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Princípios

Revista de Filosofia
v. 11  nos  15-16  Jan./Dez. 2004
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Universidade Federal do Rio Grande do Norte ISSN 0104-8694
Reitor
José Ivonildo do Rêgo
Vice-Reitor
Nilsen Carvalho Fernandes de Oliveira Filho
Diretor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Márcio Moraes Valença
Coordenador do PPGFIL
Juan Adolfo Bonaccini
Vice-Coordenador do PPGFIL
Abrahão Costa Andrade
Princípios, Revista de Filosofia
Editores Responsáveis
Markus Figueira da Silva
Comissão Editorial
Ângela Maria P. Cruz, Cláudio F. Costa, Monalisa Carrilho de Macedo
Editor de Resenhas
Glenn W. Erickson
Conselho Editorial
Colin B. Grant (UFRJ), Walter E. Wright (Clark University/USA), Franklin Trein (UFRJ), Marco
Zíngano (USP), Guilherme Castelo Branco (UFRJ), Enrique Dussel (UNAM – México), André
Leclerc (UFPB), Daniel Vanderveken (Quebec/Canada), Maria das Graças de Moraes Augusto
(UFRJ), Elena Morais Garcia (UERJ), Gottfried Gabriel (Friedrich Schiller Universität, Jena/Ale-
manha), Mario P. M. Caimi (UBA/Argentina), Roberto Machado (UFRJ), Steven Daniel (Texas
A & M University/USA), Maria Cecília M. de Carvalho (PUC – Campinas), Matthias Schirn
(Universität München/Alemanha).
Editoração Eletrônica
Marcus Vinícius Devito Martines
Princípios é uma revista que tem como objetivo principal promover a discussão e a divulgação
de idéias pertencentes a qualquer área da filosofia, sem restrições de método. Para aquisição,
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Catalogação na publicação. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede. Divisão de Serviços Técnicos.

Princípios, UFRN, CCHLA


v. 11  nos. 15-16  (2004)  Natal (RN):
EDUFRN – Editora da UFRN, 2003.
Semestral
1. Filosofia… – Periódicos

ISSN 0104-8694
RN/UF/BCZM CDU 1 (06)
Princípios
Revista de Filosofia
v. 11  nos  15-16  Jan./Dez. 2004
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Sumário

Markus Figueira da Silva


Apresentação, 5

Maria das Graças de Moraes Augusto


A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne, 7

Celso Martins Azar Filho


Sócrates e as leis: democracia e metafísica, 29

José Trindade Santos


Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica, 65

Mario A. L. Guerreiro
O erro moral na tragédia e na epopéia, 83

Cícero Cunha Bezerra


Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão, 99

Giovanni Casertano
Morte, 109

Rachel Gazolla
O Ofício do Filósofo Estóico, o duplo registro do discurso da Stoa, 111

Normas para redação e apresentação dos trabalhos, 115

Natal, Rio Grande do Norte Semestral


Princípios UFRN Natal v. 11 nos. 15-16 p. 01-116 Jan./Dez. 2004
5

Apresentação

A Revista Princípios apresenta um número especial dedicado à Filosofia


Antiga. Trata-se de uma seleção de artigos sobre temas fundamentais
da antiguidade e constituem um excelente instrumento de pesquisa
para alunos e pesquisadores. Há muito esperamos abrir espaço para
uma área tão importante da Filosofia que, no entanto, não tem tido
a atenção devida para publicação. Os estudos nesta área têm avan-
çado significativamente em todo o país e muitos dos pesquisadores
que colaboraram com este número mantém profícuas relações que
se fortificam a cada encontro, congresso, seminário ou colóquio em
diversas regiões do Brasil. Agrademos a colaboração de todos aqueles
que contribuíram para a realização deste trabalho.

Markus Figueira da Silva


(Organizador)
7

A arte de narrar ou as relações perigosas entre


a Philosophía e a Tékhne1

Maria das Graças de Moraes Augusto


Departamento de Filosofia – UFRJ

Quem não vê bem uma palavra.


Não pode ver bem uma alma.
Fernando Pessoa

O desafio que Gláucon e Adimanto fazem a Sócrates na República,


de construir o elogio da justiça (dikaiosýne) de modo a demonstrar,
através de um argumento estritamente filosófico, que a justiça é me-
lhor do que a injustiça terá como contrapartida uma longa narrativa
acerca do modo de ser da philosophía na cidade e de como esse modo
de ser dá origem a uma espécie de politeía, aquela que é boa e reta2.
Nesse sentido, não podemos esquecer as exigências que os dois irmãos
de Platão fazem a Sócrates: encomiar a justiça, no nível do conteúdo
e da forma, isto é, demonstrar que a dikaiosýne é um bem que vale
em si e por suas conseqüências, o que por si só já estabelece o grau
de complexidade dessas exigências, dar conta do “ser da dikaiosýne”
e das ações que ela engendra3. Portanto, se o conteúdo fundamental

1 Uma primeira versão do presente texto foi apresentada no II Colóquio Internacional do GIPSA
– Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre as Sociedades Antigas – Imagem e Narrativa na
Antigüidade Clássica, realizado em outubro de 2000, na Faculdade de Letras da UFMG. A atual
versão valeu-se das discussões e sugestões feitas pelos professores David Bouvier, Jacyntho Lins
Brandão, Maria Sylvia Carvalho Franco e Marcelo Pimenta Marques, ao longo de agradáveis −
e algumas vezes intempestivas − conversas nas noites mineiras do GIPSA. Em especial agradeço
também a Alice Bitencourt Haddad, doutoranda em Filosofia na UFRJ, não só pela revisão do
texto, mas, sobretudo, pela amizade e pela interlocução sempre inteligente.
2 Cf. Rep., 449 a: Agathèn mèn toínyn tèn toiaúten pólin te kaì politeían kaì orthèn kalô. [A uma
cidade e constituição dessas chamo eu, portanto, boa e reta. ]
3 Cf. Rep., 358 b: “epithymô gàr akoûsai tí t’éstin hekáteron kaì tína ékhei dýnamin autò kath’
autò enòn en têi psykhêi, toùs dè misthoùs kaì tà gignómena ap’ autôn eâsai khaírein.” [Desejo
ouvir o que é cada uma delas, e que dýnamis possuem por si, quanto existem na alma, sem ligar
importância aos salários nem aos prazeres. ]; 366e: “...autò d’ hekáteron têi autoû dynámei en têi
toû ékhontos psykhêi enón, kaì lanthánon theoús te kaì anthrópous, oudeìs pópote oút’ en poiései oút’
8 Filosofia Antiga

já diz respeito à idéia de bem, a questão da forma não será, por sua
vez, menos complexa, pois quando Gláucon e Adimanto exigem a
composição do “épainos/enkómion”4 da dikaiosýne, nela mesma e por
ela mesma, coisa que nem Gláucon jamais viu ser feita pela maioria
(hoi polloí), nem Adimanto pelos poetas5, estão sugerindo a Sócrates
a demonstração do argumento filosófico como um gênero do lógos,
isto é, que o filósofo determine a diferença entre o seu modo de argu-
mentar e os modos sofístico e poético, explicitando, enfim, em que
consiste a “utilidade” do lógos filosófico.
Colocando de lado sua adynamía, Sócrates proporá a seus interlo-
cutores auxiliar a dikaiosýne nos limites de sua dýnamis (dýnamai
epikoureîn autêi)6. E aí cabe, então, perguntar: que limites são esses?
A resposta parece-nos, à primeira vista, simples: de um lado, a phýsis,

en idíois lógois epeksêlthen hikanôs tôi lógoi hos tò mèn mégiston kakôn hósa ískhei psykhè en hautêi
dikaiosýne dè mégiston agathón.” [...quanto ao que são cada uma [a justiça e a injustiça] em si e
o efeito que produzem por suas próprias dynámeis, pelo fato de se encontrarem na alma do seu
possuidor, ocultas a homens e deuses, ninguém jamais demonstrou suficientemente, em prosa
ou em verso, até que ponto uma é o maior dos males que uma alma pode albergar, ao passo que
a outra, a justiça, é o maior dos bens. ]
4 Platão parece não estabelecer uma diferença rigorosa entre épainos e enkómion, na República
eles são usados indistintamente para referir-se ao “louvor”, seja às ações virtuosas, seja aos ho-
mens bons e virtuosos. Se seguirmos as indicações dadas no Banquete, veremos que a diferença
aí sugerida entre o épainos e o enkómion está na forma do louvor: os poetas o fazem em versos,
enquanto os sofistas o fazem em prosa: “Não é estranho, Erixímaco, que para outros deuses
haja hinos e peãs, feitos pelos poetas, enquanto que ao Amor todavia, um deus tão venerável
e tão grande, jamais um só dos poetas que tanto se engrandeceram fez sequer um encômio
(enkómion)? Se queres, observa também os bons sofistas: a Hércules e a outros eles compõem
louvores (epaínous) em prosa, como o excelente Pródico − e isso é menos de admirar, que eu já
me deparei com um livro de um sábio em que o sal recebe um admirável elogio (épainon), por
sua utilidade; e outras coisas desse tipo em grande número poderiam ser elogiadas (enkekomias-
ména).” Cf. Banquete, 177a-b (Tradução de José Cavalcante de Souza). Dover em sua edição do
Banquete comenta: “The speech which each guest delivers is described indifferently as épainos
‘praise’ (e. g. 177d2) or an ‘encomium’ (e. g. 177b1) of eros.” DOVER, K. 1980. p. 11.
5 Cf. AUGUSTO, Maria das Graças. O visível e o invisível nos argumentos do livro II da
República. Textos de Cultura Clássica. Belo Horizonte. V. 8, n. 19, p. 19-42, onde discuto os ar-
gumentos apresentados por Glaúcon e Adimanto a partir da relação entre o visível e o invisível,
efetivada pela dýnamis do anel encontrado por Gyges e pelo lógos dos poetas que leva os homens
ao Hades, tornando visível o que é, por natureza, invisível.
6 Cf. Rep., 368a-c: “...mas quanto mais confio em vós, mais me sinto embaraçado com o que
hei de fazer. Pois não tenho maneira de defender a justiça. Parece-me que sou incapaz. [...] E,
por outro lado, não posso deixar de a defender. Com efeito, tenho receio que seja impiedade
que, atacando-se a justiça na minha presença, eu não a defenda, nem lhe acuda enquanto pu-
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 9

do outro, os érga em que ela se manifesta. Mas, nessa moldura com-


posta de phýsis e érgon, como tornar visível isto que é, por natureza, a
areté dos homens, a dikaiosýne?7
Recorrendo ao lógos, pois ele guarda a possibilidade assinalada por
Adimanto em sua crítica ao argumento poético8, de tornar visível
aquilo que é por natureza invisível, e utilizando-o como substrato na
composição do tópos da dikaiosýne, Sócrates proporá, então, a mode-
lagem de uma “pólis lógoi”.
Assim, nosso objetivo aqui é discutir como nesse processo de com-
posição Sócrates determinará: [i] a philosophía como um gênero do
lógos; [ii] a forma e o conteúdo desse gênero; e, [iii] como nele se
mesclam o divino e o humano nos limites do que é pseûdos e alethés.

1. A tékhne e a coalescência entre lógos e érgon


1. 1 O axioma fundador da “pólis lógoi”
Ao propor a seus interlocutores a composição de uma cidade feita
com lógos para tornar visível a justiça tanto na pólis quanto na alma
dos homens9, Sócrates enfatiza que essa busca é um “grande érgon”10,
inferindo, a seguir, que a gênese da cidade dá-se pela impossibilidade
da autarkeía entre os homens, uma vez que temos necessidade de
muitas coisas, daí a exigência de koinonía, a qual atribuímos o nome
de pólis,11 e que se determina a partir de nossas necessidades (khreía)

der respirar e for capaz de falar. O melhor, portanto, é socorrê-la dentro dos limites da minha
capacidade (dýnamis).” (Tradução de M. H. da R. Pereira).
7 Cf. Rep., 335c: “Mas a justiça não é a areté dos homens?” (Tradução de M. H. da R. Pereira,
com modificações).
8 Rep., 363c: “Efetivamente [os poetas], levam-nos com o lógos ao Hades, instalam-nos à mesa,
preparam-lhes um banquete dos bem-aventurados, coroando-os de flores, e fazem-nos passar
todo o tempo, daí em diante, a embriagar-se, imaginando que o mais poderoso salário da
virtude é uma embriaguez perpétua.”.... Sobre o argumento poético exposto por Adimanto, cf.
AUGUSTO, M. G. M. op. cit., 1996. p. 27-31; 34-35.
9 Cf. Rep., 369a7-8: “...ei gignoménen pólin theasaímetha lógoi, kaì tèn dikaiosýnen autês ídoimen
àn gignoménen kaì tèn adikían?
10 Cf. Rep., 369b2-3: “oîmai mèn gàr ouk olígon érgon autò eînai.”
11 Cf. Rep., 369b6-7: “Gígnetai toínyn, ên d’égó, pólis, hos egôimai, epeidè tynkhánei hemôn hékas-
tos ouk autárkes, allà pollôn endeés; è tín’oíei arkhèn allen pólin oikízein? Ao afirmar o princípio da
koinonía como fundante da pólis, Platão está já a contrapor-se às teses sofísticas, e, certamente,
10 Filosofia Antiga

primordiais, sendo a alimentação (trophé), que conserva o ser e a vida,


a maior dentre elas, seguindo-se a habitação, o vestuário, o calçado e
tudo que com elas se relaciona.12
Dessa koinonía, Sócrates vai inferir, a seguir, o princípio que sustentará
toda a sua composição, melhor dizendo, o seu encômio da justiça: cada
cidadão da “polis lógoi” deve executar o que lhe é próprio para ser comum
a todos, pois cada um de nós não nasceu semelhante ao outro, mas com
naturezas diferentes, cada um para agir através de seu érgon.13
Ora, isto equivale a dizer que a cada érgon cabe, por natureza, uma práxis
que se constitui de modo belo (kállion), se for executada através de uma,
e somente uma, tékhne 14, no momento “oportuno” do obrar (érgou kai-
rón), sendo, pois, necessário que essa práxis esteja em consonância com o
érgon, não como skholé , mas como expressão da phýsis.15

já poderíamos ver aqui uma alusão à tese de Hípias acerca de sua “integral” autarkheía: “Pois
és o mais sábio dos homens em todas as artes, como de uma feita já te ouvi gabar-te na ágora,
junto de uma banca de câmbio, ao enumerares a variedade verdadeiramente invejável de tuas
aptidões. Dizias que certa vez em que foste a Olímpia tudo o que trazias sobre o corpo havia
sido feito por ti. Em primeiro lugar, o anel que tinhas no dedo − foi por aí que principiaste −
era trabalho teu, pois, sabia muito bem entalhar anéis; trazias, também, um cinto feito por ti;
tua escova de banho e um frasquinho de óleo eram de tua fabricação. De seguida, disseste que
tu mesmo havias cortado os sapatos que então calçavas, bem como havias tecido o manto e a
túnica. Porém o que mais deixou a todos estupefatos, como demonstração de tua extraordinária
sabedoria, foi dizeres que o cinto da túnica que tinhas no corpo, também feito por ti, era igual
aos da mais fina fabricação persiana. Ademais, levavas contigo poemas diferentes, epopéias,
tragédias e ditirambos, além de composições em prosa da mais variada espécie. A respeito das
ciências a que há momentos me referi, apresentavas-te como superior a quem quer que fosse,
bem como em ritmo, em harmonia e na arte de bem escrever, e em muitos outros gêneros, se
bem me lembro, em que também te sobressaias. Sim, quase ia esquecendo a tua menmotécnica,
em que te consideras particularmente brilhante. É certeza haver-me olvidado de muita coisa.”
PLATÃO. Hípias Menor, 368b-e. [Tradução de Carlos Alberto Nunes, com modificações].
12 Cf. Rep., 369c1-4; 369d1-2 ...“ állon ep’ állou, tòn d’ ep’ állou khreíai, pollôn deómenoi, polloùs
eis mían oíkesin ageírantes koinonoús te kaì boethoús, taútei têi xynoikíai ethémetha pólin ónoma.
[...] Allá mèn próte ge kaì megíste tôn khreíon he tês trophês paraskeuè toû eînai te kaì zên héneka.
13 Cf. Rep., 369e2-3: “...héna hékaston toúton deî to autoû érgon hápasi koinòn katatithénai;
370a9-b1-2: “...hóti prôton mèn hemôn phýetai hékastos ou pány hómoios hekástoi, allà diaphéron
tèn phýsin, állos ep’ állou érgou prâxin.
14 Cf. Rep., 370 b3: “...póteron kállion práttoi án tis heîs òn pollàs tékhnas ergazómenos, è hótan
mían heîs?
15 Rep., 370c2: “...Ek dè toúton pleío te hékasta gígnetai kaì kállion kaì rhâion, hótan heîs hèn
katà phýsin kaì em kairôi, skolèn tôn állon ágon, práttei.”
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 11

Na seqüência, reconhecendo que a satisfação das quatro necessidades


fundamentais aos homens não pode ser suprida apenas por quatro
cidadãos, Sócrates proporá a introdução na cidade de agricultores,
demiurgos, marinheiros, retalhistas, negociantes e assalariados16, es-
truturando de tal modo as tékhnai e os érga na pólis que, ao descrever
esse modo de ordenação, concluirá que o caráter desse regime (trópon
diaitésontai)17, por ser moderado (metríos)18, proporcionará a seus ci-
dadãos uma vida,

...em paz e com saúde, morrerão velhos, como é natural, e


transmitirão aos seus descendentes o mesmo regime de vida.19

Assim, no que tange à modelagem da primeira cidade narrada por


Sócrates na República, podemos inferir: [i] que, embora ela seja feita
de e com o lógos, essa modelagem é tomada como um “grande érgon”,
logo, que entre lógos e érgon há uma coalescência primordial; [ii] que
essa coalescência é compreendida como phýsis; e, [iii] que sua utilida-
de consiste na produção da paz e da saúde através de uma metrética
garantida pelo natural exercício das tékhnai.
Portanto, poderíamos, para já, concluir a partir dessa “modelagem
bruta” da “pólis lógoi” que ela supõe também uma tékhne. Qual é
esta tékhne, é o que nos cabe agora indagar. E para responder a essa
questão, contamos com o auxílio de Gláucon, quando, refutando a
legitimidade desse “natural” regime de vida, exige que Sócrates intro-
duza na cidade o nomízein.

1. 2 As tékhnai na cidade phlegmática


A exigência de Gláucon fundamenta-se no fato de que os homens sob
esse regime “natural” sentir-se-ão infelizes, sofrerão, por não desfruta-

16 Rep., 370e -371a-e.


17 Rep., 372 a-b.
18 Rep., 372 d-1.
19 Rep., 372 d1-2: “...kaì hoúto diágontes tòn bíon en eirénei metà hygieías.”
12 Filosofia Antiga

rem do que já é o “costume”20; a utilidade do nómos consiste, então,


na possibilidade de mediar a dor e o sofrimento.
E Sócrates, seja por ardil metódico, seja por necessidade de agudizar
a visão de seus interlocutores, acatará a exigência de Glaúcon intro-
duzindo na cidade a zographía e a poikilía, a pintura e a variedade,
de tal modo que as antigas necessidades primordiais, inchadas pela
ação da phlégma, farão da “cidade verdadeira”21, a que era “pacífica
e saudável”, uma tryphôsa pólis, uma cidade de luxo22, que abrigará,
assim, duas espécies de cidadãos desnecessários à cidade: os caçado-

20 Rep., 372d-7-10: “Háper nomízetai, éphe: epì te klinôn katakeîsthai, oîmai toùs méllontas mè
talaipopreîsthai, kaì apò trapezôn deipneîn, kaì ópsa háper kaì hoi nýn ékhousi, kaì tragémata.”
[“O costume − respondeu ele −. Acho que devem reclinar-se em leitos, se não quiserem que se
sintam infelizes, e que jantem, à mesa, iguarias como hoje há, e sobremessas.”]
21 Rep., 372e-7: “He mèn oûn alethinè pólis dokeî moi eînai hèn dielelýthamen, hósper hygiés tis;
ei d’ aû boúlesthe kaì phlegmaínousan pólin theorésomen; oudèn apokolýei.”
22 O estabelecimento da “tryphôsa pólis” com suas novas modalidades de vida comunitária
facilitará a Sócrates a exposição da paideía como o procedimento capaz de purificar, e, conse-
qüentemente, restabelecer a saúde da “cidade phlegmática”. Um exemplo do caráter do cidadão
da “tryphôsa polis” está demarcado no Mênon quando Sócrates, apontando a hýbris de seu inter-
locutor afirma que Mênon se esquece da geometria e age como os “tryphôntes” , os que vivem
no luxo, no excesso, e que tiranizam enquanto dura sua beleza. Portanto, a figura ambivalente
de Mênon, personagem do diálogo homônimo, que nas palavras de Xenofonte desejava sempre
obter vantagens e que para chegar a seus objetivos usava o perjúrio e a fraude, sendo hábil em
inventar mentiras (cf. XENOFONTE. Anábase, III, 21-26) e que interroga Sócrates acerca da
areté, parece ser uma das espécies de cidadãos que habitam a “cidade phlegmática”. Cf. Mênon,
76a-c.
Por outro lado, ao contrapor a “cidade saudável” à “cidade phlegmática” Platão parece estar
a valer-se da tese hipocrática, apresentada no Perì phýsios anthrópou, de que o homem é com-
posto de quatro humores −a fleuma, a bílis amarela, a bílis negra e o sangue −, que são a causa
da doença e da saúde, para compreender a formação da justiça e da injustiça na cidade e no
homem: quando os quatro humores estão em justa proporção, tanto de quantidade quanto de
qualidade, se sua mistura é perfeita, existe a saúde, mas quando um desses humores se isola no
corpo, em pequena ou grande quantidade, em lugar de permanecer misturado com os outros,
temos a doença. Com o movimento dos humores, não só o lugar deixado por ele torna-se do-
ente, mas, também, aquele no qual ele se fixa e se acumula, seguindo-se, assim, uma obstrução
que provoca sofrimento e dor. Portanto, a doença, tanto no corpo, quanto na cidade, é fruto de
excessos. Cf. HIPOCRATE. La nature de l’ homme. 4, 2-3.
E aqui poderíamos ainda remeter o leitor ao livro VIII da República, onde Platão, analisando a
constituição democrática, mostrará que no excesso de liberdade da democracia reside o “belo e
sedutor começo da tirania”, bem como que as doenças que acometem os homens que habitam
sob a constituição democrática e tirânica são provocadas pela fleuma e pela bílis: “Quando estas
duas espécies de homens [o democrata e o tirano], por conseguinte, se formam, causam per-
turbações em toda a politeía, tal como a fleuma e a bílis relativamente ao corpo.” Rep., 564b-c.
Para uma análise do modelo político das doenças, ver o texto de CAMBIANO, G. Pathologie
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 13

res (hoi thereutaí) e os imitadores (hoi mimetaí). Por sua vez, esses
mimetaí serão também divididos em duas espécies: aqueles que mi-
metizam através da zographía, valendo-se das figuras e das cores (tà
skhémata te kaì khrômata); e aqueles que se dedicam à mousiké, vale
dizer, os poetas e seus servidores − rapsodos, atores, coreutas, empre-
sários, além de artíficies (demiourgoí) que fabriquem todas as espécies
de utensílios, acrescentando-se, ainda, servidores de várias espécies:
pedagogos, amas, governantas, açafatas, cabeleireiros, cozinheiros e
açougueiros23.
Dessa forma, ao tornar a cidade phlegmática, Sócrates introduzirá
entre seus cidadãos duas necessidades: médicos para “salvar” o cor-
po, e, também, o alargamento da khôra da cidade de modo a ter
espaço suficiente para a “alimentação” de seus habitantes, o que
implicará em conflitos com seus vizinhos, ou seja, alargar a khôra
significa a necessidade de um exército que lute na defesa dos bens
(tês ousías) da cidade.
Para essa “salvaguarda”, se vale aqui o princípio genético da cidade
− o de que é impossível a um único homem exercitar-se numa plu-
ralidade de tékhnai, se temos por horizonte a “perfeição” do que se
produz24 −, fazer a guerra exige um saber próprio a uma tékhne e, con-
seqüentemente, um cidadão cujo érgon seja também coalescente com
o seu exercício25. Por conseguinte, se a guarda da cidade é uma tékhne,
e se visamos à perfeição do que é por ela produzido, a guerra exige do
guerreiro não só a aquisição de uma epistéme e de uma meléte que a
torne suficiente (hikané), mas, sobretudo, uma natureza apropriada
ao exercício de ambas. Ao tornar o antigo guerreiro (polemikós) “guar-
dião da pólis” (póleos phylakén), Sócrates insistirá na necessidade de
demarcar a natureza desse “cidadão” como parte da tarefa do “grande

et analogie politique, 1983. p. 441-58. Veja, também, para relação política-doença no pensa-
mento político de Platão, WOLIN, S. Política y perspectiva, 1974.
23 Cf. Rep., 373 c-d.
24 Cf. Rep., 374 b-d.
25 Rep., 374 b1-2: “...he perì tòn pólemon agonía ou tekhnikè dokeî eînai?”
14 Filosofia Antiga

érgon” em que consiste a composição da “pólis lógoi”, tarefa essa que


deve, ainda mais uma vez, estar delimitada pela dýnamis socrática26.
É, pois, assimilando a função dos guardiões a dos cães de boa raça27,
que Sócrates estabelecerá as exigências no nível do corpo (sôma) e no
nível da alma (psykhé) que a phýsis do guardião deve preencher: [i] a
“acuidade de visão” para perceber o inimigo e, a partir do momento
em que o perceber, ser “veloz” na perseguição e “forte” no combate,
caso seja pego28; devendo ser, além disso, corajoso para lutar bem (eû
makheîtai); e, [ii] como toda coragem exige a irascibilidade (thymoei-
dés), ele deve possuir o thymós que é “invencível e indomável”, e uma
alma possuída por ele não conhece medo nem derrota29.
Entretanto, essas exigências podem ser apropriadas não apenas à luta
dos guardiões com os inimigos, mas, também, aos próprios guardiões,
conclusão que termina por levar Sócrates a reconhecer em seu argu-
mento uma “aporía” provocada pelo abandono da imagem (eikôn) da
“cidade saudável e pacífica” 30. Como fazer para que a guarda da cida-
de se efetive como sendo a “preservação” de seu princípio fundante e
não a sua destruição? Não seria, então, necessário que o guardião fos-
se doce para com aqueles que lhe são familiares (toùs oikeíous práious)
e irritadiço para com os inimigos (toùs polemíous khalepoús)31?
Retomando a analogia com os cães32, Sócrates responderá que a
natureza daqueles que são de boa raça expressa esse êthos, uma vez

26 Rep., 374 e.
27 Rep., 375 a.
28 Rep., 375 a.
29 Rep., 375 a-b.
30 Rep., 375d.
31 Rep., 375 c.
32 Aqui não seria inoportuno lembrar que Trasímaco é assimilado por Sócrates à figura do
lobo, quando aquele se introduzir na discussão fazendo menção à dialética socrática como mera
“tagarelice” (phlyaría), em 336c-2, Sócrates replicará: “Ao ouvir isto, fiquei estarrecido; volvi
os olhos na sua direção, atemorizado, e pareceu-me que, se eu não tivesse olhado para ele antes
de ele ter olhado para mim, teria ficado sem voz. Mas neste caso, quando começou a irritar-se
com a nossa discussão, fui eu o primeiro a olhá-lo, de maneira que fui capaz de lhe responder.”
(Rep., 336d-e). Nesse passo, Platão faz menção à tradição que dizia que se encontrássemos um
lobo e ele nos visse primeiro ficaríamos privados de voz, e Sócrates, ao ver primeiro Trasímaco,
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 15

que, possuindo a capacidade de “conhecer”(gnorímous) os que são


familiares e aqueles que não o são, podem agir de modo “doce” para
com os primeiros e “feroz” para com os segundos. Portanto, se há
nos cães essa capacidade natural de discernimento, certamente ela
deverá existir nos guardiões. Como e onde encontrá-la nos guardi-
ões? A resposta socrática é, mais uma vez, aparentemente simples,
acrescenta ao thymoeidés um natural “instinto” filosófico”(pròs tôi
thymoeideî éti prosgenésthai philósophos tèn phýsin)33! A rapidez da res-
posta socrática não deixará de provocar espanto e incompreensão em
Gláucon, que exigirá a explicação dessa “estranha” relação: thymoeidés
e philósophos.
Ora, a única maneira de discernir (diakrínein) através da visão o que
é amigo (phílos) do que é inimigo (ekhtrós) é pela via da aprendizagem
(katamatheîn), logo, como não ser amigo de aprender (philomathés)
se é pela máthesis que podemos determinar quem é familiar (oikeîon)
e quem é outro (allótrion)?
Desse modo, se a natureza do guardião deve ter a capacidade de dis-
cernir as coisas familiares das outras que não o são, não será difícil
a Sócrates concluir que para ser um guardião perfeito (kalòs te kaì
agathós) é preciso admitir que: [i] ser naturalmente philósophos e na-
turalmente philomathés, é o mesmo (tò ge philomathés kaì philósophon
t’autón); [ii] para ser doce com os familiares é preciso ser, por nature-
za, philósophos e, [iii] para ser feroz com os inimigos o guardião deve
ser, por natureza, thymoeidés, veloz e forte.
Ao exigir de Sócrates o alargamento da “polis lógoi”, seja pela intro-
dução de uma multiplicidade de tékhnai, seja pelo alargamento das
dimensões territoriais da cidade, Gláucon permite a Sócrates a intro-

garante a possibilidade do diálogo. Ao valer-se da analogia do cão com o guardião e do lobo


com o sofista, pensamos que Platão está, mais uma vez, contrapondo a diferença de forma e
conteúdo em relação aos argumentos sofístico e filosófico. Sobre essa questão cf. MAINOLDI,
C. L’ image du loup et du chein dans la Grèce Ancienne, 1984, e, também os comentários de,
ALLAN, D. J. Plato: Republic Book I, 1962. p. 45-6 e ADAM, J. The Republic of Plato, 1963.
v. 1, p. 22-23.
33 Rep., 375 e.
16 Filosofia Antiga

dução das tékhnai que, purificadas de seus excessos através da paidéia,


poderão contribuir na composição de um novo gênero do lógos, ca-
paz de tornar visível o ser da justiça e as ações que ela engendra.
Para isso, a escolha dos “caçadores e imitadores” que processaram esse
alargamento não parece ser aleatória, mas perfeitamente direcionadas
aos interesses argumentativos platônicos. Acerca dos “hoi thereutaí
” pouco dirá aqui Sócrates, apenas que são de muitas espécies e que
são desnecessários à saúde e à paz da cidade34; dos “hoi mimetaí” fa-
lará mais largamente, e daí já podemos inferir que eles são aqueles
que praticam a mousiké e a zographía, artes que Sócrates, em algum
momento de sua vida, parece ter praticado35, e que, posteriormente,
no Livro VI, estarão diretamente associadas à filosofia − apresentada
como a décima Musa − e ao filósofo − definido como um politeiôn
zográphos. Mas, as implicações que a inserção das tékhnai produzem
não terminam aí: as exigências que a guerra, como uma dessas tékh-
nai, acarreta é de vital importância para as “intenções” platônicas
quanto à filosofia.
Em primeiro lugar, vale lembrar que ao phýlax é exigida a mesma “acui-
dade de visão” que Sócrates exige de si mesmo e de seus interlocutores
quando decide socorrer a dikaiosýne nos limites da sua dýnamis36, e,
em segundo lugar, que apenas àqueles que são naturalmente philóso-
phos é dada a possibilidade de discernir, através da visão (ópsin oûdenì
álloi phílen kaì ekhtràn diakrínei), o que é amigo do que é inimigo;

34 Todavia, não podemos esquecer que “thereutés” é a primeira definição do sofista, no diálogo
homônimo: “Dokô mèn gár, tò prôton heuréthe néon kaì plousíon émmisthos thereutés”. [“Creio
que, em primeiro lugar, nós descobrimos ser ele um um caçador interesseiro de jovens ricos.”]
Sofista, 231d1-2. Nesse sentido, poderíamos afirmar que o alargamento da “cidade saudável e
pacífica” em “phlegmática” supõe a sofística como uma das causas do movimento que introduz
a doença na cidade.
35 Aqui não podemos esquecer o passo do Fédon em que Sócrates conta a Cebes como, ao lon-
go de sua vida, foi acompanhado pela visita de um sonho que sempre dizia: “Sócrates, pratica a
mousiké ”(cf. Fédon, 60-d-e), e de como ele o estimulou a seguir praticando a philosophía, pois
acreditava que ela era a mais alta espécie da mousiké (cf. Fédon, 61 a-b). Por outro lado, vale
lembrar, ainda, que a figura do Sócrates histórico parece também estar vinculada à escultura e
ao uso habilidoso do lógos conforme nos conta Diógenes Laêrcios, D. L. II, 5, 18-21 e Platão,
Teeteto, 149 a.
36 Cf. Rep., 368 c: “...all’ oxy blépontos hos emoì phaínetai.”
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 17

ou seja, cabe aos guardiões esse primeiro conhecimento (gnorímoûs)


acerca dos amigos e dos inimigos − exposto por Polemarco quando,
interpretando as palavras de Simônides, não soube identificar nelas a
dikaiosýne −, que dar-se-á na aprendizagem (supondo-se aí uma epis-
téme e uma meléte) de “guarda da cidade”, na sua salvação daqueles
que lhe são “allótrion”, isto é, outro, estrangeiro.
Ora, se a cidade é feita de e com o lógos, podemos também inferir
que essa guarda consiste em salvá-lo, tomando o érgon como o lu-
gar natural dessa salvação. Talvez, seja por isso que Sócrates não faz
referência à identidade desses caçadores, pois o caçador aí pode ser
um dos sofistas que ensinam as doutrinas dos “hoi polloí”, como é
apontado depois no livro VI37, e na “pólis lógoi” há apenas espaço
para aquele “caçador” da dikaiosýne , que não é um theuretés, mas um
kynegétes. Que Sócrates é esse kynegétes e que Gláucon e os demais
interlocutores de Sócrates não são mais do que esses cães-guardiões, 38

37 Rep. 493a: “Que cada um desses particulares mercenários, a quem essa gente chama sofistas
e considera como rivais, nada mais ensinam senão as doutrinas da maioria (tá tôn pollôn dógma-
ta), que eles propõem quando se reúnem em assembleia, e chamam a isso sophía.”
38 Rep., 432 b: “Ora pois, Glaúcon, agora temos de nos postar em círculo à volta da moita,
como caçadores de inteligência atenta, (hósper kynegétas tinàs thámnon kúkloi periístasthai pro-
sékhontas tòn noûn), não vá a justiça fugir por qualquer lado, tornar-se invisível e desaparecer.
Pois é evidente que ela anda aí por qualquer canto. Olha então e esforça-te por a descortinares,
a ver se a avistas antes de mim e me prevines.
Quem dera! − exclamou ele −. Mas se, em vez disso, te servires de mim como de um seguidor,
capaz de ver o que lhe apontarem, achar-me-ás muito satisfatório.
Vem atrás de mim − disse eu − depois de teres feito a tua oração comigo.” (Grifos nossos)
Assim, após determinar os sentidos de sophía, andreía e sophrosýne, Sócrates, no Livro IV da
República, passará à investigação acerca da dikaiosýne, afinal o que “restou” das investigações
anteriores? A justiça, tomada assim como “resíduo”, vai ser mostrada a partir de duas variantes:
[i] a analogia entre caça e filosofia, e, [ii] a contrapartida cômica que possibilita a visão primeira
da “dieta filosófica” e sua função determinadora daquilo que necessita ser visto. A metáfora do
filósofo-caçador aparece em vários outros diálogos, recurso da cena e do argumento, onde a
comparação entre as duas “artes” possibilita a indicação do caráter difícil e lúdico dos érga do
filósofo. Assim, encontramos nas Leis, 654a, no Parmênides, 128b e no Lysis, 218a-e, situações
que são, de certo modo, recorrentes em relação ao contexto da passagem 432a da República.
No contexto do passo 432a-e da República, a proposta socrática a Glaúcon e Adimanto de colo-
carem-se “como caçadores” (hósper kynegétas) para tentarem apreender e ver a justiça, parece-nos
ter como contraponto imediato o texto xenofontiano, onde a caça e seus utensílios, a caça e sua
diversidade de presas, a caça como tékhne e como paidéia, produtora de bons guardiões, bons
cidadãos e, de certo modo, como elemento determinante da diferença entre filósofo e sofista,
18 Filosofia Antiga

guardadores do lógos, levados à caça da dikaiosýne através do exercício


de um érgon, talvez já não seja tão difícil de ver.
Porém, como constituir a “guarda do lógos” sem prevaricar a coales-
cência entre lógos e érgon?
Responder a essa questão é já perguntar pelo modo como se deve
conduzir a aprendizagem do discernimento daquilo que é oikeîos e
do que allótrios, isto é, como é possível educar e alimentar o trópos39
desses que são naturalmente philósophos, tomando o lógos de modo su-
ficiente, a fim de avançarmos em nossa composição do “encômio da
dikaiosýne”? É o que discutiremos a seguir.

2. A paideía e a coalescência entre lógos e mythos


A resposta socrática à questão colocada acima, como já sabemos de
antemão, não deixa de surpreender a tradição filosófica:
Ora, vamos lá! como se estivéssemos no mito mitologando e de-
socupados conduzindo no lógos a educação desses homens.40

Chegamos agora a um segundo nível fundante do lógos: a modelagem


bruta da “pólis lógoi ” deve submeter-se ao refinamento da paideía.
Educar e alimentar os guardiões é velar pela beleza da alma e do corpo,
e aqui é preciso não esquecer que a paideía feita de e com lógos supõe no-
vas démarches da philosophía no âmbito da tradição. Retomar a forma
tradicional da educação grega, a mousiké e a gymnastiké, é ir conhecen-
do lentamente a tékhne própria ao guardião através da purificação dos
excessos de caçadores e imitadores de todas as espécies.
Começando a educação do phýlax pela mousiké, e alternando seu in-
terlocutor, Sócrates indagará a Adimanto: [i] se o lógos faz parte da
mousiké; [ii] se ele está de acordo que há duas espécies de lógos, uma

permitir-nos-á uma mais larga compreensão de tudo o que está em jogo na cena que antecede a
definição da dikaiosýne. Cf. XENOFONTE. De la Chasse, II, 1-7; III-IV e XII-XIII.
39 Rep., 376c: “...thrépsontai dè dè hemîn hoûtoi kaì paideuthésontai tína trópon.”
40 Rep., 376 d-e: Íthi oûn, hósper en mýthoi mythologoûntés te kaì skholèn ágontes lógoi paideúo-
men toùs ándras.
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 19

mentirosa (pseûdos) e outra verdadeira (alethés), e, [iii] se ambas as


espécies serão ensinadas na cidade. Aceitando as duas primeiras asser-
tivas, Adimanto mostrar-se-á inseguro na compreensão do que quer
dizer Sócrates quando afirma que ambas as espécies serão ensinadas,
e que a educação deve iniciar-se através do lógos pseûdos.
2. 1. O lógos pseûdos
Começar a educação dos guardiões pelo lógos pseûdos significa, então,
que ele se manifesta através dos mythoi, que “em seu conjunto são
mentiras, embora contenham algumas verdades”, e, é também por
isso, que a mousiké deve preceder a gymnastiké.
Ora, como em todo “grande érgon”41, o começo é vital, porque é nes-
se momento, sobretudo quando se é jovem e tenro, que é possível a
modelagem a partir de um týpos 42 que se imprime no ser da modela-
gem. Por isso, não podemos permitir que as crianças emprestem seus
ouvidos à escuta de qualquer mythos produzido ao acaso, plasmando
em sua alma opiniões diversas daquelas que quando crescerem deverão
possuir, se pensamos na composição do “encômio da dikaiosýne”. Daí
a necessidade de vigiar os “fazedores de mythoi”, pois, modelar as almas
das crianças através dos mythoi exige muito mais cuidados do que mo-
delar os corpos com as mãos43. Como a maior parte dos mythoi que se
contam, diz Sócrates, deverão ser rejeitados por serem desprovidos de
nobreza (mè kalôs pseúdetai)44, e se os mythoi devem ser compostos a
partir dos mesmos týpoi para produzirem o mesmo efeito, os primeiros
mythoi a serem contados aos nossos guardiões devem ser compostos
com a maior nobreza possível e na direção da areté.

41 Rep., 377a-12-377b-12: “Oukoûn oîsth’ hóti arkhè pantòs érgou mégiston, [...].”
42 Rep., 377b1-2: “...málista gàr dè tóte pláttetai, kaì endúetai týpos hòn án tis boúletai ensemé-
nasthai hekástoi.”
43 Rep., 377 c.
44 A mentira sem nobreza assimilada a um “kakòs lógos” é compreendida por Sócrates a partir
da pintura: “É o que acontece quando alguém delineia erradamente com o lógos a maneira de ser
de deuses e heróis, tal como um pintor quando faz um desenho que nada se parece com as coisas que
quer retratar.” Rep., 377 d-e.
20 Filosofia Antiga

Para que isso ocorra, é preciso que os “fundadores de uma cidade”,


estabeleçam os týpoi a partir dos quais os poetas poetarão:

Ö Adimanto, de momento, nem eu nem tu somos poetas, mas


fundadores de uma cidade. Como fundadores, cabe-nos co-
nhecer os moldes segundo os quais os poetas irão mythologar, e
dos quais não devem desviar-se ao fazerem versos, mas não é
a nós que cumpre produzir os mythoi.45

Essa atividade, a de determinar os týpoi, terá como ponto de partida


uma primeira classificação dos gêneros do lógos − a épica, a lírica e a
tragédia −, constituídos a partir do modo como os poetas falam dos
deuses46. Criticando os poetas, Sócrates tornará conhecidos os dois
týpoi a partir dos quais poetas e prosadores fabularam acerca dos deu-
ses: [i] que eles são bons, donde não podem ser acusados de nenhum
mal; [ii] que eles são simples, estando, por isso, impossibilitados de
alterar sua forma.
Ao começar a composição do primeiro týpos, Sócrates acrescentará
à crítica dos poetas os “hoi polloí” que também acusam os deuses de
serem a causa dos males que advêm aos homens, sem atinarem que a
verdadeira causa reside em suas ações.
Passando a seguir à demonstração da “simplicidade” dos deuses,
Sócrates afirmará que ser simples consiste em: [i] ser o menos capaz
de estar sujeito a metabolé, e, [ii] ser incapaz de mentir em palavras
e em obras (pseúdesthai theòs ethéloi àn è lógoi è érgoi)47. Isto equivale
a dizer que não estar sujeito às alterações e mudanças é próprio do
que é agathós, uma vez que o que é nobremente constituído é menos

45 Rep., 378e-8-379a-1-4: “Kaì egò eîpon: ô Adeimante, ouk esmèn poeitaì egó te kaì sú en tôi
parónti, all’ oikistaì póleos, oikistaîs dè toùs mèn týpous prosékei eidénai en hoîs deî mythologeîn toùs
poietaás, par’ hoûs eàn poiôsin ouk epitreptéon, ou mèn autoîs ge poietéon mýthous.”
46 Cf. Rep., 379a: “Está certo − declarou − mas isso mesmo dos moldes respeitantes à teologia
(hoi týpoi perì theologías), queria eu saber quais seriam.
Seriam do teor seguinte, disse eu, tal como o deus é realmente (ho theòs ón), assim é que se deve
sempre representar, quer se trate de poesia épica, lírica ou trágica.”
47 Rep., 382a1-2.
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 21

sujeito a metabolé e ao movimento, seja no corpo, seja na alma48, do


mesmo modo e “pelo mesmo lógos”,

todas as coisas comuns, utensílios, edificações, vestuário, se fo-


rem bem confeccionados e em bom estado, alterar-se-ão o mí-
nimo por efeito do tempo e de outras afecções. [...] Portanto,
tudo que se encontrar em bom estado, por efeito da natureza,
da arte, ou de ambas, receberá o mínimo de alterações por
efeito de outrem.49

E, quanto ao ser incapaz de mentir em palavras e atos, talvez consista


em afirmar que o lógos pseûdos, quando for alethés, é “detestado pelos
deuses e pelos homens”, pois,

um deus quereria mentir por palavra ou por obra, apresen-


tando-nos um fantasma? [...] Que queres tu dizer?
O seguinte: que ninguém aceita, de livre vontade, ser enga-
nado na parte principal de cada um e sobre os assuntos prin-
cipais, mas receia, acima de tudo, que a mentira aí se instale.
[...] Mas o que eu digo é que ninguém quereria aceitar ser en-
ganado, e fiar com o erro na sua alma em relação à verdade,
permanecer na ignorância, tendo e conservando aí a mentira,
e que a detesta sobretudo nesse caso.50

Isto equivale a dizer que o lógos pseûdos, quando for alethés, supõe uma
coalescência entre lógos e érgon, e se às palavras injustas seguirem-se
obras injustas, teremos, por exemplo, um verdadeiro lógos pseûdos.
Dessa primeira etapa da paideía dos guardiões, referente aos deuses,
podemos inferir: [i] que entre “fundadores de cidades” (philósophos?!)
e poetas há diferenças no nível do lógos: os primeiros modelam tý-
poi e os segundos compõem, em versos, mythoi, valendo-se de certos
gêneros (a épica, a lírica e a tragédia); [ii] que todas as coisas bem

48 Rep., 380e -381a.


49 Rep., 381 a-b: “...xýntheta pánta skeúe te kaì oikodomémata kaì amphiésmata katà tòn au-
tòn lógon tà eû eirgasména kaì eû ékhonta hypò khrónou te kaì tôn állon pathemáton hékista
alloioûtai.”
50 Rep., 382 a-b.
22 Filosofia Antiga

constituídas, seja pela phýsis, seja pela tékhne, são pouco suscetíveis a
alterar-se; [iii] que a mentira verdadeira é ignorância, amathía, e se
a mentira sem nobreza deve ser silenciada − mesmo que fosse, even-
tualmente, verdadeira −, sobretudo entre jovens, privados ainda da
phrónesis e que devem ser formados como “cidadãos justos”, o espaço
do mitologar se constitui em uma espécie da diégesis: a mímesis, visto
que a mentira que consiste “em palavras é uma imitação do que a
alma experimenta e uma imagem (eídolon) que surge posteriormen-
te”, não sendo, portanto, isenta de mistura; e, [iv] que, misturado
com a verdade, o lógos pseûdos assenta sua utilidade em duas funções:
[iv. i] como phármakon, que impede aos amigos e aos inimigos de
agirem mal, e, [iv. ii] como mythología, que, ao acomodar a verdade à
mentira, abre a possibilidade de um eidénai acerca do passado51.
Porém, o lógos pseûdos deve também permitir a elaboração dos tý-
poi que conformarão os mythoi acerca dos heróis, do Hades e dos
homens. Na primeira parte do Livro III, Sócrates dedicar-se-á aos
heróis e ao Hades, delineando-os de modo a servirem de modelo
aos guardiões que deverão ser corajosos e temperantes, portanto, os
heróis não poderão ser apresentados lamentando-se, mentindo, rindo
em excesso, nem infringindo os pontos cardinais da sophrosýne, como
acontece nos poemas de Homero.
Uma vez concluída essa discussão, torna-se necessário estabelecer os
typoi a partir dos quais os mythológoi e os logopoioí falarão dos ho-
mens. Mas Sócrates, salientando a multidão de dislates ditos por eles,
afirma ser impossível determiná-los, e, embora Adimanto e Gláucon
concordem no que tange aos deuses, heróis e ao Hades, no que tange
aos homens só chegarão a um “acordo quando descobrirem o que é
a dikaiosýne e se, por natureza, é útil a quem a possui, quer pareça
sê-lo ou não” 52. Nesse sentido, então, ter o conhecimento do que é a
diakiosýne é condição necessária para passarmos para o nível do lógos
alethés, e como ela não pode ainda ser vista (ou definida), Sócrates

51 Rep., 382 c.
52 Rep., 392c.
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 23

necessita concluir seu discurso acerca do lógos pseûdos de tal modo


que, purificando a “tryphôsa pólis” de seus excessos através da paidéia,
possa tornar visível a justiça, e aí, então, articular o “lógos alethés”.
Portanto, se o “lógos alethés” diz respeito à ordem dos homens, sua
constituição “typológica” deve ser precedida do “estilo”, da léxis con-
sonante ao “lógos pseûdos.
É preciso, pois, pôr fim aos týpoi referentes ao lógos pseûdos53, e passar-
mos à questão da lexis:

Quanto ao lógos, ponhamos-lhe fim. A seguir a isso, deve


buscar-se a léxis, em meu entender, para examinarmos por
completo o conteúdo e a forma.54

2. 2 A léxis e o lógos alethés


A léxis, o estilo no qual os poetas e prosadores deverão dar forma ao
conteúdo indicado pelos týpoi, como continuidade da reflexão acerca
do lógos, será definida por Sócrates como uma diégesis, que, media-
da pela temporalidade dos acontecimentos narrados, pode dar-se em
três modos:

Acaso tudo quanto dizem os prosadores e poetas não é uma nar-


rativa de acontecimentos passados, presentes ou futuros? [...]
Porventura eles não a executam por meio de simples narrati-
va, através da imitação, ou por meio de ambas?55

Todavia, Adimanto não compreendendo, ainda, o que se diz, exigirá


de Sócrates mais clareza, não deixando a este senão o recurso de to-
mar a parte em lugar do todo, ou seja, de recontar o começo da Ilíada

53 Cf. o comentário de ADAM, ao passo 392 a: “This is the alethès eîdos lógon Plato has prescri-
bed canons for the pseudeîs lógoi or legends about gods, etc. ; but rules for aletheîs lógoi, i. e., lógoi
relating to men and human affairs, cannot be drawn up without begining the conclusion which the
Republic seeks to establish.”, ADAM, J. A. op. cit., 1063. p. 143. v. 1.
54 Rep., 392c: Tà mèn dè lógon péri ekhéto télos; tò dè léxeos, hos egò oîmai, metà toûto skeptéon,
kaì hemîn há te lektéon kaì hos lektéon pantelôs esképstai.”
55 Rep., 392d: “âr ou pánta hósa hypò mythológon è poietôn légetai diégesis oûsa tynkhánei è
gegonóton è ónton è mellónton? Ar oûn oukhì étoi haplêi diegései è dia miméseos gignoménei è di
amphotéron peraínousin?
24 Filosofia Antiga

tornando visível a seu interlocutor as três possibilidades da diégesis: a


simples, a mimética e a mista.
Nessa passagem, Sócrates tanto mimetiza quanto “reescreve” a poesia
de Homero56, mostrando a Adimanto como se faz uma “narrativa
mista” e uma “narrativa simples” e que a grande diferença entre elas
está no modo como cada uma afeta a diánoia do ouvinte: na nar-
rativa mimética o “narrador” torna-se semelhante a alguém na voz
(phoné) e na figura (skhéma) movimentando a diánoia para vários
lados; na narrativa simples, como o “narrador” nunca se oculta, a di-
ánoia não é afetada pelo movimento da mímesis. E, clarificando mais
seu argumento, Sócrates classificará os gêneros do lógos a partir dessa
definição: o épico, quando a diégesis é mista; o trágico e o cômico,
quando ela é mimética, e, o ditirambo, quando ela é simples. 57
Ora, se compreendermos esse novo argumento à luz do axioma fun-
dador da “pólis lógoi”58, veremos que não é próprio à natureza dos
homens imitar muitas coisas ou fazer aquilo que é reproduzido pela
imitação, logo, os guardiões como “demiurgos da eleuthería da cida-
de”, se imitarem algo, que essa imitação seja imitação daquilo que
é próprio ao guardião, a saber, a andreía, a sophrosýne, a eleuthería
e tudo o que for com elas assemelhadas, pois, a imitação que se faz
desde a infância e se prolonga pela vida, torna-se hábito e natureza,
atingindo o corpo, a voz e a diánoia.”59 E será, pois, nesse sentido que
Sócrates falará de uma maneira de narrar que é própria do métrios
anér , e na qual deve-se utilizar “muita narrativa simples” e “pouca
narrativa mimética”60.
Assim, podemos concluir que a discussão acerca da léxis deslocan-
do a paideía do âmbito estrito do lógos pseûdos61, para o domínio da

56 Cf. Rep., 393d-394b.


57 Cf. Rep., 392e-393d.
58 Rep., 394d; 395b.
59 Rep., 395b-c.
60 Rep., 396e.
61 Isto é, do âmbito do que se deve dizer acerca dos deuses, do Hades e dos heróis.
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 25

temporalidade que a diégesis acarreta ao estabelecer os estilos que


nos permitem narrar acontecimentos passados, presentes e futuros,
permitirá a Sócrates a introdução dos assuntos humanos através do
estudo da beleza, seja na “música” que acompanha os poetas, seja na
ginástica na produção dos belos corpos que deverão ser um dos frutos
da educação pela mousiké . De tal modo que, ao concluir a leitura
do manuscrito em maiúscula, estando a dikaiosýne vista e compreen-
dida como “a areté dos homens” − e definida como “a posse do que
é familiar a cada um e a execução do lhe é próprio”62 −, possamos
passar à leitura do manuscrito em minúscula. Concluída essa leitura,
e, confirmada a homología de forma e conteúdo entre os dois manus-
critos, deveríamos, então, passar às formas corrompidas da politeía,
não fosse a exigência de Adimanto de que Sócrates dê conta de uma
parte do todo da discussão63: a narrativa do filósofo governante, a
possibilidade da “cidade justa”, ou seja, o nível do “lógos alethés”.
Então, se tudo o que os poetas e prosadores (poietaì kaì logopoioí)
disseram acerca dos homens não passa de grandes asneiras − que mui-
tos homens são felizes apesar de injustos; que o justo é infeliz; que a
dikaiosýne é um allótrion agathón; que a injustiça é vantajosa se não
for visível etc...64 − e, se é preciso “elogiar a dikaiosýne” como um bem
em si e por suas conseqüências, de tal modo que,

...quem encomiar a justiça falará verdade, e quem encomiar


a injustiça mentirá65

só resta, então, ao Sócrates platônico a possibilidade de constituir um


novo gênero do lógos, capaz de compor a narrativa da orthè politeía e,

62 Rep., 433e12-434a-1: “Kaì taútei ára pei he toû oikeíou te kaì heautoû héxis te kaì prâxis
dikaiosýne àn homologoîto.” A definição da dikaiosýne no livro IV coloca problemas que não
discutimos aqui, mas, cabe observar, entretanto, que a definição proposta por Sócrates com-
porta uma compreensão mais larga do axioma fundante da “polis lógoi”: às noções de “érgon” e
“práttein” , é preciso acrescentar a de “oikeîon”, que traduzimos por “familiar”.
63 Rep., 449c2-3: “Aporraithymeîn hemîn dokeîs, éphe, kaì eîdos hólon ou tò elákhiston ekkléptein
toû lógou hína mè diéltheis [...].”
64 Rep., 392 a-b.
65 Rep., 589b-c.
26 Filosofia Antiga

modelando como um politeiôn zográphos, a “simplicidade” necessária


à conformação da “pólis boa e bela”66, agudizar os olhos e os ouvidos
de seus interlocutores para a visão e a escuta desse lógos filosófico.
Se todas as virtudes tiram sua utilidade da idéia de bem, como é dito em
504 d-e, e se afinal a “arte de narrar” comporta a purificação de uma
multiplicidade de tékhnai produtoras de imagens – a poesia, a pintura,
a escultura, a sofística –, a idéia de bem, para ser “conhecida”, não supõe
uma narrativa? Compor uma “pólis lógoi” não é já começar a compor
a narrativa possível acerca do bem em si (autoû toû agathoû), ingenua-
mente postergarda por Gláucon para uma outra ocasião?67

Referências

Textos Antigos
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DOVER, K. Plato: Symposium. Cambridge: Cambridge University Press,
1980.

66 Cf. Rep., 449a: “Agathèn mèn toínyn ten toiaúten pólin te kaì politeían kaì orthèn kalô, [...].”
67 Cf. Rep., 506a- 507a.
A arte de narrar ou as relações perigosas entre a Philosophía e a Tékhne 27

JOWETT, B. & CAMPBELL, L. Plato’s Republic. Oxford: Oxford University


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28 Filosofia Antiga

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29

Sócrates e as leis: democracia e metafísica

Celso Martins Azar Filho


UNESA e IES/RJ

O injusto é mais infeliz que o injustiçado.


Demócrito: Diels/Kranz, frag. 45

1. Hoje há o que se poderia chamar de consenso entre a grande


maioria dos especialistas em tomar a obra platônica como a mais
importante depositária da doutrina socrática. Tal concordância geral
não elide, porém, as dificuldades correlatas de se saber até onde os
escritos de Platão representam de maneira fiel os ensinamentos de seu
mestre, e até que ponto as outras fontes merecem crédito para esten-
der ou mesmo corrigir suas informações1. Mas só quando se junta a
este dilema fundamental as complicações básicas inerentes à forma,
além de oral, dialogal da filosofia socrática, é que se torna evidente a
verdadeira envergadura do problema imenso – quedando necessaria-
mente sempre em aberto – de sua reconstrução.
Sócrates era um professor – mesmo se certamente de um tipo todo
especial –, e é somente recuperando seus ensinamentos segundo a sua
coerência, não apenas lógica, porém pedagógica, que poderemos che-
gar a pretender separá-lo das vozes de seus alunos. Utilizar o critério
da coerência pedagógica significa, neste caso, trilhar o único cami-
nho possível para perceber a possível coerência filosófica. Pois, em
Sócrates, a intenção pedagógica faz coincidir vida e filosofia, estando
ligada, por um lado, a uma disposição de busca e questionamento
característica do pesquisador, por outro, à missão que ele acreditava

1 E aqui a discordância sempre foi bastante grande entre os especialistas, já que (embora as
outras fontes antigas tomem freqüentemente a obra platônica como fonte primária) Platão
também incorre em anacronismos, sua preeminência como fonte advindo de seu talento filosó-
fico e estético. Ademais, a historicidade de qualquer literatura socrática deve ser sempre posta
entre parênteses: cf. Kahn 1998: 34-35; Parker 1996:45; Magalhães-Vilhena 1984: 481-486;
Vidal-Naquet 1996: 121-137.
30 Filosofia Antiga

divina de ensinar filosofia: esta correlação entre ensino, pesquisa, de-


voção e dúvida, tornando seu pensamento algo sempre a ser realizado,
o constitui como o enigma que ele era já para seus contemporâneos
– e talvez para si mesmo.
Se nada escreveu, foi porque não encontrou no texto fixado pela es-
crita a forma mais eficiente e fecunda para passar seus ensinamentos
– provavelmente por achar, como parecem confirmar diversos tex-
tos2, que o discurso só teria força no presente: somente se estivesse
vivo no diálogo constituir-se-ia em verdadeira filosofia. Assim, atra-
vés da atenção à forma dialogal do pensamento de Sócrates – pelo
estudo do vínculo intrínseco de seu método com uma filosofia que se
queria sobretudo prática – equacionaremos melhor o problema por
este posto.

2. Estas preliminares plenamente se justificam no caso do presente


estudo, já que seremos levados a tangenciar o problema do verda-
deiro aspecto do silênico Sócrates, por força da investigação de seu
conceito de lei. A questão básica do fundamento ou da justificação
das normas legais conduz naturalmente à consideração de seu supor-
te metafísico. Ora, reside precisamente na atitude relativa ao saber
que se convencionou chamar metafísico, a distinção entre Sócrates e
Platão mais freqüentemente assinalada pelos estudiosos, servindo as
noções concernentes ao realismo platônico das idéias como critérios
de sua aproximação e distanciamento da meditação socrática. E se já
houve quem definisse a filosofia de Sócrates desde sua recusa de toda
sustentação transcendente para o saber humano, creio perceber, não
obstante, correspondendo à teorização metafísica explícita do funda-
dor da Academia, uma outra metafísica, própria ao pensamento do
ironista, implícita, pois aí permanece como uma espécie de centro
e fonte de sustentação exterior ou oculto – o qual, paradoxalmente,

2 A relação entre discurso e ação é especialmente realçada nos textos que retratam as circuns-
tâncias da condenação, julgamento e morte de Sócrates; e seria fácil acumular aqui referências
a respeito. Quero apenas ressaltar uma passagem tirada das primeiras linhas da Apologia (17a-
18a6) e outra das Memorabilia de Xenofonte (IV, 4, 10-11) que concordam no afirmar a
implicação, crucial no contexto, entre a justiça dos atos e a das palavras.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 31

constitui também seu objeto de pesquisa – ponto de fuga de sua pers-


pectiva filosófica.

3. A questão que quero examinar nestas páginas pode ser, inicialmen-


te, posta em seu enunciado mais simples: de onde vem o impulso, a
motivação, para que Sócrates obedeça de forma tão estrita às leis de
Atenas, respondendo com sua cabeça por crimes que ele sabe que
não praticou? Ou, como é costume se interrogar: por que, quando se
apresentou a oportunidade, ele não fugiu da prisão?
Parece que a via mais óbvia e segura para tentar responder a esta
interrogação – a qual sempre esteve bem presente em nossa tradi-
ção cultural, porque vem atormentando sua consciência desde então
– está em estudar o conceito de lei socrático através do exame da
atitude do mestre ateniense frente à ordem jurídica estabelecida.

4. Embora o desacordo seja a regra geral com relação à possibilidade


de se discernir exatamente quais diálogos pertenceriam à fase socráti-
ca do pensamento platônico, são os primeiros (identificados segundo
critérios literários e estilísticos sobre os quais também não há concor-
dância) que se tem como constituindo a fonte mais pura, ao menos
em um sentido geral, das idéias genuínas de Sócrates. E mais que
todos a Apologia e, após, o Críton, têm sido citados como dignos
de alguma confiança histórica: o primeiro, por pertencer ao gênero
tradicional específico de discurso jurídico (escrito em forma propria-
mente forense: Kahn 1998: 88; Burnyeat 1997: 134; Brickhouse e
Smith 1985: 33, n. 51), possui a intenção inerente de reproduzir
pelo menos o espírito da célebre defesa; o segundo, por depender de
um relato fiel dos acontecimentos, dado seu propósito de convenci-
mento sobre os reais motivos da atitude de Sócrates diante da morte3.
Escolhendo-os como fonte principal deste estudo pretendo também

3 Ambos os diálogos tendo sido compostos apenas alguns anos após os eventos retratados,
como normalmente se acredita – e, portanto, tendo tido leitores muitas vezes contemporâ-
neos do julgamento. C. H. Kahn (1998: 46-47), por exemplo, acha razoável acreditar que a
Apologia e o Críton foram os primeiros diálogos escritos por Platão. Note-se ainda que existem
referências no Críton (45b e 52c) sobre o que Sócrates disse no julgamento que correspondem
efetivamente à passagens da Apologia.
32 Filosofia Antiga

estar ao abrigo pelo menos da grande maioria das controvérsias rela-


tivas ao Sócrates histórico.
Destes dois textos, se a Apologia provê um relato mais amplo e acura-
do das idéias de seu personagem central, é o Críton que mais retém a
atenção do leitor interessado em analisar as concepções socráticas de
lei, direito e justiça. Muito embora outros diálogos também retratem
momentos cruciais, tanto da vida, quanto da visão ético-jurídica de
seu protagonista, encontram-se reunidas de forma orgânica no relato
da atitude de Sócrates na prisão as proposições que, além de terem
sido historicamente consideradas como as decisivas pela trama das
interpretações e comentários sacramentais, tocam essencialmente ao
problema da conceituação da lei. Não apenas pelo fato de que aqui
as leis elas mesmas tomam a palavra, mas talvez porque, mais que
as palavras, tenha impressionado aos pósteros a imagem do sereno
sábio na prisão, condenado à morte justamente por aqueles a quem
tentou ensinar algo. Completado e sublimado por sua recusa em fu-
gir, tal quadro – emoldurado pelos outros panegíricos compostos por
seus alunos – tornar-se-á de tal forma poderoso que o destino do
Ocidente balançará em suas linhas.

5. Em primeiro lugar, deve-se notar o caráter ficcional ou literário do


Críton. Não para diferenciá-lo da “história”, ou para depreciá-lo por
sua distância dos “fatos”, mas, ao contrário, para realçar sua disposi-
ção como um misto de veículo de idéias e aparato estético-pedagógico
que facilita a sua apreensão. Se isto não dispensa a história da filosofia
de buscar os fatos, deve-se lembrar que estes só surgem como tais
no horizonte de um esquema teórico-ideológico qualquer. Como já
disse um grande pensador (para quem, aliás, Sócrates constituía um
ponto de virada na história do ocidente), os grandes pensamentos
são os grandes acontecimentos. Quando a arte platônica retratou a
realidade histórica, simplificando e condensando em uma única cena
filosófica ideal as várias razões contrárias sobre a conduta socrática,
tornou visível um novo mundo de significações e sentidos éticos.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 33

Quando Sócrates, no Críton, reage aos fatos, ele o faz como alguém
que enfrenta a realidade de modo extremamente prático (ainda que
ao leitor ingênuo pudesse parecer que se trata de um idealista, como
se diz vulgarmente). Significa dizer que, como veremos, ele se ocupa
com os problemas de seu julgamento, condenação, prisão e finalmen-
te execução, como indivíduo determinado, com certa história de vida,
interesses pessoais, colocação na sociedade ateniense, família, amigos,
etc, e pesa as conseqüências de seus atos levando em conta todos
estes fatores. As respostas que encontra e as atitudes então adotadas
têm por característica geral a preocupação com o que seria o melhor
para todos. Logo, se suas decisões são tomadas visando uma situa-
ção particular, os critérios que as sustentam pretendem ser universais.
Tais critérios são adotados a partir de teses filosóficas que – antes de
qualquer outro personagem histórico reconstruído a partir desta ou
daquela visão suportada por tal ou tal texto antigo4 – merecem o
nome de Sócrates. Por isso o debate acerca da autenticidade histórica
deste ou daquele ‘Sócrates’ só parece hoje poder ser decidido, se é que
o pode ser, desde a pesquisa da verdadeira face da doutrina socrática
que utilize como medida principal a sua coerência não apenas dis-
cursiva, mas vital. E este é um fato que sobressai em toda ficção ou
não-ficção já escrita sobre aquele pensador. Até porque foi sobretudo
esta interação entre teoria e prática in extremis que tornou a filosofia
socrática um ponto de inflexão decisivo para o pensamento ético,
político e jurídico ocidentais. Note-se que não se trata apenas de um
paralelismo entre teoria e prática, porém de examinar um estilo de
vida do qual as falas são atualizações como qualquer outro ato5.
6. A questão do diálogo – ‘é permitido ser injusto?’ –, posta em re-
lação com a ordem jurídica, constitui o centro do Críton: lá, esta
interrogação fundamental será respondida pelo viés da relação com a
lei. Note-se o seu enunciado (49a): Admitimos que em nenhum caso se

4 Ainda que tal reconstrução fosse possível, quando o mais acertado hoje parece ser concordar
com a impossibilidade de fazê-lo, ao menos de forma segura: cf. Kahn 1998: 72.
5 O que Platão marca já na cena de abertura do Críton, ao mostrar o sono tranqüilo de Sócrates
na prisão, mesmo se acorrentado já há um mês (Memorabilia IV, 8, 2; White 2000: 156), por
volta dos setenta anos de idade.
34 Filosofia Antiga

deve ser injusto voluntariamente, ou que, em alguns casos sim, em outros


não? O advérbio ‘voluntariamente’ faz aqui toda a diferença quando
pensamos nos termos da filosofia moral socrática, tal como esta nos
foi transmitida por Xenofonte ou Platão. Verdadeira armadilha lógica
que pertence ao cerne do chamado paradoxo socrático, esta questão
será indiretamente respondida neste texto através do recurso direto à
situação real vivenciada por Sócrates6.
A pergunta pela justiça representa uma espécie de quebra-cabeças éti-
co, jurídico, político, lógico e epistemológico, porquanto se questiona
aí o próprio critério de correção em geral, ou seja, a base de qualquer
critério. A justiça platônica foi amiúde descrita segundo as noções
de medida e harmonia, cruciais, como se sabe, para a filosofia grega,
como para o direito, a arte, a política, a medicina, a física etc. A difi-
culdade está em materializar tais noções diante de situações concretas
determinadas – e aqui o ângulo negativo adotado facilita, por con-
traste, a visão do correto no caso em pauta. O mal é o que causa mal a
seja quem for: o que prejudica de maneira evidente a coletividade, os
amigos, a família de Sócrates e a ele próprio – isto deve ser evitado7.
Não apenas por isso, porém, o Críton pergunta pela injustiça, antes
que pela justiça. Mas porque é mais fácil reconhecer aqui – onde se
afirma primordial o ponto de vista legal – o mal do que o bem. A
perspectiva negativa está relacionada com a conceituação do justo
através da relação com a ordem jurídica, visto que principalmente é
tarefa da lei prevenir e evitar o mal de forma pragmática, e deste modo
preservar o bem de todos. Porém, partindo daqui, freqüentemente se
sentiram os leitores autorizados a reduzir a justiça à lei, confundindo-
as de um ponto de vista meramente utilitário: tanto o texto, quanto

6 A tese aqui é apenas o negativo do famoso paradoxo cuja primeira formulação clara está
provavelmente no Hípias Menor. Com relação a este ponto, e ao conceito de justiça em geral,
o Górgias e a República respondem ao Críton e a Apologia.
7 Não cabe aventar que o mal para Sócrates poderia ser o bem para um outro qualquer, ou
vice-versa: o bem (ou a justiça) não causa mal a quem quer que seja (Críton 49a-d; República
335c-d). Richard Kraut (1983: 27-28) nota que adikein, kakourgein e kakos tinas poiein são
expressões permutáveis no Críton. E mesmo do ponto de vista lexical, o sentido geral de preju-
dicar ou causar dano faz parte dos significados de adikein (Bailly 1995).
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 35

a concepção geralmente aceita do pensamento socrático, podem ser


forçados a convir a tal interpretação. E é conseqüentemente uma
espécie de juspositivismo avant-la-lettre que parte importante da tra-
dição acostumou-se a atribuir a Sócrates, vendo neste um pensador
autoritário preocupado tão somente com a manutenção da ordem
estabelecida. Tome-se o trecho das Memorabilia (IV, 4, 12) em que
Xenofonte põe na boca de Sócrates – coincidentemente a partir tam-
bém da determinação de evitar a injustiça como marca das ações e dos
homens justos – a identificação do justo ao legal: colocando em linha
este e outros textos (como, por exemplo, a sua afirmação no final do
Críton de não ter sido condenado injustamente pelas leis, mas pelos
homens: 54c), chega-se a montar facilmente um quadro em que se
entende sua atitude diante da morte como uma reverência final a leis
que este acreditaria perfeitas. Trata-se, no entanto, de um engano tão
perigoso que pode, além de obscurecer a compreensão da filosofia
socrática, desconsiderando algo de determinante em sua base, contri-
buir para falsear toda história do pensamento antigo sobre o direito
e, por extensão, os fundamentos ideológicos do conceito originário
de democracia. Para dirimir tal erro é preciso voltar um pouco atrás
no diálogo, antes daquele questionamento sobre a (in)justiça, e con-
siderar, em primeiro lugar, o enquadramento metodológico no qual
a sua discussão terá lugar.

7. Antes de se colocar diante de si mesmo para avaliar seus atos e suas


conseqüências, Sócrates vai retomar certas idéias suas que funcio-
narão como princípios reguladores da discussão: primeiro, que não
necessariamente a ‘maioria’ detém o monopólio da verdade; segundo,
que o essencial não é apenas viver, mas viver bem; terceiro, que o
belo, o bem e o justo são o mesmo8.
O último ponto constitui algo de essencial para o pensamento socráti-
co-platônico. Os critérios éticos, lógicos, estéticos, jurídicos, políticos

8 Parece acertado acreditar que, se Platão põe tais idéias como algo pacífico, se parte delas como
pertencendo evidentemente ao pensamento socrático, temos aí um signo confiável (até certo
ponto, ao menos) de sua historicidade.
36 Filosofia Antiga

etc, convergem ontologicamente na figura do deus ou no Bem, o que


explica e garante a convergência do bem e do útil na justiça9.
Com relação ao segundo princípio, o importante é notar como, com
sua conduta diante da morte, Sócrates talvez tenha dado sua mais elo-
qüente resposta a respeito do que seja viver bem. A multidão não sabe
o que faz (44d), diz ele; é capaz de matar (48a; 48c), mas não de fazer
de um homem sensato, um insensato, nem de fazer-lhe, portanto,
realmente mal (44d), se ele escolhe viver bem (48b). Expõe assim o
fundamento último de todas as suas ações e palavras: não há mal nes-
ta vida, nem na outra, para o homem de bem (Apologia 41d), ou seja,
para aquele que age corretamente – conseqüência e causa diretas do
pensar correto. E daí a necessidade de se tentar saber em cada situa-
ção o que é o bem – conhecimento que, embora reconheça reservado
aos deuses, constitui o principal objeto de sua doutrina10.
Mas dos três princípios é o primeiro que deve merecer mais atenção
de nossa parte: a partir da crítica das exortações iniciais de Críton para
que seu amigo fuja da prisão, vai se afirmar que o número das pes-
soas que acreditam em algo não é prova de sua correção (orthótetos:
46b2). Como julgar, então, o que é correto? Antes de tudo, o exame
não terá por objetivo o dever em um sentido moderno, deontológico
digamos. Porém avaliar ‘o que se deve fazer’ (praktéon: 46b4)11. Esta
‘correção’ ressoa com a justiça, se a entendermos simultaneamente,
tanto como retidão moral, quanto como conveniência prática: justi-
ça, mas também justeza. Ou seja: não é uma hipóstase do ‘Dever’ que
orienta a busca daquela correção – ao contrário, é a própria busca do

9 Como notou Maurice Croiset (1985, Belles Lettres, tomo I, p. 223, nota 2) em sua tradução
do Críton, a verdade parece ser identificada ao deus, o único que conhece a justiça (48a7); idéia
que parece estar presente também na alusão ao ‘único’ que sabe (47d2).
10 Apologia 20d-23c. Cf. Klaus Döring (1992: 6-9). A passagem citada do Críton (44d) parece
querer dizer que o único mal verdadeiro seria tornar-se insensato (áphrona); isto mostra que,
apesar da posse completa da sabedoria ser reservada apenas aos deuses, é possível dela ao menos
se aproximar, pois existem homens sensatos de posse daquela sabedoria humana referida por
Sócrates na citada passagem da Apologia – o que o Críton confirma (47a2-48c6).
11 Logo depois (47b9) este adjetivo verbal de prátto é empregado com um sentido simples-
mente prático para se referir a maneira correta de fazer ginástica e comer ou beber. Este mesmo
termo é utilizado no próprio subtítulo do diálogo.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 37

correto (com relação a mim mesmo e frente ao outro, nas circunstân-


cias dadas) a me guiar na escolha do que parece ser aquilo que devo
fazer. Claro: não se trata de uma moral casuística, mas do princípio
de se deixar persuadir apenas pela razão que aparece como melhor
segundo o critério ele mesmo racional do exame e confronto rigoroso
das possibilidades. Pois não é de hoje, mas sempre somente me deixo
persuadir pela razão [lógos] que me parece a melhor ao ser examinada
[logizoménoi] (46b3-5). Este exame das razões consiste assim em um
raciocinar acerca de quais são os melhores argumentos. E encontrada
assim a razão mais justa, não será apenas a fortuna ou o acaso dos
acontecimentos que o fará mudar de idéia (46b8). Às opiniões da
multidão, não se deve dar crédito apenas porque estão em voga, diz
Sócrates; porém, sim, às boas opiniões, aquelas dos homens sensa-
tos (phronimon: 47a9; epieikéstatoi: 44c7) – e mesmo que seja um
só contra todos os outros juntos (47d). A repetição constante desta
idéia foi muito provavelmente uma das causas da morte de Sócrates,
gerando a impressão entre os atenienses de uma atitude antidemo-
crática. Entretanto – postas as premissas do exame a ser realizado –,
Sócrates marca o começo da discussão dizendo: Logo, é a partir disto
sobre o qual se concorda que deve ser examinado se é justo que eu tente
sair daqui sem a permissão dos Atenienses, ou não (48bc). A questão é:
se a multidão nada sabe (como foi mais do que suficientemente dito
até este ponto do texto), porque se preocupar com o que pensam os
Atenienses?12 Esta contradição (seja ou não aparente) deve ser subli-
nhada: é tentando resolvê-la que examinaremos a relação entre os
conceitos socráticos de justiça e de lei.

8. O começo da resposta está na insistência com que Sócrates logo


a seguir novamente demanda a concordância de Críton sobre cada
ponto a ser ou não admitido na seqüência: a verdade só surge no
horizonte do diálogo.

12 E esta não é uma expressão isolada ou fortuita: logo após, Sócrates mostra-se preocupado
em não ir ‘contra a vontade dos atenienses’ (48e3), bem como em não sair da prisão ‘sem o
assentimento da cidade’ (49e9-50a).
38 Filosofia Antiga

A dialética platônica é o método científico que eleva ao conhecimen-


to das idéias através da reminiscência, purificação do pensamento que
nos permite encontrar suas estruturas fundamentais, reconhecendo
nestas os próprios alicerces do cosmos: ela pode pretender orientar-
se por um conhecimento absoluto da realidade porque na verdade
dele parte. No âmbito epistemológico do método socrático, todavia,
a esmagadora maioria das diversas conclusões de cada debate só vale
episodicamente. Porque, aqui, é a própria discussão em si mesma o
importante, já que nela se realiza o fortalecimento e o aperfeiçoamen-
to da razão e da alma (Críton 47e).
E esta, creio, é a solução de uma polêmica que freqüentemente as-
sombrou os especialistas: se nada Sócrates sabe, como pode ser um
professor? Se não é possível chegar a um conhecimento definitivo
sobre a justiça, a virtude, o bem etc., por que se preocupar em discuti-
las? Porque muito embora não saibamos enfim o que é a amizade, a
verdade, o bem, a coragem, etc, passaremos nossa vida tentando, por
exemplo, reconhecer quem é nosso amigo ou não – questão essencial
para a vida de todos nós –, e ainda se morrendo sem saber com certeza,
é através deste exame que teremos nos tornado ao menos mais capacita-
dos para tanto. Da mesma forma, como Sócrates (Apologia 40a e seq.),
nada sabemos de certo acerca dos acontecimentos post-mortem – mas
já respondemos a este enigma mais que todos momentoso, mesmo se
apenas de forma inconsciente, e estamos vivendo de acordo com nossa
solução, pois orientamos necessariamente nossa vida a partir do que
pensamos da morte. Igualmente, se nunca soubermos o que é realmen-
te a justiça, isto não nos dispensará de nos confrontarmos, talvez todos
os dias, com o problema de decidir o que é justo. E mesmo que muito
freqüentemente nossa escolha não possa nem sequer ser feita entre o
justo e o injusto, mas apenas entre o mais e o menos injusto, é no exa-
me do sentido universal da justiça e da injustiça que aprimoraremos,
uns com a ajuda dos outros, o nosso juízo acerca do justo aqui e agora.
Por isso ‘a vida sem exame é indigna do homem’ (Apologia 38a): não é a
posse do conhecimento, mas sua busca, que define o homem; o qual
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 39

somente através da consciência da inevitabilidade e responsabilidade


desta assunção justifica-se como ser.

9. Em Atenas, as leis são percebidas como a expressão do senso de jus-


tiça coletivo da cidade: o demos governa e julga em conjunto (Gernet
2001:137-138). Aquiescer às leis, para Sócrates, não é considerá-las
absolutamente justas13, mas pôr em prática, de um ponto de vista éti-
co e político, o seu mesmo método filosófico do diálogo como meio
de aproximação e esclarecimento da verdade e do dever14.
Contudo, se as pessoas pouco ou nada sabem de certo do justo ou do
injusto, do belo ou do feio, do bem ou do mal, qual é a garantia de que
se aperfeiçoarão, e as leis, pelo diálogo? Pois, não possuindo referências
seguras para se orientarem na direção do progresso – padrões fixados
ou paradigmas universalmente dados dos quais se pudessem julgar pelo
distanciamento ou aproximação – não dispõem, portanto, de critérios
indubitáveis para medir seu aprimoramento. O exame, porém, que
Sócrates conduzirá a seguir não é fortuito, realizado ao acaso como o
da multidão insensata, ou inconseqüente, como o de um cálculo que
tivesse por fim apenas o interesse pessoal, mas possui um alvo bem
claro: a justiça. E na sua conceituação socrática prolonga-se o muito
antigo (e presente em diversas culturas arcaicas) significado do justo
como medida correta da vida humana, a qual deve espelhar, individual
e coletivamente, o próprio funcionamento do cosmos.

13 Por exemplo, dando voz às leis no Críton, Sócrates assinala que estas podem errar (51e); e,
na Apologia (37a-b), critica o ordenamento jurídico ao lamentar que os processos capitais em
Atenas terminem em um dia apenas (cf. Harrison 1998: v. 2, 161).
14 Apologia 21c: Sócrates começa sua busca da sabedoria justamente dialogando (dialegóme-
nos: 21c5) com um político – e descobrindo a ignorância deste, garante sua inimizade. Nesta
mesma passagem, é interessante a maneira como o saber dos artesãos é valorizado acima daque-
le dos políticos e dos poetas (21b-22e): atitude socrática que se repete em outros dos primeiros
diálogos de Platão (no Críton, os primeiros modelos do conhecimento são médicos e pedo-
tribas: 47b e seq.), e inclusive na famosa ‘analogia artesanal’ como modelo do conhecimento
filosófico (Guthrie 1992: 149; Snell 1992: 242-245; Brickhouse e Smith 2002: 198-199).
Filho de um artesão, Sócrates apresenta para si mesmo uma linhagem “artesanal” no Alcibíades
(121a): Dédalo e Hefestos.
40 Filosofia Antiga

10. Neste ponto retomo a narrativa da investigação da ação justa no


Críton, suspensa atrás. Naquele momento, Sócrates, para decidir o
que deveria fazer, começara por se perguntar se fugir da prisão seria
ou não justo. Toma, então, uma via negativa, como era de seu agrado.
Uma vez que a injustiça causa mal tanto a si mesmo, (49b) como aos
outros (49c), se sua fuga da prisão acarretar dano à alguém, sua ação
é injusta (50a)15. A resposta afirmativa – a qual, já sabemos, chegará
– vai resultar em uma defesa da lei como medida positivada da jus-
tiça. Mas, muito ao contrário de qualquer positivismo, de qualquer
espécie de justificação da lei apenas por si mesma, manifesta-se aí
sub-repticiamente a noção de uma justiça universal, a qual se tor-
na perceptível pela sua transgressão. Ecoa nas entrelinhas, na costura
da trama conceitual em jogo, uma noção muito antiga que liga a
filosofia moral socrática ao direito e à religião gregos por meio da
idéia de uma ordem ou de um equilíbrio sociocósmico, cuja proteção
constitui a missão principal de deuses e homens. O ordenamento
jurídico representa apenas a face palpável da justiça, como aparato
de poder político votado a sua salvaguarda, o qual se materializa
quando é negado, através da punição ao ato transgressor. Notemos
o termo que comanda o campo lexical dos vocábulos significando
injustiça preferencialmente utilizados por Sócrates – adikein. Muito
embora este represente uma concepção mais moderna e abstrata do
delito, preserva – mesmo em meio ao racionalismo e relativismo da
nova noção democrática, citadina, de injustiça – um sentido religio-
so, característico de termos mais antigos (Gernet 2001: 52, 58-59,
82). O texto da acusação formal a Sócrates, tal como conservado por
Diógenes de Laércio, Xenofonte ou pela própria Apologia, imputa-

15 O princípio ‘não fazer o mal / não cometer injustiça’ é absoluto: nunca se justifica frente a
ele nenhuma espécie de exceção (Críton 49a-50a) – e isto é repetido até a exaustão (implicita-
mente inclusive) ao longo deste e outros diálogos. Não se deve nem mesmo retribuir a injustiça
com a injustiça (Críton 49b; República 335e) O que não significa, contudo, que o mal não deva
ser combatido. O herói de guerra ateniense não está recomendando que se dê a outra face. Pois
a punição justa é um bem. A concepção de conhecimento aqui em causa não admite um uso
operacional do mal, usar o mal para o bem, como se diz de fins que justificam os meios: o bem
não faz mal e vice-versa (República 335d). E não se trata aí de uma questão meramente lógica,
porém ontológica: para Sócrates, os deuses são bons e favorecem o homem de bem.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 41

va a este o ser injusto utilizando precisamente este termo – Adikei


Sokrates ...(Diógenes Laércio II, 40; Apologia 24c; Memorabilia I, 1,
1). Ainda que tal ambivalência de sentido subsista apenas de forma
implícita ou inconsciente, gera, no interior do conceito de (in)justiça,
uma tensão entre as suas dimensões objetiva e subjetiva – e a linha em
que se separam e se tocam é precisamente a lei.

11. O texto caminha para a famosíssima personificação (prosopopéia)


das leis de Atenas e o subseqüente diálogo do condenado com estas (ou
consigo mesmo). Este debate imaginário foi freqüentemente lido como
se servisse somente para tornar mais uma vez clara a obediência, a resig-
nação e mesmo o apego deste à ordem jurídica da cidade, por percebê-la
como a garantia da paz e da segurança dos atenienses e, portanto, do
fortalecimento de Atenas. Porém, as coisas deixam de ser tão simples se
prestarmos atenção a certos textos que negam esta conclusão.
Antes de tudo, não há simples obediência às leis: pelo menos em três
ocasiões Sócrates parece contrariar as leis ou a ordem jurídica insti-
tuída. E tal desobediência relatada e afirmada de maneira incisiva na
Apologia gerou e gera muita controvérsia entre os especialistas que de
muitas formas tentaram resolver a incoerência entre esta e a aparen-
temente incondicional prescrição de obediência às leis que forma o
núcleo argumentativo do Críton16. Creio que esta incoerência pode ser,
senão resolvida, ao menos mitigada, seguindo-se o mesmo caminho
pelo qual tento resolver a aparente contradição já apontada no texto do
Críton entre a recusa das opiniões da multidão e a obediência às leis (as
quais representam, em princípio, o juízo da mesma multidão).
Ora, dois dos casos de desobediência de Sócrates podem ser resolvidos
se explicados justamente por seu apego legalista à ordem democráti-
ca (Apologia 32b-e). Um refere-se à ocasião em que Sócrates opôs-se

16 Uma bibliografia, aliada a um resumo das diferentes posições sobre a contradição entre o
Críton e a Apologia com relação à obediência ou desobediência civil de Sócrates, pode ser en-
contrada em Cécile Inglessis-Marcellos (1994), de quem, creio, é preciso subscrever a opinião
com relação a esta controvérsia como um todo: “[...] je suis intimement convaincue qu’aucune
solution entièrement satisfaisante et raisonnablement cohèrente ne peut être trouvée en l’état
actuel de notre documentation”.
42 Filosofia Antiga

ao corpo dos cidadãos que queriam julgar os generais da batalha de


Arginusas em bloco – procedimento, porém, segundo este, ilegal17. O
outro é relativo à desobediência às ordens dos Trinta que o enviaram
em busca de Leão de Salamina para o executar: a própria narração
evidencia o desprezo socrático pela ditadura como criminosa e, por-
tanto, injusta e ilegítima18. Em todo caso, ainda que não se aceitasse
a explicação legalista, não caberia imaginar que o protagonista destes
feitos, certamente de grande coragem, quisesse ser justo mesmo se
contra as leis: se fosse esta sua motivação, porque não agiu de acordo
também quando de sua condenação e, declarando-a injusta, não fu-
giu19? Acredito que tenha pensado que, nas duas ocasiões referidas, sua
conduta seria justa se considerada segundo o ponto de vista de uma
ordem jurídica construída de forma democrática e continuamente
submetida à vontade da Assembléia para ser testada e aperfeiçoada
pelo diálogo.
Assim é que se consegue também desatar o nó ainda mais complica-
do do terceiro momento em que Sócrates desafia a cidade e a ordem
por ela estabelecida. Diz ele que, se os juízes atenienses lhe proibis-
sem a investigação e o filosofar20, responderia: “obedecerei antes ao
deus que a vós” (Apologia 29d3-4). Afronta aos cidadãos, à cidade, às

17 Apologia 32b5-6; Memorabilia I, 1, 18. Inglessis-Marcellos (1994: 95), examinando o caso


à luz do que se sabe hoje sobre o funcionamento da ordem jurídica ateniense, mostra que a
afirmação de Sócrates não faz muito sentido relativamente aos seu papel de prytane na ocasião.
De todo modo, o fato é que Sócrates acreditava que o procedimento era ilegal; e, segundo
Xenofonte (Helênicas I, 7, 35), seus concidadãos acabarão por concordar com ele.
18 Contudo, é claro que, de um ponto de vista legalista absoluto, os Trinta representam a or-
dem estabelecida segundo a vontade dos cidadãos (Marcellos 1994: 96). Porém, o que tornou
os Trinta injustos foram seus crimes, dos quais Sócrates os acusa (Apologia 32c). Eles romperam
o diálogo: apelaram para a violência e não para a discussão na Assembléia (Constituição de
Atenas XXXV-XXXVII) e é a persuasão que faz as leis (Memorabilia I, 2, 45) e não por acaso
a chamada doutrina ‘persuadir ou obedecer’ relativa à atitude do cidadão diante das leis é tão
importante no Críton (51b). Note-se ainda que Sócrates diz na Apologia que não se importa
com a morte, mas que não quer realizar nada de injusto ou ímpio (32d4): esta associação entre
injustiça e impiedade é obviamente sintomática.
19 Epicteto (Giannantoni 1990, v. 1: 199-200 – Dissert. IV 1, 167-169), por exemplo, ima-
ginou um ótimo motivo para tanto: fugir precisamente para lutar contra a injustiça reinante
em Atenas.
20 Segundo Xenofonte (Memorabilia I, 2, 31; Diógenes Laércio II, 19), uma lei semelhante
teria sido realmente promulgada pelos Trinta para atingir Sócrates.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 43

leis? Transgressão da ordem democrática, do acordo entre os cida-


dãos de acatar as decisões da maioria? Não para Sócrates. Para ele, a
cidadania, a democracia e a ordem jurídica atenienses são, de certa
forma, sustentadas pelo diálogo. Porque é por seu intermédio que
podemos ter a esperança de ao menos nos aproximarmos da verdade
– da justiça, do belo e do bem. Se o debate democrático e o diálogo
socrático não devem ser confundidos21 (como também não se identi-
ficam a justiça ou o conhecimento verdadeiro necessariamente com
o juízo da multidão), os princípios e valores que os regem são os
mesmos – ou deveriam, pois precisam ser: e a educação dispensada
por Sócrates trata precisamente de aproximá-los, através do esclareci-
mento individual e pessoal dos cidadãos. O diálogo fornece ao debate
na Assembléia sua contrapartida filosófica: um método experimental
de fundamentação ética, cuja consistência e utilidade não estão sub-
metidas única e simplesmente ao voto popular. Da mesma forma que
o debate democrático não poderia ser proibido sem que a própria
democracia deixasse de ter sentido, a atividade de Sócrates supõe e
exige a democracia – e vice-versa.
Além disso, aquela “obediência ao deus” marca não só o princípio
(Apologia 20e e seq.) do filosofar socrático nas ruas de Atenas, mas
também se coaduna com a proverbial aquiescência ao sinal divino
que sempre (desde a infância: 31c8-d3) o guiou na prática do dever
(orthos práxein: 40a7). E se Sócrates assim age, crê fazê-lo no interesse
dos próprios atenienses, por conta do cuidado do deus com estes22.
O apego a ordem jurídica é apenas superficial, pois na verdade é aos
valores fundamentais da democracia e da cidadania – igualdade e
liberdade23 – que se aferra Sócrates: as leis são tão somente o ins-

21 Górgias 474a-b: note-se que aqui, apesar de dizer que não dialoga com os muitos, Sócrates
afirma que todos os homens estão de acordo em julgar que cometer injustiça é pior que sofrê-
la: o diálogo, portanto, manifesta ao indivíduo este conhecimento coletivo da verdade. Cf.
Vidal-Naquet 1996: 127.
22 Apologia 30e-31a. Sócrates liga o interesse dos cidadãos ao do deus em uma ética délfica
(Reeve 2000: 30) que exige dele pessoalmente a prática da filosofia: cf. Vlastos 1991:173-177.
23 Valores fundamentais para a prática da filosofia, tal como ele a entendia – nunca reservando
a capacidade para filosofar a determinado grupo social, e cujos benefícios pretendia estender às
44 Filosofia Antiga

trumento de sua defesa. Em Atenas são as leis que governam. Ora,


também em Esparta, como marca Heródoto (VII, 104). Mas na
primeira, de acordo com as tão citadas palavras de Péricles, ‘tudo
depende não de poucos, mas da maioria’ (Tucídides II, 37). Os ate-
nienses ‘[...] não são escravos de ninguém, nem súditos’ (Ésquilo: Os
Persas 304). Aristóteles, em famoso texto onde lembra que a justiça
política no seu sentido pleno só pode existir entre homens livres e
iguais, diz: ‘É por isso que não permitimos que um homem gover-
ne, e sim a lei, porque um homem pode governar em seu próprio
interesse e tornar-se um tirano’ (Ética a Nicômaco 1134a35-b1). O
importante nisto não são apenas as leis em si mesmas, mas o fato des-
tas constituírem regras estabelecidas democraticamente. E tais regras
podem inclusive servir de limites à vontade da maioria protegendo os
princípios democráticos que as justificam (como no caso dos generais
das Arginusas). Na citação de Aristóteles, o termo traduzido como ‘a
lei’ é ‘tón lógon’ – que significa também razão e discurso. O diálogo
– método de pesquisa racional do bem – garante e caracteriza a liber-
dade e a igualdade dos cidadãos no fazer as leis e aplicá-las – leis cuja
finalidade principal é a defesa destes valores, sendo o meio filosófico
desta defesa, o diálogo.
Como dirão as leis, embora Sócrates elogie as constituições de Creta e
Esparta (52e), continuou em Atenas. O que, ao lado de muitos outros
indícios, manifesta sua preferência pela constituição democrática ate-
niense (Vlastos 1994: 92; Kraut 1984: 177-180). E o mais importante
nesta não é somente o estabelecimento do acordo popular, mas antes
sua construção permanente através da possibilidade do confronto e con-
flito das razões, assegurada pela liberdade e igualdade democráticas24.

mulheres, escravos e estrangeiros (cf. Laches 186b3-5; Górgias 470e8-11, 512b3-d6, 515a4-7;
Menon 72d-73b; Vlastos 1994: 102-104; Kraut 1984: 201). Aliás, o uso do plural no Críton na
personificação das leis atenienses – hoi nómoi – refere-se mais propriamente ao direito (Todd
1995: 18) como sistema legal (e, portanto, também aos princípios, fontes secundárias etc., que
o animam e informam) que apenas às suas disposições positivadas em regras.
24 Até porque ganhar a discussão não significa necessariamente convencer: se o Sócrates de
Xenofonte sempre (ou quase) obtém o assentimento de todos, não é o caso em Platão: cf.
Vlastos 1991: 292, n. 161.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 45

12. O que não deve ser perdido de vista na cena do diálogo de


Sócrates com as leis é precisamente o fato de se tratar de um diálo-
go, e de um diálogo não só com as leis, mas também com tó koinón
tes póleos (Críton 50a8), em busca do melhor para todos, do bem
comum, de um ponto de vista racional. O interlocutor é a cidade,
organismo sócio-político do qual as leis são a expressão espiritual,
assim como sua exteriorização em forma de poder coercitivo, de força
coativa que leva a efeito as decisões da assembléia dos cidadãos: as leis
são a voz, a constituição da personalidade universal da coletividade
e o meio pelo qual se realiza a vontade da comunidade ateniense25: a
esta Sócrates pertence como filho e escravo de suas leis (50e4). Deste
modo os valores democráticos referidos pouco atrás podem parecer
descurados: afinal que liberdade é esta? É a liberdade quando limi-
tada pela igualdade, da mesma forma que esta é definida por aquela.
Aqui, Estado, sociedade e clã, logo, público e privado, confundem-
se de um modo que já não faz parte de nossa democracia. Estamos
longe da concepção moderna dos direitos individuais porque estamos
bem longe, tanto do indivíduo, quanto do Estado, modernos. E a
percepção desta distância é crucial para a compreensão da atitude
de Sócrates de um ponto de vista prático. Tanto quanto não querer
contradizer suas palavras e sua vida (ministrando desta maneira sua
última e mais poderosa lição), importa recusar as conseqüências de
sua fuga, as quais estão relacionadas com sua situação pessoal na so-
ciedade à qual dedicou sua vida e morte. A situação de um exilado
era então particularmente desconfortável, tornando-o não apenas um
estrangeiro, mas um pária. E ainda mais o seria para Sócrates que se
tornaria com a fuga efetivamente uma espécie de traidor, visto como
um elemento perigoso para onde quer que fosse – e com ele sua fa-
mília –, pois além de negar seus ensinamentos (53c e seq.), com sua
fama de sábio causaria prejuízos morais e políticos para sua pátria aos

25 Gregory Vlastos (1994: 87, 91) mostrou a conexão entre as leis e a cidade no Críton; e como
o desrespeito pelas leis era então percebido como desrespeito pela constituição democrática e
pelo povo.
46 Filosofia Antiga

olhos da Grécia26. Este mal ainda se une aos danos que seriam muito
possivelmente ocasionados aos amigos e alunos que o houvessem aju-
dado a fugir (44e): pois a cidade não os perdoaria facilmente. Nesta
ordem jurídica, a culpa e a sanção são também coletivas.
Entretanto, a este aspecto que chamei “prático”, relativamente à
decisão de Sócrates, corresponde subjacente uma questão “teórica”
crucial, a qual venho tentando esclarecer desde o início destas pági-
nas. Para compreender por quê, devemos voltar à consideração do
método socrático de perguntas e respostas.

13. Primeiro professor-pesquisador, para Sócrates a verdade possível


ao homem era somente um aproximar-se, um estar a caminho através
da investigação dialógica. Note-se que as leis interrogam – exatamen-
te como Sócrates tinha o hábito de fazer. Entre este e aquelas acontece
um diálogo: não ouvimos somente uma preleção das leis, mas estas
instam seu interlocutor a responder (50c9: ‘...mas nos responde, já que
tens o costume de se servir do perguntar e responder’), tal como antes este
fizera com seu amigo Críton. E Sócrates, mais que apenas responder,
também interroga as leis – ou a si mesmo (por exemplo, em 52a).
Pululam no Críton os termos correlatos de homologéo, relativos à
concordância, acordos, contratos, pactos, tratados, compromissos,
convenções, etc (Romilly 2002: 127). Era através de um compro-
misso político inaugural que o jovem ateniense adquiria a cidadania:
a dokimasía (Harrison 1998: vol. I, 74; MacDowell 1986: 68-70;
Kraut 1984: 154-157; Todd 1995: 180-181; Carey 2000: 212;
Romilly 2002: 132), processo formal no qual devia provar diante da
assembléia de seu demos que possuía as qualidades exigidas pela lei,
declarando que desejava tornar-se cidadão e jurando obedecer aos
magistrados e às leis. Ao se referir a este procedimento, as leis (Críton
51d) afirmam as obrigações ética, jurídica e política que a cidadania
representa, abrindo diante de Sócrates uma escolha com três possibi-

26 Veja-se a introdução de Maurice Croiset ao Críton no vol. I da edição da Belles-Lettres das


obras de Platão, p. 215.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 47

lidades: ir-se, obedecer ou tentar convencê-las de seu erro27. Ora, o


diálogo é o horizonte da verdade socrática. Inevitavelmente provisória
e circunstancial, toda pretensa verdade desvela em primeiro lugar a
qualidade de minha capacidade de estar acordo comigo mesmo com
outrem e com o curso dos eventos. E é neste acordo que se dá a ver-
dade. Por isso a necessidade de desenvolver um método de tal forma
enigmático de filosofar. Um modo de pesquisar que é também artifí-
cio pedagógico e máquina de guerra: a blindagem argumentativa do
maior de todos os sofistas visa proteger a possibilidade da verdade e
da justiça que se oferece no encontro de cada um de nós com o outro
e consigo mesmo. Na mentalidade antiga, a relação entre indivíduo
e coletividade estabelece-se de forma muito mais firme e estreita do
que para nós hoje: a idéia de que a justiça seja não fazer o mal deve
ser situada neste registro sociopolítico. Destarte, estão explicitamente
vinculadas as concepções da justiça como respeito ao contrato cívico
e como não fazer o mal, na interrogação que motiva a prosopopéia
das leis (49e9-50a3). A busca da medida28 na vida pessoal equivale à
busca do acordo na sociedade. Ambos devem ser fabricados aqui e
agora atualizando a possibilidade sempre dada de uma harmonia uni-
versal para a qual todas as coisas devem tender, a ser atingida sempre
mais adiante, e cuja realidade funda-se na sua própria necessidade
e economia – ponto de fuga de toda perspectiva totalizante, centro
de equilíbrio do devir cósmico, esquema transcendental de alguma
forma implícito em toda procura de ordem imanente. Seja como pro-
porção harmônica na arte, como saúde de um organismo ou como
paz e segurança na sociedade.

27 Sócrates, que aparentemente já desperdiçara a alternativa de sair de Atenas (pela saída vo-
luntária antes das acusações, pela escolha do exílio como pena ou pela fuga), vai de certa forma
uni-la, na morte (o Fédon pode ser lido como uma representação do processo de libertação da
alma), com as alternativas de obediência e de persuasão, em um último esforço de convenci-
mento por meio de uma pedagogia do exemplo.
28 Segundo M. F. Burnyeat (1997: 139), Sócrates – e precisamente ele que, como se sabe,
constituiu para a tradição a própria encarnação do ‘nada em excesso’ apolíneo – pode ter sido
visto pelos atenienses como o culpado de perigosa hybris, ameaçando assim a cidade.
48 Filosofia Antiga

O próprio julgamento foi uma espécie de diálogo em que Sócrates


tentou persuadir Atenas de seu erro em condená-lo29. Mesmo com
seus acusadores, durante o julgamento, procura o diálogo; e a alterca-
ção30 entre Meleto e Sócrates em torno das acusações, mostra como
estas estavam ligadas para o povo: corromper a juventude, impiedade
ou corromper a constituição são crimes relacionados na percepção
dos cidadãos atenienses. Corrupção das leis e corrupção da juventude
encontram-se explicitamente unidas entre as advertências que as leis
fazem a Sócrates no Críton31.

Traição, tirania, imoralidade, falsa divinação, malversa-


ção dos fundos públicos, magia, demagogia, irreligiosidade
– tudo isto estava confusamente conectado na idéia de um
crime contra a cidade, a terra e o povo, injustiça fundamen-
tal que é o verdadeiro objeto da acusação32.

29 Ele diz que se tivesse mais tempo talvez tivesse conseguido (Apologia 37a-b). Note-se que o
poder de persuasão de Sócrates encontra-se limitado pelos procedimentos legais, não podendo
dialogar com os juízes/jurados ou com as testemunhas (Carey 2000: 17).
30 Apologia 24b-28a. Procedimento possivelmente previsto pelas próprias leis atenienses: cf.
p. 149, n. 1, da citada tradução do Críton de M. Croiset; Brickhouse e Smith 1985: 30, n. 2;
Harrison 1998: v. 2, 162.
31 “Pois quem quer que destrua as leis será certamente considerado um corruptor dos jovens e
dos tolos” (53c1-3). Não por acaso o Eutífron tenta defender Sócrates da acusação de corromper
a juventude ao mostrar o personagem–título convencido a abandonar o processo contra seu
pai (como notou Diógenes Laércio II, 29). Na Apologia (24d e seq.), o diálogo entre Meleto
e Sócrates deixa clara a conjunção e implicação das duas partes da acusação, e começando já
por uma afirmação do primeiro com relação ao papel educador das leis que o segundo, signi-
ficativamente, não contesta. De acordo com Werner Jaeger (1992: 284), no estado ateniense
a lei era a escola da cidadania (cf. Protagoras 326c-d). No Criton (50d-e) não apenas são as leis
que administram a educação na cidade, mas elas mesmas se portam como mestres e ensinam
Sócrates através do diálogo. Aristófanes (Nuvens 1228-1241; 1468) retratará o desrespeito aos
contratos e aos pais (falta gravíssima na legislação ateniense) como conseqüência dos ensi-
namentos socráticos (cf. Todd 1995: 149). E há uma relação direta disto com a defesa que
Sócrates faz de si mesmo, no Críton (48c4; 54a1-54b1;45b10-45d9), quanto aos seus filhos:
e não só porque é sua responsabilidade educá-los, mas porque o crime contra a família é um
crime contra a pátria – esta percebida como continuação daquela, inclusive no bojo da noção
de asebeia (Gernet 2001: 71).
32 Cf. Gernet 2001: 70-77, 86-88. Todd 1995: 310-311: ‘[...] asebeia will have been perceived
as an offence against the community, because it is the community who may expect to suffer the
consequences of the impious act [...]’.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 49

Consideremos brevemente alguns pontos da instauração e desenvolvimen-


to do processo. Sócrates é julgado pela corte dos Heliastas, o principal
tribunal de Atenas, no curso de uma ação penal pública (Eutífron 2a-b,
12e). Embora pública, tal ação é desencadeada pela vontade priva-
da dos acusadores: no sistema legal ateniense indivíduos acusavam
e processavam outros indivíduos (MacDowell 1986: 61-62; Carey
2000: 9-13). Entre as instituições atenienses não se conta similar ao
nosso Ministério Público, ao qual a Constituição brasileira (art. 129)
atribui privativamente a função de promover a ação penal pública,
na forma da lei, em nome do Estado, exercendo assim uma espécie
de acusação pública. Cabia ao rei-arconte, um dos nove magistra-
dos da cidade, entre cujos encargos jurídicos contava-se o exame das
acusações de impiedade (Constituição de Atenas LVII, 2), acolher ou
não a acusação, julgando em uma audiência preliminar (a anakrisis:
MacDowell 1986: 239-242; Todd 1995: 126-129; Harrison 1998:
vol. 2, 94-105) se esta correspondia de fato à disposição legal. A lei
contra impiedade era, no entanto, apesar de constitucional, vaga, e
por isto seu alcance provavelmente devia ser determinado ad hoc – pre-
liminar e provisoriamente diante do rei-arconte –, mas decisivamente
pelo júri no julgamento33. O que, por si só, já faria do julgamento
uma cena formal de discussão e argumentação coletivas a respeito
dos fatos e da justiça das imputações e das penalidades. Porém, há
ainda mais em jogo, pondo em discussão também matérias apenas
subentendidas, porém cruciais. Graças a Anistia de 403, paralela à
qual se empreendeu uma completa reforma das leis (aliada a uma
provável tentativa de codificação: Todd 1995: 56-58), proibiram-se
as represálias com relação aos fatos passados durante as convulsões e
períodos de exceção anteriores à restauração da democracia, interdi-
tando as acusações que àqueles se reportassem (Constituição de Atenas
XXXIX-XL; Helênicas II, 4, 38-43). Além disso, a reforma legal rea-
lizada paralelamente à Anistia trouxe como regra geral e fundamental

33 Daí a variedade de procedimentos nos casos de a*sebevia: cf. MacDowell 1986: 199-200,
240-242; Brickhouse e Smith 1985: 16; Rhodes 1993: 639; Todd 1995: 307-315. Como disse
Vlastos (1991: 294), o crime de impiedade não possuía definição formal e dependia apenas do
que uma maioria simples de juízes em certo dia entendesse como sendo ímpio.
50 Filosofia Antiga

do devido processo legal ateniense a obrigação de referir as acusações


à violação de alguma lei escrita34. Ora, com relação à acusação de
corromper a juventude, não se tem registro de nenhuma lei que a
prescrevesse (Brickhouse e Smith 1985: 18). Assim, a imputação de
corrupção da juventude, ligada à de impiedade (como já o era, de
todo modo, no senso comum da cidade) e por esta como que absorvi-
da, poderia parecer estar em segundo plano, mas provavelmente não
foi o caso: Sócrates contava entre seus alunos homens que estiveram
envolvidos em escândalos religiosos e movimentos antidemocráticos,
fatos que – mesmo não podendo ser matéria de acusação – todos
em Atenas tinham na memória35. O julgamento constitui assim um
diálogo de Sócrates com cada um dos “homens de Atenas’36 sobre
as próprias diretrizes com referências às quais se deve gerir a própria
vida, caminhando em direção à excelência ou, ao contrário, corrom-
pendo-se; e onde se apresentam a todos, diante do grupo, as mesmas
alternativas – persuadir, obedecer ou ir-se – que guiam a argumen-

34 Ver o texto da disposição legal conservado por Andócides (Sobre os Mistérios I, 87) em
Arnaoutoglou 2003: 104.
35 Assim é fundamental saber, como Xenofonte (Apologia 59; Memorabilia I, 2, 31-38) e Platão
(Apologia 32c-e) deixam entrever, que Atenas culpava seu mestre por seus maus alunos Crítias e
Alcibíades. Ora, a cidade tinha passado recentemente por eventos traumáticos, tanto do ponto
de vista político, como do religioso – o que suscitava então um ambiente provavelmente propí-
cio ao acirramento dos ânimos (Mossé 1990: 16-45; Parker 1996: 40-42; Todd 1995: 312-315)
–, eventos nos quais aqueles produtos da educação socrática tiveram papel decisivo. Este parece
ter sido o núcleo das acusações do famoso panfleto de Polycrates. E a sempre citada passagem
de Esquines (Contra Timarco, 173; Giannantoni 1990: v. 1, 82) aparentemente o confirma. De
todo modo, a Anistia não basta para que se considere que os motivos da condenação foram
simplesmente políticos (a questão religiosa representando somente uma estratégia de diversão),
pois não há razão pela qual uma atitude subversiva de Sócrates posterior aos Trinta não fosse
trazida à baila – assim como aquele não teria porque não se referir aberta e preferencialmente
ao problema político se este constituísse realmente o centro exclusivo (ainda que subentendido)
das acusações (Brickhouse e Smith 2002: 5-8, 207-209).
36 Dentre as alternativas formais de se dirigir ao júri ou à Assembléia (Burnyeat 1997: 144),
Sócrates escolhe esta em primeiro lugar na Apologia, utilizando a designação juízes (dikastai)
apenas no final (40a) para falar àqueles que o absolveram. Falar aos homens de Atenas significa
aí também que ‘[...] os quinhentos jurados amadores formavam uma assembléia popular em
pequena escala’ (Kraut 1984: 80). É preciso marcar, não obstante, que se tratava, dadas as
características mesmas de constituição dos tribunais atenienses, de uma assembléia provavel-
mente algo conservadora, e de um povo já por si conservador em matéria de religião (Carey
2000: 4-6).
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 51

tação socrática diante das leis da cidade, bem como sua posterior
decisão de permanecer na prisão.

14. Do ponto de vista socrático, verdades definitivas – do tipo “sem-


pre obedecer às leis” –, mesmo quando aparentemente enunciadas
de forma peremptória, permanecem de todo modo problemáticas.
Não porque Sócrates despreze as leis ou ponha o seu próprio senso
de justiça acima destas – ele mesmo exige que seus juízes o julguem
conforme a lei (Apologia 35c) –, mas porque nenhum dogma pode
dar conta das questões realmente fundamentais “Como viver bem?”
ou “O que é o bem ?” – que, já se sabe, são apenas uma outra forma
de perguntar pela justiça. Para Sócrates a justiça é uma questão in-
contornável, porém sem respostas definitivas – e talvez sua qualidade
mais importante como pensador fosse ter consciência disto.
No Górgias a questão de que o maior dos males é praticar a injus-
tiça (469b) permite uma aproximação bastante elucidativa com o
Críton37. Ao longo do texto, não é a adequação às opiniões dos ci-
dadãos atenienses que conta: na verdade, estas opiniões serão visadas
todo o tempo, porém de acordo com um método de filosofar que po-
deríamos qualificar de democrático: ainda que seu critério de verdade
não seja simplesmente a concordância da maioria, mas a coerência do
raciocínio, a participação está aberta a todos. Para o diálogo socrático
o importante não é apenas o acordo, mas o acordo que resulta do
exame correto da verdade (471e). Como ele diz adiante (506a): “não
é verdade da qual esteja certo, mas quero procurar convosco; e se meu
oponente tiver razão abandono”. Mas o diálogo como método filosó-
fico só funciona – e isto é o decisivo – por causa de sua sustentação
metafísica implícita. Com relação ao direito, se Sócrates segue as leis é
pela possibilidade que estas representam de refletir em sua letra a jus-
tiça. A veemência com que Caliclés, o sofista, separa lei e natureza já

37 Também lá Platão aponta a medicina e a ginástica como téknai que visam o bem do corpo
e, correspondendo respectivamente a estas duas, a justiça e a legislação, que formam a política,
visando o bem da alma (Górgias 464bc).
52 Filosofia Antiga

é um signo de qual, por contraste, é a visão de seu oponente38. Esta se


tornará explícita a seguir (488c-489b) e no discurso de Sócrates vere-
mos os mesmos princípios do Críton retornarem fundamentados por
uma noção cada vez mais evidente de ordem universal (506c-507e).
O importante é que não se pontifica sobre tal noção39: Sócrates con-
fessa falar a partir dela sem compreendê-la totalmente (508e-509a)
e continua a pô-la em discussão; e é precisamente por esta pesquisa
da verdade e do bem, em um debate aberto a todos, com a finalidade
precípua de educar seus interlocutores e a si mesmo, que este pensa
ser um dos raros atenienses a cultivar a verdadeira arte política (521d)
– razão suficiente, vaticina, para ser condenado à morte.
Em todo o Górgias subjaz a idéia de se adequar através do raciocínio
em conjunto, do lovgo”, à alguma espécie de razão universal – ‘razões
de ferro e diamante’ (509a1-2) que estruturam e sustentam o discurso
socrático. É evidente e constante em geral nos sokratikoi lógoi a pre-
sença de um certo misticismo, que também se manifesta claramente
no Críton, desde o objetivo de aperfeiçoar a alma (47c-48a), passan-
do pelo sonho profético (43d-44b) até o encontro com a própria
verdade (48a) e com as leis do Hades (54c). O que não significa que
Sócrates não possa ser descrito como um racionalista; embora aplicar
a ele o conceito moderno de racionalismo sem mais fosse anacrôni-
co. Como se sabe, a idéia do conflito entre fé e razão era estranha
à mentalidade pagã (Kahn 1998: 97; Snell 1992: 50). Se o diálogo
constitui um método filosófico de investigação racional da verdade, e
se pode ser uma forma democrática de forjar acordos e compromissos

38 Os sofistas não inventaram a distinção entre a justiça divina ou natural e a humana, ou entre
a ordem do mundo e a ordem humana (Gernet 2001: 81-82), mas a utilizaram em suas teorias;
as quais floresceram na nova ambientação intelectual citadina, empregando uma nova noção,
mais abstrata, de justiça. Com relação a esta evolução, Sócrates representa a um tempo um
passo à frente, com seu racionalismo, e um passo atrás, tentando recuperar o passado político
e filosófico retomando a noção arcaica de uma harmonia individual e coletiva com a ordem
sagrada do universo. E daí as suas contradições: educação elitista – método democrático, valores
aristocráticos – disposição popular, razão humana – sabedoria divina, etc.
39 A prova final de tudo que é dito não é alguma asserção definitiva sobre a ordem das coisas,
mas a constatação de que ninguém, mesmo entre os mais sábios, consegue refutar o discurso
socrático (527a-b).
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 53

políticos, é porque abre a via divina do conhecimento, como meio da


missão religiosa40 de fazer ver na busca da verdade, do bem e do belo
uma sagrada obra coletiva, tarefa de todos e de cada um.
15. O que impediu muitos leitores de perceber o caráter fundamental-
mente democrático do pensamento socrático foram antes de tudo as
constantes afirmações de Sócrates – a começar pelo Críton (46d-48b)
– sobre a necessidade de se tentar obter verdadeiro conhecimento
para se tomar decisões em qualquer área.
Não parece muito inteligente defender que o único critério democrático
de, por exemplo, escolher médicos, professores de ginástica ou enge-
nheiros, seja a votação. Pelo menos em algum grau é preciso empregar
critérios baseados no mérito. Significa que se deve decidir levando em
conta a opinião daqueles que são especialistas na matéria, para tentar
eleger o melhor. Ainda que não haja concordância com relação ao que
seja o melhor – e não por acaso é este (seja como questionamento acer-
ca do bem ou da melhor vida possível) o objeto da filosofia socrática
–, somente erigindo como critério, não apenas a opinião da maioria,
mas também a aparente irrefutabilidade da argumentação (a qual deve
se impor pela força de sua própria coerência racional), podemos ter a
esperança de pensar, falar e agir de maneira justa.
O problema maior, porém, reside, não nas questões técnicas, mas nas
questões morais, importantes mais que todas, e para as quais só um
conhecimento mais que humano seria suficiente (Apologia 23a-c) – e,
possivelmente por isso, a última passagem citada do Críton sobre a
necessidade de se buscar conhecimento que não se reduza apenas à
opinião da maioria, desemboque, como se viu, em uma alusão velada
à divindade (48a7; 47d1-2). Pois esta busca, ordenada pelo deus por
diversos meios (Apologia 33c), foi, por vezes, orientada pela interfe-
rência direta deste41. Mas o interessante nisto tudo é que, se o diálogo,

40 Latreía, palavra com que se refere Sócrates na Apologia (23c) ao seu questionamento co-
tidiano dos cidadãos atenienses, destina-se alhures em Platão, e normalmente na tragédia,
especificamente ao serviço em nome dos deuses olímpicos (White 2000: 173, n. 52).
41 Nem sempre de forma negativa, como acontece no julgamento, quando o silêncio do sinal
divino é interpretado como consentimento (Apologia 41d5-6), ou de forma passiva, como no
54 Filosofia Antiga

o método racional de pesquisa da verdade tem seu funcionamento


exigido e garantido por uma intuição metafísica do funcionamento
da realidade, por outro lado esta intuição, o sinal do deus, só ocorre
em função e no enquadramento daquela pesquisa. Ou seja, não es-
tamos diante de uma simples revelação da verdade a um iluminado
que transmite aos meros mortais as palavras do deus. O tempo todo
Sócrates raciocina em conjunto com seus interlocutores para tentar
descobrir o que é melhor.
A rejeição da lex talionis no Críton (49c-d), movimento central na
revolução moral que empreende Sócrates, está sustentada, por exem-
plo, pela afirmação já referida da Apologia (41c9-d3): ‘[...] não há
mal nenhum para o homem bom, nem na vida, nem na morte, nem se
descuidam os deuses de seus afazeres’. Esta afirmação mostra a revo-
lução religiosa que o pensamento socrático implica: os deuses são
bons, favorecem e protegem o bem42. O que confundiu os atenienses,
e continua surpreendendo os especialistas, é o fato de que, embora
estejamos diante de um homem profundamente religioso, está em
curso aqui uma revisão racionalista (cujos primeiros movimentos se
encontram no pensamento pré-socrático) da imagem dos deuses, da
prece, e do próprio sentido da devoção. O alcance epistemológico da
citada afirmação da Apologia é ainda mais notável por ser introduzida
como uma recomendação dirigida aos juízes de Sócrates de “pensar
sobre esta verdade”. Transformar a religião é aqui pretender transfor-
mar a política, o direito, a filosofia etc – e vice-versa43.

sonho do Críton (43d-44b), mas também de forma positiva, interferindo diretamente nas de-
cisões (Eutidemo 272e1-273a2; cf. Reeve 2000: 31-35). Segundo Jean-Pierre Vernant (1990:
162) – referindo-se a Empédocles, aos pitagóricos e a Platão –, o daimon é o princípio divino
que liga nosso destino individual à ordem cósmica: ora, a ‘justiça’ funciona como designação
desta ligação quando corretamente disposta, em boa sintonia e sincronia.
42 Sócrates critica a visão tradicional dos deuses (Eutifron 6a). Ver, entre vários outros, Burnyeat
1997; Vlastos 1991: 163-165; McPherran 2000: 100-102; Gocer 2000; Parker 1996.
43 ‘Greek religion did not comprise a unified, organized system of beliefs and rituals distin-
guished from the social, political and commercial aspects of life we would now ordinarily term
“secular”’ (McPherran 2000: 91). Ademais, seria até mesmo difícil identificar um substantivo
no grego antigo significando propriamente ‘religião’ (Gocer 2000: 115, n. 3).
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 55

Por isso, quando se tenta responder a pergunta – Por que Sócrates


foi acusado, julgado e condenado? – é importante levar em conta as
circunstâncias históricas. Mas sem tentar obter apenas daí as respos-
tas. Porque se estamos adstritos, como se disse no começo, a tentar
entender o pensamento de Sócrates a partir de sua vida (e não de suas
próprias palavras), sua filosofia a partir de sua atitude diante da morte
(conseqüência de sua forma de viver), foi o fato de resolutamente
viver suas idéias que concretizou seu destino. Sua filosofia é a respos-
ta para entender sua vida e sua morte44. E isto significa não apenas
as idéias, mas os atos. Pois poderíamos perguntar, por exemplo: se
o racionalismo teológico, concepções políticas diversas ou a habili-
dade retórica, antes e então, foram professados por outros, por que
Sócrates é executado? Porque era um professor45, e de uma espécie
muito rara. Como ele mesmo deixa entrever no Eutífron, uma coisa
é ter determinadas opiniões, outra coisa é ensiná-las. Mas pior ainda,
podemos acrescentar, é fazê-lo com o exemplo da própria vida.

16. Talvez o trecho mais importante do Críton seja o seu final: lem-
brando os acordos e contratos que as ligam a Sócrates (54c3-4)46, as
leis vão se referir a uma espécie de legalidade universal que vincula as
leis da cidade às leis do Hades. É preciso perceber como esta noção de

44 Como bem viu Orígenes (Gianantoni 1990: v. 1, 318 – 1G28, 6-7), Sócrates preferiu
morrer como filósofo que viver de maneira não-filosófica. É preciso perceber que uma coisa é
a maneira como este pensava ou agia, outra, o que o povo de Atenas achava disto (cf. Vlastos
1994: 87). Se só chegamos a Sócrates através do que outros dele pensaram, isto não nos autoriza
a tomá-lo pelos outros – para nós, antes de tudo devem falar seus atos. Os que o tem na conta
de adversário da democracia, costumam lembrar que Ânito lutou pela democracia durante a
tirania dos Trinta (Constituição de Atenas XXXIV, 3). Esquecem, contudo, que, ainda segundo
Aristóteles (ibid. XXVII, 5), foi ele também o primeiro a corromper os juízes atenienses; e há
quem acredite ter sido Meleto, o acusador de Sócrates, um dos homens enviados pelos Trinta
para prender Leon de Salamina (Brickhouse e Smith 1985: 19). Mas possivelmente grassava
no período subseqüente à restauração da democracia um certo rancor ideológico e o temor de
uma nova queda do qual se aproveitam os acusadores. Para uma visão paradigmática de Sócrates
como um pensador autoritário, veja-se Stone 1993.
45 Consulte-se, por exemplo: Todd 1995: 311; Parker 1996: 43; Brickhouse e Smith 2002:
204-207. É importante ter em mente que Sócrates não estava devotado a ensinar apenas seus
alunos, mas a cidade como um todo.
46 Louis Gernet (2001: 461) marca o sentido religioso dos termos jurídicos da família de tithè-
mi significando ‘contrato’, como o utilizado no texto: synthèkas (54c4).
56 Filosofia Antiga

uma justiça natural e divina, está todo o tempo presente de forma la-
tente nos discursos socráticos: não como um saber acabado – um alvo
mais que um ponto de partida. Esta é a origem do extremo respeito às
leis anacronicamente assemelhado por alguns intérpretes ao positivis-
mo jurídico moderno. A última fala de Sócrates, comparando-se aos
iniciados dos mistérios dos Coribantes47, revela a inspiração divina
que, se não é tomada simplesmente como verdade dada, constitui
algo de essencial a seu pensamento48.
A diferença entre Sócrates e a multidão é a consciência do não-saber:
este abre a porta para a experiência do saber e para o aperfeiçoamen-
to pessoal. O que de maneira nenhuma o isola de sua comunidade
na procura monástica de alguma iluminação hermética. A história
de Querefonte e o oráculo na Apologia o confirma: para saber por
que era dito sábio, Sócrates parte para tentar enxergar a si mesmo

47 Os Coribantes são os sacerdotes frígios da Grande Mãe anatólia Cibele. A etimologia do


termo é incerta, mas Junito Brandão (1991: 237-238) registra uma possibilidade interessante
pela qual ‘[...], Coribantes significariam os que executavam danças circulares como as kýrbeis,
“as placas giratórias de Atenas”, isto é, placas triangulares em forma de pirâmides de três faces,
que giravam em torno de um eixo: nelas se gravavam as leis, particularmente as de Sólon’. Ora,
o texto da condenação de Sócrates foi conservado precisamente no templo de Cibele onde se
mantinham os arquivos do Estado ateniense (Diógenes Laércio II, 40; Brickhouse & Smith
1985: 15; White 2000: 154). Se a deusa em questão figura a energia latente no seio da terra
(Brandão 1991: vol. 1, 207), é interessante observar que Delfos foi antes um santuário da Terra-
Mãe (Eliade 1983: tomo I, vol. 2, 104), e que a conhecida relação fundamental do próprio deus
délfico com as idéias de ordem e lei, é relativa principalmente àquelas leis ligadas à religião e à
pátria (República 427b; Memorabilia I, 3; Eliade 1983: tomo I, vol. 2, 103). E a constituição
mesma da cidadania está ligada a Apolo (Burnyeat 1997: 136). ‘[...]: il faut se rappeler ici la
notion fondamentale de la Terre-Mère et la Divinité. Le groupe et le sol sont impregnés d’une
vertu religieuse qu’ils se communiquent l’un à l’autre’ (Gernet 2001: 75): tanto a acusação de
impiedade, como as palavras e os atos de Sócrates, devem ser entendidos sobre o pano de fundo
deste enquadramento ideológico político-religioso-jurídico (cf. República 470d e seq.).
48 Parece a Sócrates que o lógos do deus nele ressoa inspirando o discurso que o orienta (54d3-e).
Lembremos a famosa alusão aos Coribantes no Ion (533e8). Em outro texto bastante interes-
sante, de um dos discursos socráticos remanescentes, da autoria de Esquines (Giannantoni
1990: vol. II, 605-610), o protagonista afirma mais uma vez sua ignorância e atribui ao favor
divino sua habilidade de beneficiar Alcibíades – atuando como bacante, veículo do poder de
eros. Note-se, porém, que no pensamento socrático esta intuição passa pela elaboração racional
(Vlastos 1991: 171); o que não significa que o deus não possa também, embora muito rara-
mente, interferir diretamente e diretamente ser obedecido (Reeve 2000: 34-37).
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 57

através da busca do saber no outro49. Não se vê aí obscurantismo, fi-


deísmo, solipsismo ou quietismo. Descobrir que a sabedoria humana
vale pouco (23a7-c1) significa pôr-se a serviço do deus procurando a
sabedoria em si e nos outros50.
Trata-se de estimular cada um dos cidadãos a encontrar o melhor
para todos através do diálogo. A crença subjacente é que a alma, se di-
rigida para o bem através do exame racional da vida, mostra-se capaz
de naturalmente se aperfeiçoar. O caminho para a verdade, a justiça
e a felicidade começa em cada um de nós. E é trilhado na tentativa
cotidiana de resolução dos problemas concretos a partir da perspec-
tiva do bem comum. Só o debate e o acordo democráticos conferem
validade, o selo momentâneo de justiça e verdade, à determinada
decisão, visto que só a busca do acordo racional através do diálogo
pode preservar tal possibilidade. Nesta esperança de aperfeiçoamento
reside o fundamento místico da democracia.
A noção de uma ordem universal, de uma justiça divina ou natural,
é inerente à própria constituição de sentido do ordenamento jurídi-
co grego (bem como à física, à ética, à política etc.). Tal se mostra
de maneira francamente evidente, seja no espírito mesmo da legis-
lação grega, seja na própria operacionalização cotidiana do direito.
Religião e direito continuam a ser então forças paralelas e, se não
são mais coincidentes – e é isto que permite sua discussão –, perma-
necem concorrentes em um culto do Estado o qual, na democracia,
principalmente se realiza como um culto da lei que torna sagrados
o espaço e o momento do discurso político, bem com a palavra aí

49 Apologia 20e-23c. Vale assinalar, como outros já fizeram, a importância da associação com
Querefonte, notório democrata, no reconhecimento da posição política de seu mestre (Vlastos
1994: 108; Brickhouse & Smith 2002: 203). Sobre o autoconhecimento socrático, o Primeiro
Alcibiades, seja ou não produto autêntico da lavra platônica, parece consistente com a Apologia
ao mostrar como o conhecimento de si está ligado ao conhecimento dos outros homens e do
deus (133b-d).
50 A explicação de C. C. W. Taylor (1982: 113) sobre por que o deus precisa de Sócrates, já
se tornou clássica: ‘[...] there is one good product which [the gods] can’t produce whithout human
assistance, namely, good human souls’. For a good human soul is a self directed soul. Cf. Vlastos
1991: 173-177; Nehamas 1992: 303.
58 Filosofia Antiga

empenhada51. Logo no início da assembléia ateniense, depois que um


sacerdote pedia silêncio religioso aos cidadãos para nomear os deuses
da cidade e pedir sucesso na reunião, vinha – em nome do povo – a
resposta: “Invoquemos os deuses para que protejam a cidade. Possa o
conselho do mais prudente prevalecer! Maldito seja todo aquele que
nos der maus conselhos, pretender modificar os decretos e as leis, ou
revelar nossos segredos ao inimigo”. Cito aqui Fustel de Coulanges
(1971: 405) que narra, em seu estudo clássico sobre a cidade antiga52,
como se realizam cerimônias religiosas propiciatórias na Assembléia
dos cidadãos – cujo recinto ele mesmo é sagrado e cujos procedimen-
tos são organizados segundo uma disposição quase litúrgica –, em
um ritual que, se era marcado pela discussão e ponderação racional
das decisões, também possuía, acompanhando o debate, todo um
aparato teológico de fórmulas sacras e distribuição de cargos e atri-
buições cuja função era a iluminação e proteção da palavra prudente
e verdadeira, voltada para a felicidade da cidade.
É neste contexto de solicitação e presença de uma sustentação meta-
física implícita do conhecimento necessário para agir corretamente
que devemos situar as palavras e a atitude de Sócrates, como também
as razões de sua execução. Se este é acusado de não reconhecer pro-
priamente – isto é, da maneira adequada ou segundo prescrevem os
costumes e as leis – os deuses da cidade (Snell 1992: 50-51; Vlastos
1991: 174; Reeve 2000: 27-28), isto parece demonstrar que o diag-
nóstico de Platão no Eutífron (3b) foi bastante certeiro: é fácil caluniar
sobre isto junto aos ‘muitos’. O problema está em que Sócrates repre-
senta, com relação ao direito, à filosofia, à política ou à religião, algo
novo, mas também algo muito antigo. Por isto, a religiosidade socrá-
tica, ainda que profunda, pode, por isso mesmo, facilmente ter sido
lida como irreligiosidade – e de fato até hoje. E o mesmo se pode dizer
do caráter democrático de seu pensamento: a partir de uma tentativa

51 O caráter sagrado do Estado e da comunidade, de origem indo-européia, sobrevive latente


nas configurações democráticas do poder (Heiler 1959: 479). O crime ainda é comumente
considerado uma loucura resultante de uma falta religiosa (Gernet 2001: 306 e seq.).
52 Coulanges 1971: 200, 403-405.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 59

de reconstituição do próprio sentido ancestral do novmo” – noção a


um tempo religiosa, política e jurídica –, que perfaz os movimentos
iniciais de uma autêntica filosofia do direito, trata-se de fortalecer a
cidadania (Villey 2003: 59-64). Logo, discutir se a condenação de
Sócrates aconteceu por conta de questões religiosas ou políticas não
parece fazer muito sentido, uma vez que se tratam apenas de dois as-
pectos que se completam. A ironia está em que Sócrates, vivendo em
meio a uma crise ao mesmo tempo religiosa, ética, jurídica e política,
seja acusado de uma corrupção moral que ele mesmo combatia.

17. Em resumo: a crença metafísica na eficiência do diálogo – e, por


extensão, na democracia – é justificada pelo próprio diálogo (ou seja,
pela argumentação racional), assim como este justifica aquela. Pois
uma vez que se acordou que a maioria nada sabe, não há porque
considerar justas as leis da cidade, salvo se estas se constituem como
possibilidade e/ou tentativa de aperfeiçoamento da comunidade e,
portanto, de si mesmas – o que só pode ser justificado pela crença
em um princípio cósmico de justiça presente em potência na razão
humana. É este princípio que o exame filosófico de si próprio, dos
homens e da vida, parece a Sócrates poder trazer à tona. A voz do
povo não pode chegar a refletir a voz do deus se não se garante um
amplo debate conduzido por um método de exame racional do bem
e das questões vitais.

18. Por fim, é interessante notar como a relação entre moral e saber
foi quase sempre lida pela tradição em apenas um dos seus sentidos:
o verdadeiro conhecimento leva à virtude. Nisto se vê como para
o Ocidente a virtude foi principalmente um fim: da filosofia mo-
ral antiga, passando pela resoluta identificação de saber e poder na
Renascença, até hoje, o conhecimento foi antes de tudo um meio
para se alcançar aquela capacidade de realização e êxito que confu-
samente costumamos mesmo identificar à ‘felicidade’. O Críton de
Platão parece querer mostrar a igual importância do outro sentido, já
que só assim a equação socrática recebe sua significação completa: a
virtude leva ao verdadeiro conhecimento.
60 Filosofia Antiga

Resumo
O conceito de lei socrático foi desde sempre objeto de contro-
vérsias, principalmente em função das tentativas de explicar
sua atitude quando de seu julgamento, encarceramento e exe-
cução. Toda a dificuldade de conciliar entre si os diferentes
textos sobre a filosofia e a vida de Sócrates, naturalmente se
realça diante das circunstâncias de sua condenação e morte.
Se soluções definitivas não parecem ser possíveis no atual es-
tado de nossa documentação, contudo, uma possibilidade de
ao menos atenuar as contradições reside no exame do funcio-
namento do método socrático a partir de seus fundamentos: o
diálogo como meio de um acordo, não apenas entre os cida-
dãos de Atenas, mas destes com a própria ordem universal, a
qual se vislumbra na busca humana da justiça e o bem comum.

Résumé
Le concept de loi socratique a depuis toujours été l´objet de
controverses, principalement en raison des tentatives pour ex-
pliquer son attitude lors de son jugement, son emprisonne-
ment et son exécution. Toute la difficulté de concilier entre
eux les différents textes sur la philosophie et la vie de Socrate,
naturellement ressort à propos des circonstances de sa condam-
nation et de sa mort. Si, dans l´état actuel de notre documen-
tation, il paraît impossible d´apporter une solution définitive,
néanmoins une possibilité d´en atténuer les contradictions ré-
side dans l´examen du fonctionnement de la méthode socra-
tique à partir de ses fondements: le dialogue comme moyen
d´un accord, non seulement entre les citoyens d´Athènes,
mais entre ceux-ci et le propre ordre universel, lequel se dessi-
ne da la recherche humaine de la justice et du bien commun.
Sócrates e as leis: democracia e metafísica 61

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65

Sujeito epistémico e sujeito psíquico


na filosofia platônica1

José Trindade Santos


UFPb – João Pessoa, 2005

1. O problema
Apesar de a leitura tradicional continuar maioritária entre os intér-
pretes, tem-se recentemente difundido a tendência para negar à teoria
das Formas (TF) o lugar de centro de gravidade do platonismo2. Os
argumentos apresentados para justificar essa posição invocam difi-
culdades na interpretação das noções de eidos e idea, a par da falta de
indicações sobre a natureza das Formas, a impossibilidade de atribuir
teses a Platão nos diálogos3, e sobretudo a denúncia da gravidade dos
problemas postos pela teoria, no Parménides. Sem tomar posição no
debate, parece-me oportuno alargá-lo, analisando a filosofia platôni-
ca – se é lícito conferir unidade à obra dialógica que a suporta –, a
partir da questão do dualismo.
Para o historiador da filosofia, o tópico é importante pelo fato de im-
pedir a assimilação da epistemologia platônica à concepção moderna
de conhecimento. Enquanto esta supõe pelo menos uma relativa
autonomia do sujeito e objecto, naquela o dualismo corpo/alma – es-
trito nos planos ético e antropológico –, apoiado na congenitura da
alma com as Formas (Ménon 81c-d; Fédon 79c-d, 80a-b), funde um

1 Agradeço a Marcelo Boeri a possibilidade de participar, com uma conferência na Universidad


de Los Andes, em Santiago do Chile, no projecto “Apariencia y realidad en el pensamiento
antiguo. Investigaciones sobre algunos aspectos epistemológicos, éticos y de teoría de la acción
de algunas teorías morales de la antigüedad”. Dessa oportunidade saiu a ideia para este texto, do
qual foi lida uma versão resumida no XI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF, realizado
em Salvador, em 2004.
2 Por exemplo, K. M. Sayre, “Why Plato never had a theory of Forms”, in Proceedings of
the Boston Area Colloquium in Ancient Philosophy 9, 1995, 167-199; mais recentemente, F. J.
Gonzalez, “Perché non esiste una “teoria platonica delle idee””, in Platone e la tradizione plato-
nica, M. Bonazzi e F. Trabattoni (a cura di), Milano 2003, 31-68.
3 F. Trabattoni, “Il dialogo come “portavoce” dell’opinione di Platone: il caso del Parmenide”,
in Platone..., supra n. 2, 151-178.
66 Filosofia Antiga

no outro4. A rigidez deste dualismo mostra-se, porém, problemática


no plano epistemológico.
Ao identificar o saber (epistêmê) com as Formas, a teoria da anamnese
recusa estatuto epistémico a qualquer outra forma de cognição – senso-
percepção, ou “opinião” (doxa) –, pois não só a crença é incompatível
com a posse do “saber e recta razão” pela alma (Féd. 73a), como o saber
não pode ser “captado” a partir de sensíveis (Féd. 74b).
Como se explica então que as opiniões que o escravo tira de si mesmo
sejam susceptíveis de se transformarem em saber (M. 85b-c)? É claro
que nem a posse de opiniões, nem a elaboração a que podem ser
submetidas, consentem encarar a doxa como um estado cognitivo, ao
contrário do que a República (V 476d sqq) implica, ao considerá-la
como dynamis.
A epistemologia platônica acha-se perante duas alternativas inacei-
táveis: ou cancela a infalibilidade em que assenta o estado de saber
(Gór. 454d, R. V 477e, Teet. 152c), rejeitando o dualismo; ou o torna
inacessível, inviabilizando toda a forma de aprendizagem. O dilema
não se manifesta no grupo de diálogos em que é apresentada a anam-
nese, associada àquilo que, por conveniência pedagógica, refiro como
a “versão canónica” da teoria das Formas5. Irrompe no Teeteto, diálo-
go no qual quer a ausência de Formas, justificando dúvidas sobre a
vigência da teoria metafísica a elas associada, quer a contribuição da
senso-percepção para a opinião e o saber, acarretam a reformulação
do dualismo epistemológico.
O meu objectivo neste texto é avaliar o alcance desta reformulação,
comparando a epistemologia desenvolvida no argumento da anam-

4 Aos loci classici do dualismo – o Fédon, os Livros centrais da República e a descrição da psico-
génese, no Timeu – acrescento a sua reafirmação pontual, no Sofista 248a, a par das três versões
da anamnese: Ménon 82-86, Fédon 72-76 e a imagem da alma, na palinódia do Fedro 245d-
251b (vide ainda a comparação da reminiscência com a recordação, no Filebo 34a–c). Sendo
consensual a exegese destes textos, dispenso-me de os abordar extensivamente, optando por
referi-los quando se levantarem questões que me pareçam oportunas.
5 Embora não a encare como o núcleo doutrinal da filosofia platônica, além dos textos já men-
cionados, considero este programa expresso, ou subjacente, no Crátilo e Simpósio.
Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 67

nese, no Fédon, com aquela que expõe, analisa e critica as teorias


sobre a senso-percepção, atribuídas a Protágoras, no Teeteto.

2. Anamnese no Fédon
O dualismo platónico começa a ser exposto no argumento do Fédon
que identifica a sensibilidade com o corpo e a alma com a Razão (65a
sqq). A cisão é explorada até às últimas consequências no plano éti-
co (66c-69e, 81b-84b), em termos que os compêndios caracterizam
como caracteristicamente platónicos. Menos notada, pelo contrário,
é a correspondente e capital função desempenhada pela sensibilida-
de na cognição. Ao longo do chamado “argumento da anamnese”
vemo-la ser constantemente contraposta à Razão, numa posição su-
bordinada, porém, sempre funcional.
2. 1 O argumento
Depois de uma comprimida referência implícita ao Ménon (73a-b),
é definido o princípio segundo o qual só pode haver reminiscência
daquilo que antes se “soubera” (epistêmê, epistasthai: 73c). São depois
fornecidos vários exemplos, tendentes a mostrar em que circuns-
tâncias uma experiência cognitiva, designada “senso-percepção6”,
suscita outra, identificada como saber (73c-74a) e caracterizada como
reminiscência.
Começa então o argumento propriamente dito, concentrado nos
casos da reminiscência de “semelhantes” (74a sqq: vide 73e). A
comparação dos iguais visíveis com o Igual estabelece a prioridade
cronológica (74e-75e), psíquica (74c-d) e epistemológica (74d-75d)
da experiência inteligível sobre a sensível. Todavia, o argumento não
deixa de repetidamente insistir (74c, 75a, b, e, 75e-76a) no facto
de ser através da sensibilidade que “recuperamos” (analambanomen:
75e) essa experiência inteligível, designada como saber.

6 O termo tenta reflectir a incapacidade de distinguir a sensação da percepção.


68 Filosofia Antiga

Apesar de os iguais não nos “aparecerem” (phainetai: 74b, d) “como”


o Igual, mas por vezes iguais, por vezes desiguais7 (ao contrário do
Igual, que nunca aparece – ephanê: 74b; phainetai: 74c – desigual), é a
partir deles que “concebemos e captamos” (ennenoêkas te kai eilephas)
o saber8 [do Igual] (74c). Mas o argumento não expõe claramente
porquê, nem como esta concepção e captação são possibilitadas.
E não pode fazê-lo por se concentrar na caracterização da inferio-
ridade dos visíveis (74b-e). Por isso, só adiante e pontualmente é
explicada a “referência” (anoisein: 75b; anapheromen: 76d) destes à
entidade inteligível que especificamente imitam (entretanto identi-
ficada como “o belo”, “o bom”, “o justo”, “o piedoso”, e “todas as
outras” ...“que são”: 75c-d).
O mistério da reminiscência (74a) – globalmente, da cognição, à qual
serve de modelo –, reside nesta recíproca remissão, que enlaça o visí-
vel no inteligível. Este só é concebido (ennenoêkas) “a partir” (ek: 74c,
passim; apo: 74c, 76a) daquele, pelo facto de se acharem “próximos9”
um do outro (hô touto eplêsiazen”: 76a). Mas esta “proximidade” nun-
ca é objecto de justificação adequada.
2. 2 Contornos epistemológicos da anamnese
Amplificando o argumento, vemos que a única possibilidade de con-
ferir sentido à “insanidade” sensível (vide 89e-90c) decorre do facto
de a alma ter necessariamente (Fedr. 249b, e) tido contacto anterior

7 A leitura relativista do passo (“para mim”...“para ti”) é a mais natural, introduzindo o re-
gisto doxástico da diferença. A este se acrescenta o físico, relativo à possibilidade de alteração
constitutiva. No entanto, não se acha excluída a possibilidade de o ler no registo relacional, da
chamada “mudança de Cambridge”, pelo qual as coisas “nos aparecem” de acordo com aquilo
com que as comparamos (vide Féd. 96d-e, 102b-104a; Teet. 154a-155e).
O interesse desta nota reside no facto de a comparação fornecer o contexto no qual se insere
a “aparência”: as coisas parecem-nos diferentes não apenas por se acharem sujeitas à mudança,
mas porque cada um a compara com experiências diferentes.
8 Em 74b – concedida por Símias a realidade/existência do Igual inteligível –, a sua experi-
ência é identificada como “saber”, caracterizado pela imutabilidade, nos três registos acima
assinalados.
9 Esta tradução literal parece preferível à habitual, “associados”, pelo facto de esta induzir a
inserção do argumento num contexto psicologístico, de todo anacrónico. Na prática, equivale
a interpretar a reminiscência como um caso especial de associação.
Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 69

com as Formas inteligíveis, pois as duas experiências cognitivas co-


existem nela, sem nunca se confundirem uma com a outra (74d-e,
75b, 76d-e, 78e-79a).
Poder-se-á, portanto, concluir que, ao contacto anterior da alma des-
carnada com as Formas (Mén. 81c-d; Fedr. 247d-e, 249b-d), se deve
a posterior estruturação da experiência sensível: primeiro, através da
linguagem (Féd. 78e-79a, 102a-b; vide R. X 596a; Parm. 130e), de-
pois pelo pensamento (Teet. 184b-186c, 189e-190a), por fim pela
reminiscência (Féd. 79c-d)10, nela residindo toda a possibilidade de
atingir o saber.
2. 3 Finalidade e pressupostos do argumento
A finalidade imediata do argumento – enquadrado no contexto do di-
álogo – é “demonstrar”11 a imortalidade da alma. Todavia, o seu saldo,
no plano epistemológico, é imenso, mostrando, primeiro, que, depois,
como, a alma racional possibilita a captação e interpretação do real.
A tese apoia-se no pressuposto plausível de que a “deficiência” da
percepção sensível não permite que a unidade e identidade da noção
inteligível, fixada pela razão, expressa na linguagem12 e recuperável
pela reminiscência, se ache contida nela13. O argumento não conse-
gue, porém, explicar a semelhança que associa as senso-percepções às
Formas, nem porquê aquelas as “imitam” e a elas “se referem”.

10 Esta secção do texto aproveita, com alterações, a interpretação do Fédon, proposta em “A


função da alma na percepção, nos diálogos platónicos”, Hypnos 13, S. Paulo 2004, 27-39.
Assinalo, em particular, a associação, antes oposição (29-30), de ek toutôn (74c) a apo toutou
(76a). O paralelo com apo tautês tês opseôs (74c) desfaz a ambiguidade do referente do pronome
e a leitura causal da preposição, em 76a.
11 Não se tratará propriamente de uma demonstração, mas antes da defesa de uma tese através
da argumentação.
12 As diversas dimensões do consenso, ou acordo (homologia, symphônia, synchôrêsis), da alma
consigo mesma e com outras, através do diálogo, constituem o único sintoma desta fixação.
Pode ser a esta possibilidade de acordo, como condição da investigação, que Sócrates se refere,
no início do argumento da anamnese, no Ménon, ao perguntar se o escravo “é Grego e fala
Grego” (82b).
13 Aristóteles, ignorando a oposição do sensível ao inteligível, assenta a sua epistemologia na
hipótese contrária a esta, de que a mente constrói o universal a partir da experiência dos parti-
culares (Met. A1 983, De int. 16a1, Seg. An. B19).
70 Filosofia Antiga

Finalmente, o argumento limita-se a postular a anterioridade do


“saber” (73c), concedida pelo interlocutor (74b). Uma vez aceites,
as diferenças (vide supra) entre as duas experiências cognitivas bas-
tam para que Sócrates considere a de natureza mental como “saber”,
opondo-a à perceptiva (74b sqq). Mas é fácil entrever os problemas a
que esta cisão vai dar origem.

3. O Teeteto
3. 1 A teoria
Todas estas dificuldades são encaradas no Teeteto, a começar pela úl-
tima. Na refutação da primeira resposta de Teeteto à pergunta de
Sócrates sobre a natureza do saber – “O saber é senso-percepção” –, é
desenvolvida uma complexa teoria onto-epistemológica sobre a cons-
tituição e modo de captação do sensível14.
Numa perspectiva ontológica, é-nos apresentada uma realidade
reduzida à “deslocação, movimento e mistura”, quantitativa e quali-
tativamente indiscernível, na qual “nada é de nenhum modo e tudo
devém” (gignetai: 152d).
A possibilidade de captar uma realidade dominada pelo fluxo catas-
trófico é desenvolvida no plano epistemológico da teoria, adiante
exposto. Os percebidos (aisthêta) são movimentos lentos, aos quais
erradamente são atribuídos nomes que os identificam como entes
(157b-c). Emitem fluxos rápidos, captados pelos percipientes (ais-
thanomenoi: vide 159e), eles também movimentos lentos). Aqueles
penetram nestes pelos canais sensíveis (identificados pelos seus no-
mes: 156c), produzindo novos movimentos rápidos, designados
“senso-percepções”15 (aisthêseis: 156d-157b).

14 A circunstância de as teorias expostas serem, no diálogo, atribuídas a Heraclito e a refinados


e anónimos seguidores de Protágoras não deve impedir-nos de responsabilizar Platão pela sua
autoria.
15 Ao longo de 156b-e, aqueles a que chamamos “sentidos” aparecem identificados com as suas
funções específicas – as “senso-percepções” –, pelo termo aisthêsis. Adiante, quando a referência
aos sentidos se torna inevitável, Sócrates chama-lhes organa, ou dynameis (184d-185a).
Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 71

3. 1. 1 Comparação com o Fédon


Esta doutrina começa por parecer surpreendente não só a Teeteto
(155c), como a todo o leitor do diálogo, pois não se percebe que re-
lação tem com a tese de Protágoras, inicialmente apresentada (152a).
No entento, a comparação com o passo do Fédon estudado permitirá
perceber como a sua exposição contribui para a reformulação da epis-
temologia platônica. Começo por notar os pontos de contacto entre
os dois diálogos.
Não levando em conta a diferença de contextos, é claro que os dois
passos se debruçam sobre a temática da obtenção do saber (epistê-
mê), para um leitor actual, do conhecimento. Em comum têm ainda
a atenção dedicada ao exercício da sensibilidade. Mas há profundas
diferenças a separá-los.
No argumento do Fédon, a senso-percepção desempenha diversas
funções. A mais saliente será a de constituir o ponto de partida da
actividade cognitiva, pois sem ela, para uma alma encarnada num
corpo, não poderá haver nenhuma espécie de conhecimento.
A segunda função é complementar desta, estabelecendo a senso-per-
cepção como uma espécie da cognição, com características próprias,
caracterizada pela sua inferioridade, em comparação com o inteligí-
vel16. A terceira função constitui o cerne do argumento, pelo facto de
justificar com essa inferioridade a impossibilidade de extrair o inteli-
gível, portanto, o saber, exclusivamente a partir do sensível.
A teoria exposta no Teeteto ignora e até certo ponto nega o inteligível,
na medida em que explora a identificação da senso-percepção com o
saber17, mas ela própria não tem possibilidade de se comprometer com
uma tese dessa amplitude. Veja-se o argumento, a partir de 152a.

16 O argumento do final do Livro V, da República, a partir de 476a, apresenta um enuncia-


do completo destas características. Ao tentar descrever a natureza transcendente do Belo, o
Simpósio 211a-b nega sucessivamente todas as determinações sensíveis, caracterizando implici-
tamente a aparência (vide phantasthêsetai: 211a5).
17 Mas essa identificação, que nega a identidade entre saber e Formas, característica dos diá-
logos sobre a TF, é da exclusiva responsabilidade de Teeteto, sendo directamente envolvida no
debate da teoria só a partir da referência ao saber, na “defesa de Protágoras” (166d).
72 Filosofia Antiga

3. 1. 2 Justificação da teoria
A possibilidade de o mesmo percebido “aparecer” com qualidades
opostas a diferentes percipientes conduz à identificação da “aparên-
cia” (phantasia) com a senso-percepção (152a-c). Como disse, daqui
resulta a dificuldade criada pela consequente identificação da senso-
percepção com o saber (152c). Como podem diferentes percipientes
ter diferentes percepções do mesmo percebido, todas infalíveis?
O desenvolvimento do argumento mostra que tal estado de coisas será
não apenas explicado, mas exigido, por um real dominado pelo fluxo,
em que nada é, qualitativa ou quantitativamente (em termos linguís-
ticos e anacrónicos, que nada é sujeito ou objecto de predicação).
A incompreensão da parte de Teeteto obriga Sócrates a uma longa ex-
plicação, sintetizada pela enumeração dos princípios reguladores da
onto-epistemologia atrás desenvolvida, sucessivamente criticada por
uma série de objecções “erísticas” de Sócrates (161c-165e), adiante
superadas pela chamada “defesa de Protágoras” (165e-168c).
3. 1. 3 Síntese da teoria
Após a consideração do exemplo da percepção do “mesmo” vinho,
por um Sócrates “doente” e outro “saudável”, as leis que comandam
a percepção são expressas em cinco princípios:

1. (PU) Cada percepção é única e irrepetível, alterando,


pontual mas definitivamente, cada percipiente, na sua
relação com o percebido (159e-160a);

2. (PI) Não há percipiente sem percebido e vice-versa


(160a-b);

3. (PR) O percipiente é ou devém para o percebido e este


para ele; cada um deles acha-se “amarrado” ao outro,
nada sendo “em si” (160b-c);

4. (PP) A percepção é privada (160c);

5. (PV) A percepção é sempre verdadeira para o percipien-


te, sendo cada um juiz das coisas que são e não são para
ele (160c).
Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 73

Todos estes princípios, em conjunto, definem as regras de funcio-


namento do mundo fluxista18. É da sua introdução que decorre a
epistemologia a que chamo “sensista”, a qual reformula inteiramente
o relativismo inicial de Protágoras. PU institui e descreve a relação
percipiente/percebido, caracterizando-a como “senso-percepção”. PI
define a senso-percepção como facto atómico, resultante da interac-
ção de cada percipiente e percebido. PR estabelece a reciprocidade da
acção e paixão que ligam percebido e percipiente. PP resulta das duas
anteriores, constituindo o núcleo da argumentação sensista, sendo
PV oferecida como conclusão do bloco. É nele que se acha substan-
ciada a tese da verdade como correspondência da senso-percepção à
relação, única e privada, do percipiente com o percebido.
Da interacção de todos estes resulta implicitamente o princípio forte
que caracteriza a epistemologia sensista e a distingue de todas as ou-
tras. É o “princípio sensista” (PS), de acordo com o qual nada há além
da sensação, constituindo “percipiente”, “percebido” e “percepção”
meras referências (154a-b, 156e-157c; vide 182b).
A fundamentá-lo acha-se, no plano ontológico, o “princípio fluxista”
(PF), segundo o qual a realidade se reduz ao movimento, sem que seja
possível dizer “o que” se move, pois careceria de identidade (152d),
restando apenas referi-lo na forma transiente com que pontualmen-
te se oferece aos não menos transientes sentintes (152d-e, 157a-b,
182d-183b; vide 202a, 205c; vide Ti. 48e segs.).
Implica a teoria uma relevante mudança de perspectiva na epistemo-
logia da percepção, pela qual esta deixa de ser “explicada” pela relação
entre percipiente e percebido, inevitavelmente “reais”, para passar a
constituir a única e autêntica realidade. Nela, percipiente e percebido
não constituirão mais que meras referências passageiras, destituídas

18 Para facilitar a exposição, cada princípio é identificado pela regra que introduz. Ao primeiro,
chamaremos “princípio da unicidade” (PU); ao segundo, “princípio da inter-dependência” (PI);
ao terceiro, “princípio da reciprocidade” (PR); ao quarto, “princípio da privacidade” (PP); ao
quinto, “princípio da verdade” (PV).
74 Filosofia Antiga

de identidade e de sentido19. Rematando o passo, Sócrates mostra


ter conseguido fazer valer o ponto de vista, de acordo com o qual há
uma ligação profunda entre a resposta de Teeteto, o relativismo de
Protágoras, o fluxismo de Heraclito e a resultante onto-epistemologia
sensista (160d-e).
3. 1. 4 Dificuldades da teoria
São, porém, notáveis divergências entre as sucessivas reformulações da
teoria, que dificultam a nossa compreensão do problema. A interpreta-
ção que Sócrates faz da tese do homo mensura é decisivamente relativista,
achando-se condensada na tese: “as coisas são para cada um tais como
lhe aparecem” (phainomai), repetida ao longo do argumento (152a,
158a, 166d-e, 170a; justificando a tradução “parecem”, vide, a mesma
cláusula com dokein: 158e, 161c, 162c, d1, 168b, 170a, 177c3).
No entanto, a reinterpretação sensista da tese, produzida pela sua
associação ao fluxismo (152d-e, 154a, 158a) nega que alguma coisa,
percipiente ou percebido seja. É aqui que nasce o problema de saber
como o fluxo infrene consente qualquer forma de acordo entre per-
cipientes. Veremos que na sua formulação e na solução encontrada
se expressam as duas onto-epistemologias que o Teeteto propõe: a
sofística e a filosófica.

3. 1. 4. 1 Duas soluções

3. 1. 4. 1. 1 “Protágoras”
O problema da superação da inconsistência provocada pelo fluxo
é resolvido por “Protágoras”. Nenhuma contradição resulta da co-
existência da verdade infalível das senso-percepções com a infinita
variação de percebido e percipiente:

“...cada um de nós é a medida do que é e do que não é, e


no entanto cada um difere infinitamente do outro: para um
é uma coisa e assim parece, a outro é e parece outra coisa.

19 Esta secção do texto reproduz parcialmente a análise inserida em “Filosofia e Sofística no


Teeteto de Platão”, Filosofia e Conhecimento, Samuel Simon (org.), Brasília 2003, 55-56.
Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 75

E estou longe de negar que exista a sabedoria e o homem


sábio. Mas este mesmo a quem chamo sábio é aquele de nós
que, quando as coisas são e lhe parecem mal, as muda, de
modo a parecerem e serem bem”20 (166d).

E como pode consegui-lo? Mudando as “aparências” (phantasmata:


167b), ou percepções “más” em “boas”, as “piores” em “melhores”
(167a-c), através da persuasão21 (168b). Protágoras “ensina” Sócrates,
procedendo com ele como com outros. Leva-o a aderir à sua concep-
ção pragmática de verdade, que sem dúvida lhe parece melhor22. A
solução é simples e elegante.

3. 1. 4. 1. 2 Platão
A de Platão, pelo contrário, não é nem uma coisa, nem outra. Vamos
encontrá-la no argumento que remata a refutação da resposta de
Teeteto (184b-186e). Contrastando a passividade analítica do sensó-
rio com a actividade sintética da alma, Sócrates mostra que qualquer
possibilidade de interpretar o sensível, quanto mais de atingir o saber,
se acha fora do domínio da senso-percepção.
O argumento refuta Teeteto, atingindo indirectamente Protágoras,
ao questionar o pressuposto da continuidade da senso-percepção
com a opinião, em que se funda a epistemologia por ele proposta.
Examinando os princípios da epistemologia sensista, é claro que a crí-
tica de Sócrates não atinge os quatro primeiros (PU, PI, PR, PP), mas
apenas o último deles (PV), pelo facto de retirar à senso-percepção a
capacidade de captar a verdade.
Numa perspectiva complementar a esta, é isto mesmo que o argu-
mento da “auto-refutação de Protágoras” (170a-171c) prova. Ou a
opinião de Protágoras é verdadeira, como a de todos os outros ho-

20 Tradução de Adriana Nogueira e Marcelo Boeri, Platão, Teeteto, Prefácio de José Trindade
Santos, Lisboa 2005.
21 A referência é pontual, porém, incontestável: “Se te deixares persuadir por mim...” (ean oun
emoi peithêi).
22 Muito haverá a dizer sobre este projecto epistemológico, que a filosofia, seguindo Platão,
veementemente rejeitou. Mas não é este o momento para o fazer.
76 Filosofia Antiga

mens; ou difere da deles, por constituir uma teoria sobre as opiniões.


No primeiro caso, é trivial, por a verdade ser independente do con-
teúdo da opinião; no segundo, falaciosa, pelo equívoco de não se
achar incluída na classe das opiniões, ou inconsistente, por conceder
a verdade aos que discordam dela.

4. Alcance das duas propostas


4. 1 “Protágoras”
Interessante é a circunstância de tanto uma, quanto outra epistemo-
logias, se apoiarem na linguagem para atingirem as suas conclusões.
Para “Protágoras”, é decisivo o facto do acordo. A garantia da concor-
dância da senso-percepção com a opinião que a exprime23 estende-se
à garantia da verdade dessa opinião, para quem a emite, e daí à impos-
sibilidade da produção de opiniões falsas, seja por quem for (167a).
A subsequente tese da condensação nas leis do acordo das opiniões
dos homens regula o regime de relação das opiniões, no espaço da
cidade24 (167c, 172a-b, 177c-d).
O sistema é empírico, mas pode ser aperfeiçoado pela intervenção de
sofistas, médicos, oradores (por analogia, também de agricultores),
que asseguram a substituição das senso-percepções e opiniões dos do-
entes por outras “melhores” (167a-c; beltiô: 167b3). Notemos que,
excepto no último caso, é inegável que a acção educativa do “sábio” é
levada a cabo pela palavra, ou seja, pela persuasão.
4. 2 Platão
Quanto a Platão, o argumento corre de modo totalmente distinto. É
a possibilidade de usar, na linguagem, termos que nenhuma percep-

23 Dada pelo texto platónico. É impossível avaliar se é com correcção que Sócrates liga PV, que
assegura a verdade da senso-percepção, para quem a sente (158e, 160c), à verdade da opinião
que a exprime (vide 161e7-9), sendo evidente que Sócrates está a sobre-interpretar a tese do
homo mensura. Mas esse não é o problema!
O meu objectivo é avaliar o argumento com que Sócrates refuta a tese que atribui a Protágoras,
não a legitimidade da atribuição.
24 O único relevante, para “Protágoras”. Embora o Teeteto mantenha silêncio sobre a possi-
bilidade da relação, é perfeita a coincidência desta cidade com a Caverna platônica. De resto,
abundam na digressão (172c-177c) sinais do paralelismo entre os dois passos.
Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 77

ção sensível pode justificar que remete para as actividades perceptual,


conceptual e reflexiva da mente25. O primeiro uso é detectável no
simples exercício da sensibilidade, o segundo na prática de compara-
ção das percepções, o terceiro nos termos que condensam o poder de
sintetizar a experiência do real: semelhante/dissemelhante, mesmo/
outro, unidade/pluralidade e acima de tudo “ser” (185c-d, 186a-c).
Não será excessivo agregar a estes o bem e o mal e os outros valores, a
verdade e o saber (186c-d).

5. Coerência interna da proposta platônica


O argumento chega para afastar “Protágoras” e “Heraclito” – e com
eles o o relativismo e o sensismo – do mundo do saber. Mas será a
proposta de Platão consistente? Em que pressupostos se funda o re-
curso à análise da linguagem para definir uma epistemologia?
Claramente no de que nomes e verbos constituem expressão da acti-
vidade superior da mente; da racionalidade, diríamos hoje. No Fédon,
este pressuposto acha-se associado à hipótese da realidade das Formas
e ao argumento da anamnese. No Teeteto, nenhuma destas concep-
ções é explicitamente afirmada, embora não se achem excluídas.
A ligação directa da linguagem à Razão suporta mal a contaminação
pelo exercício da sensibilidade. A tese de que o sensível imita o inte-
ligível – exposta no Fédon, República e Timeu, implícita em muitos
dos passos em que o dualismo platónico noutras obras se manifesta
– resolve a dificuldade. Mas, se o Teeteto não faz qualquer referência
à imitação, como poderá explicar essa “semelhança”, estruturante de
toda a experiência sensível, resultante da associação desta a um prévio
contacto com o seu “referente” inteligível?
É aqui que a contribuição do Teeteto para a tradição filosófica se mos-
tra fecunda. No lugar da imitação, Platão serve-se de dois verbos para
indicar como as senso-percepções se formam nos percipientes e são
por eles expressas: dokein e phainomai.

25 Pelas quais a alma recebe uma percepção (184e-185a), a compara com outras (185a-b),
podendo reflectir em conjunto sobre a totalidade da sua experiência, visando o saber (185c-
186d). Esta actividade conceptual e perceptiva da mente esclarece o modo como a anamnese
“estrutura” a experiência sensível, integrando-a na anterior experiência epistémica da alma.
78 Filosofia Antiga

Ambos desempenham uma função capital, no diálogo e na versão críti-


ca da epistemologia platônica. Dokein e doxa dominam a segunda parte
da obra, caracterizando a actividade reflexiva da mente e abrindo a úni-
ca via conducente ao saber26. Phainomai dá origem a uma família de
termos (phainomenon, phantasia, phantasma), usada na primeira parte,
para caracterizar as versões relativista e sensista de Protágoras, na tese de
que “as coisas são para cada um como lhe aparecem”.
Ao todo, conta-se mais de uma vintena de aparições qualificadas des-
tes termos, concentradas em três blocos:

152a-154a (7: 152a7, b9, 11, d5, 153e7, 154a3, 6);


157d-158a (5: 157d10, 158a2, 3, 6, 7);
166c-e (5: c6, d4, 7, e3, 4);

mais 4 isoladas (159c11, d5, 161e8, 167b3)27.


Haverá algum sentido em isolar esta leitura técnica de phainomai e
correlatos, essencial para compreender a articulação do Teeteto com o
Fédon? O passo 264a, do Sofista confirma esta possibilidade, apresen-
tando, inserida na investigação sobre a natureza do sofista (240e)28, a
definição de phantasia, entendida como a manifestação da opinião na
mente “através da senso-percepção”.

6. Consequências da inovação
Onde nos leva esta conclusão? A supor que, afastada a tese da verdade
necessária das opiniões, Platão pode fazer concessões ao relativismo de
Protágoras, sobre a refutação do qual exprimirá reservas (179c). É que,
apesar de o argumento final da primeira resposta eliminar o pressu-

26 Na realidade, do meu ponto de vista, contribuindo para o abandono da concepção eleática


de saber, da qual decorre a estrita dualidade dos estados opostos do saber e da ignorância, ca-
racterizada pela irrefutabilidade.
27 Repita-se que Platão não se coíbe de recorrer a dokein para se referir à tese relativista (158e6,
161c2, 162c8, d1, 168b5, 170a3, 177c3).
28 Já antes, na avaliação da natureza da relação entre a mente e o ser, fora afirmado o paralelis-
mo da participação do corpo na geração, através da senso-percepção, com a da alma/mente no
ser, através do pensamento (248a). Esta posição é coerente com idêntica distinção, estabelecida
no Timeu (27d-28a, 51e).
Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 79

posto da continuidade entre a senso-percepção e a opinião, o poder da


aparência é bastante para exigir, em contraponto com o sujeito episté-
mico, a criação de um sujeito psíquico, coordenador das actividades
perceptual, conceptual e reflexiva da mente. Que quer isto dizer?
6. 1 O problema revisitado
Comecei, apresentando uma tese, que a seguir justifiquei. Os para-
digmas das epistemologias platônica e moderna são incomensuráveis,
pois, enquanto Platão busca o saber, que identifica com as Formas,
pelo menos a partir de Descartes, o problema da epistemologia é o do
conhecimento (do real). A incomensurabilidade justifica-se pela asso-
ciação do projecto anamnésico à TF, que concede à senso-percepção
uma função meramente instrumental.
Esta associação, porém, traz consigo um novo problema. Estará a
epistemologia platônica condenada a circular eternamente na TF? A
interpretação do Teeteto serviu para apresentar respostas diferentes a
esta pergunta. Para F. M. Cornford29, o Teeteto constitui uma reductio
de qualquer tentativa de alcançar o conhecimento (knowledge), que
dispense a TF. Para G. Ryle, pelo contrário, representa o abandono
do projecto da TF por Platão30.
A interpretação aqui apresentada não aceita nenhuma destas, defen-
dendo que nem o Teeteto constitui uma reductio, nem o abandono da
TF. O argumento do diálogo mostra apenas que a concepção eleática
de saber, na qual se apoia a versão canónica da TF, só produz aporias,
quando a cognição abarca o exercício da sensibilidade numa série de
operações mentais, distintas e integradas na actividade da mente.

29 Plato’s Theory of Knowledge, London 19351; vide a tentative de reabilitar Cornford, critican-
do M. Burnyeat, em G. Adalier, “The Case of Theatetus”, Phronesis XLVI, Leiden 2001, 1-37.
30 Os principais simpatizantes da tese de Ryle (expressa em “Plato’s Parmenides” Mind 48,
1939, 129-151; e “Logical Atomism in Plato’s Theaetetus”, Phronesis 35, 1990, 2-16) con-
cordam na rejeição da interpretação de Cornford, mas não se comprometem com a tese do
abandono; vide R. Robinson, “Forms and error in Plato’s Theaetetus”, Philosophical Review 59,
1950, 3-30; John M. Cooper, “Plato on Sense-Perception and Knowledge (Theaetetus 184-
186)”, Phronesis 15, 1970, Assen, 123-146; M. F. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (translation
by M. J. Levett), Indianapolis/Cambridge 1990.
80 Filosofia Antiga

O Sofista complementa o projecto, propondo uma versão da TF, da


qual se acha ausente a tese eleática de que ser e não ser são idênticos
a si próprios e contrários um ao outro. Constitui novidade desta pro-
posta o recurso à TF para estudar a aparência sensível.
Significa esta afirmação que a TF passou a visar o conhecimento, dei-
xando de se achar limitada à tentativa de atingir o saber das Formas
imutáveis? É para esta possibilidade que a análise de phainomai re-
mete. A intervenção da aparência acaba com a especificidade das
competências cognitivas (Rep. V 477a-478d), caracterizadas por de-
signações, conteúdos e produtos distintos e opostos31.
No Teeteto, a doxa não remete exclusivamente para a doxa, tal como a
epistêmê para o ser, sendo suspenso o princípio da congenitura da alma
com a Formas (Mén. 81c-d). Pelo contrário, a finalidade do diálogo é
explorar a única possibilidade com que a investigação se confronta: a
do recurso à doxa constituir a única via para atingir o saber.
Paralelamente, o exercício da sensibilidade deixou de constituir um
impedimento para o acesso ao inteligível, uma vez que se presta a
ser trabalhado pela alma. Por fim, o erro, de que a razão se achava
livre, tornou-se possível quer pela intromissão da sensibilidade e da
memória, quer pelo exercício da actividade que lhe é própria (vide o
símile do aviário).

7. Sujeito epistémico e sujeito psíquico


Sustentei acima a incompatibilidade da versão canónica da TF com
as noções de sujeito e objecto do conhecimento. Há, contudo, nos
diálogos dois sinais da emergência de um sujeito e de um objecto
específicos do saber. Na República VI 508e-509b e no Crátilo 440b,
Sócrates refere-se a “cognoscentes” e “cognoscíves”, a “visíveis”32,
num contexto em que as Formas se acham bem presentes, na posição

31 Desinteressando-se das consequências éticas, morais e religiosas da subversão da alma pelo cor-
po (Féd. 65d sqq), bem como do estudo dos conflitos entre as “partes da alma” (República IV).
32 Respectivamente, nos dativos plural passivo (Rep. VI 508e1-2, 509b6) e singular activo
(e2) do particípio, e no nominativo e acusativo neutros do particípio, activo e passivo (Crá.
440b5).
Sujeito epistémico e sujeito psíquico na filosofia platônica 81

de objecto. Manifesta-se aqui um sujeito epistémico a comandar a


cognição. Todavia, como ambos os contextos deixam bem claro que
essa função é atribuída à alma, trata-se de um sujeito transcenden-
talmente entendido, ao qual cabe a função arquetípica de contactar
com o inteligível.
Pelo contrário, a manifestação da phantasia, que, no Teeteto, tem
o sentido de “aparência”, e, no Sofista, acumula com este o sentido
operacional, de “imaginação”, apresenta um cunho marcadamente
subjectivo, designando estados de alma como desejos, temores, dores,
emoções, além de uma infinidade de outros, inominados (Teet. 156b;
Féd. 69a-b), coexistindo no percipiente com as senso-percepções pro-
priamente ditas, atribuídas ou não a um órgão específico (Teet. 156b).
Mais adiante, Sócrates acrescentará que este percipiente não só sen-
te, como pensa, pergunta e responde, define, recorda-se e esquece,
calcula, acerta e erra, nas suas muitas tentativas para chegar ao sa-
ber. Portanto, o diálogo já não deixa o leitor perante uma hipóstase,
designada para representar uma função cognitiva, mas um indiví-
duo concreto, protagonista de um experimento em cognição: sejam
Sócrates, Teeteto, ou Teodoro.
Este sujeito do conhecimento confronta-se com objectos interiores e ex-
teriores a ele, recorrendo não apenas ao corpo, mas sobretudo àquela
figura da alma, a que a modernidade se virá a referir, com designações
como “espírito”, “mente”, “entendimento” ou “razão”, consoante o
perfil ideológico que tiver adoptado.
A ser assim, haverá boas razões para pensar que a epistemologia pla-
tônica dispensou a anamnese? Não forçosamente, embora não seja
possível considerar aqui os argumentos positivos para defender a sua
presença na obra platônica. Noto apenas que, confrontada com o
fluxo, esta nova função da psychê dissipou o mistério da “semelhança”,
estabelecendo a continuidade do sensível com o inteligível.
82 Filosofia Antiga

“S. – Espera aí: ela [a alma] não aperceberá a dureza do


que é duro através do tacto e, da mesma maneira, a moleza
do que é mole?
TEET. – Sim.
S. – Então a própria alma, recapitulando e comparando
umas com as outras [sc. a dureza e a moleza], tenta es-
clarecer-nos, acerca da entidade, que ambas são, que es-
tão em oposição uma à outra e ainda sobre a realidade da
oposição.
TEET. – Certamente.
S. – Portanto, há coisas de que tanto homens, como ani-
mais, mal nascem, por natureza se apercebem, como aque-
las paixões do corpo que se dirigem à alma; mas o resultados
dos cálculos, no que respeita à entidade e à utilidade, é difi-
cilmente e com tempo que chegam àqueles a que chegam,
através de muito trabalho e pela educação” (Teet. 186b-c).

Trata-se então de uma invenção do conhecimento, renovadora da con-


cepção platônica de educação? Olhando para trás, para Parménides,
sem dúvida. Mas o estudo da tradição posterior revelará o muito que
ainda há para descobrir e pôr em prática, para que se tenha chegado
à relação dual de que falei no início. Mesmo assim, poderá dizer-se
que, num único diálogo, a epistemologia se assumiu como disciplina
autónoma, abrindo caminho a problemas que a actualidade ainda
não conseguiu resolver.
83

O erro moral na tragédia e na epopéia*

Mario A. L. Guerreiro
Depto. de Filosofia – UFRJ

As etimologias tanto podem ser esclarecedoras como produtoras de


equívocos, tanto podem conter esclarecimentos abrangentes como
parciais. Este parece ser o caso específico da palavra “tragédia”, pro-
veniente de tragódia, literalmente: “grito do bode”. À primeira vista,
é difícil imaginar qual a relação entre uma determinada forma de es-
petáculo teatral e o ruído produzido pelo referido animal. Contudo,
essa etimologia aponta para uma origem ritualística da referida forma
de expressão dramática.
Trata-se do grito do bode expiatório emitido no momento em que
este era imola-do aos deuses imortais, para apaziguar sua ira em rela-
ção aos míseros mortais. O chamado sacrifício de sangue – tal como
costumava ocorrer nos cultos dionisíacos – não é uma peculiaridade
da cultura grega arcaica, tampouco as fórmulas mágicas que costu-
mavam acompanhá-lo, pois podemos encontrar ambos nas mais
diferentes culturas. Porém é uma característica marcante da cultura
grega o longo percurso em que um ritual primevo passou por muitas
transformações e culminou em uma refinada forma de expressão ar-
tística entre os séculos V a. C e IV a. C.
A tragédia ática foi a primeira manifestação daquilo que Richard
Wagner, no século XIX, denominou de Gesamtkunstwerk (obra de
arte total), porque era uma admirável síntese de diversas formas parti-
culares de expressão artística. No Renascimento Italiano, um erro de
interpretação a respeito do desempenho da tragédia acabou gerando
outra forma de obra de arte total: a ópera. E o autor de O Anel dos
Nibelungos – desejando ir além da ópera tradicional – criou uma nova
________________
* Texto composto a partir de duas comunicações apresentadas nos Centros de História Antiga
da UFRJ e da UERJ em1999.
84 Filosofia Antiga

forma de arte total: o drama musical (Wort-Ton Drama). Finalmente,


neste nosso século que hoje se aproxima do fim, o cinema parece ter
ido além das formas precedentes, no sentido de realizar uma síntese
mais rica das diversas formas de expressão artística. Este é ao menos o
ponto de vista de A. Hauser (1972, v. II, p. 1115-1151), que elegeu
a arte cinematográfica como a forma típica de expressão do século
XX.
Embora Wagner tenha cunhado a expressão “obra de arte total” para
caracterizar o novo gênero criado por ele, a percepção de que a tragé-
dia ática era uma forma de integração de diversas formas particulares
não escapou do olhar aguçado de Aristóteles (1974). Na Poética, ele
estudou cada forma de expressão separadamente e, posterior-mente,
procurou mostrar como elas se entrosavam admiravelmente bem nos
grandes espetáculos produzidos por Ésquilo, Eurípedes, Sófocles e
outros. De todos os conceitos gerados por Aristóteles, tendo em vista
uma compreensão ampla da tragédia, nosso interesse converge para
os de trama e tema (mythos). A trama diz respeito basicamente a uma
história que vai sendo contada através das falas dos atores e do resu-
mo feito pelo coro, porém o tema engloba não só o assunto como
também a visão expressa pelo autor a respeito do mesmo. No fundo,
o que está em jogo são dois aspectos típicos de todas as formas de
expressão ficcional: a fabulação e a visão de mundo.
Como procuramos mostrar em um livro recentemente publicado
(Guerreiro, 1999 a), os mencionados aspectos são constituintes de
todos os tipos de ficção, quer estejam em jogo narrativas – como é
o caso do poema épico e do romance – quer estejam dramatizações
– como é o caso da tragédia e do drama moderno. Há autores que
expressam deliberadamente uma visão de mundo, há os que simples-
mente se servem da trama e das personagens para expressar tal coisa
– como é o caso do chamado “romance de tese” – e há ainda os que
não têm nenhuma intenção de expressar sua visão de mundo, po-
rém a expressam involuntariamente mediante a caracterização de suas
personagens e a construção de sua narrativa ou dramatização.
O erro moral na tragédia e na epopéia 85

Costuma-se dizer que assim o fazem inconscientemente, mas pensa-


mos que há uma boa alternativa para as explicações do tipo freudiano
baseadas no obscuro conceito de o inconsciente (das Unbewusst, lite-
ralmente: “o Desconhecido”) e esta alternativa consiste no conceito
de “conseqüências não-pretendidas” (unintended consequences) criado
por F. Hayek (1960). Desse modo, supondo que um autor não tenha
a intenção deliberada de expressar uma visão de mundo, esta desponta
como uma conseqüência não-pretendida da sua intenção manifes-
ta de contar uma história, e pode ser facilmente surpreendida pelos
pontos de vista tácitos embutidos na sua narração ou dramatização.
No que diz respeito especificamente à tragédia clássica, a posição ge-
ralmente sustentada pelos críticos é que os poetas trágicos, tendo a
intenção explícita ou não, expressaram efetivamente uma particular
visão de mundo, e esta era uma concepção fatalista, de acordo com a
qual ninguém podia modificar sua moira (destino). Para citar apenas
um exemplo: encontramos no texto de Édipo-Rei de Sófocles uma
fala bastante expressiva da referida concepção fatalista:

Os homens são joguetes dos deuses. São como moscas nas mãos
de meninos malvados que as matam por pura diversão (citado
por Mondolfo, 1969, p. 347, o grifo é nosso).

Dificilmente encontraremos uma imagem tão forte e contundente da


impotência e da passividade dos indivíduos humanos. Diante disto, a
idéia de que os indivíduos são dotados de autotelia e capazes de traçar
os rumos das suas vidas através das suas escolhas não passa de uma pia
ilusão. Será mesmo? Na sua História da Cultura Grega, J. Burckhardt
concordou inteiramente com a idéia bastante disseminada de que o
que estava em jogo na tragédia era a força do destino [nome aliás de
uma famosa ópera de Verdi], porém fez a ressalva de que esta mesma
se apresentava de ao menos três maneiras distintas:

(1) Como necessidade cega, como absoluto eimármenon


ou – o que pouca diferença faz – a vontade dos deuses
terrivelmente invejosos e vingativos.
86 Filosofia Antiga

(2) Como necessidade absoluta, tal como na Edipódia,


em que uma coisa não teria acontecido, se não tivesse
acontecido outra e assim por diante.
(3) Como culpa dos pais, tal como em Álastor, em que de
vingança em vingança a maldição torna-se algo cada vez
mais terrível. (Burckhardt, 1953, v. III, p. 298-299).

Cabe assinalar que o fatalismo não é uma peculiaridade da cultura gre-


ga porém uma simples tendência proveniente dos oráculos e dos cultos
órfico-dionisíacos. É verdade que Aristóteles manifestou profunda ad-
miração pela poesia trágica, porém esta se restringia ao aspecto estético
e não se estendia ao ideológico, ou seja: ele admirava a fabulação, mas
repudiava a visão de mundo dos poetas trágicos. Sua admiração foi cla-
ramente expressa na Poética, mas seu repúdio – apesar de não expresso
explicitamen-te na Ética a Nicômaco (Aristóteles, 1958), nem na Ética
a Eudemo (Aristóteles, 1963) – pode ser facilmente deduzido de alguns
princípios básicos expostos nestas mesmas obras.
Como já vimos (Guerreiro, 1999b), para Aristóteles nenhum animal
além do homem – que é animal racional e animal político – pode
agir no sentido rigoroso deste termo, pois, de todos os seres vivos, o
homem é o único que é “a verdadeira fonte de uma atividade prática
(praxis tinon arché) (Aristóteles, 1958, II, 5, 122b19), e isto porque
a causa eficiente de toda atividade prática é uma escolha (proáiresis).
Em outras palavras: a fonte de uma ação voluntária é uma decisão da
vontade. E como a vontade de um indivíduo humano pode fazer es-
colhas, ela tem de ser considerada uma vontade livre visando sempre
a uma finalidade. (Aristóteles, 1963, VII, I, 1139a32).
No que diz respeito à ação humana, no contexto da cultura grega
encontramos uma contraposição de duas visões fortemente antagô-
nicas e dificilmente conciliáveis: de um lado, uma visão determinista
sustentada por Demócrito, os megáricos, os estóicos e outros; de ou-
tro uma visão libertarista sustentada por Aristóteles e Epicuro. Essa
contraposição gerou uma longa polêmica histórica que chegou aos
nossos dias. No domínio da teologia, ela ficou conhecida como a
polêmica entre os defensores da predestinação e os do livre arbítrio.
O erro moral na tragédia e na epopéia 87

Nos domínios da ética e da teoria da ação humana, a polêmica entre


os necessitaristas e libertaristas.
Pensamos que, independentemente das particularidades dos referi-
dos domínios do saber, a questão fundamental em jogo consiste em
oferecer uma resposta para uma indagação básica: A vontade de um
indivíduo humano é a causa das suas ações voluntárias ou não? Para o
determinismo dos atomistas, dos megáricos e dos estóicos, assim como
para o fatalismo dos poetas trágicos, a resposta é “Não”. Mas, para as
visões libertaristas de Aristóteles e de Epicuro, a resposta é “Sim”.
Uma das mais graves objeções podendo ser feitas aos partidários
do determinismo e do fatalismo [Não fazemos a menor diferença
entre ambos neste contexto] pode ser formulada assim: Admitindo
que não gozamos de liberdade de escolha, como podemos ser consi-
derados os verdadeiros autores das nossas ações, para que possamos
ser considerados responsáveis por nossos erros morais? A atribuição
de responsabilidade não faz o menor sentido quando se pode mos-
trar que um indivíduo não praticou uma ação livremente escolhida
por ele. [a respeito do determinismo vide Guerreiro 2002, cap. I
“Indeterminação e liberdade”].
Vejamos o caso de Édipo na tragédia Edipo-Rei de Sófocles. Como
sabemos, quando ele nasceu foi afastado de seus verdadeiros pais e
criado por outros. Quando já era adulto e voltava para sua terra sem
saber disso, entrou em uma luta com um homem que ele não sabia
ser seu pai e acabou matando-o. Tendo chegado à sua terra, que igno-
rava ser a sua, casou-se com uma mulher não sabendo ser ela sua mãe.
Devemos considerar que ele tinha as intenções de cometer um parri-
cídio e um incesto? Não há dúvida de que ele efetivamente cometeu
ambos, mas como se pode alegar que ele tinha a intenção de fazer o
que fez, se ele não sabia que aquele homem desconhecido era Laio,
seu pai, e aquela mulher, que ele nunca havia visto antes, era Jocasta,
sua mãe? E como se pode alegar que ele cometeu erros morais? Se já
estava decretado pelo inexorável destino que ele faria necessariamente
tais coisas, como podemos dizer que suas ações foram produtos da
sua livre e espontânea vontade?
88 Filosofia Antiga

Ao tomar conhecimento do que tinha efetivamente feito, Édipo foi


tomado por um sentimento de culpa, foi levado ao desespero e furou
seus próprios olhos. Porém se ele se sentiu culpado foi pelo mal que
fez objetivamente aos outros, independentemente de ter desejado
fazê-lo. Devemos considerar que há ao menos três distintas maneiras
de nos sentirmos culpados por um mal feito aos outros:

(1) Por termos desejado praticar um mal que praticamos de fato


(2) Por termos desejado praticar um mal, ainda que não o tenha-
mos efetivamente praticado
(3) Por não termos desejado praticar um mal que praticamos de fato

De um ponto de vista ético, não podemos desconsiderar nenhum


desses três casos. Em (1) a culpa assume a forma do remorso(ou ar-
rependimento), pois este sentimento moral só pode ter lugar quando
um indivíduo pratica de fato um mal e posteriormente entra em con-
flito com sua consciência íntima que o reprova pelo ato praticado.
Evidentemente o sentimento de culpa de Édipo não pode ter sido
deste tipo.
Em (2) não pode ser o caso do remorso, uma vez que este pressupõe a
prática efetiva de um mal. Porém pode ser o caso da auto-recrimina-
ção em que primeiramente um indivíduo se imagina desempenhando
um ato malévolo e posteriormente renuncia a praticá-lo e se auto-
recrimina por reconhecer que por um momento ele poderia ter feito
aquilo que meramente imaginou. Evidentemente o sentimento de
culpa de Édipo não pode ter sido desse tipo.
Em (3) está caracterizada a auto-recriminação, porém sua natureza é
distinta da que se configurou em (1) [onde há lugar para o remorso]
e em (2) [onde não há lugar para tal coisa], pois embora o mal prati-
cado não tenha sido um efeito decorrente de uma intenção de fazê-lo,
foi decorrente de uma ação praticada pelo agente. Trata-se de um
caso típico de conseqüência não-pretendida. Este é justamente o caso
de Édipo que não pretendia matar seu pai, nem casar com sua mãe,
porém acabou praticando um parricídio e um incesto.
O erro moral na tragédia e na epopéia 89

Mas se Édipo não teve a intenção de fazer tais coisas, por que se
sentiu terrivelmente culpado chegando mesmo a se autopunir gra-
vemente furando seus olhos?! Simplesmente porque o sentimento de
culpa tanto pode decorrer de (1) uma intenção que se materializou,
de (2) uma intenção que não se materializou, ou (3) de uma ação sem
a correspondente intenção de praticá-la. Assim sendo, é perfeitamen-
te compreensível que um indivíduo se sinta culpado, mesmo por um
mal involuntariamente praticado por ele; se o referido mal não pode
ser considerado decorrente da sua intenção, tem de ser considerado
decorrente da sua ação, como é o caso do homicídio culposo em que
– diferentemente do doloso – não está caracterizada a intenção de
praticar o ato praticado.
Desse modo, torna-se bastante compreensível dizer que a auto-recri-
minação e a autopunição de Édipo não decorreram de ele ter tido as
intenções de praticar os males que praticou, porém dos males produ-
zidos nos outros em decorrência das suas ações efetivas. Não devemos
esquecer que Édipo não é caracterizado por Sófocles como um indi-
víduo dotado de autodeterminação e de capacidade de escolha, mas
sim um mero fantoche movido pelo destino inexorável ou pelo desejo
dos deuses. Um indivíduo nestas condições não pode ser considerado
responsável por nenhum mal, porém isto não o impede de se sentir
culpado diante do mal feito aos outros. Neste sentido, concordamos
inteiramente com J. S. Lasso de La Vega quando ele afirma:

El dolor humano es el terrazgo donde nace la tragedia. El sufri-


miento de un alma, que puede sufrir con grandeza, eso y sólo eso
es la tragedia. (Lasso de La Vega, 1970, p. 15, o grifo é nosso).

Realmente, se há uma virtude moral no herói trágico, é sua capa-


cidade de suportar grande sofrimento com dignidade e resignação,
coisa aliás reconhecida por Aristóteles (1958, 1099b e 1100 a-b).
Repetimos aqui o que já dissemos (Guerreiro, 2001): Entretanto,
para ser coerente com o que já havia proposto na Ética a Nicômaco
(1099b), Aristóteles não concorda com a idéia de que o infortúnio
traz necessariamente a infelicidade. Não há dúvida de que ele concor-
90 Filosofia Antiga

re fortemente para a produção da infelicidade, mas não há dúvida


também que temos a capacidade de enfrentar qualquer vicissitude
com coragem e determinação [a não ser – Aristóteles admite – uma
vicissitude como a de Príamo na Ilíada: algo além do limite humano
de suportação]. Ora, o mesmo poderia ser dito de uma vicissitude
como a de Édipo. Comentando a visão do herói trágico na Poética de
Aristóteles, diz S. H. Butcher:

Édipo, embora possuidor de um temperamento açodado e


impulsivo, bem como de certo orgulho e arrogância, não
pode ser tido como alguém que en-controu a ruína em vir-
tude de um grave defeito moral. Seu caráter não foi o fator
determinante de seu infortúnio. Como um homem qualquer,
ele foi uma vítima das circunstâncias no sentido próprio desta
expressão. Ao matar Laio, ele podia provavelmente ser consi-
derado, em certo grau, moralmente culpável. Mas o ato foi
certamente praticado em virtude de uma provocação e pos-
sivelmente em legítima defesa (vide Édipo em Colona, 992).
Sua vida foi uma cadeia de erros, o mais terrível dos quais o
casamento com sua mãe. [...] Contudo, esta foi uma ofensa
puramente inconsciente, a qual nenhuma culpa pode ser
associada. (Butcher, 1951, p. 320, o grifo é nosso).

[obs. nossa: onde Butcher escreve “puramente inconscien-


te” escreveríamos: “de modo nitidamente não-pretendi-
do”, para evitar qualquer alusão ao obscuro conceito freu-
diano de o Inconsciente].

Mas se os que produzem efeitos maléficos, como Édipo e Álastor, não


são considerados autores destes mesmos, porém meros veículos de um
mal cujos verdadeiros autores são o inexorável destino ou os deuses, o
erro moral envolvido não pode ser considerado humano, porém cós-
mico ou divino. A imoralidade em questão não pode ser humana, mas
sim olímpica. O fado pode ser até tomado como um fato, mas a tragé-
dia ática não pode ser considerada uma tragédia ética.
Nessa engenhosa “prosopopéia”, as personagens não podem ser consi-
deradas representações de indivíduos concebidos como agentes morais
no sentido rigoroso do termo – como poderíamos considerar Hamlet
O erro moral na tragédia e na epopéia 91

ou Othello nos respectivos dramas shakespearianos – porque, para


todos os efeitos, as personagens da tragédia se encontram na mesma
condição de crianças, débeis mentais ou selvícolas não-aculturados,
ou seja: na condição daqueles que têm de ser considerados moral-
mente inocentes e juridicamente inimputáveis, justamente por serem
considerados irresponsáveis – não no sentido de terem negligenciado
decorrências previsíveis dos seus atos, porém no sentido de não pode-
rem ser considerados capazes de assumir a autoria destes mesmos.
A conseqüência que se segue é bastante contundente. Se aceitarmos
qualquer forma de fatalismo ou de determinismo da ação humana, te-
remos de considerar que somos incapazes de assumir a autoria do bem
ou do mal que praticamos. E se não somos considerados capazes disso,
estamos na mesma condição dos moralmente inocentes e juridicamente
inimputáveis. Porém, se não nos agrada sermos tomados como infantes
tutelados, bugres de tanga ou oligofrênicos balbuciantes, então temos
de assumir que somos os verdadeiros autores tanto do bem como do
mal que praticamos e, por isto mesmo, responsáveis por ambos.
O bônus da liberdade gera inevitavelmente o ônus da responsabilida-
de, que são duas faces de uma mesma moeda.
É realmente uma pena que Sófocles não fosse filósofo e não avalias-
se as conseqüências lógicas e éticas de Édipo-Rei. O mesmo se pode
dizer de Freud, que se inspirou na referida tragédia para elaborar seu
espantoso conceito de complexo de Édipo, que, bem examinado, nada
mais é do que uma versão laica do pecado original, assim como o
divã do psicanalista nada mais é do que a versão “modernizante” do
vetusto confessionário. Se a religião era o ópio do povo, Marx e Freud
eram viciados irrecuperáveis e não sabiam (vide Guerreiro, 2000 e
Webster, 1999).
Procuramos mostrar que, na tragédia grega, os indivíduos não eram
considerados responsáveis por suas ações e, por isto mesmo, não
poderiam ser considerados culpados pela prática de qualquer mal.
Embora seja difícil contestar esse modo de ver as coisas nas tragédias
de Sófocles, ele pode ser passível de ressalvas no tocante a Eurípedes e
92 Filosofia Antiga

Ésquilo. Considerando que, entre as fontes da tragédia, estão o mito


e a poesia épica, decidimos fazer uma breve investigação dos poemas
homéricos, e isto nos permitiu levantar a hipótese de que, nesse outro
contexto, há uma ambigüidade em relação às noções de responsabi-
lidade e culpa.
Talvez, “ambigüidade” não seja a expressão correta, porém con-
tradição, porque o que está em jogo não é o uso de um termo em
diferentes acepções, porém dois tipos de opinião conflitantes sobre o
mesmo assunto. Ora a autoria das ações individuais é atribuída aos
deuses ou ao destino – e as personagens ficam isentas de qualquer res-
ponsabilidade – ora é atribuída aos próprios homens – e neste caso,
elas não podem se eximir de responsabilidade e culpa. Parece difícil
dizer se Homero, enquanto narrador, assume um ou outro desses
pontos de vista ou se limita simplesmente a apresentá-los sem tomar
qualquer partido; porém o simples fato de o autor da Ilíada e da
Odisséia – seja ele Homero ou qualquer outro – apresentar essas duas
opiniões conflitantes é um claro indício de que, na sua época, já se
apresentava o germe da longa polêmica histórica entre os necessita-
ristas e libertaristas.
Não é difícil encontrar nos poemas homéricos personagens culpáveis
que procuram se defender das imputações de culpa e das reprovações
alheias, mediante alegação da sua não-responsabilidade na prática
dessa ou daquela ação considerada condenável aos olhos da sua comu-
nidade, e até mesmo personagens complacentes que se compadecem
de atos praticados por outras e as eximem de qualquer culpa. Páris
se desculpa das reprimendas feitas por Héctor (Homero, 1952, III,
60). Príamo, por sua vez, procura atenuantes para o comportamento
de Helena, considerado pelos velhos troianos como causa de muitos
transtornos (Homero, 1952, III, 164). Agaménon tenta se eximir de
responsabilidade pela ofensa feita a Aquiles, da qual se originaram
tantos males para os gregos (Homero, 1952, XX, 85). Ulisses, no
Hades, tenta se desculpar com Ajax atribuindo a Zeus a responsabi-
lidade pela ofensa feita por ele, Ulisses (Homero, 1949, XIX, 528).
Esses são alguns casos em que as personagens procuram se apresentar
O erro moral na tragédia e na epopéia 93

como instrumentos involuntários, simples vítimas do terrível Destino


(moira) ou dos deuses, poderes sobre-humanos cujas forças não pu-
deram resistir.
Mondolfo (1955, p. 339) assevera que essas tentativas de se eximir de
culpa têm suas raízes em antigas crenças em que estavam em jogo não
só a idéia de um destino superior aos homens e até mesmo aos deu-
ses (Homero, 1952, XVI, 341), mas também crenças primitivas de
caráter mágico ou demoníaco relacionadas com o culto dos mortos e
reforçadas pela experiência do irresistível poder das paixões humanas
(amor, ciúme, medo, cólera etc.), que, segundo se acreditava, tinham
a capacidade de transformar um indivíduo em um possesso, não po-
dendo em virtude disto ser considerado responsável por suas ações.
[Versão brasileira: Em um dos grotões desse país enorme, o homicida de
um crime doloso alega que, no momento em que tinha enfiado a faca na
barriga de outro – fato testemunhado por mais de três pessoas – estava
possuído por Exu; e o delegado, por não poder prender uma suposta
entidade sobrenatural, prende mesmo o suposto possuído por ela].
De acordo ainda com Mondolfo (1955, p. 339), essa idéia de “pos-
sessão demoníaca” teria sido expressa posteriormente pelos poetas
trágicos mediante o emprego do verbo dáimonian, quer dizer: “ser
possuído por um dáimon” – uma entidade sobrenatural não neces-
sariamente maligna, como é o caso do “demônio socrático” – mas,
no contexto visado pelo referido autor, necessariamente maligna.
Mondolfo chamou ainda a atenção para o aspecto de que as crenças
relativas à possessão demoníaca não constituem de nenhum modo
uma peculiaridade da cultura grega; ao contrário: são bastante co-
muns em uma grande diversidade de culturas, assim como fazem
parte do imaginário popular da nossa própria cultura.
Na Grécia antiga, essas crenças acabaram produzindo uma estranha
noção batizada por um pesquisador moderno com o estranho nome
de “crime objetivo”, juntamente com a alegação de que a referida
noção antecedeu as de sujeito criminal e responsabilidade jurídica.
Justamente com base na referida noção – coisa bastante esdrúxula aos
94 Filosofia Antiga

nossos olhos modernos – que o culpado era considerado um demen-


te (demens), mera vítima de um delírio ou loucura provocados pela
cólera ou vingança de algum deus. Desse modo, seu suposto crime
era visto como amartía ou amártema, ou seja: um erro de caráter
involuntário pelo qual não lhe cabia a atribuição de qualquer respon-
sabilidade. O problema, como já insinuamos, é que havia de fato uma
escandalosa ambigüidade nos usos dos mencionados termos, pois seu
significado deslizava facilmente da noção de erro involuntário à de
erro voluntário, e isto produzia uma importante diferença.
Comentando a visão aristotélica do herói trágico na Poética, S. H.
Butcher diz que ele costuma cair de uma posição de grande eminên-
cia em terrível desgraça, mas o infortúnio que acaba arruinando a
sua vida não pode ser creditado a uma maldade deliberada, mas sim
a um grande erro ou fraqueza moral (frailty). [Como diria, muitos
séculos mais tarde, Hamlet, generalizando abusivamente à natureza
feminina o caráter de Gertrudes, sua mãe: Frailty, thy name is woman!
[Fraqueza moral, teu nome é mulher!], Butcher desenvolve seu ponto
de vista dizendo:

A palavra amartía, no seu sentido coloquial, comporta di-


versas acepções. Como sinônimo de amártema, e aplicada
a uma ação determinada, significa um erro devido a um
conhecimento inadequado de circunstâncias determina-
das. De acordo ainda com este mesmo uso, poderíamos
acrescentar o adendo de que as circunstâncias são tais que
podiam ser conhecidas. Assim sendo, está incluído qual-
quer erro de juízo decorrente de açodamento e de análise
descuidada do caso em questão – um erro que até certo
ponto é moralmente condenável, uma vez que podia ter
sido evitado. [Quem comete] um erro dessa natureza pode
reivindicar perdão ou compreensão. Ocorre que amartía é
mais frouxamente aplicada a um erro decorrente de ine-
vitável ignorância, para o qual o nome mais apropriado é
atychema (desventura). Em ambos os casos, no entanto, o
erro é não-intencional; surge da falta de conhecimento e
sua qualificação moral e depende de se o indivíduo é ou
não responsável por sua ignorância. Uma acepção distinta
O erro moral na tragédia e na epopéia 95

– limitada ainda à referência a uma ação determinada – é


a amartía de caráter propriamente moral: um erro ou uma
falta em que a ação é consciente e intencional, mas não
deliberada. Tais ações são realizadas sob [fortes comoções
de] a paixão ou o ódio. (Butcher, 1951, p. 318-9).

De modo geral, essa passagem de Butcher é bastante esclarecedora,


embora não tenhamos compreendido o que ele quis dizer com “a
ação consciente e intencional, mas não deliberada”. Como podemos
conceber uma ação intencional que não seja consciente e não envolva
deliberação?
Ainda que entendêssemos que Butcher estava querendo fazer referên-
cia a uma ação típica em que o agente agiu sob as fortes comoções do
amor ou do ódio e, por isto mesmo, coubesse a alegação de que estava
mentalmente transtornado, devemos lembrar que – de um ponto de
vista jurídico – isto serviria como atenuante do crime praticado, não
como isenção de culpa [como é o caso da ação em legítima defesa].
Temos razões para sustentar que, neste e em outros casos, a Ética
não deve sustentar um ponto de vista diferente do sustentado pelo
Direito. Desse modo, estando em jogo o caráter do herói trágico,
pensamos ser preferível a interpretação de Mondolfo quando, em re-
ferência a amartía, falou em “um erro de caráter involuntário pelo
qual não lhe cabia qualquer responsabilidade”.
Charles Greene (1944, p. 40-1) afirmou que nos poemas homéricos
há vestígios das já mencionadas crenças primitivas, porém consi-
dera que estas aparecem em uma nova configuração, uma vez que
são incorporadas por determinadas personagens, justamente para se
defenderem de reprimendas feitas por outras, que atribuem a elas
responsabilidade por certos atos praticados por elas. Para Greene, isto
é uma clara indicação de que, na época de Homero, já podia ser en-
contrada uma maneira de pensar contrária à visão de erros morais e
crimes como decorrentes de “possessão demoníaca”.
Como temos procurado mostrar, em diversos trabalhos voltados para
o pensamento grego e para o da nossa época, noções tais como as
96 Filosofia Antiga

de “possessão demoníaca”, “determinismo da ação humana”, “fatalis-


mo”, “predestinação” e coisas semelhantes se prestaram e continuam
se prestando muito bem a determinadas alegações infundadas em que
indivíduos humanos procuram a todo custo se eximir de responsa-
bilidade e culpa. E por incrível que possa parecer à primeira vista, a
afirmação de que somos livres para fazer nossas escolhas e escolher
nossos caminhos nem sempre é recebida com satisfação, principal-
mente por vir acompanhada da sua inevitável contrapartida: a de que
somos inteiramente responsáveis pelas escolhas que fazemos.
O franco antagonismo das visões necessitarista e libertarista já estava
bem configurado na época de Péricles, como observou oportuna-
mente L. Rohden:

No período histórico que precedeu Péricles, vemos os


gregos envoltos por uma visão eminentemente mítica do
mundo e de si próprios. A moira suspensa sobre a cabeça
dos homens, estava a dirigir seus caminhos, castigando
uns e salvando outros. Os males que cometiam eram atri-
buídos à inspiração divina. Veja-se o exemplo clássico na
tragédia Ajax de Sófocles. Aos poucos a visão de culpabili-
dade foi sendo considerada como responsabilidade humana.
Nos tempos de Péricles os homens deviam responder por
suas ações diante da comunidade. (Ésquilo, Eumênides,
900 e segs.) (Rohden, 1977, p. 23).

Nos tempos homéricos e na tragédia de Sófocles, o bode expiatório


dos erros voluntários dos indivíduos era o inexorável Destino ou os
poderosos deuses, mas no nosso Admirável Mundo Novo, foram des-
cobertos novos subterfúgios: o misterioso Inconsciente de Freud ou
a visão neomarxista pós-moderna – esta mesma que tem grande difi-
culdade em ver criminosos, mas extrema facilidade em ver vítimas da
sociedade capitalista. Diante disto, nada mais urgente do que exigir
que os indivíduos assumam suas decisões e parem de ficar procuran-
do falsas causas para suas verdadeiras mazelas. E isto é válido tanto no
domínio da moralidade privada como no da moralidade pública.
O erro moral na tragédia e na epopéia 97

Referências
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di F. Albegianni] . Florença. La Nuova Italia.
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98 Filosofia Antiga

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WEBSTER, R. (1999) Por Que Freud Errou: Pecado, Ciência e Psicanálise.
Rio de Janeiro / São Paulo. Record.
99

Algumas considerações sobre a leitura procleana


do Parmênides de Platão

Cícero Cunha Bezerra


Doutor em Filosofia pela Universidad de Salamanca – España
Professor Depto. de Filosofia da UFS

“Em efeito: se as coisas que existem desejam seu bem,


é evidente que o primeiro Bem está além das coisas que existem”.
Elem., theol., 8

Existe um consenso entre os historiadores da Filosofia de que a lei-


tura procleana do Parmênides é a mais sistemática e original que nos
chegou do texto platônico. Proclo não só analisa as hipóteses, mas
ao criticar as interpretações dos seus predecessores, estabelece, como
bem observou H. D. Saffrey1, elementos suficientes para uma “histó-
ria das exegeses” do diálogo. Ao expor a “sabedoria secreta” de Platão,
Proclo tem dois objetivos concretos: a) salvaguardar o platonismo
(organizando um sistema de ensino para a Academia); b) preparar, a
partir da sua obra, o futuro do platonismo mediante um programa
que resgataria a vitalidade do paganismo2. Mas, em que consiste de
fato este programa e qual é a concepção de filosofia platônica para
Proclo?
Sabemos que Plotino é, provavelmente, o primeiro filósofo a esta-
belecer de modo consistente a divisão do texto platônico em três
hipóstases hierarquicamente ordenadas, no entanto, se damos cré-
dito ao testemunho de Proclo, veremos que, entre Plotino e Siriano
(mestre de Proclo), existiram diversos pensadores que de uma ma-
neira ou outra, interpretaram a filosofia de Platão como revelação de

1 SAFFREY, H. D., Proclus, diadoque de Platon in Recherches sur le néoplatonisme après Plotin,
Paris:J. Vrin, 1990, p. 141-158.
2 Ibidem., p. 157.
100 Filosofia Antiga

uma verdade divina estruturada a partir do Uno superior a todo ser e


pensamento(epékeina tes ousias)3.
De modo que, para nossa exposição, nos limitaremos a relacionar,
de maneira geral, as fontes de algumas idéias presentes no texto de
Proclo, precisamente, no que diz respeito a relação entre Plotino e
Siriano, buscando demonstrar o papel decisivo que Proclo assume,
na tradição de comentadores do Parmênides, como o pensador que
afirma, de maneira impar, a filiação de Platão com a linhagem de te-
ólogos gregos. Platão é o único, segundo Proclo, que estabeleceu, de
maneira correta e ordenada, as processões de todas as classes divinas.
Vejamos os quatro modo que, para Proclo, representam a transmissão
dos ensinamentos teológicos (theologikés didaskalías) 4:

1. Orfismo – que pretende revelar os princípios divinos


por meios de símbolos.
2. Pitagorismo – que por meio da matemática ascende,
por reminiscência, aos princípios divinos.
3. Os mistérios ou a revelação divinamente inspirada da
verdade em si mesma por meio da iniciação.
4. O modo científico – que seria o mesmo que a Filosofia
de Platão.

A filosofia é revelação e Platão descendente direto da tradição teoló-


gica grega que tem sua origem nos mistérios órficos. Esta filiação do
pensamento platônico ao orfismo é uma das características do pensa-
mento neoplatônico ateniense. Plotino não faz nenhuma referência
a Orfeo. Neste sentido, a teologia convertida em “ciência”, é algo
que nasce da admiração de Proclo pela a linguagem do Timeu e dos

3 H. D. Saffrey, baseando-se no livro VI do Comentário ao Parmênides, ressalta três grandes eta-


pas na história das exegeses do Parmênides: a) de Plotino a Theodoro d’Asiné; b) de Theodoro
a Siriano; d) de Siriano até o fim da Academia neoplatônica de Atenas. Cf. SAFFREY, H. D.,
La théologie Platonicienne... Op. cit., p. 175.
4 Cf. PROCLO, Theol., plat., I4, 5-25.
Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão 101

oráculos5. J. Trouillard nos mostrou, com seus amplos estudos, que


os neoplatônicos, em particular Proclo, são pensadores que, depois
de Plotino, atribuem ao Parmênides o “segredo” do platonismo. De
modo que o Parmênides é, para os neoplatônicos, um diálogo que
tem como finalidade uma <iniciação> nos mistérios divinos, isto é,
purificar a alma por meio da dialética em direção à verdade. Toda a
trama do texto conduz o leitor a uma busca em que os personagens
desempenham papéis reveladores. Isso fica claro no princípio do livro
I do Comentário ao Parmênides. Ali vemos Proclo pedir aos deuses
que lhe permitam possuir uma disposição perfeita para, deste modo,
participar da profundidade religiosa e mística de Platão 6. Esta profun-
didade religiosa se revela, segundo o ateniense, em todos os passos do
diálogo. Por essa razão seu comentário está repleto de imagens que
nos desafiam a compreender o diálogo de uma maneira especial e
original, a saber, por meio de símbolos e analogias.
A investigação procleana abarca desde da disposição dramática dos
personagens, a natureza do diálogo (lógico, dialético, teológico) até
mesmo o significado do encontro. O fato de que, por exemplo, os
eleátas estejam em Atenas, tem um sentido muito particular: consiste
em oferecer aos atenienses a ciência das coisas divinas (característica
maior dos pensadores de Eléia descendentes da escola pitagórica7).
Parmênides, Zenão e o jovem Sócrates participam de uma conferên-
cia em que cada gesto ou palavra faz parte de um jogo cênico.
Nosso filósofo afirma que, no Parmênides, temos quatro conferências
num mesmo texto8. A primeira consiste no fato concreto, ou seja, o

5 Cf. SAFFREY, H., D., Accorder entre les traditions théologiques: une caractéristique du neopla-
tonismo athénien in On proclus and his influence in medieval philosophy, Ed. E. P. Bos and P. A.
Meijer. New York: E. J. Brill. 1992, p. 35-48.
6 PROCLO, Parmênides (citaremos no formato Com. Parm), edição bilingüe de A-ED.
CHAIGNET, Tomo Primer, Paris: Minerva, 1968, p. 46.
7 Segundo Proclo no livro II do Comentário ao Parmênides, os jônicos são o símbolo da natu-
reza, os itálicos da substância intelectual, enquanto que os atenienses representam a substância
mediana pela qual as almas estimuladas retornam da natureza à razão. Cf. Op. cit., p. 95.
8 Cf. Com. Parm. Op. cit., p. 54.
102 Filosofia Antiga

encontro entre Parmênides, Zenão e Sócrates. A segunda é a que tem


como testemunho Pitodoro (que sabia de memória). Diz Platão:

Estes aqui, disse eu, são concidadãos meus muito interessados


em questões de sabedoria, e ouviram dizer que esse Antifonte
teve muitos encontros com um certo Pitodoro, companheiro
de Zenão, e que, por ter ouvido muitas vezes de Pitodoro as
conversações que entretiveram uma vez Sócrates, Zenão e
Parmênides, as guarda na memória (126b)9.

A terceira consiste no encontro “narrado” por Pitodoro na ocasião da


chegada de Céfalo à Atenas; diz o texto:“E, então, disse Antifonte ter
Pitodoro contado que uma vez vieram para as Grandes Panatenéias
Zenão e Parmênides” (127b)10. Por último, o relato atual de Céfalo.
Mas, que importância tem esta divisão? Segundo Proclo, a primeira
conferência, ou encontro, faz alusão aos seres verdadeiramente seres.
É a primeira tetrada (tetraktýs), ou seja, as razões primeiras das quais
precedem as segundas, isto é, a memória e a imaginação que se conver-
tem em recordação e, por último, em imagens posto que é recordação
de recordação. A segunda representa a imagem da diversidade e das
espécies que derivam das alturas pela criação demiúrgica na alma.
O discurso dirigido a Antifonte, irmão de Platão e que cuida dos
cavalos, é interpretado por Proclo como as razões primeiras sendo
absorvidas pela alma humana“pois nas almas estão psiquicamente as
razões” 11.
A terceira conferência, representada pela narração de Antifonte,
tem em Céfalo o sentido da sua mensagem. Céfalo é cidadão de
Clazomenas e, como Anaxágoras, representante das substâncias físi-
cas. A quarta e última, narrada por Céfalo sem dirigir-se a ninguém
em particular, é a matéria indeterminada e sem forma; diz Proclo:

9 Para citação do texto platônico do Parmênides utilizaremos a edição estabelecida por John
Burnet traduzida por Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Cf. PLATAO, Parmênides, Rio:
Loyola, 2003. O grifo na citação é nosso.
10 Ibidem. pg. 23. Grifo nosso.
11 Com. Parm. Op. Cit. p. 59.
Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão 103

“Céfalo não dirige sua palavra a nenhuma pessoa determinada porque o


elemento sensível é indeterminado, incognoscível e sem forma” 12.
De modo que temos uma seqüência de discursos que revela, em úl-
tima instância, a compreensão procleana do Parmênides como uma
obra em que os personagens expressam a própria estrutura da filosofia
platônica, ou seja, a processão do Uno superior a todo ser em direção a
matéria informe. Poderíamos exemplificar a estrutura do diálogo do
seguinte modo:

a) Personagens:
Parmênides → a razão não participada13 = ser
Zenão → a razão participada pela alma divina14= vida
Sócrates → a razão particular ( participada e não participada)15 = razão

b) Personagens que expõem o Diálogo:


Pitodoro → a alma divina = natureza indivisível dos seres16
Antifonte → a alma demoníaca17
Céfalo → as almas particulares18

Esses são, portanto, alguns dos papéis que desempenham os persona-


gens ao longo do texto e que revelam o aspecto extremamente original
da leitura procleana. Quanto à “natureza” do diálogo, isto é, se é um
exercício de lógica, de dialética ou um mero jogo de palavras, Proclo a

12 Prm 626. 10.


13 Segundo Proclo Parmênides representa a junção entre a razão e o ser. Com. Parm. p. 57.
14 A razão participada recebe do contato com a razão divina, os seres intelectuais. Parmênides
é o modelo que o discípulo imita em busca da perfeição.
15 Com. Parm. p. 57.
16 A imagem de Pitodoro que participa da primeira conferência silenciosamente, Proclo a asso-
cia com a ordem angélica responsável pela transmissão dos conhecimentos divinos.
17 Antifonte é o personagem que mantem contato com a natureza e que revela o elemento
irracional (os cavalos). É portanto, símbolo de uma alma intermediária entre as coisas divinas
(os conhecimentos recebidos de Pitodoro) e a natureza empírica (os filósofos de Clazômenas).
18 Céfalo e os filósofos de Clazômenas são imagens das almas particulares. Segundo Proclo do
mesmo modo que as coisas físicas participam das inteligíveis por intermédio das psíquicas, os
jônicos participam da filosofia contemplativa dos itálicos por intermédio dos atenienses. Cf.
Com. Parm. p. 61.
104 Filosofia Antiga

define como uma ginástica do olho da alma19. Ginástica no sentido de


um exercício, através do qual, a alma realiza uma verdadeira purificação
que, como nos diz H. D. Saffrey, permitirá compreender a revelação
divina de Platão. Revelação que será entendida por Proclo como uma
teogonia que segue um método científico em sua exposição20.
De modo que a filosofía do Parmênides está associada diretamente,
para os neoplatônicos, com a leitura do Timeu. Assim como no Timeu
todos os seres da natureza dependem diretamente do Demiurgo, no
Parmênides, os seres dependem do Uno. Este fato faz com que J.
Trouillard afirme a completa interação entre estes dois Diálogos pla-
tônicos21. Neste sentido, a discussão do Parmênides tem como base a
necessidade de um raciocínio purificador, ou seja, de uma preparação
do espírito para compreender o Uno primeiro. O diálogo, mais que
uma crítica à teoria eleática, é, antes de tudo, uma exposição comple-
ta de toda a geração cósmica por meio das processões e as henadas.
Para Proclo o diálogo tem na sua forma (simples e natural) a harmo-
nia perfeita do Uno. Dito isto, como passamos dos personagens ao
Uno em si?
Para Proclo, a reunião entre Adimanto e Glauco é a imagem concreta
da Díada na pluralidade unificada. Na figura de Glauco, admirado e

19 Cf. Com. Parm. p. 86 . Segundo Proclo existem três atividades (energueiai) dialéticas, são elas:
a que convem a juventude e que serve para desenvolver a razão por meio da busca em si mesma;
segundo, o repouso da razão dentro das coisas mesmas, dito de outro modo, o contemplar
a verdade em si mesma (Fedro 252b); por último, realizar uma espécie de parast th, que
serve para purificar a alma da sua dupla ignorância (Sofista 231 a). Cf. Com. Parm. p. 88.
Deste modo, a dialética tem o papel de condução da alma em direção a unidade originária.
Sobre a função da dialética, J. Trouillard nos recorda que a dialética platônica se caracteriza
como um diálogo da alma consigo mesma. Todo o projeto platônico consistiria numa reflexão
total da alma. No Parmênides esta reflexão é um reencontro, uma tomada de consciência do
pensamento consigo mesmo. Cf. TROUILLARD, L’un et l’âme selon Proclos, p. 22.
20 Cf. SAFFREY, La théologie platonicienne de Proclus, fruti de l’exégèse du Parménide en
Recherches sur le Néoplatonisme après Plotin. Paris: J. Vrin, 1990, p. 181.
21 Para Proclo do mesmo modo que no Timeu Platão ensina como as coisas são produzidas
pelo Demiurgo, no Parmênides, temos exposta a maneira pela qual os seres retiram seu ser do
Uno. Cf. Livro I;15, p. 74. Sobre a relação entre o Demiurgo e o Uno, Trouillard observa que
quando os neoplatônicos liam o Timeu, o faziam sempre sob a perspectiva do Parmênides.
Nos diz ele: quand ils voient le Démiurge former les âmes dans le cratère, ils entendent Parménide
dérouler les hypothèses du jeu final. Cf. L’ame du “Parménide et l’un du “Timée”, p. 111.
Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão 105

exaltado por Sócrates na República, e Adimanto, subjaz uma relação


que tem como princípio o confronto entre a perfeição e a imper-
feição. Não é por casualidade que Adimanto é aquele que estende
a mão, enquanto que Glauco permanece em silêncio22. De acordo
com Proclo, esse ato de Adimanto representa a força e, ao mesmo
tempo, a hospitalidade. O estender as mãos simboliza um convite ao
aperfeiçoamento. Este convite se completa na passagem 126b quan-
do Adimanto se dirige à Céfalo: “diz-nos, então, o que desejas” ; O
fato de que Céfalo tenha um desejo, um pedido é suficiente para que
Proclo interprete este simbolismo como expressão de uma necessidade
de abandono da alma da sua morada habitual que consiste nas ocu-
pações comuns.
Outro detalhe importante é que Céfalo se apresenta por um mo-
vimento espontâneo que é compreendido, por Proclo, como uma
disposição em participar do que é superior. E o que deseja precisa-
mente Céfalo? Atentemos para a seguinte passagem, diz Platão:

“Vosso irmão por parte de mãe, qual era mesmo o seu nome,
que não estou lembrando? Era, penso, um garoto, quando,
de uma vez anterior, vim de Clazômenas para cá; mas já faz
muito tempo desde então. O nome de seu pai era, parece-me,
Pirilampo” (126b).

Que importância tem esta passagem? Observemos os seguintes pon-


tos: a) Céfalo não pergunta diretamente por Antifonte, mas fala dele;
b) Céfalo não se lembra de Adimanto pois o mesmo era um garoto;
por último, c) Céfalo sabe o nome do pai. Estes três pontos são inter-
pretados, por Proclo, por um lado, como dissemos antes, como um
desejo de conhecimento e, por outro, como símbolo da apreensão
imperfeita da alma; esta imperfeição se apresenta como um esquecer-
se que implica um longo esforço e preparação para o conhecimento.
Além disso, a lembrança de Céfalo do nome do pai representa a ca-
racterística natural de uma alma que se move por si mesma, ou seja,
por uma visão confusa e mutável da realidade.

22 Parm. 126a.
106 Filosofia Antiga

Um ponto extremamente importante e que ilustra bem este aspecto


dramático e místico do diálogo encontramos no passo 127 a:

“Tendo dito isso, fomos andando, e alcançamos Antifonte


em casa, entregando a um ferreiro um freio para consertar.
Quando se desvencilhou dele e seus irmãos que lhe disseram
por que ali estávamos, reconheceu-me da visita anterior e
cumprimentou-me, pedindo-lhe nós que relatasse as conversa-
ções, a princípio relutou – pois era muito trabalho, disse – em
seguida entretanto expô-las por completo”.

Esta passagem guarda algo de extrema beleza e profundidade. Proclo


a compreende em dois sentidos: formal e moral. Do ponto de vista
formal, a claridade e a pureza de estilo com que é narrada a chegada à
casa de Antifonte é o símbolo mais claro, segundo Proclo, da subor-
dinação das partes ao todo posto que a figura está em perfeito acordo
com a simplicidade e a simplicidade em perfeito acordo como o tipo
de narrativa do Diálogo23.
Do ponto de vista moral temos expressos os princípios pitagóricos
que conduzem as almas em direção à perfeição como: a amizade e a
comunhão. Quando Antifonte abandona sua tarefa diária e se dispõe
a narrar a conversa entre Parmênides e Sócrates, ainda que reconhe-
cendo o esforço que exige tal tarefa, demonstra, de forma rigorosa
a virtude do verdadeiro amante da sabedoria frente às dificuldades.
É o abandono das almas das ocupações diárias e a entrega inteira ao
pensamento contemplativo.
Por fim, Proclo compreende a trama do diálogo como expressão
da magistral arte de Platão. É o mestre que faz uso da palavra para
expressar sua sabedoria mais profunda. Sabedoria esta que faz com
que todos os discursos presentes no texto se dirijam a um só ponto:
Parmênides. Por tudo isto, o Parmênides, como dirá Saffrey, é, para os
neoplatônicos um diálogo místico por excelência24.

23 Com. Parm. Libro II; 28, p. 114.


24 Cf. Saffrey , Le Neoplatonisme après Plotin, op. cit., p. 207.
Algumas considerações sobre a leitura procleana do Parmênides de Platão 107

Os cabelos inteiramente brancos25 de Parmênides são o testemunho


da sua sabedoria e da imagem da razão. A brancura é própria, dirá
Proclo, das almas que participam da luz intelectual. Parmênides é
a personificação do ideal de beleza e nobreza e Sócrates, ainda jo-
vem, simboliza a juventude típica dos deuses conforme o orfismo26.
Segundo Proclo, Platão se posiciona, pese suas inovações e divergên-
cias, como legítimo herdeiro do pensamento pitagórico.

Referências
PLATAO, Parmênides, edição estabelecida por John Burnet traduzida por
Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Rio: Loyola, 2003.
PROCLO, Commentaire sur le Parménides, edição bilingüe de A-ED. CHAIGNET,
Tomo Primer, Paris: Minerva, 1968.
SAFFREY, H. D., Proclus, diadoque de Platon in Recherches sur le néoplato-
nisme après Plotin, Paris: J. Vrin, 1990.
SAFFREY, H. D., Accorder entre les traditions théologiques: une caractéristique
du neoplatonismo athénien in On proclus and his influence in medieval philosophy,
Ed. E. P. Bos and P. A. Meijer. New York: E. J. Brill. 1992.
SAFFREY, La théologie platonicienne de Proclus, fruti de l’exégèse du Parménide
en Recherches sur le Néoplatonisme après Plotin. Paris: J. Vrin, 1990.
TROUILLARD, J. L’ um et l’âme selon Proclos, Paris: Les Belles Lettres,
1972.
TROUILLARD, J. La mystagogie de Proclos, Paris: Les Belles Lettres, 1982.

25 Parm. 126b.
26 Com. Parm. II; 34, p. 126.
109

Morte

Giovanni Casertano

O livro Morte do professor de História da Filosofia Antiga na


Università degli studi di Napoli “Federico II”, Giovanni Casertano,
é um estudo introdutório e bastante esclarecedor do sentido funda-
mental de pensar a morte enquanto finitude no âmbito da filosofia
pré-socrática e no pensamento de Platão. Nele, o autor prima por
percorrer e reconstruir um conjunto de reflexões que se estende de
Tales a Platão e visa apresentar os problemas de uma questão comple-
xa e esfacelada nos textos fragmentários dos primeiros pensadores e o
patamar que tal reflexão alcança na obra platônica.
A arquitetura do livro revela questões que vão desde a definição de
filosofia no sentido originário grego, passando pela prospectiva par-
menídea, pelas dimensões emotiva, dramática e serena da morte, pela
relação entre discurso e mito, pela articulação entre amor, morte, vida
e imortalidade, até a ascese ao belo e o horizonte da liberdade. Traz
também uma excelente bibliografia e um glossário que ajuda muito a
compreender os termos técnicos gregos. Neste sentido, descobrimos
na leitura deste livro o sem número de questões que ainda estão por
serem esclarecidas e a riqueza presente nas análises conceituais.
A morte é um tema primordial nos questionamentos que os homens
de todos os tempos fazem acerca de si próprios, da natureza humana
e do sentido da existência humana. Mas a maneira como os primei-
ros pensadores encaminharam suas especulações foge ao domínio
antropológico e espraia-se na physiología e na ontologia. Antes foram
levados a pensar no sentido de ser da realidade enquanto todo, to-
talidade existente: o vir a ser e o deixar de ser. No horizonte destas
especulações se mostrava o interesse em pensar o insondável e costu-
rar algum sentido para a compreensão do homem acerca dele mesmo
110 Filosofia Antiga

e do sentido dele existir e ainda o valor dessa existência. O binô-


mio vida/morte é investigado sob o ponto de vista da contrariedade
e também sob o ponto de vista da complementaridade, sendo um
mesmo processo aquele que vai da morte para a vida e aquele que vai
da vida para a morte. Em Heráclito encontra-se uma interpretação
fenomênica da morte, enquanto nos pitagóricos emerge um visão
mítica da imortalidade.
A história da noção de alma está diretamente ligada ao desenvolvi-
mento das investigações em torno da morte e da imortalidade. Os
discursos se multiplicaram mas o mistério permanecia. E saber-se
mortal não basta quando se desconhece a morte. A filosofia segue o
seu curso entre os gregos tecendo analogias entre o visível e o invisível
atendo-se aos limites da linguagem, as vezes tecendo mitos, outras
vezes mostrando que são inconsistentes.
Em Platão, a questão da imortalidade da alma recebe um tratamento
singular no diálogo Fédon, onde aparecem argumentos que trazem `a
tona aspectos da discussão pré-socrática e ridiculariza certas crenças
infundadas. Neste diálogo, Platão habilmente articula os argumentos
dos contrários e das idéias para dar profundidade à difícil compre-
ensão da alma e da sua imortalidade. Em todo caso, a morte está
presente também nas reflexões sobre o amor e sobre o sentido de filo-
sofar. Entrelaçam-se assim noções que para a maioria das pessoas são
divinas e por isso insondáveis, mas que aos olhos desejantes daqueles
que filosofaram e ainda hoje se ocupam da filosofia são divinas e por
isso precisam ser pensadas.
Mais que tudo, dar uma atenção especial ao tema da morte na filoso-
fia antiga e apontar as conseqüências deste pensamento para todas as
épocas e a sua indiscutível atualidade, pareceu-nos ter sido o propósi-
to do autor e, sem sombra de dúvida, o seu maior alcance.
O Ofício do Filósofo Estóico, o duplo registro do discurso da Stoa 111

O Ofício do Filósofo Estóico, o duplo registro


do discurso da Stoa

Rachel Gazolla

O livro de Rachel Gazolla, que faz parte da coleção “Leituras


Filosóficas”, promovida pelas Edições Loyola, antes de qualquer
tese específica da filosofia estóica, defende uma nova leitura do es-
toicismo antigo. A partir das fontes doxográficas, Gazolla tece uma
interpretação dos principais conceitos estóicos que os isola de todos
os maus-olhos da tradição ocidental, a qual mais se tem preocupado
com apontar incoerências no estoicismo grego do que em reconhecer
o quanto desse pensamento ainda carregamos em nossas caracterís-
ticas, sejam elas filosóficas ou práticas. Não obstante, o livro não
está preocupado com as idéias estóicas em relação à modernidade,
mas é exatamente esse o seu mérito: a obra consiste numa leitura
centrada tão somente nas informações mais antigas sobre a doutrina
em questão. Diógenes Laércio é uma das referências mais freqüentes
no texto de Gazolla, mas estão presentes também todos os autores
que Johannes Von Arnim reuniu naquela que é considerada a obra
primordial para qualquer pesquisa minimamente séria sobre o es-
toicismo grego: o Stoicorum Veterum Fragmenta – sem tradução em
língua portuguesa, vale salientar.
Além de trazer à tona os fragmentos para o leitor brasileiro, O Ofício
do Filósofo Estóico, ao reconhecer os limites das interpretações sobre
suas fontes, traça um esclarecimento pioneiro em língua portuguesa
sobre fundamentais conceitos gregos da Stoa que influenciaram a filo-
sofia pós-helenística, tais como lógos e phýsis – que, na falta de termos
mais apropriados, podemos momentaneamente traduzir, respectiva-
mente, por “lei” e “natureza”. E isso é mais do que reunir fragmentos
112 Filosofia Antiga

de textos arcaicos. É, enfim, reestruturar os fragmentos estóicos numa


unidade que recompõe um autêntico sistema filosófico.
A partir da articulação e da relação entre os textos originais, o livro
explora a noção do lógos no seu aspecto humano: é dada bastante
atenção ao problema da ação moral e das paixões dentro do âmbito
dos ensinamentos éticos estóicos.
Há no livro uma perspectiva histórica que situa a Stoa no mundo
grego em que os valores haviam se dissolvido – na época em que
escolas fechadas de filosofia se consolidaram, isoladas do cotidiano
das praças públicas. Nessa situação, o estoicismo legitima não mais
os valores de uma sociedade, mas a autarquia como princípio de ação
humana e como vínculo do homem com o cosmo. Assim, uma re-
lação originária é pensada entre o homem e a phýsis, relação esta em
que o homem se nota dentro do sentido (lógos) da realidade cósmica.
É aí que o lógos exerce o seu papel: os estóicos pensam então numa lei
natural expressa nos homens como manifestação imediata da phýsis.
Em contrapartida, o nómos seria a elaboração “artificial” (feita com o
labor humano) de normas.
Com isso, outra dificuldade surge e é tratada pela autora: a cisão
entre o campo humano e o campo cósmico. Gazolla detêm-se então
nesse dualismo entre “totalidade cósmica” – onde entram as questões
da física, da ética e da lógica –, e a “totalidade histórica” – elaborada
pelas particularidades humanas e suas ações no mundo –, procuran-
do provar que tais dualidades não são incoerências dentro do sistema
estóico, e sim dois patamares de uma mesma temática ontológica.
Frente a essa dificuldade, Gazolla declara que o discurso estóico pos-
sui um duplo registro – e assim se esclarece o subtítulo do livro. O
discurso da Stoa é totalmente perpassado pelo registro do caráter di-
vino e humano do mundo, pelo lógos totalizante e pela ação moral
enquanto constituinte dessa totalidade, pela phýsis abarcadora e pela
sua expressão peculiar enquanto racionalidade (lógos).
O cosmos tem inúmeras maneiras de se manifestar em nós.
Participamos de sua lógica por via de nossas necessidades tanto quan-
O Ofício do Filósofo Estóico, o duplo registro do discurso da Stoa 113

to de nossas ações. O humano e o divino é um só o tempo todo.


Contudo, pode-se ou não viver de acordo com esse todo, na aceitação
ou não de suas maneiras e de suas lutas naturais. Uma vida em de-
sacordo com a phýsis se debate contra o irrecuperável, contra aquilo
que o cosmos conspira a favor tal qual uma necessidade lógica do
universo. Tudo participa desse jogo, mas há, sem dúvida, uma vida
mais sábia do que outras (um tipo de sabedoria por excelência, já que
essa vida se identifica com o todo em harmonia). O sábio é o que é
porque, como diria Heráclito, ouve o lógos e aceita sua ordem.
É nesse trabalho sobre o caráter cósmico e ético das ações, sobre o di-
vino no homem, que os estóicos fundaram um novo ponto de partida
para avaliar a ação humana – e Rachel Gazolla reconhece esse pon-
to –, dando-lhe atenção central ao longo do livro. É uma análise não
apenas do caráter físico-histórico das decisões humanas, mas também
do seu caráter ontológico. Fundem-se, com isso, o campo do sensível
com o do representativo.
Ora, se o sensível é tido como instância da física e da lógica (já que
os estóicos vêem o mundo como um todo cheio de corpos em cons-
tante contato), tem-se que a ordem do fazer estará intrinsecamente
ligada à do conhecer: a ação se liga à representação, o movimento dos
corpóreos se conecta ao juízo moral. A partir das sensações, surgem
as representações e, com isso, a racionalidade encontra sua hylé: a
reflexão e a valoração dadas na representação chegam à matéria mes-
ma dos corpos através das ações que esses processos representativos
engendram, porque as ações humanas geralmente se dão a partir de
um processo intelectivo de decisão e, portanto, de racionalidade. É ao
reflexir e discernir sobre suas representações que a vida do sábio se dá
de acordo com a racionalidade, instância humana do lógos.
Outro ponto relevante para desmistificar o modelo estóico de vida é
o fato de que esse modelo consiste num modo de exercício de exis-
tência, e não num ideal que devesse ser alcançado mais à frente. O
modo de vida estóico se faz no exercício constante do lógos manifesto
no homem. Dito de outro modo, a vida sábia, segundo o estoicis-
mo, é aquela que, ao aceitar o lógos, assume seus laços com a phýsis
114 Filosofia Antiga

e afirma-se em cada ato através de sua capacidade representativa e


racionalizante.
É por toda essa elucidação dos problemas da doutrina estóica grega e
por despir tais aporias de qualquer descriminação e mesmo de toda a
interpretação tardia que tende a esquecer suas bases fisiológicas, que
O Ofício do Filósofo Estóico constitui leitura relevante tanto no estudo
da filosofia antiga quanto no esclarecimento de uma filosofia arcaica
que inaugura pensamentos em vigor até nas reflexões filosóficas mais
modernas.
115

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