da frase, precisamente no fato de que a melodia de “Acautele-se”
inesperadamente manifesta o aspecto de “Regozije-se”1. Falar de um milagre, por
outro lado, seriam só e obviamente sugerir uma tentativa de cobrir a falha da teoria. O
milagre não é o incompreensível. A verdadeira teoria prova seu valor não ignorar o
miraculoso mas por torná-lo compreensível. Uma teoria que rejeita fatos observáveis
como incompreensíveis prova somente sua própria inadequação.
Reduzidos à fórmula mais curta, os fatos com os quais esta canção nos
confronta, e os quais nos concernem aqui, podem ser colocados como segue: (1) as
1
Mudar as notas para adaptá-las ao valor emocional das palavras individuais é (como um fator secundário)
característico da arte da canção. Quando Hugo Wolf, na canção “In der Frühe” eleva as notas Mi – Si, Mi – Si, “Fear no
longer, torment thyself no more, my soul”, para as notas Sol – Ré, Rejoice”, da linha seguinte, a mudança é
precisamente correta.
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notas se ajustam às palavras, e (2) uma e mesma nota pode se adequar igualmente
bem a palavras que dizem coisas diferentes e ainda diametralmente opostas. Segue
que seu “ajustamento” não pode apoiar-se sobre um acordo tal como entre emoção e
expressão. Tornamo-nos íntimos dos fatos, entendendo-os melhor, se assumimos não
que as notas são mensagens enviadas para dentre de nós desde o mundo exterior (o
que elas seriam se elas fossem a expressão de emoções), mas que nas notas nossa
própria interioridade vai para fora e encontra a si mesma do lado de fora – que as
notas servem não para comunicar nossas emoções mas para ajudar-nos a compartilhar
ativamente no que elas dizem.
“Há um Ceifador, homens, chamado Morte... O qual está ainda verde e fresco
hoje... O colorido-azul-celeste não-me-esqueço... atreva-se, Morte, venhá cá” – o que
a “partilha ativa” se refere neste contexto? O que ela não se refere é claro. As
palavras não evocam algo fora do cantor, digo, imagens mentais do Ceifador afiando
sua ferramenta, uma campina verde, uma flor azul, e uma Morte cavaleira combatente
e o Demônio. Aqui não pode haver dúvida de qualquer coisa como esta, nenhuma
dúvida da identificação do cantor em total empatia com o que tais imagens evocam,
com a Morte e seus feitos, com as flores e seu sofrimento, com o desafio e seu
triunfo. A imaginação enquanto a faculdade de conjurar imagens mentais não está por
conseguinte envolvida; nem é ilusão, o colocar a si mesmo no lugar do imaginado, a
substituição de outro ser pelo próprio ser. Mas é igualmente claro que o cantor não
leva realmente as palavras e notas para fora de si mesmo, permanecendo atrás como
mero observador. Ele partilha ativamente com aquilo que ele diz, ele o “vive”.
Como? Em que sentido?
Palavras que não servem para evocar vívidas representações de coisas, eventos
e sentimentos não são nada que não signos vazios – signos eu entendo sem
completamente explorar seus sentidos. “Morte”, “flor”, “desafio” – eu posso entender
estas palavras sem visualizar as coisas que elas denotam. Posso entendê-las como
“meras palavras”, “palavras vazias”, as quais provêm comunicação superficial, nada
mais. As palavras que são cantadas, no entanto, não são vazias, ainda se elas não
apontam a uma visualização concreta. Para o cantor, as palavras adquirem uma
plenitude muito especial e uma profundidade de significado. Algo que permanece
silente nas palavras meramente faladas começa a fluir, a vibrar; as palavras abrem e o
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cantor abre-se a elas. É como se as notas infundissem nas palavras a força que revela
um novo estrato de significado nelas, que soprasse vida dentro delas de uma maneira
especial: não por fazer da palavra uma coisa tangível, como aparece quando vista do
lado de fora, e certamente não no sentido de submergi-las em uma vida universal na
qual toda particularidade, todas as distinções são abolidas, mas exatamente em seu
conteúdo determinado quando visto de dentro, desde um ponto onde o mundo é, por
assim dizer, um “Eu”.
Para o cantor, estas palavras não sugerem algo como uma infinita queda de
formas esplendorosas e frágeis. De fato, ele não vê nada de todo, não imagina nada;
nem ele “empatiza” com todas aquelas coisas, incluindo a si mesmo, que deverá cair
ao chão. Ele simplesmente é esta queda e a queda é ele. Ele não observa a queda; ele
a “vive” e a queda “vive” nele. No estrato de significado tornado acessível pelas
notas, coisas que estão separadas se unem; aquele que fala e a palavra falada,
“pessoa” e “coisa” entram em contato direto. É como se uma porta tivesse aberta
através da qual o ser vivo daquele que fala vai para aquilo que ele está dizendo, e
aquilo que ele está dizendo entre dentro dele como algo que tem uma vida em si
própria, como um “Eu”. Embora nenhum dos dois absorva o outro, a antítese “eu” e
“ele” é transcendida: o cantor pode dizer “Eu” para aquilo que ele canta, e dizer “ele”
para si mesmo. A integral realidade da pessoa e a integral realidade das coisas são
agora fundidas em uma realidade assentada.
Expressar tudo isto em palavras pode ser algo complicado, mas o que
realmente acontece é simples. O processo é quase automático, comparável ao acender
de uma luz. O que temos aqui não é – longe disso – o resultado de um esforço
emocional: toma lugar abaixo da camada da afetividade (é por isso que o cantar “com
sentimento” inibe mais propriamente do que promove o processo). Mas se
exatamente as mesmas notas que se ajustam então singularmente a palavras
específicas de modo a levar à luz seus significados mais íntimos pode realmente se
ajustar singularmente a diferentes palavras, produzir o mesmo efeito – se a mesma
frase musical pode atingir diferentes escopos com a mesma acuidade – é claro que as
palavras, as quais enfatizam o que distingue uma coisa da outra, não pode tomar parte
decisiva neste processo. (“Coisa” localiza aqui tudo o que não é um “Eu”, quer seja
material ou espiritual, um objeto ou estado de mente, um sentimento ou evento.) O
afiar a lâmina, a queda das flores, a transitoriedade de todas as coisas mundanas, o
êxtase ascencional ao jardim celestial – cada um desses é cantado nas mesmas notas,
cada um é tornado igualmente vivo pela mesma melodia. Podemos concluir que no
estrato e realidade de onde vêm as notas e para a qual elas levam, não somente a
antítese do “Eu” e “ele” mas também as distinções entre as coisas são transcendidas.
Lá pode ser um estrato no qual todas as coisas têm suas raízes; então as notas podem,
por assim dizer, ativar esta camada e desse modo levar-nos próximos às raízes das
coisas. Místicos falam de um lugar “onde todas as coisas são unas”, implicando não
em uma mistura indiferenciada de todas as coisas, mas a fonte comum que nutre cada
coisa particular. Esta fonte é também o domínio das notas. A experiência
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Som e Símbolo: Segundo Volume
O que tem sido dito sobre “o outro nível da existência”, “o outro nível da
realidade”, deve agora ser trazido a um foco aguçado.
O termo “nível” não é preciso o suficiente. “Outro nível” pode ser entendido:
1) Como “plano de fundo” para as notas, em um sentido de perspectiva – pois as
notas nos trazem para trás das palavras e do que as palavras dizem; 2) Como o
complemento “polar” das palavras – pois a realidade expressa na canção está
completa somente na união das palavras e das notas; e 3) Como uma síntese dialética
– pois as notas resolvem as antinomias presentes nos primeiros níveis. Estritamente
falando, nenhuma destas interpretações atinge o alvo. 1) Um “plano de fundo”
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“Outro nível” não denota nem plano de fundo nem contrapólo nem síntese:
denota uma nova dimensão, no sentido geométrico do termo. O que é distinto, o que é
múltiplo no primeiro nível dimensional se torne uno passando para o segundo. Dois
pontos tornam-se uma linha, três linhas tornam-se a unidade triângulo, quatro
triângulos a unidade pirâmide. Em cada caso, um novo significado é revelado pela
passagem para a dimensão mais alta, onde elementos antes distintos e separados
formam um todo unificado sem perder suas identidades como elementos da ordem
inferior. Na verdade, sua clareza é reafirmada. Uma linha reta não faz somente juntar
dois pontos; ela também os mantém separados para sempre. A unidade triângulo não
pode existir a menos que o número de linhas retas seja três. Somente em uma
dimensão entendida como mais elevada podem elementos de uma dimensão inferior
ser unificados; sua unificação pressupõe a realidade ou possibilidade da dimensão
mais elevada. Outra vez a unificação tendo sido efetuada, a dimensão mais elevada é
criada, o potencial tornou-se atualizado.
ser que não tenha sensações auditivas (muitos animais não têm órgãos auditivos;
somente os vertebrados e alguns crustáceos e insetos estão equipados com ouvidos),
um ser que pode somente ver e tocar, o que tem consciência do mundo somente como
a soma das coisas visíveis e tangíveis no espaço, e repentinamente este ser pode
ouvir, pode perceber sons, uma profundidade atrás da profundidade espacial, uma
profundidade existencial.
(Para evitar possíveis mal entendidos, convém notar que aqui e em todo lugar
neste livro, “palavra falada” denota palavra como elemento da fala usada em sua
função social mais importante, isto é, para comunicar fatos, idéias, emoções, ordens.
Estas incluem a palavra escrita mas não a poesia, não palavras usadas com
proposição mágica ou ritual. As últimas são provavelmente sempre canções, e como
tais abrem para dimensões profundas. Após a poesia separar-se da música e tornar-se
uma arte puramente verbal, ela conservou a dimensão adicional; mais precisamente,
em sua arte as palavras faladas perfazem a função de notas. Poetas têm aprendido a
usar as palavras de tal modo que suas formas “planas” evoquem profundidade,
exatamente como pinturas estudadas para sugerir profundidade espacial pelo uso
apropriado de formas bidimensionais. Por conseguinte, os poetas se colocam na
mesma relação para a canção como, por assim dizer, a pintura em perspectiva para a
arquitetura.)
2
Rilke, Briefe, p. 871 (itálicos de Rilke).
31
Uma imagem que talvez mais vividamente que qualquer outra transmite a
unidade apropriadamente, entre tantas muitas, é aquela da esfera, em particular se ela
é tomada em ambos os sentidos, o dinâmico e o geométrico. O centro da esfera é a
fonte de energia: do centro, linhas de força irradiam-se para fora em todas as
direções, preenchendo o espaço sem deixar nenhuma fresta. Na superfície da esfera
figuras são visíveis em qualquer forma ou número desejado. De todos os pontos de
todas as figuras, uma circunferência, um raio de energia, corre para dentro da esfera,
para o seu centro. As figuras permanecem como sendo muitas: como formas
bidimensionais elas são uma mera pluralidade, nada mais que muitas. Mas como elas
saem por um momento da superfície – carregadas por seus raios, por assim dizer –
elas convergem em direção ao centro, onde todas elas se tornam uma. Lá todas estão
perfeita e puramente juntas; elas são uma, embora não tenham sido absorvidas, não
tenham se tornado indistinguíveis uma da outra, pois em um ponto central cada figura
está presente tal o que ela é, cada uma definida por um feixe particular de raios. Cada
figura individual sobre a superfície encontra um padrão interno guiando para as
outras figuras através do centro comum a todas. A esfera de energia difundida torna
isto possível (Num trabalho de muito tempo atrás, Kepler disse que a esfera simboliza
a divina trindade Cristã: “A imagem do Deus trino e uno está na superfície esférica, o
que vale dizer, o Pai no centro, o Filho na superfície externa e o Espírito Santo na
igualdade da relação entre o ponto e a circunferência’. O movimento ou emanação
passando do centro para a superfície externa é para ele o símbolo da criação.”)3
Tais imagens, é desnecessário dizer, parafraseiam mais do que definem a
natureza específica das relações do mundo das notas musicais. Contudo, elas nos
fazem ver mais claramente como este relacionamento não deve ser interpretado. A
unidade expressa pela palavra cantada enquanto oposição à pluralidade expressa pela
palavra falada não é aquela da Gestalt; nem é ela algo transcendente.
são as mesmas e todavia não são as mesmas, como quando eu às cegas as toco com
minhas mãos: eu as vejo sob uma nova luz, minha relação com elas é diferente, e as
coisas iluminadas pelas notas estão em uma nova em relação a mim. A nota que o
cantor acrescenta à palavra não cancela reciprocamente o mundo, mas antes dá a ele
uma margem delineada, faz ele vibrar com a mais alta freqüência, tanto que ele
penetra coisas a uma grande profundidade, desce a níveis onde sua separatividade
mergulha dentro da unicidade. O homem cantando alcança uma nova profundidade
do mundo, e pelo mesmo motivo alcança um nível profundo de si mesmo.
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V. Música e Interioridade
forma exterior. Pois a expressão musical... somente à vida interior da alma que é
totalmente desprovida de um objeto... é apropriada. Este é nosso ego inteiramente
vazio, o ser sem nenhum conteúdo.... A principal tarefa da música deve consistir
portanto em dar um reflexo ressonante, não para a objetividade em seu sentido
ordinário material, mas para as modificações e os modos sob os quais o mais íntimo
ser dar alma, do ponto de vista de sua vida subjetiva e idealidade, é movimentado
essencialmente.... As notas meramente ressoam nas profundezas da alma, as quais são
por meio disto apoderadas em sua substância ideal, e banhadas com emoção... Esta é
precisamente esta esfera, a intimidade da vida–alma, a apropriação abstrata de sua
própria realidade, a qual é capturada pela música.”4 Seria impossível encontrar uma
afirmação mais lúcida e vigorosa deste ponto de vista do que nestas palavras de
Hegel.
a dizer de emoções e humores quanto qualquer coisa mais. Contudo, se elas não têm
qualquer coisa a dizer sobre emoções e humores, elas também não são inteiramente
outra coisa, ou elas são, falando estritamente, sem significado. Então as duas teorias
opostas sobre a música, enquanto linguagem das emoções e dos humores por um lado
e enquanto um mero jogo de formas por outro, são complementares pois que ambas
estão baseados na mesma premissa defeituosa.)
E ainda Beethoven escreveu estas palavras como um lema para sua Missa
Solene, não uma sinfonia ou uma sonata. Além disso, a interpretação do
relacionamento palavra-nota necessariamente implicado ou pressuposto por Hegel
não é muito consistente com relação ao fenômeno da música da fase culminante; em
vista do que sabemos sobre as primeiras fases da música, esta interpretação é
extremamente absurda. Enquanto evidência musical, que do começo é não menos
importante do que da culminação, e é absurdo supor que a música tenha de qualquer
modo sido envolta em auto-contradição no curso de sua história. As palavras
nomeiam as coisas, referem-se a objetos, tornando-os exteriores; as notas expressam
a vida da alma integralmente destituída de objetos, referindo-se ao puramente
37
subjetivo, tornada interior: temos que concluir que as palavras e as notas puxam em
direções opostas. Se é este o caso, os significados das notas seriam estranhos aos
significados das palavras; cada um entraria em conflito com o outro e o
enfraqueceria. Que este não é o caso é atestado por todas as canções folclóricas. A
nota que o cantor adiciona à palavra não é estranha à palavra, não puxa na direção
oposta, para longe do que as palavras dizem; antes, as notas acompanham as palavras
em seu caminho para as coisas, para o objeto. Somente, ao contrário da mera palavra,
que ela não pára no objeto: ela transpõe a dimensão da existência objetiva, deste
modo tornando impossível que as palavras denotem ser nada senão objeto,
permanecendo congelada em sua existência como objeto. As notas não ofuscam o
significado das palavras mas antes o aprofundam. Incontestavelmente, a canção
“Cuidado” carrega mais advertência, e a canção “Alegre-se” mais alegria, do que o
que as mesmas palavras meramente dizem. Seria totalmente enganoso imaginar que
as notas levam o cantor longe das palavras; ao contrário, graças às notas, as palavras
não estão mais confinadas a meramente denotar objetos. Algumas vezes,
normalmente ao final de uma linha ou uma estrofe, as notas destacam-se das palavras
e o movimento melódico continua livremente por si próprio, mas as notas sem
palavras nunca voltam suas costas para as palavras que as precederam; ao contrário,
elas servem para explorar e saborear mais profundamente seus significados. A última
palavra da estrofe adere à melodia, a qual, por assim dizer, retém seu colorido. Para
ser claro, as notas são “não-objetivas”: em si mesmas não dizem nem “Cuidado” nem
“Alegre-se”, não dizem nada deste tipo; se o fizessem, não o diriam tão bem quanto
quando combinadas com as palavras. Mas a não-objetividade das notas não é aquela
do “outro lado”, da interioridade destituída de um objeto, de pura subjetividade; é
uma não-objetividade atrás dos objetos. “A intimidade da alma da vida é
compreendida pela música”: quando a canção ressoa, quando nós ouvimos as
palavras “Cuidado” e “Alegre-se”, e as palavras falando de resignação e desafio, de
colheita e decadência, qual vida interior é compreendida aqui? É o cantor ou o
compositor quem está advertindo, alegrando-se, resignando-se ao seu destino,
rebelando-se, colhendo, decaindo? Não, é a vida interior da advertência ou regozijo,
de resignação e desafio, a vida interior das flores e da lâmina. A dimensão revelada
pelas notas pode certamente ser chamada de “vida interior”, mas não é a vida interior
do sujeito como oposição à do objeto, a algo externo; não é a vida interior do ser mas
do mundo, a vida interior das coisas. Isto é precisamente por que o cantor
experimenta a vida interior como algo que ele partilha com o mundo, não como algo
que o coloca separado deste. Enquanto ele canta (e escuta a si próprio cantando) ele
descobre que as coisas do mundo falam a linguagem de sua própria interioridade, e
que ele próprio fala a linguagem interior das coisas. As notas expressam sua
harmonia. A antítese entre “interior” e “exterior” não é deste modo abolida, mas é,
por assim dizer, transformada em sua face: o vertical torna-se o horizontal. A parede
separando o ser e o mundo agora corre reta sobre todas as coisas, torna-se uma ponte
unindo os dois.
38
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
essencial que outra. Os três ângulos de um triângulo não são mais essenciais do que
os seus três lados. É verdade, contudo, que quando consideramos não a essência de
uma coisa mas o modo como ela vem a ser, uma característica essencial pode na
verdade ter precedência sobre outra. O triângulo começa com um lado, não com um
ângulo. Eu não posso desenhar um triângulo começando com um ângulo. Do ponto
de vista evolucionário, a fala inquestionavelmente é mais elevada que a música.
Eu não sustento que a fala existiu antes que a música. É impossível apurar a
exata seqüência de fatos sepultados há tanto tempo atrás. O que eu digo é que o
homem começou com a palavra. A palavra marca o avanço crucial que estabeleceu o
homem à parte dos outros seres vivos. Com a força da fala ele transpôs o círculo
fechado de ação e reação que mantêm os outros organismos vivos escravos de seu
ambiente imediato. Ao contrário do animal, depois que o homem adquiriu o poder da
fala, ele não somente existe na natureza e começa a conceber a “natureza” como algo
distinto dele mesmo. A palavra não divorcia completamente o homem da natureza, à
qual ele permanece confinado, mas ela desata seus laços, coloca-o à parte, cria as
coisas. A natureza se torna o mundo. A palavra é o signo por meio do qual o
ser/estar-no-mundo do homem é distinto do ser/estar-na-natureza do animal. A
questão interminavelmente debatida de se o poder da fala é realmente um atributo
distinto do homem, ou se alguma espécie de animal altamente desenvolvida é capaz
de falar, essencialmente se centra em torno da definição do termo “linguagem”5. Se
linguagem é definida por sua função social, se a palavra é principalmente vista como
o instrumento usado por indivíduos de uma dada comunidade para se comunicarem
entre si, então não há dúvida que as abelhas, por exemplo, possui uma linguagem
altamente desenvolvida. Se a linguagem é vista principalmente como uma expressão
da “alma”, da vida interior, emoções, estados da mente, ou como um jogo composto
de sons e gestos, quer imitativos ou meramente brincalhões, então é claro que a
linguagem humana se comparada com a animal difere desta última somente em grau
de eficiência, não em espécie. Mas a linguagem humana é realmente algo mais, algo
além: tem também uma função puramente denotativa: ela designa coisas, nomeia-as.
Os animais não nomeiam as coisas. Um animal pode expressar o signo “água”
quando a água é suposta ser encontrada ou evitada, ele pode expressar prazer ou
aversão quando encontra água, pode ainda executar uma “dança da água”, mas não
faria sentido para um animal dizer “água” em circunstâncias nas quais a água não
tivesse relevância para as funções vitais do animal. Se a linguagem é definida por
suas características especificamente humanas, como algo nunca encontrado fora do
mundo humano – pois nenhuma linguagem humana, todavia primitiva, funciona
puramente como signo, como expressão emotiva, como um jogo, ou falharia em ser
primeiro e antes que tudo uma linguagem de palavras – então o termo se refere à
força da fala diferente em tipo de toda e qualquer linguagem animal, uma força que
não poderia realmente se desenvolver gradualmente a partir da linguagem animal.
Nenhum de nós poderia alguma vez ter sido um animal, então nenhum de nós pode
ter a medida deste passo decisivo. Podemos ter um leve indício de quão momentoso é
5
Cf. Ernst Cassirer, An Essay on Man, parte I, capítulo 3.
41
este passo, da autobiografia de Helen Keller, na qual ela descreve como ela primeiro
percebeu que “água” era não somente um signo ou um som expressivo, mas um
nome, e que isto fez sentido dizer “água” ainda quando ela não estava molhada ou
sedenta. O passo da designação funcional para o significado, a emergência do
significado, é o ponto crucial: com ele, o espírito humano ascendeu acima da
natureza. A palavra marca o momento quando o começo ingressou no mundo e
tornou-se cônscio do mundo. E então ele pode dizer a palavra “Deus”: a palavra criou
o homem.
Desde que o homem buscou entender a si mesmo, ele teve que entender-se
principalmente como um ser que possui o poder de falar. Isto não poderia ser de outro
modo. A idéia que o homem forma de sua própria essência pode concentrar-se em
atividades práticas, em ferramentas e tecnologias, ou em atividades teóricas, arte,
pensamento, ciência: o que essencialmente caracteriza tudo isto é que a linguagem do
homem nasce como atitude para com o mundo enquanto algo distinto de si mesmo.
Animais, também, trabalham, adaptam-se, pensam em seu próprio caminho, mas
somente o homem faz tudo isso como um “Eu” confrontado ao mundo. Somente o
homem tem um mundo, e ele o tem somente porque ele tem a palavra. Eu tenho dito
que as notas tornam acessível uma nova dimensão: o mesmo pode ser dito mais
apropriadamente das palavras. Para o cantor, o sentido de ser uno com o mundo, tem
um tipo de precedente no estágio pré-humano, no relacionamento do animal com o
ambiente natural, ao passo que a palavra marca a emergência de algo totalmente
novo, algo que nunca havia existido antes. A passagem para uma nova dimensão aqui
envolve uma quebra radical, um passo para fora da natureza: o homem que fala faceia
o mundo, vê-o “de fora”, fala para ele; em falando para ele, ele o vê como distinto de
si próprio, e vê a si mesmo como distinto dele; o que a palavra nomeia torna-se coisa,
objeto. Filólogos e psicólogos concordam que na evolução da raça bem como do
indivíduo, os objetos fazem seu aparecimento simultaneamente ao avanço dos sons e
signos expressivos para as palavras. A dimensão tornada acessível pela palavra é
chamada “realidade objetiva”. Isto não é algo que existe antes da fala, que a fala
meramente descobre; é primeiro e antes que tudo uma criação da fala. A linguística
comparativa está gradualmente destruindo nossa noção inocente da realidade objetiva
como algo absoluto, isto é, absolutamente autônomo, uma realidade inteiramente
auto-determinada para a qual nossas palavras e nossos pensamentos lentamente
encontram seu caminho, guiadas pela linguagem. “É preciso lembrar, desconcertando
o pensamento que o fato pode ser, que ao invés da gramática – a estrutura de um
sistema simbólico – ser um reflexo da estrutura do mundo, é mais provável que a
suposta estrutura do mundo seja um reflexo da gramática utilizada.”6 Por esta razão o
termo “objeto” e termos designando o relacionamento objeto-sujeito têm diferentes
conotações em linguagens diferentemente estruturadas: cada linguagem “descobre”
sua própria realidade objetiva. Não há realidade “por detrás” destas todas realidades
objetivas diferentes; a noção de uma realidade objetiva “por detrás” da linguagem é
sem sentido. Tudo isto não diminui a importância da idéia de objetividade; somente
6
Ogden and Richards, The Meaning of Meaning, p. 96.
42
ajuda-nos a entender em que sentido a palavra pode ser dita como tendo criado o
homem e seu mundo. Agora, isto torna clara também a proposição de Ludwig
Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus, “os limites de minha
linguagem são os limites de meu mundo”, que não deve ser tomado num sentido
restritivo, mas é válido sem reservas.
Neste ponto pode parecer que nossas reflexões tenham se tornado auto-
contraditórias, incompatíveis com nossas primeiras assertivas resultantes de um longo
encadeamento de raciocínios, que a auto-imagem do homem que fala e seu mundo
precisa ser ampliada e suplementada. Realmente, a incompatibilidade é somente
aparente. Pois embora os limites de minha linguagem sejam os limites de meu
mundo, a música vive dentro destes limites: depois de tudo, nós a nomeamos,
dizemos “música”; a palavra a coloca diante de nós, torna-a uma coisa humana no
mundo humano. A música não é estranha a nós. Podemos nos apropriar dela porque
temos a palavra, porque a nomeamos, porque podemos fazer perguntas a respeito dela
– questões concernentes à música não somente enquanto uma “coisa” ou “objeto”
mas também enquanto uma realidade não cerceada pelas palavras “coisa” e “objeto”,
questões concernentes à natureza intrínseca da música, sua essência. Verdade, muitos
escritores rejeitam que tais questões relativas à essência da música tenham qualquer
significado racional. De acordo com eles, é possível falar racionalmente a respeito
somente do “objeto” música, uma atividade humana específica vista historicamente,
psicologicamente, sociologicamente – a periferia, a concha da música, não o seu
âmago; este último, estamos dizemos, esquiva-se à expressão verbal. Tomando este
ponto de vista, conclui-se que a música é por natureza inacessível à palavra, à
linguagem, está excluída do mundo da linguagem, isto é, o mundo humano. Mas
considerar que qualquer discurso sobre a essência da música é infrutífero pela razão
de que o núcleo essencial da música esquiva-se à expressão verbal é interpretar mal o
significado tanto das notas quanto das palavras. Se o discurso racional fosse possível
somente onde a essência da coisa não se esquivasse à expressão verbal, o que
restaria? Quem, salvo um matemático, poderia dizer algo racional a respeito das
cores, por exemplo? (tremenda loucura de Goethe!) Não se poderia falar sobre si
mesmo, muito menos sobre Deus. O homem como um ser racional estaria proibido de
fazer as muitas perguntas que mais do que qualquer outra coisa mais revelam-no
enquanto um ser racional, as questões a respeito de si mesmo e do significado de sua
existência.
Outra vez a metáfora da esfera vem à mente. O estágio pré-lingüístico pode ser
representado pela esfera indiferenciada. Com o emergir da fala uma diferenciação se
manifesta, a esfera articulando dentro de um centro e uma superfície esférica vista de
dentro – como nós vemos o horizonte, por exemplo, ou o céu estrelado. O centro
significa o homem falante, a superfície o seu mundo. As palavras trançam fronteiras
sobre a superfície; as figuras que elas delimitam são as coisas nomeadas por palavras,
“objetos”. Isto não, embora, reduz a esfera a um ponto central mais a superfície. Não
existe somente a palavra; há também música, notas, e as notas não traçam figuras na
superfície, não se estendem em duas dimensões sobre a superfície mas cortam através
dela; elas se movem para fora e para dentro sem crear confronto algum com ela: elas
são seres puros na terceira dimensão, a profundidade; elas são, por assim dizer,
perpendiculares à superfície que representa as palavras. Consequentemente, podemos
admitir a realidade dela como uma “perpendicular”: antes e depois da superfície não
há nada. A esfera não é meramente um ponto central mais a superfície; ela tem
também profundidade. As notas colocam a bidimensionalidade do mundo verbal em
questão. Na perspectiva da nota, a superfície é corte transversal do espaço esférico e
as figuras sobre a superfície são projeções de estruturas tridimensionais. Esta divisão,
no entanto, não é tão simples quanto parece, não implica que a superfície é o domínio
da palavra, e a profundidade o domínio da nota. A profundidade aberta pelas notas
não é acessível para as palavras. Embora a palavra permaneça na superfície, esta
superfície não é fixa como um lugar definitivo, uma distância definitiva até o centro:
ela pode mudar sua posição, pode se mover mais perto do centro e se mover para
longe dele. As notas não fogem das palavras; as palavras as alcançam. Para qualquer
que seja a profundidade que as notas alcancem, as palavras também podem alcançá-
la, mas elas nunca deixam de ser bidimensionais. A expressão direta da profundidade
é negada às palavras, é reservada às notas. Às notas, de sua parte, é negado o
delineamento definido, a delimitação exata das figuras, as quais requerem as duas
dimensões da superfície para serem representadas. Em si mesma, a dimensão da
profundidade não pode produzir figuras. Então ambas, palavras e notas, têm cada
uma seus próprios limites e suas próprias possibilidades ilimitadas.
45
“Os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo”: somente agora
o significado da proposição de Wittgenstein pode se tornar inteiramente claro. “Os
limites da linguagem” não implica a existência de um domínio inacessível à
linguagem. Não existe tal domínio. Nada de fato ou potencialmente relevante para a
existência humana está além da compreensão da linguagem; o domínio da palavra é
ilimitado. O limite além do qual as palavras não podem atingir é sua própria atividade
delimitadora. O limite da linguagem é ser ela mesma ser-um-limite (está em ser um
limite). Por mais largos ou estreitos os limites que a linguagem trace, há sempre
alguma coisa que nunca é alcançada: aquilo que está delimitado. Isto é o indizível –
Wittgenstein chama-o de “místico”. Não o místico no sentido de ser infinitamente
remoto, totalmente encoberto; é o que está próximo de nós, em sua presença mais
manifesta, presente em tudo que não seja uma ficção intelectual ou lingüística. Isto é
o que Aristóteles quis dizer quando ele disse que o individual é o inefável. Isto é o
que Rilke tinha em mente quando disse: Wagt zu sagen, was ihr Apfel nennt!” –
“Ouse soletrar o que você chama de maçã!”. Ele próprio ousou exatamente aquilo,
em um de seus poemas da seqüência de “Orfeu”. Wittgenstein estava errado ao
escrever, “o que nós não podemos falar de nós devemos despachar para o silêncio”.
Mas não de todo: o que não podemos falar de nós, podemos cantar a respeito.
Realmente o que queremos dizer aqui deveria estar claro. O homem cantante
não se eleva acima do homem falante; o homem musical não suplanta o homem
racional. A diversidade das notas não é de outro mundo. Elas não derivam de algum
além transcendental ou de algum pensamento, emoção ou ser “puramente interior”. É
a atitude do homem cantante diferente para com o seu mundo. Aquilo do que o
homem falante o coloca à parte e o que ele considera diante de si mesmo, o homem
cantante traz tão perto de si próprio quanto ele possa, tornando-se um com ele. Os
dois atos são como inspirar e expirar, dentro de um processo, ou a
complementaridade do sábio chinês do amor e do respeito.
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
algum tipo de vantagem sobre o homem falante, de fato indica uma reversão a um
estágio de desenvolvimento preliminar, pré-linguístico e pré-racional. Se é verdade
que a fala cria objetos, uma realidade objetiva, fronteiras incisivas e uma oposição
radical entre sujeito e objeto, então – é argumentado – a música, a qual tende a abolir
esta oposição e enevoar estas fronteiras (como demonstramos), pode ajudar a nada
mais que não anular as realizações da fala e reviver o superado estágio pré-racional.
Isto leva a duas avaliações contraditórias da música. Dizendo resumidamente: onde o
“espírito” é considerado como o “adversário da vida”, a música é louvada como a
força curativa que mantém abertas nossas linhas de comunicação à nascente
imorredoura da vida; em contraste, onde a salvação é buscada em uma ordem
espiritual, a música é sentida como nos seduzindo a recair na ignorância animal, e
portanto nós deveríamos evitá-la. Comum a ambas as avaliações é o juízo errôneo de
que a música se origina em um estágio pré-lingüístico da evolução, e que a oposição
radical entre subjetividade e objetividade pode somente ser transcendida “desde
abaixo”, por voltar a algum estágio pré-racional. O mesmo resultado pode também
ser alcançado por ir adiante, contemplando do alto o racionalismo grosseiro.
comunicar idéias e sentimentos para alguém mais... Como fazer com que aconteça a
associação de som e sentido? Como fazer aquilo que originalmente era uma selva de
sons sem sentido vir a ser um instrumento do pensamento?... Podemos talvez formar
uma idéia do processo mais primitivo de associações de som e sentido... Nas canções
de um indivíduo particular havia uma recorrência de séries particulares de sons com
uma cadência em particular... Suponha... um amante tinha o hábito de endereçar à sua
garota ‘um ei!, e um alô!, e um ei! [nonino]’. Seus compadres e rivais não tardariam
em perceber isto, e ... zombar dele imitando e repetindo seu ‘ei-e-alô-e-ei’. Mas uma
vez, quando este tenha sido reconhecido como o que Wagner denominou um
‘leitmotiv pessoal’, ele poderia não mais bradar para imitá-lo usando-o ... como um
tipo de apelido. ... Ele podia ser empregado, por exemplo, para avisar seu rival. E
então uma vez que tenha sido feito uso de nomes próprios, nomes comuns (ou
substantivos) não demorariam em se desenvolver”. Então, de acordo com Jespersen, a
fala desenvolveu-se a partir da canção.
coisas; a unidade do ser humano com a natureza era outrora de fato experimentada,
não somente concebida. Isto não é a mesma coisa que a unidade “inconsciente” com a
natureza dos seres vivos pré-humanos. O homem no estágio mágico podia ver bem a
natureza, mas ele a via desde seu interior, por assim dizer. (Foi para expressar este
conceito que Edgar Dacqué cunhou o termo Natursichtigheit.) Ele foi provavelmente
capaz de influenciar a natureza “de dentro” de uma maneira que é incompreensível
para nós. Neste estágio o homem já faceava a natureza, concebendo-a como algo
distinto dele, mas seu sentido de ser uno com ela era ainda muito forte.
Em seu livro Usprung und Gegenwart, Jean Gebser não se contentou em notar
a correspondência íntima, bem como as afinidades, entre música e magia: de acordo
com ele, a música de fato determina a verdadeira estrutura da magia. “Se os laços
entre música e magia revelam que elas são intimamente ligadas”, ele escreve, “e deste
modo sendo a música eminentemente mágica, não será surpresa se acreditássemos
estar justificados em separar a audição como o órgão interno que joga o papel
predominante no estágio mágico. O mundo mágico, e com ele uma parte essencial do
que constitui nosso próprio mundo, originado no som mágico, operando por meio da
audição, dando ascensão ao mundo audível.” Na extensa perspectiva deste livro,
expondo a totalidade do desenvolvimento da humanidade em termos de uns poucos
passos evolucionários decisivos, o estágio mítico suplanta o estágio mágico ao
mesmo tempo em que as palavras suplantam as notas em sua irrevogável função
final. Música e fala significariam dois estágios de desenvolvimento. O estágio
mágico: o mundo experimentado como uno; a existência como eterna, ilimitada,
desprovida de ego; a oposição entre homem e mundo não está ainda presente para a
50
consciência desperta mas como ainda um sonho, enterrada sob a consciência de que o
homem e a natureza são originalmente unos; o individual dissolvido no grupo, não
ainda oposto a ele. O estágio mítico: a consciência do espírito individual, oposição
entre o homem e o mundo sentida como uma polaridade; a consciência do ser como
existindo no tempo; o indivíduo em processo de imersão desde o grupo. No estágio
mágico o órgão crucial é o ouvido, o sentido crucial é o sentido da audição. No
estágio mítico é a boca, o órgão da fala. Não há boca nas representações antigas das
figuras humanas; somente mais tarde é a boca completamente delineada.
É fácil ver como esta conclusão pode ser reconciliada com o fato inegável de
que a música é intimamente relacionada com a música. Podemos somente manter
claramente na mente que a mesma palavra, “nota”, denota algo diferente em cada um
dos dois estágios em questão. A nota da alma ainda aprisionada do sonho,
inconsciente do ser e do tempo, é como um fenômeno biológico, um som expressivo
ou signo (aviso, chamado, apontamento) ou ambos: um elemento em uma cadeia de
elementos reais. A nota para uma consciência desperta, a nota musical propriamente,
é um fenômeno semântico: parte de um sistema de relações audíveis, um elemento
estrutural, um membro de um todo simbólico. O significado especial das notas
musicais repousa sobre isto, a realização crucial do estágio mítico, a descoberta do
símbolo, torna-se fértil no próprio mundo audível, isto é, no elemento em que está o
essencial do estágio mágico suplantado, o elemento que incorpora aquela
interpenetração entre homem e mundo. O conteúdo da música é mágico, sua forma é
mítica. A música assume o comando e põe em ordem o velho dentro do novo; não
imagina o passado, não olha para trás, não é uma reconstrução mas, antes e mais que
tudo, uma construção: o passado se torna símbolo e desta forma continua a ser uma
força viva no presente e naquilo que está por vir. A música realiza a apropriação do
mágico pelo espiritual: o núcleo essencial da existência mágica é integrado à ordem
espiritual. Inferir da afinidade entre música e magia que a música se origina no
mundo da mágica é falacioso. A música não se origina na mágica; ela originou-se
precisamente devido à perda do mundo da magia, seguindo a lei de que todo
desenvolvimento vivo em que cada estágio sucedente deve incorporar os modos de
existência do estágio precedente. Fala e música não são antagonistas, representam
dois estágios de desenvolvimento, um dos quais supera o outro. Nossa discussão
sobre o relacionamento palavra-nota na canção demonstrou que os dois trabalham
juntos, não um contra o outro; que eles não se contradizem, mas realçam um ao outro;
As palavras dividem, as notas unem. A unidade da existência que a palavra
constantemente quebra, separando coisa de coisa, sujeito de objeto, é constantemente
restaurada nas notas. A música impede o mundo de ser transformado inteiramente em
linguagem, de tornar-se nada que não objeto, e impede o homem de tornar-se nada
que não sujeito. Em nada pode a palavra ajudar a isto; a objetivação da palavra
necessita da nota, exige-a: fortalecer as notas, liberta as palavras para efetuar sua
tarefa de objetivação. Certamente não é um acidente que o mais alto desenvolvimento
da força das notas na música instrumental moderna e o mais alto desenvolvimento do
poder de objetivação das palavras na ciência moderna coincidem historicamente com
a divisão radical já delineada entre subjetividade e objetividade. Não porque as notas
expressam o sujeito tão adequadamente quanto a palavra expressa o objeto, não
porque as notas nutrem o elemento irracional enquanto a palavra alimenta o elemento
racional. Uma e outra são falsas e superficiais. O que a nota expressa não é o sujeito
mas a interpenetração do sujeito e do objeto. A música não floresce às expensas da
52
HOMEM O MÚSICO
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Som e Símbolo: Segundo Volume
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situação como um problema a ser resolvido e o resolve. Mas somente um ser vivo
com uma mente pode ver uma situação como uma questão. A situação de questão e
resposta não pode ser interpretada em termos puramente behavioristas.
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
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pessoas ao invés de somente ir para elas, ela [música] tem que ser certamente algo
que elas [pessoas] produzem ativamente mais adequadamente do que algo que elas
recebem passivamente. Mas esta atividade é essencialmente a produção de som, um
fazer-se ouvir: fazer música é estar ativamente produzindo sons e trabalhando com
sons, estejam os ouvintes presentes ou não. Esta atividade é, por assim dizer, circular.
O círculo fecha somente quando o som produzido retorna para seu produtor como
algo audível. Isto é verdade para o instrumentista tanto quanto para o cantor; até
mesmo um recluso não faria música em um piano silencioso. O compositor, por sua
vez, ouve em sua mente o que ele cria; até mesmo enquanto criando ele é já um
ouvinte também. De nenhum modo como você olhe, há caminho fora do círculo do
audível. O mundo da música é parte do mundo audível, do mundo da audição.
Este não é o lugar para decidir a questão de, em quais casos, a linguagem
reflete a história natural da percepção ou impõe sua própria ordem nova sobre esta
última. O que é certo é que a linguagem e a sensação correm em paralelo uma com a
outra: quando ouvimos um som, percebemos geralmente, em adição ao som, a coisa
ou evento que produz o som. Ouvimos o mar ou a tempestade, não ouvimos
meramente um roncar; ouvimos sinos, não um tilintar; uma maçã, não um baque.
Nossa audição não pára, por assim dizer, na sensação mas se estende através dela até
a fonte sonora. Algumas vezes se estende a dentro do vazio. Quando ouvimos um
som cuja fonte permanece indeterminada – um roçar, por exemplo, mas não o algo
que roça – então a sensação é insatisfatória, inquietante; ela nos impele a ouvir, a
tentar descobrir a fonte material do som, e não descansaremos antes de termos sido
bem sucedidos em associar o que nós ouvimos com algo visível-tangível. Deste modo
percebemos o mundo audível todo, enquanto um acessório ao mundo das coisas
visíveis e tangíveis, como se envolto em torno dele. As coisas visíveis-tangíveis
regalam-se com a luxúria de serem audíveis – pois uma mudança, pois o amor ao
colorido, o enriquecimento da pintura, nos agrada, nos inquieta, nos adverte – olho e
mão agem como legisladores, o ouvido como um órgão auxiliar: isto é como alguém
poderia descrever o mundo aberto aos nossos sentidos.
audível quebra sua ligação com os objetos materiais. Ao ouvir outros tipos de som, se
eu pergunto “O que é isto”, espero uma resposta tal como “um avião” ou “o vento”.
Se faço a mesma pergunta quando ouvindo um violino, e alguém me responde “um
violino”, eu vou rir dele. Não é sobre isso que perguntei. A resposta correta, algo
como “a Partita de Bach em Mi maior”, não se refere à conecção dos sons com uma
fonte material (isto seria sem valor; todas as notas da partita de Bach são sons de
violino) mas ao modo como as notas se conectam entre elas. Neste caso, a audição
não vai atrás do que é ouvido, não se estende em direção à fonte visível-tangível da
sensação; o que ouvimos se auto-contém, é um todo completo em si mesmo. Um
mundo de pura audibilidade se abre, um domínio no qual o ouvido é o legislador. É
desnecessário dizer, a existência deste como um domínio confere uma dignidade
inteiramente nova para o mundo audível como tal. Na presença da música, não
deveríamos estar inclinados a dizer que o audível é uma vestimenta colorida na qual o
mundo visível se envolve; deveríamos falar preferivelmente de um dom que o
Criador conferiu sobre o mundo visível – o dom de compartilhar do audível, da
dignidade de ser audível.
O fenômeno é único. Que dentro do domínio sensorial uma sensação por outro
lado liga as coisas como uma de suas “qualidades” deveria emancipar-se e construir
um mundo autônomo de seu próprio, livre de qualquer referência objetiva, não ocorre
em outra parte. O fenômeno análogo no mundo visível, a arte das formas e cores
puras, não oferece nada comparável, pois as cores e as formas são ambas as mesmas
como encontradas nos objetos ou derivadas dos objetos, enquanto o homem não
encontra notas no mundo audível: ele precisa provê-lo delas. É o homem quem cria o
puramente audível, no qual o mundo audível se revela em uma forma que é
inteiramente própria. Sem música, a audição poderia ser considerada como se fosse
ver com os ouvidos. Somente na música, a audição assume a posse de si própria.
Nossas “camadas” não devem ser confundidas com estágios sucessivos, como
se ouvíssemos primeiro um, depois o outro, e assim por diante. Quando ouvimos
música todos eles se apresentam de uma vez. Necessariamente, analisar uma
experiência unitária é quebrá-la em suas partes.
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Som e Símbolo: Segundo Volume
X. A Audição de Notas
O que é uma nota, o que constitui a diferença entre uma nota e outra, não pode,
estritamente falado, ser definido. A única resposta adequada à questão “O que é uma
nota?” é cantar ou tocar uma nota. Não importa quão muitas palavras usemos, não
importa quão corretas e aptas elas possam ser, elas não darão a uma pessoa surda
ainda a mais vaga idéia de uma nota. Tal pessoa pode saber ou entender todas as
palavras que tenham sido ditas a respeito das notas: o cerne essencial da realidade
referida pelas palavras permanece um espaço vazio.
62
É ainda possível encontrar pessoas que imaginam que elas têm a verdadeira
resposta para a questão do que é uma nota ou o que é uma altura. A resposta é: uma
nota é a vibração do ar ou outro meio de propagação.; altura é o número de vibrações,
a freqüência. A palavra “é” aqui significa “é realmente” ou “é verdadeiramente”. É
escassamente possível colocar alguém dentro do quadro da mente de outro alguém
que aceitasse acriticamente tal como resposta. Vibrações ou a freqüência de vibrações
pode ser vista ou sentida; notas podem ser ouvidas; elas não são vistas ou sentidas –
somente um surdo “sente” as notas. Como pode algo audível ser algo visível ou
tangível? Os dois podem corresponder um ao outro mais exatamente; o visível ou
tangível pode ser a causa material ou o veículo material do audível. Mas isto não
justifica a assertiva de que um é o outro, e certamente não “realmente” ou
“verdadeiramente”. Por que deveriam os sentidos da visão e do tato ter acesso àquilo
que é realmente, verdadeiramente, e ao sentido da audição ser negado tal acesso? Por
que deveria o ouvido ser menos fidedigno que o olho ou a mão?
Aqui uma qualificação é necessária. Todos sabem que uma e a mesma melodia,
pode ser cantada por um soprano ou um baixo, tocada em um violino ou violoncelo.
Apesar das alturas completamente diferentes, a melodia permanece idêntica. O que
permanece imutável é a relação da altura de cada nota com suas notas vizinhas. O que
torna uma melodia não é, falando apropriadamente, as notas mas as relações entre as
notas. Um melodia tomada como um todo pode ser mudada para trás e adiante no
espaço tonal, pode ser transposta para outro tom sem ser modificada, de fato como
uma figura geométrica permanece não modificada se a imaginamos de um plano para
63
Ouvir uma melodia é, desse modo, primeiro de tudo ouvir uma seqüência de
notas que permanecem em uma relação específica uma com a outra no que diz
respeito à altura e à duração. Quando ouço uma melodia, não ouço primeiro uma
nota, então outra, então uma terceira, e assim por diante; ao mesmo tempo a cada
nota, eu ouço a relação na qual ela se coloca em relação às outras notas, precedentes e
seguintes. Anteriormente, havíamos observado que a audição da música difere de
todos os outros tipos de audição, pois aquilo que é ouvido aqui está auto-contido,
enquanto que em outra parte a audição se estende além do próprio som até sua fonte
material. Agora descobrimos que também no caso de uma melodia, a audição não
pára na sensação imediata do som da nota de fato soada, mas se estende além dela,
desta feita não até um objeto material mas até outras notas – notas que ou tenham já
decaído à distância ou estejam ainda ressoando, notas não ouvidas a este momento.
Ouvir além do que tenha sido ouvido a outros elementos audíveis, ouvir a relação
entre algo ouvido com algo não há muito ou ainda não ouvido: como isto pode ser
entendido?
do dado dos sentidos imediatamente dado algo outro que não a audição? Posso ouvir
como uma nota está relacionada a outra notas, precedentes e seguintes, as quais eu
não ouço? Se a melodia é de fato definida por estas relações, como eu posso dizer que
eu ouço melodias? Não seria mais correto dizer que aqui, também, a função do órgão
do sentido é confinada a ter e transmitir as sensações, enquanto que a relação das
notas, e pelo mesmo motivo melodias e toda a música, é percebida por outras funções
não-sensoriais? Podemos concluir que a música é primeiramente pretendida não para
ser ouvida mas para ser percebida por outras funções, o que quer que elas possam
ser?
nenhum sentido prova que podemos superar tal dependência somente por ir além do
som. Por que não seria possível superá-la no próprio ato da audição, em outra
dimensão da própria audição? Estas são questões legítimas as quais podem ser
resolvidas não por especulação e debate mas somente por observação cuidadosa do
fenômeno musical. Os resultados de tal observação proverão evidências conclusivas
que a audição musical efetua tarefas muito diferentes da percepção das qualidades do
som exterior.
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
7
Sound and symbol: Music and the External World, pp. 11 ff.
69
O que é peculiar à qualidade dinâmica da nota é que nada no evento físico que
produz a sensação corresponde a ela. A qualidade da nota que torna a música possível
não tem contraparte no mundo material. Quando uma nota ressoa, uma curva
luminosa aparece na tela do osciloscópio; um observador experiente pode ler desta
curva todas as características acústicas da nota; a única coisa que ele não pode ler
dela é a qualidade dinâmica da nota. A menor mudança nas propriedades acústicas da
70
nota será imediatamente registrada por uma mudança correspondente na curva; mas
nenhuma mudança, por mais radical, na qualidade dinâmica será alguma vez
mostrada na tela. Os eventos físicos e musicais pertencem a diferentes ordens da
existência.
Deste modo, o que toma lugar aqui é uma real ruptura no campo da percepção.
Todas as sensações audíveis (incluindo as sensações de uma nota como um evento
acústico) são ou as reações da audição a estímulos externos ou a alucinações. A
audição das qualidades dinâmicas das notas não é nenhum dos dois. É a percepção
direta de eventos não materiais. As qualidades dinâmicas das notas dão à audição o
acesso direto a tais eventos. A condição única das notas – se comparada aos ruídos e
outros sons – sua auto-suficiência audível, tem sido por enquanto caracterizada só
negativamente, pelo fato de que as notas não se referem a coisas visíveis e tangíveis.
Podemos agora caracterizá-la positivamente: a nota transcende a sensação auditiva
dentro do audível, uma transcendência interior. Diferente dos sons não musicais, os
quais, indo além do audível, estendem-se até os objetos, a nota vai para um além
audível. Ela penetra neste último no ponto onde o fenômeno acústico se converte em
musical. Neste ponto, o próprio escopo da audição se alarga: a audição não é mais
confinada a reações a estímulos externos. “Mais do que nota” é ainda nota; “mais do
que ouvir” é ainda ouvir. Deste modo, a divisão usual da experiência musical em
qualidades externas do som e aspectos espirituais, reações ao estímulo sonoro e
funções não-sensoriais – emoção, imaginação, pensamento ou tudo o que dissermos –
desconsidera a verdadeira essência do fenômeno. O que existe além do domínio da
qualidade externa do som (isto é, do acústico) não é o domínio dos aspectos
espirituais da música – eles não são alcançados senão muito mais adiante – mas
primeiro de tudo, e por longa extensão, as qualidades musicais características das
notas. Onde termina a audição não musical (a percepção das qualidades acústicas
somente), o que começa não é emoção, pensamento, imaginação, mas a verdadeira
audição musical. O mundo da música em sua plena amplitude e riqueza se estende
entre o domínio da audição acústica e as funções não-sensoriais. Sua realidade,
aquela de um processo não-material, é a audibilidade: ela é inteiramente percebida
pela audição.
Fosse este o caso, dificilmente seria correto sustentar que a audição musical,
enquanto distinta das outras espécies de audição, marca uma “quebra de fronteiras”.
Se a percepção é sempre uma percepção Gestalt, diferentes tipos de audição
72
Parece, então resultar da teoria da Gestalt que (1) as qualidades dinâmicas das
notas são determinadas pela totalidade da Gestalt das notas, permanecendo a mesma
ou mudando quando a Gestalt permanece a mesma ou muda, e (2) cada Gestalt é
caracterizada por um espectro de dinâmicas de onda que permanece a mesma ou
muda simultaneamente à Gestalt. As qualidades dinâmicas das notas e os eventos
físicos são então correlacionados pela Gestalt. A possibilidade de transpor melodias,
em particular, mostra que a identidade e a diferença de Gestalt depende não das
alturas individuais mas da proporção das alturas; o que é relevante no evento físico
correlato não são as freqüências mas as proporções de freqüência. É, então, nestas
proporções que deveríamos reconhecer a contraparte física do evento psicológico da
audição musical em geral, e da audição das qualidades dinâmicas em particular.
espaciais. Depois de tudo, sua proposta era limpar o caminho para uma concepção
radicalmente nova: que os dados primários dos sentidos não são partes que são
subseqüentemente combinadas em totalidades, mas totalidades que são
subseqüentemente analisadas em seus constituintes. Por esta razão eles tinham
primeiro que considerar as Gestalten de fato percebidas como totalidades, isto é,
aquelas no espaço visual. As Gestalten audíveis tais como melodias, Gestalten
puramente temporais, por não serem nunca diretamente apreendidas como totalidades
e somente como partes individuais delas são diretamente percebidas pela audição,
inevitavelmente confronta o investigador com dificuldades diferentes e ainda
maiores. Os gestaltistas certamente não examinaram a música, com suas Gestalten
puramente temporais – de fato, eles têm repetidamente mencionado a música como
um campo de estudo especialmente promissor – mas até agora eles não têm ido mais
adiante do que isso. (Característico deste estado de coisas é o fato de que em seu
levantamento intitulado Probleme der gauzheitspsychologischen Wahrnehmungslehre
Walter Ehrenstein dedica mais que duas centenas de páginas à percepção visual e
somente oito páginas para todas as espécies de percepção auditiva, não somente a
musical.)
A psicologia da Gestalt tem até agora falhado (1) em distinguir com acuidade
suficiente entre visão e audição (e entre ouvir padrões das notas enquanto acústico e
musical), e (2) em reconhecer que a temporalidade dos padrões das notas é
radicalmente diferente da espacialidade dos padrões visuais. Estes dois pecados de
74
omissão – se eles podem assim ser chamados – têm uma longa história. Uma década
antes da publicação do trabalho pioneiro de Christian von Ehrenfels, “Über
Gestalqualitäten”, Ernst Mach em seu Analyse der Empfindungen: “De acordo com
pontos de vista iniciais” – este se refere à teoria tradicional da audição desenvolvida
com base na teoria de Helmholtz – “um fato importante, a ser discutido adiante,
permanece incompreensível, e contudo nenhuma teoria pode ser completa sem
considerá-lo. Se duas seqüências de notas começam com duas notas diferentes, e as
proporções entre as freqüências não variam enquanto uma nota segue a outra, e as
proporções entre as freqüências não variam enquanto uma nota segue a outra,
ouvimos a mesma melodia em ambas tão precisamente quanto vemos duas figuras
geométricas similares e posicionadas similarmente como sendo a mesma forma.
Melodias idênticas em diferentes posições podem ser chamadas ... estruturas de notas
de um mesmo padrão tonal.” O problema, o programa e o método da psicologia da
Gestalt está aqui formulado por antecipação. Seu problema é o fenômeno Gestalt, a
imediatez da percepção Gestalt; seu programa pede por alargar o primeiro ponto de
vista ou recolocá-lo por outro que seja capaz de responder pelo fenômeno Gestalt; e
seu método é antecipado por que o problema é formulado em termos geométricos e
não musicais: a Gestalt audível e temporal está sendo estudada com base na Gestalt
visível e espacial. Que os dois se baseiam sobre um fundamento comum é
tacitamente assumido; por outro lado, seria insípido compará-los. Sendo claro, esta
conjectura não é arbitrária: o fato de que o padrão permanece o mesmo é determinado
pela persistência da proporção quantitativa – proporção de freqüência na Gestalt
musical e proporção entre comprimento dos lados na Gestalt geométrica. Por que Sib
– Mib – Fá – Sib (uma oitava abaixo) e Sol – Dó – Ré – Sol (uma oitava abaixo) são a
mesma melodia, a mesma Gestalt tonal? As notas não são as mesmas, nem o são as
freqüências, mas as mesmas proporções são preservadas enquanto nota sucedendo
nota. A nota inicial Sib em nosso primeiro exemplo tem a freqüência número 468, e a
nota inicial Sol no segundo exemplo, 390; a segunda nota no primeiro exemplo, Mib
tem a freqüência 312, que é exatamente dois terços de 468; a freqüência da segunda
nota Só no segundo exemplo, 260, é exatamente dois terços de 390. Em ambos os
exemplos, o próximo passo leva a uma nota cuja freqüência é 9/8 daquela da nota
precedente, e assim por diante. Se a proporção de freqüência entre as duas notas
iniciais Sib e Sol é 468 : 390, isto é, 6 : 5, todos os pares seguintes de notas
manifestam a mesma proporção 6 : 5. Por que são similares os dois triângulos
e , isto é, de mesma forma embora de diferentes tamanhos. Porque os lados
correspondentes estão na mesma proporção. Claramente, observações deste tipo não
contribuem mais para o para o entendimento da Gestalt da visão do que para a Gestalt
da audição. O problema é meramente localizado, como está. Mach escreve: “A
questão de por que estruturas geometricamente similares são também oticamente
similares ... contém a totalidade do problema da Gestalt da visão” Mach toma por
admitido que as Gestalten visível e audível estão intimamente relacionadas, e que as
inferências baseadas na analogia entre as duas são legítimas.
75
Próxima objeção: uma figura deve ter duas dimensões para ser percebida pelo
olho; a ordem das notas conforme a altura tem somente uma dimensão. Se as
melodias estão sendo representadas como figuras, a dimensão tempo – a duração da
nota – pode ser adicionada. Linhas horizontais podem indicar o tempo, as verticais a
subida ou descida das notas. Conseqüentemente, o primeiro passo no motivo citado
acima _________ , seria visto no papel aproximadamente como isto: . Os traços
horizontais representam a nota, com o comprimento dos traços indicando a duração
da nota e sua posição indicando a altura; a linha vertical indica a diferença de altura.
O mesmo par transposto para outro tom ________ - mesma Gestalt das notas, a
mesma proporção numérica, mas número de freqüências diferentes – poderia então
ser apresentada por uma figura similar: a mesma Gestalt, a mesma proporção
numérica, mas com diferentes comprimentos. O que é a linha vertical considerada
76
Uma representação geométrica pura das relações das notas pode ser realizada
somente se, ao invés das figuras, usamos linhas verticais para indicar freqüências e a
proporção entre elas. O intervalo sib – mib poderia então ser representado por ,o
intervalo transposto Sol – Dó por . A diferença em altura estão aqui representadas
por diferenças de comprimento, a proporção igual de seus comprimentos expressando
o fato que os dois padrões de notas são idênticos. Mas é ainda verdade que aqui,
tambémsem usar figuras ou ângulos, apreendemos diretamente a identidade de dois
padrões, ou igualmente apreendemo-la tão diretamente quanto ouvimos a identidade
das melodias? No diagrama colocado abaixo, podemos ver imediatamente qual dos
três pares à direita exibem a mesma proporção de comprimento que a do par à
esquerda?
Podemos ver tão imediata e inconfundivelmente quanto ouvimos que Sib – Mib
(par a) é corretamente transposto em Sol – Dó (par c) mas não em Sol – Ré (par b) ou
Sol – Si (par d)? A fundamentação na qual a comparabilidade da audição e da visão é
suposta repousar provas sobre a investigação ser qualquer coisa mais sólida.
Última e decisiva objeção: é por não significar o caso que a Gestalt tonal
permanece inalterada na transposição por que as proporções das alturas permanece a
mesma. Esta última é certamente uma condição necessária mas não suficiente. É
suficiente ouvir a escala maior como a uma melodia. Dó – Ré – Mi – Fá – Sol – Lá –
Si – Dó certamente diz algo mais do que a mesma coisa duas vezes em diferentes
posições. E ainda as proporções das alturas em Dó – Ré – Mi – Fá é a mesma que
aquela em Sol – Lá – Si – Dó. Para a Gestalt das notas permanecer inalterada na
transposição, não é suficiente manter inalteradas as proporções das alturas das notas:
devemos também olhar para aquilo que a qualidade dinâmica das notas não muda,
isto é, que o centro dinâmico é modificado com as outras notas. Nem poderia ser de
outro modo, pois uma nota se torna parte de um todo musical em virtude de sua
qualidade dinâmica, não em virtude de sua altura, e a qualidade dinâmica de cada
nota é determinada pela sua relação ao centro dinâmico, não por sua posição ou sua
freqüência em relação às notas vizinhas.
intervalo Sib – Mib toma lugar não no vácuo, um espaço tonal vazio, mas em um
campo dinâmico, que o próprio intervalo cria e define. Somente enquanto um evento
em um campo dinâmico é ele um evento musical, faz ele dizer algo, a saber, 5 – 1.
Mas se este é o caso, Fá – Sib (oitava abaixo) é por não significar a mesma coisa em
outra posição, duas notas diferentes exibindo a mesma proporção de frenquencias: ela
diz algo mais, a saber, 2 – 5, e isto é algo mais; na música, as notas são o que elas
dizem. Por esta razão não pode haver tal coisa em música como a quinta Sib – Mib ou
a quinta Fá – Sib (oitava abaixo), não mais do que a nota Sib ou a nota Fá. Aqui
somente pode existir a quinta 5 – 1, a quinta 2 – 5 , a quinta 1 – 4, dependendo de
qual quinta se trate (todos os intervalos são lidos descendentes). Somente com a
música conhece as notas somente enquanto veículos das qualidades dinâmicas, então
ela conhece somente intervalos como veículos de afirmações dinâmicas. Um
intervalo de notas transposto para outra tonalidade permanece o mesmo para o ouvido
musical somente se ele diz a mesma coisa que aquela não transposta.
O que foi discutido no trecho anterior não foi a melodia propriamente dita, uma
seqüência prolongada de notas, mas os passos de nota a nota: os intervalos. É uma
matéria de debate se o material construtor da música atual consiste de notas
individuais ou de intervalos. Seja como for, a menor unidade musical (a qual não é
suscetível a subdivisões em partes menores) é o intervalo. Quando Ernst Mach
formulou os problemas envolvidos nos padrões das notas, ele estava correto em
escolher o intervalo como “o dado em sua forma mais simples”. Toda investigação
psicológica sobre como nós ouvimos a música se centra em torno do intervalo.
Desafortunadamente, na maioria dos casos, uma noção errônea e não-musical de
intervalo serve de base. Todos os psicólogos, inclusive os da Gestalt, tratam o
intervalo como uma relação entre notas no espaço tonal, como um fenômeno acústico
mais do que como musical. Até hoje os intervalos estudados pelos psicólogos da
música são intervalos mortos, tal como as notas investigadas pelos primeiros
psicólogos mecanicistas eram notas mortas. O intervalo musical, no entanto, é vivo e,
tal como a nota, deriva sua vida das forças das notas, das posições das notas. Somente
por que ela é viva, em virtude das forças ativas em e através dela, pode um intervalo
ser ligado a outro, pode uma seqüência de graus dar nascimento a um todo tonal de
uma ordem mais alta, uma melodia. Mib – Sib que começa a Fuga em Mib menor de
Bach, não é uma “quinta”, 2 : 3; é 1 – 5, o soar de pólo e contrapólo, sugestivo da
tensão primordial que é a marca de legitimidade da nossa música. O que segue Dób –
Sib – Láb – Solb – Lab – Sib não é uma série de segundas ascendentes e descendentes,
15 : 16 : 15 : 131/2 : 12 : 13 : 15; se fosse, onde estaria o limite, o ser significativo? É
5 – 6 – 5 – 4 – 3 – 4 – 5, o qual prolonga a tensão introduzida por 5 por mover-se em
torno da tensão da nota. Então, chega a Mib – Láb, certamente não qualquer quarta, 3 :
4, mas a quarta 1 – 4, cuja função aqui é começar a redução gradual da tensão, Láb –
Solb – Fá – Mib. Deste modo, a afirmação viva do primeiro intervalo dá nascimento à
idéia musical:
78
o que ouço é sem dúvida o mesmo tema de antes deslocado para uma posição abaixo;
mas eu o ouço como o mesmo não por que as proporções das alturas são as mesmas,
mas por que meu ouvido foi reorientado no processo e o centro dinâmico foi
deslocado com Réb – Mib – Fá – Sib (abaixo), para que as notas preservem suas
qualidades dinâmicas não obstante suas novas posições, e os intervalos digam a
mesma coisa que antes. Se faço uma leve mudança tocando Ré – Mib – Fá – Sib
(abaixo) ao invés de Réb – Mib – Fá – Sib (abaixo), meu ouvido não será reorientado:
a quarta transposta Sib – Mib dirá 5 – 8 – isto é, quase o oposto do antecedente 1 – 4 –
e tanto o resultado da idéia então será alterado quanto demandará uma continuação
inteiramente diferente. Se o ouvido apreende Sib – Fá sem ter sido preparado para ele
por meio do prelúdio, o intervalo será, por razões a serem colocadas abaixo,
claramente ouvido como 1 – 5. Neste caso, o ouvido foi corretamente orientado desde
o início, e o tema é verdadeiramente ouvido em uma posição abaixo – um exemplo de
perfeita transposição. Claramente, o intervalo musical é qualquer coisa menos
insensível a mudanças no espaço tonal. Ao contrário, ele é altamente sensível a toda
mudança de posição. Por saber expressar coisas muito diferentes com o mesmo
intervalo, a linguagem musical desde Bach tem descoberto um de seus principais
79
meramente como três passos iguais, três quartas gradualmente ascendentes, e falha
em ouvir como o mesmo intervalo acústico toma um novo significado enquanto
ascende de 1 – 4 através de 2 – 5 para 3 – 6 – a conclusão Fá – Mib – Réb – Dó
recapitula a quarta 6 – 5 – 4 – 3, escrita de trás para diante – tal homem não ouve
música. (O significado da primeira quarta, 1 – 4, é definido pelo contexto.) A
diferença entre a Gestalt acústica e a musical é ainda mais aparente quando não
somente a proporção das alturas mas também as próprias alturas permanecem as
mesmas, embora as qualidades dinâmicas sejam alteradas. Para tornar esta uma
transformação notável, é mais freqüentemente necessário adicionar novas vezes ou
acordes à melodia. No exemplo seguinte
Mas é realmente a Gestalt – pois, apesar de tudo, esta questão precisa ser
perguntada – que dá ao intervalo um sentido ou outro, que determina seu significado
musical? É a Gestalt do Prelúdio em Mib menor que responde pelo fato de que
diz 1 – 5 no começo da fuga, enquanto que diria 5 – 2? Realmente
qualquer prelúdio leva ao mesmo resultado desde que ele conclua na mesma
tonalidade. De fato, uma vez o centro tenha se tornado evidente, por quaisquer meios,
os intervalos serão ouvidos expressando realmente o que eles expressam a um dado
ponto. A estrutura de cujo contexto um ou outro significado do intervalo é derivado,
por essa razão, não é uma Gestalt mas um sistema. O que um intervalo diz – isto é, o
que ele é enquanto um evento musical – é determinado não por sua posição na
Gestalt das notas ou no espaço tonal, mas só e exclusivamente por sua posição no
campo dinâmico. Todos os intervalos de todas as Gestalten diatônicas das notas
derivam dos significados das afirmações das sete qualidades dinâmicas das notas no
sistema diatônico, o qual é sempre o mesmo. Para ser claro, as qualidades dinâmicas
são ouvidas somente em notas dentro de um contexto musical enquanto Gestalten das
notas; embora elas se originem não na Gestalt mas nas próprias notas, na medida em
que elas pertencem a um sistema, e as notas, como os números (não custa repetir
isto), existem somente “dentro de um sistema”. A qualidade dinâmica da nota – a
incompletação da nota, seu apontar além de si mesma – não é dirigida para outras
notas dentro de uma dada Gestalt, mas para outras notas do sistema ao qual
pertencem. Sons sem qualidade dinâmica audível, sons enquanto fenômeno
puramente acústico, também formam Gestalten audíveis. Sinos repicantes, o canto
dos pássaros, o soar de sirenes – eles, também, são estruturas dinâmicas, pois uma
Gestalt vem a existir sempre que uma “força” recebe a sustentação da “matéria”. Na
Gestalt musical, no entanto, a própria “matéria” é a “força”: a Gestalt musical é uma
estrutura dinâmica de alta ordem. As forças das notas não são as forças da Gestalt.
Realmente, o dinamismo da Gestalt musical pressupõe dinamismo tonal; e na teorida
da audição que pode adequadamente responder pela audição da Gestalt ainda tem um
longo caminho a percorrer antes que possa explicar adequadamente como as
Gestalten musicais e as qualidades dinâmicas podem ser ouvidas.
A Gestal Pseudo-temporal
parecem pensar que este modo de apreender as coisas como totalidades pode ser
atribuído a fatores estranhos, que isto é forçado sobre nós por alguma limitação de
nossa própria constituição; estivéssemos nós equipados com um olho todo-abarcante,
sem dúvida nossa apreensão de Gestalten esculturais e arquitetônicas seria muito
mais satisfatória. No caso de padrões puramente temporais, também, podemos
observar como a Gestalt, a qual unifica as partes apreendidas uma após a outra, foge
das e se eleva acima delas para alcançar uma realidade sua própria. O significado de
uma sentença falada, na qual as palavras individuais são ouvidas consecutivamente, é
formada por todas as palavras juntas: ela sai da seqüência temporal das palavras e
existe na mente como uma Gestalt autônoma. Podemos imaginar que ouvimos
melodias de modo similar, como se estivéssemos olhando uma figura sendo
desenhada num quadro, e como se cada linha, após ser traçada por uma mão fosse
apagada pela outra antes da próxima linha ser começada – apagada, isto é, do quadro
mas não da mente, na qual cada linha é armazenada, para que no fim após a última
linha ter sido apagada e nada restar para ser percebido, uma figura construída por
todas as partes juntas esteja presente na mente.
Tais analogia entre espaço e tempo são tão naturais, tão sedutoras, que elas
facilmente obscurecem a impossibilidade – até mesmo, o absurdo – da concepção na
qual estão baseadas. Para clarear a situação, vamos voltar para o processo elementar
do intervalo.
Até agora temos discutido somente intervalos entre notas que soam
sucessivamente, não simultaneamente como um acorde. A psicologia da Gestalt está
meramente sendo coerente quando falha em distinguir precisamente entre os dois
(isto é verdadeiro, de algum modo, para todas as outras teorias psicológicas da
música). Ela é também coerente em exibir uma certa predileção pelo acorde: de fato,
duas notas de diferentes alturas soando simultaneamente provê uma ilustração ainda
mais notável da característica quase-espacial do padrão tonal do que duas notas
soando em sucessão. Por esta razão, os Gestaltistas tratam a seqüência como o
acorde quebrado em duas notas sucessivas. Eles usam os termos “horizontal” e
“vertical” (derivado do modo como os símbolos são arranjados em nossa notação)
para designar a diferença entre o passo e o acorde, porque em seu ponto de vista esta
diferenciação não é essencial como aquela entre duas figuras no espaço geométrico.
Uma simples rotação de 90° é suficiente para tornar uma horizontal uma vertical – a
própria linha permanece a mesma de antes. De acordo com eles, toda a diferença
entre e vem disto: no acorde, a unidade da Gestalt é baseada na ligação
entre duas notas de fato presentes ao ouvido, enquanto no passo ela é baseada na
ligação entre uma nota de fato presente e outra presente somente como um eco tardio
ou uma recordação. Agora, isto pode ser verdadeiro para o intervalo visto como um
evento puramente acústico, mas a situação é muito diferente em um evento musical.
Aqui a diferença entre , uma seqüência de duas notas, e , um acorde, não
pode ser superestimada. O passo horizontal 1 – 5 é tudo menos uma dobradura para
84
Como para a tríade, deve ser primeiro repetido que em música não há tal coisa
como a tríade, não mais do que a nota ou a quinta. A música reconhece a tríade
somente como graus harmônicos, como tríades do I, II, III, etc. graus – como acordes
definidos cada um pela posição de sua fundamental no campo dinâmico, a qual o
relaciona ao campo dinâmico supra-ordinário. Em harmonia, o evento elementar não
é o acorde mas o passo acordal, como o passo da nota é para a melodia. Aqui,
também, é totalmente enganoso distinguir entre melodia como sendo a dimensão
horizontal e harmonia como sendo a vertical da música. A música conhece somente a
horizontal. Somente que a melodia é uma progressão tonal, um movimento tonal,
enquanto a harmonia é progressão acordal, movimento acordal. Ainda quando o
acorde individual tem um grande valor auditivo, por assim dizer, mais que a nota
individual, aqui, também, a peculiar audição musical é caracterizada pela direta
percepção de relações. Precisamos somente pensar nas tríades de I e V grau para
realizar como muita da diferença entre estados dinâmicos superam a identidade dos
estados acústicos, tanto quanto a audição é concernida.
Enquanto um símbolo, a tríade está situada fora do tempo, também fora do espaço –
ao menos não no sentido usual de totalidade do local onde todas as coisas estão
situadas – mas em uma forma de super-tempo, o qual os místicos antigos e modernos
chamam de “o momento de eterna duração”. Revertendo o dito platônico de que o
tempo é a imagem movente da enternidade imóvel, poderia se chamar a tríade de a
imagem eternamente imóvel do tempo em movimento.
Não somente com respeito ao “não ainda” mas também com respeito ao “não
há muito” é possível detectar uma diferença entre os dois tipos de melodia. Em um e
outro caso ouvimos uma melodia, notas como veículos de forças, cada nota
incompleta em si mesma, apontando para além de si mesma, ansiando ser completa.
Em ambos os casos, a audição é antecipatória, dirigida para a nota ainda não ouvida.
Agora, na melodia acordal, esta audição antecipatória é guiada pelo padrão tonal
prefigurado no acorde: o ouvido é em certo sentido dirigido pelo último, sua
antecipação como algo razoavelmente previsto. Cada nova nota serve meramente
para confirmar o que o ouvido havia antecipado: o centro de interesse e suspense
sobre como o padrão dado de antemão será satisfeito passo a passo, não sobre o quê
irá satisfazê-lo. Se ainda este interesse está ausente, o previsto torna-se certeza; os
sons não têm nada a confirmar. O que ouvimos é meramente “acompanhamento” ou
má melodia. Em contraste, em uma melodia não-acordal, isto é, em uma melodia pura
e simples, esta audição antecipatória penetra um vazio. Aqui nada é dado em
antecipação: aqui não há padrão, nenhum todo que possa guiar o ouvido. Neste caso,
a audição não é guiada; ela tem que encontrar seu caminho. Ela não está prevista nem
em seu como nem em seu o quê, somente quanto ao seu para quê. Cada nova nota é
tanto esperada quanto inesperada, cada uma é um evento, uma descoberta, uma
surpresa. Isto é verdade igualmente para a nota concludente: muitas coisas podem
ainda acontecer antes do fim; freqüentemente, de fato, surpresas ocorrem antes da
nota final ser alcançada, surpresas não somente para o ouvinte mas igualmente para o
compositor (um exemplo bem conhecido: as duas versões do Prelúdio n° 1 do Cravo
88
Bem Temperado). O padrão das notas é de fato construído passo a passo, tirado à
força do vazio; ele se descobre e encobre para o ouvido nota a nota. Estritamente
falando, não podemos ouvir tal padrão como uma totalidade, como fazemos com um
acorde desdobrado no tempo; podemos somente após tê-lo ouvido.
Pode-se notar, contudo, que somente em relação a um padrão ouvido deste tipo
penetra no vazio, não há nada dado para sua previsão; por outro lado, algo muito
importante – um sistema tonal completo – é dado a ele: em termos mecânicos, o
teclado com suas teclas brancas e pretas, e em termos musicais, um campo dinâmico,
uma ordem, uma lei. Mas a diferença entre os dois tipos de melodia não é meramente
qualitativo, entre as três ou quatro notas do acorde e as sete ou doze notas do sistema.
A diferença permanece fundamental. Na melodia acordal, o que é dado de antemão é
já um padrão; na outra, o caso mais geral, este não é um padrão, é um sistema, uma
lei: a possibilidade de um padrão, a matriz de todos os padrões possíveis. Tudo o
quanto é dado deste modo não dirigirá o ouvido para qualquer padrão específico. A
presciência do ouvido da lei que governa as energias tonais – seu conhecimento sobre
o que, manifestado por sua habilidade para identificar as qualidades dinâmicas das
notas é intimamente ligado como não-conhecimento, um mero conhecimento sobre o
para quê tanto quanto os padrões são afetados, e consequentemente com uma
urgência descobrirá o padrão. Limitada audivelmente ao sistema, sujeita
audivelmente à lei, a nota é ao mesmo tempo inteireza audível livre para um infinito
de padrões tonais possíveis.
enquanto suas duas direções, desde onde e para onde. Assim podemos entender como
as forças tonais podem ser ouvidas e os padrões tonais apreendidos. Os Gestaltistas
não podem compreender a estrutura musical salvo enquanto uma fusão extra-
temporal de passado, presente e futuro; somente pela evocação da recordação e da
antecipação podem eles combinar as partes sucessivamente ouvidas do padrão dentro
de um todo. Para eles a música deve ser como um fenômeno incompreensível, como
muito de uma ruptura de linhas para outro reino da percepção dos sentidos, como o
foi para os psicólogos acadêmicos do século dezenove.
Peças musicais têm sido compostas expressamente para prover exatamente essa
“sensação de um começo” que Valéry evoca. As improvisações de Beethoven pode
ser vistas como um exemplo característico. O mais fino exemplo, talvez, seja a
abertura Freischütz de Weber. A primeira nota soa, inconsciente de onde ela vem e
para onde ela está indo, mas ela tem um tipo de esforço em si, e em uma poderosa
arremetida para adiante encontra sua oitava. Encorajada por isto, ela se arrisca um
passo para trás, então um passo para adiante, então novamente apalpa cautelosamente
para trás e experimenta começar tudo outra vez – até o ponto em que o contrapólo é
descoberto. Este, também, tem sua oitava, com suas novas vizinhas ao lado dela;
novamente há um tatear para trás, uma parada, e então soa a mais pura tríade, a partir
da qual a mais pura melodia é desenvolvida. A música começa a nascer dentro de
outro mundo. Aqui a música escrita é autobiográfica: a nota, diferente e sempre não
mais que um elemento de um padrão, volta para dentro de si mesma, inquire sobre
sua própria natureza, buscando e encontrando sua própria resposta.
E agora a fisiologia. A discussão que se segue não lida com o estado presente
de nosso conhecimento a respeito dos processos orgânicos envolvidos na sensação
auditiva – processos de incrível complexidade. Ela somente se propõe a mostrar que
eles são hoje vistos de um novo ângulo, e que a mudança de perspectiva tem algo a
cerca da questão de como apreendemos as qualidades dinâmicas das notas.
“Eu ouço uma nota”. A maioria das pessoas interpreta esta afirmação como ela
a interpretava a cem anos atrás. A membrana do tímpano no ouvido é colocada a
vibrar por uma onda sonora, a vibração se propaga para o ouvido interno, e, depois
que é comunicada via nervos auditivos para o cérebro, produz uma sensação de som.
Nem a primeira ligação nem a última no encadeamento estão em questão aqui,
somente a intermediária. O que acontece entre a membrana do tímpano e o centro
cerebral? Em virtude da complexidade inacreditável do ouvido – em comparação com
o olho é como uma bicicleta para um automóvel – a questão envolve dificuldades
esmagadoras.
A resposta clássica foi dada por Helmholtz no seu On the Sensations of Tone
[Sobre as sensações das notas] e, fora de um estreito círculo de especialistas, ela se
mantém válida até os nossos dias. O ponto principal desta teoria é o seguinte: no mais
interno recesso do ouvido, dentro de uma passagem em forma de caracol, o labirinto
membranoso, uma membrana delicada esticadamente estendida está embebida em um
fluído. A membrana é composta por mais de dez mil fibras variando de 0,04 a 0,5
milímetros de comprimento. Ela se comunica com o mundo externo através de uma
janela minúscula, cuja placa elástica vibra em união com a membrana do tímpano.
Somente as fibras de um comprimento específico e de um grau específico de tensão
respondem a uma vibração específica propagada pelo canal auditivo: as fibras atuam
como as cordas de uma harpa ou piano com o pedal acionado. Cada fibra está
conectada com o cérebro por um nervo que, estimulado pela vibração em sua
terminação, produz um estado de excitação para o outro. Para cada nota de uma dada
altura (isto é, freqüência) assim corresponde uma fibra vibrante no ouvido interno,
um nervo atuando como condutor e um ponto específico no cérebro, e a excitação
deste ponto parece ser a “causa” da sensação auditiva. Os harmônicos que
normalmente acompanham toda nota similarmente tocam os processos orgânicos e
nervosos correspondentes às suas freqüências; mas os harmônicos são normalmente
muito fracos para produzir sensações auditivas por si próprios. Eles, contudo,
“colorem” a nota fundamental de várias maneiras (a nota de uma flauta, de um
trompete, e assim por diante). Quando muitas notas ressoam simultaneamente, as
fibras, nervos e células cerebrais correspondentes são ativadas simultaneamente, mas
cada uma independentemente das outras; é por isto que um ouvido treinado pode
facilmente analisar um acorde em seus componentes.
cérebro devem ser ativados para produzir a sensação de uma nota específica; de
acordo com a teoria do “telefone”, cada fibra, cada nervo e cada ponto no centro
auditivo cerebral podem produzir a sensação de cada nota. Qual nota particular será
ouvida, depende somente do número de impulsos nervosos (similar em freqüência às
vibrações do som) transmitidos para o cérebro.
Esta teoria também entra em conflito com os fatos. Experimentos provam que
os nervos auditivos podem receber e transmitir não mais que 1.000 ou 2.000 impulsos
por segundo, não os 5.000 ou 10.000 ou 15.000 impulsos correspondentes ao número
de freqüência das notas agudas. Tentativas têm sido feitas para rodear esta
dificuldade, por admitir que os impulsos elétricos são propagados por meio de
complicadas ligações, sobre feixes de filamentos nervosos, e também pela
combinação da teoria do “telefone” com a teoria da ressonância, a primeira
respondendo pela percepção das notas graves, a segunda pelas notas altas. A
discussão está ainda em curso.
Esta resposta pode ser suficiente no que concerne ao padrão visual; ela não
alcança o problema dos padrões das notas musicais. Voltado ao exemplo citado
e . Em um padrão esta
nota tem a qualidade dinâmica 4, na outra a qualidade dinâmica 7. É esta diferença
entre as duas qualidades dinâmicas, o fato de que 7 aponta em direção a 8, e 4 em
direção a 3, o que considera a aparente diferença de altura. Ver as linhas
mensuravelmente iguais como iguais em um caso e desiguais em outro, é igualado
por ouvir notas de igual freqüência como diferindo em altura. E ainda não é verdade
que a nota é para o ouvido o que a linha é para o olho, por que na qualidade dinâmica
nós podemos ouvir para o que a nota se esforça. A fim de compreender
completamente esta diferença, imagine que podemos ver a linha aparentemente mais
curta tentando tornar-se maior, e a outra linha tentando tornar-se menor. Somente se
pudéssemos ver isto, poderia ser exata a analogia com a qualidade dinâmica das
notas. Nossa surpresa diante de tal fenômeno no mundo visível expressa o que
96
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
8
Som e Símbolo: Música e o Mundo Exterior, capítulos 7 – 10.
98
conseqüências para uma definição de audição. Desde que a música existe apenas e
inteiramente para ser ouvida, devo experimentar o tipo de movimento que ela é ao
ouvi-la. Como entendemos o tipo de audição que pode perceber progressões de notas
como movimento?
O que acontece nesta melodia pode ser representado pelo seguinte diagrama:
e significado, o que faz dela uma melodia, esta melodia em particular. O diagrama
traça o desenvolvimento desta melodia em seu próprio caminho. Ele demonstra como
um campo dinâmico é produzido; como pólo e contra-pólo são anunciados; como as
notas primeiro cedem ao puxão das forças por um curto trecho, então resistem a ele,
correm contra ele, e ao final rendem-se a ele; como a primeira linha melódica
separadamente e então ambas as linhas combinadas estão determinadas pela tensão
fundamental 1 – 5 – 1; e como a segunda metade de cada linha é construída sobre a
tensão não-resolvida da nota 2, e então sustentam juntas e são carregadas por ela.
Este e não outra coisa é o que ouvirmos, o que devemos ouvir, quando ouvimos as
notas como melodia, pois somente isto e nada mais torna estas notas uma melodia.
Se ouvir uma melodia é ouvir movimento, deve ser esta alternância significativa de
estados dinâmicos que é ouvida como movimento e entendida somente pelo ouvido,
sem o recurso das funções intelectuais. Recordamo-nos de uma linha em um poema
notável sobre o tema da música, “Movimento significativo areja de frescor minha
razão com maravilhamento”9.
qual a melodia nada sabe, por assim dizer, até que ela tenha sido completada e por
meio da qual ela realmente cria a si mesma. É deste modo que ela cria a si mesma
passo a passo, arrancando sua forma do vazio; a lei que a governa não é dada em
avanço; a melodia deve descobri-la passo a passo, como se ela se revelasse
gradualmente; uma melódica pode também perder seu caminho e falhar em descobrir
a lei. Neste caso, sua característica de necessidade é sempre reconhecida post factum.
Cada passo, conforme ele está sendo feito, é livre; depois de feito, ele é necessário.
Liberdade em prospecção, necessidade em retrospecto: esta dualidade é característica
do tipo de lei que governa o movimento tonal. O mesmo tipo de lei – liberdade em
prospecção, necessidade em retrospecto – é acima de tudo característica dos
processos vivos. O que é distinto na música é o fato de que nela esta lei que governa a
vida (em um sentido superior) torna-se audível.
escolha, ele não é determinado para mim: “eu” determino o movimento, o qual, por
esta razão, é o que “eu” causo ele ser. Assim, o movimento não é indeterminado, mas
auto-determinado – determinado somente desde o ponto de vista do “ser”, embora
indeterminado desde “outros” pontos de vista. Ao mesmo tempo, “indeterminado”
aqui denota não “menos” mas “mais” determinado. A determinação é plena aqui, mas
é somente acessível desde o lado de dentro.
Para colocar ordem na confusão que prevalece sobre este tema, examinaremos
em mais detalhe um dos argumentos que Eduard Hanslick coloca em evidência no
seu bem conhecido tratado Do Belo Musical, o clássico ataque contra a teoria
emotiva da música. Ele rejeita o conceito da música Omo “a expressão de
sentimentos” em favor de seu próprio conceito de “padrões sonoros dinâmicos”, o
qual, ele declara enfaticamente, são totalmente não relacionados aos movimentos
105
alguém não “tem” mas que todos “são”, não algo que é originalmente atado a um ser,
preferivelmente, algo ao que o self se une, algo que é “tudo”, como diz Goethe.
“Sentimento é tudo”: se a palavra usada aqui se refere a qualquer um sentimento, o
singular permanece para o plural “sentimentos”, esta sentença não expressará uma
verdade mas uma declaração de sentimentalidade ilimitada. Que a emoção se torna
audível na música é verdade somente neste sentido do termo “sentimento” – uma
pura espontaneidade, um movimento não-material, limitado às notas, não a um “eu”.
A emoção audível em música é aquilo das notas que se comunica com o ouvinte.
Susanne Langer
“nosso mito da vida interior”: estas frases implicam que “sentimento”, visto como um
estado da mente, e a “vida interior”, vista como uma realidade psicológica, são
considerados como a matéria prima da moldagem musical, como o conteúdo sobre o
qual as notas pensam e falam. No curso de nossa discussão precedente chegamos a
uma conclusão diferente: as notas não são algo primeiramente exterior relacionadas
com a vida interior; o relacionamento entre externo e interno está totalmente
embutido na própria nota. A vida interior que a música revela além das notas
exteriores é a vida interior das próprias notas, não aquela de uma psique. Ou se
queremos dizer da psique, teria que ser da psique das notas, de algo psicologicamente
exterior. A nota musical é simbólica não porque ela nos ajuda a perceber algo que é
em princípio imperceptível, mas primeiramente porque seu puro dinamismo é
diretamente apreendido pelo ouvido. No que possa ser chamado “expressão”, não é a
expressão de um sentimento, mas da própria qualidade dinâmica da nota. Um
exemplo concreto tornará isto claro. Se, tomando a abordagem psicológica,
perguntamos sobre o que a ária de Gluck discutida acima diz respeito, qual idéia ela
expressa, soará bastante plausível a resposta: os sentimentos de Orfeu, seu estado
psíquico. Se o mesmo é perguntado com relação ao Coral Aleluia ou qualquer obra
instrumental, a resposta não pode ser muito diferente, exceto que desta vez o estado
psíquico não é aquele de um indivíduo específico mas do homem em geral. Quão
diferente é o quadro resultante de nossa análise da melodia coral. Aqui, também, a
questão é do que falam as notas, de que tema elas tratam, o que lhes dá significado.
Contudo, em parte alguma nossas considerações se referem a qualquer coisa psíquica,
a sentimentos, a estados de mente; falamos somente de forças das notas e suas
atividades, o caminho das notas são relacionados a forças, e o movimento no qual sua
vida se manifesta. A questão sobre o significado destas notas foi totalmente
respondida pelo diagrama que mostrava a rede de suas inter-relações dinâmicas. A
situação é somente superficialmente diferente na ária de Orfeu: como aquela do coral,
uma expressão de relacionamentos dinâmicos, movimento puro; e somente porque as
notas são tudo que pode ser considerado como a expressão do movimento psíquico, o
auto-sentimento de um “ser”. É claro, música é morfologia – uma morfologia de
forças puras. Pode também ser chamada de o mito de nossa vida interior, mas não o
mito de uma alma ou da psique em um sentido amplo; ou, se ela é o mito de uma
alma, é o mito da alma do mundo, o mito da vida interior do mundo.
Nossa proposta neste capítulo tem sido compreender como o movimento tonal
é percebido. Foi necessário, primeiro, formar a idéia mais clara possível do que é
108
Existe, no entanto, uma coisa tal como a música, movimento tonal, movimento
vivente audível. Na música, experimento um movimento animado que não é nem
meu próprio nem de ninguém mais, e o qual eu percebo diretamente, mais
precisamente do que através do intermediário de um corpo cujo movimento quereria
ser – puro auto-movimento, não limitado por nenhum corpo, por nenhum “ser”. O ato
de perceber este movimento deveria ser ele mesmo um movimento. O que o olho não
pode alcançar – a saber, a percepção direta do movimento animado – pode ser
alcançado pelo ouvido. No ato da audição, realidades viventes vêm em contato direto;
ouvindo notas, eu me movo com elas; eu experimento seu movimento como meu
próprio movimento. Ouvir notas em movimento é mover-se junto com elas.
Assim, não somente as notas que eu ouço estão “em movimento”; ouvi-las,
também, está “em movimento” [“in motion”]. Não somente o movimento que ouço,
mas também o próprio ouvir é “emoção” [“emotion”]. O que está errado com a
questão usual sobre o compartilhar respectivo de sentimento e intelecto na
experiência musical deveria agora estar muito claro. O intelecto – a faculdade de
abstração e conceitualização – não compartilha o que quer que seja na estrutura da
experiência musical; o intelecto não entra no quadro senão posteriormente, como uma
reflexão sobre a música. Similarmente, o “sentimento” no sentido com que o termo é
usado neste contexto, como o singular de “sentimentos”, entra no quadro somente
mais tarde. A música é experimentada somente por ser ouvida. O ato de ouvir é ele
110
abertas através das quais os dois podem se aproximar um do outro. A velha definição
da visão como um encontro entre uma luz interior emanente do olho e uma luz
exterior que se move em direção ao olho é qualquer coisa menos “primitiva”, ainda
embora ela satisfaça os mais altos requisitos mentais, tem se tornado estranha a nós.
Preferimos considerar o olho como o protótipo de todos os receptores de sinal. A pele
humana pode ser considerada como o protótipo de um órgão do sentido combinando
a função de janela bloqueadora e porta aberta, a qual separa o organismo de seu
ambiente e ao mesmo tempo o expõe a ele. O abrigo de toda a coberta natural
protetiva da pele, a qual distingue o homem do animal ao menos tão basicamente
quanto a postura ereta do homem, pode muito bem distinguir o ponto de mutação na
história evolucionária onde a auto-preservação como a meta mais alta de um ser vivo
tornou-se subordinada à auto-afirmação no encontro com o mundo, ao conhecimento
do ser e do mundo enquanto a meta mais alta de um ser espiritual.
O ouvido tem muito mais em comum com a pele do que com o olho: isto por
que, em pessoas surdas, a pele assume o comando da função do ouvido enquanto
órgão da sensação “musical”, não o olho. Nenhuma representação gráfica dos sons na
forma de linhas e curvas na tela do osciloscópio pode ser vir como substituta para as
sensações sonoras. Em contraste, quando uma área da pele sensível a vibrações sutis
é exposta a ondas sonoras, tem-se sensações que, embora indefinidas, correspondem
às sensações sonoras. Exatamente como a pele está exposta ao ar circundante, assim
também o ouvido está exposto ao som. Exatamente como o calor interno e o calor
externo, e o frio interno e externo, encontram-se na pele, assim o movimento vivente
interno e externo encontra-se no ouvido. As cores não nos colorem do mesmo modo
como o calor nos aquece, mas as notas nos “notam” e a tensão tonal nos “tensiona”.
As ondas sonoras sendo transformadas em sensações sonoras: é assim que ouvimos
os ruídos. Ouvir música é algo mais. Tal como uma mão infinitamente sensível sobre
uma membrana tensamente estirada, o ouvido se situa sobre a tensionada superfície
das notas – desta vez sensível somente à tensão não-física, não a vibrações físicas. O
ouvido como uma mão que a vida interior oferece à vida exterior, com a expectativa
de fazer contato com ela e sabendo-se estar espiritualmente viva no contato – uma
mão espiritual, a mão de minha interioridade. Esta mão não transforma: ela acena,
recebe, recepciona, reconhece. A espécie de audição que se move com as notas
arrasta-me em seu movimento; por serem ouvidos, processos não-materiais viventes
caracterizados por estados de tensão tornam-se algo percebido, algo conhecido.
Agora, o que em “mim” ouve música? Com respeito a que este “eu” difere do
“eu” na sentença “eu ouço uma afirmação falada” ou “eu vejo uma luz”? Quando eu
ouço música, meu ouvido não é um órgão do qual eu faço uso para uma proposta
específica, mais apropriadamente ao contrário – o órgão faz uso de mim. O ouvido
que percebe a música faz uma demanda sobre me, toma uma ocupação de mim, pode
funcionar somente se é ele próprio um “eu”, por assim dizer, capaz de movimento
vivente. A situação é adequadamente expressa pela frase “Eu sou todo ouvidos”.
Usamos a mesma frase para indicar que estamos ouvindo, ou dispostos a ouvir,
112
atentamente, uma afirmação falada; mas fazemos isto porque pretendemos reagir ou
explicitamente, por lhe responder a ela, ou implicitamente, por armazená-la em nossa
memória. O ouvinte de música não tem tão intenção; sua atitude não é aquela do
jogador de bola esperando pela bola a fim de arremessá-la de volta ou ainda
meramente apanhá-la, mas aquela de um nadador que se permite ser carregado pela
corrente ou pelas ondas enquanto ele nada. Podemos dizer também, “Eu sou todo
olhos”, e então nossa atitude é aquela do jogador de bola, expectando, observando,
contragolpeando. A frase pode significar também que contemplamos o que vemos do
mesmo modo como ouvimos música, isto é, quando contemplamos uma obra de arte
e nos identificamos com o que vemos. Podemos ouvir afirmações faladas do mesmo
modo, como quando ouvimos o som da voz do orador mais do que o que ele diz – não
criticamente, com a intenção de fazer inferências com respeito ao seu caráter, mas
sem qualquer intenção, puramente fora da simpatia ou do amor. Ao invés, é possível
ouvir música da maneira que ouvimos afirmações faladas, ouvindo, expectando,
intentando replicar, como alguém ouviria a sinais. Neste caso, o ouvido me dá
informação a respeito de um evento em meu ambiente. O ouvido é “meu” ouvido; ele
me comunica algo – “eu”, “ouvido” e “algo” estão claramente distinguidos um do
outro. Mas no momento em que começo a ouvir música ao invés de sinais, a situação
muda10. A relação entre “eu” e “ouvido” é revertida: agora o ouvido me possui e eu
estou possuído pelo ouvido, o qual por sua vez está possuído pela música, torna-se o
ouvido próprio das notas. Neste ponto, a linguagem, estando firmemente amarrada à
estrutura sujeito-objeto-predicado, começa a nos falhar. O “eu” não mais é algo que
“faz” algo” (isto é, ouve) e “obtém” o resultado daquilo que faz (as sensações das
notas); agora, denota somente um dos três aspectos (os outros dois são “ouvir” e
“notas”) que constituem o evento vivente. Aqui, tendo reconhecido que ouvir música
é compartilhar ativamente na vida de uma realidade vivente, somos inevitavelmente
confrontados com o difícil problema da qualidade artística. Toda nota em uma
estrutura musical é, e é ouvida como, o veículo de uma qualidade dinâmica,; toda
seqüência musical de notas é, e é ouvida como, movimento vivente. A vida,
especialmente a vida humana, tem uma estrutura hierárquica; suas manifestações são
sempre caracterizadas de acordo com qualidades e graus. São diferenciadas dentro de
ordens fundamentais de autêntico e inautêntico, nobre e vulgar; são ordenadas de
acordo com estágios de desenvolvimento, alinhando-se desde o começo simples à
maturidade final. Desde que a música é ouvida como algo vivo, também deverá ser
audivelmente caracterizada de acordo com diferenças em qualidade e grau, e o
ouvido humano deve ser capaz, unicamente por si mesmo, de distinguir entre
autêntico e inautêntico, nobre e vulgar, maduro e imaturo, entre obras musicais
desenvolvidas de modo rudimentar e elevado. Que fazemos isso, todos nós sabemos:
todos nós distinguimos entre obras de arte e imitações inferiores, entre música
popular e música artística. O critério que aplicamos ao fazer tais distinções podem ser
difíceis de formular, a princípio não podem ser provados; uma concordância
definitiva a respeito deles pode nunca ser alcançada; amplas divergências de juízo em
10
Efeitos marcantes são alcançados quando um sinal musical torna-se música pura (vide Fidelio de Beethoven) ou
quando sinais são fundidos com sons musicais, como no terceiro ato de Tristão e Isolda.
113
casos individuais pode sempre ser possível; tudo isto de nenhum modo deprecia a
validade das distinções, as quais são irreversíveis e independentes de opinião
individual.
Umas poucas palavras não seriam inoportunas neste ponto enquanto para por
que, em um capítulo dedicado ao movimento tonal, não foi feita menção ao ritmo,
normalmente o primeiro tópico discutido com relação a isto. A resposta é simples:
aqui estivemos interessados com as espécies de movimento perceptíveis somente ao
ouvido. O ritmo, notoriamente, apela aos sentidos do tato e da visão também; e, até a
audição ser interessada, muitos outros maios que as notas em uma estrutura musical
podem ser usados para estimular as sensações rítmicas tão efetivamente quanto, ou
ainda mais efetivamente do que, as notas musicais em uma estrutura musical: meros
ruídos – fenômenos não-musicais – ou notas usadas tanto como sons acústicos quanto
como sinais. Além disso, a experiência do ritmo é intimamente limítrofe às sensações
motoras dentro do corpo do ouvinte que estimula movimentos correspondentes, se de
fato ou meramente intencionados, por disparar respostas musculares as quais são
freqüentemente consideradas o verdadeiro cerne da experiência rítmica. Separar o
que é especificamente musical dos processos motores associados com nossa
experiência do ritmo requereria detalhes de análise, tanto quanto estabelecer o que
realmente ela é: a experiência do movimento do tempo. Fizemos isso no Volume 1
deste trabalho. Aqui estamos interessados em salientar o fato de que o movimento na
música pode ser considerado com base unicamente nas relações audíveis entre notas
sucessivas, uma espécie de movimento peculiar da música e percebido somente pela
audição.
Poderia ser feita a objeção de que estamos dedicando muito espaço para o que,
afinal de contas, é um processo um tanto simples, facilmente compreensível. Mas
estamos face a face com a forma mais simples de um processo que em seu
enriquecimento final resulta nas maiores obras primas da música.
Claramente, este também deve ser interpretado como uma espécie de volteio,
como a expansão de uma progressão ainda mais direta, como um primeiro avanço
para a liberdade, que vai além da lei elementar expressa por _______, 1 – 5 – 4 – 3 –
2 –1. Uma terceira camada estrutural vem à vista: descobrimos que há um plano
intermediário, o qual serve como ponte entre o plano de fundo e o primeiro plano.
Este último parece agora ser dominado, determinado e dependente do plano de fundo
117
Como pode ser visto, este quadro prove a chave para a compreensão da frase
final da melodia. A pequena frase resume direta e concisamente o significado total da
melodia representada pelo plano de fundo. É característica desta espécie que nos
capacite a reconhecer a genuinidade de uma melodia, o fato dela ser algo crescido,
não fabricado.
Diagramas deste tipo – duas camadas, distância mínima entre primeiro plano e
plano de fundo – são característicos da música popular. A música em estado natural
exibe a estrutura mais simples em profundidade. A melodia de “Morte, a Ceifadora”
com três camadas, é algo excepcional. Mas mesmo esta fina canção popular está
muito perto da complexidade da música artística, como logo se tornará evidente.
Estas reflexões vêm seguindo um padrão desde há muito tempo, o qual foi
primeiro descoberto e explorado por Heinrich Schenker, um grande e verdadeiro
visionário e pensador brilhante. Seu trabalho tem desfrutado de um reconhecimento
firmemente crescente, mas seu significado sensacional para a teoria da música e da
arte em geral, ainda não foi suficientemente apreciado. Mesmo uma exposição
aproximadamente completa de sua teoria requereria minuciosa familiaridade com
todas as ramificações da teoria musical tradicional, e estaria fora do escopo deste
livro. É uma construção que em sua ousadia e complexidade iguala as teorias da alta
matemática. Tentaremos não mais do que extrair seu cerne, na medida em que serve
como a fundação e guia para as presentes reflexões.
“Aqui apresento uma nova teoria, inerente às obras dos grandes mestres, que é
o segredo de seu nascimento e desenvolvimento, a teoria da estrutura orgânica”.
Schenker certamente estava interessado na prática, também; sua teoria foi pretendida
para intérpretes tão quanto para compositores. Mas sua concepção de prática está
firmemente enraizada na teoria, teoria no verdadeiro sentido: um esforço para
compreender a música artística em sua essência, para responder a questão central
119
sobre o que torna uma obra-prima o que ela é. Por esta razão não é o material das
notas mas as obras acabadas que servem como ponto de partida para sua teoria, a qual
não nos ensina como construir estruturas menores ou maiores com um dado material
de acordo com as regras, mas inquire sobre as forças e leis que tornam possível o
trabalho acabado como ele é de realmente ouvido. Não se deve assumir, é claro, que
os compositores devem estar familiarizados com a teoria para serem capazes de criar
obras musicais: a teoria decorre da experiência das obras; as obras não decorrem da
teoria.
Uma estrutura fundamental deste tipo não deve ser confundida para uma peça
musical primitiva, por exemplo, ou um “átomo” de música. Enquanto uma verdade,
ela não parece dar a perceber como a música é, ou seja, é ouvida: ela apresenta para o
olho da mente. É a “idéia”, no mesmo sentido do Urphänomen de Goethe, a forma
primordial, a lei fundamental governando a organização das coisas vivas, a qual lhes
dá significado mas não tem nenhuma existência tangível sua própria. Todas as coisas
vivas existem pela graça de sua forma primordial, mas nenhuma coisa em particular
é esta forma em si. Como uma realidade audível, como uma peça de música, uma
estrutura fundamental é nada, um pedaço de trivialidade. Existe somente como uma
potencialidade, como um núcleo dinâmico, a encarnação de incontáveis padrões
possíveis.
Toda obra musical, todo padrão tonal acabado, desenvolve-se desde uma
semente que vive escondida e contudo se revela no padrão, que constantemente
deixa-se ficar por detrás e ao mesmo tempo carrega-a para a frente. Embora a
“semente” – a forma primordial – esteja inteiramente dissolvida no padrão, ela é a lei
fundamental que governa a organização do padrão. Uma e mesma lei determina a
forma e o lugar de cada uma de suas partes e o modo como elas se entretecem juntas
120
Para evitar possíveis erros de interpretação os quais podem ser sugeridos pelo
diagrama, é preciso dizer enfaticamente que o primeiro plano, o plano intermediário e
o plano de fundo não formam uma sucessão no tempo. As camadas estruturais
individuais não representam assim muitos estágios no processo de criação de uma
melodia. Esta melodia nunca existiu como plano de fundo ou plano intermediário,
nem assim qualquer música. A música existe somente de um modo, como primeiro
plano. Assim como a forma primordial, o Urphänomen, é “idéia”, assim são as
formas transicionais do plano intermediário; unicamente o padrão do primeiro plano é
“realidade”. Isto é verdade não somente para o trabalho enquanto o ouvimos ou
lemos por meio de sua partitura, mas também para a idéia musical na mente do
compositor, não importa se esta surja num instante a ele como forma acabada ou se
ela a desenvolve passo a passo. Precisamente onde os esboços de um compositor são
o testemunho do modo de seu trabalho ser desenvolvido gradualmente, encontramos
que o processo não tem nada a ver com a estrutura em profundidade da obra. Não
deveríamos imaginar que o compositor trabalha seu caminho passo a passo desde o
plano de fundo, via o plano intermediário, até o primeiro plano: o que ele registra no
papel é sempre o primeiro plano; os estágios preliminares não são planos
intermediários, mas infinitos primeiros planos. Assim, o padrão tonal é derivado da
forma primordial idealmente no plano de fundo, não em fato real; quando falamos do
trabalho como ele é ouvido, nos referimos somente ao primeiro plano; tudo mais se
refere ao significado expresso na obra; as camadas estruturais devem ser entendidas
como uma seqüência lógica e significativa, não como uma seqüência temporal e
genética. Um exame mais esmiuçado do diagrama demonstrará imediatamente que
um aparecimento real do primeiro plano desde as camadas primordiais não está
representado. Os signos gráficos usados mostram que o plano de fundo e o plano
intermediário, por um lado, e o primeiro plano, por outro lado, pertencem a diferentes
campos da existência. A música existe como padrão temporal, e pode existir somente
na dimensão do tempo. Somente os símbolos notacionais do primeiro plano
representam valores de tempo; os signos usados nas outras camadas carecem de
qualquer significado temporal, indicando assim que eles pertencem ao campo das
idéias. Imagine que você soluciona o seguinte problema: dados os padrões do plano
de fundo e do plano intermediário da “Ode à alegria”, encontre o tema. Você
perceberá imediatamente que mesmo o último padrão do plano intermediário está tão
afastado do tema a ser encontrado que não oferece qualquer indício que seja. É como
123
Pensamento Musical
Introdução
A terceira parte deste livro pretende demonstrar que esta afirmativa se ajusta
aos fatos da experiência musical. E se tivermos êxito, seremos obrigados pela
evidência musical a revisar um grande número de idéias a respeito da natureza do
126
A música é a única das artes que é oficialmente, por assim dizer, baseada sobre
uma teoria. Ao contrário do pintor ou poeta aspirante, o compositor deve começar por
se familiarizar completamente com a teoria de sua arte. É claro, o que é chamado
teoria musical na realidade equivale à prática em manipular os materiais da música,
ainda assim é significativo que esta prática seja chamada de “teoria”: teoria, afinal de
contas, tem algo a ver com o pensamento. Embora o estudante da teoria está
primeiramente aprendendo uma suposta habilidade, ele não terá adquirido a
habilidade antes de ter adquirido uma considerável soma de conhecimento. Isto é o
inverso da real prática de qualquer outra arte: lá o conhecimento segue a habilidade.
Nem é dado ao estudante de música praticar sobre seus trabalhos – pelo menos, isto é,
na medida em que diga respeito às duas disciplinas tradicionais, o contraponto e a
harmonia, as quais ainda hoje são bastante freqüentemente o cerne do ensinamento.
Ao estudante é dado, mais apropriadamente, exemplos altamente artificiais da teoria
musical. Os problemas que são colocados para ele resolver são uma espécie de
música abstrata. É bem conhecido que nenhum talento musical especial é requerido
para adquirir considerável proficiência nestas disciplinas; realmente, com treino
adequado um surdo-mudo poderia resolver a maioria dos problemas. O fato que ele
está operando com notas é de modo algum essencial; ele poderia operar tão bem com
pontos colocados em conjuntos de intervalos: estritamente falando, ele discursa sobre
problemas topológicos, não musicais. Isto é por que, como tem sido descoberto
recentemente, computadores eletrônicos não se saem tão mal quando lhe são dados
testes de teoria musical. Não vai aqui qualquer crítica à teoria musical em nenhum
sentido, meramente descrevemos a situação que o compositor faceia quando ele
130
seu conhecimento, habilidade e experiência musical, como calcular como ela deveria
continuar: você não chegará muito longe. A música é totalmente única, tanto uma-de-
uma-espécie que nenhuma regra geral, nenhuma experiência de outra música, será da
mais leve ajuda para você na dificuldade de encontrar o próximo passo. Claro,
nenhuma ignorância concederia alguma vez tal inspiração. Ela pressupõe maestria da
mais alta ordem. Cada passo é impregnado por um conhecimento e uma habilidade
tão profundamente assimilados que eles pode ser esquecidos para deixar a outra fonte
fluir desimpedida. Um homem menor teria que se render após os primeiros passos.
Há, então, uma coisa tal na música em que tudo seja tema e nada mais. O
oposto também é verdadeiro? Há uma coisa tal na música que seja nada que não
“elaboração”, música sem um tema? Uma pessoa inclinação é dizer sim. O que
haveria para ser elaborado onde não existe tema em primeiro lugar? E exatamente
onde entra a inspiração? Música sem um tema, poderia alguém presumir, seria
música puramente planejada, alguma espécie de exercício quando muito, não arte.
Contudo, somente aqueles cuja experiência musical é confinada àquela dos séculos
dezoito e dezenove poderiam plausivelmente ter esta atitude. O que nos referimos
como sendo o tema – isto é, um padrão tonal expressivo, auto-contido capaz de portar
um significado, sem referência a qualquer coisa mais – é um feito muito recente (e
não necessariamente muito permanente) na música ocidental. Este não faz seu
aparecimento antes do século dezessete, em conexão com o desenvolvimento da
música instrumental pura, e na música de nosso próprio século ele parece estar
desaparecendo. O todo da época da grande polifonia, do século quatorze ao dezessete,
é, neste sentido, música sem um tema; nossa distinção familiar entre tema e
elaboração é um tanto sem sentido onde diz respeito a esta música. Ouçamos alguma
obra realmente longa daquele período como o Great Service de William Byrd, o qual
tem a duração aproximada de uma hora: é um fluir poderoso, irresistível e uniforme
da canção, em cujo curso inteiro não emerge em momento algum um detalhe
agudamente definido, nada que poderíamos chamar de um tema. Ou tomemos o
moteto em quatro vozes Super flumina Babilonis de Palestrina. Esta é música tão
comovente e bela como é possível encontrar, mas o que ela contém a modo de
material temático? Uma curta frase melódica domina cada uma das cinco partes nas
quais a obra está dividida, como o salmo no qual ele é baseado.
Considerados em si mesmos, estes são arranjos triviais de notas os quais
bordejam muito de perto o amorfo. Não ocorreria a ninguém chamá-los de “temas”
em nosso sentido, nem ainda falar da fonte provável como sendo a “inspiração”.
Ninguém precisaria esperar algum momento especialmente privilegiado para produzir
algo como isto; tudo o que você tem a fazer é anotá-la, como qualquer um pode fazer
que ouça atentamente às palavras, repetindo-as para si mesmo com entendimento,
encontrando as alturas e o ritmo apropriados para elas. A melodia de Palestrina
parece ser pouco mais do que um dizer as palavras nas notas. Somente na terceira
frase com suas duas quartas ascendentes Mi – Sol – Lá, Sol – Dó surge algo acima do
nível do movimento simples a modo de passo, junto com as palavras, o qual neste
ponto faz o coração do ouvinte bater exatamente uma pequena aceleração, “quando
132
nos relembramos de Sião”. Mas mesmo se algo como um “tema” aparece aqui,
nenhuma noção de inspiração deveria ser evocada para responder por ele. É claro,
muitos dos temas das obras instrumentais clássicas parecem também à primeira vista
bastante ordinários, não especialmente significativos, mas o que é feito com estes
temas ou arranjado com eles no curso da obra é tudo o que importa, revelando
gradualmente todos os tipos de forças escondidas e significados dificilmente
suspeitados na aparência primeira do tema. Em Palestrina, alguma coisa que
poderíamos chamar de tema permanece ao final exatamente o que ele era no começo,
um mero veículo. A verdade musical está além onde estão transpirando sobre outro
plano inteiramente – onde os fios são tecidos, onde as texturas são reveladas. A
característica única e extraordinária da obra, o gênio criador, e a natureza inspirada de
sua criação têm que ser procurada no “tratamento”, no que é feito com ou escrito do
que é dado: a própria habilidade seria inspirada. Não sem razão Palestrina foi
celebrado após sua morte como grande conhecedor. Defrontado com tal evidência
musical, não somente nossa distinção entre tema e elaboração mas todo o sentido de
uma linha nítida a ser desenhado entre duas fontes criativas separadas – o tema como
o trabalho da inspiração, a elaboração como o trabalho do intelecto – de repente
parecem terrivelmente ingênuos.
Talvez pudesse ser argumentado que a música não-temática pertence a um
estágio primordial na história da música, antes do som musical ter se emancipado da
palavra; que enquanto a música era composta de palavras, esta última realizava o
trabalho de nos dizer o que as notas significavam, e que somente em um estágio
posterior da história da música, na música puramente instrumental, o próprio tema
musical assumiu o comando deste trabalho e começou a ser expressivo de seu assunto
em si mesmo. De acordo com isto, a divisão entre tema e tratamento e a distinção
correspondente entre inspiração e técnica marcaria o estágio mais alto do
desenvolvimento musical. Afinal de contas, como mencionado antes, o “tema” em
nosso sentido não faz sua aparição antes do advento da música puramente
instrumental. Numa investigação mais cuidados, no entanto, encontramos que mesmo
a música puramente instrumental não está necessariamente ligada a um tema; existem
muitas obras instrumentais nas quais um tema tem um papel somente em uma parte
mínima ou ainda nenhum lugar de todo, e isto certamente não é sentido como uma
deficiência, menos ainda como uma deficiência de inspiração. Estas obras, também,
como aquelas mencionadas acima, que parecem consistir de nada que não
“inspiração” são a glória dos maiores mestres: os encontros extremos. Em todo caso,
a música não-temática é um princípio possível. A afirmação de que a música tem
duas fontes, inspiração e intelecto, pode ser conciliada com esta possibilidade? Como
entendermos o fato de que existem obras musicais da mais elevada qualidade artística
as quais o intelecto não pode criar desajudado, mesmo nenhuma parte da qual pode
ser atribuída à assim chamada inspiração?
Esta e questões relacionadas podem ser lidadas com sensibilidade somente
através da análise cuidadosa das obras-primas musicais. Para seguir tal análise
devemos impor um certo esforço ao leitor; contudo, nenhum conhecimento técnico
133
ou meticulosa familiaridade com as obras é pressuposta nesta parte (tal como seria
capaz a ele ouvir mentalmente o que ele vê na partitura). Desde que a música é aqui
tratada primeiramente como um fenômeno do movimento, termos técnicos podem ser
largamente dispensados; uma vista da partitura, vista como o registro visível do
movimento audível, deverá dar uma idéia suficientemente clara da matéria presente.
Não há tal coisa como um contorno nítido, uma distinção branco no preto a ser
delineada, para nos dizer em todo caso se estamos lidando com um tema ou não. Não
há muitas formas de transição. Na maioria dos casos, contudo, um tema é
instantaneamente reconhecido como tal, a saber, como um padrão tonal expressivo,
significativo em si próprio, como parte de um todo mesmo ele próprio com todas os
traços característicos de um todo – um todo orgânico, algo mais do que realmente um
pedaço de matéria prima. Pensemos nas fugas de Bach. Afinal de contas, por
definição uma fuga é um modo específico de tratar um tema, e o tema está sempre
presente perfeitamente claro ao começo em uma única voz. Os prelúdios às fugas de
Bach são outra coisa novamente. A grande liberdade de tratamento que nos prepara
para a “coisa real”, para a fuga que se segue, nos deixa incertos quanto ao que os
prelúdios de fato se referem – na verdade, se eles se referem a qualquer coisa de todo.
Alguns poucos prelúdios do Cravo Bem Temperado ilustrarão a transição desde a
presença até a ausência de um tema.
_________ com seu reverso ____________. (Aqueles que têm algum conhecimento
de harmonia perceberão como esta última forma reproduz o padrão sonoro da
cadência convencional, _______________.)
Neste prelúdio, então, a distinção entre “tema” e “elaboração” pode ser
percebida facilmente, e a hipótese de que a música tem duas fontes – o tema se
originando na inspiração, e a elaboração no conhecimento técnico – parece conferir
com a experiência à mão.
Não importa o quão atentamente ouvimos, não podemos descobrir nada nestes
compassos que pudesse apropriadamente ser chamado de um tema, ou atribuído à
“inspiração”. Seriam estes compassos, talvez, meramente introdutórios, uma espécie
de prelúdio ao prelúdio, o verdadeiro sujeito aparecendo somente depois? Não, tudo o
135
que está para vir está prefigurado nestas notas de abertura. É impossível discernir
uma melodia escondida, do mesmo modo como foi possível no Prelúdio em Dó
maior. Aqui Bach não esperou pela inspiração, não perturbou qualquer força superior
por um “tema” elaboração do qual ajudou-o a completar a peça. Além disso, ela não
oferece praticamente oportunidade para demonstrar qualquer conhecimento especial
de composição. Então devemos concluir que é impossível responder pela produção de
obras musical como envolvendo necessariamente a colaboração entre faculdades
separadas de inspiração e intelecto. Estamos lidando com alguma obra inferior, esta
conclusão não tem nenhum peso. Mas estamos lidando aqui com uma obra
verdadeiramente magnificente, artisticamente perfeita. De que maneira, então, ela é
produzida?
O que está em questão aqui não é das circunstâncias reais da produção da obra,
mas uma tentativa de reconstruir o processo essencial de sua composição (a qual,
enfaticamente, não é o caminho pela qual foi composta), para visualizar o que poderia
ter sido “idealmente”. Vamos imaginar nosso Bach “ideal” sentado ao teclado
(sentado realmente ou somente na imaginação). Seus dedos tocam uma nova grave:
_____ . Ele pára um momento e então toca a mesma nota, Fá, três oitavas acima. Esta
é, por assim dizer, um eco da primeira nota: através da distância as duas reconhecem-
se e saúdam uma a outra, como se tentando se reunir. A nota mais alta vira um longo
caminho para se encontrar com a mais baixa, se somente fora de cortesia, afinal de
contas, é mais fácil descer do que subir:
Isto faz sentido em termos de movimento; os pólos do campo dinâmico, 1 (Fá)
e 5 (Dó), estão sendo manifestados, mas o resultado não é particularmente satisfatório
em termos artísticos. Embora significativo como um todo, o padrão deixa muito a
desejar em seus detalhes. Imagine a nota mais alta expressar sua prontidão para se
juntar à nota mais baixa com um gesto de alçar vôo, por exemplo: Mi – Fá – Sol – Fá.
Isto seria aceitável para um começo. Mas o que segue? Meramente repetir o gesto
seria marcar o tempo: ____________; manter-se indo envolveria subir ainda mais:
_________ . Mas suponha que a direção do gesto fosse revertida – não ______ mas
_____. Sim, agora estamos na trilha certa, para baixo, __________ , e podemos
descer todo o caminho:
Deste modo, um corrida regular de notas conjuntas descendo o teclado é
transformada em uma sucessão de notas, que tomam seu caminho em torno das
posições centrais, cada uma separada da precedente pelo intervalo de uma terça (antes
da última unidade um anota é saltada porque a meta pretendida do movimento é Dó).
Agora, as terças formam acordes – acordes de tríades e sétimas – assim nós também
podemos. (Por que não? Afinal de contas, estamos sentados ao teclado.) Poderíamos
simplesmente levar nossos dedos repousar sobre as posições sucessivamente
alcançadas – não sobre todas elas; a mão não tem dedos suficientes para isso – como
isto:
136
dele coisas que não estão lá. É em pequenas coisas como desta espécie que uma obra
de arte revela grandeza e autenticidade; elas decidem se ela é viva ou sem vida, e elas
sã a prerrogativa do gênio. “Lê bom Dieu est dans lê détail” – esta é uma das
observações mais verdadeiras jamais feitas a respeito da arte: “Deus reside no
detalhe”.
A tabela abaixo resume todo o desenvolvimento:
Continuaremos nossa análise por outros poucos passos. Ao final do compasso
4, a parte do baixo, conduzindo para o compasso 5, rompe com a regra até aqui
observada da reversão do movimento após três notas ascendentes ou descendentes;
com ________ o círculo é quebrado e um padrão é iluminado por um novo elemento,
o qual é introduzido de imediato esquematicamente: __________ . Este é não outro
que uma sucessão obtida da repetição da fórmula inicial _____ – não de seu reverso –
resultando em uma linha ascendente, sua última ligação estendida, sua conclusão
adiada: _______; abaixo da linha estendida o gesto reverso desliza para: _________
– uma exalação sob a inalação (em um processo não-físico algo desta espécie é
possível). Ao mesmo tempo, o acorde dissonante é sustentado para dentro do
próximo compasso e sua resolução retardada ________ nos recorda do evento
análogo nos compassos de abertura.
Os dois próximos compassos (7 e 8) repetem os dois primeiros procedimentos
no grau abaixo seguinte: ___________ . Outra vez algo aconteceu. O fato de que
após o padrão de quatro compassos do começo o padrão dos compassos 5 e 6 é
repetido nos compassos 7 e 8 – em outras palavras, o fato de que em vez da audição
de uma unidade de quatro compassos, como nos compassos 1 – 4, ouvimos duas
unidades de dois compassos – tem o efeito (embora discreto) de reduzir a respiração à
metade de sua extensão. E quando o padrão do compasso 9 é imediatamente repetido
no compasso 10 ___________ – quer dizer, quando a extensão da respiração é
novamente reduzida à sua metade – poder-se-ia sentir um ligeiro agrupamento. Mas
então, no compasso 11, há um súbito enfraquecimento: o padrão de quatro compassos
da abertura re-emerge e continua desembaraçado. Agrupar e enfraquecer tem um
significado profundo na totalidade da estrutura da peça: o agrupamento prepara a
primeira mudança do centro (de Fá para Dó); o enfraquecimento ocorre no momento
quando o novo centro surge claramente. Mas ao final desta unidade de quatro
compassos, no lugar onde nos compassos 4 – 5 a voz mais baixa livrou-se da regra
estrita com Ré – Dó – Sib – Lá, a voz superior quebra com o círculo com a oposição
Sol – Lá – Si – Dó, carregando o movimento em direção à nota Dó; um compasso
adiante o primeiro ponto de repouso é alcançado. Mas aqui, no compasso 16, o qual
marca uma conclusão e um momento de repouso, o padrão do primeiro compasso –
da abertura – reaparece inesperadamente, recordando-nos que o repouso neste ponto
pode ser somente temporário. Os compassos 9 – 16 são repetidos sem mudança,
embora, não tenhamos _______, como no compasso 16, mas _________, o conteúdo
musical continua sendo o mesmo. Aqui nada se agita novamente; o repouso torna-se
definitivo.
138
Embora possa ser tentador e instrutivo continuar nossa análise passo a passo
deste magnífico prelúdio, estaria além do escopo de nossas reflexões. Aqueles que
desejarem estudar o padrão de movimento em detalhe e sua relação com estruturas
tonais mais amplas podem fazê-lo com o auxílio da tabela abaixo. Uma representação
esquemática é possível neste exemplo porque o prelúdio inteiro praticamente é
“feito” de nada que não repetições (mais do que duzentas) da fórmula de quatro notas
em uma ou outra de suas quatro versões, _____ e ___ ocorrendo mais
freqüentemente, e ____ e _____ usada somente em poucos casos. Duas vezes no
stretto de um clímax, a parte do baixo sendo levada longe para ____; e diretamente
antes de alguns poucos pontos intermediários de pausa (existem três deles) a regra é
inteiramente descuidada; mas isto marca o limite máximo da liberdade concedida
para as notas. Na tabela da próxima página os símbolos são auto-explicativos (os
suportes acima indicam os padrões recorrentes).
O elemento “dado” – auto-dado –, o tema com o qual Bach trabalha aqui, o que
é? ________ : um nada, uma bagatela. Dificilmente ocorreria a alguém chamar algo
como isto de uma inspiração. E tudo é senão trabalho! O que torna esta peça tão
especial, até mesmo única, não é um “tema”, um lampejo de inspiração, mas o
trabalho que foi aplicado a ela. O termo “trabalho” contudo, não deve ser tomado
aqui no sentido usual, de uma atividade guiada por conhecimento e habilidade. Pois
conhecimento e habilidade não podem por si mesmos produzir algo único, algo que
nunca existiu antes; à luz das idéias tradicionais, uma peça como esta só pode ser o
resultado da inspiração. Diríamos então que a totalidade da peça é “inspirada”?
Afirmações deste tipo são feitas freqüentemente; ainda os artistas muitas vezes nos
asseguram que um trabalho esteve inteiramente presente em sua mente em um
lampejo de inspiração, e que tudo o que eles fizeram foi reproduzir o todo intuído
como uma sucessão de suas partes. Tal interpretação seria fiel ao esquema conceitual
de inspiração mais intelecto, ou inspiração mais trabalho, mas não acrescentaria
muito à nossa compreensão. O que nos ajuda dizer que Bach teve um quadro mental
de seu prelúdio inteiro em um lampejo de inspiração? O que, em tal caso, seria o todo
aparte dos detalhes no qual fora do qual, ele vive em primeiro lugar? O que pode ser
que não um vago antegozo de um certo intercalar de forças e do movimento
resultante dele até o próprio trabalho ser cristalizado fora de sua névoa, passo a
passo? Afinal de contas, os passos individuais nos quais a vida do trabalho se revela,
que são idênticos à sua vida, os quais são a obra, não podem – nem ainda como meras
indicações – estar todos presentes na mente do compositor simultaneamente, em um
único lampejo; cada um pode emergir somente no lugar certo e ao momento certo,
como ele cai diretamente no curso da composição. Como, por exemplo, poderia a
mudança melódica Sol – Lá – Si – Dó nos compassos 14-15 ou o padrão _______ do
compasso 16 estar presente na mente do compositor antes que a música tenha
efetivamente alcançado este ponto? Como poderia ter sido produzido sem as
referências a tudo o que veio antes dele? Criação é um processo contínuo; decisões
são tomadas a todo momento, não em um único momento. É uma série de tais
lampejos; trabalho e inspiração são inseparáveis. A hipótese de duas fontes criativas
diferentes desmorona, e se alguém deseja insistir que sem inspiração nenhuma obra
139
genuína pode ser produzida, então o labor do compositor deveria ser considerado
como inspiração. Esta, no entanto, implicaria em um novo conceito de “labor”, um
conceito que não está essencialmente vinculado a conhecimento e habilidade, e um
conceito que, em última análise, deveria estar associado com “pensamento” – ou um
novo conceito de pensamento.
Agora voltemo-nos brevemente para duas formas musicais nas quais o tema
pode ser claramente distinguido da elaboração técnica: aqui não há dúvida de que
ambos derivam de fontes diferentes, mais ainda de fontes externamente diferentes. A
harmonização coral consiste de imaginar acordes adequados para melodias
tradicionais. Em toda a sua simplicidade, muitas melodias de hinos tradicionais são
estruturas requintadamente belas; se nenhum compositor é conhecido, prontamente
atribuímos sua existência a alguma espécie de inspiração anônima. Por outro lado, a
harmonização destas melodias é parte do treinamento elementar de muitos musicistas.
Talento também não é requerido: depois que o estudante aprendeu como operar com
os símbolos musicais de acordo com as regras, ele pode resolver os problemas
(mesmo sem referência para com o ouvido) sobre uma base puramente topológica.
Aqui, então, a distinção entre inspiração e técnica como as duas fontes criativas da
música parecem inteiramente justificadas, não menos porque aqui cada uma é
representada por uma pessoa diferente. É claro, o caso é um pouco alterando quando
é um compositor como Bach quem abastece o cenário harmônico. Os corais de Bach
têm se mantida em especial reverência por todos os tipos de musicistas porque, pela
primeira vez, eles revelam que a música de fato progrediu por se desenvolver na
dimensão da melodia. Os cenários de Bach não são meros acompanhamentos para, ou
suportes da, melodia, não somente um engordamento; eles demonstram que a
harmonia possui a capacidade de interpretar a melodia. Eles levam luz às faces
ocultas da melodia. Por elas mesmas, em termos das qualidades dinâmicas das notas,
estas melodias parecem completamente simples. Dificilmente ocorreria a alguém
supor aqui haver algo a ser interpretado em uma melodia de hino! Mas o que estas
das mais simples de todas as melodias de Bach transformadas nas afirmações
musicais mais sublimes e mais sutis. Ouvindo as grandes Paixões, alguém não está
sempre consciente de que, graças às harmonizações, a mesma melodia pode ser
condutora de sentidos tão diversos quanto “O grande Rei, grande de todos os
tempos”, “O grande amor, O amor além de todos os limites”, e “E contudo quão
prodigiosa é esta punição”, e conduz a cada uma de maneira única. Em análise mais
atenta, estes milagres do som reduzem-se a algumas soluções de problema técnico, a
encontrar três diferentes vozes no baixo para a mesma melodia; ambas as vozes
juntas sugerirão então possíveis harmonias. Em nosso exemplo, as vozes aguda e
grave começam como segue nas três harmonizações:
Ninguém nega que a habilidade musical da mais alta ordem informa os
cenários corais de Bach, mas quando somos confrontados com uma invenção como a
terceira citada aqui, começamos a duvidar de que ela seria produzida por treinamento,
conhecimento ou somente experiência, de nenhum modo como alta uma ordem –
tudo o mais quando reconhecemos que a seqüência de acordes implica em duas vozes
expressas o questionamento, a maravilhosa qualidade das palavras de um modo
completamente incompreensível. Nossas dúvidas tornam-se completas certamente
144
quando ouvimos o famoso coral da Paixão Segundo São Mateus seguindo as palavras
do Evangelista “E ele morreu”: muito mais está envolvido aqui do que somente
conhecimento da composição musical. O mesmo coral foi ouvido quatro vezes no
curso da Paixão, a cada vez em uma harmonização diferente, mas em todas as quatro
Bach preservou a frase conclusiva: ____________, perfeitamente simples,
harmonizando-a somente com os acordes normais da cadência. Então é tudo a maior
surpresa, na verdade empolgante, quando agora com as palavras “Pela virtude de tua
angústia e dor” as harmonias familiares subitamente produzem sons inauditos, como
se ascendendo desde um abismo de incerteza. O mundo habitual se desvanece, uma
profundidade sem fundo se abre, e a melodia simples de repente passa a servir para
expressar o incompreensível. Se nos perguntassem se é possível expressar o
inexprimível, apontaríamos somente esta passagem. Tentar colocá-la em palavras
implicaria em uma contradição. Sem dúvida, aqui também, é a voz do fundo que,
tecnicamente falando, determina os acordes:
Mas uma linha do baixo como esta, junto com os sons que a faz possível não
deriva de qualquer tipo de conhecimento ou experiência; ela deriva de alguma
“segunda audição” (em analogia a “segunda visão”) que detecta coisas não sonhadas
além das notas da melodia. Se algo alguma vez mereceu se chamar, esta é a
descoberta de gênio, um lampejo de inspiração, uma idéia brilhante, absolutamente
original, única – não a descoberta inspirada de um tema, mas a inspiração “sobre” um
tema; isto é pensamento, pensamento nota, um pensamento em notas a respeito de
notas.
“Variação” ou “tema e variações” é o termo técnico para uma forma musical
clássica na qual uma melodia prolongada, muitas vezes uma tomada emprestada,
submete-se a um número de modificações, embora o perfil fundamental da melodia
original seja preservado. A fórmula “o mesmo, todavia não o mesmo” é uma
descrição bastante correta do resultado. (As Variações Goldberg de Bach não são um
conjunto de variações no sentido clássico: a obra é baseada não em uma melodia mas
no “plano de fundo” da melodia.) Muitas vezes o compositor de tal obra meramente
ornamenta ou parafraseia uma dada melodia, apresenta-a em um número de
diferentes orquestrações. O resultado pode ser muito artístico, mas a arte envolvida
aqui é certamente de uma espécie que pode ser aprendida: na realidade, podemos
concordar com os estudantes de composição de que nada é mais fácil do que escrever
variações. No entanto, grandes compositores têm reconhecido que “o mesmo, todavia
não o mesmo” não é necessariamente o mesmo enfeitar-se em uma nova vestimenta,
mas pode ser tomada no sentido mais profundo de metamorfose. Neste sentido,
escrever variações é a mais difícil de todas as tarefas, a saber, a “transformação do
criado”, a produção consciente de algo que normalmente só a natureza pode produzir
inconscientemente. Não é um acidente que Beethoven, cujos poderes criativos
afirmaram-se mais fortemente quando limitado por uma disciplina auto-imposta,
compôs algumas de suas maiores obras na forma de variações. Um dia, como se sua
mente tivesse inventado reduzir ao absurdo o ponto de vista comumente mantido que
o tema é a matéria de inspiração e seu tratamento algo mais do que técnica, ele
145
Pode ser mencionado brevemente aqui que nos dois domínios que a música do
século vinte explorou mais extensamente, a composição dodecafônica e o jazz, o
desaparecimento do tema como o elemento inspirado e a força vitalizadora de uma
obra musical foi completada, pelo menos até o momento. A série de notas é sobre o
que toda composição dodecafônica é baseada, e não um tema no próprio sentido, não
um padrão tonal audível, mas material em série pré-arranjada de um modo específico
pronto para ser lidado com ele; não é “inspirado”, mas escolhido deliberadamente de
acordo com a idéia do compositor de como este pedaço específico de material pode
ser elaborado. A inspiração pode se manifestar, se de todo, somente no seu
tratamento. Muito do mesmo pode ser dito a respeito do jazz, o qual é na verdade
uma arte da improvisação – não improvisação livre, é verdade, pois ele é basicamente
limitado por um tema dado. O que o jazz improvisa não é o tema, mas o que ocorre
ao compositor de jazz dizer a respeito dele: isto é o que determina a qualidade
artística de sua produção.
O Desenvolvimento Clássico
A distinção entre inspiração (responsável pelo tema) e técnica (responsável
pela elaboração) certamente não foi sugerida pelas obras do tipo discutido acima, mas
mais propriamente pelas grandes obras instrumentais do período clássico, cuja forma
mais claramente distingue entre tema e tratamento, o “dado” e o que é feito dele, o
que acontece com ele. Seus temas são reconhecidos como inspirações autênticas por
todo ouvinte, e o tratamento dos temas é governado por regras fáceis de ensinar e
aprender. Quando olhamos mais de perto, no entanto, descobrimos que aqui, também,
a situação não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista. Em muitas
passagens do “tratamento”, onde supostamente está envolvido somente o
conhecimento sobre composição, que repetidamente encontra-se, de modo
inesperado, acontecimentos musicais que em sua singularidade e imprevisibilidade
não pode ter sido derivado do conhecimento ou da experiência, e sobrepuja de muito
qualquer coisa meramente planejada (no sentido da técnica). Muitas vezes uma
passagem de pura elaboração, examinada de perto, confunde inteiramente nossa
expectativa treinada: é, acima de tudo, muito claro que em tais casos a assim
146
chamada elaboração se eleva ao nível da arte criativa. Aqui, como em qualquer parte,
pode estar envolvida a inspiração de uma ordem elevada – quase se poderia dizer,
mais alta do que aquela para o qual o tema deve sua própria existência. É mais fácil
criar algo a partir do nada do que a partir de algo dado, é mais fácil começar bem do
que continuar bem; em virtude disto, diz-se que não é preciso alguém ser bom músico
para ter uma boa idéia, mas alguém precisa ser um bom músico para fazer algo bom a
partir de uma boa idéia. Em outras palavras, o gênio não precisa de uma melodia
inspirada; uma melodia inspirada precisa de um gênio. Aqueles que concederam
inspiração puramente à tarefa de inventar o tema, e o conhecimento mais a técnica
para a tarefa de tratá-lo, podem ser tidos mais apropriadamente como obtusos. Talvez
eles pudessem conceber obscuramente que uma idéia poderia ocorrer a um
compositor inesperadamente; que a elaboração pode ser algo inteiramente diferente
da mera aplicação de regras provavelmente estava além do alcance de sua
imaginação. Veja o que os livros texto têm a dizer a respeito das sessões de
desenvolvimento na música clássica: você encontrará a implicação de que realmente
também poderia ter sido composta por um estudante avançado ou um bom técnico.
Para compreender o pleno significado destas observações, vamos voltar a
exemplos que eles descreveram em termos gerais e estudar estes exemplos em seus
detalhes concretos. Cézanne afirma que Deus reside nos detalhes aplicando neles toda
a sua força. A mão do Criador se revela mais convincentemente quando se olha bem
de perto. Vamos escolher dois exemplos da literatura sinfônica.
Nosso primeiro exemplo é a seção de desenvolvimento do primeiro movimento
da Sinfonia em Sol menor de Mozart (nº 40). Tradicionalmente, o primeiro
movimento é em forma ternária; a terceira sessão dele, para manter um esforço
latente pela simetria, repete o primeiro em linhas gerais tanto quanto em muitos
detalhes; a função da seção do meio é retardar com suspense o atingimento da meta
de seu esforço, e ao final atingi-la mais ou menos dramaticamente, dependendo da
característica da obra. O movimento básico partir-desde-e-voltar-para que define o
significado do esquema ternário é expresso musicalmente no fato de que na primeira
sessão a tonalidade principal é renunciada em favor de uma diferente; na sessão do
meio, o compositor está livre para inventar desvios que levem de volta para a
tonalidade principal; esta última é plenamente restaurada na terceira sessão, mas
desta vez, em contraste com a primeira sessão, não é renunciada. Os temas são
declarados na primeira sessão, a assim chamada exposição12; a terceira sessão, ou
recapitulação, repete-os; os temas são elaborados na sessão do meio do movimento, o
desenvolvimento.
12
Uma das convenções da forma é que a exposição é executada duas vezes; que nenhum novo elemento formal é
introduzido pela repetição é aparente desde o fato de que o intérprete é livre para seguir a convenção ou ignorá-la.
147
O que pode ser considerado como preparação é, por assim dizer, parte do
próprio tema, a saber, o início repetido três vezes: Mib – Ré – Ré. (Algo como isso
pode somente ser o resultado de uma inspiração; ninguém se arriscaria a planejá-lo.)
O começo, no entanto, não conduz, como se poderia supor, a um grande gesto
enfático, isto é, ____________ . O gesto de fato ocorre, mas (este é o ponto) não
onde ele é devido; ele é retardado e como resultado ele cai no tempo fraco do
compasso, _______, deste modo negando a si mesmo, por assim dizer, diminuindo o
esforço envolvido, como se sugerindo que não deve ser tomado tão seriamente quanto
tudo aquilo, que o que é de fato pretendido não é a altura Si que foi alcançada, mas
talvez o aparentemente preparatório Ré, 5 (em virtude disto ter sido repetido três
vezes). Em todo caso, o movimento imediatamente desce no mesmo ritmo _______
do começo, e conduz, através da nota de abertura, à próxima nota abaixo, 4:
________. Os mesmos passos são repetidos enquanto o movimento procede de 4 para
3: _________________. O esquema do conjunto, junto com a harmonia óbvia: I – II
– V – I, é:
A melodia não termina neste ponto, mas, no que segue, somente esta parte dela
é usada como o elemento “dado” a ser elaborado.
Considerando formalmente, a exposição é convencional. O desenvolvimento
propriamente começa de modo exatamente tão convencional, com uns poucos
acordes; o último destes é um acorde de sétima diminuída, um som que se refere a
quatro diferentes centros tonais, Lá, Dó, Mib e Fá#. Dentre os quatro caminhos
abertos neste ponto de interseção, Mozart escolhe aquele que conduz ao centro Fá#, o
qual é o mais remotamente distante da tonalidade principal (de acordo com o círculo
das quintas). Uma frase de transição é executada: ___________ . Ela foi ouvida
outrora na exposição, onde conduziu para a primeira reafirmação do tema principal.
Aqui ela aparece duas vezes – uma longa parada, uma inalação profunda antes do que
virá a seguir. Então o tema principal é iniciado em Fá# menor.
13
A harmonia neste ponto torna possível ouvir Lá como 3 em Fá# maior.
149
mudado para Dó então para Sib. Após o que, o movimento torna-se íngreme: nenhum
novo centro é fixado mesmo por um momento; no conflito, a melodia ainda desiste de
seu primeiro e último compassos, e é reduzida a seu cerne,
extensão de tempo disponível aqui por somente um passo, se não com notas
marcando o tempo? Como Mozart tem êxito em arrebatar, destas notas, o movimento
interno que carrega a tensão do movimento exterior, precedente, para frente – na
verdade, ainda aumentando-o – não pode ser mostrado aqui, embora isto fosse
fascinante, pois a tarefa envolveria explanações técnicas detalhadas. O movimento
impetuoso na primeira metade do desenvolvimento poderia ser seguido na partitura,
mas, somente pela escuta, alguém pode compreender o movimento quase
imperceptível da segunda metade.
No exemplo discutido há pouco, a elaboração do tema certamente é um
trabalho intelectual, executado por uma faculdade racional com base em uma rica
experiência e na técnica mais refinada. A parte do intelecto é revelada no modo em
que o movimento aparentemente espontâneo é liderado em direção à sua meta pré-
determinada de acordo com um plano bem concebido. O fato do compositor nunca
fracassar em suprir os meios para realizar o plano, testemunha sobre sua habilidade
incomparável. E, contudo, sentimos que algo mais está envolvido aqui ao lado do
intelecto e da habilidade. Estes podem bastar para calcular os compassos de abertura
do desenvolvimento, mas o evento crucial que esclarece o padrão e provoca o que
vem diretamente após estes compassos, o “erro” aparentemente acidental não pode
ser atribuído ao intelecto e à habilidade. Se a nota “errada”, Si# ao invés de Si, fosse
planejada, isto é, introduzida para um propósito específico, este propósito poderia ter
sido somente levar o movimento longe de Fá# = 1. Mas esta é a coisa que não
acontece: o “erro” é imediatamente corrigido, e o movimento oscila de volta dentro
do padrão correto, imediatamente, após o desvio momentâneo. Somente agora um
intelecto (não o intelecto de todos!) poderia perceber que a repetição do “erro”
acidental e a sua correção dever conduzir a uma mudança total para o próximo grau
abaixo da escala – uma mudança que de fato acontece. Assim, o evento não foi
planejado; mais apropriadamente, foi o evento que sugeriu o elemento básico do
plano. Um acidente que, em retrospecto, passa a ser de conseqüências fecundas, e
serve a um plano que não poderia mesmo existir quando ele ocorria: este é realmente
como uma obra da Providência, o resultado da “mais alta” inspiração. Aqui, como em
toda arte, “inspiração” é a palavra correta, pois nesta instância a inspiração não está
confinada a si mesma, mas afeta tudo o que segue. Toda a vasta construção, latente
no “dado”, torna-se atualizada por este único lampejo de inspiração. Mencionamos
previamente que de acordo com Schenker o plano de uma obra musical é um fator
“ideal” operando desde o plano de fundo: aqui vemos que o plano de fato opera no
primeiro plano.
Nossa suposição tácita de que o caso discutido acima não é excepcional pode
ser plenamente justificada apenas por um estudo compreensivo das seções clássicas
de desenvolvimento. A análise seguinte da seção de desenvolvimento do último
movimento da mesma sinfonia pelo menos servirá como uma justificativa parcial.
Primeiro que tudo, o tema. Aqui está a partitura (melodia, baixo, com a
indicação de um acorde):
151
Aqui vemos a mudança de Sol para Ré via o estágio intermediário Lá, desde
Ré de volta a Sol após tocar Dó. Em termos de graus harmônicos, temos: primeira
metade, IV’ – V – I, meta Ré; segunda metade, IV – V – I, meta Sol.
Agora, o desenvolvimento. A exposição foi concluída em Sib maior, de acordo
com as regras. O que vem a seguir? O tema principal! Mozart corre para ele, com
aparente negligência, e imediatamente atravanca, tropeça, gagueja:
começo do próximo compasso soa ainda mais fora de lugar – e isto é plenamente
intencionado, pois todos os instrumentos tocam o tema em uníssono e nenhum
suporte de acordes está disponível. Isto é por que o Réb, como o Sib correspondente
no tema original, é ouvido como 6, não como 3. (O acorde a ser adicionado
mentalmente, correspondendo ao acorde no segundo compasso na primeira afirmação
do tema, é aqui o acorde de Dó, ____ , o acorde dominante de Fá = 1.)
O começo “incorreto” do tema teve ainda outra conseqüência muito diferente.
Porque o tema abre com Sib – Ré ao invés de Fá – Sib, isto é, desce uma nota, o
compasso é encurtado desta nota: sem ela, o ponto mais alto seria alcançado
prematuramente, ______ . Portanto, uma nota deve ser inserida em algum lugar. Aqui
está: ____________ . Um novo elemento, como se inócuo, aparentemente emergindo
por acidente, mas outra vez um acidente fértil de conseqüências: ele veio para ficar, e
muito cedo sua presença assinala seu próprio sentido. Porque a tríade arpejada
_______ é esperada, o ouvido não pode dar pela falta do semi-tom inserido Lá – Sib:
ele soa como uma preparação especial para a terça diretamente seguinte: Lá – Sib –
Réb. Combinada com o próximo passo em semi-tom para baixo, Réb – Dó, forma uma
nova pequena frase em separado, Lá – Sib – Réb – Dó, que imediatamente se
impressiona sobre o ouvido. O diagrama a seguir mostra o que acontece a seguir, e
como interpretar os enigmáticos compassos de abertura do desenvolvimento.
O padrão temático requer a continuação temática, que pode ser representada
esquematicamente como Réb – Dó – Mi – Fá: o passo de semi-tom ascendente
conclui a frase como fez antes: Sib – Lá – Dó# - Ré. Mas ouvimos exatamente o
mesmo passo na função oposta como começando uma nova frase. Porque o mesmo
passo agora executa duas funções, a formação em fila ou em cadeia mostra na
primeira linha do diagrama torna-se possível. Embora esta faça um certo sentido
musicalmente, abre um padrão conduzindo à música, a saber, via condensação. A
linha 2 do diagrama mostra como os dois passos de semi-tons são contraídos em um
passo que executa ambas as funções: fim e início de cada frase sobreposta. Isto é, no
entanto, metricamente impossível, pois o passo em semi-tom ao final de uma frase cai
sobre a batida “quatro – um”, enquanto que ele cai na batida “três – quatro” no
começo da frase. Mozart corta o nó com uma abreviação genial. Ele simplesmente
elimina as notas de resolução 5 e 8 da seqüência inteira dos passos 6 – 5 e 7 – 8 (de
qualquer modo, elas são consideradas admitidas após 6 e 7), retendo somente as notas
tensas. A linha 3 do diagrama mostra o que é deixado – as notas dos enigmáticos
compassos de abertura do desenvolvimento, as quais são assim “explicadas”. Desde
que a abreviação livra as notas do esquema métrico, qualquer arranjo rítmico torna-se
possível.
O significado mais profundo da operação é expresso na linha 4 do diagrama.
Os numerais romanos na primeira linha indicam a seqüência de acordes subjacente:
IV – V – I, a mesma como na primeira metade do tema. Nas linhas 2 e 3 vemos como
I é a cada vez reinterpretada retroativamente como IV:
153
Pensamento Musical
Música e Matemática
As reflexões precedentes lançaram uma nova luz sobre a relação entre música e
matemática.
Temos por garantido que as notas estão correlacionadas com os números, e que
as relações entre as notas correspondem a proporções numéricas. Aprendemos na
escola que toda altura corresponde a uma certa freqüência de vibrações, e que os
156
Para uma real compreensão do que se passa na música, é preciso esperar por
considerações que começam com a nota individual ou intervalo e desenvolvem-se
para a matemática. Não acrescento nada à minha compreensão da experiência
auditiva de 1 – 5 quando aprendo que a proporção das freqüências correspondente a
este intervalo é 2 : 3. Este fato não dá nenhum suporte para o padrão tonal sem o qual
não haveria música; ele não tem nada a ver com a realidade da música. O que nos
interessa nisto não é a correlação entre música e números, mas a menos óbvia
similaridade entre os músicos e os matemáticos com respeito à natureza de suas
atividades. Nada pode estar mais distante da mente de um músico trabalhando do que
uma contagem, nada pode estar mais distante da mente de um matemático
trabalhando do que cantar, e mesmo assim há algo em comum entre ambos. Em
matemática, assim como na música (e em parte alguma mais), o fazer é inseparável
do pensar; mais do que isto, em ambos o fazer é idêntico com o pensar. O que é
157
14
Nota da Tradução: Zuckerkandl utiliza-se aqui de um jogo de similaridade fonética e escrita entre as palavras
“árvore” e “três”, three trees, e entre as palavras que denominam as árvores, maple, elm e palm, como que reforçando
no nível da linguagem o conceito de similitude e diferença que está abordando no nível das idéias. Palm e elm estão
158
termo “árvores” denota um grupo de qualidades que três árvores dadas têm em
comum. Estas qualidades não se originam no pensamento: nós as percebemos; elas
são dadas. Mas “três” não denota algo como aquele, isto é, algo que nossas três
arvores, um triângulo e um relógio marcando três tenham em comum. Que tal coisa
está presente eu sei somente porque sei o significado de “três”: o elemento comum
não sugere o conceito; o conceito sugere o elemento comum. Similarmente, “círculo”
não é primeiramente o que todos os círculos dados têm em comum: até o conceito de
“círculo” ser formado, não teriam sido dados círculos. É claro, depois que eles
tenham sido definidos, números e figuras geométricas pode se referir ao dado, mas
seus referentes devem sua existência aos conceitos, não vice-versa. Tudo isto não é
pretendido como uma contribuição aos debates perenes a respeito do ser e do
pensamento, mas somente salientar o caráter distinto dos conceitos matemáticos, os
quais um matemático, Andréas Speiser formulou na afirmação. “O conceito de
número tem a força para postular existência”.
Mas certamente há um paradoxo aqui. Não outorgamos – para justamente
aquele tipo de pensamento (ou conceito) que alegadamente não tem raízes na
existência – a plena força que temos negado explicitamente a todos os pensamentos e
conceitos? Realmente, há na vida comum um exemplo muito bom de tipo de
pensamento que permanece auto-contido, ainda em operação: aquele que está
envolvido em jogar jogos. Jogos como xadrez e Go são construções puramente
intelectuais que correspondem a nada senão a eles mesmos. A matemática, nesta
conexão, pode ser pensada como meramente o mais sublime de todos os jogos, no
qual o intelecto joga com suas próprias potencialidades – e realmente a matemática
tem sido assim descrita muitas vezes. Ao mesmo tempo, no entanto, deve ser
admitido que jogar com números ou com figuras geométricas é um jogo muito
diferente dos outros. A diferença é ilustrada no dizer bem conhecido de um
matemático, “Deus fez os números inteiros; tudo o mais é trabalho do homem”.
Nunca ocorre a um jogador de xadrez pensar sobre as peças de xadrez como sendo
divinamente criadas. Evocamos a mão de Deus somente em conexões que envolvam
uma percepção sobre a realidade, ao passo que o apelo característico dos jogos é que
eles nos tornam capazes de escapar das limitações ordinárias do espaço-tempo para
um reino de comparativa liberdade, sujeito apenas às regras de sua própria invenção.
As regras e conceitos da matemática, acima de tudo aquelas que podem ser fora de
correlativos objetivos, apesar disso referem-se a algo real: jogar o jogo da matemática
é responder questões postuladas pelo mundo real. Podemos bem estar inconscientes
disto quando exercitamo-nos em um problema matemático, mas as regras que
seguimos e o tipo de pensamento que as operações matemáticas requerem são
limitado em última instância pelas leis da natureza. É claro, os conceitos matemáticos
permanecem fora do mundo da percepção dos sentidos, mesmo estando bastante
próximos dele para serem afetados por ele e responderem a ele – exatamente como
uma corda firmemente esticada emite um som quando algo faz ela vibrar. A ordem
contidas em maple, dois meio-anagramas que compõem a terceira palavra. Este jogo de palavras é intraduzível para o
português.
159
dos números e das figuras está em sintonia com a ordem da natureza. O que distingue
os conceitos matemáticos dos outros é justamente esta consonância entre pensamento
e existência, e é por isto eles podem servir como símbolos. Outros conceitos se
elevam ao nível de alegorias, no melhor dos casos.
essencialmente nada a ver com conceitos, sua atividade não seria propriamente
chamada de “pensar”. Mas após ouvir cuidadosamente a música e observar o que ela
transpira, agora parece que o ponto de vista aceito deveria ser virado de ponta cabeça:
o que o musicista faz não pode ser chamado de qualquer outra coisa que não de
“pensamento”. Obviamente, o pensamento conceitual não é a única espécie.
No próximo capítulo, tentaremos, por observar o processo de criação musical,
formar uma idéia mais definitiva da natureza deste “outro” pensamento e das leis que
o governam.
O Problema de Chopin
para ele, porque não sabemos realmente o que é. “Sentimento” aqui certamente não é
usado no sentido de sentimento de amor ou de ódio ou qualquer outra família
“emocinal”, ou de algo como sentimento vertiginoso, mas mais apropriadamente
como algo aparentado a sentir dor – não exatamente no sentido de doendo mas
também porque ele nos diz o que é doer. Aqui a sensação tem uma contraparte
objetiva: algo é realmente percebido por um órgão interior dos sentidos. Chopin
ouviria a deficiência? Sua mão chegaria a colocá-la em ordem? Relembramos a
observação do pintor que ele sentiria a diferença entre bom e ruim em suas mãos.
Mas como é possível ouvir ou sentir algo que não está lá?
Aqui temos uma oportunidade de observar o compositor trabalhando; é um
exemplo particular de uma situação humana comum: existe um problema a ser
resolvido requerendo esforço intelectual.
Realmente, dois problemas distintos embora relacionados estão aqui
envolvidos. Um concerne ao compositor: encontrar a frase correta. O outro concerne
ao ouvinte: encontrar o que está errado (George Sand não menciona isto). Vamos
considerar o problema do ouvinte primeiro.
Para começar, vamos formulá-la em termos do pensamento lógico. Suponha
que um tratado matemático contenha um passo falso e estou procurando encontrá-lo.
Agora, isto pode se difícil para eu fazer, mas claramente não é impossível; em
princípio, realmente, devo ser capaz de encontrar o erro, e se eu falho em encontrá-lo
apesar disto, a falha será atribuída somente por minha inadequação intelectual
pessoal. No argumento lógico, cada passo está correto na medida em que segue os
passos precedentes de acordo com regras rigorosamente definidas. A afirmação para
a qual ela leva não é necessariamente verdadeira: pode ser falsa, por exemplo, quando
os passos precedentes envolvem afirmações falsas. Mas cada passo logicamente
correto seguido de uma afirmação verdadeira necessariamente conduz a uma
afirmação verdadeira. Isto é o que distingue a necessidade lógica da compulsão física
ou da obrigação moral: não o passo em si mesmo, mas somente sua validade está em
jogo. Na lógica, o símbolo usado denota esta espécie de necessidade – necessidade no
raciocínio mais do que na conclusão do argumento – é __ , o símbolo da implicação.
A forma deste signo sugere que ele significa: implica é abraçar, envolver, conter.
Cada passo corretamente deduzido no curso de um argumento está sempre implícito
no passo precedente, inteiramente contido nele. Precisa somente ser tomado; não se
adiciona algo novo, nem é suposto algo novo, ao passo precedente – pois se o fizesse,
não seria logicamente correto. Cada passo sucessivo meramente torna explícito o que
estava somente implícito no passo precedente, fazendo-nos ver ou reconhecer algo
que estivera sempre lá mas que até agora esteve ausente. Lembra um quebra-cabeça,
no qual você tenta encontrar algo que não está imediatamente aparente; não é o caso
adicionar algo ao quadro, meramente discernir o que está encoberto longe nele já.
Similarmente, para assegurar que o raciocínio lógico seja correto, temos que apurar
que toda conclusão esteja implícita no que veio antes; isto é, ela deve estar envolvida
ou “contida” no que é dado, embora isto possa não ser imediatamente aparente. Como
162
temos percebido, não é sempre fácil resolver tal problema, mas pode confiar que a
solução existe.
Problemas análogos em música são literalmente insolúveis.
Em que sentido podemos falar de “certo” e “errado” em um contexto musical?
Bem, algumas coisas são obviamente erradas: notas falsas, enganos feitos por
executantes, desvios arbitrários da partitura, erros de impressão, deslizes de escrita
em manuscritos originais ou cópias. Com respeito ao último, no entanto, estamos já
em terreno delicado. Quando podemos estar certos que um deslize de escrita é
realmente isso? Richard Wagner atribui a primeira nota dissonante da trompa no final
da seção de desenvolvimento no primeiro movimento da Heróica a um deslize da
escrita de Beethoven e “corrigiu-o”. Um primeiro editor do Cravo Bem Temperado
assumiu que uma progressão harmônica não-convencional no Prelúdio nº 1 deveu-se
a um descuido por parte de Bach, e adicionou um compasso inteiro de sua própria
invenção para corrigi-lo: este texto “corrigido” aparece em muitas edições
subseqüentes. Em tais exemplos comparativamente óbvios a questão pode
eventualmente ser decidida. Mas não em outros exemplos, menos óbvios. Beethoven
esqueceu-se de prover os acidentes em uma certa passagem da sonata Hammerklavier
(primeiro movimento, compassos 237 e 239)? A primeira nota do violoncelo no
compasso 24 do primeiro movimento do Quarteto em Dó# menor é um Ré ou um
Ré#? Estas questões permanecem em aberto, embora a interpretação das passagens
envolvidas dependa grandemente de como elas são respondidas. De modo diferente
da lógica, à música parece faltar um critério confiável para decidir tais questões.
Falamos, não sem razão, de “lógica musical” ou “sintaxe musical”, isto é, uma
estrutura que provê um critério de contorno nítido. Estes termos designam um
conjunto de regras resultantes dos relacionamentos dinâmicos das notas, as
qualidades de tensão e resolução dos sons, o relacionamento entre consonância e
dissonância, dos padrões de ritmo básico e o desejo elementar de simetria, e por fim
das particularidades de um dado estilo. Tais regras, no entanto, não são de ajuda para
resolver as espécies de problemas com os quais lidamos aqui. Tome uma partitura
composta em um estilo familiar, esconda umas poucas barras, e solicite a um certo
número de estudantes de composição para prover a música que falta. Isto é
simplesmente uma questão de estudar as passagens precedentes e continuá-las no
estilo indicado. Qualquer estudante de composição deve ser capaz de surgir com a
solução “correta”, ou ao menos com a solução não obviamente “falsa”. Um certo
número de diferentes soluções do problema serão apresentadas, todas elas “corretas”
mesmo que muito improvavelmente algumas delas serão idênticas ao original.
Mesmo quando somente umas poucas notas tenham sido providas – algo tão óbvio
musicalmente quanto a palavra ausente na sentença “Parece . . . chovido ontem” –
mesmo então, quando pareceria que ninguém possivelmente poderia surgir com algo
novo, realmente então podemos nos preparar para uma grande surpresa.
163
desde o precedente no sentido de ser dedutível por meio de uma audição perspicaz.
Isto é verdade não somente para o “ouvir” no sentido acústico usual mas também no
interpretativo, compreendendo “escutar”. Todo passo em música pode realizar aquilo
que a nenhum passo em lógica é dado fazer: ele pode ir além do dado e dizer algo que
não está surgindo dele por qualquer regra conhecida. Mesmo quando o uso do signo
de implicação, ______, parece ser justificado, quando um novo passo de fato é
determinado pelo precedente e precisa somente ser dado – mesmo então, como temos
visto, o campo permanece aberto amplo, e a situação é melhor expressa por ____ do
que por __ . É claro, isto não dizer que a música é de fato uma sucessão de surpresas.
Isto seria insustentável; e, ao invés disso, como todos sabem, o que acontece em
música é amplamente determinado pela convenção. Muitas vezes, o que acontece é
exatamente o que está sendo esperado de acordo com regras correntemente
reconhecidas – em outras palavras, não é algo novo. Mas os procedimentos
convencionais em uma atmosfera de liberdade, como se fosse: não porque isto precisa
ser assim, mas porque o compositor quer que seja assim. Em princípio, todo passo em
música poderia ser dado de outro modo do que foi, e então, desde este ponto de vista,
mesmo um passo convencional é “novo”. Isto deixa sem sentido qualquer tentativa de
encontrar, em uma dada peça musical, a passagem que pareceria errada para o
compositor. Se não podemos decidir entre o que é e o que não é correto com base no
que veio antes (como fazemos na lógica), como decidiremos de todo? Se não posso
dizer de qualquer passo o que ele deve ser somente aquele e nada mais, então eu não
posso (dentro de limites razoáveis) chamar qualquer passo de “errado” ou dizer que
ele não pode ser correto. Quão vão, então, procurar através dos Prelúdios de Chopin
pela passagem que ele trabalhou tão longamente sem ser capaz de aperfeiçoá-la. O
problema é insolúvel não somente na prática mas também em teoria: ele é insolúvel.
À luz destas afirmações, no entanto, a verdadeira noção de coerência musical
tornou-se questionável. Se nenhum passo em música segue desde o precedente, se um
passo pode estar “errado” ainda quando segue e “correto” ainda quando não segue
desde o precedente, o que é feito da coerência musical aparte o fato psicológico de
que um certo número de impressões subjetivas está ligada em uma mente individual,
um fato cuja validade objetiva pode ser negada? Para esta questão uma resposta
somente é possível: se fosse este o caso, a tentativa de Chopin de aperfeiçoar uma
passagem teria sido tolice. Mas um Chopin não é um tolo. Seu problema não é sem
sentido. Seu comportamento expressa a realidade da coerência musical não menos
claramente do que o comportamento de uma agulha magnética expressa a realidade
do campo magnético. Se nossa noção de coerência demonstra ser inaplicável aqui, é
nossa incumbência formulá-la de tal maneira a tornar as experiências e os fenômenos
da música não sem sentido, mas compreensíveis.
Em seu diálogo Eupalinos ou o Arquiteto, Paul Valéry, faz seu arquiteto dizer:
“O que é importante acima de tudo mais é obter desde aquilo que está vindo a ser,
que isto poderia com todo o vigor da novidade satisfazer os pedidos razoáveis daquilo
que foi”. O que Eupalinos diz da arquitetura, a arte espacial por excelência, é também
verdade para a música, a arte temporal por excelência. A característica essencial da
165
coerência musical, que a distingue tanto da coerência lógica quanto das sucessões
aleatórias, não pode ser expresso mais clara e adequadamente. Se omitimos as
palavras “com todo o vigor da novidade”, a afirmação de Valéry define a lei que
governa a coerência lógica; se mantemos estas palavras e omitimos o resto, isto
define a sucessão aleatória. O que está em questão aqui, no entanto não é nenhuma
destas alternativas, mas um tipo de coerência que não é lógica e também não é
irracional. É mais propriamente uma coerência que tem uma lógica sua própria, na
qual a racionalidade é compatível com a novidade. “Aquilo que foi”, isto é, o que é
dado, faz uma demanda razoável, isto é, uma demanda contida e reconhecível no que
é dado, capaz de ser satisfeita, e endereçada para “aquilo que está vindo a ser”. A
última, a fim de satisfazer a demanda, deve suprir mais do que o que pode ser
conhecido ou ouvido no que é dado e inferido dele, deve manifestar “todo o vigor da
novidade”. Ao passo que na lógica somente a consistência importa, e cada passo pode
ser somente certo ou errado, na música onde o novo é tecido dentro do contexto dado,
tais decisões firmes ou ligeiras são impossíveis. A diferença entre certo e errado
permanece, mas admite graduações, como temos visto em nossos exemplos de Bach e
Chopin. Os dois elementos de consistência e novidade pode nunca ser separados,
mesmo em um exemplo concreto individual. Nem eles são um composto –
consistência mais uma parte de novidade ou novidade mais uma parte de
consistência. A dupla requisição é satisfeita por um passo; um único ato produz
ambos, consistência e novidade. Cada passo revela dois aspectos: uma vez ele tenha
sido dado, é consistente, pois de outro modo ele não poderia encontrar um
requerimento razoável; antes de ser dado, ele é imprevisível, pois de outro modo não
teria o pleno vigor da novidade. O ouvinte de uma obra acabada, que sabe somente os
passos que tenham sido dados, desfruta da consistência do novo; o compositor dentro
de sua compositor, que tenha dado todos os passos, sente que ele não pode predizer o
que será consistente. O que cada passo sucessivo deve ser a fim de reunir o duplo
requerimento, isto o compositor também não pode saber antes que ele tenha de fato
dado o passo. Antes então, isto é um segredo que as notas não denunciam a ninguém
exceto àquele a quem elas devem sua própria existência, e mesmo para ele elas não se
revelam realmente; elas meramente apontam o caminho. Elas incitam-no a imaginar,
elas facilitam, ainda mesmo urgem, mas elas não compelem. A tentativa vã de
Chopin para aperfeiçoar a passagem localiza com precisão o processo em seu estágio
crítico. A tentativa torna-se necessária pelo requerimento de consistência falhar se
unir ao requerimento da novidade. Nada mais caracteriza mais completamente a
coerência musical e o ato que a produz do que a falha de Chopin em resolver este
problema.
Estamos todos familiarizados com a situação na qual nos encontramos quando
confrontados com uma tarefa que requer esforço intelectual. Resolver um problema
técnico ou matemático, construir um modelo para a proposta de obter melhor
entendimento de um fenômeno específico, definir um termo, escolher o melhor meio
para uma finalidade específica, entender o modo como um homem atua, interpretar
um evento histórico, encontrar palavras adequadas para expressar um pensamento ou
um sentimento – todos os problemas deste tipo, embora diferentes em outros pontos,
166
têm em comum que em cada um o pensamento é dirigido para algo dado. O que é
para ser encontrado está já presente no dado; somente algo que está escondido pode
ser descoberto, como quando um rio de luz ilumina um ponto escuro ou quando nosso
pensamento ajusta um elemento do dado em uma nova ordem. A situação do
compositor difere de todas as situações deste tipo, as quais são caracterizadas
adequadamente por uma afirmação que Albert Einstein fez certa vez em uma
conversação, “Eu sei exatamente onde eu quero chegar, somente eu não sei como
chegar lá”. Todos aqueles que interpretam a música como sendo essencialmente uma
linguagem do sentimento acreditam que a situação do compositor é comparável
àquela da pessoa tentando encontrar palavras para expressar um sentimento para o
qual não existem palavras. Isto não é assim. Quando Chopin tenta resolver seu
problema, seu pensamento só aparentemente é dirigido para o “dado” que ele tem
diante dele: a passagem que ele quer aperfeiçoar. De fato ele não tem nada diante
dele; seu pensamento não está dirigido para, ou focado sobre, o dado; ele começa do
dado, mas é dirigido para algo além do dado, para um vazio. O dado está atrás dele
mais propriamente do que à frente dele; ele busca não dentro dele mas junto com ele,
junto com o dado ele procura algo que não está no dado. Nem poderia ele esperar
descobrir algo no vazio. Aqui somente uma coisa interessa: encontrar algo que não
existe, isto é, inventá-lo. Nem poderia ele aproveitar-se de um critério para avaliar
sua invenção, tal como ela é avaliável em outros casos. Mesmo a palavra para ser
encontrada pode ser testada contra a experiência interna que ela é suposta expressar, a
fim de apurar se ela serve ou não a seu propósito. Um compositor não tem tal critério,
nada que possa ajudá-lo em sua condição, nada de objetos, regras, conceitos ou
sentimentos; ele tem somente as próprias notas musicais. Seu momento sem dúvida
pode carregá-lo para um certo ponto, mas então eles o deixam, abandonam-no,
lançam-no dentro do vazio, onde ele pode ganhar um ponto de apoio sem sua ajuda. E
somente um sentido interior elusivo fala a ele – e a ele somente – se ele encontra a
solução que ele estava buscando. Ainda na consciência de sua falha ele está sozinho:
ninguém mais pode dizer que ele não encontrou; o compositor não pode. Pois ele
poderia dizer isto somente das notas que ele não foi capaz de inventar.
nas notas, onde outros poderiam reassumir sua busca por ela. Em seu Traité de la
lumière, Huygens escreve, “Eu não posso trazer minha teoria ondulatória da luz de
acordo com certos fenômenos ópticos, mas coloco minha teoria na convicção de que
outros, melhores inteligências terão sucesso em resolver este problema”. O problema
foi resolvido por outras mentes, não necessariamente melhores do que a dele.
Poderiam melhores mentes do que a de Chopin resolver seu problema? A solução não
pode ser procurada nas notas; ela pode ser procurada somente com elas, desde o
interior de seu movimento vivente, e ninguém pode ingressar lá exceto o homem que
esteve dentro de seu movimento vivente desde o começo para ajudá-lo a vir a ser.
Anteriormente afirmamos que a música tem isto em comum com a matemática:
que em ambas o pensar é indistinguível do fazer, e que pensar tem o poder de propor
a existência de números e de notas. Agora encontramos qual é a diferença essencial
entre números e notas. Se é verdade que o que o matemáticos pensam existe antes
dele de fato ser pensado e existiria mesmo se não fosse pensado, então parece que o
pensamento musical é ainda superior ao pensamento matemático onde a
pressuposição da existência é concernida. Mas isto somente parece assim. A prova do
teorema de Fermat pode existir embora ninguém pense sobre ela, mas ela é parte da
teoria dos números, a qual é uma criação do pensamento. Certamente faz sentido
dizer que toda a aritmética está implícita, isto é, existe, na idéia de número – na
verdade, na idéia do primeiro número (especialmente se consideramos dois como o
primeiro número como os gregos faziam), ao passo que mesmo a menor parte da
música, apartada de toda a música, está implícita na idéia da nota ou qualquer nota
específica. Em música somente o que existe o que é de fato criado: isto expressão não
o grande poder da música de postular a existência, mas sua íntima afinidade com o
tempo. A este respeito, o número é o oposto direto à nota. É claro, o tempo é
necessitou pensar um pensamento matemático, como qualquer outro, mas em
matemática, o tempo é meramente um pano de fundo psicológico, uma “mera
formalidade”; o tempo flui pelo, por assim dizer, lado de fora do pensamento
matemático, o qual é realmente estranho ao tempo assim como o texto de um livro é
para a luz que eu necessito para lê-lo. O que os pensamentos matemáticos é o que ele
é, mesmo se não houvesse tal coisa como o tempo; alguém poderia quase dizer que
somente a matemática impede do desenvolvimento em toda a sua dignidade e
esplendor. (Bastante curiosamente, Kant, quem primeiro denunciou os perigos do
psicologismo, incorreu em seu pior erro justamente quando confundiu número com
contagem, e afirmou que aritmética estava fundamentada no tempo assim como a
geometria estava fundamentada no espaço. Nenhum musicista teria se extraviado
tanto.) No pensamento lógico explanatório, o tempo é meramente uma condição
psicológica. No seu Regulae ad directionem ingenii, Descartes descreve o processo
do raciocínio dedutivo como uma cadeia de proposições, observando que “podemos
passar tão rapidamente do primeiro para o último que praticamente nenhum passo é
deixado na memória, o conjunto sendo visto todo ao mesmo tempo” (Regra XI). Em
outras palavras, se o tempo fosse eliminado o processo não seria afetado de todo
modo. Se fosse eliminado do pensamento musical, nada sobraria deste último. Como
poderia alguém pensar uma melodia se não como uma sucessão específica de notas
168
Nossa discussão do caso de Chopin nos ensinou uma coisa ou duas a respeito
do pensamento musical. Podemos aprender mais a partir do caso de um compositor
que, diferentemente de Chopin, teve êxito em aperfeiçoar uma de suas melodias.
O que vemos aqui são duas graciosas curvas melódicas, uma para cada estrofe,
cada uma delas subdivida em meias-estrofes.
O caráter da melodia é a princípio determinada pelo ritmo ______, anunciado
no curto prelúdio do piano: avançando para o começo do compasso, parando no meio.
169
gosto do compositor, mas somente pela natureza específica da própria melodia. Para
usar outra vez um desacreditado par de termos, Schubert foi guiado não por sua
subjetividade mas por considerações objetivas, não por seu gosto mas por seu
pensamento.
O que Schubert falhou a ver a princípio, o que poderia ter clareado para ele
após ele pensar a respeito dela, foi que a meta de sua melodia tenta completar com a
oitava ______ . Não que isto seja uma idéia racional – foi somente um impulso
pensar outro pensamento musical. Afinal de contas (Schubert pode ter refletido), a
história toda da melodia gira em torno destas duas notas: onde a melodia (e onde
estou eu) em casa – no Mi mais baixo, no mais alto, em ambos, ou alternadamente
nos dois? Ambos aparecem no curto prelúdio do piano; quão significantes eles são a
pessoa só realiza mais tarde: __________ . Aqui o Mi mais alto não é mais do que
uma imagem em espelho do mais baixo, é somente sugerido; o movimento enraizado
na mais grave e imediatamente se reafirma. Mas quando a voz começa com ______ ,
temos algo diferente. Embora o Mi mais alto caia sobre o tempo fraco, não cai sobre
um tempo, sobre “dois”, não como realmente fora antes, na última unidade de tempo
de uma batida. Além disso, foi vir a permanecer para uma batida e um meio ao invés
de ser deixado imediatamente; a nota foi agora afirmada em sua independência. Ela
tem uma vida sua própria, embora seja ainda fraca demais para sustentar a melodia, a
qual desde logo recorre à oitava mais baixa. Dois compassos depois, a mesma coisa é
repetida, mas então algo decisivo acontece. Como se o Mi mais alto fosse levado a
tentar puxar a melodia para si mesmo, para capturá-la, e como se a melodia estivesse
disposta a se submeter, temos agora uma longa ascensão passando através das notas
intermediárias da oitava de Mi a Mi; a melodia alcança Mi mais agudo no tempo
forte, e continua além dela: ________ . Por um momento ela escapa do puxão da
oitava mais baixa. Então esta última consegue apanhá-la novamente e, submissa, a
melodia desce suavemente, relutantemente, à última nota da frase, Mi. Por este
tempo, no entanto, o Mi mais alto tornou-se gradualmente mais forte do que o mais
baixo; ao final da primeira curva parcial o resultado se suspende em equilíbrio. Ela
permanece para a segunda curva parcial para dar o último passo, encontrar a demanda
do que precedeu, para acomodar a emissão. O primeiro final de Schubert falha em
fazer isto:
não pode saber o que ele será após sua concepção ter se tornado uma realidade. Seu
trabalho pode falhar próximo à sua concepção, porque entre concepção e parto há um
período de gestação, e esta última, como todo processo vivo, envolve a possibilidade
de falha, de não-realização, tanto quanto de realização. Somente o próprio criador
sabe ou suspeita onde ele falhou. Nós outros somos beneficiados em ambos os casos.
A imensa quantidade destes esboços – e o que ele viram a ser para nós é
somente uma fração do que Beethoven escreveu – pode ser considerado pois somente
se admitimos que para ele compor era inseparável de escrever. É sabido que em suas
longas caminhadas ele sempre carregava papel de música com ele na forma de
pequenos cadernos de nota, cuja condição mostra que ele os estava usando na rua.
Outrora, pensava-se que ele escrevia somente porque ele desconfiava de sua
memória, porque seu fluxo de idéias era tão abundante que ele temia que algo
pudesse escapar, mas um exame em detalhe destes esboços mostra que esta hipótese é
infundada. Outros compositores registram idéias, um padrão tonal acabado que pode
ainda ser deficiente em algumas partes, ou delinear uma peça acabada omitindo
detalhes. Em contraste, Beethoven em seus esboços nunca registra uma melodia
acabada; esta última aparece somente no manuscrito do trabalho (onde, no entanto,
muitas vezes submete-se a posteriores alterações). Os esboços contêm somente o que
precede a versão definitiva; o que eles registram é como ela está vindo a ser. Vemos –
literalmente vemos – como os padrões desenvolvem-se desde começos embrionários,
os estágios através dos quais ele passa como se eles fosse gradualmente se
aproximando do resultado final (o qual nós conhecemos, mas o qual Beethoven não
conhecia). Esta não é a reconstrução “ideal” do processo criativo para o qual nos
referimos em nossa discussão da teoria de Schenker – o auto-desenvolvimento de um
“plano de fundo” através de suas sucessivas transformações pelos “planos
intermediários” até o “primeiro plano”; como declaramos explicitamente, nenhuma
obra musical é de fato produzida deste modo. Nos esboços, temos diante de nós o
processo do desenvolvimento real em tempo real. Um exemplo particularmente
refinado vem a seguir.
A maravilhosa melodia que serve como tema para as variações no movimento
lento do Quarteto op. 127 poderia parecer a todo ouvinte um modelo de um lampejo
de inspiração enviado pelos céus. Enquanto a melodia emerge dos compassos
introdutórios gradualmente assumindo forma, começa a respirar, para traçar sua linha
pura no espaço tonal, todo ouvinte sente claramente que aqui está a perfeição. Ele se
sente no colo dos deuses como ele saboreia cada momento, exaltado, enlevado na
onda da música, profundamente satisfeito por suas proporções lógicas e requintadas.
De que outra maneira poderia tal obra ter vindo ao mundo que não como o todo que
ela é, de um só golpe, como uma dádiva vinda do alto? Bem, os esboços contam uma
história diferente. O registro visível dos dias, talvez semanas, de incessante labor ao
qual esta melodia deve sua existência preenche mais do que vinte folhas de música
grandes. Esta famosa melodia foi reconstituída pedaço por pedaço; continuamente,
novas possibilidades são testadas e descartadas. Em alguns pontos, o compositor
perdeu seu caminho completamente e teve que recomeçar de novo, ou hesitou
interminavelmente entre caminhos que o levaram a parte alguma. Tal é a face real
desta inspiração enviada dos céus.
Aqui está a melodia acabada sem as frases de abertura e fechamento, mudanças
de registro, acompanhamento e contra-cantos:
176
Vamos agora ver como tudo isto sucedeu. Na página 35 de um dos Cadernos
de Esboços, dentre outras coisas, repentinamente encontramos isto: ______ . Um
nada, fora de qualquer lugar; uma escala gradualmente ascendente, seguida por uma
descendente, um ritmo balançante. Quem teria suspeitado de suas potencialidades?
Claro, quem sabe o que Beethoven fez dele facilmente reconhece a semente do futuro
177
padrão. O primeiro compasso revela seu futuro perfil; o segundo é ainda amorfo.
Somente a primeira e a terceira últimas notas, as notas que irão reaparecer no padrão
definitivo, são claramente legíveis; as outras são apenas decifráveis.
Isto parece nada conter de um elemento poderoso para dar forma. Ele se
acomoda e começa imediatamente a se desenvolver, a se desdobrar. Ainda na mesma
página, encontramos isto:
A forma começou a respirar: ela encontrou sua própria sua própria respiração
pela extensão de quatro compassos. O segundo compasso não é mais amorfo; foi
inteirado um estágio mais alto ( mesmo a sincopação _________ no padrão definitivo
está já presente). No entanto, podemos quase tão somente sentir o padrão futuro nos
compassos 3 e 4. Mas _______ ao final, similar a ________ na melodia acabada,
mostra que as forças desenvolventes estão trabalhando.
Seguem vários experimentos com detalhes, mas então, duas páginas adiante,
vem uma surpresa. Vemos algo assim:
A frase repentinamente mostra uma outra face. Está numa tonalidade diferente,
Dó maior ao invés de Láb maior. Em Beethoven tal mudança indica um passo em
direção a uma maior simplicidade e clareza. A alternância rítmica entre notas longas
e curtas e de estados de tensão suave e resolução dão caminho a uma seqüência de
oitavas uniformes e relaxadas. Para nós, que sabemos que Beethoven a esse tempo
ainda não sabia, a saber, para o que este processo de crescimento estava levando, esta
mudança pode parecer como um desvio do caminho direto. Mas os caminhos do
desenvolvimento orgânico cuja meta está latente não são os caminhos do
planejamento intelectual que estabelece ele mesmo sua meta em avanço. O menos
pesado Dó maior, a mais relaxada seqüência de oitavas: quem poderá dizer – talvez a
tarefa requeira neste ponto que algum lastro seja arremessado fora do barco. O que
nos parece um desvio do caminho direto pode parecer ter sido um atalho em termos
de desenvolvimento orgânico.
Claramente, esta mudança marca um ganho decisivo. A vontade par mudar o
centro da dominante – aqui de Dó para Sol – afirmou-se da maneira mais simples e
mais marcante: o movimento do compasso 1 é repetido no compasso 3, somente
agora Fá# substituiu Fá; isto é, a ordem Dó maior abriu caminho para a ordem Sol
maior. Ao mesmo tempo, o compasso 2, levando ao novo começo do compasso 3,
encontro, como se acidentalmente, sua forma definitiva. Mas a maior surpresa vem
no compasso 4. Ele é rascunhado em duas versões: uma do registro mais alto é
tentada e obviamente rejeitada – ela nunca ocorre; a outra é retida. Mas nesta última
versão dos compassos 3 – 4 não é nada que não a frase final da melodia definitiva,
meramente transposta por um semitom abaixo e tempo 4 / 4. Começo e fim da
melodia foram encontrados, mas nada assim tão longe. O conjunto do padrão de
desenvolvimento está agora delineado tão concisamente quanto possível.
178
Não se deve esquecer, no entanto, que tais percepções são devidas a uma visão
posterior, após o fato. Neste ponto Beethoven não sabia, não poderia ter sabido, que
meta ele queria atingir – ele sabia, ele poderia ter tido a melodia inteira; ele mesmo
pensou aqui que ele deveria, além disso, diminuir o peso e a tensão. E então ele
substitui as oitavas por sextas: ________; a melodia torna-se alegre. Um último
experimento no mesmo espírito resulta em um delineamento um tanto enevoado:
______. E enquanto Beethoven adicionada a palavra “V.cello” na última nota
oitavada do esboço – isto é, planejado para um quarteto de cordas – Schindler ( o
assistente e executor testamenteiro de Beethoven) escreveu na margem da décima-
sexta nota dos esboços que ele intencionava ser usado em uma sonata para piano a
quatro mãos. Aparentemente Beethoven neste ponto brincava com a idéia de um
trabalho inteiramente diferente, mas ele logo o abandonou. Por um tempo ele
perseguiu experimentos em contraponto com o material das dezesseis notas, mas o
próximo esboço marca um retorno à idéia original:
À primeira vista isto parece ser com um passo para trás. O padrão final
previamente atingido (é claro, Beethoven não sabia que ele era o final) da primeira
frase de quatro compassos é sacrificado; as primeiras frases de dois compassos estão
de volta. Mas isto está fora de questão aqui; Beethoven está agora interessado em
alcançar o meio com o centro modificado, se possível em uma limpeza que o
carregará na correta continuação e na ligação apropriada das duas metades da
melodia. Por sua vez, nada melhor é avaliável para ele para enchimento do todo
estendido desde o começo para o meio do que as duas frases de dois compassos com
repetição. Mas a tentativa revela-se frutífera. O que aparece agora na fenda no meio é
nada mais que não a anacruse do começo, repetida aqui, mas agora levando para 2 ao
invés de 1. Em outras palavras, ao invés do prévio ______, agora temos ______ no
meio, uma ligação tão simples quanto sólida, que une as duas metades em um todo
único.
15
A primeira metade do segundo compasso é ilegível.
181
Por algum tempo o desenvolvimento não é levado adiante. Nas próximas duas
páginas encontramos sugestões de variações. Beethoven ainda brinca por uma última
vez com Dó maior e notas em oitava. Ele experimenta com prelúdios e poslúdios
possíveis; ele presta atenção aos contra-cantos. Então, lentamente, o último estágio de
desenvolvimento começa, e ao mesmo tempo toda espécie de outras idéias ocorre a
ele. Com o próximo esboço ele experimenta descartar os períodos de dois compassos
na primeira metade; o esboço começa com a primeira frase de quatro compassos
correta, mas falha em encontrar a continuação, que é suposta levar à dominante
quatro compassos mais tarde. Ele escreve, risca, escreve novamente e risca
novamente; as notas não têm direção. O resultado do esforço infrutífero é uma nova
tentativa, a última, com a forma de dois compassos, quase idêntica à da última citada,
somente enriquecida por um póslúdio. Então ele volta para trás para a frase de quatro
compassos do começo, assim:
A princípio, é com dificuldade que percebemos que o passo decisivo foi dado,
pois aqui Beethoven reconhece que a primeira frase de quatro compassos deve ser
repetida. Justo como a segunda metade da melodia, então a primeira metade requer
repetição de uma frase de quatro compassos. Este é um reconhecimento sem reservas;
a frase é repetida literalmente. Como resultado desta repetição, a mudança de centro e
a conclusão sobre a dominante no compasso 8 estão eliminadas, mas somente um
observador superficial concluiria que isto é outra tentativa para alcançar o impossível.
Na verdade, tudo o que é necessário agora para chegar na versão definitiva é uma
pequena mudança, uma tão desprezível que ela dificilmente tem importância
enquanto registrando em mais um esboço. Esta mudança aparece somente na melodia
definitiva, no manuscrito: _________ nos compassos 3 – 4 torna-se ________ nos
compassos 7 – 8. Isto é tudo o que é necessário para atingir a meta imanente no
processo de crescimento, isto é, para realizar as duas tendências mutuamente
exclusivas – a de uma articulação em quatro compassos e a de uma mudança de
tonalidade no meio – dentro de um padrão coerente.
Vamos dizer mais uma vez: nossa apresentação da seqüência dos esboços
musicais como um processo significativo, uma revelação, um crescimento cuja meta
pré-determinada é alcançada, embora a abordagem possa ser peculiar, com uma
espécie de certeza sonambulística – tal apresentação foi possível somente porque
sabemos o desfecho. Para aqueles que não conhecem o final, que não podem ver o
que vem após cada estágio sucessivo, longas distâncias do processo podem parecer
como uma flutuação sem plano entre possibilidades igualmente pouco promissoras.
Os tormentos criativos de um artista são devidos ao fato de que ele está na mesma
situação: ele não sabe a meta do processo; em virtude disso, antes de alcançar sua
meta ele não sabe se ela existe. Ele toma uma grande quantidade de força, coragem e
fé para perseverar em tal situação. Até o último passo, o artista não pode dizer, Isto é
isto, isto é o que eu havia buscado sem saber o que era, sem mesmo saber que eu
estava buscando isto. Somente após ter a melodia definitiva diante dele pode
Beethoven entender que todo o longo processo foi a respeito dela, que espécie de
problema ele tinha a resolver (estipulado que ele está interessado, o que é duvidoso).
Estamos nos lembrando do dito de Valéry de que uma linha ditosa em um poema é a
solução de um problema que se levanta somente após ter sido resolvido. Paul Klee
diz também: “Um artista conhece uma grande oportunidade, mas somente em
retrospecto”.
Os esboços citados acima são novamente reproduzidos, em seqüência, na
prancha seguinte: um desenvolvimento puramente audível pode também ser tornado
visível – pode apresentar um quadro significativo para o olho – e assim somos
capazes de ver que a “inspiração” considerada como outrora o véu de mistério foi
levantada. O que aconteceu com a súbita iluminação tão gabada, a voz que parece vir
desde o alto e para a qual o criado extasiado ouve atentamente? Quem poderia estar
mais incerto do que Beethoven está aqui a respeito de sua própria criação, a respeito
do que sua própria voz lhe diz? O lampejo de inspiração, o momento da graça, é visto
se estendendo no tempo, demorando mais e mais tempo. Ao invés do repentino “Aqui
183
está!” vemos um longo processo, uma lenta gestação. E o tempo a que nos referimos
não é o tempo que um artista precisa para impor sua vontade a um material refratário,
nem é um processo como aquele, a dizer, de construir uma casa, pedra sendo
adicionada a pedra até a forma concebida pelo arquiteto tornar-se realidade. É o
tempo de desenvolvimento, comparável ao desenvolvimento orgânico, um processo
que acontece independentemente da vontade ou da imaginação do artista: ele não
pode atuar sobre ele; pode apenas regular seu curso. Desde seu começo como uma
visão do surgimento final do padrão definitivo, este processo é tudo menos um
desenvolvimento direto. É marcado por falsos inícios, mudanças de direção, segundos
pensamentos; mesmo assim ele não é cego, não é um tatear no escuro, mesmo se em
alguns pontos ele assim parece ser. Mais propriamente poderia ser dito seguir um
aroma invisível: é um tâtonnement dirigé (“um tatear dirigido”), como Teilhard de
Chardin caracteriza o desenvolvimento das coisas vivas. É como se o compositor
nada fizesse com ele, como se as notas fizessem tudo por si mesmas. Não vemos
nenhum Prometeu aqui, nenhum Titã atuando com orgulho: o que vemos é um
homem lutando contra obstáculos, fazendo seu máximo para ajudar as notas em seu
esforço para nascer, atuando como uma parteira, um anti-Prometeu, tentando somente
descobrir a vontade oculta das notas. É uma experiência profundamente tocante ver
como Beethoven – por exemplo, quando ele tenta encontrar a correta continuação
para o compasso 4 – começa sua busca não com o compasso 5 mas com o compasso
1. Como mencionado antes, ele repetidamente começa tudo de novo, escreve todos o
quatro compassos iniciais nota por nota, freqüentemente em pressa febril, como se ele
soubesse que ele pode encontrar o que ele está vendo somente nas próprias notas, que
ele deve deixar-se ser carregado por seu movimento, mover-se com o tempo delas e
novamente até que seu momento leve-o acima da barreira e o coloque na pista
correta. Pois ele não sabe como a melodia irá continuar, e somente as notas podem
dizer a ele. E elas o fazem, repetidas vezes. São elas que falam a ele, não uma voz
vinda do alto. Isto é inspiração, se você quiser, mas sua fonte não é nem uma força
mais alta nem o próprio artista: ela vem das notas.
Poderia ser afirmado que, diferente do crescimento biológico, o processo há
pouco descrito começa em um ponto que pode ser localizado com exatidão. Quando a
frase _________ emerge pela primeira vez, algo de fato surge de lugar algum, está
repentinamente “lá”, a criação de um momento, não o resultado de um processo – em
outras palavras, uma súbita iluminação, um genuíno lampejo de inspiração. A criação
de um momento, sim; mas de um momento de graça, um momento “inspirado”? é
realmente necessário usar tais palavras grandiosas para julgar a existência de ______?
Afinal de contas, pensar é sempre pensar sobre ou a respeito de “algo”. Um musicista
naturalmente pensará a respeito de notas, a menos que algo mais se force sobre sua
consciência. Quando a consciência de um musicista é deixada a si mesma, por assim
dizer, será uma consciência das notas, na forma de grupos reunidos mais ou menos
desprendidas. __________: uma escala ascendente, um ritmo balançante – isto é
simplesmente o que os psicólogos chamam de um conteúdo primário da consciência.
Sua presença não requer nenhuma explicação especial. Desde que os compositores
são seres conscientes, tais conteúdos primários da consciência devem existir,
184
“A perfeição não é algo suposto de ser algo crescente”. Sob este título
Nietzsche escreve em Human, All Too Human: “Na presença da perfeição, raramente
perguntamos como ela acontece. Ficamos contentes em usufruí-la como uma dádiva,
como se fosse conjurada por mágica. Isto é assim provavelmente porque estamos
ainda por uma atitude primitiva, mitológica. . . . O artista sabe que seu trabalho é
mais altamente louvado se ele dá a impressão de ter sido produzido pelo milagre de
uma súbita iluminação, e então ele encoraja acreditar que na criação de uma obra de
185
arte a única força ativa é a inspiração cega. . . . Sua intenção é iludir o espectador ou
ouvinte, fazê-lo prontamente aceitar a idéia de que a perfeição implica em nenhum
trabalho. . . . É a arte imposta pela história . . . para dissipar esta ilusão e expor as
falácias e maus hábitos que guiam o intelecto dentro da espraiada rede pelo artista.”
16
Cf. Sound and Symbol: Music and the External World, pp. 73-148.
189
que projeta agora um, não outro aspecto; quando a função não é dirigida para um
objeto em separado ou separável dentre muitos; quando, gramaticalmente falando,
sujeito, predicado e objeto estão em constante movimento de influência mútua: então
a divisão em três partes gramaticais de fala torna-se enganosa. A mesma unicidade,
intimidade, interação que caracteriza a relação entre o cantor e sua canção no estágio
primal caracteriza aquela entre Beethoven e seus padrões melódicos. A matéria
pensante é também a matéria ouvinte: ele se deixa ser guiado por sua criação. O
último está invariavelmente em crescimento e em invenção, nunca um ou outro.
Nossa distinção costumeira entre sujeito e objeto simplesmente não se aplica onde a
experiência musical é concernida. Esta experiência não é mística. Embora ela seja
similar em estrutura à experiência musical, na última o sujeito não está
completamente submerso pelo pensamento; os dois aspectos do processo envolvente
permanecem distintos. Mas aqui a distinção foi em um sentido inteiramente diferente
de nossa distinção costumeira entre “sujeito” e “objeto”.
Existe, então, uma coisa como um pensamento lógico, pensar em conceitos, e
existe uma coisa como um pensamento musical, pensar em movimentos. Pensamento
conceitual leva a julgamentos, pensamento musical a padrões tonais. Todo conceito é
um conceito “de” algo, uma reflexão da realidade. Movimento é real por si mesmo.
Pensamento conceitual é cognitivo, se propõe a adicionar nosso estoque de
conhecimento. Pensamento musical é produtivo, se propõe a adicionar nosso estoque
de realidade. Pensamento conceitual deve sua ordem interna às leis da lógica que o
governam: é natural supor que o pensamento musical, produtivo, deve sua ordem
interna às leis que lhe são próprias. O que são as leis da lógica é conhecido: deverá
ser possível ter uma percepção sobre o interior da natureza daquelas outras leis das
quais temos nos instruído a respeito do pensamento musical.
Como usado comumente, ele denota uma afirmação geral que cobre um vasto
número de instâncias individuais. Leis da natureza são afirmações a respeito de
processos naturais; elas se referem a certas uniformidades observadas e que podem
ser reduzidas a uma fórmula. “Isto sempre foi assim e sempre será assim”. As leis do
pensamento ou da lógica são redutíveis à fórmula “Isto é então”. Leis morais
expressam um “deve ser”. O que é comum a todas estas leis é sua universalidade.
Cada instância individual agrupada dentro de uma lei universal difere de todas as
outras, mas desde o ponto de vista da lei, a diferença é secundária, mera questão de
oportunidade ou circunstância. Uma falsa inferência não invalida as leis da lógica,
mas mais precisamente confirma-as por suas conseqüências. O vento que sopra as
folhas para cima não é uma “exceção” à lei da gravidade. Matar em auto-defesa é
contrário à lei moral, mesmo ficando a ação impune. Qualquer fenômeno que reúne o
requerimento geral de uma lei pode ser dito ser “governado” por essa lei: sua
universalidade não é afetada pela particularidade da instância individual. A
formulação da lei (e a lei não é anunciada ou descoberta até ter sido formulada) é
sobre outro nível que o fenômeno ele governa. Um mandamento, “Tu deves” ou “Tu
não deves”, não é a mesma coisa que uma ação, nem é uma equação matemática de
processo natural. Uma regra em lógica não é um juízo: não é nem verdadeira nem
falsa em si mesma, a proposição da regra é determinar quando um juízo é verdadeiro
ou falso.
Que leis ou regras deste tipo operam na composição de Beethoven não será
contestado por qualquer um que tenha acompanhado nossa análise dos esboços
discutidos acima. Tais leis ou regras derivam sua validade do sistema métrico e tonal
específico com o qual o compositor conta. Que Beethoven usou papel de música
comum e a notação costumeira mostra que ele aceitava as condições do sistema
diatônica e métrica da época maior-menor. A série inteira dos esboços é governada
pelas leis deste sistema, isto é, pelo fato do centro tonal ser mudado para a dominante
e no fato das frases de quatro compassos estão sendo equilibradas uma contra a outra.
Como as leis da natureza, as regras da lógica e as leis morais, aquelas do sistema
diatônico têm uma certa universalidade: elas estão em vigor se a música se expressa
na linguagem da tonalidade maior-menos e sua métrica. Sua validade, no entanto, é
de uma espécie diferente – diferente do “Isto será sempre assim” das leis na natureza
(as quais não deixam chance alguma para o que vai acontecer), do “deve ser” da lei
moral (que implica na possibilidade de obedecer ou desobedecer a lei), e diferente,
também, não ao menos de tudo, do categórico “Isto tem que ser então” das leis da
lógica, assim tão certas com respeito ao que é verdadeiro e o que é falso. As leis em
questão aqui pode mais precisamente ser formuladas como: “Se isto . . . então
aquilo”, portanto tanto expressa uma combinação de liberdade e conformidade à lei
quanto uma certa variabilidade ou flexibilidade na própria lei. A este respeito estas
leis assemelham-se a convenções lingüísticas cujo objetivo é a exata correlação entre
forma e conteúdo, o “como” e o “o que”. Sou livre para dizer o que eu quero dizer, e
posso dizê-lo de qualquer modo que eu escolha (embora o “como” sempre afetará o
“o que”), mas se eu quero que minha afirmação seja entendida, devo expressar-me
em uma forma convencionalmente prescrita para minha espécie de afirmação. (Por
191
exemplo, se pretendo fazer uma pergunta, minhas palavras não devem ser lançadas
em uma das formas convencionalmente usadas para responder questões, ou serei
muito provavelmente incompreendido.) Não é impossível fazer afirmações partindo
do uso convencional, nem são tais afirmações necessariamente falsas; elas são
simplesmente sem sentido. (Isto é por que alguém pode também falar de leis do
significado.) É claro, posso querer dizer algo para o qual não exista nenhuma
expressão convencional e então ser necessário cunhar uma nova palavra, deste modo
partindo do uso corrente. Quando faço isso, no entanto, eu não estou quebrando
qualquer regra, estou meramente alterando-a. (O termo “estilo” tem sido evitado
deliberadamente neste parágrafo: ele é por demais vago; maneja-se melhor sem ele.)
Em todo caso, é certo que os esboços musicais de Beethoven não devem seu
fascínio à aplicação destas leis, isto é, as convenções de tonalidade, tempo do
compasso, esquema métrico, rítmico, mudança de tonalidade nas passagens centrais e
assim por diante: tudo isto as feições da música de Beethoven compartilha com
muitos outros compositores, como ensina a teoria musical. O que nos fascina, e foi
valioso inquirir a respeito, foi mais propriamente como Beethoven tomou um grupo
de notas inicialmente amorfo e o transformou em uma única estrutura musical.
Podemos confidenciar que ele estava completamente familiarizado com as leis ou
regras do sistema tonal e métrico que ele herdou, que ele assimilou todas as lições da
teoria musical, mas este conhecimento não o ajudou quando, por exemplo, ele
trabalhava no terceiro compasso da melodia. Esta não poderia ajudá-lo, porque
nenhuma regra geral pode possivelmente ser formulada para a necessidade de saltar
uma oitava neste ponto particular da melodia. O único problema para o qual esta é a
solução foi o problema particular que confrontou Beethoven neste ponto particular
desta composição particular. E podemos dizer o mesmo de todos estágios em sua
pesquisa da melodia. Houvesse leis gerais governando seu desenvolvimento, cada
etapa sucessiva teria sido deduzida da precedente, e Beethoven teria sabido
exatamente quais notas ele teria que escrever a cada ponto dado. Mas, como temos
visto, isto é precisamente o que ele não sabia (ou, diríamos, ele ainda não sabia): a lei
governaria sua melodia. Ele não saberia possivelmente porque esta lei não existe (ou,
diríamos, ela ainda não existe). Que o caminho no qual trabalhou era todo ele
governado por leis, que este foi um processo de crescimento inconfundível enquanto
tal por sua consistência interna, desenvolvimento fora de uma lógica de seu próprio,
ninguém pode negar. Mas então a lei governante pode estar escondida dentro do
próprio processo composicional. Beethoven encontrou-o para si mesmo: ele não pré-
existia; ele foi demandado para ele. Alguém poderia quase dizer aqui de um processo
em busca da lei que o governa. Somente a reconhecemos como lei após o fato, uma
vez que o processo composicional foi terminado e a obra musical foi criada. A lei em
questão aqui não é mais ou menos do que determinada obra em toda a sua
singularidade e particularidade. “ Tu pesquisarás e encontrará tua lei” – este poderia
ser como colocar em palavras a lei que governa o processo da composição musical.
Isto implica, no entanto, em que o processo é governado pela lei somente na medida
em que de fato este encontra sua lei. Se o manuscrito do Quarteto op. 127 não tivesse
chegado até nós, se tivéssemos somente os esboços preliminares, não teríamos idéia
192
O que tudo isto aponta é que no domínio das formas musicais existem muitas
tantas leis quanto existem padrões musicais individuais, e que cada lei é válida
somente para uma dada instância. Podemos, então, nesta relação, falar de lei
“individual”? O termo não é desconhecido em outras relações, mas que sentido teria
aqui? Como estaremos a interpretando? Uma lei que é aplicada somente uma vez, a
validade da qual se desvanece tão logo ela tenha sido reconhecida e realizada
claramente, isto é o oposto de lei. Uma situação na qual existem tantas leis quanto
instâncias individuais, cada lei sustentando o balançar sobre somente um caso – o que
é isto se não anarquia? Poderia ser argumentado que a lei governando uma estrutura
musical é universal no mesmo sentido em que cada passo no processo de composição
é um caso particular submetido a ele. Mas mesmo outorgando isto, como poderíamos
falar de uma lei quando ela está oculta, quando ela não pode ser destacada do
processo que ela supostamente governa, quando ela não pode ser formulada
independentemente do processo que ela governa, a formulação da qual é, mais
precisamente, simultânea com a perda de sua efetividade e validade? Podem haver
tais leis? Devem haver leis deste tipo: caso contrário, a arte seria um domínio não da
ordem mas da anarquia. E a arte é um domínio da ordem – não somente e não
essencialmente porque é também governado por leis gerais relativas aos materiais,
organização formal, épocas históricas, gerações, estilos, mas em um sentido muito
mais profundo. A afinidade entre uma paisagem feita por um pintor Sung e uma por
Dürer é uma afinidade mais próxima do que entre uma pintura de Dürer e uma
pintura feita por um de seus pupilos. Para considerar tais fatos, precisamos
obviamente revisar nossas noções habituais de lei e de conformidade à lei.
Em seu Crítica do Julgamento, Kant reconhece que a arte não tem espaço para
leis universalmente unitivas, e que ao mesmo tempo as obras de arte inegavelmente
manifestam uma ordem que não pode ser puramente subjetiva, uma mera questão de
gosto pessoal. Ele tentou dominar a dificuldade envolvida aqui apresentando uma
noção de “conformidade à lei” em uma situação “onde nenhuma lei se aplica”. Por
sua própria experiência de arte ser limitada, ele deixou este por aquele, contentando-
se com uma formulação negativa. Nosso interesse, no entanto, é progredir em direção
a uma percepção positiva dentro da natureza do que temos chamado “a lei oculta”,
oculta por definição, por assim dizer, pois ela cessa de operar tão logo descoberta e
nenhuma aplicação ou validade além de um simples instante a governa. Ela não opera
via causalidade (como as leis da natureza), via motivação (como as leis morais) ou
via regras formais (como as leis da lógica). Admitir que ela opera via propósitos – o
padrão final como o propósito secreto guiando o processo criativo – seria ainda
inadequado. SE, com Kant, definimos propósito como “o conceito de um objeto, na
medida em que ele contém o solo da atual existência do objeto”, certamente não
podemos falar aqui de um “propósito guia”. Nossa análise de um exemplo dos
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Como mencionado antes, esta espécie de “emergir” não se parece com o erguer
de um véu, como quando algo até agora invisível repentinamente se torna visível. O
que acontece, mais propriamente, é que algo atravessa o limiar da existência: algo
que nunca existiu, salvo potencialmente, agora é feito atual. Estamos recordando a
distinção aristotélica entre existência _______ (como força, como tendência) e
existência _________ (como atualidade). Porque a lei oculta não é dada de antemão
mas é para ser construída, e porque ela não se revela até ter sido encontrada, a espécie
de processo que ela governa combina a conformidade da lei com a novidade, a
consistência interna com a imprevisibilidade. Sob leis universais tal combinação seria
auto-contraditória, pois nos processos governados por tais leis cada passo é pré-
determinado, pré-figurado, predizível, e conseqüentemente nenhuma realmente
“nova”. A estética tem desprendido uma grande quantidade de trabalho infrutífero
tentando eliminar a aparente contradição, o pseudo-problema de como a
conformidade da lei pode ser conciliada com a liberdade na criação artística, como se
a liberdade envolvida fosse uma coisa à parte da conformidade da lei! Desde que a
estética, tomando sua deixa de outras disciplinas, almejou descobrir leis universais,
ela não pode livrar-se desta contradição, e então se desviou de sua tarefa real. Pois
diferente da ciência natural, cujas leis universais acrescentaram ao nosso
conhecimento e compreensão, a estética deveria buscar a chave da compreensão não
nas leis universais, mas na que é única e não-repetível, a única de sua espécie.
Sob esta luz, ainda uma outra noção corrente da estética parece insustentável, a
noção (a qual é mais ou menos tomada por garantida) de que criar obras de arte e
experienciá-las são dois processos diferentes, o primeiro dirigido para terminar a
obra, o último começando a partir deste término. O processo de criação é mais
freqüentemente estudado do ponto de vista psicológico, ao passo que o problema da
estética é localizado na experiência recebedora da obra acabada. O fato de que nos
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não está de qualquer modo separada do resto do mundo. Outras coisas ao lado da
música são musicais: a lei que governa o pensamento musical tem aplicações além da
música, onde outros processos musicais estão envolvidos. Não é somente uma
metáfora poética dizer da “musicalidade” do mundo.
sentimentos, por exemplo), nem constrói estruturas formais autônomas: ele inventa a
si mesmo. Na música, a lei pela qual ele conhece a si próprio como ser vivo é
realizada em sua forma mais pura.
Existem outros processos dentro da história e da experiência humana que são
similarmente caracterizados pela singularidade. Pense naquelas grandes
individualidades coletivas: nações, estados, comunidades supra-nacionais, mesmo a
espécie humana como um todo, o indivíduo histórico por excelência. Disputas sobre
as “leis” da história são todas viciadas porque somente a interpretação admitida de
“lei” é aquela universalizante das ciências lógicas e matemáticas. Mesmo os
processos históricos são governados obviamente, pelo menos em parte, por outro tio
de lei inteiramente diferente. A história é essencialmente previsível e imprevisível,
embora algumas situações podem se repetir no sentido da reprodução. O significado
de um evento é revelado somente após o fato. Todas as pessoas estão em busca de sua
própria lei oculta, sua história é sua verdadeira busca. O padrão é plenamente
revelado somente ao final. Todas estas feições são características dos processos
musicais, e então o significado da história é mais prontamente compreendido pelo
pensamento “musical” do que pelo pensamento “lógico”. A noção de leis universais
governando todos os eventos históricos mais certamente vem de não mais do que um
desejo de realização inspirado pelas ciências naturais. Há boas razões para acreditar
que existem tantas leis históricas quantas coletividades históricas existem. Assim
portanto, a única verdadeira lei histórica seria aquela que mostrasse governar toda a
espécie humana. Mas a busca por tal lei não é o negócio dos historiadores. A espécie
humana como um todo é buscada por eles, é sobre este caminho para realizá-lo. Hoje
em dia, pensadores ousados, treinados na rigorosa escola da ciência natural, estão
aplicando o conceito de história ao universo como um todo – o universo sobre seu
caminho desde os estados sub-atômicos iniciais em direção ao estado final quando ele
será consumado e sua lei oculta será revelada; o universo como um todo em busca de
sua lei oculta: uma concepção verdadeiramente musical. Encontrando suporte neste
quadrante para a idéia de musicalidade do mundo ajudaria a libertá-la da mancha de
ser fantástica. Além disso, foi um estudante de mitologia, não um musicista, quem
escreveu: “A música repousa sobre uma qualidade inerente da existência, a
musicalidade”. A música não poderia nos mover tão profundamente se não a
sentíssemos na operação de uma lei que abarca tanto nós quanto o mundo e uma
intimação do pulso do coração que anima todo o universo.
Aqui fazemos uma pausa e refletimos.
O mundo, o mundo do homem, nos mostra duas faces: a face da lógica e a face
da música. Não podemos fazer sem um ou outro deles. Ambas as leis são criadas pelo
homem antes ele encontrá-los o mundo, e de ambos ele descobre posteriormente que
eles são também a ordem do mundo. Espantar-se com a ordem lógica inconcebível do
mundo foi o começo da filosofia; a tremenda realização intelectual de Kant foi tornar
o inconcebível concebível a princípio sem tirar do maravilhoso ou reflexão
reduzindo. A maravilha análoga e a reflexão a respeito da musicalidade do mundo
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não havia ainda surgido, embora ambos os aspectos, mesmo que ainda
indiferenciados, podem ter estado presentes nos ensinamentos de Pitágoras. Nenhum
esforço intelectual na escala kantiana, contudo, é requerido para apreender a
musicalidade do mundo: na música, afinal de contas, o homem não está radicalmente
separado do mundo como um sujeito de um objeto, mas cada um é dirigido em
direção ao outro como na unicidade de um encontro. A verdade da música, como
aquela da matemática, consiste em que, o que ela nos serve como uma chave para o
entendimento do mundo no qual vivemos.
A lógica e a música não dividem o mundo em dois compartimentos cartesianos
separados. O mundo é um, governado por leis dadas e do mesmo modo por leis ainda
a serem encontradas. O homem, que alterna entre o pensamento conceitual e musical,
é também um. Em última análise, lógica e música precisam uma da outra, pois
nenhuma é bastante completa sem a outra. Como previamente mencionado, a lógica
alcança sua culminação na prova de que cada sistema lógico completo deve incluir
pelo menos uma proposição logicamente indemonstrável, isto é, uma que é “nova”,
que não pode ser logicamente deduzida. Isto é, a lógica pede emprestado à música.
Que as obras da lógica, assim como as obras da música, pressupõem um processo de
crescimento é atestado pelo livro de Pascual Jordan, Verdrängung und
Komplementarität. “Um eminente matemático vivo [John Von Neuman]”, escreve
Jordan, uma vez descreveu para mim o processo da descoberta matemática. Primeiro
uma conjectura específica é formulada, então é buscada a prova para ela. Parte a
parte, fragmentos desconexos de uma eventual prova são trazidos à tona. É como
ligar uma ilha com o continente, mas não da maneira usual de trabalhar desde o
continente para fora. Mais propriamente, é como se o banco de terra crescesse de si
mesmo desde o fundo do oceano para cima, e muito irregularmente, partes da calçada
eventual emergisse aqui e ali acima da água muito tempo antes das demais partes.” O
processo assim descrito é obviamente aparentado com aquele que traçamos em nosso
exemplo desde os Cadernos de Esboços de Beethoven.
Que mais do que o pensamento musical está envolvido na música deveria ser
claro desde a existência da teoria da música, enquanto parte indispensável da
educação de todo compositor. Podemos compará-lo com o papel da física e da
química na vida orgânica. Schenker estava correto ao chamar a atenção a um aspecto
essencial da música que envolve o pensamento conceitual mais propriamente do que
o musical. Que o desenvolvimento gradual da estrutura fundamental do plano de
fundo pode ser compreendida como uma reconstrução puramente “ideal”, não deve
ser confundido com o processo real de crescimento em tempo real, como
mencionamos anteriormente. É verdade que os diagramas de Schenker podem ser
interpretados em termos dinâmicos, todavia é claro que seu padrão de “primeiro
plano” está contido no plano de fundo de um modo que torna fechado a implicação –
não de todo no modo da melodia acabada de Beethoven está contida na semente de
seu primeiro esboço. Isto é, na realidade, por que Schenker expôs sua teoria modo
geométrico, dedutivamente, começando com formas primárias hipotéticas no plano
de fundo, inferindo padrões de plano intermediário, gradualmente tornando-os mais
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explícitos. O método analítico da lógica conceitual, no entanto, não nos leva mais
longe do que as estruturas do plano intermediário: o salto para o primeiro plano está
além dos poderes da lógica.
Nota do Editor
O manuscrito original continua aqui por algumas páginas, enquanto o
rascunho de uma recapitulação do volume. A conclusão do presente autor – os três
parágrafos finais – é um resumo da terceira parte, “Pensamento Musical”, mais
propriamente do que do livro inteiro. A morte impediu que ele reformulasse estas
páginas finais de modo que elas servissem como um final apropriado para este
volume.