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ISSN 0104-8694
SUMÁRIO
ARTIGOS
Dificuldades da concepção de John Searle sobre a redução da consciência: o 05
problema das capacidades causais
Tárik de Athayde Prata
TRADUÇÕES
God is dreaming you”: Narrative as Imitatio Dei in Miguel de Unamuno 249
Costica Bradatan
RESENHAS
Ceticismo e Naturalismo: algumas variedades, de P. F. Strawson 297
Itamar Luís Gelain
*
Professor da Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: tarikbilden@yahoo.de.
Artigo recebido em 16.07.2008, aprovado em 30.10.2008.
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da bolsa de Desenvolvimento Científico
Regional (CNPq/ FUNCAP) no departamento de Filosofia da Universidade Federal
do Ceará – UFC. Gostaria de agradecer ao Professor Andreas Kemmerling
(Universidade de Heidelberg – Alemanha) pela discussão detalhada de versões
anteriores do presente trabalho. Gostaria de agradecer também às críticas e sugestões
dos membros do Laboratório de Estudos de Filosofia Analítica da UFC, em especial
aos Professores Guido Imaguire, Cícero Barroso e Valdetônio Alencar, bem como
aos alunos André Pontes e Maxwell Morais.
1 Introdução
Quando Searle menciona pela primeira vez a oposição entre dualismo e
materialismo no seu livro A Redescoberta da mente, ele recorre
exatamente ao conceito de redução. No campo da filosofia da mente
das últimas décadas seria possível encontrar dois grupos: uma pequena
minoria que insiste na irredutibilidade dos fenômenos mentais e o
gigantesco grupo do mainstream, os materialistas, que concordam que
haveria um difícil problema mente- corpo caso o mental fosse, de fato,
irredutível ao físico (cf. Searle, 1992, p. 2). Mas o típico do
materialismo seria justamente reduzir os fenômenos mentais (com a sua
intentionalidade e consciência) 2 a fenômenos físicos. O reducionismo
emerge assim como uma característica central do materialismo, pois
todas as concepções materialistas tentariam reduzir os fenômenos
mentais (cf. Searle, 1998, p. 47). Searle tenta superar a oposição entre
dualismo e materialismo mantendo a verdade parcial de ambos (cf.
Searle, 2002b, p. 62-3 e 2004, p. 126). O ponto mais importante nessa
estratégia de Searle é, no meu modo de entender, sua concepção
própria de redução. Searle procura mostrar que as duas posições de um
certo modo estão corretas, ou seja, que os fenômenos mentais são de um
certo modo redutíveis e de outro modo irredutíveis. Para fundamentar
essa tese ele distingue entre diferentes conceitos de redução (cf. Searle,
1992, p. 113-4), sendo os mais importantes para sua teoria da
consciência os conceitos de redução causal e redução ontológica. Ele
afirma que a consciência é causalmente redutível e ontologicamente
irredutível. Mas, quando se considera atentamente suas reflexões sobre
o reducionismo, parece questionável que a posição de Searle seja
coerente, pois determinadas teses implicadas pela redutibilidade e pela
irredutibilidade defendidas por ele são incompatíveis. Em linhas gerais,
2
Intencionalidade e consciência estão entre as mais importantes características dos
fenômenos mentais segundo Searle (cf. Searle, 1984: 17). Mas enquanto ele designa
o problema da intencionalidade como “a mirror image of the problem of
consciousness” (Searle, 2004: 159) ele considera a consciência como a mais
importante característica mental: “there is no way to study the phenomena of the
mind without implicitly or explicitly studying consciousness. The basic reason for
this is that we really have no notion of the mental apart from our notion of
consciousness” (Searle, 1992: 18).
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 7
Think, for example, of the development of the germ theory of disease. (…)
Semmelweis in Vienna in the 1840s found that women obstetric patients in
hospitals died more often from puerperal fever than did those who stayed at
home. So he looked more closely and found that women examined by
medical students who had just come from the autopsy room without
washing their hands had an exceptionally high rate of puerperal fever. Here
was an empirical correlation. When he made these young doctors wash their
hands in chlorinated lime, the mortality rate went way down. He did not yet
have the germ theory of disease, but he was moving in that direction.
(Searle, 2002a, p. 49)
First, one finds the neurobiological events that are correlated with
consciousness (the NCC). Second, one tests to see that the correlation is a
genuine causal relation. And third, one tries to develop a theory, ideally in
the form of a set of laws, that would formalize the causal relationships.
(Searle, 2002a, p. 49; cf. Searle, 2004, p. 146)
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 11
causally speaking there is nothing there, except the neurobiology, which has
a higher level feature of consciousness. In a similar way there is nothing in
the car engine except molecules, which have such higher level features as the
solidity of the cylinder block, the shape of the piston, the firing of the spark
plug, etc. (Searle, 2002b, p. 60)
3
A consciência não é necessariamente uma propriedade do sistema cerebral como um
todo, mas sim uma propriedade de partes do sistema cerebral que possuem a
complexidade necessária: “sometimes a big chunk of the thalamocortical system is
conscious” (Searle, 2002b: 60-1, grifo meu). “Individual neurons are not conscious,
but portions of the brain system composed of neurons are conscious” (Searle, 2004:
114, grifo meu).
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 13
4
Eu penso que essa série de estados, eventos e processos é exatamento que Searle quer
designar com o termo “comportamento”: “We discovered that a surface feature of a
phenomenon was caused by the behavior of the elements of an underlying
14 Tárik de Athayde Prata
microstructure” (Searle, 1992: 118) “phenomena of the type A are causally reducible
to phenomena of the type B, if and only if the behavior of A’s is entirely causally
explained by the behavior of B’s” (Searle, 2004: 119).
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 15
the point of the reduction was to carve off the surface features and redefine
the original notion in terms of the causes that produce those surface features
(…) We then redefine heat and color in terms of the underlying causes of
both the subjective experiences and the other surface phenomena. And in
the redefinition we eliminate any reference to the subjective appearances and
other surface effects of the underlying causes. (Searle, 1992, p. 119)
Naively, there seem to be at least two sorts of facts. First and most
important, there is the fact that you are now having certain unpleasant
conscious sensations, and you are experiencing these sensations from your
subjective, first-person point of view. It is these sensations that are
constitutive of your present pain. But the pain is also caused by certain
underlying neurophysiological processes consisting in large part of patterns of
5
Searle diz na realidade que eles não podem ser reduzidos à fatos objetivos. Mas eu
considero mais claro falar de “identificação”, pois a redutibilidade ontológica se
baseia em uma relação de identidade, de modo que a irredutibilidade ontológica se
deve ao fato de que fatos subjetivos não são idênticos a fatos objetivos.
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 17
neuron firing in your thalamus and other regions of your brain. (Searle,
1992, p. 117, grifo meu) 6
6
Em outra passagem ele afirma: “first there is a set of ‘physical’ facts involving my
thalamus and other regions of the brain, and second there is a set of ‘mental’ facts
involving my subjective experience of pain” (Searle, 1992: 120).
18 Tárik de Athayde Prata
7
Sobre a sua refutação do dualismo conceitual cf. (Searle, 1992: 26) e (Searle, 2004:
116-8).
8
Temos aqui uma assimetria estranha, pois embora os estados de consciência
(exatamente como qualquer propriedade sistêmica objetiva do cérebro – p.ex. a carga
elétrica do cérebro como um todo) sejam causados por processos microscópicos
objetivos, eles seriam subjetivos. Por que a consciência se diferencia de modo tão
fundamental das propriedades sistêmicas objetivas embora ela tenha a mesma origem
das propriedades sistêmicas objetivas? Essa assimetria faz com que não pareça muito
razoável que a consciência (tal como Searle a concebe) seja um objeto de pesquisa
das neurociências.
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 19
9
Que tipo de capacidades causais possui o cérebro enquanto objeto comum? Essa
questão exige um esforço de imaginação. Com um cérebro morto nós poderíamos,
p. ex., empurrar uma pequena bola sobre uma superfície estável. Isto é, a
consistência do cérebro equanto objeto físico pode colocar a bola em movimento.
Essa propriedade pode causar um evento físico (o deslocamento da bola).
10
Pode-se acrescentar que a percepção tem esse efeito sobre o comportamento apenas
em conexão com outros fenômenos mentais – como a crença de que leões são
perigosos e o desejo de evitar o perigo. Mas isso não é um problema, pois as crenças
e desejos também seriam causadas por processos cerebrais.
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 21
11
Esse problema, que Searle atribui ao dualismo de propriedades, é resumido por ele
conforme se segue: “when I raise my arm, there is a story to be told at the level of
neuron firings, neurotransmitters and muscle contractions that is entirely suffcient
to account for the movement of my arm. So if we are to suppose that consciousness
also functions in the movement of my arm, then it looks like we have two distincts
causal stories, neither reducible to the other; and to put the matter very briefly, my
bodily movements have too many causes. We have causal overdetermination”
(Searle, 2002b: 59).
12
A recusa da supradeterminação por Searle fica clara na seguinte passagem: “Nobody
thinks that we are forced to postulate that solidity is epiphenomenal on the grounds
that it has no causal powers in addition to the causal powers of the molecular
structures, nor they think that if we recognize the causal powers of solidity we are
forced to postulate causal overdetermination (...) Why are we inclined to make this
mistake for consciousness when we would not think of making it for other causal
phenomena? ” (Searle, 2002b: 62, grifos meus).
22 Tárik de Athayde Prata
(C1) O comportamento humano tem dois tipos diferentes de causas, isto é, ele é
supradeterminado.
type B, if and only if (...) A’s have no causal powers in addition to the
causal powers of B’s.” (Searle, 2004, p. 119) Essa afirmação pode ser
interpretada como se os fenômenos A não possuíssem capacidades causais.
No caso de fenômenos objetivos tal interpretação não seria necessária,
pois esses fenômenos pertencem à mesma categoria ontológica que o
sistema subjacente. Sobre uma propriedade sistêmica objetiva, Searle
escreve: “solidity has no causal powers in addition to the causal powers
of the molecules.” (Searle, 2004, p. 119) Aqui não seria necessário
considerar a propriedade como causalmente ineficaz, pois tanto a solidez
quanto as moléculas, e o sistema como um todo, são objetivos, de modo
que a solidez é idêntica a uma propriedade das moléculas. A identidade
das capacidades causais corresponde à identidade das próprias coisas.
Mas quando um fenômeno é considerado ontologicamente diferente do
fenômeno que o reduz (neste caso reduz apenas causalmente), então
não há uma identidade entre esses fenômenos e a identidade dos
poderes causais permanece misteriosa. 13 Nesse caso é razoável
interpretar uma afirmação como a seguinte enquanto uma negação de
eficácia causal: “Consciousness is causally reducible to brain processes,
because (...) consciousness has no causal powers of its own in addition
to the causal powers of the underlying neurobiology” (Searle, 2002b, p.
60). O que eu estou tentando dizer, em suma, é que é possível defender
a interpretação de que a conclusão (C2) já se encontra, em uma versão
diferente, entre as teses centrais da filosofia da mente de Searle: a tese
(2) – que pertence à concepção da redutibilidade causal da consciência
– pode ser entendida como uma afirmação da ineficácia causal da
consciência 14 (embora ela também possa ser interpretada de outra
13
Por isso a comparação da consciência com propriedades sistêmicas objetivas parece
inválida. Em Why I Am Not a Property Dualist Searle afirma: “causally speaking
there is nothing there, except the neurobiology, which has a higher level feature of
consciousness. In a similar way there is nothing in the car engine except molecules,
which have such higher level features as the solidity of the cylinder block, the shape
of the piston, the firing of the spark plug, etc” (Searle, 2002b: 60). Porém, comparar
a consciência com a solidez do pistão não é de grande ajuda, diante da diferença
ontológica entre ambos.
14
Esse problema é apresentado por Crane da seguinte maneira: “Searle denies that
surface properties (including mental properties) are ‘emergent’ in the sense that they
have causal powers independently of the causal powers of their physical parts (p.
24 Tárik de Athayde Prata
112). Rather, he thinks that these properties can be ‘causally reduced’ to their
underlying physical properties (p. 114-15). But where does this leave the causal
powers of the mental? Suppose my current pain causes me to cry out. If as Searle
claims, the causal powers of the pain are ‘entirely explainable’ (p. 114) in terms of
the causal powers of my current neural state, then (given Searle’s denial of the
Identity Theory) there is a clear sense in which my pain is not the cause of my
crying. Searle does not seem to think that the pain and the neural state both cause
the crying, as in a case of overdetermination. And since the pain and the neural state
are not identical, yet the pain’s causal powers are entirely explainable in terms of the
neural state’s, it seems clear that on Searle’s view the neural state is the real cause.
The alternative is to say that the causal powers of my pain are not entirely
explainable in terms of the causal powers of my neural state. But it is essential to
Searle’s view that he denies this.” (Crane, 1993: 319-20)
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 25
“the causal powers of consciousness are exactly the same as those of the
neuronal substrate. This situation is exactly like the causal powers of solid
objects and the causal powers of their molecular constituents. We are not
26 Tárik de Athayde Prata
talking about two different entities but about the same system at different
levels.” (Searle, 2004, p. 127-8, grifo meu) 15
Se é assim, a tese (4) deve, de fato, ser rejeitada, mas então surge
uma possibilidade de se considerar a teoria de Searle coerente: mostrar
que a tese (4), tal como formulada acima, não corresponde ao que o
autor quer dizer; ou seja, mostrar que Searle não acha que a consciência
e os processos cerebrais são diferentes. A asserção (4) foi formulada com
o intuito de reproduzir a tese da irredutibilidade ontológica da
consciência aos processos cerebrais. Para se concluir que não há
contradição, seria preciso mostrar que a irredutibilidade ontológica, tal
como Searle a concebe, é compatível com a identidade da consciência
com os processos cerebrais. Seria possível considerar que Searle
desenvolveu uma estratégia para isso, ao distinguir entre níveis de
descrição dos fenômenos envolvidos numa redução (causal e/ou
ontológica). Ele parece recorrer ao fato de que existem características
que não podem ser atribuídas às partes componentes de um sistema,
mas apenas a ele próprio no nível macroscópico. Assim como a liquidez
e a solidez não podem ser encontradas no nível das moléculas isoladas,
a consciência e suas características subjetivas, ou seja, seu aspecto
qualitativo, não poderiam ser encontradas no nível microscópico dos
neurônios individuais. Em outras palavras, apesar de ser formado por
partes objetivas (neurônios e demais microestruturas cerebrais), o
cérebro realizaria no nível macroscópico uma propriedade
ontologicamente subjetiva: a consciência, o que implica que tal
propriedade é exatamente o conjunto de processos que ocorrem no nível
microscópico, apenas descritos de outra maneira, do mesmo modo que
15
Em um texto anterior, Searle apresenta a relação entre um estado de consciência e
um processo cerebral como uma identidade, na medida em que existe um mesmo
fenômeno descrito em diferentes níveis: “I now, let us suppose, have a conscious
feeling of pain. This is caused by patterns of neuron firings and is realized in the
system of neurons. Suppose the pain causes a desire to take an aspirin. The desire is
also caused by patterns of neuron firings and is realized in the system of neurons.
These relations are exactly parallel to the case of the ice and the water. I can truly
say both that my pain caused my desire and that sequences of neuron firings caused
other sequences. These are two different but consistent descriptions of the same
system given at different levels.” (Searle, 1995, p. 219)
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 27
Referências
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Harvard University Press.
_______ (1992) The Rediscovery of the Mind. Cambridge Mass.,
London: MIT Press.
Dificuldades da concepção de Searle sobre a redução da consciência 29
Abstract: The present article has two main goals: in first place, to analyse both
concepts of perception and memory in cinema on Maurice Merleau-Ponty's text, “Le
Cinéma et la Nouvelle Psychologie”, and, in second place, to analyse the same
concepts in Christopher Nolan's film, Memento. We will take as reference Merleau-
Ponty's phenomenology of perception in order to understand the philosophical
interest of this particular film.
Keywords: Memory, Merleau-Ponty, Philosophy of Film
1 Filosofia e cinema
Em 1945, Maurice Merleau-Ponty proferiu uma conferência, “Le
Cinéma et la nouvelle psychologie” 1 , sobre a arte cinematográfica e as
questões suscitadas pela nova psicologia Gestalt relativamente à
intervenção do olhar e da memória na percepção. Como é sabido, foi
*
Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa. E-mail: susanarainhoviegas@gmail.com. Artigo
recebido em 14.02.2008 e aprovado em 04.11.2008.
1
“Le Cinéma et la nouvelle psychologie” in Sens et non-sens, p. 85-106. De notar que,
por exemplo, para Gilles Deleuze, “é muito curioso que Sartre, em L'Imaginaire,
encare todos os tipos de imagens, excepto a imagem cinematográfica. Merleau-
Ponty interessava-se pelo cinema, mas para o confrontar com as condições gerais da
percepção e do comportamento. A situação de Bergson, em Matière et Mémoire, é
única”(Deleuze, 2003, p.73).
com a memória e, por isso, recorre aos factos. Ainda que a memória
possa alterar os factos do passado, o tamanho de um quarto, um
diálogo, etc., para Leonard, os factos gravados são suficientes. Esta é
uma das funções do espectador, agora partilhada com a personagem: os
factos devem bastar para recuperar a sucessão dos acontecimentos
havendo uma entrega voluntária aos dados da percepção.
Tendo em conta esta ideia, compreende-se melhor de que
modo a relação entre percepção e cinema, ou entre o espectador e o
filme, interessava a Maurice Merleau-Ponty. Merleau-Ponty pretendia
superar o dualismo Eu/Outro, percepção/mundo, dualismo herdado de
Descartes, e esta superação é realizada através do corpo, ou melhor,
através de uma noção muito particular de corpo que encontramos, por
exemplo, na criação da personagem de cinema e do espectador de
cinema. O corpo de que nos fala Merleau-Ponty não é o corpo da
anatomia ou da fisiologia, o corpo reduzido a músculos e articulações.
Na verdade, a fenomenologia como que acrescenta a este corpo um
elemento que o pode tornar irreconhecível: o gesto. Através da
anatomia, podemos descrever de um modo exaustivo como é que um
corpo consegue, por exemplo, dançar, mas não podemos descrever, de
modo algum, como nasce daí uma arte, uma expressão humana. O
estilo do gesto é inclassificável. Que relação existe entre o corpo, o gesto
e o mundo? Para Merleau-Ponty não há uma divisão entre o que olha e
o que é olhado, entre o que sente e o que é sentido (Merleau-Ponty,
1997, p. 21) e, o cinema apresenta-se como um exemplo concreto da
mudança que ocorre na percepção quando o olhar que vê se
compreende como visível: “o cinema está particularmente apto a
manifestar a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a
expressão de um no outro”(Merleau-Ponty, 1966, p. 105). “Há uma
experiência da coisa visível como preexistente à minha visão mas não é
fusão, coincidência: porque os meus olhos que vêm, as minhas mãos
que tocam, podem também ser vistos e tocadas, (...) o mundo e eu
somos um no outro e não há anterioridade do percipere ao percipi, há
simultaneidade” (Merleau-Ponty, 2006, p. 162). O olhar na percepção
cinematográfica coincide e coexiste com o próprio filme visto e, através
do olhar da personagem, o olhar de quem vê é reenviado a si mesmo
como visível.
36 Susana Isabel Rainho Viegas
2 A percepção do mundo
De um modo não explícito, não fenomenológico, pensamos que, no
campo de percepção, os objectos já existem e são independentes do
facto de serem ou não percepcionados. Podemos questionar, como
Leonard o faz em Memento, se, quando fechamos os olhos, o mundo
continua a existir de uma forma autónoma e independente da nossa
crença. Mas, de que modo podemos verificar que a coisa percepcionada
não coincide connosco? Por exemplo, a dúvida cartesiana e os critérios
cartesianos de evidência e clareza do que percepcionamos aqui e agora,
sugerem que esta concepção autónoma de realidade seja uma ilusão. Só
temos a certeza da existência dos objectos quando nos aparecem,
deixando mesmo de ter passado, pelo menos para nós. A clareza e a
evidência não nos podem reconfortar com a sensação de continuidade.
Na verdade, não nos orientamos segundo este ponto de vista cartesiano
do mundo, pelo contrário, mesmo que não os percepcionemos,
acreditamos que os objectos já existiam e continuam a existir para lá do
momento em que se cruzam com o nosso trajecto. O que temos de
compreender é o modo como, de um ponto de vista fenomenológico,
fazemos este preenchimento, esta constituição excessiva aos dados da
percepção aqui e agora não só do mundo mas também de um filme.
Olhar e memória na percepção cinematográfica 37
parte não podemos ter o todo, tendo a frente não podemos ter o lado
ou a parte de trás, tendo o exterior não podemos ter o interior, e, no
entanto, temos.
De um ponto de vista fenomenológico, estas análises remetem-
nos para dimensões temporais que não existem, o à-pouco e o a-seguir,
e não unicamente para o presente agora. Também o cinema, e neste
aspecto a arte cinematográfica estabelece-se como potencialmente
filosófica, tem a capacidade de fazer ser o que já foi temporalmente,
fazer ser novamente conteúdos espácio-temporais passados.
3 A percepção cinematográfica
O olhar e a memória intervêm de um modo decisivo no que respeita à
arte cinematográfica. Na verdade, como compreender uma arte que só
existe na projecção de si mesma, na saída dos seus dispositivos físicos?
Os fotogramas, em si, nada têm de cinematográfico. Porém, as imagens
projectadas escapam ao aprisionamento da procura do presente. O
olhar constrói isso que é visto, numa relação íntima entre as diferentes
dimensões temporais. Cria-se, no espectador, a impressão de realidade
da projecção cinematográfica. Como primeira tese enunciada sobre esta
questão, encontramos um texto escrito em 1916 pelo psicólogo e
pioneiro na filosofia do cinema, Hugo Münsterberg, The Film: A
Psychological Study (na primeira edição, Photoplay). Um dos aspectos
analisados pelo autor é a relação intrínseca entre a mente humana e a
câmara: os acontecimentos dramáticos são moldados pelos movimentos
internos da mente, ou seja, o espectador não vê a realidade objectiva
mas um produto da mente que reúne todas as imagens recebidas. O
cinema permite ver e rever, não só o distante espácio-temporalmente
(acontecimentos passados de coroações de reis) como o mais pequeno e
pormenorizado (o ninho de um pássaro ou o desabrochar de uma flor).
A câmara tem um alcance que o olho humano não tem. Ao vermos um
filme, o movimento parece ser um movimento verdadeiro mas, na
verdade, é criado pela mente do espectador. Há sugestão do
movimento. Por exemplo, relativamente à profundidade espacial nas
imagens, sabemos que é uma sugestão de profundidade, criada pela
criatividade mental. No caso do close-up cinematográfico, há uma
objectivação do acto mental de dar atenção a um acontecimento,
Olhar e memória na percepção cinematográfica 39
Referências
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Fim de Século, 2003.
DESCARTES, René. Meditações sobre a Filosofia Primeira.Trad.
44 Susana Isabel Rainho Viegas
Abstract: The study of mind nature occupies an outstanding place in the agenda of
the philosophy investigations, because its approach seems to provide some
explanations of the way the human beings can acess the reality data. With the intent
of questioning the cartesian mind nature theory from its conception of innate ideas
produced ranging from a mathematical instrument which, according to Descartes, is
born with the subject. For this, a brief explanation of cartesian method as well as his
conception of subject will be show to finally reach the analyses of what Descartes
understands as idea. After that, a short analysis of the notion of innate ideas will be
performed by us. It will be indicated as the cartesian thought allows supposing
questioning of distinction between the body and the mind, the one that the
neuroscientist Damasio can´t accept, as well as he doesn´t accept the priority of
reason over the sentiment. The mind nature is not metaphysics as it was mentioned
by Descartes, while, on the other hand, for Damasio is biological.
Keywords: Idea, Metaphysics, Mind, Neuroscience
*
Doutorando em Filosofia pela USP. E-mail: jlsilvasantos@bol.com.br. Artigo
recebido em 22.04.2008, aprovado em 10.12.2008.
1
Agradeço as indicações bibliográficas e temáticas, bem como a leitura atenta e
exaustiva deste artigo levada a cabo pela Profa. Dra. Mariana Claudia Broens. O
financiamento da FAPESP ao projeto do qual este texto é parte resultante também
merece agradecimento.
nem mesmo ainda que procurasse reformar o corpo das ciências, ou a ordem
estabelecida nas escolas, para as ensinar; mas que, a respeito das opiniões que
até então eu aceitara, o que melhor teria a fazer era, uma vez por todas, de as
recusar, para as substituir em seguida por outras melhores, ou pelas mesmas
quando as houvesse ajustado ao nível da razão (Descartes, s.d., p. 77-8).
O conceito de idéia
Segundo Descartes, as idéias inatas são as entidades mentais
(metafisicamente postuladas) que permitem, por exemplo, as
demonstrações geométricas. Entende o filósofo que as idéias inatas são,
48 João Luis da Silva Santos
por exemplo, quando imagino um triângulo, ainda que não haja talvez em
nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamento, uma tal figura, e que
nunca tenha havido alguma, não deixa, entretanto, de haver uma certa
natureza ou forma, ou essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e
eterna, que eu não inventei absolutamente e que não depende, de maneira
alguma, de meu espírito; como parece, pelo fato de que se pode demonstrar
diversas propriedades desse triângulo, a saber, que os três ângulos são iguais a
dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior lado e outras semelhantes,
as quais agora, quer queira, quer não, reconheço mui claramente e mui
evidentemente estarem nele, ainda que não tenha antes pensado nisto de
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 49
maneira alguma, quando imaginei pela primeira vez um triângulo; e,
portanto não se pode dizer que eu as tenha fingido e inventado (Descartes,
1996, p. 310).
Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que
pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que
quer, que não quer, que imagina também e que sente... Enfim, sou o mesmo
que sente, isto é, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos dos
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 51
sentidos, posto que, com efeito, vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Mas
dir-me-ão que essas aparências são falsas e que eu durmo. Que assim seja;
todavia, ao menos, é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que
me aqueço; e é propriamente aquilo que em mim se chama sentir e isto,
tomado assim precisamente, nada é senão pensar. (Descartes, 1983, p. 95).
E, embora talvez (ou antes, certamente, como direi logo mais) eu tenha um
corpo ao qual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um
lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que
sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia
distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não
pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é
inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir
sem ele (Descartes, 1996, p. 326).
Referências
COTTINGHAM, J. Dicionário Descartes. Trad. Helena Martins. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
A abordagem da natureza da mente por Descartes... 57
Renato Moscateli *
Abstract: The aim of the article is to analyze the concept of freedom present in the
work of Rousseau and to provide arguments to question the image of the natural man
as a free being, in order to support the thesis according to which freedom only
becomes possible with the exit of the state of nature described in the Discourse on the
origins of inequality. Thus, the author intends to show that the appearing of
consciousness and rationality is indispensable so that the man develops his virtual
faculties and be able to create standards of behavior for himself other than natural
instincts, a process that happens thanks to life in society.
Keywords: Freedom, Nature, Right, Rousseau, Society
*
Doutorando em Filosofia pela Unicamp. Bolsista da Fapesp. E-mail:
rmoscateli@hotmail.com. Artigo recebido em 13.10.2008, aprovado em
17.12.2008.
1
Na carta a M. de Franquières datada de 15 de janeiro de 1769, Rousseau escreveu:
“Neste último caso está o homem selvagem e sem cultura, que não fez ainda
nenhum uso de sua razão; que, governado somente por seus apetites, não tem
necessidade de outro guia e que, seguindo apenas o instinto da natureza, anda por
movimentos sempre corretos.” (Rousseau, 1999, p. 1.137)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 61
2
De acordo com Anne M. Cohler, “Rousseau está (...) em posição de argumentar que
esses homens estavam perfeitamente contentes no estado de natureza. Se
provavelmente eles não podiam desenvolver suas possibilidades de mudança e
perfectibilidade na linguagem, então eles eram perfeitamente contentes porque não
podiam conceber uma vida diferente. (...) como os animais, eles são complemente
sujeitos à natureza.” (Cohler, 1970, p. 109)
3
Eis, na verdade, uma escravidão de um tipo bastante singular. No Contrato Social, o
autor escreve que “toda ação livre tem duas causas que concorrem para a sua
produção: uma moral, que é a vontade que determina o ato, e outra física, que é o
poder que a executa.” (Rousseau, 2003, p. 395) O homem selvagem certamente tem
em si, como se verá a seguir, o potencial para emancipar-se da escravidão do
instinto, mas, se não o faz por um longo período, é porque tanto a sua vontade
quanto o seu poder ainda não o levam para longe daquilo que a natureza dispõe.
4
A esse respeito, há um trecho do Segundo Discurso que apresenta algumas
dificuldades de compreensão. De acordo com ele, os homens viviam originalmente
dispersos nas florestas, onde observavam e imitavam o comportamento dos animais,
elevando-se até o instinto deles. Por não possuírem talvez um instinto que lhes
pertencesse, esses homens apropriavam-se de todos os instintos dos outros animais,
podendo assim nutrir-se da maioria dos vários alimentos que eles dividiam entre si
(Rousseau, 2003, p. 135). Ora, como se pode entender essas palavras? Segundo
Anne M. Cohler, “Rousseau torna claro nesta passagem que os homens são animais
no estado de natureza porque eles imitam os animais ao seu redor, não porque eles
62 Renato Moscateli
são impelidos a procurar por um tipo particular de alimento por instinto. Portanto,
pode ser dito dos homens que eles têm uma organização superior porque possuem
menos instintos do que os outros animais, e, por conseguinte, uma capacidade de
mudar para se ajustar a novos ambientes.” (Cohler, 1970, p. 97) Ter menos
instintos, porém, não é a mesma coisa que não ter nenhum, e Rousseau também
deixa claro, repetidas vezes ao longo do Segundo Discurso e em outros escritos, que o
instinto servia de guia para os homens selvagens. No tocante aos hábitos
alimentares, por exemplo, o autor fornece evidências – nas notas V, VIII e XII
anexadas ao texto – de que o homem se classifica entre as espécies frugívoras dentro
do sistema geral da natureza, o que também é declarado na segunda parte do
Discurso, na qual se lê: “as produções da terra forneciam-lhe [ao homem] todos os
socorros necessários, o instinto levou-o a utilizar-se deles” (Rousseau, 2003, p. 164).
Logo, os homens possuíam instintos próprios que os orientavam na busca da
subsistência.
5
Mesmo a piedade presente no espírito do homem natural, esse sentimento
despertado pela contemplação da dor alheia, é descrita por Rousseau como um
“movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão”, e “tão natural que as
próprias bestas às vezes dão dela alguns sinais perceptíveis”. (Rousseau, 2003, p.
154-155)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 63
6
“Se ela [a natureza] nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de
reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal
depravado”. (Rousseau, 2003, p. 138)
7
Como o Segundo Discurso afirma claramente, apenas o estado primitivo do homem é
o verdadeiro estado de natureza (Rousseau, 2003, p. 219).
64 Renato Moscateli
8
Note-se que o termo francês usado por Rousseau para falar do homem selvagem é
bête (traduzido acima como “estúpido”), o mesmo utilizado no Segundo Discurso
como sinônimo de animal.
9
Ver o Segundo Discurso: “Os únicos bens que [o homem selvagem] conhece no
universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme, a dor
e a forme. Digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer,
sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 65
13
“Rousseau (...) descreve a causa primária da mudança, as paixões. As paixões são
criadas pelas necessidades e não podem crescer a menos que os homens criem
necessidades para além daquelas supridas pela natureza para os homens como eles
são no estado de natureza. A menos que alguma força externa crie necessidades para
além das necessidades corporais facilmente satisfeitas dos homens no estado de
natureza, a história do homem não pode começar.” (Cohler, 1970, p. 106)
14
A respeito dessa “prudência maquinal”, que é o primeiro “tipo de reflexão” de que o
homem foi capaz, Cohler diz que ela é mais do que a habilidade de se ajustar às
regularidades da natureza, tal como o selvagem fazia anteriormente, pois ela requer
que ele desenvolva uma consciência rudimentar de seu meio-ambiente e de suas
possibilidades. Na medida em que essa prudência aumenta, o homem passa a
comparar a si mesmo com os animais, vendo-se então como diferente deles. Assim,
“o primeiro ato de um homem que não era um animal produziu a consciência de
que ele não era um animal.” (Cohler, 1970, p. 116) A partir de um argumento
semelhante, Andrzej Rapaczynski chegou a afirmar que “a característica crucial do
homem pós-natural, que realmente o retira do estado de natureza e explica todos os
aspectos de sua constituição que escapam ao alcance de uma descrição mecanicista, é
sua capacidade de reflexão.” (Rapaczynski, 1989, p. 231)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 67
vislumbrar um homem que (...) faz pouco ou nenhum uso de sua liberdade.
Nós podemos considerar a liberdade como meramente virtual e não real no
selvagem; como meramente “a perfectibilidade”, que ainda não se
desenvolveu em qualquer grau significante. (...) As ações do homem no
estado de natureza serão vistas como respostas passivas ao estímulo externo, e
o “amor-de-si”, ou o desejo de autopreservação, será a qualidade dominante
da motivação humana. (Rapaczynski, 1989, p. 225) 16
15
Ver Goldschmidt (1983, p. 293 e ss.), cuja leitura do Segundo Discurso leva à
mesma conclusão.
16
Para Cohler, “Tanto a liberdade quanto a perfectibilidade implicam a capacidade
dos homens de criar padrões para si mesmos diferentemente da autopreservação
animal, em suma, de considerar a si mesmos ao invés de simplesmente preservar a si
mesmos. (...) O problema reside em estabelecer que esta capacidade não funcionava
no estado de natureza. Muito embora os homens tenham sido mostrados capazes de
sobreviver com base em suas características físicas no estado de natureza, Rousseau
precisa mostrar então que as circunstâncias do estado de natureza não levam ao uso
da característica peculiarmente humana. A demonstração tem duas partes. Na
primeira parte, Rousseau tenta mostrar que circunstâncias externas são exigidas para
colocar essa capacidade em operação e que nenhuma delas existia no estado de
natureza. Circunstâncias externas são exigidas para produzir a capacidade dos
homens de criar, e agir com base em seus próprios padrões. Se os homens naturais
pudessem gerar a capacidade a partir de si mesmos, então o estado de natureza não
existiria; os homens seriam sempre homens tais como eles são agora. (...) Na
segunda parte, Rousseau tenta mostrar que as outras características sociais dos
homens não são aptas a se desenvolver sem que os homens usem essa capacidade.
Tanto a linguagem quanto a família, as mais elementares instituições sociais, exigem
que os homens usem sua capacidade de criar e agir com base em padrões, e elas não
existem no estado de natureza.” (Cohler, 1970, p. 105)
68 Renato Moscateli
para dar uma descrição adicional da ação humana, incluindo uma descrição
das relações interpessoais e dos fenômenos sociais e políticos, nós devemos
encontrar outro método de análise, uma nova ciência, diferente da ciência
natural mecanicista e capaz de fazer justiça ao assunto em questão. A
transição entre o estado de natureza e o estado civilizado não é meramente
17
De acordo com Wokler, a diferenciação entre natureza e cultura é uma marca
essencial do Segundo Discurso, fazendo dele um texto importantíssimo no interior da
reflexão antropológica do século XVIII. Para Rousseau, “por natureza, nós somos na
verdade muito semelhantes aos animais – mais flexíveis, mais maleáveis, sem dúvida,
e singularmente capazes de mudança – mas, no fundo, movidos pelos mesmos
impulsos de amour de soi e pitié. Segue-se, portanto, que o grande abismo entre nós
e o resto da criação animal (...) simplesmente não existe. Não havia, para Rousseau,
nenhuma ruptura na scala naturae, nenhum degrau faltando escala da natureza. A
partir dessas afirmações, que efetivamente animalizam a natureza humana (ou ao
menos fazem a ponte sobre o abismo entre nossa espécie e a dos grandes primatas),
ele concluiu que a criatura comumente chamada de orangotango, que significa
‘homem das florestas’ em malaio, poderia na verdade ser um progenitor da
humanidade.” (Wokler, 1995, p. 43) Rousseau teria sido tão bem sucedido em seu
esforço para abstrair aquilo que é natural no homem das características que surgem
da existência social, diz Wokler, que sua história conjetural da raça humana tornou-
se – ainda que inadvertidamente – uma excelente obra de “primatologia empírica”,
pois seu retrato do homem natural como um ser solitário, frutívoro, indolente e
itinerante concorda muito bem com a descrição dos orangotangos existentes no
sudeste da Ásia.
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 69
uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade, ou entre o homem pré-social e
o social; ela é, na verdade, uma ruptura entre dois tipos heterogêneos de
entidades e dois tipos correspondentemente heterogêneos de análise.
(Rapaczynski, 1989, p. 234-235)
18
“A perfectibilidade, no estado de natureza, não encontra, portanto, nenhuma causa
natural que possa colocá-la em marcha e levá-la a substituir o instinto. – Vê-se,
enfim, o quanto a perfectibilidade se opõe à sociabilidade. Ela só se desenvolve ‘com
a ajuda das circunstâncias’ (ao invés de agir à maneira de uma causa interna); ela
mantém o isolamento (ao invés de trabalhar para uma aproximação); ela deixa os
homens no nível do instinto” (Goldschmidt, 1983, p. 306).
19
Descrevendo as condições praticamente imutáveis nas quais, durante eras sucessivas,
o homem selvagem viveu, Rousseau sintetiza dessa forma suas características: “Então
não havia nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e,
partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a
grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre
criança.” (Rousseau, 2003, p. 160) Compare-se esta descrição com aquela referente
ao animal, que, “ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie,
no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares.” (Rousseau,
2003, p. 142)
20
Ver o fragmento intitulado A influência dos climas sobre a civilização: “Se toda a
terra fosse igualmente fértil, talvez os homens jamais tivessem se aproximado. Mas a
necessidade, mãe da indústria, forçou-os a se tornar úteis uns aos outros, para sê-lo a
si mesmos. É por estas comunicações, de início forçadas, depois voluntárias, que
seus espíritos desenvolveram-se, que eles adquiriram talentos, paixões, vícios,
virtudes, luzes, que se tornaram tudo o que podem ser no bem e no mal. O homem
isolado permanece sempre o mesmo; ele só faz progresso em sociedade.” (Rousseau,
2003, p. 533)
70 Renato Moscateli
21
Em sua Carta sobre a virtude, o indivíduo e a sociedade, Rousseau escreve que “uma
vantagem infinitamente superior a todos os bens físicos, e uma das quais nós
inegavelmente compartilhamos devido à harmonia da raça humana, é a de atingir,
por meio da comunicação de idéias e do progresso da razão, as regiões intelectuais,
de adquirir as sublimes noções de ordem, sabedoria e bondade moral, de nutrir
nossos sentimentos com os frutos de nosso conhecimento, de elevarmos a nós
mesmos, por meio da grandeza de nossas almas, acima da fraqueza de nossa
natureza, e de igualar, em certos aspectos, por meio da arte do raciocínio, as
inteligências celestes; até finalmente, combatendo e vencendo nossas paixões,
ganharmos o poder de dominar o homem e imitar a própria Divindade.” (Rousseau,
2003a, p. 32)
22
Ver o Emílio: “Então, para impedir o homem de ser mau fora preciso limitá-lo ao
instinto e fazê-lo estúpido? Não, Deus de minha alma, nunca te censurarei tê-la feito
à tua imagem, a fim de que eu possa ser livre, bom e feliz como tu.” (Rousseau,
1999, p. 587)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 71
23
Sobre essa diferenciação, ver também Derathé (1948, p. 112 e seguintes).
24
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo II: “Essa liberdade comum é uma
conseqüência da natureza do homem. Sua primeira lei consiste em zelar pela própria
conservação, seus primeiros cuidados são aqueles que deve a si mesmo, e, assim que
alcança a idade da razão, sendo o único juiz dos meios adequados para conservar-se,
torna-se, por isso, senhor de si.” (Rousseau, 2003, p. 352)
25
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI. Isto faz lembrar o princípio do Contrato
Social, onde se afirma que “o homem nasce livre”. O que significa tal declaração?
Como esclarece Christopher Bertram, Rousseau expressa dessa forma uma idéia já
presente tanto em Hobbes quanto em Locke, a de que a condição natural do
homem é de não-subordinação: “Nós nascemos livres e iguais no sentido de que
nenhuma pessoa tem por natureza o direito de comandar qualquer outra pessoa nem
72 Renato Moscateli
29
Ver o Contrato Social, livro II, capítulo VII: “É preciso, em uma palavra, que ele [o
legislador] destitua o homem de suas forças próprias para lhe dar outras que lhe
sejam estranhas e das quais ele não possa fazer uso sem o auxílio de outrem. Quanto
mais essas forças naturais são mortas e aniquiladas, mais as adquiridas são grandes e
duráveis, mais, também, a instituição é sólida e perfeita” (Rousseau, 2003, p. 381-
382)
30
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI: “o pacto social sendo violado, cada um
retorna, então, a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a
liberdade convencional pela qual renunciara àquela” (Rousseau, 2003, p. 360); e
também o livro III, capítulo X: “De modo que no instante em que o governo usurpa
a soberania, o pacto social é rompido, e todos os simples cidadãos, repostos de
direito em sua liberdade natural, são forçados, mas não obrigados, a obedecer.”
(Rousseau, 2003, p. 422-423)
31
No final do Segundo Discurso, Rousseau fala de um novo estado de natureza que
surge quando a desigualdade atinge o seu extremo e o despotismo se eleva sobre as
ruínas da república. Todavia, esse novo estado é diferente do primeiro, porque é “o
fruto de um excesso de corrupção” (Rousseau, 2003, p. 191)
32
Ver Rousseau (2003, p. 178 e 185).
74 Renato Moscateli
33
“Descobrindo e seguindo assim as rotas esquecidas e perdidas que do estado natural
devem levar o homem ao estado civil, restabelecendo, com as posições
intermediárias que eu acabo de assinalar, as que o tempo que me apressa me fez
suprimir, ou que a imaginação não me sugeriu; todo leitor atento só poderá ser
impressionado pelo espaço imenso que separa esses dois estados. É nessa lenta
sucessão das coisas que ele verá a solução de uma infinidade de problemas de moral e
de política que os filósofos não podem resolver.” (Rousseau, 2003, 191-192)
34
Ver o Contrato Social, livro I, capítulo VI.
35
“Tal foi, ou deveu ser, a origem da sociedade e das leis, que deram novos obstáculos
ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural,
fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma sagaz
usurpação um direito irrevogável, e para o benefício de alguns ambiciosos sujeitaram
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 75
Considerações finais
Enfim, o fato de ser independente da vontade de outrem, como no
estado de natureza, não basta para caracterizar toda a amplitude de
sentido que a palavra liberdade carrega no pensamento
rousseauniano 36 . Se bastasse, até mesmo o leão do exemplo citado
acima seria livre, pois ele pode assegurar sua sobrevivência sem se
submeter à vontade de outro indivíduo de sua espécie, exercendo assim,
com independência, o objetivo natural da autoconservação. Qualquer
animal não gregário teria de ser considerado como dotado de liberdade,
e este atributo deixaria de ser uma exclusividade humana. É por esse
motivo que, para definir plenamente a liberdade, é preciso que se inclua
igualmente a escolha moral. Em sua crítica à escravidão, Rousseau usa o
argumento de que “renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de
homem”, de que “destituir-se voluntariamente de toda e qualquer
liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ações.” (Rousseau,
2003, p. 356) 37 Logo, ser escravo não consiste tão só em se tornar
extremamente dependente de outra pessoa, mas também, e sobretudo,
em perder o estatuto de agente responsável por suas ações sob uma
perspectiva ética.
38
No estado de natureza, o homem compartilha com os animais um tipo de
pensamento básico, oriundo da combinação dos dados obtidos pelos sentidos, cuja
única finalidade é a manutenção da existência física, ou autopreservação: “Uma vez
que a liberdade, para Rousseau, é algo diferente desta autopreservação animal, ela
implica que os homens podem criar finalidades para si mesmos; os homens, em
contraste com os animais, podem escolher o padrão sobre o qual seu pensamento e
sua ação serão baseados. Inevitavelmente, então, os homens não mais serão capazes
de preservar sua existência física como eles faziam quando eram animais. Eles se
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 77
tornam animais depravados, de menor estatura física do que eles poderiam ter e uma
vez tiveram. Quando os homens criaram tais padrões, a linguagem, por exemplo, seu
pensamento seria diferente do pensamento que eles compartilhavam com os animais
no estado de natureza.” (Cohler, 1970, p. 103)
78 Renato Moscateli
Referências
ALICI, Luca. Rousseau e il repubblicanesimo. Pisa, Bollettino telematico
di filosofia politica, 2003. Disponível em:
<http://www.philosophica.org/bfp/art/alici.html> Acesso em: 04 jul.
2005.
BERTRAM, C. Routledge philosophy guidebook to Rousseau and The
Social Contract. Nova Iorque: Routledge, 2004.
39
Contrato Social, livro I, capítulo VIII. Na leitura de Peter Gay, “embora a descrição
de Rousseau do caráter essencial do homem varie, ela permanece sempre fiel à idéia
de que o homem é originalmente sem pecado, de que ele vem ao mundo como um
ser livre, e de que ele é equipado com a capacidade para a decência, o espírito
público, a sinceridade, a racionalidade autêntica. A história, então, é para Rousseau
um comentário desanimador sobre a falha do homem em realizar suas
potencialidades.” (Gay, 1996, p. 536)
A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau 79
Abstract: This paper intends to rise the following questions: 1. how is it possible to
reconstruct the moral sense according to self-esteem whose content is given less by
negation or isolation from the other than by personal work about oneself, with an eye
to an êthos, of an ethics? 2. nowadays, can the value of morals be dislocated from the
universal law to an attitude of difference, from the normality of behavior to oneself’s
improvement and, at last, from truth about the individual to an ascetical
subjectivation that does not require the prerogative of an identity, but the
transformation of the self in relation to itself and to others? Such questions are raised
from Friedrich Nietzsche’s, Michel Foucault’s and Fernando Savater’s.
Key-words: Aesthetics of existence, Ethics, Identity, Self-esteem
*
Doutor em Filosofia pela PUC-RS. E-mail: jlimaesilva@yahoo.com.br. Artigo
recebido em 30.10.2008, aprovado em 10.12.2008.
1
Foucault, M. A hermenêutica do sujeito, 2004, p. 16.
2
O conceito de amor-próprio é mais antigo, da palavra philautia dos gregos (aqui é
usado com apoio na obra de Fernando Savater Ética como amor-próprio, na qual
reflete sobre a duplicidade, positiva e negativa, tanto no caso do amor-próprio como
5
Diz Freud: “(...) a mais recente das ordens culturais do superego, o mandamento de
amar ao próximo como a si mesmo (...) O mandamento ‘Ama teu próximo como a
ti mesmo’ constitui um dos procedimentos não psicológicos do superego cultural. É
impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode
rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A civilização não presta atenção a
tudo isso: ela meramente nos adverte que quanto mais difícil é obedecer ao preceito,
mais meritório é proceder assim (...) Que poderoso obstáculo à civilização a
agressividade deve ser, se a defesa contra ela pode causar tanta infelicidade quanto a
própria agressividade! (...) Enquanto a virtude não for recompensada aqui na Terra,
a ética, imagino eu, pregará em vão (...)”. Freud, S. O mal-estar da civilização, 1978,
p. 192.
6
Sobre a questão do não-egoísmo como valor moral: cf. Nietzsche, F. Genealogia da
moral, 26, 1998.
7
Cf. Aristóteles. Ética a Nicômacos, IX, 8, 2001.
8
Tal ambigüidade é própria do amor-próprio, como observa Savater (Savater, F. Ética
como amor-próprio, op.cit., p. 34). Santo Agostinho separou o probus amor sui do
improbus amor sui. Ibidem.
9
Voltaire. Dicionário filosófico, 1975.
84 Jason de Lima e Silva
10
La Rochefoucauld, Maximes e réflexions diverses. Aforismo 81. In: El Murr, Dimitri.
L’amitié, 2001, p. 125. La Rochefoucald defende que o interesse produz a amizade
(aforismo 85, p. 126) e o mérito dos amigos é julgado pela medida de nosso amor-
próprio, conforme a maneira que nossos amigos vive conosco (aforismo 88, ibidem).
11
Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 87.
Egoísmo contra identidades 85
12
Nietzsche, F. Ecce Homo, “Por que sou tão inteligente?”, 9, 1995, p. 48. Nesse
aforismo de Ecce Homo a questão para Nietzsche é como alguém se torna o que é (wie
man wird, was man ist). Fala de uma arte de preservação de si, do amor de si
(Selbstsucht). “Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer
remotamente o que é”. Em alguns casos, na psicologia de Nietzsche, até mesmo o
amor ao próximo, os impulsos “desinteressados”, poderiam trabalhar para o amor de
si. Daí não ser tão simples compreender Nietzsche: um pensamento que se demora
na sutileza do fenômeno humano no mundo.
13
Nietzsche, F. Além do bem e do mal, 221, p. 127.
86 Jason de Lima e Silva
14
Nietzsche, F. Genealogia da moral, “Terceira Dissertação”, 18, p. 124.
15
“Em Alcebíades de Platão, isto fica muito claro: você tem que cuidar de si porque
você tem que governar a cidade. Mas cuidar de si por causa própria, começa com os
epicuristas – torna-se algo muito geral com Sêneca, Plínio etc.: todos têm que cuidar
de si”. “Sobre a genealogia da ética”. In: Dreyfeus, H.; Rabinow, P. Michel Foucault:
uma trajetória filosófica, 1995, p. 260. O imperativo ético do cuidado de si não se
equilave, contudo, a uma lei universal: “(...) na cultura grega e romana, o cuidado de
si jamais foi efetivamente percebido, colocado, afirmado, como uma lei universal
válida para todo indivíduo, qualquer que fosse o modo de vida adequado. O
cuidado de si implica sempre uma escolha de vida, isto é, uma separação entre
aqueles que escolheram este modo de vida e os outros”. Foucault, M. Hermenêutica
do sujeito, p. 139.
16
Foucault fala em “morais cristãs” e não em “moral cristã” (Foucault, M. História da
sexualidade. vol. 2. O uso dos prazeres, 1988, p. 29), mesmo porque o cristianismo
foi uma religião e não uma moral (Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, 313). No
curso de 1982, Foucault enumera três modelos de práticas de si: 1. platônico
(reminiscência); 2. helenístico (auto-finalização em relação a si); 3. cristão (exegese e
renúncia de si). O modelo do meio, o helenístico, é sobreposto pelos outros dois na
história da relação moral consigo ao longo do Ocidente. (Ibidem, p. 314). Peter
Brown (The making of Late Antiquity) faz uma história da ascensão do cristianismo
pelo aparecimento de novas formas de vida, novas estilizações de si: A “simplicidade
do coração” (singleness of heart) dos hebreus é retomada em vista de uma abstinência
e uma conjugalização das relações sexuais (elementos já presentes na ética estóica dos
primeiros séculos, como mostra Foucault em O cuidado de si), por conta de se ver no
Egoísmo contra identidades 87
sexo o signo da queda. Surge uma “estética da virgindade” no século III como
símbolo da pureza da alma. A anacoresis é praticada pelo “homem do deserto”, o
anacoreta, que se isola não apenas para se livrar das tentações, mas para investigar as
regiões privadas de sua alma pelo auto-exame. A “carne” será o meio para a
introspecção do “homem de desejo” em Agostinho, em vista de uma hermenêutica
dos desejos, dos pensamentos, segredos... Cf. Ortega, F. Amizade e estética da
existência em Michel Foucault, 1999. Cf. também Foucault, M. “Les techniques de
soi”. In: Dits et écrits, IV: sobre as noções de examologesis, exagoreusis, técnicas de
auto-exame, purificação e decifração de si já apropriadas do pensamento pagão,
porém em vista da salvação da alma e de uma renúncia de si, segundo a ética cristã
da carne: “Quanto mais descobrimos a verdade sobre nós mesmos, tanto mais
devemos renunciar a nós mesmos; e quanto mais queremos renunciar a nós mesmos,
tanto mais devemos trazer à luz a verdade sobre nós mesmos”. (Foucault, M.
“Sexualité et solitude”. In: Dits et écrits, IV, 1994, p. 172. Cf. também Foucault, M.
“Le retour de la morale”. In: Dits et écrits, p. 706). Segundo Michael Mahon, o
código de restrição ou proibição morais, não foi inventado no cristianismo. O
exemplo do problema do sexo restrito à procriação no estoicismo: “the notion
associated with the Christianity that sexual expression should be restricted to
procreation originated with the Stoics. In order to integrate itself into the Roman
Empire Christianity opted to subscribe to this principle”. Mahon, M. Foucault’s
Nietzschean genealogy,1992, p. 170.
17
Cf. nota de rodapé em Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, p. 521.
18
Ortega, F. Amizade e estética da existência em Foucault, p. 95.
88 Jason de Lima e Silva
19
Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 34.
20
Cf. Foucault, M. Hermenêutica do sujeito, p. 17.
21
Cf. Ibidem, p. 17. ”Estas regras austeras, cuja estrutura de código permaneceu
idêntica, foram por nós reaclimatadas, transportadas, transferidas para o interior de
um contexto que é o de uma ética geral do não-egoísmo, seja sob uma forma cristã
de uma obrigação de renunciar a si, seja sob a forma ‘moderna’ de uma obrigação
para com os outros – quer o outro, quer a coletividade, quer a classe, quer a pátria,
etc. (...) Portanto, todos estes temas, todos estes códigos do rigor moral, nascidos
que foram no interior daquela paisagem tão fortemente marcada pela obrigação de
ocupar-se consigo mesmo, vieram a ser assentados pelo cristianismo e pelo mundo
moderno numa moral do não-egoísmo. É este conjunto de paradoxos, creio, que
constitui uma das razões pelas quais o tema do cuidado de si veio sendo um tanto
desconsiderado, acabando por desaparecer da preocupação dos historiadores”.
Ibidem, p. 17-18.
22
Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 30-31.
Egoísmo contra identidades 89
23
Foucault, M. “Sobre a genealogia da ética”. In: Michel Foucault..., p. 255.
24
Carta 26 a Lucílio de Sêneca usa o imperativo Medita na morte! de Epicuro e
escreve: “Eu, pelo menos, como se já estivesse próximo o momento decisivo, esse dia
supremo que há-de pronunciar o juízo definitivo, sobre toda a minha vida, vou-me
observando e dizendo para mim mesmo estas palavras: (..) Não interessa a
apreciação dos outros: é sempre incerta, há sempre divisão de opiniões. Não
interessa os estudos realizados durante a vida: somente a morte pronunciará sobre
nós o juízo definitivo (...)”. Sêneca, L.A. Cartas a Lucílio, 2004, p. 99. E, a despeito
de conceber a a alma do mundo (ratio mundi) como imortal, enquanto estóico,
Sêneca é cético quando ao que cabe ao humano: “A morte, ou nos consome
totalmente, ou nos despoja de alguma coisa. Na segunda hipótese, privados do peso
do corpo, resta-nos a melhor parte de nós mesmos. Se somos totalmente
consumidos, então não resta mais nada, tanto a parte boa quanto a parte má são-nos
retiradas igualmente”. Ibidem, Carta 24, p. 93. E dizia Epicteto: “Em que ocupação
desejas que te surpreenda a morte? Pelo que a mim toca gostaria que me
surpreendesse ocupado em algum labor grande, generoso e útil aos demais (...)”.
Epicteto. Máximas, diálogos, pensamientos, exhortaciones y consejos, 1922, 119, p. 79.
25
“Bem, eu me pergunto se nosso problema hoje em dia não é, de certo modo,
semelhante, já que a maior parte das pessoas não acredita mais que a ética esteja
fundada na religião, nem deseja um sistema legal para intervir em nossa vida moral,
pessoal e privada. Os recentes movimentos de liberação sofrem com o fato de não
poderem encontrar nenhum princípio que sirva de base à elaboração de uma nova
ética. Eles necessitam de uma ética, porém não conseguem encontrar outra senão
aquela fundada no dito conhecimento científico do que é o eu, do que é o desejo, do
90 Jason de Lima e Silva
28
“A minha idéia é que não é absolutamente necessário relacionar os problemas éticos
ao saber científico. Dentre as invenções culturais da humanidade, há um tesouro de
dispositivos, técnicas, idéias, procedimentos, etc., que não pode ser exatamente
reativado, mas que, pelo menos, constitui, ou ajuda a constituir, um certo ponto de
vista que pode ser bastante útil como uma ferramenta para a análise do que ocorre
hoje em dia – e para mudá-lo”. Ibidem.
29
Ibidem, p. 276.
30
O poder, após a queda do absolutismo monárquico no século XIX, apoiou-se
primeiro no saber sobre os processos econômicos, políticos, demográficos, através
dos quais se garantiria o desenvolvimento econômico. Quando, no decorrer dos
92 Jason de Lima e Silva
soluções), mais ele retira dos governados o que precisa para se exercer
enquanto poder. E quanto mais os governados expõem a vida que
vivem ao poder que distribui suas aptidões e controla suas forças, mais
se os conhece para saber como aproveitá-los e o que desejam e,
satisfeitos os seus desejos, garante-se em parte a expectativa de suas
ações. Eis a dinâmica do poder, porque, como diz Hannah Arendt,
antecipando Foucault: o poder é sempre “um potencial de poder, não é
uma entidade imutável, mensurável e confiável como a força”. Poder é
potentia de poder. 31 (E não há necessariamente equilíbrio nas relações
de poder: não se pode negar os males que as sociedades atuais
continuam a produzir, decorrentes das próprias ofertas que o poder
promete sem ser a todos possíveis, contra o que uma violência difusa
reage, a exemplo das pequenas às grandes cidades brasileiras, violência
que o poder anuncia e desvia a atenção, separando o fenômeno, muitas
vezes, como um caso à parte, individual, para, justamente, não
problematizá-lo).
Se Deus não se justifica mais como o poder e a verdade
absolutos, o poder dos pastores, ao contrário de diminuir, se difundiu
proporcionalmente às identidades que administra em termos políticos:
depressivos, maníacos, hetero, homo, bi ou metrossexuais, compulsivos,
paranóicos, viciados, bipolares, esquizofrênicos, e segue assim adiante o
rol da tipologia sobre os fenômenos da psykhe humana, que a norma
anos, se constatou que tal desenvolvimento produziu efeitos negativos sobre a vida
dos indivíduos, a sabedoria do poder se voltou à correção de quem a ele não se
adequava, segundo uma “ortopedia social”, diz Foucault: “O mundo é um grande
hospício, onde os governantes são os psicólogos, e o povo, os pacientes (...) o poder
político está em vias de adquirir uma nova função, que é a terapêutica”. Cf.
Foucault, M. “Le monde est un grand asile”. In: Dits et écrits, II, 126, p. 433-434.
31
Continua Hannah Arendt a distinção entre poder e força (no caso de Foucault,
ambos os conceitos muitas vezes são usados indistintamente): “Enquanto a força é a
qualidade natural de um indivíduo isolado, o poder passa a existir entre os homens
quando eles agem juntos, e desaparece no instante em que eles se dispersam”. H.
Arendt recorre ao equivalente da palavra em grego, dynamis, e o latino, potentia,
com seus derivados modernos (no alemão Macht vem de mögen e möglich, e não
machen), para indicar o caráter de potencialidade do poder (Arendt, H. A condição
humana, 2004, p. 212). Cf. também relação entre poder e palavra: “O poder só é
efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são
vazias e os atos não são brutais (...)”. Ibidem.
Egoísmo contra identidades 93
precisa admitir para dar conta do que produz e, ao mesmo tempo, para
manter visível o território, em termos de comportamento, entre o que é
permitido na sua diferença, embora se lucre quando possível e se trate
quando necessário, e o que deve ser separado para um
acompanhamento mais exaustivo, pelo perigo que a si mesmo ou aos
outros pode trazer. A difusão de tal espécie de poder é o sintoma de
uma relação fragilmente precária consigo mesmo, na nossa sociedade.
O limite nunca é bem sabido quando todas as soluções são possíveis e
todas as diferenças passíveis de tratamento. A máxima do poeta
Fernando Pessoa espanta pela verdade: “Na vida de hoje, o mundo só
pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e
a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se
conquista o internamento num manicômio: a incapacidade de pensar, a
amoralidade, e a hiperexcitação”. 32 O comprometimento com a norma
para as decisões a propósito de si mesmo corresponde às identidades
com as quais se quer identificar e pelas quais, no limite, chega-se a
matar o outro ou a morrer simbolicamente em vida (a “morte
psíquica”, que pode ocorrer dentro ou fora de uma instituição 33 ).
Incapacidade de pensar, amoralidade e hiperexcitação: o mundo é um
grande hospício.
Por mais diversas que sejam as identidades, o poder da norma
não apenas as sustenta como diversidade, por um discurso
hermenêutica e empiricamente verdadeiro, como, para manter seu
domínio, acrescenta novos comportamentos como anormais ou
normaliza antigas patologias, sem que se obrigue a internação do
indivíduo (convive-se, por exemplo, cada vez mais “normalmente” com
“doenças” como a síndrome do pânico e a depressão, que se
32
Pessoa, F. Livro do desassossego, 1999, p. 188.
33
O psicanalista Eugène Enriquez fala sobre os indivíduos tão normais, frente às leis e
à moral, que estão à mercê de uma ruptura que não saberiam enfrentar (estão
“mortos”): “Indivíduos socialmente instituídos, que vivem no espaço social e que
criaram um impasse no seu espaço psíquico ou que o alimentaram exclusivamente
com as proibições e as injunções dos valores societais e parentais, estão mortos para
si mesmos; porque são tão incapazes de se questionar e de duvidar quanto de
questionar, de transformar o mundo no qual devem viver. São incapazes de criação”.
Enriquez, E. “O trabalho da morte nas instituições”. In: A instituição e as instituições,
1991, p. 61.
94 Jason de Lima e Silva
34
Foucault, M. “Michel Foucault, une interview: sexe, pouvoir et la politique de
l’identité”. In: Dits et écrits, IV, p. 739.
35
La Rochefoucauld. Maximes... In: L’amitié, 413, p. 77.
36
“A resistência toma sempre apoio, na realidade, sobre a situação que ela combate.
No movimento homossexual, por exemplo, a definição médica da homossexualidade
constituiu um instrumento muito importante para combater a opressão da qual era
vítima a homossexualidade no fim do século XIX e início do século XX. Essa
medicalização, que era um meio de opressão, foi também um instrumento de
resistência, já que as pessoas podiam dizer: ‘Se nós somos doentes, então por que nos
condenam, por que nos menosprezam?’, etc. Claro, este discurso nos parece hoje
bastante ingênuo, mas na época era muito importante”. Foucault, M. “Michel
Foucault, une interview...”, p. 741.
37
Cf. Savater, F. La tarea del heroe, 1992, p. 106. Mais adiante, coincidindo com a
questão colocada por Foucault no fim de seu curso Hermenêutica do sujeito quanto a
Hegel, diz Savater: “El egoísmo nunca puede ser considerado desde fuera, siempre es
sujeto, subjetividad, expresándose por medio de la negación de la identidad, su
recreación y el inevitable distanciamiento de lo idéntico: no hay ciencia del yo, sólo
Egoísmo contra identidades 95
puede haber leyendas acerca de él. Así lo entendió el Hegel de la Fenomenología del
espíritu y tal es el fundamento de toda filosofía narrativa (...)”. Ibidem.
38
Savater, F. Ética como amor-próprio, p. 22.
39
Veyne, P. “Le dernier Foucault et sa morale”. In: Critique, 471/472, Paris, 1986.
96 Jason de Lima e Silva
40
Uma experiência não é nem verdadeira nem falsa, diz Foucault: é sempre uma
ficção, é algo que se fabrica a si mesmo, que não existe antes e que existirá depois.
Foucault cita Nietzsche, Blanchot, Bataille contra a tradição fenomenológica no que
corresponde a relação do sujeito consigo e com o mundo através da experiência. Cf.
Foucault, M. “Entretien avec Michel Foucault”. Dits et écrits, IV, p. 45.
41
“Voilà, il me semble que la question de l’art de vivre: comment être en rapport avec
cette puissance impersonnelle? Comment le sujet saura être en rapport avec sa
puissance, qui ne lui appartient pas, qui le dépasse? C’est un problème poétique,
pour ainsi dire. Les Romains appelaient cela le génie, principe impersonnel fécond,
qui permet d’engendrer une vie. Là aussi, c’est un modèle possible. Le sujet ne serait
ni le sujet conscient, ni la puissance impersonelle, mais ce qui se tient entre les deux.
La désubjectivation n’a pas seulement un aspect sombre, obscur. Elle n’est pas
simplement la destruction de toute subjectivité. Il y aussi cet autre pôle, plus fécond
et poétique, où le sujet n’est que le sujet de sa propre désubjectivation”. Agamben,
G. Une biopolitique mineure. Par Stany Grelet and Mathie Potte-Bonneville. Publié
dans Vacarme 10 hiver 2000. Disponível em:
http://vacarme.eu.org/article255.html. Acessado em janeiro de 2007.
42
Foucault, M. “Une interview de Michel Foucault par Stephen Riggins”. Dits et
écrits, IV, p. 535.
Egoísmo contra identidades 97
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Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo
*
Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e Coordenador do
Núcleo de Estudos em Filosofia da Educação e Pragmatismo da UFPI. E-mail:
heraldokf@yahoo.com.br. Artigo recebido em 24.04.2008 e aprovado em
30.09.2008.
1
Haack, 1995, p. 126-147.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 101
2
Peirce, 1990b, p. 286-287.
3
Para um estudo detalhado do pensamento de Peirce, examinar Ibri (1992).
4
Haack, 1998, p. 50.
5
Cf. Peirce, 1990a, p. 39-43.
6
Peirce, 1990b, p. 286.
102 Heraldo Aparecido Silva
7
Peirce, 1990b, p. 194.
8
Peirce, 1990b, p. 195.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 103
de Peirce 9 . Nos ensaios The Fixation of Belief e How to Make Our Ideas
Clear, Peirce distingue a dúvida da crença. Para ele, a ação é norteada
pela crença. Esta é antecedida pela dúvida, que não fornece qualquer
indício, base ou orientação para nossas ações, mas, pelo contrário, é um
estado de preocupação, insatisfação e desorientação. O processo através
do qual o estado de dúvida é convertido em estado de crença é
chamado de inquérito. O único propósito do pensamento, concebido
como inquérito, é o estabelecimento da opinião e, conseqüentemente, a
cessação da dúvida. A alternância entre o estado de dúvida e o estado de
crença é constante. Isto porque uma vez estabelecido um hábito de
ação, ao agirmos, estaremos sujeitos ao confronto com uma nova
dúvida. A irritação da dúvida, por sua vez, deve estimular o
pensamento a desempenhar a sua única função: a produção de crença –
reiniciando todo o processo 10 .
Enquanto Peirce concebe a sua doutrina exclusivamente como
um método de determinação do significado, William James (1842-
1910), nas oito conferências reunidas sob o título Pragmatism
[Pragmatismo] (1907), designa o pragmatismo como um método e,
também, como uma teoria da verdade 11 . Entretanto, essa caracterização
é precedida e complementada pela idéia que existe na assunção de uma
determinada posição filosófica, em detrimento de outras, a influência
do temperamento humano. Dessa maneira, tanto a escolha ou recusa
de uma doutrina filosófica quanto às divergências que acompanham as
diferentes opções, seriam passíveis de explicação por intermédio do
contraste entre temperamentos distintos. Para James, esses
temperamentos estão divididos em duas áreas antagônicas,
representadas pelo racionalista, “que segue princípios” e pelo empírico,
“que segue fatos” 12 . A importância desta classificação reside na
9
A expressão “pragmatismo de Peirce” se refere às idéias do próprio autor sobre sua
doutrina. Já a expressão pragmatismo peirceano designa interpretações de outros
autores acerca do “pragmatismo de Peirce” (Cf. Haack, 1998, p. 55). Utilizo o
mesmo critério no estudo dos demais pragmatistas.
10
Cf. Murphy, 1993, p. 33-46.
11
James, 1979, p. 25.
12
James lista atributos contrastantes para o racionalista (à esquerda) e o empírico (à
direita), tais como: intelectualista x sensualista, idealista x materialista, otimista x
104 Heraldo Aparecido Silva
16
James, 1979, p. 20.
17
James, 1979, p. 69.
18
James, 1979, p. 21.
19
Murphy, 1993, p. 67.
106 Heraldo Aparecido Silva
20
James, 1979, p. 29.
21
James adverte: “Indiretamente ou somente potencialmente, os processos de
verificação podem, pois, ser verdadeiros tanto quanto os processos de verificação
integrais” (James, 1979, p. 75).
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 107
22
James, 1979, p. 72.
23
James, 1979, p. 73.
24
Em tais casos, a sintética observação de James é exemplar: “Comerciamos um com a
verdade do outro” (James, 1979, p. 75).
25
James, 1979, p. 80.
108 Heraldo Aparecido Silva
26
Consultar Thayer (1973), Murphy (1993), Saatkamp (1995) e Menand (1997).
27
Algumas menções são inevitáveis para caracterizar os problemas morais, políticos e
sociais visados por Dewey que defendia a “mudança da natureza do conhecimento e
da filosofia, de contemplativa para operativa” (Dewey, 1959, p. 129). Assim, no
âmbito internacional, destacam-se: a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução
Russa (1917); a consolidação de regimes políticos totalitários na Europa: o fascismo
na Itália (1922) e o nazismo na Alemanha (1933); a Guerra Civil Espanhola (1933-
1939); a 2ª Guerra Mundial (1939-1945); a criação da Organização das Nações
Unidas – ONU (1945); a oficialização da política de segregação racial na África do
Sul (1948); e a fundação do Estado de Israel (1948).
28
Dewey, 1959, p. 17-43.
29
Dewey, 1959, p. 130.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 109
30
Escrita sob o impacto da 1ª Guerra, Dewey acrescentou a essa obra uma introdução
na qual constata que, após a 2ª Guerra, “o choque é muito mais violento” e a
“atitude predominante é a de inquieta e pessimista incerteza”. E ele completa:
“Incerteza quanto às surpresas que o porvir encerra, incerteza que projeta sua pesada
e negra sombra sobre todos os aspectos do presente” (Dewey, 1959, p. 17-18).
31
Dewey, 1959, p. 15.
32
Dewey, 1959, p. 20.
33
Cf. Borradori, 1994, p. 105-106; Saatkamp, 1995, p. 1-15, 197-205.
34
Dewey, 1959, p. 61.
35
Dewey, 1959, p. 108-109.
110 Heraldo Aparecido Silva
36
Dewey, 1959, p. 131.
37
Dewey, 1959, p. 174-176.
38
Dewey, 1959, p. 159.
39
Dewey, 1959, p. 168.
40
Bernstein, 1995, p. 58.
41
Bernstein, 1995, p. 59.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 111
Neopragmatismo: Rorty
Anteriormente, descrevi, grosso modo, o pragmatismo nas versões dos
pragmatistas clássicos Peirce, James e Dewey. Agora, abordarei dois
aspectos: o legado filosófico e a continuidade dessa tradição na obra do
pragmatista contemporâneo Richard Rorty (1931-2007). Todavia,
antes de discorrer particularmente a respeito destes aspectos, tentarei
evidenciar a inter-relação entre os mesmos. Para esta finalidade, o breve
histórico que acompanha a definição de pragmatismo na versão de
Rorty 42 é suficientemente expressivo:
42
Rorty, 1991b, p. 265-277.
112 Heraldo Aparecido Silva
43
Para obter informações complementares sobre a periodização do pragmatismo, a
influência da vertente analítica da filosofia nos EUA e o neopragmatismo de Rorty;
consultar Borradori (1994, p. 1-25), Saatkam (1995), Brandom (2000) e Rorty
(2006).
44
Murphy, 1993, p. 15-158.
45
Murphy, 1993, p. 112.
46
Extraídas de Experiência e Natureza (Cf. Dewey, 1980, p. 37 e 40).
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 113
47
Murphy, 1993, p. 112.
48
Quine, 1980, p. 231.
49
Murphy, 1993, p. 110-111.
50
Murphy, 1993, p. 122.
114 Heraldo Aparecido Silva
51
Rorty, 1991b, p. 266.
52
Davidson, 2001, p. 183-198; Murphy, 1993, p. 131-132.
53
Murphy, 1993, p. 133.
54
Murphy, 1993, p. 134-135.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 115
55
Na terminologia lógica, essas teorias podem ser formuladas, tal como segue: Teoria
da Correspondência: x é verdadeiro sse [se e somente se] x corresponde a um fato;
Teoria da Coerência: x é verdadeiro sse [se e somente se] x é um membro de um
conjunto de crenças coerente; Teoria Pragmatista: x é verdadeiro sse [se e somente
se] x é útil de se acreditar; Teoria Verificacionista: x é verdadeiro sse [se e somente se]
x é provável, ou verificável em condições ideais.
56
A definição para esta “revolução filosófica” ocorre em uma obra anterior de Rorty, a
saber, The Linguistic Turn: Recent Essays on Philosophical Method, publicada
originalmente em 1967: “Entenderei por filosofia lingüística o ponto de vista
segundo o qual os problemas filosóficos podem ser resolvidos (ou dissolvidos)
reformando a linguagem ou compreendendo melhor a que usamos no presente”
(Rorty, 1997, p. 3).
116 Heraldo Aparecido Silva
57
No que se refere às teorias semânticas ou deflacionistas – numa acepção genérica,
teorias que alijam a verdade de um sentido metafísico e substantivo para, em
contrapartida, imbuir na mesma um sentido transitório e predicativo –,
restringiremos a menção aos três diferentes usos do termo verdadeiro (ou verdade),
dados por Rorty a partir de sua leitura de Quine e Davidson: o uso endossador, o uso
acautelador e o uso descitacional (Cf. Rorty, 1991a, p. 128).
58
Na obra Truth and Progress (1998) Rorty polemiza contra os filósofos John Searle,
Hilary Putnam e Charles Taylor. O filósofo Jürgen Habermas, por sua vez, no texto
Coping with contingencies – the return of historicism (1996) critica a provisória lista
tríplice de Rorty para os usos do termo verdadeiro.
59
Uma descrição alternativa do pragmatismo rortyano, na qual esta tríade
caracterizante aparece no texto “We Pragmatists ...”: Peirce and Rorty in Conversation,
de Susan Haack. Nele, há um significativo e exaltado diálogo imaginário entre o
pragmaticista Peirce e o neopragmatista Rorty, construído a partir de fragmentos
textuais de ambos. Assim como em outras ocasiões, Haack contrapõe o
pragmaticismo peirciano ao “pragmatismo vulgar” rortyano, a fim de evidenciar,
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 117
62
Rorty adverte que mesmo se a distinção realidade/aparência fosse substituída por
encontrar/fabricar, não evitaríamos a questão: “teremos nós descoberto ou inventado
o surpreendente fato que aquilo que se pensava ser objetivo é, na verdade,
subjetivo?”. Se dissermos que descobrimos/encontramos “o fato objetivo de que a
verdade é subjetiva”, caímos em contradição; se dissermos que
inventamos/fabricamos tal verdade, não haveria porquê acreditarem em nós. Assim,
se os pragmatistas tivessem que optar, diriam que muitas verdades científicas e
morais são fabricadas e podem ser desfeitas e refeitas. Porém, este dualismo também
é incômodo, já que os pragmatistas também não podem formular suas posições “em
termos de uma distinção entre o que está fora e o que está dentro de nós” (Rorty,
1996, p. 33).
63
Rorty, 1996, p. 34.
64
Rorty, 1996, p. 34.
65
Rorty, 1996, p. 37-38.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 119
66
Cf. Rorty, 1996, p. 40.
120 Heraldo Aparecido Silva
ética, uma vez que não existe nenhum “limite nítido que separe o
injusto do imprudente, o mau do ineficiente”. Para Rorty, aquilo que
os opositores do pragmatismo chamam de “firmes princípios morais”
são compreendidos como “abreviações de práticas passadas”67 , um
modo de resumir os hábitos mais admirados em nossos ancestrais.
Assim, os princípios morais são considerados também hábitos
de ação, os quais vêm sendo reproduzidos durante anos, propiciando
práticas virtuosas e igualitárias, mas que, não obstante, se confundem
com outras práticas violentas e discriminatórias, igualmente provocadas
pelos referidos princípios morais e que constituem a razão do tormento
e sofrimento de inúmeras pessoas vitimadas por vinganças, preconceitos
e outros tipos de perseguições. Do mesmo modo, apelar para algum
princípio legitimador universal, subjacente a toda ação humana,
constitui um recurso disponível para qualquer uma das partes
envolvidas. Se para defender uma ação controversa fosse necessário
justificá-la a partir de um “princípio racional universal”, seria possível
imaginar e criar um que se adequasse à situação. No entanto, seria
preferível enumerar e circunscrever as justificativas ao contexto de
forma a convencer os seus interlocutores que o ato praticado era “a
melhor coisa a fazer no momento” 68 , visto que não há como mensurar
ou demonstrar o maior ou menor grau de racionalidade de qualquer
defesa. Afinal, os “dilemas morais”, como genocídios, crimes de guerra,
controle populacional, fome, racionamento de água e de assistência
médica não podem esperar a formulação de princípios morais
universais para serem resolvidos. Tais problemas requerem medidas
imediatas, ainda que sujeitas a modificações e reformas 69 .
Para Rorty é um erro acreditar que a humanidade compartilha,
de forma imanente em cada um de seus membros, uma “aspiração”
comum – seja ela denominada “razão”, “natureza humana” ou qualquer
outro termo que sugira essencialismo ou determinismo. Deste modo, se
as ações humanas atuais provocarem mudanças catastróficas no mundo
67
Rorty, 1996, p. 44.
68
Rorty, 1996, p. 45.
69
É nesse sentido que, no texto Solidarity or objectivity?, Rorty descreve o
pragmatismo antes como uma filosofia da solidariedade do que uma filosofia do
desespero (Rorty, 1991a, p.33).
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 121
70
Rorty, 1996, p. 47.
71
Bernstein realiza, paralelamente à elaboração de uma narrativa argumentativa do
ethos pragmático, uma leitura crítica da filosofia americana e, particularmente, do
neopragmatismo – este representado, na maioria das vezes, por Rorty e Hilary
Putnam. Embora os dois textos bernsteinianos sejam, sob muitos aspectos, bastante
similares, a crítica ocorre predominantemente no primeiro texto (Pragmatism,
Pluralism and Healing of Wounds), enquanto que a metanarrativa se desenvolve mais
no segundo (American Pragmatism: The Conflict of Narratives). Assim, considerei
mais apropriado apresentá-los seqüencialmente, para evidenciar a variação da ênfase
que recai nos temas pragmáticos, nos representantes mais expressivos do
movimento, no momento histórico inicial da formulação da tradição e, ainda, na
recepção, interpretação e difusão de determinadas idéias filosóficas.
72
Menand, 1997, p. 382-401.
73
Saatkamp, 1995. p. 54-67.
122 Heraldo Aparecido Silva
74
Bernstein, 1997, p. 382-383; 1995, p. 54.
75
Bernstein, 1997, p. 382-383.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 123
76
Bernstein, 1997, p. 384.
77
A expressão ethos pragmático, no contexto em que Bernstein a emprega, designa os
temas, pressupostos e compromissos compartilhados – em maior ou menor grau,
inclusive com ênfases diferenciadas e procedimentos divergentes – pelo pragmatismo
americano.
78
Bernstein, 1997, p. 385-389.
79
Bernstein, 1997, p. 385.
124 Heraldo Aparecido Silva
80
Bernstein, 1997, p. 387.
81
Bernstein, 1997, p. 388.
82
Sobre esse tema, Rorty recorda que os filósofos analíticos, que viam a si próprios
como “filósofos profissionais”, classificavam os filósofos que faziam história da
filosofia como, meramente, “mercadores de opinião” (Rorty, 2006, p. 60).
83
Bernstein, 1997, p. 393.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 125
84
Bernstein, 1997, p. 393-394.
85
Ver também Prado Jr., 2003, p. 17; 23-24.
86
Bernstein, 1997, p. 395-396.
126 Heraldo Aparecido Silva
uma vontade genuína de escutar e aprender com outros, mas antes uma
“arma ideológica” para avançar a sua própria orientação sobre as
demais; o pluralismo defensivo (“defensive pluralism”), situação na qual
dialoga-se com outros, mas com uma predisposição para a idéia de que
não há nada de importante para ser apreendido deles. Para diferenciar o
pluralismo componente do ethos pragmático dos demais tipos de
pluralismos, Bernstein denomina o representante da tradição
pragmatista de pluralismo falibilista engajado (“engajed fallibilistic
pluralism”), algo que na sua concepção, “põe novas responsabilidades
em cada um de nós” 87 .
O pluralismo falibilista engajado, característico da tradição
pragmática, age como um dos fatores de cura para as feridas ideológicas
e filosóficas. A partir da balsâmica posição pluralista, a torpe divisão
entre filosofia nativa e filosofia estrangeira torna-se insustentável. Nesta
condição, uma boa conseqüência extraída do relativo predomínio
analítico exercido no cenário filosófico americano de outrora está no
fato do mesmo ter “encorajado o estilo adversário ou confronte de
argumentação”. Assim, temos a idéia de que a formação de uma
tradição é “uma realização frágil e temporária que sempre pode ser
rompida por contingências inesperadas” 88 . Logo, na história do
pragmatismo, o que existe desde sempre é uma tradição na qual a
conversação, necessária para a realização do “nós” (da tradição), não
exclui atitudes conflitantes e discordantes. Em suma, Bernstein exige
que os filósofos reajam ao pluralismo com “respostas e
responsabilidades” 89 , tanto para os seus colegas de profissão quanto
para a sociedade; algo que, na ausência de um paliativo mais eficaz,
parece ser o principal fator de cura das feridas filosóficas.
Em American Pragmatism: The Conflict of Narratives, Bernstein
retoma a temática do pluralismo na tradição do pragmatismo.
Entretanto, neste texto, a ênfase fica na questão da narrativa. Segundo
ele, quando nos referimos ao “nós” de uma tradição, esta idéia é
inevitavelmente acompanhada pela questão de como especificar a
significação de “nós” – já que, no pragmatismo, o “nós” refere-se a um
87
Bernstein, 1997, p. 397.
88
Bernstein, 1997, p. 398.
89
Bernstein, 1997, p. 401.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 127
90
Bernstein, 1995, p. 55.
128 Heraldo Aparecido Silva
91
Bernstein, 1995, p. 57-59.
92
Bernstein, 1995, p. 61.
93
Bernstein, 1995, p. 61.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 129
Mas quero chegar ao que muitos outros podem considerar a parte mais
controversa de minha metanarrativa. Pois quero criticar o que ainda é
amplamente acreditado sobre a emergência e o declínio do pragmatismo.
Para ser deliberadamente provocativo, chamarei isto de história ‘nostálgica’ e
‘sentimental’ do pragmatismo. Ela é algo semelhante a isto: Outrora havia
uma idade de ouro da filosofia americana e do pragmatismo americano. Este
foi o tempo de gigantes intelectuais tais como Peirce, James, Royce,
Santayana, Dewey e Mead. A despeito de suas diferenças – e mesmo de seus
agudos antagonismos – eles todos compartilhavam um campo enorme de
interesses e audácia especulativa. Porém, houve um significativo declínio no
impulso criativo da filosofia americana e no pragmatismo americano. A
América foi invadida por influências estrangeiras – positivismo, empirismo
lógico, análise da linguagem ordinária, que eventualmente ficaram
coaguladas no convencimento ideológico do establishment analítico. No fim
da Segunda Guerra Mundial, os departamentos de filosofia – com poucas
exceções – foram transformados de modo que os assim chamados filósofos
americanos clássicos foram marginalizados. Aqueles que ainda levavam os
pensadores pragmatistas a sério encontraram-se na defensiva. [...] Assim,
mesmo quando filósofos que foram formados pelo ethos analítico usam o
termo pragmatismo favoravelmente, eles o esvaziam – certamente, o estripam
– do significado rico que ele tinha (Bernstein, 1995, p. 61-62).
94
Bernstein, 1995, p. 62.
130 Heraldo Aparecido Silva
Considerações finais
A posição sustentada por Bernstein em relação ao pragmatismo não
encerra as polêmicas em torno das leituras controversas, das posturas
idiossincráticas e das aproximações intrigantes entre autores e áreas que,
através dos tempos, tematizam o pragmatismo e seus representantes.
Nessa perspectiva, os termos pragmatismo e neopragmatismo foram
usados para situar historicamente a tradição filosófica norte-americana
e para diferenciar o pragmatismo clássico da reconfiguração traçada por
95
Rorty, 1995, p. 68-69.
Pragmatismo, narrativas conflitantes e pluralismo 131
Richard Rorty. Ainda que ele use ambos os termos, a primeira forma é
a mais recorrente em seus escritos, pois ele prefere acentuar os pontos
de convergência e minimizar os pontos de divergência entre os
pragmatistas originais e os contemporâneos, reforçando textualmente a
defesa de sua posição com a expressão “nós, pragmatistas...”.
Assim, embora a relutância de Rorty em se defrontar com a
tradição pareça encerrar tacitamente uma solução simplista que
consistiria em considerar as diferenças teóricas no pragmatismo apenas
como uma questão de mudança de época (a transição do século XIX
para o XX) e de objeto de estudo (a noção de experiência nos
pragmatistas clássicos para a noção de linguagem nos contemporâneos),
tal revisão do pragmatismo também pode ser lida, na transição do
século XX para o XXI, à luz de sua tentativa de redefinir a atividade
filosófica 96 . Portanto, essa reconfiguração histórica ou redescrição do
pragmatismo também pode ser vista como parte de um projeto maior
que envolve a redescrição da própria Filosofia.
No entanto, visto que estamos longe de encerrar a polêmica
entre pragmatistas e neopragmatistas acerca dos usos e abusos
cometidos na tradição, faz-se necessário recorrer à perspectiva
bernsteiniana, que não se arroga definitiva, mas é eficaz na tarefa de
auxiliar a compreender a abrangente filosofia pragmatista, acentuando-
lhe o aspecto pluralista e atribuindo-lhe um compromisso comum: a
manutenção e expansão do diálogo, ainda que seja através de vozes
dissonantes, mas igualmente responsáveis pela continuidade da
tradição.
Referências
BERNSTEIN, R. American Pragmatism: The Conflict of Narratives.
In: SAATKAMP Jr., H. J. (ed.). Rorty & Pragmatism: The Philosopher
Responds to his Critics. Nashville/London: Vanderbilt University
Press, 1995. p. 54-67.
_______. Pragmatism, Pluralism, and the Healing of Wounds. In:
MENAND, L. (ed.). Pragmatism. New York: Vintage, 1997. p. 382-
401.
96
Cf. Silva, 2008.
132 Heraldo Aparecido Silva
Celi Hirata *
Resumo: Leibniz afirma que toda mônada expressa o universo inteiro de uma
determinada perspectiva. A partir daí, todas os seres criados harmonizam-se entre si,
já que todos representam o mesmo mundo, ao mesmo tempo em que cada um se
individualiza por meio de seu ponto de vista próprio que • afirma o autor em alguns
textos-chave • é determinado pelo lugar que o seu corpo correspondente ocupa.
Entretanto, se a limitação dos graus de distinção das representações se dá meramente
por uma analogia com o espaço e o tempo, como explicar a capacidade dos espíritos
de atingir as verdades necessárias e eternas e de constituir uma ciência? A fim de
elucidar esta sobrelevação e destacamento dos espíritos em relação aos demais seres
criados, introduziremos a atividade da apercepção e sua diferença em relação à
percepção, atividade comum a todas as mônadas.
Palavras-chave: Apercepção, Espíritos, Expressão, Percepção, Perspectiva
Abstract: Leibniz states that every monad expresses the hole universe from a
determined perspective. Therefore, all created beeings harmonize with each other,
once that all of them represent the same world, as well each one individuates itself by
means of its own point of view, which is determined by the place that its
correspondent body occupies. However, if the capacity of representation is merely
limited by space and time, how could one explain the capacity of spirits to grasp
necessary and eternal truths and to establish science? In order to make this point clear
I will introduce the aperception activity and distinguish it from the perception, that is
common to all monads.
Keywords: Aperception, Espirits, Expression, Perception, Perspective
*
Doutoranda pela USP. E-mail: celi_hirata@yahoo.com.br. Artigo recebido em
31.10.2008, aprovado em 18.12.2008.
1
Monadologia, § 1, p. 131, in Discurso de metafísica e outros textos.
2
Monadologia, § 7, p. 132.
3
Carta de Leibniz a Arnauld, in Die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm
Leibniz (doravante referido pela sigla GP, seguido do volume e do número da
página), volume II, p. 97.
4
Monadologia, §17, p. 134.
Celi Hirata 137
5
Idem, § 14 e 15, p. 133.
6
Idem, §8, p. 132.
7
“De Ipsa Natura”, § 9, in Escritos Filosoficos, p. 491.
8
Monadologia, §22, p. 135.
138 Apercepção versus percepção...
9
Disto tratarei depois.
10
Carta de Leibniz à princesa Sofia, in GP VII, p. 556.
11
Monadologia, §9, p. 132.
Celi Hirata 139
12
Princípios da Natureza e da Graça, §3, in Discurso de Metafísica e outros textos, p.
154 (itálicos meus).
140 Apercepção versus percepção...
afirmado que apenas um ser uno e indivisível pode ser real e portar
determinações, entretanto, não se compreende ainda isto: como sucede
às mônadas, seres simples ou, como Leibniz também as denomina,
pontos metafísicos, espelhar o mundo inteiro, sendo que a cada estado
interno dela corresponde os estados das demais partes do universo,
universo que é, por sua vez, infinito? E ainda: como é que a perspectiva
de cada substância criada é determinada? É a estas questões que o nosso
autor pretende responder no seguinte trecho da Monadologia:
13
Monadologia, § 61 e 62, p. 142 e 143, itálico meu.
Celi Hirata 141
se lhe impõem, para explicar tanto por que as mônadas percebem tudo
o que lhe é exterior como a razão pela qual elas representam de um
modo determinado, que é, notadamente, com maior distinção ao que
está próximo ao corpo que lhe pertence de maneira particular, sendo
que ela expressa tanto mais confusamente quanto maior é a distância
do que está representado. Assim, supondo-se, além dos princípios
mecânicos acima mencionados, que toda substância criada exprime
particularmente o corpo do qual é enteléquia e que o universo é pleno
de corpos, explica-se a propriedade da mônada de envolver em si
mesma, através de suas representações ou percepções, o infinito,
considerado tanto espacialmente, com relação às distâncias, quanto
temporalmente, já que no mundo tudo é inteiramente ligado, sendo o
presente carregado do passado e prenhe do futuro. Daí poder a mônada
ser pensada “como um centro expressivo ou ponto no qual, por mais
simples que seja, existem uma infinidade de ângulos formados pelas
linhas que para ele convergem”. 14
Mas não se pode esquecer que Leibniz, contrariamente a
empiristas como Locke, é um inatista que recusa a influência nas
mônadas do que provém do exterior. Com efeito, o nosso autor afirma
no já citado sétimo parágrafo da Monadologia, que as mônadas não
possuem janelas: qualquer tipo de influência ou comunicação que haja
entre elas só pode ser ideal e de modo algum real 15 . Assim, quando se lê
com mais cuidado o trecho supracitado, vê-se que o autor emprega o
termo “simbolizam” para caracterizar a relação entre os compostos e os
simples, o que quer dizer, que os corpos e o efeito que a propagação do
movimento neles causa expressam o que se dá nas substâncias criadas.
Com isso, pois, o autor não quer defender que o que ocorre naqueles
seja a causa ou o fundamento do que se dá nestas. Dito de outra forma,
trata-se de uma analogia que visa pôr em relevo que a maneira como
cada corpo é afetado pelos demais corresponde ao modo como cada
alma representa o mundo inteiro de uma perspectiva, perspectiva que
expressa o lugar onde o corpo está situado. Ainda que, no rigor
metafísico, as substâncias sejam perfeitamente espontâneas, consistindo
14
Princípios da Natureza e da Graça, § 2, p. 154.
15
Monadologia, § 51, p. 140.
142 Apercepção versus percepção...
16
Carta de Leibniz a Arnauld de 09 de outubro de 1687,in GP II, p 112.
Celi Hirata 143
E por isto as ações e paixões entre as criaturas são mútuas. Pois Deus, ao
comparar duas substâncias simples, encontra em cada uma delas razões que o
obrigam a acomodá-la a outra; e, por conseguinte, o que é ativo em certos
aspectos é passivo de outro ponto de vista (...) Ora, esta ligação ou
acomodação de todas as coisas criadas a cada uma e de cada uma a todas as
outras faz com que cada substância simples tenha relações que expressem
17
“Novo sistema da natureza e da comunicação das substâncias, assim como da união
que há entre a alma e o corpo”, in Escritos Filosoficos, p. 468.
18
Monadologia, § 43, p. 138 e 139.
144 Apercepção versus percepção...
19
Monadologia, §52 e 56, p. 140 e 141.
20
Discurso de Metafísica, §2, in Discurso de Metafísica e outros textos, p. 4.
21
In GP VII, p.270.
Celi Hirata 145
22
Discurso de Metafísica, §9, p. 18.
23
Carta de Leibniz à rainha Sofia – Carlota de 08 de maio de 1704, in GP III, p. 348.
24
Monadologia, §30, p. 136.
146 Apercepção versus percepção...
25
“Sobre o modo de distinguir os fenômenos reais dos imaginários”, in Escritos
Filosoficos, P. 269.
26
Discurso de Metafísica, § 14, p. 29 (itálicos meus).
27
Apêndice à carta de 05 de fevereiro de 1712, in GP II, p. 438.
Celi Hirata 147
28
Por exemplo, Monadologia, § 57, Discurso de Metafísica, § 9, carta de Leibniz a
Remond de julho de 1714.
29
Princípios da Natureza e da Graça, § 13, p. 161.
30
Monadologia, § 57, p. 141.
31
Discurso de Metafísica, § 14, p. 30. É isto mesmo que caracteriza a expressão: uma
relação constante regrada entre o que se pode dizer de um dos termos da relação e o
que se pode dizer do outro, relação que não implica identidade, mas analogia.
148 Apercepção versus percepção...
32
Descartes, Meditações, terceira meditação, § 9.
33
Idem, quarta meditação, § 10.
34
Novos Ensaios, Livro IV, cap XX, § 7, in Leibniz (II), Coleção Os Pensadores.
35
Idem, Livro II, cap XI, § 2.
Celi Hirata 149
36
De fato, todos os seres criados, sem exceção, incluindo-se aí os anjos e os gênios,
possuem um corpo. A diferença é que os anjos possuem um corpo mais sutil do que
o nosso (Teodicéia, § 249, in GP VI, p. 265).
37
Monadologia, § 60, p. 142 (itálicos meus).
38
“A ação do princípio interno que faz a mudança ou a passagem de uma percepção a
outra pode ser chamada Apetição; é verdade que o apetite nem sempre pode alcançar
inteiramente toda a percepção a que tende, mas sempre obtém algo dela e chega a
percepções novas” (Monadologia, § 15, p. 133). Apesar de poder parecer que o
descompasso aqui em questão é aquele mesmo apontado por Descartes, a saber,
entre vontade e entendimento (apetite e representação), trata-se, na realidade, da
Celi Hirata 151
41
Princípios da Natureza e da Graça, § 4, p. 155.
42
“A expressão é comum a todas as formas, e é um gênero do qual a percepção
natural, o sentimento animal e o conhecimento intelectual são espécies” (Carta de
Leibniz a Arnauld de 09 de outubro de 1687, GP II, p. 112).
43
Monadologia, § 26, p. 135.
154 Apercepção versus percepção...
44
Carta de Leibniz à princesa Sofia, in GP VI, p. 521.
Celi Hirata 155
45
Carta de Leibniz a Des Billettes de dezembro de 1696, in GP VII, p. 452.
156 Apercepção versus percepção...
46
Carta de Leibniz à rainha Sofia Carlota, in GP VI, p. 521.
47
Ética a Nicômaco, in Aristóteles, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril,
1973, livro I, capítulo 13.
48
Princípios da Natureza e da Graça, § 5.
49
Monadologia, § 28. Leibniz não despreza a maneira empírica dos homens de agir,
pois uma vez que nem sempre as razões nos são conhecidas, muitas vezes agimos
bem ao seguir os exemplos, a autoridade e os costumes no lugar de querer sempre
examinar as razões. Mas freqüentemente, esta maneira de pensar pode nos levar a
associações errôneas. (Novos Ensaios, II, 33, §1).
Celi Hirata 157
para não dizer quase à parte, no universo criado: os seres racionais, com
efeito, foram ordenados na criação de preferência às demais coisas e
constituem, assim, o gênero supremo, ou, ainda, as almas de primeira
ordem no mundo 50 e, à diferença dos demais, são elevados de simples
almas sensitivas a este estado por eleição divina no momento de sua
concepção 51 , enquanto as demais criaturas desenvolvem-se de maneira
natural a partir de suas preformações. Os espíritos finitos distinguem-se
com respeito aos demais seres criados pela sua elevação tanto moral
quanto cognitiva ou, dito com mais exatidão, relativamente ao grau de
distinção presente na sua atividade expressiva – pois, justamente, o
conhecimento só a eles cabe – o que marca quase um salto deste gênero
de ser em comparação com o resto da escala, pois, em seu
departamento, isto é, em sua situação no cosmo, os seres racionais são
como pequenas divindades. 52
No que diz respeito à moral, estes seres possuem uma série de
privilégios e é notável que o nosso autor coroe tanto o Discurso de
Metafísica, quanto a Monadologia, bem como os Princípios da Natureza
e da Graça com as considerações acerca da Cidade de Deus, que
consiste na comunhão de todos os espíritos e constitui o reino moral no
reino natural 53 . Por esta relevância e mesmo sobrelevação nos espíritos
50
“Diálogo entre um político sagaz e um sacerdote de reconhecida piedade”, in
Escritos Filosoficos, p. 240.
51
Monadologia, § 82.
52
Idem, § 83.
53
Relativamente à Cidade de Deus apresentada por Leibniz no último parágrafo do
Discurso de Metafísica, Georges Le Roy comenta a diferença que há entre esta e
aquela teorizada por Santo Agostinho, de quem afinal a doutrina da Cidade de Deus
provém: “Para Santo Agostinho, há duas cidades heterogêneas, a Cidade da terra e a
Cidade de Deus; a primeira, fundada no amor de si, que pode ir até o desprezo de
Deus, é simbolizada por Babilônia e obedece apenas a Satã; a segunda, fundada no
amor de Deus, que pode ir até o desprezo de si, é simbolizada por Jerusalém e
obedece apenas Cristo. Em realidade, uma e outra existem atualmente juntas, a
despeito de sua oposição; mas, por natureza, elas permanecem antitéticas e serão um
dia separadas: só se pode passar de uma a outra por uma conversão total. Para
Leibniz, ao contrário, há apenas uma e única Cidade, aquela que os espíritos
formam em união com Deus; esta Cidade corresponde ao desdobramento regular de
um mundo moral no seio do mundo físico, um acrescentando-se ao outro, sem o
destruir, pela elevação de seus elementos mais puros; ela se desdobra desde então
158 Apercepção versus percepção...
55
Monadologia, § 4, 5 e 6.
56
Discurso de Metafísica, § 34.
57
GP VII, p. 109.
58
Com efeito, se a apetição e a percepção estão nas mônadas correlacionadas, a
volição está diretamente ligada com a apercepção nos espíritos: “a volição constitui o
esforço ou a tendência (conatus) para aquilo que consideramos bom e contra o que
se acredita mau, de modo que esta tendência resulta imediatamente da apercepção
que temos” (Novos Ensaios, II, XXI, § 5, p. 124).
59
Discurso de Metafísica, § 34.
160 Apercepção versus percepção...
reflexivo, não pode ser simplesmente tratado como uma percepção mais
distinta que o ser simples possui dos compostos que lhe são exteriores,
mas envolve algo diferente disto: a apercepção.
Com efeito, Leibniz ressalta mais de uma vez a diferença entre a
percepção e a apercepção. Esta distinção é de grande importância, pois
o autor a utiliza para argumentar contra Descartes tanto em relação à
liberdade de indiferença 60 como à concepção de que não há alma nos
seres irracionais 61 . Além deste filósofo, Leibniz também visa com esta
distinção contrapor-se à crença de Locke segundo a qual nem sempre
temos pensamentos ou percepções, mas a mera faculdade de pensar ou
perceber vazia de determinações atuais, já que nem sempre possuímos
consciência de nosso estado 62 . Por esta razão, a explicitação da diferença
entre percepção e apercepção toma especialmente corpo nos Novos
Ensaios. Para Leibniz, se aquela é, com efeito, uma atividade que é
comum a todas as criaturas e se define pela capacidade de representar a
60
Teodicéia, § 50, in GP VI, p. 130. Leibniz argumenta, com efeito, que há
percepções que determinam os nossos atos sem que nós nos apercebamos, isto é, sem
que tenhamos consciência delas, de modo que se produza uma ilusão de que nós nos
decidimos sem motivos que nos inclinem.
61
Monadologia, § 14.
62
Com efeito, logo no Prefácio dos Novos Ensaios, Leibniz indica que uma das
primeiras teses de Locke a ser combatida é a de que o espírito nem sempre pensa e
percebe (quando dorme sem algum sonho, por exemplo). A isto, o filósofo de
Hannover objeta que assim como não há jamais um corpo desprovido de
movimento, não existe substância sem ação. “De resto, existe uma série de indícios
que nos autorizam a crer que existe a todo momento uma infinidade de percepções
em nós, porém sem apercepção e sem reflexão: mudanças na própria alma, das quais
não nos apercebemos, pelo fato de as impressões serem ou muito insignificantes e
em número muito elevado, ou muito unidas, de sorte que não apresentam nada de
suficientemente distinto; porém, associadas a outras, não deixam de produzir o seu
efeito e de fazer-se sentir ao menos confusamente” (Prefácio, p. 11 e 12). De fato, a
distinção entre percepção e apercepção será importante para desvincular a identidade
da consciência atual: contra a afirmação de Filaleto-Locke de que “é também só
nisso que consiste a identidade pessoal, ou seja, o que faz com que um ser racional
seja sempre o mesmo; quão longe esta consciência pode estender-se sobre as ações ou
sobre os pensamentos já passados, tão longe vai a identidade desta pessoa e o eu é
agora o mesmo que era antes” (idem, II, XXVII, § 9, p. 176 e 177), Leibniz
comenta: “parece que o nosso autor pretende que não haja nada de virtual em nós ,
e mesmo nada que nós não nos apercebemos sempre atualmente” (Prefácio, p. 37).
Celi Hirata 161
multiplicidade das coisas a elas externas, esta consiste, por sua vez, na
consciência ou estado reflexivo daquela e pertence exclusivamente aos
espíritos e, mesmo nestes, não se dá continuamente, à diferença da
percepção, que se dá ininterruptamente 63 . Ou seja, a apercepção é uma
ação de caráter pontual que se exerce sobre o pensamento ou a
percepção 64 (que, vale salientar, tem de ser distinta para que essa ação
ocorra 65 ), de modo que é uma espécie de percepção da percepção, pela
qual o espírito toma consciência de seu estado interior. Trata-se da
intensificação da atividade expressiva na substância simples que a torna
capaz de possuir representações mais distintas e de alcançar, portanto,
este outro patamar de representação que consiste na reflexão ou
conhecimento de si, por meio da qual se atingem as primeiras
proposições e, por conseguinte, os demais conhecimentos:
63
PNG, § 4, carta de Leibniz a Thomas Burnett, in GP III, p. 156.
64
Leibniz utiliza muitas vezes o termo “pensamento” e o termo “percepção” como
sinônimos, afirmando, no contexto dos Novos Ensaios, ora que possuímos uma
infinidade percepções sem qualquer apercepção, ora que pensamos sempre, ainda
que nem sempre acompanhado de reflexão. A Burnett (GP III, p.261), Leibniz
define o pensamento como uma espécie de percepção, a saber, como um
determinado grau de percepção. Assim, do mesmo modo que toda mônada percebe
ininterruptamente, os espíritos sempre pensam, ainda que nem sempre se apercebam
do que está na mente.
65
Carta de Leibniz a Thomas Burnett, in GP III, p. 307.
66
Novos Ensaios, IV, IX, § 2, p. 352. Na Monadologia, porém, Leibniz afirma que é
pelo conhecimento das verdades necessárias e eternas que nos elevamos ao
conhecimento de nós mesmos e à ciência.
162 Apercepção versus percepção...
67
Discurso de Metafísica, § 26.
68
Se para Leibniz, a reflexão ou apercepção de si é a operação pela qual os espíritos se
elevam às primeiras verdades e daí, com a aquisição dos primeiros princípios,
tornam-se capazes de conhecer em geral, para Descartes, esta apercepção de si
mesmo possui o caráter de primeira verdade na cadeia das razões a partir da qual será
constituído o verdadeiro conhecimento. Entretanto, o filósofo de Hannover
argumenta na “Advertência à parte geral dos princípios de Descartes” , bem como
nos Novos Ensaios, que o “eu penso” não pode ser considerada a primeira verdade
absoluta na cadeia de razões, mas é, ao lado das primeiras verdades de razão, verdade
de fato primeira junto com a proposição de que diversas coisas são pensadas por
mim (GP IV, p. 357; Novos Ensaios, IV, II, §1).
69
Carta de Leibniz à rainha Sofia-Carlota de 08 de maio de 1704, in GP III, p. 344.
Celi Hirata 163
que nos fazem pensar no que se chama Eu e considerar que isto ou aquilo
está em nós; e é assim que, ao pensar em nós, pensamos no ser, na
substância, no simples ou no composto, no imaterial e no próprio Deus,
quando concebemos que o que em nós é limitado, nele é sem limites. E esses
atos reflexivos fornecem os objetos principais de nossos raciocínios. 70
70
Monadologia, § 30, p. 136.
71
Novos Ensaios, II, II, § 1.
164 Apercepção versus percepção...
72
Discurso de Metafísica, § 35; Anexo da carta de Leibniz a Remond de julho de
1714, in GP III, p. 624.
73
Carta de Leibniz a des Billetes de 14 de dezembro de 1696, in GP VII, p. 452.
Celi Hirata 165
uma relação de idéias como pela reflexão que fazem sobre sua
experiência, exprimindo-o, portanto, de modo direto, à diferença das
demais criaturas, que o realizam de modo indireto, por assim dizer.
Deste modo, “a diferença entre as substâncias inteligentes e as
que não o são é tão grande como a que há entre o espelho e aquele que
vê”. 74 Isto é, os espíritos e as demais criaturas discernem-se
essencialmente nisto: enquanto estas exprimem, ainda que
espontaneamente, de forma passiva, isto é, sem distinção e inteligência,
aqueles sabem o que são e o que fazem, sendo capazes de expressar a
realidade com conhecimento. Trata-se, na verdade, da diferença que há
entre a percepção e a apercepção, pois esta não é somente, como a
primeira, a representação do composto no simples, mas envolve, além
disso, consciência desta representação mesma. Isto é, o ser racional não
é só como o espelho, mas possui atividade intelectual e lança um olhar
apontado para este espelho, o que se denomina reflexão, que é refletir o
refletido, produzindo algo inteiramente diferente, que não aumenta a
extensão do que é representado, já que toda mônada expressa o
universo inteiro, o infinito, mas a intensidade aí presente, acrescendo no
grau de distinção envolvido nas suas representações 75 . De maneira
anacrônica, pode-se dizer que a apercepção em relação à percepção,
sendo a diferença entre o espelho e aquele que vê, envolve uma certa
intencionalidade, pois consiste justamente na atenção dirigida à
percepção, para aí poder reconhecer elementos inteligíveis que
permitam a constituição de um conhecimento referente a ela própria e
ao que está fora dela. Trata-se de um ato de inteligência que, dirigindo-
se às suas próprias representações, visa ter uma compreensão da
realidade e torna os espíritos capazes de constituir uma ciência. Ora, a
partir desta centralidade da apercepção na consideração do
conhecimento e dos espíritos no interior da cosmologia leibniziana, este
conceito investiu-se de grande importância e fez história na filosofia
que se seguiu nos séculos posteriores.
74
Discurso de Metafísica, § 35, p. 174 e 175.
75
Assim, no opúsculo “A profissão de fé do filósofo”, Leibniz afirma que o
conhecimento exato pode crescer não por uma novidade na matéria, mas na reflexão
(Escritos Filosoficos, p. 131). Isto é, o conhecimento, através da reflexão aumenta não
em extensão, mas em intensidade.
166 Apercepção versus percepção...
Referências
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Pensadores. Tradução: Leonel Vallandro. São Paulo: Editora Abril,
1987.
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Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Editora Abril, 1973.
LEIBNIZ, G. W. Die Philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm
Leibniz. Edição: C. I. Gerhardt. Berlim: Georg Olms
Hildesheim,1960.
_______ Discours de Métaphysique et Correspondance avec Arnauld.
Comentários: Georges Le Roy. Paris: Vrin, 1993.
_______ Discurso de metafísica e outros textos. Tradução: Marilena
Chaui e Alexandre da Cruz Bonilha. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_______ Escritos Filosoficos. Edição: Ezequiel de Olaso. Tradução:
Roberto Torretti, Tomás E. Zwanck e Ezequiel de Olaso. Buenos
Aires: Editorial Charcas, 1982.
_______ Leibniz (II). Coleção Os Pensadores, volume XIX. Tradução:
Luiz João Baraúna. São Paulo: Editora Abril,1980.
Eckhart’s Bilder
Luís M. Augusto * 1
Abstract: Eckhart’s doctrine of the bilder is highly original not so much for
containing new elements as for the conciliation it achieved among sources at first
sight incompatible; these sources can be reduced to three main ones: Plato, Aristotle,
and Christian thought. In this paper, I show that Eckhart’s doctrine of the bilder is
simultaneously a) an Aristotelian epistemic recreation of Plato’s doctrine of ideas, and
b) a Christian ontological recreation of Aristotle’s doctrine of cognition. As such, it is
a technical manipulation of these sources, rather than a mystical doctrine.
Keywords: Abegescheidenheit, Bilder, Intellect, Platonic Ideas, Universals
*
Pós-doutorando (FCT) no Instituto de Filosofia da Universidade do Porto,
Portugal. E-mail: laugusto@letras.up.pt. Artigo recebido em 13.10.2008 e aprovado
em 05.12.2008.
1
Most of the research conducing to this paper was carried out at the Université Paris
IV – Sorbonne and was funded by a doctoral fellowship granted by FCT. My
thanks to both.
2
Eckhart of Hochheim (c. 1260 – c. 1328), also known as Meister Eckhart.
3
Cf. É. Gilson, La philosophie de saint Bonaventure, Paris, Vrin, 1924, p. 377.
4
Liber de praedicamentis II, ed. Borgnet, Opera Omnia I, Paris, L. Vivès, 1890, p.
193.
170 Luís M. Augusto
5
Summa theologiae I, q. 16, a. 1 co.
6
Cf. Les six jours de la création, IV, 9, trans. M. Ozilou, Paris, Desclée-Cerf, 1991, p.
176-7.
7
Thomas Aquinas, Summa theol., ibid.: “Just as the good denominates that towards
which the appetite tends, so does the true denominate that towards which the
intellect tends. However, there is this difference between the appetite and the
intellect, or any form of cognition, that cognition is according to what the thing
known is in the knower, while the appetite is according to the way the desirer is
directed to the desired thing. And thus the end of the appetite , which is the good, is
in the desired thing, but the end of cognition, which is the true, is in the very
intellect.” [all translations are my own]
Eckhart’s Bilder 171
relation to the intellect on which it depends in terms of its being; by
accident, however, to the intellect by which it is cognizable. Just as if we
said that the house is compared to the intellect of the architect essentially,
but by accident it is compared to the intellect on which it does not depend.
A judgment on a thing is, however, not made according to that which is in
it by accident, but according to that which is in it essentially. Hence a thing
is said true in an absolute sense according to the relation to the intellect on
which it depends. (Thomas Aquinas, Summa theol., I, q. 16, a. 1 co.) (my
italics).
One cannot emphasize too much the fact that never before in
Latin thought had the human intellect been given such power of being
the source of truth; only with Albert’s intellectualist turn did the
intellect acquire such a property that amounts to a primacy over
reality. 8 Aquinas, Albert’s student, accepts his doctrine of the universal
post rem, in the intellect, and conciliates it with the Platonic doctrine of
the ideas: of every existing thing, there is an idea. 9 They are firstly in
the divine intellect, and this in two ways, as the principles of the
‘making’ of things (principia factionis rerum), and as the principles of
knowledge (principia cognoscitiva); as far as the first way is concerned,
the ideas are ‘models’ (exemplares) according to which things are
created, thus belonging to the terrain of practical knowledge; in the
second case, they are rationes, ‘types,’ and can belong to theoretical
knowledge. This duplicity is explained by the need to separate in God
the things he creates from the things he knows, and this especially
because of the problem concerning the existence of evil, given that for
everything there is, there must be in him an idea; this separation
consists in that the ideas, as exemplares, concern every thing that god
has created, while as rationes they concern every thing that God knows,
even those things that will never be created.
Man, too, has the twofold feature of being capable of knowing
as well as creating, and he does both through the ideas in his intellect;
however, for Aquinas it is necessary to clearly distinguish God’s
8
For Albertus Magnus’ role in the origin of late medieval intellectualism, see L. M.
Augusto, “Albertus Magnus and the Emergence of Late Medieval Intellectualism”
(forthcoming) .
9
Cf. Summa theol. I, q. 15, a. 3 co.
172 Luís M. Augusto
And that is why artificial things are said true in relation to our intellect, the
house being said true that achieves the resemblance of the form in the mind
of the architect ; and a discourse is said true inasmuch as <it is> a sign of the
true intellect. And in the same way the natural things are said to be true
according to whether they achieve the resemblance of the species that are in
the divine mind; thus the stone is said true that achieves the proper nature
of a stone according to the preconception of the divine intellect. (Thomas
Aquinas, Summa theol., I, q. 16, a. 1 co.)
10
Cf. In Sap., c. 1, n. 6, ed. J. Kocher & H. Fischer, Die lateinischen Werke [LW] II,
Stuttgart, W. Kohlhammer, 1994, p. 327; ibid., c. 16, n. 274, LW II, p. 604; In
Exod., c. 20, n. 176, ed. K. Weiss, LW II, p. 152.
Eckhart’s Bilder 173
11
Namely in his De origine rerum praedicamentalium, ed. L. Sturlese, Opera Omnia
III, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1983.
12
E.g.: Michel Henry, “La signification ontologique de la critique de la connaissance
chez Maître Eckhart”, in E. zum Brunn (ed.), Voici Maître Eckhart, Grenoble,
Jérôme Million, 1994, p. 175-185. It is hardly necessary to give examples of
mystical interpretations of Eckhart’s thought, such is their profusion.
13
Cf. below.
174 Luís M. Augusto
when the eye sees the chunk of wood that both are some content: in
idealist terms, reality.
2 Eckhart’s bilder
2.1 An Aristotelian Epistemic Recreation of Plato’s Doctrine of the
Ideas
Among other characteristics, Plato’s ideas are separated from the things
that imitate them and of which they are the cause, existing thus before
them; Aristotle criticized this tenet for epistemic reasons: if separated
from the things that ‘imitate’ them, there is no visible epistemic role
for them, and they might as well be altogether dropped. He concludes
that, if there must be ideas, they must be in the things, but if they are
to have an epistemic function, then they must be in the human
intellect, too; he transposes Plato’s world of ideas into the agent
intellect, apparently part of the human soul, and thus ‘humanizes’ it
(by this, I mean that he turns the ideas into human tools, as against
their supernatural character in Plato’s postulation). This was the legacy
that Plato and Aristotle left to their successors, and much of western
thought from then on was the more or less desperate attempt to
conciliate two views that seemed to be correct in themselves, but that
simply did not work together. Plato’s ideas reach Eckhart already
mixed with the Aristotelian universals, or said intelligible species, and
he clearly ‘neglects’ the problem of universals, siding with Aristotle; for
him the universals – now clearly conceived as rationes – are both in the
things and in the intellect. His first major contribution to this issue
was a clarification of the metaphysical nature of the intelligible species,
or images, and this with, too, epistemological ends in view: the bilde
must be completely non-distinct from the reality whose bilde it is –
without which it would be epistemically useless –, without,
nevertheless, being one and the same thing. 14
But Plato, too, had his epistemic reasons to separate the ideas,
given that if mixed somehow with the things that participated in/of
them, they would risk corruption, and their role of guaranteeing
14
Cf. In Ioh., c. 1, n. 194, ed. J. Koch et al., LW III, p. 162-3.
Eckhart’s Bilder 175
The reasons of the created things are <themselves> not created, nor creatable
as such. They are before the thing 17 and after the thing, 18 as the original cause
of those very things. That is precisely why through them the changeable
things are known as through causes and by an immutable science, as is
evident in the science of the natural things. The outer thing itself is
changeable as far as its formal, creatable and created being is concerned. And
that is what is meant here: god created so that everything would be. The
things in him are the reasons of things, Ioh. 1: “in the beginning there was
the verb,” or logos, which is the reason; 19 and Augustine [De trin. VI, c. 10,
n. 11] says that it is an “art” “filled with the reasons of everything.” (In Sap.,
c. 1, n. 22, LW II, p. 343) (my emphasis)
15
Cf. ibid., n. 12, LW III, p. 12.
16
Cf. De diversis quaestionibus LXXXIII, 46, 2, PL 40/30.
17
Ante rem.
18
Post rem.
19
Also: the notion.
20
Cf. In Eccli., c. 24, n. 10, ed. J. Koch & H.Fischer, LW II, p. 240.
176 Luís M. Augusto
21
Pr. 8, ed. J. Quint, Die deutschen Werke [DW] I, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1958,
p. 135: Waz man bekennen sol, daz muoz man bekennen in sîner ursache. Niemer
enmac man ein dinc rehte in im selber bekennen, man enbekenne ez in sîner ursache.
(What one must know, one has to know it in its cause. Never can one rightly know
a thing in itself unless one knows it in its cause.)
22
Cf. In Exod., c. 20, n. 120, LW II, p. 113-4. Cf. also In Ioh., c. 1, n. 12, LW III, p.
12.
23
In Exod., c. 20, n. 121, LW II, p. 114.
24
In Ioh., c. 1, n. 38, LW III, p. 33: Iterum etiam [ratio] coaeva est intellectui, cum sit
ipsum intelligere et ipse intellectus.
Eckhart’s Bilder 177
25
Quaestio Parisiensis I, n. 5, ed. B. Geyer, LW V, p. 42: [I]ntelligere est altius quam
esse et est alterius condicionis.
26
Cf. Pr. 9, DW I, p. 150.
27
In Ioh., c. 1, n. 38, LW III, p. 33: [N]ihil praeter intelligere est.
28
Wissenschaft der Logik I, ed. F. Hogemann & W. Jaeschke, Gesammelte Werke
[GW] 11, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1978, p. 43-4 (Being, pure being, – with
no other determination. In its undetermined immediacy it is only identical to itself,
and it is not unequal as opposed to the other, has no difference inside its own, nor
to the outside. Through some determination or content that is differentiated in it or
through which it would be posited as different from another, it would not be
captured in its purity. It is the pure indetermination and void. There is nothing to
intuit in it, if one can speak of intuiting here; or it is only this pure, empty act of
intuiting itself. It is very little to think something in it, or it is only this empty
thinking. Being, the undetermined immediacy is in fact nothing, and nothing more
nor less than nothing.)
29
Cf. Wissenschaft der Logik II, ed. F. Hogemann & W. Jaeschke, GW12, p. 236f.
178 Luís M. Augusto
in act; but Aristotle never said clearly that this agent intellect is in the
human soul, though in certain passages he says that the soul is the
place of the forms (yet again, he could be referring to the possible
intellect). What matters to us is that the Stagirite establishes a formal
identity between the subject and the object, and Eckhart, again, is
faithful to this source:
But it so happens that my eye is one and simple in itself, and that it opens
and is directed to the piece of wood in contemplation; so remains each that
which it is, but both become in the act of the contemplation only one in
such a way that one can truly say eyewood, and the wood is my eye. 30
30
Pr. 48, DW II, p. 416: Geschihet aber daz, daz mîn ouge ein und einvaltic ist in im
selben und ûfgetân wirt und ûf daz holz geworfen wirt mit einer angesiht, sô blîbet ein
ieglîchez, daz es ist,und werdent doch in der würklicheit der angesiht als ein, daz man
mac gesprechen in der wârheit: ougeholz, und daz holz ist mîn ouge.
31
Ibid: Wære aber daz holz âne materie und ez zemâle geistlich wære als diu gesiht mînes
ougen, sô möhte man sprechen in der wârheit, daz in der würklicheit der gesiht daz holz
und mîn ouge bestüenden in éinem wesene. Ist diz wâr von lîplîchen dingen, vil mê ist
ez wâr von geistlîchen dingen. (But if the wood were without matter and purely
spiritual like the vision of my eye, one could say in truth that, in the act of vision,
the wood and my eye would consist in one single being. If this is true of the
corporeal things, it is even more so of the spiritual things.)
32
Cf. Quaestio Parisiensis II, n. 10, ed. B. Geyer, LW V, p. 54. Cf. also Pseudo-
Dionysus, De divinis nominibus, II, 8, 645C-D, ed. B. R Suchla, Corpus
Dionysiacum I, Berlin – New York, Walter de Gruyter, 1990.
Eckhart’s Bilder 179
33
Cf. Pr. 17, DW I, p. 290-1.
34
I do not really think there can be any doubt of the side chosen by Eckhart; the
following passage from Pr. 37, DW II, p. 216, merely one in many, shows this side-
taking: Vernünfticheit ist eigenlîcher ‘kneht’ dan wille oder minne. Wille und minne
vallent ûf got, als er guot ist, und enwære er niht guot, sô enahteten sie sîn niht.
Vernünfticheit dringet ûf in daz wesen, ê si bedenke güete oder gewalt oder wîsheit oder
swaz des ist, daz zuovellic ist. (The intellect is a more genuine servant than the will or
love. The will and love attach themselves to god as long as he is good, and if he were
not good, they would not care for him. The intellect penetrates in the being before
180 Luís M. Augusto
36
My criticism of the mystical interpretations does not aim at their elimination; if
anything, and in the name of the principle of proliferation proposed by Paul
Feyerabend, it aims to force its supporters to do a much better work than they have
done so far, neglecting or simply missing the ‘technicalities’ that, whether they want
it or not, are everywhere in Eckhart’s thought.
37
Cf. Parmenides 132c-133a.
182 Luís M. Augusto
38
Pr. 16b, DW I, p. 265: [W]an daz des andern bilde sol sîn, daz muoz von sîner natûre
komen sîn und muoz von im geborn sîn und muoz im glîch sîn.
Eckhart’s Bilder 183
39
Cf. De anima II, 12, 424b10-11 and 424a17-24.
40
That is, the perceiving organ, in the act of sensation, becomes the ‘quality’ it senses;
cf. ibid., 5, 417a18-21 and 418a4-6.
184 Luís M. Augusto
If
(4) thinking is a –bodily? – process like sensing, 41
then
(5) in the act of knowing, like is affected by like. 42
3 Conclusion
With the above analysis, I showed that, at the technical and formal
levels, Eckhart’s doctrine of the bilder is an Aristotelian epistemic
recreation of Plato’s doctrine of the ideas and a Christian ontological
recreation of Aristotle’s doctrine of cognition. It is an intellectualist 44
solution to the problem of the resemblance relation between the model
and its copy, and it is an intellectualist solution in that it first
establishes a formal-epistemic identity between both to establish the
ontological identity between thought and reality: reality is nothing but
41
Actually, Aristotle rejects that thinking is a bodily process like sensation (cf. ibid.,
III, 3, 427a19-427b6), but he seems to accept that thinking and sensation are alike
processes, at least in the case of the possible intellect (cf. ibid., 4, 429a13-22).
42
Although Aristotle apparently rejects this theory (cf. ibid., III, 3, 427a27-8), it does
not differ from his statement that the possible intellect thinking an object is in
entelechy that object (cf. ibid., 4, 429b31).
43
Cf. ibid., II, 11, 424a1-2.
44
As a matter of fact, it is an idealist solution, but I cannot go into that subject in this
paper.
Eckhart’s Bilder 185
thought, because it is the latter that first has the essences, or forms of
everything there is. Eckhart’s intellectualism is coherent through and
through, inasmuch as he never leaves the terrain of the intellect,
making of both the Platonic ideas and the Aristotelian intelligible
forms true tools of donation of being. If much in his thought seems at
first ‘too’ original, or even mystical, this is only when one neglects or
altogether misses its Aristotelian and Platonic roots.
References
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Omnia I, Paris, L. Vivès, 1890
ARISTOTLE, De anima, trans. W. S. Hett, Cambridge, MA, Harvard
University Press, 2000
_______ Metaphysica, ed. W. Jaeger, Oxford, Oxford University Press,
1988
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Turnhout, Brepols, 1975
_______ De trinitate libri XV, ed. W. J. Mountain, Turnhout, Brepols,
1970
AUGUSTO, L. M., “Albertus Magnus and the Emergence of Late
Medieval Intellectualism” [forthcoming]
BONAVENTURE OF BAGNOREGIO, Les six jours de la création,
trans. by M. Ozilou, Paris, Desclée-Cerf, 1991
DIETRICH OF FREIBERG, De origine rerum praedicamentalium, ed.
L. Sturlese, in Opera Omnia III, Hamburg, Felix Meiner Verlag, 1983
ECKHART, Expositio Libri Exodi [abbr.: In Exod.], ed. K. Weiss, in
Die lateinischen Werke [LW] II, Stuttgart, W. Kohlhammer, 1992
_______ Expositio Libri Sapientiae [abbr.: In Sap.], ed. J. Kocher & H.
Fischer, in Die lateinischen Werke [LW] II, Stuttgart, W. Kohlhammer,
1992
_______ Expositio sancti evangelii secundum Iohannem [abbr.: In Ioh.],
ed. J. Koch et al., in Die lateinischen Werke [LW] III, Stuttgart, W.
Kohlhammer, 1994
_______ Predigten, ed. J. Quint, Die deutschen Werke [DW] I-III / ed.
G. Steer DW IV, Stuttgart: W. Kohlhammer, 1958-1976 / 2003
186 Luís M. Augusto
Abstract: Taking basic sources as the “Doctrine of Virtue” (second part of Metaphysics
of morals) and Lectures on ethics – works in which Kant addresses the issue with more
precision – the text that follows shows in general the concept of Kantian “perfect
duties to oneself”. On the difficulties that Kant located in the concept of “duty to
oneself” and by defining the distinction between perfect and imperfect duties, it is
intended to present the points highlighted by Kant as belonging to the perfect duties
that the agent for has itself.
Keywords: Duties, Kant, Moral, Human nature, Progress
*
Doutoranda em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS. E-mail: leticiamachadopinheiro@yahoo.com.br. Artigo recebido em
21.07.2008, aprovado em 19.12.2008.
1
Segundo alguns estudiosos, o ano de exercício do curso varia entre 1775 e 1789 –
sendo que no próprio livro a data apresentada é de 19 de abril de 1785. A pouca
recorrência dos comentadores à obra Lições de ética é fruto de sua impopularidade,
cuja imposição se deu pela demora de sua edição, ocorrida (pelo empenho de Paul
Menzer) apenas em 1924 sob o título Eine Vorlesung Kants über Éthik. Entre 1974 e
1979, Gerhard Lehmann a incluiu na edição da Akademie (base da tradução aqui
utilizada). A primeira tradução da Lições de ética apareceu em 1930 para o inglês
(Lectures on Ethics) efetuada por Louis Infeld, na qual consta um prólogo escrito por
Beck. A que dela se segue é a espanhola (da qual nos servimos) editada em 2002
com a tradução de Roberto Rodríguez Aramayo e Concha Roldán Panadero, que
conta com um estudo inicial de Aramayo intitulado “La cara oculta del formalismo
ético” (p.07-34). É com as suas palavras, inclusive, que se pode sintetizar de maneira
bastante precisa a leitura de tal obra: “Nas Lições de ética se encontram muitos dos
fermentos que terminaram por catalisar o formalismo ético, só que expressos por
uma linguagem mais tosca e menos técnica”(Aramayo, p.18. In: Lições de ética). “En
las Lecciones de ética se encuentran muchos de los fermentos que terminaron por
catalizar el formalismo ético, sólo que expressados com un lenguaje más tosco y
menos tecnificado”.
2
“ninguna outra parte de la moral há sido tratada de forma tan deficiente como la
que versa sobre los deberes para com uno mismo”.
3
“En lo tocante a este capítulo todas las filosofías morales resultan falsas”.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 189
4
“son independientes de todo lo provecho y atienden tan sólo a la dignidad del
género humano”.
190 Letícia Machado Pinheiro
5
Essa íntima ligação entre os “deveres para consigo mesmo” e os outros deveres, a
ponto de a exclusão dos primeiros fomente a dos últimos, Kant a concebe nos
seguintes termos: “Pois supondo que não houvesse tais deveres [para si mesmo], não
haveria deveres quaisquer que fossem e, assim, tampouco deveres externos, posto
que posso reconhecer que estou submetido à obrigação a outros homens somente na
medida em que eu simultaneamente submeto a mim mesmo à obrigação, uma vez
que a lei em virtude da qual julgo a mim mesmo como estando submetido à
obrigação procede em todos os casos de minha própria razão prática e no ser
constrangido por minha própria razão, sou também aquele que constrange a mim
mesmo” (MC, 417-418).
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 191
O ser humano [diz ele], como ser natural possuidor da razão (homo
phaemenon), pode ser determinado por sua razão, como uma causa, as ações
no mundo sensível e, até aqui, o conceito de obrigação não é considerado.
Mas o mesmo ser humano, pensado em termos de sua personalidade, ou seja,
como um ser dotado de liberdade interna (homo noumenon), é considerado
como um ser que pode ser submetido à obrigação e, com efeito, à obrigação
para consigo mesmo (para com a humanidade em sua própria pessoa) (MC,
418).
6
Allen Wood explica que “o que é distintivo acerca do conceito de um ser
imperfeitamente racional e autolegislador (um ser com personalidade em sentido
kantiano) é que esse conceito envolve a relação entre duas pessoas que são
combinadas em um único e mesmo ser” [“what is distinctive about the concept of
an imperfectly rational and self-governing being (a being with ‘personality’ in the
Kantian sense) is that this concept involves that of a relation between two person
who are combined in one and the same being”] (Wood, 2006, p.12).
7
“Kant attaches great importance to the distinction between perfect and imperfect
duties, but he seems nowhere to define the distinction clearly...”
192 Letícia Machado Pinheiro
de não haver um elemento textual pelo qual Kant exponha com nitidez
as nuances entre “deveres perfeitos e imperfeitos”, Paton ressalta que ao
menos podemos indicar como tais deveres não são concebidos pelo
ponto de vista kantiano. Kant não se serve da noção de tais conceitos
(sugere o comentador) no mesmo sentido ordinário das escolas da
época. “O uso ordinário observava os deveres como perfeitos se eles
pudessem ser impostos por uma lei externa, e como imperfeitos se eles
não pudessem ser impostos assim” 8 (Paton, 1947, p.147). Kant não
pode acatar tal distinção (diz Paton) uma vez que, tal como ela é
edificada, pressupõe os “deveres perfeitos” somente com relação a um
outro, ao passo que Kant admite que temos “deveres perfeitos” também
com relação a nós mesmos (Cf. Paton, 1947, p.147).
Nos raros momentos nos quais Kant se vale dessas noções de
“perfeito” e “imperfeito” relativas ao “dever para consigo mesmo”, fica
posto que os “deveres perfeitos” são assim qualificados em função de
serem estritos: ordenam explicitamente o que se deve e o que não se
deve fazer. Os deveres “imperfeitos”, por sua vez, são de alcance amplo:
sugerem um modo de agir. Dada essa caracterização inicial de cada um
desses deveres em termos de restrição e amplitude, fica saliente que os
“deveres perfeitos” figuram uma “obrigação”, ao passo que os
“imperfeitos” um, por assim dizer, “conselho” 9 (pois apontam tão-
somente para um agir maximamente recomendável). É isso, inclusive, o
que sublinha Kant na seguinte passagem da Metafísica dos costumes:
8
“The ordinary usage regarded duties as perfect if they could be enforced by external
law, and as imperfect if they could not be so enforced”.
9
No “Teorema IV” da “Analítica da razão prática pura”, na Crítica da razão prática
(1788), Kant faz uma breve menção daquilo que é tomado como um “dever” em
relação ao quê é figurado como um “conselho”: “A máxima do amor de si
(prudência) apenas aconselha; a lei da moralidade ordena. Há, porém, uma grande
diferença entre aquilo que se nos aconselha e aquilo para o qual somos obrigados”
(CRP, 64).
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 193
mera deficiência de valor moral = 0, a menos que o sujeito erija como seu
princípio não aquiescer a tais deveres (MC, 390).
10
A propósito da motivação de Kant em admitir os “deveres imperfeitos” como
deveres (malgrado a sua latitude e não obrigação estrita), Allen Wood explica que tal
ocorre porque as ações por eles recomendadas “são concebidas como objetos de
preparação da autocoerção – coisas que nós podemos fazer nós mesmos executar
através do exercício da razão e dos sentimentos morais nascidos da aplicação da
razão prática para a nossa faculdade de desejar” [are conceived as fit objects of self-
constraint – things we can make ourselves do through the exercise of reason and the
moral feelings arising from the application of practical reason to our faculty of
desire] (Wood, 2006, p.01).
11
“free to abandon the maxim, but on to limit it by the maxim of another duty…”
194 Letícia Machado Pinheiro
12
Tal divisão seria um dos motivos pelos quais Kant não apresenta nesse contexto
todos os deveres que, geralmente, atribui aos homens. Ou seja, na Metafísica dos
costumes (1797), Kant não está concebendo os deveres morais de seres racionais em
geral, mas aqueles referentes à natureza humana. Isso explica, inclusive, a inserção de
itens de “casuística” (estudo dos problemas concretos que se apresentam à ação
moral) no decorrer da obra, algo incomum nos textos kantianos.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 195
13
Kant, na Antropologia (1798), ressalta que “o destino físico e primeiro do homem
consiste no impulso que o leva a procurar a conservação de sua espécie como espécie
animal” *(ANT, p.282). Kant, nessa passagem, concede ênfase à idéia de destino
físico, que, evidentemente, deve anteceder ao destino moral, visto que antes de o
homem ser considerado um ser reconhecedor da lei da moralidade, ele deve ser tido
como um membro do mundo animal. Satisfazer as necessidades, por assim dizer,
provindas de nossa natureza animal, é indispensável para que o homem possa
realizar a sua humanidade. *“El destino físico y primero del hombre consiste em el
impulso que le lleva a procurar la conservación de su especie como especie animal”.
196 Letícia Machado Pinheiro
14
“El suicídio sobrepasa todos los limites del uso del arbitrio, dado que éste sólo es
possible si existe el sujeto em cuestión”.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 197
15
“A concupiscência é classificada como não natural [diz Kant] caso se seja despertado
para ela não por um objeto real, mas pela imaginação, de modo que o próprio
indivíduo cria um objeto que é contrário ao propósito natural; pois dessa maneira a
imaginação produz um desejo contrário ao fim da natureza, e realmente um fim
ainda mais importante do que aquele do amor próprio à vida, uma vez que colima a
preservação de toda a espécie e não apenas a do indivíduo” (MC, 425). Kant cita nas
Lições de ética como exemplos dessa concupiscência (que lá ele denomina de crimina
carni contra naturam) a relação entre pessoas do mesmo sexo e a relação sexual com
animais (Cf. LE, 391).
198 Letícia Machado Pinheiro
A inclinação à bebida não é tão rasteira, já que a bebida é um meio útil para
a sociabilidade e a loquacidade ao provocar certa euforia no homem, e é
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 199
desculpável nessa medida, se bem que ao menor excesso cede lugar ao vício
da embriaguês 16 (LE, 380-381).
Kant, com efeito, não se detém com afinco a explicar essa sua
proposição. O que fica claro é que todo o excesso é questionável, sendo
por ele curiosamente admitida certa demasia, desde que modesta, no
caso da bebida, com a justificativa de servir ou tratar-se de um
instrumento de sociabilização.
16
“La inclinación a la bebida no es tan rastrera, ya que la bebida es un médio últil
para la sociabilidad y la locuacidad, ao provocar cierta euforia em el hombre, y es
disculpable en esa medida, si bien el menor exceso da lugar ao vicio de la ebriedad”.
17
“el vicio de la ebridad no resulta tan despreciable como el de la glotonería, que es
muito más abyecto, no solo porque nada tiene que ver con la sociabilidad, sino por
tratarse de uma mera exhibición de bestialismo”.
18
Segundo o comentário de Allen Wood, Kant deriva os três deveres negativos
referidos à mentira, à avareza e à falsa humildade dos três objetos que, em sociedade,
são por ele admitidos como elementos que conduzem os indivíduos a usar os seus
semelhantes como meios, a saber: o poder, a riqueza e a honra (Cf. Wood, 2006,
pp.16-17).
200 Letícia Machado Pinheiro
19
Kant abomina de tal modo a mentira a ponto de, em A religião nos limites da simples
razão (1793), associá-la a uma das caracterizações do mal radical (Radicale Böse). Na
terceira vez em que menciona o termo “mal radical”, Kant põe em foco justamente a
idéia da mentira externa e interna que o homem comete acerca de suas intenções:
“Esta desonestidade de lançar poeira nos próprios olhos, que nos impede a fundação
de uma genuína intenção moral, estende-se então também exteriormente à falsidade
e ao engano de outros, o que, se não houver de se chamar maldade, merece pelo
menos apelidar-se de indignidade, e reside no mal radical da natureza humana...”
(Rel, p.44). Cf. Pinheiro, Letícia Machado. “Por que o mal é radical em Kant?”. In:
Tempo da Ciência. Vol. 15, n.30. Cascavel: Edunioeste, 2008, pp.121-135.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 201
20
Zeljko Loparic observa que a mentira interna, sendo associada diretamente à
moralidade, denota um crime contra a humanidade e tem como punição o
autodesprezo e a aversão dos outros (Cf. Loparic, 2006, p.62).
21
Kant, contudo, não aponta em que consiste tal facilidade.
202 Letícia Machado Pinheiro
a questão se põe sobre uma ação que, apesar de ter ocorrido conforme o
mandamento da lei moral, não foi motivada por ela. A mentira externa
é voluntária 22 quando o agente sabe que executou a ação movida por
móbiles exteriores ao campo da moralidade, mas promulga que agiu
por puro dever. No que se refere à mentira externa involuntária, ela
deriva da mentira interna, e se dá quando o agente se engana acerca de
suas próprias intenções e transmite esse engano aos outros.
Independentemente do modo que se apresenta, a mentira externa
perturba a imputabilidade da ação e o julgamento moral acerca de sua
execução.
b) Avareza: O avaro, na definição de Kant, é aquele que impõe
a si mesmo uma privação de prazeres de que poderia usufruir. Tendo a
possibilidade de atendê-los, ele, contudo, se compraz apenas com a sua
possibilidade, sem se remeter ao objeto de prazer propriamente dito. O
avaro, por esse ponto de vista, é alguém que inverte uma certa ordem
corriqueira de valores. Frente à riqueza, por exemplo, ele concede mais
apego ao dinheiro do que ao prazer que ele pode proporcionar. No
dizer de Kant “o avaro que tem o dinheiro no bolso” faz o seguinte
raciocínio: “como será a tua disposição de ânimo quando tiveres gasto o
dinheiro destinado ao prazer? Depois disso serás tão disposto como
agora?” Diante da possibilidade do infortúnio, conclui: então “vale
mais conservar o dinheiro” 23 (LE, 400). Assim, o avaro se priva “do
próprio gozo dos recursos do bem viver”. E se priva “de modo tão estrito
a ponto de deixar as próprias efetivas necessidades insatisfeitas” (MC
432). Daí que é essa desatenção para as próprias e reais necessidades
humanas que Kant concebe como oposta ao “dever para consigo
mesmo”. Ele assim o concebe porque vê na negação de satisfazer as
próprias necessidades uma ruptura com a capacidade racional que o
22
Na Crítica da razão pura, Kant fala de uma certa insinceridade referente “à
inclinação que temos para esconder os verdadeiros sentimentos e manifestar certos
outros, considerados bons e honrosos” (CRP, B 776). Há uma inclinação (Neigung)
do homem em manifestar aos outros, virtudes, apesar de não as possuir, porque sabe
que são bem reconhecidas aos olhos alheios.
23
“cómo será tu disposición de ánimo cuando hayas gastado el dinero destinado al
placer? Después de eso será tu tan lista como ahora, por lo que vale más conservar el
dinero”.
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 203
24
“abandona el mundo como um pobre estúpido que ni se há enterado de haber
vivido”.
204 Letícia Machado Pinheiro
além dos seres humanos” (MC, 442). Mas essa sua afirmação se dá sob
uma reflexão bem pontuada: do fato de o homem ter deveres somente
para com os outros humanos não se segue que ele não tenha nenhuma
espécie de obrigação (Verpflichtung) de instanciação moral para com os
seres não humanos. Kant observa que há nesse sentido uma confusão
entre “dever em consideração a outros seres” (que ele reconhece que os
homens têm para com a natureza em geral e para com os seres sobre-
humanos) com um “dever para com esses seres”(admitido só de homem
para homem) 25 (Cf. MC, 442). A propósito dessa distinção, Paul
Guyer observa que com ela Kant quer provar que
25
São os chamados “deveres de consideração” que Kant pretende abordar aqui, já que
no que concerne aos deveres para com os seres humanos ele aborda no contexto dos
“deveres para com os outros”.
26
“although the fundamental principle of morality – to respect rational being as an
end in itself – cannot give rise to duties directly toward nonrational nature, a duty
that we have toward ourselves as rational beings may give rise to duties regarding
nonrational nature”.
206 Letícia Machado Pinheiro
trata-se de um dever do ser humano para consigo mesmo aplicar essa idéia, a
qual se apresenta inevitavelmente à razão, à lei moral nesse ser humano,
onde é da maior fecundidade moral (MC, 444).
27
Priscilla Cohn sugere uma incompatibilidade da proposição kantiana – de que o
trato com os animais detém elementos que favorecem moralmente o trato com
humanos – servindo-se de contra-exemplos empíricos. Ela, inclusive, cita Hitler
como um homem que era dedicado aos animais e capaz das maiores atrocidades
contra os humanos (Cf. Cohn, 1988, p. 200-201).
... a noção kantiana de “deveres perfeitos para consigo mesmo” 207
Referências
KANT, I. Antropología en sentido práctico (ANT). Trad. de José Gaos.
Madrid: Alianza, 1991.
_______. A metafísica dos costumes (MC). Trad. Edson Bini. São
Paulo:EDIPRO, 2003.
_______. A religião nos limites da simples razão (Rel.). Trad. de Artur
Morão. Lisboa: Ed. 70, 1992.
_______. Crítica da razão prática (CRPr). Trad. de Valério Rohden.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_______.Crítica da razão pura (CRP). Trad. de Manuela Pinto dos
Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001.
_______.Fundamentação da metafísica dos costumes (FMC). Trad. de
Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural \ Pensadores,1980.
_______.La metafísica de las costumbres. Trad. y notas de Adela Cortina
Orts y Jesus Conill Sancho. Madrid: Tecnos, 1989.
28
“De que serve, por exemplo, ao comerciante todas as suas orações, se quando
regressa de ter ouvido a missa engana os clientes desprevenidos com negócios
fraudulentos?” [“De qué lhe sirven, por ejemplo, al comerciante todas sus oraciones,
se quando regressa de oír misa engaña a los clintes incautos com mercancías
fraudulentas ?”](LE, 332).
208 Letícia Machado Pinheiro
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens *
*
Doutorando em Filosofia pela UERJ; Professor da Universidade Cândido Mendes e
do Centro Universitário Plínio Leite. E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com. Artigo
recebido em 22.02.2008, aprovado em 05.12.2008.
1
Dorotéia Paterson e Loretta Zderad: Especialistas em enfermagem clínica, atuaram
em instituições renomadas nos EUA, tendo publicado o tratado Enfermagem
humanística (1976), no qual propunham a chamada Teoria prática da enfermagem
humanística. Desenvolvida a partir de experiências existenciais relatadas pelas
enfermeiras e as pessoas que recebem tratamento, este conjunto de idéias busca uma
visão abrangente dos cuidados humanos, procurando compreendê-lo por uma
perspectiva fenomenológica. Tal enfoque recebe a influência da filosofia de
Nietzsche, Buber, Husserl e Heidegger que permitiriam pensar esta lida em face da
existência e da presença iminente do outro, atendo-se às condições existencias como
a autoconsciência, a alteridade, a responsabilidade, a finitude e a busca de uma
significação para a vida. Ao lado destas, podemos citar também as contribuições de
Madaleine Leininger que, nos anos de 1950, tratou o fenômeno em sua Teoria
transcultural do cuidado como experiência universal do humano e elemento essencial
à enfermagem.
2
Martin Heidegger (1889-1976): Filósofo alemão, professor em diversas
universidades européias. Inicialmente esteve associado à escola fenomenológica de E.
Husserl, de quem foi assistente. Distanciou-se do projeto da fenomenologia para
empreender uma síntese própria deste método e, posteriormente, propor a retomada
da questão do ser, denominada ontologia fundamental. Sua filosofia influenciou
Cuidado, educação e singularidade 213
4
Professor da Universidade de Freiburg, Heidegger foi eleito Reitor em 1933. Já em
seu Discurso de posse, professava um modelo educacional para a universidade que
acreditava ser capaz de restaurar a identidade do povo alemão e formar indivíduos
com força produtiva suficiente para tirar a Alemanha de sua crise. Este projeto,
inicialmente inspirado na Paidéia grega, desbancou para uma dura disciplina, reflexo
das concepções políticas reacionárias do nacional-socialismo com o qual Heidegger
se encontrava envolvido. Tal modelo não agradou a comunidade acadêmica que o
reputava uma “...influência devastadora do ponto de vista pedagógico” (Jaensch
apud Loparic, 2004, p.13). O contraste entre a pedagogia possível de ser pensada a
partir do cuidado e o projeto político pedagógico de Heidegger para a universidade
alemã mereceria um estudo futuro.
Cuidado, educação e singularidade 215
5
O termo ser-aí é tradução de “Dasein”, como no alemão. Este significa, em sua
acepção primeira, existência fática, repercutindo na tradição da filosofia clássica alemã
com este sentido. A versão deste termo se torna um problema para todos os idiomas,
pois nenhum é capaz de traduzir o sentido em jogo na compreensão heideggeriana.
Opta-se normalmente pela tradução literal assim, teríamos être-là, no francês; esser-
ci, no italiano e there-being ou, mesmo, being-there no inglês. Por ser-aí, diferente da
acepção tradicional, Heidegger entende o modo do existir humano.
216 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
uma relação de ser com o outro. 6 Entretanto, nem sempre estes modos
são claros ao ser-no-mundo, que, imerso nas suas ocupações cotidianas,
ignora o modo de ser de sua existência e a dos outros, compreendendo
tudo como coisas simplesmente dadas, compreensão esta que
6
Esclarecimento que proporia uma revisão na terminologia da Teoria dos cuidados
humanos, alterando-a para preocupações humanas.
218 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
7
Exemplos deste comportamento são identificados na literatura autores que se
ocuparam de tratar do impessoal em alguns de seus principais traços. No romance
Being There (traduzido para o português com o título de O videota – o homem que
aconteceu), Jerzy Kosinski retrata um indivíduo jogado em circunstâncias nas quais
mesmo em modos deficientes de ocupação, alternantes entre a apatia e repetição de
clichês aprendidos na televisão, seriam capazes de propiciar relações hábeis e
competentes em seu mundo. Menos caricato, Thomas Mann, em seu A montanha
mágica, esboça tais preocupações ao narrar démarches de salão nas quais até mesmo
bom tom estaria sobre tutela do impessoal. Safranski (2000) elenca outros autores da
década de 1920 que tratam da impessoalidade em obras literárias.
Cuidado, educação e singularidade 219
o ser-aí decidido liberta a si-mesmo para seu mundo. A decisão por si-
mesmo primeiro traz o ser-aí para a possibilidade de, sendo com os outros,
se deixar “ser” em seu poder-ser mais próprio e, justamente com este, abrir a
preocupação que liberta numa ocupação. (Heidegger, 1996, p. 274)
Conclusões
Estas reflexões nos colocariam diante de questionamentos preocupados
com implicações práticas que uma filosofia da educação; ainda, com os
dilemas de pensar um modo de tomar o cuidado como um “veículo” da
educação, atendendo as exigências práticas do fazer educativo. Assim,
constatamos que muitos pontos ainda carecem numa reflexão filosófica
que indique um lugar para o cuidado na educação, entre eles, o que nos
recorda que a educação não é apenas uma idéia, mas algo que só se
efetiva por meio de métodos, através dos quais as teorias se tornam
práticas. 8 Abrir mão disso seria desconsiderar o caráter iminentemente
8
Contribuições neste sentido podem ser encontradas na obra de Paulo Freire (1921-
1997), cujas técnicas de seu método criam condições pedagógicas para que o
indivíduo, reflexivamente, descubra-se numa situação de opressão e conquiste para si
a possibilidade de se libertar desta. O cuidado no interior de uma filosofia da
educação poderia ser pensado aproximadamente de uma educação como prática de
liberdade (afinal, aquilo que chamamos desde Heidegger de exercício de cuidar por
222 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Referências
BOFF, Leonardo, (1999). Saber cuidar: Ética do humano: compaixão
pela terra. Petrópolis: Vozes.
GILES, Thomas R. (1987). Filosofia da educação. São Paulo: EPU.
*
Doutor em Filosofia pela UFSCar. Professor de filosofia na UFPI, Campus Ministro
Reis Velloso (Parnaíba). E-mail: donizettisilva@ufpi.br. Artigo recebido em
29.09.2007, aprovado em 10.11.2008.
1
Sartre, 1943, p. 116 (tradução p. 122).
2
De 1933 a 1934 Sartre estuda em Berlim e, nesse mesmo período, publica A
transcendência do Ego (1937) que, embora sendo uma crítica a Husserl, é fortemente
influenciado pela fenomenologia. O mesmo pode ser dito de A Imaginação (1936),
Esboço de uma teoria das emoções (1939), O Imaginário (1940) e, em certa medida,
também de O Ser e o Nada (1943), obras nas quais A intencionalidade: uma idéia
fundamental da fenomenologia de Husserl (texto de 1939) tem uma importância
fundamental, conforme Contat & Rybalka, 1970.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 227
3
No primeiro capítulo de Ser e Tempo Heidegger analisa os fundamentos do Dasein e,
assim, o ente que coloca seu ser em questão deve esclarecer inicialmente seu ser-no-
mundo; ora, o Dasein “não é uma determinação composta por adição, mas uma
estrutura originária e sempre total. Não obstante, oferece perspectivas diversas dos
momentos que a constituem. Mantendo-se continuamente presente a totalidade
preliminar dessa estrutura, deve-se distinguir fenomenalmente os respectivos
momentos”; ainda, “O Dasein se determina como ente sempre a partir de uma
possibilidade que ele é e, de algum modo, isso significa que ele se compreende em
seu ser. (...) para uma interpretação ontológica desse ente, a problemática de seu ser
deve ser desenvolvida a partir da existencialidade de sua existência”. Heidegger,
1988, p. 75 e 79.
228 Luciano Donizetti da Silva
4
Sartre mostra que, graças à pré-reflexividade, a consciência de si não remete a
nenhuma dualidade. Por isso, utiliza o de entre parênteses. Sartre, 1943, p. 20-21
(tradução p. 25).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 229
Reflexão e pré-reflexão
A ontologia de Sartre é fenomenológica porque tem como prerrogativa
partir daquilo que lhe é mais próximo; assim, por fazer uma filosofia
que toma como fundamento a consciência (que é o que cada homem
pode ter de mais próximo a si), Sartre é considerado cartesiano. No
entanto, há que se fazer mediações no que tange a essa classificação de
sua filosofia: o cogito é, para ele, uma instância secundária que
Descartes pensou ser radical. Se para Descartes o cogito fornece uma
5
Note-se o Capítulo 2 da Segunda Parte de O Ser e o Nada, no qual Sartre distingue
as três dimensões temporais do para-si por oposição ao tempo do mundo. Nesse
sentido, o tempo tem sua origem no para-si, mas é encontrado no mundo pelo
homem; e isso gera a oposição aparente entre tempo e temporalidade, na medida em
que o tempo é transcendente, enquanto a temporalidade é imanente, constituinte, da
consciência do tempo.
230 Luciano Donizetti da Silva
6
Sartre, 1943, p. 19 (tradução p. 24).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 231
7
Sartre, 1947, p. 32.
8
Esse é, notadamente, o problema do capítulo intitulado Husserl, de A Imaginação:
“A distinção entre imagem mental e percepção não poderia proceder unicamente da
intencionalidade: é necessário, mas não suficiente, que as intenções difiram; é
preciso também que as matérias sejam dessemelhantes” (Sartre, 1978, p. 105); O
Imaginário tem, por sua vez, a mesma questão em seus dois primeiros terços: a partir
da análise das possibilidades de imagem (família da imagem), mostra que em
nenhum caso, inclusive no que se refere à imagem mental, pode-se reduzir a
imaginação aos elementos imanentes à consciência, conforme Sartre, 1996.
9
É o que se passa na filosofia cartesiana: “De sorte que após haver pensado bem, e
haver rigorosamente examinado todas as coisas, é necessário, enfim, concluir e ter
por constante que a proposição eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas
as vezes que a enuncio ou a concebo em meu espírito”. Descartes, 1973, p. 100.
232 Luciano Donizetti da Silva
10
Sartre, 1943, p. 20 (tradução p. 25).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 233
11
Sartre, 1947, p. 34.
12
Sartre, 1994, p. 101.
234 Luciano Donizetti da Silva
13
“Entendamos: o Eu formal ‘transcendental’ nada mais é que uma ‘contração
infinita do Eu material’ simplesmente porque se o transcendental é fato, não
princípio lógico, o Eu é da mesma ordem, isto é, material e não formal. Daí porque
o Eu transcendental implica opacidade: é que se trata de um Eu material contraído”.
Moutinho, 1995, p. 31-32.
14
“Todos eles, contando o simples ato do eu, em que tenho consciência do mundo ao
voltar-me espontaneamente até ele e apreendê-lo como algo que está imediatamente
aí diante, estão compreendidos na única palavra cartesiana cogito”; (...) “Assim
mesmo, trata-se de caracterizar a unidade da consciência requerida por aquilo que é
próprio das cogitações, e requerida tão necessariamente, que as cogitações não podem
existir sem essa unidade”. Husserl, 1992, p. 70 e 78.
15
Sartre, 1978, p. 99.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 235
A superação do instante
Ao alinhar Sartre do lado de Descartes e Husserl, o que mostra que seu
pensamento é cartesiano, percebe-se de antemão que a maior
dificuldade relativa ao tempo deverá ser o instantaneísmo. E Sartre não
está alheio às dificuldades relativas ao tempo, principalmente no que se
refere a esse problema específico, tanto que, no que tange à primazia do
instante na constituição do tempo, o autor alvo da discussão é
justamente Descartes. Se para Descartes é a intuição de si (eu penso) que
fornece a certeza do sujeito como substância (res cogitans), não há outra
alternativa que entender o tempo como uma instância externa à
consciência; dessa feita, o tempo deverá ser identificado ao objeto do
mundo. Sendo assim, como falar em dimensões temporais? É no
instante que se dá a certeza de ser, ou melhor, a verdade penso, logo sou
é indubitável quando enunciada.
Entretanto, ao afirmar que a verdade do cogito é devida a uma
certeza primeira, Descartes também afirma que a existência pode ser
infinitamente dividida; dessa feita não há, necessariamente, nenhuma
relação entre o foi e o será. Além da criação, também a continuidade de
cada ser (duração) deverá resultar de um ato divino. 16 A existência é,
dessa maneira, continuada de um instante a outro pela ação divina; não
há nenhuma relação que possa ser apontada entre as dimensões
16
“Pelo nome de Deus eu entendo uma substância infinita, eterna, imutável,
independente, todo conhecimento, todo potência e pela qual eu mesmo e todas as
coisas que são (...) foram criadas e produzidas”; e “ainda que eu possa supor que seja
possível que eu sempre tenha sido como sou agora, eu não poderia por essa razão
evitar a força desse raciocínio, (...). Pois todo o tempo de minha vida pode ser
dividido em uma infinidade de partes, cada uma das quais não dependentes de
forma alguma das demais”. Descartes, 1973, p. 107 ss.
236 Luciano Donizetti da Silva
17
Sartre afirma que é necessário que “se o tempo é separação, ao menos é uma
separação de tipo especial: uma divisão que reúne”, Sartre, 1943, p. 176 (tradução p.
186).
18
O nexo entre antes e depois deve ser interno; de outro modo o problema apenas se
resolveria com a noção de um Deus intemporal (Descartes) ou com a remissão a um
eu penso que esteja fora do tempo, como unidade sintética.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 237
19
Bergson mostra como, devido a uma estrutura psicológica, o tempo é entendido a
partir da noção de espaço, o que produz sua heterogeneidade; mas, conforme mostra
Sartre no Diário de uma Guerra Estranha, essa compreensão se deve a um engano,
qual seja, inserir sub-repticiamente a espacialização do tempo. Sartre, 1983, p. 77-
79.
20
Bergson “Tem razão contra Descartes, ao suprimir o instante; mas Kant tem razão
contra ele quando afirma que não há síntese dada. Esse passado bersoniano, que
adere ao presente e até o penetra, é pouco mais que uma figura de retórica”. Sartre,
1943, p. 181 (tradução p. 191).
21
A solução para o impasse é, segundo Sartre, produzir uma ontologia da
temporalidade. Sartre, 1943, p. 181 (tradução p. 191).
238 Luciano Donizetti da Silva
22
Noção de negação interna, conf. Sartre, 1943 p. 58 e 228 (tradução p. 64 e 242).
23
Sartre, 1943, p. 167 (tradução p. 177).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 239
Recuperação e projeção de si
A filosofia de Sartre não está mais no registro cartesiano. Superado o
instante, no qual duas substâncias compartilham um mesmo momento
e cabe a Deus o papel de promover a temporalidade (Descartes), Sartre
passa a haver-se com Bergson. Também para ele não se coloca o
problema do instantaneísmo; trata-se, tal qual Sartre, do presente que se
estende sobre o passado e o futuro. 24 Para Bergson o presente se estende
sobre o passado graças à memória; o passado se difere do presente por
sua natureza, afinal ele não deixa de ser, mas perde a capacidade de agir
no presente. 25 Dessa feita, a consciência presente conserva o passado, o
que significa para Sartre uma clara indicação de confusão entre ser-em-
si e consciência: nada há que justifique que a consciência possa
expandir-se rumo ao passado e ao futuro, uma vez que, mesmo com a
mudança de natureza, tudo é presente.
Também para Sartre o passado é em-si (não age sobre o
presente). Entretanto, não se trata de em-si no presente (o presente é
fuga perpétua); o passado é em-si para o presente. Não há
contemporaneidade entre presente e passado na mesma medida em que
não há contemporaneidade entre consciência e objeto negado
presentemente. Para Sartre a relação entre o para-si e seu passado deve
ser ontológica, ou seja, o passado é em-si superado sobre o qual o para-
24
Bergson, 2006, p. 161.
25
Em resumo, para Bergson a memória, nos níveis mais expandidos, conserva o
passado; quando se aproxima da percepção, a memória se contrai. Tal contração faz
com que o passado confunda-se com o presente, mostrando que a relação entre
passado e presente se dá numa co-extensão e não numa existência paralela. Assim, a
diferença entre passado e presente não seria de grau, mas de natureza: o passado é
inativo, o presente é ação. Bergson, 2006, p. 169.
240 Luciano Donizetti da Silva
si não pode mais agir: o para-si não é fundamento de seu passado, não
pode mais mudá-lo; o passado é para-si fixado no Ser. “Assim, o
passado é a totalidade sempre crescente do em-si que somos. Enquanto
ainda não morremos, todavia, ainda não somos esse em-si sob o modo
da identidade. Temos de sê-lo”. 26 O surgimento do para-si evoca as três
dimensões temporais uma vez que ele já surge com um passado (em-si
superado) e foge rumo ao que não é (futuro).
Para tanto, o passado do para-si não pode ser apenas memória.
Diferentemente de Bergson, a filosofia sartriana exige que a
solidariedade com o passado não se resuma ao que é lembrado ou foi
percebido, mas, antes, a todo o passado do para-si. É no plano pré-
reflexivo que o passado surge ao para-si; muito além do que se poderia
nomear passado psicológico, o passado é aquilo que o para-si foi e,
presentemente, deve continuar sendo. Contrariamente a Bergson, o
passado não necessita ser posicionado para ser; no entanto, não é
também inconsciente. Ser consciência é estar além daquilo que se lhe é
dado presentemente; isso faz com que a consciência seja capaz de
alcançar e se relacionar com a dimensão passada sem possibilidade de
confusão com o presente (com o era, foi, ou simplesmente em-si). O
passado faz parte do campo de presença do para-si; por isso, a relação
com o passado deve ser ontológica.
Paralelamente, o problema do tempo da maneira como foi
desenvolvido por Husserl também tem forte influência sobre Sartre.
Mas, segundo ele, a filosofia husserliana erra por, mesmo tendo
entendido o tempo como duração e buscado desfazer a ruptura entre as
três dimensões temporais, não estabelecer uma instância responsável
pela totalização temporal. Assim, “o único meio possível de estudar a
temporalidade é abordá-la como uma totalidade que domina suas
estruturas secundárias e confere-lhes significação”. 27 Husserl não
considera suficiente a análise das sensações para que seja estabelecida a
sucessão temporal (ou sucessão de sensações); desse modo, a sensação
presente deve, de alguma maneira, carregar consigo uma relação interna
com a sensação anterior. Ou, fazendo o caminho inverso, para que uma
26
Sartre, 1943, p.158 (tradução p. 169).
27
Sartre, 1943, p. 158 (tradução p. 169).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 241
28
Husserl, 1994, p. 45-50.
242 Luciano Donizetti da Silva
29
Husserl, 1994, p. 94 ss.
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 243
Considerações finais
Enfim, para concluir essas reflexões, será feita uma avaliação da
temporalidade sartriana para entender em que medida, ou melhor, a
que preço, Sartre formula sua estrutura do tempo. Entretanto, trata-se
de conclusões, afinal, não será possível uma afirmação única no que diz
respeito a esse problema; o que parece desnecessário afirmar, em
resposta à primeira indagação desse texto, é que ter como fundamento
da filosofia a certeza inabalável do cogito não encerra, de maneira
alguma, tal filosofia no instante. Sartre mostra que a pré-reflexividade
do cogito além de garantir a relação entre consciência e mundo,
antecipa, também e por isso mesmo, a inserção da consciência nos três
ek-stases temporais. Para isso, porém, o tempo deverá perder seu caráter
de realidade, devendo ser engendrado pelo para-si.
É justamente isso que pode ser dito do presente: ele não tem
um caráter de tempo do mundo, ou então não é concebido como um
instante ou um ponto em uma linha temporal; não há, sequer, a linha.
O presente passa a ser deduzido da presença a que o para-si, por sua
estrutura incapaz de coincidir com qualquer objeto intencionado,
simplesmente é. “A presença a... é uma relação interna do ser que está
presente com os seres aos quais está presente”. 30 É da presença da
consciência a qualquer objeto que o presente se institui; a temporalidade
é levada ao mundo pelo para-si. Para tanto, além da exigência da pré-
reflexividade do cogito e da intencionalidade, a consciência deverá ser,
também, negação.
Todas as relações que a consciência estabelece, seja com o
mundo ou consigo mesma, deverão ser negativas. É a negação que
garante a relação interna entre a consciência que nega e o ser negado:
30
Sartre, 1943, p. 165 (tradução p. 174.
244 Luciano Donizetti da Silva
Por isso a negação também é a origem das demais estruturas pelas quais
Sartre supera o problema da temporalidade: é devido à relação interna
entre o para-si e o objeto que a consciência é intencional (nada); é
devido à negação que a consciência é fuga de si e do passado que ela
tem-de-ser; por fim, é também negativamente que a consciência busca
seus possíveis (seu futuro). Por isso, a consciência que não é acabará por
ser a origem de todas as coisas e, mesmo, das estruturas do mundo,
como é o caso da temporalidade; o nada de ser do para-si deverá, dessa
forma, confundir-se com o tempo. Mas, como contrapelo dessa
afirmação, Sartre não estaria afirmando que o tempo também é nada?
Inicialmente, o passado existe a partir do presente, não como
iluminação ou resquício (mancha) no presente, mas para o presente. O
passado é aquilo que o para-si é sem possibilidade de coincidir com seu
ser (foi) e, desse modo, está aberto ao presente. “O passado não é nada,
também não é o presente, mas em sua própria fonte acha-se vinculado a
certo presente e a certo futuro”. 31 Por isso, do presente, tem-se a total
possibilidade de acesso ao passado sem que haja qualquer confusão
entre passado e presente; o passado infesta o presente, é verdade, mas na
medida em que o presente é seu passado.
Portanto, não adiantaria, como faz Husserl, pensar o passado
num jogo de retensões como meio de preservá-lo como passado, afinal,
isso requer que o cogito se dê, previamente, como instantâneo; sendo
assim, não há mais como sair do cogito. 32 Tampouco resolveria, como
faz Bergson, que o passado fosse co-extensivo ao presente; isso não pode
recuperar o tempo real porque confunde passado e presente: “não
explicamos como o passado pode renascer e infestar-nos, em suma,
como pode existir para nós”. 33 Porém, se o passado apenas pode existir
para o para-si (presente), como resolver essa contradição? Afirmando
uma relação ontológica entre essas duas dimensões temporais pela qual
o passado é um para-si recapturado e inundado pelo em-si; a relação com
o passado é originária do para-si, é o para-si na medida em que ele se
cristalizou no ser. 34 Na mesma medida em que o para-si não pode
31
Sartre, 1943, p. 153 (tradução p. 162).
32
Sartre, 1943, p. 152 (tradução p. 161).
33
Sartre, 1943, p. 152 (tradução p. 160).
34
Sartre, 1943, p. 164 (tradução p. 173).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 245
coincidir com seu presente, também não coincide com seu passado;
nem por isso pode deixar de sê-lo: o para-si não pode desligar-se de seu
ser.
Isso explica porque o encaminhamento da questão da
temporalidade na filosofia de Sartre passa sempre pela crítica ao
privilégio que outros autores dão à dimensão presente. Uma vez
afirmado o presente, por mais que esse seja expandido, torna-se
impossível recuperar o passado; ou, “se começamos fazendo do homem
um insular, encerrado na ilha instantânea de seu presente (...)
suprimimos rapidamente todos os meios de compreender sua relação
originária com o passado”. 35 O passado é o para-si que já não é mais e,
por essa razão, mesmo que acessível, não há como mudá-lo, já que se
tornou em-si para o presente. É dessa maneira que o para-si arrasta o
passado que é seu e, todavia, não pode superá-lo nem dele se desgarrar:
o passado é a contingência original do para-si.
Ser para-si é fugir do objeto ao qual ele é presença a, e instaurar
o presente (nada); no mesmo ato, ser para-si é escapar de qualquer
possível identificação com a negação da negação (negar a
impossibilidade de coincidir com aquilo que é negado no presente) e,
dessa forma, empurrar a presença a si, instaurando seu passado. Mas,
além desses dois ek-stases temporais, há ainda um outro: o para-si se faz
existir tendo seu ser fora de si, no futuro (ainda não). Nesse sentido, o
futuro se apresenta como aquilo que o para-si tem de ser e não pode
ser, positivamente, o que quer que seja; há futuro porque o para-si,
embora sendo fuga de seu presente e incapaz de reunir-se com seu
passado, ele é para além de si (ele tem-de-ser seu projeto ontológico de ser-
em-si-para-si).
O presente é para-si, o passado é em-si (para-si cristalizado) e o
futuro não é ainda; 36 o futuro acontece porque o para-si tem-de-ser e
não pode coincidir nem com seu passado nem com seu presente.
“Assim, o futuro, como presença futura de um para-si a um ser, arrasta
consigo o ser-em-si rumo ao futuro”. 37 Há futuro porque, sendo
35
Sartre, 1943, p. 151 (tradução p. 160).
36
Sartre, 1943, p. 174 (tradução p. 183).
37
Sartre, 1943, p. 172 (tradução p. 181).
246 Luciano Donizetti da Silva
38
Sartre, 1943, p. 172 (tradução p. 182). Ainda, “a eternidade que o homem procura
não é a infinidade da duração desta vã perseguição do si pela qual eu mesmo sou
responsável; é o repouso em si, a temporalidade da consciência consigo mesma”.
Sartre, 1943, p. 188 (tradução p. 198).
Tempo e temporalidade na filosofia de Sartre 247
Referências
BERGSON, H. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com
o espírito. São Paulo: ed. Martins Fontes, 2006.
CONTAT, M. e RYBALKA, M. Les Écrits de Sartre. Paris: ed.
Gallimard, 1970.
DESCARTES, R. Meditações e Cartas. Col. Os Pensadores. Tradução
J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tradução Márcia de Sá Cavalcanti.
Petrópolis: ed. Vozes, 1988.
HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofia
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_______ Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo.
Tradução Pedro M. S. Alves. Lisboa: ed. Imprensa Nacional, 1994.
MOUTINHO, L. D. S. Sartre:Psicologia e Fenomenologia. São Paulo:
ed. Brasiliense, 1995.
SARTRE, J. P. A Imaginação. Col. Os Pensadores, p. 33. Tradução Luis
Roberto Salinas Fortes. São Paulo: ed. Abril Cultural, 1978.
_______.Consciência de Si e conhecimento de Si. Tradução: Pedro M. S.
Alves. Lisboa: ed. Colibri, 1994.
_______. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: ed. Nova
Fronteira, 1983.
39
Sartre, 1943, p. 181 (tradução p. 191).
248 Luciano Donizetti da Silva
___________. Esboço para uma teoria das emoções. Trad. Paulo Neves.
Porto Alegre: L&PM, 2007.
_______ L’ Être et le Néant. Essai d’ ontologie phénoménologique. Paris:
ed. Gallimard, 1943. (No Brasil, tradução de Paulo Perdigão.
Petrópolis: ed. Vozes, 1997).
_______. O Imaginário. Tradução Duda Machado. São Paulo: ed.
Ática, 1996.
_______ Une Idée Fondamentale de la Phénoménologie de Husserl: L’
Intentionnalite. Situations I. Paris: ed. Gallimard, 1947 (No Brasil,
tradução de Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005).
TRADUÇÃO
Costica Bradatan *
O ponto de partida de meu ensaio é uma afirmação paradoxal que o filósofo, poeta e
romancista espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) fez – em seu ensaio Vida de
Don Quijote y Sancho (1905) – que Dom Quixote, o personagem de Cervantes, é
mais real e autêntico que o próprio Miguel de Cervantes. Em seguida, depois de
discutir esta afirmação e analisar as implicações de um engenhoso artifício literário
que Unamuno empregou em sua novela Niebla (1914), esboçarei algumas das
possíveis conseqüências filosóficas que os conceitos literários de Unamuno poderiam
ter sobre a compreensão da identidade fundamental do eu, e da natureza da condição
humana em geral. O artigo divide-se em três partes: 1) a primeira parte é dedicada a
discutir a acima mencionada alegação paradoxal em Vida de Don Quijote y Sancho; 2)
a segunda parte trata principalmente do Capítulo XXXI de Niebla de Unamuno; e 3)
na parte final tratarei do insight de Unamuno que a relação entre o eu e Deus é,
propriamente falando, da mesma natureza que a relação entre um autor literário e os
entes imaginários que ele cria. Além disso, tentarei situar o insight de Unamuno
dentro de um contexto mais amplo da história das idéias, e apontar algumas de suas
principais implicações filosóficas.
1.
“Para falar a verdade, não se pode dizer que Dom Quixote é produto de
Cervantes.” (Unamuno, 1967: III, 455). Esta é uma das idéias centrais
que ocorrem, de várias formas e sob diferentes aspectos, do início ao
fim de Vida de Dom Quixote e Sancho de Miguel de Unamuno. Na
opinião de Unamuno, um personagem como Dom Quixote é uma
criatura muito complexa, profunda e autentica para ser simplesmente o
produto da imaginação de alguém. Menos ainda da imaginação de
Cervantes. Frequentemente Unamuno é muito crítico a respeito da
*
Professor do Departamento de Filosofia da Miami University, Oxford. E-mail:
bradatc@muohio.edu. Artigo publicado originalmente in Janus Head, 7(2), 453-
467. Copyright © 2004 by Trivium Publications, Amherst, NY, gentilmente cedido
para publicação em português. Tradução de Jaimir Conte.
1
Ao fazer um comentário sobre o Dom Quixote de Cervantes ele confessa num dado
momento: “para minha vergonha, devo admitir que tenho às vezes inventado seres
imaginários, personagens de romances, com o objetivo de colocar em suas bocas
palavras que eu não ousaria colocar em minha própria, e fazê-las dizer como que de
brincadeira alguma coisa que eu considerei muito seriamente.”(Unamuno, 1967:
III, 14).
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 255
2.
Como um comentador certa vez disse, “Névoa [Niebla] é a
extensão lógica, a tradução para a ficção de todos os pronunciamentos
teóricos em Vida de Dom Quixote e Sancho.” (Basdekis 1974: 52).
Nesta novela podemos encontrar em uso por assim dizer,
personificados em situações e enredos literários concretos, alguns dos
insights teóricos que Unamuno desenvolveu no ensaio A vida de Dom
Quixote e Sancho.
Niebla é uma estória muito mais complexa do que eu posso
descrever aqui, mas – para os propósitos do presente ensaio –
permitam-me apenas extrair e discutir em alguma extensão um capítulo
isolado, a saber, o Capítulo XXXI. Neste capítulo ocorre que um
personagem do livro, um tal Augusto Pérez, antes de vir a cometer
suicídio, decide fazer a coisa mais inesperada que jamais passou pela
cabeça de um personagem literário em toda a história da moderna
narrativa: isto é, sair da novela e fazer uma visita de despedida a seu
verdadeiro criador, ao próprio Miguel de Unamuno. Este é, como
Carlos Blancos Aguinaga coloca, um “capítulo extraordinário – e
justamente famoso” onde, “as convenções da Ficção, e, portanto, da
existência, são quebradas”, um capítulo de uma “originalidade
surpreendente” (Blancos Aguinaga 1964: 1940), que terá uma
2
Naturalmente, isso porque, em última instância, é o leitor que “constrói” o
personagem literário do livro que ele está lendo: “em últimos termos a essência
intrínseca de uma criatura imaginária deve ser formada pelo leitor, que por sua vez
descobre alguma coisa em si mesmo… o papel do autor tem sido minimizado, pois
o leitor torna-se o verdadeiro autor das personagens imaginárias.”(Basdekis 1974:
55) Mas, dentro do espaço limitado deste artigo, procurei deixar de lado todos estes
problemas da recepção, da contribuição do leitor para a construção do enredo, etc.
256 Costica Bradatan
Naquele tempo, Augusto tinha lido um ensaio meu em que, ainda que de
passagem, falava do suicídio, e causou tal impressão sobre ele... que não quis
deixar este mundo sem conhecer-me e conversar um pouco comigo. E, deste
modo, ele veio a Salamanca, onde faz mais de vinte anos eu vivo, a fim de
me visitar (Unamuno 1976: VI, 216-17)
Você quer me matar como um ente de ficção? De modo que hei de morrer
ente de ficção? Pois bem, meu senhor criador Dom Miguel, também você
morrerá. Você retornará ao nada de que saiu...! Deus deixará de sonhar você!
Você morrerá... ainda que não o queira; morrerá você e morrerão todos os
que lerem minha história, todos ... Entes de ficção como eu; o mesmo que
eu! ... você, meu criador, meu caro Dom Miguel, você não é mais que outro
ente “nivolesco”. (Unamuno 1976: VI, 226).
3
Carlos Aguinaga inclusive concebe um cenário fascinantemente engenhoso para
tornar esta tese mais convincente: “podemos perfeitamente imaginar um dia em que
um ser humano encontrará em alguma biblioteca desconhecida uma obra estranha e
antiga com o título de Niebla, autor desconhecido: qual então será a diferença entre
Miguel de Unamuno e Augusto Pérez?”(Blancos Aguinagua 1964: 198).
258 Costica Bradatan
3.
A noção de que nós seres humanos podemos perfeitamente ser
apenas atores em alguma peça ou brincadeira, sem qualquer verdadeira
autonomia e auto-suficiência, totalmente dependentes de um magister
ludi, de alguém que é encarregado de organizar, iniciar e terminar a
brincadeira, é certamente um dos mais antigos temas no mundo
europeu. Por exemplo, em suas Leis (803 c-d) Platão diz em algum
momento que
4
Na verdade, Blacos Aguinaga alude a este fato: “no final das contas esta é a
exemplaridade, a lição de Niebla. Um belo exemplo de como a tradição novelística
em uso numa situação moderna pode forçar a imaginação a aproximar-se a ponto de
não retornar, para aí revelar o significado do jogo de Ficção, a precariedade da
Existência.”(Blancos Aguinagua 164: 205).
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 259
representando nossa peça o mais perfeitamente possível... Deveríamos passar
nossas vidas jogando... com o resultado do talento obter a graça dos céus...
(Platão 1961: 1375).
5
Mais sobre esta questão em meu ensaio “George Berkeley’s ‘Universal Language of
Nature’.” (Bradatan, 2005).
260 Costica Bradatan
Há, entretanto, algo que nos pode “salvar”, por assim dizer,
algo que pode compensar nossa precariedade ontológica. Ainda que
Unamuno não fale explicitamente sobre esta forma particular de
“salvação”, considero como sendo uma das consequências lógicas de sua
noção em Niebla que Deus nos está “sonhando”, que não passamos de
“personagens” na estória cósmica de Deus. Minha interpretação avança
como segue.
Considerando que estamos entre um Deus que nos cria apenas
por meio do sonho e o denso nada (nada) do qual tentamos sair fora,
parece que a única maneira razoável de dar sentido à nossas vidas é
contar estórias e imaginar a vidas dos outros (nossas vidas não vividas?),
produzir/sonhar narrativas e torná-las conhecidas de nossos vizinhos,
criar por nossa conta entes fictícios e mundos fictícios. É verdade: do
ponto de vista exclusivo de Deus, somos feitos da mesma substância de
que os sonhos são feitos. Não obstante, precisamente por nossa
habilidade para sonhar/contar estórias, ou seja, espelhar e multiplicar o
mundo de Deus, nós não estamos completamente perdidos. Como
Unamuno coloca, “narrar a vida é a maneira mais profunda de vivê-la”.
Desta maneira a literatura deixa de ser simplesmente uma “prática
cultural” como qualquer outra, mas de algum modo passa a adquirir o
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 263
Referências
BRADATAN, C. (2005). George Berkeley’s “Universal Language of
Nature’.” In K. van Berkel & A. Vanderjagt (Eds.), The book of nature
in modern times. Leuven: Peeters Publishers.
BASDEKIS, D. (1974). Unamuno and the Novel. Estudios de
Hispanófila, 31.
Narrativa como Imitatio Dei em Miguel de Unamuno 265
Gianluca Cuozzo *
Tradução:
Íris Fátima da Silva **
e Edrisi Fernandes ***
Abstract: Nicholas de Cusa (1401-1460) to wave the double chance to take off the
malum mundi or the current sin or guilt of original, He says that "this sin can be very
well that the origin, the way they are mother is conceived in sin by its existence has
caused the impurity and the lust of the flesh”. Then, continuing Cusano, because
everyone, from Adam, were designed so the mother according to the will of one man
[...], why children born of anger and we have the spirit of lust of meat [...], and this
inclination to evil, we feel that since adolescence; know that we are not moved by the
good spirit of God”.
Keywords: Nicholas de Cusa, Malum mundi, Sin or guilt of original
Nota bibliográfica
As obras de Nicolau de Cusa foram citadas diretamente no texto, entre parênteses,
segundo a edição crítica da Academia das Ciências de Heidelberg (NICOLAI DE CUSA
Opera omnia, iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem
edita) em vias de publicação pela Editora Felix Meiner em vinte e dois volumes. A
abreviação da obra citada é seguida em algarismo romano pela indicação do livro ou do
capitulo; além disso, depois do ponto e vírgula segue, sempre em algarismo arábico, a
página da tradução italiana à qual foi feita a referência. A tal critério fazem exceções
somente os sermões e o epistolário cusano, cujas edições estarão indicadas em notas de
rodapé.
Aqui em seguida são dadas as abreviações das obras citadas de Nicolau de Cusa
(segundo a numeração progressiva da Opera omnia) e as traduções italianas adotadas:
DI = De docta ignorantia, traduzida por E. Hoffmann e R. Klibansky in Opera omnia,
vol. I, Leipzig, 1932; trad. it. de G. Santinello (in Cusano, La dotta ignoranza, Le
congetture), Milão, Rusconi, 1988 (= s) e ou de G. Federici Vescovini (in Nicolò
Cusano, La dotta ignoranza), Roma, Città Nuova, 1991 (= v);
ApDI = Apologiae doctae ignorantiae, traduzida por R. Klibansky, in Opera Omnia, vol.
II, Leipzig, 1932; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, ed.
bilíngüe latim-italiano), vol. II, Bolonha, Zanichelli, 1980;
Coni. = De coniecturis, traduzida por J. Koch e K. Bormann, in Opera omnia, vol. III,
Hamburgo, 1972; trad, it. de G. Santinello (in Cusano, La dotta ignoranza, Le congetture,
cit.) (= s) e ou de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano), Turim, Utet,
1972 (= v);
Deus absc. = De Deo ascondito, in Opuscola I, traduzida por P. Wilpert, in Opera omnia, vol. IV,
Hamburgo, 1959; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (= s)
e ou de L. Mannarino (in Nicolò Cusano, Il Dio nascosto), Bari, Laterza, 1995 (= m);
Quaer. = De quaerendo Deum, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò
Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (= s) e/ou de L. Mannarino (op. cit.) (= m);
De fil. = De filiatione Dei, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò
Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II (=s) e ou de L. Mannarino (op. cit.) (= m);
De dato = De dato Patris luminum, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in
Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II;
De gen. = De genesi, in Opuscola I, cit.; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano,
Scritti filosofici, cit.), vol. II;
Id. De sap., Id. De men. = De idiota (De sapientia, De mente, traduzida por R. Steiger,
com dois Apêndices de R. Klibansky; De staticis experimentis, traduzido por L. Baur, com
o acréscimo de uma breve Dissertação de K. Bormann e H. G. Senger), in Opera omnia,
vol. V, Hamburgo, 1983; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici,
cit.), vol. I, Bolonha, Zanichelli, 1965;
De vis. = De visione Dei, traduzida por A. D. Riemann, in Opera omnia, vol. VI,
Hamburgo, 2000; trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.),
vol. II;
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 269
Crib. = Cribatio Alkorani, traduzida por L. Hagemann, in Opera omnia, vol. VIII,
Hamburgo, 1986; trad. it. de P. Gaia (op. cit.);
Aequal. = De aequalitate, traduzida por H. G. Senger, in Opera omnia, vol. X,
Opuscola II, fasc. 1, Hamburgo, 2001; trad. it. de G. Federici Vescovini (in Opere
filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);
Compl. = De theologicis complementis, traduzida por H. G. Senger, in Opera omnia,
vol. X, fasc. 2a, Hamburgo, 1998; trad. it. de G. Federici Vescovini (in Opere filosofiche
di Nicolò Cusano, cit.);
Princ. = Tu qui es/“De principio”, in Opuscola II, traduzida por A. D. Riemann e K.
Bormann, in Opera omnia, vol. X, fasc. 2b, Hamburgo, 1988; trad. it. de G. Federici
Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);
Beryl. = De beryllo, traduzida por L. Baur, in Opera omnia, vol. XII, Leipzig, 1940
(Ver também a mais recente “edição menor” da Academia das Ciências de Heidelberg
traduzida por K. Bormann, texto bilíngüe latim-alemão, Hamburgo, Meiner, 1977);
trad. it. de G. Santinello (in Nicolò Cusano, Scritti filosofici, cit.), vol. II;
Pos. = Trialogus de possest, traduzida por R. Steiger, in Opera omnia, vol. XI2,
Hamburgo, 1973; trad. it. de G. Santinello (in Nicolau de Cusa, Scritti filosofici, cit.),
vol. I;
Comp. = Compendium, traduzida por B. Decker e K. Bormann, in Opera omnia, vol.
3
XI , Hamburgo, 1973; trad. it. de G. Santinello (in Nicolau de Cusa, Scritti filosofici,
cit.), vol. I;
Non al. = Directio speculantis seu de non aliud, traduzido por L. Baur e P. Wilpert,
in Opera omnia, vol. XIII, Leipzig, 1944 e Hamburgo 1950; trad. it. de G. Federici
Vescovini (in Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit.);
Conc. = De concordantia catholica, traduzido por G. Kallen, 4 vols., in Opera omnia,
vol. XIV, Leipzig, 1939-1968; trad. it. de P. Gaia (op. cit.).
1 R. Haubst, Die Christologie des Nikolaus von Kues, Friburgo, Herder, 1956, p. 63.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 271
2 Nicolau de Cusa, Sermones CXXXVII, “Tibi dabo claves” (1454), in Nicolai de Cusa
Opera Omnia, cit., vol. XVII, Sermões II (1443-1452), fasc. 2 (sermones XL-XLVIII),
traduzido por R. Haubst e H. Schnarr, 1991, p. 38B (trad. G. Cuozzo,
presentemente vertida para o português).
3 Idem, Sermones XXIV, Jhesus in eyner allerdemutichster Menscheit (Pater noster in
vulgari expositum) (1441), Opera omnia, cit., vol. XVI, Sermones I (1430-1441),
fasc. IV (sermones XXII-XXVI), traduzido por R. Haubst e M. Bodewig, 1984, p.
431A; trad. it. de P. Gaia, Predica sul Padre nostro, Turim, SEI, 1995, p. 56.
4 Ibidem, p. 403A; trad. it. cit., p. 41.
5 Idem, Sermones LIV, Remittuntur ei peccata multa (1445), in Nicolai de Cusa Opera
omnia, cit., vol. XVII, in Sermones II (1443-1452), fasc. 3 (sermones XLIX-LVI),
traduzido por R. Haubst e H. Schnarr, 1996.
6 Ibidem, p. 262A.
7 Idem, Sermones VII, Remittuntur ei peccata multa (1431), in Nicolai de Cusa Opera
Omnia, cit., vol. XVI, in Sermones II (1430-1441), fasc. 3 (sermones V-X), traduzido
por R. Haubst, M. Bodewig e W. Krämer, 1973, p. 121B.
272 Gianluca Cuozzo
8 Ibidem, p. 129A.
9 Ibidem, p. 121A.
10 Idem, Sermones VI, Respexit humilitatem (1431), in Nicolai de Cusa Opera Omnia,
cit., vol. XVI, Sermones I (1430-1441), fasc. 2, cit., p. 109 (o itálico é de G.
Cuozzo).
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 273
15 Idem, Sermones XXII, Dies sanctificatus (1440), in Nicolai De Cusa Opera Omnia,
cit., vol. XV, Sermones I (1430-1441), fasc. 4 (sermones XXII-XXVI), traduzido por
R. Haubst e M. Bodewig, 1984, p. 344B; trad. it. de G. Federici Vescovini, in
Opere filosofiche di Nicolò Cusano, cit., p. 674.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 277
17 Nicolau de Cusa, Sermones XXII, Dies sanctificatus (1440), cit., p. 344A, trad. it.
cit., p. 687.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 279
que no De sapientia remete aos elementos tradicionais, retirou dali alguns trechos e
os uniu depois a alguns fragmentos do De remediis, a fim de constituir com todos
estes pedaços um tratado pseudo-petrarquesco”: Genèses de la modernité, cit., p. 447.
Este tratado pseudo-petrarquesco, intitulado De vera sapientia, foi editado junto ao
Dicteriarum vel Apophythegmatum de Plutarco (traduzido em latim por Filelfo), pela
primeira vez em Utrecht em 1473 (Traiecti ad Rhenum per Nicolaum Katelaer et
Geradum de Leempt), antes mesmo que saíssem [em 1488] as obras publicadas do
Cusano; a primeira edição na Opera Omnia [de Petrarca] foi publicada em 1554
(Basilae excudebat Henricus Petri), traduzida por Johannes Herold. G. Santinello,
recusando-se a ver em Francesco Filelfo o autor do tratado pseudo-petrarquesco
proposto por K. Borinsky [“Eine unerkannte Fälschung in Petrarcas Werke”.
Zeitschrift f. romanische Philologie, XXXVI (1912), 5, p. 586-597], fala de um
desconhecido humanista de século quatorze que, pelas manipulações e interpolações
do De sapientia cusano com partes do De remediis utriusque fortunae, “reencontrou
dois diálogos intitulados De vera sapientia, por ele editados como obra de Petrarca
antes ainda que saisse a primeira edição, em 1488, da obra do Cusano. Este
[trabalho do] Pseudo Petrarca passou em todas as edições do século quinze das
Opera omnia de Petraca como seu trabalho autêntico e teve a honrra de várias
traduções, em boêmio [= tcheco], em alemão e em italiano, citadas freqüentemente
como obra de Petrarca”: Introduzione a Niccolò Cusano, cit., p. 87. O falseio foi
descoberto próximo do fim do século dezoito por E. Übinger: cf. “Die angeblichen
Dialoge Petrarcas ‘Über die wahre Wahrheit’”. Vierteljahrschrift für Kultur und
Literatur der Renaissance (1897), t. II, p. 57-70. Resta, porém, o fato que o Cusano,
continua Santinello, “conhecia muitas obras latinas de Petrarca e os códices nos
quais tinha lido algumas anotações de seu próprio punho. Ele estava interessado, de
modo particular, pela concepção ascética do De otio religiosorum de Petrarca e por
motivos do De suis ipsius et multorum ignorantia que ele podia apresentar como
motivos próximos à sua douta ignorância”: op. cit., p. 87. As obras de Petrarca
encontradas ainda hoje nos códigos do Cusano conservadas no St. Nikolaus
Hospital de Berkastel-Kues são o De vita solitaria (Cod. Cus. 53), o De remediis
(Cod. Cus. 198 e 199), e Rerum memorandarum, o De secreto, o De otio, o Sine
nomine e o De sui ipsius et multorum ignorantia (Cod. Cus. 200). Para a história da
obra pseudo-petrarquesca ver R. Klibansky, De dialogis De vera sapientia Francisco
Petracae addictis (Appendix II), in Nicolai de Cusa Opera omnia, vol. V, Idiota,
traduzido por L. Baur, Hamburgo, Meiner, 1983, p. LXV-LXXII. Para as relações
entre o Cusano e Filelfo – em quem, todavia, Klibansky recusa-se a ver o hipotético
falsário do tratado pseudo-petrarquesco -, relações indiretas tornadas possíveis
através da mediação de Giovanni Andrea de Bussi (que difunde a obra do Cusano
na Itália), veja-se sobretudo a p. LXVII; é muito provável, assim escreve Klibansky,
que o autor do tratado - dadas as discrepâncias estilísticas entre Petrarca e o escrito
do desconhecido autor - seja um dos seguidores da devotio moderna, como Tomás de
Kempis: “Porque de Petrarca, na França setentrional e na Holanda, grande era a
288 Gianluca Cuozzo
autoridade não tanto como poeta lírico, mas ainda mais como ‘filósofo moral’; é,
porém, fácil entender por quais razões o falsário do livro De vera sapientia o tivesse
atribuído propriamente a Petrarca”: ibidem, p. LXX.
26 Como afirma G. Santinello, “os dois fatos citados, ou seja, a falsificação de uma
obra do Cusano deixada passar sob o nome de Petrarca, e as notas e sinais marginais
do Cusano às obras petrarquescas, constituem uma pequena documentação para
uma história mais vasta da influência de Petrarca sobre o pensamento e a
espiritualidade européia, sobretudo no domínio cultural da Renânia e de Flandres”:
Studi sull’umanesimo europeo. Cusano e Petrarca. Lefevre, Erasmo, Colet e Moro,
Pádua, Antenore, 1969, p. 9.
27 F. Petrarca, De sui ipsius et multorum ignorantia, cit., p. 198.
28 Ibidem, p. 203.
29 Ibidem, p. 236.
30 Ibidem, p. 301.
31 E. Cassirer, Il problema della conoscenza nella filosofia e nella scienza
dall’Umanesimo alla scuola cartesiana, cit., p. 47.
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 289
natureza, mas nem mesmo eu me arrisco a conter tudo aquilo que sou. Ou que o
ânimo é demasiado restrito para conter si mesmo? E que será aquilo que de si não
vos é apenso (accolto)? [...] A estas considerações, uma grande maravilha surge em
mim: sou invadido pelo estupor”: Sermo I De symbolo, c. 2, in PL, vol. XL, col. 628.
Em tal sentido, conhecer a si mesmo significa ao mesmo tempo ter consciência
daquilo que eu - enquanto isso que carrega a marca da transcendência - não posso
saber de mim mesmo: “Confessarei, portanto, aquilo que sei de mim: confessarei
também aquilo que não sei: porque aquilo que sei de mim o sei através da tua luz,
aquilo que de mim não conheço devo ignorá-lo até que as minhas trevas, na visão do
teu rosto, se tornarão ‘como a luz do meio dia’ (Is. LVIII, 10)”: Idem, Confessiones,
X, c. 5 (Homo sese totum non novit) in PL, vol. XXXII, col. 782; trad. it. de C. Vitali,
Milão, Bur, 1985, p. 265.
37 S. Bernardo, segunndo o qual “Humilitas est virtus, qua homo verissima sui
cognitione sibi ipse vilescit”: De gradibus humilitatis et superbiae, cap. II (Quo fructu
ascendatur gradus humilitatis); PL, vol. CLXXXII, col. 943.
38 W. Beierwaltes, Autocoscienza ed esperienza dell’Unità. Plotino, Enneade V, 3,
traduzido por G. Reale, trad. it. de A. Trotta, Milão, Vita e Pensiero, 1992, p. 44.
No escrito pseudo-petrarquesco De vera sapientia, afirma Santinnello, pelo fim do
primeiro diálogo (no qual se alternam passos tirados por Petrarca com passos tirados
do Cusano) o autor desconhecido acrescenta algumas reflexões suas (ou talvez
extrapoladas de uma fonte ainda desconhecida) relativas ao conceito de douta
ignorância, nas quais - acrescento com toda a cautela que o caso requer - transparece
esta conotação finitística do tema da sui cognitio: “´É preciso fazer-se ignorante para
tornar-se sapiente. O verdadeiro sapiente é aquele ao qual as coisas ‘sapiunt prout
sunt’, coisas mortais não eternas; ele deve aprender a gostar somente de Deus. O
homem deve se reconhecer como ‘animal rationale aut mortale’; racional sim, mas
mortal”: in Studi sull’umanesimo europeo, cit., p. 12. Esta conotação moral típica das
obras latinas de Petrarca, que Santinello ademais julga estar em contraste com a
relevância filosófico-teológica do De sapientia cusano, poderia ser reveladora de uma
tendência implícita na obra do próprio Cusano. Que seja possível um confronto
nesta direção (alargando os termos do confronto, estendendo por um lado as análises
ao De ignorantia petrarquesco, e por outro com o analisar a obra do Cusano no seu
complexo) constitui o fundo do que se trata internamente no presente artigo.
Acolheremos, portanto, algumas sugestões de G. Saitta, Nicolò Cusano e
l’Umanesimo italiano (com outros ensaios sobre o Renascimento italiano), Bologna,
Zanichelli, 1957, p. 131-144: o De idiota, afirma Saitta, seria de sabor
esquisitamente pertrarquesco; “a mesma palavra Idiota é transportada desde
292 Gianluca Cuozzo
43 “Afim que isso possa ser dito dele, mais tarde, na glória, é necessário que antes
possa ser dito na sua miséria; e isso se pode dizer do homem que se humilha, e dele
somente. Julgando-se miserável como Deus o julga miserável, conhece a enormidade
do próprio crime e sabe que merece ser punido”: E. Gilson, La teologia mistica di
San Bernardo, cit., p. 81.
44 J. Tauler, Die Predigten, traduzido por F. Vetter, Dublim-Zurique, Weidmann,
1968, n. 78 (Domus mea domus oracionis vocabitur), p. 421; in Opere, trad. it. di B.
de Blasio, Edições Paulinas, 1977, p. 542. Na atmosfera dos Gottesfreunde,
comunidade religiosa do século XIV-XV, aparecida entre Estrasburgo e Basiléia e
inspirada por Tauler – místico seguidor de Eckhart que não deixou de próprio
punho nenhum escrito –, é encontrado um texto anônimo chamado Liber magistri
(ou Lebens-Beschreibung), no qual se narra o seguinte episódio: “Um grande
pregador, homem muito douto [...], encontra o ‘amigo de Deus’ (Gottesfreund) dos
Países Baixos, um tipo de eremita que lhe mostra a inutilidade do seu ensinamento
livresco, submetendo-o a toda uma série de provas a fim de provocar-lhe uma
‘conversão’, a qual, todavia, resulta ainda incompleta; motivo pelo qual, à sua morte,
o pregador deverá padecer ainda seis dias de sofrimento assustador no Purgatório.
Hoje se sabe que este curioso texto é oriundo, se não das suas próprias mãos [= de
Tauler], pelo menos do círculo mais próximo ao banqueiro Merswin, de quem
Tauler foi por algum tempo confessor. O Liber magistri contém toda uma série de
histórias edificantes na qual o profano (o idiota) faz a pregação ao seu cuidado”: in
M. De Gandillac, Genèses de la modernité, cit., p. 367. Para o Liber magistri veja
Joannis Tauler, Opera Omnia, Colônia, ex Officina Ioannis Quentel, 1668, p. IX-
XL. Também o idiota, entendido como “leigo devoto” (frommer Laie: cf. M. De
O tema do “pecado original” [em] Nicolau de Cusa 295
junto à ciência da sua ignorância não em virtude dos livros que fazem o
saber dos oradores e dos eruditos, mas sim daquele de Deus (ex Dei
libris), que ele “escreveu com o seu dedo” (suo digito scripsit) e se
encontra em toda a parte.
*
Mestre em Filosofia pela UFSM. E-mail: itamarluis@gmail.com. Resenha recebida
em 30.10.2008 e aprovada em 12.12.2008.
Sandra S. F. Erickson *
*
Professora adjunta do Departamento de Letras da UFRN. E-mail:
ericksons@ufrnet.br . Resenha recebida em 20.10.2008, aprovada em 12.12.2008.
[Hamlet] Why, look you now, how unworthy a thing you make of
me! You would play upon me; you would seem to know
my stops; you would pluck out the heart of my
mystery; you would sound me from my lowest note to
the top of my compass: and there is much music,
excellent voice, in this little organ; yet cannot
you make it speak. 'Sblood, do you think I am
easier to be played on than a pipe? Call me what
instrument you will, though you can fret me, yet you
cannot play upon me. (Hamlet, Act 3, Scene 2).
Bem se vê como vocês fazem de mim uma coisa sem mérito! Vocês fariam
troça de mim; vocês parecem conhecer minhas paradas; vocês arrancariam
fora o coração do meu mistério; vocês me soariam das minhas notas mais
baixas ao topo do meu compasso: e existe tanta música, excelente voz, nesse
pequeno órgão; todavia vocês não podem fazê-lo falar. Pelo sangue de
Jesus, vocês acham que eu sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Me
chame por qualquer instrumento que quiserem, ainda que vocês não
possam tocar meus trastes, 1 ainda vocês não podem tocar/jogar sobre mim.
1
Do inglês medieval, freten, fret (trastes/trasto) significa devorar, mas se refere àquela
parte no braço do violão (e outros instrumentos de cordas afins) que separa as casas;
significa ainda pressionar (as cordas de um instrumento contra os trastes) e,
Resenha 307
éticos, definidos por suas qualidades morais, suas virtudes e vícios” (p.
178), ficando sua posição comprometida. Nada demais ele acrescenta e,
como nas demais considerações, muito de menos, pois falta sempre a
substância “sofial” que supostamente é o cerne do livro.
“Shakespare e a tragédia” (capítulo onze) é deveras pobre. O
autor discorre – melhor, corre – sobre o conceito de drama e tragédia e
sobre a natureza do trágico com a insuportável leveza da
superficialidade em assunto que interessa, cada vez mais, tanto a tantos.
É difícil de entender como é que num livro que pretende revelar a
relação de Shakespeare com a filosofia e fazê-lo filosoficamente, A
poética, de Aristóteles nem tenha sido mencionada, especialmente
porque, enquanto Dr. Samuel Johnson, no famoso Preface to
Shakespeare (1765) desculpa o bardo pela não observância das
prescrições da Poética, T.S. Eliot não “amansa,” considerando Hamlet
uma peça ruim, do ponto de vista formal exatamente pela falta de rigor
aristótelico do ponto de vista estrutural. Aliás nenhum conceito das
duas categorias (tragédia e trágico) é oferecido ao leitor, apenas
comentários aqui e ali sobre algumas categorias trágicas mal
alinhavados e breves, como “a arte de Shakespeare é imitativa ou
mimética” (p. 202, ênfase do autor). As seis páginas que ele dedicou ao
assunto poderiam ter sido omitidas porque, francamente, não fazem a
menor diferença.
Existem algumas outras frases de efeito, ainda no prefácio,
como “Shakespeare mantinha uma visão do homem e do universo que
não tem uma denominação própria, mas que é aproximada a
denominações como ‘pessimismo’, ‘niilismo’, ‘ceticismo’” (p. 15).
Acontece que também aí, os bois já foram nomeados antes de McGinn
e discussão de peças, temas e imaginário shakespeareano dentro e a
partir dessas perspectivas filosóficas são comuns até nos textos escritos
para introduzir às peças para um público mais geral nas edições das
obras completas do autor como a editada por D. Bevington, (The
Complete Works of Shakespeare, 3rd ed. Glenview: Foresman, 1980).
Encontramos frases de uma ingenuidade pristina, como: “às vezes se
supõe que o desenlace trágico numa tragédia shakespereana é inevitável
– que, realmente, as coisas não poderiam ser de outro modo. Quando a
gente vê os personagens e as situações nas quais eles estão envolvidos,
312 Sandra S. F. Erickson
podemos antecipar com certeza que as coisas vão acabar mal” (p. 197).
É de se perguntar: o autor realmente compreende a definição de
tragédia? De trágico? A inserção do projeto de Shakespeare na tradição
dramatúrgica?
Poupemo-lo da falta que faz a Poética, no tratamento do autor
de drama (como gênero), oposto à espetáculo, como ele fez questão de
notar (p. 9) e do self como entidade teatral e interativa (p. 10) que não
vem de Shakespeare, tanto quanto do velho Ari. Mas, como desculpar a
omissão de Hegel, Nietzsche, Walter Benjamim, Gilles Deleuze, Karl
Jaspers? A distinção entre tragédia e trágico é um banquete de falas dos
mais sensacionais na filosofia contemporânea. Não se pode entender
como é que um estudo com a pretensão de revelar a filosofia atrás do
trágico nas peças de Shakespeare se furte de sequer revisar e interagir
com as teorias e a literatura do tema.
A pergunta é: tem McGinn alguma contribuição e oferece ele
um estudo realmente filosófico do assunto? Na página 15, ele reinventa
a roda dizendo que “Shakespeare possuiu uma visão do homem e do
universo que não tem um nome estabelecido, mas que se aproxima de
rótulos como ‘pessimismo’, ‘nihilismo’ceticismo’” (p.15). O
comentário do autor de que “Hamlet se descobre [revela] durante a
ação dramática” (p.48) e “sofre de fraqueza da vontade” (p.49) é
“emprestado” do, deveras nervoso, Harold Bloom.
Ah! A velha discussão do caráter indecidido de Hamlet! Não
aguento mais essa proposição (que Bloom também suporta), tão
corrente quanto bem aceita na fortuna crítica da peça, que apresenta o
protagonista – portador do agon – como um garoto mimado, trapalhão
e indeciso e um tipo de intelectual sem adrenalina, quando o cara, que
na verdade é um militar da tropa de elite do reino, mata em contextos
diferentes, incluindo duelo a rigor, nove pessoas; está sempre ativo nos
corredores dos podres e perigosos poderes do palácio, é exilado, e tenta,
investigar um regídio que o faz sucessor de um trono usurpado não
apenas por seu próprio tio, mas com a cumplicidade da própria rainha-
mãe! Em suma, um cara com uma agenda e uma herança terrível, numa
situação política de quase total isolamento, onde o mais sensato é
mandar a namorada querida que o atraiçou para o convento e dar uma
de doido e para quem o lugar mais seguro, é mesmo as vias mais
Resenha 313