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colecgao em foco ASA i | { i \ COLECGAO EM FOCO Ultimos Titulos Publicados PSICOLOGIA POSITIVA, José H. Barros de Oliveira COMO MELHORAR AS ESCOLAS — Estratagias e dinamicas de melhoria das praticas educativas Anténio Bolivar CRIANGAS E MIUDOS — Perspoctivas sociopedagégicas da infancia e educagao M. J. Sarmento @ Ana B. Cerisara (Org.) GAIOLAS OU ASAS Rubern Alves UMA SETA NO ALVO Miguel Angel Santos Guerra CARTAS AOS DIRECTORES DE ESCOLAS Joaquim Azevedo NOVOS CAMINHOS PARA A LIDERANGA ESCOLAR ‘Thomas J. Sergiovanni COMO VIVER COM UMA CRIANQA HIPERACTIVA Aquilino Polaino-Lorente e Carmen Avila CARTAS A ALICE José Pacheco ‘MELHORAR A EFICACIA DAS ESCOLAS Jaap Scheerens AS INTELIGENCIAS MULTIPLAS E OS SEUS ESTIMULOS Celso Antunes A PRIVATIZAGAO DA EDUCAGAO — Causas, consequéncias e implicazoes Henty M, Levin e Clive R. Belfield ORGANIZAGAO E GESTAO DO AGRUPAMENTO VERTICAL DE ESCOLAS Graga Maria Jegundo Simées APROCURA DA INTIMIDADE Maria Emilia Costa APRENDER A CONVIVER NA ESCOLA Miguel Angel Santos Guerra . A ADMINISTRAGAO DA EDUCAGAO — Légicas burocréticas e logicas de medigao Joao Formosinho, A. Sousa Femandes, Joaquim Machado e Fernando Iidio Ferreira DESENVOLVER COMPETENCIAS-CHAVE EM EDUCAGAO D.$. Rychene A. Tiana DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM DA LEITURA E DA ESCRITA (NOVO) Jodo A. Lopes INVESTIGACAO NATURALISTA EM EDUCACAO — Um Guia Pratice ¢ Critico (NOVO) Natércio Afongo em foco A Historia de Serena Viajando rumo a uma Escola melhor John MacBeath Michael Schratz Denis Meuret Lars Bo Jakobsen Prefacio de Natércio Afonso eDigoes ASA COLECGAO EM FOCO ‘Tiewto A Histria de Serena ‘Vugjando rumo a um Escola melhor Autores © 2000 John MacBeath, Michael Schratz, Denis Mcuret € Lars Bo Jakobsen, para a edicio original Traduvora Leocadia Guerreiro Direcyo José Matias Alves © Edigdes ASA, 2005, para a edigio portuguesa xecucio Grifica GRAFIASA, Depésito Legal n” 233718/05 Dezembro de 2005 / 1" Edicao ASA Editores, S.A. Sede Av. da Boavista, 3265, sala 4.1 Apartado 1038 - 4101-001 Porto Portugal “Telef:; 226166030 « Fax: 226155346 Bama edicoes@as9.pt «Interact: Www asa pt Deleqerdo em Lisboa ‘Av, Eng- Duarte Pacheco, 19, 8 1070-100 Lsboa - Portugal ‘Telet : 213802110 Fax: 213802115, PREFACIO Politica educativa, administragao da educagao e auto-avaliagao das escolas A melhoria dos niveis de governabilidade do sistema publico de educagao pressupée a reconfiguragdo do papel do Estado na admi- nistragao da educagao, através de medidas que reduzam 0 peso do centralismo e da burocracia estatal na gestéo operaciona! das esco- las piblicas. Mantendo-se a opgao politica de atribuir ao Estado a responsabilidade pela provisdo da educagao publica, um “emagreci- mento” significativo da burocracia da administragéo educacional centralizada sé se podera conseguir através da transferéncia de competéncias de gestéo operacional para os niveis regional e local e, em especial, para a propria gestao escolar. Tal desiderato requer medidas politicas de fundo em termos de rtegionalizagao e descentralizagao, mas 0 seu eventual sucesso pres- supée o desenvolvimento de “massa critica” significativa em termos do desenvolvimento e aprendizagem organizacional das escolas pu- blicas, para que se tranformem em verdadeiras organizagées educa- tivas e deixem de ser meros gervi¢os periféricos do Estado. O desenvolvimento organizacional das escolas requer medidas que fomentem a capacidade de gestdo estratégica no seu interior, de modo a que possam acolher (ou conquistar) e desenvolver, com eficacia e eficiéncia, o exercicio de competéncias transferidas da burocracia estatal. Tais medidas passam necessariamente pelo re- forgo da sua autonomia de gest4o, 0 que pressupde uma aposta na prestagao de contas e no contiolo social sobre a gestéo escolar, em especial no que se refere A adequada utilizagao dos recursos publi- cos em fungéo dos resultados obtidos. Para além disso, é necessario que as escolas publicas disponham de quadros e equipas de dirigentes e gestores com elevados niveis de qualificagéo no dominio das diversas vertentes da gestao escolar, ene nen UT CORR crescentemente mais complexa pela diversidade e multiplicidade dos ptiblicos e das agendas educativas, e pelo reforgo das suas atri- buigdes e competéncias. No quadro de op¢Ges estratégicas nacio- - nais, as escolas piblicas tém que ter meios € capacidade para defi- nir, executar e avaliar politicas educativas préprias, adequadas aos seus contextos especificos. Por outro lado, 6 necessario garantir que os servigos da adminis- tragdo educacional desenvolvam eles proprios esiratégias de desen- volvimento e aprendizagem organizacional que lhes permitam rela- clonar-se em novos moldes com as escolas, definindo claramente a fronteira entre as fungdes de tutela politica da educagao e as fun- des de gestdo operacional escolar. A promogao da autonomia das escoilas publicas e a intensificagéo da avalia¢ao da qualidade do seu desempenho organizacional cons- tituem assim duas linhas complementares das politicas publicas nas areas sociais, caracterizadas pela tentativa de reconfigurar os papéis dos diversos niveis da administragao publica, num contexte global marcado pelo défice de governabilidade da burocracia estatal, e pela consequente crise de legitimidade do préprio Estado. A pressao des- tas linhas de politica sobre o funcionamento das escolas tende a criar um novo contexto para a gestéo escolar, fazendo ressaltar a ne- cessidade de uma visao estratégica ao servigo do interesse publico, e desocultando 0 pouco subtil jogo do poder que tem sustentado a autogestdo burocratica de raiz corporativa. A andlise das politicas educativas recentes situa o fomento da autonomia das escolas no centro da retérica politica governamental e revela que se trata de uma iniciativa politica do Estado, veiculada através de medidas concretas da administragéo educativa. Aparen- temente, n&o se trata de uma resposta a exigéncias do publico ou de grupos de pressao organizados. Na realidade, o que esta em causa nesta situagdo concreta 6 um amplo, complexo e demorado processo de restruturagéio do Estado, implicando uma reformulagao global dos modelos tradicionais de construgao das politicas publi- cas, por forma a dar resposta a problemas criticos de governabili- dade do sistema educativo e ao défice de credibilidade da adminis- tragao educativa. Esta crise de legitimidade do Estado-Providéncia pode ser anali- sada no &mbito especifico da evolugao do sistema educativo nacio- nal no contexto de uma administragéo educativa centralizada. De facto, no nosso pais, a administragao da educagao concretiza-se no quadro de um sistema centralizado e hiper-regulamentado, A cen- tralizagdo corresponde a uma tradigéo que ¢ comum a toda a admi- nistragao publica portuguesa, com profundas raizes na propria cons- trugao historica do Estado, tradigao reforgada durante o Estado Novo, por 1azdes de natureza ideolégica e politica. A provisao de recursos humanos através de concursos documen- tais nacionais, a rigida configuragéo orgamental da provisao de recur- sos financeiros, desenvolvida centralmente numa base incrementa- lista sem fundamento em opgées estratégicas da gestao escolar e a prescrigéo de um curriculo nacional uniforme, regulamentado até ao nivel dos planos de estudo e dos programas das disciplinas, const- tuem elementos centrais da légica centrahzadora que domina a admi- nistragao das escolas publicas. Apesar do discurso retérico sobre a autonomia, desenvolvido desde a década de oitenta, e de aigumas iniciativas timidas sem impacto significativo e logo dissolvidas na logica de funcionamento dominante da burocracia ministerial e das escolas, a administragao da educagao permanece fortemente centralizada, e continua a manter uma vocag4o fundamentalmente regulamentadora na forma como se relaciona com as escolas. Nesta légica, a escola 6 entendida e tem funcionado como um servigo periférico do Estado, lugar de execugao de politicas defini- das centralmente para a prestagao do servigo de educagio. A kégica de funcionamento deste modelo centralizado e tecnocrata foi progressivamante posta em causa pela expansao da escola de massas. A partir dos anos sessenta, e com um atraso significativo em relagao 4 maior parte dos paises europeus, assistiu-se em Portu- gal a uma aceleragao do processo de massificagao da escola, para além do patamar tradicional da escolaridade elementar. A partir de entao, e até aos anos noventa, 0 fendmeno da “explosao escolar” tor- nou-se no factor central de todas as politicas educativas. No plano quantitativo, este processo deu origem a um cresci- mento vertiginoso do mimero de alunos, de escolas e de professores, no subsistema intermédio entre o ensino basico elementar (os quatro primeiros anos de escolaridade) e o ensino superior. No plano quali- tativo, a explos4o escolar do pés-priméario deu origem a uma comple- xificagio crescente do servigo de educacao prestado pelas escolas, forgadas a multiplicarem e a diversificarem a oferta educativa, em fung&o da diversidade da massa estudantil escolarizada, e que antes nao frequentava a escola: diversidade social, de habitat, de contexto familiar, e também de cardcter étnico e cultural, dado o desenvolvi- mento da imigragao que entretanto comegou a ocorrer. Tendo-se mantido uma légica de administragéo centralizada, esta expanséo e diversificagao da oferta educativa, alids muito mais im- posta pela procura do que favorecida pela oferta, veio a produzir um Processo de gigantismo acelerado da buroctacia da administragao educativa. Este gigantismo tem vindo a levantar crescentes proble- mas de govemabilidade, conduzindo, de facto, a uma efectiva reducéo da capacidade do Estado para gerir o sistema publico de educagao. Por outro lado, a manutengdo das escolas publicas sob a adminis- tra¢ao directa do Estado, através das estruturas executivas do poder central, tem originado, pela propria natureza e urgéncia das deci- ses, a prevaléncia das preocupagées quotidianas de administragao @ gestao operacional das escolas publicas, sobre as questées estraté- gicas e globais do exercicio da tutela politica do sector da educagao (cuja proviso envolve escolas ptblicas e privadas). Esta sobrevalori- zagao de uma légica administrativa envolve a lideranga politica do Ministério da Educagao em processos decisdrios de natureza tipica- mente gestiondria (negociagao de carreiras e de saldrios, por exem- plo), esbatendo a distingdo entre administracao e tutela politica, entre negociacao laboral e discussao de politicas publicas. Em consequén- cia, tem-se vindo a verificar uma progressiva dificuldade do Estado na concep¢ao e desenvolvimento estratégico de polfticas educativas inovadoras com significativo impacto na melhoria da qualidade do servigo de educagao. Assim, o gigantismo da administiagado educativa e a prevaléncia do administrativo sobre o politico constituem um verdadeiro risco de “desresponsabilizagéo" do Estado (por omiss&o resultante da redu- zida capacidade de intervengao), deixando a definigéio das politicas educativas cada vez mais vulneravel presséo da agenda mediatica dos érgaos de comunicagao social e de interesses particulares, nomea- damente de cardcter localista ou corporativo. Deste modo, ao contrario do que por vezes se tem afirmado, é a manutengao de uma pesada estrutura burocratica de administragao directa das escolas publicas que pode vir a pér verdadeiramente em risco o sistema publico de educagao, descredibilizando-o pela imagem da ineficdcia e de auséncia de prestagdo de contas. Ao nivel do governo central, a constatagéo destas dificuldades tem conduzido alguns decisores politicos ao ensaio de novas estra- tégias e modelos de intervengao que se traduzem no abandono do autoritarismo reformador de cariz iluminista e tecnocratico, e na tentativa de reconfigurar os papéis das varias insténcias do Estado na administragao do sistema educativo. Esta nova abordagem ao modo de fazer politica educativa pressupde uma abordagem estra- tégica ao funcionamento das organizagées escolares, concebidas como “sistemas de acgao concreta”, cujas logicas internas possuem grande capacidade de refracg&o em relagao a intervengaéo normati- vista do Estado. Com efeito, cada escola em particular tem a sua légica de desenvolvimento propria, cristalizada em rotinas e padrdes de relacionamento estabilizados pelos jogos de poder entre os varios actores, e pelas necessidades especificas decorrentes da execugéo das tarefas organizacionais inerentes a conctetizacao das activida- des do quotidiano. As escolas sao portanto “sistemas de acgaéo concreta", com uma dindmica organizacional e uma maleabilidade “politica” que lhes permite “trabalhar” internamente as “reformas” decretadas, adap- tando-as e assimilando-as a sua légica propria, reduzindo ou mesmo anulando as pretendidas potencialidades inovadoras dessas refor- mas. Por outro lado, essas mesmas dinémicas préprias das escolas podem constituir-se como factores de inovagao com impacto poten- cial na qualidade do servigo educativo, a revelia dos principios decretados pelo reformismo iluminista, ou mesmo em contradigéo com esses principios, Em consequéncia, a partir da segunda metade dos anos noventa, em- bora com muitas hesitagdes e ambiguidades, a definigéo de algumas politicas educativas e praticas da administragéo da educagéo teflectem o abandono do reformismo centralista, e uma progressiva utilizagao, pelo menos ao nivel do discurso politico, de dispositivos de descentralizag4o, contiatualizacao, diferenciagdo e avaliagao, no contexto de uma tentativa de redefinigao dos varios niveis de inter- vengao do Estado, nomeadamente do poder central e do poder autarquico. O reconhecimento formal da autonomia da escola, o reforgo da capa- cidade de decisio da gest4o escolar e a criagao de condigdes que permitam a sua consolidag4o e aprofundamento. num quadro de res- ponsabilizagdo publica, surgem como desenvolvimentos fundamen- tais na referida redefinigdo. Se este processo politico se desenvolver e ganhar dimensdo significativa, as escolas deixarao de ser entendi- das como extensées locais do aparelho do Estado, para passarem a ser concebidas como instituigées publicas, onde a intervengao do poder central tende a concentrar-se em segmentos estratégicos de interesse nacional — a defini¢aéo de um quadro politico de coeréncia e equidade, a provisao global de recursos e a avaliagao extemma. A outra face da promogao da autonomia das escolas publicas revela-se nas politicas de expansao e alargamento do escrutinio publico sobre a gestéo local da educagao, com exigéncias do desen- volvimento da avaliagao externa e da prestagao de contas. Tais politi- cas tém sido desenvolvidas, com diferentes niveis de sucesso, atra- vés da promogao da avaliagao externa dos resultados escolares e do desenvolvimento de programas inspectivos centrados na avaliagéo extema das escolas. No que diz respeito a avaliagdo externa dos resultados escolares, estas politicas tém vindo a ser concretizadas através do desenvolvi- mento e intensificagdo de instancias de avaha¢o externa dos resul- tados escolares, numa primeira fase através da restauragdo dos exa- mes nacionais para conclusao do ensino secundario, os quais tinham sido extintos no inicio da década de oitenta. Nestes exames, os objectivos pnncipais centram-se nos dispositivos de certificagao da conclusao do ensino secundario e de seriagéo dos candidatos ao acesso ao ensino superior. A divulgagao publica dos resultados nacio- nais ¢ dos resultados de cada escola constitui informagao relevante para a fomulagao de jufzos de avaliagéo sobre o desempenho das es- colas, nomeadamente no que se refere a diferenga entre os resulta- dos dos exames e a avaliagdo interna das aprendizagens dos alunos. Mais recentemente, as politicas de promogao da avaliagéio ex- terna dos resultados escolares tém sido alargadas aos varios ciclos do ensino basico, através da realizagéo de provas explicitamente justificadas pela necessidade de fornecer 4 comunidade - e em es- pecial as escoias e aos professores — informagao sobre aspectos mais ou menos conseguidos das aprendizagens dos alunos, com o propésito de contribuir para uma melhoria dessas aprendizagens. Na estrutura da administragao central da educagao, a crescente importdncia destas politicas de avaliagaéo externa dos resultados es- colares deu origem & criagdo, no final dos anos noventa, do Gabi- nete de Avaliagao Educacional (GAVE), um servigo do Ministério da Educagao, ao nivel de direcgao geral, expressamente vocacionado para a avaliagdo externa dos resultados escolares, dotado de meios financeiros ¢ know-how especializado, e da apropriada capacidade de intervengao Outro indicador da crescente importaéncia da avaliagao do desem- penho organizacional das escolas foi a reorientagao da actividade da Inspecgao-Geral da Educago (IGE), servigo central do Ministério da Educagao tradicionalmente vocacionado para a verificagéo da conformidade normativa e para a execugao da actividade discipli- nar. Assim, no final da década de noventa, a actuagao da IGE foi progressivamente focalizada em programas de auditoria e de avalia- géo externa, numa légica de monitorizagao e pilotagem centrada na produgdo de informagado relevante sobre a qualidade dos desem- penhos. Um exemplo concreto da reorientagao da actividade inspec- tiva foi o programa plurianual de “Avaliagao Integrada das Escolas” desenvolvido entre 1999 e 2002, abrangendo cerca de um milhar de escoias dos ensinos basico e secundario. Em 2002, na sequéncia da mudanga de governo que entéo ocorreu, este programa da IGE foi suspenso e a actividade inspectiva foi de novo reencaminhada para as fungées tradicionais de fiscalizagao e in- tervencéo disciplinar. Entretanto o governo promoveu a aprovagao da Lei n° 31/2002 de 20 de Dezembro (Lei do Sistema de Avaliagéio da Educag&o e do Ensino Nao Superior), nos termos da qual a avaliagéo das escolas passaria a centrar-se na auto-avaliagdo obrigatoriamente desenvolvida por cada escola, ¢ posteriormente certificada em termos de avaliacao externa. A regulamentagdo posterior que a lei exigia nao foi entretanto publicada, pelo que a politica de avaliagéio das escolas se encontra actualmente num impasse que carece de resolugao. Pode dizer-se portanto que 0 relevo da probleméatica da avaliagao das escolas no contexto da evolugao das politicas educativas decorre da crise da gestéo burocratica dos sistemas publicos de educagao, e teflecte a transigaéo, em curso, da gest&o operacional directa para a gestao da informagdo, ou seja, do Estado Educador para o Estado Avaliador. No contexto portugués esta transigao ocorre perante para- doxos e dilemas especificos: o impasse da descentralizacéo adminis- trativa e a indefinigéo em torno da municipalizagéo da administra- ¢4o educacional, o cardcter inconsequente da retorica sobre a autonomia das escolas, a recorréncia do iluminismo re-centralizador, expresso em “fugas para a frente” perante os défices de governabili- dade (casos recentes dos concursos nacionais para colocagao de pro- fessores, e de emparcelamento forgado de escolas em agrupamen- tos), a aposta falhada nos rankings enquanto dispositivos centrais do sisterna de regulagao social da provisao da educagao. Na Europa comunitaria, a avaliagdo das escolas ¢ entendida, na maior parte dos paises, como uma questdo estratégica, embora a sua importancia no contexto das politicas educativas varie muito de pafs para pais. O seu significado politico e os motivos que funda- mentam as medidas de avaliagao séo muito diferentes e decorrem de situagées concretas em que s&o desenvolvidas, em fungéo da histéria, dos periodos “centralizador” (Inglaterra) ou “descentraliza- dor” (paises escandinavos) que os sistemas educativos atravessam, do tipo de descentralizagao que esta em causa (para os municipios ou para as préprias escolas), do foco da responsabilidade politica (a nivel nacional! ou a n{vel regional) e das politicas especificas em curso (por exemplo, existéncia ou nao existéncia, a nivel nacional, de curricula, programas de ensino ou exames). A anélise da diversidade dos factores que estdo na origem do desenvoivirlento da avaliagao das escolas faz ressaltar a importéncia dos programas de avaliagdo internacionais como o PISA, assim como a valorizac4o da autonomia das escolas mais do que a descen- tralizagao da administragdo educacional. De facto, a avaliagdo das escolas nao ganha relevo nos paises onde a administragéio da edu- cagao esta muito descentralizada, como é 0 caso dos paises escan- dinavos. Por outro lado, os paises que tém desenvolvido dispositivos de avaliag4o mais sofisticados so os que reconhecem grande auto- noma as escolas (Reino Unido e Holanda, por exemplo). Assim, a preocupagao generalizada com a qualidade do ensino e das apren- dizagens tanto pode dar ongem a politicas centradas na avaliagdéo das escolas, como a politicas centradas na responsabilizagao directa das autarquias locais pela administragéo da educagéo e pelo con- trolo das escolas No que respeita 4 responsabilidade institucional pela execugao da avaliagdo das escolas em geral os servigos inspectivos tém um papel relevante. Por vezes estes servigos tém um estatuto de indepedéncia face 4s autoridades ministeriais, como no caso da Holanda, onde a actividade inspectiva é supervisionada pelo parla- mento. Aiguns servicos inspectivos tém um papel relevante no fomento da auto-avaliagao das escolas através da publicagéo de roteiros e da inclusdo da auto-avaliagaéo como um elemento central nos dispositivos de avaliagdo externa. A analise dos métodos e critérios de avaliagaéo mais frequentes faz ressaltar a periodicidade predefinida, a publicitagao prévia de objectivos e critérios, por vezes com discussio politica alargada, a forte incidéncia na analise dos resultados dos alunos, a previséo de dispositivos de acompanhamento para as escolas identificadas em situagao considerada desfavoravel, e a recolha de informagao junto dos “utentes", nomeadamente os pais ¢ encarregados de educagao. No que respeita 4 avto-avaliagao, verifica-se que, na maior parte dos paises, existem politicas mais ou menos consequentes de fomento da auto-avaliacdo que, por vezes, é tornada obrigatéria e integrada no processo de avaliagao externa. Num relatério recente da Unidade Eurydice, salientando-se a importéncia da auto-avaliagao na propria configuraco da avaliagao externa, sublinhando-se que, em termos da melhoria da qualidade e da inovagao, é 0 nivel de desenvolvimento da avaliagao interna (ou auto-avaliagdo) que acaba por determinar os contornos da avaliag&o extema. Assim, quanto mais a auto-avaliacéo assumir um cardcter sistematico e relevante, mais a avaliag&o externa _ tende a revestir uma natureza discreta e complementar. Deste modo, torna-se necessdrio procurar a complementaridade entre auto-avaliagéo e avaliagéo externa, tendo contudo conscién- cia de que prosseguem finalidades distintas. A primeira centra-se na identificagado pelos proprics actores dos efeitos da sua accao, enquanto que a segunda se destina a prestagdo de contas a tutela e ao publico. Porém, a auto-avaliagado pode servir de ponto de partida para a avaliagéo externa, enquanto que esta pode favorecer a melho- tia da qualidade da auto-avaliacao pelos efeitos de aprendizagem que produz, nomeadamente ao nivel da construg&o de indicadores e de instrumentos de recolha de informagao. Na situagao de impasse em que se situa a problematica da avalia- Gao das escolas em Portugal, o imperativo legal do desenvolvimento de din&micas de auto-avaliagéo em todas as escolas nfo tem tido concretizagao relevante, apesar de algumas iniciativas isoladas e projectos-piloto. Para além da inexisténcia de quadros normativos regulamentado- res da lei-quadro aprovada em 2002, nao existe de facto uma cultura de avaliagao nas escolas, nem existe know-how suficientemente de- senvolvido e disseminado para uma rapida expans&o de dispositi- vos e praticas de auto-avaliagao. E neste contexto que ganha especial relevo a presente publicagdo em lingua portuguesa de um trabalho sobre a auto-avaliagdo das es- colas, publicado inicialmente em 2000, e que constitui uma referén- cia incontommavel no panorama europeu e internacional no campo da investigagao e reflexdo sobre a auto-avaliagéo e a melhoria da qualidade das escolas. Resultante de um programa de investigacdo- -acgdo desenvolvide em muitas dezenas de escolas de diversos pai- ses europeus, entre os quais Portugal, este livro é ao mesmo tempo uma “estéria de proveito e exemplo" sobre a complexidade da muicropolitica organizacional inerente a qualquer processo de avalia- go, e um utilissimo “manual do avaliador” para todos aqueies que acreditam que a melhoria da qualidade da educagdo se constréi principalmente a partir do interior das escolas, através de um traba- Tho reflexivo e critico de todos os actores envolvidos, nomeada- mente os alunos e as suas familias. Este livro é assim 0 produto de um trabalho colectivo onde partici- param muitos alunos, pais e encarregados de educagao, professores e outros profissionais da educagao, gestores escolares e investigado- res Mas, acima de tudo, é o fruto da serena criatividade, plena de sabedoria, do entusiamo contagiante, e da lideranga optimista e mo- pilizadora do Professor John Macheath e dos seus colegas. Também neste plano, esta obra surge plena de oportunidade, numa altura em que parece Ieinar entre nés o discurso do pessimismo e da incapaci- dade, perante as dificuldades que se experimentam e as outras que se anunciam. Setembro de 2005 INDICE INTRODUGAO A EDIGAO PORTUGUESA ....... Serena. . D. Graciana (a mae) Anténio Gil (o professor de Historia) _ Manuela Cardoso (a directora)............::.ceoie Fernanda (a amiga critica) Café com o professor... . Reencontro com os professores A histéria muda.......... O poder da triangulagao. . O Perfil de Auto-Avaliagéo da Escola (PAVE) Métodos de auto-avaliagé O trabalho do amigo critico. As escolas . . O que 6 que aprendemos? DECLARAGAO DA CONFERENCIA DE VIENA.... BIBLIOGRAFIA GERAL..........c:-escccceeseeeseeeeeee ice eseeneeeesnees 315 ___ INTRODUGAO A EDICAO PORTUGUESA Serena, a heroina desta historia, tinha dezasseis anos quando a ver- sdo inglesa original deste livro foi publicada. Serena tera agora cerca de yinte € quatro anos. E uma jovem mulher e nao a aluna adolescente, que entéo explorava o significado da aprendizagem e o sentido da vida. Nalguns aspectos, Serena foi uma invengéo dos autores, mas noutros 6 alguém muito real. A personage foi criada a partir de uma aluna que participou na primeira conferéncia europeia em 1998, juntamente com professores, directores de escolas e professores universitatios e que nos fez recordar que no centro de qualquer escola esta o aluno, a verdadeira raz&o da existéncia das escolas. Sem a persnectiva dos alunos sobre a qualidade do ensino e da lideranga, como é que as escolas se podem avaliar a si préprias de uma forma honesta e integra? Foi por isso que escrevemos 0 livro Self-evaluation in European Schools, acrescentando ao ponto de vista de Serena as opiniées de outros actores-chave — 0 professor de Serena, a directora de escola, a amiga critica que trabalha com a escola e, naturalmente, a mae de Serena, que se esforgava por perceber as mudangas que a sua tinica filha estava vivendo. poder da historia de Serena é tal que foi contada em diferentes lin- guas, com os tradutores a trabalharern criativamente para adaptar o livio aos diferentes contextos culturais, mantendo o seu cardcter universal. Em Portugal, um dos paises participantes no estudo europeu original, 0 impacto do projecto estendeu-se a outras escolas, para além das cinco inicialmente envolvidas, nos anos que se seguiram. Dai que parega natu- tal para Natércio Afonso, da Universidade de Lisboa, querer prosseguir 0 estudo num projecto sequencial financiado pela Comissao Europeia, através das Medidas de Acompanhamento do programa SOCRATES. Inspirada pela sua prépria tradugao do livro para italiano, no Outono de 2003, Francesca Brotto juntou paises que nao tinham estado envol- vidos no estudo original - Republica Checa, Hungria, Polonia, Eslova- quia @ Suga — bem como Portugal e Grécia, que participaram nesse estudo para trabalharem conjuntamente, nado s6 na tradugao do livro 19 mas também com escolas, de modo a testar a relevancia da auto- -avaliagéo em contextos diversos e fornecer novos estudos de caso, com Taizes em solo nativo. Designamos o novo projecto de Bridges. Across Boundaries (Pontes Além Fronteiras) pela universalidade das suas ideias, que transcendem limitagées linguisticas, étnicas, tempo- Tais e espaciais. Tem sido uma aventura educativa trabalhar com um fabuloso grupo de pessoas destes sete paises, partilhando todos a mesma convicgao, que Serena existe para demonstrar que a auto-avaliagdéo 6 um orgao vital das escolas de qualidade e que procuram a melhoria John MacBeath Universidade de Cambridge — Julho 2005 20 . INTRODUGAO Este livro relata-nos como as escolas podem melhorar 0 seu desem- penho pelo recurso & auto-avaliagao. Serve-se de uma vasta literatura de investigagdo para fundamentar este principio, mas baseia-se, sobretudo, num projecto especifico de émbito Europeu, desenvolvido no quadro do Programa Séctates, denominado “Avaliag&o da Qualidade na Educagao scolar”. Este projecto envolveu 101 escolas em dezoito paises, tendo to- das elas concordado em utilizar uma metodologia de trabalho comum, ao mesmo tempo que desenvelveram reflexdes ¢ praticas no préprio con- texto cultural ¢ histérico. Todas elas aprenderam ligdes importantes acerca do processo de melhoria e de mudanga da escola. Em todas, abri- Tam-se portas que anteriormente estiveram fechadas ou apenas entrea- bertas em relagdo a estas questées. Todas contribuiram para aprofun- darmos 0 nosso entendimento sobre educagao escolar, onde e como é que o processo de ensino-aprendizagem é mais eficaz, e mostraram- -nos que podem acontecer coisas surpreendentes quando envolvemos actores-chave ~ alunos, pais e professores. A historia é contada de duas formas, uma convencional ¢ outta nao convencional. Uma das narrativas situa-se ao nivel mais amplo e geral de qualquer escola, a outra ao nivel micto da experiéneia individual. A pri- meira descreve as estruturas e as sequéncias consideradas como pré- -requisitos para uma melhoria efectiva. A segunda procura penetrar nas culturas de sala de aula, escola e familia, e no modo como essas culturas se crozam e interligam naquela que é uma trajectoria comum de mudanga. A primeira narrativa oferece-nos uma descrigéo de todos os passos do pro- cesso de auto-avaliagao — apresentacado e modo de funcionamento, os ins- trumentos de avaliacdo e 0 importante trabalho dos amigos criticos. A se- gunda narrativa explora 0 modo como este processo de auto-avaliagao ganha sentido para cada um dos actores — alunos, professotes e pais. Por existirem duas historias, existem dois pontos possiveis para ini- ciar a leitura deste livro. A primeira parte apresenta a histéria da mu- danga vista através dos olhos de Serena, uma aluna de 16 anos. Serena 21 6, de certo mado, ficticia, personagem de um romance, mas, num plano Thais importante, € uma jovem com uma existéncia muito real. Através da sua experiéncia pessoal na escola, somos confrontados com algumas _ questdes de claro interesse. Depois, verno-la a ela e a sua escola através de lentes diferentes, a partir das perspectivas da mae, de um dos profes- sores, da directora da escola e da amiga critica que rabalha com a escola. Finalmente, vemo-la colocar questées aos “peritos", os consultores do projecto europeu no qual ela desempenhou um pequeno mas signifi- cativo papel. Pelos didlogos descobrimos que ha um ponto de encontro entre dois mundos aparentemente distantes, 0 mundo da construcdo da politica europeia e o mundo da aprendizagem individual do aluno. Serena, a sua familia e os seus professores néo pertencemm a uma escola ou a um pais concreto. A sua escola pode representar “quatquer escola” e a sua casa e a sua vida em comunidade situam-se “em qual- quer lugar". Considerado em sentido restrito, este 6 um trabalho de fic- gao e, como tal, possibilita ao leitor aceder a ideias e a entendimentos que nao sao facilmente acessiveis com uma investiga¢&o mais conven- cional. Fomos, em parte, inspirados pelo discurso de Elliot Eisner, Presi- dente da Associagéo Americana de Investigagao Educacional, quando colocou a questéo: Um romance pode ser uma boa investigagéo?. Defendendo este ponto de vista, Eisner afirmou que é através da boa literatura que mais frequentemente nos aproximamos das verdades humanas. Esperamos que, de algum modo, a historia de Serena possa ser considerada boa literatura. Esperamos que esta nartativa possa trazer alguma luz ao processo de melhoria da escola através da auto- -avaliago. Também podemos comegar a leitura, com a mesma facilidade, pela segunda parte da narrativa, mais assente na pesquisa, mais consenté- nea com uma investigagéio sistematica, mais cautelosa quanto a juizos de valor. Esta parte inicia-se com uma perspectiva geral (ver A his- toria muda..., pég. 155) e aborda o contexto da globalizagao, que cria mercados mundiais e modela a natureza das nossas vidas e dos nossos sistemas escolares. Tendo esta perspectiva como pano de fundo, a segunda parte do livro apresenta e focaliza progressivamente oO projecto europeu, © Seu modus operandi ¢ as ligdes que as escolas de qualquér pais podem aprender. Descreve os trés elementos-chave 22 do projecto —'o perfil de auto-avaliagéio da escola, os instramentos de avaliagdo e o papel dos amigos criticos. O peniltimo capitulo apresenta estudos de caso em escolas da Bélgica, Escécia, Austria e Suécia. Seja qual for a sequéncia escolhida pelo leitor, fazemos votos para que leia as duas partes do livro, porque uma complementa a outra. Por sua vez, cada uma altera, lumina e aprofunda o nosso entendimento sobre o que poderé vir a ser uma escola melhor no terceiro milénio. John MacBeath Universidade de Cambridge Michael Schratz Universidade de Innsbruck Denis Meuret Universidade de Borgonha Lars Bo Jakobsen Coordenador do Projecto de Investigagao para a Comisséo Buropeia - Programa Sécrates 23 Serena Serena olhou para o seu corpo no espelho do quarto. Talvez nao fosse assim tao feia, pensou. No principio da semana ouvira, casual- mente, a mae dizer a Dona Etelvina, a vizinha bisbilhoteira, que ela, Serena, se estava a tomar numa “jovem atraente”. Serena pen- sou na sua maquilhagem: a mae ndo aprovava — “na idade dela” — e especialmente nos dias de escola, mas a maquilhagem ajudava a disfargar os Ultimos vestigios de borbulhas de adolescente na parte inferior esquerda do rosto, enquanto que 0 risco do lapis ajudava a acentuar 0 castanho profundo dos seus olhos. Serena pensou que, afinal, era capaz de vir a gostar de si propria. Afastou-se do espelho e puxou para tras 0 cortinado. Tudo 0 que conseguia ver na escuridéo eram as luzes de Natal da cidade e o jardim de inverno iluminado que ficava por debaixo da sua janela. Esta era apenas a segunda vez que viajava sem a mae e estava decidida a aproveitar cada momento naquela cidade de contos de fadas — o mercado de Natal, os tesouros dos Habsburgs, os puro- -sangue Royal Lipizzaner. Serena voltou para o espelho e olhou para além da sua imagem como que para captar algumas reflexdes daquele ano cheio de acontecimentos que a levaram a Viena e que, na manha seguinte, a levariam a falar para 300 pessoas sobre um assunto acerca do qual, um ano antes, nada sabia. Nesse periodo de tempo, 0 termo auto- -avaliag4o tornara-se para ela num termo cheio de significado e de associagées. Serena tinha acabado de completar o quarto ano na “escola dos grandes”, expresséo ainda usada pela mae para se teferir a escola secundaria, Como se procurasse desesperadamente agartar aque- les dias excitantes em que tudo era novidade e em que Serena era ainda “a pequena Serena”. Agora, parecia ter percorrido um longo caminho desde esses primeiros dias e semanas ha muitos anos atras - a satisfagaéo de ter novos professores e novas disciplinas, 25 AMISTORIA DE SERENA dos livros para os mais crescidos, sem imagens, e dos verdadeiros trabalhos de casa. Serena conseguia recordar claramente as suas primeiras aulas de Geografia, em que uma mulher fragil, de lunetas, os levara em excursées a lugares no outro canto do mundo. Sempre com os olhos fechados — e essa era uma norma inquestionavel da Prof, Fatima Rocha — conduzira-os por algumas das grandes cidades mundiais. Conheceram e falaram com pessoas — presidentes de camaras, urbanistas, arquitectos, editores de jomais, pregoeiros publicos. Desceram o Sena num bateau-mouche e, de novo com os olhos aber- tos, discutiram como seria Paris sern um rio a atravess‘la Agora, quatro anos mais tarde, Serena conseguia fechar os olhos e Tevisitar os lugares, até mesmo os cheiros e os sons da cidade que a Prof. Fatima os ajudara a criar tao vivamente nas suas mentes. Nos anos seguintes, sem aquela professora, a Geografia tomara-se abor- tecida. Toda a vida e vitalidade associadas a disciplina desaparece- tam. A Geografia tornara-se num mero exercicio de papel e lépis, tragando linhas que tepresentavam rios que ela nunca ouvira falar, Memorizando nomes de capitais sobre as quais nada sabia, escre- vendo composigées sobre coisas que ndo entendia. Mas mesmo assim “tirava” positiva nos testes, respondia quando lhe faziam perguntas e, de certa forma, dava quase sempre as respostas certas. Nao havia nada que fizesse Serena acreditar que 0 quarto ano iria ser melhor do que os anos anteriores. Conseguia lembrar-se disso como se fosse ontem. Foi-lhe facil viajar para tras no tempo €, sem grande esforgo, la estava ela, de repente, no inicio de um novo ano lectivo, no primeiro capitulo da sua historia, a historia de Serena. O primeiro capitulo O quarto ano tinha comegado de forma igualmente pouco inspi- radora — alguns professores novos, muitos dos rostas antigos e bas- tante familiares. Serena viu as semanas arrastarem-se lentamente 26 SERENA até a interrupgao lectiva a meio do periodo. Mas ela propria tinha consciéncia que havia momentos pelos quais ansiava: a aula de Oficina de Artes era sempre um prazer. Ouviam musica enquanto trabalhavam. Falavam uns com os outros e elogiavam mutuamente os seus trabalhos. Havia sempre alguém com uma boa ideia e dis- posto a experimenta-la. Serena tentou perceber o que é que tor- nava aquela aula tao especial. Talvez fosse a Prof. Esperanga, que dizia insistentemente que cada um podia ser um artista e que naquela aula todos 0 eram. As paredes estavam decoradas com os trabalhos dos alunos. As suas estranhas criagdes coloridas estavam penduradas no tecto e a restante superficie livre estava coberta com velharias: cafeteiras velhas, todas de bicicletas, jantes de pneus, moinhos de café anti- gos. Era a tinica disciplina onde nao se colocava a questo da dis- tingdo entre respostas certas e erradas, e onde nao era preciso procurar conforto na ideia que ha sempre alguém mais estupido do que nés préprios. A aula de Oficina de Artes era provavelmente a unica aula de onde ela saia com algo que podia levar para casa, algo que resultava das horas de trabalho e do muito de “si prépria” que punha no trabalho. Também em casa, o dia-a-dia de Serena parecia seguir um rumo previsivel. Sentava-se a ver televiséo. A me perguntava-lhe se nao tinha trabalhos de casa para fazer. Fla respondia que sim, que tinha alguns, mas fa-los-ia mais tarde. A mie dizia entaéo que nao percebia porque é que ela via aquela porcaria. Antes do final do programa o telefone tocava e eram as suas amigas da escola a perguntar-lhe sobre os trabalhos de casa ou se queria sai. O trabalho de casa era normalmente uma tarefa para depois do jan- tar. Ia para 0 quarto, fechava a porta e ligava a aparelhagem no maximo e fazia o trabalho de cada disciplina, um de cada vez. A mae aparecia quase sempre para Ihe dizer que baixasse o som, que nAo sabia como € que ela conseguia pensar com toda aquela algazarra e que o folheto sobre trabalhos de casa que ela tinha trazido da escola dizia que deveria arranjar wm local sossegado para trabalhar. 27 AHISTORIA DE SERENA —Sublinha sossegado, Serenal ~ repetiu Por vezes Serena desligava a aparelhagem, mas ligava-a cinco mi- nutos mais tarde, porque entretanto os seus pensamentos comega- vam a vagueat. Os trabalhos de casa de Matematica eram simples rotina. Serena era boa a Matematica e conseguia resolver os problemas sem. esforgo, Depois passava aos trabalhos das outras disciplinas, telefonava aos amigos quando precisava de inspirago, deixava o melhor para o fim, nomeadamente 0 trabalho de Oficina de Artes que conseguia fazer enquanto via televisao — fazia 0 esbogo do gato a dommir em cima da televisao, um vaso de flores ou as mdos da mie cruzadas no colo. Um dos trabalhos de casa foi ler O Diério de Anne Frank. A Historia e a Literatura tiveram os seus melhores momentos no quarto ano. Ambas eram leccionadas pelo mesmo professor, o Prof. Anténio Gil, mas, por vezes, Serena ficava confusa, ndo sabendo qual era qual, O Prof. Anténio Gil pedira-lhes para lerem Anne Frank, mas agora Serena nao se conseguia lembrar se isso tinha sido em Literatura ou em Histéria. Telefonou 4 amiga Barbara que lhe disse: — Foi em Literatura, tonta. Temos de fazer um relatério sobre o que pensamos do livro. A Histéria nfo pergunta o que tu pensas, porque trata de coisas que aconteceram de facto, Serena deitou-se na cama a pensar sobre o que teria realmente acontecido a Anne Frank. Ha pouco tempo tinha visto um programa qualquer na televisao sobre 0 facto de o Diario ir ser publicado nova- mente, incluindo algumas partes que tinham sido cortadas por nao contribuirem para uma boa imagem de Anne. Adormeceu interro- gando-se se a Histéria do Prof. Anténio Gil nao omitia alguns peda- gos que ele nao queria que os alunos ouvissem. Sonhou com uma versao completamente nova da batalha de Waterloo, travada nas Tuas de Paris sem 0 rio Sena. No dia seguinte 0 professor perguntou-lhe se tinha gostado de O Diario de Anne Frank. Respondeu que sim, que era um bom livro. — O que é que gostaste nele? — perguntou-lhe o professor. — Foi interessante. Gostei — respondeu Serena. 28 ‘SERENA, O professor nfo pareceu ficar muito satisfeito com aquela resposta e Serena sentiu-se um pouco iritada com a persisténcia. Porque é que ele nao podia simplesmente aceitar as respostas e continuar com a aula? E depois, como se isso nao bastasse, mandou um traba- tho de casa. Se ela lhe tivesse dado uma resposta melhor, reflectiu, talvez ndo acabasse com “um pequeno telatério, apenas 200 pala- vias” sobre “Porque é que O Diario de Anne Frank é um bom livro”. Ainda assim, esta tarefa era mais um motivo para ficar em casa e nao ir ao café com a Barbara. Depois das habituais perguntas da me e de um jantar incémodo, apenas me e filha, Serena foi para o quarto e tentou pensar no livro. Ligou a mtisica, mas ndo conseguiu escrever mais do que trinta palavras. Telefonou a Barbara que, para sua satisfagdo, estava também a escrever um relatério e nao ia ao café. Infelizmente Barbara estava a esctever sobre um livro diferente e nao a podia ajudar. Uma vez que ainda tinha mais trés dias para entregar o trabalho, deixou o relatério e passou a outra matéria. Matematica era algo banal. Podia desligar o seu cérebro por com- pleto, estar em sintonia com a musica e trabalhar mecanicamente no livro de exercicios. No dia seguinte, Serena disse ao Prof. Anténio Gil que estava com falta de ideias e, uma vez que estavam todos a ler livros diferentes, nao havia muita coisa que a turma pudesse fazer em conjunto. —O professor deve lembrar-se de nos ter dito que deviamos parti- lhar e trabalhar em conjunto — recordou-lhe Serena. — Mas isso nao é facil se estivermos todos a fazer coisas diferentes. ~ Lamento, mas nao concordo, Serena — respondeu-the 0 professor. Porque é que ele encontrava sempre maneira de discordar? Mas tratava-se de um tipo de discordancia agradével, concluiu Serena, posteriormente. E antes que o assunto caisse no esqueci- mento, o professor sugeriu que a turma fizesse uma actividade de brainstorming sobre o tema “Quando é que um livro é bom?". — Qualquer livro. O que é que faz com que um livro seja bom? Ideias, por favor. Mais uma vez, quais sao as regtas de brainstorming? 29 AHISTORIA DE SEBENA Serena sabia as regras de cor, mas apercebeu-se de repente que esta era a tinica aula em que faziam brainstorming e que nunca 0 tinha feito quando tinha dificuldades no trabalho de casa ou quando estava num teste. O professor recordou-lhes as cinco regras de ouro e, enquanto as escrevia novamente no quadro, alguns dos rapazes fizeram coro. * Diz qualquer coisa que te venha a ideia. * Eu escrevo o que dissetes, tal como disseres e sem comentarios. * Ninguém deve criticar as ideias dos outzos. * Nao ha risos nem aplausos. ¢ Registar no quadro o maximo possivel num espago de trés mi- nutos. — Quando € que um livro 6 bom? — perguntou novamente o profes- sor, Ao fim de trés minutos havia no quadro vinte e oito itens. Serena tinha contribuide com cinco. * Faz-te sentir triste « N&o queres parar de ler, * Anne faz-te sentir como deve ter sido viver em Amesterdao, naquela altura. * E claro e facil de ler. * Faz-te pensar se aquilo poderia acontecer nos dias de hoje. Quando Serena sugeriu o item sobre Amsterdao, o Jodo disse que era disparate porque se aplicava apenas a um livro. O professor nao disse nada. Limitou-se a apontar para a Regra 3 do brainstorming e escreveu no quadro exactamente o que Serena tinha dito. Era bom. ver as suas proprias palavras no quadro, tal como as dissera. A maior parte dos professores tinha sido ensinada para transformar as pala- vias dos alunos nas suas palavras, mais elaboradas, o que resultava em algo que originalmente nunca fora dito ou pensado, Serena concluiu que, talvez, os professores fizessem isso para mostrar que eram muito mais espertos que os alunos. No final foram registados vinte e oito itens. O professor sugeriu que os condensassem em quinze critérios que pudessem ser aplicados a qualquer livro. Depois propés que os transformassem numa lista 30 SERENA de verificacdo que poderiam usar para avaliar qualquer livro que estivessem a ler. Na semana seguinte, o Alexandre, um rapaz da turma que nao lia muito, perguntou se podiam usar a lista de venficag&o para progra- mas de televiséo em vez de livros. O Prof. Antonio Gil disse que era uma ideia interessante e, alguns dias depois, o Alexandre relatou 0 que tinha acontecido quando tentara fazer isso. Alguns dos itens nao tinham funcionado muito bem, mas ele inventara alguns novos. Entdo, a turma decidiu aplicar o questiondrio, agora denominado QAPTA — Questionario de Avaliagao de Programas de Televisdo do Alexandre —, a trés programas de televisao durante a semana seguinte, Apés ter sido testado intensamente durante uma semana, 0 OAPTA sofreu melhorias significativas e a turmna sentiu que tinha produzido algo comercializdvel, que poderia mesmo ser vendido a uma cadeia de televisao. Entretanto Serena decidira que gostava de ter 0 seu proprio diario. Esperava sinceramente que nunca viesse a ser tao importante como O Diétio de Anne Frank, mas serviria para se recordar de episédios que esquecia com frequéncia. No diario escreveu sobre algumas das coi- sas que tinham acontecido durante o dia: discussdes, histérias incri- veis, injustigas de professores sarcasticos, o seu espantoso desenho de um sapo morto que foi colocado na parede da sala de aula, emol- durado pela professora e assinado como um original de Serena. Escreveu sobre o trabalho de casa de Matematica e depois sobre o capitulo que a professora de Biologia, a Prof. Luisa Barata, lhes tinha pedido para lerem para o dia seguinte. ‘Matematica. Dez problemas. Facil. Concluido em menos de dez minutos. Li um capitulo para Biologia sobre térmitas. Aborrecido. No dia seguinte escreveu outra pagina no diario A Prof, Luisa perguntou-me sobre térmitas. Deu-me uma “branca’. Nao me consegui lembrar de nada do que tina lide, Bastante emba- ragoso. O Jodo continuou a rir maliciosamente. Estava capaz de o matar Talvez o fagal 31 ABISTORIA DE SERENA Trabalho de casa para hoje. Ver o programa sobre térmitas. Pensei que fosse aborrecido, mas foi espectacular. As térmitas construiram aquela cidade espantosa com tineis, caminhos, vias ¢ ar condicio- nado, O apresentador do programa disse que o cérebro das térmitas ~ nao era maior do que uma cabega de alfinete e que a rainha das tér- mitas tinha um cérebro ainda mais pequeno, mas porque trabalha- vam em conjunto, as térmitas multiplicavam as suas inteligéncias e faziam coisas espantosas. Fui buscar 0 QAPTA e dei ao programa a pontuagéo maxima. Isso fez-me pensar no livro, por isso dei-Ihe também pontuagao. Bastante curioso. Agora percebi o que estive a ler. O livro pareceu-me, de facto, muito interessante. Porque é que eu nao pensei nisto na pri- Meira vez? Sou eu ou 6 0 livro? E esta agora? AH-AH! PS. Acho que 6 melhor tirar a parte sobre matar 0 Joao. Se ele amore e a policia encontra 0 meu didtio posso acabar na priséo para o resto da vida. No dia seguinte, Serena deu consigo a falar com o Prof. Antonio Gil sobre 0 seu diério e os seus pensamentos acerca de livros sobre ténmi- tas. Serena sabia bem que esta nao era a especialidade do professor, mas, afinal, ele interessava-se pot livros. Literatura n&o era Histéria e Historia nao era Biologia, mas conseguir relacionar todas as disciph- nas deste modo era, de facto, bastante divertido. Estava a conseguir fazer algumas associagGes. Se ela tivesse tentado isto antes! — Estou bastante impressionado com a tua pergunta, Serena — disse-lhe o professor. — A pergunta “Sou eu ou é 0 livro?" é uma questo profunda. E de tal maneira profunda que fildsofos, psicdlogos, criticos literdrios e his- toriadores vao continuar a discutir sobre ela durante mais um milénio. Definitivamente, havia algo de estranho naquele professor. — Porque é que ndo tentas fazer isto em relag&o ao trabalho de casa? — sugeriu ele. Acontecera novamente. Tinha que fazer um novo trabalho de casa, Era certamente a ultima vez que diria alguma coisa ao Prof. Antonio Gil. Mas quando nessa tarde, em casa, se sentou e tentou fazer o trabalho de casa, néo demorou muito tempo, e no dia 32 SERENA seguinte foi capaz de dar ao professor a resposta 4 pergunta: “Sou eu ou 60 livro?” Quadro 1 —- Quadro com as respostas de Serena « Nao estava com disposigéc depois de fazer os exercicios de Matematica. « Jd eram quase 22 he estava cansada. * Continuava a pensar noutras coisas: que deveria estar a fazer. * Nao estava particularmente interessada em térmitas * De qualquer modo, née sabia exactamente porque é que estava & estudar as térmitas. * Gosto de ver as coisas e desenhé-las. * Aprendo melhor quando posso falar com outras pessoas * Desde a primeira frase que o autor néo me conseguiu interessar pela vida das térmitas. * A configuragiio das paginas ndo era muito interessante * As frases eram longas e eu nao petcebia algumas palavras. * O autor nao explicava as coisas muito bem. * Aquele assunto ndo estava telacionado com nada que eu soubesse. + Nao tinha imagens. Felizmente o Prof. Anténio Gil estava ocupado quando Serena entrou na sala e limitou-se a'teceber o trabalho de casa sem entrar em qualquer discussdo filoséfica e sem mandar outro trabalho. Quando, no dia seguinte, o professor Ihe devolveu o trabalho de casa, tinha escrito no fundo da pagina a seguinte nota: Serena, este trabalho esta muito interessante. Quero que reflictas um pouco mais sobre 0 modo como aprendes meihor e como podes tomar o estudo em casa mais agradavei e mais proveitoso. Detxa-me suger algumas ideias. No quadro que fizeste, vés alguma relacéio entre a colina do lado direito e a coluna do lado esquerdo? O que é que aprendeste sobre * A tua propna motivagao? * Ocontexto (onde e quando) em que aprendes? AHISTOPIA DE SERENA = Como é que te preparas antes de comegar a estudar? (mental- mente? emocionalmente?) * Como 6 que te concentras nos aspectos mais importantes de um texto? - * O teu estilo ~ Tens boa meména visual? * Como é que no teu cérebro 0 conhecimento se transforma em compreenséo? © Porque 6 que é importante para ti teres outras pessoas com quem conversar sobre os assuntos? Uma nota final, Serena. ‘Se formos realmente bons nisto, seré que conseguimos redurir para metade o tempo dedicado ao trabalho de casa 6, no enianto, apren- dermos o mesmo, ou ainda mais? E uma ultima questéo, Serena. E é mesmo a ultima. Porque 6 que nao discutes estas questées com a tua mae? Ela interessar-se-d certa- imenie e deve ser capaz de te dizer algo sobre 0 modo como aprendias quando eras bebé. Isso pode vit a explicar algumas questées! Antonio GA Nas semanas seguintes, Serena fez um registo mais pormenori- zado do modo como aprendia e comegou de imediato a aperceber-se quando o seu estudo era mais eficaz. Comegou a fazer a experiéncia a diferentes horas do dia, com modos diferentes de estudar, dese- nhando imagens, trabalhando umas vezes com musica e outras sem. musica, discutindo os assuntos com os amigos, ao telefone ou indo a casa deles e, por vezes, até mesmo com a mae. A mae contou-lhe que ela adorava livros quando era bebé, especial- mente os coloridos. Aos tés anos era capaz de fazer puzzles complica- dos. Gostava de separar as pegas dos brinquedos para as voltar a jun- tar, desmanchava coisas que ficavam sem arranjo e depois tentava repard-las. Muito antes de ter feito trés anos tevelava ja um grande sentido de ritmo e aprendera a dangar tao cedo como a andar. — Mas até te entusiasmares com as coisas, ndo era nada agradé- vel, Serena. Era preciso dizer-te tudo wés vezes pala que as coisas entrassem na tua cabega e a tua impaciéncia punha o teu pobre pai doido. Deus o abengoe. 34 SHEENA Quando o Prof. Anténio Gil lhes pediu pata, segundo as suas pré- prias palavras, "partilharem uns com os outros” o que tinham desco- perto acerca da sua infaéncia, Serena no ficou muito satisfeita por ter . de repetir tudo em frente da tumma. Nao estava disposta a partilhar absolutamente nada com o sabichdo do Joao, cujas histérias seriam sempre as melhores. Nao tinha nada em comum com o rabugento e insubordinado Daniel que, se nao estivesse a olhar fixamente pela janela, estaria a implicar com aqueles que tinham o azar de estar prd- ximo dele. Nem mesmo o Prof. Anténio Gil, quase sempre apazigua- dor, parecia saber 0 que fazer com um Daniel sempre imprevisivel. Depois de alguma persuasdo e de algumas risadas do Joao, Serena falou sobre si aos trés anos, de acordo com as informagées da mae. — Parece-me que tens uma excelente memoria visual — disse 0 professor Antonio Gil. — O teu cérebro gosta de cores. Talvez a tua memoéria auditiva n&o seja assim tao hoa, isto é, quando te limitas a ouvir o que te dizem. Parece evidente que aprendes melhor quando és capaz de visualizar. Isso era verdade. Serena nunca tinha pensado nisso. — Provavelmente também tens uma inteligéncia espacial bem desenvolvida... e a inteligéncia musical? Serena no sabia 0 que é que a primeira coisa significava, mas a segunda era mentira, de certeza. Ela detestava musica na escola. Mas claro que o Joao sabia o que era inteligéncia espa- cial. Ele era um leitor entusiasta de jornais e de tudo o que tinha a ver com ciéncia. — Professor, eu li nos jornais Serena rangeu os dentes. Detestava estas tentativas de “engraxar” —... dizia que as mulheres néo tém inteligéncia espacial, mas os homens tém. Ha fotos da sua localizagdo no cérebro e as mulheres nado tém essa parte do cérebro. Ele sé podia estar a inventar. Serena estava decidida a encontrar ojornal, mas antes morrer do que conseguir a informagao através daquele sabichao. Picou aliviada ao saber que o professor tinha lido o mesmo jomal. 35 ASISTORIA DB SERENA — Bem, Joao — respondeu o professor — recordo-me que o artigo dizia qualquer coisa sobre inteligéncia verbal, que 6 muito mais desenvolvida nas mulheres. Talvez isso explique o motivo pelo qual podemos vir a precisar de ajuda nesta discussao. — Ha sempre excepgées a regra, professor. — Nisso estamos de acordo — respondeu o professor, que obvia- mente conseguiu entender a impaciéncia da turma perante esta inter- Tupgao é, por isso, passaram de novo para a Primeira Guerra Mundial. Serena fechou os olhos e imaginou a lama e a chuva em Passchendaele (nome pelo qual ficou conhecida a terceira maior batalha de Ypres), tal como 0 Prof. Anténio Gil descreveu. Nao conseguiu evitar um certo embarago, porque isto era Historia e a “visualizagéo” pertencia a Prof. Fatima e 4 Geografia. Esperava que a Prof. Fatima, que se fora ermbora ha muito tempo, ndo se importasse, Nessa tarde, quando foi ao café com Barbara, aps uma deciséo conjunta de ignorarem o trabalho de casa por um dia, Serena quebrou a regra sagrada de ambas — nao falar de escola. — Fico mesmo aborrecida quando aqueles dois horrorosos, o Joao eo seu amiguinho, dizem que estamos a perder o nosso tempo e que temos é de trabalhar. E tu, nao ficas? Barbara parecia concordar, mas nao com muito entusiasmo. Nao fora ela quem quebrara a regra sagrada. ~ Mas nao achas que é mesmo interessante quando falamos sobre o funcionamento dos nossos cérebros e como podemos usar melhor o nosso tempo? Nao te parece que agora demoras menos tempo com 0 trabalho de casa de Historia porque a entendes bastante me- Thor? Lembras-te daquela professora de Geogtafia baixinha e diver- tida que tivemos ha uns anos? Lembravamo-nos t4o bem das coisas que nos dizia que nao tinhamos de ir para casa “marrar”. Aprendia- mos, simplesmente. Barbara sugeriu que falassem sobre isso com o Prof. Anténio Gil no dia seguinte. Assim, podiam pér o assunto de lado e voltar-se para questées mais imediatas como, por exemplo, os dois rapazes no canto qué estavam a olhar para elas desde que chegaram. 36 SERENA —O teu 60 da esquerda — propés Barbara. No dia seguinte, Serena abordou a questdo do tempo e o Prof. Antonio Gil permitiu esta pequena conversa 4 margem da Histéria. Serena explicou que estava a trabalhar menos mas a aprender mais e questionou se isso no se poderia também aplicar as aulas. -E se... E se 0 professor nos ensinasse menos e nds aprendés- semos mais? — Se conseguissemos aprender em menos tempo, o dia de escola nao teria sido pensado tal como esta. Estas a querer dizer que sabes mais do que a Directora da Escola, os Professores e o Ministério da Educagao? — perguntou Joao. Embora 0 Joao fosse reconhecido por todos como o aluno mais esperto da turma, Serena comegava a ter as suas diividas, Serena sabia bem que este tipo de perguntas “E se...?” incentivavam o Prof. Anténio Gil a continuar. Ele chamava-lhe “questées histéricas”. ~ E se nao ensindéssemos Historia na escola? E se nao houvesse escolas? E se nao tivesse sido langada a bomba sobre Hiroshima? E se Hitler tivesse tido um defeito na fala? E se descobrisses que O Didrio de Anne Frank era uma farsa? Publicé-lo-ias na mesma? Podia ainda assim ser verdadero? A ficeAo pode representar melhor uma verdade histé- Tica do que os factos? Estimulado pela discussdo da turma que se seguiu a esta ultima questo, o Prof. Anténio Gil mandou um dos seus famosos trabalhos de casa — “A ficg&o pode representar melhor uma verdade histérica do que os factos?” — Nao seria horrivel se O Didrio de Anne Frank tivesse sido inven- tado? — perguntou Serena 4 m&e num dos raros momentos de didlogo ao jantar. — Mas néo foi inventado, querida - respondeu D. Graciana. — Mas, e se tivesse sido? Poderia na mesma ser verdadeiro? — Tu 6 os teus “E se...?” E se a Lua fosse feita de queijo? O jantar prosseguiu em siléncio, enquanto Serena reflectia demora- damente nas consequéncias para o sistema solar de uma lua feita de queijo. 37 ATISTORIA DS SERENA Numa das suas deambulagées “E se...?” 0 Prof. Antonio Gil leu, na aula, uma noticia publicada num jomal americano sobre uma senhora idosa que tinha falecido recentemente, em Connecticut, com 90 anos. _ Em 1942, ano em que os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, os médicos afirmaram que ja nao havia esperanga de a salvar: tinha 41° de febre e nao se conhecia cura para o seu caso. Contudo, 0 seu médico tinha ouvido falar de um medicamento novo e maravilhoso. Apesar de nunca ter sido experimentado em seres humanos e as experiéncias com ratos nao terem sido bem sucedidas, o médico achou que este novo remédio nao poderia prejudicar uma joven as portas da morte. Vinte e quatro horas depois de ter levado a injec¢ao, a jovem, en- t4o com 33 anos, devorava uma refeigéo substancial e nutritiva. E se...? E se um jovem médico escocés chamado Fleming n&o tivesse reparado num prato bolorento no seu laboratério? E se a sua curiosi- dade nao o tivesse levado a investigat os poderes curativos da peni- cilina? E se durante os anos seguintes da Guerta a penicilina nao ti- vesse sido usada para salvar outras vidas? E qual era a relagéo com um acontecimento ocomido trés anos antes em Inglaterra, quando milhares de criangas foram evacuadas de Londres para o campo, porque a Gra-Bretanha declarara guerra 4 Alemanha? A epidemia de tuberculose que atingiu criangas que beberam leite nao pasteuri- zado tinha sido mantida em segredo por um governo que havia sido claramente avisado desse perigo. Apesar desta histéria e da discusséo subsequente nao ter demo- tado mais de dez minutos, foi mais uma das famosas “associagées" que este professor de Histéria tanto gostava de fazer. Esta historia deixou Serena confusa e pensativa nos dias seguintes. Também cons- tituiu um auxiliar de meméria para as datas que estava a aprender: 1939 e 1942 passaram a ter um novo significado para ela. Foi durante uma das sessées “E se...?” que a Prof. Manuela Cardoso, a Directora da Escola, entrou na sala e levou o Prof. Antonio Gil para fora, para uma conversa pouco habitual. Passaram alguns dias sem Conseguirem saber qual tinha sido o tema da conversa. 38 SERENA Entretanto circularam varios rumores, alguns dos quais foram dados como verdadeiros. O alegado romance entre os dois foi abandonado de imediato por falta de provas. A “verdade” é que o Prof. Anté6nio Gil estava com problemas e deixaria a escola no Na- tal. Todas as provas apontavam nesse sentido. Ele parecia mais preocupado que o habitual. O seu substituto tinha sido visto a entrar ha escola no dia seguinte 4 conversa. Quando finalmente surgiu, a verdade factual revelou-se bem me- nos excitante que a ficgao. Um pouco mais animado que o habitual, o Prof, Antonio Gi] anunciou que a escola tinha sido escolhida para participar num projecto europeu. Serena percebeu que nem toda a gente partilhava 0 entusiasmo do professor. Alguns estavarn até bas- tante desiludidos, Por muito que gostassem do professor, os alunos preferiam a sua prdpria versao do futuro, a sua propria “histéria futura”, como alguém lhe chamara, mas Serena nao se conseguia lembrar quem. S6 Daniel estava completamente abstraido de tudo, absorvido como sempre pelo mundo para além da janeia. O Prof. Antonio Gil explicou em que consistia o projecto e havia alguns aspectos com interesse. Até o Jodo parecia ter esquecido a sua intolerancia sobre a perda de tempo. De repente, Serena tomou cons- ciéncia que o professor estava a pedir 4 turma para escolher alguém que Os representasse no projecto — e Barbara ja a tinha proposto. Que amiga! Serena queria esconder-se debaixo da carteira, Alguém propés 0 Jodo e ouviu-se um grito de contentamento No final, ape- nas com os dois nomes propostos, Serena teve dezasseis votos, Joao treze e houve trés abstengdes. Os rapazes votaram no Joao e as ra- parigas em Serena. Trés rapazes, incluindo Daniel, abstiveram-se. Quando chegou a casa naqueia tarde, Serena verificou que a mae ainda néo tinha regressado do trabalho. Preferia os anos em que a mée estivera desempregada, mesmo quando isso significava me- nos dinheiro e a privagao de certas coisas, como roupas de marca ou teleméveis, que os outros como o Joao e a Barbara tinham. Serena sentou-se a janela e olhou para dois esquilos absorvidos numa conversa séria no jardim. Eram criaturas téo inteligentes. Serena 39 AFHISTORIA Da SERENA, vira uma vez um programa de televiséo em que os esquilos tinham que resolver problemas surpreendentemente complexos. As enge- nhosas criaturas trabalhavam neles durante semanas, mas acaba-_ vam sempre por encontrar a solugaéo. Lembrou-se do Prof. Anténio Gil lhes ter dito que James Dyson tinha feito 153 tentativas até con- seguir inventar 0 seu novo aspirador. . Serena estava tao pensativa que nao deu pela chegada da mae. D. Graciana parecia tao sozinha que a jovem senttu de repente uma sensagdo de culpa. Nao passava muito tempo com a mde desde que o pai morrera. A sua partida repentina deixara um vazio estranho entre mie e filha. De algum modo, a distancia entre elas tinha aumentado em vez de diminuir. D. Graciana parecia ter envelhecido de repente. O cabelo castanho tinha agora madeixas brancas e havia novas rugas a volta dos olhos. Serena seguiu a me até a cozinha. Nao disse nada, Inas pegou no pano da loiga e comegou a limpar os pratos como se isso fosse a sua rotina normal. Quando as duas estavam absorvidas nas suas tarefas era mais f4- cil conversar e tolerar os longos siléncios entre as conversas. Serena contou 4 m&e que a Histéria nao era um comboio com as carruagens iluminadas, passando na noite. —E melhor explicares-me isso — disse D. Graciana — Bem, tu sabes como é quando um comboio passa 4 tua frente, com as carruagens iluminadas, uma a seguir 4 outra, todas em se- quéncia, todas ligadas umas as outras? - Estou a ver a imagem — respondeu uma D. Graciana um pouco confusa. — Também deves ter uma boa memiéria visual... ~ disse Serena. Depois, vendo que a perplexidade da mae apenas aumentara, continuou. — Bem, o Prof. Anténio Gil diz que a Histéria n4o é assim. Nao é uma série de acontecimentos seguides, ligados entre si. Como o interesse da mae pelos pratos aumentara, Serena mudou de assunto. Contou a mde sobre o projecto europeu, sobre ter sido eleita para 0 grupo de avaliagao dos alunos e sobre a primeira reunido. Des- creveu qué estava num grupo com mais cinco alunos, dois eram mais 40 SERENA novos é trés eram mais velhos. A rapariga mais velha, que presidira, explicara o que é que eles tinham de fazer e distribuiu algo a que cha- mou 0 PAVE (Perfil de Auto-avaliacéo da Escola), que consistia numa folha de papel com uma grelha. Parecia-se bastante com um dos ques- tiondrios que tinham usado nas aulas do Prof. Antonio Gil, mas este era sobre a escola e sobre o que pensavam dela: resultados escolares, desenvolvimento pessoal e social — a escola era muito boa nisto? Boa? Nao muito boa? Bastante ma? Como é que ela podia saber? — Esta aqui, tenho uma cépia da grelha — disse Serena procurando no fundo da mochila para retirar urna cépia amarrotada do PAVE (Quadro 2), Endireitou-a com as palmas das duas mos, tentando eli- minar os vincos do papel. Quadro 2 - O perfil de auto-avalia¢do da escola (PAVE) Resultados escolares | | Desenvolvimento pessoal e social Saidas dos alunos [| ; O tempo como um recurso de i | aprendizagem : [Qsaidace ca arendinagomaseensno | _| ‘Apoio as dificuldades de aprendizagem Processos a nivel da escola A escola como um local de aprendizagem A escola como um local social T [ T ] ‘A escola como um local profissional Escola ¢ familia Escola e comunidade Escola e trabalho 41 AHISTORIA DE SERENA Serena explicou 4 mae como Teresa, a presidente do grupo, lhes pedira para analisar e completar o PAVE téo honestamente quanto possivel, sem se preocuparem com o que as outras pessoas pudes- _ sem pensar, Teresa explicou que podiam fazer perguntas sobre o sig- nificado de algumas areas, mas aquilo que cada um escrevesse tinha de ser a sua opinido pessoal. Serena olhou para a lista. “Resultados escolares?” Nao tinha muita certeza, Tentou pensar nas pessoas que conhecia. O Jodo e o Miguel, por exemplo, eles tinham boas notas, mas havia muitos outros que parecia que nunca iam conseguir - 0 Alexandre, que pouco aparecia; o Daniel, que passava a vida a olhar pela janela ou a causar problemas; ¢ a Vilma, que estava téo quieta no seu canto da sala que raramente se dava por ela. Nunca se sabia se estava a “apanhar” alguma coisa. Serena pés a cruz entre o sinal mais eomenos: ficava na fronteira. “Qualidade da aprendizagem e do ensino?” Esta nao era mais facil. Alguns professores eram bons, mas havia um ou dois que eram tao aborrecidos que ela contava os minutos que faltavam para o fim da aula. Depois pensou na qualidade da aprendizagem. S6 no ultimo més, com o Prof. Anténio Gil, é que comegara a sentir algum interesse em aprender. Encheu-se de coragem e deu um menos nesta area. Serena avaliou as doze dreas e olhou para a grelha preenchida. Um ziguezague de mais-mais, mais e menos. Nao havia menos- -menos, nada era assim téo mau. A mae ainda a estava a ouvir, o pano da loiga suspenso numa mo, o PAVE amarrotado na outra. Serena continuou a sua narrativa, Na segunda parte da reunido, o trabalho foi ainda mais dificil. A presidente dissera-lhes que, uma vez que constituiam um. grupo, os seis tinham de partilhar o que tinham escrito e concordar na avaliacéo a atribuir & escola. O grupo analisou novamente as doze areas, uma por uma. “Resultados escolares": ninguém tinha dado a escola um. ™Mais-mais, nem um menos-menos. A decis&o crucial era entre um. mais ¢ um menos. Um dos rapazes mais velhos contou que os pais queriam que ele fosse para outra escola, porque ali os resultados nao. eram tao bons quanto noutras escolas e, por isso, ele tinha dado um 42 SERENA menos. Alguém discordou com base no argumento que oito dos trinta alunos da sua turma tinham ido para a universidade e que 25% era uma boa percentagem para uma escola “numa zona como aquela”. ‘Teresa afirmou que talvez conseguisse encontrar dados estatisticos que compalassem: os resultados daquela escola com resultados de ou- was escolas e que iria ver 0 que € que essas estatisticas revelavam. — Isso significa que ha uma resposta certa? — perguntou um rapaz chamado Filipe. Foi mais uma provocagéo do que uma pergunta. Teresa ficou um pouco embaragada e depois respondeu: ~ Bem, acho que 6 uma evidéncia — recostou-se na cadeira e sentiu-se bastante satisfeita com a sua resposta. O grupo continucu 0 trabalho, mas toda a gente pensava agora em “evidéncia’. Que evidéncias conseguia Serena apresentar para justificar as suas opinides? Saidas dos alunos, por exemplo. Pensou no grande mimero de antigos alunos passeando nas ruas e sem em- prego — isso podia ser considerado como uma “evidéncia” para a area “saidas dos alunos"? Serena questionava-se se haveria estatis- ticas disponiveis sobre o que acontecia aos jovens depois de sairem daquela escola. Se esta fosse realmente uma escola “fora-de-série”, inam todos para a universidade? Ou conseguiriam bons empregos? Ou tomar-se-iam cientistas brilhantes, poetas e musicos? © grupo demorou mais de uma hora para conseguir avaliar todas as areas. O tempo tinha passado rapidamente, deixando no ar varias quest6es. Mas Teresa explicou que isto nao era o fim, era apenas o principio. A segunda fase ainda estava para vit — iria ser constituido o grupo de avaliagao da escola, no qual dois alunos iriam reunx com professores e pais para analisar de novo o PAVE. Pelo modo como Teresa olhava para ela, Serena teve a sensagao que iria ser voluntaria outra vez. Efectivamente, sem grande discussao, ela e o Filipe foram eleitos! Serena sentiu uma mistura de receio e de entusiasmo. O que é que fizera para merecer isto? Era tudo culpa de Anne Frank. Escrever diarios e fazer perguntas pode causar sarilhos. — Bom, entao isto nao foi o fim! — disse D. Graciana claramente desapontada. 43 AHISTOPIA DE SERENA — Nao tenho essa sorte — respondeu Serena. — Logo agora que eu pensava que estava tudo terminado, temos de fazer tudo de novo. Chamam-hhe o grupo de avaliagao da escola. No grupo de avaliag&o da escola repetiu-se um pouco o que © tinham feito anteriormente. Mas havia grandes diferengas. Era como subir ao palco do Teatro La Scala, em Mildo, apés ter representado na pega da escola. Serena era a mais nova do grupo. A Directora da Escola era a mais velha, ou provavelmente talvez fosse a Presidente da Assembleia de Escola, que parecia ter noventa anos. Havia dois Tepresentantes dos pais e dois dos professores, incluindo a Professora Luisa, a sua professora de Biologia. Um dos pais era a intrometida D. Etelvina, que vivia do outro lado da rua. Serena tinha de ter cuidado com o que dizia porque a vizinha ia de imediato contar & sua mae, acrescentando naturalmente algumas passagens ficticias. Serena pensou que a Histéria talvez se escrevesse assim. Cada um dos cinco grupos presentes na reunido tinha trazido o seu PAVE devidamente preenchido. Serena e Filipe tinham uma cé- Pia da verso final decidida no grupo. Seria muito diferente da ver- Sao a que os outros grupos tinham chegado? A presidente do gnipo de avaliagdo da escola era uma das repre- sentantes dos pais, a D. Helena Coelho, que pediu para que a tratas- sem por Helena. Serena pensou que nao o conseguiria fazer. Além disso, nao planeava dizer muita coisa. D. Helena nao perdeu tempo, apés uma breve explicagao das regras basicas de funcionamento, comegaram imediatamente a trabalhar. Serena esperava que a D. Etelvina tivesse ouvido bem a parte sobre “discrigdo” e “confiden- cialidade” “Resultados escolares?” Tal como da Ultima vez, nao houve acordo imediato, mas desta vez Serena teve mais dificuldade em acompanhar 0 debate. Foi distribuida uma folha com os resultados dos exames da escola e fizeram-se comparagdes com outras esco- las. Tudo parecia apontar para wm menos, mas o seu novo “amigo” Filipe recusava-se a aceitar esta pontuagdo. Ele queria saber sobre © “valor acrescentado”. Serena decidiu nao mostrar a sua igno- rancia. Perguntaria sobre isso mais tarde. 44 SERENA A presidente parecia estar empenhada em dar a todos a oportuni- dade de falar. Serena reparou que ela estava a olhar na sua direcgao e num 4pice olhou para os seus papéis para evitar contacto visual. Por fim, todos concordaram, ainda que cautelosamente, em dar um menos na area “resultados escolares", mas assinalando-a como uma area a que voltariam e que aprofundariam durante o ano. ~ Isto vai durar um ano? — perguntou Serena para si prépria. A 4tea seguinte suscitou ainda mais debate: “Desenvolvimento pessoal € social". Serena esperou que fossem apresentados dados estatisticos, mas tal nao aconteceu. Uma das professoras comegou por dizer que existia um excelente programa de educagao social e para a satide, onde eram abordados temas como drogas, sexo e vida saudavel. A Prof. Luisa interrompeu para dizer que complementava este progiama has suas aulas de Biologia, ensinando a fisiologia do corpo humano e a reprodug4o sexual. Pér preservativos em cenou- ras!!! Filipe suspirou demasiado alto aos ouvidos de Serena e rece- beu um olhar de reprovagao da Prof, Luisa. Desta vez Serena nao conseguiu baixar os olhos a tempo. O olhar da presidente cruzara 0 seu. — Serena, achas que a escola contnbuiu para o teu desenvolvi- mento pessoal e social? A resposta imediata teria sido “sim”, mas Serena tinha aprendido algo muito importante com 0 Prof. Anténio Gil: pensar antes de res- ponder. Pensou por uns longos e silenciosos dez segundos e depois Tespondeu: ~ Bem, eu acho que contribuiu, mas para dizer a verdade nao me pa- tece que tenha sido por causa das aulas sobre drogas ou outras coisas assim. Eu acho que foi sobretudo por causa dos amigos que fiz e de al- guns dos meus professores que ajudaram a que me conhecesse melhor. Serena achou que isto pareceu um pouco pomposo ou “mole”, como diriam os seus amigos. Ainda bem que eles nao estavam ali Naquele momento para a ouvir. Isto de encontrar evidéncias estava a deix4-la com dor de cabega. Quem era ela para falar em nome de algumas centenas de alunos da 45 HISTORIA DE SERENA, escola? Havia tantas coisas e, contudo, sobre a maicria delas havia tao pouco que pudesse ser considerado por toda a gente como uma boa evidéncia. Ao fim de hora e meia de discussdo iam apenas a meio da lista. Tinham demorado quarenta minutos com duas das dreas —“quali- dade da aprendizagem e do ensino” e “o tempo como um recurso da aprendizagem”". Nestas duas dreas Serena sentiu-se mais 4 vontade e Mais entusiasmada. Teve consciéncia que sabia bastante mais do que os pais, do que a Presidente da Assembleia de Escola, e em algu- Mas quest6es até mais que as duas professoras e do que a propria Prof. Manuela Cardoso, a Directora da Escola. Como Filipe referira, embora talvez de um modo um pouco agressivo, os professores ensinam. as suas disciplinas e nao tém a visdo global da vida de escola como os. atunos. A Prof. Manuela raramente ia as salas de aula, mas quando ia estava tudo a funcionar “as mil maravilhas”. Serena no se lembrava de alguma vez a ter visto nas suas aulas, excepto no dia em que lé foi para Thes falar no projecto. Entretanto, Pilipe disse algo que a fez pensar. — Os professores véern o tempo de um modo diferente daquele que nds, alunos, vernos. Parece que pensam “quanto tempo é que demorei com um assunto?” e depois somam tudo e dizem “cinco horas por semana de Matematica’, Visto assim, parece que a uinta alunos numa sala de aula correspondem 150 horas de uma aprendizagem sdéhda. Para mim, talvez s6 30 minutos por semana correspondam a uma boa apren- dizagem, isto 6, quando sinto que realmente aprendi e compreendi a matétia. E talvez metade daquilo que aprendo seja fruto do que fago em casa, no Meu proprio tempo, durante o meu tempo de estudo. Para surpresa de Serena, a Prof. Manuela, Directora da Escola -a tainha das térmitas — estava atenta e acenava com a cabega. Estava a ser uma surpresa agraddvel constatar que os outros adultos ouviam atentamente os alunos e os tomavam a sério, enquanto que o Filipe, que comegara de forma um pouco agressiva, escutava agora os adultos e concordava mais com eles. - As pessoas discordavam de um modo simpatico - disse Serena a mée, concluindo a longa historia que a mae ouvira ndo sé 46 SERENA pacientemente mas também com interesse. Mas nao era feitio da mae ficar com diividas. ~-Eonde é que tudo isto te leva? Ao préprio tempo como um recurso da aprendizagem. Estas a dizer-me que toda aquela discuss&o a volta de uma mesa é tempo bem gasto? Deves estar a faltar a aulas. ~ Vamos ver 0 que vai acontecer a seguir — respondeu Serena. — To- dos concorddmos que queremos saber mais sobre trés questées im- portantes — “qualidade da aprendizagem e do ensino", “o tempo como um recurso da aprendizagem”, “relagdes escola-familia” — para as podermos melhorar. Sabes o que disse Jean-Jacques Rousseau, me: perde tempo se o quiseres ganhar. Amie olhou-a demoradamente e com capticismo. Serena sabia que citar Jean-Jacques Rousseau nao era suficiente para convencer a mae. — RelagGes escola-familia, m&e. Nao achas que este é um tema que te pode interessar? — Eu acho que as coisas estéo bem assim como estao. Toma cui- dado. Pelo que estou a ouvir, tenho duvidas sobre o que se esta a passar ld na escola. Tinham acabado de limpar a loiga havia j4 algum tempo e foram para a sala de estar, mas a conversa continuou. ~ Vamos ver, .. —respondeu Serena. CO didlogo foi interrompido pelo toque da campainha. Serena sen- tiu a entrada iminente da D. Etelvina. Foi rapidamente pata o quarto, onde o trabalho de casa a esperava, e voltou para a sala quando ja nao havia qualquer impedimento, logo apés terem desaparecido os uiltimos vestigios da presenga da D. Etelvina — Bruxa velha! — disse com sentimento. — Aposto que veio ca para te contar as minhas novidades. Durante a semana seguinte comecaram a ser recolhidos dados. Cinco alunos da turma de Serena foram escolhidos como “investiga- dores" e cada um tinha uma tarefa especifica. 47 AHISTORIA DB SERENA Na terga-feira Serena fez ur hordrio: Quadro 3 — Tempo de aula nao dedicado 4 aprendizagem ‘Mudar de uma aula para outra 17 minutos SERENA um texto e responder a perguntas sobre Uma semana depois, Serena comegou a fazet registos mais detalha- dos sobre algumas disciplinas em particular. Os alunos tinham concor- dado que tentariam fazer um registo mais cuidadoso do tempo total passado em sala de aula, bem como uma anélise sobre quanto desse tempo era “tempo real de aprendizagem", entendido como o tempo em que, segundo eles, tinham, efectivamente, adquiride conhecimen- tos ou desenvolvido capacidades importantes. As notas sobre a aula de Geografia revelaram alguns dos pontos altos e baixos da aula. Quadro 4 - Distribuigao do tempo de aula numa aula de Geografia 4 minutos 0 minutos Acalmar antes de a aula comegar O professor ouve as desculpas dos alunos que néo fizeram o trabalho de casa. 4 minutos @ minutos O professor explica o problema das redes de transportes na Tailandia durante a Guerra do Vietname cerca de 4 minutos 11 minutos o texto Formar grupos e discutir o que vamos fazer 3 minutos 21 minuto Acalmar antes das aulas comegarem minutos Resolver um problema sobre a construgao 4 Problemas e questées disciplinares 16 minutos de redes de transportes @ aeroportos na 8 mimutos ane le ‘Tailéndia para fins militares minutos Visitas e interrupgées 11 minutos Relato do primeire grupo e discussao na 9 5 minutos mais Devolver trabaihos, verificar os trabalhos de casa 8 minutos tarma minutes | 3 bons minutos Avisos da escola, noticias, coisas sobre regras 14 minutos Toque da campainha, distribuigao do {trabalho de casa e algumas perguntas 2 minutos sobre 0 trabalho Torn. Isto era uma “evidéncia”, mas Serena nao tinha a certeza se conseguia retirar muito mais informacao para além daquela rela- tiva 4 quantidade de tempo desperdigado. Na verdade, isto néo mostrava como a aula tinha comegado de uma forma bastante frustrante e terminado de forma muito interessante. Serena escre- veu o seguinte acerca dos primeiros dez minutos de aula: Ouvt o professor falar sobre o envolvimento da Tailandia na Guerra do Vietname. Apercebi-me que nao fazia a minima ideia sobre onde ficava a Taijlandia ou do porqué da Guerra, Porque estamos a dar isto em Geografia? Quis fazer uma pergunta mas nao quis parecer nem estupida nem demasiado pretensiosa. O professor fez-me uma pergunta - como 6 que se chamava a Tallandia antigamente? Nao soube responder, mas 0 Joao sowbe. No me lembro o que é que ele respondeu. Estava bastante aborrecida. Envergonhada? AHISTORIA DE SEPENA Nos ultimos dez minutos a aula tornou-se mais viva para Serena quando o professor explicou como é que tinham sido construidas as estradas, os aeroportos e as redes rapidas de comunicagao. Serena lembrou-se das térmitas e disse ao professor: ~ Acho que é um pouco como as térmitas constroem as suas ci- dades. O professor ficou um pouco surpreendido e pediu-lhe que expli- casse 0 que 6 que queria dizer com isso. O Jodo e mais um ou dois Tapazes suspiravam e mostravam claramente a sua impaciéncia por Serena estar novamente a interromper uma aula de Geografia para falar de uma coisa completamente diferente. Por exemplo, de Biologia! Apesar disso, o professor estava interessado e agradeceu a Serena, Afirmou que tinha aprendido algo e que aquela era uma excelente analogia. E depois continuou: — Ha uma verdade mais profunda na historia que Serena nos contou, nao é verdade? E. sobre conhecimento e inteligéncia. Nao pode estar apenas dentro dos pequenos cérebros de cada uma das ténmitas. Revela-se quando trabalham em conjunto para cnar algo que nenhuma delas pensava ser capaz. Sabem como 6 que isto se chama? Fez uma pausa, mas n&o suficientemente longa para que alguém. pudesse responder. Toda a gente sabia que ele iria responder a sua propria pergunta. ~ Chama-se sinergia. E uma forma de energia mais potente que a combinag&o das energias individuais. Uma definigao simples de sinergiaé1+ 1+ 1=5.E agora, sinergia na Tailandia. Serena estava satisfeita ndo sd por ter sido capaz de relacionar alguns assuntos, mas também por ter contribuido com algo para a aula. Fora a sua contribuigao pessoal para a sinergia. Durante o jantar, Serena falou com a mae sobre sinergia. Depois contou 4 mae sobre as térmitas. Pelo modo como reagiu, Serena percebeu que a m&e pensava que se tratava de mais uma das “ideias malucas” da filha, mas também sabia que a mae preferia 50 SERENA ouvir as suas ideias, por muito malucas que fossem, ao siléncio que se tinha instalado entre elas nos ultimos anos. Fstavam agora mais proximas uma da outra. — A tua cabega esta cheia de térmitas — disse-lhe a mae — N&o, ouve-me — argumentou Serena. — Podes ver a escola um pouco como um formigueito. Nenhum de nés é um Einstein. Nem mesmo a tainha das térmitas sentada no seu gabinete. Fla 6 tao estupida como nds. ~ Serena! ~— O que estou a dizer é que quando todos nés deixarmos de andar a pressa a fazer as nossas coisas e comegarmos a pensar em. conjunto sobre a escoia, poderemos fazer uma escola rnelhor. —Eu acho que é melhor se continuares apenas com a tua apren- dizagem — disse-lhe a mae. ~ Mas é isso mesmo. Isto 6 a nossa aprendizagem. Ha uma pala- via que explica isso e que o professor nos disse. Nao a consigo dizer. Tenho de a ver escrita para a poder dizer. Serena escrevera METACOGNITIVO, — Significa reflectir sobre 0 nosso proprio pensamento. O que estamos a tentar fazer é descobrir como € que a escola se vé a si prdpria. Chama-se auto-avaliagao. 51 D. Graciana (a mae) D. Graciana lembrava-se tao bem, como se tivesse sido ontem, do primeiro dia da filha na “escola dos grandes”. Serena tinha regres- sado a casa com uma lista enorme de coisas para contar a mae e nado conseguia acabar de contar uma sem ja ter comegado outra. Era uma escola grande, muito maior do que Serena estava a espera e contou 4 mde como se perdeu varias vezes. As pessoas eram simpaticas e compreendiam que ela era nova na escola, mas quando perguntou a alguns rapazes mais velhos onde era a sala de Matematica eles indicaram-lhe o caminho errado. ~ De propésito — afirmou Serena. A escola nova tinha uma biblioteca melhor do que a anterior, mas, em contrapartida, nao havia cacifos onde os alunos pudessem guardar os seus livros, por isso tinham que os carregar na mochila durante todo o dia. As raparigas eram simpaticas, mas a maioria dos rapazes era horrivel. Serena gostaria de ter ido para uma escola s6 de raparigas, como aquela para onde fora a sua amiga Inés. Os rapazes eram muito gabarolas e chamavam permanentemente a ateng&o dos professores. As raparigas, tal como ela, apenas faziam o seu trabalho — As raparigas séo muito mais maduras, nao achas? — perguntou Serena. — Bem, Serena, isso é um dado biolégico — respondeu-lhe a mae. As noticias importantes do dia de escola ficaram suspensas durante o tempo em que Serena esteve na fila para ir a casa de banho. Esta era a sua maior queixa acerca da nova escola: metade das casas de banho néo tinham fechos nas portas e a nuvem de fumo no ar fazia-a tossir. Por isso, com um grande exercicio de auto- controlo, conseguiu “aguentar-se" até chegar a casa. Serena tinha mais professores do que aqueles que conseguia no- mear. No seu ultimo ano na escola basica tinha tido apenas um. Serena descreveu os professores em pormenar, aqueles que gostara e aqueles 53 ANISTORIA Da SERENA, de que nao gostara. A mae afirmou que era ainda um pouco cedo para fazer juizos de valor e perguntou-lhe o que é que a levava a ter uma opi- nido mais positiva sobre uns professores do que sobre outros. — E apenas uma impressdo — respondeu Serena. — ‘Te sabes logo” quem sao os simpaticos. Quando a mae insistiu para que fosse mais explicita, Serena achou que tinha gostado mais dos professores que tinham sorrido mais, que nao lhe falaram com altivez e que explicaram claramente o que espe- tavam dela e o que iria aprender. D. Graciana recordou-se perfeitamente de alguns dos professores que tinha tido na escola ha muitos anos atts. Conseguia ver e ouvir aqueles que a tinham marcado, bem ou mal, mas n4o se conseguia lembrar de nenhum que fosse como aquela estranha professora que Serena descrevera e que os levava em viagens de fantasia a locais distantes, ds vezes ao som de musica. No seu tempo, tal nao teria sido permitido. A musica pertencia a aula de Musica, e ndo 4 Geografia. Trés anos mais tarde, D. Graciana relembrava a Serena essas primei- Tas conversas que tinham tido logo apés ela ter ido para aquela escola. — Agora, quando chegas 4 casa e te pergunto acerca da escola, ape- nas Tespondes “Foi normal’. Ou se te pergunto o que aconteceu, res- pondes “nada”. Se eu te digo “Nao podes ter passado um dia na escola e nao ter acontecido nada”, tu respondes “Nao aconteceu nada. Ponto final’. — A m&e continuou: — Lembras-te de como costumavamos falar sobre os teus trabalhos de casa e de como estavas sempre ansiosa por fazé-los e interessada em ter tudo certo e agradar aos teus professores? — Isso foi nessa altura. Agora @ agora — respondeu Serena, dese- jando que a conversa acabasse ali. A mensagem era clara: “ndo te metas. Nao tens nada a ver com isso”. Foi assim que D. Graciana se afastou da vida da sua filha. Deixou de interromper os grandes periodos de tempo que Serena passava no quarto para se certificar que ela estava a fazer os trabalhos de casa ou se estava imersa na sua musica. Houve uma altura em que abria a porta do quarto e encontrava Serena sentada ou deitada no chao com 54 D,GRACIANA (A MAE) os livros espalhados a sua volta, como se estivesse por detrés de uma barteira de som que a isolava do mundo exterior. Serena afirmava que trabalhava melhor assim, mas D. Graciana duvidava seriamente destas condigdes de trabalho pois ela propria precisava de siléncio total para ler um livro ou para pensar. Mas nao havia argumentos que conse- guissem fazer Serena mudar os seus habitos. "Ela vai crescer e mudar", dizia D. Graciana para si propria, esperancada. D. Graciana ficou um pouco mais confiante quando falou com outras mies. Os filhos tinharn-se tornado igualmente pouco comunicativos. De vez em quando, e apenas quando tinham vontade, os rapazes e rapatigas contavam aos pais algo que um professor tinha ou nado tinha feito. As vezes, mas cada vez menos a medida que iam cres- cendo, pediam ajuda aos pais quando nao eram capazes de fazer um. trabalho de casa ou no percebiam 0 que o professor queria que fizes- sem. Periodos houve em que os pais se cansavam de os ouvir ao tele- fone, conversando com os amigos — sobre os professores, sobre as injustigas de que tinham sido vitimas, sobre como algumas das disci- plinas que tinham de estudar eram uma “chatice” e como algumas aulas eram divertidas. Mas os pais comegaram gradualmente a ficar excluidos destes relatos intimos. Foi no terceiro ano na escola que Serena viveu o momento mais critico. Teve uma ma experiéncia em duas das disciplinas que mais gostava, Em Geografia as suas notas baixaram drasticamente e parecia ter perdido todo o interesse em Histéria. ~Histéria é aborrecido — foi tudo quanto Serena disse. —Mas tu adoravas Historia —retorquiu a mae. — Isso foi no ano passado — respondeu Serena, como se esse dado histérico falasse por si sd. -E Geografia? Eras a melhor da turma no ano passado. — Isso foi antes de termos o Prof. Lima — respondeu Serena. — Fle nado ajuda nada. Ele nao sabe ensinar. —Bem, ent&o temos de fazer qualquer coisa sobre isso. Serena olhou para a mae tao surpreendida como se ela lhe tivesse acabado de sugerir que aprendesse dancas de salao. 55 A HISTORIA DE SERENA — Desculpa, Serena, mas estamos a falar da tua educagao. Fu vou a escola para saber 0 que se passa. — Nem penses nisso — respondeu Serena. — N&o te atrevas. Nao - podes fazer nada e sé vais piorar as coisas para mim. Vendo agora as coisas retrospectivamente, D. Graciana lamentava ter deixado que Serena a dissuadisse. Ouviu historias de outras mées sobre a incapacidade do Prof. Lima em controlar a turma. —O problema é que ~ dizia D, Etelvina, que morava do outro lado da rua — ele é uma pessoa muito simpatica. Fle é uma criatura amével, incapaz de fazer mal a alguém. Os alunos, especialmente os rapazes, fazem-lhe a vida num inferno. Ninguém gosta de confusao e a mulher abandonou-o. A partit daf, nunca mais foi o mesmo. F uma pena. ~ Como é que sabe tudo isto? — perguntou D. Graciana, consciente de que a senhora do n? 23 no escapava nada do que se passava na vizinhanga. ~ Eu piopria tive de ir a escola queixar-me sobre a nossa Claudia. As notas dela baixaram drasticamente em poucos meses. Falei com 0 Vice-Director que me contou tudo acerca da vida dificil do Prof. Lima. Vim de l4 com muita pena do pobre homem. Ja estava quase a che- gar a casa quando me lembrei porque é que tinha ido a escola: a nossa pobre Claudia! D. Graciana deixou as coisas seguirem o seu curso. O “pobre Prof. Lima” teria de lutar e Serena também. ~E 0 que acontece se os inspectores forem a escola? — perguntou D. Graciana. — Escondem 0 Prof. Lima e todos os outros maus professores num armério ~ sugeriu D. Etelvina. ~ Tem de ser um armario muito grande! — brincou D. Graciana. De facto, por aquilo que conseguia saber por Serena e do pouco que conseguia ouvir casualrnente dos seus telefonemas, a maior parte dos professores parecia ser normal. Mas os poucos maus, segundo parecia, poderiam causar estragos. ~ Talvez os mitidos se portem bem quando lé estiver a inspecgdo — sugetiu a D. Ftelvina. 56 D GRAGIANA (A MAR) — Se eu fosse 0 director, procurava que os inspectores visitassem. precisamente as aulas do Prof. Lime e dos outros como ele — afirmou —D. Graciana. — Tenho a certeza que seria melhor para todos se se aposentassem. Ou sera que n&o lhes conseguem arranjar um emptego agradavel, algures num gabinete, onde nao prejudiquem tanto os nossos filhos? D. Graciana nem queria acreditar que tinha dito isto. Nao estava habituada a fazer comentarios arrojados como este, mas a histéria patética que D. Etelvina lhe contara tinha-a irritado. O problema é que Serena era muito esperta. Tinha brilhado na escola primaria. “Dema- siado esperta para a sua idade”, alguém comentara na altura. Jogava xadrez e vencia frequentemente os rapazes. Era melhor do que muitos deles nos jogos de computador. Demorava metade do tempo do que qualquer outro a fazer puzzles. Desmontava e montava aparelhos mecAnicos como se tivesse nascido para isso. As vezes esforgava-se com os trabalhos de casa e desistia com muita facilidade quando en- contrava um problema, mas, de sua livre iniciativa, devorava livros. O seu entusiasmo e grande curiosidade acompanharam-na ao longo da escola primaria. — Ela estA uma sombra daquilo que era - disse D. Graciana com tristeza a D. Etelvina. ~ Sinto-me impotente pata a ajudar. —S4o as hormonas, sabe — explicou D. Etelvina pacientemente. — Sabia que cada célula do nosso corpo muda de sete em sete anos? Tomamo-nos uma pessoa nova. Catorze, quinze anos é uma idade dificil para os jovens. Ela esta a perder todas as células de crianga e as céhilas de mulher estdo a crescer. Fla esté a tornar-se uma mulher. Serena estava a tornar-se urna mulher. Era estranho, contudo, que 0 seu desenvolvimento biolégico estivesse a acompanhar o ritmo do ano escolar porque, agora, no seu quarto ano na escola, em que ja nao tinha o Prof. Lima e mais um ou dois professores, come¢ava a vet uma luz ao fundo do tunel. ‘Trés semanas apés 0 inicio do ano lectivo, Serena chegou a casa e, depois da habitual visita 4 casa de banho, entregou um envelope 4 mde. —E para preencheres — disse Serena. - Fu sei o que é. E um questiondrio de Histéria_ 57 AHISTORIA DE SERENA D. Graciana nao ficou muito satisfeita. Afinal, o que é que ela sabia de Histéria? ~£ 0 nosso novo professor de Histéria. Ele é um pouco estranho. Vem sempre com ideias novas excelentes. Ele quer que a gente pense, mas um dos rapazes, o Jodo, o espertinho, perguntou-lhe se ele nao achava que j4 era um pouco tarde para isso. — Bem, espero que o professor o tenha repreendido devidamente Por estar a ser tao insolente. — Nao, de facto, nao. O professor levou a sério o que o Joao disse e perguntou-lhe porque é que pensava assim. O Joao respondeu que estava apenas a brincar, mas 0 professor disse-Ihe que achava que ele tinha falado a sério. Por fim, o Jo&o acabou por dizer que a maior parte dos professores ndo quer que os alunos pensem. O professor no ficou aborrecido, como alguns professores ficariam. E isso que é estranho nele. E como se acreditasse naquilo que o Jodo tinha dito. Ento, em vez de termos a aula de Historia, estivemos dez minutos a discutir sobre “pensamento” e um ou dois dos rapazes ficaram bastante aborrecidos. Disseram que estavam a perder tempo e nado queriam “chumbar” no exame de Histéria. E 0 professor respondeu: “Pensar sobre o pensamento é dificil, nao 6?”, ou algo parecido. Depois perguntou ao Joao o que achava do pensamento histérico e ele calou- -se e entrou num dos seus longos siléncios de quem esta zangado. Esta namativa de Serena fora 0 seu maior discurso, pelo menos sobre © tema escola, dos Ultimos anos. Serena era capaz de fazer um discurso muito maior sobre o tema “roupas”, mas “escola” n&o era um tema que conseguisse suscitar as mesmas paixdes. Nao habitualmente. D, Graciana recebeu o envelope e olhou para o questiondrio. Pedia a sua opinido sobre Histéria, se achava que era ou néo importante e onde 6 que tinha adquirido a maioria dos conhecimentos de Historia. D. Graciana n&o gostava deste tipo de perguntas. Faziam-na sentir desconfortavel, mas era o seu dever e nao iria comprometer Serena ou aescola, Nao demorou muito tempo a responder ao questionario e ficou contente quando acabou e o devolveu a Serena. Pediu a opiniao da filha em TelagSo a duas perguntas: “Porque acha que é importante 58 D GRACIANA | MAN] estudar Histéria?” e “Onde ¢ que aprendeu mais sobre Histéria?” Deixou em branco a resposta a primeira pergunta e esperou que a resposta 4 segunda pergunta lhe desse inspirac&o para a primeira. Pensou na Historia que aprendera na escola — os Romanos, a Peste Negra, a Guerra dos Sete Anos algures, Colombo que em 1492 atraves- sou 0 Oceano Aulantico. Isso foi antes ou depois do Renascirmento? Uma data que memorizara em tempos, mas que agora se tinha apagado. Que mais tinha acontecido no século XV? Nao se lembrava de mais nada. D. Graciana apercebeu-se que todas estas memérias eram apenas fragmentos desconexos sobre os quais nao era capaz, de escrever duas frases coerentes. O que é que, do seu conhecimento de Historia, tinha, de facto, compreendido? Lembrava-se de ter visto os filmes Dr. Jivagoe depois Nicholas and Alexandra e de ficar tao fascinada pelo mistério de Rasputin e Anastasia que leu tudo o que pade sobre a Revolugao Russa e convenceu 0 marido a fazer um cruzeiro de Helsinquia para Sao Petersburgo para ver com os seus préprios olhos o Palacio de Inverno. De pé, naquela grande praca redonda er frente do Palacio de Invemo, quase que conseguia ouvir o cavalgar dos cavalos a aproximarem-se @ sentir a ameaga que representaram para a entéo familia imperial. Parecia algo insultuoso escrever no questionario do professor que os seus conhecimentos de Historia provinham do cinema, dos livros e das viagens, mas Serena assegurouthe que o Prof. Anténio Gil queria tespostas sinceras. E foi isso que ela fez: com confianga renovada voltou a primeira pergunita e escreveu: “A melhor raz4o para aprender Historia 6 que, quando contada, é a melhor histéria”. Dez dias depois, quando D. Graciéna chegou a casa, Serena estava sentada na cozinha. Estava sozinha, olhando pela janela. Nao era habi- tual Serena fazer isso. Normalmente estaria ao telefone, a ver televisdo, a cochichar com Barbara, ou, gragas ao seu apurado sexto sentido na Tua até que a mae estivesse mesmo a acabar o jantar. De seguida, Serena fez algo também fora do habitual. De sua livre iniciativa, pegou num pano de cozinha e comegou a limpar a louga ja seca que tinha ficado do pequeno-almogo. Houve um grande siléncio entre mae e filha enquanto D. Graciana se ocupava com pequenas tarefas na cozinha e Serena limpava e arrumava a louga. D. Graciana sabia que era melhor 59 A HISTORIA DE SERENA nao tentar quebrar o siléncio com qualquer pergunta. Por isso, esperou, cheia de curiosidade. — Como é que correu o novo trabalho? — perguntou Serena. Nao ela a pergunta que D. Graciana estava a espera e esforgou-se por conseguir dar uma resposta inteligente. — No 6 facil voltar a trabalhar depois de tanto tempo. Estou um pouco exausta. E bom pensar que sé falta mais um dia para o fim-de- -semana. E contigo esta tudo bem? Estas muito pensativa. —Ea escola. £ mesmo diferente este ano. Nem tudo, mas alguns pro- fessores. A Térmita entrou na nossa sala e todos ficamos a pensar 0 que é que se estava a passar. Pensémos uma coisa terrivel. Depois, foi o Prof. Antonio Gil, o professor de Histéria de que te falei e que enviou o questionario. A 'Térmita falou-nos de um projecto — vamos fazer um in- quérito na escola para ver como € que aprendemos, e essas coisas. —N&o gosto que chames Térmita a Prof. Manuela Cardoso. F falta de respeito. E, além disso, néo achas que te devias concentrar ape- nas nos teus estudos? ~ E exactamente isso que vamos fazer, Vamos concentrar-nos nos estudos em vez de estudar. D. Graciana riu para si propria com o habitual comentario inteli- gente de Serena que a deixou sem resposta. — Parece-me que os teus professores j4 perderam toda a autori- dade. No meu tempo nao eram os alunos que diziam aos professo- Tes 0 que fazer. Foi a vez de Serena sorrir. Mae e filha foram interrompidas pelo toque da campainha da porta, Quando Serena viu que era D. Etelvina, retirou-se apressadamente para 0 seu quarto, D. Graciana tinha uma relagao curiosa com a Sr do n° 23, D. Etelvina, Era uma das suas poucas amigas, mas conseguia ser tao irritante que, apdés conversarem durante uma hora, D. Graciana encontrava uma desculpa para voltar para casa. Encontros ficticios, telefonemas urgentes, compras por fazer ou novas tarefas dormésti- cas levavam-na de volta ao siléncio reconfortante da sua casa. —O que é que ela queria? — perguntou Serena que saira do quarto assim que ouvira a porta fechar-se apés a saida de D. Etelvina. 60 D. GRACIANA (A MAR) — Veio falar-me desse tal projecto europeu. Disse-me que lhe vao pedir para participar. D. Graciana percebeu que tinha dito ou feito algo de errado. Sem dizer uma palavra, Serena voltou para o quarto e, meia hora depois, quando se sentaram a mesa para jantar, Serena falou pouco para além de “E mesmo deta roubar-me as novidades. Aquela bruxa velha" As coisas néo melhoraram com a segunda visita de D. Etelvina, pouco tempo depois. D. Etelvina demorou bem uma hora, com alguns intervalos para perguntas e encorajada por alguns acenos afirmativos, para falar de novo sobre a excitagdo de fazer parte de um novo e importante grupo na escola. Chamou-lhe o grupo de avaliagado da escola, o que fazia muito pouco sentido para D. Graciana, embora petcebesse que tinha alguma relagao com o que Serena estava a fazer e com as coisas muito estranhas que se estavam a passar na escola nas tltimas semanas. A historia de D. Etelvina exigiu um esforgo de concentragao. D. Graciana teve de se esforgar para imaginar o contexto e entender os motivos e os objectivos daquela estranha actividade, mas, sem duvida, era algo que tinha estimulado a normalmente indiferente D. Etelvina. Esta tinha emergido como lider do grupo, antecipando argu- mentos, indo constantemente ao centro das questées, informando os professores e a directora acerca de uma vida comunitdria que desco- nheciam por completo. D. Graciana percebeu que foi quando houve a discussdo sobre escola € familia e escola e comunidade que D. Etelvina se envolveu passoalmente. Tudo o que aqueles professores tinham visto da comunidade era a estrada de acesso, Quantos deles é que tnnham ido 4 sua ma? Ou visitado a sua cozinha e visto a humidade que escorria nas paredes? Com um discurso dramatico, com a cozinha de D. Graciana substituindo a bem conhecida cozinha de D. Etelvina, esta apresentou provas — cartas e circulares da escola escritas numa Iinguagem tao incompreensivel que tivera de pedir a ajuda da filha Claudia para traduzir e nem mesmo a jovem conseguia explicar o que significava “reviséo curricular’, “planeamento do desenvolvimento da escola”, “cursos modulares” e “gestAo descentralizada”. 61 AHISTORIA DE SERENA, ~ E pelo tom — continuou D. Etelvina, entrando em velocidade de cruzeiro — até parece que nés éramos alunos mal comportados. A minha Claudia nunca faltou um dia, a nao ser que estivesse doente como quando teve aquela gripe terrivel no ano passado. Mas nunca chegou atrasada. Ela sai sempre de casa a horas. —E disse-lhes tudo isto na reuniao? — perguntou D. Graciana, fazendo @ pergunta nfo por uma questéo de delicadeza mas por uma grande curiosidade em saber como é que tinham reagido ao comentario. — Aquela professora, Manuela Cardoso, ficou um pouco embara- gada, corou € pestanejou, mas ndo disse nada e todes concordaram que irtiam ver as cartas e circulares e pediram a minha ajuda. Pergun- taram-me se eu achava boa ideia criar uma comiss&o de pais que veri- ficasse a linguagem dos documentos enviados pela escola, Aquele Tapaz grande, um dos alunos, disse que poderiam chamar a isso “comiss4o de censura” e adivinhe quem vai presidir 4 comissAo? D. Graciana nao precisou de adivinhar, mas teve de arranjar uma desculpa. Nao queria que a vizinha estivesse l4 em casa quando Serena regressasse da escola, sobretudo depois da narrativa de D. Etelvina lhe recordar que Serena também fazia parte daquele grupo, apesar de no seu relato tratar Serena como um elemento pouco visivel. Foi mesmo por pouco. Serena chegou menos de um minuto depois da partida retardada de D. Etelvina, mas, mesmo assim, a jovem des- cobriu pelo olfacto a sua presenga recente - um aroma pecuhar que se arrastava e que era 0 legado das visitas frequentes de D. Etelvina. ~— Ela esteve aqui, nao esteve? — perguntou Serena. D. Graciana tentou minimizar o motivo da visita, mas percebeu que Serena tinha ficado aborrecida pelo facto de as noticias do dia terem sido, uma vez mais, dadas em primeira mao por “aquela senhora da casa em frente” e, por isso, foi de novo para o quarto numa altitude firme de auto-isolamento. D. Graciana teria de esperar que o mau humor passasse para ouvir a versao de Serena. Quando, por fim, Serena conseguiu desculpar a mae 0 suficiente para contar a histéria, D. Etelvina foi retratada como simples pedo e a outa mae, a D, Estrela, foi elogiada como sendo uma ouvinte atenta, que falava pouco mas que levantava questées em que ou- tros nunca tinham pensado antes. 62 1D GRACIANA (A MAR} —D. Estrela disse que ela e 0 “companheiro” (acho que néo devem ser casados) eram os educadores mais importantes na vida do filho. Ela disse também que podfamos virar as coisas ao contrario e ver o trabalho de casa como duas palavras: “casa” e “trabalho”. Que 0 podia- mos ver como a parte realmente importante, e 0 trabalho na escola seria 0 que se faz para ajudar o trabalho em casa e nao ao contrario. Entdo os pais podem perguntar aos professores: fizerarn o trabalho da escola hoje? Nao é inteligente? Era exigir demais que D. Graciana entendesse que as coisas estavam a ficar um pouco descontroladas naquela escola. De que é que se iriam lembrar a seguir? — Quem é que me ensinou a ler? — perguntou Serena a mae. ~D. Gabriela, aquela professora simpatica que tiveste no primeiro ano. Era muito simpatica. —E quanto tempo é que eu demorei para aprender a ler? — per- guntou Serena. D. Graciana suspeitou que nao se tratava de uma pergunta sim- ples e genuina. Serena queria chegar a algum lado. — Apenas algumas semanas depois das aulas terem comegado e tu j4 Has como uma crianga de dez anos. O teu pai e eu ficamos surpreendidos com os progressos que fizeste, ~ Entéo, se eu consegui aprender a ler em trés semanas, porque é que a Célia demorou nove meses e o Joaquim dois anos? — Porque, Serena, —respondeu D. Graciana procurando defender-se airosamente desta investida —tu eras uma crianga muito inteligente. — Nao. Porque durante cinco anos fui aprendendo lentamente tudo © que precisava para saber ler e depois na escola aconteceu natural- mente porque todas as pegas do meu cérebro estavam no lugar certo. — Bem, continuo a dizer que foi porque eras uma crianga muito inteligente. E ainda és. — Mas é 0 mesmo argumento, caramba! D. Graciana franziu as sobrancelhas com a linguagem utilizada pela filha. Apesar de a achar muito apropriada para traduzir o modo como se sentia, quando falava com os professores de Serena, cada vez mais a jovem parecia ser capaz de enredar a mae num jogo de palavras. 63 A HISTORIA DY SERENA —F.o mesmo argumento porque estd tudo relacionado. A minha inte- ligéncia e a capacidade de leitura desenvolveram-se ao mesmo tempo. Qu antes, foram vocés — tu e 0 pai e a avé. Lembras-te que lias para yim todas as noites e que o pai falava sempre comigo sobre varias coi- sas, dava grandes respostas as minhas perguntas e fazia-me também perguntas constantemente. Lembras-te de me dizeres que eu eta capaz de fazer puzzles e de separar pegas dos ohjectos para depois as juntar? D. Graciana lembrava-se efectivamente de uma das conversas mais interessantes com a filha ser a propésito da sua infancia. — O Prof. Anténio Gil disse-nos como essas coisas fazem a nossa inteligéncia e o que se passa no nosso cérebro quando somes criangas. Ele disse que nés somos os arquitectos da nossa prépria inteligéncia. —e acrescentou de imediato — ... em conjunto com as nossas mae e os nossas pais. Foste tu e o pai que fizeram de mim inteligente. — Hm! - foi a afirmagao mais inteligente que D. Graciana conseguiu fazer, mas o comentério de Serena féla pensar. Eles tinham sido bons pais. Tmham querido o melhor para ela desde o primeiro momento em que a viram no ber¢o do hospital, a sua pele morena contrastando com o branco dos lengéis, os cabelos castanhos escuro, os olhos azuis claro que, de um dia para 0 outro, se tomaram quase tao escuros Como 0 seu cabelo. Mas mesmo antes deste momento, durante os nove meses de gravidez, D. Graciana falava e cantava para a crianga que ainda nao nascera e, quando estava sozinha no quarto e ninguém estava a ver, ensaiava em voz alta as histérias que um dia hhe iria ler. D. Graciana comegou a questionar-se se, por algum milagre, Serena teria sido capaz de ouvir essas histérias. Com apenas um més, Serena parecia ser capaz de reconhecer as cangGes que a mie lhe cantava, como se jé as tivesse ouvido algures. — Ah, estava a esquecer-me — disse Serena. — Tenho aqui outra carta. — Qutra? & sé isso que fazem IA na escola ultimamente? Escrever cartas? Serena encontrou a carta no fundo da mala. Tinha vestigios do seu almogo. —Estou a ver que deixaste um bocado da banana para mim ~ disse D. Graciana. * 64 D.GRACIANA [A MAR) O teor da carta era o seguinte: Estimada D. Graciana, Tal como todos os pais, esta naturalmente preocupada com a aprendizagem da sua filha e quer ter a certeza que ela faz progressos até ao limite das suas capacidades. Da nossa parte, para garantir que isso acontega, estamos a participar num projecto europou. Em conjunto com mais cem escolas de dezoito paises, estamos a tentar determinar 0s factores que contribuem para urna aprendizagem eficaz. A aprendizagem nao é apenas uma questdo de bom ensino. Alguns alunos parecem aprender bem sem ensino e outros ndo conseguem aprender, apesar de receberem bastante ensino e ajuda individual Para todos os alunos, 0 que fazem em casa, com 0 seu tempo, é Muito importante e gostariamos de saber mais sobre como tornar o trabalho e 0 estudo mais agradaveis e mais titeis. A ideia de nos centrarmos na qualidade da aprendizagem e a questéo do tempo de aprendizagem partiu de pais ¢ alunos que tra- balham em conjunto com professores para identificar o que podemos fazer para melhorar a escola. Mas a escola néo faz as coisas sozinha. O modo como os alunos se preparam em casa 6 um factor importante na aprendizagem de um Joven. Uma vez que estamos a trabalhar para o mesmo objectivo, conseguiremos melhores resultados se nos apoiarmos mutuamente para tomarmos os jovens melhores aprendentes e mais capazes de continuarem a aprender depois de sairem da escola. E este 0 motivo pelo qual agendémos uma reuniao para o dia 19 de Outubro, as 19h Esperamos poder contar consigo. Serviremos uma refeigao ligeira depois da reuniio. Com os melhores cumprimentos. Manuele Cardoso ~ Refeigao ligeira... - comentou D. Graciana. — Espero que isso signifique mais do que uma chdvena de cha e bolachas. Apesar das suas expenéncias das reunides na escola, D. Graciana concordou em ir. E, se outra 1azdo nao houvesse, iria para nao desilu- dir Serena. ~ Estas diferente, Serena. Normalmente nao te preocuparias se eu fosse ou nao. Alias, costumavas dizer-me que era uma perda de tempo. O que é que ha de novo? 65 A HISTORIA DS SERENA — A nova Prof. Manuela Cardoso. Acho que lhe fizeram um trans- plante de personalidade. E vais conhecer o Antonio. Ele é engragado. D. Graciana franziu as sobrancelhas, mas ndo disse nada. Sabia que a referéncia de Serena ao professor como Antonio era uma tentativa deliberada de a chocar. Talvez nao seja ma ideia conhecer de perto o professor a que Serena se referia com tanta familiaridade. De facto, a reunido nao correu mal e depois houve vinho e queijo em vez de cha e bolachas. A Prof. Manuela Cardoso falou-lhes no projecto europeu, no grupo de avaliagao da escola e porque tinham decidido centrar-se nas relagdes escola-familia. D. Graciana ja tinha ouvido falar destas questées duas vezes, mas foi interessante ouvir uma terceira opinido. Recordou-se de um termo estranho que Serena utilizava bastante: “triangulagao”. Compreendera agora o que é que isso queria dizer — uma histéria contada por trés pessoas diferentes, destacando e seleccionando o que achavam mais interessante. — Se queremos compreender melhor a aprendizagem e torna-la inais eficaz, — afirmava a Prof. Manuela Cardoso ~ entéo temos de saber nao s6 0 que acontece na escola, mas também em casa, € para isso gostarlamos mesmo da vossa ajuda. A Prof. Manuela Cardoso pediu voluntarios para que se formasse um pequeno grupo de trabalho constituido por pais para trabalharem nas questées dos trabalhos de casa e da aprendizagem em casa. D. Graciana fingiu de imediato que procurava algo na sua mala e esperou que o perigo passasse. O grupo de trabalho constituido inclufa a feliz D. Etelvina, a quem mais uma vez agradeceram o empe- nho para com a escola. D. Graciana regressou a casa as 10 h da noite, cansada e relutante em contar a Serena tudo o que se tinha passado na reuniéo com o grau de pormenor que a jovem esperava. —Quero saber tudo 0 que aconteceu — exigiu Serena. Embora cansada, D. Graciana somiu ao ver invertidos os papéis de me e filha e comegou a sua narrativa. A relagéo mae/filha ja tinha passado por piores momentos. Independenternente daquilo que o projecto viesse ou nado a conseguir, ja tinha feito algo por elas. 66 Antonio Gil (o professor de Historia) Anténio Gil era professor numa escola basica antes de ter ido para a escola de Serena. Tinha sido feliz. Tal como 80% dos professores em todo o mundo, fora diariamente para a escola acreditando que as disciplinas que leccionava eram importantes para a vida futura dos jovens e que havia sempre alguma maneira de influenciar pelo menos alguns destes jovens pés-modemos que pareciam sd pensar em TV, celebridades, sexo oposto e fazer dinheiro. Quando pela primeira vez decidiu ser professor, imaginou que esta op¢ao possibilitaria combinar 0 seu amor pela Histéria com 0 seu amor pelas criancas. Viu-se a inspirar e a enriquecer as historias das vidas dos jovens, transmitindo-lhes o seu proprio encantamento pela historia da humanidade. Admitia também que a perspectiva de ur emprego estavel era bem mais apelativa do que o futuro imprevi- sivel de um historiador freelance. E depois tinha as férias grandes de Vero, que ele vira apenas como um bonus acrescentado quando de- cidiu seguir a carreira docente. Estes ultimos beneficios comegavam a pesar cada vez mais & me- dida que aumentava o seu tempo de ensino. Alguém, que ele nao conseguia recordar, tinhahe dado uma cépia de um livro intitulado Don't smile until Christmas, escrito por jovens plofessores america- nos. Logo no primeiro pardgrafo do primeuo capitulo leu o seguinte: Jmaginava que ensinar Inglés era uma série de didlogos socraticos ampliados entre mim @ os meus alunos. Conduziria os meus alunos avidos, responsdveis, ingénuos mas (redentores) idealistas desde as profundezas da melancolia intelectual de adolescente até a luz da ver- dade através dos campos verdejantes e exuberanies da Literatura A viagem deste professor, do idealismo ao mundo real das salas de aula, encontrou eco na experiéncia pessoal de Anténio Gil. Presen- temente, ao fim de quinze anos, néo conseguia imaginar que nao houvesse aquele periodo grande de interrupgdo. Os professores na 67 A HISTORIA DE SERENA escola chamavam-lhe “a estag4o da sobrevivéncia”. Tal como um. dos professores cinicos afirmara: — E preciso um bom periodo de descanso para recuperar desta geragao rasca. Anténio Gil reparou que a geragao rasca fora ha muito tempo. Fora a geragao da sua filha mais velha, agora com vinte e cinco anos e que seguia as pegadas do pai, estudando para vir a ser professora, com um desejo enorme de ensinar, nao obstante os avisos e 0 desencora- jamento dos colegas e amigos mais préximos. — Mas tu continuas aqui, tao empenhado em ensinar como sem- pre estiveste — dissera-lhe Cristina algumas semanas antes. — Estas empenhado, nao estas? — insistiu a jovem, coro se naquele mo- mento houvesse uma sombra de duvida. Ele estava empenhado, claro que estava, embora nao fosse facil num ambiente em que o tema predominante de conversa na sala de professores era a falta de compreensao pela profissdo, como esta tinha mudado e como os professores eram incompreendidos. Segundo estes professores, as pessoas “de fora” continuavam a falar como se aquele fosse um emprego hicrativo, com poucas horas de trabalho semanal, com férias longas e intteis e com estabilidade e seguranga. Segundo estes professores, tratava-se de uma campanha concertada para mi- nar e desvalorizar o que os professores faziam. Jomais, politicos, outros pofissionais e mesmo os professores mais velhos, tinham comegado a aderir a este movimento. O Chefe do Departamento de Matematica chamava aos professores mals velhos “o inimigo intemo”, — Estado uns escalées mais A frente na carreira e j4 se esquece- ram como é leccionar cinco horas por dia! O grande nimero de criticas serviu um objectivo. Félos centrarern: -se naquilo que era uma causa Comum. Criou uma das raras ocasioes em que todos os professores da escola pareciam ter a mesma opiniao. Tinham-se tornado no bode expiatério da sociedade, acarretando com, as culpas por tudo: crise econémica, problemas de droga, grande ni- mero de divércios, gravidez na adolescéncia. As pessoas agiam como se a escola nao fizesse parte do desenvolvimento global, mas fosse 68 ANTONIO GIL (© PROFESSOR DE HISTORIA) antes um pequeno mundo auténomo que pode ser usado como “cai- xote do lixo” para tudo o que corre mal algures na sociedade. Isto inchii pessoas que deviam ter mais conhecimentos, politicos e decisores que acham que os problemas sociais ou econémicos sao um éptimo bastdo para atacar os professores. Os governos falam no dinheiro que investem na educagao, mas esse dinheiro parece nunca chegar aos professores. Ultimamente discutia-se muito mais na sala de professores, no refeitorio e nos corredores, mas parecia que era sempre sobre proble- mas e Anténio Gil tinha dificuldade em nao ser apanhado por este redemoinho de auto-compaixao, Por um lado, conseguia compreen- der este ponto de vista, mas quando se distanciava ¢ analisava o problema com os olhos das outras pessoas, via que era um completo desperdicio de energia e talento. Se alguém "de fora” os pudesse ouvir, ita, certamente, confirmar o esteredtipo de professores como etemos queixosos. “ Anténio Gil nao conseguia deixar de pensar como é que os seus colegas ensinavam. Levavam consigo para a sala de aula essa visio pessimista ou deixavam-na 4 porta? Apercebeu-se que, desde que viera para aquela escola, nunca tinha assistido a qualquer aula dos seus colegas, assim como ninguém tinha assistido a uma aula sua. Como é que eies lidavam com situagées dificeis? Que aprendizagem real acontecia nas aulas dos seus colegas? E na sua propria aula? Tinha tentado reunir pessoas para assistirem ao que ele conside- Tava ser uma acgao de formagao continua interessante sobre novas abordagens no ensino da Historia. Tinha a certeza que os seus cole- gas ficariam entusiasmados com o principio da “aprendizagem de grupo colaborativa” que tanto o tinha estimulado, mas bastou uma sessao e, de repente, choveram razdes que os impediam de assistir: baby-sitters que nao apareciam, familiares doentes, parceiros de ténis que s6 estavam disponiveis precisamente aquela hora. A grande semelhanga com as respostas dos ahinos na sua sala de aula nao passou despercebida. —O problema, Anténio, ¢ que a ideia foi tua, nao deles - alguém the chamou a atengao. AHISTORIA DE SERENA, Recordou-se de uma citag&o que o tinha incomodado quando a ouviu pela primeira vez: “Os professores sio capazes de sabotar as tentativas de reforma com a maior facilidade, e fazem-no ou por vo- cagdo ou por desporto”. Enfim, talvez houvesse alguma verdade nesta afirmagao. Ao longo dos anos, a condugao para a escola de manhaé demorava cada vez mais. Com o aumento do trafego e com as pessoas a come- carem a trabalhar cada vez mais cedo, aquilo que costumava demo- rar meia hora, demorava agora uma hora. Para minimuizar a frustra- do tinha comegado a ouvir livros falados e cassetes audio. Chegou mesmo a atirar uma cassete pela janela por averséo, mas houve outras que o fizeram pensar. Sentado durante cinco minutos numa fila de transito com mais de um quilometro de extensdo, rabiscou este excerto a partir de uma cassete. A autora, Margaret Wheatley, descrevia a sua surpresa ao encontrar pessoas que, nao obstante a yaixa moral da organizagdo, continuavam a fazer a diferenga: As pessoas continuavam a ser crativas, davam sentido aquile que nao tinha sentido, porque tinham tide tempo para dar um sentido ao seu trabalho ~ um sentido que transcendia as circunstancias organi- zacionais do momento. Queriam manter a motivagdo e a direcgao, mesmo no meio da turbuiéncia, @ o tinico meio que tinham para o fazer era dando significado a situacao presente Seria isto uma descric4o dele proprio? Anténio Gil reconhecia-se na citagdo, bem como a um conjunto de colegas, aqueles que diaria- mente davam sentido a relagéo com as turmas e que iam buscar a sua. energia ao empenho e ao entusiasmo uns dos outros. Para Anténio Gil, a sua energia vinha dos alunos; nao de todos, nem mesmo da maioria, mas de um ntimero razoavel que, de repente, parecia ganhar interesse pela Historia. Isto era algo que tinha comegado a valorizar grandemente, aqueles jovens que se transformavam como apren- dentes, com ambigoes, objectivos e auto-confianga. — Mas que aio esté a acontecer com 0 Vasco Mendes? — pergun- tara-lhe um colega de Matematica na semana anterior, — Sera que alguém lhe esta a dar comprimidos de inteligéncia? 70 ANTONIO CHL 10 PROFESSOR DE HISTORIA} ‘Vasco Mendes era um daqueles alunos que parecia ter acordado repentinamente, depois de cinco anos de hibemagao. E havia tam- bém 0 caso de Serena. Quando é que ela tinhe conseguido “dar o salto"? O novo entusiasmo da jovem surpreendera-o. Estava a ficar uma historiadora melhor, mais interessada, mais empenhada, mais interrogativa. As suas capacidades criticas até entéo adormecidas estavam agora a ser exercidas através da sua experiéncia na escola. Ant6nio Gil tinha consciéncia que esta abordagem analitica e docu- mental do momento presente era um exercicio histérico no verda- deiro sentido. Mas quer esta abordagem estivesse ou no presa aos paraémetros rigidos do ensino da Histéria, estava certamente a levd- -los a algumas descobertas interessantes. Ja tinha recebido uma nota de um pai questionando-o porque 6 que nao davam Histdria na aula e desperdigavam 0 tempo discutindo as ultimas criticas de cinema. Era com certeza uma referéncia aos seis minutos de discussao sobre o filme Instantes Decisivos (Sliding Doors) que Serena tinha ido ver na noite anterior O filme baseava-se num incidente ocorrido no Metropolitano de Londres em que uma jovem, interpretada por Gwyneth Paltrow, perdia o metro por dais segundos devido as portas automaticas. O filme analisava a questao “E se ela tivesse chegado dois segundos mais cedo e, de facto, apanhado o meto?”. © debate levou-os a uma discussao histérica e a um Drainstorming sobre momentos “e se” na historia. O trabalho de casa que se seguiu — todos pensaram numa questdo “e se” e imaginaram um cenario histérico alternativo — foi uma das tarefas mais frutuosas e agradaveis, e levou-os de forma tao perigosa a atravessar as fronteiras entre disciplinas que ele conseguia imaginar a temivel Prof. Cleméncia de Geografia a bater a porta a qualquer minuto, A Geografia nunca mais tinha sido a mesma desde a aposentagao da Prof. Fatima. Anténio Gil conseguia antever problemas. Os professores na sua escola eram muito ciosos das suas disciplinas. Histéria era Histéria, Geografia era Geografia e quando alguém tentava ultrapassar a linha, 0 assunto transformava-se numa questéo sindical ou num tema de debate sobre ética profissional. Mas quando Antonio Gil levou a 71 AHISTORIA DE SERENA discuss4o a turma sobre as diferentes disciplinas, descobriu que esta eta também a visdo dos alunos sobre o mundo. Histéria era o que acontecia na aula do Prof. Anténio Gil e Geografia era com a Prof. Cleméncia. Sim, a Prof. Cleméncia “era” Geografia. Os alunos disse- tam-lhe que nao levavam os conhecimentos de Historia para a aula de Geografia. Nao levavam os conhecimentos de Matematica para a Fisica ou de Artes para o Teatro. Segundo os préprios alunos, eles jé se sentiam bastante confusos pelo facto de o Prof. Anténio Gil ser simul- taneamente o professor de Historia e de Literatura. Queixaram-se que ele estava sempre a misturar as coisas. Mas foi através da Literatura que Anténio Gil procurou despertar uma curosidade histérica, um sentido de histéria. Leu-thes um ex- certo de O Deus das Pequenas Coisas, de Arundhati Roy (Edigdes ASA), que desctevia a historia como sendo uma casa com todas as lampadas acesas e os antepassados murmurando lé dentro. Para perceber a historia temos de entrar e ouvir o que esto a dizer e olhar para os livros os quadros na parede, E cheirar os cheiros. Ficou chocado por perceber que os seus alunos tinham um enten- dimento da Histéria que se afastava bastante deste que 0 excerto apresentava. Talvez pelo modo como sempre tinham sido ensina- dos, viam a histéria como uma linha simples, desde 0 passado até ao presente. Foi por causa deste entendimento que Antdénio Gil se lembrou de enviar um questionario aos pais. Qual era a sua opiniao sobre a disciplina de Histéria? Porque é que os pais queriam que os filhos aprendessem Historia? Ou nao queriam? Se sim, que Histéria? Que conhecimentos? FE uma vez que os politicos e as autoridades estavam dispostos a incluir nos seus discursos referén- cias 4s pessoas como “clientes” e “patrocinadores” da educa¢4o, talvez fosse 0 momento de descobrir o que é que os clientes real- mente pensavam. 72 ANTONIO GIL, (0 PROFESSOR DE HISTORLA Anténio Gil preparou um texto introdutério e um questionario A HISTORIA DE SERENA Ant6nio Gil mal podia esperar pata ver as Tespostas ao questionario, mas foi preciso lembrar varias vezes os alunos até conseguir pelo menos 60% de respostas. A principio ficou desapontado, mas depois alguns colegas animaram-no dizendo que este era um numero muito bom para inquéritos deste tipo. O que mais o surpreendeu foi 0 facto de o questiondrio ter sido respondido maioritariamente por pais, uma vez que, regia geral, so as mes que assumem a responsabilidade dos trabalhos de casa. Isto ndo condizia com o reduzide mimero de pais que vinham 4s reunides. Os jogos de futebol europeus costuma- vam ser apenas 4 quarta-feira; agora eram também as tergas e as quintas, A sexta-feira era um dia inutile a segunda-feira também nao era um bom dia. Anténio Gil questionava-se se a explicagao estaria no facto de a Historia ser efectivamente um tema masculino ou se isso nao era mais do que um preconceito popular. Isto tinha sido verdade na relagéo com a sua filha, Cristina. Era a ele que a filha se dirigia, endo 4 mae, quando wazia trabalho de casa de Histéria, alias, todo o trabalho de casa, e era a mae que ia as reuniGes na escola. Cristina tinha-o desencotajado a ir. 74 ANTONIO GHL (0 PROFESSOR DE HISTORIA) ~— ‘lu és professor e isso pode aborrecé-los — argumentara Cristina e, na altura, Antonio Gil aceitara a logica do argumento. A medida que ia recebendo as respostas ao questiondrio, Anténio Gil ia ficando cada vez mais intrigado. Era agraddvel saber que a maioria dos pais valorizava bastante o ensino da Histéria. Também tinha que reconhecer, infelizmente, que aquilo que os pais enten- diam como Histéria eram datas, tratados e guerras. Tal como um colega concluira, “uma historia de acontecimentos contados do ponto de vista dos bons que venceram”, e, segundo outro colega, “um desfolhar progressivo de acontecimentos que conduziram a inevitabilidade da situagéo actual”. © programa de Histéria, tal como a maioria dos pais 0 via, era constituido pelos aspectos da historia que tinham sido aprendidos na escola e que ainda se conseguiam recordar. Porém, quando se perguntava quais tinham sido as suas melhores fontes de conheci- mento histérico, a escola aparecia apenas em quarto lugar na lista: nos primeiros lugares estavam os pais, a televiso eo cinema. Alguns pais refenram os documentérios, o Canal Histéria na televisio, idas frequentes ao cinema para ver filmes de guerra — A Oeste Nada de Novo, O Resgate do Soldado Ryan — ou épicos como Dr. Jivago, Nicholas and Alexandra, Guerra e Paz. Alguns leram romances historicos e discutiram-nos com os filhos. Porém, os pais continuavam a exigir para os filhos o mesmo tipo de trabalhos de casa que tinham tido na escola enquanto ahinos. Antonio Gil percebeu que tinha pela frente um desafio sério e importante. Havia aspectos interessantes a traba- lhar, a partir dos comentarios dos pais. Nem todos entendiam a Historia da mesma maneira e isso era um excelente ponto de partida para um estudo da Historia. © que eu mais gosto na Histéria que leio hoje como adulta é sa- ber como era a vida para as pessoas comuns, como se vestiam, co- Imiam, passavam o seu tempo, quais as coisas com que se preocu- pavam, como viviam as suas vidas. Maria Ferreira 75 A HISTORIA DE SERENA Desde que sai da escola que comecei a ficar fascinada pela Historia, porque percebemos como pode ser contada de maneira muito dife- rente, dependendo do ponto de vista. O grande heréi Gristévao Colombo foi, de facto, um assassino de massas em grande escala. . Anabela Freitay Os meus dois filhos gostam de estudar Histéria porque isso per- Iite-Ihes viajar para outros paises e através do tempo. Ii a sua ma- quina do tempo pessoal. Ea melhor prenda que lhes posso dar. Mario Garrido Gostaria de Ihe agradecer pessoalmente, Prof Antonio Gil. O estudo da ascensao do fascismo e a iminéncia das guerras na Jugosldvia fizeram @ minha filha Tnia tomar consciéncia dos perigos de cuipar grupos minoritarios pelos problemas na sociedade. Como é que eles alguma vez podem perceber 0 que é ser cidaciéos democratas se nao apren- dem na Historia o que mina as democracias? Que sentido faz ensinar Historia se isso no afecta a historia do futuro dos alunos? Augusto Pizarro Anténio Gil ficou surpreendido com a diversidade de pontos de vista apresentados pelos pais. Teve de se lembrar que 0 termo “pais” ela Iuitas vezes usado como se fossem todos uma entidade homo- génea cujas opinides pudessem ser descritas sobre o titulo “opinides dos pais”, O gaverno continuava a dizer aos professores “o que os pais pensam”. Antonio Gil apercebeu-se que sabia muito pouco acerca dos pais dos seus alunos. Sabia que, entre eles, havia um motorista de autocarro, um dentista, dois operdrios, dois professores e um nimero de familias monoparentais desempregadas. Tanto quanto era do seu conhecimento, Serena vivia sozinha com a mae que tinha ficado desempregada apdés o encerramento da fabrica téxtil. Em que medida é que estes factos eram relevantes para o seu entendimento da Histéria? Que “Historia” é que a mae podia trans- mitir a filha sobre a industria téxtil, o seu crescimento, os problemas sindicais e o seu rapido declinio nos ultimos anos? Como é que a proximidade desta experiéncia podia servir pata se encetar um 76 ANTONIO GIL (© PROFESSOR DE HISTORIA} didlogo sobre globalizagaéo? Esse tema nao faz parte do programa de Historia, nem do de Literatura, mas afecta as suas vidas. O modesto questionario de Antonio Gil desencadeara uma cadeia de pensamentos que o intrigaram e preocuparam. Depois de acordar durante trés noites consecutivas, decidiu que precisava de partilhar estas perguntas com os seus trés colegas do departa- mento. Fez um grafico simples, em forma de queijo, com base nas opinides dos pais, inventando um espectio em que as pudesse enquadrar — num dos extremos colocou os pontos de vista que mais se aproximavam dos seus préprios objectivos e valores; no outro extremo aqueles que mais se afastavam. Esta andlise provocou uma discuss4o viva, embora néo exacta- mente a que Anténio Gil previra: — E qual o problema se alguns pais tém uma visao esquisita da Histéria? A questao é saber o que os nossos alunos pensar? Os outros estavam inclinados para concordar. O problema do Anténio é que ele lia muito — esta opiniao era generalizada. Percebeu que tinha sido um erro citar 0 livro de Coleman que nenhum deles tinha ouvido falar e que, sendo um académico canadiano, ndo suscitou de ime- diato a aprovagao. O subtitulo do livro de Coleman era O poder da m- angulagao, e nele descreve-se o tridngulo de influéncia — pai, aluno, professor — e demonstra-se, pela investigagao, o papel poderoso dos pais na modelagéo de atitudes, que se exerce, porém, de forma sub- til e inconsciente. A sua preocupagao era 0 que acontecia na sala de aula e, ironica- mente, houve uma alianga temporaria com os representantes do go- verno que consideravam que era 0 bom ensino em sala de aula que fazia a diferenga e que os professores n4o se deveriarn afastar desta preocupagao central. - A seguir, Antonio, deves querer que ensinemos Histéria aos pais — ironizou um dos colegas, Antonio Gil nao conseguiu resistir e leu o comentario de um pai: A sua pergunta “A sua aprendizagem da Histéria fez-se através de qué ou de quem?" apresentava cinco op¢ées, inchuindo pais e avés. Esqueceu a fonte mais importante — os filhos. Pessoalmente, tenho 77 a A HISTORIA DB SERENA, aprendido tanto através, ou devo antes dizer em conjunto com o meu filho Tomas @ que isso tem mudado por completo a minha visdo de mundo — Mudar a viséo do mundo. Talvez tenhamos esquecido que era esse 0 nosso objectivo quando viemos para o ensino — alguém comentou antes de prosseguirem. O comentario levou-os de novo 4 discusséo sobre como podiam in- fluenciar a viso dos alunos acerca do mundo e concordaram em dar continuidade a questao “O que é que os nossos alunos pensam?” por- que n&o estavam certos de saber exactamente qual era a resposta. — Mas eles pensam? — perguntou um dos colegas. E nao estava a brincar. A pergunta abriu caminho a um novo questiondrio. Porque é que n&o coiocavam as mesmas questées aos alunos e entéo poderiam triangular trés conjuntos de respostas — opiniao de pais, professores e alunos. Tinha sido um percurso sinuoso que, no final, os tinha trazido de volta 4 questo do poder da triangulagéo. Anténio Gil nao via muito a Directora, a Prof. Manuela Cardoso. Nao se lembrava que alguma vez tivesse ido a sua sala nestes trés anos. Por isso, quando ela entrou a meio da aula, talvez no pior momento possi- vel—um cheiro a ovos podres acabava de emanar algures nas proximi- dades do Alexandre, e trés ou quatro dos rapazes, com alarido exage- tado, tinham-se deslocado para outas carteiras — Anténio Gil ficou por instantes incapaz de dizer qualquer coisa coerente ou sensato. ~— Perguntaram-me se estaria interessada em participar num pro- jecto Europeu sobre auto-avaliagéo das escolas - comegou a Prof. Manuela Cardoso, aparentemente esquecida do caos dos momentos precedentes. — O meu primeiro instinto foi dizer “nao”, mas reco- nhego o trabalho muito interessante que tens estado a fazer e entéo pensei, espera af, porque n&o? Se o Anténio Gil quiser, aceitamos. Anténio Gil interrogou-se sobre o que significava auto-avaliagao. Ou, mais precisamente, o que é que significava para ela, ou para os politicos em Bruxelas. Precisava de saber muito mais antes de se comprometer com algum exercicio burocratico. Imaginou inimeras estatisticas, testes estandardizados, distribuigdes e desagregagées. 78 ANTONIO GIL (0 PROFESSOR D8 HISTORIA] A Prof. Manuela deu-lhe alguns documentos para analisar e suge- riu que, se fosse algo interessante, poderia convocar uma reuniao de professores para ver 0 que as “tropas” pensavam. Anténio Gil sabia exactamente 0 que os professores iriam pensar — mais uma manobra de diversdo, outta maneira de dar emprego aos “Eurocratas”! O cepticismo de Anténio Gil comegou a desaparecer 4 medida que ia jendo os documentos. Estava tao préximo daquilo que estava a fazer com asua turma. Envolvia alunos, professores, pais, fazer perguntas e encon- trar evidéncias. Nao eta precisamente isso o que ele estava a fazer? Se era a isto que chamavam auto-avaliacgao, entao ele era completamente a favor. A acreditar no que estava escrito nos documentos, a escola podia aproveitar esta oportunidade para abordar todas, ou pelo menos algumas das questées que emergiam por detras da vida da escola e que enfraqueciam a energia das pessoas e a vitalidade da propria escola. Na reuniao de professores, convocada 4 pressa, houve oposi¢So. Foi um debate longo entre adversarios, fazendo com que alguns pro- fessores se sentissem tealizados — a expresso melhorada da diver- géncia. Quatro argumentos diferentes conseguiram, por fim, persua- dir a oposigao. Para alguns, era uma oportunidade para se vingarem na gestéo e de todos, em geral. Um grande numero de professores recebsu com agtado a oportunidade de poderem ser ouvidos. Alguns concordaram em prosseguir porque era voluntario e ndo precisavam de estar envolvidos. Finalmente, um grupo de cerca de doze professo- res, no qual se incluia Antonio Gil, achou que a participagdo no ptojecto podia trazer uma lufada de ar fresco a vida da escola. A Prof. Manuela tinha ficado surpreendida com a vontade das profes- sores, entusiasmo até, em ir para a frente com 0 projecto. Agradeceu de uma forma exagerada a Antonio Gil pelo papel que tivera em persuadir os colegas, embora, para falar verdade, ele tenha dito muito pouco e nao tenha procurado iniuencié-los num sentido ou nouto. Se as pessoas nao acerissem voluntariamente, entdo o projecto nao resulta- tia. Ele sabia isso muito bem. A pressdo exagerada que a Prof. Manuela normalmente exercia era contraproducente e Anténio Gil percebia que ela apreciava o pocler do seu estilo cauteloso e discreto. 79 A HISTORIA DE SERENA Nas semanas seguintes, o projecto foi praticamente liderado por Antonio Gil e por um pequenc grupo de entusiastas, tendo a Prof. Manuela Cardoso como espectadora interessada, por vezes ansiosa, por vezes excitada. Qualquer reserva que Antonio pudesse ter tido em relagdo ao seu estilo de gestdo, a verdade 6 que ela estava a dar ao projecto o seu apoio e aval. Anté6nio Gil nao participou directamente no gnipo de avaliagdo da escola, mas Serena, enquanto representante dos alunos, relatou todo © processo a turma, entregando-se a um pequeno sole play dos dife- rentes lepresentantes no grupo. Com a ajuda de um acetato colorido ¢ eficdcia teatral, construiu o perfil de auto-avaliagdo da escola passo a passo, até ao perfil final da escola. Seria possivel que esta fosse a mesma Serena que, no inicio do ano, entrara na aula de Anténio Gil com um ar terrivelmente aborrecido? Serena explicou que tinham sido escolhidas és 4reas para uma investigagéo mais aprofundada — “a qualidade da aprendizagem e do ensino”, “o tempo como um recurso da aprendizagem" e “relagdes escola-familia". Alguns alunos ficaram bastante confusos com o significado disto e Serena também se atrapalhou ao tentar responder as perguntas. Antonio Gil veio em seu apoio. Desenhou um triéngulo no quadro, colocou cada uma das areas num vértice e tragou setas de ligagao entre elas. — A qualidade da aprendizagem tem a ver com 0 que vocés apren- dem e como aprendem. Depende em parte do tempo que tém para aprender: em sala de aula e em casa. — Anténio Gil fez uma seta de ligagao entre “qualidade” e “tempo”. — Eu quase que afirmei “o vosso préprio tempo", mas de facto todo o vosso tempo € 0 vosso proprio tempo. O nosso trabalho como professores 6 ajudar-vos a us4-lo bem na sala de aula e o trabalho dos vossos pais é ajudd-los a usd-lo bem em casa. — O professor desenhou a terceira seta de ligagao: o poder da triangulagao. ~ Bem, o que vamos poder saber com este projecto é como é que nds — vocés — usamos 0 nosso tempo para podermos melhorar a quali- dade da aprendizagem. Para mim, como vosso infeliz — quer dizer, 80 ANTONIO GIL (0 PROFESSOR DE HISTORLA) feliz — professor, podem ajudar-me a usar melhor 0 meu tempo de ensino e, se formos realmente bons, isto ajudara todos os professores da escola. — Isso também se aplica ao Prof. Lima? — perguntou o Joao, fingindo completa inocéncia. Anténio Gil decidiu contomar a questao, porque sabia onde é que os alunos queriam chegar com a pergunta. Mas se 0 projecto fosse implementado, no apenas naquele ano mas a longo prazo, a escola teria de abordar algumas questées muito sensiveis, tais como o fracasso constante do Prof. Lima em envolver ou motivar os seus alunos. Uma semana depois, os professores acordaram quais os instru- mentos de avaliagéo que iriam usar. No Guia de Onientagdes europeu eram sugeridos trinta instrumentos, um dos quais era “a observagdo por pares”, Anténio Gil, um dos oito voluntarios, fez par com Paulo Campos, um professor de Educagdo Fisica. Anténio Gil nao conse- guia imaginar o que é que ambos pudessem ter em comum quer em termos pessoais quer em termos profissionais. Pela primeira vez co- megou a ter duvidas acerca do projecto e se este seria um bom uso do tempo para ele e para Paulo Campos. Duas semanas mais tarde, Anténio Gil foi pela primeira vez obser- var a aula de Educagéio Fisica e achou que era dificil dar feedback cri- tico porque ficara muito impressionado, Até aquele momento ndo fi- zeta a minima ideia sobre 0 que acontecia numa aula de Educag&o Fisica, nem tinha tido qualquer interesse em saber, mas agora, no final da observagao, achava que se tratava de um modelo que se poderia provavelmente aplicar numa aula de Historia, Como é que funcionaria? A aula de Educagao Fisica comegou com os dezoito alunos senta- dos no chao a volta do professor. Paulo Campos fez 0 ponto da situagéo e definiu os objectivos para aquela aula. Pediu a quatro ou cinco alunos da turma que descrevessem o que tinham feito em casa nos Ultimos trés dias para atingirem os seus objectivos pessoais. Os seis minutos que se seguiram foram passados a estabelecer metas para a aula seguinte e depois discuti-las em pares. Depois, durante trinta minutos, os alunos fizeram os exercicios de rotina em pares, dando feedback 81 AHISTORIA DE SERENA uns aos outros. Nos cinco minutos finais fizeram a avaliacdo da aula com base nos objectives definides no inicio. No ultimo minuto, calcu- lado exactamente até ao final do toque, o professor comunicou qual o trabalho de casa. Antes de Paulo Campos ir assistir 4 aula de Antdnio Gil, os dois encontraram-se para acordar sobre o foco de incidéncia da observa- géo. Antonio Gil pediu ao colega que observasse concretamente o tempo dedicado as raparigas e aos rapazes, e que fosse um pouco mais longe no sentido de verificar se havia diferengas qualitativas nas suas interacgdes com rapazes e raparigas. Sera que ele os tra- tava de forma diferente, ainda que inconscientemente? As observagées de Pauio Campos revelaram duas surpresas ines- peradas. No final da aula perguntou a Antonio Gil como é que, na sua opiniao, achava que tinha dividido o tempo entre raparigas e tapazes. Bem consciente que esse era o foco da observagao, Antonio Gil respondeu que, a haver diferenga, esta seria ligeiramente a favor das raparigas ~ 65-45, talvez. Os célculos de Paulo Campos, no entanto, mostravam uma diferenga rapaz/rapariga de 58-42, a favor dos rapazes. Aparentemente, Antonio Gil tinha feito tantas pergun- tas aos rapazes como as raparigas mas as interaccdes verhais com as laparigas tinham sido mais curtas e, o que era mais perturbador e revelador para o professor de Histéria, qualitativamente diferen- tes, A andlise de Paulo Campos mostrou 0 seguinte: De acordo com esta andlise (que poderia, de facto, nao estar cor- tecta), Antonio Gil tinha, ao mesmo tempo, uma atitude mais positiva € menos negativa na sua interacg4o com as taparigas, mas, de forma Tegular, desafiava menos as suas ideias. Seria porque as suas ideias eram melhores para comegar? Ou (ele esperava que nao) seria porque Protegia mais as raparigas e receava mais o confronto com elas? 82 ANTONIO GIL (0 PROFESSOR DB HISTORIA) Ant6nio Gil teve insénias. Ao fim de tantos anos de ensino e de toda a sua expeniéncia, poderiam ainda alguns aspectos do ensino e da aprendizagem funcionar ao nivel do subconsciente? Decidiu saber o que @ que os seus alunos pensavam. Afinal, eram dados que lhes diziam respeito. Para seu alivio — ou era ainda mais preocupante? — também eles ndo se tinham apercebido deste facto. Uma ahina quei- xou-se que tinha achado “engragado”, “injusto”, nunca ter sido capaz de expressar as suas opinides porque ele era um professor simpatico, justo e delicado. Mas agora, que os alunos estavam bem atentos e sabiam 0 que procurar, Anténio Gil achou que a avaliagao que eles fize- ram do seu ensino e da sua propria aprendizagem tevelara dados cujas consequéncias podiam ser perigosas. — Tinha piada — alguém afirmou — se um dos professores menos sexistas na escola acabasse por ser acusado de sexista, néo acham? Este fora o comentario menos engragado que Antémo Gil ouvira em todo o ano, mas fizera-o recordar de situagées semelhantes no curso da Historia. — Este percurso de auto-avaliagao pode acentuar ainda mais o probiema. — Anténio Gil ouviu 0 som da sua propria voz fazendo o comentano. Este pensamento acordou-o. — Sim — respondeu a sua voz — mas também pode ficar a um nivel demasiado superficial. Tinha lido recentemente um artigo de um escritor americano, Bruce Joyce — tinha-lhe sido dado por Fernanda, a amiga critica escolhida para trabalhar com eles no projecto — no qual se descre- viam as portas para a melhoria da escola. Adormeceu e sonhou que estava a abrir uma porta atrés da qual estava outra porta e mais outra e mais outra — um numero infinito de portas. Nos seis Meses que se seguiram, muitas portas que até entaéo tinham estado fechadas estavam agora abertas. Algumas continua- vam firmemente fechadas. Por muito positivo que fosse o projecto, a escola parecia ter mais assimetrias. Estava menos alinhada. A dis- tancia entre os missiondrios e os opositores convictos tinha aumen- tado em vez de diminuir. Mas os que estavam no meio, aqueles que 83 A HISTORIA DE SERENA mudam frequentemente de opiniao e os indecisos, estavam a ser puxados para 0 extremo positivo do espectro. Antonio Gil ouvia uma vez mais a cassete de Margaret Wheatley no carro, mas agora o nivel de entendimento era outro. Apesar da teoria do caos se aplicar Histéria, e a discusséo sobre Instantes Decisivos ter sido isso mesmo, de inicio pareceu-lhe uma nog&o um pouco pretensiosa para ser aplicada a organizagées es- colares, A primeira vez que ouviu a cassete achou que a teoria era atractiva para os académicos que, na tranquilidade das suas torres de marfim, nunca precisaram de lidar com 0 caos. Mas agora, para ele, comegava a fazer sentido que a ordem emergisse da turbuléncia e que a nova “ordem” fosse apenas um estado temporério e, por conse- guinte, instavel. Anténio Gil achou que, provavelmente, ndo seria sensato partilhar estes pensamentos com os seus colegas. A observagao por pares, que tinha comegado com quatro pares, aumentara para oito pares. Dois professores trocaram de par, de mutuo acordo, por considerarem que nao trabalhavam bem em conjunto. Os dezasseis professores envolvidos neste processo reuni- Tam-se por duas vezes para partilharem os resultados da observa¢do. Chegaram a um acordo sobre os quatro aspectos em que tinha melhorado a sua consciéncia da aprendizagem e a eficacia do seu ensino. * Equilibrio entre ensino para toda a turma, pequeno grupo, tra- balho individual e de pares. * Técnicas de questionamento. * Ritmo das actividades e uso do tempo. * Uso do trabalho de casa e do estudo. O feedback do “amigo critico interno”, Paulo Campos, revelou que Antonio Gil tinha agora aulas menos expositivas, impunha Maior ritmo as aulas, reduzia o tempo dos trabalhos de pares e de pequenos grupos para que os alunos fossem mais concisos e mais auténomos. Tomara-se mais exigente no que pedia aos alunos e nas perguntas que lhes fazia. Despendia mais tempo com pesquisa 84 ANTONIO GIL (© PROFESSOR DE HISTORIA @ questées abertas, e o espago de tempo entre a pergunta e a res- posta era maior. A tunma fez um jogo com base no indicador “Per- gunta / Resposta”. O Jodo, que gostava de tudo o que tivesse a ver com estatistica, calculou um aumento médio de 1,2 segundos entre a pergunta do professor e a resposta do aluno ao longo do ultimo més -- de 2,9 para 3,7 segundos. O préprio Joao provocou a desordem ao aplicar esta técnica a outros professores. Comentou depois com o Prof. Anténio Gil que o Prof. Adriano tinha ficado muito pouco satisfeito por saber que a sua média neste indicador era de 1,1 segundos. Havia burburinho na escola. As pessoas falavam mais sobre aprendizagem e sobre educagao. Nao havia talvez o tipo de harmo- nia que Antonio Gil esperara; comegaram a surgir mais diferengas e desacordos entre os professores. Mas o ambiente parecia mais saudavel do que aquele que existia anteriormente. Os desentendi- mentos eram mais eloquentes, mais pensados, mais comprometi- dos; as pessoas evidenciavam as coisas positivas e discutiam no seu grupo. Ao longo das semanas Anténio Gil constatou que as pessoas comegavam cada vez mais a pedir evidéncias, e nao se limitavam apenas a aceitar o que era aparente ou a contrariar um argumento com outro argumento. Duas semanas apds o Ano Novo, Antonio Gil ficou surpreen- dido por receber uma visita da Prof. Cleméncia. Ela jé estava na escola ha dois anos, mas os seus caminhos raramente se haviam ctuzado; a sua relagao era de cortesia e distancia profissional. A Prof. Cleméncia tinha algo para lhe mostrar. Era uma avaliagado através de um campo de forgas que tinha feito com os alunos do terceiro ano. Entregou a Antonio Gil a folha de papel com os resultados devidamente ordenados (Quadro 6). Anténio Gil ficou impressionado com a capacidade de percepgao dos alunos e a utilidade dos dados. A Prof. Cleméncia também estava, sem sombra de dividas. 85 A HISTORIA DR SERENA Quadro 6 — Resultados obtidos através do campo de forgas * Quando ba coisas nfo sho bem — Fiquei intrigada com o comentario “E util compreendermos a hist6ria dos locais”. Foi por isso que vim ter contigo. O que é que achas que isso significa? ~ Posso imaginar, — respondeu Anténio Gil— mas é apenas uma suposigéo. — A Prof. Cleméncia esperou pacientemente — um silén- cio que queria dizer “bem, entéo imagina!" ~ A minha suposic&o é que quando os locais se tornam reais e vivos para os nossos alunos, através de histérias e personagens, de visitas imagindrias, a geografia desses locais fica na nossa memd- ria, tal como a laje magica do Ali Baba que se abre ao som de “Abre-te Sésamo”. Tém significado. — Gosto deste! — prosseguiu Anténio Gil apontando para o item “Dizer as coisas por palavras nossas”. — F uma outra maneira 86 ANTONIO GIL (0 PROFESSOR DE HISTORIA) importante de a aprendizagern ganhar significado. E como um pto- cesso de tradugaio nas suas cabegas e isso permite-lhes apropria- rem-se do significado. A Prof. Cleméncia ouvia. Anténio Gil sentia-se um pouco embara- gado. Nao a queria ensinar, mas estava a ficar entusiasmado com 0 assunto e ela parecia interessada. ~ David Perkins, o psicélogo de Harvard, afirma que “o conheci- mento acontece pela influéncia do pensamento”. Ha muita gente que 1i desta teoria, mas é completamente verdade. Os nossos alunos constroem conhecimento no processo de encontrarem as palavias e os contextos que para eles sAo significativos. Quando essas palavras e esses contextos surgem associados a algo que para eles tem um sentido, entao, toma-se conhecimento. — Acho que se aproxima muito do item “Quando ensinamos algo aalguém aprendemos melhor” — afirmou a Prof. Cleméncia. —Lembra-te do ditado “Como é que eu sei o que penso até ouvir 0 que digo?” Acho que quer dizer 0 sequinte: eu tenho uma ideija na minha cabega; tento explica-la a alguém; esforgo-me para que ela faga sentido, percebendo o que nao entendo e oigo a minha voz, que ‘me ajuda a reformular a ideia na minha cabega. E verdade — a melhor Imaneira de aprender é ensinar. Acho que os nossos alunos percebem isso. —Entéo e agora? — perguntou a Prof. Cleméncia. — Agora, tenta adaptar a tua forma de ensinar. Aceita 0 que os nossos alunos nos dizern. A Prof. Cleméncia abanava a cabega, nao de forma agressiva, mas em sinal de diivida. ~— Isso era como se acabassem com aquilo que eu sou. Sou profes- sora ha vinte anos e é como se chegassem e tirassem aquilo que eu sou como professora. Eu sou assim, Anténio, e ndo consigo ser outra pessoa, — Mas podes arrancar a camada exterior, as coisas superficiais que n&o afectam o essencial do que tu és como professora. Peque- has coisas. 87 A HISTORIA DE SERENA, —Como por exemplo? ~ Por exemplo, mandar exercicios em que os alunos tenham de responder por palavras suas. Fazer trabalho de pares em que tenham de ensinar algo uns aos outros. Falar com os alunos de tempos a tempos sobre a sua aprendizagem. — Tens estado a trabalhar com o Paulo Campos, nao tens? — per- guntou. Anténio Gil acenou afirmativamente. — Seria pedir muito... Seria possivel que, sé por uma vez, fosses assistir a uma aula minha e procurasses dar-me algumas suges- t6es? — pediu baixando o tom de voz. Anténio Gil acabou por aceitar o pedido, embora estivesse relu- tante. Em que é que ele se estaria a meter? Tinha sido tao repentina a abertura da Prof. Cleméncia! Sera que existia algum motivo escon- dido? Rejeitou de imediato a ideia. Assumiu que esta abertura era pura € Meramente profissional. ~ Com uma condig&o — respondeu Anténio Gil. - Que também vés assistir a uma aula minha e me dés feedback. Parece-te justo? ~ A Prof. Cleméncia olhou para ele como que a dizer “O que é que tu Podes aprender comigo?", mas o que realmente respondeu foi: — Esta bem. De acordo. 88 Manuela Cardoso (a directora) Quando Manuela Cardoso abriu a carta e leu que a escola estava a ser convidada para participar num projecto europeu, ficou tao atordoada que teve de se sentar antes de conseguir continuar a ler. Aquela escola nao era uma escola-modelo; os trés anos em que estava a frente da escola tinham sido desgastantes e se nao fosse um grupo de professores empenhados ja teria batido com a porta haum ano. Mas foram esses professores empenhados que chamaram a atengao das autoridades, em particular o trabalho de auto-avalia- co que estava a ser feito no Departamento de Histéria. Manuela Cardoso apercebeu-se, para sua prépria vergonha, que mal tinha trocado uma duzia de palavras com Anténio Gil: tinha ouvido comentarios positives dos pais, mas nunca lhe transmitiu isso, nem sequer 0 felicitou pelos mapas mentais coloridos, modelos e dese- nhos que comegaram a aparecer no corredor de Histéna. Estas lembrangas foram interrompidas pelo toque do telefone. A firma que supostamente deveria arranjar as portas das casas de banho nao o poderia fazer nas duas semanas seguintes. Mal tinha desligado 0 telefone recebeu outra chamada, agora da autoridade local de educagao, informando que o projecto para a “nova constru- Gao” tinha sido cancelado. Que desilusdo! Este projecto era uma prioridade quando ela chegou a escola, mas desde entéo o ntimero de alunos na escola decrescia, lenta mas consideravelmente. Nao fa por causa da escola. A populagao da zona estava a envelhecer. As pessoas mudavam-se para os subuirbios. As casas estavam a ser demolidas para construgéo de parques de estacionamento e pequenos negécios. N&o conseguia explicar porque é que estava a reagir tao mal ao cancelamento do projecto. Tentou ser racional consigo prépria: “Manuela, néo podes ser tao irracional: o que é importante é o que os alunos aprendem e nao quantos é que eles séo”. Na verdade 89

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