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Ocupar é resistir

A notícia chegou azeda, intragável: vão fechar a nossa escola. Muita gente

jogada na valeta do desemprego, os alunos que se amontoem em salas, entre grades,

desde já se acostumando a um possível futuro. Foi um baque seco em nosso peito.

Ninguém sabia ao certo como a coisa seria, mas era já para o ano seguinte, e

nosso novembro ficou de luto. A coisa toda, disseram, era para melhorar a qualidade do

nosso estudo, desculpa indigesta demais para ser crida. Melhorar a educação demitindo

professor, enchendo sala precária de aluno, esvaziando prédio, desocupando espaço que

poderia ser de leitura, dança, experiências, reduzindo o ensino a carteira pichada, giz

esfarelado e lousa rachada, em nome da qualidade? Seria possível?

A gente achou que não seria possível, a gente achou que não era justo. Um

silêncio de morte inundou pátios, refeitório, corredores, banheiros, quadras, salas de

aula. O golpe era tão forte que, nos primeiros dias, nem reclamação houve, só algumas

lágrimas espirradas pela indignação. A gente sabia que a escola é um pedaço grande da

nossa história, da história de muitos dos nossos pais, até avós. Ninguém abre mão da

própria história. A gente luta.

Daí que o luto foi virando revolta. Pra não virar depredação, a gente pós um

freio e decidiu se organizar. Em todas as aulas, com professor doando ou cedendo

tempo, o assunto era o mesmo: nossa escola não pode fechar. Os professores, quase

todos, estavam do nosso lado, conversavam francamente sobre a espada que deitaram

sobre nossas cabeças, contavam histórias de estudantes que lutaram por causas justas e

alcançaram vitória, de outros que não tiveram sucesso, mas não se entregaram. Ouvimos

sobre franceses, chineses, coreanos e brasileiros, gente que enfrentava até tanque de

guerra pra ser ouvido, visto, atendido, outros que foram lançados em porões e

apanharam, alguns até morrer. Nós, que até uma semana antes só tínhamos como
objetivo a formatura, cada um sonhando com o próprio futuro, percebemos: mais

importante do que festa e baile era ocupar e resistir. A própria escola dependia de nós, o

direito à educação de qualidade, palavras tantas vezes esquecidas ou vazadas de

cinismo, estavam em jogo.

Entre a colação de grau e o vestibular, entre o canudo e o ENEM, entre o nosso

futuro fora da escola e o próprio futuro da escola, ainda havia mais com que me

preocupar. Saía daquela fase tola, quando quantidade é tudo e a gente vai acumulando

conquistas baratas para contar vantagem; eu ia aprendendo a amar.

Marcella era das mais interessadas no que estavam querendo fazer com a escola.

Foi praticamente a primeira a sair do estado de choque e entrar em estado de alerta,

conversando, anotando, pesquisando, convencendo a galera que era necessário

enfrentar, resistir. O povo do grêmio, que até então só cuidava das mesas de pingue-

pongue e pebolim, viu a urgência da coisa e se organizou. E as conversas ocupavam as

aulas vagas, o tempo escasso do intervalo, a entrada e a saída das aulas, as próprias

aulas, até que alguém, ninguém sabe ao certo se foi o Zé Zito ou o Passa-Cola, teve a

iluminação na hora do intervalo:

“Vamos tomar a escola, invadir, ocupar!”

A professora Clarice, de português, explicou que ninguém pode invadir o que já

é seu por uso e direito, que a gente tinha todo o direito de ocupar a escola pra

reivindicar o que já deveria ser nosso. E disse que apoiava a causa.

A ideia se espalhou feito fofoca. No sinal da saída já tinha gente trazendo

cobertor, papel higiênico (sempre em falta nos banheiros) colchonete e se acomodando

pela escola, nas salas de aula, no pátio. No turno da tarde a aula foi cidadania, na

prática. Os professores que eram contra a ocupação se desamotinaram na diretoria.

Assinaram o ponto e foram embora. Os que nos apoiavam ficaram conosco pela escola
ensinando, conversando, ajudando a organizar. A Marcella foi naturalmente liderando,

explicando, planejando ações futuras, ditando textos para cartazes. No final da tarde a

polícia chegou, mas não entrou. Ficou do lado de fora observando, aguardando ordens

para invadir. O comandante veio até o portão principal, olhou pra dentro do pátio,

quando a Marcella se dirigiu a ele o bruto simplesmente virou as costas e voltou para

junto de seus comandados. Quando anoiteceu, chegaram violões e a primeira remessa de

baseados. Sim, os baseados também foram convocados. Não era todo mundo que

fumava, não era algo escancarado, mas pelos cantos da escola, em volta da quadra

escura, entre as árvores do estacionamento, havia gente dando seus tapinhas. A

maconha desmoraliza a ocupação, transforma atos conscientes em desculpas para uso e

abuso de entorpecentes? Justifica a violência policial, descredencia nossos ideais?

Devemos aceitar a morte de escolas por causa de umas pontas de baseado? Até

concordaria que a maconha pode ser vista como um erro estratégico, até refletiria sobre

a falta de compromisso de alguns alunos que ocuparam a escola, usuários ou não. Mas

antes de discutir perfumarias, adornos e adereços, eu estava disposto a lutar para que a

minha escola, a minha história, não virasse ruína. Questão de prioridades.

Ficamos vários dias ocupando a escola. O governo ignorava, inventava histórias,

mandava a polícia nos amedrontar. Alguns pais, desesperados, iam buscar seus filhos,

os tiravam de lá a tapas. Outros apoiavam a gente, levavam comida. Na rua, havia os

que nos xingavam, os que elogiavam. Eu participava das rodas, limpava os banheiros,

ajudava na comida, opinava. A Marcella cada vez mais liderando, cada vez mais

empenhada. Eu cada vez mais derretido.

Alguns pais e professores foram convocados pela Marcella para evitar a

“safadeza”: passavam as noites na escola, organizavam as salas transformadas em

alojamentos, não deixavam meninos dormirem com meninas. Isso, é claro, poderia ser
ótimo para os casais gays, mas ele também foram monitorados. Já pensou uma gravidez,

uma doença venérea?

Houve uma manhã de gritos e medos: alguns policiais entraram na escola,

bateram nos estudante, ameaçaram arrancar cada um de nós pelos cabelos. A coisa não

foi mais violenta por havia celular pra todo lado, todo mundo filmando, fotografando,

ligando para os pais, a Marcella tinha o contato de um jornalista que chegou lá

rapidinho, levando um advogado. Os policiais saíram, com seus olhares de cães

famintos.

Havia violões, havia livros, então havia também saraus. Marcella participava dos

saraus apenas observando, quando eu lia meus textos ela não parecia dar muita bola.

Um dia, um escritor da quebrada apareceu por lá, leu seus textos, contou histórias,

alguns de nós lemos textos de nossa autoria, não só sobre a escola, mas também sobre

corações partidos, sobre esperanças. Esse escritor voltou outro dia com um poeta, que

trouxe uma cantora, aí dia sim, dia não, alguém aparecia para nos dar força, incentivar a

permanecer, a aguardar uma decisão favorável do governo do estado.

O tempo passava e nada acontecia, ficamos preocupados, será que nada disso vai

adiantar, a escola vai fechar as portas e a Marcella não vai nem reparar que estou aqui?

Em assembleia decidimos que era hora de ir pras ruas, convocar o povo para a nossa

causa. Fomos, a Marcella, montada nos ombros de alguém que eu nem conhecia, liderou

as palavras de ordem, foi xingada por motoristas e pedestres, mas também foi

aplaudida. Era de encher os olhos vê-la com o busto acima de todos, a face carregada de

certeza, o punho cerrado chamando para a luta, a luta necessária.

Voltamos pra escola sem saber o que seria. Corria o boato de que seríamos

arrancados da escola no dia seguinte, com fuzis apontados para as nossas cabeças.

Muitos estavam desanimados, já considerando a derrota.


Meu colchonete ficava perto da porta da sala de aula, ao lado do professor de

Química, que naqueles dias também era um dos nossos bedéis. Deitei a cabeça no

travesseiro e fiquei curtindo o cheirinho de roupa limpa. Meus pais não estavam

contentes com a minha participação na ocupação, mas do jeito deles me apoiavam;

minha mãe levava roupa de cama, itens de higiene pessoal, algumas coisas para eu

comer, de dois em dois dias. Como recarregar um celular não era das coisas mais fáceis,

pois havia pouca tomada pra muito aparelho, cada dia ela arrumava um pretexto para

me ver, saber como estou, trazer umas coisas, levar outras. A escola já estava com quase

todas as luzes apagadas – os banheiros, o pátio, os corredores ficavam acesos para evitar

acidentes, ataques, amassos. De onde eu estava, dava pra ver o palco do pátio; dava pra

ver a Marcella conversando com um garoto da turma dela; dava pra ver que eles

sorriam, as mãos se tocando, a felicidade deles enevoando meus pensamentos e não deu

pra ver mais nada porque fechei os olhos, me concentrando no cheirinho de roupa limpa

da fronha do meu travesseiro.

No dia seguinte, na hora do café, Marcella estava com o mesmo garoto. De mãos

dadas. Sorridente. Feliz. O governo avisou que não fecharia mais escola alguma,

desocupamos o prédio com ares de vencedores. Mas o certo é que a única história que

teve um fim por aqui foi a minha com a Marcella, só que essa nem passou de uma

expectativa. A luta pela escola ainda está sendo escrita.

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