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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

MESTRADO EM PSICOLOGIA

A ESCUTA DO ESPECIALISTA NA FAMÍLIA E DO SUJEITO NO


CONTEXTO DA SAÚDE MENTAL

Vinícius de Aquino Braga1

RESUMO

Este trabalho se constitui como uma discussão acerca das possibilidades de subjetivação do humano em
condição de adoecimento, no presente contexto da prevalência da gestão preventiva da saúde – que tem
um caráter de contenção de gastos para o Estado –, e da inserção do especialista na família com a
promessa de dar uma resposta para qualquer mal-estar. O que abordamos é o fato de que não há saber
antecipado sobre o sujeito, mas que, com o declínio da lei paterna que nos permite suportar um pouquinho
escutar o que não sabemos do Outro. No entanto o que podemos perceber na realidade é que, ao mesmo
tempo em que a família não sabe o que fazer com o doente, o saber médico aliado à gestão pública, a
partir dos novos modelos da dita clínica ampliada, empurra a responsabilidade para a família.

Palavras-chave: Gestão da saúde; Clínica; Psicanálise; Doença mental; Família.

ABSTRACT

This work is constituted as a discussion of the human subjectivity possibilities in disease condition in the
present context the prevalence of preventive health management - which has a containment character
expenditures for the state - and the insertion of the expert in the family with the promise to respond to any
discomfort. What approach is the fact that there is to know in advance about the subject, but, with the
decline of the paternal law that allows us to endure a little listen to what we do not know the Other.
However what we can see in reality is that while the family did not know what to do with the patient, the
medical knowledge combined with public management, from new models of extended clinic said,
pushing the responsibility for family.

Keywords: Health management; clinic; psychoanalysis; Mental illness; Family.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho advém das discussões realizadas na disciplina de


Família e Saúde Mental do curso de Mestrado em Psicologia da Universidade federal do
Maranhão. Ele visa principalmente a apresentar um fenômeno que se torna bem visível
a partir das novas políticas de saúde criadas principalmente no pós-guerra, que é a

1
Mestrando em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão.
entrada do especialista na dinâmica familiar, que está intimamente relacionada com a
constituição de um saber médico que se antecipa e homogeiniza a demana, atrelado a
um modelo de gestão da saúde. Essa conjugação de eventos não é sem consequências
para quem precisa do tratamento principalmente no campo da saúde mental. São
algumas dessas consequências, que dizem respeito às possibilidades de escuta desse
sujeito paciente que queremos discutir. Para tanto, utilizaremos a teoria psicanalítica
freudiana, lida a partir de Jacques Lacan e daqueles que lhe seguiram na transmissão de
seu ensino e que podem nos propiciar teorizações mais recentes acerca do que iremos
abordar.

1. A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR NA LINGUAGEM

Dizer que o que se tem como ideia de família está mudando é mais simples
que conceitua-la. Afinal, o que outrora poderia vir a ser entendido como sua
configuração quando do poder da religião na organização social – o homem, a mulher e
os filhos –, fica particularmente evidente na atualidade que não cabe como critério para
conceituação. Dada a multiplicidade das organizações familiares devido a fatores como
divórcios, casamentos homossexuais, exigências de qualificação para o mercado de
trabalho, maior longevidade, entre outros, ficaria muito complicado dizer o que é
família a partir da sua composição.
Na psicanálise a família está intimamente relacionada ao complexo de
Édipo, pois como Freud (1930[1929]/2006) nos diz, é desde a infância, na organização
familiar que a possibilidade de entrada no social é construída. Não devemos tomar ao pé
da letra a mitologia empregada por Freud, pois ele a utiliza para nomear uma estrutura
de constituição do humano que não está restrita às figuras do pai e da mãe.
Lacan com o recurso aos registros real, simbólico e imaginário, nos mostra
como é possível fazer repousar o trabalho da psicanálise nas estruturas de linguagem.
Em seu retorno a Freud, ele nos diz claramente que é a fala que sempre está em questão
para o analista. Ela é propriamente o instrumento de seu trabalho, segundo Lacan, que
vai buscar resgatar sua dignidade e seu lugar no tratamento (LACAN, 1964/2008).
Então, não se trata então somente de que haja ali para o sujeito um homem
que ocupe lugar de pai e uma mulher que ocupe lugar de mãe na estrutura edípica, se
trata também de funções dentro de uma rede de significantes que nos atravessa e nos
constitui. Vejamos o que é isso.
Utilizando de maneira particular a divisão entre significante e significado de
Saussure, Lacan nos mostra como a realidade dos significantes é descolada dos
significados.

É nisso que vou reter vocês um instante, para fazer-lhes sentir como são
necessárias aqui as categorias da teoria linguística, para com as quais tentei
no ano passado torná-los menos rígidos. Vocês se lembram que, em
linguística, há o significante e o significado, e que o significante deve ser
tomado no sentido material da linguagem. A armadilha, o buraco no qual não
se deve cair, é a de crer que o significado são os objetos, as coisas. O
significado é coisa totalmente diversa – é a significação, sobre a qual eu
expliquei para vocês, graças a Santo Agostinho, que é linguista tanto quanto
o Sr. Benveniste, que ela sempre remete à significação, isto é, a uma outra
significação. O sistema da linguagem, em qualquer ponto que vocês o
apreendam, nunca se reduz a um indicador diretamente dirigido a um ponto
da realidade, é toda a realidade que está abrangida pelo conjunto da rede da
linguagem. Vocês nunca podem dizer que é isso que é designado, pois,
mesmo quando conseguirem, vocês nunca saberão o que eu designo nesta
mesa, por exemplo, a cor, a espessura, a mesa enquanto objeto, ou qualquer
outra coisa que seja (LACAN, 1955-56/2010, p. 43-44).

Isso endossa para nós o fato de que a realidade dos objetos é constituída
sobre uma rede de significantes que se articulam uns aos outros para então podermos
atribuirmos sentido. A linguagem tem um funcionamento próprio que não está ligada
biunivocamente com nenhuma indicação de qualquer coisa no mundo, portanto possui
sua própria autonomia e é o que permite propriamente ao humano organizar sua
realidade. O exemplo da mesa nos mostra que o que lhe dá sua significação não está em
parte alguma do “objeto mesa”.
A constituição do humano enquanto alguém no social então, na família, em
qualquer lugar que seja, passa necessariamente pela entrada na ordem significante. Isso
significa que aquele sujeito faz parte de uma comunidade cultural, com normas, regras e
costumes que são transmitidos pela linguagem. É isso que o complexo de Édipo
autoriza.
Esses elementos do social já estão dados na rede de significantes, na cultura.
Antes que o humano possa adquirir certo controle da fala, a organização significante já
está presente para ele, pois ele é contado por um Outro. Então, que seja um certo
alguém especificamente que possa vir a ocupar as funções determinadas pela linguagem
na estrutura edípica, isso é contingente, diz respeito à história de cada um.

Também o Outro tem, além dele, esse Outro capaz de dar fundamento à lei.
Essa é uma dimensão que, é claro, é igualmente da ordem do significante, e
que se encarna em pessoas que sustentam essa autoridade. Que essas pessoas
faltem, vez por outra, que haja carência paterna, por exemplo, no sentido de o
pai ser imbecil demais, não é o essencial. O essencial é que o sujeito, seja por
que lado for, tenha adquirido a dimensão do Nome-do-pai (LACAN, 1957-
58/1999, p. 162).

No Édipo, portanto, trata-se, segundo Lacan, da entrada na simbolização


pela via do Nome-do-pai. Essa operação não ocorre sem a mediação daqueles que
encarnam os lugares determinados por essa estrutura. Mas a questão fundamental não
está nessa ordem imaginária do “Fulano”, e sim na dimensão significante com as
possibilidades que ela comporta para aquele sujeito em sua relação com o Outro.
O Nome-do-pai, como um significante, funciona como uma referência na
cadeia significante de cada sujeito. Trata-se do significante que representa a lei
simbólica, ou seja, a lei que instaura um limite ao gozo sexual, que, dentre outras coisas,
Freud (1913/2006) o descreve, proíbe a realização sexual com os genitores em nossa
cultura. Isso fornece um modelo de interdição ao humano que marca decisivamente o
modo como ele pode suportar estar numa relação com os outros dentro de certos limites,
às custas de uma parcela de sua satisfação sexual como Freud (1930[1929]/2006)
escreve no Mal-estar na civilização.
Pensando a cultura como a organização simbólica das relações significantes,
tentamos descrever algumas alterações históricas com relação à configuração familiar.
Costa elenca alguns elementos da alteração na ordem familiar na passagem
dos valores burgueses para a família do séc. XX relacionados à figura do pai:

O homem, segundo a higiene, devia ser antes de tudo pai. Mas, esta função
não coincidia com a atividade familiar do patriarca colonial. O pai antigo era
fundamentalmente um proprietário. Possuía bens, escravos, mulheres e filhos
a quem impunha sua lei e seu direito, sem maiores obrigações para com
terceiros. Deveres, só para consigo mesmo. Compromissos, só com seu
nome, sua honra, suas riquezas (COSTA, 2004, p. 240).

Assim, o pai colonial era aquele que detinha a autoridade para preservar e
transmitir a lei simbólica, inclusive com o seu nome, como o próprio autor aborda. A
esse pai não cabia prestar explicações, ou seja, não estava em uma posição de
semelhante com os outros membros da família. Essa dissimetria de lugares é importante
para que o limite seja estabelecido, de acordo com aquilo que constitui a função paterna
no drama edípico. Quando afirmamos que a questão da transmissão não se centra nas
figuras imaginárias, não significa que estas, uma vez que são elas que encarnam a
função simbólica, não tenham importância. O que, por outro lado, não significa que haja
uma relação causal direta.
O deslocamento da referência paterna é situado pelo autor num contexto
onde a família é questionada sobre sua capacidade de cuidar de seus próprios entes,
como expresso pelo movimento higienista, que tinha como ideal uma reforma sanitária
para o social.

A partir da terceira década do século passado, a família começou a ser mais


incisivamente definida como incapaz de proteger a vida de crianças e adultos.
Valendo-se dos altos índices de mortalidade infantil e das precárias condições
de saúde dos adultos, a higiene conseguiu impor à família uma educação
física, moral, intelectual e sexual, inspirada nos preceitos sanitários da época.
Esta educação, dirigida sobretudo às crianças, deveria revolucionar os
costumes familiares. Por seu intermédio, os indivíduos aprenderiam a cultivar
o gosto pela saúde, exterminando, assim, a desordem higiênica dos velhos
hábitos coloniais (COSTA, 2004, p. 12).

Com isso podemos perceber que há algumas mudanças sociais que


implicam diretamente uma alteração na dinâmica familiar. O Estado passa a ter uma
força maior sobre a vida privada das pessoas, uma vez que precisa garantir os direitos
do homem numa organização social erigida sob o selo da liberdade e de um saber
supostamente privatizável.
Atualmente assistimos ao desenvolvimento do resultado dessas e de uma
série de outras mudanças que levam, cada vez mais, os especialistas a serem
convocados a dar respostas sobre questões que outrora só diziam respeito ao seio
familiar. E terapeutas de todo gênero se acham prontos para vender a resposta para
todos os problemas. A panaceia para todos os conflitos humanos é vendida a preço de
mercado.

2. AS POLÍTICAS DE SAÚDE DO SÉCULO XX E O SABER CLÍNICO

Vivemos na era do domínio do saber científico, o coroamento da


prevalência do conhecimento paranoico no campo da saúde. A escuta das questões
humanas na atenção de saúde é deixada de lado em nome da norma, da antecipação dos
ideais de prevenção e da especulação financeira, através das políticas de gestão criadas
ao longo do século XX.
Principalmente a partir do pós-guerra, com a volta do crescimento
econômico e o início do desenvolvimento tecnológico na velocidade a que assistimos
em todos os campos do conhecimento, surge em diversos lugares do mundo, de modo
marcante nos EUA com o New Deal, políticas que visavam a um bem-estar comum, e
chegando ao movimento francês do maio de 68, questionando a ordem social da época,
bem como questões do campo da saúde (DESVIAT, 1999). Assim, diversos
documentos importantes, inclusive com a fundação da ONU isso se torna mais
imperativo, foram elaborados visando a uma definição daquilo que seria o modelo de
saúde universal que os países deveriam buscar.
Num dos principais desses documentos, que tem por objetivo definir e
integrar ações em prol da promoção de saúde, elabora-se a ampliação deste conceito.
Pode parecer óbvio hoje que a saúde não está restrita ao aspecto biológico do humano,
nem também pode ser definida a partir da negação de doenças. Depois da Primeira
Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em Ottawa, em 1986, buscou-se
uma conceituação positiva de saúde que atualmente pode ser descrita como um bem-
estar biopsicossocial.
O documento conhecido como Carta de Ottawa prevê que a comunidade
como um todo seja capacitada a promover sua própria saúde, corresponsabilizando,
assim, profissionais e pacientes quanto aos cuidados que se deve ter para o
desenvolvimento de um bem-estar global.

Promoção da saúde é o nome dado ao processo de capacitação da


comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde,
incluindo uma maior participação no controle deste processo. Para atingir um
estado de completo bem-estar físico, mental e social os indivíduos e grupos
devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades e modificar
favoravelmente o meio ambiente. A saúde deve ser vista como um recurso
para a vida, e não como objetivo de viver. Nesse sentido, a saúde é um
conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as
capacidades físicas. Assim, a promoção da saúde não é responsabilidade
exclusiva do setor saúde, e vai para além de um estilo de vida saudável, na
direção de um bem-estar global (CITAÇÃO OTTAWA).

Esse documento de caráter pretensamente universal serviu de referência


para a implementação de políticas públicas de saúde pelo mundo, inclusive para o SUS
no Brasil. Ao longo do século XX, vários dos países mais ricos do mundo elaboraram
diferentes modelos de gestão da saúde que pudessem possibilitar a seus povos um
serviço eficiente e que permitisse a participação ativa dos usuários. O saber médico
aparentemente deixa, com essas novas concepções, de ter o foco na cura das doenças
para voltar-se ao cultivo da boa forma, da boa alimentação, enfim, da boa gestão do
próprio corpo.
Na obra de Desviat (1999) sobre A Reforma Psiquiátrica, podemos observar
que, no campo da saúde mental, o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para
tal campo seguiu de certa maneira essa direção de uma saúde preventiva, com a pretensa
promessa de maior autonomia dos pacientes sobre as doenças mentais.
Nesse campo, entretanto, algumas especificidades nos saltam aos olhos (e à
escuta!). A própria noção de doença mental foi se modificando ao longo dos anos
acompanhando o desenvolvimento da psiquiatria como uma especialidade médica.
Então, quando a psiquiatria estava surgindo, ela vinha a elaborar uma concepção de
doença mental ainda muito atrelada aos aspectos morais da época. O que levou a
psiquiatria a ter uma íntima relação com o direito, pois tratava-se em seu papel de
possuir a tutela sobre os indivíduos institucionalizados, ou seja, sobre os marginalizados
pela sociedade que eram encaminhados aos manicômios (DESVIAT, 1999).
O paradigma da psiquiatria do século XIX passa a ser percebido como não
podendo atender aos anseios dos novos ideais de liberdade da sociedade nos países
desenvolvidos. Os movimentos de reforma psiquiátrica começam a exigir
principalmente a desinstitucionalização dos pacientes, com a devida prestação de
assistência básica a que eles pudessem vir a necessitar. Nesse contexto, diversas
propostas de tratamentos terapêuticos, inclusive com a descoberta dos psicotrópicos e
da psicanálise, passam a serem utilizadas com o intuito de até mesmo eliminar a
necessidade de internação (DESVIAT, 1999).
Assim, as políticas públicas de saúde precisam reformular-se para abranger
a população, não mais somente dentro das instituições de saúde, mas devendo estender
suas ações para toda a sociedade de modo geral. E é aí que o saber preventivo adquire
uma relevância essencial. Pois, uma sociedade em que se espera poder conviver
livremente com as diferenças, precisa ser uma sociedade saudável como um todo. Ser
saudável agora não podendo mais ser sinônimo de ausência de doença, mas devendo
positivamente referir-se ao bem-estar biopsicossocial a que nos referíamos como o
conceito de saúde ampliada. É-nos colocada a necessidade dessa busca da saúde ideal
ainda que não estejamos doentes, pois poderemos vir a ficar, o que significa que adoecer
é tido como evitável. Criam-se também novas patologias que venham a responder, por
exemplo, por fenômenos sociais.
Esse saber antecipado em relação às doenças promete às pessoas uma saúde
melhor e um adiamento da morte, e, ao Estado, uma economia em relação aos gastos
com a saúde. Um ótimo negócio aparentemente, no entanto algumas consequências que
já fomos apresentando em relação ao campo da saúde mental devem ser colocadas.

3. A FALA COMO INSTRUMENTO

Primeiramente falaremos um pouco sobre a condição própria ao falante.


Desviat (1999) aponta que o desenvolvimento da psiquiatria no século XX passa, como
já afirmamos, pela criação da psicanálise. E é justamente ela que se ocupa das questões
da linguagem como tratamento possível ao humano.
A noção de inconsciente na psicanálise para Lacan é estruturada como uma
linguagem (LACAN, 1955-56/2010). Isso não significa que o inconsciente se dê a
conhecer, ou “se mostre”, na linguagem, mas que a partir de como o sujeito se organiza
para encobrir isso que manca, que cai, que vacila, é possível proporcionar aí uma escuta
que permita ao sujeito alguma autonomia diante de seu caráter faltoso e
sobredeterminado. Isso diz respeito ao fato de que há um funcionamento da linguagem
no qual ele se constitui e que o determina, o que não é sem um preço.
Freud (1930[1929]/2006), em Mal-estar, coloca que a principal das três
fontes de sofrimento do homem – além da força da natureza e da fragilidade de nossos
corpos – são as relações humanas. Então, adiantando-nos um pouco, numa linha já mais
lacaniana, podemos situar esse mal-estar nas relações justamente como sendo questões
que dizem respeito à linguagem.
Lacan (1955-56/2010) alerta para o fato de que o tratamento analítico se dá
pela via do significante, e não pelo sentido, pois a linguagem tem como característica o
mal-entendido. Não há comunicação plena, no sentido dual, com um emissor que envia
uma mensagem que vai ser captada em seu sentido pelo receptor. Em última instância:

A linguagem funciona inteiramente na ambiguidade, e a maior parte do


tempo vocês não sabem absolutamente nada do que estão dizendo. Na nossa
interlocução mais corrente, a linguagem tem um valor puramente fictício,
vocês atribuem ao outro o sentimento de que estão sempre entendendo, isto é,
de que são sempre capazes de dar a resposta que se espera, e que não tem
nenhuma ligação com qualquer coisa que seja possível de ser aprofundada.
Os nove décimos dos discursos efetivamente realizados são completamente
fictícios (LACAN, 1955-56/2010, p. 139).

Esse funcionamento da linguagem no sujeito é marcado pelo fato de que os


significantes são integrados em sua estrutura na história de cada um. Cada um vai
responder à falta de um significante que represente o objeto perdido de uma forma. É a
partir dessa falta fundamental que há a possibilidade de um discurso para o sujeito.
Cada sujeito se posiciona com relação à rede dos significantes de um modo diferente.
Ou seja, cada um crê articular sua fala com o “verdadeiro” sentido, de modo que às
vezes irritamo-nos quando o outro parece não estar entendendo muito bem ou não muito
interessado no que estamos dizendo.
O significante que marca o impossível, que nos conduz a nos virarmos com
a falta, Lacan (1955-56/2010) dirá que é um significante primordial. É uma teorização
sua para demonstrar como que a cadeia significante se organiza a partir de algo que está
fora, na ordem de um impossível. Portanto, o ideal da satisfação advinda do suposto
objeto perdido é marcada por esse significante que não significa nada, uma vez que é o
que fica suprimido da simbolização.
Dizemos objeto perdido considerando a formulação freudiana sobre o
princípio da realidade, na qual ele nos mostra como o sentimento de realidade se
desenvolve articulado a uma busca de uma satisfação impossível, pois que data do
momento – podemos dizer aqui que é mítico – em que o Eu e o mundo eram um só.
Sobre isso, Lacan diz:

Uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido, através da qual se exerce todo
esforço de busca. Ela marca a redescoberta do signo de uma repetição
impossível, já que, precisamente, este não é o mesmo objeto, não poderia sê-
lo. A primazia dessa dialética coloca, no centro da relação sujeito-objeto,
uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja
procurado da mesma forma que o que será encontrado. É através da busca de
uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é procurado e que é
encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se procura.
Existe aí uma distância fundamental, introduzida pelo elemento
essencialmente conflitual incluído em toda busca do objeto (LACAN, 1956-
57, 1995, p. 13).

O ideal científico parece residir em acreditar que é possível se chegar ao


objeto pleno, puro, e neutro – ou seja, livre das arestas do sujeito e da linguagem. Com
isso, descarta-se o fato de que a pretensa neutralidade do objeto só faz sentido porque o
sujeito realizou operações simbólicas mais ou menos comuns que lhe permitiram
integrar uma realidade mais ou menos compartilhada com o social. Significa que exclui-
se o fato de que o sujeito só tem esse sentimento de realidade na medida em que já é
sempre de irrealidade de que se trata; na medida em que já é sempre com seu eu que
qualquer acesso ao mundo é possível, de modo que já é atravessado pelas dimensões
simbólica e imaginária.
Esse mesmo pensamento científico quer encontrar a “boa linguagem”,
inequívoca e plena, para oferecer uma resposta única e verdadeira para todos os
problemas da vida (e da morte!). Isso também tem sérias consequências no campo da
saúde mental.

4. UM SABER ANTECIPADO SOBRE A FAMÍLIA

O engodo de que é possível uma resposta que diga do real do objeto, livre
de qualquer traço do sujeito, leva-nos a crer que haja uma receita para prevenir ou tratar
todos os casos. O ideal científico advém da nostalgia de síntese entre eu e mundo a que
nos referíamos.
Lacan nos diz que na física (mãe das ciências naturais) há uma significação
mínima que é a de Umwelt, que significa a conjunção minimal de dois significantes: “o
um e o todo – que todas as coisas são uma ou que o um é todas as coisas” (LACAN,
1955-56, p. 216). Ou seja, há uma significação de saída que marca seus significantes
ainda que não haja ninguém lá para significa-los. Isso já implica algo da ordem do
sujeito.
No campo da física isso não é um problema tão grave, mas sabemos que a
psiquiatria, em seu afã de confirmar-se como ciência médica, tem se aproximado cada
vez mais do modelo biologista de explicação dos fenômenos humanos. Vejamos porque
isso é complicado.
O modo de pensar das ciências da natureza é dentro da ordem de uma
síntese do eu. Acredita-se que a consciência é o motor de tudo, foi assim até Freud. Esse
modo de pensar exclui a possibilidade fundamental do mal-entendido da linguagem a
que nos referíamos para tentar nos colocar na ordem de um discurso inequívoco que
todos entendam e que diga de todos.
No entanto, como vimos, cada sujeito se insere na ordem significante a
partir de sua própria história, sua própria origem. Isso de saída torna qualquer esforço de
enquadrá-los num saber a priori, no campo da saúde mental, um empreendimento
arriscado e danoso. Pois, a dimensão que interessa ao trabalho é a dimensão humana
com suas especificidades e questões.
Os avanços dos exames de imagem e da biologia arrastam consigo, cada vez
mais, o saber psiquiátrico para uma antecipação classificatória e prescritiva, na qual
corre-se o risco de não se escutar o que faz questão para aquele sujeito diante do qual se
está. Como afirma Czermak:

Enfim, a extensão de um discurso que valoriza a Ciência, habitualmente


disfarçada sob a aparência de uma nova ética laica, promove as esperanças
nas virtudes de uma língua ideal, sem equívoco que suspenderia o mal-
entendido, desvencilharia nossas línguas imperfeitas do obscuro objeto que as
infecta devido à significância fálica. Esperança em uma ciência cuja paixão
explicativa acabaria, enfim, com a contingência. Já não se encontra aí o apelo
de uma paranoia generalizada? A psiquiatria mundial, em seus esforços rumo
a tal língua comum, já produziu uma obra prima a-teórica, consensual (os
diferentes DSM), que legisla sobre o Real democraticamente, mas na qual,
curiosamente, falta a definição da palavra “delírio”. Essa obra, bem
compatível com a economia do mercado dos psicotrópicos, é ela própria um
sucesso comercial (CZERMAK, 2005, p. 72-73).

O que ele nos diz nesse trecho é que o aspecto particular do trabalho clínico,
aquilo com que cada um pode significar sua falta, pode muito bem ficar de fora dessa
classificação que, democrática, oferece toda possibilidade de recobrimento imaginário
para qualquer coisa que nos aflija a todos nós. Munidos desses manuais, bem como das
respectivas respostas farmacêuticas para os males já previstos de antemão, poderia até
parecer que havíamos nos livrado do incômodo da linguagem.
É o que as políticas de gestão de saúde exigem do especialista. Quanto mais
pessoas puderem ser abrangidas pelo seu trabalho, mais ele “rende”. Como afirma
Melman (2009, p. 364), “(...) o Estado não se interessa pelos sujeitos, ele só se interessa
pelos indivíduos, ou seja, aqueles que se inscrevem nas estatísticas e nos
recenseamentos”.
De modo mais abrangente, Czermak nos aponta como se articulam esses
fenômenos:

Em que ponto estamos atualmente? Em um totalitarismo soft. Conjuntura


bem interessante. Aparecem de um lado, o sucesso de crítica das
neurociências perfeitamente discordantes da clínica, ou seja, do que dizem os
pacientes (provavelmente para evitar que o que eles nos dizem possa dividir-
nos); de outro lado, a gestão biopsicossocial das doenças mentais e a gestão
administrativa daqueles que recebem a firme demanda de realizá-la. Quanto à
função autêntica do clínico, função sagrada e tradicional que repousa na
transferência, ela é colocada fora do campo. Sucede que o corpo de
psiquiatras abdicou daquilo que, durante um certo período, foi seu objeto de
preocupação: uma reflexão sobre função autêntica, isto é, sobre o Real em
jogo nos fenômenos que a ele se apresentavam através de seus pacientes,
chamada atualmente gestão de “setor” ou ainda “projeto de serviço”. Não se
fala mais de internar, trata-se de “externar”. Por não terem podido eles
mesmos formular sua disciplina, é a administração que a dita a eles e, como
no exército e em todos os corpos constituídos, a forma pela qual devem dar
conta dela. Mas como dar conta numa economia dita “liberal”? De um modo
contável. Assim, em seu pânico, ligado à impossibilidade de sustentar seu
próprio discurso, eles acabaram, como Lacan evocara nos Escritos, por
abandonar seu próprio discurso em benefício dos discursos já constituídos
(CZERMAK, 2005, p. 76-77).

É nessa lógica de um saber psiquiátrico gestor, que escuta no varejo, e das


políticas de saúde que visam a conter os gastos que a família é colocada como um
recurso terapêutico. Isso serve ou para quando a farmacologia se mostra falha diante de
qualquer situação (de um louco, por exemplo) – “A complexidade da clínica em alguns
momentos provoca sensação de desamparo no profissional, que não sabe como lidar
com essa complexidade” (BRASIL, 2009, p. 15); ou para que esse doente cumpra seu
papel de ser “externado” da instituição.
A despeito de todos os esforços de desinstitucionalização dos doentes
mentais que Desviat (1999) nos descreve, podemos perceber o quanto esses pacientes
podem ficar estagnados nessa condição de idas e vindas em internações. Isso tem a ver,
não somente com o que viemos elencando sobre o funcionamento da saúde mental na
atualidade, como também com a família, cuja referência não está mais encontrada nela
mesma, como dissemos no início, e sim no especialista.
Agora que a família deve contar com esse saber especializado fornecido
pela atenção básica, tem à sua disposição todo o catálogo de transtornos com que pode
recobrir qualquer coisa que não vá bem. Isso pode se tornar um modo dessa família
ainda poder se concentrar numa identidade comum. Utilizando a expressão de Melman
(2008), é um modo da família fazer comunidade, ainda que seja na dor, na histeria
coletiva. Foi o que restou diante do enfraquecimento da referência paterna.
A família, tendo como referência esse saber especializado, está sempre apta
a encaminhar para atendimento seu elemento “problemático”. E, enquanto ele não
estiver quietinho e bem calado, para não incomodar muito a suposta harmonia daquele
grupo, deverá continuar a ser mandado para tratamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o saber que agora se antecipa em relação à doença, o que acontece na


verdade é que, muitas das vezes, o doente não é escutado e lhe é receitada logo uma
medicação. Isso pode acontecer por conta do caráter quantitativo dos atendimentos que
a gestão de saúde exige, bem como do desenvolvimento de um discurso científico
homogeinizante, que coloca todos democraticamente na ordem de algum transtorno.
Então, o médico manda o doente para casa, para o seio da família que agora passa a
possuir o saber para os seus problemas.
O quadro é mais complicado na saúde mental, onde diversos modelos de
tratamento para os loucos e outros outrora lançados nos sanatórios foram propostos,
algumas vezes demonizando o saber médico e a internação. Assim, o que deveriam ser
medidas de apoio a um tratamento médico ou psíquico se tornam por si só a solução
mágica para o problema das doenças mentais, como os tratamentos com foco social. A
própria psiquiatria abriu mão de sua clínica para tentar firmar-se como resposta às
demandas dos novos modelos de gestão. Quem dita as regras é a economia, seja da
gestão dos custos ao Estado, seja do financiamento das indústrias farmacêuticas.

REFERÊNCIAS

CZERMAK, Marcel. Atualidade e limites da paranoia. in: Revista Tempo Freudiano.


Org.: Louis Sciara, Jean Jacques Tyszler. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano Associação
Psicanalítica Ed., vol. 2, nº 4, janeiro, 2005.

DESVIAT, Manuel. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 1999.

FREUD, Sigmund. (1913). Totem e Tabu. In: FREUD, S. Obras Psicológicas


Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Vol. XIII. Rio de Janeiro:
Imago, 2006.

____. (1930[1929]). Mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Obras Psicológicas


Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Vol. XXI. Rio de Janeiro:
Imago, 2006.

LACAN, Jacques. (1955-1956) O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 1999.

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MELMAN, Charles. A prática psicanalítica hoje – Conferências. Rio de Janeiro:
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