A formação do Estado Moderno II: a centralização política
Prof. Dr. Edson Fasano No entanto, as premonições de uma nova ordem social aí contidas não era uma falsa promessa. A burguesia no ocidente já era forte o bastante para deixar a sua marca indistinta no Estado, sob o absolutismo. Com efeito, o paradoxo aparente do absolutismo na Europa ocidental era que ele representava fundamentalmente um aparelho para a proteção das propriedades e dos privilégios aristocráticos, embora, ao mesmo tempo, os meios através dos quais tal proteção era promovida pudessem simultaneamente assegurar os interesses básicos da classe mercantis e manufatureiras emergentes(...) (ANDERSON, 1985, p. 39).
No texto anterior foi apresentado o processo de transformação estrutural do
modo de produção feudal, decorrente da intensificação da prática comercial, das transformações na produção artesanal e o consequente processo de urbanização.
A centralização política, materializada através do surgimento do Estado
Nacional, correspondeu as demandas superestruturais desencadeadas pelas transformações econômicas.
Em outra passagem, Marx declarava: “ O poder do Estado
centralizado, com seus órgãos onipresentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura ´órgãos forjados segundo o plano de uma divisão do trabalho sistemática e hierárquica – tem sua origem nos tempos da monarquia absoluta, quando serviu a sociedade da classe média nascente, como arma poderosa nas lutas contra o feudalismo. (ANDERSON, 1985, p. 16). Razões de diferentes ordens: políticas, religiosas, sociais e econômicas, contribuíram para o surgimento dos Estados Nacionais, especialmente a partir do século XV.
Como é possível observar na citação anterior, em que Anderson (1985)
destaca a análise de Karl Marx sobre a centralização política ocorrida por meio dos Estados Nacionais, o ponto crucial de tal processo foram as transformações econômicas e consequentemente o surgimento de um novo grupo social, a “classe média”, a partir da denominada Baixa Idade Média ( sec. XI a XV). 2
Huberman (2010), assim se refere ao surgimento de tal grupo social:
A ascensão da classe média é um dos fatores importantes
desse período que vai do século X ao XV. Modificações na forma de vida provocara o crescimento dessa nova classe, e seu advento trouxe novas modificações no modo de vida da sociedade. As antigas instituições, que haviam servido a uma finalidade na velha ordem, entraram em decadência, novas instituições surgiram, tomando o seu lugar. É a lei da história. (p.54). De um lado a ampliação das práticas comerciais, intensificou a utilização das estradas, novas rotas comerciais foram estabelecidas, cidades foram criadas como polos comerciais, por outro lado, com a crise do feudalismo, formou-se um grande contingente de desvalidos. O grupo de comerciantes em ascensão (classe média), percebia a necessidade de proteção militar e procurava formas de supri-la.
A estrutura medieval, de composição das forças militares, não respondia as
necessidades do grupo social nascente, pelo contrário o ameaçava. A ideia de um exército mercenário, remunerado, que pudesse proteger a propriedade daqueles que os remunerasse, passava a ganhar materialidade.
Para quem se poderia voltar? Quem na organização feudal, lhe
poderia garantir a ordem e a segurança? No passado, a proteção era proporcionada pela nobreza, pelos senhores feudais. Mas fora contra as extorsões desses mesmos senhores que as cidades haviam lutado. Eram os senhores feudais que pilhavam, destruíam e roubavam. Os soldados dos nobres, não recebendo pagamento regular pelos seus serviços, saqueavam cidades de roubavam tudo o que podiam levar. As lutas entre os senhores guerreiros frequentemente representavam a desgraça para a população local, qualquer que fosse o vencedor. Era a presença de senhores diferentes em diferentes lugares ao longo das estradas comerciais que tornavam os negócios tão difíceis. Necessitava-se de uma autoridade central, um Estado Nacional. Um poder supremo que pudesse colocar em ordem o caos feudal. Os velhos senhores já não podiam preencher a sua função social. Sua época passara. Era chegado o momento oportuno para um poder central forte. (HUBERMAN, 2010, p. 54) Como analisado no primeiro texto didático de Formação do Estado Moderno, o sistema feudal, centrado na relação de suserania e vassalagem, dificultava que o rei exercesse o poder de fato. Dessa maneira, as transformações econômicas decorrentes da atividade mercantil, encontraram na figura do rei um grande parceiro. 3
A centralização política, na figura de um rei absoluto, poderia contribuir
para a constituição de uma força militar remunerada e que pudesse garantir a segurança dos comerciantes. Nesse sentido, grupos comerciais, passaram a financiar o rei, obtendo com isso, vantagens para a sua prática econômica.
O rei fora um aliado forte das cidades na luta contra os
senhores. Tudo o que reduzisse a força dos barões fortalecia o poder real. Em recompensa pela sua ajuda, os cidadãos estavam prontos a auxiliá-lo com empréstimos em dinheiro. Isso era importante, porque com dinheiro o rei poderia dispensar a ajuda militar de seus vassalos. Podia contratar e pagar um exército, sempre a seu serviço, sem depender da lealdade de um senhor. Seria, também, um exército melhor, porque tinha uma única ocupação: lutar. Os soldados feudais não tinham preparo, nem organização regular que lhes permitisse atuar em conjunto, com harmonia. Por isso, um exército pago para combater, bem treinado e disciplinado, e sempre pronto quando dele se necessitava, constituía um grande avanço. (HUBERMAN, 2010, p. 55). O financiamento dos reis, por parte dos grupos comerciais, desencadeou uma nova prática de recolhimento de tributos, ou seja, o surgimento dos impostos. Os impostos, em relação ao Estado, ocuparam o lugar da renda da terra, típica do feudalismo, e que colocava amarras para a centralização política. Além do que, os impostos passaram a financiar os aparelhos do Estado nascente.
Para que se prosperassem as práticas comerciais e consequentemente
desenvolvessem as oficinas artesanais, tornava-se necessário a superação das rivalidades entre as cidades mercantis e entre as corporações de ofício, superando assim, as excessivas normas locais. Foi com tal propósito que se desenvolveu o conceito de nação e de identidade territorial, consequentemente de um Estado Nacional articulado a um território. Também contribui para tal intento, o desenvolvimento da língua nacional, enquanto instrumento identitário.
Os camponeses que desejavam cultivar os seus campos, os
artesãos que pretendiam praticar o seu ofício e os mercadores que ambicionavam realizar o seu comércio – pacificamente – saudaram essa formação de um governo central forte, bastante poderoso para substituir os numerosos regulamentos locais por um regulamento único e transformar a desunião em unidade. Entre as causas que contribuíram para essa união, está o sentimento de nacionalidade então surgido. Isso se evidencia na vida, luta e morte de Joana D’ Arc. Na França os senhores feudais eram particularmente fortes, e durante a Guerra dos 4
Cem Anos com a Inglaterra o mais poderoso, o duque de
Borgonha, aliou-se aos ingleses e impôs-se várias derrotas sérias ao rei francês. Joana que desejava ver a Borgonha como parte da França, escreveu ao duque: “ Joana, a Donzela, deseja que estabeleçais... longa, boa e segura paz com o reino da França... em toda a humildade vos peço, imploro e exorto a que não façais mais guerras no sagrado reino da França”. ( HUBERMAN, 2010, p. 59). A criação de um Estado centralizado, associado a uma territorialidade, estabelecendo uma língua comum como elemento de identidade, constituído de aparelhos próprios como leis (sistema jurídico), forças militares e burocracia, correspondeu a uma invenção da modernidade, como resposta ao desenvolvimento do sistema capitalista, consequentemente , na defesa de um novo grupo social, a burguesia.
Ainda restava, a necessidade do enfretamento da Igreja Católica, como
força política remanescente da estrutura feudal que se superava. Para além dos problemas morais que afligiam tal instituição, a centralização política do Estado Absolutista não poderia dividir o poder entre o rei e o papa.
Toda essa mudança atingia a sociedade do século XVI, mais do que em
sua forma, mas atingia as suas entranhas, a sua forma de ler e compreender o mundo. A Reforma religiosa, inicialmente conduzida por Martinho Lutero, precisa ser analisada em tal contexto. Ao mesmo tempo, que se propunha reformar internamente a igreja, respondia as demandas da sociedade burguesa nascente. A grande contribuição histórica dos reformadores ao processo em curso, foi não se opor a burguesia e defender o poder dos reis como um desejo divino.
Uma das razões, portanto, do êxito de Lutero foi não cometer o
engano de tentar derrubar os privilegiados. Outra razão importante para o advento da Reforma naquele preciso momento está no fato de que Lutero, Calvino e Knox apelavam para o espírito nacionalista de seus adeptos, num período em que esse sentimento crescia. Como a oposição religiosa a Roma coincidia com os interesses do nascente Estado Nacional, tinha possibilidades de êxito. ( HUBERMAN, 2010, p. 62). A primeira forma do Estado Nacional desenvolvido na denominada Idade Moderna foi o Estado Absolutista. Um Estado capaz de ao mesmo tempo 5
defender o poder dos nobres, sem prejudicar a economia capitalista nascente,
e reprimir os pobres, contra qualquer tentativa de insurreição.
Para o cumprimento de tal objetivo, difícil de ser compreendido em sua
viabilidade, Perry Anderson (1985), explica que o Absolutismo recuperou o denominado direito romano.
Politicamente, o reflorescimento do direito romano respondia às
exigências constitucionais dos Estados feudais reorganizados da época. Com efeito, não restam dúvidas de que, na escala europeia, a determinante primordial da adoção da jurisprudência romana reside na tendência dos governos monárquicos à crescente centralização dos poderes. Não custa recordar que o sistema jurídico romano compreendia dois setores distintos e aparentemente contrários, o direito civil, que regulamentava as transações econômicas entre os cidadãos, e o direito público, que regia as relações políticas entre o Estado e seus súditos (...) (p. 27). Tal contradição, foi apenas superada no século XVIII, quando se estabeleceram os primeiros Estados verdadeiramente burgueses, superando assim o Absolutismo.
Identifica-se com a presente análise que o Estado e seus aparelhos
ideológicos, correspondem a uma criação do capitalismo, caracterizando-se de maneiras diferentes, de acordo com cada etapa de desenvolvimento do referido modo-de-produção.
Marx, bem como os marxistas que o sucederam, não defendem o Estado,
mas o que se denomina como “Ditadura do Proletariado”, uma organização política estabelecida em bases muito diferentes das estabelecidas pelos Estados Nacionais.
REFERÊNCIAS:
ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. Trad. João Roberto
Martins Filho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Trad. Waltensir Dutra. 22