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0 TE aS ni 0 0 { lst JOAO JOSE REIS 6 professor de Historia da UFBa e autor de Rebelo Escrava no Brasil: a Histéria do Levante dos Malés (Grasiiense) eA Morte ‘é uma Festa: Rios Fénebres e Fevolta Popular no Brasil do ‘Século XIX (Companhia das Letras), Extaartgn dpe do um oetdo rmaisampsoparacjareabza;d0 onto eam oupoiadoCNPq edo Garo de Eetudos AoA 20m, Rode Janaro, Gostara de ‘Sradecer a Jucth Aton ave ‘moi mechamou senso para ‘tyeve de 1057, 1. RebertAvbLalmant, Viagem Provincias da twiSto Pao, 1960, p22. 2 dexnal do Baia (16218087 0 ‘WEITB57 daccesto depen. ‘doe da Btioteca Psica ‘do Esta da Bahia 3. Kita de Natoso, Bahia 13 Cidace do Salvador © sou Marcado no Secu XX 50 PasltSalvador 1978.9 138, ‘ana Ala V. Nascimento, Dae Freguesas de Cuneo ‘Saivador Saad, p65, 4. Jorma cta Bani (921857, 5. Mode de censo: James Wbarl Braz Say Notes ftom Batia, Uiverpocl, 1860 pp. 95-6: Subdelagado Mano! Valen ao Chale Ge Palica, 17/1884, qa: \oPibteo doEstacodabana (aPeba seraverte), Patin mage 6234, 6. Herbert Kin. “A Demograi So Tafen Alans de Caer: ‘os para Brann Estusos Econtmicos, 173 (1987, p 133. B REVISTAUSP m 1857, a maioria dos negros de Salvador, escravos ou nio, traba- Thava na tua, ou entre a casa ea rua, Eles eram responsiveis pela circulagio de coisas e pessoas pela cidade. Carregavam de tudo: pa- cotes grandes © pequenos, do en- velope de carta a grandes caixas de agécar, tinas de agua e fezes, tonéis de aguardente € gente em cadeiras de arruar. Nao se viam mesticos, muito menos brancos nessa ocupagio. “Tudo que cor- re, grita, rabalha, tudo que transporta ¢ carrega € negro”, observou em 1858 0 Viajante alemio Robert Avé-Lallemant (1). Masno primeiro dia de junho de 1857, uma segunda-feira, as ruas de Salvador amanheceram estranhamente calmas. Os negros haviam decidido cruzar os bra- 0s, em protesto contra uma postura mu- nicipal em vigor a partir daquela dat A postura, publicada trés meses an- tes, estubelecia que os ganhadores, como eram chamados esses trabalhadores de rua, doravante s6 poderiam “ganhar” mediante licenca concedida pela Cima- ra Municipal. Por esta licenga, ou matri- cula, pagariam dois mil réis. No mesmo alo deveriam pagar uma taxa adicional de trés mil réis por uma chapa de metal com 0 ntimero de inscrigio, de uso obri- gatGrio ao pescogo sempre que estives- sem no ganho. O custo total da operagio, cinco mil réis, nao era desprezivel. Equi- valia naquele ano de 1857 a cerca de uma arroba (quinze quilos) de carne. Alé disso os libertos (ex-escravos) deveriam apresentar um fiadores “iddneos” que se comprometesse pelo comportamento futuro deles. Incluidos nessa lei estavam s6 os ganhadores, nio as ganhadeiras, negras que se dedicavam principalmente a mercadejar diversos géneros secos ¢ mothados. E entre os ganhadores o edital da Cimara destacava: 1) “ganhadores de cesto ou tina”, isto & os que transpor- tavam individualmente liquidos em ti- nas, principalmente agua, e pequenos mas s6lidos volumes em cesto; 2) “ga: mhadores de pau e corda”, que transpor- tavam em grupos fardos maiores e mais pesados, ulilizando-se de longas varas e cordas; 3) “carregadores de cadeiras” que trabalhavam em duplas no trans porte de pessoas. O edital ainda acres- centava que estariam sujeitos 3 postura “os mais que fazem profissio habitual de ganhar”, o que incluia praticamente todo negro dedicado ao trabalho remunera- do de rua (2). A lei era uma medida, entre muitas outras, concebida pelos poderes piibli- cos para disciplinar 0 trabalho do negro em Salvador. Na verdade, 0 projeto maior era disciplinar 0 negro no espago pabli- Co, tanto de trabalho como de lazer. Fos- sem escravos ou libertos, deviam ser bem vigiados. Vigiados em sua ocupagio os- tensiva da rua, quer carregando ou ven- dendo mercadorias, quer fazendo batu- ques, jogando capoeira ou s6 vadiando. Conforme leis sistematicamente sbedecidas, os escravos deviam levar idos pelos senhores, ¢ os li- bertos, passaportes assinados por auto- ridades policiais, designando quando e por onde podiam circular. Sobretudo nio deviam freqtientar as sombras da noite. TRABALHO E CULTURA DE RUA Os negros eram temidos, em primei- ro lugar, porque eram muitos. As esti- mativas da populagio de Salvador em 1857 variam muito. Mattoso prope 89.260 e Nascimento 58.498 (3). As fon- tes contemporineas sio mais gencrosas: © Jornal da Bahia, por exemplo, arriscou 140 a 150 mil habitantes, uma estimativa “bem calculada” segundo o periddico (4). Se hi diividas quanto aos totais, hit me- nos quanto ao fato de os brancos repre- sentarem uma minoria em toro de 30%. ‘Talvez menos do que isso, se considerar- mos que a popula rava era maticamente subestimada porque os se- nhores evitavam ter seus escravos conta- dos, por temerem impostos ou mesmo 0 confisco dos importados ilegalmente de- pois de 1831 (5). Calcula-se que chega- apenas nos cinco anos an- teriores ao fim definitivo do trifico em 1850, em torno de 46 mil escravos (6). E embora a maioria seguisse para o Recdneavo dos engenhos ou fosse reex- portada para o sul do pafs, alguns milha- res devem ter sobrado para Salvador sem figurarem nas estatisticas oficiais. De qualquer jeito, a populagio es- crava parece também minoritiria em 1857, algo entre 30% e 40%. Entretanto, somados escravos, libertos ¢ livres negro- mestigos, resultavam ampla maioria, $6 ‘0s negros ficavam em torno de 40%, pelo le de origem al Eram eles, como ja se viu e se vera muito mais adiante, que davam a cor da vida baiana de rua. “Opulenta cidade dos negros” foi a Giltima impressio de Avé-Lallemant sobre Salvador — depois de ver Pernambuco, Alagoas ¢ Sergipe (7). As tentativas de controle dos negros datavam dos tempos coloniais, sificaram apés a Independéncia, sobre- tudo no ras scravas qu assombraram os senhores ao longo da primeira metade do século XIX, Essas revoltas foram feitas por africanos. O: negros temidos eram principalmente es tes. Em Salvador, i ttifico atlintico, ria da populagio escrava era nascida na Africa, com uma tendéneia para sua “naciona ‘apenas a partir da ces: 1850. De acordo com dados de Andrade, entre 0 do século € 1849, 67% da mio-de-obra escrava estava formada por africanos; jd na década de 1850 essa pro- porcio cairia para 53%. Num outro tra- balho, calculei em cerca de 33% a pro- porcio de africanos (escravos e libertos na populagio de Salvador em 1835; se- gundo os cilculos de Nascimento, essa proporcio teria despencado para cerca de 24% vinte anos depois (8). Outras caracteristicas da demografia africana devem ser lembradas, por se- rem iiteis para entender a greve de 1857. A Bahia entre 1750 ¢ 1850 importou mais escravos da regio do Golfo de Benin e do antigo Daomé, principalmente povos Aja- Fon-Ewe (aqui chamados jejes), iorubas (aqui chamados nagés) © haussds (lam- bém tidos por augds ou ussds). D século XIX, os de nagio nagé vieram a constituir formidivel maioria, Vou me concentrar nos homens (que eram 60% da comunidade africana), pois foram eles que fizeram a greve de 1857. Vou me aproximar deles através de um registro realizado em 1849 em Santana, freguesia urbana t/pica de Salvador, j4 que o censo de 1855 niio traz os detalhies de que pre- cisamos. O registro contou 925 escravos, dos quais 551 (60%) de origem african: Muitos destes iiltimos nao tiveram sua origens especificadas, listados apenas como “africanos”, mas dos 475 que a ti- veram, 78% eram nagés. Isso confirma estudos que, mostram 0 amplo predomf- nio nag6 entre os escravos vindos de além- mar nas tl as décadas do trifico. Pre- dominavam também entre os libertos: dos 87 africanos com origem conhecida na lista de 1849, 70% eram nagos (9). Disciplinar o trabalhador africano, sobretudo na cidade, era tarefa ingrata. Os escravos precisavam de independén- cia e liberdade de movimento para dar conta do servigo, dar lucto aos senhores ¢ fazer a economia funcionar. Os ganha- dores iam a rua encontrar eles préprios trabalho. Era comum, embora nio fosse generalizado, que os senhores permitis- Sem que Scus escravos até morassem fi sa, em quartos alugados as vezes de MLUSTRAGAO DE CARLOS BASTOS EXTRAIDA D0 LIVRO BAHIA DE TODOS 05 SANTOS DE JORGE AMADO 7. AvéLallemant, Viagem, 272. Proporea do Branco, Dez Freguesias p. 97; Jolo Shain, Rebetso Evorare no Bran SdoPaut, 1996/50, 8. Maria Joss Andra, A Mo: tio-otea Escrnva om Saba. dor 1011-1000, Sto Paso, ‘080, pp. 100.9, Re, Re. beta p16; Nasemeno, Daz Feepuesiag p98. tenna regu tne [12 10457APEBa es Graves (assunios). maco 2600" sobre ico no Golo ‘irohacdetava gee ropes ‘Bann do Todos os Santon REVISTAUSP @ 10.KétiaM de. Matteo, Bahia ‘Séeuo Xx Rio do danevo, ‘000,968, Damesma ao: ta sobre, etcravidbo wana, Satna dresscave au Bias Pass, 1979, passim, "Lalla M. Alga © Flor Au ‘ante Emudoesobrea srs ‘ao Utara no fie dean re. Pespol, 1988 YO REVISTA USP ex-escravos. Eles s6 voltavam & casa para “pagar a semana”, ou seja, a soma sema- nal (que podia ser também difria) con- tratada com os senhores; 0 que mais ganhassem podiam embolsar. Escravos que dessem duro, em condigées favoré- veis de mercado, chegavam a poupar 0 suficiente para comprar alforria apés anos de suor. Libertos, muitas vezes con- tinuavam nas mesmas ocupagdesde gi nho, embora alguns prosperassem a pon- to de se tornarem eles préprios senhores de ganhadores escravos. O trabalho ombro a ombro de escravos e libertos dava significados de liberdade aos pri- meiros € significados de escraviddo aos segundos que faziam das relagesde gan- ho na cidade um curto-circuito perma- nente, De vez em quando dava em incén- dio. Assim foi, em linhas gerais, a escra- vidio urbana onde quer que floresceu, mas em cada cidade os escravos fizeram uma historia particular. Na Bahia, por exemplo, as tentativas de incéndio foram muilas (alias, no s6 na cidade) e uma das razSes pode ser’buscada na concen- tragio étnica entre os ganhadores. Retornemos aos nagés de Santana, Muitos escravos tinham offeios, eram sapateiros, alfaiates, pedreiros, padeiros, calafates, barbeiros, carpinteiros. Mas dos 370 nagés, 30% faziam exclusiv. mente o servigo de rua, a maioria no car- rego de fardos € gente, em saveiros, nas costas ou em cadeiras. Foram arrolados 47% como do “servigo de casa”, mas nao se deve crer que esses homens trabalhas- sem apenas como domésticos. E possivel que muitos tivessem sido assim registrados por senhores temerosos de virem a ser taxados por té-los no ganho. Concordo com Mattoso quando escreve que “a distingio entre escravos ‘de ga- nho’ [...] © os domésticos era t@nue, pois os proprietérios se serviam deles ou os alugavam segundo as necessidades do momento” (10). Pode-se dizer com pou- ca margem de erro que a maioria dos scravos afticanos de Salvador trabalha- va em regime parcial ou de dedicacao exclusiva como ganhadores. Assim, em 1857 as autoridades tinham nas mios um movimento que envolvia a maior parte dos cativos da cidade, E também, talvez sobretudo, dos libertos. Entre os 87 libertos de Santana, nao encontramos nenhum listado como do- méstico. Dos 61 nagés, 18 se declararam carregadores de cadeira, sete remado- res, cinco cangueiros ¢ dez genericamen- te “ganhadores”. Ou seja, 65% se ocupa- vam do servigo de transporte, Os demais negociavam e trabalhavam como artesios. Ao contririo, dos 15 jejes, se- gundo grupo étnico mais numeroso en- tre esses libertos, apenas um se declarou ganhador, e nenhum carregador de ca deira ou ocupagio afim. Nove eram artesios. Entre escravos € libertos, os nagés praticamente dominavam o tra- balho “informal” de rua em 1849 e, como veremos, também em 1857. Foram eles 0s principais responsaveis pela greve. Voltaremos ao assunto, Essa concentracao de africanos da mesma origem, associada ao cariter da escravidao urbana, uma escravidio sem feitor como ja se disse (11), fez florescer uma cultura escrava mais auténoma ¢ ousada. Identidade étnica ¢ densidade cultural africanas, por sua vez, favore- ceram a resisténcia escrava diante de semhores, autoridades policiais e a popu- lacio livre em geral, Apesar da presenga policial, grupos religiosos, grupos de tra- balho e de lazer, redes menores e mais amplas de solidariedade: ou convi- vialidade, tendo por eixo a identidade étnica, se formavam mais facilmente no burburinho da cidade-porto, embora nio estivessem ausentes nos engenhos e fa zendas. E, apesar da predominan numérica de umas nagGes africanas so- bre outras, nfo deixou de haver o inter- cimbio cultural, a negociagio de identi- dades, a redefinigio de solidariedades. Os nagés, por exemplo, vieram de uma terra ioruba dividida em subgrupos muitas vezes hostis entre si, e ainda sepa- rados por afiliagio religiosa ¢ lealdades politicas. Os iorubas dos reinos de Oyo, Egba, Ijebu, Ilexa, Ketu tornaram-se nagés baianos através de complexas tro- cas ¢ convergéncias de signos culturais, no que foram ajudados por uma comum, deuses aparentados, a unio de muitos sob o Isla, a longa experiéncia de stiditos do alafinado de Oyo, a tradigio urbana ioruba e, obviamente, a condigio de cativeiro em terras baianas. A mem6- ria da origem especifica entre esses afri- canos nunca se apagaria completamen- te, “Ainda que todos so nagés, cada um tem sua terra”, tentou explicar um es- cravo nagé a seus interrogadores em 1835 (12). E ainda havia outras divis6es, como aqucla entre os filhos de Ald ¢ os filhos de Orixé, ou entre ambos ¢ os seguidores da Igreja. Mas a propria religiosidade — plas- tica, flexivel, absorvente — dos africanos permitiu que muitos viessem a circular através de diversos discursos religiosos. A compelicio existia, ¢ até 0 conflito, mas grupos islimicos, terreiros, irmandades funcionaram sobretudo como espagos de aglutinago. Em torno desses grupos os escravos aperfeigoaram suas estratégias de resisténcia cotidiana ou decidiram romper com o cotidiano opressivo. Foi assim em 1835, quando escravos € liber- tos mugulmanos, os chamados malés (maioria nag6), se levantaram em Salva- dor na mais espetacular rebelifio escrava no Brasil (13). A forga da cultura escrava na Bahia oitocentista deve ser entendida em cone- xio com a experiéncia de trabalho dos escravos. Nao se trata de deduzir cultura de processos € relagdesde trabalho, uma operacio funcionalista conservadora, mas de considerar que os escravos suspendiam a produgio de significados cullurais durante a produgio de merc: dorias € servigos. Isso seria verdade vessem eles se permitido uma coisiti absurda, como se 0 “tempo do senhor”, isto é, 0 tempo de trabalho, fosse um momento absolutamente mecanico em sua existéncia, um tempo sem qualquer significagao escrava. S6 0 “tempo do e cravo”, 0 momento de seu sono, de seu lazer, de seu domingo seria 0 momento de expressio de sua “genuina” cultura, Peter Kolchin criticou os defeitos dessa perspectiva nos estudos sobre a slave Community norte-americana, Ele conven- ce quando escrev posigio leva os estudiosos Zz ‘© contexto socivecondmico da escravidio €, na verdade, a experiéncia de trabalho dos escravos, como se a comunidade es- crava de alguma maneira florescesse fora da instituigéo da escravidio” (14). Po- rém, se a cultura escrava estava irreme- diavelmente associada ao sistema escravista de trabalho, este também es- tava integrado num sistema cultural na formagio do qual o africano participou fundamentalmente. Na escravidio urbana, tanto o tem- po do senhor como o tempo do escravo estavam ambos investidos no trabalho, embora nado de forma “secreta” como na produgio capitalista. O escravo tinha de prover diretamente ao senhor € a si pro- prio no ganho de rua, Do ganho depen- dia inclusive sua chance de comprar a liberdade, Mas a jornada de trabalho era descontinua, retalhada, no s6 pelos in- tervalos entre um servigo ¢ outro, Nao havia, por exemplo, como proibir em definitivo o escravo de baixar 0 cesto, 0 pau ou a corda para jogar ou apreciar uma capoeira, entrar num samba-de- roda, consultar um curador na perife- ria, ou enfurnar-se numa casa para orar para Ali, 0 Misericordioso. O escravo, associado ao liberto, contrapunha regu- lar e cotidianamente sua economia mo- ral do trabalho Aquela do senhor. Isso acontecia até em pequenas vilas do Recéncavo, como nos arrabaldes de Nazaré das Farinhas, onde, segundo uma deniincia policial de 1845, um escravo nagé que se dizia principe em sua terra reunia em casa outros cativos “em dias de servicos [...] € ferve batuques, gritos, assuadas e mais cousas [...]” (15). Na grande cidade escravocrata, a “cidade- esconderijo” na feliz expresso de Sidney Chalhoub, © escravo podia ocultar do senhor como, onde e até do que vivia (16). O préprio ganho vinha muitas vezes de fontes ocultas, do batuque, da capoeira, da adivinhagio. Nao eram poucos os es- cravos que viviam de adivinhar, curar feitico ou fabricar amuletos mugulma- nos, ocupagdes lucrativas que na Bahia favoreceram muitas alforrias. Em 1851, Wetherell observou que os negros da Bahia muito se exibiam em sambas-de- roda em troca de uns cobres. Eram alter- nativas ao trabalho informal convencio- nal (17). O escravo ganhador organizava 0 tempo de seu trabalho — 0 tempo, o ritmo. ¢, por vezes, o volume de trabalho, O tra- balho do ganhador era por tarefa, por unidade de tempo, o que constituia algo familiar para os africanos; entre os iorubas, segundo Afolabi Ojo, em cert circunstincias 0 préprio tempo era mar- cado pelo volume de trabalho. E este ti- nha limites, se 0 escravo pudesse estabelecé-los, como no caso dos ganha- dores. Wetherell, que nao era um viajan- te de passagem, percebeu essa economia de esforgo entre os carregadores africa- (0 extremamente independentes, eles antes perderiam a chance de ganhar um saldrio do que carregar mais do que 12. Aput ls, Rebate p 100. 19.1dam, passin, 14: Peter Kalcin, Reevauating the Aniabelum Slave Com munity: AComparaive Per Specie, in The Jounal of American History. 70: 3 (1969). se. 18. Apud Jobo J i, "Recdn- ‘avo Rabe: Revoas hos, Engentos anos, In AtovAsi, 18 (9990) 128 (ermas Décadas ca Esra fo na Corte, Sho Paulo, 1900 cep. pp. 212.0 seg. 17. Wotneel, Braz» 8. REVISTA USP 44 18.6.4 Absad Of, Yoruba cu ‘uratatenares 196 p20 Water rast. 5gifado ne orignal Bamamin, ay Aiiean Religion: Symbel ‘usa!’ and” Community. Englowced Ca 176, pt Kole Akin “Kote Tene Prindusial Temporal Con- ‘cepts and Labour in Nine {wan Conary Colonial Na {atin ural of Aan Ha toy, 29 (1906) pp 229-440 {ambom Frederick Coops, *Coloming Time: Work ‘yt ad Lab Colenia! Mombasa" ‘rckes{og), Coonaismand ution A 1992). 20048 Haodlassio de P. ‘Tempsen “Tima, Work Oa Spine an incall Cag laren Poot & Prosont, 30 (0067, pp 50:97 19.Paulo Aexandee ce Wiertemberg, "Viagem 30 Pincpe P. Ade (uation (9 8 América do Sul in Rowstadintaa etricon Geogratico do Brasil 17" (1980p 8: Weert Bazi peste 20, John M. Chornot, Ain fiynm and." Sensibility ‘Aasthtes and Socal Acton Inatican Musa ora Cn ago, 1979, . 3: Daniel P Kidde Stores Residence and TravalinBrazvote. Pa ‘éta Loncres, 1545. vo. 2 25, Majorbanks « Detner SpudMoema Auge Vistantos Esvangerres na Bahia Oltocentisia, Sho Paulal Brasilia, 1980, p. 217, Masirano pu Verge, No- elas de Bahia, Salvador, 41004, 247; Jodo 3a Siva Campos, “igeras Notas eo ‘be avicainema, Costumes © R ‘Aicanos na (in Arais do APEBA, 29 (0945), 208, 12 REVISTA USP eles considerem conveniente”, Se trata de algo diferente do tempo linear e do ritmo mecinico de consumo capitalista da forga de trabalho. Sobre esse tempo africano tradicional 0 antropdlogo Ben- jamin Ray diz ser “episédico e descontfnuo; nao € um tipo de ‘coisa’ ou mercadoria”. Se assemelha ao “tempo pagiio” (tradugio livre de kefir time) dos trabalhadores sul-africanos estudados por Keletso Atkins, Sob o regime colonialista em suas terras ou sob 0 regi- me escravocrata em terra alheia, os afri- canos resistiram quanto puderam ao aniquilamento de suas nogios de tempo € trabalho (18). O trabalho dos carregadores era marcado por um ritmo peculiar obser- vado por praticamente todos os visitan- tes estrangeiros. Os ganhadores de pau e corda, por exemplo, quando no trans porte de volumes pesados em grupos de quatro, seis e oito, trabalhavam movidos por cangdes cantadas em lingua da _frica. principe Alexandre de Wuerttemiberg, que passou o més de abril de 1853 na Bahia, escreveu: “Quer descendo ou su- bindo, vencendo encostas ingremes ¢ caminhos pedregosos - cantam! Cantam sempre durante a marcha”. Dentro da tradigio ritmica africana, havia 0 “pu- xador” do canto, a quem os demais res- pondiam em coro, Segundo Wetherell, quando 0 fardo era mais pesado ou quan- do subiam ladeiras os africanos se fuzi- am “muito mais vigorosos em seus gri- tos, ajudando o trabalho e variando sua miisica com um expressivo e longo gru- nhido”, Era trabalho duro, estafante, trabalho de negro como se dizia, pois branco nio o fazia, € mesmo o negro nascido no Brasil, entio chamado “cri- oulo”, parecia recusar. Na lista de 1849, em Santana, havia cerca de 240 escravos crioulos adultos, nenhum listado como carregador de cadeira, apenas 11 como ganhadores, desconfio que ganhadores de cesto e tina, Entre os 43 pardos e ca bras, nenhum ganhador (19). ‘A misica que animava aqueles cor- pos negros podia ajudar a aliviar © peso sobre os ombros, mas sobretudo aliviava © espitito, permitindo aos africanos per- sistir, afirmar sua humanidade, nio de- sesperar. Eli contribufa para assegurar alguma “estrutura de integridade comu- nitéria”, como escreveu Chernoff fazen- do sociologia da mdsica africana, Entendé-la como expressiio de felicidade ow acomodagio é ficar na superficie, como ficaram os viajantes Marjoribanks Detmer. Um outro viajante, 0 pastor Kidder, comparou-a A marcha fiinebre, exagerando na piedade cristé. Nao sur- preenderia que, além de tradicionais ‘cangées africanas de trabalho, os ganha- dores inventassem letras de critica da escravidio € escérnio dos brancos. Ha evidéncia nesse sentido. O principe Maximiliano da Austria, mais tarde fu- zilado como imperador do México, foi informado durante visita a Salvador, em 1860, que os negros cantavam principal- mente sobre farinha e eachaga, acrescen- tando: “fazem as vezes também alusdes as relagOes entre senhor € escravo e & ma- neira como este é tratado”. Como fari- nha de mandioca era item bisico da die- ta local, falar dela significava falar gene- ricamente de comida. Num cintico ne- gro significava falar de falta de comida ou de comida ruim, € do desejo de uma mesa farta. A cachaga, sobretudo, tra- duzia o dionisfaco da cultura africana na brecha do trabalho pesado. Se cantavam © tempo todo sobre farinha e cachaga, os escravos baianos falavam o tempo todo das relagdes escravistas, e nao apenas “is vezes”, coisa dificil para principe enten- der. Naturalmente a misiea dos ganha- dores também fazia alusio mais direta & exploragio do trabalho € outros pesares da escravidio. Silva Campos lembra que im cantavam quando carregando muito peso: “O, cué.. Ganhadd Ganha dinheiro Pr’a seu Sinho”, Ingenuidade submissa? Pode pare- cer para o “Sinhd", mas o ganhador diz a quem quiser ouvi-lo que 0 fruto de seu duro trabalho the esti sendo subtraido. Ele denuncia a escravidio cantando. Substincia cultural elementar do modo de ser africano, a mtsica © acompanha- va em tudo de mais (ou menos) impor- nte na vida, na alegria ou na dor. Eo trabalho, por opressivo que fosse, nao estava dissociado da vida (20). Embora 0 trabalho escravo urbano desse oportunidade e até promovesse a iniciativa individual, permitindo por exemplo a saida'da alforria, sua organi- zagio na cidade tinha um cardter essen- cialmente coletivo. O préprio trabalho, bem como sua remuneragio, eram en- tendidos como resultado da producio coletiva, Wetherell comparou os ganha- dores baianos com estivadores ingleses, concluindo que, se juntos eles carrega- vam fardos pesadissimos, individualmen- te os ingleses, estimulados pelo salirio, carregavam mais peso (21). O africano fazia qualquer coisa por dinheiro. rabalho solitirio, tipo operirio-padrao, fio era um valor de sua cultura. Me ocor- re 0 caso relatado pelo administrador do cemitério de Bom Jesus da Massaranduba, em Salvador de 1856. Segundo ele, trabalhavam la trés “afri- anos livres”, dois dos quais, por alguma razio, haviam sido transferidos pelo subdelegado distrital para outro lugar. Sobre aquele que ficou, escreveu: S¢ a prestar ao mes pois encontra-se desgostoso por estar privado da com- panhia de seus parceiros e por pe: sobre ele os trabalhos superiores as suas forgas, de maneira que no dia 24 fugira para a casa do indicado subdelegado” (22). Africano livre era aquele confisea- do de contrabando depois de 1831, em geral empregado em obras piblicas em troca de pequeno salirio. Esse dat nao fugira da escravidio, fugira da solidao. Nio Ihe passou pela cabega pedir aumen- to salarial correspondente ao aumento de trabalho, Além de mais trabalho, que alegava nio poder dar conta, talvez. nio quisesse ficar s6 em companhia dos mor- tos. Sob qualquer Angulo que se tome fica sugerida a personalidade gregaria do africano no trabalho. Final da histéria: 0 presidente da provincia instruiu que o Iho criada pelos negros da cidade. Os ganhadores estavam organizados em Cantos, como se chamavam os grupos, etnicamente delimitados, que se reu- niam para oferecer seus servigos em lo- cais também delimitados da geografia ur- oe A inspiragio pode ter sido os gru- de trabalho voluntirios, comuns na Atica Ooidentilboahecios como. ro entre os iorubas (23). Os cantos baianos tinham nomes de ruas, largos, ladeiras, ancoradouros: canto da Calgada, do Portio de io Bento, da Mangueira, do cais Dourado. Com tanta miisica em si, “canto” poderia ter essa raiz. No entanto refere-se a canto enquanto esquina, lu- gar estratégico na cultura de rua de um modo geral porque espaco de confluén- cia, reunigo, Na visio de mundo africa- na, a encruzilhada tem importincia mis- tica impar: lugar de oferendas, de nego- ciagio com os deuses, lugar de Exu, 0 abre-caminhos, espiriluoso mensageiro dos deuses. Na pritica do ganho, a esqui- na facilitava o negécio, por facilitar aces so de clientes de varias diregdes, além da referencia facil. Mas se era bom uma esquina, 0 canto podia estar por toda parte: pracas, ladeiras, ancoradouros. “Como a alividade dos negros dos cantos era sobretudo o transporte de pessoas ¢ de mercadorias, ou seja, de circulagio [..J, sua localizagio dentro da estrutura fisica da cidade segue a ligica da articu- lagio, mobilidade ¢ funcionamento da idade”, escreve a arquiteta Ana da Cos- tad)” Para o ganhador, o importante as- pecto territorial do canto reforgava sen- tidos mais profundos de pertencimento. Nele muitos meios de vida se encontra- vam. Além de carregadores que iam ¢ vinham, ficavam ali negros de oficio, que consertavam sapatos € guarda-chuvas, trangavam cestos, chapéus e esteiras, faziam colares ¢ pulseiras de contas, tal- vez carregadores mais velhos agora de- dicados a atividades mais amenas. Havia os barbeiros, que também usavam suas de curar sangrando — ou ensaiavam algum instrumento musical, para toca rem nas famosas bandas de barbeiros aqueles tempos. Alguns ganhadores recuperavam forgas ali mesmo: “os que dormiam geralmente tinham uma senti- nela pronta para acordi-los quando cl mados para servigos”, viu Daniel Kidder no final da década de 1830 (25). Enquan- to aguardavam fregueses, candom- blezeiros esculpiam representagoes de suas divindades, os que eram malés cos turavam roupas e barretes muculmanos, aprendiam com seus mestres a ler € es- crever a lingua do Alcordo, rezavam pre~ ces de sua fé. E 14 também iam as vendedoras de mingau, aberém, acagi, caruru, vatapé € outras delicias. E con- versavam sobre fatos da terra em que 21, Wetara, raz pp. 524 22, APE, Sade. Fi os, mago £800, 23. Robin Law, The Oyo Emp 6, 1600""c. 1098: A West ‘Atican epee ib Era of te Atlante Slave Trade (Oslo 1097p. 208. 24, Ana do Lourdes Fda Cost, “Espagos Negros: ‘Canoe’ ‘Lajas Salvador no Sheu oxic Cantor 0 Toquos ‘Supleertodo Gaderne CAH (Gavador 1991), 25, 25, Keer, Sttehos, vol. 2, pp 208 REVISTA USP 13 14 REVISTA USP estavam ¢ noticias da terra de origem, chegadas de navios vindos da Africa. O canto era muito mais do que mera esta- gio de trabalho (26). Simbolos da ocupagio negra do es- aco piblico, os cantos se tornavam com freqiiéncia territ6rios disputados. Um exemplo dessas disputas se deu em 1859 entre os ganhadores do canto do beco dos Galinheiros, esquina com a rua do Comércio, e 0 lojista Fran José de Farias Villaga. Na mesma esquina, Villaga tinha “loja de fazendas seccas”, cujas atividades estariam sendo prejudi- cadas pela proximidade do canto. Este, segundo sua dentincia & Camara, era numeroso, que nio s6 quasi que prohibem [os ganhadores] a passa- gem por aquelle beco, porém também produzem tio horrivel algazarra, proferem taes obscenidades, que incommodio os Negociantes que se niio podem distrahir de suas sérias ‘oceupagés Villaga acusava ainda ser vitima de roubos continuos, razio por que manti- nha fechada a porta da loja que dava para o beco, Sugeria que os ruidosos ganhadores fossem transferidos para outro lugar mais espagoso, indicando largo da ladeira do Taboo, onde j4 exis- tia um canto de carregadores de cade’ Nio foi atendido. O fiscal da Camara deu parecer de que o canto j ocupava o beco ha muito tempo — havia adquirido direi- tos por antigiiidade -, sendo “tolerado por todas as Camaras, em conseqiiéncia de serem [os ganhadores]precisos para © expediente do Commercio”. E 0 “Commercio” era algo bem maior do que © lojista Villaga. Quanto a transferéncia sugerida por este, o fiscal foi de opiniio que 0 Taboio era lugar de trinsito inten- 80 ¢ ja tomado pelos ganhadores de ca- deira, Em suma, ganharam os ganhado- res a disputa espacial (27). Villaga acusava ganhadores de rou- bo. Eram comuns noticias nos jornais denunciando-os por sumirem com o que Ihes havia sido confiado para carregar. O mestre de navio portugués José Fran- cisco Alves, a0 desembarcar em Salva- dor, “entregou a um preto de ganho um pequeno embrulho de roupa e papeis [...] tendo-Ihe desaparecido o dito preto [..]”, segundo antincio que publicou no Cor- reio Mercantil de 5 de maio de 1838, Na- turalmente, envergando a roupa do bran- Co, 0 dito preto poderia ter feito boa figu- ra diante dos parceiros. O mais provavel € que a vendesse a outro branco. Dinhei- ro nio devia estar facil naquele momen- to, poucos dias depois da retomada de uma combalida Salvador pelas tropas legais das mios dos rebeldes da Sabinada, apés meses de cerco. E claro que ganha- dor néio fazia aquilo todo dia, um recurs emergencial, € provavelmente a maioria nunca o fazia. Mas acusagdes como as de Villaga € casos como o de Alves, estes estampados na imprensa, associavam 0 ganho ao crime ~ como de resto freqiientemente se faz com o trabalho informal. A imagem certamente no re- fletia os valores do canto, que até para sobreviver devia seguir normas rigidas de honestidade na relagio com sua clien- tela, Para instituir e fazer obedecer tais normas, além de outras, € que os cantos contavam com uma estrutura de poder. Se Villaga tivesse sido mais politico teria negociado a paz com o lider dos africanos do beco dos Galinheiros, pois 0s cantos nao cram coletividades anir- quicas como ele tentou representé-los. Seus chefes chamavam- itdos-do- canto, cuja fungao incluia contratar ser vicos com clientes, designar tarefas, re- ceber ¢ dividir a féria, mediar conflitos porventura surgidos entre. ganhadores ¢ negociar com tipos como Villaga. Talvez fosse também “puxador” de canto, ago- ra no sentido musical, Devia naturalmen- te (er remuneragio extra 0 capitio. Pena que falte informacio sobre como ele cra escolhido, mas provavelmente contavam a antiguidade na Bahia, © conhecimento da lingua € dos costumes dos brancos, que traduziam experiéncia com © mer- cado de trabalho. Além, é claro, de capa- cidade de lideranga. Uma lideranga que lalvez refletisse alguma ascendéncia tribal ou religiosa trazida da Africa e aqui reconstitufda. O pai-de-santo nagd Eles personagem do romance oitocentista de Xavier Marques, fora capitio-de-canto, & nessa condigio con- séguira “ajuntar.economias ¢ comprar a carta de alforria”. Na Bahia, tanto liber- tos como escravos podiam ser capitiios— assim como podiam ser pais-de-santo e mestres muculmanos =, o que mostra que as hierarquias dentro da. comunidade africana nem sempre seguiam aquelas da sociedade escravocrata. Assim, no inquérito da rebeliio de 1835, menciona- se um escravo que dirigia africanos es- cravos ¢ libertos, carregadores de cadei- ras no canto da Vit6ria, bairro elegante da Salvador de entio (28). © modelo original dessa lideranga desconhecido, mas pode estar vinculado a diversas tradigdes africanas. Lembra os parakoyi, funcionarios do reino iorubano de Egba que organizavam e regulavam as feiras periddicas. Lembra ainda os bale que dirigiam nicleos artesanais nas cidades iorubanas. Na historia do Daomé, terra dos jejes, havia do”, com fungdes semelhantes & parakoyi egbano, Da mesma forma, 0 capitiio-de-canto pode ter aparecido por inspiragio militar, se considerarmos que 65 africanos da Bahia vieram de socieda- des militarizadas em que, ao longo da pri- meira metade do século XIX, abunda- vam grupos armados dirigidos por pe- quenos chefes como os olorogun iorubanos. O reino de Uidé, na vizinha costa daomeana, tinha 0 comando mili- tar de um “Capit ”. Muitos. dos cativos baianos haviam sido guerrei- ros na Africa, como a maioria dos 21 e cravos entrevistados por Francis de Castelnau no final da década de 1840 (29). E bom avisar que quando falo de parakoyi, bale, olorogun e capitées daomeanos nao estou querendo encon- trar a forga sobrevivéncias africanas na Bahia, e sim imaginar possiveis modelos organizacionais de que os africanos pu- dessem ter lingado mio para criar estra- tégias © estruturas de sobrevivéncia € resisténcia sob a escravidio. Nao cons g0 conceber que organizagbes como os cantos possam ter sido meros transplan- tes africanos no Novo Mundo. De certa forma, como sugere Robert Slenes, os africanos descobrem uma nova Africa no Brasil (30). ‘Uma ceriménia de posse do capitio- de-canto € um bom exemplo de ritualizagio africana no ambiente de tra- balho, Os membros do canto enchiam um tonel com Agua do mar € carrega- vam com a ajuda de pau ¢ cordas, da mesma maneira que carregavam diaria- mente pesados fardos. Sobre o tonel montava imponente © novo capitio, le- vando uma garrafa de aguardente (olhe af a cachaga!) numa mao € na outra ga- Thos de alguma drvore, talvez vegetal com algum significado ritual. O cortejo des- crito por Querino marchou cantando pelas ruas da Cidade Baixa, a zona por- tuiria, e retornou ao canto, onde foi re- cebido por membros de outros cantos. Ai o capitio derramou um pouco da ca- chaga no chio, Nesta parte da ceriménia demarcava-se um territério dentro de cujos limites o novo lider exerceria um poder reconhecido, inclusive, por lideres de outros cantos (31). Quanto ao barril de agua salgada pode simbolizar 0 oceano atravessado pelos afticanos rumo a didspora na Bahia, O Atlintico tinha um enorme significa- do na vida dessas pessoas, uma vez que Ihes havia cortado a vida em dois. Os es- cravos que faziam a travessia no mesmo navio tornavam-se malungos, uma espé- cie de parentesco simbdlico que 0s unia por lacos fortissimos de afetividade € so- lidariedade (32). Deixando a familia de sangue perdida na Africa, j4 no meio do mar surgia uma nova familia ritual. Esta contava com 0 aval dos deuses africanos, que acompanharam seus devotos na tra- vessia, Derramar no chio a cachaga, £28 Xaver Marques, OFatewra, ‘Sdo PoullSrasia, 1973, p. 35, "Devasua do Lvanie do Eteravos Oceiso om Sa ‘Sor am 18957, In Anais do ‘APE 50 (1902), 9.74 29, 7. G, 0, Gbadanosi, The (Growth of lsum among tne Yorba, 1841-1908 Aart Highans, 1978, p. 2, Peter ova, "GretOrganization in Yoruba Toms Atta 23 11959), p34 Robin Law, ‘The Siave Const Ot West Att 4, 15501750, Oxo, 1001, pp. 31, 100. Francis de Chstonau,Resoigrments sur Atigue Gonwale [Ja apro8 Je rapport dos Nopres du ‘Suaaneeciaves dana ti, 166, pase 20, Roben W Sanes.“Maungy ‘ngemaVer!AiieaEneobet- {We Descobeta no Brain vate USP. 12 (1998-52), pp. 0-07 31. Guerin, Raga Atcana, p, 28, 32, Siones, “Malungu ngoma ‘Vem nop. ot, BP 314 REVISTA USP 15 39, APEBa, Abawo-Assinacos, 1856:58 mago 904. 34, Lam, The Oyo Emre. cap, 1 28, Lue doe Santos nena, A Baia no Séeulo XVM Sava 04,1960, ol, pp 99,127, 129.30; Auge, Vistantes, passim Rs, Rabo, 200 16 REVISTA USP como fez 0 capitio, é gesto caracterfstico de reveréncia as divindades africanas entre nés. Desta forma, os trabalhadores do canto pareciam representar a ruptu- ra com a terra natal © ao mesmo tempo o retorno ritual as raizes. Um rito de ps sagem, no-caso de investimento de po- der, essa festa, como todo bom rito de sagem € de poder, reafiimava a soli- dariedade do grupo de trabalho. Nio s6 0 mercado de trabalho esta- va enredado por significagGes africanas. A rede se estendia aos mecanismos de mercado de alimentos, onde a competi- gio se dava contra os brasileiros natos, homens livres brancos ou mesticos. Os ganhadores que se dedicavam a0 comércio de produtos da lavoura conse- guiam vantagens surpreendentes, por serem parte de uma liga africana de cu- nho comercial. Essa rede tinha uma pon- ta nas feiras do RecSneavo que abasteci- am Salvador, e despertava a fuiria dos competidores. Em 1858, por exemplo, 76 comerciantes da vila de Nazaré das Fa dirigiram um abaixo-assinado sembléia Provincial acusando que “com o maior escandalo se observa ssenhoriados das compras trans: Ges os selvagens afticanos libertos, € até alguns escravos, que, aproveitan- do-se da conveniencia de serem os conductores dos generos seus iguaes, conto com a preferencia na compra, inda por menor prego, em prejuizo dos Agricultores, arrestando assim a populagio nacional, sempre a mais garantida em todos os Paizes, d’esse vantajoso, honesto ¢ lucrative meio de vida, qual o negocio de Cubotagem”. Segundo os exagerados cidadios baianos, esse comércio estaria “todo en- tregue a0 dominio africano [...]”. E espe- cificavam como agiriam os africanos durante as feiras semanais “essa alluviio de zangdes sociais apresentio-se no mercado, apoderio- se das tropas, tomio A forga das mios de outrem os generos, impoem aos conductores seus iguaes o dever da preferencia, e inda ndo contentes, logo que desembarcio n’esta Cidade, e isto na epoca da carestia dos viveres, vio se collar nas estradas, a duas ¢ tres legoas de distancia, n’ellas effectuio stias compras, deixando até os consu- midores internos desprovidos delle, ¢ obrigados a comprar nas mios d'esses arrogantes ¢ improvisados introductores por alto prego!!"(33). Nio € plausivel que os africanos usas- sem a fora bruta como método de co- mércio, 0 que requereria um poder mui- to além do que detinham. E também nio precisavam, pois traziam de suas terras obretudo os iorubas, jejes ¢ haussis— uma formidavel experiéncia na arte de negociar, homens € mulheres. As mulhe- res, alids, se destacavam, nao escapando do gosto pelo comércio esposas de reis iorubanos (34). Na Bahia, terra alheia, os supostamente “selvagens” atravessa- dores africanos lograram formar uma inteligente alianga com os também afri- canos fornecedores, deixando os comer- ciantes de Nazaré a ver navios. Incon- formados, estes reagiram com a lingua- gem grosseira do preconceito ét buscando a protegio do Estado ao inv de ir a luta livre do mercado. Propuse- ram ao governo que proibisse os africa- nos de mercadejar, que os obrigasse a s6 trabalhar na lavoura ou que thes impu- sesse 0 insuportivel imposto de 300 mil réis anuais. Nio colou. A outra ponta da rede africana al- cangava Salvador, onde reinavam am- bulantes ¢ quitandeiros, a maioria mu- Iheres. Segundo aquele censo de Santana de 1849, entre as libertas que negocia- vam, a maioria declarou “mercadejar diversos géneros”, As que foram mais especificas falaram de mingau, acagé, aberém, frutas, verduras, feijio, arroz, milho, pio, peixe. Essas mulheres prati- camente monopolizavam © pequeno co- mércio, segundo depoimentos que vém desde pelo menos Vilhena, na virada do éculo XVIII, confirmados por diversos tes estrangeitos da Bahia oito- . Quando em 1835, depois do le- te malé, uma junta de juizes de paz de Salvador sugeriu que os africanos fos- sem proibidos de comercializar alimen- tos, 0 proprio chefe de policia, inimigo jagal dos africanos, discordou com 0 argumento de que proibigio anterior semelhante gerara “carestia repentina” € confusio para implementar a medida (35). Os homens circulavam mercadejan- do gua, lenha, cal, louga, fazendas, sa- pato, Eram menos ativos no comércio am- bulante de comida, mas ocupavam posigios estratégicas na venda de, por exemplo, farinha de mandioca, Em 1855, € de novo em 1857, os comerciantes est belecidos em Salvador acusaram os afri- canos — em alguns casos os escravos afri- 10s de comerciantes portugueses — de monopolizarem 0 comércio de farinh: Os africanos, em alianga com portugue- ses, “apenas chegam os barcos, compram por atacado © carregamento, ¢ recolhido a0 Celeiro paiom-lhe 0 preco”. O governo 86 permitia a venda de farinha no Celei- 10 Pablico e 14, de novo, os compradores africanos se dirigiam aos vendedores também africanos. Numa petigio denun- ciando esse esquema, Ié-se: “quantos compradores ali apparecem [...] quase todos também Africanos ¢ escravos, no procuram senio aos seus semelhante: ficando os abaixo-assinados inhibidos de concorrerem na vendagem da farinha com grande prejuizo dos scus interes Solidariedades semelhantes as encontra- das nos cantos uniam africanos envolvi- dos no comércio de produtos como a rinha de mandioca (36). Considerando o tipo de insergio su- bordinada do africano na cidade, relagoes forjadas nos mercados e nas ruas formavam telagbes de forga, eram poli- tica e resisténcia negra no cotidiano. As vezes coadjuvavam na implosio do coti- diano. Os ganhadores escravos e libertos desempenharam um importante papel na revolta muculmana de 1835. Cerca de 51% dos réus escravos e libertos indiciados naquele ano eram trabalha- dores de rua, principalmente caregado- res de cadeira e fardos e vendedores ambulantes. Outros 17% eram artesios, a maioria dos quais muito provavelmen- te fazia ponto dentro de cantos. Estes se destacaram como centros de conspira Gio (37). As autoridades do governo per- ceberam que tinham de controlar me- Ihor os ganhadores. A postura que levou A greve de 1857 foi uma dessas tentativas, mas antes dela outras medidas haviam sido tentadas, CONTROLE E RESISTENCIA NAS RUAS As armas de 1835 estavam ainda quentes quando 0 governo baiano decre- tou o fim da independéncia dos cantos. Em junho daquele ano a Assembiéia Legislativa Provincial concebeu a Lei n® 14, que tinha por objetivo regulamentar € disciplinar 0 mercado de trabalho atti cano de rua em Salvador. A lei dividia a cidade em capatazias, que tomariam o lugar dos cantos, ¢ criava 0 posto de ca- pataz para substituir o de capitio-de-can- to. O objetivo das capatazias seria exata mente o de “policia dos ganhadores”, conforme rezava o texto legal, fossem os ganhadores escravos, libertos ou livres, trabalhadores em terra ou no mar. O capataz receberia “vencimento razod- vel”, obrigatoriamente pago pelos ganha- dores, para zelar pelo bom desempenho no trabalho e pelo bom comportamento politico ¢ policial daqueles, evitando que cometessem crime contra a ordem ¢ con- tra a propriedade. Ou seja, os ganhado- res deviam pagar para serem espiona- dos, € no s6 ao capataz, como veremos num minuto. A lei também obrigava que os ga nhadores se matriculassem, declarando nome, enderego, nome do senhor (no caso de serem escravos) e a “qualidade e gé- nero de servigo a que esto habituados”, Essa matricula seria mensalmente atua- lizada, € quem se furtasse a fazé-la seria punido com uma multa de dez mil réis, 0 dobro no caso de reincidéncia, Naquele ano, com dez mil réis comprava-se pelo menos uns quinze litros de farinha de mandioca, Um ano depois, em abril de 1836, a regulamentacio dessa lei. Ela de- talhava a nova estrutura de poder no antigo canto. No topo ficava 0 juiz de paz da freguesia, cabendo-Ihe nomear um inspetor para cada capatazia que ali fun- cionasse. Antes havia “inspetores de quarteirio”, que coadjuvavam os juizes na policia da freguesia; agora, além des- haveria inspetores especializados na policia das capatazias. Esses inspetores deveriam ser cidadios brasileiros de boa conduta, alfabetizados e que tivessem residéncia na freguesia onde servissem. A cles caberia registrar os ganhadores € vigif-los, evitando 0 desvio de mercado- rias transportadas e informando sobre qualquer comportamento que pusesse em sco a ordem piiblica, Era também da algada do inspetor nomear 0 capataz, que devia sempre “cumprir as ordens do Inspector”. Mas 36, APEBa, Abaio-Assinades, 1950.58, mago 963: APEDS, Requenimenos, 1857, ne 27, Fla, Rebelo, pp, 205-7 REVISTA USP 17 138. Cotegdo de Leis 0 Reso chee da Arsomtida Lope: Sve ca Baa, 1895-104, Sadar. 1862 9p. 227, 29, APEBa,Juzos de Pasa ‘500, 49. dom, idem, Vw REVISTAUSP © capataz continuava sendo africano, agora um africano de confianga dos bran- cos, nunea porém escravo, Era seu dever observar a assiduidade dos ganhadores, idemlificando os ausentes ¢ investigando as auséncias, Qualquer irregularidade devia ser imediatamente comunicada ao inspetor. Cabia também a ele arrecadar diariamente dos ganhadores sessenta réis dos que trabalhassem em terra € oitenta dos que trabalhassem no mar, de cuja quantia dois tercos iriam para o inspetor € 0 resto para o capataz, As capatazias 86 poderiam funcio- nar com pelo menos dez membros, as que tivessem menos teriam seus ganhadores distribuidos entre outras. A medida ser- via para evitar a dispersio, concentran- do ¢ aprimorando a vigilincia. Coroan- do os mecanismos de controle, cada tra- balhador registrado traria uma pulseira de metal com a inscrigio de seu niimero de registro ¢ 0 de sua capatazia. Os capa- tazes trariam plaqueta semelhante pre- saa uma “tiracollo de coiro preto”. Fi va assim mareada a diferenca entre 0 ganhador comum e seu capataz (38). plano assim previa tomar de as- salto o canto, destruindo sua autonomia a partir de dentro, subordinando-o & fre- guesia, ou scja, a jurisdigio territorial do poder branco. Ji que este nio podia evi- tar que os africanos circulassem livre- mente pela cidade, procurava controlar scus centros de reunidio, Propunha-se a feitoriza governo a fazer as vezes de feitor ji que inexistia o feitor senhorial, A lei nao desagradou apenas aos africanos, Um longo artigo publicado em 5 de maio de 1836, no Didrio da Bahia, criticava-a detalhada e severamente. O registro apenas dos ganhadores era discriminat6rio. O regulamento, como um todo, apresentava “incongruénci: irregularidades, e preceitos por demai pesados, € sem proveito...”. Nem todas as freguesias eram listadas, © que significava transferir ganhadores para servirem em outras sob jufzes ¢ ins- pelores estranhos. Isso dificultaria inclu- sive 0 acesso dos fregueses aos ganhado- res matriculados, quando antes “qual- quer pessoa de sua janella, de uma loja, ‘ou em geral de todos os pontos chamava quem Ihe transportasse effeitos & troco de um ou mais vintens, sem que muitas vezes fosse um positive ganador”. Atra- palharia também a vida dos senhores, que teriam seus escravos domésticos constantemente parados para se verifi- car se estavam no ganho ou a servigo do senhor. E 0s que estivessem de favor para amigos dos senhores? E quanto as capatazias que 86 tivessem escravos ma- triculados, como nomear para elas capa- tazes libertos? Dois aspectos chamaram mais a aten- io critica do Didrio: a obrigatoriedade do uso das chapas de metal e a forma de remuncragio de inspetores ¢ capatazes. Esta Gitima espantou o articulista: “Esta com effeito assusta!!”. E perguntava: “Que hi de um ganhador, quer seja escravo, ingenuo, ou liberto, prestar- se ao servigo commun, carregando pesados volumes, fatigar-se, perder a saiide, € muitas vezes a vida, mas, no obstante, exhibir de seo fraco lucro diario trés, ou quatro vintens para tio somente locupletar 0 inspector [...] € 0 capataz?” Previa “muita arbitrariedade” da parte destes, que exigiriam sua remune- ragio mesmo sem ganho, Mas o autor sabia que o ganhador nio era bobo. E antecipava que ele certamente transferi ria o Onus para os fregueses, € com 0 aumento do transporte “os proprios ge- neros, que eram vendidos ao Povo por um prego, terio augmento de valor”. O comentirio sobre as chapas bei- rava 0 deboche: “Se até o anno de 1835, s6 viamos al- ‘gum forcado com uma braga ao pé, do anno de 1836 em diante teremos de ver voluntérias com ella no brago, € de certo qualquer curioso Estrangeiro, que vier & Bahia, nao omittiré nas suas Memérias o espirito classificador, que nos caracterisa, ¢ a mais decidida paixiio por distinctivos: mas serio as argolas fixas ou no?” Que fossem fixas: 0 liberto, por exem- plo, teria de ir & igreja, a uma visita, a uma festa com aquilo no brago? O autor, 6 claro, imaginava situagdes esdrdxulas para melhor ridicularizar a medida. Mas Tevantava 0 ponto fundamental de que ter no corpo o penduricalho seria uma forma indigna, humilhante de controle dos africanos. muito boa a compara lo com as cadeias que prendiam os con- denados a trabalhos. Os ganhadores podiam ser escravos, mas pelo visto a cadeia da escravidio niio era a mais des prezivel na triste Bahia. E se j4 eram ganhadores libertos, aquela marca suge- ria que a escravidao ainda os rondava. Essas significagdes aflorariam novamen- teem 1857. Por enquanto os juizes de paz tenta- riam impor as novas regras. Ignorando S, © governo se utilizaria das do proprio Didrio da Bahia (27/ 5/1836) apenas para esclarecer as diivi- das dos juizes sobre a aplicagio da lei. receu, por exemplo, que nao haven- do liberto na deria ser nomeado capataz, mas com li- cenga do senhor; que as chapas seriam confeccionadas & custa dos ganhadores ‘ou dos senhores; que os diam transitar por toda a cidade € no distrito de sua capatazia, E outras miudezas que demonstravam a dificul- je de colocar em pritica as medida Por exemplo, em fevereito de 1837 um juiz. de paz perguntava se deviam exigir matricula de escravos domésticos com permissio senhorial de trabalharem para si aps 0 servigo de casa ¢ aos domingo: Varios juizes de paz tinham essa divida, © que mostra quio generalizada era es pritica, Um despacho do presidente da provincia ordenava que nao se fizessem excegdes (39). Mas o presidente despachava do conforto de seu palicio. Nas ruas rolava uma guerra de nervos, O juiz Evaristo Ladislao da Silva, do pri- meiro distrito da Sé, chegou a rrar-se convencido de que as medidas eram impraticiveis, principalmente por estabelecer “um imposto sem a proporgio dos lucros d’aquelles que 0 de- viam pagar” (40) E realmente a lei das capatazias nio funcio- nou. Mas tudo porque os ganhadores re- iram das mais diversas for- s cot dos inspetores, declaravam nomes e enderecos falsos, pulavam de uma freguesia para outra burlando a m: tricula, e uns incitavam outros a uma espécie de desobediéncia civil. ‘Um inspetor de capatazia do pri- meiro distrito da Sé, no inicio de feverei- ro de 1837, ja havia desist lo € 0 juiz de paz no encontrava quem quisesse subs- fitui-lo. Evaristo Ladislao, 0 juiz, infor- mou ao presidente que os ganhadores re~ cusavamese a remunerar 0 inspetor € a se submeter revista. Diante disso decidira empregar “alguma violéncia pequena”. Mas por pequena que tivesse sido a vio- Iéncia (que diriam os africanos do seu tamanho?), ninguém se apresentaria para o ganho nos dius seguintes, Os co- merciantes do bairro ja se queixavam da falta de bragos para 0 carreto, O proprio experimentara esta falta em s vigo. Seu colega Felix da Gr: Lisboa, do segundo distrito, desde janei- ro ja avisara ao presidente que ali apenas treze carregadores de cadei- ra, poucos para a populosa Sé. Os de- mais haviam escapado para freguesia onde a lei ainda nao havia sido posta em execugio. E estava dificil encontrar os “evadidos”, pois no haviam declarado corretamente suas moradas € os nomes de seus senhores, Isso em janeiro, Em margo 0 ins- petor Joaquim Cesar 4, kam, idem, 42, om, biden, 20 REVISTA USP d’Almeida, do mesmo distrito, tentava resistir. Num oficio a seu juiz de paz, Felix da Graca, lamentava que j havia trés ou quatro semanas que os ganhadores de Sua capatazia no pagavam seu salirio. Muitos estavam se transferindo para a Conceigio da Praia, uma das freguesias onde © regulamento ainda nao havia sido nplementado. E acrescentava: “tem chegado ao arrojo de alguns negros vi- rem a esta capatazia e conduzir \dividuos deste para aquelle lugar su- blevando desta maneira os ganhadore: aqui matriculados”. Ao contratio do juiz Felix, o inspetor Joaquim sabia quem cram os senhores dos eseravos de sua capatazia, ¢ foi cobrar deles o dinheiro ¢ © paradeiro daqueles. Mas senhores escravos nem sempre estavam em lados opostos do conflito. Aquela lei era uma intromissio impertinente do Estado nas relagdes escravistas. Os senhores niio s6 Tecusaram-se a pagar, como afirmaram que seus escravos tinham liberdade para decidir onde ganhar. E falaram isso com “expressdes groceiras ¢ atacantes”, cho- amingou © inspetor (41). A freguesia da Conceigio da Praia, zona portuaria para onde os ganhadores da Sé estavam fugindo, tinha virado ter- ritGrio livre, Naquele mesmo inicio de 1837, o juiz de paz do Pilar, freguesia vizinha, denunciava que ainda nio pu- dera ver suas do mar instala- das porque os donos de saveiros haviam deixado de atracar. Desviaram-nos para res estavam pedindo demissiio, 0 que indica que também as capatazias da ter ra no estavam dando certo, O juiz do Pilar pedia ao presidente que obrigasse juiz da Conceigio a cumprir a lei, Mas'a confusiio parecia irremediavelmente ins- la (42). Com o tempo, as autoridades desis- ram. E provavel que para isso tivess contado a pressio de negociantes preju- dos com as dificuldades de carreto, de senhores com a falta de seguranga do ganho, € muita gente com a falta de ca- deirinhas, além dos préprios juizes de paz cont o desgaste da luta’ para fazer os ganhadores obedecerem, Essa desobedi- éncia, no entanto, foi o que realmente derrotow a lei. Vencedores, escravos € li- bertos reocuparam seus territérios ¢ 0 que seria capatazia voltou a ser canto. Um dos aspectos da lei das capatazias que nao agradou ao eritico do Didrio da Bahia em 1836 foi ter a Assembléia Legislativa usurpado da Camara Muni- cipal o dircito de regulamentar os ga- nhadores. Segundo ele, ganhador era assunto para postura municipal, 0 go- verno provincial que cuidasse de coisas mais sérias. Com efeito, muitas postura disciplinavam 0 pequeno comércio de rua, a que os africanos, no caso maiori mulheres, se dedicavam. ‘As posturas regulamentavam pesos € medidas, especificando locais onde se podiam vender determinados produtos, proibindo a colocagio de tabuleiros em lugares de maior movimento. Os africa- nos que desobedeciam tinham seus pro- dutos confiscados, além de pagarem mullas pesadas € penas de prisio. Os vereadores eram 0 tempo todo bombar- deados por queixas de moradores € fre- gueses contra fiscais relapsos € queixas de ganhadores e senhores contra fiscais severos, Em 1839, por exemplo, uma carta publicada no Correio Mercantil (22/ 4/1839), assinada por um andnimo “Ini- migo dos Desleixos”, cobrava a remogio de um pequeno mercado de peixes da rua da Preguiga para o lugar designado pela Camara, O leitor denunciava que ganhadeiras, os compradores de pei- xe, € os capadicios & palestra entulhio aquela paragem de forma que nio se pode passa”. Além do falat6rio, do mau chei ro € do obsticulo ao transito, queixava- se da cor dos que ali se reuniam: “Oh Céos, nunca vi nada tio parecido com a Guiné Africana!”. E insistia na compa racio: “s6 ali se veria tanta porcaria, tanta negraria junta”. Até por rima, 0 cidadio (“sou Brasileiro”, escreveu) as- sociava negro a lixo, o que sugere que 0 motivo da queixa servia de pretexto para extravasar preconceito étnico. No entanto, os fiscais nio cram tio tolerantes como a denincia do “Inimigo dos Desleixos” poderia levar a erer. Em julhio de 1835, por exemplo, o fiscal José Custédio Lobo oficiou que prendera “a gumas pretas [...] que estavao embara- cando 0 tranzito publico com suas mer- cadorias”. E no houve relaxamento com © passar do tempo. No ano da greve, 1857, a escrava africana Esperanga foi multa- da por mercadejar parada em lugar proi- ido; ¢ um escravo aguadeiro, por amar- rar o burro a porta de uma venda en- quanto descarregava Agua numa casa. Sio caso¥ escolhidos ao acaso entre deze~ nas (43). ‘Se as posturas municipais se torn: sam © principal instrumento de controle do mercado de trabalho dos africanos, 0 governo provincial nao desistiria de tam- bém atuar contra eles. Quem melhor encarnou essa politica, como mostra Cunha, foi Francisco Gongalves Martins, chefe de policia por ocasiio do le dos malés em 1835, Quando chegou a presidéncia da provincia, em 1849, con- tinuou a perseguir os africanos como a querer completar 0 trabalho iniciado quinze anos antes. Em 1850, eles sofre 1m um grande revés, com a proibigio de trabalharem nos saveiros que descarre- gavam os navios no porto, Doravante os saveiristas seriam “pessoas livres, com exclusio dos africanos”, relatou Martins, Essa medida figurava entre outras dirigidas a abrir espago no mercado de trabalho ao elemento livre nacional, M: se era l6gico afastar os escravos do servi- G0 de saveiro, 0 afastamento dos aftica- nos libertos configurava um: perseguicio étnica e, dada a autoria de Martins, perseguigio politica. Esse espi- rito antiafricano, mais do que antiescra- vista, nao foi percebido pelo abolicionis baiano Luis Anselmo da Fonseca, um entusiasmado admirador do esforgo de Martins em promover o trabalho livre (44). Medidas assim visavam empurrar 08 africanos para o trabalho dependente nos engenhos ou fazé-los retornar em massa a Africa, Uma suposta conspira- cio africana em 1853, interpretada pelo Consul inglés como uma reagio de aftica- nos desempregados, resultaria numa repressfio policial desmedida. A pressio politica e as dificuldades econémicas da dificil década de 1850 intensificaram 0 movimento de retorno a Africa. No pré- prio ano de 1857, dezenas de antincios apareceram nos jornais baianos em que africanos comunicavam a amigos ¢ cli- entes a decisiio de deixar o pais. Exem- plo: em 21 de fevereiro Salvador Ramos das Neves anunciava que partia “levan- do sua familia”, constituida da mulher ¢ cinco “crias forras”. As companhias de navegacio também anunciavam viagens para a Costa d’Africa. Em fevereito par- tiria para Onim (atual Lagos, Nigéria) 0 navio “‘Independence’, de primeira marcha € com excelentes acomodagdes a icava para passageiros”, segundo anunciou seus consignatdrios Gantois & Marback. Essa firma participara ativamente do ico clandestino de escravos para a Bahia; agora fazia dinheiro transportan- do, legalmente, afticanos libertos de volta a Africa (45). A GREVE A lei de 1857 foi entio parte de uma longa campanha de controle do traba- Ihador africano em Salvador. Mas fez-se uma lei mais branda ¢ mais simples do que a de 1835. Da lei anterior, herdara a exigéncia de matricula e chapa. Nada, porém, sobre a reorganizagio dos can- tos, por exemplo, talvez porque ja se pre- visse o mesmo fracasso da lei de 1835. O movimento comecou bem. Nossa principal fonte sobre seu andamento € 0 Jornal da Bahia, com noticias sempre estampadas na primeira pagina, Sobre 0 inicio da greve, noticiou a 2 de junho: “Hontem esteve a cidade deserta de ganhadores e carregadores de cadei- ras, Nio se achava quem se prestasse para conduzir objecto algum. Da alfandega nenhum objeto sahio, a no ser objecto mui portatil, ou que fosse tirado por escravos da pessoa interes- sada, [..] Os pretos occultaram-se; ¢ se 0s senhores nao intervierem nisso, or- denando-Ihes que obedegam a Lei, o mal continuara, porque, segundo ou- vimos, elles estio nessa disposigio”. Segundo o jornal, o motivo princi- pal da parada era “a execugio da postu- ra que obriga os ganhadores a trazerem chapa ao pescogo!”. As chapas, assim, avultam como a principal razio de estar parado o transporte de pessoas ¢ de mer- cadorias em Salvador, sobretudo estar parado o porto de uma cidade voltada para 0 comércio exterior. O periddico esbogava a esperanga de que os senhores interviessem, fazendo seus cativos retornarem ao servigo. Mas nao foi 0 que aconteceu. Ja no primeiro dia, os africanos re- ceberam um aliado acidental, mas im- portante. A Associagio Comercial, que Tepresentava os grandes negociantes, protestou contra a lei municipal junto a0 presidente da provincia, o futuro chefe 48. AMS, Climara, Corespon- tensa do Pica, 18 rn AMS, lequerimentos, 887, ne “44 Fata que recov Presidents da Prove et, Salvador, 1884 pp.394 Manuela ca Gunna, Negros, Esrangoroe: os Gscrmos eros oxeue: tomo 4 Anica, Sto Pas, 1865p. 96-7: Ls Aral SaFonmeen, A Everao, 0 ‘Gero woAbotenimo Rec fe 1088 (org 1887), 2" pare, cap.2 48, Cunha, iidom, pp. 62100 (wagaaneaticana) domat a Banta (1972/1957) Vergor, Fux ot Retx pp. 453°¢ REVISTAUSP 21 ‘can a indveral a Bahia ara o Anno de 1087, Sava. Sor 1858p. 368, Jornal a Bahia ree 06/687, 47, Eugene W. Rings, “The {Banan Commerc Aceon tion, 1640-1860 tebe PNO. Universo 1970.66 146,120, 133, 48, ANS, Alas da Clara ol Sue. te 274 0 49, Lule Cason Soares, Os Es ‘eaves de Ganto no Ro de Sanoro do S4euo XIX, RewtaBrastovadeHstira 8:16 (1088), pp. 1112 (ona pascaracas senalgaana (Greit867), AMS, Alas ca Clinara,vh 9 481 50, Joma! a Bari (16/1857. 22 REVISTA USP de gabinete de Pedro Il, Joao Lins Cansagio de Sinimbu, Eles achavam que © motivo dos africanos era 0 “imposto”, nio matricula, fianga ou chapa. O que desgostara os comerciantes era também dinheiro, que perderiam se nao puses sem para circular suas mercadori A dependéncia do comércio em re- lagio aos ganhadores talvez nunca tives se ficado tio clara como em 1857. Em 1851, Wetherell escreveu que a “marcha do progresso” chegara A Bahia na forma de duas linhas de bondes e muitos carros de aluguel com tracio animal. Além d so, bandos de mulas seriam usados para carregar cal, pedras, terra, ete. Mas nao bastava, Havia que carregar as carrogas com as pedras, por exemplo, trabalho de ganhador. E 0 aluguel de carros era caro, pois, a0 contrario dos saveiros, © prego no era tabelado pelo governo, Além di so, consti se de um setor monopo- lizado. OAlnanakdaBahiade 1857 listava apenas dois “alugadores de carros, seges carrinhos”. O principal era 0 austriaco, Rafael Ariani, proprietirio de carros de carga © passageiros, carruagens para ocasitios solenes € carros funeririos. Ele cobrava aluguéis altos, de 40 a 50 mil réis pelo carro comum ¢ até 70 mil réis por carruagem, puxada por quatro cavalos, para casamentos. Quanto aos carros mortuirios, 0 Jornal da Bahia citava al- guém dizendo que “na Bahia custa-se mais morrer do que viver”. E quando se in queixar a Ariani, segundo 0 mesmo jornal, ele recebia com “maos modos [...] j4 proverbiais” (46). Depender das rodas de Ariani nao era uma boa idéia, fosse quitandeiro, comerciante grossista ou simples usud- rio de cadeirinha, Aliis, 0 uso de carros, além da falta de mereadoria na praga, pressionaria mesmo os pregos. “A cares- tia cresceo”, escreveria mais tarde o Jor- nal da Bahia (15/6/57). Todos queriam os africanos de volta aos cantos. Mas esta- vam errados se acreditavam na tese da Associagio Comercial de que se tratava 86 de dinheiro. Pois bem. Pressionado pelo comér- cio, 0 presidente da provincia imediata- mente informou 4 Camara que suspen- desse a cobranga da taxa de matricula e stribuisse gratuitamente a chapa de identificagio. O presidente, como os co- merciantes da Associagio, eram adeptos do liberalismo econdmico, 0 que diver~ sas vezes os opunham & Camara, mais imtervencionista (47). A divisio no cen- tro de poder da cidade - Camara Muni- cipal ¢ Palicio Presidencial, por sinal, ocupavam a mesma praga - seria o pri- meito fato politico importante criado pelo movimento, A sessio da Cimara que discutiu as ordens do presidente dividiu seus nove vereadores. Dois deles, inclusive o presi- dente da Propuseram que a matri- cula fosse reduzida a mil réis e se dispen- sasse fiador para ganhador liberto, A proposta foi rejeitada, Um edil acusaria © presidente da provincia de abolir uma cobranga legal porque nao podia haver “licenca sem pagamento”, E acusava 0 governo de irresponsivel, por ter dado mostra “de nio ter sciencia de seus actos”. Ao argumento financeiro, outro associou © regimental, defendendo a postura “por entender que a Presidéncia da Provincia [..] no pode, assim como a Assembléia Legislativa Provincial, derrogar, nullificar, ou alternar uma Postura qual- quer depois de approvada” (48). No final os vereadores acataram o presidente sob protesto, Em resposta publicada na imprensa, lembraram que ele mesmo havia aprovado, embora pro- visoriamente, 0 texto de uma postura, nao s6 inspirada, mas “literalmente copiada do codigo municipal do Rio de Janeiro”. Realmente, na corte, desde pelo menos 0 inicio da década de 1840, os ganhadores haviam sido obrigados a usar chapas. ‘Com tio exemp! al, a postura baiana, segundo os vereadores, seria “legal, jus- ta e exequivel”, inclusive a cobranga das chapas de metal. Omitiam apenas 0 de- lalhe de que cobravam trés mil réis por uma chapa que thes havia custado ape- nas 600 réis junto a fundigio G. Colom- bo (49). Do ponto de vista da argument: politica, o melhor trecho dos vereadores foi o dedicado aos ganhadores. Demons- trando experiéncia em tratar com eles definiram © movimento como “conluio ou parede entre africanos libertos e os escravos, no porque Ihes pese o dispendio que a licenga acarre- ta, na verdade insignificante para industria to lucrativa, e que nenhum outro imposto paga, mas porque se querem eximir de toda e qualquer fiscalizagao” (50). E advertiam ao presidente de que a greve dava um péssimo exemplo a quantos no futuro quisessem “neutralisar aacgio do Governo”, Ao invés de ceder, as autoridades deviam tentar neutrali- zar 0 movimento, utilizando para isso os operirios do arsenal de guerra, ocupa- dos na indéstria naval, ¢ os chamados “africanos livres”, aqueles confiscados de contrabando apés a proibigio do trifico em 1831 € colocados sob a tutela do Es- ado (da serem também chamados “afri- canos da nagio”). A médio prazo, a Cie ‘mara apostava em que fossem criadas as companhias de homens livres, j4 previs- tas em uma lei de 1855, Mas 0 presidente nao deu ouvidos a0 barulho que vinha do outro lado da praca. Segundo ele, j4 que a Camara pretendia apenas disciplinar os ganha- dores, a medida devia ter apenas um cariter policial e nao fiscal. Para isso bastava que permanecessem a matricu- la ea obrigatoriedade “desses individuos trazerem visivelmente em uma chapa de metal 0 numero de sua matricula”. Ade~ mais, a Camara nao tinha prerrogativa de criar a taxa, sendo com aprovagio da Assembléia Provincial. O presidente fa- zia eco das criticas a lei de 1836, afirman- do que, na eventualidade de ser realmen- te feita a cobranca, os ganhadores termi- nariam transferindo para scus clientes “A Camara sabe que a imposigio re- sultante dessa licenga recahe sobre os consumidores € nao sobre os contri- buintes, e portanto deve ponderar que © alivio que se pretende fazer com a isengio della nio é feita aos escravos, € nem aos africanos libertos, mas sim 4 populagio consummidora, cujos interesses é dever da auctoridade attender, maxime quando trazidos a0 seu conhecimento pelo modo legal € pacifico por que o fez. a junta directora da Associagiio Comercial” (51), O presidente nao fazia politica em favor de escravos € libertos, 1 dendo os interesses que defend nou que os vereadores acatass ordens, Assim, no segundo dia de greve, jé afticanos escravos e libertos haviam con- seguido derrotar uma parte, a parte “fis- cal”, da postura, Continuavam parados contra a parte “policial”. Na mesma edi- gio que publicava a polémica entre a Cimara da cidade ¢ a Presidéncia da provincia, o Jornal da Bahia noticiava sobre o segundo dia da greve: “Os cantos ainda estiveram desertos”. Observava entretanto que carros operados por ho- mens livres, além de escravos a pé de despachantes, haviam retirado “diver- sos volumes” da alfiindega. Muitos par- ticulares estariam aderindo ao carro, uma opgio cara, como vimos, € por isso emergencial. Ademais, 0 que havia de carros e homens livres ¢ escravos domés- ticos nio dava conta do que havia de mercadoria para ser transportada. Os homens livres, mesmo os de cor, consideravam indigno trabalhar lado a Jado com escravos € libertos africanos. Jornal da Bahia de 15 de junho: livres, que no con- correm aquelle trabalho porque nio querem exercé-lo a par de africanos libertos ou escravos, correriam pres- surosos a ganhar alli decentemente o pio, que thes nio abunda, certos de que nada teriam a soffrer nos prejuizos que herdaram ¢ alimen- O preconceito (“prejuizo”) contra 0 africano, € nao 86 0 escravo, era gener: lizado. Nao era repulsa de cor nem clas- se, mas étnica, Nao surpreende que os africans se protegessem com barreiras também étnicas. Naturalmente o precon- ceito se acentuava na medida em que, na hora da competigio no mercado de tra- balho, os homens livres encontravam os africanos admiravelmente organizados em torno dos cantos. Os cantos assim representavam um instrumento de re- serva de mercado, uma barreira a entra- da dos nio-filiados - € nele s6 entrava africano, ou quem a ele se submetesse, Os escravos e libertos africanos estavam na ocasiio muito melhor organizados do que os trabalhadores livres Daf os homens livres viverem a pe- dir a protegio do governo contra os afri- canos. Foi gragas a essa protegio que vieram a penetrar na estiva, onde carre- gavam e descaregavam em saveiros os navios ancorados ao largo do porto. A lei de 1850, lembrem-se, proibia a partici- pacio de africanos e/ou escravos nessa atividade. Mas mesmo com a proibigio, 5. dom, bia REVISTA USP 23 1 Matto, Bahia: Salvador, pp. 278-2; Cunna, Negros. Envangowes, p06 159, Monel Fovcault, Vig 9 Pu ‘ne Pawopols, 1977, p28 154, Wether, Baz, 70 (gia ‘Sone caine 155, AMS, Atetados de Conduta fe Matrcula de Eacravos, 1987, ne 2a REVISTA USP em 1854, 21,7% dos “empregados na lide do mar” eram escravos, no que deve ter contado a pressio senhorial. Com a crise da epidemia de cdlera em 1855, essa pro- porgio dobrou e se manteve estivel em 1856 (52). Mas se a estiva estava dividida entre escravos ¢ livres - e destes 35,2% ram brancos em 1856 - 0 carrego além das fronteiras da alfindega ficava por conta de escravos ¢ libertos predomin: temente africanos. Daf 0 impacto da pa- rad Sobre o terceiro dia da greve, o Jor- nal da Bahia (4/6/1857) informaya que 0 transporte continuava devagar, “apezar do auxilio prestado por alguns bragos livres € carros”. A greve parecia ser ago- ra exclusivamente em torno do us placas de metal: “A repulsa pelas chapas ainda continua por parte dos pretos. Hontem esteve a cidade, como nos dias precedentes, limpa de pretos carregado- res”. Tal como 0 critico das chapas em 1836, 0 periddico percebeu o que estava em jogo. E se a imprensa percebeu é porque todo mundo j4 sabia, Mais do que rejeitar 0 controle do seu trabalho, 6s africanos rejeitavam aquela forma es pecifica de controle. O uso das chapas era tido como humilhante. Os africanos cram originalmente de um mundo onde a mareagio do corpo com escat s (as abaja iorubanas), 0 uso de determi- nados colares, roupas € penteados dizi- am sobre sua posigio na ordem social ¢ ritual. Os africanos estavam com Foucault: “o corpo esta diretamente mergulhado num campo politico”. Mas a Camara também: “o corpo s6 se torna forga ttil se € ao mesmo tempo corpo produtivo © corpo submisso” (53), Am- bos sabiam que naquela chapa jogavam uma cartada decisiva. Como escreveu 0 Jornal da Bahia (6/6/1857), os africanos lutavam para “desembaragar-se do tal ferro, que tio deshumanamente os equi- para aos miseros quadripedes”, E havia outras associagios. O eritico de 1836 comparou a chapa com argola de condenado. Um comentario de Wetherell lembra outra associagio mai direta: 0 colar enfiado no pescoco do es- cravo fujao. O inglés escreveu: “esse dis- fintivo € considerado uma grande desgra- Ga, pois quando passam [escravos com cle] seus conhecidos zombam deles” (54). A gente imagina que esses bravos fujdes deveriam ter sido aplaudidos pelos par- ceiros de escravidio. A vaia podia ser um desabafo dos mais covardes, ou uma cri tica & incompeténcia da fuga. Seu senti do mais profundo talvez nunca se escla- reca. O fato € que o ferro encaixado no corpo humilhava, fazendo pesar mais ainda a condigio de escravo, de corpo- propriedade. Se a argola punia 0 pe do da rebeldia, a chapa parecia punir 0 pecado da origem africana dos ganha- dores, Naquele terceiro dia de greve, 0 olheiro do Jornal da Bahia (4/6/1857) cit culou pela cidade com as orelhas em pé: “temos ouvido que dentro em pouco andario de novo os pretos nas ruas como ntes, independentemente de chapas ¢ matriculas”, Porém, nesse terceiro dia 0 movimento comegou a apresentar as primeiras desisténcias, exatamente no elo mais fraco da comunidade de ganhado- res: os escravos. Os senhores os estavam pressionando a trabalhar: apressaram- se em comparecer @ Camara para registré-los, obter gratuitamente a placa € mandé-los logo para o ganho. Os afti- canos enfrentavam a dificil circunstin- cia de atuar politicamente sobre um mercado de trabalho segmentado entre libertos e escravos. Se os primeiros $6 tinham de seguir © comando de seus lide- s, sem diivida os capities-do-canto, os segundos ficavam entre © comando des- tes e as ordens dos senhores. Os escravos enfrentavam mais riscos. Desobedecer ‘aos senhores podia redundar em castigo, reducio e até suspensio de sua parcela do ganho, podia inclusive comprometer a alforria, que dependia, além de dinhei- ro, da boa vontade dos senhores. E estes, a vez suspensa a taxa, nio viam por jar a matricula, Com efeito, a partir de 4 de junho, quando percebe- ram que nao tinham de pagi-la, eles cor- reram para registrar seus escravos, Eu 86 consegui encontrar, nos arquivos da CAmara, trés matriculas até esta data; para o dia 4 encontrei quarenta (55). Nao obstante a dificuldade, os gre- vistas procuraram reagir, ¢ o fizeram com titicas de piqueteiros moderos: “Alguns senhores tém matriculado seus escravos, que sahem para a rua com a chapa respectiva, mas sfo logo obrigados a arranca-la, no s6 por- que 0s companheiros os maltratam e obrigam a isso, como também por- que os moleques € as pretas fazem- Ihos roda, ¢ os desesperam com dictos € sarcasmos”, No dia seguinte, 0 jornal informaria que os escravos com chapas haviam sido apedrejados pelos companheiros. Obri- gados a tirarem-nas, eles voltavam para casa por nio poderem trabalhar sem serem presos pelos fiseais da Camara (56). Um desses incidentes foi motivo de uma petigio 4 Camara, feita por Eufemia Maria das Dores Rocha: “tendo matriculado n’essa Reparti- gio no dia primeiro de junho os scus escravos que andio no ganho sob os nimeros 99 e 100, acconteceo que 0 de n° 100 de nome Antonio, na Ussd, recolhendo-se para casa depois da Ave-Maria, um grupo de africa nos moleques na Baixa de Sapateiros arraneassem do. pescogo a chapa, que trazia 0 dito escravo, vindo espanci do...” A senhora do escravo haussa (gra- vem sua origem) solicitava que o dinhei- To pago pela chapa perdida fosse devol- vido. A Ciimara deferiu o pedido, lavran- do em ata que o incidente “denota falta de ago policial” (57). Mas a policia dificilmente poderi controlar toda a cidade. Inclusive por- que os ganhadores nio estavam sozinhos na defesa do movimento: a comunidade negra veio a campo para apoit-los, cr angas € mulheres. Como vimos, as mu- Iheres controlavam um bom pedago do comércio de rua de Salvador. Ganhado- res € ganhadeiras dividiam a soberania das ruas. Apesar de nao participarem dos antos, uma instituigio masculina, ela aziam parte da rede mais ampla de tra- balhadores africanos urbanos. Eu sus- peito, inclusive, que ajudaram o mov mento nao apenas desencorajando as deserges. Como vendedoras de comida, nao duvido que tenham alimentado a dito ganhadores que hi io fazi- m vintém, Acompanhando as miios no servigo, ou simplesmente a solta na molecagem, os meninos de cor eram outras persona stantes da cena piblica ses “moleques”, meninos ¢ adolescentes negros, freqiientavam os relatos de viajantes, os relatérios pol 58 dorafaa Bani e/1057). 57, AUS, Atas da Clmara, vo 8,1. 283, REVISTA USP 25 26 REVISTA USP ais ¢ mesmo a crdnica politica. Nos mo- tins antiportugueses e outros levantes das décadas de 1820 e 1830, figuraram como certciros apedrejadores. Agora, junto com as pretas, azucrinavam pobres es- cravos, fura-greves forgados, numa es- pécie de charivari trabalhista africano. Por traigio a0 canto, esses escravos cram colocados na roda, ¢ no era roda-de-sam- ba, embora talvez niio faltassem palmas € cangées de humilhante critica. O quarto € 0 quinto dias de greve nao trouxeram novidade, exceto um ou outro incidente entre ganhadores e al- guns escravos que se arriscaram a apa- tecer em piblico com a chapa, A impren- sa, entretanto, comecou a transmitir s alarme. A.5 de junho 0 Jorual da isténcia ines- perada, que hé trés dias nao passava de uma novidade como outra qualquer, vai tomando um caracter de crs ”, Realmen- em paz, numa cidade paralisada por affi- canos, alguns talvez veteranos de revol- tas escravas, ¢ onde ja se falava de abolicionismo em sociedades organiza- das por jovens idealistas, estudantes brancos € mestigos da Faculdade de Medicina. Num longo balango da greve, o Jor- nal da Bahia de 5 de junho, sexta-feira, chamaria 0 movimento de “ameagadora crise, uma revolugio”, a “revolugio dos ganhadores”; ¢ estes seriam “novos re- volucionarios”, que tinham “entendido| dever impor seus interesses”. obstante a semantica ainda incerta do vocibulo “revolugio” na Bahia desse tempo, nio hi diivida em que aqui o pe- riddico 0 entendia por ruptura profunda com a ordem. Sendo um drgio da oposi- Gio, buscava demonstrar a responsabili- dade do presidente da provincia pela “calamidade” da greve. Chegava a colo- car na boca dos vereadores a acusac: de que, sob ele, a provincia estaria sendo “governada por africanos”, acentuando em negrito essas palavras. O presidente, continuava 0 articulista, teria demons- trado fraqueza (ou “generosa compla- ') no trato com os ganhadores paredistas, pois acolhera a legalidade da postura para depois revogi-la, minando ainda a autoridade da Camara. Atitude presidencial semethante, lembrava o jor- nal, teria provocado a cemiterada em 1836, quando uma multidio desteuiu, sem oposicio policial, o cemitério do Campo Santo para opor-se & lei que proi- bia os enterros dentro das igrejas; ou a Sabinada, em 1837, uma_ revolta federalista que tomou Salvador por qua- tro meses, sendo o presidente de entio acusado de nao agir com firmeza contra os conspiradores. A paralisagio africa- na era uma “revolugio” cujo desdobra- mento preocupava: “Qual sera o resul- tado?”, interrogava o didrio. presidente nao estava preocupa- do com isso, Nessa mesma sexta-feira seguiria para Alagoas, sua terra, a bordo do vapor Magé, “fazendo queimar bom jo as custas do Estado”, alfinetava o Jornal da Bahia (6/6/1857). E perguntava: “mas que faria S. Exe? i no camino Ihe aparecessem os negros ganhadores com as chapas entre os den- tes?” mana com pi pé, levar cartas ao correio, talvez enfren- tar falta de Agua de beber em casa, etc. ete. Como era bom ter africano para prover tudo isso! Mas na segunda-feira, quando a gre- ve completava uma semana, os primei- ros carregadores de cadeira apareceram. Os cantos do largo do Teatro (atual pra- a Castro Alves) e da rua de Baixo de Sao Bento (atual Carlos Gomes), préximos um do outro, estavam cheios. Com um detalhe: ninguém trazia a chapa de iden- tificagio. No dia seguinte, segundo 0 Jornal da Bahia (10/6/1857), 0s cantos de cadeiras estavam quase todos “sortidos de carregadores” ¢ muitos ganhadores jf carregavam fardos, inclusive da alfin- dega. Todos continuavam sem chapa. Mas faltavam bragos para normalizar a circulagio de mercadorias, em parte ain- da feita por carroceiros livres, O aparecimento dos ganhadores ti- explicagio, Nessa mesma ter- ’imara Municipal - “queren- uma prova niio equivoca dos de- s que a animam de promover [...] todo © bem dos seus municipes” - revogaria a 0, substituindo-a por outra. A decisio nio tinha sido unanime. Um vereador votou contra. Outro reti- em protesto. Ainda em sessio, a nova postuta foi levada ao palicio pre dencial, do outro lado da rua, ¢ logo retornou a plenario aprovada pelo vice- presidente em exercicio, Manoel Messi- as de Leao (58). Os vereadores aboliram a taxa, mas mantiveram a chapa, Mantiveram tam- bém a obrigatoriedade de os libertos apresentarem findor. Com uma diferen- ga. Na postura original se Tia: “apresen- tar fiador que se responsabilise por elle, afim de poder conseguir a licenca e a chapa”. Na nova postura Ié-se: “apre- sentar um certificado de abonagio da autoridade do districto, em que mora- rem, € na falta deste de pessoa reconhe- cidamente idénea”. Nao parece uma grande mudanga, mas era, No primeiro caso se exigia que um homem livre se responsabilizasse pela conduta futura do liberto, nos mesmos moldes que um se- nhor se responsabilizava por vo. Isso implicava criar um pendéncia talvez insuportivel para 0 i berto, sem contar que provavelmente fosse dificil encontrar alguém que qui- sesse se arriscar a tal compromisso. No segundo caso, tratava-se apenas de um atestado de comportamento anterior, escrito por uma autoridade policial - em geral o inspetor de quarteirio ou o juiz de paz - ou pessoa “iddnea”. Ou seja, podiam confirmar-se lagos de dependén- cia jé existentes, mas nao se criariam outros. Com efeito, atestaram boa conduta dos libertos ex-senhores, amigos de ex- senhores, comerciantes clientes dos ga- nhadores, além de inspetores e juizes de paz. Manoelino dos Santos garantiu que Jacob Ojé (notem o nome africano, raros na escrita senhorial), escravo liberto por ele hd pouco tempo, “sempre teve bom comportamento tanto como meo escra- vo como agora forro [...”. Olimpio Fi Moniz Barreto nao se arriscou a opinar sobre 0 comportamento presente de seu ex-escravo nag6, Luiz, mas atestou que “enquanto esteve empregado no meo servigo por mais de vinte anos sempre teve um comportamento irrepreensivel”. Cipriano Rigaud escreveu em favor de Antonio Joao de Bastos, ganhador do canto do Trapiche das Grades de Ferro, ¢ “que vive de ganho carregando qual- quer objecto no comércio desta cidade”. O fiador havia sido amigo de Joio de Bastos, hom6nimo e finado senhor do ganhador. O paternalismo ultrapassava fronteiras da familia senhorial para is proxim: Foi também por ter sido “intimo amigo” do finado senhor de Aleixo Sanches, car- regador de cadeiras do canto da ladeira de Sio Bento, que o mesmo Rigaud sabia ser 0 liberto “preto de toda a capacidade, ‘© que também 0 altestio outras pessoas que o conhecem como eu a muitos annos”. Um bom nome na praga foi o que levou Marcellino e Balthazar a conseguirem atestado do comerciante M. J. Magalhaes, que escreveu: “tém gozado de crédito para com as casas de commercio que costumam carregar carreto [...]"(59)- No entanto, a maioria dos libertos se dirigiu a seus inspetores de quarteirio ou juizes de paz em busca de atestados. Nesses casos eles préprios mandavam redigir 0 documento por um procura- dor, solicitando que a autoridade a nasse embaixo. Muitos ganhadores da Vit6ria, por exemplo, contrataram para redigir tais peticaos a Firmino da Costa Menezes, que deve ter armado uma banquinha na rua para atendé-los a to- dos. E interessante que nelas se repetia um trecho amargo para os ganhadores: “acontece que a Camara Municipal tem criado a Postura que obriga aos ganha- dores a uzar de uma chapa que os distin- ga dentre os operdrios das outras classes, € que esta seja concedida a quem apre- sentasse attestado de sua boa conducta [.-1” (60). H4 nessas palavras um qué de denincia a discriminagao sofrida pelos africanos, e € possivel que a idéia de in- troduzi-las nao tivesse sido inteiramente do escrivao Menezes. Os africanos ti- nham plena consciéncia de estarem sen- do marcados para baixo, desclassificados. No dia 12 muitos ganhadores se apre- sentariam na rua de chapa. O niimero de matriculas de escravos feitas nessa data bateu recorde; € também desta data a maioria das fiangas de libertos que con- segui encontrar. Mas nem todos foram vistos com chapas. Uns provavelmente por resisténcia, outros por faltarem cha- pas na Camara, que néo mandara fabricd-las em némero suficiente! Mas 0 Jornal da Bahia (13/6/1857), sem esque- cer de criticar a ineficiéncia dos vereado- res, jd podia anunciar: “as cousas vio voltando aos seus eixos”, Estava pratica- mente acabada a greve. Nos dias seguin- tes o transporte em Salvador retornaria 4 normalidade. O movimento tinha sido um sucesso 58, Jornal da Baba (1)81887); 2S, Ais aa Clara vo, 1.48, 8 Z78¥, ANS, Oficos ecobidos, 1857, re. 159, AMS, Alestados de Conduta ' Matievay do Eeovavon, £0, tem, idem, REVISTA USP a7 28 REVISTA USP parcial, Derruboui a taxa de matricula modificou os termos da “fianga”, Conse- guir parar todo um importante setor de trabulhadores urbanos durante mais de uma semana ji era um resultado noté vel. Que isso tivesse sido possivel deve-se atribuir a que os ganhadores nao cons tufam uma massa desorganizada e sem uma compreensio de seus interesses. Isso foi entendido pelos proprios contempo- tineos. Em seu balango dos acontecimen- tos, oJornal da Bahia (15/6/1857) admitia que o presidente agira contra a postura “em virtude da resistencia dos africans”, E a resisténcia havia sido eficaz porque agiram “os africanos a uma voz, movi- dos por uma s6 vontade [...)”. Como foi possivel? Infelizmente nao temos 0 depoimen- to dos proprios ganhadores. Nao se mon- tou nada como uma mesa de negociagdes onde os africanos tivessem assento e suas vozes registro escrito. Os ganhadores safram de cena ¢ divulgaram pela cida- de, na base do “jornal oral”, sua posigio. Além da propria parada, tudo que sabe- mos vindo do campo africano durante aqueles dias se resume aos ataques a fura- greves. Por outro lado, porque as autori- dades foram surpreendidas por “uma revolugio de uma nova espécie”, além de se encontrarem divididas, nio houve $0 da forga para combaté-la, Assim, nio fez um inquérito policial, com prises mlerrogatorios, o tipo de documenta lo que poderia fornecer uma visio, por contaminada que fosse, de dentro do mo- vimento. Resta ler nas enirelinhas. Os cantos certamente tiveram um papel fundamental na organizago da patede grevista, Para que todo mundo parasse em ordem ¢ “a uma s6 voz” foi , combinar, decidir € extensio s6 possivel a partir de uma estrutura organizacional preexistente, O que me leva a crer que os cantos nao eram reinozinhos isolados uns dos outros, mas formavam uma espécie de federagio. Isso é confirmado pela pre- senga de delegacdes de diversos cantos por ocasiio da posse dos capities. Tal como em 1835, ficou claro em 1857 que eles constituiam, nio apenas redes de $s econdmicas e sociais, mas de ios politicas também, I a linha que tecia essas redes era “a na- fio”, Mas qual nagio? ‘Como ja vimos com dados de 1849, os nagés predominavam entre ganhado- res libertos e escravos. As evidéncias para 1857 confirma. Sobre os libertos, pou- cos dados: nas 29 matriculas ou fiangas que revelam algo sobre suas origens, 17 se declararam apenas “africanos”, onze \g6S € apenas um jeje. Temos mais in- formagio sobre os escravos. Das 477 matriculas que consegui localizar, 63 nao trazem referéncia 3 origem dos escra- Vos, outras 173 os listam apenas como “africanos” € 186 como nags. Os dem: ganhadores eram doze angolas, nove hausstis, sete tapas (nupe), seis jejes e mais doze africanos de outras origens. De es- cravos brasileiros, s6 nove crioulos. Se contamos apenas os 241 ganhadores ao quais podemos atribuir origem étnica especifica, os nagds formavam 77% do grupo. Nao é que s6 nagés tivessem feito a greve, Mas sua proporgio superlativa decerto facilitou a mobilizagio em 1857. E uma vez decididos a parar, quem ou ria desafid-los? Aquele escravo haussa, Antonio, que foi 2 rua de chapa em plena greve, voltaria para casa espancado e sem chapa. A identidade étnica, que desem- penhara papel saliente nos violentos le- vantes escravos até 1835, voltava a fazé- lo agora que os nagds adotavam taticas pacificas de enfrentamento, Com uma diferenga: dado o nime- ro de nagés eles praticamente viraram sindnimo de africano, Em 1835 eram cer- ca de 29% dos escravos africanos, em 1857 eram 77%. Esse enorme guarda- chuva nag6 deve ter passado a abrigar muitos africanos de nagios menores, cujos nimeros as vezes nio dava para formar nem um canto, por exemplo. E entao viravam nagos por adogio. Nao que deixassem inteiramente de ser o que cram, mas ao passarem para as redes sociais nag6s tinham de abrir mao de uma parte da antiga identidade, Acontece que nessa segunda metade dos oitocentos as pequenas nagdes vio encolhendo rapi- damente, exceto a numerosa nagd. Esta ind ocupar um espago étnico em que “o outro” se tornaria cada vez menos 0 ou- tro afficano € cada vez mais o baiano. Brancos, crioulos, mestigos nascidos no Brasil também passariam a enxergar cada vez menos as diferengas entre os africanos ¢ a enxergar no nago o africano tipico, Dessa forma & que se verificaria uma espécie de pan-afticanizagio da iden- tidade étnica na segunda metade do sécu- lo XIX baiano. Por isso, a0 contritio de 1835, 1857 nio foi cunhado pelos contem- porineos de movimento nago e sim “afr cano”, Relembro a definigio que a Ca- mara Municipal fez da greve: “Conluio ou parede entre africanos libertos e os escravos”. O movimento teve suas limitagdes, digamos, estruturais, Embora, segundo 0 Jomal da Bahia (5/6/1857), maioria dos ganhadores fosse constituida de aft canos libertos, 0 nimero de eseravos nio era desprezivel. Se os libertos tinham posigio ocupacional semelhante aos es- cravos, a condigio de liberdade os colo- cava num outro patamar da estrutura social e de poder. Vimos que partiram de escravos, sob as ordens do senhor, as primeiras defecgdes. Se nagio, ocup: € discriminagio os ligavam aos compa nheiros libertos, a escravidio os separ va, Aquele censo de 1849 de Santana ilus- tra de forma contundente essa situacao: 78 escravos eram propriedade de liber- tos africanos, 47 pertenciam a senhor da mesma nagio. E possivel que 0 movi mento tivesse ido ainda mais longe na auséncia dessas diferengis. Ao mesmo tempo, por ter ido até onde foi, e até por ter sido feito, ele depde mais sobre alian- ga do que sobre separacio. O movimento de 1857 suscita questios mais amplas. A greve é um método de luta tipico do trabalhador urbano modemo, sobretudo do trabalha- dor fabril. Como observa Charles Tilly, a greve havia sido i aleatoriamen- te mu ma urbano-industrial, mas 6 com o pre- dominio deste ao longo do século XIX ela se consagraria no repertério das agios coletivas da classe trabalhadora. Até en- tio o pobre aprendia a ser classe fazendo motins contra precos altos ¢ escassez de alimentos (os food riots) que contrariavam costumes tradicionais, con- tra a imposigio de impostos. Esse tipo de movimento do contra, de mobilizagio defensiva para impedir mudancas mo- ralmente inaceitiveis, foi declinando até praticamente a extingiio na Europa ¢ substituido mormente pela greve, uma agio em geral a favor de melhores condi- goes de salirio ¢ trabalho (61). modelo europeu. Se compar: de 1857, tivemos um movimento hibrido. Foi uma reagio contra a tentativa do Estado de subtrair aos africanos “di tos ¢ rolinas estabelecidos” (Tilly), inclu- sive a imposigio do tal “imposto” de cin- co mil réis. Contra isso, ndo se amotina- ram, fizeram greve. Os ganhadores nio tinham fabrica, mas tinham cidade, eram mas coletiva- mente organizados. O fato de serem gen- te urbana, consciente de sua importin- cia para o funcionamento da cidade, inserida num mercado de trabalho monetarizado, explica em parte o estilo de resisténcia escolhido. Com o fim da greve, a resisténcia coletiva daria lugar & agio individual. No dia 29 de setembro de 1857, Ivo, um afr cano escravo, seria preso, segundo 0 fis- cal municipal José Pinto Ferreira, por- que “ni s6 nd tinha a chapa, como tam- bém nio queria que um outro que tinha carregasse” (62). Dez dias depois Ludgero dos Santos Piedade, também fiscal, nar- rou para o chefe de policia que prendera “hum preto Africano que arriando a cadeira que levava de arruar, entran- do em uma venda, a elle segui por ver estar dizendo que tinha ganhado muito dinheiro cu perguntei-lhe pella hapa, respondeu-me que tinha a cha- pa porém que me nao mostrava, o que instei para que me mostrasse como Fiscal da Cimara Municipal compe- tente para este fim, foi debalde, que molivou o dito preto a insultar-me com palavras, ¢ a ponto de querer dar-me € que se nio o fez, foi por ter ido acom- panhado com hum guarda que deu a ordem de preso, ¢ ainda mesmo de- pois de preso luctou muito [...] que por todo o caminho veio jurando-me que quando me encontrasse que me havia de ensinar, que ji me conhecia, que seu senhor nao hera pobre [...]"(63). Era comum que escravos usassem 0 bom nome do senhor como arma nos seus enfrentamentos colidianos com agentes do Estado. Mas nao s6 escravos de senho- res ricos usavam resistir. Incidentes se- melhantes devem ter se multiplicado. A {al chapa no marearia por muito tempo os corpos dos ganhadores. O nome do africano preso por Ludgero era Augus nagd de nagio. 81.Charles Thy, From ‘obitzaion to Revolution Facing 1878.cap Sep. 148 (casio), 62. APEBA, Policia maga 62, 63. dom, mago 6483, REVISTA USP 29

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