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Agonia peruana no século XX:


Mariátegui e Flores Galindo
MARCUS VINÍCIUS FURTADO DA SILVA OLIVEIRA*

Resumo
O presente artigo procura analisar a presença de traumas e ressentimentos na
sociedade peruana do século XX a partir da leitura dos ensaios de José
Carlos Mariátegui (1975) e Alberto Flores Galindo (1986). Em nossas
análises, pretendemos demonstrar como a conquista e a colonização se
configuram como experiências traumáticas para os autores, que propõem
modos de gestão dos ressentimentos advindos desses traumas.
Palavras-chave: Peru; Trauma; Ressentimento; Mariátegui; Flores Galindo.

Abstract
The present work aims to analyze the presence of traumas and resentments
in Peruvian society on the XX century parting from the lectures of the essays
written by José Carlos Mariátegui and Alberto Flores Galindo. In this
analyzes, we pretend to demonstrate how conquest and colonization are
comprehended as traumatic experiences by the authors, that proposes ways
of handling the resentments originated by these traumas.
Key words: Peru; Trauma; Resentment; Mariátegui; Flores Galindo.

*
MARCUS VINÍCIUS FURTADO DA SILVA OLIVEIRA é Mestre em História e
Cultura Política pela Universidade Estadual Paulista - Campus Franca.
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As nações latino-americanas, em suas países formados pelos anglo-saxões


construções, experimentam complexos (...).” (BRESCIANI, 2008, p.127). Na
processos de formação de suas visão da autora, essas formulações, ao
identidades, em virtude da pluralidade construírem a ideia do pecado original,
étnica existente nessas sociedades e, contribuem para a formação de uma
sobretudo, em razão dos processos de moral ressentida nas sociedades latino-
conquista e colonização. Diante desse americanas. Essa moral ressentida,
cenário de incompletude das identidades como atesta Pierre Ansart (2004),
nacionais e dos baixos índices de partindo das reflexões de Nietzsche
desenvolvimento em comparação aos acerca da historicidade da moral, faz
Estados Unidos e Europa, boa parte dos com que o ressentimento se torne um
intelectuais do mundo ibero-americano ódio de si mesmo. Assim, segundo
passam a compreender a colonização Ansart, sem que haja uma gestão desses
como um pecado de origem, como vários ressentimentos, os caminhos para
aponta Maria Stella Bresciani (2008). a segregação e a violência estarão
Para Bresciani, há uma interpretação sempre em aberto para essas sociedades.
que erige um lugar-comum entre os Apesar da existência dessa moral
intelectuais que atribuem à má ressentida, há também uma relação
formação dos países ibero-americanos utópica com esse pecado original, como
“identidade inconclusa, ressentimento demonstram Fabiana Fredrigo e
em relação aos pais fundadores – a Libertad Bittencourt (2014). Para as
‘origem’ menos nobre dos países de autoras, os ensaios latino-americanos
colonização ibérica em relação aos constroem uma temporalidade
específica para o continente, dentro do socialismo peruano reside na solução da
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qual este figura como um espaço questão indígena. Todavia, mesmo
sempre atualizado do vir a ser. Nesse colocando a centralidade da questão
sentido, os traumas originados por essa indígena, Mariátegui não se converte
orfandade são frequentemente em um pensador indigenista. O
combustível que retroalimenta moderno advindo do Ocidente é tão
perspectivas utópicas na América fundamental à Mariátegui quanto o
Latina. indígena. Nesse sentido, o pensamento
político de Mariátegui aponta para a
Dentro desse cenário ibero-americano necessidade de um amálgama entre os
traçado por Stella Bresciani (2008), o mundos ocidental e indígena.
caso peruano se coloca como um objeto
de estudo profícuo para Alberto Flores Galindo, na segunda
compreendermos as influências desses metade do século XX, dá
ressentimentos na organização da prosseguimento ao pensamento de
sociedade. Como demonstram Gabriela Mariátegui. Flores Galindo, como
Pellegrino Soares (2000) e Marcos demonstra Marcos Sorrilha Pinheiro
Sorrilha Pinheiro (2013), o Peru no (2013) é um dos historiadores mais
século XX ainda se mostra um país polêmicos da nova historiografia
profundamente dividido entre a serra e a peruana. Galindo, em suas análises,
costa. Nem mesmo a massiva emigração também se encontra profundamente
dos serranos para a costa foi capaz de preocupado com o Peru de seus dias.
eliminar a segregação e as profundas Seguindo na trilha aberta por
desigualdades existentes no país, Mariátegui, Galindo também confere
abrindo margem para a emergência de centralidade à questão indígena em seus
movimentos armados, como é caso do trabalhos, propondo a necessidade da
Sendero Luminoso. junção dos aspectos ocidentais e
andinos para a resolução dos problemas
Em meio a esse Peru profundamente peruanos.
cindido e aberto aos ódios e a violência,
surgem inúmeros projetos políticos que Nesse sentido, esse trabalho procura
pretendem superar esse quadro, analisar em que medida as propostas
construindo uma identidade peruana políticas de José Carlos Mariátegui e
capaz de agregar as diversas culturas e Alberto Flores Galindo, contribuem
etnias em conflito no país. Dentre esses para a identificação e superação dos
projetos, destaca-se aquele proposto por traumas e ressentimentos da sociedade
José Carlos Mariátegui, no início do peruana do século XX. Para tanto,
século XX, e o de Alberto Flores utilizaremos enquanto fontes históricas
Galindo, produzido nos anos 1980. da obra Sete Ensaios de Interpretação
Mariátegui, como aponta Alberto Aggio da Realidade Peruana, redigida por
(2006), apesar de ser bastante Mariátegui em 1928 e Buscando Un
desconhecido no Brasil, é responsável Inca, publicada em 1986 por Flores
pela elaboração de um dos pensamentos Galindo. Observar as propostas desses
mais interessantes dentro do marxismo dois intelectuais nos permite abarcar
latino-americano. Distanciando-se das panoramicamente a história peruana do
formulações mecânicas e deterministas século XX, percebendo sua agonia em
da II e III Internacionais Comunistas, torno de problemas semelhantes que se
Mariátegui aponta que o problema prolongam por todo o século. Além
central para a construção de um disso, a escolha desses intelectuais se
justifica na medida em que esses se independência não transforma a vida
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distanciam das propostas puramente das populações indígenas, mantendo-as
indigenistas no Peru, escapando a um em regime de servidão. Para
sentimento de idealização e necessidade Mariátegui, essa conservação da
de retorno ao Império Inca. Para ambos propriedade fundiária se configura em
os autores, o passado não é matéria de um dos grandes entraves ao
idealizações ou romantismos, mas o desenvolvimento peruano. Além de
cimento para a gestão dos impedir o desenvolvimento de um tipo
ressentimentos. de propriedade típico do capitalismo,
impede também a participação do maior
Mariátegui (1975) inicia seus ensaios a contingente populacional na formação
partir da construção de um esquema da do país. Portanto, Mariátegui percebe a
evolução econômica do Peru. Para o conquista e a colonização do Peru como
autor, a economia peruana no período eventos fundamentais para o
incaico baseava-se na existência de um desenvolvimento histórico do país. A
comunismo agrário que, com a colonização funda um esquema
Conquista, se torna uma economia socioeconômico que adentra o século
feudal. O processo de independência XX, impedindo a modernização
peruano não é capaz de eliminar essa peruana. Ademais, a Colônia constrói
base econômica feudal. A exploração de um Peru completamente cindido entre
guano e salitre na costa dá início ao os conquistadores e os indígenas:
capitalismo no Peru. Todavia, não há
um capitalismo tout court, uma vez que Somos um povo em que convivem,
a burguesia peruana ainda se encontra sem assimilar-se mutuamente, sem
conectada à ideia do encomendero da entender-se ainda, indígenas e
colônia. Além disso, a Guerra do conquistadores. A República sente-
se, e até se confessa, solidária com
Pacífico impede o desenvolvimento das
o Vice-Reinado. Como o Vice-
forças produtivas peruanas, acentuando Reinado, a República é o Peru dos
o avanço dos Estados Unidos sobre o colonizadores, mais que dos
país. reinícolas. O sentimento e o
interesse de oitenta por cento da
Nesse sentido, Mariátegui aponta que o população não têm quase influência
Peru vive, simultaneamente, três tipos na formação da nacionalidade e de
de economias: a comunista, a feudal e a suas instituições. (MARIÁTEGUI,
burguesa. Isso significa afirmar que o 1975, p.73)
desenvolvimento capitalista no Peru não
é suficiente, apresentando-se como uma Nesse sentido, podemos perceber que
economia dependente e semi-feudal. O Mariátegui encara a colonização como o
atraso domina a introdução do moderno. pecado original, no sentido dado por
Nos termos do autor, “No Peru, contra o Bresciani (2008). Para além dessa
sentido da emancipação republicana, percepção de um país cindido, aponta a
encomendou-se o espírito do feudo – debilidade do colonizador espanhol que,
antítese e negação do espírito do burgo – a ainda marcado pela cultura medieval,
criação de uma economia capitalista” legou ao Peru a rejeição ao trabalho
(MARIÁTEGUI, 1975, p.19). manual e incapacidade de construção do
liberalismo e do capitalismo.
Socialmente, isso implica na
continuidade do domínio da aristocracia Diante dessa rejeição do ibérico,
fundiária no Peru. A estrutura social Mariátegui se volta para a experiência
colonial permanece, de modo que a da colonização anglo-saxã. O espírito de
colonizador americano é essencialmente, religioso.
(MARIÁTEGUI, 1975, p.188) 12
diametralmente oposto ao do espanhol.
O pioneiro americano, profundamente
O programa revolucionário de
marcado pelo puritanismo, é dotado de
Mariátegui brota, portanto, da
uma forte vontade de poder que lhe
compreensão da divisão social e
permite trabalhar para fins práticos e
econômica do Peru entre os indígenas e
utilitários, contribuindo para o
os colonizadores, representados no
crescimento econômico do país.
século XX pela figura dos gamonales.
Aqui é interessante notar o papel Nessa divisão, o Peru deve optar
atribuído por Mariátegui à religião. claramente pelo indígena, no intuito de
Segundo o autor, o puritanismo dos resolver esses conflitos. Com isso, o
americanos é condição fundamental poder oligárquico dos gamonales seria
para o desenvolvimento do país, uma descentralizado para a construção de um
vez que seu espírito encoraja grandes novo regionalismo no país, dentro do
empreendimentos por partes dos qual o indígena seria elemento
indivíduos. O catolicismo espanhol, por participante central.
sua vez, possuía uma vontade de poder Para tanto, Mariátegui propõe um
que não se empreende na economia, retorno ao incaico. Todavia, esse
mas sim na política. retorno não se coloca como uma postura
romântica ou como saudosismo.
Nesse momento, Mariátegui demonstra
Mariátegui é categórico ao afirmar “que
sua heterodoxia, estabelecendo um
o que nos interessa na civilização
diálogo com dois pensadores exteriores
incaica, é o que permaneceu, e não o
à tradição marxista. De Nietzsche, retira
que já morreu” (MARIÁTEGUI, 1975,
a ideia de vontade de poder. De Sorel,
p.246). Ao afirmar que o Peru vive
se apropria da ideia da vontade e dos
simultaneamente três esquemas
mitos. Como se pode depreender das
econômicos, demonstra que as
análises acima, a religião se configura
perspectivas comunitárias incaicas, o
como uma formuladora de vontades
ayllu, não se configuram como algo
coletivas, de mitos capazes de unificar a
morto na cultura peruana, mas como
população em torno de uma vontade
uma característica presente que deve ser
comum. Seguindo nessa trilha aberta,
retomada na superação dos conflitos
sobretudo por Sorel, Mariátegui aponta
sociais e econômicos.
que a política pode assumir, no mundo
contemporâneo, a função que outrora Além de não defender o simples retorno
assumiram os mitos religiosos. Nesse ao incaico, seu projeto político não é
sentido, a construção do socialismo puramente indigenista. Os elementos
passa necessariamente pela elaboração modernos ocidentais, sobretudo o
de novos mitos políticos capazes de espírito do pioneiro americano, são
conferir unificação ao Peru: fundamentais na construção do mito
revolucionário de Mariátegui. Em seu
Sabemos que uma revolução é pensamento o incaico e o ocidental
sempre religiosa. A palavra religião
convergem na perspectiva da superação
possui um valor novo, uma nova
acepção. Não ser, unicamente, para da cisão peruana e para a construção de
designar um rito ou uma igreja. Não um socialismo indo-americano. E, por
importa que os sovietes escrevam valer-se das vantagens do moderno, a
em seus affiches que ‘a religião é o revolução distancia-se do pachacuti ou
ópio do povo’. O comunismo é, mesmo da estratégia revolucionária
bolchevique. Assim, como conclui Essa experiência traumática original
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Aggio: termina por gerar em determinados
setores da sociedade peruana uma série
Fica claro, assim, que Mariátegui, de ressentimentos, como procuramos
antes ou ao invés de ser elucidar a partir das reflexões de Maria
compreendido como Stella Bresciani (2008). Nesse sentido,
“essencialmente um indigenista os traumas e os ressentimentos
peruano”, deve ser percebido contribuem determinantemente para a
sobretudo como um político e um cisão existente no Peru entre os
pensador atento aos fatos do
indígenas e os gamonales, que aparece
mundo. Mais ainda: Mariátegui
revelava possuir uma perspectiva
como uma tautologia da cisão entre
muito mais voltada para uma conquistadores e conquistados.
orientação democrática, de alianças Todavia, por mais que Mariátegui
políticas e intelectuais, que aponte para a existência desse cenário
sedimentasse e cimentasse a
traumático e ressentido, e até
construção de um movimento que
tinha o sentido de uma revolução compartilhe deste em alguns momentos,
pensada não de maneira seu projeto político não aponta para a
convencional e doutrinária que violência ou o ódio. Pelo contrário, a
infelizmente para ele dava fortes saída do ressentimento é a junção do
mostras de se afirmar naquele indígena ao ocidental. Esse amálgama é
momento. Atento ao mundo, exatamente uma solução que pode
Mariátegui buscava uma via de contribuir para a geração de uma nova
passagem, de prática reformista, hegemonia na sociedade peruana.
para o seu projeto de socialismo Residem aí as raízes de um novo
indo-americano. (AGGIO, 2006 consenso.
s/p)
Infelizmente, Mariátegui falece
Portanto, analisando os ensaios prematuramente, não deixando um
redigidos por Mariátegui, é possível programa de estratégias políticas
perceber que o autor compreende a definidas para a construção do
existência de traumas e ressentimentos socialismo. Diante de sua morte
na sociedade peruana do início do prematura, as lacunas de seu
século XX. O trauma, como demonstra pensamento dão origem a inúmeras
Márcio Seligmann-Silva (2008) é uma interpretações, que contribuem para a
ferida aberta que jamais se cicatriza, se origem do fenômeno do mariateguismo.
configurando como um passado que não Na segunda metade do século, seu
passa. Para o autor, a perspectiva do pensamento é retomado por diversas
trauma é, concomitantemente, correntes políticas, inclusive pelo
individual e social, de modo que Sendero Luminoso, que propõe a via
podemos afirmar, pelas lentes de armada, distanciando-se gravemente das
Mariátegui, a existência desse trauma na sendas abertas pelo Amauta.
sociedade peruana. A conquista e
Dentre essas apropriações, destaca-se a
colonização se colocam como os
proposta por Alberto Flores Galindo.
eventos-limite que desencadeiam o
Galindo que, como aponta Marcos
trauma. Assim, as análises de
Sorrilha Pinheiro (2013), participa do
Mariátegui demonstram constantemente
movimento de renovação da
que o Peru se encontra encarcerado em
historiografia peruana. Além de suas
seu passado colonial.
preocupações historiográficas, Galindo
também nutre preocupações políticas. O estando presente em diversos
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contexto de escrita de Buscando Un movimentos políticos. Para Galindo
Inca faz com que essa preocupação (1986), os projetos de utopia andina
torne-se mais urgente. surgem como uma reação à Conquista,
que é sempre compreendida pelos que
O Peru, de acordo com Gabriela compartilham da utopia como um
Pellegrino Soares (2000), experimenta cataclismo na história:
um intenso processo de migração da
serra para a costa a partir dos anos La utopía andina son los proyectos
1950. Para atender a esse enorme (en plural) que pretendían enfrentar
contingente populacional era necessário esta realidad. Intentos de navegar
que o país se modernizasse, no intuito contra la corriente para doblegar
tanta la independencia como la
de criar novos postos de trabalho.
fragmentación. Buscar una
Todavia, o ímpeto dessa modernização alternativa en el encuentro entre la
não é suficiente, de modo que os níveis memoria y lo imaginario; la vuelta
de pobreza e desigualdade social de la sociedad incaica y el regreso
aumentam gravemente. del Inca. Encontrar en la
redificación del pasado, la
No governo de Belaúnde Terry (1963-
solución a los problemas de
1968) há mais uma tentativa de
identidad. (GALINDO, 1986,
modernização do país. Essa
p.14)
modernização esbarra no Congresso,
que mantém sua postura conservadora. Todavia, essa utopia, por mais que
Diante desse cenário de impedimento de proponha o regresso do Inca, não
reformas, modernizações e de mantém uma concepção de tempo
polarizações políticas, adere-se à andina. Como aponta Galindo, a utopia
solução de mais um golpe militar. andina, ao tomar contato com o
Assim, em 1968 o general Velasco cristianismo termina por apropriar-se do
Alvarado é alçado ao poder, com a milenarismo. Além da ideia da chegada
proposta de um Governo de um tempo de redenção, o
Revolucionário das Forças Armadas. milenarismo torna centrais as figuras do
pobre e do oprimido para a salvação.
Novamente, tais reformas são
insuficientes para sanar os problemas Na cultura andina, o milenarismo se
peruanos. Não houve consenso da funde com a ideia do Pachacuti. Assim,
sociedade em torno dos programas aquele tempo cíclico da cosmovisão
reformistas, o que abriu margem para o andina, adentra em uma perspectiva
recrudescimento da ditadura nos anos linear e escatológica. Há o tempo do
1980. Nessa década, a situação social e Pai, vivido anteriormente à Conquista, o
política peruana se agrava, sobretudo tempo do Filho, marcado pelo
com a violência do Sendero Luminoso e sofrimento da conquista, e, finalmente,
as graves crises econômicas. o tempo do Espírito Santo, que marca a
redenção dos sofrimentos terrenos.
É, portanto, nesse contexto delicado que
surgem as reflexões de Flores Galindo. Para Galindo, essa utopia andina passa a
O objetivo da obra é observar o ser compartilhada por setores mestiços e
surgimento daquilo que o autor nomeia populares, ganhando conformação
por utopia andina, bem como escrita somente a partir da obra de
demonstrar como essa utopia andina Garcilaso de la Vega. Com Garcilaso,
atravessa toda a história peruana, na visão de Galindo, a utopia andina
ganha dimensões universais, religioso por aqueles que o seguiam. Os
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extrapolando o território americano, sonhos de Aguilar demonstram que o
uma vez que os comentários de Vega imaginário católico, já visto no século
influenciaram decisivamente os XVIII, se reforçara nos inícios do
intelectuais europeus do século XVIII. século XIX. Em suas analogias, Aguilar
acreditava que o Peru era uma espécie
No mundo andino, as primeiras
de Israel americana, sendo ele próprio o
manifestações da utopia andina estão na
Moisés de seu povo. Identificado,
proposta revolucionária tupamarista,
portanto, à figura do redentor e do
ocorrida no século XVIII. Tal proposta,
salvador, na restauração do mundo
na visão do autor, procura expulsar os
incaico, muitos dos envolvidos na ideia
espanhóis do Peru e restaurar o Império
da revolta acreditavam ser Aguilar o
Inca, pondo término às mitas e às
próprio Inca.
haciendas. Apesar da ideia clara de
expulsão dos espanhóis, a revolução Nas guerras de independência peruana a
tupamarista já apresenta a justaposição utopia andina também se mostra
de elementos incaicos e cristãos. A presente. O grupo dos montoneros exibe
influência cristã se mostra tão decisiva traços dessa utopia, mesclando a ideia
que o discurso do colonizador se de restaurar o Império Inca com o culto
inverte, sendo apropriado pelos católico da Santa Rosa e as profecias de
indígenas que passaram a compreender destruição dos espanhóis. Mesmo as
o espanhol como a representação do elites peruanas que hegemonizariam o
demônio. Além da questão demoníaca, país após a independência se voltaram a
o milenarismo se funde ao Pachacuti. elementos andinos no processo de
No século XVIII, o sinal divino que construção da nação. As próprias cores
anunciava a possibilidade de redenção da bandeira peruana denotam esse
era a chegada do ano de 1777, que retorno. No processo de independência
representava a tríade de setes anunciada isso se deve a necessidade de utilização
na Bíblia católica. dos indígenas na guerra. Todavia, a
participação destes grupos deveria ser
Apesar da crença nas anunciações controlada, em razão do medo dos
bíblicas, a revolta de Tupac Amaru II é criollos da eclosão de uma guerra de
fortemente reprimida pelos espanhóis.
castas no país.
No entanto, em vez de o milenarismo
enfraquecer-se após a repressão, este se Ainda que o conflito entre patriotas e
fortaleceu. No início do século XIX, a realistas organizasse a tônica do
cidade de Cuzco ressentia-se da conflito, a sociedade peruana mostrava-
repressão da revolta tupamarista, que se ainda mais complexa. Os próprios
provocou o declínio da aristocracia montoneros oscilam e partem em dados
indígena. Nesse contexto, emergem dois momentos em defesa do rei. Os
criollos, Aguilar e Ubalde, que dão espanhóis utilizam-se também de
prosseguimento à utopia andina. indígenas a seu lado na guerra. Os
conflitos étnicos marcam também as
Aguilar e Ubalde desejavam promover
posições políticas.
uma revolta que pusesse fim ao domínio
espanhol no Peru, no entanto, seus A Guerra do Pacífico, na visão de
planos foram frustrados por uma Galindo, contribui para o agravamento
denúncia. Nos processos, Aguilar desses conflitos étnicos e políticos,
descreve seus projetos e seus sonhos, acentuando ainda mais a divisão do
que foram interpretados de modo país. Nessa divisão o poder das
oligarquias, materializadas nas figuras somente a partir dessa paixão coletiva,
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dos gamonales, faz com que a dessa vontade extraída da religiosidade,
população indígena se mantenha haverá a superação desses ódios.
excluída da política peruana. Assim, o
Essa leitura de Mariátegui orienta
índio era sempre o outro, condenado ao
Galindo em sua interpretação de seu
silêncio “el ser resignado y pasivo o el
tempo presente. Ao observar as
personaje vengativo y sanguinario. En
propostas de modernização efetuadas
cualquiera de las dos versiones era un
entre os anos 1950 e 1970, Galindo
mundo aparte, excluido de la nación,
aponta para as suas insuficiências. A
más allá de las fronteras de lo
reforma agrária, ao fazer desaparecer os
civilizado.” (GALINDO, 1986, p.260).
gamonales, não depositou o poder nas
Nesse momento, Galindo retoma o mãos dos camponeses, gerando um
pensamento de Mariátegui, apontando vazio de poder, que é agravado com as
para as possibilidades de resolução dos crises econômicas vividas pelo Peru.
conflitos e dos ódios existentes no Peru
Esse vazio, na visão do autor, é ocupado
do início do século XX. Galindo afirma
pelo Sendero Luminoso. O Sendero, na
o caráter religioso do socialismo de
visão de Galindo, demonstra a
Mariátegui. Diferentemente de Haya de
continuidade da utopia andina nos anos
La Torre, líder do APRA, o socialismo
1970 e 1980. A violência propagada
mariateguiano não se baseia em uma
pelo grupo se associa claramente a
perspectiva vanguardista, dentro da qual
necessidade de uma inversão do mundo,
haveria um líder a redimir o Peru, mas
estabelecendo uma mescla entre o
sim no caráter coletivo da revolução:
apocalipse cristão e o Pachacuti andino.
El odio es sólo ruego, la esperanza Nesse sentido, o Sendero Luminoso, por
de que algún día un inmenso mais que se proponha seguir os
incendio arrase con un orden tan caminhos abertos por Mariátegui, age
injusto como brutal. Que los indios em seu inverso ao “transformar la rabia
dejen de estar abajo, más que y la cólera individual en un odio
explotados, se trata de hombres colectivo, en un gran
humillados cotidianamente. La incendio.”(GALINDO, 1986, p.368).
única forma de que este mundo se
invierta es convertir el odio en una Portanto, Galindo em suas análises da
pasión colectiva. Transferir el história da utopia andina ao longo do
miedo. Sólo de esta manera sería tempo, está preocupado com a sua
posible romper con esa continuidade no presente. Como aponta
‘dominación total’, sobre los
Marcos Pinheiro, apesar do título da
cuerpos y las almas, que los mistis
ejercen. (GALINDO, 1986, p.326)
obra, Galindo não está buscando um
Inca. Pelo contrário, Galindo percebe
Percebendo claramente a existência de que a busca constante pelo Inca faz
ódios no Peru contemporâneo, Galindo somente prolongar os ódios no Peru,
aponta que Mariátegui encontrou uma abrindo espaço para a violência e para o
forma não violenta de transformação da personalismo na política:
realidade, sem abandonar os valores
No entanto, nutrir-se da tradição
incaicos. O ódio em Mariátegui, em vez andina não significava continuá-la.
de servir ao milenarismo ou ao Aqui reside o ponto chave da obra
Pachacuti, como nas outras revoltas em Buscando un Inca. Não é Flores
que a utopia andina se manifesta, deve Galindo quem está buscando um
converter-se em paixão coletiva. Assim, Inca. O título da obra não
representa o desejo do autor. Na a existência de uma clara dimensão
realidade, tudo o que o autor busca 17
utópica no pensamento de Galindo. Essa
é o oposto: romper com o dimensão se encontra oposta à ucronia
significado original da utopia predominante na historiografia peruana
andina. Em sua intepretação, buscar
tradicional. Assim, em Galindo a função
um Inca significa prolongar o
messianismo, reduzir os caminhos
da utopia, assemelha-se à função dos
da política ao personalismo político mitos para Mariátegui. A utopia, nessa
salvador, de um Inca. Prorrogar a perspectiva opera como uma paixão
utopia andina resulta no confronto coletiva capaz de unificar a sociedade
entre o mundo andino e o mundo peruana.
ocidental, na negação da
modernidade. Aceitar a utopia Galindo, apesar de valorizar a cultura
andina é continuar se valendo da do mundo andino para a construção da
raiva do mestiço para buscar novos utopia e superação dos ressentimentos,
pachacutis. (PINHEIRO, 2013, não é um indigenista. A recusa de
p.206) reconstruir o Império Inca é criticada,
uma vez que regressar ao passado é
A partir da análise de Pinheiro é rejeitar o moderno. Nesse sentido,
possível perceber a continuidade do Galindo é um pensador que busca as
pensamento de Galindo em relação à vantagens do moderno.
Mariátegui. O problema da identidade
peruana, dos ódios e ressentimentos, Portanto, a história possui uma função
detectados por Mariátegui no início do importante dentro do pensamento de
século XX, ainda estão postos para Alberto Flores Galindo. A partir da
Galindo nas últimas décadas do século. análise histórica foi possível detectar as
Por isso, Pinheiro aponta que Buscando origens e as continuidades dos traumas
Un Inca se configura como um oitavo e dos ressentimentos da sociedade
ensaio em relação aos sete de peruana. Com isso, Galindo pretende
Mariátegui. construir uma nova memória para o
Peru, que supere os ódios contidos na
Galindo percebe o trauma da conquista utopia andina, em um projeto coletivo
diacronicamente na sociedade peruana, que respeite a cultura incaica e,
marcando suas sobrevivências no concomitantemente, se valha das
mundo contemporâneo. Esse trauma vantagens do moderno:
gera ressentimentos e ódios que se
manifestam coletivamente. A utopia Assim como um psicólogo auxilia
andina, nessa configuração, é uma na construção de uma personalidade
paixão coletiva que propaga esse ódio e ajuda um paciente a superar seus
em relação ao espanhol. Nessa traumas, o historiador contribui
perspectiva, as transformações na para a formação da memória de
uma coletividade que seja capaz de
sociedade peruana podem ocorrer
produzir as condições necessárias
somente como um novo cataclismo, para a superação de seus traumas. A
com um evento fundador revolucionário história, portanto, para o autor,
que seja capaz de inverter atinge um papel de libertação do
completamente a ordem vigente, passado e não de aprisionamento a
apagando a presença espanhola. ele. (PINHEIRO, 2013, p.158)

Por outro lado, a crítica de Galindo à Contudo, apesar das propostas para a
utopia andina não implica em uma superação dos traumas peruanos,
crítica a ideia de utopia. Pinheiro aponta Pinheiro procura demonstrar a agonia
de Flores Galindo. A agonia na o ocidental e o incaico, no intuito de
18
perspectiva de Pinheiro em Galindo se modernizar o Peru sem a necessidade de
configura como uma busca de forças um incêndio. Portanto, Mariátegui e
interiores para enfrentar determinados Galindo podem ainda abrir novos
problemas. Nessa perspectiva, caminhos para a realidade peruana
Mariátegui e Galindo parecem atual.
compartilhar de agonias semelhantes.
Em boa medida a agonia de ambos é a
própria agonia do Peru. As questões Referências
detectadas por Mariátegui se prologam AGGIO, Alberto. O Pensamento Político de
e se agravam no tempo de Galindo. Mariátegui. Site Gramsci e o Brasil, 2006.
http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualiz
E é exatamente essa agonia peruana que ar&id=446. Acesso em: 20/11/2014.
reatualiza os traumas, na perspectiva ANSART, Pierre. História e Memória dos
colocada anteriormente por Fredrigo e Ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella (org.);
Bittencourt (2014). O enfrentamento NAXARA, Márcia (org.). Memória e
(Res)sentimento: indagações sobre uma
dos ressentimentos é agônico, mas é, ao
questão sensível. Campinas: UNICAMP, 2ª
mesmo tempo, capaz de propor a Edição, 2004.
existência de um vir a ser, no qual os
BRESCIANI, Maria Stella. O pecado da origem
ódios e os ressentimentos serão extintos. na formação do mundo ibero-americano. In:
Assim, em Mariátegui e Galindo, Sonho e Razão no Mundo Ibérico. Rio de
trauma, utopia e agonia se Janeiro: Revista Tempo Brasileiro, número 174,
retroalimentam na proposição de seus 2008.
projetos políticos para o Peru. FREDRIGO, Fabiana; BITTENCOURT,
Libertad Borges. Narrativas sobre a América:
Galindo, pouco tempo após a o trauma e suas expressões temporais. Revista
publicação de sua obra, falece eletrônica da ANPHLAC, nº 17, p. 59-86, 2014.
prematuramente, sem conseguir levar GALINDO, Alberto Flores. Buscando Un Inca:
adiante os caminhos abertos. A situação Identiad y utopia em los Andes. Havana: Casa
peruana permanece ainda grave, como de Las Américas, 1986.
demonstra o governo de Alberto MARIÁTEGUI, José Carlos. 7 Ensaios de
Fujimori (1990-2000). Assim, a agonia Interpretação da Realidade Peruana. São
peruana, representada por Mariátegui e Paulo: Alfa Ômega, 1975.
Flores Galindo, parece continuar, assim PINHEIRO, Marcos Sorrilha. Utopia Andina:
como os traumas e os ressentimentos. socialismo e historiografia em Alberto Flores
Todavia, observar as reflexões de Galindo (1970-1990). São Paulo:
Mariátegui e Flores Galindo nos Annablume/Fapesp, 2013.
permite observar a historicidade desse SELIGMANN-SILVA, Márcio Narrar o
cenário social e político. Além disso, trauma: A questão dos testemunhos de
reafirmando a dimensão do mito e da catástrofes históricas. Revista Psicanálise
Clínica, volume 20, número 1, Rio de Janeiro,
utopia, ambos intelectuais contribuem 2008, p. 65-85.
decisivamente para alterar as
concepções de tempo e história, SOARES, Gabriela Pellegrino. Projetos
políticos de modernização e reforma no Peru
substituindo a prisão no passado da (1950-1975). SP: Annablume, 2000.
ucronia e da utopia andina por um
tempo histórico aberto à intervenção
política. Nesse sentido, suas reflexões Recebido em 2015-06-30
se tornam presentes, propondo meios de Publicado em 2016-03-13
gestão dos ressentimentos, conciliando

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