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Revista de Filosofia

Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

ISSN 0104-8694

Natal, v.15, n. 24, jul./dez. 2008


Princípios – Revista de Filosofia ISSN 0104-8694
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Princípios, UFRN, CCHLA


v. 15, n. 24, jul./dez. 2008, Natal (RN)
EDUFRN – Editora da UFRN, 2008.
Revista semestral
1. Filosofia. – Periódicos
ISSN 0104-8694 (impresso)
ISSN 1983-2109 (on-line)
RN/UF/BCZM CDU 1 (06)
Revista de Filosofia
v.15 n.24 jul./dez. 2008
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

SUMÁRIO

ARTIGOS
Dificuldades da concepção de John Searle sobre a redução da consciência: o 05
problema das capacidades causais
Tárik de Athayde Prata

Olhar e memória na percepção cinematográfica 31


Susana Isabel Rainho Viegas

A abordagem da natureza da mente por Descartes e a crítica de Damásio 45


João Luis da Silva Santos

A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 59


Renato Moscateli

Egoísmo contra identidades: a avaliação da moral como estética da 81


existência e ética como amor-próprio
Jason de Lima e Silva

Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 99


Heraldo Aparecido Silva

Apercepção versus percepção: os espíritos na cosmologia leibniziana 135


Celi Hirata

Eckhart’s Bilder 167


Luís M. Augusto

Preservação da dignidade humana e aperfeiçoamento moral: a noção 187


kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo”
Letícia Machado Pinheiro

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008


Cuidado, educação e singularidade: idéias para uma filosofia da educação 209
em bases Heideggerianas
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 225


Luciano Donizetti da Silva

TRADUÇÕES
God is dreaming you”: Narrative as Imitatio Dei in Miguel de Unamuno 249
Costica Bradatan

O tema do “pecado original” na teoria do conhecimento de Nicolau de 267


Cusa
Gianluca Cuozzo

RESENHAS
Ceticismo e Naturalismo: algumas variedades, de P. F. Strawson 297
Itamar Luís Gelain

Shakespeare’s Philosophy: Discovering the meaning Behind the Plays, de 301


McGinn, Colin
Sandra S. F. Erickson

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008


Dificuldades da concepção de John Searle sobre a redução da
consciência: o problema das capacidades causais

Tárik de Athayde Prata * 1

Resumo: O artigo investiga a concepção de redução de Searle no que se refere à


compatibilidade entre redutibilidade causal e simultânea irredutibilidade ontológica da
consciência à atividade cerebral. A redução causal da consciência – a explanabilidade
causal de suas características por processos cerebrais e a identidade de suas capacidades
causais (seção 2) – é incompatível com a irredutibilidade ontológica (seção 3), porque
a diferença ontológica entre características subjetivas e objetivas torna a identidade das
capacidades causais incompreensível (seção 4). O principal problema é que a teoria de
Searle afirma e nega simultaneamente a identidade entre consciência e processos
cerebrais (seção 5).
Palavras-chave: Epifenomenalismo, Irredutibilidade ontológica, Redução, Supra-
determinação causal

Abstract: This paper investigates Searle’s account of reduction concerning the


compatibility between causal reduction and simultaneous ontological irreducibility of
consciousness to brain activity. The causal reduction of consciousness – the causal
explicability of its features by brain processes and the identity of its causal powers
(section 2) – is incompatible with ontological irreducibility (section 3), because the
ontological difference between subjective and objective features make the identity of
causal powers incomprehensible (section 4). The main problem is that Searle’s theory
states and simultaneously denies the identity between consciousness and brain
processes (section 5).
Keywords: Causal overdetermination, Epiphenomenalism, Ontological irreducibility,
Reduction

*
Professor da Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: tarikbilden@yahoo.de.
Artigo recebido em 16.07.2008, aprovado em 30.10.2008.
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da bolsa de Desenvolvimento Científico
Regional (CNPq/ FUNCAP) no departamento de Filosofia da Universidade Federal
do Ceará – UFC. Gostaria de agradecer ao Professor Andreas Kemmerling
(Universidade de Heidelberg – Alemanha) pela discussão detalhada de versões
anteriores do presente trabalho. Gostaria de agradecer também às críticas e sugestões
dos membros do Laboratório de Estudos de Filosofia Analítica da UFC, em especial
aos Professores Guido Imaguire, Cícero Barroso e Valdetônio Alencar, bem como
aos alunos André Pontes e Maxwell Morais.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 5-29


6 Tárik de Athayde Prata

1 Introdução
Quando Searle menciona pela primeira vez a oposição entre dualismo e
materialismo no seu livro A Redescoberta da mente, ele recorre
exatamente ao conceito de redução. No campo da filosofia da mente
das últimas décadas seria possível encontrar dois grupos: uma pequena
minoria que insiste na irredutibilidade dos fenômenos mentais e o
gigantesco grupo do mainstream, os materialistas, que concordam que
haveria um difícil problema mente- corpo caso o mental fosse, de fato,
irredutível ao físico (cf. Searle, 1992, p. 2). Mas o típico do
materialismo seria justamente reduzir os fenômenos mentais (com a sua
intentionalidade e consciência) 2 a fenômenos físicos. O reducionismo
emerge assim como uma característica central do materialismo, pois
todas as concepções materialistas tentariam reduzir os fenômenos
mentais (cf. Searle, 1998, p. 47). Searle tenta superar a oposição entre
dualismo e materialismo mantendo a verdade parcial de ambos (cf.
Searle, 2002b, p. 62-3 e 2004, p. 126). O ponto mais importante nessa
estratégia de Searle é, no meu modo de entender, sua concepção
própria de redução. Searle procura mostrar que as duas posições de um
certo modo estão corretas, ou seja, que os fenômenos mentais são de um
certo modo redutíveis e de outro modo irredutíveis. Para fundamentar
essa tese ele distingue entre diferentes conceitos de redução (cf. Searle,
1992, p. 113-4), sendo os mais importantes para sua teoria da
consciência os conceitos de redução causal e redução ontológica. Ele
afirma que a consciência é causalmente redutível e ontologicamente
irredutível. Mas, quando se considera atentamente suas reflexões sobre
o reducionismo, parece questionável que a posição de Searle seja
coerente, pois determinadas teses implicadas pela redutibilidade e pela
irredutibilidade defendidas por ele são incompatíveis. Em linhas gerais,

2
Intencionalidade e consciência estão entre as mais importantes características dos
fenômenos mentais segundo Searle (cf. Searle, 1984: 17). Mas enquanto ele designa
o problema da intencionalidade como “a mirror image of the problem of
consciousness” (Searle, 2004: 159) ele considera a consciência como a mais
importante característica mental: “there is no way to study the phenomena of the
mind without implicitly or explicitly studying consciousness. The basic reason for
this is that we really have no notion of the mental apart from our notion of
consciousness” (Searle, 1992: 18).
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 7

o problema pode ser exposto através da comparação das teses básicas da


teoria em questão. A redução causal da consciência significa para Searle
que (cf. seção 2):

(a) as características da consciência são explicáveis através de processos


cerebrais;
(b) as capacidades causais da consciência são exatamente as capacidades
causais dos processos cerebrais.

Tais asserções são incompatíveis com a tese da irredutibilidade


ontológica em dois aspectos, na medida em que a irredutibilidade
ontológica implica as duas teses seguintes (cf. seção 3):

(a’) as cacterísticas da consciência – por serem subjetivas – são indescritíveis


em vocabulário objetivo;
(b’) A consciência subjetiva e os processos cerebrais objetivos são entidades
ontologicamente diferentes.

A comparação dessas teses constitutivas da redutibilidade causal e


da irredutibilidade ontológica faz surgir as seguintes perguntas:

(a’’) se as características subjetivas da consciência não podem ser descritas em


vocabulário objetivo, como é possível uma explicação da consciência
através de processos cerebrais?
(b’’) se a consciência e os processos cerebrais são entidades diferentes, por que
que eles têm as mesmas capacidades causais?

No que se segue será discutido em que medida é possível


responder a pergunta (b’’) e conciliar as teses (b) e (b’) acima, pois o
caso da pergunta (a’’) não é tão problemático. Penso que no caso da
explanabilidade das características pode-se ter uma idéia de como Searle
poderia considerar (a) e (a’) como compatíveis, a saber, ao defender uma
concepção própria de explicação. Na concepção de Searle o ponto
decisivo é que o fenômeno que explica seja causalmente suficiente e
necessário para o fenômeno que é explicado, e se a explicação é
entendida assim, então as teses (a) e (a’) são compatíveis. O problema é
que essa concepção de explicação parece problemática para muitos,
sobretudo aqueles que defendem a tese de uma lacuna explanatória
entre o exame de fenômenos objetivos (p. ex. processos cerebrais) e o
8 Tárik de Athayde Prata

aspecto qualitativo dos estados de consciência (cf. Nida-Rümelin,


2002ª, p. 216; Levine, 1983). Mas aprofundar o tema da lacuna
explanatória não é o objetivo do presente trabalho, pois no que diz
respeito a esse tema a situação não é tão grave, uma vez que Searle já
desenvolveu (contra os defensores da lacuna explanatória) as linhas
básicas de uma concepção alternativa de explicação (cf. seção 2.1), o
que torna sua posição a esse respeito minimamente inteligível. Mas no
que diz respeito à identidade das capacidades causais mal se pode ter uma
idéia de como Searle concebe a compatibilidade de (b) e (b’), pois sua
teoria acerca dessas capacidades parece ser inconsistente.
É um fato bem conhecido que a pretensão de Searle de conciliar
dualismo e materialismo levou diversos comentadores a avaliarem sua
filosofia da mente como incoerente (cf. p. ex. Snowdon, 1994, p. 259;
Olafson, 1994, p. 255). Uma tentativa muito interessante de mostrar
incoerências na filosofia da mente de Searle se encontra em Corcoran
(2001), que reconstitui as teses básicas do naturalismo biológico (nome
dado por Searle à sua solução do problema mente-corpo) da seguinte
maneira (cf. Corcoran, 2001, p. 309):

(1) Consciousness is a real, irreducible mental feature of the world.


(2) Consciousness is a biological, i. e. physical feature of the brain.
(3) Consciousness is entirely caused by and so is wholly explainable in terms
of the behavior of lower-level biological phenomena
(4) Mental states are causally eficacious, i. e. mental states cause other
mental states as well as causing physiological events

Assim, Corcoran leva em consideração a irredutibilidade


ontológica – tese (1) – e a redutibilidade causal – teses (2) e (3) – assim
como a eficácia causal do mental – tese (4). O propósito do
comentador é mostrar que (1) e (2), de um lado, e (3) e (4), por outro
lado, estão em contradição. A estratégia usada no presente trabalho é
ressaltar a concepção de Searle acerca das capacidades causais da
consciência. Essa concepção das capacidades causais é reconstituída
aqui de um modo bem mais detalhado do que fez Corcoran, e é em
seguida contraposta à tese da eficácia causal dos processos cerebrais e à
tese da diferença ontológica entre a consciência e estes processos (cf.
seção 4). A consideração de todas essas teses defendidas por Searle
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 9

mostra que é possível deduzir, a partir delas, conclusões contraditórias


com algumas de tais premissas, dependendo de como se interprete a
tese da irredutibilidade ontológica (cf. seção 5).

2 A redutibilidade causal da consciência


De acordo com Searle estados de consciência precisam de entidades
com um certo grau de complexidade para poderem ser instanciados,
pois eles são propriedades sistêmicas. Parece de fato implausível dizer que
um dos meus neurônios tem dor, quando eu sinto uma dor. É
altamente plausível que apenas sistemas suficientemente complexos de
neurônios possam instanciar a minha dor, e não neurônios isolados.
Certas propriedades sistêmicas poderiam ser explicadas apenas com
recurso às interações causais das partes do sistema. Ele chama essas
propriedades de propriedades sistêmicas causalmente emergentes e a
consciência seria uma delas (cf. Searle, 1992, p. 112). Do fato de que a
consciência seria uma propriedade emergente, Searle conclui que a
consciência seria causalmente redutível aos processos no nível
microscópico (cf. Searle, 1992, p. 116) A redução causal é caracterizada
por ele da seguinte maneira:
Consciousness is causally reducible to brain processes, because all features of
consciousness are accounted for causally by neurobiological processes going
on in the brain, and consciousness has no causal powers of its own in
addition to the causal powers of the underlying neurobiology. (Searle,
2002b, p. 60, grifos meus)

Esses dois aspectos da redução causal serão tratados nas


próximas seções (2.1 e 2.2). Mas um ponto tem de ser ressaltado:
embora o próprio Searle reconheça que as reduções causais
normalmente levam a reduções ontológicas (Searle, 1992, p. 115), ele
tenta provar que a consciência é uma exceção a essa regra, na medida em
que sua redução ontológica não seria possível. Justamente essa
irredutibilidade ontológica defendida por ele (cf. seção 3) parece ser
incompatível com a redutibilidade causal (cf. seção 4).

2.1 A explanabilidade das características da consciência


Searle não explicita o que ele entende por explanação causal nos textos
onde ele postula a redutibilidade causal da consciência. Mas tal
10 Tárik de Athayde Prata

concepção de explanação é apresentada em outras passagens de sua


obra. Trata-se da constatação de relações causais entre o cérebro e a mente.
Nesse sentido ele pensa que essa constatação pode ser alcançada pelos
mesmos meios que no caso de outros fenômenos naturais (cf. Searle,
1992, p. 103), e na medida em que nós constatássemos essas relações
causais, nós poderíamos construir uma teoria geral das relações causais
entre mente e cérebro. Searle descreve o procedimento da seguinte
maneira:

First we find correlations between brute empirical phenomena. Then we test


the correlations for causality by manipulating one variable and seeing how it
affects the others. Then we develop a theory of the mechanisms involved
and test the theory by further experiment. (Searle, 2002a, p. 49)

Esse procedimento pode ser exemplificado pela teoria das


doenças baseada na idéia de germes:

Think, for example, of the development of the germ theory of disease. (…)
Semmelweis in Vienna in the 1840s found that women obstetric patients in
hospitals died more often from puerperal fever than did those who stayed at
home. So he looked more closely and found that women examined by
medical students who had just come from the autopsy room without
washing their hands had an exceptionally high rate of puerperal fever. Here
was an empirical correlation. When he made these young doctors wash their
hands in chlorinated lime, the mortality rate went way down. He did not yet
have the germ theory of disease, but he was moving in that direction.
(Searle, 2002a, p. 49)

No presente as neurociências estariam em um estado ainda mais


rudimentar do que a situação descrita acima. Mas esse modelo deveria
ser aplicado à investigação da consciência. Searle descreve os três passos
a serem seguidos da seguinte maneira:

First, one finds the neurobiological events that are correlated with
consciousness (the NCC). Second, one tests to see that the correlation is a
genuine causal relation. And third, one tries to develop a theory, ideally in
the form of a set of laws, that would formalize the causal relationships.
(Searle, 2002a, p. 49; cf. Searle, 2004, p. 146)
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 11

No momento, os neurocientistas ainda estão no primeiro passo,


ou seja, eles ainda estão à procura dos NCCs (Neural Correlates of
Consciousness), mas Searle acredita que a aplicação desse procedimento
pode levar à solução do problema empírico da consciência. Um ponto
decisivo é que as relações entre os correlatos neurais e os estados de
consciência possam ser consideradas causais: “what we are trying to
establish ideally is a proof that the element is not just correlated with
consciousness, but that it is both causally necessary and sufficient, others
things being equal, for the presence of consciousness” (Searle, 2002a, p.
50, grifo meu). Nesta citação, Searle indica duas características
essenciais da relação causal entre processos cerebrais e estados de
consciência: necessidade e suficiência. Elas são caracterizadas por ele da
seguinte maneira: “To establish necessity, we find out whether a subject
who has the putative NCC removed thereby loses consciousness; to
establish sufficiency, we find out whether an otherwise unconscious
subject can be brought to consciousness by inducing the putative
NCC” (Searle, 2002a, p. 50. cf. Searle, 1992, p. 74-5). Searle
reconhece que as dificuldades empíricas para esse projeto de pesquisa
são gigantescas, mas ele rejeita o pessimismo (cf. Searle, 2004, p. 146) e
acha que a necessidade e a suficiência causais são o bastante para uma
explanação autêntica.

2.2 A identidade dos poderes causais da consciência e do sistema


cerebral
Em The Rediscovery of the Mind, Searle caracteriza a redutibilidade
causal (em geral) com o conceito da explanabilidade: os poderes causais
do fenômeno reduzido (assim como sua existência) seriam explicáveis
através dos poderes causais do fenômeno redutor (Searle, 1992, p.
114). Em formulações mais recentes do conceito de redutibilidade
causal, ele se expressa de modo diferente, ao considerar as capacidades
causais como idênticas. A consciência e sua base neurobiológica teriam
as mesmas capacidades causais: “the causal powers of consciousness and
the causal powers of its neuronal base are exactly the same” (Searle,
2004, p. 127). Recorrendo à analogia com propriedades sistêmicas
comuns, Searle afirma que de um ponto de vista causal só há uma coisa,
a saber, a neurobiologia:
12 Tárik de Athayde Prata

causally speaking there is nothing there, except the neurobiology, which has
a higher level feature of consciousness. In a similar way there is nothing in
the car engine except molecules, which have such higher level features as the
solidity of the cylinder block, the shape of the piston, the firing of the spark
plug, etc. (Searle, 2002b, p. 60)

Exatamente como no caso de propriedades sistêmicas normais,


a consciência não seria um fenômeno separado do cérebro, mas sim um
estado no qual o sistema cerebral se encontra no nível macroscópico:

‘Consciousness’ does not name a distinct, separate phenomenon, something


over and above its neurobiological base, rather it names a state that the
neurobiological system can be in. Just as the shape of the piston and the
solidity of the cylinder block are not something over and above the
molecular phenomena, but are rather states of the system of molecules, so
the consciousness of the brain is not something over and above the neuronal
phenomena, but rather a state that the neuronal system is in. (Searle, 2002b,
p. 60)

Em suma, trata-se de uma entidade (o sistema cerebral), que


tem a consciência como uma propriedade entre outras: “There is
nothing in your brain except neurons (together with glial cells, blood
flow and all the rest of it) and sometimes a big chunk of the
thalamocortical system is conscious” (Searle, 2002b, p. 60-1). Ao se
fazer referência à consciência, não se faz referência a algo diferente do
sistema cerebral, mas sim ao próprio sistema em um nível mais
elevado 3 : “We are not talking about two different entities but about the
same system at different levels.” (Searle, 2004, p. 128, grifo meu)
Searle não argumenta explicitamente para a tese que as
capacidades causais da consciência e dos processos cerebrais são as
mesmas, mas é plausível que ele acredite que esse fato se mostra a partir
da estreita conexão entre a consciência e os processos cerebrais. Do fato
de que os fenômenos mentais conscientes estão em correlação com

3
A consciência não é necessariamente uma propriedade do sistema cerebral como um
todo, mas sim uma propriedade de partes do sistema cerebral que possuem a
complexidade necessária: “sometimes a big chunk of the thalamocortical system is
conscious” (Searle, 2002b: 60-1, grifo meu). “Individual neurons are not conscious,
but portions of the brain system composed of neurons are conscious” (Searle, 2004:
114, grifo meu).
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 13

processos eletroquímicos no cérebro, e do fato de que estes processos


são suficientes para causar nossos movimentos corporais e outros
processos fisiológicos, poder-se-ia concluir que os dois tipos de
fenômenos (processos cerebrais no nível microscópico e consciência no
nível macroscópico) têm as mesmas capacidades causais. Mas, se é
assim, parece que ele concebe a identidade das capacidades causais
como decorrente da identidade das próprias coisas em questão.

3 O argumento para a irredutibilidade ontológica


Searle reconhece que reduções causais normalmente levam a reduções
ontológicas, entretanto ele nega que seja assim no caso da mente. A
consciência (a característica essencial do mental) seria uma exceção a
essa regra. No que se segue, vou oferecer minha interpretação de (a)
porque as reduções causais levam a reduções ontológicas e (b) porque a
consciência seria uma exceção. Suponhamos o caso de uma sistema
material qualquer, como p. ex. um pedaço de ferro. Na concepção de
Searle, esse sistema tem propriedades que não pertencem às suas partes
constituintes (voltemo-nos para o nível das moléculas de ferro) mas sim
ao sistema no nível macroscópico. De tais propriedades sistêmicas,
algumas poderiam ser deduzidas ou calculadas a partir das propriedades
das partes consituintes, p. ex. a forma ou o peso do pedaço de ferro.
Mas algumas delas, ao contrário, poderiam ser explicadas somente
através das interações causais das partes constituintes, p. ex. a solidez ou
a temperatura do pedaço de ferro. Essas interações causais podem ser
descritas do seguinte modo: elas ocorrem por causa das propriedades que
as partes constituintes possuem (p. ex. a energia cinética de cada
molécula isolada) que influenciam as relações (designadas por
predicados poliádicos) das partes constituintes entre si. Tais partes
possuem propriedades que influenciam a suas relações recíprocas, p. ex.
a energia cinética de cada molécula influencia suas ligações com as
outras moléculas. Ao nível das partes componentes do sistema ocorrem
diversos eventos e processos, na medida em que propriedades surgem e
se modificam. 4 Porque as partes componentes (as moléculas) têm

4
Eu penso que essa série de estados, eventos e processos é exatamento que Searle quer
designar com o termo “comportamento”: “We discovered that a surface feature of a
phenomenon was caused by the behavior of the elements of an underlying
14 Tárik de Athayde Prata

determinadas propriedades, p. ex. um determinado nível de energia


cinética, suas relações recíprocas são influenciadas de tal modo que o
sistema no nível macroscópico (o pedaço de ferro) tem uma
determinada propriedade, p. ex. uma determinada temperatura ou um
determinado grau de solidez. Essas propriedades sistêmicas, que podem
ser explicadas através das interações causais entre as partes
componentes, e que não possuem capacidades causais que não possam
ser explicadas através dessas interações, são denominadas por Searle de
“propriedades sistêmicas causalmente emergentes” (cf. seção 2). E do
fato de que essas propriedades sistêmicas são causalmente emergentes
segue-se, segundo ele, que elas são causalmente redutíveis aos fenômenos
subjacentes (cf. Searle, 1992, p. 116). A redutibilidade causal consiste
na explanabilidade das características do fenômeno reduzido através das
interações causais no nível do fenômeno redutor (assim as
características da solidez são explicáveis através das interações causais
das moléculas de ferro) e na identidade das capacidades causais do
fenômeno reduzido com as capacidades causais do fenômeno redutor
(assim as capacidades causais do pedaço de ferro são idênticas às
capacidades causais da totalidade de moléculas de ferro em interação).
A pergunta, então, é por que as reduções causais levam a
reduções ontológicas? Segundo Searle, a redução causal possibilita uma
redefinição do fenômeno reduzido. Se uma redução causal é bem
sucedida, pode-se normalmente redefinir a expressão que designa o
fenômeno reduzido, de modo que se pode identificar esse fenômeno
com as suas causas. Sobre a redução do calor, solidez e som Searle
afirma: “In each case, the causal reduction leads naturally to an
ontological reduction by way of a redefinition of the expression that
names the reduced phenomenon.” (Searle, 1992, p. 115) Ele diz
explicitamente que “the reduced phenomena (…) can now be
identified with their causes.” (Searle, 1992, p. 115). Mas o que significa
dizer que um efeito é idêntico à sua causa? Como se pode entender isso?
Parece-me estranho que Searle afirme algo assim. Essa afirmação se

microstructure” (Searle, 1992: 118) “phenomena of the type A are causally reducible
to phenomena of the type B, if and only if the behavior of A’s is entirely causally
explained by the behavior of B’s” (Searle, 2004: 119).
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 15

deve certamente ao fato de ele defender a concepção incomum de que


as propriedades sistêmicas estão em uma relação causal com os
fenômenos no nível microscópico do sistema, concepção que é criticada
por diversos intérpretes (cf. Thompson, 1986, p. 95; Churchland,
1994, p. 14; Kim, 1995, p. 194). Porém, em lugar de dizer que o efeito
é idêntico à causa, parece-me mais razoável dizer que se trata de
identidade no sentido de que se descobre algo novo sobre a propriedade
sistêmica quando se constata que ela é causada por aqueles processos
microscópicos determinados. Trata-se de identidade no sentido de que
se descobre que a descrição das características superficiais da propriedade
e a descrição da sua causação por aqueles processos microscópicos na
realidade se referem à mesma coisa. A propriedade sistêmica é
identificada com a propriedade que tem aqueles processos
microscópicos como sua causa.
Eu interpreto a concepção de Searle acerca da redução
ontológica da seguinte maneira: ao se constatar que a existência de uma
propriedade sistêmica e suas características superficiais são explicáveis
através de processos microscópicos e que as capacidades causais da
propriedade sistêmica são idênticas com as capacidades causais de tais
processos, obtem-se um novo acesso à propriedade sistêmica, porque
agora se pode fazer referência a ela não apenas através de suas
características superficiais, mas também através dos processos
microscópicos que causam essas características. Nós descobrimos algo
novo sobre a propriedade ao descobrirmos que ela tem determinadas
causas: “We discovered that a surface feature of a phenomenon was
caused by the behavior of the elements of an underlying
microstructure.” (Searle, 1992, p. 118, grifo meu). A redução causal
possibilita uma redefinição da propriedade sistêmica porque ela produz
uma nova descrição dela, através da qual a propriedade pode ser
redefinida. Para permanecer com nosso exemplo, acaba se revelando
que a temperatura do pedaço de ferro é idêntica com a propriedade
complexa que é causada quando numerosos processos ocorrem na sua
microestrutura (no que as moléculas se movimentam e interagem de
um determinado modo, o sistema tem uma determinada temperatura).
Graças ao resultado da redução causal podemos deixar as características
16 Tárik de Athayde Prata

superficiais da propriedade sistêmica de lado e redefinir esse fenômeno


através de suas causas:

the point of the reduction was to carve off the surface features and redefine
the original notion in terms of the causes that produce those surface features
(…) We then redefine heat and color in terms of the underlying causes of
both the subjective experiences and the other surface phenomena. And in
the redefinition we eliminate any reference to the subjective appearances and
other surface effects of the underlying causes. (Searle, 1992, p. 119)

Diante dessas reflexões, surge a pergunta: por que a redução


causal da consciência não leva a uma redução ontológica? Para
fundamentar a tese da irredutibilidade ontológica da consciência, Searle
recorre a argumentos importantes das últimas décadas que, segundo ele,
seriam simplesmente diferentes versões do mesmo argumento. Tanto o
argumento modal de Saul Kripke contra a teoria da identidade em
Naming and Necessity (1972), quanto as considerações de Thomas
Nagel sobre o caráter subjetivo da consciência em What is it like to be a
Bat? (1974), e o argumento do conhecimento, originalmente proposto
por Frank Jackson em Epiphenomenal Qualia (1982), mostram, de
acordo com Searle, que fatos subjetivos não podem ser identificados 5
com fatos objetivos. Com o exemplo do pedaço de ferro em mente
considere-se os fatos nos quais consiste, na apresentação de Searle, um
estado de consciência como a dor:

Naively, there seem to be at least two sorts of facts. First and most
important, there is the fact that you are now having certain unpleasant
conscious sensations, and you are experiencing these sensations from your
subjective, first-person point of view. It is these sensations that are
constitutive of your present pain. But the pain is also caused by certain
underlying neurophysiological processes consisting in large part of patterns of

5
Searle diz na realidade que eles não podem ser reduzidos à fatos objetivos. Mas eu
considero mais claro falar de “identificação”, pois a redutibilidade ontológica se
baseia em uma relação de identidade, de modo que a irredutibilidade ontológica se
deve ao fato de que fatos subjetivos não são idênticos a fatos objetivos.
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 17
neuron firing in your thalamus and other regions of your brain. (Searle,
1992, p. 117, grifo meu) 6

Isso parece estar em perfeito paralelo com o caso do pedaço de


ferro, na medida em que uma propriedade sistêmica está presente (a
dor), a qual é causada por processos microscópicos, de modo que suas
características superficiais são explicáveis através de tais processos e suas
capacidades causais seriam idênticas com as capacidades destes últimos.
Apesar disso, a redução ontológica (a constatação de uma identidade de
tipos) da consciência aos processos cerebrais (ou seja, ao
comportamento do sistema no nível microscópico) não é possível,
porque essa redução deixaria de fora as “características essenciais” dos
estados de consciência (cf. Searle, 1992, p. 117). Ele escreve a esse
respeito: “No description of the third-person, objective, physiological
facts would convey the subjective, first-person character of the pain,
simply because the first-person features are different from the third-
person features” (Searle, 1992, p. 117, grifo meu). Eu interpreto a
asserção de Searle, de que as características subjetivas seriam
“diferentes” das características objetivas, como uma afirmação de que
não há uma relação de identidade. Discutindo em seu livro mais
recente a problemática da redução da consciência, Searle descarta a
hipótese de que esta seja “nada além” de comportamento neuronal,
afirmando que “Consciouness is entirely causally explained by neuronal
behavior but it is not thereby shown to be nothing but neuronal behavior”
(Searle, 2004, p. 119, grifo meu), o que constitui claramente uma
recusa da identidade entre consciência e atividade cerebral.
Diferente do caso da solidez ou da temperatura, às quais se
pode fazer referência através da descrição dos processos microscópicos,
não seria possível fazer referência a estados de consciência (pelo menos
não às suas características subjetivas) através da descrição de processos
cerebrais, porque tais estados exigem outro tipo de conceitos que os
fenômenos objetivos. Os conceitos que fazem referência a fenômenos
objetivos não podem expressar as características subjetivas. Mesmo que

6
Em outra passagem ele afirma: “first there is a set of ‘physical’ facts involving my
thalamus and other regions of the brain, and second there is a set of ‘mental’ facts
involving my subjective experience of pain” (Searle, 1992: 120).
18 Tárik de Athayde Prata

se tente redefinir as características superficiais da consciência através de


conceitos neurobiológicos objetivos, “you would still need a vocabulary
to talk about the surface features” (Searle, 2004, p. 120). Se a
consciência é tão diferente dos fenômenos objetivos a ponto de nós
precisarmos de outros conceitos para poder fazer referência a ela, então
parece que nós estamos diante de uma cisão conceitual muito
semelhante ao dualismo conceitual recusado por Searle. 7 O motivo pelo
qual um vocabulário objetivo é inadequado para descrever estados de
consciência (como teria sido provado por Kripke, Nagel e Jackson) é
simplesmente que tais estados existem de um modo diferente do que o
modo de existência dos fenômenos objetivos. Searle diz que os estados
de consciência seriam causados por processos cerebrais objetivos e que
eles seriam fenômenos neurofisiológicos subjetivos. Mas, na medida em
que eles seriam subjetivos, os estados de consciência se diferenciariam
fundamentalmente de quaisquer estados objetivos do cérebro (embora
eles sejam supostamente causados por microprocessos no cérebro) 8
porque eles teriam um outro modo de existência, e essa diferença
ontológica faz com que os estados de consciência não possam ser idênticos
a estados neurofisiológicos objetivos, pois eles não têm todas as
propriedades em comum. Estados de consciência subjetivos têm, p. ex.,
um aspecto qualitativo, enquanto estados objetivos do cérebro não têm
tal aspecto. Essa diferença entre os dois tipos de fenômenos indica que
estados de consciência e estados objetivos do cérebro não são idênticos.
E se é assim, a redefinição exigida pela redução ontológica não seria
possível. A não-identidade entre propriedades sistêmicas subjetivas e
objetivas leva a diversas dificuldades no que diz respeito à

7
Sobre a sua refutação do dualismo conceitual cf. (Searle, 1992: 26) e (Searle, 2004:
116-8).
8
Temos aqui uma assimetria estranha, pois embora os estados de consciência
(exatamente como qualquer propriedade sistêmica objetiva do cérebro – p.ex. a carga
elétrica do cérebro como um todo) sejam causados por processos microscópicos
objetivos, eles seriam subjetivos. Por que a consciência se diferencia de modo tão
fundamental das propriedades sistêmicas objetivas embora ela tenha a mesma origem
das propriedades sistêmicas objetivas? Essa assimetria faz com que não pareça muito
razoável que a consciência (tal como Searle a concebe) seja um objeto de pesquisa
das neurociências.
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 19

compatibilidade entre redutibilidade causal e irredutibilidade


ontológica.

4 A identidade das capacidades causais e a diferença ontológica


É muito difícil entender como Searle poderia colocar em acordo a
identidade das capacidades causais com a diferença ontológica. Para
esclarecer a identidade das capacidades causais da consciência e dos
processos cerebrais, Searle recorre ao caso de propriedades sistêmicas
comuns (p.ex. solidez ou liquidez). No caso dessas propriedades a
identidade das capacidades causais da propriedade de nível superior e
dos processos no nível inferior não é problemática, porque a redução
causal levou à redução ontológica. Nesse caso, a propriedade sistêmica
reduzida é idêntica ao comportamento da microestrutura do sistema. A
redução causal (a constatação de explanabilidade das características e da
identidade das capacidades causais) tem como resultado que a descrição
das características superficiais da propriedade sistêmica e a descrição dos
microprocessos que a causam se referem à mesma coisa.
Mas se se atribui à consciência um modo de existência
subjetivo, ela parece não poder ser comparada com tais propriedades
comuns. Por um lado, a consciência seria causada por microprocessos
no cérebro e por isso seria uma propriedade do cérebro. Apesar disso, a
consciência seria uma propriedade que se diferencia fundamentalmente
de todas as propriedades objetivas do cérebro, por ela ser subjetiva:
“Consciousness is thus an aspect of the brain, the aspect that consists of
ontologically subjective experiences.” (Searle, 2004, p. 128). Se a
consciência é ontologicamente subjetiva, então ela não pode ser idêntica
ao comportamento da microestrutura do cérebro (que é objetiva). A
descrição das características superficiais da consciência e a descrição dos
processos cerebrais não se referem à mesma coisa e, se não se trata da
mesma coisa, então a identidade das capacidades causais é muito
estranha, pois o efeito parece ter duas causas – caso ambos (a
consciência e o cérebro) sejam causalmente eficazes.
É muito esclarecedor comparar os dois tipos de propriedades
sistêmicas, a saber, as ontologicamente subjetivas e as ontologicamente
objetivas. Considere-se o caso de uma propriedade sistêmica
causalmente emergente (e objetiva) do cérebro como a sua consistência
20 Tárik de Athayde Prata

(trata-se, mais exatamente, de seu grau de solidez). Essa propriedade é


causada pelas interações das moléculas que compõem o cérebro. As
capacidades causais da consistência do cérebro 9 são idênticas às
capacidades causais da totalidade das moléculas em interação, e isso é
evidente porque a consistência é idêntica com o tipo de interação (ou
com o comportamento da microestrutura). Tem-se que ressaltar que,
tanto o sistema quanto suas partes constituintes, são fenômenos
ontologicamente objetivos, isto é, eles existem independentemente de
quaisquer sujeitos (porque o cérebro, suas partes físicas e a consistência
não incluem nenhuma vivência em sua existência). No caso de
propriedades sistêmicas ontologicamente subjetivas do cérebro (como
sensações, crenças ou intenções), existem muitos pontos em comum,
mas também uma diferença enorme e fundamental. Essas propriedades
são (segundo a teoria de Searle) causadas pelas interações das partes
constituintes do sistema nervoso (p.ex. uma percepção visual consciente
é causada pela estimulação dos receptores na retina, pela transmissão
nervosa através das sinapses até o córtex visual e pelo processamento
nessa parte do cérebro) e as capacidades causais de tal propriedade
sistêmica subjetiva são aparentemente as mesmas capacidades causais
das partes do cérebro em interação. Por exemplo, a eficácia causal de
uma percepção consciente – como a percepção de um leão furioso –
sobre os movimentos corporais de um organismo parece ser exatamente
a eficácia causal dos processos cerebrais que causam a percepção: a
percepção, assim como os processos cerebrais subjacentes, levam o
organismo a fugir. 10 Mas, no que os dois tipos de propriedades se
diferenciam ontologicamente, as características subjetivas da percepção
não podem ser expressas pela descrição dos processos cerebrais, e isso já é

9
Que tipo de capacidades causais possui o cérebro enquanto objeto comum? Essa
questão exige um esforço de imaginação. Com um cérebro morto nós poderíamos,
p. ex., empurrar uma pequena bola sobre uma superfície estável. Isto é, a
consistência do cérebro equanto objeto físico pode colocar a bola em movimento.
Essa propriedade pode causar um evento físico (o deslocamento da bola).
10
Pode-se acrescentar que a percepção tem esse efeito sobre o comportamento apenas
em conexão com outros fenômenos mentais – como a crença de que leões são
perigosos e o desejo de evitar o perigo. Mas isso não é um problema, pois as crenças
e desejos também seriam causadas por processos cerebrais.
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 21

um bom motivo para se considerar ambos como entidades diferentes. O


simples fato de que os processos cerebrais e as percepções seriam
ontologicamente diferentes (estas são subjetivas, aqueles são objetivos),
implica que eles pertencem a tipos diferentes, de modo que a identidade
das capacidades causais é incompreensível.
São as capacidades causais da percepção (com suas
características subjetivas) ilusórias? Essa seria uma possível leitura da
afirmação de que a consciência não possui poderes causais além
daqueles da sua base neurobiológica. Se é assim, então estamos diante
de um teoria epifenomenalista. Mas Searle não gostaria de defender tal
posição. Ele diz repetidamente que a consciência é causalmente eficaz.
Se se considera então as capacidades causais da consciência como reais,
então parece que o efeito (em nosso exemplo a fuga diante do leão) tem
mais de uma causa: tanto a percepção subjetiva quanto os processos
cerebrais objetivos. Se é assim, então estamos diante de uma posição
que implica uma supradeterminação causal. 11 Mas Searle não gostaria de
aceitar tal consequência. 12 O ponto é que se pode deduzir a partir da
concepção de Searle teses contraditórias. Partamos da tese da eficácia
causal do mental:

(1) A consciência é causalmente eficaz, de modo que fenômenos mentais


conscientes causam o comportamento humano.
(2) As capacidades causais da consciência são as mesmas dos processos cerebrais.

11
Esse problema, que Searle atribui ao dualismo de propriedades, é resumido por ele
conforme se segue: “when I raise my arm, there is a story to be told at the level of
neuron firings, neurotransmitters and muscle contractions that is entirely suffcient
to account for the movement of my arm. So if we are to suppose that consciousness
also functions in the movement of my arm, then it looks like we have two distincts
causal stories, neither reducible to the other; and to put the matter very briefly, my
bodily movements have too many causes. We have causal overdetermination”
(Searle, 2002b: 59).
12
A recusa da supradeterminação por Searle fica clara na seguinte passagem: “Nobody
thinks that we are forced to postulate that solidity is epiphenomenal on the grounds
that it has no causal powers in addition to the causal powers of the molecular
structures, nor they think that if we recognize the causal powers of solidity we are
forced to postulate causal overdetermination (...) Why are we inclined to make this
mistake for consciousness when we would not think of making it for other causal
phenomena? ” (Searle, 2002b: 62, grifos meus).
22 Tárik de Athayde Prata

(3) Processos cerebrais causam o comportamento humano.


(4) Consciência e processos cerebrais não são idênticos.
(5) O comportamento humano tem um tipo de causa, isto é, ele não é
supradeterminado.
_______________
De (1) & (3) & (4) segue-se:

(C1) O comportamento humano tem dois tipos diferentes de causas, isto é, ele é
supradeterminado.

de (3) & (4) & (5) segue-se:

(C2) A consciência é causalmente ineficaz, de modo que fenômenos mentais


conscientes não causam o comportamento humano.

Essas conclusões estão em clara contradição com determinadas


teses contidas no argumento acima. A conclusão (C1) contradiz a tese
(5). Para resolver essa contradição Searle teria três alternativas, a saber,
recusar uma das três teses das quais a conclusão se segue. Mas ele não
aceitaria nenhuma dessas alternativas. A solução menos plausível seria
negar a tese (3), pois ninguém que esteja familiarizado com os
resultados das neurociências poderia levar essa negação a sério, e
especialmente John R. Searle, que oferece uma solução do problema
mente-corpo baseado nos progressos das neurociências (cf. Searle,
1992, p. 1). No cenário da filosofia contemporânea da mente, a
negação da tese (4) seria certamente considerada a forma mais
promissora de resolver a contradição, pois essa negação corresponde aos
resultados das ciências naturais. Mas Searle jamais seguiria esse
caminho, pois a subjetividade ontológica é para ele uma característica
essencial do mental. Diante da impossibilidade de se negar a eficácia
causal dos processos cerebrais e a subjetividade ontológica, a negação da
tese (1) seria a última alternativa, até porque o estatuto ontológico
incomum da consciência (tal como Searle a concebe) faz suas
capacidades causais parecerem questionáveis. Mas, ainda mais
importante, é o fato de que essa solução – a negação da tese (1) – já está
contida em suas reflexões sobre a redução – certamente contra a
vontade dele. Quando ele formula a redução causal, ele escreve:
“phenomena of the type A are causally reducible to phenomena of the
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 23

type B, if and only if (...) A’s have no causal powers in addition to the
causal powers of B’s.” (Searle, 2004, p. 119) Essa afirmação pode ser
interpretada como se os fenômenos A não possuíssem capacidades causais.
No caso de fenômenos objetivos tal interpretação não seria necessária,
pois esses fenômenos pertencem à mesma categoria ontológica que o
sistema subjacente. Sobre uma propriedade sistêmica objetiva, Searle
escreve: “solidity has no causal powers in addition to the causal powers
of the molecules.” (Searle, 2004, p. 119) Aqui não seria necessário
considerar a propriedade como causalmente ineficaz, pois tanto a solidez
quanto as moléculas, e o sistema como um todo, são objetivos, de modo
que a solidez é idêntica a uma propriedade das moléculas. A identidade
das capacidades causais corresponde à identidade das próprias coisas.
Mas quando um fenômeno é considerado ontologicamente diferente do
fenômeno que o reduz (neste caso reduz apenas causalmente), então
não há uma identidade entre esses fenômenos e a identidade dos
poderes causais permanece misteriosa. 13 Nesse caso é razoável
interpretar uma afirmação como a seguinte enquanto uma negação de
eficácia causal: “Consciousness is causally reducible to brain processes,
because (...) consciousness has no causal powers of its own in addition
to the causal powers of the underlying neurobiology” (Searle, 2002b, p.
60). O que eu estou tentando dizer, em suma, é que é possível defender
a interpretação de que a conclusão (C2) já se encontra, em uma versão
diferente, entre as teses centrais da filosofia da mente de Searle: a tese
(2) – que pertence à concepção da redutibilidade causal da consciência
– pode ser entendida como uma afirmação da ineficácia causal da
consciência 14 (embora ela também possa ser interpretada de outra

13
Por isso a comparação da consciência com propriedades sistêmicas objetivas parece
inválida. Em Why I Am Not a Property Dualist Searle afirma: “causally speaking
there is nothing there, except the neurobiology, which has a higher level feature of
consciousness. In a similar way there is nothing in the car engine except molecules,
which have such higher level features as the solidity of the cylinder block, the shape
of the piston, the firing of the spark plug, etc” (Searle, 2002b: 60). Porém, comparar
a consciência com a solidez do pistão não é de grande ajuda, diante da diferença
ontológica entre ambos.
14
Esse problema é apresentado por Crane da seguinte maneira: “Searle denies that
surface properties (including mental properties) are ‘emergent’ in the sense that they
have causal powers independently of the causal powers of their physical parts (p.
24 Tárik de Athayde Prata

maneira – cf. seção 5 abaixo). Apesar disso, Searle se recusa


veementemente a negar a eficácia causal da consciência (que é uma das
teses básicas do naturalismo biológico). Se tudo se comporta dessa
maneira, então há uma incoerência no coração do naturalismo
biológico, a saber, na sua concepção de redução, que deveria superar o
dualismo e o materialismo e colocar em acordo suas verdades parciais.

5 É possível eliminar a incoerência? A estratégia dos níveis de


descrição
Considerando as fortes evidências em favor da tese (3) e a grande
plausibilidade da tese (5) – cuja negação seria bizarra – parece que os
esforços para resolver as contradições apontadas acima devem se
concentrar nas teses (1), (2) e (4), cuja veracidade está mais sujeita a
questionamentos. Entre elas, a tese (1) é a mais forte, pois, além de ser
insistentemente defendida por Searle, é extremamente intuitiva. Como
afirmado anteriormente, penso que a tese (4) é a melhor candidata para
a rejeição, mas é importante que a tese (2) seja objeto de uma reflexão
mais atenta, pois há uma ambiguidade nela cuja eliminação pode ser
decisiva para resolver as contradições acima expostas. De acordo com
ela:

(2) As capacidades causais da consciência são as mesmas dos processos


cerebrais.

112). Rather, he thinks that these properties can be ‘causally reduced’ to their
underlying physical properties (p. 114-15). But where does this leave the causal
powers of the mental? Suppose my current pain causes me to cry out. If as Searle
claims, the causal powers of the pain are ‘entirely explainable’ (p. 114) in terms of
the causal powers of my current neural state, then (given Searle’s denial of the
Identity Theory) there is a clear sense in which my pain is not the cause of my
crying. Searle does not seem to think that the pain and the neural state both cause
the crying, as in a case of overdetermination. And since the pain and the neural state
are not identical, yet the pain’s causal powers are entirely explainable in terms of the
neural state’s, it seems clear that on Searle’s view the neural state is the real cause.
The alternative is to say that the causal powers of my pain are not entirely
explainable in terms of the causal powers of my neural state. But it is essential to
Searle’s view that he denies this.” (Crane, 1993: 319-20)
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 25

Penso que essa asserção pode ser entendida, pelo menos, de


duas maneiras: primeiramente, como discutido na seção 4, significando
que a consciência não tem capacidades causais – negação da tese (1) –
ou, em segundo lugar, significando que as capacidades causais são as
mesmas porque a consciência e os processos cerebrais são a mesma coisa,
afirmação de identidade que nega a tese (4) – note-se que o próprio
Searle diz que, em geral, reduções causais levam a reduções ontológicas.
O modo como Searle argumenta contra o epifenomenalismo e a
supradeterminação causal fornece um forte indício de qual dessas
possibilidades de leitura da tese (2) deveria ser escolhida: a segunda
possibilidade, pois tal argumentação parece estar baseada em uma
identidade entre a consciência e os processos cerebrais. Discutindo o
dualismo de propriedades, Searle afirma:

The fact that the dilemma of either epiphenomenalism or causal


overdetermination can even seem to be a problem for property dualism is a
symptom that something is radically wrong with the theory. Nobody thinks
that we are forced to postulate that solidity is epiphenomenal on the
grounds that it has no causal powers in addition to the causal powers of the
molecular structures, nor they think that if we recognize the causal powers
of solidity we are forced to postulate causal overdetermination, because now
the same effect can be explained either in terms of the behavior of the
molecules or the solidity of the whole structure. (Searle, 2002b, p. 62)

No caso da solidez, é evidente que os efeitos podem ser


explicados tanto em termos do comportamento molecular quanto em
termos da solidez do sistema no nível macroscópico, pois (para Searle –
cf. 1992, p. 115) a solidez e o comportamento das moléculas são
idênticos. Ao falar da consciência nestes termos, ele parece sugerir uma
identidade entre a consciência e os processos cerebrais. E em uma
passagem como a seguinte, essa identidade não parece estar sendo
meramente sugerida, mas sim afirmada:

“the causal powers of consciousness are exactly the same as those of the
neuronal substrate. This situation is exactly like the causal powers of solid
objects and the causal powers of their molecular constituents. We are not
26 Tárik de Athayde Prata

talking about two different entities but about the same system at different
levels.” (Searle, 2004, p. 127-8, grifo meu) 15

Se é assim, a tese (4) deve, de fato, ser rejeitada, mas então surge
uma possibilidade de se considerar a teoria de Searle coerente: mostrar
que a tese (4), tal como formulada acima, não corresponde ao que o
autor quer dizer; ou seja, mostrar que Searle não acha que a consciência
e os processos cerebrais são diferentes. A asserção (4) foi formulada com
o intuito de reproduzir a tese da irredutibilidade ontológica da
consciência aos processos cerebrais. Para se concluir que não há
contradição, seria preciso mostrar que a irredutibilidade ontológica, tal
como Searle a concebe, é compatível com a identidade da consciência
com os processos cerebrais. Seria possível considerar que Searle
desenvolveu uma estratégia para isso, ao distinguir entre níveis de
descrição dos fenômenos envolvidos numa redução (causal e/ou
ontológica). Ele parece recorrer ao fato de que existem características
que não podem ser atribuídas às partes componentes de um sistema,
mas apenas a ele próprio no nível macroscópico. Assim como a liquidez
e a solidez não podem ser encontradas no nível das moléculas isoladas,
a consciência e suas características subjetivas, ou seja, seu aspecto
qualitativo, não poderiam ser encontradas no nível microscópico dos
neurônios individuais. Em outras palavras, apesar de ser formado por
partes objetivas (neurônios e demais microestruturas cerebrais), o
cérebro realizaria no nível macroscópico uma propriedade
ontologicamente subjetiva: a consciência, o que implica que tal
propriedade é exatamente o conjunto de processos que ocorrem no nível
microscópico, apenas descritos de outra maneira, do mesmo modo que

15
Em um texto anterior, Searle apresenta a relação entre um estado de consciência e
um processo cerebral como uma identidade, na medida em que existe um mesmo
fenômeno descrito em diferentes níveis: “I now, let us suppose, have a conscious
feeling of pain. This is caused by patterns of neuron firings and is realized in the
system of neurons. Suppose the pain causes a desire to take an aspirin. The desire is
also caused by patterns of neuron firings and is realized in the system of neurons.
These relations are exactly parallel to the case of the ice and the water. I can truly
say both that my pain caused my desire and that sequences of neuron firings caused
other sequences. These are two different but consistent descriptions of the same
system given at different levels.” (Searle, 1995, p. 219)
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 27

a solidez é exatamente o conjunto de movimentos moleculares em


estruturas de agregados.
Porém, conforme discutido acima (cf. seção 3), existem
passagens nas quais Searle defende uma concepção incompatível com
essa identidade de tipos entre a consciência e os processos cerebrais.
Discutindo diretamente a noção de identidade, Searle afirma: “we can
have a notion of neurobiological processes big enough so that every
token pain process is a token neurobiological process in the brain, but
it does not follow that the first-person painful feeling is the same thing as
the third-person neurobiological process” (Searle, 2004, p. 125, grifos
meus). Nessa passagem, ele nega explicitamente a identidade entre
fenômenos subjetivos e objetivos. Sendo assim, existe base textual para
se afirmar que Searle defende a tese (4) tal como formulada acima –
consciência e processos cerebrais não são idênticos – de modo que as
contradições apontadas na seção 4 permanecem. Mas, além disso, o que
a análise de trechos como os dois últimos a serem citados mostra é que
o autor incorre em mais uma contradição: a de afirmar e negar a
identidade entre consciência e processos cerebrais. O exame da citação
de Searle, 2004, p. 127-8 mostra que uma sexta asserção deve ser
acrescentada às teses apresentadas na seção anterior:

(1) A consciência é causalmente eficaz, de modo que fenômenos mentais


conscientes causam o comportamento humano.
(2) As capacidades causais da consciência são as mesmas dos processos cerebrais.
(3) Processos cerebrais causam o comportamento humano.
(4) Consciência e processos cerebrais não são idênticos.
(5) O comportamento humano tem um tipo de causa, isto é, ele não é
supradeterminado.
(6) Consciência e processos cerebrais são a mesma entidade em diferentes níveis
de descrição.

Como foi discutido acima, a tese (4) – em conjunto com as


teses (1), (3) e (5) – leva à conclusões que estão em contradição com (1)
e (5). Tais contradições desapareceriam se a tese (4) fosse rejeitada. Mas
o fato é que a análise dos textos mostra que Searle defende (4) e (6)
simultaneamente, o que faz surgir uma evidente contradição. Portanto,
concluo que, para sustentar uma teoria coerente, Searle deveria abdicar
da tese (4) em favor da tese (6), ou seja, abrir mão da idéia da
28 Tárik de Athayde Prata

irredutibilidade ontológica da consciência, fonte de tantas dificuldades,


e permanecer fiel à sua distinção entre níveis de descrição das
propriedades sistêmicas.

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_______ (2004) Mind: a brief introduction. Oxford: Oxford University
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SNOWDON, P. F. (1994) [Review on The Rediscovery of The Mind]
In: The Philosophical Quartely (44) p.259-60
THOMPSON, D.L. (1986) “Intentionality and causality in John
Searle” In: Canadian Journal of Philosophy 16, 83-97
Olhar e memória na percepção cinematográfica

Susana Isabel Rainho Viegas *

Resumo: O presente artigo tem dois objectivos: por um lado, o de analisar os


conceitos de percepção e memória no cinema segundo a fenomenologia de Maurice
Merleau-Ponty em “Le Cinéma et la Nouvelle Psychologie” e, por outro lado, o de
analisar estes mesmos conceitos no filme de Christopher Nolan, Memento. A nossa
principal referência será a fenomenologia da percepção em Merleau-Ponty de modo a
melhor compreendermos o interesse fenomenológico do cinema e deste filme em
particular.
Palavras-chave: Filosofia do Cinema, Memória, Merleau-Ponty

Abstract: The present article has two main goals: in first place, to analyse both
concepts of perception and memory in cinema on Maurice Merleau-Ponty's text, “Le
Cinéma et la Nouvelle Psychologie”, and, in second place, to analyse the same
concepts in Christopher Nolan's film, Memento. We will take as reference Merleau-
Ponty's phenomenology of perception in order to understand the philosophical
interest of this particular film.
Keywords: Memory, Merleau-Ponty, Philosophy of Film

1 Filosofia e cinema
Em 1945, Maurice Merleau-Ponty proferiu uma conferência, “Le
Cinéma et la nouvelle psychologie” 1 , sobre a arte cinematográfica e as
questões suscitadas pela nova psicologia Gestalt relativamente à
intervenção do olhar e da memória na percepção. Como é sabido, foi
*
Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. E-mail: susanarainhoviegas@gmail.com. Artigo
recebido em 14.02.2008 e aprovado em 04.11.2008.
1
“Le Cinéma et la nouvelle psychologie” in Sens et non-sens, p. 85-106. De notar que,
por exemplo, para Gilles Deleuze, “é muito curioso que Sartre, em L'Imaginaire,
encare todos os tipos de imagens, excepto a imagem cinematográfica. Merleau-
Ponty interessava-se pelo cinema, mas para o confrontar com as condições gerais da
percepção e do comportamento. A situação de Bergson, em Matière et Mémoire, é
única”(Deleuze, 2003, p.73).

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 31-44


32 Susana Isabel Rainho Viegas

também em 1945 que o autor publicou a sua obra maior, La


Phénoménologie de la perception, uma coincidência temporal que nos
revela que o cinema também estaria a ser objecto de reflexão durante a
escrita sobre a fenomenologia da percepção. Diz o filósofo que:

O cinema está particularmente apto a manifestar a união do espírito e do


corpo, do espírito e do mundo e a expressão de um no outro. Eis porque não
é surpreendente que a crítica possa evocar a filosofia a propósito de um filme
(Merleau-Ponty, 1966, p.105).

Em Merleau-Ponty o cinema é um instrumento exemplar para


as investigações filosóficas. No entanto, isso não impede que, passados
apenas três anos da referida conferência, nas leituras radiofónicas de
1948 (publicadas posteriormente em Causeries), o filósofo considere o
cinema como uma arte inferior à pintura, afirmação sustentada,
principalmente, pela sua recente história e pela falta de obras-primas de
referência. Para além disso, os resultados para a própria filosofia da
percepção são diferentes e, deste modo, Merleau-Ponty contrapõe as
“indicações mudas” de um quadro à “gramática do cinema” (Merleau-
Ponty, 2002, p.53-61)
Como ponto de partida teremos esta conferência, onde o
filósofo afirma que o cinema é uma arte fenomenológica, no sentido em
que o cinema não é uma soma de imagens fixas, mas a percepção, em
primeiro lugar, do Todo. Este Todo percepcionado – “é através da
percepção que podemos compreender a significação do cinema: não se
pensa o filme, percepciona-se” (Merleau-Ponty, 1966: 104) – é uma
forma temporal (Merleau-Ponty, 1966, p.96). O que significa esta
percepção do Todo? O Todo parece algo que, à partida, não nos é
acessível porque, segundo a psicologia clássica, a percepção é a reunião
e reorganização dos fragmentos que constituem o mosaico perceptivo.
Mas, segundo a nova teoria Gestalt que Merleau-Ponty segue, a
percepção do Todo é uma forma global de abertura do nosso estar-já-
no-mundo. No entanto, a análise aqui em causa diz respeito à nossa
situação enquanto espectadores de cinema: como percepcionamos as
imagens projectadas e de que modo nos surge uma impressão de
realidade? A noção de olhar, segundo a fenomenologia, requer uma
compreensão mais atenta, uma vez que o olhar, entendido, não só
Olhar e memória na percepção cinematográfica 33

como abertura, mas também como interveniente, reúne em si a função


de ponto de vista e de interpretação. Se, por um lado, o cinema é
entendido como um bom exemplo para a nova psicologia Gestalt, por
outro lado, esta também pode contribuir para a compreensão da
percepção cinematográfica. Neste sentido, a conferência de Merleau-
Ponty faz parte de um conjunto de estudos psicológicos sobre o cinema
dos quais Hugo Münsterberg foi pioneiro em 1916. Para o filósofo
francês, o cinema é uma forma temporal ou “unidade melódica” de
imagem e som. “Um filme não é uma soma de imagens mas uma forma
temporal” (1966: 96), ou seja, o cinema é uma unidade temporal visual
e sonora. Recordando as conhecidas experiências de Kuleshov,
Merleau-Ponty afirma que:

O sentido de uma imagem depende, portanto, daquelas que a precedem no


filme e a sua sucessão cria uma nova realidade que não é a simples soma dos
elementos empregues (1966, p. 97).

Além da função do olhar, iremos também focar a função da


memória no acto perceptivo de um filme. Relativamente ao tema da
memória e da sua relevância no acto de percepcionar, recorremos a
Memento (2001), um filme de Christopher Nolan e que servirá de
exemplo cinematográfico ilustrando o que aqui está em causa. Partimos
do dado adquirido de que, unicamente com os dados da percepção, não
nos podemos orientar no mundo e, por isso, a memória e a capacidade
de reter informações passadas tornam-se vitais no nosso quotidiano.
Podemos afirmar que Memento é um filme filosófico na medida em que
é um filme que, intencionalmente, coloca algumas questões filosóficas e
tenta desenvolver, através do meio cinematográfico, as consequências
da memória a curto prazo. Memento permite analisar esta questão (a
percepção do mundo na memória a curto prazo) em relação directa
com uma das técnicas cinematográficas – a montagem e a manipulação
do tempo, mas sempre num registo ambíguo com a verdade tal como
esta é observada pelo espectador.
Memória a curto prazo significa não reter, nem informações,
nem lembranças de situações passadas e, consequentemente, não estar
apto a interpretar a situação corrente. Pode-se, no entanto, e neste
sentido concorre Memento, controlar o registo do passado através da
34 Susana Isabel Rainho Viegas

colecção de factos e, deste modo, controlar o seu próprio acto no


futuro. Neste aspecto, a colagem do ponto de vista de Leonard (a
personagem principal interpretada por Guy Pearce) com o ponto de
vista do espectador do filme, é óbvia e intencional. De modo a não
perder a continuidade espácio-temporal da sua própria história,
Leonard recorre a diversos elementos que “fixam” o presente para o
poder recuperar no futuro: notas escritas, fotografias e tatuagens.
Assim, Leonard tatua no corpo factos, os acontecimentos tal como ele
pretende guardá-los para, no futuro, os poder recuperar; tatua factos
como definições de um dicionário a que recorre sempre que tem
dificuldade em “ler” a realidade, sempre que precisa de compreender a
situação em que se encontra.
Os factos são um elemento imprescindível na análise da
percepção e da memória uma vez que, de um modo geral, pressupomos
que os factos são independentes de qualquer interpretação, um
dado bruto ou sense datum (primeiro nível do conceito), mas, como
compreendemos com neste filme, não há factos translúcidos; eles são
uma interpretação, ou mesmo uma mentira criada por Leonard
(segundo nível do conceito). Leonard pode seleccionar e alterar o
passado através do que decide vir a recuperar no futuro, pode escolher o
que escrever, fotografar ou tatuar pois, como se irá esquecer que foi
uma selecção viciada, não terá forma de duvidar do seu registo; tomará
por factos verídicos o que lhe é dado a ler no desconhecimento da sua
génese. Esta excessiva confiança na veracidade dos factos irá trazer
consequências desastrosas para os outros, prejudicando-os (dimensão
ética e social do bom funcionamento da memória). Mas, também ele,
com a sua doença, é enganado e iludido.
Além do engenhoso argumento (escrito em conjunto com
Jonathan Nolan), Christopher Nolan faz uso ainda do artifício
cinematográfico de uma montagem cronologicamente invertida,
começando pelo fim da narrativa, colocando-nos, espectadores, em pé
de igualdade com a personagem. Tal como Leonard, também nós não
entendemos a situação nem sabemos o seu percurso até ali. No final,
teremos a oportunidade de compreender o Todo, de reorganizar a
narrativa na direcção correcta, do passado para o futuro, e, só o fazemos
porque não sofremos de memória a curto prazo. Leonard não se orienta
Olhar e memória na percepção cinematográfica 35

com a memória e, por isso, recorre aos factos. Ainda que a memória
possa alterar os factos do passado, o tamanho de um quarto, um
diálogo, etc., para Leonard, os factos gravados são suficientes. Esta é
uma das funções do espectador, agora partilhada com a personagem: os
factos devem bastar para recuperar a sucessão dos acontecimentos
havendo uma entrega voluntária aos dados da percepção.
Tendo em conta esta ideia, compreende-se melhor de que
modo a relação entre percepção e cinema, ou entre o espectador e o
filme, interessava a Maurice Merleau-Ponty. Merleau-Ponty pretendia
superar o dualismo Eu/Outro, percepção/mundo, dualismo herdado de
Descartes, e esta superação é realizada através do corpo, ou melhor,
através de uma noção muito particular de corpo que encontramos, por
exemplo, na criação da personagem de cinema e do espectador de
cinema. O corpo de que nos fala Merleau-Ponty não é o corpo da
anatomia ou da fisiologia, o corpo reduzido a músculos e articulações.
Na verdade, a fenomenologia como que acrescenta a este corpo um
elemento que o pode tornar irreconhecível: o gesto. Através da
anatomia, podemos descrever de um modo exaustivo como é que um
corpo consegue, por exemplo, dançar, mas não podemos descrever, de
modo algum, como nasce daí uma arte, uma expressão humana. O
estilo do gesto é inclassificável. Que relação existe entre o corpo, o gesto
e o mundo? Para Merleau-Ponty não há uma divisão entre o que olha e
o que é olhado, entre o que sente e o que é sentido (Merleau-Ponty,
1997, p. 21) e, o cinema apresenta-se como um exemplo concreto da
mudança que ocorre na percepção quando o olhar que vê se
compreende como visível: “o cinema está particularmente apto a
manifestar a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a
expressão de um no outro”(Merleau-Ponty, 1966, p. 105). “Há uma
experiência da coisa visível como preexistente à minha visão mas não é
fusão, coincidência: porque os meus olhos que vêm, as minhas mãos
que tocam, podem também ser vistos e tocadas, (...) o mundo e eu
somos um no outro e não há anterioridade do percipere ao percipi, há
simultaneidade” (Merleau-Ponty, 2006, p. 162). O olhar na percepção
cinematográfica coincide e coexiste com o próprio filme visto e, através
do olhar da personagem, o olhar de quem vê é reenviado a si mesmo
como visível.
36 Susana Isabel Rainho Viegas

Qual é então o corpo da fenomenologia? É o corpo que


percepciona, que sente e que essencialmente vê, interage com o exterior
marcando e sendo marcado por essa troca. É o corpo do comércio de
percepções. Mas, mais do que as percepções do tacto ou da audição,
por exemplo, o corpo faz a sua diferença através do órgão da
visibilidade. Para Merleau-Ponty, este órgão é altamente corpóreo, ele
toca as coisas. O ver não é simplesmente um pairar sobre os objectos,
como forma de reconhecimento ou de escrutínio de propriedades,
como, por exemplo, as descrições cartesianas de objectos e de pessoas,
mas é uma sedução, um envolvimento de ambas as partes com uma
mudança nos dois campos. Surpreendentemente, as alterações não
ocorrem unicamente no agente de percepção. Por este motivo, as
análises relativas ao cinema tornam-se fundamentais na filosofia de
Merleau-Ponty porque, no cinema, o olhar do espectador, o olhar que
vê, é reenviado para si próprio como visível para outro. Ver é ser visível.

2 A percepção do mundo
De um modo não explícito, não fenomenológico, pensamos que, no
campo de percepção, os objectos já existem e são independentes do
facto de serem ou não percepcionados. Podemos questionar, como
Leonard o faz em Memento, se, quando fechamos os olhos, o mundo
continua a existir de uma forma autónoma e independente da nossa
crença. Mas, de que modo podemos verificar que a coisa percepcionada
não coincide connosco? Por exemplo, a dúvida cartesiana e os critérios
cartesianos de evidência e clareza do que percepcionamos aqui e agora,
sugerem que esta concepção autónoma de realidade seja uma ilusão. Só
temos a certeza da existência dos objectos quando nos aparecem,
deixando mesmo de ter passado, pelo menos para nós. A clareza e a
evidência não nos podem reconfortar com a sensação de continuidade.
Na verdade, não nos orientamos segundo este ponto de vista cartesiano
do mundo, pelo contrário, mesmo que não os percepcionemos,
acreditamos que os objectos já existiam e continuam a existir para lá do
momento em que se cruzam com o nosso trajecto. O que temos de
compreender é o modo como, de um ponto de vista fenomenológico,
fazemos este preenchimento, esta constituição excessiva aos dados da
percepção aqui e agora não só do mundo mas também de um filme.
Olhar e memória na percepção cinematográfica 37

Do ponto de vista natural, o sujeito e o acto de percepcionar


correspondem a uma recepção do que nos chega do mundo através dos
sentidos, sendo que, este mundo, é independente e anterior ao acto de
percepção tal como Descartes descreve nas Meditações da Filosofia
Primeira (segunda meditação) em relação às propriedades reais de um
pedaço de cera (Descartes, 1992, p. 127-130). Neste texto, Descartes
pretende descrever algo em que não podemos duvidar, não só um
objecto hipotético que podemos tocar, cheirar ou pesar, mas uma coisa
em particular, um pedaço de cera. Mas, quando este é aproximado do
fogo, acontecem alterações físicas que tornam o pedaço de cera
irreconhecível. Não parece ser o mesmo. Antes tinha um pedaço de
cera com determinado cheiro, um determinado peso, uma determinada
dureza, etc., e agora nenhuma dessas características se mantêm. As
modificações físicas levam a uma alteração de identidade. Não há
relação entre o à-pouco e o agora. O que subsiste, a mesma cera, não é
algo que percepcionamos, mas sim um acto de consciência, uma
inspecção do espírito, inspectio mentis. A identidade das coisas, a sua
permanência, não nos é dada por um acto de percepção. Unicamente
pelo acto de percepcionar obtemos fragmentos, o nosso ponto de vista
de cada vez. Este é um mundo que somente existe e subsiste enquanto
durar com a nossa percepção. Comparando esta experiência de
Descartes com o exemplo da percepção de um cubo que Maurice
Merleau-Ponty dá na conferência (Merleau-Ponty, 1966, p. 91)
compreendemos que, ao observarmos um cubo, não percepcionamos
de cada vez todos os lados, não percepcionamos a parte de trás, o
interior, cada um dos seus vértices, mas vemos um cubo. Merleau-
Ponty diz que, “em vez de as corrigir, nem sequer noto as deformações
de perspectiva, pelas quais vejo o cubo ele mesmo na sua evidência”
(Merleau-Ponty, 1966, p. 91). No quotidiano das situações
quotidianas, compreendemos naturalmente as alterações ou cortes
abruptos como a mudança de cenário, a sobreposição dos objectos, a
relação forma-fundo, o aparecimento e desaparecimento de objectos, e
isto porque não estamos fechados no instante presente da percepção,
único instante de certeza e evidência. Temos acesso a um passado e a
um futuro, mesmo que não explícitos, que interferem na compreensão.
Se o que é dado efectivamente são os aspectos da realidade, tendo uma
38 Susana Isabel Rainho Viegas

parte não podemos ter o todo, tendo a frente não podemos ter o lado
ou a parte de trás, tendo o exterior não podemos ter o interior, e, no
entanto, temos.
De um ponto de vista fenomenológico, estas análises remetem-
nos para dimensões temporais que não existem, o à-pouco e o a-seguir,
e não unicamente para o presente agora. Também o cinema, e neste
aspecto a arte cinematográfica estabelece-se como potencialmente
filosófica, tem a capacidade de fazer ser o que já foi temporalmente,
fazer ser novamente conteúdos espácio-temporais passados.

3 A percepção cinematográfica
O olhar e a memória intervêm de um modo decisivo no que respeita à
arte cinematográfica. Na verdade, como compreender uma arte que só
existe na projecção de si mesma, na saída dos seus dispositivos físicos?
Os fotogramas, em si, nada têm de cinematográfico. Porém, as imagens
projectadas escapam ao aprisionamento da procura do presente. O
olhar constrói isso que é visto, numa relação íntima entre as diferentes
dimensões temporais. Cria-se, no espectador, a impressão de realidade
da projecção cinematográfica. Como primeira tese enunciada sobre esta
questão, encontramos um texto escrito em 1916 pelo psicólogo e
pioneiro na filosofia do cinema, Hugo Münsterberg, The Film: A
Psychological Study (na primeira edição, Photoplay). Um dos aspectos
analisados pelo autor é a relação intrínseca entre a mente humana e a
câmara: os acontecimentos dramáticos são moldados pelos movimentos
internos da mente, ou seja, o espectador não vê a realidade objectiva
mas um produto da mente que reúne todas as imagens recebidas. O
cinema permite ver e rever, não só o distante espácio-temporalmente
(acontecimentos passados de coroações de reis) como o mais pequeno e
pormenorizado (o ninho de um pássaro ou o desabrochar de uma flor).
A câmara tem um alcance que o olho humano não tem. Ao vermos um
filme, o movimento parece ser um movimento verdadeiro mas, na
verdade, é criado pela mente do espectador. Há sugestão do
movimento. Por exemplo, relativamente à profundidade espacial nas
imagens, sabemos que é uma sugestão de profundidade, criada pela
criatividade mental. No caso do close-up cinematográfico, há uma
objectivação do acto mental de dar atenção a um acontecimento,
Olhar e memória na percepção cinematográfica 39

enquanto técnica que imita o funcionamento da mente humana. Ao


contrário do que acontece, por exemplo, numa peça de teatro, no caso
do cinema é a própria imagem que faz esse trabalho mental.
Relativamente à memória, para Münsterberg ela permite presentificar
imagens do passado tal como a câmara faz com a montagem que, não
só mostra imagens que já aconteceram, como intercala as dimensões
temporais do presente e do passado, por exemplo, fazendo um corte
para uma lembrança ou um acontecimento passado mostrando imagens
anteriores à situação presente. Por outro lado, a imaginação antecipa o
futuro ou vai para lá dos limites da vida com o sonho e fantasias; o
mesmo faz a câmara de um modo mais perfeito e minucioso do que a
imaginação faria. Tal como vimos em Merleau-Ponty, também
Münsterberg destaca que a nossa percepção acede ao aqui e agora dos
acontecimentos mas a nossa mente consegue pensar outras dimensões
espácio-temporais; a câmara consegue chegar a diversos sítios, em
tempos simultâneos concretizando o que a nossa mente deseja.
Segundo o autor,

O cinema conta-nos a história do homem superando as formas do mundo


exterior, a saber, espaço, tempo e causalidade, e ajustando os acontecimentos
às formas do mundo interior, a saber, atenção, memória e emoções
(Münsterberg 1970, p. 74).

Retomando o exemplo cinematográfico, o Todo de Memento é


construído no final, ainda que a percepção se tenha dado no sentido
inverso do desenvolvimento horizontal do tempo (passado-presente-
futuro). Contrariamente à percepção natural, começamos com a
percepção do futuro narrativo mas, mentalmente, refazemos os âmbitos
temporais e, do ponto de vista cognitivo, começamos pelo passado.
Ainda a propósito do trabalho da mente, reparamos que há, nas
imagens projectadas, uma sugestão de profundidade criada pela
criatividade mental mas não percepcionada na realidade. Há também,
nas imagens cinematográficas, a sugestão do movimento e deslocação
reais. O movimento é percepcionado apesar de o olhar não
percepcionar verdadeiro movimento. Profundidade e movimento estão
presentes nas imagens cinematográficas apesar de não “estarem” nas
coisas, são criados por mecanismos mentais, pelas leis psicológicas de
40 Susana Isabel Rainho Viegas

associação de ideias, de tal modo que, na nossa mente, passado e futuro


estão entrelaçados no presente.
Com Merleau-Ponty podemos fazer uma aproximação
fenomenológica à arte cinematográfica. A intervenção do olhar é
fundamental para a compreensão do filme projectado: sendo uma
forma temporal, o filme tem de ser entendido na relação existente entre
a montagem e a narrativa. Desta relação nasce a diegese, a ficção que
nos dá impressão de realidade. E, através do olhar, o espectador tem
acesso a uma realidade diferente, nova, que não é cópia de nenhuma
situação percepcionada ou vivida e, apesar desta construção elaborada
pelo olhar, o cinema não deve ser entendido como soma das diferentes
partes. Como Merleau-Ponty salienta, nem a junção de movimento a
fotografias, nem a junção de som a imagens já existentes pode criar o
todo que é um filme, uma forma temporal inseparável do processo de
montagem (Merleau-Ponty, 1966, p. 97-98). De um ponto de vista
natural, não fenomenológico, a nossa situação perante a projecção de
um filme é compreendida como não diferindo, no essencial, da relação
de acesso ao mundo em geral: algo aparece, algo é percepcionado e
alguém percepciona.
Na conferência proferida por Maurice Merleau-Ponty, o
cinema surge com arte fenomenológica, no sentido em que a
fenomenologia da percepção muito ajuda a compreender a percepção
cinematográfica e toda a construção visual que aí ocorre. Neste sentido
se entende a ingenuidade inicial dos primeiros espectadores de cinema.
Na percepção, distinguimos o deslocamento real (ilusório no cinema)
do movimento percepcionado (sequência de fotogramas projectados).
O ecrã é simultaneamente o local vazio, onde nada está e tudo o que
aparece, as projecções. Mas, paradoxalmente, se podemos dizer que o
que de concreto existe é o ecrã, ele, no entanto, encontra-se ausente no
acto perceptivo. Existe um conflito, que habitualmente passa
despercebido, entre o entendimento e a percepção. De igual modo,
existe um excesso de conteúdos pensados em relação aos conteúdos
percepcionados. Segundo os conceitos de evidência cartesiana
analisados, as imagens projectadas são irrealidades. As imagens
projectadas são imagens de “objectos” sem peso, sem odor, sem sabor.
Como compreender a realidade das imagens cinematográficas
Olhar e memória na percepção cinematográfica 41

projectadas? Como irrealidades, fantasmas, aparições visuais e sonoras


cuja materialidade se resume às diferenças entre luz e sombra que dão
vida às imagens. Não percepcionamos o mundo como um conjunto de
entes independentes entre si e aos quais acedemos por campos de
percepção impermeáveis (porque a visão só vê, etc.). De igual modo,
não compreendemos como é que o cinema, entendido como um
conjunto de fotogramas, independentes e sucessivos num determinado
ritmo, pode resultar na visualização de um Todo, na participação de
uma narrativa ou na criação de um mundo novo. O filme, como
resultado da intervenção invisível do olhar fenomenológico, é
totalmente excessivo à distinção e soma das partes. Os dados principais
da montagem, por exemplo, a continuidade temporal e espacial, a
relação harmoniosa entre a imagem e o som, são um trabalho do olhar
que ultrapassa os dados da percepção. O olhar, do ponto de vista da
fenomenologia, é mais do que um órgão de sensações visuais, ele tem
um trabalho intelectual. O trabalho deste olhar é tornar irreal o que
temos garantidamente como real, a mais banal das percepções
mundanas, como ver algo, e tornar real o irreal, a sequência de
fotogramas como movimento natural. Com esta análise, Maurice
Merleau-Ponty como que nos obriga a pensar o próprio conceito de
realidade do mundo real e não só a realidade da arte cinematográfica.
Coloca a possibilidade de a realidade ser também irreal, ser um
conteúdo pensado e não só conteúdos percepcionados, não ser um
dado efectivo do mundo porque a esse conceito apenas acedemos por
uma inspecção da mente, por uma descrição do processo de
percepcionar.
Neste sentido, o cinema é a arte da ausência. O que
compreendemos como estando a acontecer perante nós, aquilo a que
presenciamos e que tão real nos pode parecer, não é a percepção dos
elementos reais do cinema como os fotogramas, a luz, o projector, o
ecrã, etc., mas antes o que de irreal ou ausente há no cinema, a saber, os
corpos, o movimento e a deslocação, o volume dos corpos, a
perspectiva, a tridimensionalidade, o passado e o futuro da diegese, etc.
Segundo as observações de Merleau-Ponty, e focando a dimensão
temporal, o cinema é a arte da ausência porque a diegese não se situa na
dimensão temporal do aqui e agora, mesmo que essa seja a situação da
42 Susana Isabel Rainho Viegas

visualização, antes pelo contrário, é já a presença do passado que se


retém e do futuro que se antecipa que permite a fluidez da narrativa.
Deste modo, não acedemos ao mundo presentificado e parado do
pensamento cartesiano, dos critérios de clareza e distinção, porque esse
mundo é, paradoxalmente, mais artificial do que o ponto de vista da
fenomenologia. Mais relevante se torna o olhar quando pensamos no
cinema mudo e nas reacções dos primeiros espectadores. O cinema
conseguia ser tão “real” como a realidade ainda que mudo e a preto e
branco, de tal modo que os espectadores se afastavam aterrorizados
quando viam uma locomotiva encaminhar-se no seu sentido. Ganho
que passa também pela exploração do próprio olhar e rosto humano
dos actores: o olhar só por si torna-se linguagem, as expressões faciais
são o suficiente para que haja comunicação e entendimento. Do rosto,
transparecem os sentimentos que, segundo Merleau-Ponty, “estão neste
rosto e nestes gestos e não escondidos nas suas costas” (Merleau-Ponty,
1966, p. 94).

4 Conclusão: filosofia do cinema


Da percepção das imagens de cinema projectadas resulta a compreensão
do filme como uma forma temporal e não uma soma de pequenos
agoras sucessivos. Resulta daí também a refutação de uma teoria que
considera o cinema uma arte ainda dependente da fotografia, uma arte
que acrescenta movimento a imagens fotográficas. Mas, um filme não é
simplesmente o conjunto de imagens projectadas no sentido em que,
para que cada imagem tenha um sentido, precisa de ser compreendida
juntamente com as imagens anteriores e com as que imediatamente lhe
seguem. Neste sentido, analisámos o filme Memento de Christopher
Nolan porque nele é explícita essa necessidade: a personagem principal,
ao não se recordar dos momentos imediatamente anteriores, tem
dificuldade em reconhecer e compreender o momento presente. Para
além disso, o próprio espectador partilha este ponto de vista, não só
neste filme mas em todos os filmes: o espectador tem de ter em mente
o todo do filme, trazendo à memória as imagens passadas, e não apenas
o momento presente percepcionado. Deste modo, e segundo Merleau-
Ponty, “o sentido de uma imagem depende, por isso, daquelas que a
precedem no filme e a sua sucessão cria uma realidade nova que não é a
Olhar e memória na percepção cinematográfica 43

simples soma dos elementos usados” (Merleau-Ponty, 1966, p. 97). De


igual modo, a relação entre a imagem e o som não é uma relação
exterior mas irredutível: a composição dos dois elementos antecede-os e
possibilita o todo final, o todo de cada cena e o todo fílmico.
De um modo sintético, podemos resumir a relação entre
cinema e fenomenologia em Merleau-Ponty a quatro ideias principais
influenciadas sobretudo pela teoria Gestalt: primeiro, há uma ligação
inegável entre a percepção e o cinema no sentido em que este é um
objecto percepcionado exemplar; segundo, o cinema mostra uma
relação única entre visível e invisível, entre tornar visível o invisível;
terceiro, o cinema permite pensar a reversibilidade entre ver e ser
visível; e, por último, um filme é uma forma temporal que só a si
mesmo remete. Assim, partindo da impressão de realidade causada pela
projecção das imagens cinematográficas, compreendemos que, no
cinema, os dados percepcionados são substancialmente escassos em
relação aos conteúdos que pensamos e compreendemos. O agente desta
modificação é o olhar. Este, não é apenas um órgão dos sentidos
reduzido aos dados da percepção, mas age de um modo cognitivo,
organizando os conteúdos da percepção. As imagens cinematográficas
são percepcionadas, mas são, principalmente, pensadas seguindo o fio
condutor da montagem. Unicamente através da percepção não
compreenderíamos as técnicas de montagem fílmica, as técnicas que
criam a diegese, a narrativa ficcional, como, por exemplo, a introdução
de um close-up. As imagens cinematográficas são, primeiramente, vistas
no seu todo, logo, são uma construção, porque o todo não é um
conteúdo percepcionado, mas pensado. Vimos também que o cinema
permite expor a mudança operada na compreensão da relação Eu-
Mundo e Eu-Outro. A relação não se dá entre dois pólos
independentes mas a relação é de interferência e união em que o olhar
que vê compreende-se como visível. Deste modo, o espírito humano, o
mundo e os outros reflectem-se mutuamente, são o um e o múltiplo.

Referências
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Fim de Século, 2003.
DESCARTES, René. Meditações sobre a Filosofia Primeira.Trad.
44 Susana Isabel Rainho Viegas

Gustavo de Fraga.Coimbra: Livraria Almedina, 1992.


MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible, Paris, Éditions
Gallimard, 2006.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Causeries. Paris: Ed. De Seuil, 2002.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. Trad. Luís Manuel
Bernardo.Lisboa: Vega, 1997.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la Perception. Paris:
Gallimard, 2002.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-sens. Paris: Nagel, 1966.
MÜNSTERBERG, Hugo. The Film: A Psychological Study. New York:
Dover Publications,1970.
A abordagem da natureza da mente
por Descartes e a crítica de Damásio

João Luis da Silva Santos * 1

Resumo: O estudo da natureza da mente ocupa um lugar de destaque na agenda das


investigações da Filosofia da Mente, porque sua abordagem parece fornecer uma
explicação da forma pela qual os humanos têm acesso aos dados da realidade.
Pretendemos problematizar a teoria cartesiana de natureza da mente a partir de sua
concepção de idéias inatas produzida a partir de um instrumental matemático, que
segundo Descartes, nasce com o sujeito. Para tanto, faremos uma breve explanação do
método cartesiano, assim como de sua concepção de sujeito, para chegar, enfim, à
análise do que Descartes entende como idéia. Após o que uma breve análise da noção
de idéias inatas será por nós realizada. Indicaremos então, como o pensamento
cartesiano dá margem para o questionamento de sua distinção mente/corpo, esta que
o neurocientista Damásio não aceita, assim como não aceita a prioridade da razão
sobre o sentimento. A natureza da mente não é metafísica como o disse Descartes,
para Damásio ela é biológica.
Palavras-chave: Idéia, Mente, Metafísica, Neurociência

Abstract: The study of mind nature occupies an outstanding place in the agenda of
the philosophy investigations, because its approach seems to provide some
explanations of the way the human beings can acess the reality data. With the intent
of questioning the cartesian mind nature theory from its conception of innate ideas
produced ranging from a mathematical instrument which, according to Descartes, is
born with the subject. For this, a brief explanation of cartesian method as well as his
conception of subject will be show to finally reach the analyses of what Descartes
understands as idea. After that, a short analysis of the notion of innate ideas will be
performed by us. It will be indicated as the cartesian thought allows supposing
questioning of distinction between the body and the mind, the one that the
neuroscientist Damasio can´t accept, as well as he doesn´t accept the priority of
reason over the sentiment. The mind nature is not metaphysics as it was mentioned
by Descartes, while, on the other hand, for Damasio is biological.
Keywords: Idea, Metaphysics, Mind, Neuroscience

*
Doutorando em Filosofia pela USP. E-mail: jlsilvasantos@bol.com.br. Artigo
recebido em 22.04.2008, aprovado em 10.12.2008.
1
Agradeço as indicações bibliográficas e temáticas, bem como a leitura atenta e
exaustiva deste artigo levada a cabo pela Profa. Dra. Mariana Claudia Broens. O
financiamento da FAPESP ao projeto do qual este texto é parte resultante também
merece agradecimento.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 45-57


46 João Luis da Silva Santos

Pressupostos do representacionalismo: o método cartesiano


No esforço de provar sua concepção de conhecimento baseado em
metafísica, Descartes cria seu método, segundo ele adequado a todas as
ciências, tendo por princípio que o conhecimento tem que ser regulado
pela razão.
Assim pensando, Descartes tem razões para afirmar a
necessidade da reorganização das ciências, ou em suas palavras na
segunda parte do Discurso do Método:

nem mesmo ainda que procurasse reformar o corpo das ciências, ou a ordem
estabelecida nas escolas, para as ensinar; mas que, a respeito das opiniões que
até então eu aceitara, o que melhor teria a fazer era, uma vez por todas, de as
recusar, para as substituir em seguida por outras melhores, ou pelas mesmas
quando as houvesse ajustado ao nível da razão (Descartes, s.d., p. 77-8).

Então, buscando um conhecimento seguramente racional,


Descartes dedica bastante tempo a delinear seu método. Aproveitando-
se dos estudos anteriormente realizados de lógica, análise geométrica e
álgebra, o filósofo delineia quatro preceitos. Descartes defendia que a
escolha desses preceitos deixaria de lado as falhas dessas três ciências. A
lógica, por exemplo, teria muitos preceitos supérfluos. A análise e a
álgebra, sendo muito abstratas, teriam em sua constituição partes
muitas vezes destituídas de uso.
Digamos que Descartes teve a idéia de procurar evidências
racionais nessas ciências. A análise com dependência das figuras
geométricas encontraria sua utilidade no método se deixasse de lado os
numerosos exercícios necessários à assimilação de tantas figuras. A
álgebra, por sua vez, com todas suas regras e fórmulas, faz com que as
pessoas se afastem dela, não por desleixo intelectual, mas, antes, devido
à grande obscuridade em que encontra imerso seu discurso, que muitas
vezes afasta o elemento intuitivo racional procurado por Descartes.
Assim considerando os quatro preceitos cartesianos (um
substrato das ciências), eles poderiam direcionar seguramente o
conhecimento, se observados sempre e sem nenhuma exceção.
São, pois, em suma, os preceitos metodológicos de Descartes:

1. Nunca receber como verdadeiro algo precipitadamente, somente pode-se


aceitar uma verdade se não houvesse ocasião de pô-la em dúvida.
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 47
2. Dividir em parcelas, no número máximo, as dificuldades para resolvê-las
melhor.
3. Conduzir ordenadamente os pensamentos dos mais simples aos mais
compostos, supondo certa ordem mesmo para os quais não precedem
uns aos outros naturalmente.
4. Nunca omitir informações, através de enumerações completas e
recapitulações gerais, de modo a não perder nenhum elo da corrente
argumentativa.

Para Descartes só há uma verdade para cada coisa.


Aproveitando-se de tudo o que a análise geométrica e a álgebra têm de
melhor, Descartes corrigiria os defeitos de uma pela outra. Obteria
através deste método um conhecimento seguro porque: “o método que
ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as
circunstâncias do que se procura, contém tudo o que dá certeza às
regras da aritmética” (Descartes, s.d., p. 89).
Seu método apoiado na análise geométrica e na álgebra, agora
depuradas de imperfeições, permitiria a produção de certezas. Para
Descartes, o emprego de tal método acostuma o espírito a conceber
clara e distintamente os objetos estudados, isto é, a conceber uma idéia
apropriada sobre o objeto estudado. Descartes procura estabelecer seu
método na filosofia, porque não havia encontrado nenhum que fosse
satisfatório nesse ramo do conhecimento. A filosofia, detendo os
princípios das ciências, ditando seus fundamentos, encontraria,
segundo Descartes, um respaldo totalmente abrangente no seu método.
Assim implantado na filosofia (note-se que essa é uma tese que
visa todo o universo das ciências), o método se estenderia por toda a
malha do conhecimento, abarcando todos os modos de entender a
realidade.
As idéias inatas são muito importantes na filosofia cartesiana se
as entendermos como bases das representações de modo parecido com
as regras do método, ou seja, como raízes do conhecimento. Portanto
passaremos a seguir para a sua análise.

O conceito de idéia
Segundo Descartes, as idéias inatas são as entidades mentais
(metafisicamente postuladas) que permitem, por exemplo, as
demonstrações geométricas. Entende o filósofo que as idéias inatas são,
48 João Luis da Silva Santos

por assim dizer, as raízes do conhecimento e justificam-se na razão. Em


Descartes, as idéias inatas têm um sentido, que é prova de como o
autor das Meditações pretendia se afastar de qualquer experiência
sensível ou perceptiva para a constituição das bases do conhecimento,
que seria unificado pela razão através da filosofia. Para Gueroult:

o esforço do cartesianismo dirige-se desde o início rumo à constituição de


um sistema total de saber certo simultaneamente metafísico e científico. Essa
totalidade do sistema não é absolutamente a totalidade de uma enciclopédia
dos conhecimentos materiais efetivamente adquiridos, mas a unidade
fundamental dos princípios primeiros de onde decorrem todos os
conhecimentos certos possíveis (Gueroult, 1968, p. 18).

Por esse viés, Gueroult, explica o porquê da sustentação da


física pela metafísica na obra de Descartes: “metafísica, ciência universal
ou sistema da ciência constituem, portanto, um só e mesmo bloco...
essa tese é a razão formal do infinito” (Gueroult, 1968, p. 17). Provar
que Deus existe é para Descartes aceitar metafisicamente que o infinito
pode ser conhecido pelo homem (embora não possa ser
compreendido): “digo que sei, e não que o conceba ou o compreenda,
porque é possível saber que Deus é infinito e todo-poderoso ainda que
nossa alma, sendo finita, não possa compreendê-lo ou concebê-lo”
(Descartes, Carta a Mersenne de 27 de maio de 1630, citado por
Cottingham, 1995, p. 50).
Baseando-se na existência de Deus como racionalmente
demonstrada, Descartes concebe a noção de idéias inatas e toma como
exemplo a noção de triângulo, esta instituída por Deus. Descartes
observa:

por exemplo, quando imagino um triângulo, ainda que não haja talvez em
nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamento, uma tal figura, e que
nunca tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver uma certa
natureza ou forma, ou essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e
eterna, que eu não inventei absolutamente e que não depende, de maneira
alguma, de meu espírito; como parece, pelo fato de que se pode demonstrar
diversas propriedades desse triângulo, a saber, que os três ângulos são iguais a
dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior lado e outras semelhantes,
as quais agora, quer queira, quer não, reconheço mui claramente e mui
evidentemente estarem nele, ainda que não tenha antes pensado nisto de
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 49
maneira alguma, quando imaginei pela primeira vez um triângulo; e,
portanto não se pode dizer que eu as tenha fingido e inventado (Descartes,
1996, p. 310).

A imagem de triângulo concebida pelo intelecto não depende


de sua existência na natureza e não pode, tampouco, ser percebida.
Descartes se distancia de qualquer empiria, pois tem como pressuposto
as idéias matemáticas inatas para representar as coisas do mundo.
Com o objetivo de aprofundar a análise do conceito cartesiano
de representação mental e seu papel cognitivo, na próxima seção
analisaremos o modo como Descartes distingue a alma do corpo e
como posteriormente tenta, em vão, explicar a possível união entre
ambas. Esta análise é relevante para o esclarecimento do conceito de
representação, na medida em que, ao distinguir alma ou mente do
corpo, Descartes estabelece que a vida mental dos indivíduos e suas
capacidades cognitivas são autônomas em relação à experiência sensível
do mundo vivida pelos indivíduos.

O problema da relação mente/corpo


Desde a filosofia clássica grega, os filósofos empenham-se em investigar
a natureza daquele que é o ser produtor de conhecimentos. Deste
modo, os homens, tidos tradicionalmente como os sujeitos do
conhecimento sistematizado, acabam por dominar o cenário das
pesquisas acerca da geração do conhecimento. Isto é, denominam-se a
si mesmos “sujeitos do conhecimento”. Como apontamos, a reflexão de
René Descartes que, com um fundo metafísico, concebe a razão
independentemente da experiência sensível e, conseqüentemente, do
meio ambiente em que o indivíduo está inserido e do qual faz parte é
fundamental para entendermos as pretensões humanas de
conhecimento do eu.
Como procuramos mostrar, Descartes propôs um método de
pesquisa filosófica que obedece a ordem geométrica das razões e,
portanto, não podemos esquecer que, para o estudo das Meditações,
temos que considerar que Descartes pretendeu dar a sua obra uma
coerência indubitável. O que é prova de um perfeccionismo lógico, por
parte do autor, em relação ao encadeamento de sua argumentação.
50 João Luis da Silva Santos

Assim, acompanharemos o raciocínio cartesiano expresso nas


Meditações.
Ao analisarmos as Meditações, constatamos na Meditação
primeira que Descartes defende que através do método da dúvida
radical (cuja caracterização consiste em considerar o duvidoso como
equivalente ao falso) podemos racionalmente abrir mão das
experiências sensoriais, devido aos erros a que muitas vezes nos
conduzem, e conseguir certezas indubitáveis utilizando para isso
elementos apenas racionais. A desvinculação da razão em relação aos
sentidos é fonte de toda uma concepção racionalista sobre o sujeito do
conhecimento, pois, segundo Descartes, o conhecimento é formado
pela reta e metódica condução do raciocínio que procura corrigir os
dados equivocados sobre as coisas da natureza que são freqüentemente
fornecidos pelos sentidos.
Na Segunda meditação, o filósofo explica como pode ser
alcançado o eu, que pensa e conhece independentemente da
corporeidade, apenas por um processo de introspecção racional. Diz
Descartes:

após ter pensado bastante nisto e ter examinado cuidadosamente todas as


coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu
sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou
a concebo em meu espírito (Descartes, 1996, p. 266-7).

Deste modo, o autor garante a existência do sujeito do


conhecimento previa e independentemente à experiência perceptiva.
Essa concepção permite que se coloque a idéia de alma e tal idéia é
concebida como sinônimo de entendimento, razão e espírito. Como
aponta o filósofo ainda na Segunda meditação: “... nada sou, pois,
falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito,
um entendimento ou uma razão” (Descartes, 1983, p. 94). A coisa
pensante, o homem para Descartes, tem sentimentos que são
identificados com o pensamento, na passagem:

Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que
pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que
quer, que não quer, que imagina também e que sente... Enfim, sou o mesmo
que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 51
sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Mas
dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja;
todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que
me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto,
tomado assim precisamente, nada é senão pensar. (Descartes, 1983, p. 95).

O ser pensante, é um ser que sente, Descartes coloca


pensamento e sentimento num único plano. Essa identificação será a
fonte de um problema, assim como pensamos: como saber que o
quantum abstrato (pensamento) é o mesmo que o quantum perceptivo
(sentimento), o que seria o problema mente/corpo colocado no âmbito
da percepção.
Como resultado da argumentação, a distinção entre a alma e o
corpo está justificada metafisicamente. Tendo alcançado a certeza da
existência do eu enquanto coisa pensante, Descartes propõe o
posteriormente chamado “dualismo substancial”. Como observa
Milidoni (1998): “... trata-se de um dualismo em que duas substâncias,
alma e corpo, são postuladas, ao nível metafísico, na qualidade de
distintas e separadas” (Milidoni, 1998, p. 77).
Nas palavras de Descartes:

E, embora talvez (ou antes, certamente, como direi logo mais) eu tenha um
corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um
lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que
sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia
distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não
pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é
inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir
sem ele (Descartes, 1996, p. 326).

Contudo, a alma está tão profunda e estreitamente unida ao


corpo que, a despeito da distinção substancial, Descartes vê-se obrigado
a reconhecer que alma e corpo constituem uma unidade, como o
filósofo observa na Sexta meditação:

A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome, sede


etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu
navio, mas que além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal
modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo
(Descartes, 1996, p. 328-9).
52 João Luis da Silva Santos

Embora Lebrun ressalte que: “Descartes não estabeleceu que eu


sou um entendimento + um corpo, porém que em mim há, além do
mais, uma ‘mistura’ dessas duas substâncias. E esta mistura de fato
corrige o dualismo de direito” (Descartes, 1996, p. 329, nota 1),
permanece o problema de que Descartes é incapaz de explicar como
duas substâncias essencialmente distintas interagem entre si.
Claramente as visões que defendem a união da mente e do corpo como
formadores do homem uno em Descartes voltam-se para uma tentativa
defensora da validação do argumento cartesiano. Contudo, pensamos
que o ponto de partida de Descartes é problemático.
A tentativa de explicação de Descartes é reforçada no texto As
paixões da alma, no qual o filósofo fala sobre a intercomunicação entre
o corpo e a alma, talvez, no intento de demonstrar cientificamente o
que fora defendido metafisicamente nas Meditações. Ainda que unida
ao corpo como um todo, segundo Descartes, a alma tem uma espécie
de sede geral na glândula pineal. Como observa Milidoni (1998), esta
glândula, encontrada no meio do cérebro, e capaz de mover-se, era
considerada por Descartes apropriada para mediar as relações entre a
alma e o corpo do indivíduo. Segundo Descartes, o movimento
causado pela glândula tem origem graças à ação dos ‘espíritos animais’
(formados por partes do sangue, são corpos pequenos e que se movem
muito rapidamente; constituindo os princípios de nossos movimentos,
pois penetram no cérebro e saem dele circulando dentre tubos, por
entre nossos nervos) e à ação da alma.
A intercomunicação entre a alma e o corpo é, portanto,
garantida, para Descartes, pela existência da glândula pineal e pelo
papel mediador que exerce entre ambas substâncias. Mas permanece o
problema de explicar como podem substâncias essencialmente distintas,
sendo uma delas imaterial, estar relacionadas e interagir causalmente,
mesmo que na glândula pineal.
O sujeito do conhecimento na filosofia cartesiana não é
subordinado às leis físicas, não é extenso e, no entanto, relaciona-se
intimamente com a corporeidade. Desse modo, a noção de sujeito do
conhecimento de Descartes não apresenta uma explicação da
intercomunicação entre alma e corpo. Porque os processos de
interdependência não são explicitados. O que ele faz é uma admirável
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 53

exposição de como somente Deus poderia ser o responsável pela


explicação da união e de como os instintos do homem podem
contribuir para que paixões sejam efetivadas. A recorrência a Deus para
explicar a união é possivelmente uma grande necessidade por parte do
autor de evitar um problema filosófico recorrendo a sistemas de crenças
ou à tradição metafísica. O dualismo substancial parece assim ser um
problema a ser resolvido, pois mesmo que concebamos o homem como
um todo de corpo e alma, não podemos explicar a união que formaria
este todo acabado sem recorrer a noções metafísicas.
Uma vez levantados os vínculos do pensamento cartesiano com
a concepção dualista de sujeito cognitivo, e os problemas que suscita,
passaremos a analisar a abordagem da noção de estados mentais
caracterizada por Damásio. Entendemos que esta análise é relevante
porque Damásio comenta alguns limites da concepção cartesiana de
natureza da mente.

Estados mentais entendidos como estados disposicionais


Abordaremos a seguir a crítica ao pensamento cartesiano elaborada por
Damásio (1994) em Descartes´ error: emotion, reason and the human
brain. Neste livro, o autor critica o dualismo e o inatismo cartesianos e
sugere que o conhecimento decorre de representações disposicionais do
cérebro.
Para iniciar sua argumentação, Damásio apresenta um relato de
um famoso caso clínico ocorrido nos Estados Unidos em meados do
século XIX, envolvendo um trabalhador chamado Phineas Gage. Gage
era um operário que teve seu cérebro ferido gravemente por uma barra
de ferro, segundo relata Damásio:

O ferro entra pela face esquerda de Gage, trespassa a base do crânio,


atravessa a parte anterior do cérebro e sai a alta velocidade pelo topo da
cabeça. Cai a mais de trinta metros de distância, envolto em sangue e
cérebro. Phineas Gage foi jogado no chão. Está agora atordoado, silencioso,
mas consciente (Damásio, 1994, p. 4).

Damásio observa, citando o relato de John Harlow, médico que


atendeu Gage e fez pormenorizado relato clínico do caso, que não
houve praticamente nenhuma seqüela de maior porte considerando-se a
54 João Luis da Silva Santos

gravidade do acidente, pois Gage manteve suas capacidades perceptivas


inalteradas. O acidentado teve perda da visão do olho esquerdo, mas a
visão continuou normal no olho direito. Não apresentava dificuldades
no andar, nas habilidades da fala e do uso da linguagem, porém,
segundo Harlow: “[...] o equilíbrio ou balanço, por assim dizer, entre
suas faculdades intelectuais e suas propensões animais fora destruído”
(Damásio, 1994, p. 8).
Segundo as fontes consultadas por Damásio, antes do acidente
Gage era considerado um trabalhador exemplar, com conduta
irrepreensível do ponto de vista dos rígidos padrões morais da época. A
despeito de ter sobrevivido a um acidente de tal gravidade quase
incólume, sua personalidade mudou depois do acidente, quando passou
a apresentar padrões de conduta que não apresentara anteriormente:
“Mostrava-se agora caprichoso, irreverente, usando por vezes a mais
obscena das linguagens, o que não era anteriormente seu costume”
(Damásio, 1994, p. 8). A alteração no comportamento de Gage, depois
de ser ferido, parece ser um significativo indício de que o cérebro
desempenha um relevante papel no que se refere ao comportamento. O
erro cartesiano, segundo aponta Damásio, é ter postulado o dualismo
substancial, isto é, a distinção mente/corpo. Como já salientamos, para
Descartes a mente distinta do corpo não necessitaria dele para
continuar a existir. Damásio, por sua vez, defende a tese de que o
cérebro é fundamental para a determinação do funcionamento da
mente. Há uma oposição entre os dois teóricos, no que diz respeito à
natureza da mente.
Damásio tem como resultado de sua argumentação que a
capacidade cognitiva que identifica o ser humano enquanto espécie não
é a mesma que aquela defendida por Descartes, ou seja, uma
capacidade regida por princípios de razão (ou alma) ontologicamente
distinta do corpo. Tal capacidade envolve, para Damásio, os
sentimentos:

os sentimentos parecem depender de um delicado sistema com múltiplos


componentes que é indissociável da regulação biológica; e a razão parece, na
verdade, depender de sistemas cerebrais específicos, alguns dos quais
processam sentimentos. Assim, pode existir um elo de ligação, em termos
anatômicos e funcionais, entre razão e sentimentos e entre esses e o corpo. É
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 55
como se estivéssemos possuídos por uma paixão pela razão, um impulso que
tem origem no cerne do cérebro, atravessa outros níveis do sistema nervoso
e, finalmente, emerge quer como sentimento quer como predisposições não
conscientes que orientam a tomada de decisão. A razão, da prática à teórica,
baseia-se provavelmente nesse impulso natural por meio de um processo que
faz lembrar o domínio de uma técnica ou de uma arte (Damásio, 1994, p.
246).

Note-se igualmente que a idéia defendida por Damásio sobre a


natureza dos estados mentais diferencia-se fortemente da cartesiana,
porque ainda que situadas no interior da cabeça, as representações não
são dependentes de uma mente imaterial; pelo contrário, elas
pertencem a regiões específicas do cérebro. Damásio considera que há
um tipo de conhecimento inato, descrito na forma de disposições
representacionais, não na forma de idéias inatas postas na mente
humana por um suposto criador como queria Descartes, mas que se
formam no cérebro, dependem da estrutura neurofisiológica e da
história evolutiva da espécie humana.
O conhecimento inato possibilita o elemento básico para a
sobrevivência da pessoa: “Podemos concebê-lo como comandos da
regulação biológica necessários para a sobrevivência (isto é, controle de
metabolismo, impulsos, e instintos)” (Damásio, 1994, p. 104-5). O
conhecimento adquirido, também localizado no cérebro, é responsável
pelos: “movimentos, razão, planejamento e criatividade” (Damásio,
1994, p. 105).
Como colocado anteriormente, para Descartes a razão constitui
a substância pensante imaterial e não está sujeita às leis físicas, ela é
condição necessária para o conhecimento. Ao tratar da racionalidade,
Damásio, por sua vez, caracteriza-a como uma modificação contínua de
cenários mentais: “O conhecimento adquirido baseia-se em
representações disposicionais existentes tanto nos córtices de alto nível
como ao longo de muitos núcleos de massa cinzenta localizados abaixo
do nível do córtex” (Damásio, 1994, p. 105). Para Damásio, uma das
tarefas que a racionalidade deve desempenhar é a possibilidade de
adequar-se a determinadas situações e agir corretamente. Para tanto,
cria cenários mentais prévios à ação, prevendo os possíveis resultados de
tal ação: “na nossa consciência, os cenários são constituídos por
56 João Luis da Silva Santos

múltiplas cenas imaginárias, não propriamente um filme contínuo, mas


instantes pictóricos de imagens-chave nessas cenas, que saltam de umas
para as outras em justaposição rápida” (Damásio, 1994, p. 170). A
racionalidade opera, para Damásio, representacionalmente,
processualmente, a partir de imagens pictóricas dinâmicas, previamente
formuladas e estruturantes da ação.
Damásio interpreta os resultados experimentais que obtém de
modo favorável à manutenção de uma linguagem representacional,
sendo as representações possíveis devido à estrutura do cérebro.
Ao utilizar o conceito de disposições adquiridas, Damásio
problematiza o racionalismo cartesiano e sugere que as representações
são padrões destinados a organizar as imagens obtidas de modo a
auxiliar o indivíduo na preservação de sua vida. Ao analisar as ações
inteligentes através do conceito de representação, Damásio internaliza a
mente, mas não a isola do meio circundante. E isto porque há um
mapeamento do meio-ambiente realizado pelo agente cognitivo. O
mapeamento que o cérebro realiza e a criação de cenários pictóricos é,
para Damásio, fonte dos movimentos corporais e das ações inteligentes.
Tanto os ‘mapas’ quanto os ‘cenários’ têm um fundo padronizador que
possibilitam a alteração das relações corporais (um movimento do braço
por exemplo) e levam os indivíduos a realizarem ações.
No que diz respeito ao conceito de mapeamento
representacional sugerido por Damásio, a palavra ‘mapa’ é utilizada
metaforicamente e significa uma ativação de representações
disposicionais de qualquer movimento corporal localizadas no córtex
motor, sendo esta a base do movimento. Podemos concluir que para
Damásio a mente está ‘na cabeça’ mas em constante processo de
percepção/ação com o meio ambiente. Pensamos que com este estudo,
Damásio lança definitivamente as bases para a Neurociência de
relevância filosófica, que talvez seja a “grande onda”, que começou com
Popper, da Filosofia de nosso princípio de século XXI.

Referências
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de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 57

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Dora Vicente, Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
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_______ Meditações. Discurso do Método. Meditações. Objeções e
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Prefácio e notas Gérard Lebrun. São Paulo, Abril Cultural, 1983. (Os
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_______ Meditações. Discurso do Método. Meditações. Objeções e
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Prefácio e notas Gérard Lebrun. São Paulo, Nova Cultural, 1996. (Os
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_______ Discurso do Método. Trad. João Cruz Costa. Rio de Janeiro:
Edições de Ouro, S. D.
GUEROULT, M. Descartes Selon L'Ordre des Raisons. 2 v. Paris,
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MILIDONI, C. B. A relação mente-corpo e a natureza do eu
cognoscente à luz do dualismo cartesiano. In: Anais do II Simpósio
Científico do Campus de Marília. Marilia: Unesp-Marília-Publicações,
1998.
RYLE,G. The Concept of Mind. Londres: Penguin Books, 2000.
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau

Renato Moscateli *

Resumo: O objetivo do artigo é analisar o conceito de liberdade presente na obra de


Rousseau e fornecer argumentos para questionar a imagem do homem natural como
um ser livre, de modo a sustentar a tese de que a liberdade somente se torna possível
com a saída do estado de natureza descrito no Discurso sobre as origens da desigualdade.
Assim, o autor pretende mostrar que o surgimento da consciência e da racionalidade é
indispensável para que o homem consiga desenvolver suas faculdades virtuais e seja
capaz de criar para si padrões de comportamento diferentes do instinto natural, um
processo que ocorre graças à vida em sociedade.
Palavras-chave: Direito, Liberdade, Natureza, Rousseau, Sociedade

Abstract: The aim of the article is to analyze the concept of freedom present in the
work of Rousseau and to provide arguments to question the image of the natural man
as a free being, in order to support the thesis according to which freedom only
becomes possible with the exit of the state of nature described in the Discourse on the
origins of inequality. Thus, the author intends to show that the appearing of
consciousness and rationality is indispensable so that the man develops his virtual
faculties and be able to create standards of behavior for himself other than natural
instincts, a process that happens thanks to life in society.
Keywords: Freedom, Nature, Right, Rousseau, Society

“Pois a liberdade não é um presente que a bondosa natureza deu ao homem


desde o berço. Ela só existe na medida em que ele próprio a conquistar, e a
posse dela torna-se inseparável desta conquista constante.”
Ernst Cassirer, A questão Jean-Jacques Rousseau

Para os leitores de Rousseau, habituados à constante presença em seus


escritos da expressão “liberdade natural”, a relação entre natureza e
liberdade pode afigurar-se como possuindo um significado bastante
inequívoco, em especial quando se pensa no Discurso sobre as origens da
desigualdade, no qual os inícios da história conjetural do homem
parecem evocar a imagem de um ser livre por excelência, tanto quanto

*
Doutorando em Filosofia pela Unicamp. Bolsista da Fapesp. E-mail:
rmoscateli@hotmail.com. Artigo recebido em 13.10.2008, aprovado em
17.12.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 59-79


60 Renato Moscateli

os decadentes filhos da civilização jamais serão, e as conseqüências da


lamentável perda desta condição ancestral perpassam, de vários modos,
as reflexões que motivaram os textos posteriores de Rousseau. Não
obstante, é justamente um deles que desafia a clareza dessa relação. No
Contrato Social, ao falar sobre os resultados que o pacto de associação
civil traz a quem dele participa, o autor diz que entre eles se encontra a
liberdade moral, “única a tornar o homem verdadeiramente senhor de
si mesmo, porque o impulso do puro apetite é escravidão, e a
obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade.” (Rousseau,
2003, p. 365). Tomando-se isto como uma chave interpretativa para
adentrar os sentidos do termo liberdade no pensamento de Rousseau, é
possível dizer que eles ramificam-se em duas dimensões que não devem
ser sobrepostas indiscriminadamente: uma metafísica, cujas implicações
podem ser abstraídas a partir da leitura do Segundo Discurso, e outra
jurídica, que é exposta nas páginas do Contrato Social. Uma pista
importante para compreendê-las está no fato de que ambas as
dimensões são marcadas por oposições conceituais, as quais serão
abordadas a seguir.

A oposição metafísica: instinto versus liberdade


Como passo inicial, deve-se olhar para o quadro do homem vivendo no
estado de natureza, como Rousseau o delineou. No Segundo Discurso,
lê-se que “O homem selvagem, abandonado pela natureza unicamente
ao instinto, (...) começará, pois, pelas funções puramente animais:
perceber e sentir será seu primeiro estado, que terá em comum com
todos os outros animais.” (Rousseau, 2003, p. 142) Privado de toda
espécie de luzes, suas paixões originam-se no simples impulso da
natureza, e seus desejos não ultrapassam suas necessidades físicas. Sendo
assim, guiando-se unicamente pelos apetites naturais 1 nos longínquos
primórdios de sua existência, esse homem é escravo. De quê? Da

1
Na carta a M. de Franquières datada de 15 de janeiro de 1769, Rousseau escreveu:
“Neste último caso está o homem selvagem e sem cultura, que não fez ainda
nenhum uso de sua razão; que, governado somente por seus apetites, não tem
necessidade de outro guia e que, seguindo apenas o instinto da natureza, anda por
movimentos sempre corretos.” (Rousseau, 1999, p. 1.137)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 61

natureza 2 , o que, para Rousseau, não é algo mau em si mesmo, pois


constitui uma condição análoga à dos outros animais, que se dá na
imediatez das relações com o mundo. Vagando em solidão pelos
bosques, independente do auxílio de seus semelhantes para sobreviver,
o selvagem deseja somente o que pode alcançar de acordo com os
limites físicos de sua capacidade de agir, não havendo, então, conflito
entre querer e poder, pois as necessidades são proporcionais aos meios
de satisfazê-las 3 . O amor-de-si, que é a paixão fundamental, apenas leva
o homem a buscar sua autoconservação, de acordo com o impulso
natural que orienta a todos os seres vivos. Esse homem está bem
adaptado ao ambiente em que vive, e isto em virtude de uma
“providência muito sábia” que dosou o desenvolvimento das
potencialidades humanas para que elas não se tornassem inúteis por
serem extemporâneas. O homem, diz Rousseau, “encontrava unicamente
no instinto todo o necessário para viver no estado de natureza; numa razão
cultivada só encontra aquilo de que necessita para viver em sociedade.”
(Rousseau, 2003, p. 152) (grifos meus) 4

2
De acordo com Anne M. Cohler, “Rousseau está (...) em posição de argumentar que
esses homens estavam perfeitamente contentes no estado de natureza. Se
provavelmente eles não podiam desenvolver suas possibilidades de mudança e
perfectibilidade na linguagem, então eles eram perfeitamente contentes porque não
podiam conceber uma vida diferente. (...) como os animais, eles são complemente
sujeitos à natureza.” (Cohler, 1970, p. 109)
3
Eis, na verdade, uma escravidão de um tipo bastante singular. No Contrato Social, o
autor escreve que “toda ação livre tem duas causas que concorrem para a sua
produção: uma moral, que é a vontade que determina o ato, e outra física, que é o
poder que a executa.” (Rousseau, 2003, p. 395) O homem selvagem certamente tem
em si, como se verá a seguir, o potencial para emancipar-se da escravidão do
instinto, mas, se não o faz por um longo período, é porque tanto a sua vontade
quanto o seu poder ainda não o levam para longe daquilo que a natureza dispõe.
4
A esse respeito, há um trecho do Segundo Discurso que apresenta algumas
dificuldades de compreensão. De acordo com ele, os homens viviam originalmente
dispersos nas florestas, onde observavam e imitavam o comportamento dos animais,
elevando-se até o instinto deles. Por não possuírem talvez um instinto que lhes
pertencesse, esses homens apropriavam-se de todos os instintos dos outros animais,
podendo assim nutrir-se da maioria dos vários alimentos que eles dividiam entre si
(Rousseau, 2003, p. 135). Ora, como se pode entender essas palavras? Segundo
Anne M. Cohler, “Rousseau torna claro nesta passagem que os homens são animais
no estado de natureza porque eles imitam os animais ao seu redor, não porque eles
62 Renato Moscateli

Esta oposição entre natureza/instinto de um lado, e


sociedade/razão de outro, conduz ao segundo ponto da discussão. A
liberdade, que consiste em dar uma lei a si mesmo, ou, em outras
palavras, na criação de padrões de comportamento para si (Cohler,
1970), exige uma certa capacidade de reflexão ao se fazer escolhas. No
estado de natureza, como o homem realiza escolhas? No que concerne
aos animais, pode-se conceber que suas escolhas ocorrem por meio do
“aparelhamento” que lhe é dado pela natureza. Um leão diante de uma
manada de antílopes é capaz de optar por uma presa, em meio a
dezenas ou até centenas de outras possíveis, de acordo com seus
instintos de caçador, e não por algum tipo de raciocínio. Semelhante é
o caso do homem selvagem, cujas decisões são configuradas dentro dos
horizontes de seus instintos 5 , os quais, de acordo com Rousseau, levam-
no a sobreviver nutrindo-se das abundantes produções da terra. Se não
fosse assim, se ele usasse alguma reflexão para agir, ainda se poderia
referir a ele como “homem natural”, uma vez que o Segundo Discurso

são impelidos a procurar por um tipo particular de alimento por instinto. Portanto,
pode ser dito dos homens que eles têm uma organização superior porque possuem
menos instintos do que os outros animais, e, por conseguinte, uma capacidade de
mudar para se ajustar a novos ambientes.” (Cohler, 1970, p. 97) Ter menos
instintos, porém, não é a mesma coisa que não ter nenhum, e Rousseau também
deixa claro, repetidas vezes ao longo do Segundo Discurso e em outros escritos, que o
instinto servia de guia para os homens selvagens. No tocante aos hábitos
alimentares, por exemplo, o autor fornece evidências – nas notas V, VIII e XII
anexadas ao texto – de que o homem se classifica entre as espécies frugívoras dentro
do sistema geral da natureza, o que também é declarado na segunda parte do
Discurso, na qual se lê: “as produções da terra forneciam-lhe [ao homem] todos os
socorros necessários, o instinto levou-o a utilizar-se deles” (Rousseau, 2003, p. 164).
Logo, os homens possuíam instintos próprios que os orientavam na busca da
subsistência.
5
Mesmo a piedade presente no espírito do homem natural, esse sentimento
despertado pela contemplação da dor alheia, é descrita por Rousseau como um
“movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão”, e “tão natural que as
próprias bestas às vezes dão dela alguns sinais perceptíveis”. (Rousseau, 2003, p.
154-155)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 63

descreve a atividade da reflexão como um elemento não inerente ao


homem no estado de natureza? 6
No entanto, não se pode negar que Rousseau diferencia o
homem dos outros animais pela qualidade de agente livre que este
adquire. Somente ele é capaz de se afastar da regra que o instinto lhe
prescreve, mesmo para seu próprio prejuízo:

A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a


mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo
na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois
a física de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formação das
idéias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento desse poder
só se encontram atos puramente espirituais que de modo algum serão
explicados pelas leis da mecânica. (Rousseau, 2003, p. 141-142) (grifos
meus)

Ora, a causa dessa distinção essencial ao homem, ainda segundo


Rousseau, é o dom da perfectibilidade, que permite o desenvolvimento
das capacidades intelectuais humanas para muito além de sua condição
original. Gradativamente, confrontando-se com os obstáculos
colocados pelas mais diversas circunstâncias diante da satisfação de suas
necessidades, o homem aprende a contorná-los de muitas formas
diferentes, e esse é o caminho que, “fazendo com que através dos
séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna
com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza.” (Rousseau, 2003, p.
142) Nesse sentido, quando diz que o homem se reconhece livre para
aceitar ou negar os comandos da natureza, ou seja, que ele tem
consciência dessa liberdade, Rousseau não está falando de um ser que já
se distanciou muito do homem natural 7 e que alcançou um estágio em
pode realizar atos puramente espirituais? Na Carta a Christophe de
Beaumont, ao retomar suas idéias sobre o homem selvagem, Rousseau
declara que

6
“Se ela [a natureza] nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de
reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal
depravado”. (Rousseau, 2003, p. 138)
7
Como o Segundo Discurso afirma claramente, apenas o estado primitivo do homem é
o verdadeiro estado de natureza (Rousseau, 2003, p. 219).
64 Renato Moscateli

a consciência só se desenvolve e age em conjunto com as luzes do homem. É


só graças a essas luzes que ele atinge um conhecimento da ordem, e é só
quando a conhece que sua consciência leva-o a amá-la. A consciência,
portanto, é nula no homem que ainda nada comparou e que não viu suas
relações. Nesse estágio, o homem conhece apenas a si mesmo; não vê seu
bem-estar como estando em oposição ou em conformidade ao de mais
ninguém; ele não odeia nem ama nada; limitado unicamente ao instinto
físico, ele é nulo, é estúpido – é isso o que eu fiz ver em meu Discurso sobre a
desigualdade. (Rousseau, 1999, p. 936) 8

Dada essa explicação do próprio autor, é difícil concordar com


Robert Wokler (1996) quando ele afirma que a consciência da
liberdade teria sido atribuída por Rousseau já ao homem selvagem. Se a
consciência anda lado a lado com a capacidade de reflexão (“as luzes”),
que no Emílio é definida como o poder de julgar, de comparar e de
estabelecer relações entre os objetos percebidos pelos sentidos
(Rousseau, 1999, p. 571), como se pode dizer que o selvagem, “que
ainda nada comparou e que não viu suas relações”, seria dotado de
qualquer consciência de sua liberdade? Wokler também diz que, de
acordo com Rousseau, “nossos ancestrais” não eram limitados pelos
instintos, os quais controlavam apenas as outras criaturas, visto que os
homens sempre teriam sido capazes de satisfazer suas necessidades
naturais de vários modos. Todavia, se o comportamento humano
nunca esteve limitado ao instinto, como se deve entender o argumento
seguinte de Wokler, segundo o qual Rousseau pensava que os humanos
em seu estado natural eram capazes de tornar-se distintos dos outros
animais, ao invés de serem dotados com quaisquer atributos específicos
ou distintivos desde o início? Dizer que esses homens modificaram-se,
afastando-se do tipo de ação meramente instintiva, não é reconhecer,
de maneira implícita, que eles foram outrora caracterizados exatamente
por essa forma de agir? 9 A resposta é dada indiretamente pelo próprio

8
Note-se que o termo francês usado por Rousseau para falar do homem selvagem é
bête (traduzido acima como “estúpido”), o mesmo utilizado no Segundo Discurso
como sinônimo de animal.
9
Ver o Segundo Discurso: “Os únicos bens que [o homem selvagem] conhece no
universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme, a dor
e a forme. Digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer,
sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 65

Wokler, pois ele admite afinal que a conclusão de Rousseau sobre a


liberdade e a perfectibilidade era a de que elas constituíam, no homem
selvagem, atributos “rudimentares” e “latentes” 10 por meio dos quais,
com o passar do tempo, fez-se possível a evolução histórica da raça
humana. Esta é, também, a opinião de Jean Starobinski, para quem o
homem natural é “um ser quase puramente sensitivo que se distingue
do autômato e do animal por suas faculdades virtuais e por uma
liberdade ainda sem uso” (Starobinski, 1991, p. 297); em outras
palavras, que não se distingue de fato – embora não para sempre –, pois
o que o singulariza consiste justamente no modo como ele agirá, e não
no modo como age 11 .
Sem dúvida, os passos com os quais os homens percorreram o
caminho rumo à racionalidade foram muitos e nem sempre se deram
em linha reta. Como Rousseau faz questão de ressaltar, coube a uma
série de circunstâncias acidentais fazer com que a humanidade se
afastasse das limitações da natureza 12 . Sem elas, talvez jamais surgissem

feitas pelo homem ao distanciar-se da condição animal.” (Rousseau, 2003, p. 143)


(grifos meus)
10
Ver o Segundo Discurso, onde Rousseau considera ter mostrado que a
perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural
recebera em potencial jamais poderiam desenvolver-se por si próprias (Rousseau,
2003, p. 162), e também onde, ao cogitar a hipótese de que certos animais descritos
pelos viajantes fossem verdadeiros homens selvagens, o autor diz que tais homens
não haviam encontrado “ocasião de desenvolver qualquer de suas faculdades virtuais,
não adquirindo nenhum grau de perfeição e encontrando-se ainda no estado
primitivo de natureza.” (Rousseau, 2003, p. 208) (grifos meus)
11
Como Luca Alici enfatiza, o surgimento da consciência e da razão é um fato
fundamental na plena realização das potencialidades especificamente humanas: “O
dualismo antropológico (‘razão’ e ‘consciência’ como expressão do componente
‘metafísico e moral’ e das ‘paixões’ como manifestações do componente físico-
material) faz com que a saída do estado de natureza se configure prioritariamente
como um cômputo moral. Afirma-se, portanto, um tipo de círculo virtuoso pelo qual
a ‘razão e a ‘consciência’ permitem e fundam a passagem ao ‘homem moral’ e a um
estado político bem ordenado; a sociedade bem ordenada, por sua vez, faz com que ‘o
indivíduo seja posto em condições institucionais tais que favorecem o
desenvolvimento e a expressão de sua propriedade distintiva’.” (Alici, 2003)
12
Essas circunstâncias incluem, por exemplo, inundações, terremotos, incêndios e
eventos semelhantes que forçaram os homens a desenvolverem novas habilidades e a
se aproximarem uns dos outros.
66 Renato Moscateli

famílias, nações, sociedades ou Estados. Igualmente, sem elas talvez os


homens nunca teriam começado a exercer as faculdades virtuais que
lhes permitiram estabelecer as primeiras comparações e os primeiros
juízos 13 . Antes de ter uma consciência plena de que agiam sem se guiar
mais pelo puro instinto, os indivíduos já tomavam assim suas primeiras
decisões usando de capacidades intelectuais que se expandiam na
medida mesma em que se faziam necessárias para vencer os novos
desafios colocados à sobrevivência, capacidades nascidas daquela
elementar “prudência maquinal” 14 das eras antigas relatadas por
Rousseau.
Quanto a isso, a discussão de Andrzej Rapaczynski acrescenta
novos elementos. Para o autor, a concepção rousseauniana de natureza
derivava-se de uma visão de mundo implicada no sistema da ciência
moderna mecanicista. Coerente com ela, Rousseau retratou os animais
como “máquinas” dotadas com os sentidos necessários para interagir
com o ambiente, e polemizou com Hobbes, Locke e os demais teóricos
do jusnaturalismo a respeito do verdadeiro significado da condição
humana no estado de natureza. Assim, no Segundo Discurso, Rousseau
teria deixado claro que não se poderia falar de um homem natural a não
ser que se fizesse uma separação realista entre os aspectos animalísticos

13
“Rousseau (...) descreve a causa primária da mudança, as paixões. As paixões são
criadas pelas necessidades e não podem crescer a menos que os homens criem
necessidades para além daquelas supridas pela natureza para os homens como eles
são no estado de natureza. A menos que alguma força externa crie necessidades para
além das necessidades corporais facilmente satisfeitas dos homens no estado de
natureza, a história do homem não pode começar.” (Cohler, 1970, p. 106)
14
A respeito dessa “prudência maquinal”, que é o primeiro “tipo de reflexão” de que o
homem foi capaz, Cohler diz que ela é mais do que a habilidade de se ajustar às
regularidades da natureza, tal como o selvagem fazia anteriormente, pois ela requer
que ele desenvolva uma consciência rudimentar de seu meio-ambiente e de suas
possibilidades. Na medida em que essa prudência aumenta, o homem passa a
comparar a si mesmo com os animais, vendo-se então como diferente deles. Assim,
“o primeiro ato de um homem que não era um animal produziu a consciência de
que ele não era um animal.” (Cohler, 1970, p. 116) A partir de um argumento
semelhante, Andrzej Rapaczynski chegou a afirmar que “a característica crucial do
homem pós-natural, que realmente o retira do estado de natureza e explica todos os
aspectos de sua constituição que escapam ao alcance de uma descrição mecanicista, é
sua capacidade de reflexão.” (Rapaczynski, 1989, p. 231)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 67

da vida humana, por um lado, e a capacidade para a liberdade que


pertence especificamente ao homem, por outro, consistindo esta
última, como foi afirmado acima, numa qualidade espiritual que seria
irredutível a qualquer explicação pelas leis da mecânica. A partir disto,
Rapaczynski propõe que Rousseau acreditava na viabilidade de se
contemplar certas características da constituição do homem como
indistinguíveis daquelas de uma máquina viva 15 . Dentro da história
hipotética traçada por Rousseau para expor as origens da desigualdade,
cria-se então a possibilidade de

vislumbrar um homem que (...) faz pouco ou nenhum uso de sua liberdade.
Nós podemos considerar a liberdade como meramente virtual e não real no
selvagem; como meramente “a perfectibilidade”, que ainda não se
desenvolveu em qualquer grau significante. (...) As ações do homem no
estado de natureza serão vistas como respostas passivas ao estímulo externo, e
o “amor-de-si”, ou o desejo de autopreservação, será a qualidade dominante
da motivação humana. (Rapaczynski, 1989, p. 225) 16

15
Ver Goldschmidt (1983, p. 293 e ss.), cuja leitura do Segundo Discurso leva à
mesma conclusão.
16
Para Cohler, “Tanto a liberdade quanto a perfectibilidade implicam a capacidade
dos homens de criar padrões para si mesmos diferentemente da autopreservação
animal, em suma, de considerar a si mesmos ao invés de simplesmente preservar a si
mesmos. (...) O problema reside em estabelecer que esta capacidade não funcionava
no estado de natureza. Muito embora os homens tenham sido mostrados capazes de
sobreviver com base em suas características físicas no estado de natureza, Rousseau
precisa mostrar então que as circunstâncias do estado de natureza não levam ao uso
da característica peculiarmente humana. A demonstração tem duas partes. Na
primeira parte, Rousseau tenta mostrar que circunstâncias externas são exigidas para
colocar essa capacidade em operação e que nenhuma delas existia no estado de
natureza. Circunstâncias externas são exigidas para produzir a capacidade dos
homens de criar, e agir com base em seus próprios padrões. Se os homens naturais
pudessem gerar a capacidade a partir de si mesmos, então o estado de natureza não
existiria; os homens seriam sempre homens tais como eles são agora. (...) Na
segunda parte, Rousseau tenta mostrar que as outras características sociais dos
homens não são aptas a se desenvolver sem que os homens usem essa capacidade.
Tanto a linguagem quanto a família, as mais elementares instituições sociais, exigem
que os homens usem sua capacidade de criar e agir com base em padrões, e elas não
existem no estado de natureza.” (Cohler, 1970, p. 105)
68 Renato Moscateli

Tal homem vive num estágio que Rapaczynski chama de “pré-


histórico”, na medida em que ele é moldado pelo curso natural dos
eventos e não tem nenhuma responsabilidade por seu próprio destino 17 .
Porém, quando as circunstâncias naturais colocam em risco sua
sobrevivência, graças ao aumento populacional e a modificações no
ambiente, o ser humano, diferentemente dos outros animais, possui na
perfectibilidade um recurso extra a seu favor; ela, que estava
adormecida, é despertada e assume as funções outrora preenchidas pelo
instinto. Os novos princípios que passam a guiar o comportamento dos
homens devem-se, então, não mais à natureza, mas a uma faculdade
puramente espiritual e não-natural de reflexão. É a partir desse
momento que a “máquina humana” incorpora aquilo que a distingue
da “máquina animal”, ou seja, a qualidade de agente livre. Assim,
conclui Rapaczynski,

para dar uma descrição adicional da ação humana, incluindo uma descrição
das relações interpessoais e dos fenômenos sociais e políticos, nós devemos
encontrar outro método de análise, uma nova ciência, diferente da ciência
natural mecanicista e capaz de fazer justiça ao assunto em questão. A
transição entre o estado de natureza e o estado civilizado não é meramente

17
De acordo com Wokler, a diferenciação entre natureza e cultura é uma marca
essencial do Segundo Discurso, fazendo dele um texto importantíssimo no interior da
reflexão antropológica do século XVIII. Para Rousseau, “por natureza, nós somos na
verdade muito semelhantes aos animais – mais flexíveis, mais maleáveis, sem dúvida,
e singularmente capazes de mudança – mas, no fundo, movidos pelos mesmos
impulsos de amour de soi e pitié. Segue-se, portanto, que o grande abismo entre nós
e o resto da criação animal (...) simplesmente não existe. Não havia, para Rousseau,
nenhuma ruptura na scala naturae, nenhum degrau faltando escala da natureza. A
partir dessas afirmações, que efetivamente animalizam a natureza humana (ou ao
menos fazem a ponte sobre o abismo entre nossa espécie e a dos grandes primatas),
ele concluiu que a criatura comumente chamada de orangotango, que significa
‘homem das florestas’ em malaio, poderia na verdade ser um progenitor da
humanidade.” (Wokler, 1995, p. 43) Rousseau teria sido tão bem sucedido em seu
esforço para abstrair aquilo que é natural no homem das características que surgem
da existência social, diz Wokler, que sua história conjetural da raça humana tornou-
se – ainda que inadvertidamente – uma excelente obra de “primatologia empírica”,
pois seu retrato do homem natural como um ser solitário, frutívoro, indolente e
itinerante concorda muito bem com a descrição dos orangotangos existentes no
sudeste da Ásia.
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 69
uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade, ou entre o homem pré-social e
o social; ela é, na verdade, uma ruptura entre dois tipos heterogêneos de
entidades e dois tipos correspondentemente heterogêneos de análise.
(Rapaczynski, 1989, p. 234-235)

Conseqüentemente, há uma diferença de suma importância a


ser considerada: os outros animais não têm como ultrapassar suas
limitações, mas o homem sim, graças à perfectibilidade. Caso ele
pudesse permanecer selvagem para sempre, sua sujeição ao instinto lhe
bastaria 18 . Ele persistiria sem entendimento, razão ou liberdade; seria,
por tanto tempo quanto andasse sobre a terra, uma criatura
“subumana” (Strauss, 1986, p. 234) 19 . Entretanto, ele é impulsionado
por fatores externos e por sua particularidade essencial a abandonar esse
estado, deixando sua solidão para conviver com seus semelhantes 20 .
Logo, ele pode elevar-se até a liberdade, que incorpora a razão e a
moralidade, e é o ponto mais alto de seu progresso espiritual,

18
“A perfectibilidade, no estado de natureza, não encontra, portanto, nenhuma causa
natural que possa colocá-la em marcha e levá-la a substituir o instinto. – Vê-se,
enfim, o quanto a perfectibilidade se opõe à sociabilidade. Ela só se desenvolve ‘com
a ajuda das circunstâncias’ (ao invés de agir à maneira de uma causa interna); ela
mantém o isolamento (ao invés de trabalhar para uma aproximação); ela deixa os
homens no nível do instinto” (Goldschmidt, 1983, p. 306).
19
Descrevendo as condições praticamente imutáveis nas quais, durante eras sucessivas,
o homem selvagem viveu, Rousseau sintetiza dessa forma suas características: “Então
não havia nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e,
partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a
grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre
criança.” (Rousseau, 2003, p. 160) Compare-se esta descrição com aquela referente
ao animal, que, “ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie,
no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares.” (Rousseau,
2003, p. 142)
20
Ver o fragmento intitulado A influência dos climas sobre a civilização: “Se toda a
terra fosse igualmente fértil, talvez os homens jamais tivessem se aproximado. Mas a
necessidade, mãe da indústria, forçou-os a se tornar úteis uns aos outros, para sê-lo a
si mesmos. É por estas comunicações, de início forçadas, depois voluntárias, que
seus espíritos desenvolveram-se, que eles adquiriram talentos, paixões, vícios,
virtudes, luzes, que se tornaram tudo o que podem ser no bem e no mal. O homem
isolado permanece sempre o mesmo; ele só faz progresso em sociedade.” (Rousseau,
2003, p. 533)
70 Renato Moscateli

confirmando o potencial que lhe foi dado pelo Criador 21 . Na medida


em que chega a tomar suas próprias decisões, “tudo o que faz
livremente não entra no sistema ordenado da Providência e a esta não
pode ser imputado” (Rousseau, 1999, p. 587), visto que é um desvio
deliberado quanto ao que prescreve a ordem natural. Tal desvio
possibilita que os homens construam sua própria história, cujos
desdobramentos são de sua inteira responsabilidade. A moralidade, é
evidente, resulta de um longo processo de aprimoramento a fim de que
as pessoas compreendam que a voz divina chamou todo o gênero
humano às luzes e à felicidade das inteligências celestes, como diz o
Segundo Discurso. Portanto, o homem só assume verdadeiramente a
condição de senhor de si mesmo afastando-se de sua natureza
puramente animal 22 , quando realiza a completude de suas faculdades
específicas e adquire uma (auto)consciência mais ampla de seu lugar no
universo. É esse o significado da exortação que o preceptor de Emílio
faz-lhe com tanta veemência:

O que é, portanto, o homem virtuoso? É aquele que sabe vencer suas


afeições; pois então ele segue sua razão, sua consciência; ele cumpre seu
dever, ele se mantém em ordem, e nada pode afastá-lo dela. Até aqui tu só
eras livre em aparência; tu só possuías a liberdade precária de um escravo a
quem não se ordenou nada. Agora, sejas livre de fato; aprende a tornar-te teu
próprio mestre; comanda a teu coração, ó Emílio, e tu serás virtuoso.
(Rousseau, 1999, p. 818)

21
Em sua Carta sobre a virtude, o indivíduo e a sociedade, Rousseau escreve que “uma
vantagem infinitamente superior a todos os bens físicos, e uma das quais nós
inegavelmente compartilhamos devido à harmonia da raça humana, é a de atingir,
por meio da comunicação de idéias e do progresso da razão, as regiões intelectuais,
de adquirir as sublimes noções de ordem, sabedoria e bondade moral, de nutrir
nossos sentimentos com os frutos de nosso conhecimento, de elevarmos a nós
mesmos, por meio da grandeza de nossas almas, acima da fraqueza de nossa
natureza, e de igualar, em certos aspectos, por meio da arte do raciocínio, as
inteligências celestes; até finalmente, combatendo e vencendo nossas paixões,
ganharmos o poder de dominar o homem e imitar a própria Divindade.” (Rousseau,
2003a, p. 32)
22
Ver o Emílio: “Então, para impedir o homem de ser mau fora preciso limitá-lo ao
instinto e fazê-lo estúpido? Não, Deus de minha alma, nunca te censurarei tê-la feito
à tua imagem, a fim de que eu possa ser livre, bom e feliz como tu.” (Rousseau,
1999, p. 587)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 71

A oposição jurídica: liberdade natural versus liberdade civil


Considerando tudo isso, não seria mais correto afirmar que no estado
de natureza vê-se somente independência, enquanto que apenas no
estado social manifesta-se – ou pode manifestar-se – a liberdade? 23 É o
que o próprio Rousseau parece sugerir no Contrato Social (livro II,
capítulo IV), ao defender que a realização do pacto fundador da
sociedade leva a uma troca vantajosa da “independência natural pela
liberdade”. Esse argumento em prol dos benefícios da associação civil
retoma, com novos termos, o primeiro “balanço” feito pelo autor (livro
I, capítulo VIII) da “notável mudança” que se opera no homem
quando da passagem para o estado social. Rousseau diz que tal
mudança conduziria à aquisição de uma nova existência, não mais
puramente natural, mas civil e moral. Graças a ela, a justiça substituiria
o instinto, a voz do dever tomaria o lugar do impulso físico, e o direito,
o lugar do apetite. Ocorreria uma verdadeira transformação intelectual
e ética, na qual a razão e os sentimentos se desenvolveriam de maneira
considerável, fazendo de um animal estúpido e limitado um ser
inteligente e um homem. Nesse novo modo de vida, em que a
conquista da liberdade moral torna o homem “verdadeiramente senhor
de si mesmo” e o autor da regra que guia suas ações, é de crucial
importância impedir a subordinação de um – ou de muitos – ao
arbítrio de uma vontade particular no tocante a um ponto básico, isto
é, a autoconservação 24 . Quando Rousseau assevera que o contrato social
deve gerar uma forma de associação que permita a seus membros
permanecer tão livres quanto antes de entrar nela 25 , isto significa que

23
Sobre essa diferenciação, ver também Derathé (1948, p. 112 e seguintes).
24
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo II: “Essa liberdade comum é uma
conseqüência da natureza do homem. Sua primeira lei consiste em zelar pela própria
conservação, seus primeiros cuidados são aqueles que deve a si mesmo, e, assim que
alcança a idade da razão, sendo o único juiz dos meios adequados para conservar-se,
torna-se, por isso, senhor de si.” (Rousseau, 2003, p. 352)
25
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI. Isto faz lembrar o princípio do Contrato
Social, onde se afirma que “o homem nasce livre”. O que significa tal declaração?
Como esclarece Christopher Bertram, Rousseau expressa dessa forma uma idéia já
presente tanto em Hobbes quanto em Locke, a de que a condição natural do
homem é de não-subordinação: “Nós nascemos livres e iguais no sentido de que
nenhuma pessoa tem por natureza o direito de comandar qualquer outra pessoa nem
72 Renato Moscateli

eles se manterão protegidos de toda dependência pessoal enquanto


obedecerem à vontade geral, que é a vontade deles mesmos 26 . É assim,
conclui Robert Derathé, que o homem “encontrará, sob a forma da
liberdade civil, o equivalente de sua independência natural” (Derathé,
1979, p. 151).
Não obstante todos esses argumentos serem válidos e
convincentes, o quadro permaneceria incompleto se fosse deixado de
lado o fato de que Rousseau realmente se refere a uma liberdade natural
no contexto do balanço mencionado acima, como sendo algo que os
homens perdem ao se associarem politicamente. Porém, o uso do termo
liberdade remetendo a situações diversas – antes e depois do pacto
social –, não refuta a tese desenvolvida até aqui, nem constitui uma
contradição no pensamento do autor. É indispensável perceber que a
expressão “liberdade natural” não é um simples sinônimo de “liberdade
do homem natural”, por mais que se pareça estar frente a coisas iguais.
Para distingui-las corretamente, tem de se levar em consideração certas
diferenças entre o Discurso sobre a origem da desigualdade e o Contrato
Social. No primeiro, o objetivo é reconstruir a história hipotética da
gênese da sociedade tendo o homem selvagem como ponto de partida,
e ao desempenhar essa tarefa Rousseau acaba narrando também as
origens da liberdade como algo oposto ao impulso do instinto natural,
como uma qualidade metafísica. No segundo, a intenção é analisar os
princípios do direito político, e nessa discussão inclui-se o conceito de
uma liberdade chamada de natural porque tem “por limites apenas as
forças do indivíduo” (Rousseau, 2003, p. 365) 27 . Esta liberdade é
oposta a qualquer liberdade “artificial” criada pelos homens, uma vez
que, para Rousseau, o que há naturalmente é o indivíduo dotado de
uma “existência física e independente”, “que por si mesmo é um todo
perfeito e solitário” (Rousseau, 2003, p. 381) 28 . Por outro lado, a
sociedade civil, na qual cada pessoa é “parte de um todo maior”, só se

o dever de submeter-se aos comandos de outra. Não há nenhuma hierarquia natural


na espécie humana, nenhum macho-alfa que o restante de nós tem de suportar
como o único encarregado.” (Bertram, 2004, p. 43)
26
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VII.
27
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VIII.
28
Ver o Contrato Social, livro II, capítulo VII.
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 73

estabelece por meio de uma convenção e deve levar à desnaturação do


homem para ser bem sucedida 29 . Deste modo, juridicamente falando, a
liberdade natural é aquela de que os indivíduos desfrutam ao viverem
fora de qualquer associação política. Mantendo isto em mente,
compreende-se por que Rousseau afirma que os membros do corpo
político têm o direito de retomar sua liberdade natural caso o pacto
social seja violado 30 , embora isto não signifique, de forma alguma, que
eles estariam retornando ao estado de natureza original descrito no
Segundo Discurso: aqueles que já fizeram parte de uma sociedade não
podem mais voltar a viver como os homens selvagens 31 . A liberdade
natural encontra-se onde o pacto social ainda não existe ou já deixou de
existir.
Conseqüentemente, o homem natural só é livre se encarado de
uma perspectiva jurídica – e não metafísica –, como caso hipotético
extremo de um ser aquém de qualquer laço social. Nas duas únicas
vezes que a expressão liberdade natural aparece no Segundo Discurso 32 ,
ela é usada na esfera de problemas concernentes ao direito,
demonstrando que faz sentido apenas depois que a instituição do
Estado é posta em cena, quando pode ser pensada em oposição à
liberdade civil. De um ponto de vista metafísico, a liberdade só pode

29
Ver o Contrato Social, livro II, capítulo VII: “É preciso, em uma palavra, que ele [o
legislador] destitua o homem de suas forças próprias para lhe dar outras que lhe
sejam estranhas e das quais ele não possa fazer uso sem o auxílio de outrem. Quanto
mais essas forças naturais são mortas e aniquiladas, mais as adquiridas são grandes e
duráveis, mais, também, a instituição é sólida e perfeita” (Rousseau, 2003, p. 381-
382)
30
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI: “o pacto social sendo violado, cada um
retorna, então, a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a
liberdade convencional pela qual renunciara àquela” (Rousseau, 2003, p. 360); e
também o livro III, capítulo X: “De modo que no instante em que o governo usurpa
a soberania, o pacto social é rompido, e todos os simples cidadãos, repostos de
direito em sua liberdade natural, são forçados, mas não obrigados, a obedecer.”
(Rousseau, 2003, p. 422-423)
31
No final do Segundo Discurso, Rousseau fala de um novo estado de natureza que
surge quando a desigualdade atinge o seu extremo e o despotismo se eleva sobre as
ruínas da república. Todavia, esse novo estado é diferente do primeiro, porque é “o
fruto de um excesso de corrupção” (Rousseau, 2003, p. 191)
32
Ver Rousseau (2003, p. 178 e 185).
74 Renato Moscateli

existir com o abandono do estágio primitivo da existência humana, e


isto não é imediatamente seguido pela realização do pacto instituidor
do corpo político. Entre um e o outro, existe uma fase de transição,
vale lembrar, na qual aparecem muitos elementos sem os quais a
transformação dos indivíduos em cidadãos seria impossível: as primeiras
relações sociais (famílias, nações), a linguagem, os diferentes modos de
subsistência e a propriedade são os principais. Tudo isto não surge
instantaneamente; cada coisa demanda um considerável lapso de
tempo, tal como Rousseau relata no Segundo Discurso 33 . Configura-se
um período intermediário, portanto, em que não se está mais
submetido unicamente às leis da natureza (instintos), mas ainda não se
obedece às leis civis. Nele, os homens guiam-se de acordo com suas
vontades particulares; usufruem de uma liberdade precária, que “tem
por limites apenas as forças do indivíduo”, e que, dessa maneira, é
sustentada somente por essas mesmas forças, o que deixa cada pessoa
sempre sob o risco de ser subjugada pela força maior de outrem. No
Contrato Social esse processo é apenas presumido, pois não se trata de
descrever todos os seus passos novamente, mas de refletir sobre quais
seriam os princípios jurídicos e os resultados políticos de um tipo
específico de pacto social. Conforme Rousseau, chega um ponto em
que os homens são obrigados a unir forças para garantir sua
conservação 34 , e nesse momento a liberdade natural – a dos indivíduos
fora do corpo político, vivendo cada um por si – não pode mais ser
mantida. No contexto do Segundo Discurso, ela foi substituída pela
escravidão oculta no pacto proposto pelos ricos 35 ; no modelo do

33
“Descobrindo e seguindo assim as rotas esquecidas e perdidas que do estado natural
devem levar o homem ao estado civil, restabelecendo, com as posições
intermediárias que eu acabo de assinalar, as que o tempo que me apressa me fez
suprimir, ou que a imaginação não me sugeriu; todo leitor atento só poderá ser
impressionado pelo espaço imenso que separa esses dois estados. É nessa lenta
sucessão das coisas que ele verá a solução de uma infinidade de problemas de moral e
de política que os filósofos não podem resolver.” (Rousseau, 2003, 191-192)
34
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI.
35
“Tal foi, ou deveu ser, a origem da sociedade e das leis, que deram novos obstáculos
ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural,
fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma sagaz
usurpação um direito irrevogável, e para o benefício de alguns ambiciosos sujeitaram
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 75

Contrato Social, ela é trocada pela liberdade civil, alicerce de toda


república justa.

Considerações finais
Enfim, o fato de ser independente da vontade de outrem, como no
estado de natureza, não basta para caracterizar toda a amplitude de
sentido que a palavra liberdade carrega no pensamento
rousseauniano 36 . Se bastasse, até mesmo o leão do exemplo citado
acima seria livre, pois ele pode assegurar sua sobrevivência sem se
submeter à vontade de outro indivíduo de sua espécie, exercendo assim,
com independência, o objetivo natural da autoconservação. Qualquer
animal não gregário teria de ser considerado como dotado de liberdade,
e este atributo deixaria de ser uma exclusividade humana. É por esse
motivo que, para definir plenamente a liberdade, é preciso que se inclua
igualmente a escolha moral. Em sua crítica à escravidão, Rousseau usa o
argumento de que “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de
homem”, de que “destituir-se voluntariamente de toda e qualquer
liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações.” (Rousseau,
2003, p. 356) 37 Logo, ser escravo não consiste tão só em se tornar
extremamente dependente de outra pessoa, mas também, e sobretudo,
em perder o estatuto de agente responsável por suas ações sob uma
perspectiva ética.

daí por diante todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria.”


(Rousseau, 2003, p. 178)
36
Por esse motivo, deve-se ver com cuidado as ocasiões em que Rousseau usa a
palavra liberdade para se referir ao homem selvagem. Um exemplo encontra-se nas
últimas páginas do Segundo Discurso, onde se lê que o homem selvagem “só almeja o
repouso e a liberdade” (Rousseau, 2003, p. 192). De modo semelhante ao que
ocorre em outros momentos, Rousseau está utilizando uma palavra também em seu
sentido mais amplo e corriqueiro – livre como sinônimo de independente e auto-
suficiente –, ao invés de empregá-la somente na acepção particular de seu sistema
conceitual – o agente livre é o que obedece à lei que estatui para si mesmo. É
preciso, pois, seguir o conselho dado por Rousseau no Contrato Social, e saber
distinguir quando um termo é empregado com inteira precisão, e quando ele é
confundido com outro com o qual possui alguma proximidade em um nível mais
usual de significação.
37
Contrato Social, livro I, capítulo IV.
76 Renato Moscateli

Se Rousseau chega a dizer, no Emílio, que se é mais livre no


pacto social do que no estado de natureza, é porque ele tinha plena
consciência da superioridade que a liberdade possui em relação à mera
independência. Na oitava das Cartas escritas da montanha, ele escreveu:

É inútil querer confundir a independência e a liberdade. Essas duas coisas


são tão diferentes que elas próprias se excluem mutuamente. Quando cada
um faz o que bem quer, faz-se freqüentemente o que desagrada aos outros; e
isto não se chama um Estado livre. (...) Assim, a liberdade sem a justiça é
uma verdadeira contradição (...). Não há, portanto, liberdade sem leis, nem
onde alguém esteja acima das leis: no próprio estado de natureza, o homem
só é livre de acordo com a lei natural que comanda a todos. (Rousseau,
2003, p. 841-842)

Vivendo em sociedade, os indivíduos têm a dificílima tarefa de


harmonizar suas existências outrora independentes em uma ordem
política legítima, a fim de que a justiça prevaleça sobre o arbítrio
individual e instaure a liberdade civil garantida pelas leis que eles
elaboram para si mesmos, em um processo no qual cada um tem o
direito e o dever de participar. Em contrapartida, a despeito da
afirmação final de Rousseau, no estado de natureza os homens não
podem ser considerados livres da mesma forma como o são na
qualidade de cidadãos de uma república, pois a lei natural não lhes foi
prescrita por eles próprios, é uma imposição que se dá pela força das
coisas e que eles seguem inconscientemente. Leo Strauss salienta bem o
fato de que o estado de natureza rousseauniano é o “reino dos apetites
cegos” e, portanto, da “escravidão no sentido moral do termo”. Desse
ponto de vista, Rousseau não podia acreditar que a liberdade derivasse
do simples direito natural à conservação, que decorre de um instinto
que o homem partilha com os brutos 38 . Para uma correta compreensão

38
No estado de natureza, o homem compartilha com os animais um tipo de
pensamento básico, oriundo da combinação dos dados obtidos pelos sentidos, cuja
única finalidade é a manutenção da existência física, ou autopreservação: “Uma vez
que a liberdade, para Rousseau, é algo diferente desta autopreservação animal, ela
implica que os homens podem criar finalidades para si mesmos; os homens, em
contraste com os animais, podem escolher o padrão sobre o qual seu pensamento e
sua ação serão baseados. Inevitavelmente, então, os homens não mais serão capazes
de preservar sua existência física como eles faziam quando eram animais. Eles se
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 77

da moralidade e da humanidade, ele tinha de relacioná-las “a um


direito ou a uma liberdade radical e especificamente humana”, a “um
ato criador”, isto é, à “auto-legislação” (Strauss, 1986, p. 242-243).
Por todas essas razões, o paralelo feito por Rousseau entre os
dois diferentes momentos nos quais todos estariam sujeitos às leis, seja
da natureza, seja da sociedade, não deve levar à idéia de que são
igualmente livres em ambos, pelo menos não à luz do que se está
discutindo aqui. Sendo a passagem do estado de natureza à convivência
social o percurso que leva de uma condição pré-humana à possibilidade
da plena realização do indivíduo por meio da descoberta de sua
identidade e de sua educação moral, Rousseau demonstra que a
aquisição da qualidade de homem, sem a qual a liberdade não existe,
requer a vida em comunidade, e não o isolamento e a auto-suficiência
dos selvagens: “Aí está a originalidade da concepção rousseauniana da
natureza humana (...); o homem depende da sociedade para ser o que
ele é, no sentido que somente na sociedade as suas potencialidades
podem ser realizadas ou violadas” (Chapman, citado por Alici, 2003).
Para Rousseau, em suma, a sociedade é essencial à existência do homem
em sua completude, dado que ele é verdadeiramente humano apenas
em um ambiente social. Verdadeiramente humano e, deve-se
acrescentar, somente então verdadeiramente apto a conquistar a
liberdade.
Seria correto, então, considerar simplesmente que Rousseau
acreditava em uma “teleologia da libertação”? Que ele via como uma
necessidade inerente ao devir o afastamento da vida selvagem em
direção às manifestações sublimes da virtude cívica? Que esse processo
fosse inequivocamente positivo? Lidar com essas questões é reconhecer,
mais uma vez, a complexidade da reflexão rousseauniana. Antes de
tudo, vale a pena lembrar que, no Segundo Discurso, o autor afirma ter
demonstrado que a perfectibilidade e as outras faculdades que o
homem selvagem dispunha em potência nunca poderiam ter se
desenvolvido por si mesmas, e que sem a ação de um conjunto de

tornam animais depravados, de menor estatura física do que eles poderiam ter e uma
vez tiveram. Quando os homens criaram tais padrões, a linguagem, por exemplo, seu
pensamento seria diferente do pensamento que eles compartilhavam com os animais
no estado de natureza.” (Cohler, 1970, p. 103)
78 Renato Moscateli

causas exteriores ao estado de natureza, o homem “teria permanecido


eternamente em sua condição primitiva” (Rousseau, 2003, p. 162).
Além disso, a perfectibilidade, como foi visto, é fonte de luzes mas
também de erros, de virtudes mas também de vícios. Se é na sociedade
que o homem adquire uma existência ética, é igualmente nela que ele se
encontra suscetível à corrupção moral. Quando descreveu a “notável
mudança” mencionada acima, Rousseau acrescentou uma nota final a
essa ode ao enobrecimento humano que ecoa como um nítido sinal de
alerta: cada indivíduo que ultrapassa a estreiteza da vida no estado de
natureza “deveria sem cessar bendizer esse instante feliz que o arrancou
dela para sempre e que, de um animal estúpido e limitado, fez um ser
inteligente e um homem”, isto “se os abusos dessa nova condição não o
degradassem freqüentemente abaixo daquela de onde ele saiu.” (Rousseau,
2003, p. 364) 39 (grifos meus) Esta curta ressalva, que nem todos os
leitores fazem questão de enfatizar, foi posta justamente aí, em meio à
exposição das vantagens que se pode obter pela participação na
sociedade, como um aviso de que a realização da liberdade moral não é
o termo inexorável da história, e sim um empreendimento custoso e
sem garantias de sucesso, mas cujo anseio não deve ser afastado de
nossos horizontes sob o risco de que se perca algo de fundamental em
nossa humanidade.

Referências
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di filosofia politica, 2003. Disponível em:
<http://www.philosophica.org/bfp/art/alici.html> Acesso em: 04 jul.
2005.
BERTRAM, C. Routledge philosophy guidebook to Rousseau and The
Social Contract. Nova Iorque: Routledge, 2004.

39
Contrato Social, livro I, capítulo VIII. Na leitura de Peter Gay, “embora a descrição
de Rousseau do caráter essencial do homem varie, ela permanece sempre fiel à idéia
de que o homem é originalmente sem pecado, de que ele vem ao mundo como um
ser livre, e de que ele é equipado com a capacidade para a decência, o espírito
público, a sinceridade, a racionalidade autêntica. A história, então, é para Rousseau
um comentário desanimador sobre a falha do homem em realizar suas
potencialidades.” (Gay, 1996, p. 536)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 79

CASSIRER, Ernst. A questão Jean-Jacques Rousseau. Trad. Erlon J.


Paschoal. São Paulo: Editora Unesp, 1999.
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STRAUSS, Leo. Droit naturel et histoire. Trad. Monique Nathan e Éric
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WOKLER, Robert. Anthropology and conjectural history in the
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human science: eighteenth-century domains. Berkeley: University of
California Press, 1995. p. 31-52.
_______. Rousseau. Oxford: Oxford University Press, 1996.
Egoísmo contra identidades: a avaliação da moral
como estética da existência e ética como amor-próprio

Jason de Lima e Silva *

Resumo: Este ensaio pretende levantar as seguintes questões: 1. de que modo é


possível reconstituir o sentido de moral segundo um amor-próprio cujo conteúdo é
dado menos por um isolamento ou negação do outro do que por um trabalho pessoal
sobre si mesmo, em vista de um êthos, de uma ética? 2. em que medida o valor da
moral hoje em dia pode ser deslocado da lei universal para uma atitude de diferença,
da normalidade do comportamento para o cultivo de si e, por fim, da verdade sobre o
sujeito para uma subjetivação ascética que não exige a prerrogativa de uma identidade,
mas a transformação de si na relação consigo e com os outros? Tais questões são
levantadas a partir de Friedrich Nietzsche, Michel Foucault e Fernando Savater.
Palavras-chave: Amor-próprio, Estética da existência, Ética, Identidade

Abstract: This paper intends to rise the following questions: 1. how is it possible to
reconstruct the moral sense according to self-esteem whose content is given less by
negation or isolation from the other than by personal work about oneself, with an eye
to an êthos, of an ethics? 2. nowadays, can the value of morals be dislocated from the
universal law to an attitude of difference, from the normality of behavior to oneself’s
improvement and, at last, from truth about the individual to an ascetical
subjectivation that does not require the prerogative of an identity, but the
transformation of the self in relation to itself and to others? Such questions are raised
from Friedrich Nietzsche’s, Michel Foucault’s and Fernando Savater’s.
Key-words: Aesthetics of existence, Ethics, Identity, Self-esteem

Se partirmos da hipótese que nosso tempo herdou uma certa suspeita


em relação ao cuidado de si, 1 não menos perturbador parece a defesa do
egoísmo e do amor-próprio, 2 sobretudo com pretensão a valores

*
Doutor em Filosofia pela PUC-RS. E-mail: jlimaesilva@yahoo.com.br. Artigo
recebido em 30.10.2008, aprovado em 10.12.2008.
1
Foucault, M. A hermenêutica do sujeito, 2004, p. 16.
2
O conceito de amor-próprio é mais antigo, da palavra philautia dos gregos (aqui é
usado com apoio na obra de Fernando Savater Ética como amor-próprio, na qual
reflete sobre a duplicidade, positiva e negativa, tanto no caso do amor-próprio como

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 81-98


82 Jason de Lima e Silva

morais. Em Plutarco, a desmedida do amor-próprio, o qual por si


mesmo não seria reprovado, pode gerar um inimigo (da virtude e dos
deuses) sob a aparência de amigo: o lisonjeador. 3 Na história moral do
cristianismo, o imperativo do “ama ao próximo como a ti mesmo”
enfatizou de tal modo o próximo (no limite da renúncia: Deus) que se
ocultou a primeira dificuldade de quem ama: amar a si mesmo, sem
que o si mesmo esteja prontamente dado à representação de seu amante,
porque é necessário fazê-lo no próprio amar o que se faz e escolhe fazer.
Mas, como amar a si mesmo sem egocentrismo, amar e reconhecer a
condição na qual como mortal se está no mundo, cujo sentido é sempre
precário, dado que boa parte do mundo, como ensinavam os antigos,
não nos pertence, não nos serve inteiramente de propriedade e de
comando: a começar pelo corpo, fadado às vicissitudes de sua natureza
e suas paixões? Non est tuum, fortuna quod fecit tuum. 4 O imperativo de
amar ao próximo, em todo caso, inflacionou de tal modo o amor que
seu valor foi rebaixado, sem se livrar da dificuldade que é cultivar
aquilo que é de seu próprio interesse e que, como tudo na terra, não
está livre de sua contradição e angústia, de seu fracasso e de sua vitória,
cujo juízo pertence unicamente a quem vive, e não sobre quem morre
(como juízo final). Afinal, como bem disse Freud: “Enquanto a virtude

do egoísmo. A noção de egoísmo é mais recente, de Wolf, em seus Pensamentos


racionais sobre Deus, o mundo e a alma do homem, livro no qual menciona uma
“raríssima seita dos egoístas” surgida fazia pouco tempo em Paris e que professava,
segundo Savater, “uma espécie de ultraberkelianismo solipsista, sustentando que só
eu existo e tudo o mais faz parte de meu sonho” (Savater, F. Ética como amor-
próprio, 2000, p. 40). Kant, na sua Antropologia (livro I, §2), distingue três tipos de
egoístas: o lógico (para o qual sua opinião basta), o estético (que se contenta com seu
gosto) e, por fim, o egoísta moral (que refere todos os fins práticos a si mesmo). Cf.
Idem, ibidem. Procurarei recuperar o sentido de egoísmo na sua dimensão estética,
como interpretado a partir de Nietzsche, aliado ao sentido de amor-próprio,
reinterpretado na ética de Savater e próximo do sentido de moral como ética e
estética da existência em Foucault.
3
Plutarco. Como distinguir o bajulador do amigo, 1997.
4
Publílio Siro: “Não é teu o que a fortuna fez teu”. Cf. Sêneca, L.A. Cartas a Lucílio,
2004. Vale também lembrar um aforismo de Nietzsche sobre o perigo da felicidade:
“Agora tudo está saindo bem para mim, agora amo qualquer destino. Quem quer ser
meu destino?”. Nietzsche, F. Além do bem e do mal, 103, 1992, p. 73.
Egoísmo contra identidades 83

não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em


vão”. 5
No fundamento da moral moderna se encontra o altruísmo
como o valor da ação e a obediência ao outro (Deus, comunidade,
lei...) se torna o critério para o “instinto gregário do indivíduo”, tal
como genealogicamente Nietzsche revelou. 6 (A oposição entre
“egoísmo” e “altruísmo” já é sintoma de uma decadência dos valores
aristocráticos, através dos quais o bom é afirmado e mantido de si para
si e não esperado do juízo alheio, conforme a utilidade da ação). Mas
antes de se deixar levar por qualquer preconceito a propósito do
egoísmo ou do amor-próprio como valores morais para uma ética, é
aconselhável recorrer ao velho Aristóteles, que, na sua Ética a
Nicômacos, 7 já distingue a philautia (amor-próprio) em duas
modalidades: aquela que busca interesses egoístas como a honra, os
prazeres e o dinheiro, e aquela que busca os verdadeiros bens, os bens
pelos quais se realiza mais perfeitamente o humano do animal homem,
a exemplo da amizade na sua promessa de plenitude. 8 Para Voltaire, o
amor-próprio é o instrumento de nossa conservação no mundo:
“Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos. E cumpre sempre ocultá-
lo”. 9 E para La Rochefoucauld, mesmo quando nós preferimos nossos

5
Diz Freud: “(...) a mais recente das ordens culturais do superego, o mandamento de
amar ao próximo como a si mesmo (...) O mandamento ‘Ama teu próximo como a
ti mesmo’ constitui um dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É
impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode
rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta atenção a
tudo isso: ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao preceito,
mais meritório é proceder assim (...) Que poderoso obstáculo à civilização a
agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a
própria agressividade! (...) Enquanto a virtude não for recompensada aqui na Terra,
a ética, imagino eu, pregará em vão (...)”. Freud, S. O mal-estar da civilização, 1978,
p. 192.
6
Sobre a questão do não-egoísmo como valor moral: cf. Nietzsche, F. Genealogia da
moral, 26, 1998.
7
Cf. Aristóteles. Ética a Nicômacos, IX, 8, 2001.
8
Tal ambigüidade é própria do amor-próprio, como observa Savater (Savater, F. Ética
como amor-próprio, op.cit., p. 34). Santo Agostinho separou o probus amor sui do
improbus amor sui. Ibidem.
9
Voltaire. Dicionário filosófico, 1975.
84 Jason de Lima e Silva

amigos a nós mesmos, nada fazemos senão aderir a nosso gosto e


prazer, e é justamente por essa preferência que a amizade pode ser
verdadeira e perfeita. 10 A exigência do gosto e os critérios para o prazer
são, contudo, tão particulares que a dependência de uma opinião para
reprová-los ou sustentá-los aparenta sempre a incapacidade de decidi-
los e assumi-los ao longo de uma vida. É na reunião das experiências e
na abertura das diferentes circunstâncias que o egoísmo, como vontade
estética, hierarquiza e desenvolve o gosto no ímpeto originário de suas
várias impressões e vivências, enquanto o amor-próprio avalia
eticamente, na relação consigo, a direção e o proveito de seus prazeres.
O filósofo espanhol Fernando Savater defende a Ética como
amor-próprio, amor, em cujo princípio se encontra um instinto e um
projeto:

O amor-próprio não é o amor a nossas propriedades, mas o amor ao que nos


é próprio. Claro, apropriar-se de certas coisas e de certa maneira é próprio
dos humanos, pelo que um determinado tipo afinado e estilizado de
propriedade é parte inconsútil do propriamente humano. Ou seja, sem
apropriação não há humanidade, mas a apropriação não esgota a
humanidade. Quanto ao que propriamente nos é próprio, não se trata de
algo dado de uma vez por todas e fechado para sempre, que só caberia
descobrir e acatar, mas de algo que vai chegando interminavelmente a ser a
partir do que é, algo que é necessário propor e debater. No amor-próprio se
encerra um instinto e um projeto: a moral não consiste em sacrificar o
primeiro ao segundo, nem em submeter o segundo ao primeiro, mas sim em
transcrever em termos cada vez mais abertos e intensos o exigido pelo
primeiro e o escolhido pelo segundo. 11

Como em Nietzsche, não se trata de um eu egocêntrico, que


pressupõe o que se é antecipadamente ou o conhecimento de si como
finalidade, mas de um eu que pratica a arte do amor de si, a exemplo de

10
La Rochefoucauld, Maximes e réflexions diverses. Aforismo 81. In: El Murr, Dimitri.
L’amitié, 2001, p. 125. La Rochefoucald defende que o interesse produz a amizade
(aforismo 85, p. 126) e o mérito dos amigos é julgado pela medida de nosso amor-
próprio, conforme a maneira que nossos amigos vive conosco (aforismo 88, ibidem).
11
Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 87.
Egoísmo contra identidades 85

Ecce homo 12 , logo, que se cultiva no estar-em-obra e que cultiva o seu


obrar: assim, cuida do que realiza como instinto e projeto, necessidade
de fazer o que faz para si e liberdade para criar o que sabe não ter
prontamente dado consigo. Se por um lado o pensamento de Nietzsche
luta contra a moral tal como imperativo sobre as ações humanas, por
outro lado, a valorização da nobreza de caráter e da singularidade
estética da vida abre uma dimensão à moral que o imoralismo da moral
vigente não reconhece: aliás, é um atentado contra o gosto a pretensão
da moral não-egoísta fazer uma ação valer para todos da mesma
maneira, diz Nietzsche. 13 Com o retorno de Foucault aos antigos, nos
anos 1980, fica mais claro pensar que conteúdo (ético e estético) pode
ser dado à moral quando o Deus que a sustentava e o código que a
legitimava entraram em crise, a ponto de exigir não apenas o altruísmo
e a abnegação de si, como insiste Nietzsche, mas de se ter convertido
em vontade de conhecimento sobre o corpo e sobre a alma (um
governo sobre o êthos dos vivos), à custa da normalização das condutas
e da intimidade do homem moderno. A política como a arte de
governar a si mesmo, se converte na estratégia de governo dos outros,
sem que esses outros que somos nós saibam como, nem por quem ou
de que lugar, são governados na microfísica de seu cotidiano: a vontade
de obediência se dissolve na vontade de polícia que é de todos e de
ninguém (se em Vigiar e punir a punição é substituída pela vigilância e
a vigilância se sustenta num corpo útil e dócil, a utilidade depende cada
vez mais de como se mostra o corpo, na sua saúde e nos seus segredos).
Quanto mais o tempo de vida se torna tempo de trabalho, e o tempo
de trabalho, tempo de produção, mais nos julgamos livres para,
sobretudo, gozarmos do que se produziu, no passatempo de nossos

12
Nietzsche, F. Ecce Homo, “Por que sou tão inteligente?”, 9, 1995, p. 48. Nesse
aforismo de Ecce Homo a questão para Nietzsche é como alguém se torna o que é (wie
man wird, was man ist). Fala de uma arte de preservação de si, do amor de si
(Selbstsucht). “Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer
remotamente o que é”. Em alguns casos, na psicologia de Nietzsche, até mesmo o
amor ao próximo, os impulsos “desinteressados”, poderiam trabalhar para o amor de
si. Daí não ser tão simples compreender Nietzsche: um pensamento que se demora
na sutileza do fenômeno humano no mundo.
13
Nietzsche, F. Além do bem e do mal, 221, p. 127.
86 Jason de Lima e Silva

lazeres: no tédio comum de tal ciclo e na ocupação de todos que viram


nossas, mesmo no descanso, se movimenta a vida do homem
contemporâneo. “A atividade maquinal e o que dela é próprio”, já dizia
Nietzsche, “a absoluta regularidade, a obediência pontual e impensada,
o modo de vida fixado uma vez por todas, o preenchimento do tempo,
uma certa permissão, mesmo educação para ‘impessoalidade’, para o
esquecimento de si, para a ‘incuria sui’”, 14 tudo isso soa como o eco da
abnegação sacerdotal na genealogia da alma moderna. Assim, do
cuidado de si como atividade moral voltada ao governo de si e dos
outros passa-se ao cura sui como imperativo ético, 15 do imperativo
pessoal latino passa-se à condução do outro pelo exame do pastor e do
pastor à abdicação de si mesmo para avaliar o que é bom ou mau,
melhor ou pior, na relação consigo: incuria sui.
Entre a moral antiga e a moral cristã há continuidades, sem
16
dúvida: técnicas como o exame de consciência e restrições ao sexo fora

14
Nietzsche, F. Genealogia da moral, “Terceira Dissertação”, 18, p. 124.
15
“Em Alcebíades de Platão, isto fica muito claro: você tem que cuidar de si porque
você tem que governar a cidade. Mas cuidar de si por causa própria, começa com os
epicuristas – torna-se algo muito geral com Sêneca, Plínio etc.: todos têm que cuidar
de si”. “Sobre a genealogia da ética”. In: Dreyfeus, H.; Rabinow, P. Michel Foucault:
uma trajetória filosófica, 1995, p. 260. O imperativo ético do cuidado de si não se
equilave, contudo, a uma lei universal: “(...) na cultura grega e romana, o cuidado de
si jamais foi efetivamente percebido, colocado, afirmado, como uma lei universal
válida para todo indivíduo, qualquer que fosse o modo de vida adequado. O
cuidado de si implica sempre uma escolha de vida, isto é, uma separação entre
aqueles que escolheram este modo de vida e os outros”. Foucault, M. Hermenêutica
do sujeito, p. 139.
16
Foucault fala em “morais cristãs” e não em “moral cristã” (Foucault, M. História da
sexualidade. vol. 2. O uso dos prazeres, 1988, p. 29), mesmo porque o cristianismo
foi uma religião e não uma moral (Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, 313). No
curso de 1982, Foucault enumera três modelos de práticas de si: 1. platônico
(reminiscência); 2. helenístico (auto-finalização em relação a si); 3. cristão (exegese e
renúncia de si). O modelo do meio, o helenístico, é sobreposto pelos outros dois na
história da relação moral consigo ao longo do Ocidente. (Ibidem, p. 314). Peter
Brown (The making of Late Antiquity) faz uma história da ascensão do cristianismo
pelo aparecimento de novas formas de vida, novas estilizações de si: A “simplicidade
do coração” (singleness of heart) dos hebreus é retomada em vista de uma abstinência
e uma conjugalização das relações sexuais (elementos já presentes na ética estóica dos
primeiros séculos, como mostra Foucault em O cuidado de si), por conta de se ver no
Egoísmo contra identidades 87

do casamento integram a história do cristianismo, contudo, não mais


sob o princípio do cuidado de si e da estilização da existência, mas sob
o dogma da renúncia do eu em vida pela promessa de um post mortem:
Deus, além, eternidade... Mesmo os exercícios de abstinência estão
ligados, a exemplo do epicurismo, a uma estética do prazer, anota
Foucault. 17 Francisco Ortega faz uma boa síntese acerca de tal inversão
na história da moral, com base na quádrupla perspectiva que Foucault
elabora para a compreensão da moralidade enquanto modo de se
conduzir: substância ética, forma de sujeição, elaboração do trabalho
ético e teleologia do sujeito moral. Não mais os aphrodisia (atos, desejos
e prazeres), a chresis aphrodision (o uso dos prazeres), a enkrateia (o
domínio de si) e a beleza (kalos) como finalidade do êthos, porém:
“substância ética: a carne, os desejos, etc.; forma de sujeição: a lei divina;
ascese: autodecifração, hermenêutica do desejo; telos: pureza, auto-
renúncia”. 18 O conceito de moral, sob os quatro domínios do ser moral
(para uma analogia aristotélica), se modifica de tal modo que o agir

sexo o signo da queda. Surge uma “estética da virgindade” no século III como
símbolo da pureza da alma. A anacoresis é praticada pelo “homem do deserto”, o
anacoreta, que se isola não apenas para se livrar das tentações, mas para investigar as
regiões privadas de sua alma pelo auto-exame. A “carne” será o meio para a
introspecção do “homem de desejo” em Agostinho, em vista de uma hermenêutica
dos desejos, dos pensamentos, segredos... Cf. Ortega, F. Amizade e estética da
existência em Michel Foucault, 1999. Cf. também Foucault, M. “Les techniques de
soi”. In: Dits et écrits, IV: sobre as noções de examologesis, exagoreusis, técnicas de
auto-exame, purificação e decifração de si já apropriadas do pensamento pagão,
porém em vista da salvação da alma e de uma renúncia de si, segundo a ética cristã
da carne: “Quanto mais descobrimos a verdade sobre nós mesmos, tanto mais
devemos renunciar a nós mesmos; e quanto mais queremos renunciar a nós mesmos,
tanto mais devemos trazer à luz a verdade sobre nós mesmos”. (Foucault, M.
“Sexualité et solitude”. In: Dits et écrits, IV, 1994, p. 172. Cf. também Foucault, M.
“Le retour de la morale”. In: Dits et écrits, p. 706). Segundo Michael Mahon, o
código de restrição ou proibição morais, não foi inventado no cristianismo. O
exemplo do problema do sexo restrito à procriação no estoicismo: “the notion
associated with the Christianity that sexual expression should be restricted to
procreation originated with the Stoics. In order to integrate itself into the Roman
Empire Christianity opted to subscribe to this principle”. Mahon, M. Foucault’s
Nietzschean genealogy,1992, p. 170.
17
Cf. nota de rodapé em Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, p. 521.
18
Ortega, F. Amizade e estética da existência em Foucault, p. 95.
88 Jason de Lima e Silva

moralmente, ao longo da história, tende a se voltar mais à adequação da


lei, entre o proibido e o permitido, sob a forma de uma obediência
recompensadora que nega o corpo pela salvação da alma, do que
propriamente à memória da ação sob o mandamento reflexivo de si
mesmo, através do qual as paixões são avaliadas e comedidas, nos atos e
nas palavras. Aquilo que Savater chama de a “ambigüidade do amor-
próprio”, 19 Foucault denomina de o “paradoxo do cuidado de si”, 20 no
sentido de que tanto o amor-próprio como o cuidado de si são ainda
julgados negativamente como egoísmo, reclusão em si mesmo ou
exclusão do outro, pela herança de uma história moral que os perdeu de
vista enquanto critério para o valor da ação. Logo, diz Foucault, todo o
rigor moral da cultura de si, na qual a obrigação de se ocupar consigo
mesmo era vista como algo positivo, de Sócrates a Gregório de Nissa,
veio ser assentado pelo cristianismo e pelo mundo moderno em uma
moral do não-egoísmo. 21 Nietzsche falou em uma moral do
désintéressement, mas pode realmente o agir moral, agir evidentemente
humano, ser desinteressado? (Não há, diz Savater, “uma ética altruísta,
na conotação forte do termo, o que imporia ao sujeito agir por um
motivo distinto do melhor para si mesmo: só seria altruísta, nesse
sentido, agir por algum móvel contrário ou simplesmente distinto a
meu necessário querer ser humano”). 22 Mesmo o desinteresse pregado
no cristianismo como valor moral não seria o mais interessado, quando

19
Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 34.
20
Cf. Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, p. 17.
21
Cf. Ibidem, p. 17. ”Estas regras austeras, cuja estrutura de código permaneceu
idêntica, foram por nós reaclimatadas, transportadas, transferidas para o interior de
um contexto que é o de uma ética geral do não-egoísmo, seja sob uma forma cristã
de uma obrigação de renunciar a si, seja sob a forma ‘moderna’ de uma obrigação
para com os outros – quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a pátria,
etc. (...) Portanto, todos estes temas, todos estes códigos do rigor moral, nascidos
que foram no interior daquela paisagem tão fortemente marcada pela obrigação de
ocupar-se consigo mesmo, vieram a ser assentados pelo cristianismo e pelo mundo
moderno numa moral do não-egoísmo. É este conjunto de paradoxos, creio, que
constitui uma das razões pelas quais o tema do cuidado de si veio sendo um tanto
desconsiderado, acabando por desaparecer da preocupação dos historiadores”.
Ibidem, p. 17-18.
22
Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 30-31.
Egoísmo contra identidades 89

no princípio de sua renúncia se move uma vita ad aeternum? Entre os


antigos, a moral não estava diretamente associada nem a uma religião,
nem ao corpus de uma lei, ensina Foucault, de tal maneira que o
problema do que acontece depois da morte, por exemplo, ou se existe
Deus, não tinha importância ao valor da ação de quem escolhia viver
moralmente, 23 já que se contava com uma arte do viver (tekhne tou
biou), para a qual mesmo a morte, antes de ser um meio para outra
existência, revertia simbolicamente na forma de juízo prático a respeito
do quanto dada ação ou ocupação é desejada para si mesmo e por si
mesma, a exemplo de Sêneca e Epicteto. 24 Talvez nosso problema na
atualidade seja semelhante, continua Foucault, uma vez que a maior
parte das pessoas não acredita em uma ética que se apóie na religião,
nem deseja que a lei interfira na vida privada, nas escolhas pessoais de
cada um. 25 Contudo, em que medida ainda se necessita não exatamente

23
Foucault, M. “Sobre a genealogia da ética”. In: Michel Foucault..., p. 255.
24
Carta 26 a Lucílio de Sêneca usa o imperativo Medita na morte! de Epicuro e
escreve: “Eu, pelo menos, como se já estivesse próximo o momento decisivo, esse dia
supremo que há-de pronunciar o juízo definitivo, sobre toda a minha vida, vou-me
observando e dizendo para mim mesmo estas palavras: (..) Não interessa a
apreciação dos outros: é sempre incerta, há sempre divisão de opiniões. Não
interessa os estudos realizados durante a vida: somente a morte pronunciará sobre
nós o juízo definitivo (...)”. Sêneca, L.A. Cartas a Lucílio, 2004, p. 99. E, a despeito
de conceber a a alma do mundo (ratio mundi) como imortal, enquanto estóico,
Sêneca é cético quando ao que cabe ao humano: “A morte, ou nos consome
totalmente, ou nos despoja de alguma coisa. Na segunda hipótese, privados do peso
do corpo, resta-nos a melhor parte de nós mesmos. Se somos totalmente
consumidos, então não resta mais nada, tanto a parte boa quanto a parte má são-nos
retiradas igualmente”. Ibidem, Carta 24, p. 93. E dizia Epicteto: “Em que ocupação
desejas que te surpreenda a morte? Pelo que a mim toca gostaria que me
surpreendesse ocupado em algum labor grande, generoso e útil aos demais (...)”.
Epicteto. Máximas, diálogos, pensamientos, exhortaciones y consejos, 1922, 119, p. 79.
25
“Bem, eu me pergunto se nosso problema hoje em dia não é, de certo modo,
semelhante, já que a maior parte das pessoas não acredita mais que a ética esteja
fundada na religião, nem deseja um sistema legal para intervir em nossa vida moral,
pessoal e privada. Os recentes movimentos de liberação sofrem com o fato de não
poderem encontrar nenhum princípio que sirva de base à elaboração de uma nova
ética. Eles necessitam de uma ética, porém não conseguem encontrar outra senão
aquela fundada no dito conhecimento científico do que é o eu, do que é o desejo, do
90 Jason de Lima e Silva

da religião ou da lei, mas da ciência, do discurso verdadeiro sobre o que


se é, para poder saber o que faz ou não faz da vida, ou para justificar o
que fez ou não fez, ou o que sente e deseja, ou que deseja mas não
realiza? A quantos orientadores vocacionais ou terapeutas de casais não
apelamos antes de se decidir sobre qualquer coisa cuja escolha seria
intransferível se não se supusesse presa do que o outro, como
especialista da alma, oferece para a si mesmo descobrir? 26 Por um lado,
a moral se separa da condição de acesso à verdade, ou seja, basta a
evidência cartesiana das Meditações para conhecer a verdade, sem que
para isso seja preciso ser e agir eticamente. 27 Por outro lado, a ascensão
da ciência moderna como discurso verdadeiro sobre o sujeito invadiu
de tal maneira as escolhas e a vida íntima de cada pessoa que os
problemas éticos, as escolhas pessoais, são relacionados ao saber

que é o inconsciente etc. Eu estou surpreso com a similaridade dos problemas”.


Foucault, M. “Sobre a genealogia da ética”. In: Michel Foucault..., p. 255.
26
Para os antigos, a preocupação da filosofia girava “em torno de si, o conhecimento
do mundo vem depois e, a maior parte do tempo, em apoio a este cuidado de si”.
(Foucault, M. “Le souci de soi comme pratique de la liberté”. In: Dits et écrits, IV, p.
722-723). A tradição filosófica valorizou o segundo princípio e esqueceu o primeiro.
(Foucault, M. “Les techniques de soi”. In: Dits et écrits p.786). Não é necessário
pensar em um psiquiatra para se constatar o quanto de “ciência” e de
“conhecimento” atravessa o cuidado que hoje se dedica à vida: há fichas, testes e
questionários para sabermos se somos inseguros ou sisudos, há remédios para
impotência e drogas para o equilíbrio emocional. Estamos afoitos para resolver todos
os problemas mesmo quando o que está em questão não é precisamente um
problema, mas nós mesmos, no devir de nossas mais solitárias e perigosas sensações,
em cuja vida a morte está humanamente em questão. Sem saber quem somos,
porque não se cultiva o tornar-se (com toda a angústia e receio que implica tal
tarefa), transferimos a dúvida para quem nos conhece ou é pago para nos conhecer.
27
Descartes, segundo Foucault, funda o sujeito de conhecimento por um sujeito
constituído pelas práticas de si, as Meditações. Mas para Descartes não se precisa
asceticamente se preparar para permanecer com a verdade, é suficiente a evidência.
“Basta que a relação com o si nos revele a verdade óbvia do que vemos para que
possamos apreender definitivamente aquela verdade. Assim, posso ser imoral e
conhecer a verdade. Acredito que esta é uma idéia mais ou menos explicitamente
rejeitada pela cultura anterior. Antes de Descartes, não poderíamos ser impuros,
imorais e conhecer a verdade. Depois de Descartes, temos um sujeito não ascético de
saber. Esta mudança possibilita a institucionalização da ciência moderna”. Foucault,
M. “Sobre a genealogia da ética”. In: Michel Foucault..., p. 277.
Egoísmo contra identidades 91

científico, conforme as soluções que os próprios especialistas oferecem.


É uma idéia que Foucault recusa e para a qual pode ser útil a genealogia
da ética antiga como diferença em relação ao que acontece hoje em
dia, 28 ao modo como somos e nos relacionamos.
A gênese da moral moderna passa, portanto, primeiro por uma
codificação da experiência moral (sobre as técnicas do cuidado de si) e,
depois, por uma normalização do êthos: o modo de cada um se
conduzir em relação a si mesmo e ao outro. “A partir do momento em
que a cultura de si foi tomada pelo cristianismo, ela foi, de certo modo,
operacionalizada para o exercício de um poder pastoral, na medida em
que a epimeleia heautou se transformou essencialmente em epimeleia
tonallon – o cuidado dos outros – que era função do pastor”. 29 Do
governo de si ao governo das almas e ao governo dos vivos: os
comportamentos individuais e os fenômenos de uma dada população.
O pastor, obviamente, exercita um poder menos religioso do que
científico sobre a vida dos homens vivos: sobre o modo de ser, pensar e
se relacionar, nascer e morrer, mas também sobre o modo de produzir e
consumir, morar ou comer, sentir prazer, reproduzir, etc. A intimidade
de cada um é o princípio da ação política que o saber administra sobre
a totalidade dos viventes, muitas vezes, pela escolha de quem deixa se
governar (supondo-se livre para consultar quem possa orientá-lo: um
médico ou um psicólogo ou um terapeuta ou mesmo os remédios
disponíveis pelo mercado dos laboratórios). É nesse sentido que o
mundo é um grande hospício para Foucault: “os governantes são os
psicólogos, o povo, os pacientes”: o poder encontra no saber
terapêutico a estratégia para regular os efeitos perversos de seu próprio
investimento. 30 Quanto mais o poder oferece (curas, tratamentos,

28
“A minha idéia é que não é absolutamente necessário relacionar os problemas éticos
ao saber científico. Dentre as invenções culturais da humanidade, há um tesouro de
dispositivos, técnicas, idéias, procedimentos, etc., que não pode ser exatamente
reativado, mas que, pelo menos, constitui, ou ajuda a constituir, um certo ponto de
vista que pode ser bastante útil como uma ferramenta para a análise do que ocorre
hoje em dia – e para mudá-lo”. Ibidem.
29
Ibidem, p. 276.
30
O poder, após a queda do absolutismo monárquico no século XIX, apoiou-se
primeiro no saber sobre os processos econômicos, políticos, demográficos, através
dos quais se garantiria o desenvolvimento econômico. Quando, no decorrer dos
92 Jason de Lima e Silva

soluções), mais ele retira dos governados o que precisa para se exercer
enquanto poder. E quanto mais os governados expõem a vida que
vivem ao poder que distribui suas aptidões e controla suas forças, mais
se os conhece para saber como aproveitá-los e o que desejam e,
satisfeitos os seus desejos, garante-se em parte a expectativa de suas
ações. Eis a dinâmica do poder, porque, como diz Hannah Arendt,
antecipando Foucault: o poder é sempre “um potencial de poder, não é
uma entidade imutável, mensurável e confiável como a força”. Poder é
potentia de poder. 31 (E não há necessariamente equilíbrio nas relações
de poder: não se pode negar os males que as sociedades atuais
continuam a produzir, decorrentes das próprias ofertas que o poder
promete sem ser a todos possíveis, contra o que uma violência difusa
reage, a exemplo das pequenas às grandes cidades brasileiras, violência
que o poder anuncia e desvia a atenção, separando o fenômeno, muitas
vezes, como um caso à parte, individual, para, justamente, não
problematizá-lo).
Se Deus não se justifica mais como o poder e a verdade
absolutos, o poder dos pastores, ao contrário de diminuir, se difundiu
proporcionalmente às identidades que administra em termos políticos:
depressivos, maníacos, hetero, homo, bi ou metrossexuais, compulsivos,
paranóicos, viciados, bipolares, esquizofrênicos, e segue assim adiante o
rol da tipologia sobre os fenômenos da psykhe humana, que a norma

anos, se constatou que tal desenvolvimento produziu efeitos negativos sobre a vida
dos indivíduos, a sabedoria do poder se voltou à correção de quem a ele não se
adequava, segundo uma “ortopedia social”, diz Foucault: “O mundo é um grande
hospício, onde os governantes são os psicólogos, e o povo, os pacientes (...) o poder
político está em vias de adquirir uma nova função, que é a terapêutica”. Cf.
Foucault, M. “Le monde est un grand asile”. In: Dits et écrits, II, 126, p. 433-434.
31
Continua Hannah Arendt a distinção entre poder e força (no caso de Foucault,
ambos os conceitos muitas vezes são usados indistintamente): “Enquanto a força é a
qualidade natural de um indivíduo isolado, o poder passa a existir entre os homens
quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dispersam”. H.
Arendt recorre ao equivalente da palavra em grego, dynamis, e o latino, potentia,
com seus derivados modernos (no alemão Macht vem de mögen e möglich, e não
machen), para indicar o caráter de potencialidade do poder (Arendt, H. A condição
humana, 2004, p. 212). Cf. também relação entre poder e palavra: “O poder só é
efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são
vazias e os atos não são brutais (...)”. Ibidem.
Egoísmo contra identidades 93

precisa admitir para dar conta do que produz e, ao mesmo tempo, para
manter visível o território, em termos de comportamento, entre o que é
permitido na sua diferença, embora se lucre quando possível e se trate
quando necessário, e o que deve ser separado para um
acompanhamento mais exaustivo, pelo perigo que a si mesmo ou aos
outros pode trazer. A difusão de tal espécie de poder é o sintoma de
uma relação fragilmente precária consigo mesmo, na nossa sociedade.
O limite nunca é bem sabido quando todas as soluções são possíveis e
todas as diferenças passíveis de tratamento. A máxima do poeta
Fernando Pessoa espanta pela verdade: “Na vida de hoje, o mundo só
pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e
a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se
conquista o internamento num manicômio: a incapacidade de pensar, a
amoralidade, e a hiperexcitação”. 32 O comprometimento com a norma
para as decisões a propósito de si mesmo corresponde às identidades
com as quais se quer identificar e pelas quais, no limite, chega-se a
matar o outro ou a morrer simbolicamente em vida (a “morte
psíquica”, que pode ocorrer dentro ou fora de uma instituição 33 ).
Incapacidade de pensar, amoralidade e hiperexcitação: o mundo é um
grande hospício.
Por mais diversas que sejam as identidades, o poder da norma
não apenas as sustenta como diversidade, por um discurso
hermenêutica e empiricamente verdadeiro, como, para manter seu
domínio, acrescenta novos comportamentos como anormais ou
normaliza antigas patologias, sem que se obrigue a internação do
indivíduo (convive-se, por exemplo, cada vez mais “normalmente” com
“doenças” como a síndrome do pânico e a depressão, que se

32
Pessoa, F. Livro do desassossego, 1999, p. 188.
33
O psicanalista Eugène Enriquez fala sobre os indivíduos tão normais, frente às leis e
à moral, que estão à mercê de uma ruptura que não saberiam enfrentar (estão
“mortos”): “Indivíduos socialmente instituídos, que vivem no espaço social e que
criaram um impasse no seu espaço psíquico ou que o alimentaram exclusivamente
com as proibições e as injunções dos valores societais e parentais, estão mortos para
si mesmos; porque são tão incapazes de se questionar e de duvidar quanto de
questionar, de transformar o mundo no qual devem viver. São incapazes de criação”.
Enriquez, E. “O trabalho da morte nas instituições”. In: A instituição e as instituições,
1991, p. 61.
94 Jason de Lima e Silva

normalizam nas convenções morais e sociais entre as pessoas).


Contudo, se a identidade é um jogo, pode ela favorecer relações de
prazer e de amizade, diz Foucault. Mas se o que se faz é pensado contra
ou a favor de uma identidade, pode haver o perigo de se converter em
regra ética universal, em lei. “Se devemos nos colocar em relação à
questão da identidade, deve ser enquanto somos seres únicos. Mas as
relações que devemos ter com nós mesmos não são relações de
identidade; devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de
inovação. É muito enfadonho ser sempre o mesmo”. 34 (Nesse ponto,
Foucault lembra a máxima de La Rochefoucauld: “Não agrada por
muito tempo quem tem sempre o mesmo espírito”). 35 A identidade,
como estratégia lúdica de prazer ou tática de luta (e resistência), 36 tem
sua utilidade, mas como modelo permanente para outros, ou mesmo
para si, não serve, apenas limita a experiência do que se pode ser.
Porque, embora o eu busque se identificar com aquilo mesmo que
projeta, como desejo de ser, jamais é possível reduzi-lo a uma
identidade, e é esse estar em aberto do humano que pode ser
dignamente reconhecido nos humanos como princípio ético. Savater
define, em A tarefa do herói, o egoísmo como o querer-se do querer, o
amor do eu pelo possível 37 e na obra Ética como amor-próprio faz uma

34
Foucault, M. “Michel Foucault, une interview: sexe, pouvoir et la politique de
l’identité”. In: Dits et écrits, IV, p. 739.
35
La Rochefoucauld. Maximes... In: L’amitié, 413, p. 77.
36
“A resistência toma sempre apoio, na realidade, sobre a situação que ela combate.
No movimento homossexual, por exemplo, a definição médica da homossexualidade
constituiu um instrumento muito importante para combater a opressão da qual era
vítima a homossexualidade no fim do século XIX e início do século XX. Essa
medicalização, que era um meio de opressão, foi também um instrumento de
resistência, já que as pessoas podiam dizer: ‘Se nós somos doentes, então por que nos
condenam, por que nos menosprezam?’, etc. Claro, este discurso nos parece hoje
bastante ingênuo, mas na época era muito importante”. Foucault, M. “Michel
Foucault, une interview...”, p. 741.
37
Cf. Savater, F. La tarea del heroe, 1992, p. 106. Mais adiante, coincidindo com a
questão colocada por Foucault no fim de seu curso Hermenêutica do sujeito quanto a
Hegel, diz Savater: “El egoísmo nunca puede ser considerado desde fuera, siempre es
sujeto, subjetividad, expresándose por medio de la negación de la identidad, su
recreación y el inevitable distanciamiento de lo idéntico: no hay ciencia del yo, sólo
Egoísmo contra identidades 95

relação entre a invenção de si e a dignidade humana: “Os limites do


querer (ser) humano poderiam ser formulados assim: o homem não pode
se inventar totalmente, mas tampouco pode deixar totalmente de se
inventar. O que chamamos de dignidade humana não é precisamente
nada do que o homem já tem, mas o que ainda lhe falta; e o que lhe
falta é sem dúvida a única coisa que lhe resta, a saber, o que lhe falta
fazer. A dignidade do homem, que é outra denominação para sua
capacidade, estriba-se em seu querer (ser) (...)”. 38
O trabalho de inventar esteticamente a si mesmo leva ao
reconhecimento do que ao outro falta fazer, como sua dignidade. A
questão é se perguntar como é possível inventar-se, ao menos
parcialmente, quando o mundo atual normaliza a pluralidade das ações
humanas e administra todas as identidades possíveis, em outras
palavras, identifica-nos para sujeitar, não apenas coercitivamente, mas
pelo incentivo dado a cada um para se conhecer e ser o que julga ser. Se
o princípio do cuidado de si foi marginalizado pelo predomínio do
conhecimento de si, não é difícil se convencer que este momento
histórico reclama o desafio de se repensar ética e politicamente o lugar
da relação consigo, quando a exacerbação de um individualismo
egocêntrico perde a realização da própria liberdade na irreflexão do que
julga poder fazer, sem limites para as suas ações e palavras, nem o
reconhecimento do que efetivamente deixou como obra, na história de
sua vida. O eu é a nova possibilidade estratégica, para lembrar Paul
Veyne a propósito da genealogia ética de Foucault 39 , pela qual, embora
não tenha pretendido reinstalar a moral antiga no mundo
contemporâneo, restabelece o sentido de moral como relação consigo,
como um trabalho do eu sobre si mesmo, como ética, para a atualidade.
E o sentido da relação consigo pode ser preenchido não pela verdade
que em si é necessário descobrir, mas por um egoísmo cujo ponto de
partida estético, o desejo de fazer da vida uma obra arte, encontra sua
direção no amor-próprio, no amor do que lhe falta fazer, como algo
humanamente digno de sua diferença. O que falta fazer pertence ao

puede haber leyendas acerca de él. Así lo entendió el Hegel de la Fenomenología del
espíritu y tal es el fundamento de toda filosofía narrativa (...)”. Ibidem.
38
Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 22.
39
Veyne, P. “Le dernier Foucault et sa morale”. In: Critique, 471/472, Paris, 1986.
96 Jason de Lima e Silva

caminho de cada um que é o caminho de todos e a compreensão de


uma verdade tão universalmente humana só é possível se se dispõe a
fazer uma experiência singular da própria vida. A ética, penso, não se
funda no racionalmente dado a priori como imperativo para todas as
ações, mas antes, começa na virtude de se fazer causa da própria
diferença, o outro de si mesmo, no jogo das escolhas e das ações, em
torno do qual o outro, enquanto os outros, é a abertura e o limite do
que não se fecha, nem pertence, a si mesmo. Aliás, se a experiência se
produz no desprendimento de si como ficção, 40 a verdade, penso, se faz
asceticamente no reconhecimento de tal diferença na relação consigo,
de tal modo que o sujeito, como diz Agamben, se torna o sujeito da
própria dessubjetivação. 41 “Seu eu conheço a verdade me transformarei.
Talvez me salve ou morra”, 42 complementa Foucault. O valor do que se
cultiva como seu por jamais tê-lo prontamente dado é o princípio para
se admitir o mundo na sua completa diferença, e mesmo adversidade,
no proveito da qual se torna possível realizar quem se deseja ser, porque
o quem é justamente a tensão entre o querer fazer e o que é feito, entre
o desejo e a realização, a ficção e a verdade, da própria vida (logo, não
depende de uma vontade que simplesmente escolhe tais meios para tais

40
Uma experiência não é nem verdadeira nem falsa, diz Foucault: é sempre uma
ficção, é algo que se fabrica a si mesmo, que não existe antes e que existirá depois.
Foucault cita Nietzsche, Blanchot, Bataille contra a tradição fenomenológica no que
corresponde a relação do sujeito consigo e com o mundo através da experiência. Cf.
Foucault, M. “Entretien avec Michel Foucault”. Dits et écrits, IV, p. 45.
41
“Voilà, il me semble que la question de l’art de vivre: comment être en rapport avec
cette puissance impersonnelle? Comment le sujet saura être en rapport avec sa
puissance, qui ne lui appartient pas, qui le dépasse? C’est un problème poétique,
pour ainsi dire. Les Romains appelaient cela le génie, principe impersonnel fécond,
qui permet d’engendrer une vie. Là aussi, c’est un modèle possible. Le sujet ne serait
ni le sujet conscient, ni la puissance impersonelle, mais ce qui se tient entre les deux.
La désubjectivation n’a pas seulement un aspect sombre, obscur. Elle n’est pas
simplement la destruction de toute subjectivité. Il y aussi cet autre pôle, plus fécond
et poétique, où le sujet n’est que le sujet de sa propre désubjectivation”. Agamben,
G. Une biopolitique mineure. Par Stany Grelet and Mathie Potte-Bonneville. Publié
dans Vacarme 10 hiver 2000. Disponível em:
http://vacarme.eu.org/article255.html. Acessado em janeiro de 2007.
42
Foucault, M. “Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins”. Dits et
écrits, IV, p. 535.
Egoísmo contra identidades 97

fins, já que a vida se realiza no mundo entre outros, ou seja, o mundo


das ações e das decisões pressupõe a casualidade das relações humanas).
Penso que a genealogia de Nietzsche contribui para a destruição de um
sentido único à moral e a genealogia de Foucault não apenas
diagnostica historicamente o domínio da vontade de verdade sobre a
ação e o pensamento do sujeito moderno, pela repartição e armadilha
de suas várias identidades, como também recupera dos antigos o valor
da moral como ética, cujo princípio estético pode servir de resistência
aos mecanismos de controle sobre a vida, pela direção irrepetivelmente
única, e histórica, de uma existência.

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Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo

Heraldo Aparecido Silva *

Resumo: Neste trabalho, refletimos sobre as relações entre o pragmatismo e o


neopragmatismo. Primeiro, apresentamos alguns aspectos históricos do pragmatismo
americano clássico: Charles S. Peirce, William James e John Dewey. Em seguida,
apresentamos dois tópicos interdependentes: a controversa leitura da tradição
pragmatista por Richard Rorty e a concepção de seu neopragmatismo. Para finalizar,
discutimos a interpretação alternativa de Richard Bernstein. Ele argumenta que a
noção de conflito é um elemento revigorante para a pluralista tradição pragmatista
que concilia o pragmatismo clássico com o pragmatismo contemporâneo sob o
propósito comum de tentar sanar feridas filosóficas.
Palavras-chave: Conflito, Narrativas, Neopragmatismo, Pluralismo, Pragmatismo

Abstract: In the present paper we reflect on the relationships between pragmatism


and neopragmatism. First, we present some historical aspects of Classical American
pragmatism: Charles S. Peirce, William James and John Dewey. In the following we
present two interdependent topics: the controversial reading about pragmatist
tradition by Richard Rorty and the conception of his neopragmatism. Finally we
discuss the alternative interpretation of Richard Bernstein. He claims that the notion
of conflict is an invigorating element for the pluralistic pragmatist tradition which
conciliates the classical pragmatism with contemporary pragmatism under common
purpose of try healing of philosophical wounds.
Keywords: Conflict, Narratives, Neopragmatism, Pluralism, Pragmatism

Pragmatismo Clássico: Peirce, James e Dewey


As versões e caracterizações do pragmatismo convergem num ponto:
Charles Sanders Peirce (1839-1914) é considerado o seu fundador.
Após assumir a descrição feita por Alexander Bain (1818-1903) de
crenças como hábitos de ação e publicar os ensaios The Fixation of
Belief [A Fixação da Crença] (1877) e How to Make Our Ideas Clear
[Como Tornar Claras as Nossas Idéias] (1878), Peirce configura as

*
Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e Coordenador do
Núcleo de Estudos em Filosofia da Educação e Pragmatismo da UFPI. E-mail:
heraldokf@yahoo.com.br. Artigo recebido em 24.04.2008 e aprovado em
30.09.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008 p. 99-133


100 Heraldo Aparecido Silva

linhas gerais de sua doutrina, com o propósito de expressar a sua teoria


de que para determinar o significado de uma concepção, conceito ou
palavra, é necessário considerar quais os efeitos práticos que poderiam
advir das mesmas sobre a conduta da vida humana. Apesar de a palavra
pragmatismo ter sido empregada por Peirce como um termo operatório
em suas discussões filosóficas no Clube Metafísico, em Cambridge, nos
anos 70, a sua utilização sob a forma impressa não consta em seus
textos deste período. No entanto, as bases do pragmatismo foram
lançadas nos ensaios supracitados – ainda que o referido termo não
tenha sido mencionado.
Em 1898, William James, na conferência Philosophical
Conceptions and Pratical Results [Concepções Filosóficas e Resultados
Práticos], introduziu o termo na comunidade filosófica norte-
americana da época e, devidamente, atribuiu a autoria a Peirce. Este,
posteriormente, rejeita o termo pragmatismo e passa a utilizar
pragmaticismo. Tal termo alternativo servia, em parte, para diferenciar a
sua teoria da de W. James que emprega a antiga nomenclatura a partir
de 1898 – vinte anos após a publicação dos ensaios de Peirce que
deram origem ao pragmatismo. Neste momento, a história da filosofia
registra interpretações divergentes quanto ao rumo tomado pelo
pragmatismo. Tanto a idéia de ruptura quanto a de continuidade na
tradição possuem defensores. Susan Haack, por exemplo, vê estilos
diferentes e até opostos de pragmatismo que teriam em comum apenas
a aspiração de livrar a filosofia dos excessos metafísicos. Ela diagnostica
uma degenerescência da tradição pragmática, resultado de uma sucessão
de interpretações equivocadas. Para ela, o falibilismo de Peirce foi
dissolvido na leitura nominalista de James e na leitura hegeliana de
Dewey; a concepção de verdade jamesiana foi relativizada por Schiller e
a reconstrução da filosofia idealizada por Dewey foi lida por Rorty
como um apelo à destruição da filosofia, resultando no que ela
denomina de “pragmatismo vulgar” 1 . Em contrapartida, como será
visto posteriormente, Rorty e Bernstein preferem destacar elementos
comuns entre os pragmatistas originais e os hodiernos; além de
definirem as divergências teóricas pragmáticas como uma força criativa

1
Haack, 1995, p. 126-147.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 101

e depuradora de seu ethos. Esta disputa concernente à ruptura ou


continuidade na tradição pragmática está longe de seu término, como
atestam as acirradas divergências entre os pragmatistas contemporâneos.
No momento, não me deterei nesta questão. Passarei agora, à exposição
do pragmatismo na perspectiva de seu fundador, C. S. Peirce.
No ensaio What Pragmatism Is [O que é o Pragmatismo]
(1905) Peirce abandona o termo pragmatismo e designa
pragmaticismo 2 para se referir a sua doutrina 3 . Em parte, esta opção
por uma nova nomenclatura parece dever-se ao fato de Peirce ter
desejado diferenciar o seu pragmatismo das demais versões da época –
como, por exemplo, o pragmatismo de William James e o humanismo
de F. C. S. Schiller –, já que via na generalização do termo primordial
uma alteração ampla e comprometedora de seu sentido estrito.
Entretanto, como sugere Susan Haack 4 , a razão principal para a
substituição de pragmatismo por pragmaticismo pode ter sido aquilo
que Peirce denomina de “ética da terminologia” – já que no mesmo
ensaio e precedentemente ao trecho supracitado, ele aborda o problema
da caótica nomenclatura filosófica e discorre sobre as vantagens
provenientes da precisa nomenclatura científica 5 . Para ele, a filosofia –
assim como todo estudo que aspire a condição de científico – deveria
seguir o exemplo das ciências naturais e adotar previamente uma
terminologia técnica, com significados exclusivos e universalmente
aceita por seus estudiosos. Nesse sentido, algo que poderia ser acordado
entre os filósofos, poderia ser a designação de “significados fixos para
certos prefixos e sufixos” 6 .
Assim, a inserção do termo pragmaticismo teria ocorrido para
suprir a necessidade de expressar a restrita definição original da
doutrina de Peirce – algo que o termo precursor pragmatismo já não
conseguia, em virtude da profusão de interpretações que acompanhava
a sua difusão. De maneira geral, é nesse sentido adstrito que reside o
pragmatismo na sua concepção.

2
Peirce, 1990b, p. 286-287.
3
Para um estudo detalhado do pensamento de Peirce, examinar Ibri (1992).
4
Haack, 1998, p. 50.
5
Cf. Peirce, 1990a, p. 39-43.
6
Peirce, 1990b, p. 286.
102 Heraldo Aparecido Silva

Segundo Peirce, a imprecisão dos conceitos envolvidos nas


discussões filosóficas e a vaguidade semântica das palavras empregadas
constituem um obstáculo considerável à solução dos problemas
filosóficos. A fim de viabilizar a solução de tais problemas, ele
acreditava ser necessário a aplicação de um método que permitisse
examinar os conceitos utilizados e determinar os seus respectivos
significados em termos experimentais, isto é, considerar as possíveis
conseqüências práticas que poderiam resultar da aplicação desses
conceitos na conduta humana para atribuir-lhes significado.
Peirce concebia o pragmatismo como um método capaz de
elucidar o significado de conceitos obscuros a partir do exame de seus
efeitos na conduta humana. Desta forma, o objetivo do pragmatismo
seria o de “estabelecer um método de determinação dos significados” 7
para acabar com as controvérsias filosóficas, nas quais os contendores
sustentam suas idéias através do uso de palavras idênticas com sentidos
distintos ou indefinidos.

O que se procura, portanto, é um método que determine o significado real


de qualquer conceito, doutrina, proposição, palavra ou outro signo. [...] Mas
o pragmatismo não se propõe a dizer no que consiste os significados de
todos os signos, mas, simplesmente, a estabelecer um método de
determinação dos significados dos conceitos intelectuais, isto é, daqueles, a
partir dos quais podem resultar raciocínios. [...] Ora, esta espécie de
consideração, a saber, a de que certas linhas de conduta acarretarão certas
espécies de experiências inevitáveis, é aquilo que se chama consideração
prática (Peirce, 1990b, p. 193-195).

Esta relação entre o pensamento e a ação é formulada, de modo


exemplar na máxima pragmática, segundo a qual, para se “determinar o
significado de uma concepção intelectual” é preciso “considerar quais
conseqüências práticas poderiam concebivelmente resultar,
necessariamente, da verdade dessa concepção”, de modo que “a soma
destas conseqüências constituirá todo o significado da concepção” 8 .
Como salientei anteriormente, a definição de crença como
hábito de ação desempenha fundamental importância no pragmatismo

7
Peirce, 1990b, p. 194.
8
Peirce, 1990b, p. 195.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 103

de Peirce 9 . Nos ensaios The Fixation of Belief e How to Make Our Ideas
Clear, Peirce distingue a dúvida da crença. Para ele, a ação é norteada
pela crença. Esta é antecedida pela dúvida, que não fornece qualquer
indício, base ou orientação para nossas ações, mas, pelo contrário, é um
estado de preocupação, insatisfação e desorientação. O processo através
do qual o estado de dúvida é convertido em estado de crença é
chamado de inquérito. O único propósito do pensamento, concebido
como inquérito, é o estabelecimento da opinião e, conseqüentemente, a
cessação da dúvida. A alternância entre o estado de dúvida e o estado de
crença é constante. Isto porque uma vez estabelecido um hábito de
ação, ao agirmos, estaremos sujeitos ao confronto com uma nova
dúvida. A irritação da dúvida, por sua vez, deve estimular o
pensamento a desempenhar a sua única função: a produção de crença –
reiniciando todo o processo 10 .
Enquanto Peirce concebe a sua doutrina exclusivamente como
um método de determinação do significado, William James (1842-
1910), nas oito conferências reunidas sob o título Pragmatism
[Pragmatismo] (1907), designa o pragmatismo como um método e,
também, como uma teoria da verdade 11 . Entretanto, essa caracterização
é precedida e complementada pela idéia que existe na assunção de uma
determinada posição filosófica, em detrimento de outras, a influência
do temperamento humano. Dessa maneira, tanto a escolha ou recusa
de uma doutrina filosófica quanto às divergências que acompanham as
diferentes opções, seriam passíveis de explicação por intermédio do
contraste entre temperamentos distintos. Para James, esses
temperamentos estão divididos em duas áreas antagônicas,
representadas pelo racionalista, “que segue princípios” e pelo empírico,
“que segue fatos” 12 . A importância desta classificação reside na

9
A expressão “pragmatismo de Peirce” se refere às idéias do próprio autor sobre sua
doutrina. Já a expressão pragmatismo peirceano designa interpretações de outros
autores acerca do “pragmatismo de Peirce” (Cf. Haack, 1998, p. 55). Utilizo o
mesmo critério no estudo dos demais pragmatistas.
10
Cf. Murphy, 1993, p. 33-46.
11
James, 1979, p. 25.
12
James lista atributos contrastantes para o racionalista (à esquerda) e o empírico (à
direita), tais como: intelectualista x sensualista, idealista x materialista, otimista x
104 Heraldo Aparecido Silva

possibilidade de introduzir o pragmatismo como alternativa ao dilema


racionalismo versus empirismo numa época em que havia a
reivindicação por uma filosofia que fosse capaz de harmonizar aspectos
contrastantes como, por exemplo, o pendor científico e a devoção
religiosa 13 .
Assim, após apresentar a filosofia pragmática como via
intermédia entre as vias opostas do racionalismo e do empirismo, numa
tentativa de conciliar posições divergentes, James passa à exposição do
pragmatismo como método e como teoria da verdade. O método
pragmático, na acepção jamesiana, é descrito como:

um método de assentar disputas metafísicas que, de outro modo, se


estenderiam interminavelmente. (...) O método pragmático nesses casos é
tentar interpretar cada noção traçando as suas conseqüências práticas
respectivas. Que diferença prática haveria para alguém se essa noção, de
preferência àquela outra, fosse verdadeira? Se não pode ser traçada nenhuma
diferença prática qualquer, então as alternativas significam praticamente a
mesma coisa, e toda disputa é vã (James, 1979, p. 18).

No que se refere às origens do método pragmático, James


afirma que antes de seu contemporâneo Peirce, alguns “precursores do
pragmatismo” como os filósofos gregos antigos Sócrates e Aristóteles,
assim como os empiristas britânicos modernos Locke, Berkeley e Hume
teriam usado de “maneira fragmentária” o referido método em suas
investigações acerca de problemas e noções metafísicas 14 . Para James,
foi a predominância do temperamento empírico no início do século XX
que permitiu ao pragmatismo a generalização e o reconhecimento que
não obteve em épocas precedentes. O estabelecimento de vínculos entre
o pragmatismo e longevas doutrinas filosóficas ou, ao menos,
determinados aspectos das mesmas, concerne ao método pragmático,
pois, através dele, as teorias “tornam-se instrumentos, e não respostas
aos enigmas, sobre as quais podemos descansar” 15 .

pessimista, religioso x irreligioso, livre-arbitrista x fatalista, monista x pluralista e


dogmático x cético (James, 1979, p. 4-6).
13
Cf. James, 1979, p. 13.
14
James, 1979, p. 19.
15
James, 1979, p. 20.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 105

Assim, a aplicação do referido método em diversas teorias e


noções filosóficas, permite ao pragmatismo jamesiano efetuar um tipo
de triagem na qual alguns elementos são mantidos e outros excluídos.
Por exemplo: o valor prático que princípios metafísicos como
‘Essência’, ‘Verdade’, ‘Espírito’, ‘Deus’, ‘Matéria’, ‘Razão’, ‘Absoluto’ e
‘Energia’ 16 possuem é lingüístico e histórico, diz respeito ao seu
emprego pelo senso comum – e a sua manutenção deve-se a isto. Em
contrapartida, o intento de desvendar a realidade através destes mesmos
princípios metafísicos, supondo-os fixos e determinados, deve ser
abandonado porque o seu desempenho enquanto crença contrasta com
o de outras crenças mais eficazes – como algumas proporcionadas, por
exemplo, pelo naturalismo e pelo historicismo – que se adaptam
melhor à realidade, no sentido de modificá-la, a fim de atender aos
propósitos humanos 17 . James ainda atribui um sentido mais abrangente
ao seu método pragmático, ao descrevê-lo não apenas como “um
método de assentar disputas metafísicas”, mas também, como uma
“atitude de orientação” para “olhar além das primeiras coisas, dos
princípios, das ‘categorias’, das supostas necessidades; e de procurar
pelas últimas coisas, frutos, conseqüências, fatos” 18 .
A similaridade entre o pragmaticismo peirciano e o método
pragmático jamesiano parece residir no fato de ambos objetivarem
cessar determinadas contendas filosóficas cuja extensão e esterilidade
são proporcionais à indefinição dos conceitos envolvidos: quanto mais
obscuros os significados, mais duradoura e lacunar é a controvérsia.
Entretanto, ambos se distinguem à medida que o princípio de Peirce
parte da consideração das possíveis conseqüências práticas na conduta
humana para determinar o “sentido de um termo abstrato”; enquanto
que o método pragmático de James visa “determinar que credibilidade
tem uma proposição filosófica”, para saber que tipo de conduta ela
estaria apta a produzir 19 . Além disso, a própria idéia de orientação,
presente tanto nos escritos de Peirce quanto nos de James, pode ser
apontada como um elemento disjuntivo: em Peirce, a orientação é um

16
James, 1979, p. 20.
17
James, 1979, p. 69.
18
James, 1979, p. 21.
19
Murphy, 1993, p. 67.
106 Heraldo Aparecido Silva

resultado ao qual se chega após a cessação da dúvida, com o


estabelecimento da crença que fornece uma base ou orientação para a
ação humana; em James, o método é a própria orientação. Logo, trata-
se de um caso no qual o emprego do mesmo termo não implica
equivalência de sentido.
Como visto anteriormente, Peirce repudiou certas
interpretações de suas idéias e estabeleceu o vocábulo pragmaticismo
para designar e diferenciar a sua doutrina das de outros autores, entre
os quais James, que haviam se apropriado da palavra pragmatismo.
Entre os dois pragmatistas, a principal divergência refere-se ao fato de
James ter ampliado o sentido e a aplicação do pragmatismo ao presumir
que havia de forma latente nas idéias originais de Peirce, uma teoria da
verdade. Na acepção jamesiana, uma idéia torna-se verdadeira
instrumentalmente a partir do momento que o seu desempenho se
revela mais satisfatório do que o de outras idéias na tarefa de relacionar
as partes de nossa experiência. Assim, numa crise que envolva a
manutenção de velhas crenças e a admissão de novas crenças, deve ser
considerada verdadeira a idéia que melhor intermediar o confronto
entre tais crenças – no sentido de preservar o máximo de “benefícios
vitais” concedidos pela convicção em verdades prévias e adquirir outros,
provenientes de verdades até então inéditas 20 .
Nessa perspectiva, a verdade de uma idéia está relacionada à sua
utilidade para os propósitos humanos; e, mesmo o critério de verdade,
aquilo que serve para definir algo como verdadeiro ou não, reside na
aplicação prática, ou seja, a verificação de uma crença ocorre em termos
experimentais. Portanto, antes de agregar uma nova idéia ao conjunto
de verdades previamente assumidas, deve-se perguntar pela “diferença
prática” que a adoção da mesma possa vir a acarretar na vida humana.
Se esta idéia puder, ainda que parcialmente, ser verificada, isto é, se for
passível de confirmação no âmbito prático e, se a sua adoção significar a
posse de um valioso instrumento de ação (e o mesmo não ocorrer com
as demais idéias adversárias), então, esta idéia será verdadeira 21 . Isto

20
James, 1979, p. 29.
21
James adverte: “Indiretamente ou somente potencialmente, os processos de
verificação podem, pois, ser verdadeiros tanto quanto os processos de verificação
integrais” (James, 1979, p. 75).
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 107

significa que a verdade não é concebida como uma propriedade


imanente a certas idéias, mas sim, como um processo: uma idéia,
segundo James, “torna-se verdadeira, é feita verdadeira pelos
acontecimentos” 22 . E, também, que a obtenção da verdade não pode
ser considerada um fim em si mesmo, mas tão-somente um meio para
se atingir outros objetivos. James sustenta ainda, que se denomina
verdadeira “qualquer idéia que inicie o processo de verificação” e que
útil designa “a sua função completada na experiência” 23 .
A concepção de verdade no pragmatismo jamesiano é pluralista
e cambiante. A experiência, base dos processos de verificação comporta
diversos elementos simples e complexos; estes, por sua vez, ocorrem de
maneira regular, constante e ordenada ou irregular, inconstante e
caótica. Isto contribui para dificultar a verificação direta e integral da
maioria das idéias consideradas verdadeiras. Então, se não houver a
possibilidade (se não dispomos de meios para fazê-lo ou se não estamos
no lugar e época apropriados) e nem a necessidade (se outros fatores
pendem para a validação de tal idéia, tais como a sua corroboração por
parte de outros indivíduos) de executar uma verificação completa,
pode-se assumir a idéia como verdadeira 24 .
O legado de James para a tradição pragmatista é constituído,
em grande parte, pela discussão sobre a verdade. Contudo, o
significado de tal contribuição é ainda bastante controverso, dado o
teor das idéias expressas em frases como: “O verdadeiro [...] é somente
o expediente no processo de nosso pensamento”, da mesma forma que
“o direito é somente o expediente no processo de nosso
comportamento”. Isto porque, segundo ele, a experiência possui meios
de “fazer-nos corrigir nossas fórmulas presentes” 25 . Inclusive, aqui,
pode-se considerar a atividade filosófica como um empreendimento
que envolve também a correção (e o aprimoramento) de noções,
fórmulas e métodos passados. Para finalizar, juntamente com a
polêmica acerca da interpretação de James do pragmatismo peirciano,

22
James, 1979, p. 72.
23
James, 1979, p. 73.
24
Em tais casos, a sintética observação de James é exemplar: “Comerciamos um com a
verdade do outro” (James, 1979, p. 75).
25
James, 1979, p. 80.
108 Heraldo Aparecido Silva

também a questão da suposta ambigüidade nas declarações jamesianas


tornou-se um tema importante nos debates, críticas e estudos sobre o
pragmatismo original 26 .
Ao contrário de Peirce e James, que pereceram em 1914 e
1910, respectivamente, John Dewey (1859-1952) esteve ativo durante
quase toda a primeira metade do século XX e pôde presenciar alguns
dos diversos eventos que constituíram boa parte da cultura deste
período. Em certo sentido, pode-se dizer que o conhecimento da
conturbada época 27 de Dewey é requisito necessário para a
compreensão de suas idéias e, também, da repercussão obtida pelas
mesmas. Isto porque nos seus trabalhos, a ênfase reside nos aspectos
político e social da experiência humana. Assim, ao submeter os escritos
deweyanos ao contexto histórico e cultural específico do período
compreendido entre as duas guerras mundiais, os mesmos são
considerados como uma filosofia social e política, à medida que,
entrementes, constituem menos uma análise de outras concepções
filosóficas do que uma reação contra determinadas práticas políticas e
sociais de seu tempo – particularmente, nos Estados Unidos da
América 28 . Afinal, como nos adverte o próprio Dewey: “a função
primordial da filosofia é a de explorar racionalmente as possibilidades
da experiência; especialmente as da experiência humana coletiva” 29 .
Assim, não deixa de ser razoável a possibilidade de considerar e,
de certo modo credenciar, o impacto causado pela morte de milhões de
pessoas como um dos fatores determinantes na elaboração, em 1948, de
uma introdução crítica e atualizada para Reconstruction in Philosophy

26
Consultar Thayer (1973), Murphy (1993), Saatkamp (1995) e Menand (1997).
27
Algumas menções são inevitáveis para caracterizar os problemas morais, políticos e
sociais visados por Dewey que defendia a “mudança da natureza do conhecimento e
da filosofia, de contemplativa para operativa” (Dewey, 1959, p. 129). Assim, no
âmbito internacional, destacam-se: a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução
Russa (1917); a consolidação de regimes políticos totalitários na Europa: o fascismo
na Itália (1922) e o nazismo na Alemanha (1933); a Guerra Civil Espanhola (1933-
1939); a 2ª Guerra Mundial (1939-1945); a criação da Organização das Nações
Unidas – ONU (1945); a oficialização da política de segregação racial na África do
Sul (1948); e a fundação do Estado de Israel (1948).
28
Dewey, 1959, p. 17-43.
29
Dewey, 1959, p. 130.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 109

[Reconstrução em Filosofia] 30 , obra originalmente publicada em 1920,


na qual Dewey contrapõe “os velhos e os novos tipos de problemas
filosóficos” 31 . Ele escreve:

a missão primacial da filosofia, seus problemas e campo de estudo brotam


das pressões e solicitações que se manifestam na vida de comunidades, em
cujo seio surge determinada forma de filosofia, e que, conseqüentemente,
seus problemas específicos variam com as transformações que a vida humana
constantemente atravessa, e que por vezes constituem uma crise e uma
mudança de direção na história da humanidade (Dewey, 1959, p. 17).

Mais adiante Dewey alega que os sistemas filosóficos antigos


“refletem as concepções pré-científicas do mundo natural, a situação
pré-tecnológica do mundo da indústria e a situação pré-democrática do
mundo político em que suas doutrinas tomaram forma” 32 . Em linhas
gerais, tais passagens evidenciam a perspectiva de Dewey sobre a
filosofia e denotam, na sua reivindicação por um novo exame dos
sistemas e problemas filosóficos, a combinação entre o pendor
democrático, o historicismo hegeliano e o evolucionismo darwiniano 33 .
Ele insiste, por exemplo, na importância de coadunar o estudo da
história da filosofia com o conhecimento de outras áreas, tais como das
instituições sociais, da cultura, da religião e da literatura 34 ; visto que
“tanto a organização biológica quanto a social concorrem para a
formação da experiência humana”. Todavia, ele não pensa que a
“experiência significa escravização ao passado, à tradição, ao
costume” 35 . Desse modo, ele aponta para o progresso moral, científico
e político como resultados atingidos – e a serem aprimorados –

30
Escrita sob o impacto da 1ª Guerra, Dewey acrescentou a essa obra uma introdução
na qual constata que, após a 2ª Guerra, “o choque é muito mais violento” e a
“atitude predominante é a de inquieta e pessimista incerteza”. E ele completa:
“Incerteza quanto às surpresas que o porvir encerra, incerteza que projeta sua pesada
e negra sombra sobre todos os aspectos do presente” (Dewey, 1959, p. 17-18).
31
Dewey, 1959, p. 15.
32
Dewey, 1959, p. 20.
33
Cf. Borradori, 1994, p. 105-106; Saatkamp, 1995, p. 1-15, 197-205.
34
Dewey, 1959, p. 61.
35
Dewey, 1959, p. 108-109.
110 Heraldo Aparecido Silva

mediante a substituição da atitude meramente contemplativa pela


interventora.
Dewey defende a idéia que se a filosofia abdicasse da sobrecarga
na sua tarefa, representada pela “metafísica balofa” e pela “inútil
epistemologia” 36 , poderia se dedicar com mais propriedade às
disciplinas sociais, morais e educacionais 37 . Entretanto, no que tange ao
processo decisório em tais questões, também existe a necessidade de
aplicação da regra pragmática: a atribuição de significado a uma idéia
deve ser antecedida pela análise das conseqüências da mesma 38 . Isto
porque, sustenta Dewey, não devemos “apelar eternamente para
decisões pretéritas nem para velhos princípios, no intuito de justificar
um curso de ação” 39 .
Finalmente, sobre o pragmatismo na versão de Dewey, é preciso
considerar que “no centro de sua visão e interesses filosóficos estão as
questões sociais e políticas na comunidade democrática” 40 . Bernstein afirma
ainda que Dewey, no artigo Development of American Pragmatism [O
desenvolvimento do pragmatismo americano] (1920), reage contra a
acusação popular que identifica o pragmatismo como uma mera
“expressão ideológica do mais vulgar e objetável aspecto do
‘materialismo’ americano”. Além disso, é preciso mencionar que Dewey
não usou com freqüência o nome pragmatismo para caracterizar a sua
orientação filosófica. Ele preferiu recorrer ao termo
“instrumentalismo”, tendo também utilizado “experimentalismo” ou
“experimentalismo instrumental” 41 . A propósito da defesa deweyana da
filosofia pragmatista convém notar que, dentre as investidas contra o
pragmatismo, ou aspectos dele, destacam-se as críticas de contendores
proeminentes como Bertrand Russell, Émile Durkheim e Max
Horkheimer. Como a análise de tais críticas não pertence ao escopo
desse artigo, passo ao próximo item, referente ao neopragmatismo de
Rorty.

36
Dewey, 1959, p. 131.
37
Dewey, 1959, p. 174-176.
38
Dewey, 1959, p. 159.
39
Dewey, 1959, p. 168.
40
Bernstein, 1995, p. 58.
41
Bernstein, 1995, p. 59.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 111

Neopragmatismo: Rorty
Anteriormente, descrevi, grosso modo, o pragmatismo nas versões dos
pragmatistas clássicos Peirce, James e Dewey. Agora, abordarei dois
aspectos: o legado filosófico e a continuidade dessa tradição na obra do
pragmatista contemporâneo Richard Rorty (1931-2007). Todavia,
antes de discorrer particularmente a respeito destes aspectos, tentarei
evidenciar a inter-relação entre os mesmos. Para esta finalidade, o breve
histórico que acompanha a definição de pragmatismo na versão de
Rorty 42 é suficientemente expressivo:

O pragmatismo americano começou, no seu período clássico, com a adoção


por C. S. Peirce da descrição de Alexander Bain de uma crença como um
hábito de ação. A importância dessa descrição é que ela evita pensar numa
crença como uma representação, e por conseguinte evita a questão de se ela
representa o mundo como ele realmente é ou meramente como nos aparece.
William James e John Dewey prosseguiram esta tentativa para substituir
questões sobre o que uma crença representa por questões sobre a utilidade da
crença (a utilidade das ações em que se empenham em várias situações
aqueles que sustentam a crença). Os neopragmatistas contemporâneos tais
como Hilary Putnam e Donald Davidson, que adotaram a chamada virada
lingüística, continuam este esforço para evitar as tradicionais noções
representacionistas cartesiano/kantianas de crença e conhecimento (Rorty,
1991b, p. 265).

Nesta periodização, o vínculo entre o legado filosófico e a


continuidade do pragmatismo aparece sob a forma de uma
característica atribuída tanto aos pragmatistas clássicos quanto aos
contemporâneos: o anti-representacionismo. Em outras palavras, a
relação entre os dois aspectos mencionados é aludida a partir da idéia
de representação. Esta, por sua vez, nos remete ao tema da verdade.
Neste ponto, a contribuição pragmática se processa em duas vertentes:
a clássica – com Peirce, James e Dewey – que parte da noção de
experiência; e a contemporânea – com Quine, Davidson e Putnam –
que parte da noção de linguagem. A leitura original de Rorty sobre
ambas resulta na elaboração de uma concepção neopragmatista de
investigação da verdade e na reconfiguração histórica do pragmatismo.
Retornarei a esses dois últimos tópicos após discorrer, a respeito do

42
Rorty, 1991b, p. 265-277.
112 Heraldo Aparecido Silva

período que separa a versão clássica do pragmatismo de sua versão


contemporânea.
Murphy, na obra O Pragmatismo: de Peirce a Davidson (1993),
divide a história do pragmatismo em três períodos. A primeira fase, de
meados do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX, com
C. S. Peirce, W. James e J. Dewey – os pragmatistas clássicos, pioneiros
ou fundadores. A segunda fase, a partir dos anos 1930, marcada pela
aliança entre o pragmatismo americano e a filosofia analítica européia
(representada por R. Carnap, H. Reichenbach, C. Hempel, O. Neurath
e H. Feigl, os positivistas lógicos do Círculo de Viena, que dominaram
boa parte dos departamentos de filosofia nos EUA) 43 . Nessa época e
através desta combinação de influências teóricas, formaram-se Willard
Quine (1908-2000) e Donald Davidson (1917-2003), os dois filósofos
de maior influência nos EUA na segunda metade do século XX. E,
finalmente, na terceira fase, entre os anos de 1980 e 1990, o
pragmatismo contemporâneo com Quine, Davidson, Putnam e
Rorty 44 .
Em conformidade com a interpretação de Murphy, a
manutenção da tradição pragmatista na contemporaneidade deve ser
atribuída, em grande parte, à influência que Dewey exerceu sobre
Quine, Davidson e Rorty 45 . A constatação dessa influência advém do
fato de que tais filósofos assumem em suas teorias, as três seguintes teses
deweyanas: (1) o “significado é [...] primariamente uma propriedade do
comportamento”; (2) o “significado é intenção”; e (3) a “linguagem é
[...] um modo de interação entre pelo menos dois seres [e] pressupõe
um grupo organizado ao qual estas criaturas pertencem, e do qual
adquiriram hábitos discursivos” 46 . A assunção destas teses por parte de
Quine, Davidson e Rorty ocorre através de maneiras distintas, visto
que, enquanto Quine enfatiza a primeira delas, Davidson e Rorty

43
Para obter informações complementares sobre a periodização do pragmatismo, a
influência da vertente analítica da filosofia nos EUA e o neopragmatismo de Rorty;
consultar Borradori (1994, p. 1-25), Saatkam (1995), Brandom (2000) e Rorty
(2006).
44
Murphy, 1993, p. 15-158.
45
Murphy, 1993, p. 112.
46
Extraídas de Experiência e Natureza (Cf. Dewey, 1980, p. 37 e 40).
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 113

privilegiam as demais 47 . Desta forma, para se compreender a


continuidade da tradição pragmatista na vertente rortyana, é necessário
considerar a acolhida que essa fração do legado filosófico deweyano
recebe nos escritos destes autores. Por conseguinte, torna-se necessário
abordar grosso modo, algumas idéias quineanas e davidsonianas que são
relevantes no pragmatismo e, em particular, no neopragmatismo
rortyano.
A contribuição dada por Quine revigorou o pragmatismo “que
esteve praticamente moribundo” durante as décadas de trinta e
quarenta e, modificou substancialmente o cenário filosófico americano
nos subseqüentes anos cinqüenta e sessenta porque situou o lugar do
pragmatismo no empirismo moderno à medida que afasta este do
positivismo lógico. Ao atacar os dois dogmas que condicionaram o
empirismo moderno – a “divisão entre verdades analíticas e verdades
sintéticas” e o “reducionismo” – e propor o abandono dos mesmos,
Quine aponta para duas conseqüências: o desaparecimento gradual da
“suposta fronteira entre a metafísica especulativa e a ciência natural” e
“a reorientação rumo ao pragmatismo” 48 .
Para Murphy, o naturalismo tardio que “dominou as últimas
três décadas de Dewey”, serviu para aproximá-lo filosoficamente de
Quine. A idéia de tal vinculação é reforçada pelo fato da análise
lingüística de Quine apontar Dewey como precursor na crítica à noção
de linguagem privada, expressa no procedimento de atribuir às palavras
e frases significados específicos e previamente determinados 49 . Ele
reforça a sua negação de que cada termo tenha necessariamente um
significado único e inalterável ao sustentar que tanto o significado
quanto a referência “devem ser explicados em termos de
comportamento [lingüístico]” 50 . Tal holismo do significado
desempenha um papel relevante no neopragmatismo rortyano, à
medida que rompe com a distinção entre “significado e significação” –
o intrínseco e o extrínseco – e, também, porque permite a manutenção
da postura contextualista e antiessencialista no pragmatismo. Por

47
Murphy, 1993, p. 112.
48
Quine, 1980, p. 231.
49
Murphy, 1993, p. 110-111.
50
Murphy, 1993, p. 122.
114 Heraldo Aparecido Silva

conseguinte, Rorty sustenta que os “pragmatistas gostariam de destruir


a distinção entre conhecer e usar as coisas”, justamente porque a
“pretensão de conhecer X é uma pretensão de estar apto a fazer algo
com ou a X, pôr X em relação com outra coisa” 51 .
Em relação a Davidson, a sua contribuição para o pragmatismo
pode ser descrita como uma seqüência da crítica quineana aos dogmas
do empirismo. Isto porque, de acordo com a sua argumentação no
ensaio On the Very Idea of a Conceptual Scheme (1973), além dos
dogmas da crença no reducionismo e da crença no dualismo analítico-
sintético, temos ainda um terceiro dogma no empirismo para ser
refutado: a crença no dualismo esquema-contéudo – a pressuposição de
um esquema geral de conceitos ou de um sistema de categorias a priori
que, de forma necessária, constitui e condiciona a-historicamente o
conteúdo da experiência 52 .
Para assumir a concepção de Rorty – para quem o eu [self] não é
algo que tem crenças e desejos, e sim é a própria rede de crenças e
desejos –, é necessário concordar com a posição de Davidson que
sugere que ao abandonar o dualismo esquema-conteúdo, “abdicamos
da suposição de que podemos distinguir mudanças de sentido de
mudanças de crenças”, pois para ele, a “crença e o sentido são
interdependentes” 53 . Esta interdependência entre as crenças (e também
os desejos e outros estados intencionais) e a realidade (as coisas
sensíveis, os fatos e os demais elementos da experiência) inviabiliza a
idéia de vincular ambas a partir de uma relação onde as crenças são
verdadeiras devido a sua adequação ao mundo; ou, onde o significado e
o conhecimento da realidade é possibilitado pela evidência ou
justificação fornecida, em última instância, por uma essência – o eu, a
mente ou a linguagem 54 .
Em virtude da referida interdependência entre crenças e
realidade, Rorty defende uma abordagem holística e contextualista da
noção de verdade, onde não há relações representacionais, mas apenas
relações causais e lingüísticas. Assim, suas considerações ocorrem no

51
Rorty, 1991b, p. 266.
52
Davidson, 2001, p. 183-198; Murphy, 1993, p. 131-132.
53
Murphy, 1993, p. 133.
54
Murphy, 1993, p. 134-135.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 115

interior das teorias sobre a verdade. De modo geral, as teorias sobre a


verdade estão divididas em dois grupos: o campo das teorias
tradicionais ou substantivas e o campo das teorias semânticas – também
denominadas minimalistas ou deflacionistas. No lado das teorias
tradicionais, que substantivam a verdade, temos a teoria
correspondentista, a teoria coerentista e a teoria pragmatista – na versão
verificacionista de Peirce e na versão de James-Dewey 55 . No lado das
teorias semânticas, que deflacionam a verdade, temos a tipologia
neopragmatista de Rorty. Em relação ao contexto histórico-filosófico
que permeia os dois grupos de teorias sobre a verdade, é preciso
registrar, ainda que de modo bastante genérico, o evento denominado
virada lingüística [linguistic turn], principal fator de mudanças na
concepção filosófica contemporânea 56 .
Isto porque a transição da filosofia do paradigma da consciência
para o paradigma da linguagem encerra, sobretudo para a investigação
sobre a verdade, uma transposição relevante de campo de estudo, ou
seja, a filosofia parte da área da metafísica e da epistemologia em
direção à área da lógica e da filosofia da linguagem – grosso modo, tal
deslocamento consiste numa relativa diminuição do interesse filosófico
na busca pela fundamentação e legitimidade teórica do conhecimento
e, em contrapartida, numa ampliação gradual de pesquisas voltadas
para a análise do sentido, da referência e do significado. Desta maneira,
ocorre também uma mudança decisiva no próprio caráter da
investigação à medida que, após a virada lingüística, a pergunta sobre a

55
Na terminologia lógica, essas teorias podem ser formuladas, tal como segue: Teoria
da Correspondência: x é verdadeiro sse [se e somente se] x corresponde a um fato;
Teoria da Coerência: x é verdadeiro sse [se e somente se] x é um membro de um
conjunto de crenças coerente; Teoria Pragmatista: x é verdadeiro sse [se e somente
se] x é útil de se acreditar; Teoria Verificacionista: x é verdadeiro sse [se e somente se]
x é provável, ou verificável em condições ideais.
56
A definição para esta “revolução filosófica” ocorre em uma obra anterior de Rorty, a
saber, The Linguistic Turn: Recent Essays on Philosophical Method, publicada
originalmente em 1967: “Entenderei por filosofia lingüística o ponto de vista
segundo o qual os problemas filosóficos podem ser resolvidos (ou dissolvidos)
reformando a linguagem ou compreendendo melhor a que usamos no presente”
(Rorty, 1997, p. 3).
116 Heraldo Aparecido Silva

verdade cede lugar a perguntas sobre os usos da linguagem e, por


conseguinte, sobre os usos dos termos verdade e verdadeiro 57 .
Para Rorty, porém, nos dois paradigmas anteriores há
insuficiências concernentes ao essencialismo e ao representacionismo,
visto que em ambos existem questões ou situações nas quais tanto a
mente quanto a linguagem são consideradas um meio de expressão do eu
– o sujeito cognoscente – ou de representação do mundo – o objeto a ser
conhecido. A fim de evitar estes pressupostos, Rorty defende a
necessidade de um terceiro paradigma, o paradigma neopragmático da
linguagem, no qual defende uma concepção em que os diversos
vocabulários alternativos existentes são considerados não peças de um
quebra-cabeça universal, mas sim instrumentos alternativos: não
expressam e não representam coisa alguma, apenas servem para
diferentes – e às vezes inéditos – propósitos humanos. Dada a
complexidade e a extensão do tema da verdade, tanto na filosofia em
geral quanto no pragmatismo em particular, encerro esta exposição
ciente de que cada tópico abordado – nas teorias clássicas ou nas teorias
semânticas – encerra polêmicas maiores e elucidações mais precisas do
que as apresentadas aqui 58 .
Na obra Consequences of Pragmatism (1982), especificamente
num dos ensaios componentes, intitulado Pragmatism, Relativism, and
Irracionalism (1980), Rorty destaca três caracterizações 59 para o

57
No que se refere às teorias semânticas ou deflacionistas – numa acepção genérica,
teorias que alijam a verdade de um sentido metafísico e substantivo para, em
contrapartida, imbuir na mesma um sentido transitório e predicativo –,
restringiremos a menção aos três diferentes usos do termo verdadeiro (ou verdade),
dados por Rorty a partir de sua leitura de Quine e Davidson: o uso endossador, o uso
acautelador e o uso descitacional (Cf. Rorty, 1991a, p. 128).
58
Na obra Truth and Progress (1998) Rorty polemiza contra os filósofos John Searle,
Hilary Putnam e Charles Taylor. O filósofo Jürgen Habermas, por sua vez, no texto
Coping with contingencies – the return of historicism (1996) critica a provisória lista
tríplice de Rorty para os usos do termo verdadeiro.
59
Uma descrição alternativa do pragmatismo rortyano, na qual esta tríade
caracterizante aparece no texto “We Pragmatists ...”: Peirce and Rorty in Conversation,
de Susan Haack. Nele, há um significativo e exaltado diálogo imaginário entre o
pragmaticista Peirce e o neopragmatista Rorty, construído a partir de fragmentos
textuais de ambos. Assim como em outras ocasiões, Haack contrapõe o
pragmaticismo peirciano ao “pragmatismo vulgar” rortyano, a fim de evidenciar,
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 117

pragmatismo. A primeira caracterização do pragmatismo é a de que “ele


é simplesmente anti-essencialismo aplicado a noções como ‘verdade’,
‘conhecimento’, ‘linguagem’, ‘moralidade’ e objetos similares da
teorização filosófica”. A segunda caracterização do pragmatismo é a de
que “não existe nenhuma diferença epistemológica entre a verdade
acerca do que deveria ser e a verdade acerca do que é, tal como não
existe nenhuma diferença metafísica entre moralidade e ciência”. E,
finalmente, a terceira caracterização, é a de que pragmatismo é “a
doutrina segundo a qual não há limitações ao inquérito, salvo as de
ordem conversacional” isto é, “não há limitações estabelecidas” que
sejam “derivadas da natureza dos objetos, ou da natureza da mente, ou
da linguagem, mas apenas limitações avulsas fornecidas pelas
observações dos nossos companheiros de inquérito” 60 .
Já no texto Relativism: finding and making [Relativismo:
encontrar e fabricar], Rorty caracteriza em linhas gerais a sua versão de
pragmatismo. Ele afirma que os adversários do pragmatismo
consideram relativistas os filósofos que abandonam a busca platônica
por fundamentos e renunciam à idéia kantiana da existência de
obrigações morais universais. Os pragmatistas, embora desistam de
encontrar um critério de avaliação permanente para as transitórias
práticas sociais e, também, desistam de basear a ética em princípios
legitimadores universais “incondicionais e transculturais” que estariam
fixados numa “natureza humana imutável e a-histórica” 61 , repudiam o
relativismo e o irracionalismo, alegando que apenas criticam um
conjunto de termos que perdeu historicamente a sua relevância
semântica original, dualismos inadequados à realização dos propósitos
humanos. Ao questionarem a eficácia do vocabulário herdado da
tradição platônico-aristotélica, os pragmatistas repudiam a concepção
de investigação dualista por considerarem que muitas das verdades
sustentadas não são encontradas, mas sim, fabricadas e difundidas ao
senso comum por esse ultrapassado vocabulário filosófico. Todavia, a
formulação dessa acusação nestes termos seria apenas uma variação para

prioritariamente, as diferenças de concepção do significado de pragmatismo nas


versões dos dois filósofos (Cf. Haack, 1997, p. 91-107).
60
Rorty, 1982, p. 160-166; Murphy, 1993, p. 141-145.
61
Rorty, 1996, p. 31.
118 Heraldo Aparecido Silva

outro dualismo, a saber, entre o absoluto e o relativo, um vocabulário


desqualificado pelos antidualistas porque a sua utilização implica na
continuidade das distinções por eles rejeitadas 62 . Em contrapartida, os
adversários dos pragmatistas replicam que “abandonar esse vocabulário
é abandonar a racionalidade” 63 . Assim, a argumentação dos
pragmatistas para refutar a acusação de relativismo e irracionalismo,
centra-se na idéia de que afirmar a relatividade e a irracionalidade a
respeito de qualquer coisa baseia-se na suposição de suas respectivas
contrapartes – o absoluto e o racional –; ou seja, existe a crença num
conjunto de dualismos servindo de contraponto. Por conseguinte, para
os pragmatistas, estas “definições pressupõem justamente as distinções”
que eles rejeitam. Entretanto, há a ressalva de que “dividir o mundo em
coisas boas e coisas ruins sempre será uma indispensável ferramenta de
investigação” 64 .
Na perspectiva neopragmatista, a “investigação humana” (seja
ela de caráter filosófico, científico ou político) deve ser “uma tentativa
de servir a propósitos transitórios e de resolver problemas transitórios”.
Assim, tal como os animais desenvolvem ferramentas (garras, presas,
trombas etc.) para melhor se adaptarem ao seu meio ambiente, os seres
humanos se valem também do aprimoramento de ferramentas
(principalmente a linguagem) para interagir com sua espécie e meio
social 65 . No entanto, nenhuma ferramenta é capaz de romper nosso
contato com a realidade, isto independentemente de quem usa a

62
Rorty adverte que mesmo se a distinção realidade/aparência fosse substituída por
encontrar/fabricar, não evitaríamos a questão: “teremos nós descoberto ou inventado
o surpreendente fato que aquilo que se pensava ser objetivo é, na verdade,
subjetivo?”. Se dissermos que descobrimos/encontramos “o fato objetivo de que a
verdade é subjetiva”, caímos em contradição; se dissermos que
inventamos/fabricamos tal verdade, não haveria porquê acreditarem em nós. Assim,
se os pragmatistas tivessem que optar, diriam que muitas verdades científicas e
morais são fabricadas e podem ser desfeitas e refeitas. Porém, este dualismo também
é incômodo, já que os pragmatistas também não podem formular suas posições “em
termos de uma distinção entre o que está fora e o que está dentro de nós” (Rorty,
1996, p. 33).
63
Rorty, 1996, p. 34.
64
Rorty, 1996, p. 34.
65
Rorty, 1996, p. 37-38.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 119

ferramenta, do lugar e época onde ocorre a ação, dos objetivos


pretendidos pelo usuário da referida ferramenta e, também, sem
importar a forma assumida pela mesma que pode ser um instrumento
material como um martelo, um alicate ou uma foice, ou um
instrumento imaterial como uma idéia, uma crença ou, ainda, uma
declaração lingüística. Isto porque, na concepção de Rorty, os usos das
ferramentas concebidas também fazem parte da interação do organismo
com o seu meio ambiente. Este modelo de relação causal, em oposição
ao modelo de relação representacional, sustenta que nenhum
organismo (humano ou não) em comparação com qualquer outro
organismo pode ser considerado, sob quaisquer condições, como
possuidor de um maior ou menor contato com a realidade.
A noção de linguagem como ferramenta e a noção de crença como
hábito de ação desempenham fundamental importância no modelo
investigativo neopragmatista à medida que reforçam consideravelmente
a atividade de redescrição e o anti-representacionismo. Do ponto de
vista pragmático, ambas as noções desqualificam a questão se
determinadas crenças representam melhor a realidade do que outras, já
que as mesmas são consideradas meios para se atingir determinados
objetivos – por exemplo, a realização de desejos – sem a pretensão de
saber se ao final nos defrontaremos com a verdade por si mesma.
Entendidas como hábitos de ação, as crenças são utilizadas para
descrever as coisas conforme os propósitos dos seres humanos; neste
contexto, algumas ferramentas servem melhor do que outras em
situações e épocas diferentes 66 . Nessa perspectiva as descrições são
concebidas para servir aos propósitos humanos e não para representar a
natureza intrínseca da realidade. Assim, a substituição de uma descrição
por outra ocorre a partir do critério da eficácia ou utilidade, ou seja,
durante a competição entre as mesmas, verifica-se a obsolescência de
uma delas à medida que a outra se revela mais eficaz para a consecução
de alguns de nossos objetivos. Para Rorty, a grande variedade de
descrições candidatas e a diversidade de seus conteúdos fortalecem a
posição pragmatista. A miríade de argumentos, descrições e contextos à
disposição dos pragmatistas também pode ser verificada na área da

66
Cf. Rorty, 1996, p. 40.
120 Heraldo Aparecido Silva

ética, uma vez que não existe nenhum “limite nítido que separe o
injusto do imprudente, o mau do ineficiente”. Para Rorty, aquilo que
os opositores do pragmatismo chamam de “firmes princípios morais”
são compreendidos como “abreviações de práticas passadas”67 , um
modo de resumir os hábitos mais admirados em nossos ancestrais.
Assim, os princípios morais são considerados também hábitos
de ação, os quais vêm sendo reproduzidos durante anos, propiciando
práticas virtuosas e igualitárias, mas que, não obstante, se confundem
com outras práticas violentas e discriminatórias, igualmente provocadas
pelos referidos princípios morais e que constituem a razão do tormento
e sofrimento de inúmeras pessoas vitimadas por vinganças, preconceitos
e outros tipos de perseguições. Do mesmo modo, apelar para algum
princípio legitimador universal, subjacente a toda ação humana,
constitui um recurso disponível para qualquer uma das partes
envolvidas. Se para defender uma ação controversa fosse necessário
justificá-la a partir de um “princípio racional universal”, seria possível
imaginar e criar um que se adequasse à situação. No entanto, seria
preferível enumerar e circunscrever as justificativas ao contexto de
forma a convencer os seus interlocutores que o ato praticado era “a
melhor coisa a fazer no momento” 68 , visto que não há como mensurar
ou demonstrar o maior ou menor grau de racionalidade de qualquer
defesa. Afinal, os “dilemas morais”, como genocídios, crimes de guerra,
controle populacional, fome, racionamento de água e de assistência
médica não podem esperar a formulação de princípios morais
universais para serem resolvidos. Tais problemas requerem medidas
imediatas, ainda que sujeitas a modificações e reformas 69 .
Para Rorty é um erro acreditar que a humanidade compartilha,
de forma imanente em cada um de seus membros, uma “aspiração”
comum – seja ela denominada “razão”, “natureza humana” ou qualquer
outro termo que sugira essencialismo ou determinismo. Deste modo, se
as ações humanas atuais provocarem mudanças catastróficas no mundo

67
Rorty, 1996, p. 44.
68
Rorty, 1996, p. 45.
69
É nesse sentido que, no texto Solidarity or objectivity?, Rorty descreve o
pragmatismo antes como uma filosofia da solidariedade do que uma filosofia do
desespero (Rorty, 1991a, p.33).
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 121

futuro, transformando-o numa distopia; a humanidade não terá


“falhado em corresponder às suas obrigações morais”, ela “terá
simplesmente perdido uma oportunidade de ser feliz”. A conclusão de
Rorty, sobre as possibilidades de êxito para cada uma das partes no
gládio dialógico travado entre os pragmatistas e seus adversários,
assume a forma de uma suspeita: que a única providência a ser tomada
é “redeclarar incessantemente seus casos num contexto após outro” 70 .

A tradição pragmatista: conflito de narrativas e pluralismo


A trajetória do pragmatismo descrita por Richard Bernstein caracteriza-
se pelo uso filosófico da narrativa, isto é, a sua argumentação não só
baseia-se em narrativas, mas, também, desenvolve-se através de uma
metanarrativa. Bernstein enfoca a tradição pragmática em dois textos 71 ,
Pragmatism, Pluralism and Healing of Wounds 72 [Pragmatismo,
pluralismo e a cura de feridas] (1988) e American Pragmatism: The
Conflict of Narratives 73 [Pragmatismo americano: o conflito das
narrativas] (1995). Em ambos, e de modo bastante similar, ele
desenvolve a idéia de que o pragmatismo é constituído por uma
pluralidade de tradições, perspectivas e orientações filosóficas
heterogêneas e conflitantes entre si. Destaca ainda, a descrição de
tradição dada por Alaisdair MacIntyre, empregado-as em ambos os
textos referidos como uma espécie de preceito norteador: “Uma
tradição não apenas incorpora a narrativa de um argumento, mas só é

70
Rorty, 1996, p. 47.
71
Bernstein realiza, paralelamente à elaboração de uma narrativa argumentativa do
ethos pragmático, uma leitura crítica da filosofia americana e, particularmente, do
neopragmatismo – este representado, na maioria das vezes, por Rorty e Hilary
Putnam. Embora os dois textos bernsteinianos sejam, sob muitos aspectos, bastante
similares, a crítica ocorre predominantemente no primeiro texto (Pragmatism,
Pluralism and Healing of Wounds), enquanto que a metanarrativa se desenvolve mais
no segundo (American Pragmatism: The Conflict of Narratives). Assim, considerei
mais apropriado apresentá-los seqüencialmente, para evidenciar a variação da ênfase
que recai nos temas pragmáticos, nos representantes mais expressivos do
movimento, no momento histórico inicial da formulação da tradição e, ainda, na
recepção, interpretação e difusão de determinadas idéias filosóficas.
72
Menand, 1997, p. 382-401.
73
Saatkamp, 1995. p. 54-67.
122 Heraldo Aparecido Silva

recuperada a partir de um recontar argumentativo desta narrativa, que


estará em conflito com outras recontagens argumentativas 74 .
Em Pragmatism, Pluralism and Healing of Wounds, Bernstein
analisa a condição da filosofia americana contemporânea a partir de
elementos extraídos de um passado filosófico recente e, também,
aproveita para discorrer sobre a heterogeneidade e pluralismo que
constituem a tradição pragmática. No título desse artigo, as feridas são
as conseqüências resultantes do gládio indiretamente travado entre a
filosofia nativa – o pragmatismo – e a filosofia estrangeira – o
positivismo lógico. Sucintamente, tais feridas podem ser identificadas
como o relativo ostracismo no qual caiu o pragmatismo, após a
ascensão da filosofia analítica nos departamentos de filosofia
americanos; e, também, o preconceito difundido contra a filosofia
analítica, compreendida como uma atividade estritamente profissional,
voltada somente para a análise conceitual e para o estudo da linguagem
e, por conseguinte, apartada das preocupações éticas, políticas e sociais.
A cura ou cicatrização destas feridas reside na compreensão de um
elemento importante e muitas vezes negligenciado no pragmatismo: o
pluralismo. Isto porque, no pragmatismo, a tradição – o “nós” – é
“moldado a partir de tradições rivais e conflitantes”. Aqui a idéia de
Bernstein é mostrar que geralmente os “temas pragmáticos”
predominam na produção intelectual de muitos filósofos de orientações
diversas que, todavia, não se consideram pragmatistas. Segundo ele, o
pragmatismo não deve ser considerado “um conjunto de doutrinas” ou
mesmo “um método”, pois a vitalidade e a diversidade dessa tradição
está no fato de ser uma “conversação engajada contínua que consiste
em distintas – às vezes competidoras – vozes” 75 .
Sobre a formação, a pluralidade de temas analisados, os
procedimentos e respectivas orientações filosóficas dos pragmatistas
clássicos, Bernstein recorda: Peirce era um “cientista experimental
praticante” que se considerava “um lógico”; alguém que estudara
detidamente as “categorias kantianas” e também se identificava com o
“realismo escolástico” de Duns Scotus. James, por sua vez, fora

74
Bernstein, 1997, p. 382-383; 1995, p. 54.
75
Bernstein, 1997, p. 382-383.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 123

“treinado como um médico, e as suas especulações filosóficas


desenvolveram-se a partir de suas investigações psicológicas”; possuía
“afinidades filosóficas profundas com a tradição do empirismo
britânico”, embora criticasse a sua “noção de experiência”. A respeito
de Dewey, consta que ele foi um dos “primeiros a receber um Ph.D em
filosofia” e, enquanto estudante, fora bastante influenciado pelo
“hegelianismo” 76 . Outro dado importante referente ao período de
formação do pragmatismo, é que naquela época não havia, como se
pretende hoje, demarcações rígidas entre as diversas áreas do
conhecimento. Uma fluidez maior existente entre as disciplinas e os
seus modelos de investigação, contribuíam para que os pragmatistas se
deslocassem livremente entre as mesmas e tivessem uma liberdade de
ação mais abrangente.
Para Bernstein, cinco temas interdependentes caracterizam o
ethos pragmático 77 : 1) o anti-fundacionismo; 2) o falibilismo; 3) o
caráter social do eu e a necessidade de criação de uma comunidade
crítica de investigadores; 4) a contingência; e 5) a pluralidade 78 . Assim,
é possível encontrar tais temas presentes nas obras dos pragmatistas
clássicos e variações nas obras de pragmatistas posteriores como Quine,
uma vez que a continuidade desta tradição, na perspectiva
bernsteiniana, se processa também através do refinamento temático.
Embora o termo anti-fundacionismo não tenha sido empregado pelos
pragmatistas originais, é inegável que haja no arsenal anti-fundacionista
argumentos pragmáticos. Em Some Consequences of Four Incapacities,
Peirce ataca a idéia cartesiana de que o conhecimento em geral pode ser
estabelecido a partir de fundações fixas e que, ainda, pode-se ter ciência
de tais fundações a partir da faculdade denominada introspecção 79 . E,
contra a idéia de que, após a recusa do fundacionismo, as únicas
alternativas restantes são o ceticismo e o relativismo, Peirce argumenta

76
Bernstein, 1997, p. 384.
77
A expressão ethos pragmático, no contexto em que Bernstein a emprega, designa os
temas, pressupostos e compromissos compartilhados – em maior ou menor grau,
inclusive com ênfases diferenciadas e procedimentos divergentes – pelo pragmatismo
americano.
78
Bernstein, 1997, p. 385-389.
79
Bernstein, 1997, p. 385.
124 Heraldo Aparecido Silva

em prol da posição falibilista. Na perspectiva do falibilismo, é


inconcebível a idéia de que haja qualquer coisa, inclusive uma filosofia,
imune a interpretações adicionais ou correções posteriores 80 .
Dado que todos os seres humanos são sujeitos a falhas e erros,
as alterações necessárias a toda idéia e teoria devem provir de algo –
igualmente falho e sujeito a erros – que possa contar com maiores
possibilidades de sucesso, ou seja, as intervenções que passarem pelo
crivo de especialistas. Assim, é importante notar que, enquanto Peirce
condicionou a sua teoria verificacionista de verdade ao ideal regulativo
de uma comunidade crítica de investigadores especialistas, Dewey, por
sua vez, concentrou-se na idéia de comunidade para entender a idéia
moral de democracia. Neste aspecto, a ressalva concerne precisamente
ao fato de que, embora haja dúvidas sobre a idéia de uma “convergência
ideal” na investigação, isto, necessariamente, não deve “arruinar a
necessidade de sempre recorrer a uma comunidade crítica”. Isto
porque, através do confronto com outras idéias e críticas podemos
“determinar o que é idiossincrático, limitado e parcial” 81 .
Antes de abordar a pluralidade, o último dos temas
componentes e relacionados ao ethos pragmático, Bernstein retorna ao
tema das feridas filosóficas. Ele afirma que é preciso separar os avanços
conquistados pela filosofia analítica de sua “ideologia arrogante” que,
freqüentemente, proclamava o método analítico como o “único modo
sério de se fazer filosofia”. Esta crença, conseqüentemente, era seguida
de uma atitude hostil e desdenhosa para com outras orientações
filosóficas 82 . Na atualidade, Bernstein afirma que “esta ideologia, ainda
é uma fonte de violência intelectual e de feridas em nossa profissão” 83 .
Todavia, o pessimismo é substituído pela constatação otimista de que
esta concepção está se tornando arcaica e superada. E o colapso desta
ideologia ocorreu devido tanto a fatores externos quanto a fatores
internos. Dentre os fatores externos, o principal foi a resistência de

80
Bernstein, 1997, p. 387.
81
Bernstein, 1997, p. 388.
82
Sobre esse tema, Rorty recorda que os filósofos analíticos, que viam a si próprios
como “filósofos profissionais”, classificavam os filósofos que faziam história da
filosofia como, meramente, “mercadores de opinião” (Rorty, 2006, p. 60).
83
Bernstein, 1997, p. 393.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 125

outras orientações filosóficas (não-analíticas), tais como “a


fenomenologia, a hermenêutica, a teoria crítica e a variedade de
estruturalismo e pós-estruturalismo”. Dentre os fatores internos, o
principal foi o fato de que autores consagrados na área da filosofia
analítica, tais como Rorty, MacIntyre e Putnam criticaram, de modos
diferentes, “os preconceitos excludentes da ideologia analítica”, a
“tendência de fixar limites”, e, por conseguinte, contribuíram para o
diálogo entre as vertentes filosóficas – “conversação filosófica”, no
jargão rortyano 84 . Assim, para Bernstein, é tolice pensar numa divisão
filosófica dual: anglo-americana analítica ou continental européia 85 .
Bernstein afirma que as “batalhas ideológicas” de sua geração
“estão começando a parecer remotas e irrelevantes”; e também que “as
cicatrizes das feridas dessas batalhas ainda permanecem, mas há sinais
encorajadores do aparecimento de um novo ethos que sustenta fortes
afinidades com o ethos característico das fases formadoras do
movimento pragmático”. Dentre estes sinais – como veremos
posteriormente nos textos de Rorty –, podemos notar o crescente
diálogo da filosofia com áreas como a literatura, a história, a medicina,
o direito, a sociologia, a antropologia, a política etc. A respeito disso,
Bernstein escreve que “alguns de nós estamos começando a descobrir
que compartilhamos mais intelectualmente com colegas treinados em
disciplinas diferentes do que com nossos próprios colegas dos
departamentos de filosofia” 86 .
De volta ao tema do pluralismo, Bernstein toma a precaução de
distinguir o pluralismo pragmático de outras pluralizações extremas,
tais como: o pluralismo fragmentar (“fragmenting pluralism”), no qual a
comunicação ocorre apenas entre as pessoas de um “pequeno grupo”,
visto que a linguagem excessivamente diferente e os preconceitos muito
idiossincráticos restringem a extensão da conversação para pessoas que
não compartilhem de tais elementos; o pluralismo flácido (“flabby
pluralism”), no qual os “empréstimos de orientações diferentes” são um
mero “furto superficial e lisonjeiro”; o pluralismo polêmico (“polemical
pluralism”), no qual a atenção voltada para o pluralismo não significa

84
Bernstein, 1997, p. 393-394.
85
Ver também Prado Jr., 2003, p. 17; 23-24.
86
Bernstein, 1997, p. 395-396.
126 Heraldo Aparecido Silva

uma vontade genuína de escutar e aprender com outros, mas antes uma
“arma ideológica” para avançar a sua própria orientação sobre as
demais; o pluralismo defensivo (“defensive pluralism”), situação na qual
dialoga-se com outros, mas com uma predisposição para a idéia de que
não há nada de importante para ser apreendido deles. Para diferenciar o
pluralismo componente do ethos pragmático dos demais tipos de
pluralismos, Bernstein denomina o representante da tradição
pragmatista de pluralismo falibilista engajado (“engajed fallibilistic
pluralism”), algo que na sua concepção, “põe novas responsabilidades
em cada um de nós” 87 .
O pluralismo falibilista engajado, característico da tradição
pragmática, age como um dos fatores de cura para as feridas ideológicas
e filosóficas. A partir da balsâmica posição pluralista, a torpe divisão
entre filosofia nativa e filosofia estrangeira torna-se insustentável. Nesta
condição, uma boa conseqüência extraída do relativo predomínio
analítico exercido no cenário filosófico americano de outrora está no
fato do mesmo ter “encorajado o estilo adversário ou confronte de
argumentação”. Assim, temos a idéia de que a formação de uma
tradição é “uma realização frágil e temporária que sempre pode ser
rompida por contingências inesperadas” 88 . Logo, na história do
pragmatismo, o que existe desde sempre é uma tradição na qual a
conversação, necessária para a realização do “nós” (da tradição), não
exclui atitudes conflitantes e discordantes. Em suma, Bernstein exige
que os filósofos reajam ao pluralismo com “respostas e
responsabilidades” 89 , tanto para os seus colegas de profissão quanto
para a sociedade; algo que, na ausência de um paliativo mais eficaz,
parece ser o principal fator de cura das feridas filosóficas.
Em American Pragmatism: The Conflict of Narratives, Bernstein
retoma a temática do pluralismo na tradição do pragmatismo.
Entretanto, neste texto, a ênfase fica na questão da narrativa. Segundo
ele, quando nos referimos ao “nós” de uma tradição, esta idéia é
inevitavelmente acompanhada pela questão de como especificar a
significação de “nós” – já que, no pragmatismo, o “nós” refere-se a um

87
Bernstein, 1997, p. 397.
88
Bernstein, 1997, p. 398.
89
Bernstein, 1997, p. 401.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 127

grupo cuja heterogeneidade é ainda mais forte no presente do que no


passado. Desse modo, a descrição de MacIntyre para tradição, dada
anteriormente, torna-se necessária para evitar que o legado temático
pragmatista seja interpretado de tal maneira que o mesmo acabe fixado
num período específico e considerado exclusividade de um grupo
somente – e não de diversos e conflitantes grupos situados em épocas
distintas.
A maioria das conseqüências exploradas por Bernstein decorre
da constatação que o pragmatismo é, em primeiro lugar, “constituído
pelas narrativas que contamos sobre o pragmatismo”. Essa afirmação
descarta a idéia de primazia entre as narrativas: quaisquer relatos, tanto
dos pragmatistas fundadores quanto dos demais integrantes desta
tradição, são passíveis de periodização, mas não de hierarquização, uma
vez que, em última instância, não seriam excludentes. Em segundo
lugar, ele afirma, a história do pragmatismo tem sido, desde os seus
primórdios até os dias atuais, “um conflito de narrativas”. Em terceiro
lugar, a história do pragmatismo também tem sido “um conflito de
metanarrativas” e que “há piores e melhores narrativas e
metanarrativas”, dentre as quais podemos escolher e argumentar pela
melhor. E, em quarto lugar, devemos compreender que a história
futura do pragmatismo, tenderá ao reconhecimento da “continuidade
de sua temática”, ou seja, ela será “uma contínua série de explicações e
controvérsias sobre persistentes temas pragmáticos” 90 . Essas quatro
proposições e não só a última, são perpassadas pelos temas pragmáticos:
o anti-fundacionismo, o falibilismo, o caráter social do eu e a
necessidade de criação de uma comunidade crítica de investigadores, a
contingência e a pluralidade.
A pluralidade de narrativas conflitantes, constituintes da
tradição pragmatista é exemplificada por Bernstein, em diversos
episódios – alguns dos quais mencionados nos itens anteriores, em
virtude da breve exposição sobre os pragmatistas clássicos. Ele cita a
conferência de James pronunciada à comunidade filosófica americana
em 1898, na qual introduz o termo pragmatismo, ampliando o sentido
original “do princípio de Peirce, o princípio do pragmatismo”; e cita

90
Bernstein, 1995, p. 55.
128 Heraldo Aparecido Silva

também a célebre e mordaz passagem no artigo What Pragmatism Is de


Peirce, em 1905, no qual execra os “raptores” do pragmatismo – James
e Schiller – e substitui o termo que lhe fora arrebatado pelo termo
alternativo pragmaticismo. Do mesmo modo, a situação pluralista
pragmática é ilustrada pela versão de Dewey sobre a tradição
pragmatista, no início dos anos 1920, no artigo O desenvolvimento do
pragmatismo americano. Todavia, Bernstein menciona ainda a
relutância de Dewey em usar a palavra pragmatismo para “caracterizar a
sua própria orientação” – a sua preferência recaiu sobre o termo
“instrumentalismo” 91 .
A essas narrativas conflitantes clássicas, juntam-se as narrativas
contemporâneas realizadas por Putnam, Haack, Rorty e pelo próprio
Bernstein que, ao polemizarem com seus pares filosóficos, priorizam a
contribuição de um ou outro pragmatista pioneiro. Todavia, isto não
significa que Bernstein, por exemplo, ignore a expressiva participação
de outros personagens na história do pragmatismo. Ao contrário, em
conformidade com o preceito de pluralismo pragmático, ele sustenta
que não existe “qualquer essência do pragmatismo” ou ainda um
“conjunto bem definido de compromissos ou preposições que todos os
assim chamados pragmatistas compartilham” 92 . Ao contrário, a
“riqueza e a difusão da tradição pragmatista” reside justamente na
“variedade de vozes e narrativas que contam a história do pragmatismo,
ainda que estas sejam “fortemente dissidentes” 93 .
Essa idéia de compreender o pragmatismo como sendo
constituído no transcorrer de várias épocas por narrativas e
metanarrativas diversas e conflitantes, também não significa esquivar-se
da questão referente à escolha entre a multiplicidade de narrativas e
metanarrativas existentes. Trata-se, porém, de defrontar-se com as
mesmas e eleger uma ou mais narrativas e metanarrativas em
detrimento de outras. Para isso, Bernstein afirma haver melhores e
piores narrativas e metanarrativas, dentre as quais é possível escolher
pragmaticamente. E exemplifica:

91
Bernstein, 1995, p. 57-59.
92
Bernstein, 1995, p. 61.
93
Bernstein, 1995, p. 61.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 129
Mas quero chegar ao que muitos outros podem considerar a parte mais
controversa de minha metanarrativa. Pois quero criticar o que ainda é
amplamente acreditado sobre a emergência e o declínio do pragmatismo.
Para ser deliberadamente provocativo, chamarei isto de história ‘nostálgica’ e
‘sentimental’ do pragmatismo. Ela é algo semelhante a isto: Outrora havia
uma idade de ouro da filosofia americana e do pragmatismo americano. Este
foi o tempo de gigantes intelectuais tais como Peirce, James, Royce,
Santayana, Dewey e Mead. A despeito de suas diferenças – e mesmo de seus
agudos antagonismos – eles todos compartilhavam um campo enorme de
interesses e audácia especulativa. Porém, houve um significativo declínio no
impulso criativo da filosofia americana e no pragmatismo americano. A
América foi invadida por influências estrangeiras – positivismo, empirismo
lógico, análise da linguagem ordinária, que eventualmente ficaram
coaguladas no convencimento ideológico do establishment analítico. No fim
da Segunda Guerra Mundial, os departamentos de filosofia – com poucas
exceções – foram transformados de modo que os assim chamados filósofos
americanos clássicos foram marginalizados. Aqueles que ainda levavam os
pensadores pragmatistas a sério encontraram-se na defensiva. [...] Assim,
mesmo quando filósofos que foram formados pelo ethos analítico usam o
termo pragmatismo favoravelmente, eles o esvaziam – certamente, o estripam
– do significado rico que ele tinha (Bernstein, 1995, p. 61-62).

Assim, escolher pragmaticamente significa ponderar sobre as


prováveis conseqüências que a assunção de determinadas narrativas
possa acarretar para a tradição pragmatista. Ao recordar a menção de
Bernstein aos ferimentos causados pelas batalhas ideológico-filosóficas e
sua crítica aos preconceitos que muitos de seus colegas nutrem contra o
uso filosófico da narrativa compreendemos o motivo que o faz sustentar
a divisão entre piores e melhores narrativas e metanarrativas.
Em relação ao episódio citado acima, Bernstein acredita se
tratar de uma “metanarrativa de ascensão e queda do pragmatismo” que
“distorce e obscurece os acontecimentos”. Algo que, “nos cega para
apreciar a continuidade dos interesses pragmáticos”; e, pior ainda,
“tende a reforçar um provincianismo despragmatizado e desliza para a
tentação de demonizar a filosofia analítica” 94 . Em suma, tais atitudes
são incompatíveis com o pluralismo que a tradição pragmatista advoga.
Ele conclui:

94
Bernstein, 1995, p. 62.
130 Heraldo Aparecido Silva

Não estou sugerindo que é inapropriado tentar especificar – como James,


Peirce, Dewey, Rorty, Putnam e mesmo eu fizemos – o que se deve tomar
como as características primárias de orientação pragmatista. Isto é essencial
para nosso “recontar argumentativo”. [...] Deveríamos precaver-nos de quem
exige que haja critérios fixos pelos quais possamos decidir quem é e quem
não é pragmatista. Tal fixação de fronteira não é somente não pragmatista,
freqüentemente é usada como um jogo de poder para legitimar pré-
julgamentos não examinados. E aqueles de nós que identificam a nós
mesmos com a tradição pragmatista devem estar alerta diante do abuso de tal
fixação de fronteira – pois isto tem servido para marginalizar o pragmatismo.
Parodiando ligeiramente as observações concluintes de Rorty em Philosophy
and the Mirror of Nature, eu diria: o único ponto sobre o qual nós devemos
insistir é que o interesse do pragmatista deve ser com a continuidade da
argumentação – continuar nosso recontar argumentativo do legado
pragmático que estará em conflito com outros recontar argumentativos. Este
é o modo pelo qual honramos o imperativo: Não bloquear o caminho da
investigação! (Bernstein, 1995, p. 67).

Em sua Resposta a Richard Bernstein, Rorty concorda com a


atitude bernsteiniana na qual “sempre há espaço para expandir tais
narrativas, alcançando mais alguém, incorporando figuras adicionais”.
Ele também afirma que, quando usa a recorrente – e bastante objetada
– frase “nós, pragmatistas” na construção de suas narrativas está, entre
outras coisas, “implicitamente dizendo: tentarei, nesta oportunidade,
ignorar as diferenças entre Putnam e Peirce, Nietzsche e James,
Davidson e Dewey, Sellars e Wittgenstein” 95 . Assim, a narrativa
rortyana privilegia as similaridades em detrimento das diferenças na
esperança de que surjam novos e importantes elementos em comum
entre os autores visados.

Considerações finais
A posição sustentada por Bernstein em relação ao pragmatismo não
encerra as polêmicas em torno das leituras controversas, das posturas
idiossincráticas e das aproximações intrigantes entre autores e áreas que,
através dos tempos, tematizam o pragmatismo e seus representantes.
Nessa perspectiva, os termos pragmatismo e neopragmatismo foram
usados para situar historicamente a tradição filosófica norte-americana
e para diferenciar o pragmatismo clássico da reconfiguração traçada por

95
Rorty, 1995, p. 68-69.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 131

Richard Rorty. Ainda que ele use ambos os termos, a primeira forma é
a mais recorrente em seus escritos, pois ele prefere acentuar os pontos
de convergência e minimizar os pontos de divergência entre os
pragmatistas originais e os contemporâneos, reforçando textualmente a
defesa de sua posição com a expressão “nós, pragmatistas...”.
Assim, embora a relutância de Rorty em se defrontar com a
tradição pareça encerrar tacitamente uma solução simplista que
consistiria em considerar as diferenças teóricas no pragmatismo apenas
como uma questão de mudança de época (a transição do século XIX
para o XX) e de objeto de estudo (a noção de experiência nos
pragmatistas clássicos para a noção de linguagem nos contemporâneos),
tal revisão do pragmatismo também pode ser lida, na transição do
século XX para o XXI, à luz de sua tentativa de redefinir a atividade
filosófica 96 . Portanto, essa reconfiguração histórica ou redescrição do
pragmatismo também pode ser vista como parte de um projeto maior
que envolve a redescrição da própria Filosofia.
No entanto, visto que estamos longe de encerrar a polêmica
entre pragmatistas e neopragmatistas acerca dos usos e abusos
cometidos na tradição, faz-se necessário recorrer à perspectiva
bernsteiniana, que não se arroga definitiva, mas é eficaz na tarefa de
auxiliar a compreender a abrangente filosofia pragmatista, acentuando-
lhe o aspecto pluralista e atribuindo-lhe um compromisso comum: a
manutenção e expansão do diálogo, ainda que seja através de vozes
dissonantes, mas igualmente responsáveis pela continuidade da
tradição.

Referências
BERNSTEIN, R. American Pragmatism: The Conflict of Narratives.
In: SAATKAMP Jr., H. J. (ed.). Rorty & Pragmatism: The Philosopher
Responds to his Critics. Nashville/London: Vanderbilt University
Press, 1995. p. 54-67.
_______. Pragmatism, Pluralism, and the Healing of Wounds. In:
MENAND, L. (ed.). Pragmatism. New York: Vintage, 1997. p. 382-
401.

96
Cf. Silva, 2008.
132 Heraldo Aparecido Silva

BORRADORI, G. The American Philosopher: Conversations with


Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto, Rorty, Cavell, MacIntyre,
and Kuhn. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1994.
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Apercepção versus percepção:
os espíritos na cosmologia leibniziana

Celi Hirata *

Resumo: Leibniz afirma que toda mônada expressa o universo inteiro de uma
determinada perspectiva. A partir daí, todas os seres criados harmonizam-se entre si,
já que todos representam o mesmo mundo, ao mesmo tempo em que cada um se
individualiza por meio de seu ponto de vista próprio que • afirma o autor em alguns
textos-chave • é determinado pelo lugar que o seu corpo correspondente ocupa.
Entretanto, se a limitação dos graus de distinção das representações se dá meramente
por uma analogia com o espaço e o tempo, como explicar a capacidade dos espíritos
de atingir as verdades necessárias e eternas e de constituir uma ciência? A fim de
elucidar esta sobrelevação e destacamento dos espíritos em relação aos demais seres
criados, introduziremos a atividade da apercepção e sua diferença em relação à
percepção, atividade comum a todas as mônadas.
Palavras-chave: Apercepção, Espíritos, Expressão, Percepção, Perspectiva

Abstract: Leibniz states that every monad expresses the hole universe from a
determined perspective. Therefore, all created beeings harmonize with each other,
once that all of them represent the same world, as well each one individuates itself by
means of its own point of view, which is determined by the place that its
correspondent body occupies. However, if the capacity of representation is merely
limited by space and time, how could one explain the capacity of spirits to grasp
necessary and eternal truths and to establish science? In order to make this point clear
I will introduce the aperception activity and distinguish it from the perception, that is
common to all monads.
Keywords: Aperception, Espirits, Expression, Perception, Perspective

1 A mônada e a sua perspectiva: integração e alteridade


Na Monadologia, obra de maturidade, Leibniz inicia o seu discurso
acerca da estrutura da realidade com a introdução dos elementos que
compõem e respondem pela consistência ontológica do mundo criado:
“a Mônada de que aqui falaremos não é outra coisa senão uma
substância simples, que entra nos compostos; simples quer dizer sem

*
Doutoranda pela USP. E-mail: celi_hirata@yahoo.com.br. Artigo recebido em
31.10.2008, aprovado em 18.12.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 135-166


136 Apercepção versus percepção...

partes” 1 Ou seja, o que caracteriza as substâncias na Monadologia é, em


primeiro lugar, a simplicidade ou ausência de partes, em contraposição
com a caracterização inicial dos Princípios da Natureza e da Graça, na
qual a substância é definida como ser capaz de ação ou no Discurso de
Metafísica, onde a substância individual é classicamente descrita como
sujeito de seus predicados.
Ora, uma vez que as mônadas constituem os últimos elementos
da realidade criada, cabe a estes seres simples responderem por toda a
riqueza e variedade observáveis no mundo, pois a realidade dos
compostos só pode provir de suas partes. Daí não ser contraditório,
mas muito pelo contrário, ser uma conseqüência da simplicidade da
mônada a sua complexidade enquanto ser inteiramente determinado.
Isto por uma dupla razão: em primeiro lugar porque, como apontado
por Leibniz no parágrafo sete da Monadologia, sendo as mônadas
simples, elas não podem ser alteradas mecanicamente por mudança de
proporção entre as partes, o que significa que as mudanças que nelas
ocorrem têm de provir delas mesmas. Ora, é justamente esta uma das
mais famosas afirmações de nosso autor: “as Mônadas não têm janelas
pelas quais algo possa entrar ou sair” 2 , mas são, ao contrário, seres nos
quais tudo brota de sua própria espontaneidade. Em segundo lugar,
deve-se recorrer ao critério geral de atribuição lógica, segundo o qual à
pluralidade dos predicados corresponde a unidade do sujeito: onde não
há um ser, não há um ser 3 , isto é, somente o que é uno pode ser real e
portar qualidades ou atributos.
Deste modo, as mônadas, conquanto simples, são seres dotados
de uma multiplicidade de produções a elas inerentes que, afirma
Leibniz na Monadologia, não podem consistir em nada além de
percepções e suas mudanças 4 , isto é, “o estado passageiro que envolve
ou representa uma multiplicidade na unidade” e “a ação do princípio

1
Monadologia, § 1, p. 131, in Discurso de metafísica e outros textos.
2
Monadologia, § 7, p. 132.
3
Carta de Leibniz a Arnauld, in Die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm
Leibniz (doravante referido pela sigla GP, seguido do volume e do número da
página), volume II, p. 97.
4
Monadologia, §17, p. 134.
Celi Hirata 137

interno que faz a mudança ou a passagem de uma percepção a outra” 5 ,


que o autor denomina apetição. Assim, se nas obras de dinâmica dos
anos de 1694 e 95, como na “Reforma da filosofia primeira e a noção
de substância” e no “Novo sistema da natureza e da comunicação das
substâncias”, o filósofo de Hannover caracteriza as substâncias
primordialmente pela noção de força, intentando com isso mostrar a
insuficiência da explicação puramente mecânica com relação às causas
dos fenômenos naturais, na Monadologia, ao definir a ação das
substâncias criadas como percepção e apetição, ele coloca em relevo o
jogo da singularidade com a pluralidade, determinando, deste modo, a
relação da unidade com o composto como representação ou expressão.
Segue-se disto que a percepção, por ser justamente a
multiplicidade na unidade, é o que garante a coerência e a identidade
da mônada tanto face à pluralidade de seus estados, quanto às demais
substâncias criadas que compõem este mundo: ora, uma vez que
nenhum ser real poderia subsistir sem qualidades 6 , sem agir
espontaneamente e continuamente, pois assim como “as ações
pertencem a sujeitos”, “a recíproca é verdadeira: os sujeitos agem sem
interrupção” 7 e posto que essas diferenciações no interior delas
consistem nas percepções e nas suas modificações, é preciso que esta
atividade representativa seja constante nas mônadas. As percepções,
provindo uma da outra por meio das apetições de maneira ininterrupta
e gradual, são o que garante a coesão entre os diversos estados da
mônada, já que cada uma, ainda que seja passageira, exprime não
somente todas as passadas, mas também as futuras 8 e, se pensarmos a
substância criada e suas qualidades na chave do sujeito e seus
predicados, como é dada a conhecer no Discurso de Metafísica, a
sucessão seqüenciada das representações dos compostos na unidade é o
que propicia, por meio da explicitação contínua da inerência dos
predicados a um mesmo sujeito, a afirmação da identidade da mônada
no decorrer do tempo.

5
Idem, § 14 e 15, p. 133.
6
Idem, §8, p. 132.
7
“De Ipsa Natura”, § 9, in Escritos Filosoficos, p. 491.
8
Monadologia, §22, p. 135.
138 Apercepção versus percepção...

Mas mais ainda, a percepção e a apetição, que fazem com que a


mônada represente o que está no seu exterior, garantem também a
coerência de cada uma com todas as demais, realizando não só a
sucessão temporal dos predicados na substância criada, como também,
por assim dizer, a coesão na ordem das coexistências, isto é, no espaço 9 ,
já que através da representação as mônadas harmonizam-se entre si.
Sendo multiplicidade na unidade, a percepção envolve o universo
inteiro com todas as suas relações e o estado interno de cada mônada
expressa o estado de todas as demais. Ora, de modo a existir como um
conjunto ordenado, isto é, como um mundo (e mais ainda: como o
melhor dos mundos possíveis), é preciso que todas as suas partes e
elementos reportem-se entre si, mantendo uma correlação regrada. E, se
as mônadas não envolvessem a referência a outras, elas não
representariam nada e não teriam qualquer função 10 . Daí ser o
pertencimento das criaturas a um mesmo mundo viabilizado pela
identidade do referente de percepção de todas as mônadas, sendo o
universo inteiro o conteúdo representado em cada estado interno da
substância finita, de modo que haja uma harmonia entre todos os seres
deste mundo.
Constitui, porém, um dos principais princípios da metafísica
leibniziana o da identidade dos indiscerníveis, segundo o qual dois seres
nunca podem ser absolutamente idênticos – “é preciso mesmo que cada
Mônada seja diferente de cada uma das outras. Pois nunca há na
natureza dois Seres que sejam perfeitamente iguais um ao outro e nos
quais não seja possível encontrar uma diferença interna ou fundada em
uma denominação intrínseca”. 11 Entretanto, uma vez que só se
encontram nas mônadas percepções e suas modificações e uma vez que
todas as substâncias criadas representam o mesmo universo, isto é,
todas possuem o mesmo conteúdo perceptivo, como é que elas podem
diferir entre si? Dito de outra forma, como garantir a alteridade de cada
ser face à identidade que impregna os estados internos de cada um,

9
Disto tratarei depois.
10
Carta de Leibniz à princesa Sofia, in GP VII, p. 556.
11
Monadologia, §9, p. 132.
Celi Hirata 139

dado que todas as criaturas representam a mesma coisa, isto é, o


mundo?
É aí que a consideração do ponto de vista próprio a cada
criatura mostra-se fundamental. Se a percepção, multiplicidade na
unidade, é o que garante a identidade da mônada face à pluralidade,
não só de seus estados internos ou predicados, mas também das
infinitas mônadas que compõem este mundo, é porque, com relação às
percepções, apesar da identidade do conteúdo representado, a maneira
como cada uma o faz é essencialmente diferente das demais: “cada
Mônada é um Espelho vivo, ou dotado de ação interna, representativo
do universo, segundo seu ponto de vista”. 12 Segundo seu ponto de vista
quer dizer: de uma maneira que lhe é própria e que a distingue de todas
as demais, fazendo com que a representação de cada uma possua uma
determinada ordem, uma lei de desenvolvimento distinta de todas as
demais. Assim, no plano da consideração da mônada, a qualidade de
representar o mundo inteiro de uma determinada perspectiva é o que
permite conciliar a sua inclusão no cosmos com a sua inalienável
identidade: ao mesmo tempo em que cada substância criada se coaduna
com todas as demais por meio da expressão comum, que possui o
mesmo referente, visando o mesmo objeto de representação, ela
mantém sua alteridade, já que a maneira como ela o faz não se
identifica com nenhuma outra, mas faz a sua marca própria.
Que a qualidade de representar de uma determinada
perspectiva própria o universo inteiro, com todos os seus
acontecimentos, seja o que garanta à substância criada, considerada nela
mesma, tanto a sua inserção harmônica no mundo, por um lado,
quanto a sua identidade ou, o que é o mesmo, alteridade face às
demais, por outro, parece no momento parcialmente esclarecido.
Permanece ainda, entretanto, a questão de como é que as mônadas
chegam a possuir essa propriedade, isto é, como se explica que as
criaturas, que são seres finitos, possam exprimir o infinito. E também
fica em aberto a pergunta inversa: como é que, envolvendo o infinito,
as mônadas permanecem limitadas e não se tornam deuses? Já ficou

12
Princípios da Natureza e da Graça, §3, in Discurso de Metafísica e outros textos, p.
154 (itálicos meus).
140 Apercepção versus percepção...

afirmado que apenas um ser uno e indivisível pode ser real e portar
determinações, entretanto, não se compreende ainda isto: como sucede
às mônadas, seres simples ou, como Leibniz também as denomina,
pontos metafísicos, espelhar o mundo inteiro, sendo que a cada estado
interno dela corresponde os estados das demais partes do universo,
universo que é, por sua vez, infinito? E ainda: como é que a perspectiva
de cada substância criada é determinada? É a estas questões que o nosso
autor pretende responder no seguinte trecho da Monadologia:

E nisto os compostos simbolizam os simples. Pois como tudo é pleno, e toda


a matéria, por conseguinte, ligada, e como no pleno todo movimento
produz algum efeito sobre os corpos distantes, segundo a distância, de
maneira que cada corpo é afetado não só por aqueles que o tocam,
ressentindo-se de algum modo de tudo o que lhes ocorre, como também por
meio destes ressente-se ainda dos que tocam os primeiros com os quais está
imediatamente em contato. Donde se segue que esta comunicação atinge
qualquer distância. E por conseguinte todo corpo ressente-se de tudo o que
se faz no universo, de tal modo que aquele que tudo visse poderia ler em
cada um o que se faz em toda parte, e mesmo o que ocorreu e o que
ocorrerá, observando no presente o que está distante tanto nos tempos como
nos lugares (...) Assim, ainda que cada Mônada criada represente todo o
universo, ela representa com maior distinção o corpo que lhe é
particularmente afetado e cuja enteléquia constitui; e como esse corpo
expressa todo o universo pela conexão de toda a matéria no pleno, a Alma
representa também todo o universo ao representar este corpo que lhe
pertence de maneira particular 13

Neste trecho, Leibniz parece inverter a ordem de causação que


está exposta nos parágrafos iniciais desta mesma obra – se lá, ele
argumenta que a realidade dos divisíveis só pode advir dos que são
indivisíveis, isto é, os agregados só podem compor-se de ingredientes
simples, discursando, assim, acerca daqueles a partir destes, aqui ele
parte do que se dá nos compostos para dar conta do que ocorre no
interior das mônadas: neste ponto de sua Monadologia, o filósofo
recorre a princípios provenientes da mecânica, a saber, que o
movimento se propaga por meio do contato e que, de acordo com a
inércia, ele difunde-se com intensidade proporcional aos obstáculos que

13
Monadologia, § 61 e 62, p. 142 e 143, itálico meu.
Celi Hirata 141

se lhe impõem, para explicar tanto por que as mônadas percebem tudo
o que lhe é exterior como a razão pela qual elas representam de um
modo determinado, que é, notadamente, com maior distinção ao que
está próximo ao corpo que lhe pertence de maneira particular, sendo
que ela expressa tanto mais confusamente quanto maior é a distância
do que está representado. Assim, supondo-se, além dos princípios
mecânicos acima mencionados, que toda substância criada exprime
particularmente o corpo do qual é enteléquia e que o universo é pleno
de corpos, explica-se a propriedade da mônada de envolver em si
mesma, através de suas representações ou percepções, o infinito,
considerado tanto espacialmente, com relação às distâncias, quanto
temporalmente, já que no mundo tudo é inteiramente ligado, sendo o
presente carregado do passado e prenhe do futuro. Daí poder a mônada
ser pensada “como um centro expressivo ou ponto no qual, por mais
simples que seja, existem uma infinidade de ângulos formados pelas
linhas que para ele convergem”. 14
Mas não se pode esquecer que Leibniz, contrariamente a
empiristas como Locke, é um inatista que recusa a influência nas
mônadas do que provém do exterior. Com efeito, o nosso autor afirma
no já citado sétimo parágrafo da Monadologia, que as mônadas não
possuem janelas: qualquer tipo de influência ou comunicação que haja
entre elas só pode ser ideal e de modo algum real 15 . Assim, quando se lê
com mais cuidado o trecho supracitado, vê-se que o autor emprega o
termo “simbolizam” para caracterizar a relação entre os compostos e os
simples, o que quer dizer, que os corpos e o efeito que a propagação do
movimento neles causa expressam o que se dá nas substâncias criadas.
Com isso, pois, o autor não quer defender que o que ocorre naqueles
seja a causa ou o fundamento do que se dá nestas. Dito de outra forma,
trata-se de uma analogia que visa pôr em relevo que a maneira como
cada corpo é afetado pelos demais corresponde ao modo como cada
alma representa o mundo inteiro de uma perspectiva, perspectiva que
expressa o lugar onde o corpo está situado. Ainda que, no rigor
metafísico, as substâncias sejam perfeitamente espontâneas, consistindo

14
Princípios da Natureza e da Graça, § 2, p. 154.
15
Monadologia, § 51, p. 140.
142 Apercepção versus percepção...

toda mudança sua numa conseqüência de seu estado interno anterior, é


pertinente referir-se aos corpos e suas modificações na medida em que
as percepções na mônada mantêm uma relação constante e regrada –
relação que constitui justamente a expressão 16 – com as coisas que estão
fora dela, isto é: os estados internos da substância simples desenvolvem-
se de maneira coerente com os acontecimentos do mundo, dando-se
uma simultaneidade entre o representante e o representado.
Ora, é justamente isto que Leibniz pretende afirmar com a sua
hipótese da harmonia preestabelecida, que visa dar conta do problema
da relação entre alma e corpo que fora inaugurado pelo dualismo
cartesiano. Com ela, o filósofo de Hannover intenta fornecer uma
explicação que escape tanto à via vulgar, segundo a qual há uma real
comunicação entre alma e corpo, que ele não pode aceitar já que o que
não tem partes e o que é extenso não são comensuráveis entre si,
quanto à dos ocasionalistas, seguidores de Malebranche – que Leibniz
enquadra sob a denominação de “cartesianos” – , que defendem que o
acordo entre ambos se dá mediante uma intervenção divina pontual, o
que, para o nosso autor, introduziria no mundo uma irregularidade que
é incompatível com a sabedoria divina: tratar-se-ia, nesta hipótese, de
um milagre perpétuo, já que as ações ultrapassariam a força das
criaturas. Por isso, Leibniz defende que a concordância entre alma e
corpo se dá porque Deus regrou, de uma vez por todas, todas as
substâncias criadas de modo que elas correspondam entre si, sem que
haja qualquer tipo de influência de uma sobre a outra. Assim, enquanto
as outras hipóteses supõem a interferência entre causa final e causa
eficiente, a de Leibniz dá conta da experiência, que mostra haver uma
relação entre ambas, ao mesmo tempo em que salvaguarda a
independência de uma em relação a outra, sendo que a seqüência
regrada das percepções da alma, na qual uma passa à outra engendrada
pelas causas finais da apetição, está em conformidade por um certo
paralelismo com a série dos eventos físicos desencadeados pela
causalidade eficiente, sem que haja interferência real entre uma e outra,
já que este sincronismo se dá porque Deus regulou ambas as seqüências
de forma que elas correspondam entre si. Daí a razão da substância

16
Carta de Leibniz a Arnauld de 09 de outubro de 1687,in GP II, p 112.
Celi Hirata 143

criada expressar o universo inteiro de um determinado ponto de vista


só poder ser efetivamente encontrada no momento da criação, quando
Deus elege a melhor combinação de essências à existência:

Ocorre que é preciso dizer que Deus criou primeiramente a alma ou


qualquer outra unidade real de maneira que tudo nasça nela de seu próprio
fundo mediante uma perfeita espontaneidade a respeito de si mesma e, não
obstante, com uma perfeita conformidade com as coisas externas (...)
Portanto, é preciso que essas percepções internas à alma mesma ocorram
devido à sua própria constituição original, isto é, à sua natureza
representativa (capaz de expressar os seres que são externos a seus órgãos)
que lhe foi concedida desde que foi criada e que constitui seu caráter
individual. 17

Ou seja, este princípio representativo que é constitutivo de cada


mônada, dotando-lhe de individualidade, possui a sua origem em
Deus. Se é verdadeiro que a natureza de cada substância simples já
esteja fundamentada na sua essência, que se encontra no entendimento
divino e possui alguma realidade independentemente da gênese do
mundo 18 , o fato das representações das mônadas existentes serem as
mais coerentes e harmônicas possíveis entre si se dá porque Deus elegeu
à criação o melhor dos mundo possíveis, isto é, o conjunto de essências
que contém o máximo de variedade com a maior ordem ou harmonia
possível, de tal modo que possa ser observado no universo que um
fenômeno causa outro, assim como a ação de uma criatura corresponde
à paixão de uma outra. Se tudo, enfim, relaciona-se da maneira a mais
regrada, é porque Deus não cria as substâncias isoladamente, mas em
cada parte entra a consideração do conjunto e vice-versa.

E por isto as ações e paixões entre as criaturas são mútuas. Pois Deus, ao
comparar duas substâncias simples, encontra em cada uma delas razões que o
obrigam a acomodá-la a outra; e, por conseguinte, o que é ativo em certos
aspectos é passivo de outro ponto de vista (...) Ora, esta ligação ou
acomodação de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as
outras faz com que cada substância simples tenha relações que expressem

17
“Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias, assim como da união
que há entre a alma e o corpo”, in Escritos Filosoficos, p. 468.
18
Monadologia, § 43, p. 138 e 139.
144 Apercepção versus percepção...

todas as outras, e que seja, por conseguinte, um espelho vivo perpétuo do


universo. 19

Assim, a propriedade da mônada de espelhar o universo inteiro


de uma determinada perspectiva fundamenta-se na vontade divina, na
medida em que é uma propriedade que se reporta ao todo do mundo
criado. Como tudo que existe, esta qualidade que caracteriza as
mônadas pode ser interpretada anagogicamente, isto é, como uma
expressão mundana do divino, já que é conseqüência do princípio do
melhor. Com efeito, Leibniz afirma no Discurso de Metafísica que se
pode descobrir o obreiro pela consideração de suas realizações 20 e
sustenta, no de sugestivo nome “Essay anagogique dans la recherche des
causes” 21 , que tudo o que ocorre na natureza sempre conduz, em
última análise, à consideração de Deus, sendo que a realidade existente
consiste no melhor dos mundos possíveis, o que quer dizer – na
concepção fortemente impregnada pela matemática do nosso autor, que
considera o ótimo na chave do máximo e do mínimo – o mais rico em
efeitos com a maior ordem possível: Deus elege o mundo que contém o
máximo de essências, isto é, que permite o maior número de seres
compossíveis entre si, com a maior harmonia possível no conjunto.
Sendo resultado da bondade divina, isto é, da vontade guiada pela
suprema sabedoria, o universo existente é inteiramente determinado
pelo inteligível, não havendo espaço para o irracional, pois tudo
contribui para a perfeição. Por isso, cada elemento da realidade precisa
colaborar com os requisitos de copiosidade, por um lado, e de
economia, por outro.
Ora, é justamente a estes critérios que a substância criada
enquanto espelho vivo do universo inteiro de um determinado ponto
de vista obedece, pois, deste modo, subsiste o máximo de variedade
com a maior harmonia possível, já que a homogeneidade é conciliada
com a alteridade – ao mesmo tempo em que todas representam o
mesmo mundo, mantendo homogeneidade quanto ao referente, elas
produzem a maior copiosidade pelas diferentes perspectivas que estão

19
Monadologia, §52 e 56, p. 140 e 141.
20
Discurso de Metafísica, §2, in Discurso de Metafísica e outros textos, p. 4.
21
In GP VII, p.270.
Celi Hirata 145

regulamentando essas expressões. “Assim, de certo modo, o universo é


multiplicado tantas vezes quantas substâncias houver, e a glória de
Deus igualmente multiplicadas por todas essas representações de sua
obra completamente diferentes”. 22 Ou seja, como todas as substâncias
criadas representam o mesmo universo, elas contribuem, enquanto
elementos constituintes desta totalidade, para o máximo de coesão
entre as partes e de unidade da realidade existente. Mas, além disso, ao
espelharem o mundo de maneira essencialmente diversa uma da outra,
as criaturas fazem com que, simultaneamente, o universo seja
multiplicado ao máximo em variedade. Em outras palavras, trata-se do
máximo de efeito com a maior ordem possível ou, ainda, o máximo de
determinação com a maior economia: em cada átomo espiritual reside
o máximo de determinação no mínimo de espaço, por assim dizer. Daí
a atividade expressiva das mônadas, ao cumprir os requisitos de
existência no melhor dos mundos possíveis, poder satisfazer dois
ditados que aparentemente são inconciliáveis: por um lado, c’est ailleurs
tout comme ici, ou seja, há uma uniformidade de fundo na natureza,
por outro, che per variar natura è bella 23 – há tantas visões do universo
quanto há diferentes substâncias criadas.

2 A perspectiva da mônada como derivação da onisciência divina


O perspectivismo pode ser concebido anagogicamente não somente em
relação à vontade divina, isto é, como conseqüência do princípio do
melhor, mas também relativamente ao seu entendimento. Assim como
na prova ontológica fornecida por Leibniz 24 há um movimento de
ascensão, sendo que, na ausência de outro meio para pensar as
perfeições divinas, elas são concebidas em analogia com as nossas, mas
em grau infinito, também o fundamento da natureza representativa de
todas as substâncias criadas deve ser procurado naquilo que possui esta
mesma perfeição de forma eminente: “a causa pela qual sucede que
todas as mentes estejam relacionadas ou expressem o mesmo e existam

22
Discurso de Metafísica, §9, p. 18.
23
Carta de Leibniz à rainha Sofia – Carlota de 08 de maio de 1704, in GP III, p. 348.
24
Monadologia, §30, p. 136.
146 Apercepção versus percepção...

de tal maneira, é aquela que expressa perfeitamente, isto é, Deus”. 25 É


importante notar que a Divindade não é aqui pensada pelo viés da sua
vontade, pois não se trata de justificar moralmente a aptidão natural
que as substâncias criadas têm de expressar o universo inteiro de um
determinado ponto de vista, mas de designar qual o original de onde
emanam estas variações. O que Leibniz indica, portanto, no trecho
acima citado, é que a faculdade perceptiva das mônadas provém da
onisciência divina, que consiste no grau máximo de conhecimento:

Deus produz diversas substâncias conforme as diferentes perspectivas que


tem do universo e, por sua intervenção, a natureza própria de cada
substância implica que o que acontece a uma corresponda ao que acontece a
todas as outras, sem que ajam imediatamente umas sobre as outras (...) Pois
Deus, virando, por assim dizer, de todos os lados e maneiras o sistema geral
dos fenômenos que considera bom produzir para manifestar a sua glória, e
observando todos os aspectos do mundo de todas as formas possíveis
(porque não existe nenhuma relação que escape à sua onisciência), faz com
que o resultado de cada visão do universo, enquanto contemplado de um
certo lugar, seja uma substância expressando o universo conforme a essa
perspectiva, desde que Deus ache conveniente realizar o seu pensamento e
produzir esta substância. E como a visão de Deus é sempre verdadeira, as
nossas percepções igualmente o são, mas nossos juízos, que são apenas
nossos, nos enganam. 26

Assim, as diferentes expressões que as mônadas possuem


consistem em derivações da onisciência divina. Dito de outra forma,
cada perspectiva do universo, que realiza, como já se enfatizou, a
inserção e a individualidade da substância criada, é uma limitação da
visão incondicionada da totalidade. A Des Bosses 27 , Leibniz afirma que
a diferença entre as nossas representações e as divinas é da mesma
ordem que há entre a cenografia e a iconografia: enquanto as cenografias
são diversas em função da posição do espectador, a iconografia ou
representação geométrica é única. Esta comparação é também utilizada
em relação a uma cidade que é multiplicada perspectivamente pelas

25
“Sobre o modo de distinguir os fenômenos reais dos imaginários”, in Escritos
Filosoficos, P. 269.
26
Discurso de Metafísica, § 14, p. 29 (itálicos meus).
27
Apêndice à carta de 05 de fevereiro de 1712, in GP II, p. 438.
Celi Hirata 147

diferentes situações daquele que a observa, metáfora que Leibniz repete


em diferentes obras. 28 Ou seja, enquanto as mônadas possuem uma
visão da realidade condicionada pela perspectiva própria, perspectiva
que nada mais é do que uma situação no mundo, como é explicitado na
analogia que Leibniz faz entre a faculdade perceptiva das substâncias
criadas e a propagação do movimento que afeta os corpos, o que dá a
razão por que as percepções variam conforme as relações de espaço e de
tempo, Deus não possui qualquer ponto de vista, o que significa que vê
de modo inteiramente diverso das criaturas: é como um centro em toda
parte, mas cuja circunferência não se encontra em parte alguma 29 . Mas,
ao mesmo tempo poderia ser também dito, como indica Leibniz no
trecho supracitado, que a divindade possui a soma destes pontos de
vista, com os quais cria as diferentes mônadas. Por isso a atividade
representativa de cada substância criada implica a de todas as demais,
pois consistindo em diferentes perspectivas que Deus possui do
universo que decide criar, elas são relances distintos de um invariante
comum. Desta maneira, as infinitas perspectivas existentes – pois há,
notadamente, infinitas substâncias simples no mundo – ainda que
sejam todas diferentes entre si, “são apenas as perspectivas de um só” 30 ,
isto é, consistem em variações do mesmo. Daí explica-se a
correspondência dos distintos pontos de vista ou a razão pela qual pode
haver uma interação, ainda que ideal, entre as diversas substâncias
criadas: mesmo que as expressões não se identifiquem, elas são,
contudo, proporcionais entre si 31 .
Ainda desta forma, pode-se afirmar que as expressões que as
mônadas possuem do universo são sempre verdadeiras, já que, uma vez
que consistem em diferentes derivações da visão divina, estas
percepções não poderiam envolver falsidade. Ora, uma vez que o
fundamento da atividade expressiva das criaturas radica na onisciência

28
Por exemplo, Monadologia, § 57, Discurso de Metafísica, § 9, carta de Leibniz a
Remond de julho de 1714.
29
Princípios da Natureza e da Graça, § 13, p. 161.
30
Monadologia, § 57, p. 141.
31
Discurso de Metafísica, § 14, p. 30. É isto mesmo que caracteriza a expressão: uma
relação constante regrada entre o que se pode dizer de um dos termos da relação e o
que se pode dizer do outro, relação que não implica identidade, mas analogia.
148 Apercepção versus percepção...

divina, suas produções não lhe poderiam ser contrárias – sendo um


determinado aspecto da visão de Deus, as expressões das substâncias
criadas devem comportar consigo este caráter de veracidade. Mas, se é
assim, como dar conta da origem do erro? Como Leibniz afirma no
trecho aqui destacado, o erro e o engano não provêm das percepções,
que se derivam da visão de Deus e são sempre verdadeiras, mas sim dos
juízos, que são apenas nossos. Ora, tratar-se-ia da mesma posição da de
Descartes, que localiza a origem do erro não na percepção considerada
nela mesma, mas sim no juízo. Classificando os tipos de pensamentos
que estão na mente, o autor das Meditações discerne as idéias, que são
como puros quadros, isto é, puras imagens das coisas, que em si
mesmas não envolvem qualquer falsidade, dos juízos, que são mais do
que puras representações e envolvem a ação do espírito de afirmar ou
negar 32 . Essa distinção, por sua vez, recai na separação entre
entendimento e vontade: enquanto aquele é limitado e não pode
abarcar o infinito, esta é o que faz os homens serem a imagem e
semelhança de Deus, já que não possui limites. Como o juízo envolve
ambos, é a operação do pensamento que é suscetível de erro, pois
“sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu
não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas
que não entendo”. 33
Entretanto, se a atribuição do erro ao juízo é comum tanto a
Descartes como a Leibniz, o que está por trás de tal atribuição não pode
ser o mesmo. Nos Novos Ensaios, diante da afirmação de Locke-Filaleto
de que o erro provém na maior partes das vezes do juízo (jugement),
que apesar de razões contrárias serem manifestas, dá assentimento a
uma proposição ou, ao contrário, suspende-se em relação a algo
malgrado haver razões para afirmá-lo 34 , Leibniz limita-se a dizer que há
outras definições para “juízo”, mas aceita tomar os termos de seu
debatedor. Porém, em outra parte da mesma obra, o nosso autor define
o juízo como o exame das proposições segundo a razão 35 – afinal, a arte
de julgar consiste justamente na análise das proposições. Trata-se,

32
Descartes, Meditações, terceira meditação, § 9.
33
Idem, quarta meditação, § 10.
34
Novos Ensaios, Livro IV, cap XX, § 7, in Leibniz (II), Coleção Os Pensadores.
35
Idem, Livro II, cap XI, § 2.
Celi Hirata 149

portanto, de um outro sentido do que aquele que Descartes e Locke a


ele atribuem, já que, para o filósofo de Hannover, o juízo denomina
uma atividade intelectual que se orienta (exclusivamente) segundo a
razão.
De qualquer forma, no contexto da filosofia leibniziana, não faz
qualquer sentido a atribuição de uma extensão maior à vontade em
relação ao entendimento, que seria ultrapassado por aquela. Em
primeiro lugar, a própria representação que os espíritos, bem como as
demais criaturas, possuem consistem num relance da visão divina, isto
é, são variações de sua onisciência, envolvendo, de certo modo, o
infinito. Em segundo lugar, para Leibniz, a indeterminação e a
independência da vontade em relação ao entendimento, que Descartes
supõe haver, não pode ter lugar, de forma que a origem do erro não
pode ser explicada da mesma maneira, já que a vontade humana
escolhe conforme às representações que se possui, sendo que a
concepção da liberdade de indiferença é para o filósofo alemão
totalmente quimérica e ilusória. Entretanto, tal como Descartes, que
explica o erro como uma desproporção, isto é a transcendência da
vontade em relação ao entendimento, para Leibniz o erro consistirá, de
certa forma, em um descompasso também, que, no entanto, será de um
outro tipo, a saber, entre a intensidade e a extensão da percepção, como
se verá logo a seguir.
Continuando, entretanto, na questão de como as substâncias
criadas em geral limitam-se, convém perguntar: uma vez que as
criaturas carregam em si a marca da onisciência, expressando o universo
inteiro, como ocorre que elas não se tornem deuses? Se todas as
percepções das criaturas são verdadeiras, como o é a visão de Deus, de
onde vem a limitação? Ora, é justamente porque, como Leibniz afirma
no parágrafo supracitado do Discurso de Metafísica, a expressão das
substâncias finitas consiste num determinado lado ou maneira pela qual
o sistema geral dos fenômenos se manifesta, isto é, é a contemplação do
universo existente de uma determinada perspectiva, a saber, como já foi
mencionado, a partir do seu corpo orgânico correspondente. É pela
150 Apercepção versus percepção...

atribuição de um corpo 36 que as mônadas se limitam, pois todo corpo


tem uma situação, que condiciona as percepções segundo o espaço e o
tempo, como já se disse. Ora, todo o sistema, isto é, tanto os corpos
como o que é imaterial, têm de ser entr’expressivos para que a
harmonia sempre subsista. Assim, é deste modo que as mônadas não se
tornam deuses e permanecem na finitude. Com efeito, a visão que elas
possuem, ainda que total, é parcial: engloba o universo inteiro, mas
depende da parte que lhe corresponde no mundo.

Deus, ao regular o todo, considerou cada parte e particularmente cada


Mônada; cuja natureza sendo representativa não poderia ser limitada, por
coisa alguma, a representar só uma parte das coisas, ainda que seja verdade
que essa representação seja apenas confusa quanto ao detalhe de todo o
universo, e distinta apenas em uma pequena parte das coisas, isto é, naquelas
que são ou as mais próximas ou as maiores com relação a cada uma das
mônadas; de outro modo cada Mônada seria uma Divindade. Não é no
objeto, mas na modificação do conhecimento do objeto, que as Mônadas são
limitadas. Todas elas tendem confusamente ao infinito, ao todo; mas são
limitadas e distinguem-se pelos graus de percepções distintas 37 .

Ou seja, embora o objeto da percepção seja infinito, pois refere-


se ao universo inteiro com todas as seus acontecimentos e relações, a
capacidade de representá-lo com distinção é finita e limitada pela
situação que é assinalada a cada criatura. Deste descompasso entre a
extensão infinita e a intensidade essencialmente finita da representação
que se encontra na mônada, ou ainda entre o apetite – que consiste na
mudança de uma percepção a outra – e a própria representação, nasce a
confusão 38 . Assim, embora toda percepção seja verdadeira, a maioria

36
De fato, todos os seres criados, sem exceção, incluindo-se aí os anjos e os gênios,
possuem um corpo. A diferença é que os anjos possuem um corpo mais sutil do que
o nosso (Teodicéia, § 249, in GP VI, p. 265).
37
Monadologia, § 60, p. 142 (itálicos meus).
38
“A ação do princípio interno que faz a mudança ou a passagem de uma percepção a
outra pode ser chamada Apetição; é verdade que o apetite nem sempre pode alcançar
inteiramente toda a percepção a que tende, mas sempre obtém algo dela e chega a
percepções novas” (Monadologia, § 15, p. 133). Apesar de poder parecer que o
descompasso aqui em questão é aquele mesmo apontado por Descartes, a saber,
entre vontade e entendimento (apetite e representação), trata-se, na realidade, da
Celi Hirata 151

delas é confusa. Isto é: as mônadas tendem ao infinito, mas são


incapazes de compreendê-lo por causa de sua limitação original. Para
dar uma idéia do que é esta confusão presente na representação das
criaturas, Leibniz lança mão nos Princípios da Natureza e da Graça de
uma comparação com a experiência que nós possuímos quando
andamos junto à orla da praia 39 . Conquanto nós sejamos afetados pelo
conjunto dos barulhos produzidos pelas ondas do mar, isto é, tenhamos
a aptidão de perceber, por assim dizer, a totalidade do que nos
impressiona, somos, contudo, incapazes de discernir o barulho
particular de cada vaga. Do mesmo modo, as substâncias criadas
representam o infinito, o universo, mas não podem perceber com
acuidade todas as coisas que nele estão contidas. É por isso que neste
mesmo parágrafo dos Princípios, o autor nos expõe uma outra bela
imagem acerca deste jogo entre finito e infinito, entre o atual e o
virtual: “poderíamos reconhecer a beleza do universo em cada alma se
pudéssemos desdobrar todas as sua dobras, que só se desenvolvem
sensivelmente no tempo”, assim “cada percepção distinta da alma
compreende uma infinidade de percepções confusas que envolvem todo
o universo”. 40 Por esta razão, Leibniz diz no trecho supracitado da
Monadologia que é na modificação do conhecimento do objeto que as
mônadas são limitadas, porque, tendendo ao infinito e de certa maneira
englobando-o, a maioria de suas percepções permanecem envolvidas,
virtuais, isto é, implicadas em suas dobras, que estão na dependência do
tempo para se desenvolver. Ora, é então desta confusão que provém o
erro: não da transcendência do ato da vontade em relação ao alcance do
entendimento, tal como Descartes explica com base na sua definição de
juízo, mas na limitação da própria representação. Afinal, para Leibniz, a
cada percepção distinta, corresponde uma infinidade de confusas. E
esta percepção distinta é o que mais caracteriza particularmente cada
mônada em relação às demais, pois se absolutamente tudo caísse na
confusão, tudo recairia também na indistinção. As mônadas, com efeito,

desproporção entre o horizonte implicado na expressão da mônada e a sua efetiva


explicitação, como se comentará a seguir.
39
Princípios da Natureza e da Graça, § 13, p. 160. Comparação também presente em
Discurso de Metafísica, §33.
40
Idem.
152 Apercepção versus percepção...

distinguem-se pelos graus de percepções distintas. Mas vejamos se isso é


relativo apenas ao lugar e ao momento no qual se situa a substância
criada no universo ou se já envolve uma outra questão.

3 A escala dos seres


Anteriormente, vimos como as mônadas, por um lado, harmonizam-se
entre si na medida em que todas representam o mesmo universo, já que
todas as substâncias criadas possuem o mesmo conteúdo perceptivo ou
o mesmo referente. Ao mesmo tempo, por outro lado, elas distinguem-
se entre si e salvaguardam sua identidade face às demais pela maneira
como elas o expressam. Assim, ficou em aberto como seria esta maneira
ou perspectiva pela qual uma é diferente da outra. Ora, depois foi
citado o trecho da Monadologia no qual Leibniz expõe que este modo
como as mônadas expressam o universo é análogo ao modo como os
corpos são afetados pelos movimentos que os demais corpos realizam
no mundo. Isto porque Deus regrou todo o cosmo de modo que tudo
seja coerente entre si, o que faz com que a seqüência dos movimentos
nos corpos corresponda à seqüência das percepções nas almas e vice-
versa, ou seja, aquilo que o nosso autor chama de harmonia
preestabelecida. Também no trecho citado do parágrafo quatorze do
Discurso de Metafísica, Leibniz, ao explicitar que a atividade expressiva
das substâncias criadas é uma certa visão derivada da onisciência divina,
determina que as perspectivas consistem em diferentes relances pelos
quais o sistema de fenômenos é pensado por Deus, ou seja, suas
expressões são uma limitação da visão divina por meio da situação que
elas possuem no mundo. Entretanto, esta limitação apresentada por
meio dos graus de distinção que acompanham as representações das
mônadas, não diz respeito exclusivamente às suas determinações
espaciais e temporais, através dos quais expressa com mais distinção o
que lhe é próximo no espaço e no tempo, mas também em outro
sentido, a saber, com relação à mônada mesma, isto é, ao tipo de ser
que ela constitui. No quarto parágrafo dos Princípios da Natureza e da
Graça, Leibniz apresenta esta escala de seres que constituem o mundo
atual, escala que também é apresentada do parágrafo vigésimo quarto
ao vigésimo nono da Monadologia:
Celi Hirata 153
Cada Mônada, com seu corpo particular, constitui uma substância viva.
Desse modo não só há vida em toda parte, incorporada nos membros ou
órgãos, como também há uma infinidade de graus entre as Mônadas, e umas
dominam mais ou menos as outras. Mas, quando a Mônada tem órgãos tão
ajustados que graças a eles ganham relevo e distinção as impressões que eles
recebem e, por conseguinte, também as percepções que os representam (...),
então se pode chegar até o sentimento, quer dizer, até uma percepção
acompanhada de memória, isto é, uma percepção cujo eco perdura durante
muito tempo, fazendo-se ouvir na ocasião apropriada; tal vivente é chamado
animal e sua Mônada é chamada alma. E quando esta Alma se eleva até a
Razão, ela é algo mais sublime e pode ser incluída entre os espíritos. 41

Assim, Leibniz discerne os diferentes tipos de ser com base em


propriedades que acompanham suas representações ou, o que é o
mesmo, de acordo com as diferentes espécies de expressão de que são
capazes 42 , espécies que comportam consigo determinados graus de
distinção. Desta forma, enquanto as mônadas nuas não possuem nada
de distinto em suas percepções, isto é, possuem apenas uma percepção
natural, as almas, que constituem as mônadas dominantes nos animais,
detêm memória e sentimento, o que envolve um grau maior de
distinção nas suas representações. Com efeito, a memória, consistindo
na reminiscência de uma percepção passada, permite às almas sensitivas
associar determinadas percepções com outras que ocorreram na mesma
ocasião, o que permite a estes seres “uma espécie de consecução que
imita a razão, mas que deve ser distinguida dela” 43 , já que esta conhece
pelas causas. Ou seja, por possuírem percepções mais distintas e com
maior relevo, podendo ter recordações acerca delas, os animais ganham,
em relação às almas vegetativas, a aptidão de agir de maneira empírica,
isto é, com base em percepções passadas. Já os espíritos, estes são
capazes de se elevar até a verdadeira razão e ao conhecimento
intelectual, o que significa não só um grau maior de distinção na
expressão, mas também um tipo completamente diferente de
representação: a apercepção, da qual falaremos posteriormente.

41
Princípios da Natureza e da Graça, § 4, p. 155.
42
“A expressão é comum a todas as formas, e é um gênero do qual a percepção
natural, o sentimento animal e o conhecimento intelectual são espécies” (Carta de
Leibniz a Arnauld de 09 de outubro de 1687, GP II, p. 112).
43
Monadologia, § 26, p. 135.
154 Apercepção versus percepção...

Vale, pois, esclarecer a explicação da limitação de como as


mônadas representam o universo pela situação que lhes é assegurada no
mundo criado. Contudo, esta situação tem de ser entendida de um
modo mais amplo do que meramente pelas condições do espaço e do
tempo, pois, pela analogia com a propagação do movimento no pleno,
não se compreende como alguns seres envolvem um grau maior de
distinção em suas representações do que outro: isto é, se por um lado,
esta analogia dá conta de por que todas as perspectivas são limitadas e
distintas entre si, por outro, porém, ela parece dar a entender que todas
são igualmente limitadas ou confusas, diferindo não em superioridade,
mas apenas com relação ao que cada uma representa com mais
distinção conforme as distâncias.
Ora, convém distinguir, principalmente quando os espíritos
entram em jogo, já que estes seres possuem uma grande diferença
quanto à moral e ao conhecimento em relação aos demais.
Com efeito, esta situação dada aos seres finitos na criação
envolve considerações morais. Não só com relação ao princípio do
melhor implicado na harmonia que pode ser observada em relação à
organização temporal e espacial do universo, mas também com
referência a uma hierarquia que se estabelece entre os seres, já que eles
são classificados conforme os graus de perfeição que possuem, ou, o que
é o mesmo, os graus de distinção que estão presentes nas respectivas
representações. É o que faz, notadamente, que algumas substâncias
criadas sejam dominantes em relação a outras ou, dito de outra forma,
que umas expressem ações que em outras criaturas correspondem a
paixões. De fato, todas as criaturas possuem um grau de atividade que
as faz imitar a divindade 44 o quanto está em seu poder, de modo que a
cada uma cabe, pois, um determinado lugar na ordem do mundo
conforme à sua própria perfeição.
Vale salientar, além disso, que, embora Leibniz exponha a
divisão das mônadas em três tipos – as nuas, as almas e os espíritos – ,
há uma escala de seres que engloba uma gradação infinitamente variada
das representações presentes nas criaturas, como o autor afirma no
trecho supracitado dos Princípios. Ora, o princípio de continuidade

44
Carta de Leibniz à princesa Sofia, in GP VI, p. 521.
Celi Hirata 155

deriva-se do princípio de conveniência e é um dos principais do sistema


leibniziano, sendo que toda a realidade criada a ele se submete.
Segundo ele, não há saltos na natureza, mas tudo é contínuo, sem
lacunas, já que seriam contrárias à harmonia e à perfeição. Por esta
razão, tudo é contíguo e contínuo, sendo que as diferenças são, na
verdade, de aparências e de graus 45 . Assim, a gradação dos seres
conforme sua perfeição tem que se dar de maneira ininterrupta, desde o
atordoamento característico das mônadas nuas até as mais sábias
inteligências, cujo modelo último encontra-se na onisciência de Deus,
espírito supremo, que determinando a situação dos demais seres, não
possui ele mesmo alguma, pois está fora do mundo. E também se segue
por este mesmo princípio que não há no interior do universo criado o
grau mínimo ou o máximo: assim como não existe na natureza repouso
absoluto, bem como o movimento mais rápido, não existe uma
mônada cujas percepções, por mais indistintas que se apresentem, não
sejam representativas do que lhe é exterior. Do mesmo modo,
nenhuma substância criada, por mais elevada que seja, possui o grau de
distinção máximo em sua representação do mundo, sem um ponto de
vista correspondente, já que tal qualidade pertence única e
exclusivamente a Deus, que é onisciente e não possui qualquer
perspectiva.
Também é importante notar que, uma vez que cada tipo de
alma no mundo deve ser pensada como correspondente a um grau de
perfeição, que não está à parte, mas numa relação de continuidade com
as demais, cada novo grau de perfeição na mônada envolve as
inferiores:

Eu também reconheço graus nas atividades, como vida, percepção, razão, e


que assim pode haver outras espécies de almas, do que as que se denomina
vegetativa, sensitiva, racional, que há corpos que possuem vida sem
sentimento, e outros que possuem vida e sentimento sem razão. Entretanto,
eu creio que a alma sensitiva é ao mesmo tempo vegetativa, e que a alma
racional é sensitiva e vegetativa e que, assim, em nós uma única alma
compreende estes três graus, sem que seja necessário conceber como que três

45
Carta de Leibniz a Des Billettes de dezembro de 1696, in GP VII, p. 452.
156 Apercepção versus percepção...

almas em nós, das quais a inferior seja material em relação à superior, e


parece que isto seria multiplicar os seres sem necessidade. 46

Além de criticar a divisão aristotélica em três almas 47 , Leibniz


explicita no trecho supracitado como a classificação dos tipos de
mônada é em termos de grau e envolve uma escala de perfeição, pois a
superioridade de algumas em relação a outras se dá por acréscimo
progressivo de capacidade representativa: a alma sensitiva possui a
aptidão de expressar o mundo como a vegetativa, mas, em relação a
esta, possui sentimento e memória a mais. Do mesmo modo, as almas
racionais, tal como as dos animais, detêm sentimento e memória, mas
discernem-se destas por possuírem razão.
Afora isso, o autor também dá conta nesta carta à rainha Sofia
Carlota de por que nós, mesmo sendo espíritos, experimentamos
estados semelhantes ao das almas vegetativas quando dormimos sem
sonho ou desmaiamos, sem qualquer sentimento ou lembrança. Ou
ainda, quando não damos prova de sermos racionais, mas agimos com
base no princípio de memória, ao invés de razões, tal como um cão que
foge de um bastão por já ter sido por este objeto açoitado 48 . Com
efeito, Leibniz afirma que os homens agem, tal como os irracionais,
exclusivamente empiricamente em três quartas partes das vezes, e
exemplifica este modo de proceder pela expectativa que possuímos de
que o Sol nascerá amanhã pelo fato de ter sido sempre assim e não por
razões que sustentem esta previsão. É, com efeito, a maneira como os
médicos empiristas exercem sua prática que, governando-se pelos
sentidos e pelos exemplos, não possui embasamento teórico 49 .
Entretanto, não se pode ignorar que, quando considerados em
relação aos demais, os espíritos ocupam um lugar muito privilegiado,

46
Carta de Leibniz à rainha Sofia Carlota, in GP VI, p. 521.
47
Ética a Nicômaco, in Aristóteles, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril,
1973, livro I, capítulo 13.
48
Princípios da Natureza e da Graça, § 5.
49
Monadologia, § 28. Leibniz não despreza a maneira empírica dos homens de agir,
pois uma vez que nem sempre as razões nos são conhecidas, muitas vezes agimos
bem ao seguir os exemplos, a autoridade e os costumes no lugar de querer sempre
examinar as razões. Mas freqüentemente, esta maneira de pensar pode nos levar a
associações errôneas. (Novos Ensaios, II, 33, §1).
Celi Hirata 157

para não dizer quase à parte, no universo criado: os seres racionais, com
efeito, foram ordenados na criação de preferência às demais coisas e
constituem, assim, o gênero supremo, ou, ainda, as almas de primeira
ordem no mundo 50 e, à diferença dos demais, são elevados de simples
almas sensitivas a este estado por eleição divina no momento de sua
concepção 51 , enquanto as demais criaturas desenvolvem-se de maneira
natural a partir de suas preformações. Os espíritos finitos distinguem-se
com respeito aos demais seres criados pela sua elevação tanto moral
quanto cognitiva ou, dito com mais exatidão, relativamente ao grau de
distinção presente na sua atividade expressiva – pois, justamente, o
conhecimento só a eles cabe – o que marca quase um salto deste gênero
de ser em comparação com o resto da escala, pois, em seu
departamento, isto é, em sua situação no cosmo, os seres racionais são
como pequenas divindades. 52
No que diz respeito à moral, estes seres possuem uma série de
privilégios e é notável que o nosso autor coroe tanto o Discurso de
Metafísica, quanto a Monadologia, bem como os Princípios da Natureza
e da Graça com as considerações acerca da Cidade de Deus, que
consiste na comunhão de todos os espíritos e constitui o reino moral no
reino natural 53 . Por esta relevância e mesmo sobrelevação nos espíritos

50
“Diálogo entre um político sagaz e um sacerdote de reconhecida piedade”, in
Escritos Filosoficos, p. 240.
51
Monadologia, § 82.
52
Idem, § 83.
53
Relativamente à Cidade de Deus apresentada por Leibniz no último parágrafo do
Discurso de Metafísica, Georges Le Roy comenta a diferença que há entre esta e
aquela teorizada por Santo Agostinho, de quem afinal a doutrina da Cidade de Deus
provém: “Para Santo Agostinho, há duas cidades heterogêneas, a Cidade da terra e a
Cidade de Deus; a primeira, fundada no amor de si, que pode ir até o desprezo de
Deus, é simbolizada por Babilônia e obedece apenas a Satã; a segunda, fundada no
amor de Deus, que pode ir até o desprezo de si, é simbolizada por Jerusalém e
obedece apenas Cristo. Em realidade, uma e outra existem atualmente juntas, a
despeito de sua oposição; mas, por natureza, elas permanecem antitéticas e serão um
dia separadas: só se pode passar de uma a outra por uma conversão total. Para
Leibniz, ao contrário, há apenas uma e única Cidade, aquela que os espíritos
formam em união com Deus; esta Cidade corresponde ao desdobramento regular de
um mundo moral no seio do mundo físico, um acrescentando-se ao outro, sem o
destruir, pela elevação de seus elementos mais puros; ela se desdobra desde então
158 Apercepção versus percepção...

finitos da moral em relação ao seu caráter de elementos constituintes da


ordem física do mundo criado, os seres racionais parecem, quanto ao
seu poder representativo, escapar da analogia com o movimento no
pleno, pois, como irei tratar logo a seguir, eles são capazes de espelhar
diretamente Deus e tomar conhecimento das verdades eternas, o que é
inexplicável por sua relação com o seu corpo orgânico, já que esta
relação nos auxilia a entender apenas de que maneira cada um
representa o que está submetido às relações do espaço e do tempo. Mas,
além disso, Leibniz aponta a excelência e especificidade destes seres com
a afirmação de que “os espíritos são as substâncias mais suscetíveis de
aperfeiçoamento e suas perfeições caracterizam-se por se estorvarem
reciprocamente o mínimo, ou sobretudo por se ajudarem mutuamente,
pois só os mais virtuosos poderão ser os mais perfeitos amigos”. 54 Isto é,
enquanto as demais substâncias criadas, pela harmonia preestabelecida,
estão sujeitas às leis de ação e paixão, pelas quais o acréscimo de grau de
perfeição de uma corresponde à diminuição da outra, os espíritos
podem, sem ferir a harmonia geral, escapar destas leis por sua
excelência moral, pois a verdadeira amizade, por exemplo, é um tipo de
interação entre seres criados que não implica a reciprocidade de
aumento e diminuição de grau de perfeição, mas, ao contrário, envolve
o aperfeiçoamento de ambos os termos da relação, o que é uma exceção
no mundo natural.
De fato, as diferenças dos espíritos com relação às demais
criaturas não param por aí. Se as demais mônadas são imperecíveis e

como o acabamento supremo de uma harmonia universal: pode-se passar do reino


da natureza àquele da graça por um desenvolvimento contínuo” (Discours de
Métaphysique et correspondance avec Arnauld, p. 273 e 274). Com efeito, é esta idéia
que se quer desenvolver aqui com relação aos espíritos e suas qualidades tanto
morais quanto intelectuais: a Cidade de Deus é o ápice da consideração da união dos
espíritos pela razão, isto é, da relação de conveniência de todos os seres racionais por
meio das leis absolutamente universais da razão, sob cuja legislação estão Deus – o
monarca –, os anjos, os gênios e os homens. Isto é, há apenas uma Cidade
justamente porque todos os espíritos, sem exceção, dela participam, pois não há
como se subtrair a estas leis da razão, sendo que todos, mesmo que sejam pecadores,
possuem qualidades morais tais como a liberdade e a conservação da identidade
pessoal.
54
Discurso de Metafísica, § 36, p. 76.
Celi Hirata 159

conservam sua identidade, pois, não possuindo partes, elas só podem


começar por criação e terminar por aniquilamento 55 , os espíritos
mantêm, em adição, sua identidade pessoal, isto é, subsistem não só
metafísica como também moralmente, conservando a recordação ou o
conhecimento do que são de maneira perpétua para que possam ser
passíveis de castigo e de recompensa 56 . Afinal, os seres racionais
possuem responsabilidade: enquanto as demais substâncias criadas são
apenas espontâneas, os espíritos também são livres 57 , isto é, se as outras
são movidas pelo princípio interno da apetição, os espíritos são ainda
capazes de volição, o que envolve um grau maior de perfeição, pois a
liberdade supõe, além do princípio da ação própria, a inteligência, que
faz a base da deliberação 58 .

4 A especificidade dos espíritos: a apercepção


Deste modo, as qualidades morais só surgem sob o pano de fundo da
inteligência que os espíritos possuem, isto é, de sua capacidade de
representar não só com um grau maior de distinção, mas mesmo de um
modo diverso: se as demais substâncias criadas exprimem o universo de
modo mais imperfeito que os espíritos, isto é, com um grau menor de
distinção, convém, entretanto, salientar que a especificidade dos
espíritos em relação às outras criaturas não reside só nisso, “mas a
principal diferença é que (estas) desconhecem o que são ou fazem, e,
por conseqüência, são incapazes de reflexão e não poderiam descobrir
verdades necessárias e universais. Também por falta de reflexão sobre si
mesmas não tem qualidade moral”. 59 Ou seja, assim como a liberdade e
a responsabilidade moral das almas racionais não consistem numa mera
questão de grau, quando contrapostas à espontaneidade natural das
demais substâncias, também o que lhes fundamenta, a saber, o ato

55
Monadologia, § 4, 5 e 6.
56
Discurso de Metafísica, § 34.
57
GP VII, p. 109.
58
Com efeito, se a apetição e a percepção estão nas mônadas correlacionadas, a
volição está diretamente ligada com a apercepção nos espíritos: “a volição constitui o
esforço ou a tendência (conatus) para aquilo que consideramos bom e contra o que
se acredita mau, de modo que esta tendência resulta imediatamente da apercepção
que temos” (Novos Ensaios, II, XXI, § 5, p. 124).
59
Discurso de Metafísica, § 34.
160 Apercepção versus percepção...

reflexivo, não pode ser simplesmente tratado como uma percepção mais
distinta que o ser simples possui dos compostos que lhe são exteriores,
mas envolve algo diferente disto: a apercepção.
Com efeito, Leibniz ressalta mais de uma vez a diferença entre a
percepção e a apercepção. Esta distinção é de grande importância, pois
o autor a utiliza para argumentar contra Descartes tanto em relação à
liberdade de indiferença 60 como à concepção de que não há alma nos
seres irracionais 61 . Além deste filósofo, Leibniz também visa com esta
distinção contrapor-se à crença de Locke segundo a qual nem sempre
temos pensamentos ou percepções, mas a mera faculdade de pensar ou
perceber vazia de determinações atuais, já que nem sempre possuímos
consciência de nosso estado 62 . Por esta razão, a explicitação da diferença
entre percepção e apercepção toma especialmente corpo nos Novos
Ensaios. Para Leibniz, se aquela é, com efeito, uma atividade que é
comum a todas as criaturas e se define pela capacidade de representar a

60
Teodicéia, § 50, in GP VI, p. 130. Leibniz argumenta, com efeito, que há
percepções que determinam os nossos atos sem que nós nos apercebamos, isto é, sem
que tenhamos consciência delas, de modo que se produza uma ilusão de que nós nos
decidimos sem motivos que nos inclinem.
61
Monadologia, § 14.
62
Com efeito, logo no Prefácio dos Novos Ensaios, Leibniz indica que uma das
primeiras teses de Locke a ser combatida é a de que o espírito nem sempre pensa e
percebe (quando dorme sem algum sonho, por exemplo). A isto, o filósofo de
Hannover objeta que assim como não há jamais um corpo desprovido de
movimento, não existe substância sem ação. “De resto, existe uma série de indícios
que nos autorizam a crer que existe a todo momento uma infinidade de percepções
em nós, porém sem apercepção e sem reflexão: mudanças na própria alma, das quais
não nos apercebemos, pelo fato de as impressões serem ou muito insignificantes e
em número muito elevado, ou muito unidas, de sorte que não apresentam nada de
suficientemente distinto; porém, associadas a outras, não deixam de produzir o seu
efeito e de fazer-se sentir ao menos confusamente” (Prefácio, p. 11 e 12). De fato, a
distinção entre percepção e apercepção será importante para desvincular a identidade
da consciência atual: contra a afirmação de Filaleto-Locke de que “é também só
nisso que consiste a identidade pessoal, ou seja, o que faz com que um ser racional
seja sempre o mesmo; quão longe esta consciência pode estender-se sobre as ações ou
sobre os pensamentos já passados, tão longe vai a identidade desta pessoa e o eu é
agora o mesmo que era antes” (idem, II, XXVII, § 9, p. 176 e 177), Leibniz
comenta: “parece que o nosso autor pretende que não haja nada de virtual em nós ,
e mesmo nada que nós não nos apercebemos sempre atualmente” (Prefácio, p. 37).
Celi Hirata 161

multiplicidade das coisas a elas externas, esta consiste, por sua vez, na
consciência ou estado reflexivo daquela e pertence exclusivamente aos
espíritos e, mesmo nestes, não se dá continuamente, à diferença da
percepção, que se dá ininterruptamente 63 . Ou seja, a apercepção é uma
ação de caráter pontual que se exerce sobre o pensamento ou a
percepção 64 (que, vale salientar, tem de ser distinta para que essa ação
ocorra 65 ), de modo que é uma espécie de percepção da percepção, pela
qual o espírito toma consciência de seu estado interior. Trata-se da
intensificação da atividade expressiva na substância simples que a torna
capaz de possuir representações mais distintas e de alcançar, portanto,
este outro patamar de representação que consiste na reflexão ou
conhecimento de si, por meio da qual se atingem as primeiras
proposições e, por conseguinte, os demais conhecimentos:

A apercepção imediata de nossa existência e dos nossos pensamentos nos


fornece as primeiras verdades a posteriori, ou de fato, isto é, as primeiras
experiências, como as proposições idênticas contêm as primeiras verdades a
priori, ou de razão, isto é, as primeiras luzes. Umas e outras são incapazes de
ser demonstradas e podem ser denominadas imediatas: aquelas, porque existe
imediação entre o entendimento e o seu objeto, estas porque existe
imediação entre o sujeito e o predicado 66 .

Assim, é a apercepção a atividade própria dos espíritos que os


distingue das demais criaturas, pois é por meio da apercepção de si
próprio com seus pensamentos ou ato reflexivo, que as almas racionais

63
PNG, § 4, carta de Leibniz a Thomas Burnett, in GP III, p. 156.
64
Leibniz utiliza muitas vezes o termo “pensamento” e o termo “percepção” como
sinônimos, afirmando, no contexto dos Novos Ensaios, ora que possuímos uma
infinidade percepções sem qualquer apercepção, ora que pensamos sempre, ainda
que nem sempre acompanhado de reflexão. A Burnett (GP III, p.261), Leibniz
define o pensamento como uma espécie de percepção, a saber, como um
determinado grau de percepção. Assim, do mesmo modo que toda mônada percebe
ininterruptamente, os espíritos sempre pensam, ainda que nem sempre se apercebam
do que está na mente.
65
Carta de Leibniz a Thomas Burnett, in GP III, p. 307.
66
Novos Ensaios, IV, IX, § 2, p. 352. Na Monadologia, porém, Leibniz afirma que é
pelo conhecimento das verdades necessárias e eternas que nos elevamos ao
conhecimento de nós mesmos e à ciência.
162 Apercepção versus percepção...

têm acesso às primeiras verdades, tanto as de fato, como as de razão,


atingindo aquelas pela coincidência entre o entendimento e seu objeto
e estas pela identidade entre sujeito e predicado. Ou seja, a apercepção
é o que introduz os seres racionais finitos no conhecimento e o
possibilita para eles. Deste modo, Leibniz se contrapõe àqueles que
defendem que o início do conhecimento se dá com a experiência, cujos
maiores representantes são, para o nosso autor, além de Aristóteles,
Locke, seu interlocutor nos Novos Ensaios. O empirista inglês sustenta,
com efeito, que não há noções inatas na mente, sendo que todas as
nossas idéias provêm sempre de impressões que recebemos através dos
sentidos. Ora, para Leibniz, no rigor metafísico, todo ser contém de
maneira inerente todas as suas determinações e em qualquer mônada,
incluindo-se aí (e, talvez possa ser dito, principalmente, na medida em
que a analogia com a mecânica se aplica ainda menos a eles) os
espíritos, nenhuma de suas representações provém de seu exterior, mas
lhes são inatas. Por isso, o filósofo de Hannover presta homenagem a
Platão e à sua teoria da reminiscência, pois ambos autores concordam
que nada poderia nos ser ensinado cuja idéia nós não já tenhamos na
mente, sendo que aprender é atualizar aquilo que já se encontrava
virtualmente na alma 67 .
Deste modo, o ato de conhecer começa por um olhar para
dentro, isto é, pela percepção das percepções ou pensamentos que já
temos em nós 68 . Dito de outra forma, é a reflexão que está na origem
da constituição do conhecimento: ela é, com efeito, “em nós a mãe das
ciências”. 69 Não são as percepções, mas a consciência destas que faz os

67
Discurso de Metafísica, § 26.
68
Se para Leibniz, a reflexão ou apercepção de si é a operação pela qual os espíritos se
elevam às primeiras verdades e daí, com a aquisição dos primeiros princípios,
tornam-se capazes de conhecer em geral, para Descartes, esta apercepção de si
mesmo possui o caráter de primeira verdade na cadeia das razões a partir da qual será
constituído o verdadeiro conhecimento. Entretanto, o filósofo de Hannover
argumenta na “Advertência à parte geral dos princípios de Descartes” , bem como
nos Novos Ensaios, que o “eu penso” não pode ser considerada a primeira verdade
absoluta na cadeia de razões, mas é, ao lado das primeiras verdades de razão, verdade
de fato primeira junto com a proposição de que diversas coisas são pensadas por
mim (GP IV, p. 357; Novos Ensaios, IV, II, §1).
69
Carta de Leibniz à rainha Sofia-Carlota de 08 de maio de 1704, in GP III, p. 344.
Celi Hirata 163

espíritos se sobressaírem em relação ás demais criaturas. Apesar de todas


as substâncias criadas lançarem-se para o exterior a partir de suas
percepções internas, o que há de específico em relação aos espíritos é
que estes são capazes de, por meio da apreensão de suas representações
internas, ter conhecimento do que subsiste fora deles e mesmo do que
subsiste eternamente. É por meio de um espelhamento de seu interior,
isto é, pela reflexão, que as almas racionais obtêm as primeiras verdades
e mesmo chegam a espelhar Deus. Assim, Leibniz nos diz na
Monadologia que são, de fato, os atos reflexivos

que nos fazem pensar no que se chama Eu e considerar que isto ou aquilo
está em nós; e é assim que, ao pensar em nós, pensamos no ser, na
substância, no simples ou no composto, no imaterial e no próprio Deus,
quando concebemos que o que em nós é limitado, nele é sem limites. E esses
atos reflexivos fornecem os objetos principais de nossos raciocínios. 70

Pela reflexão, pois, dirigimos a nossa atenção às idéias que estão


presentes em nossos pensamentos e tornamo-nos por essa via capazes de
discerni-las no meio da confusão, o que consiste justamente na
capacidade de abstração. Daí podermos, a partir da consideração de nós
próprios, nos aperceber da idéia de ser, de simples, de composto, de
imaterial, pois todas estas idéias estão já envolvidas na idéia de si
mesmo: somos seres, conseqüentemente, somos simples e imateriais,
em nossas percepções o composto está representado e, em última
instância, se refletirmos sobre nossas qualidades e as concebermos sem
limites, chegamos à idéia de Deus. Deste modo, nos Novos Ensaios,
Leibniz, defende que muitas das idéias que são confusas e encerram
muitas outras, pensa-se serem, na terminologia de Filaleto-Locke,
simples por falta de nossa apercepção as dividir 71 . Ou seja, o filósofo de
Hannover atribui à apercepção a tarefa de discernir os elementos que
estão envolvidos em uma representação, isto é, de nos possibilitar ter
um grau maior de distinção nestas.
Assim, se as outras mônadas são espelhos vivos do universo, os
espíritos são ainda espelhos da divindade, ou melhor, exprimem melhor

70
Monadologia, § 30, p. 136.
71
Novos Ensaios, II, II, § 1.
164 Apercepção versus percepção...

Deus do que o mundo, ao contrário das outras criaturas 72 . Isto porque,


ainda que as outras substâncias simples exprimam a Divindade na
medida em que foram por ela criadas e que expressam todo o resto de
sua criação, elas exprimem melhor o mundo do que Deus porque elas
representam mais diretamente o jogo da causalidade eficiente que rege
os fenômenos naturais, isto é, as leis da força e da comunicação do
movimento. Já os espíritos, estes são ainda capazes de convir nas
mesmas relações de razão que Deus, já que este também é um espírito,
o que explica por que pode ser dito que os homens foram feitos à
imagem e semelhança da Divindade, tal como revelado na Bíblia. Os
seres racionais finitos podem conhecer, com efeito, as verdades
necessárias e eternas, que são verdades que não guardam relações com o
espaço e tempo, sendo que sua apreensão não possui analogia com o
movimento que se propaga nos corpos, analogia que pode ser aplicada
para as expressões das demais substâncias criadas. E se pode ser dito
que, enquanto os outros tipos de mônada expressam mais o universo do
que Deus, os espíritos exprimem mais a divindade do que o mundo, é
porque estes seres são capazes de exprimir Deus de uma forma
inteiramente diferente das demais: eles são capazes de conhecê-lo, seja a
priori, seja a posteriori. Por um lado, os espíritos finitos conhecem Deus
a priori quando refletem sobre suas próprias qualidades e as concebem
abstratamente sem os limites que neles existem, o que os faz contemplar
as idéias de onipotência, de onisciência e de bondade suprema. E como
essas qualidades ou perfeições são compatíveis entre si e, no ser
supremo a existência está compreendida em sua essência, já que a
existência é uma perfeição, conclui-se que este ser é. Por outro, os seres
racionais, ao perceberem o mundo e aperceberem-se da harmonia, da
beleza e da copiosidade que aí existem, inferem que a razão de um tal
mundo existente só poderia se encontrar em última instância em Deus,
de modo que os espíritos são um gênero de seres “que não representam
apenas o mundo, mas que representam ainda Deus no mundo”. 73 Ou
seja, os espíritos conhecem e provam a existência de Deus tanto por

72
Discurso de Metafísica, § 35; Anexo da carta de Leibniz a Remond de julho de
1714, in GP III, p. 624.
73
Carta de Leibniz a des Billetes de 14 de dezembro de 1696, in GP VII, p. 452.
Celi Hirata 165

uma relação de idéias como pela reflexão que fazem sobre sua
experiência, exprimindo-o, portanto, de modo direto, à diferença das
demais criaturas, que o realizam de modo indireto, por assim dizer.
Deste modo, “a diferença entre as substâncias inteligentes e as
que não o são é tão grande como a que há entre o espelho e aquele que
vê”. 74 Isto é, os espíritos e as demais criaturas discernem-se
essencialmente nisto: enquanto estas exprimem, ainda que
espontaneamente, de forma passiva, isto é, sem distinção e inteligência,
aqueles sabem o que são e o que fazem, sendo capazes de expressar a
realidade com conhecimento. Trata-se, na verdade, da diferença que há
entre a percepção e a apercepção, pois esta não é somente, como a
primeira, a representação do composto no simples, mas envolve, além
disso, consciência desta representação mesma. Isto é, o ser racional não
é só como o espelho, mas possui atividade intelectual e lança um olhar
apontado para este espelho, o que se denomina reflexão, que é refletir o
refletido, produzindo algo inteiramente diferente, que não aumenta a
extensão do que é representado, já que toda mônada expressa o
universo inteiro, o infinito, mas a intensidade aí presente, acrescendo no
grau de distinção envolvido nas suas representações 75 . De maneira
anacrônica, pode-se dizer que a apercepção em relação à percepção,
sendo a diferença entre o espelho e aquele que vê, envolve uma certa
intencionalidade, pois consiste justamente na atenção dirigida à
percepção, para aí poder reconhecer elementos inteligíveis que
permitam a constituição de um conhecimento referente a ela própria e
ao que está fora dela. Trata-se de um ato de inteligência que, dirigindo-
se às suas próprias representações, visa ter uma compreensão da
realidade e torna os espíritos capazes de constituir uma ciência. Ora, a
partir desta centralidade da apercepção na consideração do
conhecimento e dos espíritos no interior da cosmologia leibniziana, este
conceito investiu-se de grande importância e fez história na filosofia
que se seguiu nos séculos posteriores.

74
Discurso de Metafísica, § 35, p. 174 e 175.
75
Assim, no opúsculo “A profissão de fé do filósofo”, Leibniz afirma que o
conhecimento exato pode crescer não por uma novidade na matéria, mas na reflexão
(Escritos Filosoficos, p. 131). Isto é, o conhecimento, através da reflexão aumenta não
em extensão, mas em intensidade.
166 Apercepção versus percepção...

Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, in Aristóteles, Coleção Os
Pensadores. Tradução: Leonel Vallandro. São Paulo: Editora Abril,
1987.
DESCARTES. Descartes. Coleção Os Pensadores. Tradução: J.
Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Editora Abril, 1973.
LEIBNIZ, G. W. Die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm
Leibniz. Edição: C. I. Gerhardt. Berlim: Georg Olms
Hildesheim,1960.
_______ Discours de Métaphysique et Correspondance avec Arnauld.
Comentários: Georges Le Roy. Paris: Vrin, 1993.
_______ Discurso de metafísica e outros textos. Tradução: Marilena
Chaui e Alexandre da Cruz Bonilha. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_______ Escritos Filosoficos. Edição: Ezequiel de Olaso. Tradução:
Roberto Torretti, Tomás E. Zwanck e Ezequiel de Olaso. Buenos
Aires: Editorial Charcas, 1982.
_______ Leibniz (II). Coleção Os Pensadores, volume XIX. Tradução:
Luiz João Baraúna. São Paulo: Editora Abril,1980.
Eckhart’s Bilder

Luís M. Augusto * 1

Resumo: A extrema originalidade da doutrina eckhartiana dos bilder, ou formas,


deve-se, mais do que ao facto de conter novos elementos, à conciliação entre três
fontes à primeira vista incompatíveis: Platão, Aristóteles e o pensamento cristão.
Neste artigo mostra-se que a doutrina eckhartiana dos bilder é simultaneamente a) a
recriação epistémico-aristotélica da doutrina platónica das ideias e b) a recriação
ontológico-cristã da doutrina aristotélica da cognição. Como tal, trata-se de uma
manipulação técnica destas fontes, mais do que de uma doutrina mística.
Palavras-chave: Abegescheidenheit, Bilder, Intelecto, Ideias Platónicas, Universais

Abstract: Eckhart’s doctrine of the bilder is highly original not so much for
containing new elements as for the conciliation it achieved among sources at first
sight incompatible; these sources can be reduced to three main ones: Plato, Aristotle,
and Christian thought. In this paper, I show that Eckhart’s doctrine of the bilder is
simultaneously a) an Aristotelian epistemic recreation of Plato’s doctrine of ideas, and
b) a Christian ontological recreation of Aristotle’s doctrine of cognition. As such, it is
a technical manipulation of these sources, rather than a mystical doctrine.
Keywords: Abegescheidenheit, Bilder, Intellect, Platonic Ideas, Universals

Eckhart’s 2 doctrine of the bilder is undoubtedly the crux of his thought


and the core of its misinterpretations, and this mainly for the following
reasons: firstly, though his starting point is the Platonic teaching of the
ideas, he adapts it to both an Aristotelian epistemic and a Christian
ontological viewpoints; this suffices to deceive many interpreters, and
the fact that in his German sermons Eckhart translates much of the
Latin philosophical terminology into Middle High German, thus
rendering it more accessible to a secular audience while making it
dangerously equivocal for the expert, explains to some extent the

*
Pós-doutorando (FCT) no Instituto de Filosofia da Universidade do Porto,
Portugal. E-mail: laugusto@letras.up.pt. Artigo recebido em 13.10.2008 e aprovado
em 05.12.2008.
1
Most of the research conducing to this paper was carried out at the Université Paris
IV – Sorbonne and was funded by a doctoral fellowship granted by FCT. My
thanks to both.
2
Eckhart of Hochheim (c. 1260 – c. 1328), also known as Meister Eckhart.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 167-186


168 Luís M. Augusto

wildly diversified interpretations of this doctrine. Once one realizes


these two factors, his doctrine of the bilder loses its supposedly mystical
overtones, and is seen for what it is, a doctrine on representation as real
content.

1 The Context: Late Medieval Intellectualism vs. Voluntarism


To a great extent, medieval epistemology can be characterized by the
realist ‘slogan’ of the adequacy between the thing and the intellect
(veritas est adaequatio rei et intellectus); in other words, truth is secured
when there is a one-to-one correspondence between an object and the
mental representation that expresses/captures its essence. The
background for this formula is Christianity and the belief in a creation
carried out by a unique god; this creation is said to be ex nihilo, out of
nothing, from the ideas in the verb; it is thus an act of self-expression,
according to the Trinitarian view that sees the Father, the Son, and the
Holy Spirit as one and the same person. For the Christian believer,
God expressed himself with a view to being known by man, the most
sublime of his creations in the physical world, and therefore its objects
somehow carry his ‘brand’; they are material, no doubt, but each one of
them was created from an intellectual archetype that must somehow be
accessible to the human mind if the creator is to be known through his
creation. Therefore, man somehow has, or participates in/of, the verb.
The source of this doctrine is Plato’s world of ideas, a source
metamorphosed by his disciple into what would become the highly
polemical controversy of the categories that spans the entire duration of
the Middle Ages; because Platonism was highly compatible with
Christian beliefs, and Aristotelianism was not completely inadaptable
to them, with Bonaventure, a major figure of Christian orthodoxy, one
has an extremely unequal synthesis in which the different elements are
utilized in the direct proportion to their plasticity in relation to faith:
there is a material world, indeed, but it is a mere copy, or imitation, of
the essences in the verb; moreover, knowledge of nature gives but a
partial knowledge of its creator: only a completely transcendental kind
of knowledge, a sort of ‘mystical night,’ can open the door to a
complete or absolute knowledge of God. Plato’s finger in all this is all
too obvious, and Aristotle’s influence is also not difficult to dig out:
Eckhart’s Bilder 169

beyond the obviousness of his hylomorphic metaphysics, there is the


also patent doctrine of the resemblance between knower and thing
known, which now becomes one between man and God. Augustine’s
doctrine of divine illumination that makes of knowledge an act of
grace, the generation in man of the very verb, not only fitted well into
this synthesis, but actually overcame the deficiencies of both Platonism
(the object of knowledge is inaccessible to man) and Aristotelianism (it
is the principle of knowledge that is inaccessible), or so Bonaventure
thought. 3 But his is a highly Christian-biased view, because this divine
grace is technically identical to the Platonic myth in the Phaedrus that
explains the ideas in the human soul, and to the Aristotelian doctrine of
the two intellects, the agent one ‘giving’ the forms to the possible
intellect. There is thus no synthesis in Bonaventure, but a
manipulation of diverse non-Christian sources for what Kant would
call empirical ends, i.e. happiness.
Thus, the realist ‘slogan’ “veritas est adaequatio rei et intellectus”
is but the christianization of an epistemology that since Aristotle
tended more and more to concentrate its entire foundation in the
world, albeit for wholly different reasons from those of the Christian
philosophers; moreover, it is a highly deceiving slogan, because the
coordinating conjunction ‘and’ is there for mere syntactic sense, the
hidden adequacy being one of the intellect to the thing that was first
created by God. To change the conjunction ‘and’ by the preposition
‘to’ (ad) in this ‘slogan’ (veritas est adaequatio rei ad intellectum), a
change carried out by Albertus Magnus, 4 amounted technically to a
clear separation between truth in the world and truth for faith;
psychologically, this amounted to the beginnings of a liberation from
both a creator and its created world: not man, yet, but philosophy
stands or falls alone.
This is the result of the affirmation of a growing intellectualism
as opposed to voluntarist views. The opposition is not always clear-cut;
for instance, Aquinas’, an intellectualist, and Bonaventure’s ‘slogan’

3
Cf. É. Gilson, La philosophie de saint Bonaventure, Paris, Vrin, 1924, p. 377.
4
Liber de praedicamentis II, ed. Borgnet, Opera Omnia I, Paris, L. Vivès, 1890, p.
193.
170 Luís M. Augusto

concerning truth is the same; however, there are evident different


interpretations in both cases: for Aquinas, there are undoubtedly
objects in the world, but their truth, or essence, is in the intellect
inasmuch as this is their principle; as he put it, “truth is first and
foremost in the intellect; secondarily in things, according as they are
compared to the intellect as to a principle.” 5 Indeed, the principles in
the intellect are still those of the verb, but the intellectualist turn is there
in that they are there, integrally so, while for Bonaventure the
‘principle’ was in the human intellect in a sort of corrupted or
incomplete way. 6 This is easily explained inside the opposition in
question in that for a voluntarist knowledge depends on an act of the
will, or of the appetite (appetitus), and this tends to the thing itself,
while for an intellectualist knowledge depends on an act of the
intellect, which per force tends to the principles of cognition, and,
therefore, to the object as it is in the mind of the knower. 7 Because of
this, the principles of cognition would soon inevitably be seen as
constituting ones – namely with Dietrich of Freiberg – and no longer
as merely receptive principles; if the doctrine of divine illumination saw
the intellect as a first and foremost receptive faculty, the intellectualist
turn hampered such an approach, the intellect being seen as a
‘transforming’ faculty, as the following passage clearly conveys:

As the true is in the intellect inasmuch as it conforms to the thing known, it


is necessary that the reason of the true derive from the intellect to the thing
known, so that the thing known is said true according to its having some
relation to the intellect. But the thing known can have a relation to the
intellect either essentially or by accident. Essentially, it has an essential

5
Summa theologiae I, q. 16, a. 1 co.
6
Cf. Les six jours de la création, IV, 9, trans. M. Ozilou, Paris, Desclée-Cerf, 1991, p.
176-7.
7
Thomas Aquinas, Summa theol., ibid.: “Just as the good denominates that towards
which the appetite tends, so does the true denominate that towards which the
intellect tends. However, there is this difference between the appetite and the
intellect, or any form of cognition, that cognition is according to what the thing
known is in the knower, while the appetite is according to the way the desirer is
directed to the desired thing. And thus the end of the appetite , which is the good, is
in the desired thing, but the end of cognition, which is the true, is in the very
intellect.” [all translations are my own]
Eckhart’s Bilder 171
relation to the intellect on which it depends in terms of its being; by
accident, however, to the intellect by which it is cognizable. Just as if we
said that the house is compared to the intellect of the architect essentially,
but by accident it is compared to the intellect on which it does not depend.
A judgment on a thing is, however, not made according to that which is in
it by accident, but according to that which is in it essentially. Hence a thing
is said true in an absolute sense according to the relation to the intellect on
which it depends. (Thomas Aquinas, Summa theol., I, q. 16, a. 1 co.) (my
italics).

One cannot emphasize too much the fact that never before in
Latin thought had the human intellect been given such power of being
the source of truth; only with Albert’s intellectualist turn did the
intellect acquire such a property that amounts to a primacy over
reality. 8 Aquinas, Albert’s student, accepts his doctrine of the universal
post rem, in the intellect, and conciliates it with the Platonic doctrine of
the ideas: of every existing thing, there is an idea. 9 They are firstly in
the divine intellect, and this in two ways, as the principles of the
‘making’ of things (principia factionis rerum), and as the principles of
knowledge (principia cognoscitiva); as far as the first way is concerned,
the ideas are ‘models’ (exemplares) according to which things are
created, thus belonging to the terrain of practical knowledge; in the
second case, they are rationes, ‘types,’ and can belong to theoretical
knowledge. This duplicity is explained by the need to separate in God
the things he creates from the things he knows, and this especially
because of the problem concerning the existence of evil, given that for
everything there is, there must be in him an idea; this separation
consists in that the ideas, as exemplares, concern every thing that god
has created, while as rationes they concern every thing that God knows,
even those things that will never be created.
Man, too, has the twofold feature of being capable of knowing
as well as creating, and he does both through the ideas in his intellect;
however, for Aquinas it is necessary to clearly distinguish God’s

8
For Albertus Magnus’ role in the origin of late medieval intellectualism, see L. M.
Augusto, “Albertus Magnus and the Emergence of Late Medieval Intellectualism”
(forthcoming) .
9
Cf. Summa theol. I, q. 15, a. 3 co.
172 Luís M. Augusto

creative power, a power to create ex nihilo, from man’s, which is no


more than a mere form-giving to already existing matter; this he does
by ‘creating’ according to the resemblance in his mind, that is to say
that he creates according to the intelligible being (esse intelligibile), i.e.
the idea. Thus, the difference between man and God is that the latter
creates natural beings, endowed with an esse naturale, while the former
can only make ‘artificial’ things. We can now complete the quotation
above:

And that is why artificial things are said true in relation to our intellect, the
house being said true that achieves the resemblance of the form in the mind
of the architect ; and a discourse is said true inasmuch as <it is> a sign of the
true intellect. And in the same way the natural things are said to be true
according to whether they achieve the resemblance of the species that are in
the divine mind; thus the stone is said true that achieves the proper nature
of a stone according to the preconception of the divine intellect. (Thomas
Aquinas, Summa theol., I, q. 16, a. 1 co.)

Eckhart shook this entire edifice when he made being depend


completely on the intellect, because in him, as in his elder
contemporary Dietrich, existence is essence, and if the intellect gives
being, it is because it has the essence of that to which being is given.
This means that Aquinas’ distinction between the esse naturale and the
esse intelligibile becomes, if not inexistent, opaque; the Eckhartian
intellect creates truly, if not in a ‘creationist’ sense, in an emanating
way, undoubtedly, as was to be expected from his Neoplatonic
influences.
Given this, to say that for the Thuringian the intellect is the
‘place’ of truth 10 is to say something altogether different from the same
expression when referring to Aquinas, or Albert, for that matter; it is
not only the realist ‘slogan’ of the adequacy between the thing and the
intellect, but also Albert’s ‘slogan’ that becomes entirely obsolete for
the German master, given that there is no longer an adequacy, but an
identity truth = thought = being. This epistemological ‘revolution,’

10
Cf. In Sap., c. 1, n. 6, ed. J. Kocher & H. Fischer, Die lateinischen Werke [LW] II,
Stuttgart, W. Kohlhammer, 1994, p. 327; ibid., c. 16, n. 274, LW II, p. 604; In
Exod., c. 20, n. 176, ed. K. Weiss, LW II, p. 152.
Eckhart’s Bilder 173

technically transparent in Dietrich, 11 is carried out by Eckhart in a


highly metaphorical style and language, which contributes to a great
extent to the proliferation of misidentifications with mystic thought. If
this is not correct, the ‘translation’ of Eckhart into a phenomenological
language 12 is perhaps even less so, because there is not in him a
concept, however incipient, of phenomenon; for him, the moment one
thinks, or knows a thing, it is a true thing, a true existent, but the
subject does not contribute much to this ‘creation,’ that is, it does not
constitute the object, or the phenomenon; knowledge, and therefore
the giving of being, is something that simply happens to the subject
when it is receptive, i.e. when it is a blank slate, and the effort that it
has to make is one of erasing whatever may be on the slate, and this is
none other than his doctrine of the abegescheidenheit. Because this
roots directly in Aristotle’s theory of abstraction, one can speak of
representation and, thus, and obliquely, of phenomenon, but it is
rather a sort of attention, or concentration; it is not so much an effort
of self-annihilation as a preparation to receive the object to be known
by ‘erasing’ every representation in the mind. As we shall see, his
doctrine of the bilder consists in a theory of ‘content’: the idea is its
own content, and this causes an immediate identity between the
knower and the thing known; but this is nevertheless a merely formal
identity – for example, s/he who knows justice can be nothing else but
just because s/he has a formal identity with justice, in other words,
both justice and the subject have the same form, and therefore both are
the same content, in the same way as the eye seeing a chunk of wood
remains an eye, but an eye whose visual content is not itself but the
chunk of wood. 13 In itself, the eye is mere possibility of seeing, and in
itself, the chunk of wood is merely the possibility of being seen; it is

11
Namely in his De origine rerum praedicamentalium, ed. L. Sturlese, Opera Omnia
III, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1983.
12
E.g.: Michel Henry, “La signification ontologique de la critique de la connaissance
chez Maître Eckhart”, in E. zum Brunn (ed.), Voici Maître Eckhart, Grenoble,
Jérôme Million, 1994, p. 175-185. It is hardly necessary to give examples of
mystical interpretations of Eckhart’s thought, such is their profusion.
13
Cf. below.
174 Luís M. Augusto

when the eye sees the chunk of wood that both are some content: in
idealist terms, reality.

2 Eckhart’s bilder
2.1 An Aristotelian Epistemic Recreation of Plato’s Doctrine of the
Ideas
Among other characteristics, Plato’s ideas are separated from the things
that imitate them and of which they are the cause, existing thus before
them; Aristotle criticized this tenet for epistemic reasons: if separated
from the things that ‘imitate’ them, there is no visible epistemic role
for them, and they might as well be altogether dropped. He concludes
that, if there must be ideas, they must be in the things, but if they are
to have an epistemic function, then they must be in the human
intellect, too; he transposes Plato’s world of ideas into the agent
intellect, apparently part of the human soul, and thus ‘humanizes’ it
(by this, I mean that he turns the ideas into human tools, as against
their supernatural character in Plato’s postulation). This was the legacy
that Plato and Aristotle left to their successors, and much of western
thought from then on was the more or less desperate attempt to
conciliate two views that seemed to be correct in themselves, but that
simply did not work together. Plato’s ideas reach Eckhart already
mixed with the Aristotelian universals, or said intelligible species, and
he clearly ‘neglects’ the problem of universals, siding with Aristotle; for
him the universals – now clearly conceived as rationes – are both in the
things and in the intellect. His first major contribution to this issue
was a clarification of the metaphysical nature of the intelligible species,
or images, and this with, too, epistemological ends in view: the bilde
must be completely non-distinct from the reality whose bilde it is –
without which it would be epistemically useless –, without,
nevertheless, being one and the same thing. 14
But Plato, too, had his epistemic reasons to separate the ideas,
given that if mixed somehow with the things that participated in/of
them, they would risk corruption, and their role of guaranteeing

14
Cf. In Ioh., c. 1, n. 194, ed. J. Koch et al., LW III, p. 162-3.
Eckhart’s Bilder 175

absolute knowledge would cease. Eckhart thus separates them. 15 Before


Albert the Great and his intellectual turn, Eckhart would be expected
to put the rationes in the verb, just as Augustine had claimed was the
only reasonable thing to do, 16 but the Thuringian was too much of an
intellectualist himself, and he placed them in the locus of truth, which,
as seen, is the intellect. Now, he was too much of a Christian, too, to
take them completely away from the verb, and he seems at first sight to
make a sort of conciliation – the ideas are both in the verb and in the
intellect – but the important fact is that he sees no difference
whatsoever between the ideas in the verb and those in the human
mind, which eliminates the hypothesis of a mere conciliation and
forces us to see the obvious: for him, the ideas in the verb and in the
human mind are the same, with no difference whatsoever in status or
function:

The reasons of the created things are <themselves> not created, nor creatable
as such. They are before the thing 17 and after the thing, 18 as the original cause
of those very things. That is precisely why through them the changeable
things are known as through causes and by an immutable science, as is
evident in the science of the natural things. The outer thing itself is
changeable as far as its formal, creatable and created being is concerned. And
that is what is meant here: god created so that everything would be. The
things in him are the reasons of things, Ioh. 1: “in the beginning there was
the verb,” or logos, which is the reason; 19 and Augustine [De trin. VI, c. 10,
n. 11] says that it is an “art” “filled with the reasons of everything.” (In Sap.,
c. 1, n. 22, LW II, p. 343) (my emphasis)

Eckhart’s use of the conjunction ‘and’ is so subtle that it risks


inconspicuousness, and thus being overlooked by most interpretations
of his thought. But the fact is that he himself seems quite unaware of
the impact he causes in the medieval landscape, seeing himself as
merely following the authorities, namely Aristotle and Augustine. 20

15
Cf. ibid., n. 12, LW III, p. 12.
16
Cf. De diversis quaestionibus LXXXIII, 46, 2, PL 40/30.
17
Ante rem.
18
Post rem.
19
Also: the notion.
20
Cf. In Eccli., c. 24, n. 10, ed. J. Koch & H.Fischer, LW II, p. 240.
176 Luís M. Augusto

His epistemic foundations are not different from those of the


Stagirite, in that he requires that one know the causes if there is to be
true knowledge of a thing, 21 but this entails an onto-epistemic gap if
one follows the ‘orthodox’ theory of knowledge that separates the
thing known, its cause or ratio, and the source of its ratio, i.e. realism.
Following this stance, knowing a thing is either not knowing the thing
itself (because the thing is not its cause just as the cause of a circle is
not a circle itself), 22 or not knowing the cause (for the same reason),
which is altogether but a very partial – if any – knowledge. True
knowledge is only knowledge at the same time of the thing itself and
of its cause, similar as dissimilar they might be, and if one followed the
realist view, knowledge of God would be impossible through his
creation, because the reasons in him would be different from those in
the things; moreover, God’s reasons are also not those in the human
mind, according to this stance, the reasons in the human intellect
being formal, while those in God are causal and virtual, i.e. “they in no
way designate, they give neither the species nor the name.” 23 These are
the theological consequences of epistemological realism.
Although Eckhart seems to accept the distinction above
between formal and causal-virtual reasons, and this perhaps for
theological reasons more than philosophical ones, he does not comply
with it, entirely neglecting the latter, firstly in the process of cognition
and, ultimately, as an ontological tool: if a thing is nothing more than
the ‘effect’ of its formal notion (ratio), which gives it the name and the
species, a priori in the intellect and in a superior way in relation to the
thing, this means that a thing is when it is known; it is simultaneous
with the act of knowing; it is its being known, the very intellect itself. 24

21
Pr. 8, ed. J. Quint, Die deutschen Werke [DW] I, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1958,
p. 135: Waz man bekennen sol, daz muoz man bekennen in sîner ursache. Niemer
enmac man ein dinc rehte in im selber bekennen, man enbekenne ez in sîner ursache.
(What one must know, one has to know it in its cause. Never can one rightly know
a thing in itself unless one knows it in its cause.)
22
Cf. In Exod., c. 20, n. 120, LW II, p. 113-4. Cf. also In Ioh., c. 1, n. 12, LW III, p.
12.
23
In Exod., c. 20, n. 121, LW II, p. 114.
24
In Ioh., c. 1, n. 38, LW III, p. 33: Iterum etiam [ratio] coaeva est intellectui, cum sit
ipsum intelligere et ipse intellectus.
Eckhart’s Bilder 177

But Eckhart goes further: in his – supposedly – first Parisian


quaestio, he made being depend on the intellect; 25 this was emphasized
in the Middle High German sermon no. 9, in which God’s being itself
is no more than his churchyard, God being actually an intellect; 26 in
his In Ioh., he is faithful to these claims, but he goes further, making of
the intellect the absolute condition of existence: “there is nothing
beyond knowing.” 27 This leads him into an idealist ontology: every
creature is nothing in that it is only when it is known; when the
knowledge of a thing ceases, it, the thing, ceases to exist altogether.
Berkeley will say exactly the same four centuries later on: esse est
percipi. And about one century after this, Hegel will take being as the
very beginning of the dialectical process and, as such, the most
indeterminate category of all, 28 becoming real only at the end of the
movement in which the mind realizes that being is precisely this
progress in knowledge, the absolute idea. 29
The connection established by Aristotle between the forms in
the intellect and in the things (to be abstracted in the case of the
material things, identical to the very thing in the case of the intelligible
things) is one of a formal identity: the intellect knowing a form is that
very form, and nothing else beyond it, because without a form it is
mere possibility of thought; this in the case of the possible intellect,
while the agent intellect always thinks, being the totality of the forms

25
Quaestio Parisiensis I, n. 5, ed. B. Geyer, LW V, p. 42: [I]ntelligere est altius quam
esse et est alterius condicionis.
26
Cf. Pr. 9, DW I, p. 150.
27
In Ioh., c. 1, n. 38, LW III, p. 33: [N]ihil praeter intelligere est.
28
Wissenschaft der Logik I, ed. F. Hogemann & W. Jaeschke, Gesammelte Werke
[GW] 11, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1978, p. 43-4 (Being, pure being, – with
no other determination. In its undetermined immediacy it is only identical to itself,
and it is not unequal as opposed to the other, has no difference inside its own, nor
to the outside. Through some determination or content that is differentiated in it or
through which it would be posited as different from another, it would not be
captured in its purity. It is the pure indetermination and void. There is nothing to
intuit in it, if one can speak of intuiting here; or it is only this pure, empty act of
intuiting itself. It is very little to think something in it, or it is only this empty
thinking. Being, the undetermined immediacy is in fact nothing, and nothing more
nor less than nothing.)
29
Cf. Wissenschaft der Logik II, ed. F. Hogemann & W. Jaeschke, GW12, p. 236f.
178 Luís M. Augusto

in act; but Aristotle never said clearly that this agent intellect is in the
human soul, though in certain passages he says that the soul is the
place of the forms (yet again, he could be referring to the possible
intellect). What matters to us is that the Stagirite establishes a formal
identity between the subject and the object, and Eckhart, again, is
faithful to this source:

But it so happens that my eye is one and simple in itself, and that it opens
and is directed to the piece of wood in contemplation; so remains each that
which it is, but both become in the act of the contemplation only one in
such a way that one can truly say eyewood, and the wood is my eye. 30

However, we are not facing a pure Aristotelianism, and the


entire metaphysical tradition of the Middle Ages makes itself evident
in the fact that Eckhart sees this identity as one in being (though not
ontological, i.e. the subject is not the object, and vice versa): the
intellect knowing a thing and that thing are formally just one being. 31
And we already know why: because being is a product of the intellect.
But that the intellect is at the same time also a being, when according
to the Neoplatonic metaphysics to which Eckhart remains attached the
cause cannot be present in the effect if it is a true cause 32 means only
that the intellect is, as a being, cause of itself.

30
Pr. 48, DW II, p. 416: Geschihet aber daz, daz mîn ouge ein und einvaltic ist in im
selben und ûfgetân wirt und ûf daz holz geworfen wirt mit einer angesiht, sô blîbet ein
ieglîchez, daz es ist,und werdent doch in der würklicheit der angesiht als ein, daz man
mac gesprechen in der wârheit: ougeholz, und daz holz ist mîn ouge.
31
Ibid: Wære aber daz holz âne materie und ez zemâle geistlich wære als diu gesiht mînes
ougen, sô möhte man sprechen in der wârheit, daz in der würklicheit der gesiht daz holz
und mîn ouge bestüenden in éinem wesene. Ist diz wâr von lîplîchen dingen, vil mê ist
ez wâr von geistlîchen dingen. (But if the wood were without matter and purely
spiritual like the vision of my eye, one could say in truth that, in the act of vision,
the wood and my eye would consist in one single being. If this is true of the
corporeal things, it is even more so of the spiritual things.)
32
Cf. Quaestio Parisiensis II, n. 10, ed. B. Geyer, LW V, p. 54. Cf. also Pseudo-
Dionysus, De divinis nominibus, II, 8, 645C-D, ed. B. R Suchla, Corpus
Dionysiacum I, Berlin – New York, Walter de Gruyter, 1990.
Eckhart’s Bilder 179

2.2 A Christian Ontological Recreation of Aristotle’s Doctrine of


Cognition
Interestingly enough, Eckhart’s doctrine of the bilder is elaborated
mostly in the German sermons, in which he goes from orthodoxy to
daring, sometimes in the same paragraph. His expression is somehow
‘conservative’ in the Latin texts, the doctrine of the ideas remaining in
them very much unchanged in relation to the tradition that handed it
to him. Given that his sermons in German are usually more
innovative, and that in the same text Eckhart often mixes orthodoxy
with originality, one is hardly surprised to find in sermon no. 17 a
monotonous explanation of the doctrine of the forms – bilder for him
– as it was conceived by Latin thought 33 being used merely as an
introduction with a view to some sort of philosophical ‘impact’:
explained the doctrine of the ideas within an Aristotelian background
(that is to say that in order to know something, and thus become that
very thing, the intellect must be like a blank slate), Eckhart claims that
it is the responsibility of the knower to become ‘blank,’ so as to be
capable of accepting all forms and therefore become every thing, and
especially, as a Christian, God himself.
This is none other than the doctrine of the abegescheidenheit,
the source of the most mystical interpretations of his thought precisely
because they miss this eminently technical aspect: that it roots directly
in Aristotle’s doctrine of abstraction. At most, it is an Aristotelian
doctrine adapted to a Christian worldview that renders the individual
responsible not only for her/his actions, premeditated or accidental,
but even for thoughts, conscious or unconscious. This is obviously
difficult to conciliate with Eckhart’s intellectualism, inasmuch as this is
a notoriously voluntarist doctrine, 34 but again this is mere appearance:

33
Cf. Pr. 17, DW I, p. 290-1.
34
I do not really think there can be any doubt of the side chosen by Eckhart; the
following passage from Pr. 37, DW II, p. 216, merely one in many, shows this side-
taking: Vernünfticheit ist eigenlîcher ‘kneht’ dan wille oder minne. Wille und minne
vallent ûf got, als er guot ist, und enwære er niht guot, sô enahteten sie sîn niht.
Vernünfticheit dringet ûf in daz wesen, ê si bedenke güete oder gewalt oder wîsheit oder
swaz des ist, daz zuovellic ist. (The intellect is a more genuine servant than the will or
love. The will and love attach themselves to god as long as he is good, and if he were
not good, they would not care for him. The intellect penetrates in the being before
180 Luís M. Augusto

as a consistently devoted Neoplatonic, he is again only following these


masters according to whom it is inevitable that the created thing will
turn to its creator, the One, and this in a spontaneous way; Eckhart’s
man, too, turns spontaneously to God, and because this is a
spontaneous act not dependent so much on the will as on the nature
of creation, he rejects all sorts of actions deemed capable of bringing
God to man, i.e. fasts, unending prayers, self-flagellations, the morbid
whatnot that seemed to make the cup of tea of many medieval
Christians. His abegescheidenheit is a detachment, without doubt, but
it is a positive one in that it is merely intellectual: just as one who
solves a mathematical problem concentrates on the numbers and their
relations, so the individual willing to know – better: be – all the forms
has to abstract him-/herself from all materiality. Rather than of
abandonment or detachment, and as already pointed out, one should
speak of concentration.
This interpretation counterbalances those more mystical ones,
which see in the abegescheidenheit some sort of doctrine of ecstasy, or
even of apatheia, the absence of sensation and feeling. It is a fact that
Eckhart abundantly uses terms and expressions that convey the
meaning of detachment and disinterest, 35 but he always makes a
connection between this ‘self-annihilation’ and Aristotle’s doctrine of
abstraction, which suggests that he constantly keeps in mind the
technical meaning of this source. One can also hypothesize that this
vocabulary is addressed to an audience in its vast majority composed
by Dominican nuns, most of them not learned in philosophical
matters, and who were certainly far better acquainted with the
vocabulary of the female Rhineland mystics than with that of both
technical theology and philosophy, namely that of Aristotle. By this I
do not mean that he made his thought more accessible; much on the

thinking about the good or power, about wisdom or whatever it is that is


accidental.).
35
Words of these semantic fields are, for instance, nouns such as gelâzenheit, not
caring, vernihtung, annihilation, abelegung, undressing, blôzheit, nudity, and verbs
such as [sich] ergeben, to abandon [oneself], [sich] abeschelen, [sich] berouben, [sich]
entschelen, to undress [oneself], lâzen, leave, ledic machen, detach, uzgân, go out,
leave, flow, etc.
Eckhart’s Bilder 181

contrary, this highly metaphorical language makes the interpretation of


his thought if anything more difficult. Moreover, Plato, too, advocated
the need to ‘escape’ this world in order to reach the realm of ideas, and
so far no one succeeded in making of him some sort of mystic of
detachment. 36
Back to the doctrine of the bilder, and having discussed
Aristotle’s role as its main background, let us now turn again to its
most direct source, Plato; according to this, the ideas were the formal
causes, the ousia of things that were but mere copies of them; we are
thus facing a model-copy relation, a relation that Bonaventure took
without much originality for his Christian aims, and a relation that
was first rejected by Aristotle in his harsh criticism of the thought of
his former master (a criticism, however, that was firstly carried out by
Plato himself in the Parmenides). This relation between the model
(paradeigma) and the copies (homoiômata) is precisely the core of the
difficulties of the doctrine of the ideas, the main difficulty being the
resemblance between them: to postulate a resemblance between model
and copy, does this not imply that one has to postulate yet another
form, that of the resemblance between them? Certainly, answers
Socrates, unaware of where this answer is going to take him: if the
resemblance is caused by the form of resemblance, then the copy does
not resemble the model, because, besides this form, another one would
be required to justify the relation of resemblance, and so on ad
infinitum (indeed, this is precisely Aristotle’s criticism in Met. A, 9,
known as the argument of the third man); Parmenides’ conclusion,
which Socrates is forced to accept, is that the resemblance cannot
explain the relation of participation between model and copy and that
it is necessary to search for another explanation. 37
This problem is so embarrassing that it is altogether forgotten
for centuries, and it is precisely Eckhart who will be bold enough to

36
My criticism of the mystical interpretations does not aim at their elimination; if
anything, and in the name of the principle of proliferation proposed by Paul
Feyerabend, it aims to force its supporters to do a much better work than they have
done so far, neglecting or simply missing the ‘technicalities’ that, whether they want
it or not, are everywhere in Eckhart’s thought.
37
Cf. Parmenides 132c-133a.
182 Luís M. Augusto

retake it, attempting to find a good account of this relation between


the models and their copies. Sermon no. 16b is almost integrally a
treatise on this subject. In it, the solution found by the Thuringian is
ingenious: to speak of model and copy as far as the eidetic relation is
concerned has nothing to do with speaking of material models and
material copies; the terrain is altogether different. A recipient, or
container has two features: it simultaneously receives in itself a content,
and it contains it; this relation is clearly one between two different
things when we are speaking of a material container, given that a jug is
not its content, and the content is not the jug either; for instance, a jug
contains wine, and the wine is in the jug, and in spite of this to drink
the wine does not obviously mean that one drinks the jug. This clear
distinction ceases when one is talking of spiritual things; a spiritual
‘jug’ is that which it contains, and the content is that which contains
it.
It is very much evident that Eckhart establishes the analogy
between jug and soul through the notion of containing, and the soul is
thus characterized by this notion: it contains all the forms of all things.
And if one follows Aristotle’s claim that the knower resembles the
thing known, then there can be no distinction between the container
and the content. Eckhart’s conclusion is abrupt, and it is ultimately of
a theological character, in that the soul of the individual that ‘contains’
God is God himself. His highly allegorical explanation features eggs:
two resembling eggs are not the same egg, precisely because they are
not each other’s bilde; if there is bilde, then there is resemblance,
because if something has to be the bilde of another thing, then that
relation must come from its very nature, it must be a fruit of that
nature, and must be identical to it. 38 For all this, it is very much
obvious that the Middle High German word bilde is better left
untranslated, since it means at the same type the model, the copy, and
the archetype, and that the term resemblance, translating the Middle
High German ‘glîcheit,’ is but a very poor translation itself, the original
word conveying a mixture of resemblance and identity.

38
Pr. 16b, DW I, p. 265: [W]an daz des andern bilde sol sîn, daz muoz von sîner natûre
komen sîn und muoz von im geborn sîn und muoz im glîch sîn.
Eckhart’s Bilder 183

Adopting an analytical structure much more frequent in his


Latin texts, Eckhart characterizes this resemblance, which entails an
ontological identity in four properties between the bilde and that of
which it is the bilde:

1. The bilde receives its being immediately from that of which


it is the bilde;
2. this ‘resemblance’ entails that:
1.1. the bilde is not of itself or for itself;
1.2. it derives from that of which it is the bilde and belongs
to it completely;
1.3. it has a being with that of which it is the bilde and it is
the same being.

The example he gives is the one of vision, an example very


much resorted to since Antiquity and throughout the Middle Ages to
illustrate theories of perception and cognition, and thus theories of
intelligible forms. The eye has an image when it perceives something,
but this image does not belong to it; it belongs to the thing of which it
is the image. Although the image ‘comes out’ of a thing, it is ‘one’ with
that thing: it is the very thing itself, the same being. But when the eye
sees the thing, vision, the action of seeing, becomes that very thing,
too, having the same being precisely because they both share the same
image. Is there anything new in this doctrine? Not really: a brief
analysis shows us that we are not far from Aristotle’s De anima:

(1) In sensation, it is the things themselves that affect the


body.
(2) They do it through their qualities, such as color, sound,
taste, etc; therefore, they do it through their forms and not
through their matter. 39
(3) In sensation, like is affected by like. 40

39
Cf. De anima II, 12, 424b10-11 and 424a17-24.
40
That is, the perceiving organ, in the act of sensation, becomes the ‘quality’ it senses;
cf. ibid., 5, 417a18-21 and 418a4-6.
184 Luís M. Augusto

If
(4) thinking is a –bodily? – process like sensing, 41
then
(5) in the act of knowing, like is affected by like. 42

The conclusion one draws from this argument is that, when


one knows a thing, one becomes in a way that thing; the subject and
the object ‘share’ the same intelligible form in act in the action of
cognition. But Eckhart seems to go further than this, claiming that the
form is the very being of a thing, its quoddity; moreover, he claims
that the being of a thing is given by the intellect possessing its essence.
But there is still nothing really new in this, because Aristotle, too, had
stated that the agent makes that which is in potency identical to
itself, 43 i.e. the sensible object makes the sense organ like it: eyesight,
being in potency all its sensibilia, the visible things, is made into gold
by the vision of gold. If thinking is a process akin to sensing, as seen
above, then having the form of a thing is to become that form in act,
because the soul is potentially all the intelligible forms.

3 Conclusion
With the above analysis, I showed that, at the technical and formal
levels, Eckhart’s doctrine of the bilder is an Aristotelian epistemic
recreation of Plato’s doctrine of the ideas and a Christian ontological
recreation of Aristotle’s doctrine of cognition. It is an intellectualist 44
solution to the problem of the resemblance relation between the model
and its copy, and it is an intellectualist solution in that it first
establishes a formal-epistemic identity between both to establish the
ontological identity between thought and reality: reality is nothing but

41
Actually, Aristotle rejects that thinking is a bodily process like sensation (cf. ibid.,
III, 3, 427a19-427b6), but he seems to accept that thinking and sensation are alike
processes, at least in the case of the possible intellect (cf. ibid., 4, 429a13-22).
42
Although Aristotle apparently rejects this theory (cf. ibid., III, 3, 427a27-8), it does
not differ from his statement that the possible intellect thinking an object is in
entelechy that object (cf. ibid., 4, 429b31).
43
Cf. ibid., II, 11, 424a1-2.
44
As a matter of fact, it is an idealist solution, but I cannot go into that subject in this
paper.
Eckhart’s Bilder 185

thought, because it is the latter that first has the essences, or forms of
everything there is. Eckhart’s intellectualism is coherent through and
through, inasmuch as he never leaves the terrain of the intellect,
making of both the Platonic ideas and the Aristotelian intelligible
forms true tools of donation of being. If much in his thought seems at
first ‘too’ original, or even mystical, this is only when one neglects or
altogether misses its Aristotelian and Platonic roots.

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186 Luís M. Augusto

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Preservação da dignidade humana e aperfeiçoamento moral: a
noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo”

Letícia Machado Pinheiro *

Resumo: Tomando como fontes basilares a “Doutrina da Virtude” (segunda parte da


Metafísica dos Costumes) e a Lições de ética – obras nas quais Kant trata com mais
afinco o tema intentado –, o texto que segue apresenta em linhas gerais a noção
kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo”. Partindo das dificuldades que
Kant aponta como subjacentes ao conceito de “dever para consigo mesmo” e,
definindo os pontos distintivos entre deveres perfeitos e imperfeitos, pretende-se
apresentar os pontos por ele realçados como pertencentes aos deveres perfeitos que o
agente moral tem para consigo próprio.
Palavras-chave: Deveres, Kant, Moral, Natureza humana, Progresso

Abstract: Taking basic sources as the “Doctrine of Virtue” (second part of Metaphysics
of morals) and Lectures on ethics – works in which Kant addresses the issue with more
precision – the text that follows shows in general the concept of Kantian “perfect
duties to oneself”. On the difficulties that Kant located in the concept of “duty to
oneself” and by defining the distinction between perfect and imperfect duties, it is
intended to present the points highlighted by Kant as belonging to the perfect duties
that the agent for has itself.
Keywords: Duties, Kant, Moral, Human nature, Progress

1 Dificuldades na noção de “dever para consigo mesmo”


Kant admite pelo menos duas dificuldades no que tange à concepção
de “deveres para consigo mesmo” (Pflichten zu sich selbst): por um lado,
ele salienta que se trata de um tema interpretado erroneamente pelas
filosofias morais em geral; por outro, reconhece que porquanto o
conteúdo dos “deveres para consigo mesmo” seja compreendido de
maneira adequada – ou seja, ainda que a primeira dificuldade seja
sanada –, essa noção permanece problemática, na medida em que
parece envolver em seu próprio conceito uma contradição.

*
Doutoranda em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS. E-mail: leticiamachadopinheiro@yahoo.com.br. Artigo recebido em
21.07.2008, aprovado em 19.12.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 187-208


188 Letícia Machado Pinheiro

Relativo ao primeiro ponto, Kant menciona nas Lições de ética


(obra fruto de um curso acadêmico, publicada somente em 1924) 1 que
“nenhuma outra parte da moral tem sido tratada de forma tão
deficiente como a que versa sobre os deveres para consigo mesmo” 2 (LE,
339-340). Kant justifica essa deficiência denunciando que nas filosofias
morais em geral, os “deveres para consigo mesmo” são restritos ao signo
da promoção da felicidade e do bem estar próprios. Tal restrição
redunda, por um lado, em eles serem concebidos tão-somente como
complementos da moralidade (o que deprecia a sua importância); por
outro, e em consequência disso, que sejam postergados aos outros
deveres, como se não se constituíssem em matéria da moral no sentido
forte do termo. Kant se mostra de tal modo contrariado com essa
posição relativa aos “deveres para consigo mesmo”, a ponto de afirmar
– de modo incisivo e categórico – que “no tocante a esse capítulo todas
as filosofias morais resultam falsas” 3 (LE, 340). Em vista disso, ele busca
esclarecer – e ao seu modo superar as filosofias morais que interpretam
o “dever para consigo próprio” de maneira destorcida –, que tais

1
Segundo alguns estudiosos, o ano de exercício do curso varia entre 1775 e 1789 –
sendo que no próprio livro a data apresentada é de 19 de abril de 1785. A pouca
recorrência dos comentadores à obra Lições de ética é fruto de sua impopularidade,
cuja imposição se deu pela demora de sua edição, ocorrida (pelo empenho de Paul
Menzer) apenas em 1924 sob o título Eine Vorlesung Kants über Éthik. Entre 1974 e
1979, Gerhard Lehmann a incluiu na edição da Akademie (base da tradução aqui
utilizada). A primeira tradução da Lições de ética apareceu em 1930 para o inglês
(Lectures on Ethics) efetuada por Louis Infeld, na qual consta um prólogo escrito por
Beck. A que dela se segue é a espanhola (da qual nos servimos) editada em 2002
com a tradução de Roberto Rodríguez Aramayo e Concha Roldán Panadero, que
conta com um estudo inicial de Aramayo intitulado “La cara oculta del formalismo
ético” (p.07-34). É com as suas palavras, inclusive, que se pode sintetizar de maneira
bastante precisa a leitura de tal obra: “Nas Lições de ética se encontram muitos dos
fermentos que terminaram por catalisar o formalismo ético, só que expressos por
uma linguagem mais tosca e menos técnica”(Aramayo, p.18. In: Lições de ética). “En
las Lecciones de ética se encuentran muchos de los fermentos que terminaron por
catalizar el formalismo ético, sólo que expressados com un lenguaje más tosco y
menos tecnificado”.
2
“ninguna outra parte de la moral há sido tratada de forma tan deficiente como la
que versa sobre los deberes para com uno mismo”.
3
“En lo tocante a este capítulo todas las filosofías morales resultan falsas”.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 189

deveres devem ser interpretados como “independentes de todo o


proveito”, atendendo “tão-só à dignidade do ser humano” 4 (LE, 342-
343).
Com essa sua interpretação, Kant propõe uma transição na
concepção dos “deveres para consigo mesmo”, que consiste no seguinte:
retirá-los de seu caráter vulgar (no qual eles são abreviados pela busca
das próprias satisfações), concebendo-os em uma conotação mais
racionalista em que se põe em evidência a dignidade humana. Essa
transição é suposta por Kant, sobretudo em função de ele conceber a
moralidade como referente a um agir universal e racionalmente aceito
por todos (concebido livre de qualquer condição subjetiva) visando
aprimorar o que há de característico e distintivo no humano: a
racionalidade. Tal concepção de moralidade não comporta o modo
como até então o “dever para consigo mesmo” ordinariamente era
concebido. Sob tal figuração, esse dever, além de resultar em um
princípio egoístico (o que por si só contradiria a prática moral),
converter-se-ia teoricamente em uma dupla contradição: uma, seria um
dever desprovido de caráter objetivo (a felicidade e o bem seriam
concebidos em função da subjetividade de cada indivíduo); outra,
concebido nesses termos o “dever para consigo mesmo” se constituiria
em um obstáculo ao dever para com os outros.
Kant em sua interpretação tem, pois, um propósito bem
definido: compatibilizar a noção de “dever para consigo mesmo” com a
prática moral. Tal dever ele o define como uma obrigação que põe em
evidência a humanidade do indivíduo, ou seja, os caracteres que o
distinguem dos demais seres da natureza. Trata-se, com efeito, de um
dever de preservação, de manutenção e de aperfeiçoamento do homem
sob a perspectiva da sua natureza humana como um todo, ou seja, no
seu aspecto animal e racional.
Kant, e agora independentemente de qualquer elucidação e
subversão teórica no que tange ao conteúdo dos “deveres para consigo
mesmo”, admite uma segunda dificuldade: a de que essa noção encerra
em si mesma uma aparente contradição. Só pelo fato de ele qualificar tal

4
“son independientes de todo lo provecho y atienden tan sólo a la dignidad del
género humano”.
190 Letícia Machado Pinheiro

contradição de aparente, deixa claro que uma solução já é figurada.


Apesar disso, Kant não se furta de descrever o problema, e o faz nos
seguintes termos: “Se o eu que impõe obrigação for tomado no mesmo
sentido do eu que é submetido à obrigação, um dever para consigo
mesmo será um conceito contraditório” (MC, 417). Kant parte da
suposição clássica de que no âmbito do dever existem dois domínios: o
daquele que ordena e o daquele que recebe a ordem. No caso de um
“dever para consigo mesmo”, esses dois domínios colapsam em um
mesmo agente. Para usar os termos kantianos, o sujeito “obrigante” (do
dever) e o sujeito “obrigado” (pelo dever) estariam em um mesmo
agente, de modo que, inclusive, o “obrigante” poderia prescrever
apenas deveres “agradáveis” ao “obrigado”, ou até mesmo, exonerá-lo
de cumprir a obrigação.
A fim de resolver essa dificuldade que ele denomina de aparente
contradição, Kant recorre, primeiramente, a um argumento mais
amplo, relativo à suposição de que se não houvesse tais deveres (para
consigo mesmo) não se poderia conceber nenhum outro dever em
geral. Kant, pois, num primeiro momento, não se dedica a resolver a
contradição em si mesma, mas tão-somente em provar que, embora o
argumento de que não se possa conceber “deveres para si mesmo” não
esteja teoricamente bem fundamentado, é plausível não admitir a sua
impossibilidade sob pena de, no âmbito da razão prática, abolir todo o
tipo de deveres 5 . Num segundo momento, porém, Kant se empenha
em resolver a contradição no interior dela mesma, em dependência do
que nos oferece a seguinte resposta: a propósito dos “deveres para
consigo mesmo”, há que se distinguir o sentido do termo homem
(Mensch) quer como “obrigado” quer “obrigante”.

5
Essa íntima ligação entre os “deveres para consigo mesmo” e os outros deveres, a
ponto de a exclusão dos primeiros fomente a dos últimos, Kant a concebe nos
seguintes termos: “Pois supondo que não houvesse tais deveres [para si mesmo], não
haveria deveres quaisquer que fossem e, assim, tampouco deveres externos, posto
que posso reconhecer que estou submetido à obrigação a outros homens somente na
medida em que eu simultaneamente submeto a mim mesmo à obrigação, uma vez
que a lei em virtude da qual julgo a mim mesmo como estando submetido à
obrigação procede em todos os casos de minha própria razão prática e no ser
constrangido por minha própria razão, sou também aquele que constrange a mim
mesmo” (MC, 417-418).
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 191

O ser humano [diz ele], como ser natural possuidor da razão (homo
phaemenon), pode ser determinado por sua razão, como uma causa, as ações
no mundo sensível e, até aqui, o conceito de obrigação não é considerado.
Mas o mesmo ser humano, pensado em termos de sua personalidade, ou seja,
como um ser dotado de liberdade interna (homo noumenon), é considerado
como um ser que pode ser submetido à obrigação e, com efeito, à obrigação
para consigo mesmo (para com a humanidade em sua própria pessoa) (MC,
418).

Kant, pois, recorre à sua famosa proposição do “homem como


cidadão de dois mundos”, e com essa sua teoria pretende justificar que,
embora o “obrigante” e o “obrigado” – enquanto protagonistas do
“dever para consigo mesmo” – estejam contidos no mesmo ser, não o
estão sob a mesma perspectiva 6 . É, pois, nesse “palco” que Kant abona
a possibilidade de se conceber a noção de “deveres para consigo
mesmo” sem contradição: de um lado, tem-se o sujeito reconhecedor e
condescendente a uma lei incondicional, legislando-se a partir dela; de
outro, tem-se o ser racional finito, que também é capaz de reconhecer e
aderir a tal lei, mas é frágil e falível, o que inibe a atualização da sua
capacidade.

2 Deveres perfeitos e imperfeitos


Quanto à sua qualidade, Kant divide os “deveres para consigo mesmo”
em “perfeitos” e “imperfeitos”. Apesar de oferecer essa divisão, Kant,
contudo, não é tão claro quanto a essa perfeição ou imperfeição dos
deveres. H. J. Paton, fazendo coro com a grande maioria dos
comentadores, reconhece que “Kant concede grande importância para a
distinção entre deveres perfeitos e imperfeitos, mas parece não definir
em parte alguma a distinção claramente” 7 (Paton, 1947, p.147). Apesar

6
Allen Wood explica que “o que é distintivo acerca do conceito de um ser
imperfeitamente racional e autolegislador (um ser com personalidade em sentido
kantiano) é que esse conceito envolve a relação entre duas pessoas que são
combinadas em um único e mesmo ser” [“what is distinctive about the concept of
an imperfectly rational and self-governing being (a being with ‘personality’ in the
Kantian sense) is that this concept involves that of a relation between two person
who are combined in one and the same being”] (Wood, 2006, p.12).
7
“Kant attaches great importance to the distinction between perfect and imperfect
duties, but he seems nowhere to define the distinction clearly...”
192 Letícia Machado Pinheiro

de não haver um elemento textual pelo qual Kant exponha com nitidez
as nuances entre “deveres perfeitos e imperfeitos”, Paton ressalta que ao
menos podemos indicar como tais deveres não são concebidos pelo
ponto de vista kantiano. Kant não se serve da noção de tais conceitos
(sugere o comentador) no mesmo sentido ordinário das escolas da
época. “O uso ordinário observava os deveres como perfeitos se eles
pudessem ser impostos por uma lei externa, e como imperfeitos se eles
não pudessem ser impostos assim” 8 (Paton, 1947, p.147). Kant não
pode acatar tal distinção (diz Paton) uma vez que, tal como ela é
edificada, pressupõe os “deveres perfeitos” somente com relação a um
outro, ao passo que Kant admite que temos “deveres perfeitos” também
com relação a nós mesmos (Cf. Paton, 1947, p.147).
Nos raros momentos nos quais Kant se vale dessas noções de
“perfeito” e “imperfeito” relativas ao “dever para consigo mesmo”, fica
posto que os “deveres perfeitos” são assim qualificados em função de
serem estritos: ordenam explicitamente o que se deve e o que não se
deve fazer. Os deveres “imperfeitos”, por sua vez, são de alcance amplo:
sugerem um modo de agir. Dada essa caracterização inicial de cada um
desses deveres em termos de restrição e amplitude, fica saliente que os
“deveres perfeitos” figuram uma “obrigação”, ao passo que os
“imperfeitos” um, por assim dizer, “conselho” 9 (pois apontam tão-
somente para um agir maximamente recomendável). É isso, inclusive, o
que sublinha Kant na seguinte passagem da Metafísica dos costumes:

Quanto mais lato o dever, mas imperfeita é a obrigação de um homem para


com a ação (...). Deveres imperfeitos são, conseqüentemente, apenas deveres
de virtude. O cumprimento deles é um mérito (meritum) = +a; mas o não
cumprimento deles não é em si mesmo culpabilidade (demeritum) = -a, mas a

8
“The ordinary usage regarded duties as perfect if they could be enforced by external
law, and as imperfect if they could not be so enforced”.
9
No “Teorema IV” da “Analítica da razão prática pura”, na Crítica da razão prática
(1788), Kant faz uma breve menção daquilo que é tomado como um “dever” em
relação ao quê é figurado como um “conselho”: “A máxima do amor de si
(prudência) apenas aconselha; a lei da moralidade ordena. Há, porém, uma grande
diferença entre aquilo que se nos aconselha e aquilo para o qual somos obrigados”
(CRP, 64).
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 193

mera deficiência de valor moral = 0, a menos que o sujeito erija como seu
princípio não aquiescer a tais deveres (MC, 390).

Os chamados “deveres perfeitos”, por serem obrigatórios e


incondicionais, são diretamente proporcionais à noção de
imputabilidade (e com ela, de mérito e demérito); os “imperfeitos”,
contudo, por estarem eximidos da obrigação, isto é, por permitirem
hesitação e ajuizamento, não fundam demérito caso não seguidos, mas,
se acatados, geram mérito 10 . Assim, o agente que realiza os “deveres
imperfeitos” acumula um, por assim dizer, plus moral, pois além de
cumprir a sua obrigação, ainda segue o que é recomendado fazer. Disso
não resulta, porém, que os “deveres imperfeitos” possam ser manejados
sem compromisso pelos agentes, pois, ainda que sejam imperfeitos, eles
permanecem como deveres (Pflichten), e isso significa que seguindo
uma máxima de dever imperfeito nós não estamos “livres para
abandonar a máxima, mas apenas para limitá-la por uma outra máxima
do dever” 11 (Paton, 1947, p.147).

3 Deveres perfeitos para consigo mesmo


Relativo aos “deveres para consigo mesmo”, Kant os concebe dentro do
que ele chama de divisão objetiva e divisão subjetiva. Dentro da divisão
objetiva, ele distingue dois tipos de deveres: os restritivos ou de omissão
e os deveres ordenativos ou de execução. Os primeiros são restritivos
porque “proíbem um ser humano de agir contrariamente ao fim de sua
natureza e, assim, têm a ver meramente com a sua auto-preservação
moral”; os ordenativos evidentemente “ordenam a fazer de um certo
objeto de escolha o seu fim, concernem ao aperfeiçoamento de si

10
A propósito da motivação de Kant em admitir os “deveres imperfeitos” como
deveres (malgrado a sua latitude e não obrigação estrita), Allen Wood explica que tal
ocorre porque as ações por eles recomendadas “são concebidas como objetos de
preparação da autocoerção – coisas que nós podemos fazer nós mesmos executar
através do exercício da razão e dos sentimentos morais nascidos da aplicação da
razão prática para a nossa faculdade de desejar” [are conceived as fit objects of self-
constraint – things we can make ourselves do through the exercise of reason and the
moral feelings arising from the application of practical reason to our faculty of
desire] (Wood, 2006, p.01).
11
“free to abandon the maxim, but on to limit it by the maxim of another duty…”
194 Letícia Machado Pinheiro

mesmo” (MC, 419). No contexto da divisão subjetiva, Kant se refere


não a, digamos, deveres do agir e, sim, ao modo como os “deveres para
consigo mesmo” devem ser direcionados à natureza humana. Tendo em
vista essa natureza, Kant considera o homem sob dois aspectos, em
dependência dos quais supõe os deveres 12 : o homem como ser animal e
simultaneamente moral, e o homem somente como ser moral. Para o
primeiro (enquanto ser animal e simultaneamente moral), Kant supõe
que “os deveres para consigo mesmo” devem ser fundamentados no
seguinte princípio: “‘viva em conformidade com a natureza’ (naturae
convenienter vive), ou seja, preserva a si mesmo na perfeição de sua
natureza. Para o segundo (para o homem como ser unicamente moral),
Kant pensa os “deveres para consigo mesmo” fundados no seguinte
aforismo: “‘faça a si mesmo mais perfeito do que a simples natureza lhe
fez’ (perfice te ut finem; perfice te ut médium)” (MC, 419). No que tange
aos “deveres perfeitos do homem para consigo mesmo”, os deveres
pertencentes à classe do homem como ser animal e simultaneamente
moral, Kant, os concebe como restritivos ou de omissão (no sentido de
que dizem o que não se deve fazer); os outros, ligados ao homem
considerado unicamente como ser moral, alguns são de omissão, outros
de execução.

3.1 Deveres perfeitos do homem considerado como um ser animal e


simultaneamente moral
Kant antecede os deveres do homem como ser animal e ao mesmo tempo
moral àqueles prescritos como ser unicamente moral. Disso, porém, não
se segue que os primeiros sejam tomados por Kant como mais
proeminentes que os segundos. Referindo-se aos deveres do homem
enquanto ser animal e simultaneamente moral, Kant diz que “o
primeiro, ainda que não o principal dever de um ser humano para

12
Tal divisão seria um dos motivos pelos quais Kant não apresenta nesse contexto
todos os deveres que, geralmente, atribui aos homens. Ou seja, na Metafísica dos
costumes (1797), Kant não está concebendo os deveres morais de seres racionais em
geral, mas aqueles referentes à natureza humana. Isso explica, inclusive, a inserção de
itens de “casuística” (estudo dos problemas concretos que se apresentam à ação
moral) no decorrer da obra, algo incomum nos textos kantianos.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 195

consigo mesmo como um ser animal, é preservar a si mesmo em sua


natureza animal” (MC, 421).
Malgrado Kant afirme que o dever da conservação (animal) não
é o mais relevante, uma vez que se relaciona tão-somente com a
preservação física e com todos os excessos que a animalidade carrega
consigo, não poderia deixar de admiti-lo como primeiro, pois é ele que
roga pela integridade (material) do agente da moralidade e se faz como
pressuposto para a aplicação de todos os outros deveres. É claro que,
primordialmente, a animalidade é uma disposição pertencente ao
homem como ser físico, mas disso não se segue que ela não contenha
uma conotação moral. A animalidade humana tem, por assim dizer,
uma conotação moral na medida em que ela oportuniza, mesmo que
indiretamente, o desenvolvimento da moralidade no homem, isto é, na
medida em que mantém o instinto de sobrevivência de uma espécie (a
humana) capaz de reconhecer a lei moral 13 .
Kant, a propósito dos deveres do homem como ser animal e
moral, restringe tais deveres ao que ele chama de omissão, pelos quais
põe em foco a necessidade de combater vícios que se opõe ao “dever
para consigo mesmo”(Cf. MC, 421). Tais, deveres de omissão –
característicos do homem tomado como ser animal e ao mesmo tempo
moral –, Kant os deriva a partir de três fins básicos da natureza animal:
o da preservação da vida, o da conservação da espécie e o da
manutenção e defesa da vida. Desses três fins são extraídos os seguintes
deveres que ele chama de omissão: o de repúdio ao suicídio, o de
comedimento no sexo e o de moderação na comida e na bebida.

13
Kant, na Antropologia (1798), ressalta que “o destino físico e primeiro do homem
consiste no impulso que o leva a procurar a conservação de sua espécie como espécie
animal” *(ANT, p.282). Kant, nessa passagem, concede ênfase à idéia de destino
físico, que, evidentemente, deve anteceder ao destino moral, visto que antes de o
homem ser considerado um ser reconhecedor da lei da moralidade, ele deve ser tido
como um membro do mundo animal. Satisfazer as necessidades, por assim dizer,
provindas de nossa natureza animal, é indispensável para que o homem possa
realizar a sua humanidade. *“El destino físico y primero del hombre consiste em el
impulso que le lleva a procurar la conservación de su especie como especie animal”.
196 Letícia Machado Pinheiro

3.1.1 Sobre o dever humano de repudiar o suicídio: Kant, nas suas


Lições de ética, avalia, em primeiro lugar, os argumentos supostamente
favoráveis ao suicídio. Tais argumentos se restringem basicamente a
dois: um, referente à liberdade do homem sobre a sua própria vida;
outro, que trata da anulação da vida em caso de não mais ser possível ao
indivíduo agir moralmente. Quanto ao primeiro argumento, ele
decorre da pressuposição ou afirmativa habitual de que se o homem
tem a liberdade de dispor de todos os bens sobre a terra (desde que não
prejudique os demais), e ainda permitir a amputação de um membro
em caso de saúde, não estaria ele também autorizado a por fim à vida,
caso ela esteja impregnada de desgraças? A esse questionamento, Kant
responde que, embora seja sedutor, esse pressuposto é falho, uma vez
que tanto dispor dos bens do mundo, quanto submeter-se a uma
imputação, são atitudes tomadas em função de um estado (Stand) e em
prol da conservação.
No que tange ao suicídio, esta é a questão primordial, ele não
abole de modo restrito um estado, uma situação aflitiva ou algo
parecido, mas, sim, a própria pessoa. Regular, pois, a admissão do
suicídio em função de valores concedidos à vida, “subjetivizaria” a
própria vida, de modo a tornar lícito ou não o suicídio em dependência
do que cada um apreciaria ou deixaria de apreciar em termos de valores
subjetivos na vida (Cf. LE, 373). Daí, segundo Kant, que o suicídio é
maximamente e incondicionalmente oposto ao dever, visto que ele
elimina as condições de cumprimento de outros deveres; e mais, “o
suicídio ultrapassa todos os limites do uso do arbítrio, dado que esse só
é possível se existe o sujeito em questão” 14 (LE, 370).
Quanto ainda ao argumento que pretende sancionar o suicídio
alegando que, no caso de não ser possível seguir uma vida conforme a
virtude, tanto melhor seria o seu término, Kant alega que ele é bastante
persuasivo, não obstante, contraditório. A contradição está em que o
primeiro mandamento da moralidade (do homem para consigo
mesmo) é a preservação da vida, visto que só quem está vivo detém a
aptidão para se submeter e trilhar o rumo da moral. Ainda que se trate,

14
“El suicídio sobrepasa todos los limites del uso del arbitrio, dado que éste sólo es
possible si existe el sujeto em cuestión”.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 197

por hipótese, do caso de alguém que nunca poderá agir moralmente,


mesmo assim ele se mantém como agente moral, uma vez que, como
homem, é detentor da consciência da lei da moralidade. Kant, aliás, na
Metafísica dos costumes, ainda que não retome tais argumentos,
mantém-se igualmente incisivo quanto ao fato de que o suicídio atenta
diretamente contra a moralidade: “aniquilar o sujeito da moralidade na
própria pessoa é erradicar a existência da moralidade mesma do
mundo” (MC, 423).

3.1.2 Sobre o dever humano de ser comedido na sua sexualidade:


quanto a uma recorrência imoderada ao sexo, Kant além da justificativa
corriqueira usada pelos recatados – de “que o ser humano abre mão de
sua personalidade (descartando-a), posto que ele usa a si mesmo
meramente como meio de satisfação de um impulso animal” –,
também emprega termos mais severos, os que se não surpreendem, ao
menos chocam os leitores mais desavisados: “tal vício [diz ele], em sua
não naturalidade, parece do ponto de vista de sua forma (a disposição
que envolve) exceder, inclusive, o suicídio” (MC, 425). Por “sua
forma”, Kant entende a disposição que envolve o indivíduo frente ao
suicídio e frente ao sexo. Claro que é bastante curioso ele relacionar
uma disposição com a outra. Todavia, ele relaciona devido ao fato de o
suicídio, por princípio, ser uma disposição não-natural, e, a sexualidade
(aquela que não tem fins reprodutivos) segundo ele também. Quanto
ao suicídio, isso é ainda o que o próprio Kant diz, ele requer coragem, o
que preserva pelo menos uma centelha do valor da humanidade; ao
passo que a entrega à concupiscência não natural 15 (concebida como a
total entrega as inclinações animais) degrada o homem.

15
“A concupiscência é classificada como não natural [diz Kant] caso se seja despertado
para ela não por um objeto real, mas pela imaginação, de modo que o próprio
indivíduo cria um objeto que é contrário ao propósito natural; pois dessa maneira a
imaginação produz um desejo contrário ao fim da natureza, e realmente um fim
ainda mais importante do que aquele do amor próprio à vida, uma vez que colima a
preservação de toda a espécie e não apenas a do indivíduo” (MC, 425). Kant cita nas
Lições de ética como exemplos dessa concupiscência (que lá ele denomina de crimina
carni contra naturam) a relação entre pessoas do mesmo sexo e a relação sexual com
animais (Cf. LE, 391).
198 Letícia Machado Pinheiro

O tema da “sexualidade” nesse contexto (vinculado, sobretudo


à liberdade sexual nos tempos modernos) é, sem dúvida, controverso e,
para não frutificar mal entendidos, merece ser recepcionado dentro da
conjuntura na qual Kant o propõe, isto é, dos fins estabelecidos pela
natureza. Nesse sentido, o prazer sexual não é um fim da natureza
strictu sensu, mas tão-somente a reprodução. O que Kant, todavia,
questiona não é propriamente o prazer sexual, mas o uso da sexualidade
tendo em vista tão-só o prazer, sem referência (e deferência) quer à
propagação da espécie, quer à humanidade que nos é distintiva.

3.1.3 Sobre o dever humano de se moderar na comida e na bebida


Relativo aos abusos na comida e na bebida (quanto à gula e ao
alcoolismo), Kant pondera que se deve tomar como um “dever para
consigo mesmo” evitá-los, porque, tanto a gula quanto o alcoolismo,
por um lado, deturpam as faculdades intelectuais do homem, e, por
outro, reduzem-no à animalidade. A redução ao caráter meramente
animal, cuja ênfase é maior, se explica pelo fato de Kant distinguir os
vícios ditos por ele de estritamente humanos (como a tendência à
mentira e à comparação), daqueles que são brutais (que envolvem a
gula e o alcoolismo, entre outros) (Cf. LE, 380). Dentro de seu ponto
de vista, o que se questiona, não é propriamente o fato de o homem ter
vícios, mas, sim, o de se associar a vícios que não são peculiares à
condição humana. Kant, com efeito, e em última instância, não valora
negativamente a animalidade, mas a sua conjunção desmedida com a
humanidade, isto é, o fato de o homem tomar como seus, vícios que
são próprios da condição meramente animal.
Um fato curioso, é que Kant estabelece uma espécie de
hierarquia entre esses dois vícios (do excesso na comida e na bebida) e
parece conceder à embriaguês, ou melhor, como ele diz à inclinação
para o álcool, uma função no processo da sociabilidade humana:

A inclinação à bebida não é tão rasteira, já que a bebida é um meio útil para
a sociabilidade e a loquacidade ao provocar certa euforia no homem, e é
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 199

desculpável nessa medida, se bem que ao menor excesso cede lugar ao vício
da embriaguês 16 (LE, 380-381).

Quanto ao gosto pela bebida, está visto que Kant é um tanto


quanto condescendente, e até mesmo se mantém entusiasta, desde que
o recurso ao álcool não seja excessivo. No que tange à gula, contudo,
ele é categórico:

o vício da embriaguês não resulta tão depreciável quanto o da gula, que é


muito mais abjeto, não só porque nada tem a ver com a sociabilidade, mas
por tratar-se de uma mera exibição de bestialismo 17 (LE, 381).

Kant, com efeito, não se detém com afinco a explicar essa sua
proposição. O que fica claro é que todo o excesso é questionável, sendo
por ele curiosamente admitida certa demasia, desde que modesta, no
caso da bebida, com a justificativa de servir ou tratar-se de um
instrumento de sociabilização.

3.2 Deveres perfeitos do homem considerado unicamente como ser


moral
No que concerne aos “deveres perfeitos do homem para consigo
mesmo”, na medida em que ele é considerado unicamente como ser
moral, Kant os elucida quer como deveres de omissão, (relacionados
com a fuga da mentira, da avareza e da falsa humildade) 18 , quer como
deveres de execução (relacionados com a promoção da moralidade), os
quais encerram o autoconhecimento moral e o “dever para com os
outros” (nos termos que ele delimitará). Ambos os tipos de

16
“La inclinación a la bebida no es tan rastrera, ya que la bebida es un médio últil
para la sociabilidad y la locuacidad, ao provocar cierta euforia em el hombre, y es
disculpable en esa medida, si bien el menor exceso da lugar ao vicio de la ebriedad”.
17
“el vicio de la ebridad no resulta tan despreciable como el de la glotonería, que es
muito más abyecto, no solo porque nada tiene que ver con la sociabilidad, sino por
tratarse de uma mera exhibición de bestialismo”.
18
Segundo o comentário de Allen Wood, Kant deriva os três deveres negativos
referidos à mentira, à avareza e à falsa humildade dos três objetos que, em sociedade,
são por ele admitidos como elementos que conduzem os indivíduos a usar os seus
semelhantes como meios, a saber: o poder, a riqueza e a honra (Cf. Wood, 2006,
pp.16-17).
200 Letícia Machado Pinheiro

mandamento (de omissão e execução) têm por finalidade levar o


indivíduo a se pôr de acordo com os “deveres perfeitos do homem para
consigo mesmo considerado unicamente como ser moral”. Nos
primeiros, contudo, é pressuposto o repúdio ao vício (como, por
exemplo, evitar a mentira e a avareza), enquanto que os segundos visam
unicamente o aperfeiçoamento moral do homem. Esses dois tipos de
mandamento são diretamente proporcionais, não só porque tem como
objetivo comum a qualificação moral do homem, mas, principalmente,
porque atuam de forma escalar na promoção desse objetivo. A
interrupção dos vícios que obstruem o progresso moral (tal como é
proposto nos deveres de omissão) careceria de sentido, caso a partir
disso, não frutificasse um progresso efetivo em direção à moralidade; de
modo análogo, os deveres de edificação moral (de execução) seriam
improfícuos sem antes terem sido extirpados os vícios que obstruem o
progresso moral. Kant supõe, portanto, num primeiro plano, deveres
cuja função é evitar que o homem se degrade moralmente, e,
posteriormente, deveres que desenvolvam e aperfeiçoem o caráter moral
nele sito.

3.2.1. Deveres de omissão


a) Mentira: Kant é de opinião que a maior violação dos “deveres do
homem para consigo mesmo”, na medida em que ele é considerado
unicamente como ser moral, é a mentira 19 . Para o indivíduo que mente
são, inclusive, reservadas duras palavras: “Pela mentira um ser humano
descarta e, por assim dizer, aniquila a sua dignidade enquanto ser
humano” (MC, 429). A verdade (Wahrheit) representa um dever do ser
humano para com a sua própria humanidade. “A maior violação do

19
Kant abomina de tal modo a mentira a ponto de, em A religião nos limites da simples
razão (1793), associá-la a uma das caracterizações do mal radical (Radicale Böse). Na
terceira vez em que menciona o termo “mal radical”, Kant põe em foco justamente a
idéia da mentira externa e interna que o homem comete acerca de suas intenções:
“Esta desonestidade de lançar poeira nos próprios olhos, que nos impede a fundação
de uma genuína intenção moral, estende-se então também exteriormente à falsidade
e ao engano de outros, o que, se não houver de se chamar maldade, merece pelo
menos apelidar-se de indignidade, e reside no mal radical da natureza humana...”
(Rel, p.44). Cf. Pinheiro, Letícia Machado. “Por que o mal é radical em Kant?”. In:
Tempo da Ciência. Vol. 15, n.30. Cascavel: Edunioeste, 2008, pp.121-135.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 201

dever de um ser humano consigo mesmo, considerado unicamente


como ser moral (a humanidade em sua própria pessoa), é o contrário da
veracidade, a mentira” (MC, 429). Nota-se que a mentira é desprezada
num primeiro momento, não pelo dano que se possa causar a um
“outro”, mas por denegrir, perante si mesmo, aquele que mentiu.
Kant distingue, na Metafísica dos costumes, a mentira interna
(pregada a si mesmo) da mentira externa (por meio da qual o homem se
torna um objeto desprezível aos olhos alheios). A mentira interna, ele a
considera mais grave do que a externa em razão de que o seu agente
“torna a si mesmo desprezível aos seus próprios olhos e viola a
dignidade da humanidade em sua própria pessoa”(MC, 429). A
mentira interna concerne à relação do agente moral com a sua própria
intenção. Ela se dá exclusivamente no campo da moralidade 20 . É do
julgamento que o homem faz a respeito de sua conduta moral que se
origina a fundação de uma boa intenção moral e que o põe em marcha
na direção do restabelecimento da disposição para o bem. Quando o
homem mente a si mesmo acerca de sua intenção, ele obscurece a
consciência da incondicionalidade da lei e atrasa o que Kant concebe
como progresso moral.
O próprio Kant confessa que a idéia da mentira interna parece
contraditória. Tal contradição decorre do fato de a mentira, para se
fazer vigente, requerer uma segunda pessoa a quem se deseja enganar.
No caso da mentira interna, existe apenas um sujeito que encerra em si
a função de enganar e de ser enganado. Apesar desse impasse, Kant não
descarta a existência de mentiras internas. Segundo ele (e nesse caso,
sem qualquer esforço argumentativo de teorizar a questão), “é fácil
demonstrar que o ser humano é efetivamente culpado de muitas
mentiras internas 21 ; porém, parece mais difícil explicar como são
possíveis...” (MC, 430).
A mentira externa pode ocorrer voluntária ou
involuntariamente, mas, em ambos os casos, em termos de moralidade,

20
Zeljko Loparic observa que a mentira interna, sendo associada diretamente à
moralidade, denota um crime contra a humanidade e tem como punição o
autodesprezo e a aversão dos outros (Cf. Loparic, 2006, p.62).
21
Kant, contudo, não aponta em que consiste tal facilidade.
202 Letícia Machado Pinheiro

a questão se põe sobre uma ação que, apesar de ter ocorrido conforme o
mandamento da lei moral, não foi motivada por ela. A mentira externa
é voluntária 22 quando o agente sabe que executou a ação movida por
móbiles exteriores ao campo da moralidade, mas promulga que agiu
por puro dever. No que se refere à mentira externa involuntária, ela
deriva da mentira interna, e se dá quando o agente se engana acerca de
suas próprias intenções e transmite esse engano aos outros.
Independentemente do modo que se apresenta, a mentira externa
perturba a imputabilidade da ação e o julgamento moral acerca de sua
execução.
b) Avareza: O avaro, na definição de Kant, é aquele que impõe
a si mesmo uma privação de prazeres de que poderia usufruir. Tendo a
possibilidade de atendê-los, ele, contudo, se compraz apenas com a sua
possibilidade, sem se remeter ao objeto de prazer propriamente dito. O
avaro, por esse ponto de vista, é alguém que inverte uma certa ordem
corriqueira de valores. Frente à riqueza, por exemplo, ele concede mais
apego ao dinheiro do que ao prazer que ele pode proporcionar. No
dizer de Kant “o avaro que tem o dinheiro no bolso” faz o seguinte
raciocínio: “como será a tua disposição de ânimo quando tiveres gasto o
dinheiro destinado ao prazer? Depois disso serás tão disposto como
agora?” Diante da possibilidade do infortúnio, conclui: então “vale
mais conservar o dinheiro” 23 (LE, 400). Assim, o avaro se priva “do
próprio gozo dos recursos do bem viver”. E se priva “de modo tão estrito
a ponto de deixar as próprias efetivas necessidades insatisfeitas” (MC
432). Daí que é essa desatenção para as próprias e reais necessidades
humanas que Kant concebe como oposta ao “dever para consigo
mesmo”. Ele assim o concebe porque vê na negação de satisfazer as
próprias necessidades uma ruptura com a capacidade racional que o

22
Na Crítica da razão pura, Kant fala de uma certa insinceridade referente “à
inclinação que temos para esconder os verdadeiros sentimentos e manifestar certos
outros, considerados bons e honrosos” (CRP, B 776). Há uma inclinação (Neigung)
do homem em manifestar aos outros, virtudes, apesar de não as possuir, porque sabe
que são bem reconhecidas aos olhos alheios.
23
“cómo será tu disposición de ánimo cuando hayas gastado el dinero destinado al
placer? Después de eso será tu tan lista como ahora, por lo que vale más conservar el
dinero”.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 203

humano tem de empregar meios em prol de fins. Enfim, e numa


definição bem meridiana, Kant concebe o avaro nos seguintes termos:
como o agente que “abandona o mundo feito um pobre estúpido que
nem se inteirou de ter vivido” 24 (LE, 405-406).
c) Falsa humildade: De modo semelhante ao que Kant define o
avaro (como aquele que se priva de prazeres, para resguardar a
possibilidade de tê-los), a “falsa humildade” é por ele referida como a
diminuição do “próprio valor moral, meramente como um meio para
conquistar o favor de outrem” (MC 436). Aqui a atitude específica
realçada por Kant é o vangloriar-se (veladamente), em que os
indivíduos se servem da autocrítica hipócrita e da comparação como
meio de auto-apreciação, seja perante si mesmo, seja diante dos outros.
Kant concebe a “falsa humildade” como uma afronta ao “dever
para consigo mesmo”, justo porque ela degrada o indivíduo em sua
própria humanidade. Não que o homem não deva estimar e cuidar de
si mesmo; isso, aliás, é próprio da natureza humana. Kant, inclusive,
realça que o ser humano (enquanto agente da moralidade e ente capaz
de se colocar fins) detém um preço incalculável, e que referenciar e
cultivar essa sua natureza é um dever. Daí, pois, que ele supõe na “falsa
humildade” uma inversão de valores: ao invés de o homem apreciar sua
capacidade de reconhecimento da moral, se deprecia, na medida em
que se detém a valorar dotes subjetivos, usando de fingimento e
simulação, a fim de obter ou forjar importância perante os outros.

3. 2.2 Deveres de execução


A propósito dos “deveres perfeitos para consigo mesmo” do homem
considerado unicamente como ser moral, após ter indicado o que o
agente moral não deve fazer, Kant agora descreve o que ele deve fazer.
Enquanto que os deveres de omissão (relativos ao que não se deve fazer)
estavam vinculados diretamente à preservação da dignidade humana, os
deveres de execução (relativos ao que se deve fazer) se relacionam com a
promoção da moralidade no homem. Dito de outro modo: assim como
os mandamentos de omissão priorizavam a preservação da dignidade

24
“abandona el mundo como um pobre estúpido que ni se há enterado de haber
vivido”.
204 Letícia Machado Pinheiro

humana; nos mandamentos de execução, Kant põe em questão a


necessidade da edificação da moral do homem. Na perspectiva dos
deveres de omissão e no intuito de fomentar esse aperfeiçoamento,
Kant indica dois deveres: o primeiro diz respeito ao autoconhecimento
moral, o segundo ao acolhimento dos outros como objetos de dever.
a) O autoconhecimento moral: Kant exprime o primeiro
mandamento de todos os “deveres para consigo mesmo” com a máxima
mais ancestral da História da Filosofia: Conhece-te a ti mesmo. Essa
máxima, do modo como Kant a supõe, não desempenha a função de
promover um autoconhecimento humano na sua perspectiva biológica,
mas, sim, de agenciar um “mergulho” na intenção moral do homem
em busca das fontes de suas ações. O conhecimento moral de si
mesmo, segundo Kant, “que procura penetrar as profundezas (o
abismo) do próprio coração, cuja sondagem é sumamente difícil, é o
começo de toda a sabedoria humana” (MC, 441). É desse
autoconhecimento que deriva a imparcialidade do homem no julgar-se
moralmente, quer conhecendo os seus próprios valores, quer admitindo
as suas fraquezas. Esse autoconhecimento moral é requerido porque ele
está diretamente vinculado ao dever de progredir moralmente. Para que
se estabeleça progresso moral é por suposto necessário um auto-exame
do agente sobre o seu estágio e condições morais. Kant, pois, reconhece
no autoconhecimento moral um “dever perfeito do homem para
consigo próprio” porque é um dever humano promover o progresso
moral, cuja efetivação só se dá uma vez detectados e removidos os vícios
contidos na intenção humana.
b) O dever para com os outros seres: Kant supõe que o homem
tem para consigo mesmo o dever perfeito de admitir que possui deveres
para com os outros. Como o que aqui está em pauta é o dever de
conotação moral, a fim de delimitar quais os “outros” a quem se deve
obrigação, Kant apresenta os requisitos que viabilizam “algo” como um
objeto de dever moral: por um lado, é requerida uma vontade (que
constranja o “obrigado” ao dever) e, por outro, a sujeição à experiência
possível (pois, o dever tange ao fim posto pela vontade de quem
constrange ou obriga).
Diante desses pressupostos, Kant é levado a afirmar que “um ser
humano não pode, portanto, ter dever algum com quaisquer seres,
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 205

além dos seres humanos” (MC, 442). Mas essa sua afirmação se dá sob
uma reflexão bem pontuada: do fato de o homem ter deveres somente
para com os outros humanos não se segue que ele não tenha nenhuma
espécie de obrigação (Verpflichtung) de instanciação moral para com os
seres não humanos. Kant observa que há nesse sentido uma confusão
entre “dever em consideração a outros seres” (que ele reconhece que os
homens têm para com a natureza em geral e para com os seres sobre-
humanos) com um “dever para com esses seres”(admitido só de homem
para homem) 25 (Cf. MC, 442). A propósito dessa distinção, Paul
Guyer observa que com ela Kant quer provar que

embora o princípio fundamental da moralidade – de respeitar o ser racional


como um fim em si mesmo – não possa ocasionar deveres diretamente para
com a natureza não-racional, um dever que nós temos para com nós mesmos
como seres racionais pode originar deveres de observância com relação à
natureza não racional 26 (Guyer, 1996, p.307).

Kant, pois, e conforme observa Paul Guyer, busca acomodar o


princípio básico da moralidade (cujo teor prescritivo se restringe à
relação do homem perante o seu semelhante) com a noção de que cabe
ao humano uma espécie de “observância” ou “consideração” quer para
com a natureza em geral, quer para com os seres sobre-humanos. Esse
acomodamento é bem sucedido na medida em que Kant estabelece o
preceito da “observância” ou “consideração” como uma instanciação do
“dever para consigo mesmo”. Ou seja, o homem só tem alguma espécie
de obrigação para com os seres não humanos, na medida em que tem
“deveres para consigo mesmo” e, nesse caso, um dever bem definido, o
da promoção do aperfeiçoamento moral.
É sob a perspectiva desse aperfeiçoamento que Kant justifica a
“observância” e “consideração” que cabe aos homens diante da natureza

25
São os chamados “deveres de consideração” que Kant pretende abordar aqui, já que
no que concerne aos deveres para com os seres humanos ele aborda no contexto dos
“deveres para com os outros”.
26
“although the fundamental principle of morality – to respect rational being as an
end in itself – cannot give rise to duties directly toward nonrational nature, a duty
that we have toward ourselves as rational beings may give rise to duties regarding
nonrational nature”.
206 Letícia Machado Pinheiro

em geral e dos seres sobre-humanos. Quanto à primeira, Kant descreve


a relação nos seguintes termos: a destruição e a negligência pelo o que o
cerca (seja natureza inanimada, sejam os animais) elimina no homem a
compaixão pelo sofrimento alheio, aniquilando paulatinamente
disposições naturais muito úteis à moralidade 27 (Cf. MC, 443).
Contudo, Kant salienta que o homem, desde que não se produza muito
sofrimento, está autorizado a matar animais e também submetê-los ao
trabalho (Cf. MC, 443).
Há nitidamente no discurso kantiano acerca desse ponto uma
tensão entre o viés utilitário no manejo dos animais e o dever indireto
de instanciação moral que temos para com eles – Kant, inclusive, chega
a mencionar “a gratidão ao longo serviço prestado por um velho cavalo
ou um velho cão (tal como se fossem membros da comunidade
doméstica)” (MC, 443). O fato é que para Kant o que está em pauta
aqui não é o que hoje chamaríamos de “bioética” ou “direitos dos
animais” – noções desenvolvidas sob o pressuposto de tomar a natureza
em geral como um “sujeito”-, mas, por assim dizer, os direitos e
“deveres” do homem relativo à natureza, cuja determinação tem um
propósito bem demarcado: o progresso moral do próprio homem.
Quanto aos seres sobre-humanos (Deus), Kant explica que a sua
noção é oriunda de uma idéia produzida pela própria razão e que o
homem não tem deveres para com eles, mesmo porque não há nenhum
acesso a tais seres, nem tampouco a sua realidade empírica é provada:
“Deus nada de nós pode receber [diz Kant]; não podemos agir nem
sobre Ele e nem para Ele” (Rel, p.156 ,n.58). Do fato de não ser objeto
de deveres, não se segue, porém, (e Kant aqui é cauteloso) que a idéia
(Idee) de Deus não detenha um forte caráter moralizador. Segundo ele,

trata-se de um dever do ser humano para consigo mesmo aplicar essa idéia, a
qual se apresenta inevitavelmente à razão, à lei moral nesse ser humano,
onde é da maior fecundidade moral (MC, 444).

27
Priscilla Cohn sugere uma incompatibilidade da proposição kantiana – de que o
trato com os animais detém elementos que favorecem moralmente o trato com
humanos – servindo-se de contra-exemplos empíricos. Ela, inclusive, cita Hitler
como um homem que era dedicado aos animais e capaz das maiores atrocidades
contra os humanos (Cf. Cohn, 1988, p. 200-201).
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 207

Ele justifica tal tese lançando mão do conceito de “religião


subjetivamente considerada” (o reconhecimento dos nossos deveres
como mandamentos divinos), o qual evidencia que o nosso suposto
dever para com Deus é, na verdade, um dever para com os nossos
semelhantes e para com nós mesmos, na medida em que está vinculado
às nossas ações de cunho moral 28 . É, enfim, um “dever perfeito do
homem para consigo mesmo considerado unicamente como ser moral”,
aplicar a noção por ele produzida de um ser sobre-humano em prol do
amadurecimento da sua humanidade, na qual o “dever de
consideração” para com esse tipo de “ser”, deve converter-se em um
reforço para o progresso moral.

Referências
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Madrid: Alianza, 1991.
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Paulo:EDIPRO, 2003.
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Morão. Lisboa: Ed. 70, 1992.
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_______.Crítica da razão pura (CRP). Trad. de Manuela Pinto dos
Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001.
_______.Fundamentação da metafísica dos costumes (FMC). Trad. de
Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural \ Pensadores,1980.
_______.La metafísica de las costumbres. Trad. y notas de Adela Cortina
Orts y Jesus Conill Sancho. Madrid: Tecnos, 1989.

28
“De que serve, por exemplo, ao comerciante todas as suas orações, se quando
regressa de ter ouvido a missa engana os clientes desprevenidos com negócios
fraudulentos?” [“De qué lhe sirven, por ejemplo, al comerciante todas sus oraciones,
se quando regressa de oír misa engaña a los clintes incautos com mercancías
fraudulentas ?”](LE, 332).
208 Letícia Machado Pinheiro

_______.Lecciones de ética (LE). Trad. de Roberto Aramayo y Concha


Roldán Panadero. Introducción y notas de Roberto Aramayo.
Barcelona: Crítica, 2002.
CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Trad. de Álvaro Cabral e revisão
de Valério Rohden. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
COHN, Priscilla. “Kant y el problema de los derechos de los
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ética kantiana. Barcelona: Anthropos, 1988, pp. 197-213.
GUYER, Paul. Kant and the experience of freedom. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996.
LOPARIC, Zeljko. “Kant e o pretenso direito de mentir”. In: Kant e-
prints. Série 2, v. 1, n.2, Campinas,jul.-dez. 2006, pp. 57-72
PATON, H.J.. The categorical imperative. A study in Kant’s moral
philosophy. London: London:Hutchinson, 1947.
WOOD, Allen. “Duties to oneself, duties of respect to others”. In:
http://www.stanford.edu/~allenw/webpapers/(2006), p.1-32.
Cuidado, educação e singularidade:
idéias para uma filosofia da educação em bases heideggerianas

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens *

Resumo: Investigamos a possibilidade de pensar uma Filosofia da educação a partir da


obra do filósofo alemão Martin Heidegger. Temos os objetivos específicos de
esclarecer o que é o cuidado no campo teórico do autor, como ele poderia se
relacionar com a educação e como este poderia basear uma pedagogia que preza pelo
exercício de ser si-próprio. Presumimos poder afirmar que o cuidado, entendido
preliminarmente como a essência do existir humano, tornaria possível um modo do
discente colocar-se diante de suas vivências ressignificando sua existência. Etapas
precedidas por uma apropriação filosófica da educação e das experiências existenciais
dos que estão envolvidos no processo de educar para a época atual. A filosofia de
Heidegger, que sabemos resguardar muitos pormenores, será tratada aqui de maneira
simplificada e, embora respeitando seu cânon, buscaremos traduzi-la em linguagem
acessível, de modo a não nos perdermos em especificidades que poderiam obstruir
nosso caminho de argumentação.
Palavras-chave: Filosofia da educação, Heidegger, Impessoal, Pedagogia do cuidado

Abstract: We investigate the possibility of thinking a Philosophy of education from the


German philosopher Martin Heidegger’s work. Our specific purposes are to make it
clear what the care is in the author’s theoretical field, how it could relate to education
and how it could found a pedagogy which entails the exercise of being own-self. We
think we can state that care, at first understood as the essence of human existing,
would make it possible to pave a way along which the learner can face their
experiences by resignifying their whole existence. Those are steps that enable an
education philosophical appropriation of those who are in charge of educating for the
current era. Heidegger’s philosophy, which is very much complex, will be treated here
in simplified way and although we do respect its canon, we will search to translate it
into an accessible language in order not to lose the specificities that could build our
argumentation line.
Keywords: Heidegger, Pedagogy of care, Philosophy of education, They

*
Doutorando em Filosofia pela UERJ; Professor da Universidade Cândido Mendes e
do Centro Universitário Plínio Leite. E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com. Artigo
recebido em 22.02.2008, aprovado em 05.12.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 209-223


210 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

Considerações introdutórias sobre a filosofia da educação


Em uma época reconhecida como uma autêntica revolução no mundo da
educação (Sequeiros, 2000), faz-se urgente a recolocação da pergunta
pela educação, com o propósito de rever seus princípios fundamentais.
Constata-se que esta urgência persiste por mais que autores
contemporâneos, por diversos enfoques, se proponham a expor
fundamentos ou pontos centrais do que consistiria o ato de educar o
discente. Assim, teorizações buscam explicar o modo com que o
aprendizado ocorre, podendo ser apreendidos como teorias do
conhecimento.
Entre estas teorias voltadas à educação, é inegável a
contribuição que as investigações de caráter científico como a psicologia
da educação. Associada aos sócio-interacionistas, esta inicialmente
jogou luz sobre o processo de conhecimento na chave do
aprendizagem/ensino, revelando uma face do indivíduo; outras
contribuições, igualmente relevantes neste sentido, nos fornecem
correntes filosóficas como o vitalismo, o historicismo, o existencialismo
e a fenomenologia (Saviani, 1995).
Com a concepção humanística presente nas referidas correntes,
diversa da visão enciclopédica ou de leituras parciais da educação,
temos uma modalidade que parte das circunstâncias à reflexão
filosófica, ainda que isto se dê por meio da leitura interpretativa de um
texto. Assim, parece admissível que um estudo de filosofia da educação
seja tomado como um estudo de filosofia, que propicie um ponto de
contato da filosofia com a educação e não apenas um estudo crítico
sobre temas da educação.
Esta interseção, entretanto, não indica qualquer submissão de
um saber sobre o outro; isto é, da educação sobre a filosofia, nem seu
inverso. Insistir no contrário seria reduzir uma a serva da outra, a
filosofia como serva da educação (uma vez que contribuiria apenas com
o aparato lógico-argumentativo capaz de viabilizar tal análise) como
tantas vezes foi feito no medievo, referindo-se à teologia: philosophia
ancilla theologiae.
De maneira simples, o estudo das questões fundamentais da
educação carece não de uma filosofia da educação, mas de uma filosofia
na educação (sic). A proposição imediata, que poderia sugerir um
Cuidado, educação e singularidade 211

gracejo desprovido de conteúdo efetivo, aponta à necessidade de


tomarmos as questões filosóficas da educação a partir do terreno teórico
no qual têm origem. Isso significa que um tal estudo consideraria os
problemas no âmbito de uma filosofia primeira, num pensamento
ontológico que antecede as demais reflexões sobre aspectos da realidade,
como a linguagem, a cultura, a vida social, o trabalho, a história, a
educação, a existência e sua verdade. Nesse caso, uma filosofia na
educação perguntaria sobre como as questões da educação poderiam
aparecer como problemas filosóficos, por exemplo, na obra de Platão,
Aristóteles, Agostinho, Kant, Hegel, Nietzsche etc; para, a partir de
uma apropriação destas, em vista das urgências contemporâneas,
podermos empreender uma síntese dessas idéias (Paviani, 1988).
Assim, com uma filosofia na educação passa a não mais estar em
jogo apenas um discurso crítico sobre doutrinas educação, tampouco
uma historiografia de seus temas. Passamos a ter a filosofia toda na
educação, demonstrando como a filosofia pode pensar os problemas da
educação a partir de autores filósofos. Não se trataria de pensar a
educação como coisa distante sobre a qual se disserta informando
(discurso entabulado em terceira pessoa gramatical), mas de pensar
filosoficamente a educação, aprofundando suas questões numa reflexão
conduzida em primeira pessoa, de modo a pôr a educação no centro do
diálogo com o pensamento filosófico. Esta tarefa que exige um contato
somente possível por meio de uma introdução à filosofia, isto é, não
um saber elementar coletor de notícias filosóficas, mas um dispor-se ao
universo da filosofia, um comprometer-se autenticamente com as
questões desde uma perspectiva filosófica, um filosofar.

O cuidado como um problema da filosofia da educação


Entre os problemas em pauta na filosofia, a contemporaneidade adotou
a existência humana como um dos seus principais. A pergunta pela
existência humana é, no fundo, a pergunta pela essência deste
fenômeno, essência que para alguns autores tem origem na noção
filosófica de cuidado (Heidegger, 1988). Por isso, presenciamos o
conceito de cuidado ganhar relevo em diversas áreas do conhecimento,
inclusive naquelas que buscam pensar o homem em sua relação com o
mundo e com os outros. Presenciamos também a aplicação larga do
212 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

termo “pedagogia do cuidado” nomeando a formação do homem para


estas circunstâncias.
É comum encontrar o nome pedagogia do cuidado ligado às
ciências da saúde ou do meio-ambiente. No primeiro caso, relaciona-se a
atualizações das teorias dos cuidados humanos e à formação
humanizada do profissional de saúde, nestas, os escritos de Paterson e
Zderad 1 são referenciais; no segundo, vigora a premissa de preservação e
educação ambiental, abrangendo as relações com o ambiente e as
pessoas, para a qual a formulação de Jonas (1979, p.49): “Aja de
maneira tal que os efeitos de sua ação sejam compatíveis com a
permanência de uma vida sobre a terra”, já constitui imperativo. Em
vista destas, Boff (1999) fala desta pedagogia como o aprender a zelar
pelos viventes e por tudo que nos cerca. Tal cuidado seria pré-condição
para a vida do planeta e sua educação, etapa necessária a ressignificação
da vida humana de modo a garantir seu sustento e a diversidade dos
seres vivos.
A partir de uma fábula latina atribuída a Higino (citada por
Heidegger), 2 Boff evidencia o cuidado ao modo de ser do indivíduo.

1
Dorotéia Paterson e Loretta Zderad: Especialistas em enfermagem clínica, atuaram
em instituições renomadas nos EUA, tendo publicado o tratado Enfermagem
humanística (1976), no qual propunham a chamada Teoria prática da enfermagem
humanística. Desenvolvida a partir de experiências existenciais relatadas pelas
enfermeiras e as pessoas que recebem tratamento, este conjunto de idéias busca uma
visão abrangente dos cuidados humanos, procurando compreendê-lo por uma
perspectiva fenomenológica. Tal enfoque recebe a influência da filosofia de
Nietzsche, Buber, Husserl e Heidegger que permitiriam pensar esta lida em face da
existência e da presença iminente do outro, atendo-se às condições existencias como
a autoconsciência, a alteridade, a responsabilidade, a finitude e a busca de uma
significação para a vida. Ao lado destas, podemos citar também as contribuições de
Madaleine Leininger que, nos anos de 1950, tratou o fenômeno em sua Teoria
transcultural do cuidado como experiência universal do humano e elemento essencial
à enfermagem.
2
Martin Heidegger (1889-1976): Filósofo alemão, professor em diversas
universidades européias. Inicialmente esteve associado à escola fenomenológica de E.
Husserl, de quem foi assistente. Distanciou-se do projeto da fenomenologia para
empreender uma síntese própria deste método e, posteriormente, propor a retomada
da questão do ser, denominada ontologia fundamental. Sua filosofia influenciou
Cuidado, educação e singularidade 213

Na alegoria, diz-se que o homem deve pertencer ao cuidado enquanto


viver (Cura enim quia prima finxit, teneat quandiu vixerit), o que faz
desta estrutura algo constitutivo da existência, se enfocado
filosoficamente. Heidegger dedica parte significativa de sua obra a tal
conceito, no interior de uma investigação que buscou tratar a essência
do indivíduo em face da compreensão de seu ser. Esta se chama
analítica existencial (como veremos adiante). A dedicação ao referido
tema fez com que Heidegger fosse reconhecido como “... por excelência
o filósofo do cuidado” (Boff, 1999, p. 89).
Sendo de importância na obra de Heidegger e um conceito
basilar em Ser e tempo (1927), o cuidado é visto, por um certo recorte
conceitual, na filosofia de autores anteriores; entre eles, os antigos e os
medievais, dos quais o alemão se apropriou. 3 Com Heidegger o
cuidado (Sorge) é pensado como traço constitutivo da existência
humana, na medida em que este se empenha a cada instante em cuidar
de si mesmo, de sua existência, em um processo de “singularização”
apontando o modo de ser do indivíduo, mediante o esforço continuado
de compreensão de seu ser e do ser das coisas em geral.
É desta última compreensão do cuidado que partiremos para
pensar o conceito referente à educação. É preciso dizer, contudo, que
não é a primeira vez que se fala do cuidado, como aqui, e que isso não
foi feito por Heidegger, que apenas marginalmente propôs idéias sobre

diversas gerações de intelectuais de vulto no século XX, como: H. Marcuse, H.


Arendt, H-G. Gadamer, J-P. Sartre, E. Lévinas e K. Löwith.
3
O cuidado é intuído a partir do conceito aristotélico de “phrónesis”, tal como
encontrado no livro VI da Ética a Nicômacos, referindo-se a um certo modo de
prudência, epicentro do qual o indivíduo pode gerir suas ações. Em versão latina, o
termo “cura” corresponde à experiência da fábula; é possível encontrar no período
medieval, desdobramentos dessa em pensadores como Agostinho, tratando o
cuidado como “cura”. Heidegger em sua preleção Estudos sobre mística medieval
(1910-11) explora o conceito no autor como traço fundamental da existência em
face da decadência e de outros conceitos cristãos como o de tentação. Ainda em
Agostinho, o cuidado é pensado na vulgata de “sollicitudo” (Mac Dowell, 1993).
Presumimos que também em Mestre Eckhart, na Baixa Idade Média, o conceito se
encontra presente, desta vez tratado como zelo, no sentido de uma atenção para que
o indivíduo não se desvie daquelas que seriam tarefas de fato necessárias de sua
existência.
214 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

o aprender/ensinar e ao propor metas para a educação, em um contexto


específico, pode se dizer que não foi exatamente feliz. 4 Seus estudos
filosóficos teriam trazido contribuições mais significativas do que os
poucos que propõem algo à educação (Kahlmeyer-Mertens, 2005). A
prova disso é que os autores da educação, quando se referem ao
pensamento de Heidegger, o fazem a partir de seus textos filosóficos. É
o caso de Ozmon e Craver (2004) acenando para a importância do
pensamento do autor no âmbito da fenomenologia; Giles (1983) ao
tocar no conceito de cuidado, tratando do processo educativo como
uma saída da existência imediata do indivíduo em seu mundo e o
respectivo encaminhamento a um sentido autêntico à própria existência
e, também, Martins (1992), quando fala do cuidado, ao discutir a
questão educacional dos currículos por um enfoque fenomenológico,
compreendendo-o como a preocupação ou o zelo que, na dialética
discente/docente, abre o indivíduo a um horizonte de possibilidades
próprias a sua existência.
Por mais que se observe aqui que nem todos os discursos sobre
o cuidado e sua pedagogia sejam metodologicamente ingênuos, tendo
uma consciência da dimensão ontológica do tema, vê-se que o esforço
de viabilização da proposta toma a contramão do pensamento de
Heidegger. Pois a preocupação por uma ética, uma política ou, mesmo,
uma educação é pragmática, uma derivação da questão intentada pelo
filósofo, assim, está num domínio dos entes, é ôntica (referindo-se ao
estado das coisas que são); não no âmbito fundamental de uma
compreensão do ser, de uma ontologia.

4
Professor da Universidade de Freiburg, Heidegger foi eleito Reitor em 1933. Já em
seu Discurso de posse, professava um modelo educacional para a universidade que
acreditava ser capaz de restaurar a identidade do povo alemão e formar indivíduos
com força produtiva suficiente para tirar a Alemanha de sua crise. Este projeto,
inicialmente inspirado na Paidéia grega, desbancou para uma dura disciplina, reflexo
das concepções políticas reacionárias do nacional-socialismo com o qual Heidegger
se encontrava envolvido. Tal modelo não agradou a comunidade acadêmica que o
reputava uma “...influência devastadora do ponto de vista pedagógico” (Jaensch
apud Loparic, 2004, p.13). O contraste entre a pedagogia possível de ser pensada a
partir do cuidado e o projeto político pedagógico de Heidegger para a universidade
alemã mereceria um estudo futuro.
Cuidado, educação e singularidade 215

Assim, será também da obra filosófica de Heidegger que


partiremos para nossa caracterização do cuidado e daquilo que derivaria
numa filosofia da educação. Exercício que apresentará brevemente, os
elementos de sua análise da existência, nos apoiando naquela que é
reconhecida como uma de suas principais obras.

O cuidado na filosofia de Heidegger e a sua contribuição à educação


A filosofia de Heidegger retoma a pergunta pela verdade como o ser das
coisas, acreditando ser a questão mais fundamental entre todas. Tal
questão ocupa persistentemente a reflexão humana, motivando as
investigações dos antigos e estando latente na reflexão sobre o homem e
seu mundo. Em poucas palavras: é “a pergunta pela avaliação e
orientação para a vida e o por que e para que de mundo, cosmos,
universo” (Safranski, 2000, p.188). Sendo tarefa em toda sua obra,
mesmo em diferentes fases e investidas ao tema, é em uma obra que ela
ganha sua formulação. Ser e tempo é o tratado no qual esta tentativa
ganha concretude, pensada a partir do sentido que ali está em jogo,
tendo por tarefa preliminar a investigação fenomenológica pelo único
ser capaz de colocar a pergunta por este sentido: o homem.
A compreensão que Heidegger (1996) faz do homem não é a de
um sujeito dotado de um aparato cognitivo e capaz de interagir com
um mundo diferente dele. Embora tal compreensão expresse o
indivíduo em sua condição de sujeito, Heidegger não parte mais deste
ponto de vista, entendendo este ente como um ser-aí. 5
Tomar o indivíduo como ser-aí, não é um requinte
antropológico (adjetivo), mas uma exigência ontológica (substantiva),
necessária à explicação do modo de ser deste que compreende o sentido
de ser. O ser-aí é compreendido como a possibilidade de ser situado nas
circunstâncias de seu mundo e ao constante exercício de existir neste.

5
O termo ser-aí é tradução de “Dasein”, como no alemão. Este significa, em sua
acepção primeira, existência fática, repercutindo na tradição da filosofia clássica alemã
com este sentido. A versão deste termo se torna um problema para todos os idiomas,
pois nenhum é capaz de traduzir o sentido em jogo na compreensão heideggeriana.
Opta-se normalmente pela tradução literal assim, teríamos être-là, no francês; esser-
ci, no italiano e there-being ou, mesmo, being-there no inglês. Por ser-aí, diferente da
acepção tradicional, Heidegger entende o modo do existir humano.
216 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

Infere-se, assim, que ser no mundo é mais um cultivo do que uma


estática condição humana.
Também o mundo, neste sentido, não se resume a uma
realidade física no qual este ser-no-mundo travaria suas relações, mas
remonta à dinâmica desse existir. O ser-aí existe ao passo que
compreende seu mundo, afetando-se por humores, junto às coisas que
encontra à mão, ocupando-se destas como utensílios em virtude de
afazeres que só fazem sentido nessa íntima conformidade revelada pelas
referências do mundo e de seus propósitos e dos outros com quem
convivemos.
Heidegger traz certa especificidade à terminologia referente às
maneiras práticas de estar no mundo, que apareceriam como derivações
do cuidado, tomado por modo existencial paradigmático:

Se o ser-com (os outros) permanece existencialmente constitutivo ao ser-no-


mundo, ele deve poder ser interpretado em face do fenômeno cuidado, que
usamos para designar o ser do ser-aí em geral, (...) o caráter do ocupar-se das
coisas não é próprio do ser-com, apesar deste modo de ser seja um ser para os
entes encontrados no mundo. O ente, com o qual o ser-aí se relaciona como
ser-com não tem o modo de ser do utensílio à mão, sendo também este um
ser-aí. Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa. Também “ocupar-se”
da alimentação e vestuário, tratar do corpo enfermo é preocupação. Se
entendermos esta expressão de modo que seu uso corresponda a uma
ocupação com coisas como termo de um existencial. A “preocupação”, no
sentido de assistência social de fato, por exemplo, funda-se na constituição
do ser-aí como ser-com. (Heidegger, 1996, p.114 )

Vê-se que o cuidado é designado um modo de ser no mundo,


maneira de ser si mesmo em cada novo instante; evidenciando que no
ser-aí nada está como é, mas que tudo nele seria um esforço por ser.
Isso nos deixa claro que este cuidar (Sorge) não é a ocupação (Besorge),
no sentido de um uso das coisas no cotidiano e das tarefas mais diversas
possíveis junto a estas; tampouco a preocupação (Fürsorge), que indica
o comportamento com o outro ou, ainda, para o outro. Para
Heidegger, qualquer gesto que expresse zelo, assistência, tutela ou
responsabilidade por alguém (inclusive os que envolvem o tratamento
de um enfermo ou a prática educativa) seria preocupação em vista de
Cuidado, educação e singularidade 217

uma relação de ser com o outro. 6 Entretanto, nem sempre estes modos
são claros ao ser-no-mundo, que, imerso nas suas ocupações cotidianas,
ignora o modo de ser de sua existência e a dos outros, compreendendo
tudo como coisas simplesmente dadas, compreensão esta que

provém do fato de, no início e na maioria das vezes, o ser-aí se manter em


modos deficientes de preocupação. O ser por um outro, contra um outro,
sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos
outros são modos possíveis de preocupação. E precisamente estes modos,
que mencionamos por último, de deficiência e indiferença caracterizam a
convivência cotidiana mediana de um com o outro (Heidegger, 1996, p.
116).

O convívio cotidiano é marcado pela pressuposição de uma


existência durável e de relações que remontam o âmbito de significações
pré-estabelecidas, herdadas, irrefletidas e normalmente latas, mas que
permitem o bom trânsito do indivíduo nas relações de seu mundo.
Cotidianamente, o ser-aí ganha modos que permitem que ele proceda
em conformidade ao que se convencionou adequado a aquele contexto
de mundo; assim, pensa comumente ao grupo que convive, age em
conveniência ao que dele se espera, compartilha costumes fazendo que
sua existência se reduza à ocupação de ajustar-se a certos padrões de
normalidade.
Estes padrões são estipulados coletivamente sem que nesta
coletividade se identifique uma pessoa ou grupo determinado autor
dessas normas. Daí Heidegger (1996) chamar de impessoal (Man) este
modo de ser com os outros que apresenta o consenso tácito quanto ao
comportar-se. No impessoal o ser-aí age conforme atitudes prescritas
para a gente. Assim, o indivíduo se vê abonado da tarefa de decidir por
seus atos, pois, em cada comportamento, estaria encoberto por este
modo existencial segundo o qual normalmente a gente procede,
gregariamente a gente pensa, comumente a gente se educa...
Mais que senso comum, este impessoal é um modo de ser da
existência que impregna a constituição do ser-no-mundo cotidiano e

6
Esclarecimento que proporia uma revisão na terminologia da Teoria dos cuidados
humanos, alterando-a para preocupações humanas.
218 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

uma estrutura de sua existência. Assim, negócios, comportamentos e as


visões de mundo que lhe são próprias recebem diretiva da gente. 7

Educar em favor da singularidade e contra o impessoal


Também a educação (tal como apreendida na sua divisão em informal e
formal) se influenciaria por diretrizes impessoais presentes na mediania
do cotidiano. Isto acontece quando, em ambos os segmentos, vemos
costumes se reproduzirem, por vezes, de maneira herdada e irrefletida,
determinando, à revelia, o tipo de educação que o indivíduo teria.
Assim:

O importante é saber que não somos totalmente livres para termos a


educação que queremos, pois nosso querer desde que nascemos vem sendo
educado por idéias e comportamentos que ultrapassam nossa consciência das
coisas. Sob a educação formal que nos é transmitida existe uma educação
invisível cuja força nem sempre é levada em conta em nossos estudos. A
escola como aparelho doutrinário certamente exerce influência, mas também
recebe influência da educação informal que se transmite através dos grupos
sociais, meios de comunicação, organizações sindicais etc. (Paviani, 1988,
p.11)

Ressaltemos que antes mesmo da falta de autonomia remontar


o político-ideológico, o sócio-cultural ou o pedagógico-curricular,
encontramos o impessoal dando parâmetros de comportamentos nas
interações mais primárias. Este estaria presente na educação informal,
que, como sabemos, consistiria de experiências latas, dadas
espontaneamente e nem sempre refletidas, que tenham efeito formativo
sobre o indivíduo; e pela educação formal, mediada por instituições
escolares de caráter estrito, com conteúdos programados e

7
Exemplos deste comportamento são identificados na literatura autores que se
ocuparam de tratar do impessoal em alguns de seus principais traços. No romance
Being There (traduzido para o português com o título de O videota – o homem que
aconteceu), Jerzy Kosinski retrata um indivíduo jogado em circunstâncias nas quais
mesmo em modos deficientes de ocupação, alternantes entre a apatia e repetição de
clichês aprendidos na televisão, seriam capazes de propiciar relações hábeis e
competentes em seu mundo. Menos caricato, Thomas Mann, em seu A montanha
mágica, esboça tais preocupações ao narrar démarches de salão nas quais até mesmo
bom tom estaria sobre tutela do impessoal. Safranski (2000) elenca outros autores da
década de 1920 que tratam da impessoalidade em obras literárias.
Cuidado, educação e singularidade 219

pretensamente crítica, mas sabidamente influenciada pela outra


(Kneller, 1996).
O impessoal na educação é o que torna capaz a reprodução de
uma existência imprópria (entendendo impropriedade como o estado
no qual este não se apropria de uma compreensão singular de suas
possibilidades de ser-aí, elucidado de sua existência sempre em
exercício). Uma tal educação seria a “oficina” na qual são forjados os
comportamentos guiados por um conjunto de diretrizes estabelecidas
por um invisível consenso. Este, com a autoridade de coisa que se
consagra pela repetição, se acomoda constituindo hábitos, costumes e
induzindo sua aceitação como padrão de bom senso, para, em seguida,
criar identidades e distinções; agrupamentos e segregações; valorações e
hierarquias capazes de ser observadas no modo com que se estruturam
as sociedades e se conjugam as relações. Nestas, o papel da educação
formal, em termos radicais, constituiria um dilema, situado entre o
individual e o público. (Paviani, 1988).
Tomar o indivíduo como ponto de partida da nossa análise não
nos torna partidários de um individualismo, como perspectiva teórica
da qual compartilhariam algumas escolas antropológicas ou
sociológicas, mas revela que o espaço aberto à presente problematização
é o da análise existencial, para o qual o cuidado estaria em evidência
como traço essencial deste, também em sua educação.
Uma filosofia da educação que parte da consideração do
cuidado, como outros discursos educacionais, trafega no âmbito do
dever-ser, projetando reflexivamente suas experiências e práticas. Nesta,
os diversos modos de ocupação presentes à existência se conjugariam,
na medida em que na relação educativa docente/discente,

há a possibilidade de uma preocupação que nem tanto substitui o outro, mas


que se lhe antepõe em seu poder-ser na existência, não para retirar-lhe o
“cuidado” dele, mas antes para devolvê-lo como tal. Essa preocupação, que
pertence ao autêntico cuidado, ou seja, à existência do outro e não a algo de
que se ocupa, proporciona ao outro, por meio de seu cuidado, livre para
tornar-se transparente a si mesmo. (Heidegger, 1996, p.115)

Heidegger descreve a possibilidade de uma relação na qual a


preocupação pelo outro não aniquila sua individualidade, na qual não
220 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

se age com o outro preservando-lhe de experimentar os encargos de sua


própria existência (de retirar-lhe o cuidado), mas, ao contrário,
proporciona oportunidades de conduzi-lo às possibilidades de sua
realização mais própria. Na relação discente/docente isto se aplica
pensando o segundo não como aquele que, se antecipando ao aluno
(presumido-o desprovido de luz, como indica a composição latina do
termo “alumnu”), predeterminaria a educação que lhe julgasse
adequada, mas como aquele que estaria preocupado com o necessário
para que o discente se descobrisse livre a um sentido próprio a si. O
docente, então, passa a não ser mais o repetidor de lições ou o instrutor
de matérias, mas quem cria ao discente a oportunidade de um encontro
consigo mesmo, que promove a possibilidade deste se educar (ou, como
também no latim, “educere”), isto é, expor-a-si mesmo e descobrir para
si uma possibilidade capaz de libertá-lo para a significação necessária a
uma existência singular. Singularidade na qual o indivíduo é sempre e
em cada vez de acordo com os sentidos que lhe são próprios, que dizem
respeito ao seu destino. Assim, a uma filosofia da educação, que pensa o
cuidado/preocupação, “traz mau apreço ao mestre quando se
permanece sempre e somente aluno” (Nietzsche, 1994, p.92).
Permanecer aluno, neste sentido, significa não se reconhecer como um
ser em exercício ou, ao saber-se este existente, optar comodamente por
interpretar-se como coisa. Assim, ao invés de escolher a si próprio, não
buscando apropriar-se de um sentido que conduz tal existência, deixa
de decidir radicalmente por si-próprio, para, quem sabe, decidir como a
gente faz. Nesta,

o ser-aí decidido liberta a si-mesmo para seu mundo. A decisão por si-
mesmo primeiro traz o ser-aí para a possibilidade de, sendo com os outros,
se deixar “ser” em seu poder-ser mais próprio e, justamente com este, abrir a
preocupação que liberta numa ocupação. (Heidegger, 1996, p. 274)

Decidir por si não é assumir o convencionado. Não significa


seguir à risca um conjunto de normas morais que confeririam
perfectibilidade a nossas ações. Mas é o disparar de uma compreensão
da existência que orienta a construção de sentidos próprios a cada
indivíduo. Uma educação, como possível de ser pensada em uma
filosofia da educação heideggeriana, não nos dá senão a oportunidade
Cuidado, educação e singularidade 221

de experimentarmos a possibilidade de sermos livres da imediatez


cotidiana; colocando-nos diante da urgência por escolher um sentido
próprio a si, do decidir pelas ocupações necessárias ao esforço por ser
singular no mundo. Esta resolução (única e cunhada em conformidade
com os significados mais relevantes ao ser no mundo) nos destacaria do
impessoal, fazendo-nos despontar como indivíduos singulares.
Ora, mas nessa educação que parte de uma escolha individual
(do discente) por si próprio, qual seria o papel do docente? Como
praticar uma educação como essa? O docente, aqui, é aquele que tem a
tarefa, quase socrática, de pro-vocar o discente a conhecer a si-mesmo,
de oportunizar um encontro com essa possibilidade. O resultado disso
pode ser uma existência na qual o indivíduo na cotidianidade não mais
se deixe arrastar pela torrente de diretivas da gente. Podendo conduzir
sua própria existência e, ainda, atender aos anseios de uma educação
contemporânea, preocupada em formar cidadãos reflexivos, autônomos e
participativos contribuindo à esfera do indivíduo, da sociedade e da
espécie. Importa dizer, que o docente nesta relação não é um tutor, que
diz doutrinas e instrui em saberes, mas aquele que acompanha o
processo.

Conclusões
Estas reflexões nos colocariam diante de questionamentos preocupados
com implicações práticas que uma filosofia da educação; ainda, com os
dilemas de pensar um modo de tomar o cuidado como um “veículo” da
educação, atendendo as exigências práticas do fazer educativo. Assim,
constatamos que muitos pontos ainda carecem numa reflexão filosófica
que indique um lugar para o cuidado na educação, entre eles, o que nos
recorda que a educação não é apenas uma idéia, mas algo que só se
efetiva por meio de métodos, através dos quais as teorias se tornam
práticas. 8 Abrir mão disso seria desconsiderar o caráter iminentemente

8
Contribuições neste sentido podem ser encontradas na obra de Paulo Freire (1921-
1997), cujas técnicas de seu método criam condições pedagógicas para que o
indivíduo, reflexivamente, descubra-se numa situação de opressão e conquiste para si
a possibilidade de se libertar desta. O cuidado no interior de uma filosofia da
educação poderia ser pensado aproximadamente de uma educação como prática de
liberdade (afinal, aquilo que chamamos desde Heidegger de exercício de cuidar por
222 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

prático desta, incorrendo naquilo que Gadotti (1991, p.38) denuncia


como: “Uma filosofia da educação que foge a essa responsabilidade (...)
entrincheirando-se atrás do mundo das idéias” e que “arrisca-se a ser
um ópio, uma fuga, um supplément d’âme, em resumo, uma caricatura
do homem e do pensar”. Assim, concordamos que a filosofia da
educação cabe aos filósofos, mas também aos pedagogos e a todos os
membros da comunidade escolar dispostos ao educar, fazendo da
filosofia da educação (inclusive aquela que entende a educação como
um eduzir o discente à possibilidade de sua singularidade) não um
discurso de especialistas mas de parceiros preocupados em libertar o
indivíduo para seu próprio cuidado.
É fato que significativos esforços para pensar uma educação e
uma filosofia da educação, neste sentido, já foram dados,
principalmente no campo da pedagogia. Afinal, é consolidada a idéia de
uma educação que liberta à singularidade (Stein, 1987), ainda que esta
não se utilize dos conceitos de ser-aí, decisão e cuidado, como faz
Heidegger. Assim, o presente texto buscou trazer não a proposta de
mais uma pedagogia (no caso a do cuidado, iniciativa com propósitos
questionáveis), mas de buscar pensar como a educação pode ser
abordada no pensamento heideggeriano, contribuindo não só para a
educação, mas também aos estudos da filosofia do autor.

Referências
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pela terra. Petrópolis: Vozes.
GILES, Thomas R. (1987). Filosofia da educação. São Paulo: EPU.

ser si-próprio, em muito se assemelharia à conscientização entendida por Freire) não


fossem algumas das diferenças entre os dois autores como o fato de: a) Freire ainda
partir de uma compreensão subjetiva do sujeito, o que implica dizer que o autor
ainda toma a realidade humana a partir da dualidade homem-mundo, na chave de
sujeito-objeto. Mais próximo da fenomenologia de Husserl do que da filosofia
transcendental de Kant, Freire tem o homem como subjetividade que transcende ao
mundo, o que ainda denota um entendimento dicotômico. b) Freire compreende a
educação como um ato político. Embora formule isso apenas posteriormente, esta
intuição já é presente nos primeiros textos em que pensa uma educação libertadora.
Subtrair estes pontos do pensamento freireano seria alterar sua obra ao ponto da
descaracterização.
Cuidado, educação e singularidade 223

GADOTTI, Moacir. Idéias diretrizes para uma filosofia crítica da


educação. In. Educação e poder: Introdução à uma pedagogia do
conflito. São Paulo: Cortez, 1991. p.37-49.
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Petrópolis: Vozes.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre

Luciano Donizetti da Silva *

Resumo: É consenso entre os comentadores de Sartre que sua filosofia segue os


moldes do racionalismo cartesiano; para sustentar essa tese utiliza-se, em especial, a
marcante influência de Husserl e a utilização recorrente da idéia de intencionalidade
da consciência. Ora, se Sartre é cartesiano e sua filosofia mantém as mesmas
conquistas do racionalismo, por certo reedita os mesmos problemas, dentre os quais
aquele relativo ao tempo, tema desse trabalho: o instantaneísmo. Qual seria a solução
apresentada pelo filósofo para superar essa questão? De que modo Sartre encaminhará
seu pensamento a fim de transpor a evidência do instante, inerente ao cogito e, assim,
instaurar a temporalidade, necessária para tematizar a lida cotidiana Presente que,
invariavelmente, remete ao Passado e ao Futuro? A discussão dessas questões motiva
esse artigo.
Palavras-chave: Cogito, Instantaneísmo, Sartre, Tempo, Temporalidade

Abstract: It is consensus among the commentators of Sartre that his philosophy


follows the Cartesian rationalism molds; to sustain that theory it is used, especially,
the outstanding influence of Husserl and the appealing idea about conscience’s
intentionality. Now, if Sartre is Cartesian and his philosophy has the same qualities of
the rationalism, for sure it republishes the same problems, among these, the question
relative at time is the theme of this work: the instantaneous time. Which would be
the solution presented by the philosopher to overcome that subject? How Sartre will
direct his thought to transpose the evidence of the instant, inherent to the cogito and,
finally, to establish the temporality, necessary for think the daily practice Present that,
invariably, corresponds to the Past and the Future? The discussion of those subjects
motivates this article.
Keywords: Cogito, Instantaneous, Sartre, Time, Temporality

O tempo sempre me pareceu um quebra-cabeça filosófico e eu construí, sem


lhe dar atenção, uma filosofia do instante (...) por não compreender a
duração. (...) E atualmente entrevejo uma teoria do tempo. Sinto-me
embaraçado ao expor minha teoria. Sinto-me um menino.
(Sartre, Diário)

*
Doutor em Filosofia pela UFSCar. Professor de filosofia na UFPI, Campus Ministro
Reis Velloso (Parnaíba). E-mail: donizettisilva@ufpi.br. Artigo recebido em
29.09.2007, aprovado em 10.11.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p.225-248


226 Luciano Donizetti da Silva

No contexto da história da filosofia o pensamento de Sartre é definido,


dentre outros rótulos, de cartesiano, fato que chama a atenção por
mostrar que, na contramão de seu tempo, o filósofo insiste na
necessidade de partir do cogito com a condição de poder deixá-lo. 1 Em
pleno século XX, momento em que a fundamentação para toda
filosofia está em crise e é objeto de crítica, em especial a noção de
sujeito, encontra-se em O Ser e o Nada o projeto de uma filosofia que
dê conta de seus fundamentos e que tenha como solo inicial uma
certeza inabalável. Não fosse isso suficiente, os primeiros movimentos
da ontologia fenomenológica de Sartre têm como inspiração o
pensamento de Husserl, filosofia notadamente cartesiana. 2 Mas se a
filosofia de Sartre é mesmo cartesiana, uma pergunta se coloca de
imediato: não estaria ela, por ter como ponto de partida o cogito, fadada
a repetir as dificuldades enfrentadas por Descartes?
As questões suscitadas pela decisão sartriana de contrariar a
tendência do pensamento de sua época são várias e variadas, mas esse
texto dará ênfase a apenas um de seus aspectos: o problema do tempo.
Isso porque ao enquadrar a filosofia sartriana dentre aquelas chamadas
cartesianas, Sartre passa a figurar numa espécie de ‘cone de trevas
filosófico’, cone que tem como centro o problema do instantaneísmo. É
possível, partindo do cogito, superar a evidência do instante e, assim,
falar sobre o homem concreto, na sua lida cotidiana (o que exige dar
conta do passado e do futuro)? Ou a ontologia fenomenológica de
Sartre esbarra nessa questão e, por ser uma filosofia da consciência,
jamais poderá recuperar as dimensões da temporalidade?
Para buscar resposta para essa questão é necessário, antes de
tudo, entender as peculiaridades da noção de cogito na filosofia de
Sartre; de maneira concisa, a primeira parte do presente texto tem por

1
Sartre, 1943, p. 116 (tradução p. 122).
2
De 1933 a 1934 Sartre estuda em Berlim e, nesse mesmo período, publica A
transcendência do Ego (1937) que, embora sendo uma crítica a Husserl, é fortemente
influenciado pela fenomenologia. O mesmo pode ser dito de A Imaginação (1936),
Esboço de uma teoria das emoções (1939), O Imaginário (1940) e, em certa medida,
também de O Ser e o Nada (1943), obras nas quais A intencionalidade: uma idéia
fundamental da fenomenologia de Husserl (texto de 1939) tem uma importância
fundamental, conforme Contat & Rybalka, 1970.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 227

objetivo marcar a diferença do ponto de partida de Sartre com relação a


Descartes e Husserl. Nesse sentido será preciso recorrer à instância da
pré-reflexividade e, dela, mostrar aquilo que Sartre considera o erro
cartesiano no que concerne a radicalidade do cogito; na mesma medida
será preciso mostrar como, por partir dessa instância anterior à reflexão,
a filosofia de Sartre se distancia daquela de Husserl; só então será
proveitoso passar ao problema do tempo, que é o que nos interessa.
Para tanto, o esforço inicial desse trabalho será relativo à noção de
intencionalidade da consciência.
Entretanto, se é com a intencionalidade que Sartre encontra
elementos para superar o instantaneísmo, isso não significa de maneira
alguma a simples retomada da filosofia de Husserl. É graças a esse
instrumento que Sartre pode alargar o conceito de consciência (ao
esvaziá-la de qualquer positividade) ao mesmo tempo em que afirma a
transcendência do mundo; mas a intencionalidade não dá conta de
explicar a reflexividade, ou mostrar de que maneira a consciência pode
ser, também, consciência de si. É nesse panorama que a fenomenologia
de Sartre toma ares de uma ontologia, notadamente influenciada por
Heidegger: a consciência é o que não é e não é o que é. 3 Continua válida a
necessidade de partir do cogito, mas ao lado desse princípio passam a
figurar os conceitos de ser-no-mundo, facticidade e, ainda mais
contundente, a necessidade de entender o ser da consciência. É a partir
daí que Sartre mostra que, ainda que não seja posicional, uma vez que
só há posicionamento de objetos, a consciência é consciência de si. Em
resumo, ao analisar o fenômeno de ser, a ontologia de Sartre mostra que
o ser do fenômeno é em-si e para-si (introdução de O Ser e o Nada); o

3
No primeiro capítulo de Ser e Tempo Heidegger analisa os fundamentos do Dasein e,
assim, o ente que coloca seu ser em questão deve esclarecer inicialmente seu ser-no-
mundo; ora, o Dasein “não é uma determinação composta por adição, mas uma
estrutura originária e sempre total. Não obstante, oferece perspectivas diversas dos
momentos que a constituem. Mantendo-se continuamente presente a totalidade
preliminar dessa estrutura, deve-se distinguir fenomenalmente os respectivos
momentos”; ainda, “O Dasein se determina como ente sempre a partir de uma
possibilidade que ele é e, de algum modo, isso significa que ele se compreende em
seu ser. (...) para uma interpretação ontológica desse ente, a problemática de seu ser
deve ser desenvolvida a partir da existencialidade de sua existência”. Heidegger,
1988, p. 75 e 79.
228 Luciano Donizetti da Silva

passo seguinte exige mostrar (fenomenologicamente) que há um cogito


pré-reflexivo, e que esse é condição do eu penso cartesiano (primeira
parte de O Ser e o Nada). Se toda consciência é consciência de um
objeto (posicional, portanto), para Sartre ela é, também, consciência
não posicional (de) si. 4
O mesmo problema diagnosticado em Descartes, qual seja,
duplicar a consciência (de) si, parece ser encontrado em Husserl. Ainda
que, na esteira da purificação do campo transcendental, Husserl libere a
filosofia do Eu formal e psíquico, segundo Sartre resta o Eu
transcendental. Husserl não teria se dado conta de que o Eu
transcendental não passa de uma contração infinita do Eu material e,
por isso, aquele causaria as mesmas dificuldades que este: tornaria a
consciência opaca para si (uma coisa) e, enquanto tal, relativa. Porém, e
essa pergunta parece ser o principal eixo do problema em voga, se não
há nem Ego nem Eu transcendental, o que poderia promover a unidade
da consciência? Entra em cena o problema da relação da consciência
com o mundo e, no limite, da consciência consigo mesma: a negação
que a consciência é.
Sartre enfrenta esse problema em dois momentos. Primeiro, a
unidade transcendente se encontra no objeto mesmo: é na
transcendência que a consciência, por ser negação do objeto, encontra
sua unidade. Porém, como não há mais possibilidade de aceitar o
realismo espontâneo, e a ontologia de Sartre afirma uma camada
constituinte, há que se admitir que os objetos exigem uma instância
originária de unificação (os objetos são, em parte, constituídos pela
negação que a consciência é, pela desordem que ela promove no ser; mas a
consciência não pode, por si mesma, fundamentar o ser). Desse modo,
é preciso que a consciência tenha, em seu ser, a garantia da unidade na
imanência. É na análise da estrutura ontológica da consciência que se
encontra a possibilidade de recuperação de si (passado) e projeção de si
(futuro); conforme será visto, por ser negação do ser e de si, a

4
Sartre mostra que, graças à pré-reflexividade, a consciência de si não remete a
nenhuma dualidade. Por isso, utiliza o de entre parênteses. Sartre, 1943, p. 20-21
(tradução p. 25).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 229

consciência escapa de seu presente (objeto intencionado) rumo àquilo


que não é mais ou que tem de ser.
Percebe-se que, no cerne da questão, encontra-se o tempo; não
mais unicamente o tempo do mundo, mas a temporalidade do para-si. 5
É no surgimento da consciência, e em sua constância temporal, que
Sartre vai mostrar a unidade originária da consciência (ou, a
temporalidade). Daí porque tematizar esse problema em dois
momentos: 1) a superação do instante e 2) a recuperação do passado e
possibilização do futuro. Nesses, por sua vez, a discussão será feita
tendo como contraponto os filósofos com os quais Sartre, em sua obra,
discute: Descartes e o problema do instante; Bergson e o monismo
temporal; Husserl e a questão da diferença, não de qualidade, mas
ontológica, entre as três dimensões temporais. Importa frisar que deverá
ser satisfeita a afirmação tanto do passado quanto do presente sem que
isso redunde em nenhum tipo de opacidade da consciência (ela deverá
permanecer translúcida). Além disso, será preciso dar conta da relação
dessas dimensões com o futuro. Assim, parece ser possível retomar a
questão que norteia esse texto e responder se, efetivamente, uma
filosofia que toma como ponto de partida a certeza do cogito está
condenada ao instantaneísmo; mais, será possível produzir uma análise
sobre a teoria do tempo na filosofia de Sartre.

Reflexão e pré-reflexão
A ontologia de Sartre é fenomenológica porque tem como prerrogativa
partir daquilo que lhe é mais próximo; assim, por fazer uma filosofia
que toma como fundamento a consciência (que é o que cada homem
pode ter de mais próximo a si), Sartre é considerado cartesiano. No
entanto, há que se fazer mediações no que tange a essa classificação de
sua filosofia: o cogito é, para ele, uma instância secundária que
Descartes pensou ser radical. Se para Descartes o cogito fornece uma

5
Note-se o Capítulo 2 da Segunda Parte de O Ser e o Nada, no qual Sartre distingue
as três dimensões temporais do para-si por oposição ao tempo do mundo. Nesse
sentido, o tempo tem sua origem no para-si, mas é encontrado no mundo pelo
homem; e isso gera a oposição aparente entre tempo e temporalidade, na medida em
que o tempo é transcendente, enquanto a temporalidade é imanente, constituinte, da
consciência do tempo.
230 Luciano Donizetti da Silva

certeza imediata de um ser pensante, res cogitans, Sartre afirma que


“existe um cogito pré-reflexivo que é condição de todo cogito
cartesiano”. 6 Não se trata, para Sartre, de um sujeito que se fecha em si
mesmo, como seria o caso da substância pensante; o sujeito sartriano
deverá, ao mesmo tempo em que se volta sobre si, direcionar-se ao
transcendente. É nesse contexto que se insere um instrumento herdado
de Husserl e muito caro a Sartre: a intencionalidade da consciência.
Pela afirmação de que toda consciência é intencional, ou seja,
que ela sempre visa algo distinto dela mesma, Sartre recupera uma
instância ainda mais fundamental que o cogito; não é por acaso que a
intencionalidade, vastamente utilizada em O Ser e o Nada, é a idéia
fundamental da fenomenologia. Originariamente, a consciência não
pode voltar-se apenas para-si, sob risco de aí permanecer, mas deve ser
relação direta com o transcendente. Assim, o primeiro passo deve ser a
purificação absoluta do campo transcendental e, dessa feita, a afirmação
da transcendência do mundo. Noutros termos, o mundo não poderá
ser reduzido às idéias e, assim, ser considerado uma representação; para
Sartre trata-se do mundo concreto. De outra feita, o sujeito estaria
encerrado em uma esfera de subjetividade e seria forçoso retirá-lo daí, e
o mundo, por sua vez, nada mais seria que representação, já que
constituído por associação de sensações e idéias.
Sem esse cuidado prévio o pensamento reduzir-se-ia a uma
cópia do mundo e a pretensa relação entre sujeito e objeto nada mais
seria que um evento psicológico (encerrar-se-ia no sujeito). A solução
está em, com a intencionalidade, recolocar o mundo na sua
transcendência e garantir que a consciência seja relação com esse
mundo. A intencionalidade da consciência carrega, na filosofia de
Sartre, o sentido de que, em seu ser, a consciência é incapaz de conter
qualquer representação; sua relação deve ser com o objeto real
(transcendente, portanto). A consciência transcende-se rumo a um
objeto que de maneira alguma pode ser confundido com um conteúdo
psíquico: “Vós vedes esta árvore, seja. Mas vós a vedes no local mesmo
em que ela está: no fim do caminho, em meio à poeira, só e torta sob o

6
Sartre, 1943, p. 19 (tradução p. 24).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 231

calor, a vinte léguas da costa mediterrânea. Ela não pode entrar em


vossa consciência, pois não é da mesma natureza que ela”. 7
Com a intencionalidade Sartre coíbe toda e qualquer
possibilidade de representação no que diz respeito à percepção; porém
restam ainda as sensações, a imaginação e outros tipos de consciência
que poderiam ser alvo de crítica, no sentido de apontar a permanência
de algo na consciência. 8 Sartre se adianta em levar a intencionalidade
não apenas ao âmbito da percepção, mas a todos os modos de
consciência (dor, sede, etc.); com isso, a consciência é purificada de
tudo aquilo que ela pudesse conter ou produzir: a consciência é, a rigor,
nada (rien). Encerra-se, com isso, a possibilidade de pensar a
consciência como uma substância voltada para si (sei que penso). Não há
nenhum tipo de interioridade, seja física ou psíquica. Ser consciência é
direcionar-se ao mundo, e todas as impressões subjetivas, que poderiam
ser consideradas da consciência, não são mais que meios diferenciados
de relação entre consciência e mundo.
Porém, sem interioridade e sem Eu, onde a consciência
encontra sua unidade? Sartre entende que, no caso do cogito cartesiano,
há exigência de dualidade dessa consciência; ainda que não se trate de
uma consciência cognoscente, há uma consciência do cogito, o que
remeteria a uma relação do tipo sujeito-objeto no interior mesmo da
consciência. 9 Entretanto, ser consciência é ser ‘consciência (de) si’ sem
que isso se caracterize duplicidade, afinal, a consciência jamais poderia
ser um objeto para si mesma. Ao intencionar um objeto qualquer (e

7
Sartre, 1947, p. 32.
8
Esse é, notadamente, o problema do capítulo intitulado Husserl, de A Imaginação:
“A distinção entre imagem mental e percepção não poderia proceder unicamente da
intencionalidade: é necessário, mas não suficiente, que as intenções difiram; é
preciso também que as matérias sejam dessemelhantes” (Sartre, 1978, p. 105); O
Imaginário tem, por sua vez, a mesma questão em seus dois primeiros terços: a partir
da análise das possibilidades de imagem (família da imagem), mostra que em
nenhum caso, inclusive no que se refere à imagem mental, pode-se reduzir a
imaginação aos elementos imanentes à consciência, conforme Sartre, 1996.
9
É o que se passa na filosofia cartesiana: “De sorte que após haver pensado bem, e
haver rigorosamente examinado todas as coisas, é necessário, enfim, concluir e ter
por constante que a proposição eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas
as vezes que a enuncio ou a concebo em meu espírito”. Descartes, 1973, p. 100.
232 Luciano Donizetti da Silva

todo objeto é transcendente), a consciência posiciona esse objeto e, no


mesmo ato, é consciência não posicional de si: “toda existência de
consciência existe como consciência de existir”. 10 De outra feita (caso a
consciência exigisse outra consciência para promover sua unidade) seria
necessário uma regressão ao infinito; e, se essa afirmação de Sartre
parece remeter a um círculo vicioso, ele afirma que é constitutivo da
consciência existir em círculos.
Aqui, melhor que em qualquer outro lugar, torna-se possível
marcar a diferença de posição entre as noções de cogito para Descartes e
para Sartre: o cogito cartesiano, por ter como fundamento desconhecido
o cogito pré-reflexivo, pôde ser estabelecido com a necessária presença
de um Eu. Porque a consciência é remissão a si sem que isso configure
uma dualidade (trata-se apenas de uma estrutura ontológica do para-si),
Descartes pode chegar ao Eu por uma espécie de conhecimento de si, e
estabelecer a relação dual consigo mesmo (indubitavelmente, eu sou
quando me enuncio ou me concebo). De fato, seria inaceitável uma
consciência que fosse inconsciente de si; mas, daí, inferir a noção de
sujeito é inserir a dualidade na estrutura mesma do conhecimento e
impedir, por princípio, qualquer unificação posterior. É assim que,
segundo Sartre, substancializa-se a absoluta espontaneidade que a
consciência é; constitui-se uma substância paralela ao mundo e incapaz
de relacionar-se com ele sem mediação (Existência e Perfeição divinas,
na quarta meditação). Por isso, o cogito cartesiano deve ser considerado
lícito; mas é, também, tributário da estrutura originária da consciência
(a pré-reflexividade) que Descartes não se deu conta e, assim, produziu
uma teoria que redunda na dualidade substancial.
Com respeito a Husserl a questão sobre a radicalidade do cogito
não se resolve tão facilmente. Sartre critica em seu mentor a noção de
Eu transcendental, presente nas Idéias; isso mostra que seu objetivo é
inverter posições: se para Husserl é o Eu puro que vai permitir a
unificação da experiência e, assim, garantir o acesso ao transcendente,
para Sartre trata-se de uma unidade prévia das consciências e é a partir
dessa unidade que o Eu se possibiliza. O ponto almejado não é outro
que manter a absoluta purificação do campo transcendental e impedir

10
Sartre, 1943, p. 20 (tradução p. 25).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 233

que, ainda que seja com a noção de Eu transcendental, a consciência


encontre em si mesma algo que lhe seja exterior, que a torne opaca para
si. Porém, o problema continua: como a consciência pode unificar-se?
Se ela é intencional, ou se ela se reduz a um lançar-se em direção ao
transcendente, como pode promover a unidade do mundo e sua
própria unidade, uma vez que, nessa perspectiva, ficam barrados os
conceitos de interioridade e representação?
Falta entender como, no campo da imanência, a consciência
pode ser una: sendo a consciência intencional, ela nada mais é que um
fluxo que se encaminha ao objeto transcendente, “ela é clara como um
grande vento, nada mais há nela, salvo um movimento para se
escapar,”. 11 Por esse movimento intencional, num jogo de
intencionalidades transversais, a consciência unifica a si (e por si) mesma.
Seja em relação ao transcendente ou a si mesma, a consciência não
precisa de um Eu para se unificar; é ela mesma que se faz “pessoal
porque (...) ela é reenvio a si”. 12
A unidade da consciência deve ser buscada em sua
transcendência: ao escapar de si mesma rumo ao que ela não é e, nesse
mesmo ato, voltar-se sobre si, a consciência se unifica por seu
movimento de fuga. A unidade dos objetos está no mundo (a unidade é
transcendente, ou seja, por que no mundo ‘dois e dois fazem quatro’, a
consciência encontrará aí sua unidade). Entretanto, essa solução resolve
o problema apenas em parte: se os objetos são responsáveis pela
unidade transcendente da consciência e se esses objetos são para a
consciência, onde eles encontrariam sua unidade? Percebe-se que é
necessária uma instância mais fundamental que produza a unidade dos
objetos. Assim, muito próximo à posição husserliana das Lições, Sartre
vai buscar no surgimento da consciência e em sua constância no fluxo
temporal a saída para a unidade originária dos objetos e, no limite, a
unidade da consciência ela mesma.
Embora possa parecer que o problema da noção de Eu seja
apenas uma decorrência da compreensão de consciência como
intencional, já que, sendo apenas um fluxo, a consciência não teria em

11
Sartre, 1947, p. 34.
12
Sartre, 1994, p. 101.
234 Luciano Donizetti da Silva

si nada de positivo, em A transcendência do Ego Sartre mostra que não


se satisfaz apenas com a demonstração de que o Eu formal (ou
psíquico) é desnecessário. Isso porque, mesmo tendo encontrado em
Husserl tal recusa, Sartre valoriza excessivamente a noção de Eu
transcendental encontrada nas Idéias; mais ainda, Sartre vai mostrar que
o Eu transcendental husserliano é na verdade uma contração infinita do
Eu material. 13 Nas Idéias a redução leva necessariamente a um eu puro
(que não tem por objetivo unificar a consciência), adjunto de todas as
vivências, a um sujeito que permanece sempre idêntico. 14 Sartre
considera essa noção de unidade da consciência um retrocesso de seu
mentor que, assim, desrespeita a verdade mais fundamental da
fenomenologia: “toda consciência é consciência de alguma coisa”. 15 Tal
verdade exige que, igualmente a todos os demais objetos, também o Eu
seja um habitante do mundo.
Feitas essas considerações é hora de passar ao problema do
tempo. Isso porque, ao partir das noções de intencionalidade e pré-
reflexividade e, por essas, purificar absolutamente a subjetividade de
tudo que seja positivo ou interior, Sartre coloca em jogo a noção de
sujeito. Não há um Ego que promova a unidade temporal, também não
há um Eu, seja esse de qual ordem for, que dure. A subjetividade
sartriana foi a tal ponto esvaziada que pode, sem grande dificuldade, ser
identificada a nada (néant). Dito de outro modo, a consciência é
nadificante, negação do ser (fuga do presente) e negação de si
(impossibilidade de coincidência, nada) rumo àquilo que ela tem de ser
(ser em-si-para-si). Um grande movimento, um turbilhão que se

13
“Entendamos: o Eu formal ‘transcendental’ nada mais é que uma ‘contração
infinita do Eu material’ simplesmente porque se o transcendental é fato, não
princípio lógico, o Eu é da mesma ordem, isto é, material e não formal. Daí porque
o Eu transcendental implica opacidade: é que se trata de um Eu material contraído”.
Moutinho, 1995, p. 31-32.
14
“Todos eles, contando o simples ato do eu, em que tenho consciência do mundo ao
voltar-me espontaneamente até ele e apreendê-lo como algo que está imediatamente
aí diante, estão compreendidos na única palavra cartesiana cogito”; (...) “Assim
mesmo, trata-se de caracterizar a unidade da consciência requerida por aquilo que é
próprio das cogitações, e requerida tão necessariamente, que as cogitações não podem
existir sem essa unidade”. Husserl, 1992, p. 70 e 78.
15
Sartre, 1978, p. 99.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 235

arranca na direção do mundo e retorna sobre si; nesse contexto, como


falar em passado ou em presente? Não seria essa condição ainda pior
que a verdade cartesiana do instante? Ou mesmo, pior que a posição
idealista de Husserl que, ao menos com as noções de protensão e
retenção, podiam explicar a inserção da consciência no tempo? Enfim,
como, a partir desse fluxo contínuo ao qual o sujeito foi reduzido, falar
em dimensões temporais ou temporalidade?

A superação do instante
Ao alinhar Sartre do lado de Descartes e Husserl, o que mostra que seu
pensamento é cartesiano, percebe-se de antemão que a maior
dificuldade relativa ao tempo deverá ser o instantaneísmo. E Sartre não
está alheio às dificuldades relativas ao tempo, principalmente no que se
refere a esse problema específico, tanto que, no que tange à primazia do
instante na constituição do tempo, o autor alvo da discussão é
justamente Descartes. Se para Descartes é a intuição de si (eu penso) que
fornece a certeza do sujeito como substância (res cogitans), não há outra
alternativa que entender o tempo como uma instância externa à
consciência; dessa feita, o tempo deverá ser identificado ao objeto do
mundo. Sendo assim, como falar em dimensões temporais? É no
instante que se dá a certeza de ser, ou melhor, a verdade penso, logo sou
é indubitável quando enunciada.
Entretanto, ao afirmar que a verdade do cogito é devida a uma
certeza primeira, Descartes também afirma que a existência pode ser
infinitamente dividida; dessa feita não há, necessariamente, nenhuma
relação entre o foi e o será. Além da criação, também a continuidade de
cada ser (duração) deverá resultar de um ato divino. 16 A existência é,
dessa maneira, continuada de um instante a outro pela ação divina; não
há nenhuma relação que possa ser apontada entre as dimensões

16
“Pelo nome de Deus eu entendo uma substância infinita, eterna, imutável,
independente, todo conhecimento, todo potência e pela qual eu mesmo e todas as
coisas que são (...) foram criadas e produzidas”; e “ainda que eu possa supor que seja
possível que eu sempre tenha sido como sou agora, eu não poderia por essa razão
evitar a força desse raciocínio, (...). Pois todo o tempo de minha vida pode ser
dividido em uma infinidade de partes, cada uma das quais não dependentes de
forma alguma das demais”. Descartes, 1973, p. 107 ss.
236 Luciano Donizetti da Silva

temporais, não há para o homem nem mesmo tempo, afinal, seu


presente, a representação do passado ou qualquer projeção futura
deverão ser feitos no instante e ao instante reduzirem-se. Para a filosofia
cartesiana, se há passado ou futuro, esses estão reservados a Deus,
cabendo ao homem apenas o instante.
A criação ex-nihilo gera uma espécie de temporalidade em que a
ligação de suas partes é contingente; não há conexão necessária entre
momentos vividos. Como explicar, nesse panorama, a passagem de um
instante a outro? 17 Sem a relação intrínseca de momentos apenas uma
testemunha externa e alheia ao tempo poderia promover a
concatenação temporal. Isso mostra que, na filosofia cartesiana, o
tempo no mundo não passa de uma ilusão: ao instalar o homem no
instante, como aceitar que houve mudança, que o que foi não é mais?
Mesmo a identidade do sujeito perde seu valor pois se cada aparição a si
mesmo é feita de forma desconexa com a anterior, o que pode garantir
que há o si mesmo? Enfim, ao partir da realidade do instante, apenas
Deus pode estabelecer as relações entre o instante e o tempo.
Entretanto, para Sartre apenas suprimir o cogito não é garantia
de superação do problema do instante. É, por exemplo, o caso do
associacionismo que pensa o tempo tal qual instantes que se sucedem
como pontos dispostos em uma linha; 18 essa doutrina produz,
imediatamente, o prejuízo de que cada momento permanece fechado
em si mesmo. A síntese que faria dessa coleção de instantes uma
totalidade é impossível, haja vista que cada momento foi definido de
maneira externa em relação aos demais. É justamente contra a noção
associacionista que Sartre retoma Bergson e a negação do instante:
“Brevemente, a pura duração bem poderia não ser senão uma sucessão
de mudanças qualitativas que se fundem, que se penetram, sem
contornos precisos, sem qualquer tendência a se exteriorizar uns em
relação aos outros, sem qualquer parentesco com o número: isso seria

17
Sartre afirma que é necessário que “se o tempo é separação, ao menos é uma
separação de tipo especial: uma divisão que reúne”, Sartre, 1943, p. 176 (tradução p.
186).
18
O nexo entre antes e depois deve ser interno; de outro modo o problema apenas se
resolveria com a noção de um Deus intemporal (Descartes) ou com a remissão a um
eu penso que esteja fora do tempo, como unidade sintética.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 237

heterogeneidade pura”. 19 Para Sartre o tempo é múltiplo, não há


dúvida; mas, em conformidade com Bergson, ele admite que o que faz
com que o tempo seja apreendido como uma gama infinita de instantes
é sua espacialização. Ora, feito isso não se trata mais do tempo, mas de
uma representação quantitativa na qual há uma relação de exterioridade
de um momento a outro.
Há, para Bergson, relação intrínseca de um estado a outro e,
dessa feita, o tempo não se reduz a uma sobreposição infinita de
instantes; a divisão do tempo em ‘agoras’ é devida a uma atividade
posterior, a um esforço retrospectivo. Sendo assim, Sartre entende que
a síntese que compõe a duração na filosofia de Bergson se reduz a uma
espécie de ‘monismo temporal’; ora, sem intermediação, sem passagem
real de um momento a outro, não há diferença entre as dimensões
temporais e, com isto, o tempo se torna novamente uma ilusão. 20
Ainda que na filosofia de Bergson não seja necessário um ato que
engendre a temporalidade, para Sartre é preciso encontrar no presente a
estrutura que o faz intrínseco às demais unidades temporais (passado e
futuro) e, além disso, capaz de reunir-se aos demais presentes. 21
Sartre contrapõe-se à filosofia cartesiana, que privilegia o
instante; critica, por sua vez, Bergson, na medida em que negar o
instante não se resolve com a afirmação de uma totalidade temporal
dada; também nega que o meio termo possa ser o associacionismo, uma
vez que nessa teoria os instantes estariam fechados em si e, por isso,
incapazes de serem reunidos. Qual a saída para, ao mesmo tempo,
negar o privilégio do instante e manter coesas as dimensões temporais?
Como primeira resposta é preciso voltar à estrutura ontológica da

19
Bergson mostra como, devido a uma estrutura psicológica, o tempo é entendido a
partir da noção de espaço, o que produz sua heterogeneidade; mas, conforme mostra
Sartre no Diário de uma Guerra Estranha, essa compreensão se deve a um engano,
qual seja, inserir sub-repticiamente a espacialização do tempo. Sartre, 1983, p. 77-
79.
20
Bergson “Tem razão contra Descartes, ao suprimir o instante; mas Kant tem razão
contra ele quando afirma que não há síntese dada. Esse passado bersoniano, que
adere ao presente e até o penetra, é pouco mais que uma figura de retórica”. Sartre,
1943, p. 181 (tradução p. 191).
21
A solução para o impasse é, segundo Sartre, produzir uma ontologia da
temporalidade. Sartre, 1943, p. 181 (tradução p. 191).
238 Luciano Donizetti da Silva

consciência: o cogito sartriano não é tal como para Descartes, uma


substância; ele é nada, um fluir ininterrupto rumo àquilo que ele não é.
Dessa feita não se trata, como seria no caso de Descartes, da
presença de um em-si a outro (consciência ao objeto); isso denotaria
uma relação de exterioridade e a necessidade de um terceiro termo
(Deus) que promova sua união. O cogito sartriano é esvaziado, e sua
existência requer, no mesmo ato, presença a algo que ele não é; e por
não se tratar de uma substância, a relação não se dá de forma externa,
mas uma relação interna com o objeto presentemente intencionado. 22
Além disso, para ser presença a determinado objeto, a consciência deve
ser, também, presença a si (pré-reflexividade). O que media a relação da
consciência com qualquer objeto é ela mesma, a partir do tipo de
relação reflexo-refletidor; chega-se, enfim, ao território da negação: a
consciência é dupla negação e, assim, é ela mesma quem instaura a
temporalidade.
Ser consciência é relacionar-se com algo que não se é, ou seja,
ao intencionar um objeto presentemente, a consciência nega esse
objeto; com isso o objeto é posicionado. Porém, no mesmo ato, a
consciência nega-se enquanto negação do objeto; assim, por uma
autoposição, a consciência estabelece seu ser, ou melhor, seu nada de
ser. A consciência escapa ao ser contrapondo-se ao em-si e, por esse
mesmo ato, negando-se a identificar com o ser-negação-do-objeto,
escapa também ao presente – “o presente é uma fuga perpétua frente ao
ser”. 23 A decorrência imediata é que o presente não se configura
enquanto algo que se apresenta à consciência, mas, contrariamente, é
pela consciência que o presente é levado ao ser; o presente ocorre
porque a consciência é presença a.
Dessa maneira, está negado o instante (a exemplo de Bergson)
sem que, para isso, seja necessário afirmar a constância do cogito frente
a um determinado objeto; melhor, sem a necessidade de afirmar que há
uma síntese temporal a priori. A unidade das consciências (duração)
não exige, pois, a existência real do presente em fusão com o passado; é
necessário sim, para que haja tempo, o movimento reflexivo (negativo)

22
Noção de negação interna, conf. Sartre, 1943 p. 58 e 228 (tradução p. 64 e 242).
23
Sartre, 1943, p. 167 (tradução p. 177).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 239

do para-si: ele é o único que pode estar presente a um objeto e, nessa


medida, promover a co-pertença de ambos (para-si e objeto) a um
presente. Sem a consciência não há mediação possível entre quaisquer
objetos, que continuam fechados em si e incapazes de se relacionar. O
presente (não o instante) se dá pelo ultrapassamento do em-si pelo
para-si; entretanto, o em-si, ultrapassado, não desagrega e deixa, por
isso, de existir. É a partir daí que se pode falar em passado.

Recuperação e projeção de si
A filosofia de Sartre não está mais no registro cartesiano. Superado o
instante, no qual duas substâncias compartilham um mesmo momento
e cabe a Deus o papel de promover a temporalidade (Descartes), Sartre
passa a haver-se com Bergson. Também para ele não se coloca o
problema do instantaneísmo; trata-se, tal qual Sartre, do presente que se
estende sobre o passado e o futuro. 24 Para Bergson o presente se estende
sobre o passado graças à memória; o passado se difere do presente por
sua natureza, afinal ele não deixa de ser, mas perde a capacidade de agir
no presente. 25 Dessa feita, a consciência presente conserva o passado, o
que significa para Sartre uma clara indicação de confusão entre ser-em-
si e consciência: nada há que justifique que a consciência possa
expandir-se rumo ao passado e ao futuro, uma vez que, mesmo com a
mudança de natureza, tudo é presente.
Também para Sartre o passado é em-si (não age sobre o
presente). Entretanto, não se trata de em-si no presente (o presente é
fuga perpétua); o passado é em-si para o presente. Não há
contemporaneidade entre presente e passado na mesma medida em que
não há contemporaneidade entre consciência e objeto negado
presentemente. Para Sartre a relação entre o para-si e seu passado deve
ser ontológica, ou seja, o passado é em-si superado sobre o qual o para-

24
Bergson, 2006, p. 161.
25
Em resumo, para Bergson a memória, nos níveis mais expandidos, conserva o
passado; quando se aproxima da percepção, a memória se contrai. Tal contração faz
com que o passado confunda-se com o presente, mostrando que a relação entre
passado e presente se dá numa co-extensão e não numa existência paralela. Assim, a
diferença entre passado e presente não seria de grau, mas de natureza: o passado é
inativo, o presente é ação. Bergson, 2006, p. 169.
240 Luciano Donizetti da Silva

si não pode mais agir: o para-si não é fundamento de seu passado, não
pode mais mudá-lo; o passado é para-si fixado no Ser. “Assim, o
passado é a totalidade sempre crescente do em-si que somos. Enquanto
ainda não morremos, todavia, ainda não somos esse em-si sob o modo
da identidade. Temos de sê-lo”. 26 O surgimento do para-si evoca as três
dimensões temporais uma vez que ele já surge com um passado (em-si
superado) e foge rumo ao que não é (futuro).
Para tanto, o passado do para-si não pode ser apenas memória.
Diferentemente de Bergson, a filosofia sartriana exige que a
solidariedade com o passado não se resuma ao que é lembrado ou foi
percebido, mas, antes, a todo o passado do para-si. É no plano pré-
reflexivo que o passado surge ao para-si; muito além do que se poderia
nomear passado psicológico, o passado é aquilo que o para-si foi e,
presentemente, deve continuar sendo. Contrariamente a Bergson, o
passado não necessita ser posicionado para ser; no entanto, não é
também inconsciente. Ser consciência é estar além daquilo que se lhe é
dado presentemente; isso faz com que a consciência seja capaz de
alcançar e se relacionar com a dimensão passada sem possibilidade de
confusão com o presente (com o era, foi, ou simplesmente em-si). O
passado faz parte do campo de presença do para-si; por isso, a relação
com o passado deve ser ontológica.
Paralelamente, o problema do tempo da maneira como foi
desenvolvido por Husserl também tem forte influência sobre Sartre.
Mas, segundo ele, a filosofia husserliana erra por, mesmo tendo
entendido o tempo como duração e buscado desfazer a ruptura entre as
três dimensões temporais, não estabelecer uma instância responsável
pela totalização temporal. Assim, “o único meio possível de estudar a
temporalidade é abordá-la como uma totalidade que domina suas
estruturas secundárias e confere-lhes significação”. 27 Husserl não
considera suficiente a análise das sensações para que seja estabelecida a
sucessão temporal (ou sucessão de sensações); desse modo, a sensação
presente deve, de alguma maneira, carregar consigo uma relação interna
com a sensação anterior. Ou, fazendo o caminho inverso, para que uma

26
Sartre, 1943, p.158 (tradução p. 169).
27
Sartre, 1943, p. 158 (tradução p. 169).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 241

sensação passada possa reaparecer, essa deve, necessariamente, manter


alguma relação com a sensação atual.
Esse problema é mais bem explicitado no exemplo de uma
melodia: ao ouvir os novos acordes não há o desaparecimento dos
anteriores. Se fosse dessa maneira, haveria uma gama de sons
indiferenciados e jamais seria possível ouvir uma música; tratar-se ia de
uma seqüência de acordes irremediavelmente separados entre si. 28 Por
isso Husserl recorre ao conceito de associação originária, segundo o qual
o que acontece é a associação de um momento passado no instante
presente; esse passado, por sua vez, apresentar-se-ia como irreal e, desse
modo, a sucessão temporal seria, segundo Sartre, um recurso ao
imaginário. Se o problema se resolve em parte, afinal ela aplica uma
marca que distingue a aparição do passado no presente, cria por sua vez
o problema de distinguir uma percepção temporal atual (ouvir uma
melodia) e a rememoração (lembrar-se de que ouviu uma melodia),
problema que se agrava quando a existência real do mundo é colocada
entre parênteses (epoché fenomenológica).
Mas é Husserl mesmo quem mostra essa dificuldade, afinal, ao
tentar recuperar a possibilidade de relação entre as três dimensões
temporais afirmando o presente e relegando o passado e o futuro ao
status de irreal, relega-se também o tempo ao imaginário. Não há
qualquer possibilidade de recuperar a objetividade temporal dos fatos
passados. Melhor seria, como meio de apreensão da estrutura temporal,
analisar a consciência e sua relação com os objetos temporais; para
tanto, é necessário abandonar a posição transcendente do objeto dado,
e analisá-lo como puro dado hilético (matéria subjetiva, presente na
consciência). Assim, no caso da melodia, percebe-se que cada acorde se
mantém consciente e, em seguida, passa a ter um coeficiente passado,
sendo substituído por um outro e, consecutivamente, a melodia
enquanto uma totalidade, ao findar, também se afasta; é a nota presente
que modifica e retém a nota passada. A impressão presente se liga a
uma série de retenções formando um contínuo e reafirmando a
totalidade temporal.

28
Husserl, 1994, p. 45-50.
242 Luciano Donizetti da Silva

Se isso pode explicar a relação original com o passado, o que


explica a ligação com o futuro? De fato, cada presente traz consigo um
passado; o futuro é, por sua vez, visado como intenção vazia ou
protensão. O futuro é aquilo que é projetado, o vazio rumo ao qual cada
presente é arrastado. A partir da impressão presente, tanto passado
quanto futuro arrancam seu sentido: é a partir do dado presente que
podem ressurgir o passado e projetar o futuro. 29 Estaria assim resolvido
o problema e, conforme pretende Sartre, o tempo teria sido pensado
enquanto totalidade? Não. Para Sartre Husserl vai além de Bergson
porque alarga o presente. A consciência permanece presente ao objeto
visado; mas de maneira alguma isso responde sobre o ser do passado e
do futuro. E se Husserl pode falar de modificação naquilo que é retido,
com relação à impressão presente, Sartre se pergunta sobre o lugar dessa
modificação, afinal, se for uma modificação ontológica, faz-se
necessária uma consciência para reconhecer a mudança no ser; se não é
isso, o problema continua: como é possível sair do presente (ou
recuperar o passado), afinal haveria que se admitir que o passado é
presente.
Não há meio de considerar a retenção e a conseqüente
modificação hilética do vivido uma boa solução para o problema do
passado; nem mesmo a intenção vazia como uma solução adequada
para o problema do futuro. A mesma dificuldade antes apontada por
Sartre em relação à Husserl pode ser aqui retomada: feita a redução, o
que pode ser considerado real, ou melhor, como distinguir mundo (ou
tempo) imaginado de mundo (ou tempo) percebido? Assim como
apenas a intencionalidade não era suficiente para distinguir a árvore
imaginada da árvore percebida, as operações de retenção e protensão,
somadas ao constante distanciamento dos fatos vividos, não são
suficientes para limitar as dimensões temporais (distinguir tempo
imaginado e tempo percebido) e, nem mesmo, dar conta da
temporalidade do vivido. A modificação (o coeficiente de passado) não
pode ser apenas qualitativa, mas deve ser ontológica: o passado deverá
ser o para-si na medida em que participa do ser; o futuro deverá ser o
para-si como projeto de ser.

29
Husserl, 1994, p. 94 ss.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 243

Considerações finais
Enfim, para concluir essas reflexões, será feita uma avaliação da
temporalidade sartriana para entender em que medida, ou melhor, a
que preço, Sartre formula sua estrutura do tempo. Entretanto, trata-se
de conclusões, afinal, não será possível uma afirmação única no que diz
respeito a esse problema; o que parece desnecessário afirmar, em
resposta à primeira indagação desse texto, é que ter como fundamento
da filosofia a certeza inabalável do cogito não encerra, de maneira
alguma, tal filosofia no instante. Sartre mostra que a pré-reflexividade
do cogito além de garantir a relação entre consciência e mundo,
antecipa, também e por isso mesmo, a inserção da consciência nos três
ek-stases temporais. Para isso, porém, o tempo deverá perder seu caráter
de realidade, devendo ser engendrado pelo para-si.
É justamente isso que pode ser dito do presente: ele não tem
um caráter de tempo do mundo, ou então não é concebido como um
instante ou um ponto em uma linha temporal; não há, sequer, a linha.
O presente passa a ser deduzido da presença a que o para-si, por sua
estrutura incapaz de coincidir com qualquer objeto intencionado,
simplesmente é. “A presença a... é uma relação interna do ser que está
presente com os seres aos quais está presente”. 30 É da presença da
consciência a qualquer objeto que o presente se institui; a temporalidade
é levada ao mundo pelo para-si. Para tanto, além da exigência da pré-
reflexividade do cogito e da intencionalidade, a consciência deverá ser,
também, negação.
Todas as relações que a consciência estabelece, seja com o
mundo ou consigo mesma, deverão ser negativas. É a negação que
garante a relação interna entre a consciência que nega e o ser negado:

Assim, a presença do para-si ao ser pressupõe que o para-si seja testemunha


de si em presença do ser como não sendo o ser; a presença ao ser é presença
do para-si na medida em que este não é. Porque a negação não recai sobre
uma diferença de maneira de ser que distinguisse o para-si do ser, mas sobre
uma diferença de ser. É o que se exprime sucintamente dizendo que o
Presente não é (Sartre, 1943, p. 167, tradução p. 176).

30
Sartre, 1943, p. 165 (tradução p. 174.
244 Luciano Donizetti da Silva

Por isso a negação também é a origem das demais estruturas pelas quais
Sartre supera o problema da temporalidade: é devido à relação interna
entre o para-si e o objeto que a consciência é intencional (nada); é
devido à negação que a consciência é fuga de si e do passado que ela
tem-de-ser; por fim, é também negativamente que a consciência busca
seus possíveis (seu futuro). Por isso, a consciência que não é acabará por
ser a origem de todas as coisas e, mesmo, das estruturas do mundo,
como é o caso da temporalidade; o nada de ser do para-si deverá, dessa
forma, confundir-se com o tempo. Mas, como contrapelo dessa
afirmação, Sartre não estaria afirmando que o tempo também é nada?
Inicialmente, o passado existe a partir do presente, não como
iluminação ou resquício (mancha) no presente, mas para o presente. O
passado é aquilo que o para-si é sem possibilidade de coincidir com seu
ser (foi) e, desse modo, está aberto ao presente. “O passado não é nada,
também não é o presente, mas em sua própria fonte acha-se vinculado a
certo presente e a certo futuro”. 31 Por isso, do presente, tem-se a total
possibilidade de acesso ao passado sem que haja qualquer confusão
entre passado e presente; o passado infesta o presente, é verdade, mas na
medida em que o presente é seu passado.
Portanto, não adiantaria, como faz Husserl, pensar o passado
num jogo de retensões como meio de preservá-lo como passado, afinal,
isso requer que o cogito se dê, previamente, como instantâneo; sendo
assim, não há mais como sair do cogito. 32 Tampouco resolveria, como
faz Bergson, que o passado fosse co-extensivo ao presente; isso não pode
recuperar o tempo real porque confunde passado e presente: “não
explicamos como o passado pode renascer e infestar-nos, em suma,
como pode existir para nós”. 33 Porém, se o passado apenas pode existir
para o para-si (presente), como resolver essa contradição? Afirmando
uma relação ontológica entre essas duas dimensões temporais pela qual
o passado é um para-si recapturado e inundado pelo em-si; a relação com
o passado é originária do para-si, é o para-si na medida em que ele se
cristalizou no ser. 34 Na mesma medida em que o para-si não pode

31
Sartre, 1943, p. 153 (tradução p. 162).
32
Sartre, 1943, p. 152 (tradução p. 161).
33
Sartre, 1943, p. 152 (tradução p. 160).
34
Sartre, 1943, p. 164 (tradução p. 173).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 245

coincidir com seu presente, também não coincide com seu passado;
nem por isso pode deixar de sê-lo: o para-si não pode desligar-se de seu
ser.
Isso explica porque o encaminhamento da questão da
temporalidade na filosofia de Sartre passa sempre pela crítica ao
privilégio que outros autores dão à dimensão presente. Uma vez
afirmado o presente, por mais que esse seja expandido, torna-se
impossível recuperar o passado; ou, “se começamos fazendo do homem
um insular, encerrado na ilha instantânea de seu presente (...)
suprimimos rapidamente todos os meios de compreender sua relação
originária com o passado”. 35 O passado é o para-si que já não é mais e,
por essa razão, mesmo que acessível, não há como mudá-lo, já que se
tornou em-si para o presente. É dessa maneira que o para-si arrasta o
passado que é seu e, todavia, não pode superá-lo nem dele se desgarrar:
o passado é a contingência original do para-si.
Ser para-si é fugir do objeto ao qual ele é presença a, e instaurar
o presente (nada); no mesmo ato, ser para-si é escapar de qualquer
possível identificação com a negação da negação (negar a
impossibilidade de coincidir com aquilo que é negado no presente) e,
dessa forma, empurrar a presença a si, instaurando seu passado. Mas,
além desses dois ek-stases temporais, há ainda um outro: o para-si se faz
existir tendo seu ser fora de si, no futuro (ainda não). Nesse sentido, o
futuro se apresenta como aquilo que o para-si tem de ser e não pode
ser, positivamente, o que quer que seja; há futuro porque o para-si,
embora sendo fuga de seu presente e incapaz de reunir-se com seu
passado, ele é para além de si (ele tem-de-ser seu projeto ontológico de ser-
em-si-para-si).
O presente é para-si, o passado é em-si (para-si cristalizado) e o
futuro não é ainda; 36 o futuro acontece porque o para-si tem-de-ser e
não pode coincidir nem com seu passado nem com seu presente.
“Assim, o futuro, como presença futura de um para-si a um ser, arrasta
consigo o ser-em-si rumo ao futuro”. 37 Há futuro porque, sendo

35
Sartre, 1943, p. 151 (tradução p. 160).
36
Sartre, 1943, p. 174 (tradução p. 183).
37
Sartre, 1943, p. 172 (tradução p. 181).
246 Luciano Donizetti da Silva

negação, o para-si pode não sê-lo. Em resumo, a fenomenologia das três


dimensões temporais mostra que o presente é o que o para-si é no modo
de não ser; que o passado é o que o para-si é no modo de não ser mais; que
o futuro é o que o para-si é no modo de não ser ainda. Porque o para-si
está impossibilitado de coincidir com qualquer uma das dimensões
temporais ele instaura a distância de si relativa a cada uma delas e,
existindo fora de si, estabelece o tempo como temporalidade.
Ainda com respeito à fenomenologia das dimensões temporais
cabe uma pergunta: o que faz com que o para-si tenha de ser?
Justamente sua estrutura de ser, qual seja, o para-si é o que não é e não é
o que é. Com essa frase Sartre explicita a estrutura de ser do para-si, que
não é seu presente à maneira de sê-lo, e é seu passado à maneira de não
sê-lo; ser para-si é assumir, em seu ser, a contradição, uma vez que o
para-si é o em-si (passado) na medida em que não coincide com ele, e é
seu presente na medida em que dele foge. Mas para onde foge o para-si?
Rumo a um ser que está no horizonte de ser do para-si, o ser que o
para-si busca ser para realizar-se: o ser em-si-para-si. O para-si busca
fundamentar seu ser na exata medida em que busca coincidir-se com
esse ser; é o projeto de ser Deus que, no limite, dá sentido à
temporalidade sartriana: “o futuro é o ponto ideal em que a
compreensão súbita e infinita da facticidade (passado) do para-si
(presente) e de seu possível (futuro) faria surgir, por fim, o Si como
existência em-si do para-si”. 38
Desse modo Sartre arranca a temporalidade do nada de ser do
para-si. É certo que o para-si tem, no ato de seu surgimento, a
instauração dos três ek-stases temporais; não há privilégio de um sobre
o outro pois o surgimento do para-si (acontecimento absoluto) é, por
esse mesmo ato, a instauração da temporalidade. O para-si é, ao mesmo
tempo, seu passado (nadificado, já que é sem sê-lo), seu presente (é falta
e arrasta seu passado como presente negado) e é seu futuro (busca ser em-
si-para-si). Ser para-si é ser diaspórico, no sentido em que a
temporalidade não é prévia ao para-si; a temporalidade se possibiliza na

38
Sartre, 1943, p. 172 (tradução p. 182). Ainda, “a eternidade que o homem procura
não é a infinidade da duração desta vã perseguição do si pela qual eu mesmo sou
responsável; é o repouso em si, a temporalidade da consciência consigo mesma”.
Sartre, 1943, p. 188 (tradução p. 198).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 247

estrutura do ser-para-si: o para-si é o ser temporal por excelência.


Concluindo, encontra-se enfim a resposta para a unidade originária da
consciência: “A temporalidade é uma força dissolvente, mas no âmago
de um ato unificador; é menos uma multiplicidade real – que, em
conseqüência, não poderia receber qualquer unidade e, portanto,
sequer existiria como multiplicidade – do que uma quase-
multiplicidade, um esboço de dissolução no núcleo da unidade”. 39
Noutras palavras, o que promove a unidade da consciência é o nada
que a separa de si e jamais pode ser superado; tal unidade é instaurada
pelo surgimento da consciência e expressa pelo reconhecimento da
temporalidade.

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o espírito. São Paulo: ed. Martins Fontes, 2006.
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_______. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: ed. Nova
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39
Sartre, 1943, p. 181 (tradução p. 191).
248 Luciano Donizetti da Silva

___________. Esboço para uma teoria das emoções. Trad. Paulo Neves.
Porto Alegre: L&PM, 2007.
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tradução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005).
TRADUÇÃO

“Deus está sonhando você”:


Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno

Costica Bradatan *

O ponto de partida de meu ensaio é uma afirmação paradoxal que o filósofo, poeta e
romancista espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) fez – em seu ensaio Vida de
Don Quijote y Sancho (1905) – que Dom Quixote, o personagem de Cervantes, é
mais real e autêntico que o próprio Miguel de Cervantes. Em seguida, depois de
discutir esta afirmação e analisar as implicações de um engenhoso artifício literário
que Unamuno empregou em sua novela Niebla (1914), esboçarei algumas das
possíveis conseqüências filosóficas que os conceitos literários de Unamuno poderiam
ter sobre a compreensão da identidade fundamental do eu, e da natureza da condição
humana em geral. O artigo divide-se em três partes: 1) a primeira parte é dedicada a
discutir a acima mencionada alegação paradoxal em Vida de Don Quijote y Sancho; 2)
a segunda parte trata principalmente do Capítulo XXXI de Niebla de Unamuno; e 3)
na parte final tratarei do insight de Unamuno que a relação entre o eu e Deus é,
propriamente falando, da mesma natureza que a relação entre um autor literário e os
entes imaginários que ele cria. Além disso, tentarei situar o insight de Unamuno
dentro de um contexto mais amplo da história das idéias, e apontar algumas de suas
principais implicações filosóficas.

1.
“Para falar a verdade, não se pode dizer que Dom Quixote é produto de
Cervantes.” (Unamuno, 1967: III, 455). Esta é uma das idéias centrais
que ocorrem, de várias formas e sob diferentes aspectos, do início ao
fim de Vida de Dom Quixote e Sancho de Miguel de Unamuno. Na
opinião de Unamuno, um personagem como Dom Quixote é uma
criatura muito complexa, profunda e autentica para ser simplesmente o
produto da imaginação de alguém. Menos ainda da imaginação de
Cervantes. Frequentemente Unamuno é muito crítico a respeito da

*
Professor do Departamento de Filosofia da Miami University, Oxford. E-mail:
bradatc@muohio.edu. Artigo publicado originalmente in Janus Head, 7(2), 453-
467. Copyright © 2004 by Trivium Publications, Amherst, NY, gentilmente cedido
para publicação em português. Tradução de Jaimir Conte.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p.249-265


250 Costica Bradatan

maneira de Cervantes tratar seus próprios personagens. Unamuno


censura Cervantes por ter sido muito frequentemente movido, ao lidar
com seus personagens, por tendenciosidade, preconceito e inveja, e por
ter entendido mal o verdadeiro significado dos personagens do livro
que ele escreveu: “Considero-me mais Quixotista que Cervantista, e...
tentarei livrar Dom Quixote do próprio Cervantes, permitindo-me às
vezes chegar até a discordar da maneira como Cervantes compreendeu e
tratou seus dois heróis, especialmente Sancho.” (Ibid., 4). De certo
modo, Cervantes enquanto pessoa não atinge as altas expectativas
causadas em nós por Cervantes enquanto um autor, ou pelo menos pela
complexidade e autenticidade humanas dos personagens de sua
narrativa. De vez em quando, Unamuno chega até a usar uma
linguagem tão forte quanto aquela revelada por seus comentários sobre
o relato de Cervantes do “affair dos leões”: “Ah, abominável Cide
Hamete Benengeli, ou quem quer que foi que escreveu sobre este feito,
como é detestável e insignificante compreendê-lo (Ibid., 187). Em
geral, do começo ao fim de seu livro Unamuno pede-nos repetidamente
para não confundi-lo com um desses eruditos literários ou historiadores
da literatura que, em sua estreiteza de espírito, consideram os principais
personagens de Cervantes simplesmente em termos de “entes de
ficção.” Ele constantemente nos reafirma seu compromisso de
empreender uma abordagem completamente diferente de Dom Quixote:
“Não desejo ser confundido com a perniciosa e pestilenta seita dos
homens vãos, repletos de falsa erudição histórica, que ousam manter
que nunca houve tais homens como Dom Quixote e Sancho no
mundo.” (Ibid., 189).
Profundamente marcado pela “injustiça” que tem sido feita aos
personagens de Cervantes durante séculos por gerações de eruditos e
historiadores literários, Unamuno decide aventurar-se na difícil tarefa
de revelar o verdadeiro – supremo e absoluto – significado da novela
Dom Quixote. Uma tarefa difícil, certamente – se tivermos em mente
que, para Unamuno, inclusive o próprio Cervantes interpretou
completamente mal seus personagens. De maneira significativa, o título
completo da primeira edição do livro de Unamuno é: A vida de Dom
Quixote e Sancho de acordo com Miguel de Cervantes Saavedra, explicada
e comentada por Miguel de Unamuno (Vida de Don Quijote y Sancho,
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 251

según Miguel de Cervantes Saavedra, explicada y comentada por Miguel de


Unamuno). Ao analisar detalhadamente o modo de vida de Dom
Quixote, seu temperamento e caráter, seus feitos, pensamentos,
comportamento habitual, suas opiniões e argumentos, seu “contexto
intelectual” e sua verdadeira Weltanschauung, Unamuno conclui que há
boas razões para acreditar que Dom Quixote foi “um louco sensato e
não um produto da ficção, como comumente se acredita. Ele foi um
daqueles homens que comeram, beberam, dormiram e morreram.”
(Ibid., 56). O que significa dizer que, para Unamuno, Dom Quixote
adquiriu tal grau de sólida realidade e inconfundível “concretude” que
pode perfeitamente ser considerado um hombre de carne y hueso (“um
homem de carne e osso”), a medida suprema pela qual Miguel de
Unamuno avalia a autenticidade humana.
De maneira interessante, ao estabelecer se alguém existe ou não
autenticamente, como um “homem de carne e osso”, Unamuno faz uso
de um critério pragmático: operari sequitur esse (“a ação segue o ser”),
um princípio de acordo com o qual se pode dizer que alguma coisa, ou
alguém, existe na medida em que produz efeitos visíveis e duradouros
sobre o mundo circundante e/ou sobre as mentes de seus próximos, seja
no presente ou no futuro: “só o que age existe e o que existe está
agindo; se Dom Quixote influencia aqueles que o conhecem, e produz
obras vivas, então Dom Quixote é muito mais histórico e real que
todos esses homens, sombas com nomes, que se admiram com... as
crônicas...”(Ibid., 131). Enquanto tais, as pessoas que aparentemente
viveram algum tempo atrás, inclusive aquelas cujos nomes podemos
ainda encontrar mencionados em documentos e arquivos históricos,
não existem realmente se elas não afetam, de uma maneira séria, nossas
vidas, destinos e maneiras de pensar. Elas são meramente “sombras com
nomes”, sem qualquer realidade ou significado que seja se não
acrescentam alguma coisa a nossas vidas e não significam alguma coisa
para nós. O esquecimento é nossa maneira de puni-las. Por outro lado,
existem aquelas figuras do passado que estão ainda moldando e
alimentando fortemente nossas vidas, aquelas que – de uma maneira ou
outra – estão ainda influenciando nossas idéias e teorias, nossos ideais e
maneiras de viver. Neste processo elas são, de acordo com Unamuno,
trazidas à verdadeira existência. E a lembrança é a nossa maneira de
252 Costica Bradatan

recompensá-las. Finalmente, depois de ter estabelecido este princípio


para sua conclusão final, Unamuno tem de reconhecer abertamente
que: “Na eternidade, as lendas e ficções são mais verdadeiras que a
história.” (Ibid., 132).
Como um resultado, convencido que Dom Quixote, por meio
de todos seus ditos e feitos, revela uma complexidade humana que
Miguel de Cervantes não poderia ter sido capaz de compreender –
menos ainda de inventar – Unamuno passa a mostrar como temos de
separar o autor do seu personagem. Tecnicamente, como é bem
conhecido, Cervantes usou em sua novela o velho truque retórico de
atribuir a composição do livro a alguém estranho, a saber, a um tal
Cide Hamete Benengeli, que supostamente relatou de primeira mão os
feitos de Dom Quixote, Cervantes sendo apenas a pessoa que teve a
sorte de “descobrir” ou “deparar-se com” o antigo manuscrito. Tudo o
que Cervantes subseqüentemente fez foi “obra editorial”, por assim
dizer. E é precisamente sobre esta insincera “confissão” que Cervantes
fez sobre a composição de Dom Quixote que Unamuno baseia seu
devastador ataque a Cervantes. Ele faz isso de uma maneira muito
irônica, e – como veremos – com resultados inesperados.

Não há dúvida de que no Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha


Miguel de Cervantes Saavedra exibe um gênio muito acima do que
poderíamos ter esperado dele em vista de suas outras obras... De modo que
podemos razoavelmente acreditar que o historiador árabe Cide Hamete
Benengeli não é simplesmente um artifício literário, mas antes encerra uma
profunda verdade, a qual é que a história foi ditada a Cervantes por outro
homem... o relato era real e verdadeiro, e... o próprio Dom Quixote,
disfarçado como Cide Hamete Benengeli, ditou a narrativa a Cervantes.
(Ibid., 322).

Como tal, não somente o papel de Cervantes na gênese da


novela fica drasticamente minimizado, mas – o que é mais importante
– a própria substância e estrutura do Dom Quixote o exclui:
propriamente falando, não há lugar para ele na produção e estrutura do
livro, pois um de seus personagens simplesmente ditou a história a seu
fictício e suposto autor. Acontece que uma “transferência de realidade”
entre o autor e seu personagem toma lugar, com o resultado paradoxal
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 253

de que no fim o personagem imaginado chega a parecer mais real e


mais autêntico do que o autor que o imaginou:

embora muitas vezes consideremos que um escritor é uma pessoa real,


verdadeira e histórica porque o vemos em carne e osso, e consideremos os
personagens que ele inventa em suas ficções como puramente imaginários, a
verdade é exatamente o contrário. Os personagens são reais, eles é que são os
seres autênticos, e eles fazem uso da pessoa que parece ser de natureza
humana a fim de assumir forma e existir aos olhos dos homens. (Ibid., 323)

Consequentemente, poder-se-ia dizer (e Unamuno o faz


repetidamente) que, no fim, é Dom Quixote que, propriamente
falando, inventou Cervantes. Ele é o criador de Cervantes exatamente
como Hamlet é, para citar outro personagem de Unamuno em Niebla,
“um dos protagonistas que inventaram Shakespeare” (uno de los que
inventaron a Shakespeare) (Unamuno 1976: VI, 215).
Assim sendo, se alguém olhar este processo de desrealizar a
realidade de um ângulo diferente, mais de senso comum, torna-se
evidente que toda esta demonstração deveria ser considerada, por assim
dizer, com certo cuidado – mais precisamente, como uma brilhante
demonstração per reductionem ad absurdum. A suposição fundamental
sobre a qual tal controvérsia se baseia é, eu suponho, a noção que,
basicamente, a narrativa – junto com seus princípios, regras, padrões,
realizações, etc. – pode perfeitamente ser vista com um meio através do
qual a humanidade poderia ser de algum modo definida ou, em todo
caso, melhor compreendida. Como num espelho, dentro de uma
narrativa podemos encontrar encerradas as próprias condições de
possibilidade da humanidade, nossa própria definição dela mais
sintética, abrangente e autêntica. O que significa dizer: existe uma sutil
dialética entre imaginar um eu (ou seja, concebê-lo em termos
puramente teóricos e especulativos) e traduzi-lo em situações
existenciais precisas. Para colocar isso de outra maneira, a lógica
situacional revelada por um enredo literário bem construído e
cuidadosamente elaborado tem talvez alguma coisa importante a dizer
sobre nossos conceitos fundamentais de realidade do eu, revelando
nossas projeções daquilo a que o eu é semelhante. Um personagem
literário bem construído não pode agir arbitrariamente (precisamente
254 Costica Bradatan

porque ele é bem construído): ao contrário, ele terá de agir


coerentemente, e – por causa disso – todos os seus movimentos, todos
os seus feitos dentro da narrativa – de uma maneira inconfundível –
serão indicativos dos limites últimos do conceito de humanidade. A fim
de serem convincentes, os personagens literários devem ser já
exemplares; eles não podem dar-se ao luxo de ser “simplesmente”
humanos, eles devem ser humanos em seu mais alto grau. E dadas
precisamente as regras deste tipo de determinação, pode-se dizer que às
vezes “personagens fictícios suplantam a realidade de seus criadores”
(Jurkevich, 1991: 33).
De certo modo, então, uma vez que o autor tem de
estritamente seguir as regras da construção narrativa ao criar seus
personagens – caso contrário ele não produzirá criaturas plausíveis –
pode-se dizer que ele é subordinado a elas ou dependente delas. Preso
como ele se encontra no mundo específico de seus personagens, um
mundo dominado por regras e princípios específicos, o autor não tem
nenhuma escolha senão ser seu “crônista” fiel. Ironicamente, esta
humilde situação em que o autor se encontra é uma conseqüência
imediata, embora paradoxal, de sua grandeza como um autor. Quanto
mais obediente ele é ao seguir a lógica interna dos mundos (das pessoas)
que ele cria, melhor ele é como um autor de ficção. Aliás, isso é
exatamente o que Unamuno tem de admitir: “depois de sua concepção
inicial, os personagens têm uma maneira de impor-se sobre seu autor;
eles tornam-se autônomos no sentido de que seu autor não pode
realmente controlá-los.”(Basdekis 1974: 54) 1 . Em consequência,
podemos perfeitamente chegar a dizer que certos personagens são mais
reais que estas ou aquelas pessoas, talvez mais reais e mais importantes
que seu próprio autor: isso acontece precisamente porque o personagem
literário atua de maneira mais coerente – em termos de plausibilidade,
razoabilidade, lógica situacional, etc. – que um ser humano “real”

1
Ao fazer um comentário sobre o Dom Quixote de Cervantes ele confessa num dado
momento: “para minha vergonha, devo admitir que tenho às vezes inventado seres
imaginários, personagens de romances, com o objetivo de colocar em suas bocas
palavras que eu não ousaria colocar em minha própria, e fazê-las dizer como que de
brincadeira alguma coisa que eu considerei muito seriamente.”(Unamuno, 1967:
III, 14).
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 255

atuaria numa situação similar. 2 Obviamente, de acordo com uma tal


visão, a narrativa passa a ser muito mais que (se não alguma coisa
diferente de) meramente uma “obra literária”. Longe de ser
simplesmente um espelho parcial da “vida real”, uma narrativa passa
agora a desempenhar o papel de um critério para a autenticidade e
significatividade da vida. De certo modo, a literatura deixa
simplesmente de “refletir” a vida, mas ela valida, ou ainda cria, a vida.

2.
Como um comentador certa vez disse, “Névoa [Niebla] é a
extensão lógica, a tradução para a ficção de todos os pronunciamentos
teóricos em Vida de Dom Quixote e Sancho.” (Basdekis 1974: 52).
Nesta novela podemos encontrar em uso por assim dizer,
personificados em situações e enredos literários concretos, alguns dos
insights teóricos que Unamuno desenvolveu no ensaio A vida de Dom
Quixote e Sancho.
Niebla é uma estória muito mais complexa do que eu posso
descrever aqui, mas – para os propósitos do presente ensaio –
permitam-me apenas extrair e discutir em alguma extensão um capítulo
isolado, a saber, o Capítulo XXXI. Neste capítulo ocorre que um
personagem do livro, um tal Augusto Pérez, antes de vir a cometer
suicídio, decide fazer a coisa mais inesperada que jamais passou pela
cabeça de um personagem literário em toda a história da moderna
narrativa: isto é, sair da novela e fazer uma visita de despedida a seu
verdadeiro criador, ao próprio Miguel de Unamuno. Este é, como
Carlos Blancos Aguinaga coloca, um “capítulo extraordinário – e
justamente famoso” onde, “as convenções da Ficção, e, portanto, da
existência, são quebradas”, um capítulo de uma “originalidade
surpreendente” (Blancos Aguinaga 1964: 1940), que terá uma

2
Naturalmente, isso porque, em última instância, é o leitor que “constrói” o
personagem literário do livro que ele está lendo: “em últimos termos a essência
intrínseca de uma criatura imaginária deve ser formada pelo leitor, que por sua vez
descobre alguma coisa em si mesmo… o papel do autor tem sido minimizado, pois
o leitor torna-se o verdadeiro autor das personagens imaginárias.”(Basdekis 1974:
55) Mas, dentro do espaço limitado deste artigo, procurei deixar de lado todos estes
problemas da recepção, da contribuição do leitor para a construção do enredo, etc.
256 Costica Bradatan

influência decisiva sobre o futuro da narrativa no século XX. O singular


encontro acontece no escritório de Unamuno, na Universidade de
Salamanca, onde então ele atuava como professor de filologia, reitor da
universidade, e profeta nacional espanhol (algo semelhante àquilo que
Tolstoy tinha chegado a ser na Rússia algumas décadas antes):

Naquele tempo, Augusto tinha lido um ensaio meu em que, ainda que de
passagem, falava do suicídio, e causou tal impressão sobre ele... que não quis
deixar este mundo sem conhecer-me e conversar um pouco comigo. E, deste
modo, ele veio a Salamanca, onde faz mais de vinte anos eu vivo, a fim de
me visitar (Unamuno 1976: VI, 216-17)

E aí, na sala de Unamuno na Universidade, nós nos tornamos


testemunhas deste notável tour de force literário: ou seja, uma conversa
vívida e sofisticada entre um personagem literário e o próprio autor do
livro dentro do qual ele desempenha o papel de um personagem. Eles
falam sobre obras literárias e entes de ficção, sobre a natureza última
dos entes de ficção e que tipo preciso de existência eles possuiriam. Eles
conversam sobre deixar estes entes mortos ou mantê-los vivos. É desta
maneira que, entre outras coisas, Augusto Pérez ouve de Miguel de
Unamuno a insuportável verdade que sua constituição ontológica
última é de tal natureza que ele não pode jamais... cometer suicídio: “a
verdade... é esta: você não pode matar-se porque não está vivo, e que
não está vivo, nem tampouco morto, porque você não existe... Você
não é ... mais que um produto de minha imaginação e da imaginação
de meus leitores...” (Ibid., 218-19).
Em seguida, numa tentativa de confortá-lo, Unamuno tenta
ensinar a seu personagem algumas das coisas que nós já discutimos
acima, isto é, que “[um] romancista ou dramaturgo justamente não
pode fazer qualquer coisa que ele imagina com um personagem que ele
cria. Nem pode um ente saído de um romance fazer qualquer coisa que
um leitor poderia esperar dele, de acordo com os preceitos básicos da
arte...”(Ibid., 221). No que diz respeito ao futuro de Augusto, não há
nada que seu criador possa fazer por ele, pois as regras estritas da
construção narrativa têm sua parte a desempenhar neste caso: “Já está
escrito. Está nos livros. Seu destino está determinado e você não pode
viver mais. Já não sei o que fazer com você. Deus, quando não sabe o
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 257

que fazer conosco, mata-nos”. (Ibid., 226). Nascido milagrosamente da


imaginação de alguém, o personagem é inevitavelmente marcado pela
precariedade, ambigüidade e não substancialidade que caracterizam as
coisas imaginárias: “o ente fictício... visto que ele é um sonho ou
narrativa, é real. Ele possui uma vida ou existência temporal do mesmo
modo que um ser humano, mas, visto que ele é o resultado de uma
fingere, um sonho do autor, ele não tem nenhuma substância... e cai no
vazio, no nada.”(Marías 1966: 93).
Então, outra coisa significativa – habilmente aludida nas
passagens Unamunianas previamente citadas – ocorre em suas
conversas: isto é, a noção que, de certo modo muito similar àquela em
que um personagem tem seu destino “determinado”, o próprio autor
depende, por sua vez, de alguém diferente: de seu Autor divino, ou –
mais precisamente – de Deus o “sonhar”. O autor não é um senhor
auto-suficiente, independente e livre para fazer qualquer coisa que ele
deseja, mas ele é “escrito” por alguém diferente. Propriamente falando,
ele não é senão um personagem de outra estória. Augusto Pérez:

Você quer me matar como um ente de ficção? De modo que hei de morrer
ente de ficção? Pois bem, meu senhor criador Dom Miguel, também você
morrerá. Você retornará ao nada de que saiu...! Deus deixará de sonhar você!
Você morrerá... ainda que não o queira; morrerá você e morrerão todos os
que lerem minha história, todos ... Entes de ficção como eu; o mesmo que
eu! ... você, meu criador, meu caro Dom Miguel, você não é mais que outro
ente “nivolesco”. (Unamuno 1976: VI, 226).

Carlos Blancos Aguinaga, ao comentar este capítulo, chega a dizer que


“a coisa mais importante sobre este capítulo, a mais óbvia e
seguramente a menos observada, não é que Augusto tenta libertar-se do
mundo da Ficção, mas que, nele, um novo personagem finalmente
deixa sua névoa e entra no romance: um personagem com o nome de
Miguel de Unamuno.” (Blancos Aguinaga 1964: 197) 3 . Esta é

3
Carlos Aguinaga inclusive concebe um cenário fascinantemente engenhoso para
tornar esta tese mais convincente: “podemos perfeitamente imaginar um dia em que
um ser humano encontrará em alguma biblioteca desconhecida uma obra estranha e
antiga com o título de Niebla, autor desconhecido: qual então será a diferença entre
Miguel de Unamuno e Augusto Pérez?”(Blancos Aguinagua 1964: 198).
258 Costica Bradatan

realmente uma coisa importante sobre este capítulo – um dos mais


engenhosos e inovadores artifícios literários empregados em toda
narrativa moderna. (Gostaria apenas de lembrar que Seis personagens à
procura de um autor de Luigi Pirandello apareceram, publicados e
encenados, uns sete anos depois de Névoa, em 1921, assim como as
obras de Borges apareceriam somente muito depois. E igualmente
todos os escritos de Mikhail Bakhtin sobre a autonomia do herói
literário.)
Entretanto, existe nesta passagem algo mais importante e
conseqüente do que o fato que Unamuno entra no romance como
justamente outro ente de ficção. De um ponto de vista filosófico, eu
diria que a coisa mais significativa sobre este capítulo não é que, nele,
Miguel de Unamuno passa a ser um mero personagem literário, mas
que a própria vida torna-se uma narrativa, uma história com um Autor
que a “narra”, uma narrativa com um enredo específico e personagens
específicos. 4 Dedicarei a última parte de meu ensaio para discutir
algumas das principais implicações deste insight particular de Miguel
de Unamuno.

3.
A noção de que nós seres humanos podemos perfeitamente ser
apenas atores em alguma peça ou brincadeira, sem qualquer verdadeira
autonomia e auto-suficiência, totalmente dependentes de um magister
ludi, de alguém que é encarregado de organizar, iniciar e terminar a
brincadeira, é certamente um dos mais antigos temas no mundo
europeu. Por exemplo, em suas Leis (803 c-d) Platão diz em algum
momento que

enquanto Deus é a verdadeira meta de todo esforço beneficente sério, o


homem ... foi construído como um brinquedo por Deus, e isso é, na
realidade, o que há de melhor nele. Todos nós, então, tanto homens como
mulheres, devemos nos conformar com nosso papel e passar a vida

4
Na verdade, Blacos Aguinaga alude a este fato: “no final das contas esta é a
exemplaridade, a lição de Niebla. Um belo exemplo de como a tradição novelística
em uso numa situação moderna pode forçar a imaginação a aproximar-se a ponto de
não retornar, para aí revelar o significado do jogo de Ficção, a precariedade da
Existência.”(Blancos Aguinagua 164: 205).
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 259
representando nossa peça o mais perfeitamente possível... Deveríamos passar
nossas vidas jogando... com o resultado do talento obter a graça dos céus...
(Platão 1961: 1375).

Mais tarde o tema assumiu várias formas e passou a ser


conhecido sob vários nomes, todos eles reunidos em torno da mesma
intuição central: que esta vida que vivemos não é tão real e substancial
como ela parece ser, mas somente uma existência de segunda ordem.
Quer na forma de theatrum mundo (“O teatro como um ‘teatro do
mundo’, uma representação do cosmos em que o homem desempenha
seu papel...[Yates 1969: 165]), quer na forma de mundo como
peça/fábula (mundos est fabula), ou naquela da vida como um sonho (la
vida est sueño), o tema tem preocupado vários artistas, escritores,
filósofos, eruditos, etc. desde a remota antiguidade Greco-romana, e
tem formado à sua própria maneira a fisionomia da mente Ocidental.
Por algumas razões, ela teve uma grande renovação durante a
Renascença (“o teatro do mundo como um emblema da vida do
homem era um topos difundido no Renascimento, quer na forma de
teatros da memória, ou de emblemas, ou de discursos retóricos.”[Ibid.,
165]), para tornar-se “um lugar comum no pensamento barroco”
(Nancy 1978: 636). É de fato um lugar comum no mundo de
Shakespeare (“O mundo é um palco/ E os homens e mulheres meros
atores”), mas foi provavelmente o teatro espanhol durante o Siglo d’Oro
que mais o empregou.
Por outro lado, no que diz respeito à história da filosofia num
sentido mais estrito, o tema tem ocorrido algumas vezes. Limitar-me-ei
aqui, muito brevemente, somente a dois exemplos. Primeiro, seria
suficiente dizer que o Deus de George Berkeley, que está “percebendo”
todas as coisas no mundo tornando-as existentes e inteligíveis, é de uma
maneira suprema Narrador ou um Sonhador do mundo. O mundo
existe somente na medida em que Deus é consciente dele. Além disso,
Berkeley explicitamente diz que o mundo é um “discurso divino”, um
sistema de signos e símbolos, por meio do quais, cuidadosamente
compreendidos, podemos apreender alguma coisa sobre seu Autor. 5

5
Mais sobre esta questão em meu ensaio “George Berkeley’s ‘Universal Language of
Nature’.” (Bradatan, 2005).
260 Costica Bradatan

Levando esta noção à sua conclusão final, existe um certo sentido em


que o mundo de Berkeley poderia ser visto como uma aparência
semelhante a um sonho, como a frágil epifania de nosso próprio
pensamento. William Butler Yeats compreendeu de maneira penetrante
que o mundo de Berkeley é em última instância dependente de nós o
“sonharmos”.
God-appointed Berkeley that proved all things
a dream,
That this pragmatical, preposterous pig of a world,
its farrow that so solid seem
Must vanish on the instant if the mind but changes its them
(Yeats 1965: 268)

Em segundo lugar, poder-se-ia perfeitamente ver a filosofia de


Schopenhauer como pertencendo à mesma tradição de pensamento em
que um divino magister ludi está incessantemente fazendo e desfazendo
este nosso mundo. Como ele amargamente a vê, a Wille é alguém ou
alguma coisa que todo o tempo faz uso de nós, “brincando” cruelmente
e ironicamente conosco, sem deixar-nos qualquer liberdade ou
autonomia verdadeira. No segundo volume de Die Welt als Wille und
Vorstellung Schopenhauer fala abertamente sobre este mundo como
alguma coisa “semelhante a um sonho”, para não dizer nada aqui sobre
seus entusiásticos empréstimos da filosofia indiana, especialmente a
noção de Maya.
Portanto, os insights de Unamuno de que existimos somente na
medida em que Deus está nos sonhando ou contando “nossa estória”, e
que nossa constituição ontológica última é determinada pela natureza
dos papéis que desempenhamos dentro da narrativa divina (ou
representamos, ou jogamos), não são necessariamente originais em si
mesmos. Além disso, considerando alguns dos fatos sobre sua
personalidade, afinidades, sensibilidade, educação, e tendo em mente o
complexo e rico contexto histórico e cultural diante do qual o
pensamento de Unamuno emergiu, Carlos Blancos Aguinaga chega
ainda a concluir que Unamuno tinha, de certo modo, de chegar a
empregar abertamente tal tema:

Na qualidade de um homem preocupado com a aparente falta de


substancialidade de sua própria existência, obcecado com a impossibilidade
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 261
da verdadeira comunicação…, e preocupado com o cultivo de sua própria
imagem como uma coisa diferente dele mesmo, era simplesmente natural
que Unamuno, um espanhol imerso em sua própria tradição, se voltasse para
as obras de Calderón para tomar emprestadas as duas metáforas centrais de
Niebla (Vida-Sueño; teatro del mundo) e que ele se deleitasse na totalidade
Barroca do Engaño: Vida como Ficção. (Blancos Aguinaga 1964: 203-4)

O que é não obstante original em seu caso é precisamente seu


patetismo e acento dramáticos. A vida como um sonho de Deus (com
toda a ambiguidade, precariedade e completa falta de substancialidade
que a palavra “sonho” implica) é para Unamuno não meramente um
tema literário, ou algum artifício retórico a ser empregado de maneira
neutra nas obras de ficção, mas uma das coisas mais trágicas sobre a
natureza humana. Pois “Deus cessará de sonhar você!” significa
automaticamente: “Você morrerá”. Se Deus despertar, muda o tema de
seus sonhos, ou por alguma outra razão não nos sonhará nunca mais, o
que necessariamente nos levará de volta ao nada. Esta foi para
Unamuno não apenas uma matéria de exercício literário, mas uma
fonte central de angústia e desespero durante toda sua vida, e deveria
ser considerada na mais estreita conexão com sua obra filosófica El
Sentimiento Tragico de la Vida (1911) e outras obras filosóficas. Que ele
não considerou este tema em termos simplesmente retóricos é provado,
por exemplo, por aquilo que ele confessa a um amigo numa carta
privada (a Walter Starkie, datada de Outubro de 1921): “Afirmo que
somos um sonho de Deus. Deus está nos sonhando e virá o dia em que
ele despertará. Deus está sonhando. É melhor não pensar nisso, mas
continuar a imaginar que Deus está sonhando.” (Unamuno 1967: III,
xxxiv).
A partir do nosso entendimento do que um ente de ficção é nós
derivamos a aguda consciência daquilo que é o caso quanto ao que diz
respeito à natureza fundamental de nossos eus: ou seja, compreendemos
o fato que somos ontologicamente precários e incertos, sem densidade e
qualquer fundamento mais profundo. O que está por trás do insight de
Unamuno é o indizível fato que nós humanos somos, na melhor das
hipóteses, simples ficções. É verdade, “ficções de uma ordem superior”,
nascidos da mente de um Autor absolutamente nobre, mas não
obstante ficções. O que significa dizer: somos “seres” somente de uma
262 Costica Bradatan

maneira irônica, criaturas ontologicamente dessaraigadas e


dependentes. Precisamos de alguém diferente para nos sonhar, ou para
contar nossa estória, para conferir existência a nós ao simplesmente ter-
nos em sua mente. Dentro de tal contexto, a obra de ficção passa a ser
vista como uma forma mais conveniente e mais elegante a partir da
qual somos moldados. Ao estudar cuidadosamente a obra de ficção, a
maneira como ela está sendo produzida, desenvolvida e estruturada,
podemos obter um melhor entendimento de nossa própria “condição
humana”.

Se passarmos [do domínio da ficção] para a esfera da realidade do homem


verdadeiro encontraremos uma situação análoga: visto do ponto de vista de
Deus, o homem também carece de substancialidade e depende de seu
criador… a realidade humana também aparece como um sonho da
divindade, como ficção de uma ordem superior capaz de produzir ficções de
uma ordem secundária, que são aqueles chamados entes fictícios. (Marías
1966: 93)

Há, entretanto, algo que nos pode “salvar”, por assim dizer,
algo que pode compensar nossa precariedade ontológica. Ainda que
Unamuno não fale explicitamente sobre esta forma particular de
“salvação”, considero como sendo uma das consequências lógicas de sua
noção em Niebla que Deus nos está “sonhando”, que não passamos de
“personagens” na estória cósmica de Deus. Minha interpretação avança
como segue.
Considerando que estamos entre um Deus que nos cria apenas
por meio do sonho e o denso nada (nada) do qual tentamos sair fora,
parece que a única maneira razoável de dar sentido à nossas vidas é
contar estórias e imaginar a vidas dos outros (nossas vidas não vividas?),
produzir/sonhar narrativas e torná-las conhecidas de nossos vizinhos,
criar por nossa conta entes fictícios e mundos fictícios. É verdade: do
ponto de vista exclusivo de Deus, somos feitos da mesma substância de
que os sonhos são feitos. Não obstante, precisamente por nossa
habilidade para sonhar/contar estórias, ou seja, espelhar e multiplicar o
mundo de Deus, nós não estamos completamente perdidos. Como
Unamuno coloca, “narrar a vida é a maneira mais profunda de vivê-la”.
Desta maneira a literatura deixa de ser simplesmente uma “prática
cultural” como qualquer outra, mas de algum modo passa a adquirir o
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 263

status privilegiado de uma técnica soteriológica. Pois, fazendo isso,


criando mundos fictícios, praticamos uma forma de imitatio Dei,
imitação de Deus. Feitos como somos “à Sua imagem e sua
semelhança”, estamos fadados, em nossos feitos, a “imitar” Deus e sua
maneira de lidar com o mundo.
Existe em nós uma necessidade primordial de contar estórias,
de imaginar e tecer narrativas, e – de acordo com esta linha de
pensamento – deveríamos tomar esta necessidade como, por assim
dizer, a “marca registrada” que Deus imprimiu em nós. O ato de
“sonhar” o mundo por parte de Deus, quando traduzido em termos
humanos, toma a forma de nossas “narrativas”, estórias, dramas, etc.
Aquilo que era previamente visto como nossa fraqueza fundamental
poderia converter-se em nossa força mais expressiva. Considerada deste
ângulo particular, a história humana – como uma história
acompanhada em toda parte por mitos, estórias e grandes narrativas –
mostra-se como uma tentativa contínua de imitar o processo divino
através do qual o mundo está sendo trazido à existência. Ao trazer
mundos fictícios à existência nós seguimos, de certo modo, o exemplo
de Deus. Mais do que isso, este deveria ser considerado como o consolo
metafísico mais significativo a que temos acesso: ou seja, que – por
sermos narradores da vida – somos de alguma maneira deuses en
miniature, exemplos vivos de Deus.
É verdade, nós mesmos somos “entes fictícios”, mas – devido a
nossa capacidade de praticar a divina arte da narrativa – somos
eventualmente “salvos” e obtemos certa dignidade e base ontológica.
Pois as estórias que contamos, as narrativas que tecemos e os mundos
ficcionais que criamos são a prova viva de que, no final das contas,
estamos mais próximos de Deus que do nada, e de que aquilo que
fazemos pode ser significativo. Por meio do próprio ato de contar uma
estória estamos transcendendo a nós mesmos no sentido de que, ao
contar essa estória, apontamos para o supremo Autor, para o Narrador
divino. Isso torna um mito, porquanto uma estória teológica, não
apenas uma estória sobre Deus, mas – indiretamente, em virtude do
fato que mitos são possíveis – uma prova oblíqua que Deus existe. Uma
consequência da analogia acima referida entre o ato de Deus nos sonhar
e o nosso ato de contar estórias e tecer narrativas é que a simples
264 Costica Bradatan

existência do mito pode perfeitamente ser vista como um “sinal” que


Deus deixa no mundo.
Gostaria de concluir este ensaio lembrando ao leitor de certa
“ficção” de Borges, provavelmente o mais influente dos discípulos de
Unamuno. Este texto muito curto (que no original em espanhol tem
um título em inglês: Everthing and Nothing) é sobre a vida e a morte de
William Shakespeare, sobre o que ele fez e o que ele não fez em sua
vida, e – de maneira mais importante – sobre o significado supremo da
vida de um autor. Perto do final desta (de fato muito Borgesiana)
biografia de Skakespeare, nós nos deparamos com a seguinte nota:

A história acrescenta que, antes ou depois de morrer, encontrou-se diante de


Deus e Lhe disse: Eu, que tantos homens tenho sido em vão, quero ser um, ser
eu. A voz de Deus o contestou de dentro de um redemoinho: Eu tampouco
sou; eu sonhei o mundo como você, Shakespeare, sonhou sua própria obra, e entre
as formas de meu sonho está você, que como eu era muitos e, contudo, ninguém.
(Borges 1998: 320).

Na realidade, a versão inglesa não transmite toda a força


retórica da fala de Deus como ela está presente no original espanhol.
Pois no final Deus não diz simplesmente “Shakespeare”, mas “meu
Shakespeare” (mi Shakespeare), ironicamente enfatizando o caráter
semelhante a um sonho da própria existência de Shakespeare: yo soñé el
mundo como tú soñaste tu obra, mi Shakespeare, y entre las formas de mi
sueño estás tú, que como yo eres muchos y nadie. (Borges 1960: 45)
Quando se chega aos significados supremos, estamos mais perto de
Deus do que estamos ordinariamente inclinados a acreditar. Tanto
Deus como Shakespeare são sonhadores: o sonho do primeiro toma a
forma do mundo, com nós mesmos nele, e o sonho do último toma a
forma de vários contos, mitos e narrativas que, tomados em conjunto,
tornam nossas vidas no mundo de Deus um pouco mais suportável.

Referências
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Nature’.” In K. van Berkel & A. Vanderjagt (Eds.), The book of nature
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Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 265

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O tema do “pecado original” na teoria
do conhecimento de Nicolau de Cusa

Gianluca Cuozzo *
Tradução:
Íris Fátima da Silva **
e Edrisi Fernandes ***

Resumo: Nicolau de Cusa (1401-1464) ao acenar a dupla possibilidade de fazer


descender o malum mundi ou do pecado atual ou da culpa original, afirma que “este
pecado pode ser muito bem aquele da origem, da maneira que aquele que é concebido
pela mãe no pecado tem a sua existência originada na impureza e na volúpia da
carne”. Então, prossegue o Cusano, “dado que todos, a partir de Adão, foram
concebidos de tal modo pela mãe segundo a vontade de um homem [...], por isso
nascemos filhos da ira e temos o espírito de concupiscência da carne [...] e desta
inclinação ao mal, que sentimos desde a adolescência; conhecemos que não somos
movidos pelo espírito bom de Deus”.
Palavras-chave: Nicolau de Cusa, Pecado Original, Malum mundi

Abstract: Nicholas de Cusa (1401-1460) to wave the double chance to take off the
malum mundi or the current sin or guilt of original, He says that "this sin can be very
well that the origin, the way they are mother is conceived in sin by its existence has
caused the impurity and the lust of the flesh”. Then, continuing Cusano, because
everyone, from Adam, were designed so the mother according to the will of one man
[...], why children born of anger and we have the spirit of lust of meat [...], and this
inclination to evil, we feel that since adolescence; know that we are not moved by the
good spirit of God”.
Keywords: Nicholas de Cusa, Malum mundi, Sin or guilt of original

* Professor Associado de filosofia teorética – Università degli studi di Torino. Título


original: Il tema del “pecato originale” nella teoria della conoscenza di Cusano e-mail:
gianluca.cuozzo@unito.it
** Mestre em Filosofia pela UFRN. E-mail: irisphilsol@hotmail.com.
*** Professor e doutorando em Filosofia pela UFRN. E-mail: edrisi@email.com.
Tradução recebida em 09.09.2008 e aprovada em 28.11.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 267-296


268 Gianluca Cuozzo

Nota bibliográfica
As obras de Nicolau de Cusa foram citadas diretamente no texto, entre parênteses,
segundo a edição crítica da Academia das Ciências de Heidelberg (NICOLAI DE CUSA
Opera omnia, iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem
edita) em vias de publicação pela Editora Felix Meiner em vinte e dois volumes. A
abreviação da obra citada é seguida em algarismo romano pela indicação do livro ou do
capitulo; além disso, depois do ponto e vírgula segue, sempre em algarismo arábico, a
página da tradução italiana à qual foi feita a referência. A tal critério fazem exceções
somente os sermões e o epistolário cusano, cujas edições estarão indicadas em notas de
rodapé.
Aqui em seguida são dadas as abreviações das obras citadas de Nicolau de Cusa
(segundo a numeração progressiva da Opera omnia) e as traduções italianas adotadas:
DI = De docta ignorantia, traduzida por E. Hoffmann e R. Klibansky in Opera omnia,
vol. I, Leipzig, 1932; trad. it. de G. Santinello (in Cusano, La dotta ignoranza, Le
congetture), Milão, Rusconi, 1988 (= s) e ou de G. Federici Vescovini (in Nicolò
Cusano, La dotta ignoranza), Roma, Città Nuova, 1991 (= v);
ApDI = Apologiae doctae ignorantiae, traduzida por R. Klibansky, in Opera Omnia, vol.
II, Leipzig, 1932; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, ed.
bilíngüe latim-italiano), vol. II, Bolonha, Zanichelli, 1980;
Coni. = De coniecturis, traduzida por J. Koch e K. Bormann, in Opera omnia, vol. III,
Hamburgo, 1972; trad, it. de G. Santinello (in Cusano, La dotta ignoranza, Le congetture,
cit.) (= s) e ou de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano), Turim, Utet,
1972 (= v);
Deus absc. = De Deo ascondito, in Opuscola I, traduzida por P. Wilpert, in Opera omnia, vol. IV,
Hamburgo, 1959; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (= s)
e ou de L. Mannarino (in Nicolò Cusano, Il Dio nascosto), Bari, Laterza, 1995 (= m);
Quaer. = De quaerendo Deum, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò
Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (= s) e/ou de L. Mannarino (op. cit.) (= m);
De fil. = De filiatione Dei, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò
Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (=s) e ou de L. Mannarino (op. cit.) (= m);
De dato = De dato Patris luminum, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in
Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II;
De gen. = De genesi, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano,
Scritti filosofici, cit.), vol. II;
Id. De sap., Id. De men. = De idiota (De sapientia, De mente, traduzida por R. Steiger,
com dois Apêndices de R. Klibansky; De staticis experimentis, traduzido por L. Baur, com
o acréscimo de uma breve Dissertação de K. Bormann e H. G. Senger), in Opera omnia,
vol. V, Hamburgo, 1983; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici,
cit.), vol. I, Bolonha, Zanichelli, 1965;
De vis. = De visione Dei, traduzida por A. D. Riemann, in Opera omnia, vol. VI,
Hamburgo, 2000; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.),
vol. II;
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 269
Crib. = Cribatio Alkorani, traduzida por L. Hagemann, in Opera omnia, vol. VIII,
Hamburgo, 1986; trad. it. de P. Gaia (op. cit.);
Aequal. = De aequalitate, traduzida por H. G. Senger, in Opera omnia, vol. X,
Opuscola II, fasc. 1, Hamburgo, 2001; trad. it. de G. Federici Vescovini (in Opere
filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);
Compl. = De theologicis complementis, traduzida por H. G. Senger, in Opera omnia,
vol. X, fasc. 2a, Hamburgo, 1998; trad. it. de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche
di Nicolò Cusano, cit.);
Princ. = Tu qui es/“De principio”, in Opuscola II, traduzida por A. D. Riemann e K.
Bormann, in Opera omnia, vol. X, fasc. 2b, Hamburgo, 1988; trad. it. de G. Federici
Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);
Beryl. = De beryllo, traduzida por L. Baur, in Opera omnia, vol. XII, Leipzig, 1940
(Ver também a mais recente “edição menor” da Academia das Ciências de Heidelberg
traduzida por K. Bormann, texto bilíngüe latim-alemão, Hamburgo, Meiner, 1977);
trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II;
Pos. = Trialogus de possest, traduzida por R. Steiger, in Opera omnia, vol. XI2,
Hamburgo, 1973; trad. it. de G. Santinello (in Nicolau de Cusa, Scritti filosofici, cit.),
vol. I;
Comp. = Compendium, traduzida por B. Decker e K. Bormann, in Opera omnia, vol.
3
XI , Hamburgo, 1973; trad. it. de G. Santinello (in Nicolau de Cusa, Scritti filosofici,
cit.), vol. I;
Non al. = Directio speculantis seu de non aliud, traduzido por L. Baur e P. Wilpert,
in Opera omnia, vol. XIII, Leipzig, 1944 e Hamburgo 1950; trad. it. de G. Federici
Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);
Conc. = De concordantia catholica, traduzido por G. Kallen, 4 vols., in Opera omnia,
vol. XIV, Leipzig, 1939-1968; trad. it. de P. Gaia (op. cit.).

1 O pecado original na exegese bíblica de Nicolau de Cusa


Algumas das páginas mais significativas que o Cusano dedica ao tema
do pecado original encontram-se na Cribratio Alkorani (1460-61).
Nesta obra, ao enfatizar a centralidade para a fé cristã dos dogmas da
encarnação, da morte e da ressurreição de Cristo, o pecado é definido
pelo Cusano como divisio, como separação do homem de Deus: “O
pecado traz divisão entre Deus e o homem (dividere inter Deum et
hominem), como diz o profeta: ‘Os vossos pecados vos afastaram de
vosso Deus’ (Is. 59, 2)” (Crib. II, 114; 810). Ao acenar a dupla
possibilidade de fazer descender o malum mundi ou do pecado atual ou
da culpa original, o Cusano afirma que “este pecado pode ser muito
bem aquele da origem, da maneira que aquele que é concebido pela
mãe no pecado tem a sua existência originada na impureza e na volúpia
270 Gianluca Cuozzo

da carne” (ibid). Então, prossegue o Cusano, “dado que todos, a partir


de Adão, foram concebidos de tal modo pela mãe segundo a vontade de
um homem [...], por isso nascemos filhos da ira e temos o espírito de
concupiscência da carne [...] e desta inclinação ao mal, que sentimos
desde a adolescência; conhecemos que não somos movidos pelo espírito
bom de Deus” (ibidem 114-5; 811).
É, portanto Adão, o nosso proto-parente, o responsável direto
desta alteração do criado e da inclinação do homem para o mal. O
homem, que entre as criaturas intelectuais tem agora o ínfimo posto,
possui um intelecto somente potencial; ele, conseqüentemente, bem
longe “de todo otimismo pelagiano” 1 , “necessita de um outro ato que o
faça precisamente passar da potência ao ato”; ao mesmo modo da
“virtude iluminadora do cego de nascença, que pela fé adquire a visão
sem saber como” (Pos. 39; 269), também o intelecto, portanto, “precisa
da graça criadora (donum gratiae creantis) para poder-se realizar no ato
do entender” (De dato I, 69; 135): unicamente ao Pater dator
formarum, automanifestando-se no Filho unigênito e procedendo
atemporalmente no “Espírito perfectivo divino” (ibidem V, 82; 153),
“cabe levar a termo cumprimento” o nosso intelecto (ibidem I, 70;
137). Deus, então, “não será visto se a possibilidade de ver não for
trazida ao ato, mediante uma manifestação de si, por aquele mesmo que
é a atualidade de toda potência” (Pos. 36; 269).
Este ato perfeitíssimo, afirma o Cusano, é a graça divina, da
qual o jardim do paraíso terrestre era totalmente invadido e
circundado. Neste estado de beatitude, Adão, “ornado de inocência” e
vivendo em plena obediência a Deus, podia elevar-se até “a visão da
glória do seu Deus e ao gozo dela” (Crib. II, 108; 806). Todavia o
homem, criado livre, se deixou persuadir pelo diabo, “recusou-se a
obedecer a Deus, para poder conhecer por si mesmo o bem e o mal”, e
assim perdeu a inocência, foi expulso do paraíso e “tornou-se mortal e
ignorante” (ibid). Agora, a danação que segue à queda se identifica com
a perpetuação daquele “estado de separação” devido ao spiritus
divisionis, que é próprio do “espírito bestial do cão e do porco, do

1 R. Haubst, Die Christologie des Nikolaus von Kues, Friburgo, Herder, 1956, p. 63.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 271

raivoso, do ciumento e do luxurioso etc.” 2 O inferno, afirma o Cusano


no sermão XXIV sobre o Pater Noster, “consiste [mesmo] na divisão, na
discórdia, na disputa, na ignorância, nas trevas”; por isso, “os príncipes
do inferno se dizem príncipes das trevas ou diabos”, 3 do grego
diabállein, que significa exatamente dividir, separar, aquilo que no
reino de Deus existe ao contrário no estado de concórdia do amor
(enquanto “conexão amorosa”) e da sua sabedoria luminosa todo-
envolvente (enquanto nessa sabedoria tudo é complicado em um modo
superior à nossa capacidade de compreender). Em tal sentido, “nós por
natureza somos ‘filhos da ira’, da discórdia, do pecado, isto é, da
divisão: de fato, o termo Sunde (pecado) deriva de sundern”, (pecador)
que em alemão antigo moselfrankisch (no qual o Cusano pronunciou e
escreveu o sermão citado) significa mesmo dividir, separar. 4
Em outro sermão, intitulado significativamente Remittuntur ei
peccata multa (1445), 5 o Cusano, concentrando-se principalmente
sobre o caráter de oposição real a Deus que caracteriza a vontade
malvada, define o pecado como “a ofensa, causada pelo homem, à luz
da inteligência”, 6 ofensa em conseqüência da qual “a alma perde o
esplendor da luz divina e o ornamento da graça” 7 . Aqui, continua o
Cusano, na luz da inteligência resplandece o lumen cognitionis divinum,
que é a verdade mesma. Trata-se daquela lux veritatis sine omni tenebra,
de cuja irradiação o nosso espírito faz derivar, portanto, toda virtude

2 Nicolau de Cusa, Sermones CXXXVII, “Tibi dabo claves” (1454), in Nicolai de Cusa
Opera Omnia, cit., vol. XVII, Sermões II (1443-1452), fasc. 2 (sermones XL-XLVIII),
traduzido por R. Haubst e H. Schnarr, 1991, p. 38B (trad. G. Cuozzo,
presentemente vertida para o português).
3 Idem, Sermones XXIV, Jhesus in eyner allerdemutichster Menscheit (Pater noster in
vulgari expositum) (1441), Opera omnia, cit., vol. XVI, Sermones I (1430-1441),
fasc. IV (sermones XXII-XXVI), traduzido por R. Haubst e M. Bodewig, 1984, p.
431A; trad. it. de P. Gaia, Predica sul Padre nostro, Turim, SEI, 1995, p. 56.
4 Ibidem, p. 403A; trad. it. cit., p. 41.
5 Idem, Sermones LIV, Remittuntur ei peccata multa (1445), in Nicolai de Cusa Opera
omnia, cit., vol. XVII, in Sermones II (1443-1452), fasc. 3 (sermones XLIX-LVI),
traduzido por R. Haubst e H. Schnarr, 1996.
6 Ibidem, p. 262A.
7 Idem, Sermones VII, Remittuntur ei peccata multa (1431), in Nicolai de Cusa Opera
Omnia, cit., vol. XVI, in Sermones II (1430-1441), fasc. 3 (sermones V-X), traduzido
por R. Haubst, M. Bodewig e W. Krämer, 1973, p. 121B.
272 Gianluca Cuozzo

cognoscitiva e a faculdade moral de discernir o bem do mal: “A criatura


racional – escreve o Cusano – foi criada para que conheça o sumo bem;
e conhecendo-o o ame, e amando-o o possua, e possuindo-o o desfrute.
Quando, porém a vontade renuncia ao primeiro princípio, dado que
nasceu por ser movida por ele, em vista dele e por causa dele, visto que
todo pecado é uma certa desordem da mente (inordinatio mentis) –
ordem pela qual nasceram a virtude e o vício -, o pecado atual se
configura como desordem. Ora, enquanto tal desordem destrói a
ordem da justiça, ela se diz mortal, posto que a separa de Deus (separat
a Deo) pela qual nossa alma é vivificada; enquanto não destrói a ordem
da justiça, porém a altera, ela se diz venial”.8
O pecado original, nesta segunda acepção encontrada –
distanciando-se bastante da Cribratio Alkorani, na qual a culpa da
origem parecia transmitir-se às gerações através de uma propagação
hereditária de natureza “quase biológica” -, se configura assim como
um verdadeiro e próprio ato de rebelião da razão contra Deus e sua lex
aeterna. Isso consiste em um “ato positivamente malvado” e que tem a
própria raiz na soberba (“quae omni peccato inest”); 9 um ato de oposição
real que é reatualizado em todas as decisões históricas do homem que
“perverte a justa ordem das coisas”: “Quando transgredimos os avisos
do lume da inteligência”, afirma o Cusano, se antecipa o bem efêmero
àquele imutável, o útil ao honesto, a nossa vontade aquela de Deus, os
sentidos à razão. Trata-se, portanto da “transgressão do destino e dos
preceitos aos quais nos remeteu a luz [divina], da realização frustrada
das obras da luz, que são as obras da verdade deo placita”: “Sem
desobediência não se dá transgressão, sem soberba não se dá
desobediência. Por isso a soberba é “vício capital”. 10 O pecado, em
outras palavras, é o “consenso da razão para operar mortalmente na
perversão da justa ordem” – afirmações, estas últimas, nas quais se
mostra uma certa analogia com as análises conduzidas por São Tomás
nas Quaestiones 75 a 83 da Summa theologiae, na qual o pecado é

8 Ibidem, p. 129A.
9 Ibidem, p. 121A.
10 Idem, Sermones VI, Respexit humilitatem (1431), in Nicolai de Cusa Opera Omnia,
cit., vol. XVI, Sermones I (1430-1441), fasc. 2, cit., p. 109 (o itálico é de G.
Cuozzo).
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 273

definido como actus inordinatus e como“voluntas sine adhibitione


regulae rationis vel legis divinae”. 11
Em uma carta ao noviço de Montoliveto, Nicolò Albergati
(Montepulciano, 5 de junho 1463), a alteração (ou disproportio) da
relação ontológica que liga a inteligência criada a Deus, é apresentada
ainda uma vez como o efeito da hybris e da vanitas humana que “afasta
o homem de Deus”: o homem, criado para alcançar a visão da glória
divina, “possuía por natureza o arbítrio, de forma que acreditasse e
obedecesse a Deus por livre escolha, sem a isso ser necessariamente
obrigado. Ele, todavia, abusando de sua liberdade, quis introduzir-se
por iniciativa própria na via da ciência. E quis saber ao invés de crer: a
obediência foi destruída e a inocência traída”. Em outros termos,
continua o Cusano, Adão “não quis dar o louvor e a glória a Deus, o
qual por seu dom gratuito ia conduzir o homem inocente na via da
obediência à visão da glória, mas ele quis dar o louvor a si mesmo, com
a presunção de poder alcançar isso com a força da própria
inteligência” 12 – e nisto, a bem ver, consiste a sua presunção funesta, a
sua narcisista e culpável concentração sobre si e sua própria “razão
separada”, no sentido de uma espécie de “contractio exclusiva e
pecaminosa” que é própria daqueles que querem ser “sapientes por si
mesmos” (sibi ipsi sapientes) (Quaer. III, 28; 27m) –. Eis, portanto, o
pecado que reina no mundo: “Que todos os filhos de Adão presumem
de entender e possuir a ciência soberba e vaidosa, e se gloriam de serem
doutos e sapientes” 13 Eles, então, afirma o Cusano no De visione Dei
(1453), pensando em poder refutar a paternidade divina, acabam por
precipitar a própria razão em uma região distante separantes nos a te,

11 São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, q. 75, a. 1; comentário editado pelos


Dominicanos italianos (com texto latino da edição leonina), Bolonha, Edição Studio
Domenicano, vol. II. Vizi e peccati, Tradução, introdução e notas de T. S. Centi,
1984, p. 141.
12 Nicolau de Cusa, carta a N. Albergati, in G. von Bredow, Cusanus-Texte IV,
Briefwechsel des Nikolaus von Kues, dritte Sammlung (Das Vermächtnis des Nikolaus
von Kues. Der Brief an Nikolaus Albergati nebst der Predigt in Montoliveto, 1463),
traduzido por G. von Bredow, Heidelberg, Winter, 1955, p. 36; trad. it. cit., p. 65-
6 (o itálico é de G. Cuozzo).
13 Ibidem (o itálico é de G. Cuozzo).
274 Gianluca Cuozzo

sofrendo assim a mais grave servidão sob um príncipe adverso a Deus


(ibidem VIII, 29; 289).

2 O transcensus da alma humana: da ratio ao intellectus


No Idiota De mente o Cusano detém-se sobre vários poderes
cognoscitivos da nossa alma. Procedendo desde abaixo onde se
encontram os sentidos, ligados indissoluvelmente ao mundo da
exterioridade e da matéria. A razão, em relação ao sentido, concebendo
as imutáveis essências das coisas abstratas da matéria, tem a prerrogativa
de entender as formas “como elas são em si e para si”, para construir
sobre elas as ciências e as artes matemáticas. Se pensarmos a tal
propósito a geometria, mediante a qual a nossa mente pode construir
notionaliter um triângulo idealmente perfeito e preciso, como não é
dado encontrar na natureza, entre cujos elementos constitutivos
(ângulos e lados) podemos estabelecer várias ordens de relação e de
proporções numéricas, cujo valor é imutável e apodítico. A matemática
e a geometria, todavia, são ciências de ordem comparativa, que giram
em torno “ao mais e ao menos”; elas não estão em grau de atingir a
“precisão absoluta” (ou absoluta quidditas) das coisas. Com efeito, não
obstante a precisão alcançada, segundo o Cusano, a ciência racional
permanece ainda ligada ao mundo da alteridade diversa e da diferença.
Com efeito, se permanecermos no nível das figuras finitas da razão a
forma do triângulo não é aquela do quadrilátero, e estas são outra coisa
em relação àquela do círculo. Somente no conhecimento intelectual “a
mente intui todas as coisas em unidade e intui a si mesma como
assimilação daquela unidade”; ela chega, portanto à forma suprema do
saber adquirida naturalmente, e àquela apreensão unitiva que vê todas
as formas complicadas na unidade simplicíssima da mesma forma
incontracta et absoluta, a Sabedoria divina, “ipsa omnem conceptum
excedens ineffabilis forma” (ApDI 9; 216); do mesmo modo, todas as
figuras geométricas traçáveis sensivelmente estão contidas virtualmente
no círculo infinito, o qual, refletindo enigmaticamente em si “a forma
das formas com mais semelhança do que em qualquer outra figura”
(Compl. VII, 36; 623), é a precisa mensura de toda figura traçável
sensivelmente.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 275

A verdade, o objeto próprio do intelecto, é, portanto a infinita


essendi forma, simplicissima e perfeitissima (ApDI 9; 216), na qual se
resolve toda alteridade e oposição; essa verdade é portanto a coincidentia
oppositorum (cf. DI II, 95; 165s). Aqui, esta visio intellectualis da
unidade complicativa, afirma o Cusano, “promove uma visão
semelhante àquela que se teria de uma alta torre”: aquele que está lá em
cima, com uma simultanea visio, vê logo aquilo que, com um discurso
diversificado e por vestígios, vai procurando aquele que vaga pela região
da diferença e da alteridade racional. Neste modo a mente humana,
posta na alta região do intelecto (o apex mentis), “é juiz da razão
discursiva” (ApDI, 227): isto é, a visão intelectiva pode iluminar-lhe o
caminho lógico, que passa de razão em razão, de verdade determinada
em verdade determinada, oferecendo à ratio aquele fio sintético e
orgânico que faz, sim, que ela não desperdice a própria procura na
fragmentariedade de um discurso meramente analítico e fracionário,
perdendo de vista a unidade daquele verdadeiro absoluto que, enquanto
único, complica na própria simplicidade a multiplicidade vária de todas
as razões inteligíveis. A verdade intuída pela mente escreve de fato o
Cusano, “não é outra coisa que falta de alteridade (carentia alteritatis)”
(Compl. II, 7; 611).
Nesta tripartição das faculdades cognoscitivas, descrita pelo
Cusano – sensus, ratio e intellectus –, o primeiro ponto crítico
verdadeiro e marcante é representado pela conversão da razão, no ápice
das explicações das suas virtudes, na intuição intelectual. A esta intuição
se chega através da dupla via de uma translatio ad infinitas figuras (na
passagem da “matemática exata” àquela “teológico-especulativa”, que
faz um uso simbólico das conjeturas racionais através de uma
transumptiva proportione); e, em segundo lugar, de uma transumptio ad
infinitum simplex (saltando da “matemática simbólica ou especulativa”,
que é “o espelho das figuras teológicas” 14 , àquela propriamente mística,
que tem como objeto o infinito em ato puro e simples). Aqui, a ciência
humana, que tem como modelo próprio o saber matemático
procedente por meio das “sombras” das figuras geométricas e dos
números, descobre a própria inconsistência e inadequação em relação

14 G. Federici Vescovini, Il pensiero di Nicola Cusano, Turim, UTET, 1998, p. 83.


276 Gianluca Cuozzo

ao infinito Posse divino, no qual não há indícios de alteridade, e que


vive em um estado de absoluta indiferença (o absoluta complicatio),
anterior a qualquer tipo de alteridade, oposição e contrariedade: Deus,
afirma o Cusano no De non aliud, enquanto “absoluto não-outro”, é ab
alio aliud, ante aliud; ou seja, ele, dado a sua absoluta transcendência e
incomparabilidade com o existente finito e limitado por ele colocado
na existência, “é não-outro de uma coisa qualquer e é tudo em tudo”
(Non al. XX, 50; 843).
A razão, se por um lado é consciente da própria suficientia na
apreensão das formas abstratas da realidade, por outro lado sabe não
poder ultrapassar aquela dimensão de alteridade do instável “acontecer
do sombreamento” do múltiplo, em cujo interior somente pode
exercitar a própria virtude descritiva: “A nossa mente, embora careça de
toda alteridade sensível, não é desprovida de toda alteridade” (Compl.
II, 7; 611). A ratio, de forma totalmente paradoxal, quanto mais tenta
elevar-se àquela unidade simples na qual todos os contraditórios estão
unificados (a visio unitiva, sobretudo do intelecto, que renuncia ao
princípio de não-contradição), quanto mais se torna consciente dessa
sua impotência constitutiva e da sua necessária ligação com o mundo
da alteridade, e acaba dessa forma levando a cisão e a alteridade ao
interior de si próprio. Trata-se daquela cisão entre o seu obiectum ideal
(a forma formarum, absolutamente simplicíssima) e os seus
instrumentos de investigação, os entia rationis (os números, as figuras,
as proporções entre as grandezas), que são conceitos ligados à região da
alteridade e da diferença. Se por um lado, então, a razão reconhece
“que todo o conhecimento racional fica fechado no interior dos limites
da multiplicidade e da grandeza quantitativa”, por outro lado, ela, no
limiar do próprio auto-transcendimento intelectual, “constata que o
princípio primeiro deve necessariamente ser um princípio
simplicíssimo, senão não seria um princípio primeiro”. 15
A razão, guiada pela praegustatio ingustabilis daquele “alimento
saborosíssimo” que é a Sabedoria, na qual todas as oposições lógicas

15 Idem, Sermones XXII, Dies sanctificatus (1440), in Nicolai De Cusa Opera Omnia,
cit., vol. XV, Sermones I (1430-1441), fasc. 4 (sermones XXII-XXVI), traduzido por
R. Haubst e M. Bodewig, 1984, p. 344B; trad. it. de G. Federici Vescovini, in
Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit., p. 674.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 277

encontram sua perfeita conciliação, pressente quase instintivamente que


a sua posição vacila e é completamente instável: o máximo da
explicação da sua virtude cognoscitiva se transforma de fato no seu
passo definitivo, no qual urge a passagem para uma outra faculdade, o
intellectus, a qual, todavia se encontra já nela “segundo uma
participação alterada” (Coni. II, 75; 292s), isto é, como uma luz, que
ainda fraca e indireta, começa a abrir uma passagem na sombra
caliginosa das figuras, dos números e dos graus proporcionais de
grandeza.
Para descrever o transcensus da alma humana, o Cusano recorre
no De coniecturis (1440-45) à “figura paradigmática P”. O Cusano
adota, portanto, esta figura heurística também para esclarecer o sentido
da participação do espírito humano no intelecto eterno de Deus.
Imaginamos então que a base da pirâmide luminosa represente a lux
veritatis sine omni tenebrositate apreendida no modo intuitivo do
intelecto, enquanto aquela [luz] das trevas representa o estado incoativo
inicial da ratio humana, na qual essa resulta ainda subjugada pela
alteridade diversa da sensibilidade e da imaginação (trata-se, portanto
daquela que o Cusano chama ratio phantastica seu imaginativa, ainda
ligada à variedade das imagens sensíveis, e distinta daquela [ratio]
superior definida como apreensiva) (Coni. II, 156; 344s). Quanto mais
nos aproximamos do Logos divino, tanto mais o nosso intellectus,
“recolhendo-se das alteridades diversas” da razão, alcançará a sua plena
atualidade, por último unificando-se naquele ato cognoscitivo
simplicíssimo que é a visio intellectualis ipsius Cunctipotentis (Pos. 45;
272), capaz de entender e pensar super rationem a coincidência dos
opostos.
A função desta figura é aquela de mostrar como a razão e a
inteligência não são faculdades distintas rigidamente; segundo a figura
P, elas, com efeito, fluem constantemente, umas na outra, e são,
portanto co-presentes no espírito humano segundo “graus de intenção e
de remissão diversos” 16 , distinguíveis quantitativamente segundo o
mais e o menos inversamente proporcional entre eles. Além disso, é
evidente que o progresso da alma na racionalidade é de todo ambíguo:

16 G. Federici Vescovini, op. cit., p. 20.


278 Gianluca Cuozzo

quanto mais a razão chegar ao seu estado de atualidade e de perfeição,


tanto mais ela tenderá a afastar-se da base da pirâmide à qual pertence
para aproximar-se ao seu vértice, e, portanto ao ponto médio da base da
pirâmide da luz: “o terceiro céu do intelecto puríssimo” no qual reina
soberana a unidade do intellectus (DI III, 153; 225s). A ratio, portanto,
quanto mais se tornar ‘verdadeira razão’ tanto mais se aproxima ao
lume da inteligência, a ele assemelhando-se até dissipar-se
imperceptivelmente na intuição intelectual, e, portanto, até por-se à
parte em favor daquela faculdade superior: a inteligência, afirma o
Cusano, “percebendo a inadequação dos termos da ratio”
(necessariamente “delimitada pela multiplicidade e pela quantidade”)
17 , “livra-se deles e concebe Deus acima dos seus significados como o

princípio que os complica” (Coni. I, 40; 268s).


Em outras palavras, a ratio devém ciente que “todos os
procedimentos da pesquisa racional não são suficientes para alcançar a
substância tanto desejada” (Non al. XVIII, 45; 836), a unidade inefável
absque omni alteritate et diversitate. A razão, que enquanto compasso
vivente “resolve tudo em multiplicidade e grandeza” (Coni. I, 40;
268s), compreende com efeito que o obiectum último da sua pesquisa é
a immensurabilis omnium mensura (De vis. XIII, 48; 316); isto é, ao
mesmo tempo “medida máxima” (da qual não pode existir uma maior)
e “mínima” (da qual não pode existir uma menor). A verdade absoluta
é, portanto “quantidade infinitamente grande e infinitamente
pequena”, ao mesmo tempo o maximum e o minimum absolutos, algo,
portanto que pela razão é uma pura contradição lógica, absolutamente
impensável e conceitualmente indeterminável. Por isso, com a
finalidade de conhecer – embora somente naquela forma sui generis de
conhecimento que é a docta ignorantia –, a razão deve afinal renunciar a
si mesma, vale dizer, aos próprios instrumentos lógico-conceituais, o
mais importante dos quais é o princípio aristotélico de não contradição
(DI I, 10; 74s).
A forma desta “contradição entrópica” ou curto-circuito da
razão, que é afinal também paradoxalmente o seu necessário

17 Nicolau de Cusa, Sermones XXII, Dies sanctificatus (1440), cit., p. 344A, trad. it.
cit., p. 687.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 279

cumprimento na intuição intelectual, é, portanto, a coincidentia


oppositorum, que foge à própria apreensão e que, portanto, ela julga,
como sendo uma forma de “conhecimento impossível”. A razão, então,
está absolutamente certa que a “afirmação contradiz a negação, e que
coisas que contrastam entre si não podem, juntas, ser predicadas da
mesma coisa” (Non al. XIX, 46; 837): “Saber reduzir tudo a este
princípio, que é preciso evitar a coincidência dos contraditórios, é
suficiente para todas as disciplinas sujeitas à indagação racional” (Coni.
II, 79; 247v).
O transcensus da ratio para o intellectus pode, portanto ser
descrito como uma verdadeira e própria mudança de paradigma do
pensamento, que da lógica, sendo ela “a arte na qual se explica a força
da razão” (ibidem 82; 298s), através da superação das categorias
racionais conseqüentes à sua elevação ao absoluto (o transsumptio in
infinitum), chega à admissão daquilo que para a razão é totalmente
impossível: para o intelecto, com efeito, afirma o Cusano, é necessário
“procurar a verdade onde se encontra a impossibilidade” (De vis. IX,
34; 296). Essa impossibilidade lógica, que para o intelecto se
transforma na mais alta necessidade do pensamento, é precisamente a
coincidência dos contraditórios, que o Cusano expressa com a imagem
do murus paradisi sive coincidentiae. Esse baluarte, ao mesmo tempo
impermeável (pela razão) e permeável pela visio mystica (à qual conduz
o intelecto), delimita, com efeito, aquele lugar paradoxal e inacessível
para a razão no qual, além de toda oposição, habita Deus, que é
percebido “no modo revelado” (revelate) somente com a ascensão
mística: “Começo a vê-lo senhor, já na porta da coincidência dos
opostos, custodiada pelo anjo colocado na entrada do paraíso” (ibidem
X, 36; 301); “Vejo, por conseguinte, no muro do paraíso, onde tu estás
Deus meu, que a pluralidade coincide com a singularidade, enquanto
tu habitas além daquele muro, bem longe dele” (ibidem XII, 60; 335).
O espírito humano, assim como é representado de acordo com
a figura paradigmática P, resulta extremamente instável, fluctuans,
como se expressa o Cusano. Ele, segundo a escala hierárquica dos seres
de ascendência neoplatônica, ocupa uma posição intermediária entre o
topo da natureza animal (em cuja sensibilidade predominante está já
presente uma forma germinal de ratio) e o grau mais inferior das
280 Gianluca Cuozzo

criaturas angélicas, os demônios, os quais apesar de serem atingidos


pelo “torpor na alteridade obscura da ignorância” (Coni. II, 135; 332s),
são puramente intelectuais. O homem, em virtude da sua posição
central na ordem da criação, verdadeiro e próprio methórios, como o
define Filo, “dotado de uma natureza intermediária entre a espécie
imortal e aquela mortal” 18 mesmo em virtude desta sua posição central
na ordem da criação, é colocado “acima de toda a obra de Deus e um
pouco abaixo à natureza Angélica” (DI III, 126-7; 196s): ele é portanto
copula mundi, quasi nexus universitatis entium (Id. De men. XIV, 210).
No entanto, estas expressões assumem no Cusano um significado
dinâmico, conectado intimamente ao tema da liberdade: o espírito
humano é livre para experimentar todos os graus de intenção ou
contração proporcional entre o sensus e o intellectus, e isto atravessando
os graus intermediários da ratio, cuja ciência é exatamente uma media
speculatio. Dito de outro modo, a razão, possuindo “uma natureza
intermediária entre o mundo inferior e aquele superior (Coni. II, 119;
270v), pode ascender à visão intelectiva (aquele “saber negativo” de
caráter intuitivo, que é o fundamento da união mística: a docta
ignorantia); ou, pode subjugada pelos sentidos e pela imaginação
precipitar-se por escolha própria nas regiões inferiores da alteridade
diversa, onde a matéria opaca projeta na ciência a sombra obscura da
diferença e das oposições, não permitindo a ela conhecer a unidade
complicativa do verdadeiro.
E esta, se olharmos bem, é a sede da ignorância “realmente
insipiente”, não, portanto aquela do sábio, que é docta, enquanto ele
“scit suo modo et tamen nescit in preciso” (Id. De sap. I, 22; 70); porém
aquela [ignorância] culpável e pecaminosa do bruto e do insensato. Este
último, rejeitando o intellectualis beryllus da coincidência, não faz
nenhum uso da visão unitiva do intelecto, apoiando-se unicamente no
“bastão da razão” (baculus rationis). Ele vive, com efeito, na regio
dissimilitudinis, à sombra do muro do paraíso, sem poder nunca nem

18 Filo de Alexandria, in Les Œuvres de Philon D’Alexandrie, Publieés sous le patronage


de l’Université de Lyon par R. Arnaldez, J. Pouilloux e C. Mondésert, texto bilíngüe
grego-francês, vol. XIX, introdução tradução e notas de P. Savinel, Éditions du Cerf,
Paris, 1962, II 228, p. 216; trad. it. in L’Uomo e Dio, traduzido por C. Kraus
Reggiani, Milão, Rusconi, 1989, p. 588.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 281

alcançá-lo nem tampouco ultrapassá-lo, permanecendo, então,


impossibilitado de alcançar o pensamento supra-racional da
coincidentia.

3 O pecado da razão: aspectos sapienciais da docta ignorantia e


humilitas
Neste ponto do discurso deveria ter emergido a centralidade, na
doutrina cusana do conhecimento, da libera voluntas, segundo a qual o
homem pode “aut ampliare aut restringere capacitatem gratiae tuae”
(Deus) (De vis. IV, 15; 272): “Se não me olhas com o olho da graça, é
porque me separei de ti, desviando-me de ti e dirigindo-me a outro que
a ti eu preferi” (ibidem V, 18; 275).
Mas, como vimos, o pecado original é um evento que tem
diretamente a ver com a ciência: Adão pecou na medida em que
presumiu poder “conhecer por si mesmo o bem e o mal”, somente com
as suas forças, abusando delas e concentrando-se egoisticamente nele
per dar louvor, antes que a Deus, à própria ratio separada. A culpa da
origem é, portanto antes de qualquer coisa um mal em relação ao
conhecimento racional. Ela, além disso, tem o significado de divisão
(esta é, com efeito, a primeira acepção do pecado encontrada), uma
separação que no Cusano é possível de uma dupla interpretação.
1) Em primeiro lugar, o pecado original é divisão enquanto é o
efeito do subtrair-se do homem do seu vinculo originário com a graça
divina, que teria permitido a mente humana à elevação àquela visio
facialis onde a razão, por presunção e por soberba, presume ao
contrário poder chegar “só com as suas forças”. Aqui, portanto, a
separação tem o sentido da concentração narcisística e satisfeita do
homem sobre o próprio ser e sua própria faculdade racional. Ele pensa,
com efeito, ser igual a Deus e se ilude assim de poder chegar com a
própria razão “à perfeição da ciência dos Deuses”. E dado que é
necessário demonstrar a própria pretensão da divindade, o homem,
desobedecendo a lex aeterna, decide não usufruir do “Espírito
participador divino” e tenta prometeicamente alcançar, “totalmente
sozinho”, aquilo que, ao contrário, ele iria receber com uma “infinita
profusão” pelo Pater luminum. A Sabedoria, à qual tende o desejo do
nosso espírito, afirma o Cusano, se pode alcançar somente “em virtude
282 Gianluca Cuozzo

do Pai doador das formas, ao qual, sobretudo espera levar à completude


o nosso intelecto” (De dato. I, 70; 137).
2) O pecado, em segundo lugar, é divisão de Deus enquanto
significa “se ad aliud penitus convertere” (De vis. IV, 18; 274). Isto é,
Ele, é a vontade da razão de permanecer estavelmente ancorada,
mediante o princípio descritivo de não-contradição, ao mundo da
diferença e da alteridade racional, à sombra do muro da coincidência-
mundo que, sendo “posto na falibilidade da variedade, não é posto no
Bem que convém somente a Deus [...], mas é no maligno” (Prin. 52;
741). O pecado é, portanto, a recusa, segundo o esquema oferecido
pela figura P, de passar do âmbito da ratio (ou da alteridade racional)
àquele do intellectus (ou da unitas intelectual), na qual todas as
oposições estão superadas na unitiva visio do primeiro princípio, que é
a absoluta complicatio omnium contradictoriorum.
Nesta acepção negativa da “razão separada e separante” - isto é,
filha do “espírito racional separado de Lúcifer, que tentou com a
própria força ascender à similitude do altíssimo” (De dato I, 70; 137) –,
nesta acepção negativa da razão, portanto, devemos talvez ver o motivo
da recusa do Cusano em traduzir a intuição intelectual, que se
identifica com a docta ignorantia, com a expressão abgeschaiden leben.
Esta expressão eckhartiana foi proposta e empregada heuristicamente, a
propósito da interpretação do pensamento cusano, por Johannes
Wenck, o filósofo aristotélico autor do escrito polêmico De ignota
literatura (1449), 19 que tinha tentado atribuir ao Cusano o clima de

19 O título, explica E. Vansteenberghe, é uma retradução, embora de valor inverso,


da doutrina cusana da docta ignorantia, onde o Cusano parte do conhecido para
alcançar, de modo comparativo, aquilo que é desconhecido e [de] onde pode
aprender; para Wenck, bem diversamente, o processo do conhecimento deve partir
do desconhecido para alcançar o conhecido: “Ex proporcionali seu comparativa
reduccione incerti, ignoti seu incogniti quod inquiritur, ad presuppositum seu
propositum certum, notum, manifestum et cognitum, ut innotescat et
manifestetur”: in “Le ‘De ignota litteratura’ de Jean Wenck de Herrenberg contre
Nicolas de Cues De ignota litteratura”. Beiträge z. Geschichte d. Philosophie d.
Mittelalters, VIII (1910), Heft 6, p. 22. “Vacate et videte quoniam ego sum Deus”
(Salmo XLV, 11), lembra Wenck no início do próprio opúsculo polêmico; necessita,
portanto como Davi, preventivamente “se fateatur non cognovisse litteraturam” (cf.
Salmo LXX, 15-16): ibidem, p. 23. Ora, a ignorância a qual precisa partir para
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 283

hostilidade que ameaçava o pensamento de Eckhart (“docta ignorantia


vulgariter ‘abgeschaiden leben’”, escreve Wenck na obra citada acima) 20 .
O Cusano, que em algumas páginas tinha defendido o místico alemão
das acusações ‘ontologísticas’, através do personagem principal (que
professa ser seu discípulo) do diálogo fictício encenado na Apologia
(1449), refuta esta tentativa de assimilação, definindo a tradução como
uma “insignificância pueril”; talvez seja melhor retraduzir o
abgeschaiden leben eckhartiano (isto é, o viver de modo separado, longe
e afastado das coisas do mundo, para recolher-se no profundo da alma e
alcançar assim, “sem perturbar-se com nada”, a visão do princípio) 21
como abstacta vita. Também esta expressão, todavia, para o Cusano
mal se adapta para expressar a visio intellectualis, que ele ao contrário
prefere definir como visio unitiva. Bem diversamente àquela expressão,
esta põe o acento em cima do caráter negativo da separação e do separar
(no sentido próprio do sundern), poderia significar o modo de
compreender da abstracta ratio concentrada solipsisticamente em si
(ApDI 31; 249): aquela espécie de adulterina ratio que não produziu a
conversão “da necessidade do complexo à necessidade absoluta” (Id. De
mente, VII, 161; 153); ou que, depois de chegar fatigadamente ao
pensamento paradoxal da coincidentia, recai fatalmente sobre si,
dividindo e separando novamente (mediante o princípio de não-
contradição) aquilo que para o intellectus constitui ao contrário, uma
unidade complicativa simplicíssima (De beryl. 25; 415).
O pecado original, que é reatualizado em todo ser humano no
ato em que ele escolhe degradar a si mesmo privando-se da faculdade
superior da inteligência unificadora, é, portanto, o querer permanecer

alcançar ad notum, e da qual em seguida necessitaria aproveitar-se e alegrar-se,


afirma Wenck, é mesmo aquela que pode ganhar nova vida na obra do Cusano, De
docta ignorantia, cujas doutrinas ilusórias são frutos de verdadeira ignorância.
20 Para este conceito eckhartiano (Abgeschiedenheit, no sentido de separação e
destaque), ver o tratado alemão Von Abgeschiedenheit: “a perfeita diferença não pode
existir sem a humildade (Demut), já que a perfeita humildade tende ao anulamento
de si”; isso, todavia, “conduz o homem a uma maior semelhança com Deus”: in Die
deutsche und lateinische Werke, Die deutsche Werke, vol. V (Meister Eckharts
Traktate), traduzido por J. Quint, 1963, p. 540-1; trad. it. Del distacco, in Opere
tedesche, traduzido por M. Vannini, Florença, La Nuova Italia, p. 108-11.
21 Ibidem, 540; trad. it. cit., p. 110.
284 Gianluca Cuozzo

obstinadamente no mundo da alteridade diversa das construções lógicas


e nocionais que são próprias da abstracta ratio: a razão pensa então que
a verdade não pode ser entendida com uma precisão superior àquela
oferecida pela multiplicidade dos entia rationis, os números e as figuras
da geometria. A faculdade racional, permanecendo agarrada ao
princípio aristotélico da não-contradição, termina assim por condenar-
se a viver “na sombra de uma morte intelectual” na qual ela
“permanecerá marcada por uma perene pobreza” (Pos. 47; 275). A
ratio, todavia, não é um mal em si, e não há indícios no Cusano de um
verdadeiro e próprio irracionalismo (e para compreender a confiança
colocada pelo Cusano nos poderes da razão, quando ela não transcende
aos limites a ela atribuídos basta pensar no terceiro livro do Idiota e no
De staticis experimentis: aquela espécie de “manifesto anti-filosófico” 22
no qual todos os fenômenos físicos, incluídos aqueles de ordem
qualitativa como a doença e o envelhecimento, podem ser conhecidos
“precisamente” através da sua transcrição na linguagem matemática da
mensura e do pondus). A razão, todavia, torna-se malvada quando,
“enrijecendo-se sobre si mesma”, exclui a priori que além de si possa
haver outros “campos do saber”, nos quais a dimensão sombreada e
muito escura da diferença e da alteridade racional desaparece, e onde,
portanto a virtude descritiva da razão não tem mais nenhum tipo
possibilidade de aplicação e de validade. A mente humana, assim, se
separa de Deus no momento em que elege como único e exclusivo
critério do verdadeiro o princípio de não-contradição (o fundamento
nocional da distinção entre os entes), que é ao contrário um simples
princípio lógico-formal válido somente para o modus intelligendi da
razão, e cujo valor de verdade é, portanto, ligado à alteridade diversa
das suas construções mentais, que têm um sentido somente aquém do
muro da absurdidade e da coincidência.
Poder-se-ia, portanto, dizer que para o Cusano, o verdadeiro
saber teológico – aquele ao qual se tem acesso através do intelecto, que
vê a Deus com o intellectualis beryllus da coincidentia oppositorum –, é
aquele que se esforça para traduzir em um conceito filosófico, nos

22 M. De Gandillac, Genèses de la modernité. De la “Cité de Dieu” à la “Nouvelle


Atlantide”, Paris, Cerf, 1992, p. 446 (o itálico é de G. Cuozzo).
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 285

limites da pensabilidade humana, a assertiva de Tertuliano “credo quia


absurdum”; na linguagem do Cusano isso soaria assim: eu posso
conhecer com o intelecto, atribuindo-lhe um caráter de absoluta
necessidade, aquilo que pela ratio é uma absoluta impossibilitas lógica,
um verdadeiro e próprio absurdo e um salto mortal, isto é, aquilo que
por ela resulta irracional e é skàndalon. Trata-se, portanto do
pensamento meta-conceitual da coincidência, que “torna insensata a
sabedoria do mundo”, aquela ciência media, isto é, fundada somente
sobre o princípio lógico da não-contradição (Pos. 38; 269): “Não há
outra via de acesso para ti, senão aquela que para todos os homens,
também para os mais doutos filósofos, parece totalmente impraticável
(inaccessibilis) e impossível”. Para a mente humana, portanto, escreve o
Cusano retomando a carta dionisíaca ad Gaium, “é necessário entrar na
escuridão e admitir a coincidência dos opostos, além de toda
capacidade da razão, e procurar lá onde se encontra a impossibilidade”
(De vis. IX, 34; 297).
Mas, concluindo, entendo acenar para como, no Cusano, a
doutrina do conhecimento, analisada através da lente do pecado
original, assume um valor bem mais vasto e complexo de quanto a um
primeiro olhar possa parecer. Acima de tudo, o objeto das intuições
intelectuais não é Deus sic et simpliciter, porém o Verbo ou Sabedoria
de Deus; é, de modo particular, o Deus incarnatus sive revelatus, Cristo.
Em segundo lugar, o cume do conhecimento do intellectus ao qual a
mente deve alcançar, é a visão beatífica dos filhos adotivos de Deus. O
mystice videre não se exaure, portanto em uma mera apreensão intuitiva;
porém, é aquela experiência salvífica centrada na figura de Cristo pela
qual o homem obtém a filiação divina per adoptionem. Esta última,
todavia, conformemente à figura paradigmática P, “não é outro que o
se transferir dos obscuros vestígios das imagens à união com a razão
infinita” e encarnada, o Homem Deus (De fil. III, 50; 47m). Trata-se,
porém de um ato de fé, de imitação e de assimilação à pessoa de Cristo,
que salva o homem tornando-o “cristiforme”.
Por último, pretendo acenar para um outro motivo relevante,
que tem a ver com o tríplice nexo humilitas, sui cognitio e ignorantia,
desenvolvido de modo análogo por Petrarca e o Cusano. Petrarca, com
286 Gianluca Cuozzo

efeito, no contexto do De sui ipsius et multorum ignorantia 23 , enuncia


algumas doutrinas que poderiam ter oferecido mais de um motivo para
algumas das argumentações teológico-morais reencontráveis no Idiota
de sapientia do Cusano. 24 Pode ser, revelativo a tal propósito que no
curso do décimo quarto século, e de grande parte do décimo quinto,
tenha sido atribuída uma reelaborarão do mesmo diálogo cusano De
sapientia a Petrarca, que ele tenha sido depois publicado em todas as
edições do século quinze das Opera omnia de Petrarca 25 ; e, por outra

23 F. Petrarca, De sui ipsius et multorum ignorantia, edição comentada bilíngüe,


traduzida por E. Fenzi, Milão, Mursia, 1999 (O texto latino reproduzido, com
algumas correções, é aquele da edição das Obras latinas de F. Petrarca, traduzido por
A. Bufano, cit.).
24 O Cusano, como Petrarca, afirma E Vansteenberghe (Le cardinal Nicolas de Cues,
cit., p. 450), teria sido propenso a “preferir à ciência à virtude e a fé”; donde a
definição do pensamento cusano como “humanismo cristão”, cuja fonte poderia ser
vista, se não diretamente em Petrarca, naquele “endereço místico-platônico” – em
contraste com aquilo que era a erudita teologia escolástica desse tempo – permeado
fortemente pelos valores cristãos de humildade e de piedade, que o jovem Cusano
fez seu na provável permanência em Deventer, junto aos “Irmãos da vida comum”.
Dessa comunidade, fundada da Gerhard von Groot (cujo espírito místico-religioso,
à base da devotio moderna, vem bem compendiado pela Imitatio Christi de Tomás de
Kempis/Thomas von Kempen), sairá também, pouco mais de cinqüenta anos
depois, Erasmo de Roterdã: cf. P. Rotta, Il cardinale Niccolò di Cusa. La vita e il
pensiero, Milão, Vita e pensiero, 1942, p. 4-6. A influência exercitada por este
endereço antiescolástico sobre o pensamento do Cusano durante a sua permanência
em Deventer – endereço em clara contraposição a um certo “fanatismo aristotélico”,
cujas fontes seriam possíveis rever em Pier Damiani, em São Bernardo, em São
Boaventura e em Mestre Eckhart –, segundo M. de Gandillac, é bem visível entre o
outro [= N. De Cusa] em “bem determinados elementos da sua teologia
cristocêntrica”, o mais importante dos quais é o conceito de idiota (Laie), “que é
mais sábio que o filósofo”; todavia, este tema assume no Cusano um sentido
filosófico, “que vai além da contraposição entre simples irmãos e os dígnatários
sobrecarregados de títulos e honras”: Nikolaus von Kues. Studien zu seiner Philosophie
und philosophischen Weltanschauung, Düsseldorf, Schwann, 1953, p. 51-2. Sobre
este endereço antiescolástico de algumas correntes do pensamento religioso medieval
tardio, que culminará na “crítica da parte do ‘humanista’ Petrarca aos falsos sábios
de Pádua” e no “mito revolucionário do idiota” (segundo o qual “por aquilo que
concerne o grau de santidade, também o maior teólogo resulta distante do anjo da
hierarquia inferior, tanto quanto uma senhora anciã e devota”), cf. ibidem, p. 52-4.
25 Cf. E. Vansteenberghe, Le cardinal Nicolas de Cues, cit., p. 449. De Gandillac, a
propósito desta ocorrência “editorial”, observa: “Filelfo, sensível sobretudo àquilo
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 287

que no De sapientia remete aos elementos tradicionais, retirou dali alguns trechos e
os uniu depois a alguns fragmentos do De remediis, a fim de constituir com todos
estes pedaços um tratado pseudo-petrarquesco”: Genèses de la modernité, cit., p. 447.
Este tratado pseudo-petrarquesco, intitulado De vera sapientia, foi editado junto ao
Dicteriarum vel Apophythegmatum de Plutarco (traduzido em latim por Filelfo), pela
primeira vez em Utrecht em 1473 (Traiecti ad Rhenum per Nicolaum Katelaer et
Geradum de Leempt), antes mesmo que saíssem [em 1488] as obras publicadas do
Cusano; a primeira edição na Opera Omnia [de Petrarca] foi publicada em 1554
(Basilae excudebat Henricus Petri), traduzida por Johannes Herold. G. Santinello,
recusando-se a ver em Francesco Filelfo o autor do tratado pseudo-petrarquesco
proposto por K. Borinsky [“Eine unerkannte Fälschung in Petrarcas Werke”.
Zeitschrift f. romanische Philologie, XXXVI (1912), 5, p. 586-597], fala de um
desconhecido humanista de século quatorze que, pelas manipulações e interpolações
do De sapientia cusano com partes do De remediis utriusque fortunae, “reencontrou
dois diálogos intitulados De vera sapientia, por ele editados como obra de Petrarca
antes ainda que saisse a primeira edição, em 1488, da obra do Cusano. Este
[trabalho do] Pseudo Petrarca passou em todas as edições do século quinze das
Opera omnia de Petraca como seu trabalho autêntico e teve a honrra de várias
traduções, em boêmio [= tcheco], em alemão e em italiano, citadas freqüentemente
como obra de Petrarca”: Introduzione a Niccolò Cusano, cit., p. 87. O falseio foi
descoberto próximo do fim do século dezoito por E. Übinger: cf. “Die angeblichen
Dialoge Petrarcas ‘Über die wahre Wahrheit’”. Vierteljahrschrift für Kultur und
Literatur der Renaissance (1897), t. II, p. 57-70. Resta, porém, o fato que o Cusano,
continua Santinello, “conhecia muitas obras latinas de Petrarca e os códices nos
quais tinha lido algumas anotações de seu próprio punho. Ele estava interessado, de
modo particular, pela concepção ascética do De otio religiosorum de Petrarca e por
motivos do De suis ipsius et multorum ignorantia que ele podia apresentar como
motivos próximos à sua douta ignorância”: op. cit., p. 87. As obras de Petrarca
encontradas ainda hoje nos códigos do Cusano conservadas no St. Nikolaus
Hospital de Berkastel-Kues são o De vita solitaria (Cod. Cus. 53), o De remediis
(Cod. Cus. 198 e 199), e Rerum memorandarum, o De secreto, o De otio, o Sine
nomine e o De sui ipsius et multorum ignorantia (Cod. Cus. 200). Para a história da
obra pseudo-petrarquesca ver R. Klibansky, De dialogis De vera sapientia Francisco
Petracae addictis (Appendix II), in Nicolai de Cusa Opera omnia, vol. V, Idiota,
traduzido por L. Baur, Hamburgo, Meiner, 1983, p. LXV-LXXII. Para as relações
entre o Cusano e Filelfo – em quem, todavia, Klibansky recusa-se a ver o hipotético
falsário do tratado pseudo-petrarquesco -, relações indiretas tornadas possíveis
através da mediação de Giovanni Andrea de Bussi (que difunde a obra do Cusano
na Itália), veja-se sobretudo a p. LXVII; é muito provável, assim escreve Klibansky,
que o autor do tratado - dadas as discrepâncias estilísticas entre Petrarca e o escrito
do desconhecido autor - seja um dos seguidores da devotio moderna, como Tomás de
Kempis: “Porque de Petrarca, na França setentrional e na Holanda, grande era a
288 Gianluca Cuozzo

parte, que o Cusano mesmo possuísse algumas obras latinas de Petrarca


glosadas de próprio punho (De remediis, Secretum, De sui ispius et
multorum ignorantia) 26 . Petrarca, em particular, liga estreitamente o
conhecimento de si e a consciência dos limites iniludíveis pelos quais é
condicionado o saber humano, a chamada litterata ignorantia 27 . Esta
última, por sua vez, se sobressai sobre o fundo da idéia de Deus 28 , cuja
Sabedoria eterna supera infinitamente aquela do homem, mercator
inops literarum 29 . Por isso, todos os homens que são reentrados em si
mesmos da dispersão no exterior, por concentração sobre si mesmos,
[aqueles] nos quais somente se pode encontrar Deus, “sabem qual
ínfima parte do todo seja o inteiro saber humano, se o colocamos em
confronto com aquilo que os homens ignoram e com aquilo que Deus
sabe”. 30
Em Petrarca, porém, mediante uma significativa retomada em
chave cristã do ‘ideal socrático de sabedoria’, segundo o qual o ápice da
ciência humana consiste no “saber de não-saber” (sei que nada sei), o
filosofema tradicional, articulando-se no binômio conceitual
“conhecimento de si/conhecimento de Deus”, se enriquece do
“finitístico” motivo da consciência do limite intrínseco ao humano
“poder-conhecer”. Segundo este momento “crítico-negativo” (no qual,
segundo Cassirer, 31 emerge “o conceito polêmico do não-saber”, sobre
o plano gnosiológico “útil para formar alguns conceitos-limites do

autoridade não tanto como poeta lírico, mas ainda mais como ‘filósofo moral’; é,
porém, fácil entender por quais razões o falsário do livro De vera sapientia o tivesse
atribuído propriamente a Petrarca”: ibidem, p. LXX.
26 Como afirma G. Santinello, “os dois fatos citados, ou seja, a falsificação de uma
obra do Cusano deixada passar sob o nome de Petrarca, e as notas e sinais marginais
do Cusano às obras petrarquescas, constituem uma pequena documentação para
uma história mais vasta da influência de Petrarca sobre o pensamento e a
espiritualidade européia, sobretudo no domínio cultural da Renânia e de Flandres”:
Studi sull’umanesimo europeo. Cusano e Petrarca. Lefevre, Erasmo, Colet e Moro,
Pádua, Antenore, 1969, p. 9.
27 F. Petrarca, De sui ipsius et multorum ignorantia, cit., p. 198.
28 Ibidem, p. 203.
29 Ibidem, p. 236.
30 Ibidem, p. 301.
31 E. Cassirer, Il problema della conoscenza nella filosofia e nella scienza
dall’Umanesimo alla scuola cartesiana, cit., p. 47.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 289

saber”), 32 conformemente ao nexo antigo entre autoconhecimento e


miséria humana, conhecer-se, acima de tudo, “significa descobrir a
miséria do homem” 33 .
“Isto somente sabemos, não que não sabíamos nada, como disse
Sócrates pouco confiante no seu intelecto, mas certamente que se trata
de coisa inefável e incompreensível, inacessível ao nosso intelecto” 34 .

32 G. Federici Vescovini, Il pensiero di Nicola Cusano, cit., p. 16.


33 P. Courcelle, Connais toi-même. De Socrate a Saint Bernard, Paris, Institut
d’Études Augustiniennes, 1975, vol. II, p. 38.
34 F. Petrarca, De otio religiosorum. É significativo que este passo, presente no Cod.
Cus. 200, tenha sido destacado pelo Cusano: cf. G. Santinello, Appendice II (Notas e
sinais marginais do Cusano nos Codd. Cus. 199 e 200) in Studi sull’umanesimo
europeo, cit., p. 18. Santinello, a tal propósito, releva entre o Cusano e Petrarca a
seguinte divergência: “A ignorância do homem de Petrarca é somente um aspecto
parcial da geral pobreza humana sobre a qual age a graça divina. A douta ignorância
do homem Cusano é, ao contrário, uma força positiva que suscita uma pesquisa
inesgotável; somos conhecedores da nossa ignorância não simplesmente porque a
constatamos em nós, mas porque, através da pesquisa conjetural, a provichiamo em
nós, até conduzi-la ao momento da contradição e do jogo, somente no qual se
ascende à luz da visão”: ibidem, p. 23. Este juízo, certamente verdadeiro, tende,
todavia, a supervalorizar na docta ignorantia um seu aspecto imprescindível: o seu
caráter sacro e santissimo de dom revelado, e por isto pode-se falar no Cusano de
uma verdadeira e própria douta ignorância sobretudo lá onde “termina a persuasão e
começa a fé” (DI III, 152; 225), no ponto de mudança, isto é, naquilo que permite
a passagem da pesquisa conjetural (na qual se explica o poder natural da faculdade
do conhecer), mediante a abertura à fé, à visão mística (a divina ciência, que integra
sobrenaturalmente o posse contractum mentis). O nexo Cusano douta ignorância-
graça divina, sobre o qual se procurou antes chamar a atenção, tem mais de um
ponto em comum com “a tendência exortatória e moralizante” de Petrarca, na qual
“o acento cai mais sobre o significado negativo e moral da ignorância que sobre seu
aspecto teórico e positivo, para a qual essa se torna visão intelectual” (G. Santinello,
op. cit., p. 25) – conservando-se, porém, a legitimidade do querer definir depois,
como por outro lado se faz no curso da presente pesquisa, a posição do Cusano
como “mística e especulativa” a um mesmo tempo: juízo que nasce da consciência
do sólido sistema gnoseológico no qual se inscreve e se origina a teologia mística e a
doutrina da douta ignorância do Cusano. Sobre estes aspectos insistirei ainda no
desenvolvimento do trabalho, guiando-me para um “momento crítico” intrínseco à
mística cusana. Mesmo sobre este momento crítico-cognoscitivo (ou transcendental)
insistiu K. Flash, sublinhando como a teologia mística cusana (como coincidência
de teologia positiva e negativa) resulta fundada sobre aquelas “condições de
possibilidades filosóficas” que de fato a tornam possíveis, mostrando assim a própria
290 Gianluca Cuozzo

Em tal sentido, em Petrarca e no Cusano o oráculo délfico


(Gnothi s’auton), de um modo que se pode ver antecipado, em uma
certa medida, somente em Porfírio 35 , Santo Agostinho 36 e em São

“origem conceitual e filosófica” e, em particular, a própria dependência em relação


ao modelo de pensamento neoplatônico (Plotino e Proclo): cf. Die Metaphysik des
Einen bei Nikolaus von Kues, cit., p. 197-204.
35 “Sob todos os aspectos [...] a ignorância de si mesmo é coisa perversa, seja no caso
que, ignorando a grandeza da dignidade interior, se revela o divino, seja no caso que,
ignorando a mesquinhez que por natureza nos é acrescentada do exterior, se nos
orgulhamos disso [...]. Cada um, porém, por ignorância de si, é condenado a exaltar
aquilo que é nele, além da natureza que o criou, mais do que essa havia querido [...].
Logo, o ‘conhece a ti mesmo’ penetra em todo conceito da capacidade que está
presente em nós, exortando a conhecer a medida de todas as coisas”: PorfÍrio, I
frammenti sul conosci te stesso, in Vangelo di un pagano, traduzido por A. R. Sodano,
ed. bilíngüe grego-italiano, Milão, Rusconi, 1993, p. 190-2.
36 Sob a provisão da definição do homem como Dei imago, AgostinHo enriquece a
autoconsciência humana deste novo momento finitístico, que, como sustenta E.
Gilson, resultará característico para toda a filosofia cristã futura, essencialmente
suspensa entra orgulho e presunção, por um lado, e timidez e desconfiança por
outro: “A grandeza do homem é de ter sido criado à imagem de Deus. Para a sua
liberdade comanda a natureza e a usa segundo as suas necessidades; com a
inteligência a conhece e por conseqüência a domina; mas ao mesmo tempo o
homem sabe que o homem não deve a si mesmo a própria grandeza, e é isto um
primeiro aspecto da sua miséria. Se ignora a própria dignidade, ignorará a si mesmo;
se toma consciência sem dar-se conta que a deve a um maior que ele, afundará na
vanglória”: Lo spirito della filosofia medioevale, cit., p. 274-5. Trata-se, por este
segundo aspecto, de se pôr em relevo o fundo de opacidade, nunca convertível em
plena evidência, que resulta interior ao nosso eu mais profundo: se, de fato, o
homem é criado à imagem e semelhança de Deus, resulta assim por aquela parte
superior (apex mentis), na qual está a marca do divino (por sua natureza infinita e
inexaurível), a não-perfeita auto-transparência: e o quem, de fato, poderia colher a
fundo, embora enquanto presente na nossa alma, qual é a verdadeira essência do
Criador? Na memória, nas vastas plagas do espírito a que me dirijo para procurar
Deus, há um fundo obscuro – quase a assinatura que o criador colocou na criatura,
como diz Descartes – que me foge, que não pode ser extraído na clareza da luz do
autoconhecimento. Este descarte (scarto), esta não perfeita adequação de si a si
mesmo na autoconsciência, que traz a presunção do homem aos seus exatos limites,
assim é expressa por Agostino: “Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, no
pensamento; está ali a imagem de Deus. Por isto o pensamento mesmo não pode ser
entendido, nem mesmo por si mesmo, enquanto é Dei imago”: “Grande é esta
virtude da memória, ó meu Deus, grande mesmo, recipiente de amplitude ilimitada:
e quem poderia tocar-lhe o fundo? É uma força do meu espírito, faz parte da minha
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 291

Bernardo 37 , relativo a um pecado original que tem a ver com a


presunção e a arrogância da “razão separada e separante”, sobre a
seguinte torção “finitística”: “Conhece acima de tudo a finitude que te
é própria, finitude que é co-natural ao ser homem” 38 , limite (o cusano

natureza, mas nem mesmo eu me arrisco a conter tudo aquilo que sou. Ou que o
ânimo é demasiado restrito para conter si mesmo? E que será aquilo que de si não
vos é apenso (accolto)? [...] A estas considerações, uma grande maravilha surge em
mim: sou invadido pelo estupor”: Sermo I De symbolo, c. 2, in PL, vol. XL, col. 628.
Em tal sentido, conhecer a si mesmo significa ao mesmo tempo ter consciência
daquilo que eu - enquanto isso que carrega a marca da transcendência - não posso
saber de mim mesmo: “Confessarei, portanto, aquilo que sei de mim: confessarei
também aquilo que não sei: porque aquilo que sei de mim o sei através da tua luz,
aquilo que de mim não conheço devo ignorá-lo até que as minhas trevas, na visão do
teu rosto, se tornarão ‘como a luz do meio dia’ (Is. LVIII, 10)”: Idem, Confessiones,
X, c. 5 (Homo sese totum non novit) in PL, vol. XXXII, col. 782; trad. it. de C. Vitali,
Milão, Bur, 1985, p. 265.
37 S. Bernardo, segunndo o qual “Humilitas est virtus, qua homo verissima sui
cognitione sibi ipse vilescit”: De gradibus humilitatis et superbiae, cap. II (Quo fructu
ascendatur gradus humilitatis); PL, vol. CLXXXII, col. 943.
38 W. Beierwaltes, Autocoscienza ed esperienza dell’Unità. Plotino, Enneade V, 3,
traduzido por G. Reale, trad. it. de A. Trotta, Milão, Vita e Pensiero, 1992, p. 44.
No escrito pseudo-petrarquesco De vera sapientia, afirma Santinnello, pelo fim do
primeiro diálogo (no qual se alternam passos tirados por Petrarca com passos tirados
do Cusano) o autor desconhecido acrescenta algumas reflexões suas (ou talvez
extrapoladas de uma fonte ainda desconhecida) relativas ao conceito de douta
ignorância, nas quais - acrescento com toda a cautela que o caso requer - transparece
esta conotação finitística do tema da sui cognitio: “´É preciso fazer-se ignorante para
tornar-se sapiente. O verdadeiro sapiente é aquele ao qual as coisas ‘sapiunt prout
sunt’, coisas mortais não eternas; ele deve aprender a gostar somente de Deus. O
homem deve se reconhecer como ‘animal rationale aut mortale’; racional sim, mas
mortal”: in Studi sull’umanesimo europeo, cit., p. 12. Esta conotação moral típica das
obras latinas de Petrarca, que Santinello ademais julga estar em contraste com a
relevância filosófico-teológica do De sapientia cusano, poderia ser reveladora de uma
tendência implícita na obra do próprio Cusano. Que seja possível um confronto
nesta direção (alargando os termos do confronto, estendendo por um lado as análises
ao De ignorantia petrarquesco, e por outro com o analisar a obra do Cusano no seu
complexo) constitui o fundo do que se trata internamente no presente artigo.
Acolheremos, portanto, algumas sugestões de G. Saitta, Nicolò Cusano e
l’Umanesimo italiano (com outros ensaios sobre o Renascimento italiano), Bologna,
Zanichelli, 1957, p. 131-144: o De idiota, afirma Saitta, seria de sabor
esquisitamente pertrarquesco; “a mesma palavra Idiota é transportada desde
292 Gianluca Cuozzo

terminus) cujo conhecimento o homem, todavia, prevê na projeção de


si, criatura essencialmente em falta e pecadora no speculum veritatis, no
qual somente pode ver a si mesmo assim como realmente é, ou como
“uma imagem divina desfigurada” 39
Este chamado alterna-se entre autoconsciência (sui cognitio),
humilitas e “exata estima da própria insuficiência” (proprie
imperfectionis aestimatio), tem-se a percepção, desse modo, da própria
ignorantia et fragilitas constitutivax1, se tem presente que esta textura
de relações se inscreve sempre e somente no horizonte da luz interior da

Petrarca, mais especialmente o conceito de incipiência ou de ignorância [...]. A


verdadeira doutrina está, portanto, no reconhecer-se idiota, mas o reconhecimento
como idiota é sinal de humildade. Esta humildade, que é no fundo o conhecimento
dos próprios limites ou da própria finititude, é o Leitmotiv que ressoa preciso e
insistente na obra petrarquesca, mas o Cusano, indubitavelmente, teve o mérito de
inseri-la na visão filosófica que lhe foi própria”: ibidem, p. 123. Saitta, em geral,
documentou a relação Cusano-Petrarca sobre a base de uma comum matriz
platônica de algumas das suas mais significativas doutrinas filosóficas: “Nos
inclinamos a reter que a confusão entre o De vera sapientia e o De idiota teve razões
bem diversas daquelas puramente literárias. E não somente o agostinismo, mas
também o platonismo, convergem na comunhão do pensamento petrarquesco com
aquele do Cusano”: ibidem, p. 131. A tal propósito é de se notar que lá onde
Petrarca, no De ignorantia, declara a própria predileção por Platão, por tudo não
entendido por Aristóteles (op. cit., p. 278), o Cusano anota assim sobre o seu
próprio manuscrito: “Nota comparationem Platonis et Aristotelis”: in N. Santinello,
Studi sull’umanesimo europeo, cit., p. 39.
39 Cf. E. Gilson, La teologia mistica di San Bernardo, traduzido por C. Stercal, trad.
it. de S. Mascheroni, Milão, Jaca Book, 1995, p. 78-9. Em tal sentido, pode-se
pensar em uma atenuação daquelas diferenças, remarcadas por Gilson, entre
“Socratismo cristão” e “Socratismo puro”; segundo o qual enquanto “os gregos
dizem: conhece a ti mesmo para saberes que não és um Deus, mas um mortal; os
cristãos dizem: conhece a ti mesmo para saberes que não és um simples mortal, mas
a imagem de um Deus”: ibidem, nota 27, p. 78. Esta identificação, ademais, é
também reencontrada em Plutarco: “As sentenças ‘Tu és’ e ‘Conhece a ti mesmo’,
parecem estar, por algumas vezes, em oposição recíproca, e, ao contrário, por outras
vezes parecem concordar entre si, na medida em que uma é pronunciada com temor
e reverência nos confrontos com o Deus, e proclama que ele é sempre, enquanto a
segunda é um remeter o ser mortal à sua natureza e à sua fragilidade”: De E apud
Delphos, in Corpus Plutarchi moralium, vol. 27, edição crítica bilíngüe grego-italiano,
introdução, texto crítico, tradução e comentário por C. Moreschini, Nápoles,
D’Auria, 1997, p. 118.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 293

idéia de Deus (Dei cognitio) – e, de fato, Petrarca declara no Secretum,


ao elevar-se da alma pura e simples ad previdentiae divinitatis archana é
necessariamente ligada a proprie mortalitatis cogitatio 40 41 -, isso
constitui o fundo no qual é possível colocar, no âmbito de uma história
da idéia centrada naquilo que Gilson chamou o “socratismo cristão”, 42
o conceito cusano de docta ignorantia, que também poderia ter,

40 Como afirma H. G. Senger, para Petrarca, a partir da conscientia ignorantiae,


“adquire força um processo natural de reflexão que é o vir a ter consciência da
ignorância. Este saber é o pressuposto do juízo tanto sobre o próprio não saber
quanto sobre aquele de outros. O não saber, como estado de consciência, devém
assim um saber positivo sobre si mesmo e sobre o genus humanum. Em tal modo,
porém, a ignorância se transforma em uma forma de saber positivo: ambos são
complementares; aqui esses vêm a coincidir”: in M. Thurner (ed.), Nichtiwissen als
Wissensform. Ignoranzkompensationen von Petrarca bis Erasmus: Nicolaus Cusanus
zwischen Deutschland und Italien. Beiträge eines deutsch-italienischen Symposions in
der Villa Vigoni vom 28.3 – 1.4.2001 (Veröffentlichungen des Grabmann-Instituts,
48), Berlim, Akademie Verlag, 2002, p. 633-658; pág ?
41 Idem, Secretum, cit., II, 98, p. 170.
42 E. Gilson, Lo spirito della filosofia medioevale, trad. it. de P. Sartori Treves, Bréscia,
Morcelliana, 19642, p. 254: “Permanece [...] um elemento comum ao socratismo de
Sócrates e aquele de que trataram os Padres da Igreja ou os filósofos do Medievo: seu
antifisicismo. Nem uns nem outros reprovam o estudo da natureza como tal, mas
todos concordam em admitir que o conhecimento de si mesmo é muito mais
importante para o homem do que o conhecimento do mundo externo”; para todos
aqueles que refletiram aderindo a esta linha de pensamento “socrática”, do
estoicismo até Montaigne e Pascal, Gilson afirma que “o seu antifisicismo não
prepara a via para um psicologismo, [ele] é, antes, o reverso de um moralismo. Ora,
nestes dois aspectos é que os cristãos eram seduzidos: que serve ao homem
conquistar o universo, se perde a sua alma? Mas não podiam seduzi-lo senão por sua
vez fazendo-o aceitar sujeitar-se a uma profunda transformação. Quando Sócrates
aconselha alguém a procurar conhecer-se a si mesmo, este preceito para eles significa
imediatamente que devem conhecer a natureza a eles conferida por Deus e o posto
que Ele lhes assinalou na ordem universal, para ordenarem-se por sua vez conforme
Deus”: ibidem, p. 273. Esta hierarquia de valores – o conhecimento do mundo
subordinada à penetração consciente de si da parte do pensamento criado – surge
como verdadeiro e próprio paradigma de pensamento, de modo mais transparente
que no Cusano, nas obras latinas de Petrarca (em particular no De ignorantia, no
Secretum e no Contra medicos).
294 Gianluca Cuozzo

portanto, o sentido do “conhecer-se assim como eu sou conhecido por


Deus”. 43
A noção de douta ignorância, por sua vez, é estritamente conexa
no Cusano no papel central assumido pela figura do Idiota na obra
homônima a esse dedicado (O idiota): o homem leigo e “simples de
espírito”, ou aquele que, perfeitamente consciente dos próprios limites,
se confessa sem reserva idiota e ignorante (cum me ignorantem fatear
idiotam) (Id. De men. c.I, 89; 108). A sua competência, todavia,
consistindo em um mero saber técnico adquirido com a simples
experiência (cognitio experimentalis), revela-se enfim, superior à ciência
terrena possuída pelo pedante filósofo aristotélico, pelo grande doutor e
pelo mestre de Paris, nutridos somente pela erudição do saber livresco e
que, como afirma o místico alemão Johannes Tauler, ignoram o livro
da vida que, com efeito, “é desconhecido por todos os mestres ricos de
erudição e por todos os sapientes” 44 O idiota, afirma o Cusano, está

43 “Afim que isso possa ser dito dele, mais tarde, na glória, é necessário que antes
possa ser dito na sua miséria; e isso se pode dizer do homem que se humilha, e dele
somente. Julgando-se miserável como Deus o julga miserável, conhece a enormidade
do próprio crime e sabe que merece ser punido”: E. Gilson, La teologia mistica di
San Bernardo, cit., p. 81.
44 J. Tauler, Die Predigten, traduzido por F. Vetter, Dublim-Zurique, Weidmann,
1968, n. 78 (Domus mea domus oracionis vocabitur), p. 421; in Opere, trad. it. di B.
de Blasio, Edições Paulinas, 1977, p. 542. Na atmosfera dos Gottesfreunde,
comunidade religiosa do século XIV-XV, aparecida entre Estrasburgo e Basiléia e
inspirada por Tauler – místico seguidor de Eckhart que não deixou de próprio
punho nenhum escrito –, é encontrado um texto anônimo chamado Liber magistri
(ou Lebens-Beschreibung), no qual se narra o seguinte episódio: “Um grande
pregador, homem muito douto [...], encontra o ‘amigo de Deus’ (Gottesfreund) dos
Países Baixos, um tipo de eremita que lhe mostra a inutilidade do seu ensinamento
livresco, submetendo-o a toda uma série de provas a fim de provocar-lhe uma
‘conversão’, a qual, todavia, resulta ainda incompleta; motivo pelo qual, à sua morte,
o pregador deverá padecer ainda seis dias de sofrimento assustador no Purgatório.
Hoje se sabe que este curioso texto é oriundo, se não das suas próprias mãos [= de
Tauler], pelo menos do círculo mais próximo ao banqueiro Merswin, de quem
Tauler foi por algum tempo confessor. O Liber magistri contém toda uma série de
histórias edificantes na qual o profano (o idiota) faz a pregação ao seu cuidado”: in
M. De Gandillac, Genèses de la modernité, cit., p. 367. Para o Liber magistri veja
Joannis Tauler, Opera Omnia, Colônia, ex Officina Ioannis Quentel, 1668, p. IX-
XL. Também o idiota, entendido como “leigo devoto” (frommer Laie: cf. M. De
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 295

junto à ciência da sua ignorância não em virtude dos livros que fazem o
saber dos oradores e dos eruditos, mas sim daquele de Deus (ex Dei
libris), que ele “escreveu com o seu dedo” (suo digito scripsit) e se
encontra em toda a parte.

Gandillac, Nikolaus von Cues. Studien zu seiner Philosophie und philosophischen


Weltanschauung, cit., p. 48-9), cuja figura assume no Cusano valores ético-religiosos
– e, com efeito, falou-se de uma “Teologia do idiota” (Laientheologie) do Cusano,
que teria como apropriado precedente histórico J. Ruysbroeck, os Gottesfreunde e,
portanto, a Devotio moderna (cf. R. Steiger, Introduzione a Idiota de sapientia/Der
Laie über den Geist, cit., p. 21) –, atinge a presença de Deus numa cognitio Dei
experimentalis: trata-se de uma experiência espiritual comunicada diretamente por
Deus, diante de cuja imediatez o filósofo e o teólogo podem apenas pasmar,
reconhecendo, enfim, em que está em grau de elevar-se assim a Deus um “homem
quase divino” (o inspirado da graça), “quia instructorem non habuit nisi spiritum
sanctum”: cf. Dionigi Certosino, Tractatus 2 De donis spiritus sancti, art. XIII, obra
incluída nas traduções latinas organizada por Laurentius Surius das obras de
Ruysbroeck: cf. Iohannis Rusbrochius, Opera omnia ex Brabantiae Germanico
idiomate reddita Latine, Colônia, ex Officina Haeredum Ioannis Quentel, 1552 (As
palavras de Dionísio Certosino referem-se ao mesmo Ruysbroeck), p. 7-8. Ao
círculo dos Gottesfreunde, sustenta Gandillac, pertenceria também, além do já
recordado banqueiro de Estrasburgo Merswin, que em 1347 fundou em
Grünenwörth uma comunidade inteiramente místico-espiritual, Santa Catarina de
Siena, Heinrich von Nördlingen, Christine e Margarete Ebner. Todos estes,
influenciados pela doutrina eckhartiana segundo a qual, já in hoc saeculo e além de
toda ciência erudita, seria alcançável o ápice da ϑεωσις, “com pretensão de uma
união perfeita [com Deus] no amor estático acompanhavam, harmonizando-o com
essa, o motivo de uma mais íntima forma de vida espiritual”: Nikolaus von Cues.
Studien zu seiner Philosophie und philosophischen Weltanschauung, cit., p. 49-50. No
Cusano, todavia, a crítica do saber livresco e da erudição, segundo Gandillac, está
também enquadrada no interior das afirmações do novo saber matemático (que terá
como último êxito o Discours de la méthode de Descartes) reivindicado pelo artesão
que, no Idiota propriamente, mostra as suas competências técnico-científícas através
da sapiente produção do coclear speculare: ele se apresenta, de fato, “como um
reformador do pensamento racional, como um teórico do método, o qual não se
contenta em atender, de modo passivo, uma inspiração celeste; ele, diferentemente,
exercita mais a sua crítica nos confrontos do princípio de autoridade, mesmo
enquanto conhece uma outra fonte do conhecer” (o saber conjetural na base da
ciência moderna, cujo precedente é dado nas suppositiones de Ockham) para
contrapor ao velho modelo aristotélico: ibidem, p. 58.
296 Gianluca Cuozzo

O erudito, bem diversamente, como segundo o Cusano sucede


a Wenck, pensando-se mais rico em saber que os outros, ao invés de
humilhar-se e regozijar-se daquela “santa ignorância”, consciente de si,
que somente conduz retamente a Deus, ensoberbece; ele, inflatus
vanitate verbalis scientiae, tem até o fervor de prometer uma
elucidationem aeternae Sapientiae, enquanto quem sabe que é pequeno,
pobre e ignorante é consciente que “aquele tesouro resta escondido aos
olhos de todos os sapientes, e não tem outro motivo de glória que saber
de ser pobre” (ApDI 4; 209): Doctior igitur est sciens se scire non posse
(Pos. 50; 276).
RESENHAS

Strawson, P. F. Ceticismo e Naturalismo: algumas variedades.


Tradução de Jaimir Conte. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2008, 114 páginas

Itamar Luís Gelain *

Ceticismo e Naturalismo de Peter F. Strawson é dedicado, sobretudo, ao


naturalismo, conforme indica o próprio título. A referida obra, segundo
o autor, atende a dois propósitos diferentes, embora, relacionados. O
primeiro, no campo da epistemologia, mostra a ineficácia dos
argumentos transcendentais, usados primeiramente na obra Indivíduos,
para fazer frente ao ceticismo no que diz respeito a determinadas
crenças ou pressuposições que integram o esquema conceitual. Esse
reconhecimento é motivado pelas críticas que Barry Stroud teceu no
artigo Argumentos Transcendentais de 1968, à estratégia transcendental
strawsoniana. Strawson reconheceu como legítimas as críticas e propôs
o naturalismo como a nova arma para neutralizar o ceticismo. Esse
naturalismo está inspirado em Hume e no segundo Wittgenstein.
Enquanto o primeiro propõe o naturalismo como refúgio do ceticismo,
o segundo pensa que os questionamentos céticos podem ser enfrentados
num “campo teórico”. Seguindo, portanto, a argumentação de
Wittgenstein, Strawson afirma que as crenças que o ceticismo quer por
à prova não carecem de justificação racional, pois, estas possuem um
estatuto diferenciado das proposições empíricas que são suscetíveis de
verificação. Ou melhor, algumas crenças – como a do mundo externo –
integram a estrutura do esquema conceitual, ou seja, definem “o campo
de nossa competência racional e crítica”. Desse modo, se o ceticismo
coloca em dúvida tais crenças, ele estaria negando “a condição de
possibilidade do pensamento em geral”. Nessa perspectiva, o

*
Mestre em Filosofia pela UFSM. E-mail: itamarluis@gmail.com. Resenha recebida
em 30.10.2008 e aprovada em 12.12.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 297-299


298 Resenha

naturalismo strawsoniano como resposta aos questionamentos céticos


consiste em aceitar certas tendências naturais a crer em determinadas
coisas, certos hábitos de pensamento que não podem ser colocados em
dúvida, pois se estes são questionados, torna-se impossível não somente
de viver, como assinalou Hume, mas impossível de se iniciar qualquer
pensamento, como sugere Strawson .
Ainda que Strawson tenha aceitado o criticismo de Stroud em
relação aos argumentos transcendentais é importante sublinhar que
estes argumentos não são abandonados definitivamente. Valendo-se do
lema de Forster – apenas conectar – Strawson atribui aos argumentos
transcendentais a função de conectores conceituais. Em outras palavras,
esses argumentos não são mais pensados como anticéticos, pois, os
mesmos têm por papel, agora, mostrar tão somente as conexões
conceituais no interior do esquema conceitual.
O segundo propósito da obra, posto no campo da moralidade,
da filosofia da mente e da teoria do significado, visa mostrar as
limitações de posições reducionistas no que concerne ao estudo da
realidade. Esse tipo de posição é assumida pelo naturalismo estrito ou
reducionista, o qual acaba deixando fora da explicação teórica campos
inteligíveis da linguagem, como é o caso da moral, das qualidades
secundárias e das entidades intencionais, que por sua vez são relegadas
ao âmbito do “meramente subjetivo”. Contra o naturalismo estrito ou
reducionista, propõe-se um naturalismo “católico” ou “liberal” no
intuito de frear o imperialismo intelectual tão característico de
disciplinas particulares e, sobretudo, da ciência. O naturalismo liberal
strawsoniano busca integrar ao tratamento teórico “certos tipos de
entidades” que “nos referimos na linguagem cotidiana” e que são
descartadas pelo naturalismo reducionista.
Para resolver aparentes conflitos entre perspectivas distintas
(naturalismo liberal e reducionista) que se pode adotar no que diz
respeito à moralidade e às entidades intencionais, Strawson propõe o
“movimento relativizador”. O “movimento relativizador” busca atenuar
o conflito entre a visão do cientificismo e a do “senso comum”
(linguagem ordinária ou cotidiana)”. Dito de outra maneira, de modo
mais preciso, tal movimento tenta mostrar que de fato não existe
conflito algum entre ambas as posições, pois, não há “um ponto de
Itamar Luís Gelain 299

vista metafísico absoluto a partir do qual podemos julgar entre os dois


ponto de vistas”. Essa posição strawsoniana está sedimentada no seu
projeto de metafísica descritiva, o qual visa descrever a “estrutura de
nosso pensamento sobre o mundo”, ou seja, elucidar os conceitos mais
gerais que constituem o esquema conceitual e, que são pressupostos
consciente ou inconscientemente pelas disciplinas particulares e pela
“ciência” em suas investigações.
Por fim, queremos apontar aqui duas observações acerca da
tradução realizada pelo professor Jaimir Conte. Antes disso, no que
concerne a tradução em geral, deve-se dizer que a mesma cumpriu o
requisito primordial, ou seja, mais que traduzir palavras traduz-se idéias
e conceitos. E isso foi seguido rigorosamente pelo professor Conte, e
por isso temos uma excelente tradução em língua portuguesa da obra
Ceticismo e Naturalismo.
As observações acerca da tradução são as seguintes. A primeira
se refere à tradução da expressão “only connect”. O professor Conte
acabou traduzindo a mesma pela expressão “apenas relacionar”. Esta
tradução não é a mais apropriada. Como alternativa proponho a
expressão “apenas conectar”. Pois Strawson, quando usa esta expressão,
está se referindo ao novo papel dos argumentos transcendentais em
virtude das críticas de Stroud. E ele diz que os argumentos
transcendentais têm a função de mostrar as conexões conceituais, ou
melhor, os argumentos transcendentais são conectores conceituais no
interior do esquema conceitual. A segunda observação diz respeito à
tradução da palavra “parallel” por analogia e paralelo. Strawson,
quando usa a palavra “parallel”, não está pensando em falar por meio
duma analogia. Na verdade, ele está querendo falar a partir de um
paralelo ou um paralelismo entre dois casos ou pontos de vista. Nesse
caso, o pararelismo é posto com o “movimento relativizador” que busca
“reconciliar” duas posições teóricas aparentemente conflitantes.
Portanto, traduzir “parallel” por analogia pode ser um pouco perigoso.
Considerando isso, proponho que a tradução mais apropriada para
“parallel” seja paralelo ou paralelismo em vez de analogia.
McGinn, Colin. Shakespeare’s Philosophy: Discovering the
meaning Behind the Plays [A filosofia de Shakespeare:
descobrindo o significado atrás das peças]. New York: Harper,
2008. 230 páginas

Sandra S. F. Erickson *

Graduado em Oxford University, Colin MaGinn (1950-) é professor


titular de Filosofia em University of Miami, tendo lecionado
previamente em University College of London, Oxford e Rutgers
University. Ele publicou vários livros sobre Ética, Filosofia da
Linguagem e Estética e também um romance (The Space Trap,
London, Duckworth, 1992).
O título me chamou a atenção porque, ainda que Shakespeare
não tenha sido um filósofo, suas peças merecem um tratamento
filosófico a rigor, ou seja, leituras sob perspectivas e metodologias
filosóficas. Li, na livraria, o prefácio onde o autor observa que “um
estudo filosófico de Shakespeare valeria a pena” e que, estando em
sabático (espécie de estágio pós-doutoral nos Estados Unidos) ele fez
tema seu projeto de pesquisa (p. vii). Interessei-me por duas razões:
sempre pensei que um estudo rigoroso das peças de Shakespeare sob o
escrutínio de conceitos e metodologias filosóficas seria uma adição bem
vinda na vasta fortuna crítica do assunto e, segundo, um comentário do
autor, logo no primeiro capítulo, de que “Estudos críticos tendem a
focar nas questões de personagens, trama e dicção, bem como nos
contextos sociais e políticos das peças, mas as idéias filosóficas ao redor
delas recebem apenas menção” (p.1) atraiu minha atenção. O autor
continua explicando que “isso, sem dúvida, acontece porque aqueles
profissionalmente envolvidos com os estudos shakespeareanos não são,
geralmente, filosófos por treino [educação formal] ou inclinação [gosto,

*
Professora adjunta do Departamento de Letras da UFRN. E-mail:
ericksons@ufrnet.br . Resenha recebida em 20.10.2008, aprovada em 12.12.2008.

Natal, v.15, n.24, jul./dez. 2008, p. 301-314


302 Sandra S. F. Erickson

interesse]; eles são [alás!] pesquisadores literários” e, leitores, chequem a


conclusão radical: “Filosofia, talvez, os faz [aos críticos literários]
nervosos” (p.1). Sendo eu membro da tribo desses profissionais do
campo literário, entre curiosa e nervosa resolvi resenhar um livro que
prometia tanto. Eis o resultado de minha leitura. As traduções das
citações são todas minhas.
Além do Prefácio, o livro tem doze capítulos, uma sessão de
Notas, a Bibliografia e um Índice. O primeiro capítulo, “General
Themes” [Temas Gerais], trata, conforme o próprio título, dos temas
gerais do livro e introduz uma discussão sobre os temas gerais da obra
de William Shakespeare, alguns dos quais são tratados mais
detalhadamente nos capítulos nove a onze, quais sejam: “Shakespeare
and Gender” [Shakespeare e gênero), “Shakespeare and Psychology”
[Shakespeare e a Psicologia], “Shakespeare and Ethics” [Shakespeare e a
Ética] e “Shakespeare and Tragedy” [Shakespeare e a tragédia]. O
capítulo dois trata de Um sonho de uma noite de verão, o três de Hamlet,
o quatro de Otelo, o cinco de Mcbeth, o seis de Rei Lear, o sete de A
tempestade; e o doze da questão – que nunca foi uma questão – do
gênio de Shakespare.
No Prefácio o autor comenta que começou sua pesquisa
assistindo às versões fílmicas das peças e estudando carefully
[cuidadosamente] os comentários críticos. No final ele garante que
“está abordando Shakespeare de uma perspectiva especificamente
filosófica” (p. viii). Esse comentário é intrigante porque segue-se a uma
citação de William Hazlitt (1778-1830), filósofo inglês que ficou
conhecido como crítico literário especialmente por seus comentários
sobre Shakespeare publicados como Lectures on the Literature of the Age
of Elizabeth and Characters of Shakespear's Plays (1817), ainda hoje
reconhecido como relevante pelos críticos shakespereanos. Mas,
nenhum crítico shakespeareano que se preze começaria uma pesquisa
assistindo versões fílmicas das peças, porque elas raramente ,
reproduzem o texto integral, e, quando o fazem sempre introduzem
mudanças que, ainda que pequenas, afetam o argumento da peça
(como o Otello de Oliver Parker, 1995; o Hamlet de Kenneth Branagh
e o Romeu e Julieta de Baz Luhrmann, ambos em 1996), atrapalhando,
Resenha 303

assim, a análise dos textos, especialmente quando se pretende uma


abordagem filosófica dos mesmos.
É estranho constatar que o autor discute a pertinência de
estudos filosóficos sobre Shakespeare como se nenhum outro filósofo
nos quatrocentos anos de escritura shakespereana tivesse se interessado
pelo assunto, dando a entender ao leitor desavisado – que certamente
não está entre os estudiosos e pesquisadores dos estudos shakespereanos
na área de literatura – que seu estudo é pioneiro.
A bibliografia não é seletiva. Conforme o autor faz questão de
notar é uma “lista que contém tanto os livros que são citados no texto
como os que eu consultei enquanto preparava esse livro” (p. 211).
Assim, é igualmente estranho que tal bibliografia seja tão restrita (trinta
itens) em se tratando de um assunto que possui uma fortuna crítica
quilométrica. Tal insuficiência e falta de representatividade
bibliográfica demonstra a familiaridade apenas superficial do autor com
o tema que também caracteriza suas análises e a omissão, inclusive nessa
parte do livro, dos powerhouses de Sophia que já trataram em um nível
ou outro de profundidade do bardo inglês como G.W.F. Hegel
(mencionado apenas de passagem nas páginas 47 e 96, mas sem constar
na bibliografia). Estranho ainda é a ausência dos tratamentos
contemporâneos do mesmo assunto: Shakespeare e a filosofia, a
filosofia e Shakespeare sobre o qual existe um considerável número de
importantes publicações como a do filósofo profissional (quer dizer por
formação e exercício profissional) Walter Arnold Kaufmann,
Shakespeare to Existentialism: An Original Study; Essays on Shakespeare
and Goethe, Hegel and Kierkegaard, Nietzsche, Rilke, and Freud,
Jaspers, Heidegger, and Toynbee (Princeton University Press, 1980),
cuja obra Tragedy and Philosophy (1968), alas, consta na parca
bibliografia do autor e de Philosophy and Shakespearean Drama, de
Tzachi Zamir (Princeton University Press, 2006). Professor tanto de
filosofia quanto de Literatura Inglesa na Universidade de Tel Aviv,
Zamir escreveu vários ensaios sobre o assunto, especialmente ceticismo,
niilismo e ética em Hamlet, Otelo e Mcbeth, peças que interessam
particularmente a MacGinn.
Estranho também é o fato de que, McGinn atribui a falta de
rigor filosófico nas exegeses de textos shakespereanos ao fato de que tal
304 Sandra S. F. Erickson

exercício é executado por profissionais sem treino e sem apreciação


filosófica, porém, na vasta fortuna crítica do bardo, uma percentagem
grande de comentadores são filósofos estrito senso (René Descartes,
Voltaire, Montaigne, Kant, Schopenhauer, Giocomo Leopardi, Hegel,
Nietzsche, Kierkegaard, Ortega y Gasset, Hume, J. Stuart Mill,
Wilhelm & Friedrich Schlegel) ou pensadores (intelectuais com
formação filosófica, mas em exercício em outras áreas) respeitados na
tradição ocidental (Freud, Thomas Carlyle, Goethe, Victor Hugo, Leo
Tolstoy, Gustave Flaubert, Shilling, Coleridge, Stendhal, Tennyson,
Mathew Arnold, Waldo Emerson, Henry David Thoreau, Oscar
Wilde). Entre comentaristas ou escritores mais contemporâneos cite-se,
no primeiro grupo, Jean Paul Sartre, Ludwig Wittgenstein, T.S. Eliot,
George Santayana, Benedetto Croce, George Steiner e no segundo
Gustave Flaubert, Albert Camus, Dostoevsky, W.H. Auden, Thomas
Mann, Jorge Luis Borges, Jaques Derrida, Terry Eagleaton e Stanley
Cavell.
As teses mais importantes e os melhores momentos
argumentativos do livro são construídos a partir das associações que ele
faz entre Shakespeare e Montaigne. Todavia, o próprio autor ressalta,
logo na página 6, que “já foi estabelecido por estudiosos que
Shakespeare estudou e absorveu os escritos de Montaigne”; mas essa
importante informação aparece no texto como um parêntesis e não
como uma referência bibliográfica já constituída e, portanto, devendo
ser citada e revisada antes de se ressaltar as diferenças e acréscimos. Na
bibliografia nada consta, além de uma coleção dos ensaios de
Montaigne.
O leitor não pode avaliar a importância ou a utilidade dos
argumentos do autor desde que ele não menciona quem e onde
estabeleceu, na historiografia shakespeareana, a influência do pensador
francês já assinalada desde 1897 em Montaigne and Shakespeare and
Other Essays on Cognate Questions, de John M. Robertson e
Shakespeare’s Debt to Montaigne [A dívida de Shakespeare para com
Montaigne], de George Taylor (Cambridge: Harvard UP, 1925). Em
termos de artigos em jornais acadêmicos há vários precedentes para
McGinn. Cite-se pela “precedência temporal”, o artigo de Elizabeth
Hooker em “The Relation of Shakespeare to Montaigne” [A relação de
Resenha 305

Shakespeare com Montaigne] (PMLA 17, 1902, p. 313-366), o de


Alice Harmon “How Great was Shakespeare’s Debt to Montaigne?”
[Qual é o tamanho da dívida de Shakespeare para com Montaigne?]
(PMLA 57; 1942, p. 988-1008) e Margareth Hodgen “Montaigne and
Shakespeare Again” [Montaigne e Shakespare novamente], Huntington
Library Quarterly, 16, 1952, p.23-42), onde, no próprio “novamente”
do título existe a indicação da recorrência do assunto há mais de um
século atrás. Há muitos outros, mas esses pioneiros são suficientes para
se concluir que as teses de McGinn não são novidades. A omissão da
fortuna crítica se faz especialmente relevante quando o autor elogia
Shakespeare por sua “honestidade brutal” (p. 6).
Muitos comentários são difíceis de qualificar e de avaliar, como,
por exemplo, quando o autor diz que “acredito que Shakespeare estava
muito interessado na questão do ser e sua persistência através dos
tempos, particularmente em Hamlet” (p. 9) e a tese de que “loucura é
uma preocupação conspícua de Shakespare” (p. 9). Os dois pontos são
pacíficos na literatura shakespeareana. A parte mais interessante da
discussão de McGinn é a que ele, emprestando idéias de Sartre em Ser e
nada, que ele cita longamente na página 47 mas não tem o cuidado de
incluir na bibliografia, e sua ponderação sobre o que é, em sua opinião,
o quebra-cabeça central da peça, a saber, a causa da demora de Hamlet
de agir. Mas, infelizmente, para o autor, os dois temas-problemas
também possuem uma longa lista de referências, não apresentando
novidade ou mesmo insight importante.
Fica ainda mais difícil levar o autor à sério quando ele afirma
como se estivesse descobrindo a roda, que Shakespeare estava muito
interessado na “questão da natureza do ser [self] e sua persistência [do
ser] no tempo” (p. 9).
No capítulo 2, dedicado a análise de Um sonho de uma noite de
verão, ele contenda que “sonho é precisamente um tipo de exposição do
sono – uma estória contada pela mente adormecida” (p. 26) quando a
mente opera num modo imaginativo (p. 29). Aqui, a análise do autor
seria enriquecida e melhor articulada se conceitos neoplatônicos fossem
acionados. Em vez, ele prefere a rota mais curta do conceito de
imaginative seeing [visão imaginativa] de Wittgenstein que ele não
consegue aplicar (ou mesmo articular) de forma satisfatória. A discussão
306 Sandra S. F. Erickson

retorna no capítulo sobre Hamlet, onde ele comenta as reflexões de


Shakespeare sobre a natureza da associação entre sono, sonho e loucura,
nesse caso, fuga da realidade exterior à mente. Esses temas, sabem os
estudiosos de Will, são tão recorrentes na fortuna crítica do bardo que
se tornaram lugares-comuns e, por isso, a bandeira de qualquer um
pode ser hasteada nesse território.
Sua discussão da etimologia da palavra mysterian (p. 57) que
aparece em uma das falas de Hamlet reverte a uma doutrina,
“mysterianismo,” para a qual o autor oferece apenas uma nota onde
indica, ao leitor, outra obra sua. Do grego Gr mystērion, mystery
(mistério) significa um rito secreto, divino ou sagrado mystēs. É uma
palavra diretamente ligada ao orfismo e as religiões de mistério antigas.
A citação aparece no Ato III, cena 2 e é a seguinte:

[Hamlet] Why, look you now, how unworthy a thing you make of
me! You would play upon me; you would seem to know
my stops; you would pluck out the heart of my
mystery; you would sound me from my lowest note to
the top of my compass: and there is much music,
excellent voice, in this little organ; yet cannot
you make it speak. 'Sblood, do you think I am
easier to be played on than a pipe? Call me what
instrument you will, though you can fret me, yet you
cannot play upon me. (Hamlet, Act 3, Scene 2).

Cuja tradução literal é:

Bem se vê como vocês fazem de mim uma coisa sem mérito! Vocês fariam
troça de mim; vocês parecem conhecer minhas paradas; vocês arrancariam
fora o coração do meu mistério; vocês me soariam das minhas notas mais
baixas ao topo do meu compasso: e existe tanta música, excelente voz, nesse
pequeno órgão; todavia vocês não podem fazê-lo falar. Pelo sangue de
Jesus, vocês acham que eu sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Me
chame por qualquer instrumento que quiserem, ainda que vocês não
possam tocar meus trastes, 1 ainda vocês não podem tocar/jogar sobre mim.

1
Do inglês medieval, freten, fret (trastes/trasto) significa devorar, mas se refere àquela
parte no braço do violão (e outros instrumentos de cordas afins) que separa as casas;
significa ainda pressionar (as cordas de um instrumento contra os trastes) e,
Resenha 307

A passagem é repleta de referências neoplatônicas, as quais


negritamos no texto. Além do conceito de “mistério” que, na citação,
tem o significado de algo escondido o qual Hamlet merece, mas é
considerado indigno (sem mérito) por seus interlocutores, veja-se as
referências à música, ao compasso, o jogo de palavras (mais evidente no
inglês) entre fala/conhecimento aberto e fechado, e, no final a
conclusão irônica de Hamlet de que, mesmo estando falando
abertamente sobre seu estado de iniciado, ele não é entendido por seus
interlocutores (não iniciados).
Assim, MacGinn perde uma oportunidade ímpar de, juntando
os ingredientes, propor uma leitura da peça em termos neoplatônicos,
existencialista ou fenomenologista: ser (ou não ser), estar ou não estar
no mundo, tempo, sono, sonho, mistério, a vida fenomenal como
estado de doença da qual escapamos (nos curamos) quando morremos
(deixamos de ser e de estar no mundo e no tempo), melancolia.
Em várias partes do livro, McGinn se refere a relação entre
sono, sonho e loucura (p. 10) que tanto interessou ao bardo, chegando
a citar uma passagem longa das Meditações de Descartes sobre o tema
(p. 18). Se referindo à Sonho de uma noite de verão, o autor argumenta
que “o sonho é precisamente um tipo de exposição do sono – uma
estória contada pela mente adormecida” (p. 26). Todavia, ele não
percebe o tratamento platônico – melhor ainda – neoplatônico que
Shakespare dá ao tema em várias peças onde morrer e estar dormindo
são estados de ser que podem ser cambiáveis, e ainda as diversas
especulações sobre a pedagogia do sono e do sonho que aparecem em
Hamlet, Romeu e Julieta, Rei Lear, Antônio e Cleópatra, muitas vezes
exatamente nesse sentido em que a mente (adormecida) conta a si
mesma uma estória ou em que o sono aparece como uma terapia. Por
isso, é relevante que o fantasma do pai de Hamlet lhes aparece
enquanto ele está desperto e não em sonho ou em estado de sono.
No capítulo sobre Otelo, encontramos, finalmente um insight à
altura de um filósofo: “ciúme é uma emoção, não um estado de
conhecimento, mas tem relações interessantes com estados cognitivos”

coloquialmente irritação/agitação da mente. Todos esses sentidos são contemplados


no emprego da palavra, que é um pun (jogo de palavras) na citação acima.
308 Sandra S. F. Erickson

porque “carrega um poderoso desejo de se conhecer junto com


evidências distorcidas pelos sentidos,” que inspira o autor a caracterizar
as relações dos personagens com a linguagem e com suas interioridades
como “estado de ansiedade epistemológica” (p. 82). Todavia ele não
desenvolve as teses, que são lançadas junto com sua preocupação de
lecionar o leitor sobre ceticismo e revisitar os ensaios de Montaigne
“Sobre a crueldade”, de Hazlitt sobre Otelo e comentários sobre a
natureza do bem e do mal de Agostinho (não constante na bibliografia)
que servem de paradigmas para sua leitura da peça. Porém a frase
“estado de ansiedade epistemológica” é “quite” (bacaninha).
No capítulo sobre McBeth, McGinn, como todo estudante de
literatura, compara a peça com Otelo. Mas, aqui (p. 96) ele cita Hegel
(apud o não filósofo em exercício ou formação, Harold Bloom), mas
sem muito efeito, desde que nenhuma consideração é tecida e a citação
é simplesmente pendurada no texto. Ainda o fato de que um filósofo
cite outro apud um crítico literário sem formação filosófica faz a gente
balançar a cabeça em desânimo e em estado de ansiedade
epistemológica.
McGinn apresenta – novamente sem desenvolver – a tese de
que “Shakespeare insiste na centralidade da imaginação na mente
humana” (p. 99). Aqui, ele poderia explorar a possibilidade de
Shakespeare ter concebido, antes do Romantismo, a imaginação (assim
como o ciúme) como um modo de conhecer. Ele cita (provavelmente
por Shakespearean Tragedy que explora as relações do conceito
hegeliano de tragédia e Shakespeare) o não filósofo e crítico favorito de
Harold Bloom, A.C. Bradley (1851–1935) como “o comentador de
Shakespare mais perspicaz” [sic] (p. 101) e disserta sobre os poderes
deceptivos da imaginação e a autencidade como um modo de vivência.
Esses temas poderiam ter sido analisados sob a ótica da fenomenologia
de Hursserl e Heidegger – ou o autor poderia remeter o leitor à
Kaufman...
Tendo como ponto de partida o símile de que o universo é
como um relógio desenhado por um ser racional (apropriada do
determinismo matemático de Newton), as formulações de Hume sobre
causalidade, e algumas considerações de Ser e nada retomadas da
discussão de Hamlet, a análise supostamente filosófica de Rei Lear é,
Resenha 309

igualmente pobre e mal formulada, apesar de pincelar (sem nomear e


sem desenvolver) as teses Heideggerianas de que a morte é um tipo de
nada que é vital, enquanto que o medo é um tipo de nada que é
“morto” que são, realmente, pertinentes à peça e que, se desenvolvidas,
resultariam em uma contribuição substancial para sua fortuna crítica.
Porém o autor chegou nessas teses via o ensaio “Uma apologia para
Raymond Sebond”, de seu “pai poético” (para usarmos uma
terminologia de Harold Bloom) Montaigne. Acrescente-se ainda que o
autor faz uma observação preciosa sobre a recorrência de números na
peça, comentando que “Shakespeare está trabalhando com a
matemática básica do universo, notando nossa submissão à suas leis.” A
conclusão do autor: “apesar de que muitos anos se passariam até que
Newton submetesse o universo à uma série de equações matemáticas”
(p. 117). Aqui, mais uma vez, o autor perdeu o bonde da história, pois
esse interesse de Shakespeare em retratar a arquitetura do universo em
termos de simbologias e analogias matemáticas vem do neoplatonismo
e não de um senso profético, como McGinn parece indicar.
Outro valioso tiro n’água é a observação do tema do
desabrigamento, do “sem lar” (que em inglês, homelessness, soa mais
substancial) e sua co-relação com o nada e o nadir que dariam
supimpas rodadas de Heidegger regadas de neoplatonismo, mas, ao
invés ficaram perdidas nos lugares comuns de que “a natureza humana
é parte da natureza” (p. 124), a peça é naturalística e “Shakespeare
organizou uma representação de oposição formal entre bem e mal
como se cada força tivesse seus próprios batalhões” (p. 126). Frase
deveras bonita, alas, fosse novidade! Alas fosse uma tirada filosófica que
ninguém mais tivesse tirado da peça!
A análise de A tempestade começa com a bela citação das
Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, constante na bibliografia, de
que filosofia é “‘a batalha contra o enfeitiçamento de nossa inteligência
através dos meios da linguagem’” (p. 135) que o autor complementa
com dizeres do tipo “o poder da linguagem é misterioso” (p. 136) e,
assim, “não é inapropriado para Shakespeare associar a fala com
bruxaria” (136-137), que, registre-se, só acontece em MacBeth e em
nenhuma outra peça. Segue-se uma brevíssima discussão do que é
significado que acaba numa referência à teoria de Platão de que o
310 Sandra S. F. Erickson

significado reside fora da coisa/ser (significante) propriamente, no


domínio dos números e das formas geométricas. Para referendar sua
proposição, o autor remete o leitor à uma pequena nota onde se lê que
“em adição a Frege, Karl Popper adotou tal visão” e recomenda “ver
Objective Knowledge (Oxford: Oxford University Press, 1972).”
Complementando que “não nos surpreende que oponentes dessas idéias
acusaram os platonistas de traficar em mágica,” ele, então, assegura que
“não precisamos entrar nesse debate aqui” (p. 137). Seguem-se
comentários confusos sobre os poderes e limites da linguagem,
concluindo o capítulo com assertivas que já não têm mais a ver com
significado ou significante ou nada do gênero, tipo: “o Grande Sono
cerca a vida dos dois lados” e perguntas sobre se é melhor ou pior não
existir para a eternidade depois [da vida] do que não ter existido antes e
tal e tal e tal... (p. 152). Assim, o leitor verdadeiramente interessado nas
promessas do subtítulo do livro de McGinn, a saber, descobrir o
significando filosófico atrás das peças, fica, além de a ver navios na beira
do cais, ludibriado.
As discussões sobre gênero, ética e psicologia em Shakespeare
possuem uma fortuna crítica monstruosa, especialmente, na
contemporaneidade. Sobre a questão de gênero sua discussão já começa
empobrecida porque ele não trata de O mercador de Veneza, sendo o
locus classicus na literatura do assunto Shakspeare's Heroines:
Characteristics of Women, Moral, Poetical and Historical, de Anna
Jameson (London: George Bell and Sons, 1891), a coletânea de
Deborah E. Barker e Ivo Kamps, Shakespeare and Gender: A History
(London: Verso, 1995) e Shakespeare and the Nature of Women, de
Juliet Dusinberre (London: Macmillan, 1996) preferíveis ao tratamento
que McGinn dá ao tema.
A questão da Ética em Shakespare é um campo minado, mas
com uma literatura fascinante, uns defendendo a eticidade do bardo,
outros a dos personagens, outros como Bloom, a perspectiva amoral de
peças, de seus personagens e do próprio autor. McGinn concorda com
a visão mais ortodoxa promovida por Bloom, de que Shakespare não se
interessa em atingir nenhum fim político ou moral, mas trata a
moralidade como parte da natureza (humana), muito embora ele
contende que os “personagens shakespeareanos são acima de tudo, seres
Resenha 311

éticos, definidos por suas qualidades morais, suas virtudes e vícios” (p.
178), ficando sua posição comprometida. Nada demais ele acrescenta e,
como nas demais considerações, muito de menos, pois falta sempre a
substância “sofial” que supostamente é o cerne do livro.
“Shakespare e a tragédia” (capítulo onze) é deveras pobre. O
autor discorre – melhor, corre – sobre o conceito de drama e tragédia e
sobre a natureza do trágico com a insuportável leveza da
superficialidade em assunto que interessa, cada vez mais, tanto a tantos.
É difícil de entender como é que num livro que pretende revelar a
relação de Shakespeare com a filosofia e fazê-lo filosoficamente, A
poética, de Aristóteles nem tenha sido mencionada, especialmente
porque, enquanto Dr. Samuel Johnson, no famoso Preface to
Shakespeare (1765) desculpa o bardo pela não observância das
prescrições da Poética, T.S. Eliot não “amansa,” considerando Hamlet
uma peça ruim, do ponto de vista formal exatamente pela falta de rigor
aristótelico do ponto de vista estrutural. Aliás nenhum conceito das
duas categorias (tragédia e trágico) é oferecido ao leitor, apenas
comentários aqui e ali sobre algumas categorias trágicas mal
alinhavados e breves, como “a arte de Shakespeare é imitativa ou
mimética” (p. 202, ênfase do autor). As seis páginas que ele dedicou ao
assunto poderiam ter sido omitidas porque, francamente, não fazem a
menor diferença.
Existem algumas outras frases de efeito, ainda no prefácio,
como “Shakespeare mantinha uma visão do homem e do universo que
não tem uma denominação própria, mas que é aproximada a
denominações como ‘pessimismo’, ‘niilismo’, ‘ceticismo’” (p. 15).
Acontece que também aí, os bois já foram nomeados antes de McGinn
e discussão de peças, temas e imaginário shakespeareano dentro e a
partir dessas perspectivas filosóficas são comuns até nos textos escritos
para introduzir às peças para um público mais geral nas edições das
obras completas do autor como a editada por D. Bevington, (The
Complete Works of Shakespeare, 3rd ed. Glenview: Foresman, 1980).
Encontramos frases de uma ingenuidade pristina, como: “às vezes se
supõe que o desenlace trágico numa tragédia shakespereana é inevitável
– que, realmente, as coisas não poderiam ser de outro modo. Quando a
gente vê os personagens e as situações nas quais eles estão envolvidos,
312 Sandra S. F. Erickson

podemos antecipar com certeza que as coisas vão acabar mal” (p. 197).
É de se perguntar: o autor realmente compreende a definição de
tragédia? De trágico? A inserção do projeto de Shakespeare na tradição
dramatúrgica?
Poupemo-lo da falta que faz a Poética, no tratamento do autor
de drama (como gênero), oposto à espetáculo, como ele fez questão de
notar (p. 9) e do self como entidade teatral e interativa (p. 10) que não
vem de Shakespeare, tanto quanto do velho Ari. Mas, como desculpar a
omissão de Hegel, Nietzsche, Walter Benjamim, Gilles Deleuze, Karl
Jaspers? A distinção entre tragédia e trágico é um banquete de falas dos
mais sensacionais na filosofia contemporânea. Não se pode entender
como é que um estudo com a pretensão de revelar a filosofia atrás do
trágico nas peças de Shakespeare se furte de sequer revisar e interagir
com as teorias e a literatura do tema.
A pergunta é: tem McGinn alguma contribuição e oferece ele
um estudo realmente filosófico do assunto? Na página 15, ele reinventa
a roda dizendo que “Shakespeare possuiu uma visão do homem e do
universo que não tem um nome estabelecido, mas que se aproxima de
rótulos como ‘pessimismo’, ‘nihilismo’ceticismo’” (p.15). O
comentário do autor de que “Hamlet se descobre [revela] durante a
ação dramática” (p.48) e “sofre de fraqueza da vontade” (p.49) é
“emprestado” do, deveras nervoso, Harold Bloom.
Ah! A velha discussão do caráter indecidido de Hamlet! Não
aguento mais essa proposição (que Bloom também suporta), tão
corrente quanto bem aceita na fortuna crítica da peça, que apresenta o
protagonista – portador do agon – como um garoto mimado, trapalhão
e indeciso e um tipo de intelectual sem adrenalina, quando o cara, que
na verdade é um militar da tropa de elite do reino, mata em contextos
diferentes, incluindo duelo a rigor, nove pessoas; está sempre ativo nos
corredores dos podres e perigosos poderes do palácio, é exilado, e tenta,
investigar um regídio que o faz sucessor de um trono usurpado não
apenas por seu próprio tio, mas com a cumplicidade da própria rainha-
mãe! Em suma, um cara com uma agenda e uma herança terrível, numa
situação política de quase total isolamento, onde o mais sensato é
mandar a namorada querida que o atraiçou para o convento e dar uma
de doido e para quem o lugar mais seguro, é mesmo as vias mais
Resenha 313

públicas dos corredores e não as escondidas alcovas. Não, o doce


príncipe não sofre de ataraxia, mas de um senso agudo de realismo e
sua melancolia é bem mais fundada na análise fria e lógica de sua
situação, do que numa carga exagerada de bílis negra ou na falta de um
objeto específico de desejo.
Finalmente, o livro é um espetáculo triste de argumentos e
comentários pobres, mal formulados. Resultado de uma pesquisa mal
feita, foi, evidentemente apressadamente composto. Teria sido mais
interessante se o autor tivesse feito um levantamento da literatura do
assunto – Shakespeare e a filosofia – listando e distinguindo as
referências bibliográficas dos escritos dos filósofos e dos críticos com
formação filosófica que já escreveram sobre o assunto, porque tal lista é
enorme e para pesquisadores, como ele, que se interessam, seria deveras
útil começar, como todo projeto de pesquisa que se preze, por um
levantamento cabal e uma avaliação dos que já trilharam o mesmo
caminho. Desse modo, ainda que sem teses originais, o livro poderia
oferecer uma revisão criativa do assunto.
Como postula Harold Bloom, todo escritor, seja filósofo, poeta
ou apenas mero escriba da tradição escreve sob o signo do agon e sob a
batuta da inveja criativa daqueles que os precederam. Todavia, antes de
se proceder a remoção das pedras de qualquer caminho, é preciso,
primeiro, o exercício humilde de avistá-las, mapeá-las e, se possível,
como disse Braúlio Tavares em Sai da frente que lá vem o filósofo, atirá-
las na cara dos adversários. A pobreza do texto de McGinn é indicativa
de que ele sequer avistou o imenso território vastamente povoado de
seu objeto agônico.
O livro é um desses que poderiam não ter sido escrito e, não
fosse o fenômeno de falta de leitura dos clássicos que afeta mais ainda a
leitura dos textos dos comentaristas dos clássicos, provavelmente não
seria sequer recomendado para publicação. Não acredite, leitor, na
apreciação anônima na contra-capa do livro apresentando-o como
“inovativo, provocador do pensamento” e como “uma experiência
excitante.” Se você deseja esse tipo de aventura literária, leia Shakespeare
the Thinker, de A. D. Nuttall (1937-2007).
Orientando de Iris Murdoch, Nutall foi apenas um professor de
literatura inglesa. Como Murdoch, ele não tem talvez o cacife de um
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filósofo, mas, sua leitura bem qualificada, possui um lugar destacado


entre os exigentes comentadores shakespeareanos contemporâneos,
quer sejam eles formalmente filósofos ou “nervosos” que não fazem da
filosofia sua profissão, mas que sabem reconhecer a contribuição que a
filosofia pode dar ao estudo da literatura e à prática da crítica literária.

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