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E ü 6 E N E EE N E R R I E E
£ D ú í N £ H. M [ R R I L L

0 reino

de sacerdotes

que Deus colocou

entre as nações

Tradução
Romell S. Carneiro

CB4D
Todos os direitos reservados. Copyright © 2001 para a língua portuguesa
da Casa Publicadora das Assembléias de Deus. Aprovado pelo Conselho
de Doutrina.

Título original em inglês: Kingdom o f Priests


Baker Books, Grand Rapids, MI, USA.
Primeira edição em inglês: 1987

Tradução: Romell S. Carneiro


Preparação de originais: Alexandre Coelho e Patrícia Oliveira
Revisão: Jeferson Magno
Capa: Flamir Ambrósio
Editoração eletrônica: Olga Rocha dos Santos

CDD: 221 — Antigo Testamento


ISBN: 85-263-0337-6

Para maiores informações sobre livros, revistas, periódicos e os últimos


lançamentos da CPAD, visite nosso site: http://www.cpad.com.br

As citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e


Corrigida, edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo
indicação em contrário.

Casa Publicadora das Assembléias de Deus


Caixa Postal 331
20001-970, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

T’ edição/2001 ■, ■
3- Edição 2002 , ...
Prefácio

A história de Israel não pode ser construída seguindo-se as linhas


dos estudos históricos normais, pois baseia-se em documentos (o Antigo
Testamento) que não são tão-somente históricos em seu caráter. O Antigo
Testamento é, acima de tudo, teológico, e não literatura meramente histó­
rica. Isto significa que será necessário abordagens teológicas e não históri­
cas para conduzir ao propósito fundamental da mensagem a ser discernida.
Ao contrário do que afirmam muitos estudos contemporâneos, ape­
nas porque o Antigo Testamento é por definição "história sagrada", não
significa que lhe falte autenticidade histórica, como alguns acreditam.
Com efeito, ele é o registro da aliança de Jeová com seu povo escolhido,
um registro que constantemente chama a atenção para a divina interpre­
tação e até mesmo predição dos acontecimentos. Mas sempre pressupõe
que estes mesmos acontecimentos ocorreram de fato no tempo e no es­
paço. A mensagem teológica, em outras palavras, está alicerçada na his­
tória genuína.
O propósito deste estudo não é interpretar o significado dos aconteci­
mentos subjacentes - uma tarefa mais propriamente da teologia bíblica - ,
mas descobrir os dados históricos e, mediante todas as fontes à disposição
(incluindo o texto bíblico, documentos extrabíblicos e arqueológicos), re­
construir a história de Israel seguindo as linhas e métodos historiográficos,
até onde seja possível, em razão da natureza única do material. Qualquer
sucesso obtido será importante para um verdadeiro entendimento do pas­
sado de Israel no Antigo Testamento, um objetivo de valor em si mesmo, e
H istória de I srael \o A\t ; c-. : í :~ - v e ‘-to

para a comprovação histórica do registro. A veracidade é absolutamente


decisiva para tomar efetiva a mensagem religiosa e teológica. Todo o êxito
que alcançarmos será em total benefício do leitor.
A concretização de um projeto que trouxe tanta satisfação pessoal ao
autor requer que aqueles que o tornaram possível sejam reconhecidos. Foi
durante um período de licença gentilmente concedido pelo Seminário Te­
ológico de Dallas, de 1983 a 1984, que a maior parte desta obra foi elabora­
da. Portanto, quero expressar minha apreciação por esta política generosa
e esclarecida. Além disso, o seminário colocou à disposição suas depen­
dências de informática. A digitação foi feita pelas mãos abençoadas de
Marie Janeway. A editora Baker Books e, particularmente, a Allan Fisher e
Ray Wiersma, eu credito minha especial gratidão por sua paciência, co­
nhecimento e atenção meticulosa em cada detalhe do projeto. Finalmente,
agradeço a minha querida esposa, Janet, e a minha filha Sonya por supor­
tarem minha ausência, inquietação e freqüentes pedidos, e pelo constante
encorajamento que delas recebi para concluir este projeto.
Sumário
Prefácio v
Ilustrações xi
Abreviaturas xiii

Introdução: A história de Israel e a historiografia........................................................ 1


Considerações preliminares 1
Os problemas enfrentados na produção de uma história do antigo Israel nos dias atuais 2
A presente abordagem da história de Israel 4

1. Origens............................................... :............................................................... 7
Israel em Moabe 7
O propósito da Torá 8
A história dos patriarcas 11

2. O Êxodo: Nascimento de uma Nação..............................................................49


O significado do êxodo 49
A localização histórica do êxodo 50
A data do êxodo 59
A data e a duração do cativeiro egípcio 69
Cronologia dos patriarcas 73
A jornada no deserto 73

3. A Conquista e a Ocupação de Canaã...............................................................89


A terra como o cumprimento da promessa 89
O mundo antigo do Oriente Médio 90
Os 'apiru e a conquista 99
A estratégia de Josué 106
A data da conquista de Josué 118
A campanha contra os enaquins 120
Modelos alternativos da conquista e ocupação 121
A terra repartida entre as tribos 129
A segunda renovação da aliança em Siquém 139

4. A Era dos Juízes: A Violação da Aliança, Anarquia e a


Autoridade Humana...................................................................................... 143
O problema crítico-literário no livro de Juízes 143
A cronologia de Juízes 149
H :-:> ’R!a de I srael so A ntigo Testamento

O mundo do antigo Oriente Médio 154


Os juízes de Israel 162
A trilogia de Belém 184

5. Saul: A Aliança Mal Compreendida.............................................................. 197


A exigência por um reinado 197
A cronologia do século onze 200
A escolha de Saul 203
O primeiro desafio de Saul 208
O declínio de Saul 210
Considerações teológicas 219
O surgimento de Davi 222

6. Davi: O Reinado da Aliança...........................................................................235


A falta de nacionalidade antes de Davi 235
Davi em Hebrom 240
Crônicas e história teológica 244
Jerusalém, a capital 246
O estabelecimento do poder de Davi 249
Uma introdução à cronologia davídica 256

7. Davi: Os Anos de Luta................................................................................... 263


O Egito e a independência de Israel 264
As guerras contra os amonitas 265
O início dos problemas familiares de Davi 276
Jerusalém como centro do culto 277
A rebelião de Absalão 283
Os esforços de Davi para reconciliação 287
Mais problemas para Davi 289
O plano de Davi para construir um templo 290
A sucessão salomônica 296
A burocracia davídica 298

8. Salomão: Do Pináculo ao Perigo.................................................................... 303


Os problemas da transição 303
O fracasso da oposição contra Salomão 306
O conclave em Gibeão 308
Relações internacionais 309
Os projetos de construção de Salomão 312
Rupturas no império de Salomão 316
A forma de governo de Salomão 319
Apostasia moral e espiritual 330
Salomão e a natureza da sabedoria 332

9. A Monarquia Dividida................................................................................... 335


As raízes da divisão nacional 335
A ocasião imediata da divisão nacional 339
O reino de Roboão 343
O reino de Jeroboão 345
A pressão das nações ao redor 350
Abias de Judá 351
Asa de Judá 352
O novo surgimento da Assíria 356
Nadabe de Israel 358
A dinastia de Baasa de Israel 358
Omri de Israel 360
JosafádeJudá 362
Acabe de Israel 366
A ameaça da Assíria 370
Os sucessores de Acabe 371
A unção de Hazael de Damasco 375
Jeorão de Judá 375
A unção de Jeú 377

10. A Dinastia de Jeú e o Judá Contemporâneo....


O reinado de Jeú em Israel 379
A táliadejudá 381
O papel das outras nações 382
Joás, rei de Judá 384
Jeoacaz, rei de Israel 388
O cenário internacional 390
Jeoás, rei de Israel 391
Amazias, rei de Judá 392
Jeroboão II, rei de Israel 395
Uzias, rei de Judá 398
O ministério dos profetas 400

11. O Castigo de Yahweh: Assíria e o Juízo Divino


Fatores responsáveis pela queda de Israel 413
O fim da dinastia de Jeú 414
A Assíria e Tiglate-Pileser III 415
Menaém de Israel 418
Os últimos dias de Israel 418
O impacto da queda de Samaria 422
Judá e a queda de Samaria 425
Ezequias de Judá 433
O ponto de vista dos profetas 445

12. Esperança Desvanecente: A Desintegração de Judá


O legado de Ezequias 457
Manassés de Judá 459
Amom de Judá 462
O cenário internacional: Assíria e Egito 462
Josias de Judá 468
A queda de Jerusalém 473
O testemunho dos profetas 481
i
13. O Exílio e o Primeiro Retorno..................................
Uma visão panorâmica 497
A situação mundial durante o exílio 504
O povo judeu durante o exílio 510
A situação mundial durante o período de restauração 516
O primeiro retorno 521
Problemas decorrentes do retorno 524
A influência benéfica dos profetas 525
H istória de I srael no A ntigo T estamento

14. Restauração e Nova Esperança............................................. .........................529


A influência persa 5?9
Outros retornos posteriores: Esdras e Neemias 535
Malaquias, o profeta 548

Bibliografia 551
índice das Escrituras 555
índice de temas 563
Ilustrações
Tabelas cronológicas
1. A seqüência da Era do Bronze 17
2. Os Patriarcas 18
3. XII Dinastia do Egito 42
4. 18a e 19a Dinastia do Egito 50
5. A vida de Davi 257
6. Os reis da monarquia dividida 340
7. Os reis neo-assírios 357
8. Os reis neo-babilônicos 476
9. Os reis da Pérsia 507

Mapas
1. O Oriente Médio nos tempos do Pentateuco 14
2. Canaã nos tempos dos patriarcas 21
3. O êxodo 53
4. A chegada na Transjordânia 80
5. O Oriente Médio nos tempos de Josué e dos juízes 91
6. A conquista de Canaã 100
7. Os territórios das tribos 130-131
8. Israel durante a era dos juízes 146
9. O reino de Saul 199
10. O Oriente Médio durante a monarquia unida 207
11. O reino de Davi 236
12. Jerusalém nos dias de Davi e Salomão 247
13. Os doze distritos do reino de Salomão 325
14. A monarquia dividida 337
15. O Império Assírio 385
16. O Império Babilónico 461
17. O Império Persa 500
Abreviaturas

AASOR Annual of the American Schools of Oriental Research


ADA] Annual of the Department of Antiquities of Jordan
AfO Archiv für Orientforschung
AJA American Journal of Archaeology
AS Assyriological Studies
ASOR American Schools of Oriental Research
AUSS Andrews University Seminary Studies
BA Biblical Archaeologist
BAR Biblical Archaeological Review
BASOR Bulletin of the American Schools of Oriental Research
BES Bulletin of the Egyptological Seminar
Bib Sac Bibliotheca Sacra
BTB Biblical Theology Bulletin
BWANT Beiträge zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament
BZAW Beihefte zur Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft
CAD Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago
CAH Cambridge Ancient History
CBQ Catholic Biblical Quarterly
EQ Evangelical Quarterly
GTJ Grace Theological Journal
HTR Harvard Theological Review
HUCA Hebrew Union College Annual
IE] Israel Exploration Journal
A:rv. Interpretação
'ASES Journal of the Ancient Near Eastern Society
XIY H istória de I srael no A ntigo T estamento

JAOS Journal of the American Oriental Society


JBL Journal of Biblical Literature
JCS Journal of Cuneiform Studies
JEA Journal of Egyptian Archaeology
JETS Journal of the Evangelical Theological Society
JJS Jornal of Jewish Studies
JNES Journal of Near Eastern Studies
JNSL Journal of Northwest Semitic Languages
JSOT Journal for the Study of the Old Testament
JSS Journal of Semitic Studies
JTS Journal of Theological Studies
KJV King James Version
LexTQ Lexington Theological Quarterly
NEASB Near East Archaeological Society Bulletin
Or Orientalia
OTS Oudtestamentische Studien
PEQ Palestine Exploration Quarterly
RA Revue d'assyriologie et d'archéologie orientale
RSV Revised Standard Version
TD Theology Digest
Tyn Bull Tyndale Bulletin
UF Ugarit-Forschungen
VT Vetus Testamentum
WTJ Westminster Theological Journal
ZAW Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft
Introdução_ _ _ _ _ _ _ _ _
A História de Israel e a Historiografia

Considerações Prelim inares


Os problem as enfrentados na produção de uma história do antigo
Israel nos dias atuais
A questão da inerrância
A ausência de documentos pré-mosaicos
Seletividade histórica
A presente abordagem da história de Israel
Reconhecimento do caráter revelador do Antigo Testamento
Reconhecimento do método bíblico
Reconhecimento do propósito bíblico

C o n s id e ra ç õ e s P re lim in a re s

Qualquer tarefa científica deve partir de um conjunto de afirmativas,


não importando quão especulativas sejam. Isto tornará o empreendimen­
to viável e racional. Este fato é especialmente verdadeiro quanto à história
escrita, mais que a maioria das disciplinas, uma vez que os acontecimen­
tos ecoam no passado, que sua facticidade e significado podem ser
reconstruídos (mesmo que parcialmente), e que é possível integrá-los e
sintetizá-los em algum tipo de construção que seja crível e bem entendida
pelo leitor moderno.
Quando a história é a narrativa de um povo completamente envolto
em literatura sagrada, a natureza da tarefa torna-se ainda mais complexa,
e as afirmativas muito mais proféticas. A visão que o pesquisador tiver da
integridade e autoridade daquela literatura influenciará a forma como ele
irá trab alh ar com tais m ateriais, sem falar dos proced im entos
metodológicos e de suas conclusões.
Uma história de Israel depende quase inteiramente das fontes do Anti­
go Testamento, uma coleção de escritos reconhecidos pelo Judaísmo e Cris-
H istória de I srael no A ntigo T estamento

tianismo como as Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus. O nível de res­


peito que os historiadores têm pelas Escrituras afetará sensivelmente a
maneira como empreenderão sua tarefa. O cético contemplará as fontes
como nada mais que uma coleção de mitos, fábulas, lendas, poesia e ou­
tros eeneros ou6 possuem crec^^i^clscle rclstivci e servir3.rn sioencis como
veículo de transmissão das tradições antigas. Os crentes, por outro lado,
saberão que têm em suas mãos uma obra completamente peculiar; um
livro que é a própria revelação divina. Assim, não é possível aproximar-se
desta literatura da mesma forma como se faz com outros textos antigos.
Referimo-nos a ela como a Palavra de Deus, aceitando sua autoridade e
dignidade como fonte histórica de inigualável valor. A' 1
Considerar que o Antigo Testamento é a Palavra de Deus alterará radi­
calmente a tarefa de escrever uma história de Israel; pois tal atividade
estará em um nível teológico. Escrever a história de Israel e escrever a
história de um outro povo envolvem perspectivas completamente dife­
rentes, pois no caso de Israel, história e teologia nãb podem ser separadas.
Por esse motivo, o cepticismo tão familiar e necessário à historiografia
convencional não poderá fazer parte desta obra. Em virtude da confissão
de que respeitamos a autoridade das fontes que estaremos investigando,
anulamos o direito de rejeitar o que não conseguirmos entender ou o que
julgamos difícil de acreditar. ^
Isto não significa, entretanto, que uma história do Israel antigo escrita à
luz da pesquisa moderna se restrinja tão-somente a uma recapitulação do
registro bíblico. O próprio fato de que o Antigo Testamento relata aconteci­
mentos antigos como história sagrada, como fenômeno primariamente teo­
lógico em vez de social ou político, é suficiente para justificar as repetidas
tentativas de reconstruir a história segundo as linhas normais da
historiografia. Este livro representa tal esforço. Nosso propósito é compre­
ender a história de Israel como uma integração dos fatores políticos, sociais,
económicos e religiosos, utilizando como base não apenas as informações
do Antigo Testamento como Escritura, mas também as fontes literárias e
arqueológicas do antigo Oriente Médio, do qual Israel fazia parte.

ws pruDiemas enirem aaos na proauçao a e um a nisum a ao


a n tig o Is ra e l n o s d ia s atu a is

A questão da inerrância

Um dos fatores de maior influência para uma grande visão do Antigo


Testamento, isto é, a visão de que ele é a própria Palavra de Deus revelada
INTRODUÇÃO 3

aos homens, é a sua inerrância. Enquanto a maioria dos estudiosos evan­


gélicos conservadores admitem que esta inerrância pertence exclusivamen­
te ao autographa, os textos originais, também afirmam que o Antigo Testa­
mento em sua forma primitiva é completamente inerrante. Isto significa
que ele não apenas é teologicamente livre de erros, mas também que trata
acertadamente e com autoridade de assuntos relacionados à ciência e his­
tória, sempre que seja seu propósito fazê-lo.
Honestamente, reconhecemos que esta visão do Antigo Testamento
como uma testemunha inerrante da história de Israel é problemática para
muitas pessoas orientadas cientificamente, pois está fundamentada em
uma conjetura teológica: os mesmos textos usados como documentação
histórica são de origem e natureza divinas, e têm sido sobrenaturalmente
preservados.

A ausência de documentos pré-mosaicos

Embora possa haver alguma evidência de que Moisés utilizou alguns


documentos para compor o livro de Gênesis - as chamadas toledot
("genealogias") - a existência desses documentos é completamente sem
comprovação. Conseqüentemente, isto sugere que, ou ele dependeu ex­
clusivamente da infalível e inquebrável tradição oral (que cobria milhares
de anos), ou recebeu as informações por revelação direta. A segunda hipó­
tese obviamente é rejeitada pela maioria dos estudiosos, ao passo que a
sugestão da tradição oral é relativamente aceita. O oriente próximo testifica
abundantemente acerca do uso de tradições orais, embora não do mesmo
nível ou com a mesma integridade implicada no caso de Gênesis.

Seletividade histórica

E inevitavelmente necessário na história escrita incluir alguns aconte­


cimentos e excluir outros, geralmente com base na disponibilidade de da­
dos e nos interesses do historiador. Esta seletividade é particularmente
visível no relato histórico de Israel no Antigo Testamento, porque o Autor
(e autores) tinha objetivos determinados em mente. O verdadeiro impulso
do Antigo Testamento é teológico. Os fatos mais relevantes para os gran­
des temas do propósito divino, por exemplo a redenção, são preservados
enquanto outros são excluídos. Sem dúvida a história de Israel envolve
mais do que as informações contidas no registro bíblico. De fato, as fre-
qüentes referências a documentos não-canônicos, tais como o "Livro de
Jasar" e o "Livro das Crônicas dos Reis de Israel [ou Judá]", deixam os
4 H istória de I srael no A ntigo T estamento

estudiosos alarmados com respeito ao conteúdo que esses materiais pode­


riam fornecer. Entretanto, por razões não muito claras, seu conteúdo não
foi adicionado ao registro histórico canônico.
O problema para o historiógrafo, então, é a natureza seletiva do Antigo
Testamento. Ele não é primariamente uma história, uma crônica, no senti­
do político do termo, mas uma relato descritivo, direcionado da obra de
Deus na vida dos homens.

A p re s e n te a b o rd a g e m d a h is tó ria d e Isra e l

Reconhecimento do caráter revelador do Antigo Testamento

Esta presente abordagem da história de Israel parte da confissão de


que o Antigo Testamento é a revelação de Deus na forma escrita. Esta con­
fissão obviamente pressupõe sua inspiração como Palavra de Deus e rati­
fica sua inerrância em todas as áreas, incluindo a história. Isto não signifi­
ca que alguém possa escrever uma história de Israel sem enfrentar dificul­
dades - algumas insuperáveis - , mas que é possível fazê-lo reconhecendo
plenamente que os problemas não são inerentes às fontes, mas à incapaci­
dade dos historiadores humanos de ter acesso e interpretar essas fontes. O
registro pode estar in co m p leto; de fato, ele freqü entem ente é
complementado pelas informações extrabíblicas. Contudo, ele nunca está
errado quando entendido completamente.

Reconhecimento do método bíblico

De acordo com o que foi dito acima, esta presente obra reconhece o
processo de seletividade no texto canônico e, portanto, não espera que o
Antigo Testamento diga mais ou menos do que aquilo que se propõe a
falar com respeito à história. Esse processo de seletividade não deveria
nos surpreender, pois ocorreu em vários outros registros escritos da mes­
ma época. Por exemplo, alguns acontecimentos marcantes do Antigo Tes­
tamento não foram registrados na história secular quando, na verdade,
qualquer um poderia esperar que eles tivessem sido.
Do mesmo modo, muitos eventos cruciais no mundo também não são
mencionados no Antigo Testamento. É realmente estranho que os textos
egípcios (ou ainda mais surpreendente, hititas) sequer façam menção do
êxodo de Israel, e também que o Antigo Testamento permaneça em abso­
luto silêncio com respeito ao poderoso Hamurabi. A única explicação para
tais omissões repousa na idéia de que houve grande seletividade e (se­
IsTRODUÇÃO 5

gundo os padrões modernos) e uma historiografia não-ortodoxa. O histo­


riador moderno precisa admitir que esta é a situação real e tratar os fatos
dessa maneira. Não é responsabilidade ou trabalho do historiador dizer o
que as fontes deveriam ter incluído, mas trabalhar com elas e tentar extra­
ir delas o melhor entendimento possível.

Reconhecimento do propósito bíblico

Um compromisso assumido por todo aquele que busca escrever uma


história de Israel é aceitar o Antigo Testamento em seus próprios termos.
De fato, ele é um livro de história, mas ao mesmo tempo é a revelação
progressiva da mente e dos propósitos do Senhor. É desta forma que ele
deve ser lido e interpretado teologicamente. Embora a totalidade dos fa­
tos perfaçam um corpo de informação histórica, cada fato, cada evento,
cada pessoa do Antigo Testamento tem uma significação especial quando
visto no contexto como um todo. O êxodo, por exemplo, é muito mais do
que um episódio emocionante que lançou as bases para a nacionalidade
de Israel. E um evento simbólico que tipifica a ação salvífica do Senhor
com respeito a Israel e também a todo o mundo. Ver os fatos desta manei­
ra não interfere na historicidade literal. Mas deixar de enxergar assim é
falhar em ver o Antigo Testamento como uma obra de história que trans­
cende infinitamente os limites da historiografia comum.
Israel em M oabe
O propósito da Torá
Gênesis
Êxodo
Levítico
Números
Deuteronômio
A história dos patriarcas
Abraão: o ancestral das nações
As origens de Abrão
A viagem até Canaã
O estabelecimento em Canaã
A viagem para o Egito
A separação entre Abrão e Ló
Os reis do Oriente
Abrão e sua cultura
A destruição de Sodoma e Gomorra
Abraão e os filisteus
A busca de uma esposa para Isaque
Jacó: pai de muitas nações
A bênção e o exílio
A volta para Canaã
O casamento de Judá
A descida ao Egito
A história de José
O cenário
A atmosfera cultural
De José ao êxodo

Isra e l e m M o a b e

Ao término do século quinze antes de Cristo1, uma multidão de pesso­


as conhecida como Israel - uma raça exclusiva entre todas as nações -
reuniu-se nas planícies de Moabe momentos antes da invasão e conquista
de Canaã, que se daria diretamente ao ocidente e através do Rio Jordão.
Moisés, que foi por mais de quarenta anos o seu venerado líder, estava
prestes a morrer, e já tinha transferido as rédeas de autoridade a seu jo­
vem assistente Josué. Esse foi um momento totalmente singular. O Israel

Os princípios que fundamentam a estrutura cronológica adotada nessa obra estão con­
tidos nas pp. 59-73.
8 H istória de I srael no A ntigo T estamento

que anteriormente não passava de um povo escravizado e desorganizado


foi miraculosamente libertado do domínio da mais poderosa nação da ter­
ra, o Egito, e encontrou-se com Jeová, Deus do céu e da terra, no Sinai. Lá
eles entraram numa aliança com Ele e foram feitos seus servos e povo de
propriedade exclusiva. Agora, após um intervalo de quarenta anos, eles
chegaram a leste de Jerico, estando prestes a entrar na sua terra e futuro
lar, a Canaã que o Deus da aliança lhes prometera.
Mas existe uma multidão de perguntas que exigem respostas. Não há
dúvida de que Moisés e muitos de seus antepassados tinham aprendido
sobre os propósitos de Deus, seja por revelação direta ou por tradição
oral, e que eles passaram as intenções de Deus para seus contemporâne­
os de várias formas diferentes. Apesar disso, até o presente momento
não há qualquer sistematização que nos leve a compreender quais foram
os "blocos formadores" da história e teologia que resultaram na estrutu­
ra de um povo unido em aliança com Deus, possuidor de uma tremenda
responsabilidade e privilégio de agir como seu povo, segundo o seu pla­
no redentor.
Quem, de fato, era esse povo? Qual era a significação de Israel? Como
Israel veio à existência? Qual é, especificamente, o propósito que essa na­
ção tem de realizar na condição de mais um membro dentre todos os de­
mais povos e nações? Além de todas essas coisas, qual foi a razão da cria­
ção dos céus, da terra, e de toda a humanidade? O que o Criador tinha em
mente para a sua criação? E se Israel foi eleito para lhe servir, como seria
realizada essa servidão de forma que contribuísse para a implementação
dos grandes propósitos salvíficos de Deus?

O p ro p ó s ito d a T orá

As tradições universais judaica e cristã ensinam inequivocamente que


Moisés agiu como mediador e porta-voz de Jeová para seu povo. No pro­
pósito de providenciar respostas para as perguntas anteriores, dedicou a
última parte de sua longa e produtiva vida a esse ministério.2 A forma
como as respostas vieram a se constituir chama-se para os judeus de Torá,

2 O surgimento da chamada Alta Crítica, de cunho cético, no período então chamado de


Iluminismo, ocorreu no décimo oitavo século. Seus partidários tentaram negar a auto­
ria mosaica do Pentateuco, e consideravam-no um apanhado de vários documentos
que foram escritos muitos anos depois das datas tradicionalmente atribuídas a Moisés.
Para uma descrição da história desse movimento e uma resposta contra seus argumen­
tos, ver em Roland K. Harrisson, Introduction to the Old Testament (Grand Rapids:
Eerdmans, 1969), pp. 3-82.
O rigens 9

e para os cristãos de Pentateuco, ou seja, os livros de Gênesis, Êxodo,


Levítico, Números e Deuteronômio. Embora comumente sejam descritos .
como "Lei", na verdade são mais história, porém escrita de forma muito
mais elevada.3

Gênesis

O propósito do Gênesis é documentar o fato de que o Deus de Israel é


o Criador de todas as coisas e, inclusive, traçar a história da raça humana
desde a criação até o tempo em que Israel se desenvolveu como uma na­
ção especial. O livro descreve as intenções cósmicas de Deus, a recusa da
humanidade em se conformar com os propósitos divinos, e mostra os
mecanismos e as promessas contidas na aliança, por meio dos quais Deus
iria por fim alcançar todos os seus objetivos, apesar da desobediência dos
homens. Isso envolve a chamada e a separação de Abraão que, através de
sua inumerável descendência, se tornaria o canal de bênçãos para todo o
mundo.4

Êxodo

O Êxodo relata a história dos descendentes de Abraão desde a sua li­


bertação da escravidão e opressão egípcia até a sua constituição como povo
de Deus no deserto do Sinai. Mostra que Israel não era digno dessa graça,
mas que, por razões conhecidas apenas por Deus, foi separado para entrar
num concerto com Ele a fim de servir tanto como um repositório das ver­
dades salvíficas quanto como um veículo através do qual essas verdades
seriam comunicadas e, por fim, culminariam na encarnação de Jesus Cris­
to. Os principais temas do livro giram em torno dessa aliança. O ponto
mais alto do êxodo histórico foi a dádiva da aliança, o texto inteiro que
consta em Êxodo 20-23. Lá encontram-se descritas as prescrições de culto
com respeito ao modo pelo qual os servos deveriam se aproximar da ma­
jestosa pessoa do Deus Soberano (sacrifício e ritual), e o local onde tal
aproximação teria lugar (o tabernáculo).

’ Ver pp. 4,5


4 Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary, trad. John H. Marks (London: SCM;
Philadelphia: Westminster, 1961), pp. 154-56. O propósito das histórias patriarcais está
bem descrito e por John Goldingway, "The Patriarchs in Scripture and History", em
Essays on the Patriarchal Narratives, ed. A R. Millard e D. J. Wiseman (Winona Lake, Ind.:
Eisenbrauns, 1983), pp. 1-34.
10 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Levltico

A terceira seção da Torá providencia os padrões de santidade que de­


veriam fazer parte da vida daqueles que estariam incumbidos de estabe­
lecer e manter o acesso ao santo e infinito Senhor da aliança. Esses pa­
drões não eram apenas para o povo de modo geral, mas caíam particular­
mente sobre os sacerdotes, que deveriam servir como intercessores na es­
trutura do culto público.

Números

O livro de Números descreve a migração de Israel do Egito até as


planícies de Moabe, uma viagem repleta de uma sucessão de rebeliões
contra o Senhor e contra os administradores de sua teocracia, que cul­
minou na morte de todos os adultos da geração do êxodo. Houve, por
conseguinte, a necessidade de se fazer pelo menos uma legislação adi­
cional para os que faziam parte da nova geração, enfatizando nova­
mente as bases que regem a aliança antes que eles se estabelecessem
em Canaã. Logo, muita coisa que temos em Números, da mesma forma
que em Êxodo e Levítico, é prescritiva em sua natureza, e não narrativa
técnica da história. Mas de forma geral, o livro de Números cita os even­
tos históricos significantes do período que vai da aliança do Sinai até a
chegada de Israel às planícies de Moabe, um período de aproximada­
mente trinta e oito anos. O livro é assim qualificado como histórico e é
de contribuição fundamental para a compreensão do Israel antes da
conquista.

Deuteronômio

Dentre os livros do Pentateuco, Deuteronômio é sem dúvida o menos


histórico, uma vez que em sua inteireza apresenta um longo discurso de
Moisés para a comunidade da aliança que estava às vésperas da con­
quista. Do ponto de vista literário, esse discurso deve ser visto como um
texto exaustivo de uma aliança, e seus elementos encontram paralelos
em outros documentos da mesma característica que pertenciam ao anti­
go Oriente Médio.5 O propósito do livro é repetir, com algumas emen­
das e clareza, a mensagem básica de Êxodo 20-23 - uma repetição neces­

5 Meredith G. Kline, The Structure ofBM ical Authority (Grand Rapids: Eerdmans, 1972),
pp. 9-14.
O rigens II

sária em face das circunstâncias históricas que transpiravam já por qua­


se quarenta anos desde a revelação no Sinai. A geração que presenciou e
entrou em aliança no Sinai já havia morrido ou estava morrendo. Nesse
caso, a nova geração também precisava ouvir e, por ela mesma, respon­
der às exigências que o pacto com Jeová lhes impunha. Em outras pala­
vras, precisava haver uma reafirmação daquela aliança, como era de cos­
tume por todo mundo ao leste do Mediterrâneo, quando se findava uma
geração de um povo vassalo.6 Além disso, o pacto do Sinai - assim como
suas prefigurações em Números - foi particularmente preparado para
atender às necessidades de uma sociedade nômade que se dirigia para
um vida permanentemente sedentária em Canaã. Finalmente, as tribos
haviam chegado à entrada da terra prometida e, logo, uma alteração no
pacto se tornava necessária como prevenção para as grandes mudanças
que Israel iria encontrar. Deuteronômio é o discurso de despedida de
Moisés, no qual ele alerta e lembra o povo acerca de quem eles são, de
onde foram tirados e qual deve ser a sua missão daquele dia em diante,
à medida que eles reivindicam a terra da promessa e trabalham como
mediadores entre as nações.

A h is tó ria d o s p a tria rc a s

A história de Israel não começa com Moisés, com os acontecimentos


do êxodo ou com a aliança. Porém, a compreensão e sistematização
dos relatos com respeito às origens de Israel, seu trabalho e destino
foram, sem dúvida, preparadas por Moisés nas planícies de Moabe,
onde o profeta também manifestou seus dotes e habilidades de histori­
ador. Na criação da Torá, sua obra-prima, Moisés serviu tanto como
testemunha ocular quanto como organizador e colecionador de todo o
material necessário para documentar o passado. Sem dúvida que esta­
mos diante de um livro histórico, mas podemos dizer que na verdade é
muito mais do que isso - estamos diante de um tratado de teologia
cujo propósito é mostrar que o Deus Criador, por meio da nação esco­
lhida Israel, soberanamente realizará seu propósito redentor para toda
a humanidade.7

6 Peter C. Craigie, The Book of Deuteronomy, New International Commentary on the Old
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1976), pp. 28,30-32.
~Para um apanhado historiográfico um pouco diferenciado sobre as histórias dos patriar­
cas, ver inter alia, John T. Luke, "Abraham and the Iron Age: Reflections on the New
Patriarchal Studies", JSOT 4 (1977): 35-47, esp. p. 47.
12 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Abraão: o ancestral das nações

As origens de Abrão
A história de Israel tem início com a chamada de Abrão para ser o pai
da nação escolhida. No final da lista genealógica que começa com Sem,
filho de Noé (Gn 11.10-26), aparece o nome de Terá, pai de Abrão, Naor e
Arã. Terá viveu em Ur dos Caldeus (v. 28), a famosa cidade sumeriana
localizada às margens do Rio Eufrates, cerca de 241 quilômetros a nordes­
te da costa atual do Golfo Pérsico.8 A mais satisfatória reconstrução da
cronologia bíblica localiza o nascimento de Abrão em 2166 a.C.,9 uma época
em que a cidade de Ur caiu nas mãos de um povo bárbaro e montanhês
conhecido por Guti.10
Conforme já foi constatado, Ur era uma cidade da Suméria - a mais
importante dentre um complexo de cidades-estados - povoada pela civili­
zação altamente culta dos sumários pelo menos desde a metade do quarto
milênio. A Ur de Terá e Abrão era, por assim dizer, uma cidade altamente
cosmopolita, já que não-sumérios como o próprio Abrão e seus antepassa­
dos - de origem semítica - lá viveram e fundiram seus conhecimentos
intelectuais e sua cultura com o lastro cultural dos sumários.11
Visto que por aqueles tempos Sargão (2371-2316)12 estabeleceu em
Agade o Império Acadiano, de dominação semita, aproximadamente 321
quilômetros a noroeste de Ur, é quase certo que Abrão era bilíngüe, domi-

8 Acerca de dados relativos às escavações em Ur, ver em C. Leonard Wooley, Ur of the


Chaldees (New York: Norton, 1965).
9 Essa cronologia será melhor elaborada nas pp. 59-73. Que a era patriarcal se enquadra
aproximadamente nos períodos I-II do Bronze Médio (aprox. 2000-1800) foi demonstra­
do por John J. Bimson, "Archaeological Data and the Dating of the Patriarchs", em Essays
on the Patriarchal Narratives, editado por A.R. Millard e D. J. Wiseman (Winona Lake,
Ind.: Eisenbrauns, 1983), pp. 53-89; ver John Bright, A History of Israel, 3a ed. (Philadelphia:
Westminster, 1981), p. 85.
10 C.J. Gadd, "The Dynasty of Agade and the Gutian Invasion", em Cambridge Ancient
History (CAH), 3ed.., editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: Cambridge University
Press, 1971), vol. 1, parte 2, pp. 454-61. O domínio dos Guti extendeu-se de aproximada­
mente 2240 até 2115.
11 Dietz Otto Edzard, "The Early Dynastic Period", em The Near East: The Early Civilization,
editado por Jean Bottéro et al. (New York: Delacorte, 1967), pp. 86-87; Thorkild Jacobsen,
"The Assumed Conflict Between Sumerians and Semites in Early Mesopotamian
History", JAOS 59 (1939): 485-95.
12 As datas extrabíblicas para esse capítulo são as mesmas obtidas no Cambridge Ancient
History, 3ed.
O rigens 13

nando tanto a língua sumeriana quanto a acadiana. O local de onde os


descendentes de Abrão se originaram e como eles se estabeleceram em Ur
não está registrado no relato histórico. A miscigenação entre os elementos
étnicos sumerianos e semíticos no terceiro milênio está bem atestada na
Mesopotâmia inferior; por esta razão, não há necessidade de se buscar
por uma outra Ur além da que tem sido tradicionalmente associada a
Abrão.13
A principal deidade adorada em Ur era o deus lua sumeriano Nannar,
conhecido em acadiano como Sin. Não há dúvida de que Abrão e sua fa­
mília eram devotos fiéis a Sin e às divindades a ele associadas, pois em
Josué 24.2 vemos o registro de que eles adoraram e serviram a outros deu­
ses além do rio (o Eufrates). Além disso, alguns estudiosos identificam o
nome Terá como sendo uma forma da palavra hebraica yareah ("lua"), o
que pode sugerir que o seu nome revelava qual era sua orientação religio­
sa.14 Quando Terá e sua família deixaram a cidade de Ur, restabeleceram-
se em Arã, um outro importante centro de adoração ao deus Sin.
r O assunto que trata acerca do nascimento de Abrão no paganismo em
contraste com sua descendência direta da linha escolhida de Sem é de gran­
de interesse, embora não possa ser considerado aqui em detalhes. Contu­
do, está claro que a genealogia que liga Sem a Abrão não deve ser vista
como completa, mas apenas como seletiva. Ou seja, os nomes que apare-

13 Cyrus H. Gordon lançou a teoria que Abrão não tinha ligações com a Ur dos Caldeus
mas com uma Ura' na Síria, um local muitíssimo mais próximo de Arã e, segundo seu
ponto de vista, muito mais compatível com as narrativas de Isaque e Jacó, cujas esposas
procederam da parentela de Abrão em Arã ou da parte mais alta da Síria. Ver detalhes
em "Abraham of Ur", em Hébrew and Semitic Studies, editado por D. Winton Thomas e
W.D. McHardy (Oxford: Clarendon, 1963), pp. 77-84. Mais recentemente foi ventilada a
confirmação de uma outra Ur mais ao norte, que está registrada nos textos de Ebla.
Mas, conforme Paul C. Maloney, os sinais cuneiformes usados por aquela Ur são dife­
rentes dos utilizados para soletrar o mesmo nome da Ur dos Sumérios ("The Raw Mate­
rial", BAR 6.3 [1980]: 59). Para uma veemente defesa do ponto de vista que a Ur dos
Caldeus deve ser entendida como aquela cidade localizada no sul, ver H.W.F. Saggs,
"Ur of the Chaldees", Iraq 22 (1960): 200-9. A frase identificadora "dos Caldeus" é sem
dúvida uma glosa explicativa surgida tempos depois, já que os caldeus e os kaldu-(i.e.
caldea) não eram conhecidos até o século nove a.C. O propósito, é claro, era distinguir a
Ur que se localizava no sul daquelas outras cidades que tinham o mesmo nome.
14 William G. Dever e W. Malcolm Clark, "The Patriarchal Tradition", em lsraelite and Judaean
History, editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1977),
p. 127. O nome mais provavelmente deve ser buscado no acadiano tarhu ("ibex"). Ver
Claus Westermann, Genesis 1-11: A Commentary, traduzido por John J. Scullion
(Minneapolis: Augsburg, 1984), p. 564.
O*:-jess 15

cem são talvez os representantes de muitos outros que, por motivos a nós
desconhecidos e que não podem ser determinados, não foram inseridos
no registro.15 Caso Sem e Abrão tenham sido contemporâneos, conforme
uma interpretação estrita da genealogia nos forçaria a reconhecer, então
torna-se extremamente difícil entender como os ancestrais mais imediatos
de Abrão tornaram-se pagãos e, mais ainda, por que Abrão teria sido cha­
mado exclusivamente para essa sagrada missão, já que havia crentes dis­
poníveis para cumprir o propósito que Deus tinha em vista.16 E mais: caso
Sem e Abrão tenham sido contemporâneos, torna-se difícil conciliar o fato
de Abrão haver morrido aos 175 anos, "... em ditosa velhice, avançado em
anos..." (Gn 25.8), pois o registro bíblico diz que Sem morreu aos 600 anos,
uma idade consideravelmente mais jovem do que seu pai Noé (950 anos).
Claramente, podemos ver que Sem precedeu Abrão por muito mais anos
do que uma estrita leitura do texto permite enxergar. Portanto, houve tempo
suficiente para permitir o fato de Jeová ter desaparecido da linhagem de
Sem, tornando-se necessária a sua revelação ao pagão Abrão.

A viagem até Canaã


Não há como definirmos com precisão quando foi que Abrão partiu de
Ur para Arã. Ele já era velho o suficiente para estar casado e ainda jovem
o suficiente para continuar debaixo da autoridade patriarcal de seu pai. A
despeito do fato de seu nome ser mencionado em primeiro lugar na
genealogia, ele era o mais jovem dentre os três filhos de Terá.17 Arã mor­
reu em Ur; logo, apenas Naor, Abrão, e o filho de Arã chamado Ló, parti­

15 Para estudar as formas e funções das genealogias no Antigo Testamento e no antigo


oriente médio, ver em Robert R. Wilson, Genealogy and History in the Biblical World (New
Haven: Yale University Press, 1977); Jack M. Sasson, "A Genealogical 'Convention' in
Biblical Cronology", ZAW 90 (1978): 171-85; Gerhard F. Hasel, "The Meaning of
Chronogenealogies of Genesis 5 and 11", Origins 7 (1981): 53-70.
Uma interpretação estrita, ou seja, uma interpretação que afirma que as listas
genealógicas não omitem nenhuma geração, requereria que Noé tivesse morrido em
2168, apenas 2 anos antes do nascimento de Abrão, e que Sem morrera em 2016, antece­
dendo a Abrão em apenas 25 anos! Ver em Gênesis 9.28; 11.10,11; 25.7. (Nós assumimos
nessa obra que Terá estava com 130 anos quando Abrão nasceu. Ver a nota 17).
Isso está bastante evidente pelo fato de Abrão ter 75 anos quando partiu de Arã (Gn
12.4). Essa saída ocorreu somente após a morte de Terá (At 7.4), que faleceu aos 205 anos
(Gn 11.32). Portanto, Abrão não nasceu antes dos 130 anos de Terá. O fato registrado em
Gn 11.26 que Terá estava com 70 anos quando ele teve Abrão, Naor e Terá quer dizer
que ele estava com essa idade quando nasceu o seu primeiro filho. Abrão é listado em
primeiro lugar devido a sua importância na narrativa que se segue.
16 H istória d e I srael no A ntico T estamento

ram com suas esposas seguindo Terá em direção à grande cidade de Arã,
cerca de 965 quilômetros a noroeste de Ur. Por que Terá e sua família dei­
xaram a cidade de Ur é algo que não pode ser determinado, embora pos­
samos supor que os levantes políticos e culturais que estavam acontecen­
do na Sumária, em razão das conquistas impostas pelos Guti, devam ter
contribuído diretamente para tal decisão. Terá não tinha como descobrir
que os bárbaros Guti seriam expulsos em 2115, e que a gloriosa 3aDinastia
de Ur seria estabelecida sob Ur-Nammu. Nessa ocasião, Terá e sua família
já estavam vivendo em Arã, e dentro de vinte e cinco anos Abrão estaria
partindo dali para Canaã (Gn 12.4; cf. At 7.4).
Nos anos de sua estada em Arã - que na época era um centro comercial
e de negócios habitado principalmente por uma raça conhecida pelos
sumerianos por MAR.TU e pelos acadianos por Amurru (os amoritas bí­
blicos) - , Abrão sem dúvida tornou-se fluente no dialeto semítico amorita
que lá era falado e adquiriu um estilo de vida nômade, com o qual ele
viria mais tarde a se familiarizar em Canaã.18 Os amoritas nesse tempo
não apenas ocupavam as principais cidades a noroeste da Mesopotâmia,
mas também, por necessidade de expansão comercial, atingiram o sudes­
te e o sudoeste.19
Por fim, pelo fato de haver população suficiente na Mesopotâmia cen­
tral, surgiram as cidades-estados amoritas, tais como Isin, Larsa, e a mais
importante de todas: Babilônia. O próprio Hamurabi (1792-1750), o mais

Ninguém deve a priori rejeitar o grande número de anos que os patriarcas viveram
simplesmente por não encontrarem paralelos nos dias de hoje. Uma análise objetiva dos
únicos dados que temos disponíveis exigem que esses números sejam tomados do jeito
que nos foram apresentados, a não ser que exista evidência histórica que nos prove o
contrário. Será útil observar que é dito que Sargão de Acade reinou por cinqüenta e
cinco anos, Rim-Sin de Larsa durante sessenta, Ramsés II do Egito por sessenta e seis
anos e, Phiops II do Egito por noventa e quatro anos! Para mais informações, ver em
William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near East (New York: Harcourt
Brace Jovanovich, 1971), p. 55; CAH 1.2, p. 64; 2.2, p. 232; 1.2, p. 195. Todos esses, com
exceção de Ramsés, foram contemporâneos com o período dos patriarcas. Além disso,
mesmo sendo grandemente exagerada, a lista dos reis sumérios fala de reis muito anti­
gos que reinaram por séculos e até mesmo por milênios. Sem dúvida que essa
longevidade deve estar baseada nalguma fonte genuinamente histórica. Ver em Thorkild
Jacobsen, The Sumerian King List, Assyriological Studies 11 (Chicago: University of Chi­
cago Press, 1939).
18 Para informações sobre MAR.TU ou amurru, da Alta Mesopotâmia no início do segun­
do milênio, ver em Jean Bottéro, "Syria During the Third Dynasty of Ur", em CAH 1.2,
pp. 562-64.
19 Ignace J. Gelb, "Na Old Babylonian List of Amorites", JAOS 88 (1968): 39-46.
O rigens 17

ilustre dentre todos os reis da Antiga Babilônia, era um descendente dos


amoritas. O deslocamento em sentido sudeste que vemos no povo amorita
torna-se de importância fundamental para a história bíblica, pois envolve
a penetração e ocupação desta raça tanto na Síria quanto em Canaã, esten­
dendo-se inclusive até as fronteiras do Egito. Esses amoritas, que foram
equivocadamente caracterizados em certa ocasião como sendo de origem
puramente nômade, eram na verdade seminômades em sua maioria, e
geralmente urbanizados.20 As pesquisas arqueológicas realizadas em nu­
merosos sítios na Síria e em Canaã têm revelado, segundo o ponto de vista
de alguns estudiosos, que as populações indígenas dessas regiões foram
dominadas na última parte da Baixa Era do Bronze (2200-2000) por povos
geralmente descritos como amoritas.21

Tabela 1 A seqüênria da Era do Bronze

Baixo Bronze 3000-2000


Baixo Bronze I 3000-2800
Baixo Bronze II 2800-2500
Baixo Bronze III 2500-2200
Baixo Bronze IV 2200-2000
Médio Bronze
Médio Bronze I 2000-1900
Médio Bronze II 1900-1550
Alto Bronze
Alto Bronze I 1550-1450
Alto Bronze II 1400-1200

20 Para um apanhado do estilo de vida "dimórfico" dos amoritas, ver Michael B. Rowton,
"Urban Autonomy in a Nomadic Environment", JNES 32 (1973): 201-15; M. Liverani,
"The Amorites", em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman (Oxford:
Clarendon, 1973), p. 114.
21 A assim chamada hipótese amorita foi popularizada e encontrou um maior defensor no
trabalho de Kathlen Kenyon, Amorites and Cananítes (London: Oxford University Press,
1966), esp. pp. 76,77. Mais tarde surgiu forte oposição contra esta teoria, representada
especialmente por C.H.J. de Geus, "the amorites in the Archaeology of Palestine", UF 3
(1971): 41-60. É seguro afirmar que muitos estudiosos ainda acreditam a hipótese e que
ela é a que supre-nos com a melhor explicação sobre a liberdade que os patriarcas ti­
nham de seu movimentar em Canaã nesse período, além de ser a melhor forma de se
elucidar o padrão dos assentamentos descritos no Antigo Testamento. Maiores infor­
mações, ver Eugene H. Merril, "Ebla and Biblical Historical Inerrancy", Bib Sac 140 (1983):
302-21, esp. pp. 306-8; Benjamim Mazar, "Canaan in the Patriarchal Age", em World
History of the Jewish People, vol. 2. Patriarchs, editado por Benjamim Mazar (Tel Aviv:
Massada, 1970), pp. 169-87, 276-78.
IS H istória de I srael ko A ntigo T estamento

O historiador bíblico relata que Jeová disse a Abrão para deixar seu
país (na ocasião era Arã), indo para um lugar que Ele progressivamente
lhe revelaria. É tentador supormos que Abrão não tenha se movido da­
quele local sozinho, mas que tivesse participado das grandes migrações
de amoritas que estavam em voga naqueles dias.22 E verdade que Abrão

Tabela 2 Os Patriarcas

O nascimento de Terá 2296


O nascimento de Abrão 2166
A partida de Abrão de Arã 2091
Hagar é dada por mulher a Abrão 2081
O nascimento de Ismael 2080
A reafirmação da aliança 2067
A destruição de Sodoma e Gomorra 2067
O nascimento de Isaque 2066
A morte de Sara 2029
O casamento de Isaque 2026
O nascimento de Jacó e Esaú 2006
A morte de Abraão 1991
O casamento de Esaú 1966
A morte de Ismael 1943
A viagem de Jacó a Arã 1930
Os casamentos de Jacó t 1923
O nascimento de Judá 1919
Final dos catorze anos de trabalho pelos
quais Jacó obteve suas duas esposas 1916
O nascimento de José 1916
O final da estada de Jacó com Labão 1910
A chegada de Jacó a Siquém 1910
Diná é deflorada 1902
O casamento de Judá 1900
José é vendido 1899
José é preso 1889
José é libertado 1886
Morte de Isaque 1886
O início da fome 1879
Primeira visita dos irmãos de José ao Egito 1878
Judá comete incesto com Tamar 1877
Segunda visita dos irmãos de José ao Egito 1877
Descida de Jacó ao Egito 1876
Morte de Jacó 1859
Morte de José 1806

22 J. Kaplan, "Mesopotamiam Elements in the Middle Bonze II Culture of Palestine", JNES


30 (1971): 293-307, esp. 305-6. A hipótese amorita não é indispensável em nenhum as­
pecto à historicidade das narrativas patriarcais, pois Abrão poderia ter se movimentado
independentemente da alta Mesopotâmia para Canaã.
O rigens 19

nunca é mencionado na Bíblia como sendo de origem amorita, embora a


designação "Abrão, o Hebreu" possa indicar que ele era tido como al­
guém que estava associado a certos povos migradores.23

O estabelecimento em Canaã
Quando Abrão chegou em Canaã, achava-se numa terra que in­
dubitavelmente tinha passado por algumas modificações culturais devi­
do às novas condições descritas anteriormente. Por um período de mais
de mil anos o elemento étnico predominante na terra tinha sido o cananita.24
Quem eram os cananeus na época de Abrão continua obscuro, embora o
Antigo Testamento ligue Canaã originalmente a Cão, filho de Noé. Se eles
eram ou não semíticos em sua etnia, o fato é que falavam uma língua
semítica que se comparava substancialmente à que Abrão deve ter apren­
dido em Arã.25 As escavações feitas recentemente em Tel Mardikh (a anti­
ga Ebla), situada a menos que 240 quilômetros a sudoeste de Arã, têm
revelado diversas tabuinhas escritas numa linguagem tão parecida com o
cananeu, que muitos estudiosos a têm classificado de protocananéia.26 O3

3 William F. Albright defende a idéia que Abrão não deva ser visto como um pastor de
rebanhos que levava o estilo nômade de vida, mas como um mercador ou caravaneiro,
ou seja, substancialmente um semi-nômade. ("From the Patriarchs to Moses: I. From
Abrahan to Joseph", BA 36 [1973]: 11-15). Quanto à definição de hebreu, ver pp. 100-2.
:J Embora não fosse possível até bem pouco tempo encontrar referências aos termos Canaã
ou cananeus nos textos literários extrabíblicos mais antigos do que a metade do segun­
do milênio (ver Sidney Smith, The Statue of ldri-Mi [London: British Institute of
Archaeology in Ankara, 1949], p. 15; Michael C. Astour, "the Origins of the Terms
'Canaan', 'Phoenician' and 'Purple'," JNES 24 [1965]: 346-47), não existe razão para du­
vidar de que as populações nativas da Palestina nos primórdios da Idade do Bronze
tivessem sido cananéias. Conforme diz Roland de Vaux, "Visto que não houve alteração
da raça ou da cultura no decurso do terceiro milênio, os 'cananeus' bem podem ser
considerados os fundadores da primitiva Idade do Bronze." ("Palestine in the Early
Bronze Age," em CAH 1.2, p. 234). Além disso, existe uma informação contida num
texto de Ebla, e que antecede em mil anos à referência de Idri-Mi (Alalakh), citando um
tal "senhor de Canaã" (be ka-na-na-im). Ver Giovanni Pettinato, The Archives o f Ebla
(Garden City, N.Y.: Doubleday, 1981), p. 253.
:= Sabatino Moscati, Na Introduction to the Comparative Grammar of the Semitic Language
(Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1984), pp. 3-8; William L. Moran, "The Hebrew Language
in Its Northwest Semitic Background", em The Bible and the Ancient Near East, editado
por G. Ernest Wright (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), pp. 59-64.
Pettinato, Archives, p. 56; quanto as escavações e dados arqueológicos, ver em Paolo
Mathiae, Ebla: An Empire Rediscovered, traduzido por Christopher Holme (Garden city,
X.Y: Doubleday, 1981).
20 H istória de I srael no A ntigo Testamento

que é mais significativo ainda é o fato de tais tabuinhas datarem de 2500


a.C. Sendo assim, ainda antes da época de Abrão havia uma profunda
afinidade entre as línguas faladas no noroeste da Mesopotâmia e Síria (e
presumivelmente em Canaã).27 Já que Abrão era fluente no idioma amorita,
a assimilação do novo idioma cananita, sua nova terra natal, seria uma
tarefa muitíssimo fácil.
Um dos efeitos da ocupação de Canaã pelos amoritas foi que eles
restringiram o acesso dos cananeus à planície costeira do Mediterrâ­
neo, o vale de Jezreel, bem como o vale do Jordão (Nm 13.29). Os
amoritas se estabeleceram na porção central das grandes regiões mon­
tanhosas, e desenvolveram um estilo de vida baseado na pecuária e na
agricultura.28 Semelhantemente, Abrão se estabeleceu nas regiões mon­
tanhosas e limitou-se nessa área até ao sul na fronteira do deserto do
Negueve.
O primeiro local onde o patriarca levantou suas tendas foi Siquém
(Gn 12.6), um nome que surgiu somente anos após seu estabelecimento,
uma vez que nos dias de Abrão não havia cidade alguma naquele lo­
cal.29 Lá ele edificou um altar e também fixou sua residência, aparente­
mente sem qualquer oposição contrária. A terra se abriu diante dele e
era dele para a possuir. As referências enigmáticas a respeito dos cananeus
que habitavam a região (Gn 12.6; 13.7) não contradizem o quadro geral
da época, e podem ter sido apenas anotações feitas por Moisés para
mostrar que, mesmo sendo uma civilização urbanizada em sua época

27 Para uma posição cautelosa e ao mesmo tempo bem informativa quanto à relevância
dos textos de Ebla com respeito a história, vida social, religião e linguagem da antiga
Síria, ver em Lorenzo Vigano e Dennis Pardee, "Literary Sources fo the History of
Palestine and Syria: The Ebla Tablets," BA 47 (1984): 6-16.
2S Kenyon, Amorites, pp. 76-77; William F. Albright, "The Jordan Valley in the Bronze Age",
AASOR 6 (1926): 68; Norman K. Gottwald, The Tribes ofYahweh (Mary-knoll, N.Y.: Orbis,
1979), p. 452. O que não significa necessariamente nomadismo ou vida em cabanas,
conforme D. J. Wiseman nos mostra com respeito aos patriarcas ("They Lived in Tents",
em Biblical and Near Eastern Studies, editado por Gary A. Tuttle [Grand Rapids: Eerdmans,
1978], pp. 195-200).
29 William G. Dever, "Palestine in the Second Millenium BCE: The Archaeological Picture,"
em Hayes e Miller, History, p. 99; Joe D. Seger, "The Middle Bronze II C Date of the East
Gate of Shechem," Levant 6 (1974): 117. Em 1900 Siquém desenvolveu-se num centro
urbano, quase duzentos anos após a chegada de Abrão em Canaã (aprox. 2100). Na
narrativa não existe sequer uma pista que nos indique que ali existiu uma cidade nos
dias de Abrão. Pelo contrário, parece que ele construiu um altar num local desocupado,
o qual mais tarde se tornou a cidade de Siquém.
22 H istória de I srael no A ntigo T estamento

(ou seja, viviam em cidades-estados), nos dias de Abrão, eles tinham sido
desapossados e estavam "na terra" no sentido de serem forçados a uma
forma de vida mais agrária.30
Mudando-se para uma outra colina entre Betei e Ai, cidades que rece­
beram esses nomes tempos depois,31 Abrão e seu clã novamente não en­
contraram nenhuma resistência. Esse padrão foi mantido por todo um
percurso na direção sul, através de toda a extensão da região montanhosa.
Com os cananeus efetivamente habitando nas planícies e vales, e os
amoritas (entre os quais Abrão viveu) levando um estilo nômade de vida,
este patriarca moveu-se e se estabeleceu conforme sua vontade e livre esco­
lha, sem qualquer impedimento ou ameaça por parte daqueles que forma­
vam a população nativa da região.

A viagem -para o Egito


Pouco depois da chegada de Abrão ao Negueve, a terra foi afligida
por uma severa seca, forçando-o a partir com sua família para o Egito a
procura de alívio. Devido a infalível cheia do rio Nilo que, como conse-
qüência, irrigava continuamente as ricas fazendas da região, o Egito
desde os tempos mais remotos sempre foi considerado o celeiro do
mundo Mediterrâneo oriental. Não foi nada difícil chegar ao Egito, já
que seus habitantes, com muita regularidade, vinham demonstrando
aberta hospitalidade para com os povos semitas.32 Elavia, é claro, certa
resistência e alerta com relação àqueles estrangeiros barbados, mas
mesmo assim costumava-se estender o tapete de boas-vindas especial­

30 Esse particularmente parece ser o caso de Gênesis 13.7, que fala de uma tensão entre
Abrão e Ló por causa de pastos para seus rebanhos. Justamente porque os cananeus
estavam "na terra", o espaço para Abrão e Ló era pequeno.
31 Confira em Gênesis 28.19 e Josué 8.28 (visto que o nome Ai significa "ruína", subenten­
de-se que esta cidade passou a se chamar assim somente após a conquista israelita do
local). O nome anterior para o sítio de Betei, que chamava-se Luz, continua sem com­
provação, embora esteja claro que tal local se estabeleceu tão cedo quanto a primitiva
Idade do Bronze. Ver em J.L. Kelso, The Excavation ofBethel 1934-1960, AASOR 39 (1968).
Não há como localizar a cidade de Ai com precisão hoje em dia. Para termos uma visão
completa do assunto, ver em John J. Bimson, Redating the Exodus and Conquest (Sheffield:
JSOT, 1978), pp. 215-25.
32 Cyril Aldred, The Egyptians (New York: Praeger, 1961), pp. 103-4. Este estado de coisas
continuou por todo o Primeiro Reino Intermediário e Reino Médio, conforme nos é
demonstrado por O. Tufnell e W. A. Ward, "Relations Between Byblos, Egypt and
Mesopotamis at the End of the Thrid Millennium B.C., Syria 43 (1966): 165-241, especial­
mente páginas 221-23.
O rigens 23

mente se os semitas fossem daqueles cuja inclinação voltava-se para o


comércio.33
A visita de Abrão ao Egito aconteceu próximo ao final do Primeiro Pe­
ríodo Intermediário, provavelmente durante a 10a ou 11a Dinastia. Quan­
do ele chegou ao Egito e contemplou as grandes pirâmides próximas a
Mênfis, sabemos que esses grandes monumentos do Reino Antigo já esta­
vam ali por mais de quatro séculos. Mas aquela era gloriosa tinha chegado
ao fim com a 5a Dinastia e, por três séculos, o Egito entrou em profundo
declínio, primariamente devido a ascensão do poder dos nomarcas ou
governantes dos distritos locais. Visto que Abrão chegou em Canaã por
volta de 2091 a.C., e que provavelmente entrou no Egito não muito depois
dessa data, concluímos que o rei para quem ele mentiu com respeito a ser
Sara sua esposa foi, ao que tudo indica, Wahkare Achthoes III (aprox. 2120­
2070) da 10a Dinastia, e que provavelmente foi o compositor da famosa
"Instrução para o Rei Meri-ka-Re".34 Esses conselhos coligidos para seu
filho, que tratam da deslealdade dos asiáticos, bem podem estar relacio­
nados de uma forma ou de outra com a duplicidade apresentada por Abrão.

A separação entre Abrão e Ló


Apesar da deslealdade praticada por Abrão no Egito, ainda assim o
Senhor decidiu abençoá-lo naquele lugar; por fim, o patriarca retornou
para o Negueve e de lá moveu-se para a vizinhança de Betei e Ai, levando
consigo grandes riquezas. A multiplicação dos rebanhos de Abrão e Ló foi
tão significativa que eles chegaram à conclusão de que era impossível a
coexistência nas mesmas terras de pastagens. Além disso, é claro, há toda
uma possibilidade de haver existido naquele local o elemento cananeu
não-sedentário também competindo pelos espaços abertos. No intuito de
aliviar a tensão que estava se desenvolvendo em conseqüência do aglo­
merado de rebanhos, Abrão propôs a seu sobrinho Ló que se afastassem
um do outro. Mais uma vez temos a nítida impressão de que a terra estava
completamente disponível para eles, ou seja, não havia latifundiários de
quem as terras devessem ser compradas, ou para quem fosse necessário
pedir permissão para fixar residência. Todas essas informações condizem

Ver o texto interessante "The Instmction for King Meri-ka-Re," em James B. Prithcard,
Ancient Near Eastern to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press,
1955), pp. 414-18, esp. 11.91ff: "Vede o maldito asiático... ele não consegue viver num
único lugar, (mas) suas pernas foram feitas para perambular".
’ William C. Hayes, "The Middle Kingdom in Egypt," em CAH 1.2, pp. 466-68. Ver tam­
bém nota 33.
24 H istória de I srael no A ntigo T estamento

exatamente com os padrões de fixação de residência conhecidos em Canaã


nesse período.
Olhando cobiçosamente para o oriente, Ló decide procurar sua fortuna
nos pastos verdejantes das planícies do Jordão, provavelmente na parte
baixa daquele vale, do leste de Betei para o mar Morto.35 A história da
cultura daquela região nos diz que o local já havia sido ocupado por po­
vos cananeus que também tinham sofrido as mesmas devastações
provocadas pelos amoritas, as mesmas experiências pelas quais os habi­
tantes irmãos da região montanhosa haviam passado.36 Alguns estudio­
sos sugerem que as cidades impenitentes da planície, inclusive Sodoma,
devem ser situadas nessa região ao norte do mar Morto.37 Porém, é mais
provável ainda que tais cidades estivessem fixadas a sudeste do mar, con­
forme a tradição de longos anos tem acreditado e as recentes escavações
têm confirmado.38 Caso tenha sido assim, conclui-se que Ló deve ter en­
trado a princípio no vale do Jordão, depois continuou seguindo em dire­
ção sul até chegar aos arredores de Sodoma (Gn 13.12).
Quanto a Abrão, as partes mais altas de Betei lhe proporcionavam uma
vista panorâmica privilegiada de toda a região que Deus havia prometido
dar a ele e a seus descendentes. A ordem de Deus "...percorre essa terra no
seu comprimento e na sua largura..." (Gn 13.17) implica em afirmar a pos­
sessão e a dominação que Abrão tinha de toda aquela área.39 Como resul­
tado, Abrão deu seus primeiros passos, viajando com sua família e reba­
nhos para um acampamento próximo a Manre, que tinha sido assim cha­

35 Yohanan Aharoni, The Land ofihe Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), pp. 133-4.
36 Jerico, a principal cidade da área, segundo a opinião de Kenyon (Amorites p. 9), tinha
sido destruída por volta de 2300 e reconstruída por uma "população numerosa, embora
fossem nômades" (p. 33). Esses primitivos anos do Médio Bronze sobreviveram até cer­
ca de 1900 (p. 35). A natureza não-urbana da área explicaria o porquê de Ló (cerca de
2090 a.C.) ter decidido escolher a "planície do Jordão" como sua porção.
37 Willem C. Van Hatten, "Once Again: Sodom and Gomorrah", BA 44 (1981): 87.
38 Ver particularmente a obra em andamento de Walter Rast e Thomas Schaub, "Survey of
the Southeastern Plain of the Dead Sea," ADAJ 19 (1974): 5-53; "Bab edh-Dhra' 1975,"
AASOR 43 (1978): 1-60; "Preliminary Report of the 1979 Expedition Bab edh-Dhra' and
Numeira: May 24-July 10,1981," ASOR Newsletter 4 (1982): 4-12.
39 A divina promessa da terra e as outras bênçãos (Gn 12.1-3; 15.18-21; 17.1-8) estão
registradas numa forma de aliança tecnicamente conhecida nos estudos do antigo Ori­
ente Médio como sendo um "concerto da graça". É uma iniciativa que parte daquele
que concede o favor, e quase sempre sem que para isso exista quaisquer prerequisitos
ou qualificações. Ver em Moshe Weinfeld, "The Covenant of Grant in the Old Testament
and in the Ancient Near East", JAOS 90 (1970): 184-203: Samuel E. Loewenstamm, "The
Divine Grants of Land to the Patriarchs," JAOS 91 (1971): 509-10.
O rigens 25

mada em homenagem ao seu líder amorreu (Gn 14.13), e que seria um dia
a cidade de Hebrom (Gn 13.18). Sabemos que a referência a Hebrom, por
parte de Moisés, não passa de anotações explicativas feitas por ele, já que,
de acordo com Números 13.22, a cidade não havia sido ainda construída
até sete anos antes da construção de Zoan, a cidade mais importante
construída pelos hicsos bem ao oriente do Delta do Egito. Esses dados
colocariam a fundação da cidade de Hebrom a cerca de 1727, ou seja, tre­
zentos anos depois de Abrão.40

Os reis do Oriente
A essa altura, a narrativa patriarcal envereda por um caminho comple­
tamente diferente. Até agora tudo tem girado em torno de uma atmosfera
estritamente pessoal, com caráter muito mais biográfico do que qualquer
outra coisa, o que resulta numa dificuldade quase intransponível quando
tentamos associar essas narrativas ao contexto histórico internacional mais
abrangente.41 Por outro lado, vemos em Gênesis 14 que Abrão se encon­
trou com reis e líderes de algumas tribos da região, cujos nomes não ape­
nas são mencionados, mas também seus territórios e alianças militares são
descritos em detalhes. Praticamente todos os estudiosos admitem a natu­
reza historiográfica da narrativa, embora reconheçam a grande dificulda­
de existente em identificar os protagonistas e encaixá-los numa série de
acontecimentos conhecidos nas fontes extrabíblicas.42

40 Zoan é identificada com Avaris ou (mais provavelmente) com a Tanis dos hicsos, situa­
da a cerca de 32 quilômetros de Avaris. Alguns estudiosos identificam Zoan e Tanis com
a Per-Ramesse. Ver Jacquetta Hawkes, The First Great Civilizations (New York: Knopf,
1973), p. 315. Se Zoan é Avaris ou Tanis, em nada irá afetar a cronologia em questão, já
que os sítios onde os hicsos viveram foram construídos por volta do mesmo período
(ca. 1720). Ver William C. Hayes, "Egypt: From the Death of Ammenemes III to Seqenenre
II," em CAH 2.1, pp. 57-58.
41 Não queremos com isso sugerir que as narrativas patriarcais, apenas por serem relatos
biográficos, não devam ser consideradas históricas em seu gênero literário. Cada vez
mais se tem reconhecido que o estilo literário em forma de biografia é uma forma extre­
mamente positiva e produtiva de se contar uma história. Ver em Luke, "Abraham and
the Iron Age," fSO T4 (1977): 37; Lawrence Stone, "The Revival of Narrative: Reflections
on a New Old History," Past and Present 85 (1979): 3-24; " 'Disilusioned' with Numbers
and Counting, Historians Are Telling Stories Again," The Chronicle of Higher Education,
13 June 1984, pp. 5-6.
4: Da mesma forma, por exemplo, Ephraim A. Speiser, Genesis, Anchor Bible (Garden City,
N.Y.: Doubleday, 1964), pp. 108-9; Niels-Erik A. Andreason, "Genesis 14 in Its Near
Eastern Context,", em Scripture in Context, editado por Cari D. Evans et al. (Pittisburgh:
Pickwick, 1980), pp. 60,62-65.
26 H istória de I srael no A ntigo T estamento

O resultado dessa dificuldade tem produzido duas ações em si negati­


vas: ou cria-se uma atitude de completo cepticismo acerca desse aconteci­
mento, produzindo a teoria de que tudo não passou de fábula histórica
ou, por outro lado, desenvolve-se o desejo de identificar cada um desses
personagens com indivíduos bastante conhecidos do antigo Oriente Mé­
dio. Por exemplo, durante muito tempo o rei de Sinar, Anrafel, foi identi­
ficado como o grande Hamurabi da Babilônia. Não há como negar que
Sinear é uma palavra bíblica para descrever a Mesopotâmia (ver Gn 10.10;
11.2), mas Hamurabi (1792-1750) viveu cerca de trezentos anos depois de
Abrão, segundo a melhor cronologia. Além disso, Anrafel, de modo
filológico, não pode ser equivalente a Hamurabi. Da mesma forma, todas
as tentativas de associar Arioque rei de Elasar a Arriyuk ou Arrwuk de
Mari, Quedorlaomer a Kudur-lagamar de Elão, ou Tidal a Tudhaliyas I de
Hati, falharam em conseqüência das razões lingüísticas e cronológicas. É
muito mais prudente dizer hoje que apesar do relato possuir cada marca
de credibilidade histórica, não há como fazer a identificação desses reis do
Oriente.43
Quanto aos líderes das cidades que faziam parte da planície, é possível
um pouco mais de exatidão. Alguns estudiosos que tiveram acesso a algu­
mas das tabuinhas de Ebla sugeriram que as cidades da planície e os no­
mes dos reis que ali estão contidos se encaixam perfeitamente com aque­
les outros descritos na narrativa bíblica.44 Até que esses textos sejam pu­
blicados e assim tornem-se acessíveis para o público em geral, tais reivin­

43 Ver a discussão bastante elucidativa de Keneth A. Kitchen, Ancient Orient and Old
Testament (London: Tyndale; Chicago: Inter-Varsity, 1966), pp. 43-44. Kitchen dá a en­
tender que embora as pessoas listadas em Gênesis 14 não possam por enquanto ser
ligadas a indivíduos em histórias extrabíblicas, os nomes são por outro lado muito fa­
miliares no período do Bronze Médio. S.Yeivin vai até mais além: datando o período
patriarcal como tendo existido do décimo oitavo ao décimo sexto séculos - trezentos
anos mais tarde do que a nossa cronologia - ele identifica os reis com alguns governantes
bem conhecidos ("The Patriarchs in the Land of Canaan," em World History ofthe Jezvish
People, vol. 2, pp. 215-17).
44 David Noel Freedman, "The Real Story of the Ebla Tablets," BA 41 (1978): 143-64.
Giovanni Pettinato, que foi o primeiro a fazer tal afirmativa, tempos depois recuou de
sua posição por motivos até agora inteiramente desconhecidos. Ver em seu Archives, p.
387, para se achar evidências pelo menos acerca das cidades de Sodoma e Gomorra nos
textos de Ebla. Precisamos, porém, adotar uma posição bastante cautelosa a fim de não
atribuirmos tanta importância aos achados em Ebla, e não darmos ao Antigo Testamen­
to uma importância quase nula. Ver alguns avisos importantes em Robert Biggs, "The
Ebla Tablets: An ínterim Perspective," BA 43 (1980): 82-83,85.
O rigens 27

dicações não poderão ser confirmadas. Mas não há absolutamente nada


no relato bíblico que tenha sido reprovado pelas novas descobertas literá­
rias, e nem existe qualquer incongruência com o ambiente histórico onde
tais narrativas tiveram lugar. A invasão de Canaã por quatro (presumivel­
mente) das maiores potências não deve nos conduzir necessariamente a
idéia de que toda força militar foi usada por tais reis nessa campanha. E
quase certo que tal campanha tivesse um caráter mais exploratório, cul­
minando nos resultados inesperados que produziram a conquista de al­
gumas cidades da planície (Gn 14.4).
Depois de doze anos, as cidades se rebelaram. Como conseqüência, os
reis do Oriente voltaram e deram fim à rebelião, levando consigo os prisi­
oneiros e despojos. Quando descobriu que seu sobrinho Ló estava conta­
do entre os prisioneiros, Abrão e seus confederados Manre, Escol e Aner
perseguiram os inimigos e os subjugaram em Hobá, situada ao norte de
Damasco. Não é difícil de acreditar que, com apenas "318 homens treina­
dos", Abrão tenha sido capaz de resgatar Ló e todos os seus bens, uma vez
que os vizinhos amoritas também levaram suas tropas, o que no final deve
ter somado milhares, sem falar que não há nenhum registro de que
Quedorlaomer e seus aliados tenham vindo a Canaã com um considerá­
vel contingente militar.

Abrão e sua cultura


As referências a Abrão como "o hebreu" (Gn 14.13) são de especial in­
teresse, tanto porque é a primeira vez que as vemos em todo o Antigo
Testamento, quanto porque tal palavra surge nos lábios de alguém não-
israelita. Em raras ocasiões, o povo escolhido intitulou-se de hebreu, espe­
cialmente nos dias antigos. A razão para isso, sem dúvida, está no fato de
que embora a designação étnica hebreu deva achar sua origem em Eber, o
ancestral de Abrão (Gn 10.21,25), um nome similar conhecido por 'apiru
(ou habiru) levou os contemporâneos de Abrão e as gerações subseqüentes
a confundirem os dois.45 Ou seja, apesar de os hebreus fazerem clara dis­
tinção entre eles e os demais povos conhecidos por ‘apiru, outros não tive­
ram o mesmo cuidado para entender ou reconhecer essa distinção, já que
eles passaram a se referir pejorativamente a Abrão e seus descendentes

45 Uma discussão mais aprofundada acerca dos 'apiru e seu relacionamento com os israe­
litas terá que esperar até que tratemos da questão da conquista de Canaã (pp. 100-8).
Por enquanto, sugerimos pesquisar em Moshe Greenberg, The Hab/piru (New Haven:
American Oriental Society, 1955); Michael B. Rowton, "Dimorphic Structure and the
Problem of the 'Apiru-'Ibrim," Jnes 35 (1976): 17-20.
28 H istória de I srael no A ntigo T estamento

como hebreus. Em contrapartida, essa atitude levou os hebreus a se utili­


zarem de um outro termo com o qual se identificariam, que se tornaria
comum pelo menos em tempos posteriores, ou seja, passariam a se cha­
mar "israelitas".
Algumas atitudes características de Abrão e sua mulher em Gênesis
15 e 16 requerem um pouco mais de nossa atenção, em relação a alguns
hábitos e leis do antigo Oriente Médio, especialmente algumas práticas
hurianas que estão registradas nas tabuinhas de Nuzi. Esses documen­
tos, que foram escavados e publicados há mais de cinqüenta anos, con­
sistem primariamente de registros de importantes famílias hurianas que
viveram por volta de 1500 a .C , tendo habitado em Nuzi (a moderna
Yorghan Tepe), aproximadamente oitenta quilômetros a sudoeste de
Assur, na Assíria.46 Os documentos se referem a assuntos tais como he­
rança familiar e direitos de propriedade, escravidão, adoção e coisas se­
melhantes. Já foi notado por estudiosos mais antigos que os documentos
de Nuzi tratam acerca de assuntos sociais e familiares como reminiscên­
cias das histórias patriarcais. Eles foram então utilizados para explicar
alguns costumes bíblicos que até o momento não tinham praticamente
nenhuma significação para nós.
Um dos problemas em que a evidência dos documentos de Nuzi foi
aplicada diz respeito à objeção feita por Abrão, que considerava a promes­
sa divina de uma inumerável multidão impossível, já que ele não possuía
herdeiro algum, exceto Eliezer de Damasco, a quem ele descreveu como
sendo "um servo nascido em minha casa" (Gn 15.3). O que está afirmado
aqui é que Eliezer era um filho adotivo, algo também confirmado por Jeová,
que assegurou não ser Eliezer o herdeiro de Abrão, mas "aquele que será
gerado de ti, será o teu herdeiro" (v. 4).
As tabuinhas de Nuzi parecem se referir a essa mesma situação: um
escravo poderia se tornar o herdeiro de um casal que não tivesse filhos
caso fosse por eles adotado. Outro caso interessante refere-se à esterilida­
de de Sara e às providências que ela mesma tomou para garantir sua des­
cendência mesmo em face dessas circunstâncias (Gn 16.1-6). Ela simples­
mente ofereceu sua escrava particular chamada Hagar para Abrão como
uma espécie de mãe de aluguel, mas o filho dessa união, Ismael, seria
considerado como o filho de Abrão e Sara. Esse costume também é encon-

46 Para informações que descrevem como foram as escavações e publicação dos textos, ver
em Ephraim A. Speiser, New Kírkbuk Documents Relating to Family Laws, AASOR10 (1928­
1929): 1-73.
O rigens 29

trado nos documentos de Nuzi, que descrevem a mesma estratégia em


situações semelhantes.47
Estudiosos mais modernos têm chamado a atenção para a facilidade
com que o conteúdo de Nuzi tem sido usado para iluminar detalhes sobre
os costum es da época p atriarcal, chegando m esm o a "p ro v ar" a
historicidade desse período.48 Os patriarcas têm sido classificados pela
cronologia bíblica tradicional anteriores aos textos de Nuzi em aproxima­
damente quatrocentos ou quinhentos anos. Esse problema foi tão sério
que levou estudiosos tais como Cyrus Gordon a regredir a era patriarcal
para a Era do Bronze Superior (aprox. 1550-1200), de forma que os docu­
mentos de Nuzi pudessem ser nela encaixados.49 Isso é a pior espécie de
subjetivismo. Aposição mais racional é assumir que as tabuinhas de Nuzi
refletem na realidade costumes que não tiveram início nesta época, mas
que já vinham sendo praticados por séculos. De fato, muitos costumes
semelhantes aos vistos nos documentos de Nuzi foram comprovados em
muitos sítios arqueológicos, os mais antigos, e ainda continuam sendo de
utilidade indispensável na compreensão do estilo de vida patriarcal.50 De
qualquer forma, não existe nada nos dois incidentes mencionados que
necessitem de uma data posterior ao que tem sido requerido pela perspec­
tiva bíblica, nem devemos imaginar que esses incidentes aparecem como
relatos isolados, sem qualquer analogia contemporânea.

A destruição de Sodoma e Gomorra


A história das cidades das planícies não termina com o final dramático
do resgate efetuado por Abrão e seus companheiros. Algum tempo depois

47 Para esse e outros paralelos, ver em Cyrus H. Gordon, "Biblical Customs and the Nuzi
Tablets," BA 3 (1940): 1-12; Speiser, Genesis, esp. pp. Xl-xliii; Samuel Greengus, "Sisterhood
Adoption at Nuzi and the 'Wife-Sister' in Genesis," HUCA 46 (1975): 5-31.
48 Thomas L. Thompson, The Historicity of the Patriarchal Narratives (Berlin: de Gruyter,
1974); John Van Seters, Abraham in History and Tradition (New Haven: Yale University
Press, 1975); Thomas L. Thompson, "The Background of the Patriarchs: A Reply to
William Dever and Malcolm Clark,"/SOT 9 (1978): 2-43.
49 Cyrus H. Gordon, "Hebrew Origins in the Light of Recent Discovery/'em Biblical and
Other Studies, editado por Alexander Altmann (Cambridge: Harvard University Press,
1963), pp. 5-6.
57 Ver em M.J. Selman, "Comparative Customs and the Patriarchal Age," em Essays on the
Patriarchal Narratives, editado por A.R. Millard e D.J. Wiseman (Winona Lake, Ind.:
Eisenbrauns, 1983), pp. 91-139; Tikva Frymer-Kensky, "Patriarchal Family Relationships
and Near Eastern Law,"BA 44 (1981): 209-14.
30 H istória de I srael no A ntigo T estamento

desse incidente, o Senhor aparece a Abrão (agora Abraão - Gn 17.5)51 e lhe


anuncia sua decisão de destruir as cidades por causa de sua renitente ini-
qüidade. Embora Abraão tenha intercedido em seu favor, ele não tinha
condições de reter a ira de Deus; com exceção de Ló e suas duas filhas,
todas as cinco cidades e seus habitantes pereceriam. Em decorrência do
juízo divino, algum tipo de erupção vulcânica ou explosão petrolífera lan­
çou para os céus uma grande quantidade de material magmático que cho­
veu em seguida sobre a terra.52
Visto que a narrativa está posta entre a promessa feita a Abraão e Sara
de que eles teriam um filho dentro de um ano (Gn 18.14) e o nascimento
de Isaque (Gn 21.2), um fato que ocorreu em 2066 a.C.,53 concluímos que
o julgamento e destruição dessas cidades só pode ter ocorrido por volta
de 2067 a.C. Já mencionamos anteriormente que as inscrições em Ebla
com certeza mencionam pelo menos as cidades de Sodoma e Gomorra.
Uma vez que tais documentos não podem ser mais antigos que 2500 a.C.,
não é difícil deduzir que estas cidades não puderam ser destruídas antes
dessa data. Por outro lado, escavações arqueológicas recentes têm de­
monstrado em Bab edh-Dhra' e noutros locais na península de el-Lisan e
suas imediações, na extremidade a sudeste do mar Morto, a existência
de restos de entulhos de antigos complexos urbanos aparentemente an­
teriores a 2000 a.C.54
Não há como não ser tentado a acreditar que algum desses locais - ou
todos eles - compõe as cidades bíblicas da planície, já que tanto sua loca­
lização quanto as datas são compatíveis com o testemunho do Antigo Tes­
tamento. Sabemos que não há como ser dogmático nessa matéria por falta
de confirmação literária extrabíblica acerca dessas cidades; mesmo assim,
fica claro que as histórias patriarcais ganham maior corroboração do que
jamais tiveram anteriormente.55

51 Abrão = "pai exaltado" e Abraão = "pai de multidões". Para saber sobre a proveniência
e significação teológicas desses nomes, ver em D. J. Wiseman, "Abraham Reassessed,"
em Essays on the Patriarchal Narratives, pp. 158-60.
52 Os escavadores da região atribuem a destruição dos sítios urbanos a um terremoto. Ver
em Michael D. Coogan, "Numeira 1981," BASOR 255 (1984): 81.
53 Para uma linha de argumento que apoia essas datas, ver Eugene H. Merrill, "Fixed
Dates in Patriarchal Chronology," Bib Sac 137 (1980): 242-43.
54 Rast e Schaub, "Bab adh-Dhra' 1975," AASOR 43 (1978): 2; van Hatten, "Sodom and
Gomorrah," BA 44 (1981): 89.
55 Albright, "Jordan Valley," AASOR 6 (1926): 62, chega mesmo a dizer que "É muito difí­
cil separar o abandono de Bab ed-Dra' da destruição das Cidades da Planície."
O rigens 31

Abraão e os filisteus

Pouco depois da destruição das cidades da planície, Abraão viajou para


o sul e oeste de Manre até uma região entre Cades-Barnéia e Sur, em al­
gum ponto bem ao norte da península do Sinai. Lá ele habitou por algum
tempo com um homem chamado Abimeleque, rei de Gerar. Nesse local,
Abraão disse à sua esposa que fingisse ser sua irmã, uma tática que ele já
tinha empregado anteriormente no Egito. Esse subterfúgio tem levado al­
guns estudiosos a acreditar que estamos diante de um relato duplicado do
mesmo acontecim ento.56 Da mesma forma, a mentira de Isaque para
Abimeleque acerca de sua mulher Rebeca, chamando-a de sua irmã, tem
sido colocado como uma duplicata da história de Abraão com Abimeleque,
ou talvez uma tríade com o relato de Abraão e Faraó.57 Mas, além dos três
relatos divergirem em detalhes e terem em comum apenas a mentira a
respeito da esposa, não existe razão por que Abraão não poderia repetir o
mesmo recurso que havia funcionado razoavelmente bem antes, e sem
dúvida Isaque deve ter aprendido esse truque com seu pai.58
De maior importância histórica e também maior dificuldade é a identi­
ficação de Abimeleque como sendo um filisteu (Gn 21.32,34; ver 26.1).
Geralmente, admite-se que essa identificação é anacrônica na melhor das
hipóteses, já que os filisteus, como parte da migração feita pelos povos do
mar, não entraram e possuíram a parte da costa inferior de Canaã até 1200
a.C. ou depois dessa data.59 Além disso, o nome Abimeleque é semítico e
não filisteu.60
O segundo desses dois problemas será tratado em primeiro lugar. O
nome Abimeleque significa "meu pai é o rei" e poderia, na verdade, ser
mais um título do que necessariamente um nome próprio.61 O fato de que
Isaque tratou com um rei filisteu do mesmo nome muitos anos depois
poderia até dar suporte a tal proposta. Muitos anos depois, Josué derro­

56 John Skinner, A Criticai and Exegetical Commentary on Genesis (New York: Scribner, 1910)
p. 315.
57 Ibid., pp. 364-65.
58 Gleason L. Archer, Jr., A Survey ofOld Testament Introduction (Chicago: Moody, 1964), pp.
120- 21 .
89 Van Seters, Abraham, p. 52.
Roland de Vaux, The Early History of Israel, traduzido por David Smith (Philadelphia:
Westminster, 1978), pp. 503-4.
Kitchen, Ancient Orient, p. 81; idem, "The Philistines," em Peoples ofOld Testament Times,
editado por D.J. Wiseman, pp. 56-57; D.J. Wiseman, "Abraham in History and Tradition.
II: Abraham the Prince," Bib Sac 134 (1977): 232-33.
32 H istória de I srael no A ntigo T estamento

tou a jabim, de Hazor, um rei cananeu; e muitos anos depois disso Débora
e Baraque subjugaram um rei de Hazor também conhecido por Jabim.
Embora aqui tenhamos um nome próprio, podemos ver que esses são exem­
plos que nos mostram que diferentes reis ou governantes de um mesmo
local podem ter nomes semelhantes.
Mais relevante talvez seja o uso de títulos como Faraó ou Czar, usados
de maneira que se tornaram praticamente nomes próprios em vez de pu­
ramente títulos. Sendo assim, não há como alguém determinar o caráter
étnico do nome de Abimeleque, ou seja, se ele, mesmo sendo filisteu, pôde
ter se utilizado de um título semítico ou se, por ter assimilado profunda­
mente a cultura semítica, adotou para si um nome semítico.
O problema da presença de filisteus em Canaã quase um milênio antes
da chegada dos povos do mar é mais complicado, embora não insolúvel.
Uma série de textos oriundos de Mari, Ras Shamra e de outras partes,
refere-se aos povos de Caftara, cujo local de origem pode ter sido a ilha de
Creta ou um outro local em alguma região do mundo Egeu.62 E a Bíblia
associa os primitivos filisteus aos caftorim, cujo lar era em Caftor ou Creta
(Dt 2.23; Jr 47.4; Am 9.7; ver Gn 10.14). Os caftara ou caftorim eram clara­
mente o mesmo povo, e suas extensas viagens, conforme está registrado
em documentos extrabíblicos, poderiam bem explicar sua existência em
Canaã durante a era do Bronze Médio.63
A chegada dos povos do mar tempos depois teria apenas aumentado o
número dos filisteus presentes na região. Essa hipótese, além de dar base à
historicidade dos encontros dos patriarcas com os primitivos filisteus, tam­
bém explicaria a decisão de Israel quanto a não seguir o caminho do mar em
direção reta do Egito para Canaã, "embora fosse mais curto" (Ex 13.17), pois
isto significaria destruição certa por parte dos filisteus. Uma das mais fortes
evidências em favor de uma data mais recente para o êxodo (aprox. 1250) e
uma outra correspondente para a conquista da terra (após 1200) é justa­
mente a referência aos filisteus. Porém, se os filisteus já estavam habitando
na terra desde os tempos patriarcais, então deduz-se que a data tradicional
para o êxodo (1446) pode muito bem ser mantida em vigor.
Seguindo a data de 2066 para o nascimento de Isaque, Abraão e
Abimeleque viram-se às voltas com problemas relativos aos pastos e di­

62 de Vaux, Early History, p. 504.


63 Caso um texto assírio posterior, que trata sobre o império de Sargão de Acade, possa de
fato ser confiável, então as referências a Caftara podem mesmo estender-se para bem
antes de seu tempo (ca. 2350 a.C.). Ver em Gadd, "Dynasti of Agade", em CAH 1.2, pp.
429-30.
O rigens 33

reitos à água potável; daí concluíram que deveriam entrar num acordo
pelo qual passariam a respeitar os limites e poços. Um contrato de igual
teor foi feito entre Isaque e um outro Abimeleque (Gn 26.26-33). Em ambas
as situações, o local do tratado foi em Berseba, que deriva seu nome ("poço
do juramento") do pacto que ali outrora foi realizado.
As evidências arqueológicas nos dizem que Berseba não fora encontra­
da até bem depois do período Médio Bronze, sendo bem provável que
Abraão e sua família não tivessem ocupado a área de forma permanente,
mas apenas como um local para peregrinação religiosa ou como uma es­
pécie de acampamento para as migrações sazonais.64 De fato, não há nada
nas narrativas bíblicas que explicitamente relacionem Berseba com um
centro urbano até a época da conquista (Gn 21.14,31-33; 22.19; 26.23,33;
28.10; 46.1; cf. Js 15.28). Este local foi uma importante estalagem para os
patriarcas, mas não era desenvolvido a ponto de produzir restos que pu­
dessem ser arqueologicamente reconhecíveis.

A busca de uma esposa para Isaque


Sara morreu em Hebrom em 2029 a.C. (Gn 23.1,2; cf. 17.17). Dentro de
um espaço de três anos após seu sepultamento numa capela adquirida de
Efrom, o hitita, Abraão tomou providências para obter uma esposa para
seu filho Isaque, que na ocasião já estava beirando os quarenta anos (ver
Gn 25.20). Ansioso para que seu filho se casasse com alguém que fosse
membro de seu clã, Abraão enviou seu servo de volta até Arã-Naharaim
(alta Mesopotâmia - Gn 24.10), de onde o próprio Abraão tinha vindo em
direção a Canaã.65 Seu irmão, Naor, já tinha muitos filhos, incluindo
"Quemuel (o pai de Arã)" (Gn 22.21) e Betuel, o pai de Rebeca e Labão (Gn
22.23; 24.29). Portanto, o Antigo Testamento indica que tanto os arameus
quanto os israelitas podem ser remontados genealogicamente a Terá, pai
de Abraão.66 (Embora em Gn 10.22 Aram seja descrito como um filho de
Sem, sabemos que isso é verdade apenas no sentido de ser descendente.)
O servo de Abraão viajou até a cidade de Naor (Gn 24.10). Esta prova­
velmente é apenas uma forma de identificar a residência de Naor, irmão
de Abraão, embora houvesse uma cidade chamada por aquele nome, con­
forme nos indica as referências acadianas a Nahur(u). Visto que tais refe-

Yohanan Aharoni, "Excavations at Tel Beer-Sheba," BA 35 (1972): 111-27; "Excavations


at Tel Beer-Sheba," Tel Avivi 2 (1975): 146-68.
“'.Terry J. Prewitt, "Kinship Structures and the Genesis Genealogies," JNES 40 (1981): 92.
"■ Para uma defesa dessa tradição, ver em Merril E Unger, Israel and the Aramaeans of
Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980 reprint), pp.8-10.
34 H istória de I srael no A ntigo Testamento

rências fazem parte de uma época bem posterior à vida de Naor, deduz-se
que tal cidade provavelmente não foi aquela visitada pelo servo de
Abraão.67 De qualquer maneira, Betuel e Labão concordaram que a moça
Rebeca fosse entregue para Isaque, de forma que, após serem acertadas as
obrigações costumeiras da época, ela voltou com o servo de Isaque para
sua casa no Negueve cananeu.
Abraão casa-se novamente e, através de sua esposa Quetura, torna-se o
ancestral dos clãs de Joscan, Midiã e Dedã (Gn 25.2-4; 1 Cr 1.32,33). Os
midianitas participariam de forma especial na história subseqüente do povo
de Israel. Da mesma forma que os demais povos, eles também assumiram
um estilo de vida nômade e, por fim, alcançaram toda a vasta península
sírio-árabe. Abraão morreu na idade de 175 anos (1991 a.C.), deixando
seus dois principais filhos, Isaque e Ismael, como seus herdeiros. A des­
cendência de Ismael se estabeleceu nos desertos a leste e ao sul de Edom e,
seguindo os mesmos passos de Israel, desenvolveu-se numa federação de
doze tribos. O relacionamento deles com os midianitas é incerto, embora
os termos ismaelitas e midianitas pareçam por muitas vezes intercambiáveis
(Gn 37.25,27-28,36).

Jacó: pai de muitas nações

A bênção e o exílio
Isaque, é claro, era o filho da aliança de Abraão, aquele através do
qual Deus mediou as promessas redentoras concernentes à nação e à
terra (Gn 12.1-3; 15; 17.1-14; 25.21-24). Embora Isaque tivesse quarenta
anos quando se casou, seus filhos gêmeos nascidos de Rebeca somente
vieram ao mundo vinte anos após seu enlace, em cumprimento da pro­
messa (Gn 25.20,26). Abraão estava então com 160 anos, e dentro de quin­
ze anos seus olhos já não mais poderiam contemplar a fidelidade de
Deus.68 Esaú, o herdeiro aguardado da aliança, perdeu seu direito de
primogenitura e os demais privilégios da aliança, e assim teve de se con­
formar em tornar-se o pai das tribos edomitas. Embora Jacó tenha se

67 William F. Albright, From the Stone Age to Christianity (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1957), pp. 236-37. Nahur(u) não parece ser confirmado antes de 1750 a.C., ao passo que
Naor, irmão de Abraão, teria se estabelecido em sua cidade por volta de 2100 ou algo
semelhante. E claro que é possível que o nome da cidade por fim tenha refletido o de
seu fundador.
68 Acerca de informações relativas a essas estimativas, ver Merrill, "Fixed Dates," Bib Sac
137 (1980): 243-44.
O rigens 35

utilizado da manipulação pessoal e do auxílio de sua mãe, ainda pôde


experimentar em sua vida o favor do Senhor de se tornar o pai da nação
escolhida.
O resultado das maquinações de Jacó foi o afastamento de seu irmão
Esaú e a fuga para Padã-Arã69 (noroeste da Mesopotâmia), ambos para
escapar de seu irmão e conseguir uma esposa dentre sua própria parente­
la. Nessa ocasião, Jacó já estava com 76 anos de idade (cerca de 1930 a.C.),
e tudo indicava que permaneceria sem descendentes.70 No caminho em
direção à família de sua mãe, ele foi reanimado e encorajado pelo encon­
tro com o Senhor em Betei, um local conhecido anteriormente como Luz,
mas que agora ganhava um novo nome, pois Jacó considerou aquele local
como a "casa de Deus". Foi lá que Deus renovou a aliança anteriormente
feita com Abraão e Isaque (Gn 28.13-15).
Finalmente Jacó chegou à casa de Labão. Após muita discussão, ficou
decidido que ele se casaria com Raquel, mas somente depois de servir a
Labão, pai da moça, por um período de sete anos. Pode ser que esse tipo
de serviço envolvesse aquilo que conhecemos ser comum nos contratos
coligidos para criadores de gado da antiga Babilônia, através do qual es­
ses criadores se tornavam empregados por um determinado espaço de
tempo, com vistas a receber em troca uma parte dos lucros. Não seria difí­
cil para um astuto criador de gado usar esse tipo de contrato para tomar
proveito ao máximo das propriedades do seu senhor. Ao que tudo indica,
foi essa a exata situação entre Labão e Jacó, pois na continuação da narra­
tiva vemos que os filhos de Labão já olhavam Jacó como uma ameaça aos
seus direitos como herdeiros.71 O fato de Raquel ter roubado os ídolos
domésticos pode ser visto como uma amável e zelosa esposa tentando

69 O termo deriva do acadiano paddanu ("estrada") + Aram, ou seja, "a estrada de Aram".
Visto que este local é identificado com o Arã-ATaharaim ("Aram dos dois rios") em Gênesis
24.10 (cf. 28.2) e, mais tarde, com o Aram em 27.43 e 28.10, pode até ser que o nome
signifique nada mais que Aram. E interessante observar que o termo acadiano harrãnu
também significa "estrada". Ver em CAD,H, pp. 107-13.
70 Essa estimativa é deduzida dos fatos que tomam por base que o nascimento de José
ocorreu 14 anos após a chegada de Jacó em Padã-Arã e que, quando Jacó desceu ao
Egito, ele tinha cerca de 130 anos e seu filho José apenas 40.
71 O ponto de vista que propõe a teoria que o acordo feito entre Jacó e Labão é puro reflexo
de práticas hurrianas de pseudo-adoções é corretamente rejeitada pela maioria dos es­
tudiosos hoje em dia. Os paralelos percebidos com os contratos firmados com criadores
de gado da antiga Babilônia já foram claramente demonstrados. Ver, por exemplo, Martha
A. Morrison, "The Jacob and Laban Narrative in Light of Near Eastern Sources," BA 46
(1983): 156-60.
36 H istória d e I srael no A ntigo T estamento

possuir, para si mesma e para seu marido, o direito legal à sua parte na
propriedade de seu pai (Gn 31.19).72
Seja como for, o fato é que infelizmente Jacó descobriu que Labão era
muito mais astuto do que ele. Após sete longos e penosos anos de traba­
lho, ele recebeu como esposa a filha mais velha Léia, e não Raquel. Para
que ele pudesse ter esta última como esposa, teria de se comprometer a
trabalhar para Labão por mais sete anos. Ao final dos catorze anos, Labão
insistiu com Jacó que este permanecesse por mais seis anos, perfazendo
um total de 20 anos (aprox. 1930-1910 a.C.), pois era bem evidente que a
presença de Jacó trazia benefícios econômicos para Labão.
No decorrer desses anos, Jacó teve onze filhos e pelo menos uma filha
de suas duas mulheres e de suas duas concubinas. Esses filhos, juntamen­
te com Benjamim, que nasceu em Canaã, foram os ancestrais das doze
tribos de Israel. Segundo a maioria dos críticos (incrédulos) da tradição, a
história de Jacó e seus filhos foi uma lenda que servia apenas para firmar
uma origem comum e um conjunto de tradições para as doze tribos que
perfaziam o contingente e a confederação daqueles que haviam conquis­
tado a terra, conhecidos agora por Israel.73 Contudo, uma leitura respon­
sável da narrativa não ocasiona problemas históricos insuperáveis. Há
milagres descritos na história que nos mostram a intervenção do Senhor
em favor de Jacó e suas esposas. A integridade do relato só poderá ser
rejeitada mediante uma leitura da história com olhos positivistas. Ora, se
Deus tem de estar ausente dessa história, então não há como ver sua mão
em outra parte, e o Antigo Testamento se torna uma mera obra de ficção,
não importando o quão piedoso seja o seu intento.
O nascimento de onze filhos em apenas sete anos já não mais é visto
como um problema tão sério, como antes costumava se considerar. Os
quatro primeiros, nascidos de Léia, podem ter vindo nos primeiros quatro
anos (Gn 29.31-35). Nesse ínterim, Raquel, movida de intensa inveja para
com sua irmã, instou veementemente com Jacó para que possuísse sua
serva Bila, semelhante ao que Sara havia feito anteriormente com Abraão
para obter o filho Ismael da escrava Hagar. Os dois primeiros filhos de
Bila, Dã e Naftali, podem ter nascido também nos primeiros quatro anos
(Gn 30.1-8).
Após o nascimento dos dois filhos de Bila, Léia, crendo que já não mais
poderia ter filhos, insiste com Jacó para que possua sua serva Zilpa em

72 Ibid., pp. 161-62.


73 Martin Noth, The History of Israel, 2a edição (New York: Harper and Row, 1960), pp. 121­
27.
O rigens 37

seu lugar. Zilpa tem dois filhos no quinto e sexto ano (Gn 30.9-13). Léia
mais uma vez engravida, provavelmente no quinto ano, e dá à luz dois
filhos chamados Issacar e Zebulom, no sexto e sétimo ano (Gn 30.17-20). ■
Por fim, Raquel tem seu próprio filho, chamado José, no sétimo ano (Gn
30.22-24). Mesmo sendo todo esse cálculo hipotético, não é impossível que
as coisas tenham acontecido assim, o que nos mostra inclusive como os
problemas bíblicos podem ser resolvidos, desde que tenhamos a mente
aberta para as soluções.

A volta para Canaã


Depois de vinte anos vivendo em Padã-Arã, Jacó voltou para Canaã.
Durante o regresso, fez acordo de paz com seu sogro Labão (Gn 31.43-55)
e com seu irmão Esaú (Gn 33.1-17); finalmente, chegou a Siquém. Muitos
estudiosos concordam que Siquém foi fundada nessa mesma época (1910
a.C.),74 mas é duvidoso que esta cidade tenha ganho este nome ainda nos
dias de Jacó. Sem dúvida, o seu nome foi dado em homenagem ao filho de
Hamor (Gn 33.19), o maioral do clã que vivia naquela região, mas esse
nome, com certeza, não poderia ter sido dado enquanto Siquém vivia. Além
disso, é possível que a frase "E chegou Jacó salvo à cidade de Siquém..."
(v. 18)75 deva ser entendida como "Jacó chegou a Salém, ou seja, à cidade
de Siquém", significando que nos dias de Jacó a cidade chamava-se Salém,
mas que em dias posteriores, em homenagem ao jovem personagem da
história bíblica, teve seu nome mudado para Siquém.
Em Siquém Jacó comprou uma propriedade onde decidiu cavar um
poço, estabelecendo-se ali por vários anos. A princípio, tudo ia muito
bem entre Hamor e Jacó, mas um dia Siquém, filho de Hamor, agarrou
Diná, filha de Jacó, e a violou. Levi e Simeão vingaram a humilhação de

74 Esta aparece nos textos de execração egípcios como Skmimi por volta de 1850 a.C. Ver
em Walter Harrelson, "Sechem in Extra-biblical References", BA 20 (1957): 2. O historia­
dor Dever argumenta que a ocupação de Siquém ocorreu no início do período do Bron­
ze Médio II A, que data de 2000-1800. Uma data a meio caminho em 1900 se encaixa
bem com a cronologia bíblica ("The Patriarchal Traditions," em Israelite and Judaean
History, p. 99; cf. pág 84).
75 Isso também já foi sugerido pela Septuaginta, pelas versões siríacas, Eusébio e Jerônimo.
Citado por Franz Delitzch, A New Commentary on Genesis (Minneapolis: Klock and Klock,
1978 reedição), vol. 2,p p. 215. O hebraico salém no texto massorético pode ser um adje­
tivo significando "seguro" (Francis Brown, S.R. Driver e Charles A. Briggs, A Hebrew
and English Lexicon o f the Old Testament [Oxford: Clarendom, 1962], p. 1024), mas a forma
natural de se traduzir essa idéia seria besalom.
38 H istória de I srael no A ntigo T estamento

sua irmã, ferindo todos os homens da cidade, matando-os, inclusive o


próprio Hamor e Siquém. Temendo a má repercussão do acontecimento
entre os vizinhos cananeus, Jacó decidiu deixar a região e viajou em di­
reção ao sul até Betei. Lá ele experimentou a presença de Jeová numa
teofania e, por mais uma vez, ouviu as promessas de Jeová a respeito da
terra e de sua descendência. Novamente Jacó chamou aquele lugar de
Betei, a casa de Deus, pois ali ele tinha visto a presença de Deus de uma
maneira grandiosa.
Enquanto Jacó e sua família avançavam ainda mais para o sul, em
direção a Efrata (ou Belém), Raquel morreu ao conceber seu segundo
filho, Benjamim. Após erigir um memorial de pedras sobre sua sepul­
tura, Jacó se deslocou até Hebrom, terra natal de seu pai. Isaque ainda
era vivo, e morreria quinze anos mais tarde, numa boa velhice de 180
anos. Durante um ou dois anos nesse lugar, Jacó ordenou a seus filhos
que voltassem a Siquém em busca das pastagens sazonais para seus
rebanhos. Procurando saber melhores informações acerca de seus fi­
lhos, das pastagens e dos rebanhos, Jacó enviou José, seu filho predile­
to, para obter essas informações. Não os achando em Siquém, José in­
dagou dos habitantes locais o paradeiro de seus irmãos e descobriu
que eles haviam partido em direção a Dotã, que ficava cerca de 24 qui­
lômetros a noroeste de Siquém. Vendo-o se aproximar, os irmãos de
José, a princípio, cogitaram matá-lo, mas depois decidiram vendê-lo a
uma caravana de ismaelitas que estava a caminho do Egito. E assim
José se viu como escravo no Egito ainda em sua tenra mocidade - aos
17 anos (em 1899 a.C.).

O casamento de Judá
O quarto filho de Léia, chamado Judá, casou-se com uma cananéia
que lhe deu três filhos. Essa união com pessoas que não pertenciam ao
clã, especialmente com uma cananéia, era vista muito negativamente
pelos patriarcas e considerada repreensível, pois vemos nos relatos que
tanto Abraão quanto Isaque foram bem esforçados na tarefa de assegu­
rar que seus filhos se casassem com mulheres da mesma parentela (Gn
24.3; 27.46). Vemos esse mesmo princípio quando Diná, mesmo tendo
sido violada por Siquém, foi radicalmente proibida por Jacó e seus ir­
mãos de se casar com ele (Gn 34.14). Havia uma tendência em andamen­
to que conduziria os filhos de Jacó a uma assimilação da cultura e reli­
gião cananéias, um processo que seria consideravelmente acelerado pela
união matrimonial. Tudo isso deve ter alarmado o espírito de Jacó, parti­
cularmente porque um pouco do estilo de vida cananeu já tinha se apo­
Ú ?: ge \s 39

derado de seu filho mais velho, Rúben, que violou um dos mais severos
tabus patriarcais - o incesto - coabitando com Bila, a concubina de seu
pai (Gn 35.22).76
Mas a preocupação de Jacó nem podia se comparar à de Jeová, que
tinha chamado o patriarca e seus pais para serem um povo separado de
todas as demais nações. Essa exclusividade de Israel agora estava sendo
ameaçada pelas tendências sincretistas em voga, através do casamento de
Judá. Fica claro, então, que José não foi enviado ao Egito por causa de
alguma punição, mas primordialmente para ser o canal da bênção da pro­
vidência divina, pois Jeová o estaria usando a fim de preparar o caminho
para um período de incubação, no qual o povo de Israel iria crescer e ama­
durecer no Egito, tornando-se então uma nação apropriada (Gn 50.19-21).
Logo, a venda de José como escravo poderia ser vista como uma reação
divina ao casamento de Judá.77

A descida ao Egito
A essa altura torna-se oportuno discutir um pouco acerca da cronolo­
gia referente à venda de José como escravo, o casamento de Judá, e a des­
cida de Jacó e sua família ao Egito, examinando os detalhes na ótica da
história egípcia, cuja parte principal pode pelo menos ser reconstruída de
forma razoavelmente correta. Baseando-nos na data de 1876 a.C. como o
início da peregrinação no Egito, deduzimos que o nascimento de José ocor­
reu em 1916 a.C.78 José foi vendido aos egípcios quando tinha 17 anos (Gn
37.2), chegando ao Egito em 1899 a.C. Judá, o quarto filho de Léia, que não
poderia ser muito mais velho que José, no máximo três anos (veja as pp.
36,37), não deve ter se casado muito antes de 1900, quando estaria com 19
anos. Caso esse casamento tenha de fato causado o ímpeto de Jeová em
permitir que José fosse vendido ao Egito, como parece bem plausível, en­
tão esse casamento pode ser datado por volta de 1901 ou 1900, ou seja,
pouco depois de Jacó e sua família terem se mudado de Siquém para
Hebrom.

' Stanley Gevirtz diz que Rúben usurpou os direitos de concubinato do pai ("The
Reprimand of Reuben", JNES 30 [1971]: 98). A atitude de Rúben foi típica do estilo de
vida dos cananeus, e especialmente do estilo de vida dos supostos deuses da região. Ver
em Charles F. Pfeiffer, Ras Shamra and the Bible (Grand Rapids: Baker, 1962); pp. 31-32.
- Para outras razões sobre a localização desse capítulo 38 de Gênesis, ver Judah Goldin,
"The Youngest Son or Where Does Genesis 38 Belong?" JBL 96 (1977): 27-44.
' Para uma discussão mais detalhada sobre essas datas e o devido apoio a elas, veja em
Merrill, "Fixed Dates", Bib Sac 137 (1980): 241-51.
40 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Em 1876, quando Jacó estava com 130 anos de idade (Gn 47.9), José já
vivia no Egito há 23 anos. Ele havia trabalhado cerca de dez anos na casa
de Potifar e depois, provavelmente por mais três anos, sofreu na prisão
de Faraó, vítima de acusações forjadas acerca de um possível assédio à
esposa de seu senhor (Gn 40.1,4; 41.1). Por fim, aos 30 anos (1886 a.C.),
ele foi libertado e passou a servir como o Ministro da Agricultura de
Faraó ou alguma coisa semelhante (Gn 41.46). Foi nessa época que os
sete anos de fartura principiaram (1886-1879), seguidos por tristes sete
anos de fome (1879-1872). A primeira visita dos filhos de Jacó ao Egito
para comprar grãos pode ter ocorrido no segundo ano da fome (1878). A
segunda visita deve ter acontecido em 1877 (Gn 43.1; 45.6,11). Partiu Jacó
e toda a sua família para o Egito em 1876, bem na metade do período da
fome (Gn 46.6). José estava então com 40 anos de idade, e seu irmão
Judá, com 43.
Entre os que acompanharam Jacó ao Egito estavam Perez e Zerá, os
filhos de Judá, frutos de sua união ilícita com a nora Tamar, e também
seus netos Hezrom e Elamul (Gn 46.12). Os gêmeos Perez e Zerá nasce­
ram somente depois que o terceiro filho de Judá, chamado Selá, já estava
completamente crescido (Gn 38.14). Devido à tenra idade na qual os va­
rões se casavam no antigo Israel, é totalmente possível que Judá tenha se
casado aos dezoito anos, que seus dois primeiros filhos tenham nascido
nos dois primeiros anos de seu casamento, e que Selá tenha vindo ao
mundo dois ou três anos mais tarde. Isto fixaria o casamento de Judá em
1901, o nascimento de Er em 1900, e o de Onã em 1899. Talvez Selá tenha
nascido não muito depois de 1896. Ao perceber que não poderia ter Selá
como seu marido, Tamar se disfarçou de prostituta e engravidou, em
uma data que não passa de 1880 (ou provavelmente mais tarde), e deu à
luz Perez e Zerá nove meses depois. Mesmo espremendo as datas, ve­
mos que é impossível que Perez pudesse ter levado consigo descenden­
tes ao Egito em 1876, ou seja, dois ou três anos depois. Talvez a intenção
da lista de Gênesis 46 seja simplesmente catalogar aqueles que entraram
no Egito, inclusive aqueles como Hezron e Hamul que assim o fizeram
potencialm ente.79 A inclusão do nome dos filhos de José, Manassés e
Efraim, na lista das 70 pessoas que entraram no Egito, mesmo tendo eles
nascido nesse país, nos mostra que essa lista não deve ser encarada lite­
ralmente ao extremo.

79 Delitzsch, Genesis, vol. 2, p. 340.


Op.'GEXS 41

A história de José

O cenário
A história de José tem sido interpretada como uma composição de sa­
bedoria com pouca ou nenhuma base histórica.80 Entretanto, o Antigo Tes­
tamento apresenta sua carreira e os eventos que cercaram sua vida como
história genuína. Podemos notar, entre aqueles que aceitam a historicidade
das narrativas acerca de José, a existência de uma divisão profunda a res­
peito dos detalhes e do ambiente nela contidos. Alguns, baseados na teo­
ria de uma peregrinação no Egito de no máximo 215 anos, insistem que
José serviu na corte dos reis hicsos que estavam no poder no período de
aproximadamente 1661 a 1570.81 Os proponentes desse ponto de vista apon­
tam para o fato de que era muito mais provável que um rei hicso (em vez
de um egípcio nativo) estabelecesse em seu governo um homem de ori­
gem semita, como foi o caso de José. Contra tal possibilidade precisamos
levar em conta o fato de que não há qualquer chance de se provar uma
peregrinação de 215 anos (ver pp. 69-73). Além disso, toda a narrativa
sugere que o rei seja um governante egípcio, e não um hicso.
Segundo a cronologia adotada nesta obra, José nasceu no ano 1916,
entrou no Egito em 1899, subiu ao poder em 1886, e morreu em 1806 (Gn
50.22) na idade de 110 anos. Toda a duração de sua vida foi contemporâ­
nea à magnífica e deslumbrante 12a Dinastia do Médio Império Egípcio,
uma dinastia que teve seu início em 1991 e findou-se em 1786. Embora
saibamos que seja muitíssimo difícil a reconstrução da cronologia desse
período, é certo também que as datas citadas pelo Cambridge Ancient History
não podem estar muito distantes. Seguindo esse sistema de datação, apren­
demos que José foi vendido ao Egito já no final dos anos do reinado de
Ammenemes II (1929-1895).82 Seu reinado foi conhecido como um gover­
no pacífico, caracterizado pelo alto desenvolvimento da agricultura e da
situação econômica do país, e pelo incremento das relações internacionais
que o aproximaram do ocidente da Ásia. Nesse caso, José não seria mal
recebido nessa corte, por causa de seus ancestrais étnicos. Ao que tudo

' Gerhard von Rad, "The Joseph Narrative and Ancient Wisdom", em The Problem of the
Hexateuch and Other Essays (Edinburgh: Oliver and Boyd; New York: McGraw-Hill, 1966),
pp. 292-300.
' ■ G. Ernest Wright, Biblical Archaeology, edição abreviada (Philadelphia: Westminster, I960),
pp. 35-37; Pierre Montet, Egypt and the Bible (Philadelphia: Fortress, 1968), pp. 7-15.
Quanto à sua vida e época, ver em G. Posener, "The Middle Kingdom in Egypt," em
ZAH 1.2, pp. 502-4.
42 H istória de I srael no A ntigo T estamento

indica, foi durante o reinado de Sesostris II (1897-1878) que ele ficou apri­
sionado, cerca de dez anos após a sua chegada ao Egito (i.e., em 1889).
Foram os sonhos de Sesostris que ele interpretou e sob quem ele serviu
como um alto oficial do governo.

Tabela 3 XII Dinastia do Egito

Ammenem.es I 1991 - 1962


Sesostris I 1971 - 1928
Ammenemes II 1929 - 1895
Sesostris II 1897 - 1878
Sesostris III 1878 - 1843
Ammenemes III 1842 - 1797
Ammenemes IV 1798 - 1790
Sobkneferu 1789 - 1786

É bastante significativo que, durante o governo de Sesostris II, o nomarca


de Beni Hasan tenha recebido Abisha com alegria em sua cidade, um líder
tribal de origem semítica, um fato bastante comemorado e registrado nos
murais de Beni Hasan. Sesostris também importou e empregou um gran­
de número de escravos asiáticos e não pouco mercenários, uma política
que nos mostra que não havia qualquer espécie de anti-semitismo ou sen­
timento parecido.83 Mais marcante dentre todas as informações é que aque­
la foi uma época de grandes projetos do governo para o assentamento de
colonos e para controle das inundações. O detalhe principal de tudo isso
foi a construção de um canal cavado para ligar a bacia de Fayyum ao rio
Nilo, um canal cujas ruínas permanecem até hoje, e que foi chamado de
Bahr Yusef("Rio de José").84 Será que a sobrevivência desse nome não sig­
nifica um testemunho da contribuição que José deu ao rei Sesostris II nes­
ses seus projetos públicos? O texto bíblico nos diz que os sete anos de
fome preditos por José foram precedidos por sete anos de abundância nas
colheitas. Obviamente esse período teve seu início imediatamente após a
libertação de José da prisão, e continuou pelos sete anos seguintes (1886­
1879). Embora não possamos nos lançar em especulações devido à inexa­
tidão da cronologia egípcia, fica quase impossível não notar que, segundo

83 Ibid., pp. 541-42. Posener ainda observa: "A história bíblica de José faz-nos lembrar o
comércio escravagista" (p. 542). Ver também Posener, "Les Asiatiques en Egypte sous
les xii et xiii dynasties,"Sj/rw 34 (1975): 145-63.
84 Posener, "Middle Kingdom", em CAR 1.2, pp. 505, 510-11.
43

o sistema adotado pelo Cambridge Ancient History, o rei Sesostris II morreu


exatamente no final dos anos preditos de abundância e que seu sucessor,
Sesostris III (1878-1843) inaugurou seu reinado coincidentemente com o
período descrito de fome.
Sesostris III, uma das maiores figuras do Médio Império, deve ter sido
o rei que convidou Jacó e seus filhos a se estabelecerem no leste do Delta,
que era visto como o jardim do Egito antigo. Dentre seus problemas mais
antigos, temos as ameaças de rebelião feita pelos nomarcas locais, um fato
que pode ser explicado, talvez, devido ao desespero da população por
causa da fome, e à falta de confiança no governo central para providenciar
uma solução. Esses tumultos foram todos reprimidos, e Sesostris, talvez
com a ajuda de José, dividiu a terra em três partes ou "departamentos",
cada qual dirigida por um oficial conhecido como "relator". Os relatores,
por outro lado, estavam sob as ordens do vizir que, para todos os efeitos,
era um primeiro mimstnx85
Alguma coisa dessa política está refletida em Gênesis 47. Na época da
fome, José vendia os grãos que tinham sido armazenados durante os
anos de fartura. Muito tempo antes, ele já tinha acumulado todo o di­
nheiro da terra nos cofres públicos (vv. 14,15). Ele aceitou o gado como
pagamento pelos grãos, e quando não mais havia rebanhos para que o
pagamento fosse efetuado, tomou então as terras e seus habitantes, com
exceção das propriedades pertencentes aos sacerdotes (vv. 19-23). De­
pois, passou a dar aos agricultores a semente necessária para o plantio e
exigiu em troca 20 por cento da colheita para os cofres de Faraó, como
forma de imposto, e o restante eles podiam guardar para si. Dessa for­
ma, José possibilitou que o rei controlasse seu povo e suas terras de uma
maneira jamais vista antes. O resultado positivo dessa sábia administra­
ção foi que também houve um crescimento da classe média, e foi preci­
samente na época de Sesostris III que irrompeu um significativo cresci­
mento de comerciantes e artesãos.
Entretanto, o rei Sesostris III não se ocupava exclusivamente com ne­
gócios domésticos em seu governo. Na verdade, ele fortaleceu o domínio
do Egito sobre a Núbia, ao sul, e também empreendeu pelo menos uma
campanha à Palestina, onde ele diz ter chegado a Sekmem (provavelmen­
te Siquém). Mais importante de tudo, os textos de execração que foram
produzidos nessa época mostram interesse e compreensão incomuns da

Ibid., pp. 505-6; para uma indicação adicional de que Sesostris III é o faraó em vista, ver
em James R. Battenfield, "A Consideration of the Identity of the Pharaoh of Genesis 47,"
JETS 15 (1972): 77-85.
44 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Palestina e da Síria. Entre os nomes contidos nos textos estão numerosas


cidades e vilarejos mencionados, inclusive no Antigo Testamento.86
José faleceu no ano 1806, bem próximo ao final do reinado do último
grande rei da 12a Dinastia, Ammenemes III (1842-1797).87 Nada se conhe­
ce acerca de José nesse período, mas Ammenemes estava totalmente en­
volvido na exploração das minas de turquesa no Sinai, no contínuo assen­
tam ento na região do Fayyum , e em alguns am biciosos projetos
arquitetônicos. Ele gozava de vastíssima influência, mas, com sua morte,
o poderio do Médio Império entraria em seus últimos dias.

A atmosfera cultural
Está bastante evidente que o fundo histórico e cronológico da vida de
José encontra-se totalmente enquadrado no período do Médio Império
egípcio. O que falta ainda ser demonstrado é que o arcabouço cultural
visto em Gênesis 37-50 se adapta melhor a um governo de origem egípcia
do que com uma dominação de reis hicsos.88 Caso tal afirmativa possa ser
comprovada, todos os argumentos em favor de uma peregrinação de ape­
nas 215 anos perderão praticamente toda sua força.
Qualquer um perceberá logo de início que todos os nomes próprios
descritos em Gênesis são de origem egípcia, e não de hicsos.89 Precisamos,
é claro, reconhecer que, embora poucas inscrições do período hicso te­
nham sobrevivido, está comprovado nesses registros um número consi­
derável de nomes próprios. Baseados nos dados obtidos através desses
nomes próprios, alguns estudiosos, tais como John Van Seters, identifi­
cam os hicsos como semitas, especificamente os amoritas.90 Manetho su­
geriu que o termo hicso em si significa "reis pastores", porém estudos mais
recentes indicam que seu significado quer dizer "dominadores de terras
estrangeiras" ou algo parecido.91 De qualquer forma, os hicsos certamen­
te não eram egípcios, e suas tradições, costumes e estilo de vida eram tão
diferentes dos egípcios quanto o eram seus nomes.

86 Ver em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 328-29.


87 Posener, "Middle Kingdom", em CAH 1.2, pp. 509-12.
88 Os hicsos eram um povo de origem semítica que penetraram no Egito à nível do Delta
por volta do século dezoito, e que eventualmente obtiveram o controle político da mai­
or parte do Baixo Egito por 150 anos. (1720-1570). Ver em Donald B. Redford, "The
Hycsos Invasion in History and Tradition,", Or, n.s. 39 (1970): 1-51.
89 Montet, Egypt, pp. 14-15.
90 John Van Seters, The Hycsos (New Haven: Yale University Press, 1966), pp. 194-95.
91 Ibid., p. 187.
O rigens 45

O primeiro nome estrangeiro que aparece dentro das narrativas da vida


de José é o de Potifar, supervisor da guarda de elite de Faraó e senhor de
José. Além de ser descrito especificamente em Gn 39.1 como um egípcio,
seu nome também é totalmente egípcio (P^dyq/R', "aquele a quem Rá
deu")-92 O próprio José casou-se com Asenate, filha de Potífera, o sacerdo­
te do deus On (ou Heliópolis). O nome dela significa "que pertence a Neith"
(uma deusa egípcia), enquanto o nome de seu pai era apenas uma varian­
te de Potifar. O nome de José foi mudado logo após seu casamento para
Zafenate-Panéia, o que possivelmente significava "o que fornece o alimento
da vida". Ora, podemos até admitir que José tenha servido a um nobre
egípcio mesmo durante os anos de dominação dos hicsos, mas é simples­
mente inadmissível que seu nome semítico tenha sido alterado para um
outro de origem semítica, ainda que debaixo da dominação estrangeira
dos hicsos. Não obstante, é difícil entender como ele teria se casado com a
filh a d e um s a c e r d o te e g íp c io q u e serv ia n u m cen tro r e lig io s o em
Heliópolis, bem ao sul do centro de controle político dos hicsos no Egito.
Vários costumes e preconceitos confirmam um fundo histórico egíp­
cio. Quando José, pela primeira vez, compareceu perante o rei Sesostris II,
logo após sua libertação da prisão, ele se barbeou para que o rei não se
sentisse ofendido. Foi exatamente isso que um exilado egípcio chamado
Sinuhe fez quando retornou ao Egito após ter vivido por anos entre os
semitas da Síria.93 José teria cometido um grande insulto a um rei hicso,
cujo costume era usar barba, caso tivesse comparecido diante dele com o
rosto liso. Quando os irmãos de José vieram a ele a procura de grãos, não
sabendo ainda qual era sua verdadeira identidade, ele os separou no ho­
rário do jantar porque os "egípcios não podiam comer com os hebreus"
(Gn 43.32). Caso José tivesse se apresentando como um oficial de origem
semítica a serviço do rei hicso, seria muito estranho o fato de ele mesmo
afastar-se de elementos da mesma raça. O fato de ele estar agindo segun­
do uma tradição já existente por muitos anos prova que a história nada
tem a ver com os hicsos.
Outro detalhe que confirma ainda mais os preconceitos egípcios da
narrativa é a declaração feita por José, que dizia serem os pastores uma
abominação para os egípcios (Gn 46.34). Ora, urna coisa que os hicsos não

Para uma boa e produtiva discussão sobre esses nomes, ver em Montet, Egypt, pp. 14­
15. '
Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 18-22. De acoi-do com Alan Gardner, Egypt of
the Pharaohs (London: Oxford University Press, 1961), p. 130, este conto deve ser enqua­
drado durante os dias do rei Sesostris I (1971-1928).
46 H istória de I srael no A ntigo T estamento

poderiam deixar de ser era pastores. Eles nunca desprezariam os hebreus


pelo fato de serem estes também pastores como eles o eram. E, finalmente,
o embalsamamento e a lamentação pela morte de Jacó se adapta melhor às
práticas egípcias (Gn 50.2,3).94 Embora os rituais funerários dos hicsos não
estejam ainda bem compreendidos hoje, é certo que diferiam radicalmen­
te dos que eram feitos pelos egípcios - os únicos dentre todas as nações do
mundo antigo que possuíam os procedimentos funerários semelhantes aos
descritos em Gênesis.
Por último, temos a questão da língua. Em sua primeira viagem ao
Egito, os irmãos de José, acreditando que ele era um egípcio, começaram
a falar uns com os outros em hebraico (Gn 42.23). Querendo não
decepcioná-los em sua apreensão, José fez sua parte e conversou com
eles exclusivamente no idioma egípcio. Com certeza, se eles tivessem
suposto por um momento que José fosse um hicso, não teriam conversa­
do em hebraico, na tentativa de evitar que José os entendesse, uma vez
que, independente do estoque étnico de onde os povos hicsos derivaram
sua língua, eles com certeza falavam os dialetos semíticos e iriam acabar
entendendo o hebraico.
Concluindo, é completamente evidente que José viveu no Egito e que
serviu como um alto oficial da administração desse país durante os anos
de dominação egípcia, e não na época dos hicsos. Esses dados evitam uma
peregrinação de 215 anos de duração, e firmam a data do êxodo no tradi­
cional ano de 1446, embora uma data mais recente para esse acontecimen­
to (1260), associada com a peregrinação de 215 anos, nos permitiria locali­
zar José num período pós-hicso da dinastia egípcia.

De José ao êxodo

A dominação dos hicsos no Egito ocorreu entre a morte de José e o


nascimento de Moisés, um período em que o Antigo Testamento se mos­
tra completamente silencioso. E bem razoável admitir que o relacionamento
existente entre os hicsos e os hebreus tenha sido o mais amigável possível,
uma dedução que tem ganhado apoio cada vez maior, caso os inimigos
descritos em Êxodo 1.10 tenham sido os hicsos. De outra forma, tudo o
que é necessário observar é que os hicsos mantiveram efetivo controle do
Baixo Egito (o Delta) por cerca de 150 anos (1720-1570). Eles tomaram e
reconstruíram a cidade de Avaris por volta de 1720, o que está confirmado

94 John Ruffle, The Egyptians (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1977), pp. 197-210;
Van Seters, Hycsos, pp. 45-48.
:-ess 47

na esteia que foi encontrada por August Mariette em 1863 e conhecida por
"esteia dos quatrocentos anos".95 Esse monumento foi construído em 1320
a.C. por Seti, vizir do rei egípcio Horemheb, para marcar o quadrigentésimo
aniversário da (re)construção da cidade, um fato cuja autenticidade não
tem porquê de ser questionado. A dominação dos hicsos teve início du­
rante a 13a Dinastia egípcia que, devido à pressão exercida por esses inva­
sores, retirou-se para o sul e se estabeleceu em Mênfis. Quando por fim
essa cidade caiu sob o poder dos hicsos, a dinastia moveu-se ainda mais
para o sul, e finalmente chegou ao fim por volta de 1633.96
Enquanto isso, a 14a Dinastia egípcia permaneceu no controle da re­
gião oeste do Delta até cerca de 1603. Centralizados em seu Sais (Xois),
essa linhagem de reis resistiu aos hicsos quase até o fim. As dinastias 15a
e 16a foram representadas por reis hicsos; seu início ocorreu com a toma­
da de Mênfis (1674) e continuou até sua expulsão do Egito em 1567.97
Mesmo sendo culturalmente inferiores, os hicsos aprenderam e adota­
ram as artes egípcias e sua ciência.98 Eles também identificaram suas di­
vindades com as dos egípcios, igualando-as especialmente com Baal,
Resheph ou Teshub.99 Um aspecto ainda mais positivo dessa dominação
estrangeira foi a introdução e a popularização no Egito dos cavalos, car­
roças e carruagens,100 bem como do arco feito por diversos materiais.101
Alguns dos mais proeminentes reis hicsos da 15a Dinastia foram Salitis
(Sharek); Khyan, que se auto-intitulava "filho de Re" (Rameses?); e
Apophis I, cuja filha casou-se com um príncipe de Tebas que também se
intitulava "filho de R e".102 Foi ele o primeiro a sofrer a maior resistência
por parte dos egípcios de Tebas, e que por fim foi expulso do Alto Egito
de volta para o Delta. Esse avivamento egípcio aconteceu durante a lide­
rança de Seqenenre II da 17a Dinastia (1650-1567), cujo filho Kamose deu
início à expulsão dos odiados hicsos não apenas do Alto Egito, mas tam­
bém do próprio Delta.

Ver p. 36, n. 40.


Hayes, "From the Death of Ammenemes III," em CAH 2.1, pp. 44-54.
Ibid., pp. 54-64.
Ronald J. Williams, "The Egyptians", em Peoples ofOld Testament Times, editado por D.J.
Wiseman, p. 87.
~9 Van Seters, Hycsos, pp. 171-80.
--'Jack Finegan, Archaeological History of the Ancient M iidle East (Boulder, Col.: Westview,
1979), pp. 254-55.
: : Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, p. 243.
; : A semelhança do elemento Re (ou Ra) na formação dos nomes dos reis hicsos é de espe­
cial significação para uma data mais anterior para o êxodo. Ver p. 70.
48 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Em seu terceiro ano (1575), Kamose lançou-se num ataque contra


Apophis, rei dos hicsos, mas morreu antes mesmo de terminar sua mis­
são. Seu objetivo foi alcançado por seu irmão Amosis (1570-1546), funda­
dor da 18a Dinastia (1567-1320), que, através de seu general Ahmose, re­
conquistou a cidade de Mênfis e, logo em seguida, Avaris. Ahmose não se
contentou apenas em expulsar os hicsos para fora do Egito, mas os perse­
guiu até Sharuhen (aprox. 1563), e assim se assegurou de que eles nunca
mais voltariam a trazer problemas para o Egito.103
As dinastias 18a e 19a (1567 - aprox. 1200) perfazem o substancial da
terceira e última parte da grande civilização egípcia que existiu no antigo
Oriente Médio, o chamado Novo Império (1567- aprox. 1100). Visto que o
êxodo, a conquista, e muito do que temos acerca dos juízes se enquadra
nesse período, torna-se vital que seja feita uma boa descrição de seu curso,
especialmente naquilo que toca a narrativa do Antigo Testamento.

io3para um estudo acerca de todo esse período, ver em T. G. H. James, "Egypt: From the
Expulsion of the Hycsos to Amenophis l," em CAH 2.1, pp. 289-96.
0 Ê X 0 D 0: N A S t I N E 0 I 0
D E U HA N A ( Ã 0
O sig n ific a d o do êxodo
A localização histórica do êxodo
O novo reino egípcio
O Faraó do êxodo
As dez pragas
A rota do êxodo
A data do êxodo
Evidência bíblica interna
As evidências a favor de uma data recente
Ausência de acampamentos sedentários na Transjordânia
Os israelitas e a construção da cidade de Ramsés
Evidências da conquista ocorrida no século XIII
A data e a duração do cativeiro egípcio
O problema
A revelação dada a Abraão
Evidências a favor de um longo cativeiro no Egito
Evidências a favor de uma curta peregrinação no Egito
Cronologia dos patriarcas
A jornada no deserto
Do mar de Juncos até o Sinai
A aliança do Sinai
Do Sinai até Cades-Barnéia
De Cades-Barnéia às planícies de Moabe
O encontro com Edom
O encontro com os amoritas
O encontro com Moabe

O s ig n ific a d o d o ê x o d o

O êxodo é o evento teológico e histórico mais expressivo do Antigo


Testamento, porque mostra a magnificente ação de Deus em favor de seu
povo, uma ação que os conduziu da escravidão à liberdade, da fragmen­
tação à unidade, de um povo com uma promessa - os hebreus - à uma
nação estabelecida - Israel. No livro de Gênesis encontram-se a introdu­
ção e o propósito, seguindo-se então todas as revelações subseqüentes do
.Antigo Testamento. Um registro que é ao mesmo tempo um comentário
inspirado e uma exposição detalhada. Em última análise, o êxodo serve
50 H istória de I srael no A ntigo T estamento

como um tipo do êxodo promovido por Jesus Cristo, de forma que ele se
torna um evento significativo tanto para a Igreja quanto para Israel.1

A lo c a liz a ç ã o h is tó ric a d o ê x o d o

O novo reino egípcio

Segundo 1 Reis 6.1, o êxodo aconteceu cerca de 480 anos antes da fun­
dação do templo de Salomão. De fato, Salomão deu início à construção em
seu quarto ano, ou seja, em 966 a.C , de forma que, de acordo com uma
hermenêutica normal e uma aproximação séria dos dados cronológicos
bíblicos, o êxodo ocorreu em 1446 a.C. Antes de apresentarmos argumen­
tos detalhados em favor de tal data, vamos por enquanto nos deter na
décima oitava dinastia do Egito que, de acordo com a data tradicional,
forma o quadro da época em que o êxodo aconteceu.
Como apontado no capítulo 1, a décima oitava dinastia foi fundada
por Amósis, o responsável pela expulsão dos hicsos. E bem provável ter
sido ele o que está descrito em Êxodo como o novo rei que não conhecia

Tabela 4 18a e 19a Dinastia do Egito

18a Dinastia
Amósis 1570-1546
Amenotepe I 1546-1526
Tutmose I 1526-1512
Tutmose II 1512-1504
Hatchepsute 1503-1483
Tutmose III 1504-1450
Amenotepe II 1450-1425
Tutmose IV 1425-1417
Amenotepe III 1417-1379
Amenotepe IV (Akhenaten) 1379-1362
Semenca 1364-1361
Tutankamon 1361-1352
Ai 1352-1348
Horembeb 1348-1320

11Dinastia
Ramsès I 1320-1318
Setos I 1318-1304
Ramsès II 1304-1236
Merneptá 1236-1223

1 Ver, e.g., Claus Westermann, Elements of OM Testament Theology (Atlanta: John Knox,
1982), pp. 217 a 218; Eimer Martens, God's Design (Grand Rapids: Baker, 1981), p. 256.
j: ■j Do: N ascimento de uma N ação 5/

José (Êx 1.8).2 Isto não sugere que ele não tenha conhecido José pessoal­
mente, mas apenas que sua benevolência não mais se estendia aos descen­
dentes de José - os hebreus. Ele havia, afinal, expulsado os hicsos, um
povo bastante aparentado aos hebreus, e pode ter ficado receoso de que a
rápida multiplicação destes pudesse se constituir numa séria ameaça ao
seu recente governo e autoridade.
Ele ou seu sucessor, Amenotepe I (1546 - 1526), foi o responsável pela
política repressiva que se seguiu naqueles dias. Isto incluía a redução dos
hebreus à escravidão com trabalhos forçados em projetos de construções
públicas (Êx 1.11-14),3 um plano que foi igualmente implementado por
Amósis. Quando tal projeto fracassou, seguiu-se um decreto promulgan­
do o genocídio de todos os machos hebreus que nascessem (Êx 1.15,16).
Esse decreto pode ter sido emitido por Amenotepe ou, o que é mais prová­
vel, por Tutmose I, de acordo com a reconstrução histórica promovida neste
trabalho.
Admitindo a data de 1446 a.C. para o êxodo, podemos determinar a
data do nascimento de Moisés, um fato de elevada importância nesta
conjuntura. O Antigo Testamento informa que Moisés tinha a idade de
80 anos pouco antes do êxodo (Êx 7.7), e 120 anos na sua morte (Dt
34.7).4 Visto que sua morte ocorreu bem no fim do período do deserto,
podemos datá-la em 1406. Um simples cálculo então fornece o ano 1526

- Wiiliam F. Albright, "From the Patriarchs to Moses: II Moses Out of Egypt", BA 36 (1973): 54.
- Embora Kenneth A. Kitchen aceite a data mais recente para o êxodo, ele cita evidência
abundante sobre trabalhos forçados como escravos, incluindo semitas, na manufatura
de tijolos no período da 18° Dinastia. Veja seu livro: "From the Brickfields of Egypt",
Tyn Buli 27 (1976): 139-140.
4 A divisão da vida de Moisés em períodos de 40 anos - com 40 anos matou um egípcio,
aos 80 retornou do exílio entre os midianitas, e aos 120 morreu - sugere para alguns
estudiosos uma certa artificialidade. Argumenta-se que 40 anos é a representação de
uma geração ideal, de forma que Moisés deve ter tido uma vida três vezes mais longa
que uma geração normal. Veja, por exemplo, a obra de J. Alberto Soggin, A History of
Anciente Israel (Filadélfia: Westminster, 1984), p. 383. Essa mesma idéia também se apli­
caria aos reinados de 40 anos de Saul, Davi e Salomão; aos 40 (ou ocasionalmente 20)
anos de governo e períodos de descanso na época dos juízes; e a muitas outras utiliza­
ções deste número. E possível que esses períodos devam ser tomados em sentido literal,
e que não reflitam qualquer artificialidade ou coincidências, mas sejam uma deliberada
organização da história de acordo com o padrão estabelecido pelo próprio Deus. O nú­
mero 40, em outras palavras, também pode ter um significado teológico e tipológico em
si mesmo, e o próprio Deus pode ter distribuído os acontecimentos dessa forma. Ver
Tohn J. Davis, Bihlical Numerology (Grand Rapids: Baker, 1968), pp. 52-54. Davi, porém,
vê apenas o número sete com valor simbólico (p. 124).
52 H istória de I srael no A ntigo T estamento

para o seu nascimento. Por conseguinte, Moisés nasceu no mesmo ano


da morte do faraó Amenotepe. E preciso enfatizar que não se pode es­
perar uma absoluta precisão, mas nossas datas para a cronologia do
Novo Reinado, assim como todas as datas que usamos, são as mesmas
utilizadas pelo Cambridge Ancient History, uma publicação lançada por
estudiosos imparciais, reconhecidos academicamente como autorida­
des da mais alta confiabilidade.5 Quaisquer ajustes nas datas que au­
mentem ou diminuam alguns anos em nada afetarão as conclusões aqui
propostas.
Amenotepe foi sucedido por Tutmose I (1526-1512), um plebeu que ti­
nha se casado com a irmã do rei. Provavelmente foi ele o autor do decreto
que ordenou o infanticídio, pois enquanto Moisés estava em iminente pe­
rigo de morrer, Arão, que havia nascido três anos antes (Êx 7.7), parece ter
estado isento. Não seria difícil admitir que o faraó que promulgou essa
política deve ter subido ao trono após o nascimento de Arão e antes do
nascimento de Moisés. Nesse caso, a evidência bíblica aponta diretamente
para Tutmose I.
Tutmose II (1512-1504) casou-se com Hatchepsute, sua meia-irmã mais
velha. Ele morreu jovem sob circunstâncias bastante misteriosas. Sentin­
do que se aproximava da morte, ordenou a nomeação de Tutmose III (1504­
1550) como seu co-regente e herdeiro. Esse governante que, sem dúvida,
foi o mais ilustre e poderoso dentre os que viveram no Novo Reino, distin­
guiu-se de várias maneiras. Seus primeiros anos não foram muito promis­
sores - era filho de uma concubina e tinha se casado com sua meia-irmã,
filha de Hatchepsute e Tutmose II - mas por fim veio a obter notáveis
vitórias nas terras ao seu redor, que incluíram nada menos que 16 campa­
nhas à Palestina. Porém, os primeiros 20 anos de seu reino foram domina­
dos por sua poderosa madrasta, Hatchepsute. Embora proibida pela cul­
tura de se tornar faraó, ela de fato agia como tal e, em todos os critérios,
pode ser considerada a pessoa de maior fascínio e influência da história

5 Com respeito às datas para o rei Amenotepe (Amenophis)I, ver T.G.H. James, "Egypt:
From the Expulsion of the Hyksos to Amenophis I", no Cambridge Ancient History, 3. ed.
por I.E.S. Edwards e associados (Cambridge: Cambridge University Press, 1973), v. 2,
parte 1, p. 308. Acerca de Tutmose (Tuthmosis)I, Tutmose II, Hatchepsute, Tutmose III e
Amenotepe II, ver William C. Hayes, "Egypt: Internai Affairs from Thutmosis I to the
Death of Amenophis III", em CAH 2.1, pp. 315-21. Para datas alternativas da 18a Dinas­
tia (cerca de 1533-1303) ver William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near
East (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971), pp. 330-301. As datas do CAH (1546­
1319) foram adotadas por George Steindorff e Keith C. Seele em When Egypt Ruled the
East (Chicago University Press, 1957), pp. 274-275.
54 H istória de I srael no A ntigo T estamento

egípcia.6 Sem dúvida, nos primeiros anos de Tutmose III, foi Hatchepsute
quem ditou as resoluções, um relacionamento que decerto ele detestava,
mas encontrava-se impotente para se opor. Somente após a morte da ma­
drasta, Tutmose III demonstrou toda repugnância que sentia por ela, man­
dando extinguir toda e quaisquer inscrições ou monumentos em sua ho­
menagem.
O quadro geral de Hatchepsute leva-nos a identificá-la como a ousada
filha do Faraó que resgatou Moisés. Somente ela dentre todas as demais
mulheres de sua época seria capaz de ir contra uma ordem do Faraó, bem
diante dele. Embora a data de seu nascimento seja desconhecida, ela pro­
vavelmente era vários anos mais velha do que seu marido, Tutmose II,
que morrera em 1504, bem próximo de seus 30 anos.7 Ela devia estar no
início de sua adolescência, por volta de 1526, data do nascimento de Moisés
e, portanto, com condições de agir em favor de sua libertação.
Tutmose III era menor de idade quando assumiu o poder em 1504 e
m ais novo que M oisés.8 Se, de fato, Moisés foi filho de criação de
Hatchepsute, há probabilidade de haver ele sido uma forte ameaça ao
jovem Tutmose III, visto que Hatchepsute não tinha filhos naturais. Isso
significa que Moisés era um candidato a ser faraó, tendo apenas como
obstáculo sua origem semítica. Parece-nos que houve uma real animosi­
dade entre Moisés e o faraó. Isto fica claro em virtude de Moisés, após
matar um egípcio, ter sido forçado a fugir para salvar a vida. O fato de
ter o próprio faraó considerado a questão - que, em outra situação, seria
pouco relevante - sugere que este faraó especificamente tinha interesses
pessoais em se livrar de Moisés. O exílio auto-imposto por Moisés ocor­
reu em 1486, quando ele tinha 40 anos de idade (At 7.23). Tutmose III já
estava no poder havia 18 anos; e a idosa Hatchepsute, que faleceria três
anos mais tarde, não tinha mais condições de interditar a vontade de seu
enteado/sobrinho.9
Durante longos quarenta anos, Moisés permaneceu fugitivo do Egito,
tendo se abrigado entre os midianitàs do Sinai e da Arábia. Uma das ra­

6 Uma visão fascinante e um pouco imaginativa acerca de sua vida e reinado pode ser
vista na obra de Evelyn Wells, Hatshepsut (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1969).
7 Steidorff e Seele, When Egypt Ruled the East, pp. 39-40.
8Tutmose III foi designado vice-regente na última parte do reinado de Tutmose II, provavel­
mente não menos que em 1508. Ver Hayes, "Internai Affairs," do C4H 2.1, pp. 316-317.
9 Tutmose III sucedeu Hatchepsute em 1483. Para tentar apagar a memória dela dentre os
egípcios, ele não apenas mandou destruir todos os monumentos construídos em sua
homenagem, como também matou em público todos os oficiais que a serviram. Ver
Hayes, "Internai Affairs," no CAH 2.1, p. 319.
O Ê xodo : N ascimento de uma N ação 55

zões para tão longo exílio foi justamente o fato de continuar a viver e rei­
nar o Faraó de quem Moisés havia escapado. Somente após sua morte,
Moisés sentiu-se livre para retornar ao Egito (Êx 2.23; 4.19). Tutmose II I '
morreu em 1450 e foi sucedido por seu filho Amenotepe II (1450-1425).
Segundo os padrões cronológicos aceitáveis nesta discussão, era este
Amenotepe quem reinava na ocasião do êxodo.
Antes de deixarmos Tutmose III, é essencial notarmos que o relato bíbli­
co requer um reinado de quase 40 anos para o Faraó que perseguiu a vida
de Moisés, porquanto o rei que morreu no fim dos anos do exílio de Moisés
em Midiã era claramente o mesmo que o havia ameaçado quase 40 anos
antes. Dentre todos os reis da 18a Dinastia, somente Tutmose III teve um
reino tão longo. De fato, ele é o único governante que, em todo período
durante o qual o êxodo poderia ter ocorrido, reinou tanto tempo - com ex­
ceção de Ramsés II (1304-1236). Mas Ramsés, o faraó preferido pela maioria
dos estudiosos, é geralmente associado ao faraó do êxodo, não ao faraó cuja
morte possibilitou o retorno de Moisés ao Egito. Caso a morte de Ramsés
houvesse trazido Moisés de volta ao Egito, o êxodo deveria ter ocorrido
após 1236, uma data muito tarde para ser satisfatória.10

O Faraó do êxodo

Quando finalmente Moisés retornou ao Egito, ele e seu irmão Arão co­
meçaram a negociar com o novo rei, Amenotepe II, a respeito de uma per­
missão para Israel deixar o Egito com o propósito de adorar a Jeová e,
enfim, deixar o país definitivamente. Este poderoso rei conduziu uma cam­
panha em Canaã em seu terceiro ano (aprox. 1450) e uma outra em seu
sétimo ano, provavelmente em 1446,11 coincidindo com a tradicional data
do êxodo. Não é difícil imaginar que a dizimação do exército de Faraó no
mar de Juncos pode ter ocorrido após essa sétima campanha e que, após

10 As implicações dessa linha de raciocínio são devastadoras para a teoria de uma data
mais recente para o êxodo; ver pp. 68-69.
11 Alan Gardiner, Egypt of the Pharaohs (London: Oxford University Press, 1961), pp. 200­
202. Muitos historiadores defendem a idéia de uma co-regência entre Tutmose III e
Amenotepe II, de cerca de três a seis anos. Seguindo a opinião de que sua morte ocorreu
em 1450, seu filho deve ter governado com ele de 1453 (ou 1456) até 1450. Esta interpre­
tação se encaixa melhor quando se pensa em uma primeira campanha em parceria com
uma segunda, onde ele já assumia o governo sozinho, portanto, em 1450 e 1446 respec­
tivamente. Veja Donald B. Redford, "The Coregency of Thutmosis III and Amenophis II,
JEA 51 (1965): 107-22; William J. Murnane, "Once Again the Dates for Tuthmosis III and
Amenothep II,"JANES 3 (1970-1971); 5.
56 H istória de I srael no A ntigo T estamento

tamanha desmoralização, um total desinteresse por uma aventura imedi­


ata se abateu sobre o reino, especialmente para o norte.12
Nossa identificação de Amenotepe II como o faraó do êxodo está basea­
da em duas outras considerações. Em primeiro lugar, embora a maioria dos
reis da 18a Dinastia tenha estabelecido sua principal residência em Tebas,
bem ao sul dos israelitas no Delta, Amenotepe morava em Mênfis e, aparen­
temente, reinou daquele local por um bom tempo.13 Isto o colocava em gran­
de proximidade com a terra de Gósen, fazendo-o bastante acessível a Moisés
e Arão. Em segundo lugar, evidências sugerem que o governo de Amenotepe
não passou para seu filho mais velho, mas para o caçula Tutmose IV. Esta é
uma informação subentendida na chamada "esteia do sonho", que foi en­
contrada na base da Grande Esfinge perto de Mênfis.14
O texto, que registra um sonho no qual Tutmose IV recebeu a promessa
de que um dia viria a ser rei, sugere, como diz um historiador, que o seu
reino sucedeu "mediante uma imprevista mudança no destino, como a
morte prematura do irmão mais velho".15 E claro que isto é praticamente
impossível de se provar, mas também não há como deixar de especular se
tal morte prematura não tenha ocorrido por intermédio do juízo de Jeová
que, na décima praga, matou todos os primogênitos do Egito que estavam
sem a proteção do sangue da Páscoa, "...desde o primogênito de Faraó,
que se sentava em seu trono, até o primogênito do cativo que estava no
cárcere..." (Êx 12.29).

As dez pragas

Antes de continuarmos a integração entre a história da 18a Dinastia e a


narrativa do êxodo, é preciso atentar para o relato do retorno de Moisés ao
Egito, das dez pragas, e do evento do êxodo propriamente dito. Moisés
havia fugido do Egito na idade de 40 anos (1486), e encontrou um santuá­
rio na terra de Midiã (Êx 2.15). Os midianitas, descendentes de Abraão

12 Gardiner, Egypt, p. 202, descreve uma campanha no nono ano (aprox. 1444) que foi "em
menor escala" do que a ocorrida no ano sétimo. É tentador ver esta redução como um
efeito colateral da experiência do êxodo.
13 Hayes, "Internai Affairs,", em CAH 2.1, pp. 333-34. Era comum aos reis da 18a Dinastia
entregar o governo da cidade de Mênfis ao príncipe coroado. Veja Donald B. Redford,
"A Gate Inscription from Karnak and Egyptian Involvemente in Western Asia During
the Early 18thDynasty," JAOS 99 (1979); 277.
13 Quanto ao texto, procurar James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the
Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 449.
15 Hayes, "Internai Affairs", em CAH 2.1, p. 321.
5 Ê xodo: N ascimexto de uma N ação 57

através de Quetura (Gn 25.2), moravam na península arábica, provavel­


mente ao leste da península do Sinai, passando pelo Golfo de Acaba.16
Moisés conheceu um sacerdote midianita chamado Jetro (ou Reuel), que
claramente se tornou adorador de Jeová (Êx 18.11).17 Moisés então se ca­
sou com uma das filhas de Jetro, Zípora, com quem teve dois filhos, Ger­
son e Eliezer (Êx 18.3,4). Próximo ao quadragésimo ano em que Moisés
habitava na terra de Midiã, Jeová lhe apareceu no monte Sinai em uma
sarça ardente, identificando-se como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Ele
disse a Moisés que havia chegado o tempo em que o povo de Israel parti­
ria da terra da escravidão e possuiria Canaã, a terra da promessa. A Moisés
coube o privilégio e a responsabilidade de conduzi-los para fora do Egito.
Provavelmente poucos meses após esta revelação, Moisés e Arão se
encontraram com faraó que, ao que tudo indica, era Amenotepe II. A prin­
cípio, eles solicitaram permissão para conduzir o povo ao deserto a fim de
adorar a Jeová; este pedido não apenas foi negado, como também produ­
ziu uma intensificação dos trabalhos forçados sobre Israel. Nesta situação,
os israelitas imediatamente passaram a questionar a autoridade de Moisés,
o qual tornou a Jeová para uma confirmação de sua chamada. Mais uma
vez, Jeová garantiu resgatar o seu povo (Êx 6.6), para torná-lo, mediante
uma aliança, o seu povo especial (v. 7), fazendo-o chegar em segurança à
terra uma vez prometida a seus pais (v. 8). Seguiu-se então uma seqüência
de entrevistas com Faraó, e todas falharam em obter permissão para ado­
rar no deserto.
Certamente o faraó sabia que a intenção não era simplesmente fazer uma
romaria ao deserto para adoração, mas sim partir totalmente do Egito, para
nunca mais lá voltar. Para provar a sua autoridade, Moisés operou sinais e
maravilhas na presença de Faraó. O primeiro sinal envolveu a vara de Arão,
que se tornou em uma serpente e, em seguida, devorou as serpentes produ­
zidas pelos mágicos do Egito. As dez pragas que se seguiram foram todas
de caráter judicial - abatiam-se sobre o Egito após cada recusa do Faraó em
permitir a partida de Israel. A última dessas pragas foi a morte dos primo­
gênitos, que atingiu até mesmo a própria família do Faraó.

!6 Para uma discussão adicional acerca da identidade e localização dos midianitas, veja
Roland de Vaux, The Early History of Israel (Philadelphia: Westminster, 1978), pp. 330-338.
Mesmo que o relato (Êx 18.1-12) não apresente Jetro como um homem completamente
convertido a Jeová, não há dúvida de que ele o reconheceu como o Deus supremo entre
os deuses. Veja Umberto Cassuto, A Commentary on the BookofExodus (Jerusalém: Magnes,
1967), pp. 216-217. Para uma análise tradicional e histórica das supostas fontes acerca
do casamento e do comissionamento de Moisés em Midiã, ver George W. Coats, "Moses
in Midian", JBL 92 (1973); 3-10.
58 H istória de I srael no A ntigo T estamento

É impossível compreender exatamente o que ocorreu por ocasião de cada


praga, visto que as fontes egípcias - naturalmente - não atestam nada a res­
peito. Contudo, é evidente que cada uma das pragas causou uma aberração
na natureza, uma anomalia que afetou o tempo, os animais, as águas, ou algo
similar. Além disso, elas pareciam conter um polêmico desígnio. Cada praga
era uma afirmação da superioridade de Jeová sobre a divindade (ou deuses)
responsável pela área da natureza que estava sendo particularmente atingi­
da. Os céticos consideram as pragas como um relato bastante exagerado de
fenômenos naturais perfeitamente compreensíveis, ainda que incomuns.18
Porém, uma séria avaliação da narrativa não permite tão arrogante descaso
com as dimensões catastróficas das pragas. É preciso entender o que elas eram
- autênticos derramamentos da ira de um soberano Deus que desejou mos­
trar, para todo o Egito e também para o seu povo, que Ele é o Senhor de toda
terra e céu, o único perfeitamente capaz de resgatar o seu povo da penosa
escravidão no Egito, fazendo com eles uma aliança, tornando-os seus servos.
Quando sobreveio a última praga, havendo Jeová destruído toda
autoconfiança humana, Faraó rendeu-se e permitiu que Moisés e seu povo
partissem (Êx 12.31,32). Porém, quando os hebreus realmente saíram, Faraó
voltou atrás e se encarregou de persegui-los. Abateu-se sobre o rei o pesar de
ter deixado sair do Egito sua maior força de trabalho, aquela com a qual ele
poderia realizar seus ambiciosos projetos públicos. Aquela altura, entretanto,
os quase dois milhões19 de israelitas já haviam deixado a cidade de Ramsés
(i.e., Gósen; Gn 47.6,11) e chegado a Sucote,20 bem a oeste do lago Timsa.
Seguiram de lá em direção norte, tentando evidentemente penetrar em Canaã
através da grande via costeira ao mar Mediterrâneo. Eles sabiam por certo
que encontrariam os filisteus caso continuassem naquela rota, de sorte que
Jeová os guiou para o sul, após terem cruzado, é claro, o mar de Juncos.

A rota do êxodo

O ponto exato onde Israel cruzou o mar de Juncos não pode ser deter­
minado, mas certamente não era o mar Vermelho, o que chamamos hoje

18 Para uma história de interpretação das pragas, ver Brevard S. Childs, The Book ofExodus
(Philadelphia: Westminster, 1974), pp. 164-168. Para um estudo que considera as pragas
do Egito como apenas "fenômenos naturais" e eventos históricos, veja Greta Hort, "The
Plagues of Egypt", ZAW 69 (1957); 84-103; 70 (1958); 48-59, especialmente pp. 58-59.
19 As informações a respeito do enorme contingente que saiu no êxodo serão consideradas
nas pp. 72-73.
20 Talvez t-k-w (ou seja, Tel el-Maskhütah), bem ao ocidente dos Lagos Amargos. Veja
Yohanan Aharoni, The Land ofthe Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 196.
O Ê xodo : N ascimento de uma N ação 59

de Golfo de Suez. Este local estava muito ao sul para se encaixar no iti­
nerário bíblico. Além disso, o termo hebraico para descrever a passagem
pelas águas, yam süp ("mar de juncos"), é totalmente impróprio para o
mar Vermelho. A tradução da palavra "mar Vermelho", vista em muitas
versões inglesas, está baseada na Septuaginta, que por certo assumiu ser
o mar de Juncos um nome antigo para mar Vermelho.21 O registro de
Moisés declara que Israel estava em um local próximo a Pi-Hairote (lo­
calização desconhecida), entre Migdol (também desconhecido) e o mar.
Mais especificamente, Israel encontrava-se "diante de Baal-Zefom" (Êx
14.2), local hoje identificado como Tel Dafanneh, ao ocidente do Lago
Menzalé, uma bacia a sudeste do mar Mediterrâneo.22 As evidências hoje
sugerem que esse é o mar de Juncos pelo qual Israel passou.
Embora saibamos que o local tenha sofrido muitas dragagens para a
construção e manutenção do Canal de Suez, o lago Menzalé sempre foi
fundo o suficiente para impedir a passagem a pé sob quaisquer cir­
cunstâncias. A passagem de Israel pelo mar, que antecedeu o afoga­
mento dos exércitos e carruagens egípcias, não pode ser explicada como
uma "travessia de um pântano". Foi preciso a poderosa ação de Deus,
uma ação tão expressiva em sua extensão e significado que, a partir
daquele m omento, na história de Israel, ela seria para sempre um
paradigma por meio do qual os atos salvíficos e redentores de Deus
seriam evocados. Se não existiu um milagre real nas proporções aqui
descritas, todas as demais referências ao êxodo como o arquétipo do
poder soberano e salvífico da graça de Deus tornam-se vazias e sem
significação real.23

A d a ta d o ê x o d o

Antes de narrarmos a viagem de Israel pelo deserto, é necessário exa­


minarmos uma questão crucial: a data do êxodo. A questão é fundamen­

21 Para um ponto de vista que sugere que yam süp significa "mar distante" ou "mar da
extinção", mesmo referindo-se ao mar Vermelho de uma forma mito-poética, veja Bernard
F. Batto, "The Reed Sea: Requiescat in Face" JBL 102 (1983): 27-35.
22 Tel Dafanneh pode ser o mesmo local conhecido por Tahpanhes (Jr 2.16; 43.7,8; 44.1).
Ver também Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 2a edição (London: Oxford
University Press, 1974), p. 58. Porém, na terceira edição de 1984, já não se identifica Baal
Zefon como Tel Dafanneh.
22 Como um exemplo de uma aproximação que visa manter a integridade histórica do
acontecimento, ainda que negue os detalhes registrados na Bíblia, ver Brevard S. Childs,
"A Traditio-Historical Study of the Reed Sea Tradition", VT 20 (1970); 406-18.
60 H istória de I srael no A ntigo T estamento

tal não apenas porque o êxodo é em si um evento central histórico e


teológico, mas também porque nossa interpretação da história antece­
dente e subseqüente a este acontecimento será sensivelmente afetada pela
data fixada.

Evidência bíblica interna .

O ano de 1446 já foi proposto como a data do êxodo. Sobre esta base
cronológica desenvolvemos nossa discussão a respeito dos reis hicsos, do
Novo Império, e das narrativas de José. Visto que a integridade de nossa
posição depende exclusivamente de uma data mais anterior, em vez de
uma outra mais recente que tem sido defendida pela maioria dos estudio­
sos, torna-se então vital que apresentemos uma defesa contundente em
favor da data mais antiga.
Há duas datas bíblicas principais que tocam diretamente a questão do
êxodo. A primeira delas se encontra em 1 Reis 6.1, onde está escrito que o
êxodo precedeu a fundação do Templo de Salomão em 480 anos. Levando
em consideração por enquanto que Salomão deu início à construção do
templo em 966,24 podemos concluir que o êxodo aconteceu em 1446. Mas,
por uma série de razões, essa data é quase universalmente rejeitada em
favor de uma data mais recente, mais ou menos por volta do século XIII
(1260).25 Para conciliar o fato a uma data mais recente, a cifra 480 não deve
ser considerada literalmente, mas deve ser vista como uma forma misteri­
osa de descrever 12 gerações (sendo quarenta anos, como dizem, uma ge­
ração ideal). Entretanto, visto que uma geração na verdade está mais per­
to dos 25 anos, o período entre o êxodo e as obras iniciais do templo é
estimado em 300 (25 X 12) anos, o que sugere aproximadamente o ano
126626 para o êxodo. Se fosse possível comprovar que a antiga cronologia
israelita (ou qualquer outra) assim fazia os cálculos, e que 1 Reis 6.1 é um
exemplo da aplicação de tal método, o caso pareceria estar solucionado.27
Infelizmente não há provas. A inevitável conclusão é que uma redução de

24 Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers ofthe Hebrew Kings (Grand Rapids: Eerdmans,
1965), p. 28; ver também pp. 22,55. Nós aqui aceitamos como ponto de partida a reco­
nhecida e autorizada reconstrução da cronologia da monarquia dividida feita por Thiele.
25 John Bright, A History of Israel, 3a edição. (Philadelphia: Westminster, 1970), pp. 123-24.
26 Ibid., p. 123; John Gray, I & II Kings (Philadelphia: Westminster, 1970), pp. 159-60.
27 Kenneth A. Kitchen compara a cifra de 480 anos como um hábito dos escribas do Orien­
te Médio de chegar a determinados números, após extraí-los de números inteiros. Os
480 anos, então, seriam um total que na verdade deveria representar apenas cerca de
300 anos. Infelizmente, Kitchen não fornece evidências sólidas que provem que tais
O Ê xodo: N ascimento de uma N ação 61

480 para 300 anos, a fim de satisfazer algumas conclusões subjetivas, tor­
na-se um exemplo de apelação indigno de qualquer historiador ou estudi­
oso da Bíblia. Certamente o ônus da prova recairá sobre os críticos que
preferirem considerar os dados dos historiadores bíblicos de forma não
literal.
A segunda prova em defesa do ano 1446 aparece em uma mensagem
do juiz Jefté aos seus inimigos amonitas. Jefté afirmou não ter eles razão
para qualquer hostilidade contra Israel, uma vez que durante os 300 anos
após a vitória de Israel sobre Seom, os amonitas nunca haviam contestado
os direitos de Israel sobre a Transjordânia. Uma simples leitura desse lon­
go memorando (Jz 11.15-27) deixa claro que Jefté se referia ao período da
história de Israel pouco antes da conquista, que ocorreu cerca de 40 anos
após o êxodo. A vitória de Israel sobre os amonitas ocorreu por volta de
1100 a.C., uma data largamente reconhecida. Neste caso, Jefté se referia a
acontecimentos que haviam ocorrido perto de 1400 a.C.
Está claro que o número 300 não pode representar gerações ideais, com
resultados satisfatórios (i.e., 300 não é divisível por 40). Logo, os propo­
nentes de uma data mais recente para o êxodo são forçados a utilizar no­
vos métodos de cálculo. Tipicamente eles postulam a conquista em duas
etapas, afirmando que Jefté não se referia à conquista israelita como uma
confederação das 12 tribos, mas a uma anterior, uma ocupação "pré-êxodo"
da Transjordânia por uma tribo, ou tribos, que somente mais tarde asso­
ciou-se àquelas poucas tribos de Israel que possuíam a tradição do êxodo.28
A conquista da Transjordânia, segundo esta recriação da história do Anti­
go Testamento, precedeu a conquista de Canaã por mais ou menos um
século. Além disso, Jefté inequivocamente referia-se aos conquistadores
de Seom como os israelitas que tinham saído do Egito (Jz 11.13,16). Por­
tanto, a menos que se desconsidere a própria evidência interna, a data de
1446 para o êxodo permanece de pé.
Além dos dados cronológicos bastante específicos, o Antigo Testa­
mento fornece uma descrição suficiente do êxodo e seu período antece­
dente, confirmando uma data mais antiga para o evento. Já foi exposto
que a história de Moisés melhor se adapta às datas e circunstâncias da
18a Dinastia do Egito. Se aceitarmos a data mais recente para o êxodo, a
qual sempre está associada a Ramsés II, será preciso desconsiderar todo
o testemunho bíblico. Moisés não voltou ao Egito até que aquele faraó

costumes estavam em vigor em 1 Rs 6.1 (Ancient Orient and Old Testament [London:
Tyndale, 1966], pp. 74-75).
T.J. Meek, Hebreia Origins (New York: Harper and Row, 1960), pp. 30-31, 34-35
62 H istória de I srael no A ntigo T estamento

- que antes tentou tirar-lhe a vida - estivesse morto. O retorno de Moisés


da terra de Midiã foi postergado por aproximadamente 40 anos; logo,
o rei em questão deve ser alguém que reinou, no mínimo, por este perí­
odo de tempo. Na 19a Dinastia, somente Ramsés II - que reinou de 1304
a 1236 - satisfaz este requisito, porém ele não pode ser o faraó do êxodo,
porque este foi sucessor de um outro que havia tido um reinado de
longa duração.
A data mais recente exige que Merneptah (1236 - 1223) tenha sido o
rei durante a humilhação no êxodo. Porém, ainda que tal evento tives­
se ocorrido em seu primeiro ano como faraó, a jornada de 40 anos no
deserto dataria o início da conquista em 1196. Os juízes de Israel de­
vem então ser reunidos no período desde o início de sua administração
(cerca de 40 anos após do início da conquista - 1156) até a morte de
Sansão, o último juiz (com exceção de Samuel, que viveu também sob a
monarquia), por volta de 1084. Nenhuma manipulação das evidências
consegue espremer os longos anos do governo dos juízes em 70 ou 100
anos. Além disso, o próprio Merneptah liderou uma campanha em
Canaã no seu quinto ano (1231), durante a qual ele afirmou ter encon­
trado e vencido Israel.29 Obviamente é impossível que Israel, num es­
paço de apenas cinco anos, tivesse escapado do Egito, parado no mon­
te Sinai, peregrinado no deserto, conquistado Seom e Ogue, entrado
em Canaã e, finalmente, por lá ter se estabelecido. Os que advogam
uma data m ais recente precisam desconsiderar todo m étodo his-
toriográfico, e reinterpretar o único documento genuíno - o Antigo Tes­
tamento.30

As evidências a favor de uma data recente

Ausência de acampamentos sedentários na Transjordânia


Há três argumentos principais desenvolvidos para apoiar uma data
mais recente para o êxodo; dois destes são substanciais, e o terceiro é du­
vidoso até mesmo para os defensores de tal ponto de vista. Este será con­
siderado primeiro. Por muitos anos, o eminente arqueólogo e explorador

29 Para obter maiores informações sobre o texto da chamada "esteia de Israel", consulte
Pritchard Ancient Near Eastern Texts, pp. 376-78.
30Isso é exatamente o que os críticos estudiosos fazem. Para uma aproximação mais deta­
lhada desse caso, ver H.H.Rowley, From Joseph to Joshua (London: Oxford University
Press, 1950), esp. pp. 129-44.
0 Ê xodo: N ascimento de uma N ação 63

Xelson Glueck afirmava - baseado nos objetos de cerâmica encontrados


na superfície e nas encostas dos morros por toda a Transjordânia e pelo
Xegueve - que não havia quaisquer registros acerca de populações seden­
tárias que ali tenham residido entre os anos 1900 e 1300 a.C.31 Praticamen­
te todas as autoridades em Antigo Testamento aceitaram esta opinião e,
portanto, concluíram que as referências aos povos estabelecidos em Canaã
encontrados por Moisés e Josué precisariam de uma data após 1300 para a
jornada no deserto. Segue-se que o êxodo também não poderia ter ocorrido
muitos anos antes dessa data. Mais tarde, os sítios arqueológicos outrora
escavados por Glueck - que até então eram considerados como evidência
para uma data recente do êxodo - foram novamente pesquisados por ou­
tros cientistas, que concluíram exatamente o oposto, afirmando inclusive
que muitos dos achados remontavam à Era do Bronze Recente, ou eram até
mesmo mais antigos.32 Muitos locais relacionados às histórias de Moisés e
Josué vindicaram de forma convincente a data de 1400.

Os israelitas e a construção da cidade de Ramsés


Um segundo argumento para a data mais recente é visto no próprio tex­
to bíblico. Êxodo 1.11 assinala que os israelitas, quando submetidos à escra­
vidão, construíram algumas cidades para Faraó, incluindo Piton e Ramsés.
As cidades, à princípio, chamavam-se Pi-Atum e Per-Ramesse, e ambas não
foram construídas, mas reconstruídas pelos israelitas.33 A insistência na re­
levância desse versículo como um indicador da data do êxodo fundamenta-
se, exclusivamente, na pressuposição de que a cidade de Ramsés foi assim
chamada por causa de Ramsés II, o famoso rei dà 19a Dinastia. Pode-se con­
siderar que ele construiu ou reconstruiu a cidade usando seu nome (Per-
Ramesse), e que para isso tenha se valido da mão-de-obra escrava do povo
'apiru (embora isto não possa ser comprovado nos papiros freqüentemente
utilizados).34 Todavia, é inseguro tentar provar que a cidade de Êxodo 1.11

?1Nelson Glueck, "Explorations in Eastern Palestine and the Negev", BASOR 55 (1934): 3­
21; BASOR 86 (1942): 14-24.
John J. Bimson, Redating the Exodus and Conquest (Shefield: JSOT, 1978), pp.67-74; James
R. Kautz, "Tracking the Ancient Moabites", BA 44 (1981): 27-35; Gerald L. Mattingly,
"The Exodus-conquest and the Archaeology of Transjordan: New Light on an Old
Problem,", GTJ 4 (1983): 245-62.
Veja E.P. Uphill, "Pithom and Raamses: Their Location and Significance", JNES 27 (1968):
291-316; JNES 28 (1969): 15-39.
Para ver o texto (Leiden 348), consulte Moshe Greenberg, The Hab/piru (New Haven:
American Oriental Society, 1955), p. 56, numero 162.
64 H istória de I srael no A ntigo T estamento

é a mesma Per-Ramesse de Ramsés II, e que o povo 'apiru eram os israelitas.


William Albright demonstrou há muitos anos que os Ramessidas não têm
origem na 19a Dinastia, mas remontam ao período dos hicsos.35 Não pode­
ria ser verdade que os israelitas reconstruíram uma cidade chamada Ramsés
bem antes do reinado de Ramsés II?
Tem sido recentemente proposto por alguns estudiosos conservadores
que a passagem de Êxodo 1.11 é um anacronismo. Ou seja, os israelitas
reconstruíram na época uma cidade conhecida por Tanis e, anos mais tar­
de, um editor inspirado modificou o nome no texto para Ramsés, visto
que o nome original não mais era usado, tornando-se sem sentido para os
leitores. Embora seja uma distinta possibilidade (outros exemplos tam­
bém podem ser citados), parece-nos desnecessário, caso o nome Ramsés
possa ser associado (e pode) a um período na história egípcia que antece­
da ao êxodo.
Um outro fator que tem sido desprezado é o longo período entre a cons­
trução das cidades e o êxodo. A passagem diz que os israelitas eram força­
dos a trabalhar no projeto e que, quanto mais eram maltratados pelos egíp­
cios, mais se multiplicavam e enchiam a terra. E bem nítida a impressão de
uma geração sucedendo a outra. Além disso, após falhar em seu desígnio,
faraó promulgou o infanticídio, um evento que precisa ser datado na época
do nascimento de Moisés. Amenos que alguém descarte a informação bíbli­
ca referente à idade de Moisés na época do êxodo, outros 80 anos haviam se
passado antes deste acontecimento. Ora, se Ramsés II foi o faraó do êxodo e
a cidade de Ramsés foi batizada em sua homenagem, então seu reino in­
cluiu os anos da construção, os anos entre a construção das cidades e o de­
creto do infanticídio, e os primeiros 80 anos de Moisés. Um total que bem
pode ultrapassar 100 anos. Ainda que Moisés tivesse apenas 40 anos na
época do êxodo, um reinado de 60 anos para Ramsés seria inadequado. E
nenhuma tradição bíblica permite que Moisés tenha sido tão jovem naquele
momento. Logo, se o testemunho do Antigo Testamento possui alguma
credibilidade, a cidade de Ramsés, antes do êxodo, não foi batizada com

35 William F. Albright, From the Stone Age to Christianity (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1957), pp. 223-24. Gleason L. Archer Jr. faz uma citação acerca de uma pintura numa
parede que data da época de Amenotepe III (1417-1379), na qual aparece o nome de um
famoso vizir conhecido por Ramose. Conforme Archer tem procurado indicar, isso signi­
fica que nomes como o de Rameses têm datas anteriores a 19a Dinastia e que, por conse­
guinte, o nome da cidade de Êxodo 1.11 não necessariamente precisa ser datada tão
recente quanto a época de Rameses II ("An eighteenth-Dynasty Rameses," JETS17 [1974]:
49-50). Mas Archer está errado ao dizer que a pintura jamais foi citada na literatura, já que
a mesma está registrada em Hayes, "Internai Affairs", em CAH 2.1, pp. 342,405.
0 Ê xodo: N ascimento de uma N ação 65

esse nome por causa de Ramsés II. (Sobre o nome Ramsés, Charles Ailing
tem outras informações.)36

Evidências da conquista ocorrida no século XIII


O terceiro e mais utilizado argumento em defesa da data mais recente é
a evidência arqueológica de uma devastação maciça de cidades e vilarejos
da parte central de Canaã durante esse período. Uma vez que essas evi­
dências são incontestáveis, e o único evento histórico em qualquer perío­
do que poderia ser responsável por isto seria a invasão dos israelitas,.con­
clui-se que a conquista de Canaã foi a causa de tais destruições, tendo o
êxodo ocorrido poucos anos antes.37
Entretanto, há alguns sérios problemas com esta interpretação dos
dados arqueológicos. Em primeiro lugar, não há qualquer evidência
extrabíblica encontrada nos sítios arqueológicos em Canaã, na metade
do século XIII, que indique a origem de tais invasões. As supostas evi­
dências de transição cultural são, até hoje, motivo de discussão, de for­
ma que não podem indicar quaisquer mudanças à influência dos israe­
litas no local.38 É preciso observar quç os únicos documentos existen­
tes que descrevem levantes e conflitos militares, mesmo que remota­
mente similares ao relato bíblico da conquista, são as cartas de Tel el-
Amarna. Estas foram escritas por uma testemunha ocular dos fatos;
descrevem os conflitos entre aá cidades cananéias e repetidamente
mencionam os 'apiru, que\tomam posições diferentes em momentos
diferentes.39 O momento histórico descrito nessas cartas endereçadas

* Para mais exemplos, ver Charles F. Ailing, "The Biblical City of R a m s é s JETS 25 (1982):
136-37. Contudo, o próprio Ailing demonstra que o nome Ramsés, ou uma de suas vari­
antes, já foi coiivpfovado e achado em épocas tão remotas quanto a 12aDinastia (p. 133).
Sendo assim,-, assumir que o nome da cidade descrita em Êxodo 1.11 deve conduzir a
Rárftsés II é totalmente sem fundamento, embora a cidade deva sem dúvida ter sido
assim chamada em homenagem a alguma personalidade dentre a realeza da época. Tentar
achar nessa referência qualquer anacronismo também forçará na mesma direção em
Gênesis 47.11, onde o texto mostra a fixação de Jacó e sua família na "terra de Ramsés"
como seu no'' lar. _ x er teori; i e conduza a uma d ± l dal s o deve ser tida
como fraca.
37 Esta é a visão tanto de estudiosos liberais quanto de conservadores. Maiores informa­
ções, ver Harry T. Frank, Bible, Archaeology, anã Faith (Nashville: Abingdon, 1971), p. 95;
Kitchen, Ancient Orient, pp. 61-69; Roland K. Harrison, Old Testament Times (Grand
Rapids: Eerdmans, 1970), pp. 175-76.
3' Kathleen Kenyon, Archaeology in the Holy Land (New York: Praeger, 1960), pp. 208-10.
3" Para consulta das principais cartas, ver Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 483-90.
66 H istória de I srael no A ntigo Testamento

aos faraós Amenotepe III e Amenotepe IV (Akhenaten) está entre 1380


e 1358, precisamente a data tradicional da conquista! Embora não se
deva identificar automaticamente os "apiru" como os hebreus, alguns
estudiosos mais motivados e defensores da data recente para o êxodo
sugeriram que as cartas de Amarna refletem, na realidade, uma con­
quista anterior por algum as tribos de Israel, tais como Efraim e
Manassés, aproximadamente em 1375, e que as demais tribos conquis­
taram Canaã quase um século depois.40 Esta posição exige que Josué
preceda Moisés por 100 anos ou mais, uma visão que desconsidera toda
a evidência bíblica tradicional. Esta reconstrução falha ao produzir pro­
vas convincentes enquanto tenta acomodar os dados arqueológicos e
inscrições extrabíblicas ao registro bíblico.
Pode-se levantar a questão acerca do significado de camadas de entulho
arqueológico do século XIII (que revelam algum tipo de destruição), e da
falta desta evidência no início do século XIV.41 Vamos iniciar por esta últi­
ma. Primeiro, embora todos os estudiosos concordem que as cartas de
Amarna refletem as condições reais e tumultuosas de Canaã no início do
século XIV, reconhecem que as guerras civis e maus tratos provocados pelos
'apiru e outros povos quase não deixaram sinais de invasão ou conquista
perceptíveis à pesquisa arqueológica.42 Portanto, também não seria possí­

40 Meek, Hebrew Origins, pp. 23-25. Meek estabelece a data do êxodo e da conquista de
Canaã bem próximo de 1200 a.C.
41 Para uma discussão mais abrangente, ver Eugene H. Merril, "Palestinian Archaeology
and the Date of the Conquest: Do Tells Tell Tales?" GTJ 3 (1982): 107-21.
42 Kenyon, Archaeology, pp. 209-12; George E. Mendenhall, "The Hebrew Conquest of
Palestine", BA 25 (1962): 72-73. Shemuel Ahituv cita alguns casos de destruição causa­
das pelos egípcios, mas não apresenta nenhum exemplo oriundo do interior de Canaã
que possa ser datado depois de Tutmose III (1504-1450) e antes de Seti I (1318-1304).
Além disso, nenhuma cidade ou vilarejo conquistado por Josué foi citado por Ahituv
como tendo sido conseqüência de conflitos internos com os 'apiru ou devido a qualquer
campanha egípcia na região. Sendo assim, as regiões montanhosas de Canaã permane­
ceram virtualmente ilesas durante o período de Amarna, o mesmo período da conquis­
ta descrita na Bíblia. ("Economic Factors in the Egyptian Conquest of Canaan", IEJ 28
[1978]: 93-96,104-5). Thutmose IV, que foi o faraó que reinou durante os anos da pere­
grinação no deserto (1425-1417), fez apenas uma campanha em Canaã, na qual conquis­
tou Gezer. Nem mesmo Amenotepe III (1417-1379) ou Amenotepe IV (1379-1362) - os
governantes que reinaram durante os anos da conquista - se lançaram em qualquer
ataque a Canaã. Ver James M. Weinstein, "The Egyptian Empire in Palestine: A
Reassessment," BASOR 241 (1981): 13-16. Michael W. Several vai muito mais além, de­
monstrando que o período de Amarna foi caracterizado como uma era de paz jamais
vista antes ou depois, uma condição que ele associa diretamente ao sólido controle egípcio
O Ê xodo : N ascimento de uma N ação 67

vel que a conquista israelita não deixasse vestígios arqueológicos? Em se­


gundo lugar, e ainda mais importante, não existe evidência arqueológica da
conquista no início do século XIV, especialmente porque as cidades e vilarejos '
cananeus, com poucas exceções, foram poupados da destruição material,
como uma questão política iniciada por Moisés e implementada por Josué.
Em outras palavras, sinais de uma grande devastação no período de 1400
a 1375 tornam-se um grande problema para a visão tradicional, já que o
testemunho bíblico indica claramente que a Israel foi ordenado aniquilar a
população cananéia, mas poupar as cidades e vilarejos nos quais eles vivi­
am. E o registro bíblico afirma que o mandato foi fielmente observado. As
grandes exceções foram Jerico, Ai e Hazor. A cidade de Jerico tem sofrido
tanto a degeneração causada pelo tempo e as escavações feitas sem a dire­
ção científica apropriada, que os especialistas estão completamente dividi­
dos em relação à cronologia, um fato que leva muitos a desconsiderarem o
local como importante para a pesquisa em geral.43
A localização de Ai ainda está em debate e, enquanto não for definida, a
data de sua destruição continuará sendo um ponto questionável.44 Quanto
a Hazor, Ygael Yadin, escavador e principal autoridade no local, sugeriu a
princípio que ela sofrera um terrível incêndio por volta de 1400 - uma cala­
midade por ele associada à conquista porém, mais tarde, ele modificou a
data para o século XIII.45 Sem considerar o que o levou a reavaliar sua teo­
ria, muitos estudiosos ainda estão convencidos de que sua data original
deve ser aceita.46
A razão da falta de comprovação arqueológica para as conquistas
do século XIV é que não há nada para se confirmar, por assim dizer.
Moisés disse que o Senhor daria a Israel cidades que eles não haviam
construído, casas cheias de bens que eles não haviam ajuntado, cister­
nas que eles não haviam cavado, e vinhas e olivais que eles não haviam
plantado (Dt 6.10,11). E Josué, após a conquista, pôde confirmar o cum-

sobre a região ("Reconsidering the Egyptian empire in Palestine During the Amarna
Period," PEQ 104 [1972]: 128-129). As Cartas de Amarna falam de várias coisas, menos
de paz.
43Roger Moorey, Excavation in Palestine (Grand Rapids: Eerdmans, 1983), pp. 116-17.
44 Bimson, Redating, pp. 215-25.
45 Yigael Yadin, "The Raise and Fali of Hazor", em Archaeological Discoveries in the Holy
Land, Archaeological Institute of America (New York: Crowell, 1967), pp. 62-63;
"Excavations at Hazor, 1955-1958", em The Biblical Archaeologist Reader, editado por
Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964),
vol. 2, p. 224; "The Fifth Season of Excavations at Hazor, 1968-69," BA 32 (1969): 55.
46 Bimson, Redating, p. 194.
68 H istória de I srael no A ntigo T estamento

primento destas promessas (Js 24.13). Logo, as hipóteses de muitas au­


toridades que defendem uma conquista violenta da terra simplesmen­
te desaparecem diante da tradição bíblica. O silêncio da arqueologia
com respeito à conquista do século XIV é, em si mesmo, um poderoso
apoio a tal data.
O que podemos fazer então com as evidências óbvias de uma destrui­
ção das cidades cananéias no século XIII? Em primeiro lugar, é impor­
tante notar que se a conquista israelita ocorreu no início do século XIV,
então essas cidades eram de Israel havia muito tempo, e não dos cananeus.
Atualmente, não há como fazer distinção entre os fenômenos culturais
Idade do Bronze Recente Cananita e Idade do Bronze Recente Israelita.
Em segundo lugar, deve ter havido outros fatores, além de Israel, que
também agiram e contribuíram para a destruição. O livro de Juízes es­
clarece que Israel foi constantemente ameaçado e atacado por povos ini­
migos que estavam dentro e fora de Canaã.
Nenhum momento da história foi tão devastador para Israel como o
século XIII, ou seja, precisamente o tempo em que os defensores da data
mais recente para o êxodo estabelecem a conquista. A cronologia tradici­
onal localiza o governo de Débora durante este período, e o de Gideão
um pouco depois. Embora não seja descrita a extensão dos prejuízos cau­
sados pelos inimigos (os cananeus e os midianitas), o fato de que Jabim
de Hazor "oprimia os filhos de Israel violentamente" por vinte anos (Jz
4.3), e que muitas das tribos foram unificadas sob o governo de Débora e
Baraque na intenção de barrar a força dos adversários (Jz 5.12-18), suge­
re uma vasta operação militar que pode ter infligido graves danos mate­
riais às cidades de Israel.47 A opressão midianita parece não ter afetado
Israel com a mesma intensidade, consistindo principalmente em destrui­
ção de plantações, mas com muita dificuldade a guerra pôde ser evitada
durante o período de opressão midianita. Além disso, o conflito que se­
guiu a expulsão dos midianitas por Gideão envolveu destruição materi­
al: O filho de Gideão, Abimeleque, que se autoproclamou rei, reduziu a
cidade de Siquém a escombros (Jz 9.45) antes de ser assassinado em um
cerco malsucedido em Tebez.48
Não há nada que determine o agente da destruição nos sítios urbanos da
Palestina do século XIII, exceto o que está registrado no Antigo Testamento.
Somente este registro possui completa precisão. Uma construção cuidadosa

47 Bright, History, p. 176; Kenyon, Archaeology, p. 238.


48 Edward E Campbell, Jr., and James E Ross, "The Excavation of Shechem and the Biblical
Tradition," BA 26 (1963): 16-17.
O Ê xodo : N ascimento de uma N ação 69

da cronologia baseada em uma hermenêutica não distorcida requer uma


outra explicação para tais destruições que não seja a conquista. A melhor .
alternativa seria a opressão de Israel causada pelos cananeus e midianitas, e
o restabelecimento da paz mediante a ação heróica dos juízes.
Torna-se claro que os argumentos comumente produzidos em favor de
uma data mais recente para o êxodo e para a conquista de Canaã não são
convincentes e, de fato, pelejam contra qualquer análise objetiva do relato
bíblico. O Antigo Testamento sustenta a data de 1446 a.C. Qualquer nega­
ção desse fato é simplesmente um apelo sem evidência sólida.

A d a ta e a d u ra ç ã o d o c a tiv e iro e g íp cio

O problema

O estabelecimento de 1446 como a data do êxodo permite a reconstru­


ção das cronologias mais antigas. Consideraremos primeiro a duração do
cativeiro no Egito e, em seguida, as principais datas da história patriarcal.
Conforme sugerimos no Capítulo 1, a duração da peregrinação no Egito
possui ramificações cruciais para um melhor entendimento das narrati­
vas patriarcais e de José. Uma peregrinação de 215 anos, por exemplo,
situa José no contexto hicso, ao passo que uma duração de 430 anos apre­
senta José vivendo em uma típica dinastia egípcia. As implicações são sig­
nificativas. Semelhantemente, uma peregrinação de 215 anos posiciona
Abraão e seus sucessores imediatos 215 anos mais tarde do que a data
tradicional, requerendo assim uma reconsideração dos eventos contem­
porâneos, por exemplo, a destruição das cidades da planície.

A revelação dada a Abraão

O ponto de partida de nossa discussão centra-se na revelação dada por


Jeová a Abraão de que seus descendentes seriam peregrinos em uma terra
estranha por quatrocentos anos, e que nesse período sofreriam grande afli­
ção (Gn 15.13). Porém, na quarta geração, eles seriam libertados desse jugo
pelo Senhor e seriam reintroduzidos em Canaã (Gn 15.16). A justaposição
de "quatrocentos anos" e "quatro gerações" sugere firmemente que gera­
ção aqui deve ser entendida como um século.49 Uma grande dificuldade

4° William E Albright defende a idéia de que a palavra hebraica dôr ("geração") significa
"duração da vida" no hebraico primitivo, de sorte que a passagem de Gn 15.16 está se
referindo a quatro "durações da vida", de cem anos cada (The Biblical Periodfrom Abraham
70 H istória de Israel no A ntigo T estamento

surge quando quase toda a peregrinação é caracterizada como um perío­


do de agonia, enquanto somente a última parte - após o surgimento do
novo rei "que não conhecera a José" - foi de fato aflitiva.50 Sem dúvida,
para as gerações subseqüentes de israelitas que refletiram sobre aqueles
dias, essa peregrinação não poderia ser lembrada como um momento de
crescimento, mas como dias de opressão e escravidão. O êxodo de fato foi
visto como um escape de grande tormento.

Evidências a favor de um longo cativeiro no Egito

Em defesa de uma longa permanência no Egito temos a declaração


explícita de Moisés: "O tempo que os filhos de Israel habitaram no Egi­
to foi de quatrocentos e trinta anos. E aconteceu que, passados os qua­
trocentos e trinta anos, naquele mesmo dia, todos os exércitos do Se­
nhor saíram da terra do Egito" (Êx 12.40,41). Isto situa a descida de
Jacó e seus filhos ao Egito em 1876 (o êxodo em 1446 + 430 anos de
peregrinação), uma data que estaria bem fundamentada no registro
bíblico. Um problema parece surgir, entretanto, no relato da Septuaginta
de Êxodo 12.40,41 e nas palavras de Paulo sobre esta passagem em
Gálatas 3.17. A Septuaginta informa que a duração de tempo em que os
israelitas viveram "no Egito e Canaã" foi de 430 anos; Paulo parece
apoiar esta afirmação quando diz que a Lei de Moisés foi entregue 430
anos após a promessa feita a Abraão a respeito de sua descendência.
De fato é verdade que o período desde a chamada de Abraão para dei­
xar Arã até a descida de Jacó ao Egito é de 215 anos. Assim sobrariam
apenas 215 anos para a peregrinação, se Paulo (e a Septuaginta) pre­
tendia dizer que os 430 anos referiam-se a todo o período desde a cha­
mada de Abraão até o Êxodo.
Todavia, é difícil sustentar a cronologia da Septuaginta. Além da cla­
ra afirmativa de uma peregrinação de 430 anos, há obviamente o contex­
to histórico egípcio (melhor do que o contexto hicso) nas histórias de

to Ezra [ New York: Harper, 1963], p. 9). O acadiano cognato é dãru e também significa
"duração da vida". Maiores informações em Harold Hoehner, "The Duration of the
Egyptian Bondage," Bib Sac 126 (1969): 306-16.
50 Aí está a razão de Leon J. Wood afirmar que o "novo rei, que não conhecia a José" sem
dúvida era um hicso, e não um governador egípcio. A subida dos hicsos ao poder por
volta de 1720 deixaria um período de aproximadamente 280 anos de opressão até o
momento do êxodo, em 1446 (A Survey of Israel's History [Grand Rapids: Zondervan,
1970], p. 37). Contudo, duzentos e oitenta anos não é o mesmo que quatrocentos anos.
Logo, o problema dos quatrocentos anos não está ainda solucionado.
0 Ê xodo: N ascimento de uma N ação 71

José (pp. 41-46). Além disso, a referência de Paulo ao período entre a


promessa abraâmica e o pacto com Moisés não aponta necessariamente
para a primeira vez em que a promessa foi feita. Esta foi afirmada e rea­
firmada por várias vezes a Abraão, Isaque e Jacó, sendo a última ocasião
precisamente na véspera da partida de Jacó para o Egito (Gn 46.3,4). Paulo
poderia estar se referindo não exatamente a Abraão, mas ao Pacto
Abraâmico, que foi feito pela última vez com Jacó, precisamente 430 anos
antes do êxodo.

Evidências a favor de uma curta peregrinação no Egito

A teoria de uma peregrinação de apenas 215 anos tem atraído muitos


estudiosos porque acomoda mais facilmente as "quatro gerações" descri­
tas em Gênesis 15.16 e as quatro gerações de Levi até Moisés (Ex 6.16-20).
E possível entender como a distância entre Levi e Moisés poderia ser de
215 anos, mas como apenas quatro gerações preencheriam 430 anos?51 O
significado da expressão "quarta geração" em Gênesis 15.16 já foi discuti­
do anteriormente - geração é sinônimo de século. A resposta para a
genealogia torna-se um pouco mais complexa.
Levi tinha aproximadamente 44 anos de idade quando desceu ao Egito
com seu pai Jacó.52 Êxodo 6.16 registra que ele tinha 137 anos quando
morreu; portanto, Levi viveu no Egito por aproximadamente 93 anos. Seu
filho Coate viveu toda sua vida (ou quase toda) no Egito e morreu aos 133
anos. Anrão, que passou todos os seus dias no Egito, morreu aos 137 anos.
Moisés, seu filho, deixou o Egito na idade de 80 anos. O tempo total destes
quatro anos no Egito (incluindo os anos de Moisés em Midiã) resulta em
433 anos, o que não excede muito a 430. As quatro gerações - Levi, Coate,
Anrão e Moisés - representam assim um total artificial de aproximada­
mente 430 anos. Dizemos artificial porque a sobreposição de gerações não
foi levada em conta. Este método de cálculo é bem diferente do estabeleci­
do pelas modernas noções de cronologia, mas não se pode negar que o
seu uso possa ser utilizado para propósitos literários.53

Rowley, From Joseph to Joshua, pp. 70-73.


- Ver Eugene H. Merrill, "Fixed Dates in Patriarchal Chronology," Bib Sac 137 (1980): 244.
B Um exemplo bem conhecido dè uma cronologia que aparenta ser diacrônica, mas que
na realidade é sincrônica, é aquela vista na Lista dos Reis Sumerianos. As dinastias ali
contidas parecem estar em ordem sucessiva, mas os registros mais recentes mostram
que estavam freqüentemente em paralelo. Ver Thorkild Jacobsen, The Sumerian King
List, Assyriological Studies 11 (Chicago: University of Chicago Press, 1939), pp. 161-64.
O mesmo método parece estar envolvido na cronologia dos juízes (ver pp. 150-51). Tal-
72 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Além disso, Kenneth Kitchen sugeriu que a estrutura de Êxodo 6.16­


20 não reflete gerações imediatamente sucessivas, mas tribo (Levi), clã
(Coate), família (Anrão) e indivíduo (Moisés).54 Uma estrutura parale­
la é vista em Josué 7.16-18, onde tribo (Judá), clã (Zerá), família (Zimri)
e indivíduo (Acã) aparecem. Este Acã, embora membro da família de
Zimri, é especificamente identificado como filho de Carmi. Moisés,
portanto, pode não ter sido filho direto de Anrão, como aparece suge­
rido em Êxodo 6.20.
Como apoio à idéia de que a genealogia de Êxodo 6.16-20 é seletiva -
sendo a peregrinação, portanto, de longa duração - existem algumas con­
siderações. Bezalel, um dos artífices que supervisionaram a construção do
tabernáculo (Êx 31.2-5), era contemporâneo de Moisés e também a sétima
geração desde Jacó (1 Cr 2.1,4,5,9, 18-20), enquanto Moisés era apenas a
quarta. Elisama, o líder da tribo de Efraim na ocasião da jornada de Israel
pelo Sinai (Nm 1.10), era a nona geração desde Jacó (1 Cr 7.22-26). E ainda
mais notável: Josué, assistente de Moisés, era a décima primeira geração
desde Jacó (1 Cr 7.27).
Embora essas onze gerações possam ser enquadradas perfeitamen­
te nos limites necessários para uma peregrinação de 215 anos, o fato é
que não se pode usar as quatro gerações da genealogia de Levi a Moisés
como um argumento para uma curta peregrinação, uma vez que é pra­
ticamente certo que a genealogia de Levi a Moisés seja representativa,
e não completa.
Uma última objeção à teoria de um curto período no Egito está baseada
na dificuldade de se entender como as setenta (ou setenta e cinco) pessoas
da família de Jacó, na ocasião da descida ao Egito, multiplicaram-se em
apenas 215 anos para seiscentos mil homens, sem contar as mulheres e as
crianças (Êx 12.37). Mesmo os 430 anos se mostram curtos em circunstân­
cias naturais. O registro bíblico, no entanto, declara que o notável cresci­
mento ocorreu como resultado da bênção e providência de Deus. Pode-se
demonstrar matematicamente como, após dez ou doze gerações, 430 anos
seriam suficientes para todo esse crescimento da população, mas 215 anos
é algo realmente difícil de aceitar.55

vez então as quatro gerações de Levi a Moisés foram selecionadas porque o total de
anos nelas envolvido aproximava-se de 430 anos.
54 Kitchen, Ancient Orient, pp. 54.5.
55 Quanto a uma evidência matemática, ver Cari R Keil e Franz Delitzsch, Biblical
Commentary on the Old Testament, vol. 2, The Pentateuch (Grand Rapids: Eerdmans, 1951),
pp. 28-29.
0 E xodo: N ascimento de uma N ação 73

Concluímos que a idéia de uma peregrinação mais longa deve ser pre­
ferida, pois melhor acomoda os requisitos da cronologia bíblica, e ajusta-
se à história egípcia de uma maneira bem mais satisfatória.

C ro n o lo g ia d o s p a tria rc a s

O estabelecimento das datas para o êxodo e para a permanência no


Egito torna possível precisar as datas do período patriarcal.
E essas datas somente serão admissíveis se o estudante estiver disposto
a aceitar a facticidade da informação contida em Gênesis. Caso alguém ar­
gumente, baseado em qualquer informação, que a longa vida dos patriarcas
é impossível ou que as narrativas registram acontecimentos não históricos,
episódios legendários, tal pessoa não poderá dizer nada significativo a res­
peito de cronologia ou história. Rejeitar os únicos dados disponíveis signifi­
ca desprezar qualquer chance de reconstruir a história primitiva dos hebreus.
De acordo com Gênesis 47.9 Jacó estava com 130 anos quando pela pri­
meira vez chegou ao Egito e apresentou-se perante o rei. A data deste acon­
tecimento, como já demonstrado, foi em 1876. Logo, Jacó nasceu em 2006.
Seu pai Isaque tinha 60 anos na ocasião, uma indicação de que seu nasci­
mento ocorrera em 2066 (Gn 25.26). Abraão, é claro, gerou Isaque quando
tinha 100 anos (Gn 21.5); portanto, ele nasceu em 2166. Embora haja defe­
sa para estes números, aumenta a aceitação de que as histórias dos patri­
arcas acomodam-se melhor no princípio da Idade Média do Bronze do
antigo oriente. É impossível fazer com que todos aceitem os patriarcas
como pessoas de carne e sangue, mas tem-se tornado cada vez mais difícil
permanecer cético diante da profunda compatibilidade entre o relato de
Gênesis e as descobertas sobre as épocas e os locais em que a Bíblia situa
os patriarcas.

A jo rn a d a n o d e se rto

Do mar de Juncos até o Sinai

Com este amplo quadro histórico em vista, examinemos os passos de


Moisés e Israel desde a partida do Egito. Após terem atravessado o mar de
Juncos, quase em uma disposição militar (Êx 12.51), os hebreus viajaram
por três dias através do deserto de Sur e chegaram a Mara, onde as águas
amargas foram feitas doces. De lá caminharam até Elim e entraram no
deserto de Sin - mais ou menos quarenta e cinco dias após terem deixado
o Egito (Êx 16.1) - onde pela primeira vez foram supridos com o maná.
74 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Movendo-se em direção a Refidim,56 foram atacados pelos amalequi-


tas (Êx 17.8-16). Estes eram uma tribo de nômades guerreiros cuja ori­
gem não pode ser identificada, embora Amaleque, nascido de Timna,
concubina de Elifaz (filho de Esaú), possa ser o pai dessa tribo (Gn
36.12,16). Se assim o for, o ataque a Israel é ainda mais repreensível, uma
vez que envolvia irmão contra irmão. Não é de estranhar que Amaleque
tenha sido incluído no herem de Deus (Êx 17.14).57 Israel os encontrou
novamente quando estava para penetrar em Canaã pelo sul (Nm 14.39­
45). Mais tarde, os mesmos amalequitas uniram-se aos moabitas (Jz 3.13)
e midianitas (Jz 6.3) nas campanhas militares contra Israel no período
dos juízes. Saul falhou em aniquilá-los como lhe havia sido ordenado (1
Sm 15.1-9), mas Davi atacou e destruiu muitos deles em suas expedições
através do deserto (1 Sm 27.8; 30). Finalmente desapareceram, e a última
referência bíblica a seu respeito provém dos tempos de Ezequias (cerca
de 700 a.C.; 1 Cr 4.41-43).
Sob o comando de Josué, o povo de Israel derrotou os amalequitas e
por fim chegou à montanha sagrada do deserto do Sinai, no terceiro mês
após o êxodo (Êx 19.1). Embora os tradicionais situem essa montanha na
parte sudeste da península do Sinai, estudiosos mais modernos têm su­
gerido uma localização ao nordeste ou mais situada ao centro da penín­
sula. Visto que a maioria (se não todos) dos locais que fizeram parte
daquele itinerário já não mais pode ser identificada, é praticamente im­
possível assegurar alguma informação. Mas isto é de menor importân­
cia. O principal é que neste local Israel encontrou-se com Jeová, e lá am­
bos fizeram um pacto.58

56 Os nomes desses cinco primeiros locais - Shur, Marah, Elim, Sin e Refidim - são exclu­
sivamente mencionados no Antigo Testamento, não havendo como associá-los aos mo­
dernos sítios arqueológicos. Sur era um deserto que se estendia por todo o ocidente
central do Negueve (Gn 16.7; 20.1;25.18; ISm 15.7; 27.8). Mara é mencionada apenas nos
acontecimentos ocorridos no itinerário do deserto (Êx 15.23; Nm 33.8,9), da mesma for­
ma que Elim (Êx 15.27; 16.1; Nm 33.9,10). Sin é o deserto que fica situado entre Elim e
Refidim (Êx 16.1; 17.1; Nm 33.11,12). Refidim situa-se entre Alush (Nm 33.14) e o monte
Sinai (Êx 17.1,8; 19.2). Para as possíveis localizações desses sítios, ver o mapa da p. 53.
57 O termo hebraico herem refere-se ao ato de consagrar alguém ou alguma coisa para o
serviço exclusivo de Deus. Pode ser que (conforme nesse ocorrido) haja a possibilidade
do objeto consagrado vir a ser aniquilado. Ver Leon J. Wood, herem, em R. Laird Elarris,
Gleason L. Archer, Jr., e Bruce K. Waltke, editores de Theological Wordbook of the Olá
Testament (Chicago: Moody, 1980) vol. 1, pp. 324-25.
58 Para um apanhado sobre os vários pontos de vista, ver Siegfried Elermann, A History of
Israel in Olá Testament Times, traduzido por John Bowden (Philadelphia: Fortress, 1975),
pp. 71-73.
5 n '.odo: N ascimento de uma N ação 75

A aliança do Sinai

Não serão tratadas aqui as questões teológicas que envolvem o cha­


mado pacto mosaico ou sinaítico. Basta mencionar que através desta ali­
ança o Senhor Jeová confirmou a redenção que efetuara - livrou os
hebreus da suserania egípcia, tornando-os seus próprios servos, "...um
reino sacerdotal e o povo santo" (Êx 19.6). O papel deste povo a partir
daquele instante seria mediar ou interceder como sacerdote entre o Deus
santo e as nações rebeldes do mundo, tendo em vista não somente pro­
clamar a salvação, mas também providenciar o canal humano através do
qual esta seria efetuada.59
Pode-se afirmar historicamente que as doze tribos de Israel estavam
presentes no Sinai para participar da aliança com Jeová. Esta afirmação é
rejeitada por Martin Noth e outros estudiosos, que afirmam ter sido a tra­
dição sinaítica originalmente propriedade de uma ou duas tribos, que en­
tão compartilharam seu entendimento acerca do passado com as demais
tribos, até que a herança de cada uma tornou-se a herança de todas.60 Nota-
se claramente que uma das intenções da narrativa do êxodo e da aliança é
provar que todo o Israel tomou parte no êxodo e encontrou-se com Jeová
no Sinai. Somente uma avaliação céptica do texto fundada em hipóteses
críticas improváveis pode afirmar algo que não seja a participação das
doze tribos de Israel nesse momento crucial e sagrado de sua história.
Um outro fato importante é que a forma literária em que a aliança do
Sinai aparece (Êx 20-23) é profundamente semelhante aos tratados de
suserania e vassalagem do antigo Oriente Médio, especialmente os hititas,
que foram feitos no mesmo período.61 A semelhança torna-se ainda maior
no livro de Deuteronômio, que efetivamente é uma aliança extensa e apro­
priada à geração de israelitas que estava para entrar em Canaã.62 De acor­
do com George Mendenhall, Meredith Kline, Kenneth Kitchen e outros
estudiosos, Êxodo 20-23 e Deuteronômio seguem a mesma estrutura e

Walther Eichrodt, Theology ofthe Old Testament (Philadelphia: Westminster, 1961), vol. 1,
pp. 36-45,481-85.
' Martin Noth, History of Pentateuchal Traditions, traduzido por Bernhard W. Anderson
(Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1972).
George E. Mendenhall, "Covenant Forms in Israelit Tradition", em Biblical Archaeology
Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Nowl Freedman (Garden City,
X.Y.: Doubleday, 1970), vol. 3, pp. 38-42; Klaus Baltzer, The Covenant Tormulary in OJd
Testament, Jewish, and Early Christian Writings (Philadelphia: Fortress, 1970).
J.A. Thompson, Deuteronomy: An Introduction and Commentary (Leicester: Inter-Varsity,
1974), pp. 14-21.
76 H istória de I srael no A ntigo T estamento

contêm os elementos essenciais dos clássicos tratados entre suserano e


vassalo, que foram descobertos em grande abundância nos arquivos dos
hititas em Boghazkeui, Turquia (antiga Hatusas). Visto que a maior parte
desses textos existe desde a Idade do Bronze Recente, conclui-se que os
textos bíblicos semelhantes são deste período, ou seja, o período que tem
sido tradicionalmente relacionado à época de Moisés. Porém, na intenção
de defender uma data bem mais recente para o livro de Deuteronômio,
muitos estudiosos preferem associar sua forma e conteúdo aos documen­
tos neo-assírios do sétimo século.63
Mas uma minuciosa comparação entre esses tratados e os textos bíblicos
revela problemas insuperáveis de interpretação. Por exemplo, as fórmulas
de bênçãos fazem parte integral tanto da literatura do Bronze Recente quanto
dos textos bíblicos, embora sejam completamente estranhos aos documen­
tos assírios.64 Pela lógica, fica claro que Moisés adotou a forma e o estilo de
tratados que já eram bem conhecidos no décimo quinto e décimo quarto
séculos, compondo os textos bíblicos baseado nesses modelos.65
O motivo de Moisés ter adotado esta forma é perfeitamente compreen­
sível. Ele poderia com certeza ter criado um novo estilo literário, com seus
próprios elementos peculiares; mas, visto que sua intenção era ser mais
instrutivo do que criativo, ele utilizou um veículo com o qual o povo já
estava bastante familiarizado. Em outras palavras, como um bom profes­
sor Moisés estava ciente do princípio pedagógico segundo o qual o aluno
aprende melhor quando o ensinamento parte do conhecido para o desco­
nhecido. Moisés se utilizou desta forma de comunicação a fim de que a
aliança entre Jeová e Israel pudesse ser revestida na forma dos tratados
internacionais, intentando preservar as verdades teológicas profundas que
a ela estão associadas.

Do Sinai até Cades-Barnéia

Desde a entrega da Lei - seguindo-se as cerimônias de confirmação, a


instituição do sacerdócio e outros elementos essenciais - até a recém-for-

63 Moshe Weinfeld, Deuteronomy and the Deuteronomic School (Oxford: Clarendon, 1972),
pp. 59-157; R. Frankena, "The Vassal Treaties of Esarhaddon and the Dating of
Deuteronomy,", OTS 14 (1965): 122-54.
64 Moshe Weinfeld, "The Loyalty Oath in the Ancient Near East," ( if 8 (1976): 397.
65 Kenneth A. Kitchen, "Ancient Orient, 'Deuteronism,' and the Old Testament," em
New Perspectives on the Old Testament, editado por J. Barton Payne (Waco: Word, 1970),
pp. 1-24.
O Ê xodo : N ascimento de uma N ação 77

mada comunidade teocrática, passaram-se praticamente nove meses (Êx


19.1; 40.17). Por volta do primeiro mês no ano seguinte após o êxodo (aprox.
1445) foi construído o Tabernáculo e, exatamente um mês depois, inicia­
ram-se os preparativos para que as tribos partissem do Sinai em direção a
Canaã (Nm 1.1). A viagem teve início precisamente no vigésimo dia do
segundo mês do segundo ano (Nm 10.11,12), o que significa que Israel
esteve acampado no Sinai por quase um ano inteiro. É impossível saber
acerca do cotidiano desse período, exceto que o povo era nômade e pasto­
ril. Existem oásis e terras de pastagem a sudeste do Sinai, mas estes não
poderiam prover água e alimentação para um contingente de homens e
animais tão grande.
O relato bíblico sugere que todo o processo - desde a saída do Egito até
Canaã - foi uma série de atos miraculosos de Deus por meio dos quais Ele
redimiu, libertou e sustentou o seu povo. Leitores modernistas podem ler
o texto da maneira que acharem melhor. Podem, inclusive, rejeitar catego­
ricamente o registro bíblico afirmando que as palavras não passam de um
embelezamento exagerado produzidas por trovadores que glorificavam
indevidamente seu modesto passado; ou podem aceitá-lo como uma reci­
tação de uma sóbria historiografia, não obstante a inabilidade de compre­
ender seus diversos mistérios. Tais julgamentos situam-se no campo da fé
religiosa, e não nos estudos científicos das hipóteses históricas.
Finalmente, Israel moveu-se em direção norte, ainda que com muita
dificuldade. A maioria dos locais mencionados no itinerário de Números
e Deuteronômio não mais pode ser localizada, de forma que o caminho
exato não pode ser definido.66 O primeiro acampamento foi em Tabera
(Quibrote-Hataavá - Nm 11.3,34), um local que distava três dias de via­
gem do monte Sinai (Nm 10.33), mas também não pode ser identificado.
Do mesmo modo, Hazerote (Nm 11.35) é desconhecida hoje; mas o princi­
pal acampamento dos israelitas durante os quarenta anos - Cades-Barnéia
- certamente é identificado como Tel el-Quddrat, localizado no deserto de
Zim, aproximadamente oitenta quilômetros a sudoeste de Berseba (Nm
20.1).67 De Cades os doze espias penetraram em Canaã, viajando pelo nor-

- Não será por isso que devemos considerar o relato coaio não-histórico, conforme muitos
têm pensado, tais como G.I. Davies, que identifica os tinerários de Deuteronômio como
um embelezamento dos instantes de mudanças nas aitigas fontes narrativas e em P (a
suposta fonte sacerdotal da legislação contida no Pentateuco), fazendo-as oarecer como
verdadeiras, o que serviria apenas para trazer esperança à comunidade do exílio ("The
Wilderness Itineraries and the Composition of the Pentateuch", VT 33 [1983]: 12-13).
Para uma visão que identifica o sítio tão antigo quanio a Era do Bronze Médio I, ver
H istoric de I srael no A ntigo T estamento

te até Reobe, provavelmente a mesma Bete-Reobe que fica a oeste de Dã e


a quarenta quilômetros ao norte do mar da Galiléia. Caso a "entrada de
Hamate" (Nm 13.21) seja entendida como Lebo-Hamate (a moderna
Lebweh), o reconhecimento feito pelos doze pode tê-los levado tanto para
o norte que chegaram mesmo a alcançar a nascente do rio Orontes, 160
quilômetros ao norte do mar da Galiléia.68
No decorrer da viagem, os espias também visitaram a cidade de
Hebrom, habitada naqueles dias pelos enaquins (uma raça de gigantes), e
colheram enormes cachos de uvas em Escol ("cacho"), assim chamada em
conseqüência do evento. Naqueles dias Hebrom já existia por aproxima­
damente trezentos anos (Nm 13.22; ver pp. 24,25), embora tenha sido an­
tes conhecida pelos patriarcas com o nome de Manre ou Quiriate-Arba
(Gn 13.18; 23.2; Js 14.15).
Quando retornaram a Cades-Barnéia, a maioria dos espias disse ao povo
que Canaã era habitada por gigantes que viviam em cidades com mura­
lhas intransponíveis. Apesar de Josué e Calebe afirmarem exatamente o
oposto, o povo deu crédito ao relato desanimador e decidiu rejeitar a lide­
rança de Moisés. Em conseqüência, Jeová condenou aquela geração de
adultos a uma peregrinação sem fim nos desertos do alto Sinai. E foi assim
por trinta e oito anos até que, por fim, morreu aquela geração, exceto Josué
e Calebe. A conquista de Canaã, que poderia ter tido seu início dois anos
após o êxodo, ocorreu na verdade quarenta anos mais tarde, em 1406 a.C.
Neste ínterim o povo decidiu amenizar a sentença pronunciada por
Jeová contra eles; lançaram-se em um ataque contra os amalequitas e
cananeus que habitavam nas montanhas ao sul de Canaã. Moisés foi con­
tra essa tentativa doentia de vitória, não permitindo que a arca da alian­
ç a - a evidência tangível e simbólica da presença de Jeová - os acompa­
nhasse. Conforme as palavras de Moisés, os israelitas foram duramente
derrotados e humilhados, fugindo de seus adversários até o sul de Horma
(a moderna Tel el-M ishash),69 cerca de doze quilômetros a leste de

RudolphCohen, "The Excavatiors at Kadesh-barnea (1976-78)," BA 44 (1981): 104. Cohen


lança a novíssima teoria de que j destruição dos sítios arqueológicos do Bronze Médio
I no Negueve e em outros locais, as quais têm sido atribuídas pelos estudiosos aos
amoritas devem, na realidade, ser creditadas às tribos israelitas que, à medida que saí­
am do Egito pelo norte, devastavam a região. Isso colocaria o êxodo numa data muitís­
simo remota, aproximadamente 2000 a.C. ("The Mysterious MB I People," BAR 9 [1983]:
16-29)! Tudo o que se liga às atividades patriarcais na tradição deve ser associado à
conquista israelita.
68 Yohanan Aaaroni, The Land of the Bible (Philadephia: Westminster, 1979), pp. 72-73.
69 Ibid., p. 201.
0 Ê xodo: N ascimento de uma N ação 79

Berseba. Esta lição parece ter sido suficiente, pois não houve mais qual­
quer outra tentativa de entrar em Canaã prematuramente.

De Cades-Barnéia às planícies de Moabe

O encontro com Edom


No quadragésimo ano, Moisés traçou planos para retomar a marcha
até Canaã. Desta vez a estratégia determinada era tentar uma penetração
pelo leste, atravessando o rio Jordão em direção ao caminho próximo a
Jericó. Para a concretização desse plano, Moisés sabia que teria de atraves­
sar os territórios edomita e moabita, já que a rota mais acessível ao norte
de Cades-Barnéia passava bem no centro das duas nações. E além disso
esta rota, a chamada Estrada Real, era muito bem defendida, especialmente
nos locais onde havia estreitamentos entre montanhas. Logo, viajar por
esse caminho obrigatoriamente exigia a permissão daqueles que controla­
vam os pontos principais.
Primeiro Moisés enviou mensageiros a Edom e lembrou-lhe o pas­
sado histórico comum às duas nações, e como eles estavam ligados por
laços fam iliares.70 Os edomitas eram primariamente descendentes de
Esaú, que ocupou essa terra desde quando separou-se de Jacó (Gn 32.3).
A tradição bíblica indica que os habitantes originais de Edom, conheci­
da anteriormente como Seir, eram os horitas, associados seguramente
aos hurrians dos textos do antigo Oriente Médio. Eles foram expulsos
por Esaú tanto por sua força quanto pela graciosa ação de Jeová (Dt
2.12,22; Gn 36).
Os apelos de Moisés com respeito a uma mesma origem foram despre­
zados, bem como o discurso sobre o grande livramento dado por Jeová a
Israel, quando os retirou do Egito, e a proposta de permanecerem estrita­
mente na estrada, abstendo-se da água ou comida de Edom. Frustrado,
Moisés mesmo assim partiu de Cades e acampou-se nas regiões monta­
nhosas de Hor, onde morreu Arão (Nm 20.28,29). Essa região ainda não
identificada provavelmente ficava a nordeste de Cades, "ao longo da es­
trada para Atarim".71 Entretanto, o rei da cidade-estado cananéia Arade
soube que Israel se aproximava e lançou um ataque contra os israelitas. É
muito difícil saber qual é essa Arade, embora seja provavelmente Tel el­

’ Para uma visão panorâmica da identidade e história dos edomitas e moabitas, ver John
R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples ofOld Testament Times, editado por
D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), pp. 229-58.
Aharoni, Land ofthe Bible, pp. 201-2.
O Ê xodo : Nascimento de uma N ação 81

Milh em vez de Tel Arade, já que esta não existia em tempos pré-
salom ônicos.72 Tel el-Milh situa-se cerca de 19 quilômetros a oeste de
Berseba e 96 quilômetros a nordeste de Cades. O rei de Arade estava
temeroso porque os exércitos de Israel aproximavam-se de sua cidade
"ao longo da estrada para Atarin", um vale que ligava Arade a Cades.
Isso parece sugerir que Moisés, apesar de forçado a abandonar os planos
de passar pela Estrada dos Reis, estava uma vez mais determinado a
penetrar em Canaã pelo sul. Em todo o caso, Jeová concedeu a vitória
sobre Arade em Hormá, o mesmo local onde Israel havia sofrido terrível
derrota trinta e oito anos antes.

O encontro com os amoritas


A resistência cananéia, contudo, desencorajou Moisés, que retornou ao
sul com a intenção de passar a Edom pelo leste. Isso custaria uma viagem
de mais de 160 quilômetros até Elate, no mar Vermelho (Golfo de Acaba),
e 321 quilômetros de volta para o norte até as planícies de Moabe. É muito
difícil reconstruir toda a trajetória de Israel, porque os detalhes são esparsos
e muitos locais não mais podem ser identificados. Porém, juntando partes
da narrativa de Números 21 com a lista de acampamentos em Números
33, pode-se traçar uma rota geral.73 ■
Após partirem de Hor, os israelitas seguiram em direção leste até
Zalmona (es-Salmaneh?), dentro dos limites de Edom (Nm 33.41). De lá
foram cerca de 28 quilômetros em direção sudeste até Punom (Feinan),
um local de minas de cobre e talvez o local do episódio da serpente de
bronze.74 Obote, o próximo local mencionado em ambas as listas (21.10;
33.43), não pode ser localizado com precisão, mas, ao contrário do que
pensa a maioria dos estudiosos, provavelmente deve ser localizado ao les-

"2 Ibid., pp. 215-16.


Para consultar algumas rotas sugeridas, ver Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah,
Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan, 1968), no mapa 52. A unidade e integrida­
de essencial das várias listas de itinerários são enfatizadas por Albright, "Moses Out of
Egypt," BA 36, pp. 58-59. Z. Kallai, por outro lado, partindo da hipótese da crítica de
tradição, advoga a idéia de que o relato de Números 33 é um resumo estilizado que se
baseou em um conjunto de tradições que circulavam na época, e que cobre desde Êxodo
até Números 21. Finalmente, Deuteronômio 1-2 seria uma "versão refinada do conceito
que modelou a adaptação de Números 20-21" ("The Wandering-Traditions from Kadesh-
Barnea to Canaan: A Study in Biblical Historiography," JJS 33 [1982]: 183-84). O proble­
ma com essa hipótese é que ela se apóia sobre uma aceitação indiscriminada das supo­
sições da crítica da tradição.
’’ .Aharoni, Land of the Bible, p. 204.
82 H istória de I srael no A ntigo T estamento

te de Edom.75 Caso seja assim, uma viagem de Punon ao sul em direção ao


mar Vermelho e outra em direção a Obote não foram mencionadas em
momento algum de Números. Porém, Deuteronômio 2.1-8 revela que Is­
rael partiu de Hor seguindo a estrada que dá no mar Vermelho; depois
voltou-se para o norte, não pela estrada de Arabá ou pela Estrada dos
Reis, mas “pela estrada no deserto de Moabe", contornando ao leste a
maioria dos centros populacionais de Edom. Depois de Obote veio Iye-
Abarim, na fronteira moabita, formado na ocasião pelo Vadi Zered, um
riacho permanente que corria dos planaltos ao oriente para dentro do mar
Morto, ao sudeste.76 E dali partiu Israel em direção norte, passando pelo
rio Arnon (Nm 21.13), e acampou-se no território amorita em Dibom-Gade
(Dhiban), a pouco menos de 64 quilômetros do Jordão.
Israel passou pela fronteira oriental de Edom e pelo centro de Moabe
sem qualquer incidente. Embora os moabitas não tivessem condições de
resistir a Israel, ainda que tentassem, Jeová instruiu Moisés a não lhes fa­
zer nenhum mal, pois Ele havia dado aquela terra a Moabe (Dt 2.9). Os
moabitas surgiram de uma relação incestuosa entre Ló e sua filha mais
velha (Gn 19.37); eram, portanto, parentes próximos dos israelitas. Eles
substituíram a população nativa dos planaltos mais altos da região orien­
tal, e construíram um reino cuja fronteira ao sul chegava até o rio Zerede.
Sua fronteira ao norte variava de Arnon a uma linha que seguia direto
para o oriente, e que partia da margem superior do mar Morto. Os habi­
tantes mais antigos eram chamados de Emim, um subgrupo, tal qual os
enaquins, de uma raça chamada refain. Estes eram aparentemente um povo
gigante, cujo nome significa "os terríveis", mas cuja origem é completa­
mente desconhecida.77
Ao chegar a Dibom, Israel deparou-se com os terríveis amorreus que,
naqueles dias, controlavam toda a Transjordânia entre o Arnon e o Jaboque,
com exceção das fortalezas amonitas do oriente. Esses amorreus descen­
diam provavelmente de uma antiga migração do povo amurru em dire­
ção a Canaã, da qual Abraão deve ter feito parte (ver pp. 16,17). Desde os
tempos mais antigos, eles vinham forçando os cananeus nativos a deixa­
rem as montanhas, estabelecendo-se naquele local e iniciando uma forma
de vida seminômade que, mais tarde, tornou-se urbanizada. Esse quadro

75 Martin Noth, Numbers: A Commentary, tradução de James D. Martin (Philadelphia:


Westminster, 1968), p. 245.
76 Já por inúmeras vezes, lye Abarin tem sido identificada com el-Medeiyineh, 32 quilô­
metros a sudoeste do mar Morto (Aharoni, Land of the Bible, p. 202).
77 Conrad L'Heureux, "The Ugaritic and Biblical Rephain," HTR 67 (1974): 265-74.
O Ê xodo: N ascimento de uma N ação 83

permaneceu até os dias de Moisés, como deixa claro o relato dos doze
espias (Nm 13.29). Mesmo os mais distantes planaltos haviam sucumbido
aos amorreus, e, como resultado, os moabitas e amonitas tiveram de
entrincheirar-se e satisfazer-se com uma considerável redução de seus ter­
ritórios (Nm 21.26-30).78 Mesmo percebendo o iminente conflito, Moisés
decidiu seguir a rota pelas terras amoritas até Beer (localização desconhe­
cida), Matana (desconhecida), Naaliel (desconhecida), Bamote (desconhe­
cida), e finalmente até Pisga, situada na margem de um alto planalto que
possibilita a visão do mar Morto. Essa estrada passava bem próximo à
capital dos amorreus, chamada Hesbon, o que sem dúvida provocaria a
sua intervenção.
Logo, Moisés solicitou a Siom, rei dos amorreus, permissão para conti­
nuar naquele caminho. Esse pedido - feito enquanto Israel achava-se no
deserto de Quedemote (Dt 2.26) - foi negado; e Siom lançou-se para atacar
Israel em Jaaz (Khirbet el-Medeiyineh?), situada cerca de 32 quilômetros
ao sul de Hesbon. Israel prevaleceu e, em pouco tempo, tomou a cidade
de Hesbon, matou a Siom, e ocupou todas as terras dos amorreus - desde
Arnom até Jazer, a nordeste de Jerico.
A ordem dos acontecimentos e o caminho percorrido são bastante obs­
curos, já que os diferentes relatos alistam diferentes lugares.79 A narrativa
fundamental - Números 21.13-32 - parece descrever o itinerário de ma­
neira resumida (vv. 16-20), registrando a comunicação com Siom, sua per-

7 Embora equivocado quanto a capacidade de exatidão dos textos históricos referentes


aos amoritas da Transjordânia, M. Liverani reconhece que, na tradição de Israel, os
amoritas constituíram-se num povo pré-conquistado da região. Sua falha reside em não
reconhecer que sua teoria não se fundamenta em bases históricas seguras ("The
Amorites," em Peoples ofOld Testament Times, editado por D.J. Wiseman, pp. 125-26).
7lJ Veja Eugene H. Merrill, "Numbers", em The Bible Knowledge Commentary, editado por John
F. Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. I, pp. 239-40. John Van Seters
faz a tentativa de harmonizar os relatos de Números 21.21-35, Deuteronômio 2.26-37 e
Juízes 11.19-26, utilizando fontes deuteronomistas, sobre as quais a versão de Números
foi baseada. O "escritor-redator" de Números inseriu na narrativa um motejo em forma
de cântico contra Moabe (Nm 21.27-30), um outro relato "críptico e artificial" a respeito
da conquista de Jazer e, por último, a história acerca da guerra contra Ogue, um aconteci­
mento que ele extraiu de Deuteronômio 3.1-7 ("The Conquest of Sihon's Kingdom: A
Literary Examination,"JBL 91 [1972]: 195). Uma variante disso - que Números 21.21-25 é a
fonte de outras duas narrativas acerca da campanha contra Seom - é sugerida por John R.
Bartlett, "The Conquest of Sihon's Kingdom: A Literary Re-examination," JBL 97 (1978):
347-51. Esses fatos apenas corroboram mais a verdade da tradição bíblica, embora até
mesmo Bartlett, que nega a autoria mosaica de Números e Deuteronômio, falhe em admi­
tir que o mesmo autor possa ter contado o mesmo acontecimento com ênfases diferentes.
84 H istória de I srael no A ntigo T estamento

tinácia e sua derrota em Jaaz e em outros lugares (vv. 21-32). O local de


onde foi feita a primeira solicitação de passagem, o deserto de Quedemote,
não se encontra em Números, mas consta no discurso pronunciado por
Moisés sobre a conquista da Transjordânia, registrado em Deuteronômio
2.26. Talvez tenha sido esse o primeiro acampamento após Dibon-Gade e
o anterior a Beer. A lista dos acampamentos registrados em Números 33
não menciona nenhum dos lugares descritos em Números 21.13-20, mas
acrescenta Dibon-Gade, a primeira parada ao norte de Arnom (21.13);
Almom Diblataim (Khirbet Dleilat esh-Sherqiyeh), dezenove quilômetros
ao norte de Dibom-Gade; e os "montes de Abarim, defronte de Nebo"
(33.47). Essas montanhas são, ao que tudo indica, uma cordilheira da qual
Pisga (21.20) e Nebo (Dt 32.49) constituem os pontos mais altos. Foi prova­
velmente desses locais que Israel partiu a fim de capturar Hesbon, Jazer,
Aroer e todas as demais cidades controladas pelos amorreus.
Ao norte do reino de Siom estava um outro rei amorreu, Og de Basã.
Sua jurisdição estendia-se de Jazer até o extremo norte do rio Iarmuque, e
entre o Jordão e o oeste, tendo o reino amonita ao oriente. Tecnicamente,
Basã situava-se ao norte do Iarmuque, mas parece que na época da con­
quista de Israel, Og também já controlava a região sul do Iarmuque, co­
nhecida por Gileade. Tanto Basã quanto Gileade eram constituídas de pla­
naltos bem irrigados com florestas verdejantes, pastagens e terrenos culti­
váveis. O local foi tão bem-visto pelos israelitas que Rúben, Gade e a me­
tade da tribo de Manassés decidiram ali se estabelecer em vez de cruza­
rem o Jordão.
A marcha de Israel em direção a Basan foi tão rápida que Og não pôde
interceptá-los até que chegassem a Edrei, sua cidade capital, aproximada­
mente 48 quilômetros a sudeste do mar da Galiléia. Neste local o rei gi­
gante foi derrotado e destruído (Nm 21.35), e as sessenta cidades foram
tomadas (Dt 3.4). Israel controlou assim toda a Transjordânia das terras
dos amorreus, desde o vale do Arnon, ao sul, até o monte Hermon, ao
norte, uma distância de aproximadamente 241 quilômetros.

O encontro com Moabe


Quando ficou claro para Balaque, rei de Moabe, que Israel ficara no
controle de todo o norte da Transjordânia, parte inclusive de seu reino,
temeu que o seu território fosse o próximo a sucumbir. Por outro lado, a
vitória sobre Siom havia finalmente removido os amorreus das terras do
norte de Arnon, um território que Moabe vinha exigindo havia bastante
tempo. Tentando afastar a ameaça do povo israelita e retomar os territóri­
os agora desocupados na região oriental do mar Morto (inclusive as planí-
O Ê xodo: Nascimento de uma N ação 85

cies de Moabe), Balaque alugou os serviços de Balaão, um renomado adi­


vinho de Petor. Esta cidade era provavelmente a Pitru mencionada nos
textos acadianos,80 cuja localização ficava em algum ponto próximo ao rio
Eufrates, mais precisamente na alta Mesopotâmia (ver Dt 23.4). Escritos
cuneiformes oriundos da importante cidade-estado de Mari revelam a
existência de uma corporação de profetas que se especializavam em vári­
as habilidades, inclusive na previsão do futuro.81 Os documentos datam
de aproximadamente 1700 a.C.; embora tais profetas e suas técnicas para
prever o futuro tenham sido detectados no oriente do Mediterrâneo há
centenas de anos antes de 1700 a.C. Portanto, o papel vivido por Balaão no
contexto histórico de Moabe enquadra-se perfeitamente com as informa­
ções de fontes extrabíblicas.
Atarefa solicitada por Balaque foi basicamente impetrar maldições con­
tra Israel em nome do próprio Jeová, Deus de Israel. Imagina-se que a
técnica usada por Balaão consistia em usar o poder da palavra proferida
unida à capacidade de adivinhar o futuro, trazendo à existência o que
estava sendo solicitado. Assim, Balaão diferenciava-se do nabi ou rõ'eh do
Antigo Testamento, que eram apenas mensageiros que proclamavam a
vontade de Deus, mas a manipulavam. Balaão agiu, ao menos, como um
bãrü ou mahhú - um profeta que se utilizava de vários meios para discernir
e interpretar os presságios. Ele também era visto como um manipulador,
ou seja, alguém que possuía a capacidade de persuadir os deuses.82 Uma
vez que Jeová era o Deus de Israel, era evidente que Balaão passasse a agir
em nome de Jeová a fim de alcançar a solicitação do rei Balaque. Porém tal

50William F. Albright, Yahiueh and the Gods of Canaan (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1969),
p. 15, n. 38.
11 Herbert B. Huffmon, "Prophecy in the Mari Letters," BA 31 (1968): 101-24; John F.
Craghan, "The ARM X 'Prophetic' Texts: Their Media, Style and Structure," JANES 6
(1974): 39-58.
52 Para um maior conhecimento do profetismo e adivinhação na Mesopotâmia, ver A.
Leo Oppenheim, Ancient Mesopotamia (Chicago: University of Chicago Press, 1964),
pp. 206-27. Balaão praticava uma forma de encantamento em que combinava algumas
palavras ritualísticas com ações, o que supostamente ocasionava uma mudança no
curso dos eventos divinos. Ver H.W.F. Saggs, The Greatness That Was Babylon (New
York: New American Library, 1968), pp. 311-14; Frederick L. Moriarty, "Word as Power
in the Ancient Near East," em A Light unto My Path, editado por Howard N. Bream,
Ralph D. Heim e Carey A. Moore (Philadelphia: Temple University Press, 1974), pp.
345-62. Para uma confirmação sobre as funções de advinhador e amaldiçoador de
Balaão, ver Jacob Hoftijzer, "The Prophet Balaam in a 6thCentury Aramaic Inscription,"
BA 39 (1976): 12-13.
86 H istória de I srael no A ntigo T estamento

não sucedeu, e as maldições que Balaão intentava pronunciar tornaram-se


bênçãos em seus lábios; e ele voltou em desgraça para Petor. Parece que
ele retornou a Moabe tempos depois, e foi um dos responsáveis por enco­
rajar Israel a adorar Baal em Petor, um centro de culto situado a poucos
quilômetros do Jordão (Nm 25; 31.8,16; 2 Pe 2.15; Jd 11; Ap 2.14). Os
midianitas sofreram as conseqüências por participarem nesta sedução de
Israel (Nm 25.6,16-18), e muitos deles pereceram juntamente com Balaão
(Nm 31.1-12). E irônico que o mesmo povo que serviu de refúgio para
Moisés, e de quem este tomou para si uma mulher como esposa, se tornas­
se um dos principais causadores da mais séria e importante apostasia de
Israel após o monte Sinai. \
Terminada essa crise, Moisés passou a dar atenção à conquista de Canaã.
Ele mesmo não participaria da campanha por sua intemperança ao ferir a
rocha, em vez de falar-lhe. Mas como mediador da aliança, ainda possuía
a responsabilidade de providenciar a aquisição da terra e a acomodação
do povo no local. Antecipando-se às decisões de Moisés, os líderes das
tribos de Rúben e Gade (e mais tarde a tribo de Manassés) solicitaram
permissão para continuar na Transjordânia, tendo sua porção repartida
naquela região. O pedido baseava-se especialmente no fato de ser aquela
região bastante apropriada para a pecuária. Visto que eles eram criadores
de gado, não haveria razão para buscarem uma herança em outro local.
Moisés assentiu e tomou providências para repartir-lhes a terra, mas exi­
giu que se comprometessem a ajudar as demais tribos nas campanhas de
conquista de Canaã.
A Rúben e Gade coube todo o território entre Arnon ao sul e Jazer ao
norte, isto é, toda a região que anteriormente era governada por Siom, rei
de Hesbon. Em virtude de as cidades herdadas por Rúben e Gade serem
espalhadas e misturadas umas com as outras (Nm 32.34-38), as duas tri­
bos foram progressivamente perdendo suas identidades independentes.
Mais tarde, Josué procurou corrigir o problem a procedendo uma
redistribuição (Js 13.8-33). O território oriental de Manassés, dividido en­
tre os clãs de Maquir e Jair, era substancialmente idêntico ao antigo reino
de Ogue. Os maquiritas tomaram posse da parte sul, ou seja, de Gileade
até as fronteiras de Rúben e Gade. Os jairitas receberam como herança a
região ao norte de Gileade, definida mais precisamente como a cidade de
Argob, pertencente ao reino de Ogue. Seus limites eram o monte Hermon
ao norte e os pequenos reinos de Maaca e Gesur ao sul, bem acima do
Iarmuque (Dt 3.13,14). Um terceiro elemento, conhecido por Nobá - que
aparentemente não tinha ligação alguma com Manassés - apoderou-se de
Quenate e das vilas ao seu redor (Nm 32.42). Quenate situava-se cerca de
O Ê xodo: N ascimento de uma N ação 87

96 quilômetros ao oriente do mar da Galiléia, penetrando bastante o de­


serto Haurã.
Enfim, chegou o momento da morte de Moisés. Após ter resolvido so­
bre a tática de conquista, as cidades de refúgio, e a justa alocação para as
tribos ocidentais, Moisés recapitulou todas as instruções em seu discurso
final à nação de Israel, registrado solenemente no livro de Deuteronômio.
Embora para alguns este livro não tenha sido escrito por Moisés, mas por
um historiador anônimo da linha "deuteronomista" que viveu no sétimo
século, tornando-se corolários essenciais para tais críticos, o fato é que não
há nada no livro que necessariamente conduza a tais conclusões, tanto na
forma quanto no conteúdo em si. Os detalhes e o estilo do livro estão de
acordo com o que é conhecido da Era do Bronze Recente de Canaã; é con­
sistente com o restante do Pentateuco; e provê uma conclusão literária
satisfatória para os escritos de Moisés. A geração mais antiga já havia
morrido, e a nova precisava de uma expressão mais recente da aliança
com Jeová. Deuteronômio é uma iniciativa em favor da aliança à qual a
nação de Israel, às vésperas da conquista, poderia e deveria responder.83
Para documentar a fidelidade de Deus a respeito de seu pacto, e o signifi­
cado de Israel na História, Moisés escreveu o livro de Gênesis e o restante
da Torá nesse período.

Peter C. Craigie, The Book of Deuteronomy, New International Commentary on the Old
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1976), pp. 30-32.
0N P I ST A E A
P A ( Ã 0 DE C A N A Ã
A terra como o cumprim ento da promessa
O mundo antigo do Oriente Médio
Mesopotâmia.
. Mitani
Os hititas
0$ estados sírios
Egito
Os 'apiru
Os 'apiru e a conquista
A estratégia de Josué
A campanha de Jerico
A campanha central
Siquém e a renovação da aliança
A campanha em direção sul
A campanha em direção norte
A data da conquista de Josué
A campanha contra os enaquins
M odelos alternativos da conquista e ocupação
O modelo histórico-tradicional
O modelo sociológico
A terra repartida entre as tribos
A distribuição em larga escala
A distribuição da terra para cada tribo
As cidades de refugio
As cidades dos levitas
A segunda renovação da aliança em Siquém

A te rra co m o o c u m p rim e n to d a p ro m e s s a

Um elemento central e indispensável da promessa feita por Jeová aos


patriarcas era a ocupação perpétua da terra de Canaã. Para lá foi que Ele
conduziu Abraão desde Arã; abençoou-o com uma aliança e descendên­
cia, dizendo-lhe que embora seus descendentes viessem a sofrer sob o
jugo de escravidão estrangeira por quatrocentos anos, um dia eles volta­
riam para Canaã. Após muitos anos, o próprio Jeová apareceu a Moisés
e o comissionou para conduzir seu povo Israel para fora do Egito, levan­
do-o para a terra da promessa. Israel era tido por Jeová como seu filho.
Mas seu filho havia se tornado escravo de um outro senhor, duro e exi­
90 H istória de I srael no A ntigo T estamento

gente, que não admitia reconhecer os direitos de Jeová sobre o seu pró­
prio povo. Por conseguinte, em uma demonstração de poder e amor, Jeová
sacudiu o jugo de seu povo, derrotando o opressor e libertando os hebreus
através da passagem pelo mar de Juncos, até que chegaram ao local de­
terminado para a aliança - o Sinai. Foi lá que Ele afirmou sua soberania
sobre os descendentes de Abraão, e ofereceu-lhes o grande privilégio de
se tornarem seus servos na grandiosa missão de reconciliar a humanida­
de consigo mesmo. A aceitação por parte de Israel gerou uma aliança,
um contrato mediante o qual Israel e Jeová ligavam-se e obrigavam-se
mutuamente, e era garantido a Israel a apropriação de todas as promes­
sas feitas aos patriarcas. Os hebreus haviam se tornado uma nação, e
como tal passaram a ter um rei, o próprio Jeová, e uma constituição, o
livro da aliança ou concerto (Êx 20-23), e, mais tarde, o Deuteronômio.
Tudo o que eles precisavam agora era de uma terra onde pudessem go­
zar tanto a nacionalidade quanto a estabilidade. Até mesmo a terra ain­
da era uma promessa a ser cumprida. O que Israel precisava fazer era
tomar posse da ordem divina e partir para a ocupação da terra.
Israel permaneceu nas planícies de Moabe bem às vésperas da ocupa­
ção e conquista da terra. Moisés era morto e o manto de mediador da ali­
ança agora repousava sobre os ombros de Josué. Animado e encorajado
pela promessa de Jeová de que estaria sempre com ele - como havia esta­
do com Moisés - , Josué começa a planejar a estratégia que resultaria na
conquista e ocupação da terra da promessa.

O m u n d o a n tig o d o O rie n te M é d io

Antes de dar continuidade ao relato bíblico, é importante notar com


atenção o universo geopolítico em que tais fatos aconteceram. Isto é
necessário não somente porque a história bíblica é parte de um vasto
horizonte histórico, mas também por ser possível integrar a história de
Israel com as de outros povos e eventos contemporâneos. Um proble­
ma encontrado é que a data tradicional estabelecida para a conquista
(aprox. 1406-1399; ver p. 149), de modo similar ao evento do êxodo,
tem sido o alvo de severa crítica por parte de alguns estudiosos moder­
nos, que preferem adotar o ano 1250 ou até outra data mais recente. E
evidente que a narrativa da conquista deve refletir de certa forma o
antigo mundo do Oriente Médio. Por outro lado, e igualmente impor­
tante, uma cuidadosa observação do ambiente em que se encontra o
livro de Josué aumenta a compreensão de detalhes desta parte do Anti­
go Testamento.
92 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Mesopotâmia

Embora a Mesopotâmia tenha apenas uma importância secundária para


Canaã na Era do Bronze Recente, algumas observações podem ser de ex­
trema valia. Logo após o saque da Babilônia efetuado pelos hititas sob
Mursilis, em 1595, o vácuo criado na Mesopotâmia central foi rapidamen­
te preenchido por um povo montanhês do oriente chamado cassitas, que
dominou o local até cerca de 1150 a.C.1 Embora os cassitas não fossem tão
bárbaros quanto às vezes são descritos, a maior parte de suas leis é com­
pletamente obscura. São particularmente interessantes algumas correspon­
dências enviadas pelo rei cassita Burnaburias II ao rei Amenotepe III, do
Egito. Essa carta, que foi descoberta nos arquivos de El-Amarna, é um
protesto contra a aliança estabelecida entre o Egito e a Assíria, o principal
inimigo de Burnaburias, situado ao norte.2 Ele escreveu uma outra carta a
Amenotepe IV, na qual reclamava o fato de seus mensageiros - que na
ocasião viajavam por toda a terra de Canaã, na época uma província egíp­
cia ostensivamente vigiada - terem sido tratados com grande descaso.3
Essa carta, que deve ser datada perto de 1370, reflete as condições do final
do período da conquista que, segundo a cronologia bíblica tradicional, foi
uma fase descrita pelo próprio Antigo Testamento como um período peri­
goso e de desordem legal.
Ao norte da Babilônia, a Assíria começava a despertar da longa
dormência provocada pela política e supremacia cultural dos hurrianos.
Um grande avivamento veio por intermédio de Assur-uballit (1365-1330),
que deu início a uma campanha de expansão contra o reino hurriano de
Mitani, ao ocidente, e contra o reino cassita de Babilônia, ao sul. Ele escre­
veu pelo menos duas cartas ao rei Amenotepe IV, pedindo-lhe não apenas
ouro, mas também outros presentes, e por fim (mesmo relutante) entre­
gou a própria filha para ser esposa do monarca egípcio.4 Sem dúvida o
casamento foi realizado com o objetivo de obter o apoio egípcio em suas

1 Para uma descrição dessa era tão obscura da história da Babilônia, ver em C.J. Gadd,
"Hammurabi and the End of His Dynasty," no Cambridge Ancient History, 3a Edição,
editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: University Press, 1973), vol. 2, parte 1, pp.
224-27; Margareth S. Drower, "Syria c. 1550 - 1500 B.C.," CAH 2.1, pp. 437-44; D. J.
Wiseman, "Assyria and Babylonia c. 1200-1000 B.C.," no CAH 2.1, pp. 443-47.
2 Jorgen Alexander Knudtzon, Die El-Amarna Tafeln, 2 vols. (Aalen: Otto Zeller, 1964
reedição),# 9.
3 Ibid., # 8
4 Ibid., # 16; Albert Kirk Grayson, Assyrian Royal Inscriptions: (Wiesbaden: Otto
Harrassowitz, 1972), vol. 1, pp. 47-49, # 10-11.
A C onquista e a O cupação de C anaã 93

campanhas militares contra os hurrianos e os cassitas. Contudo, não há


registro de que tenha existido qualquer envolvimento de Assur-uballit em
Canaã, nem que a Assíria tenha querido efetuar qualquer campanha mili­
tar naquela direção senão nos anos do reinado de Tiglate-Pileser I (1115­
1077), próximo ao fim do período dos juízes de Israel.

Mitani

Mitani, o reino dos povos hurrianos, situava-se como um reino tampão


entre a Assíria ao leste e os hititas ao oeste. Estando ao longo dos rios
Habor e Balik, ambos tributários do Eufrates superior, Mitani alcançou
seu apogeu e grande influência durante o período da Era de Amarna (aprox.
1400-1350), ou seja, precisamente na época da conquista de Israel.5 Por
estar localizado em uma região praticamente indefensável, o reino de
Mitani era constantemente varrido pela primeira potência que o atacasse.
É improvável que este reino tenha representado alguma ameaça para
Canaã.

Os hititas

Anatólia, agora a porção central da Turquia, era o lar dos hititas. Esse
povo indo-europeu de origem ainda incerta, tendo assumido o controle
de Hatti, a população original, já havia criado um reino de estabilidade e
alto poder político-cultural em cerca de 1800 a.C.6 Após muitos anos de
declínio, o Médio Reinado Hitita surgiu e não só reafirmou o poder hitita
em Anatólia, como também iniciou um programa imperialístico de ex­
pansão territorial em várias direções. De grande importância para a histó­
ria de Israel foi o movimento em direção sul e sudeste promovido por
Tudalias II que, por volta de 1440, atacou e capturou Halab (Aleppo), de
Mitani, como também a maior parte da Síria dominada por Amenotepe II,
rei do Egito.7 Porém, esse domínio foi de curta duração, uma vez que os
monarcas egípcios e de Mitani fecharam acordos militares para reaverem
as terras ocupadas. Além disso, os vários levantes e inquietações internas

5 J.R. Kupper, "Northern Mesopotamia and Syria," em CAH 2.1, pp. 36-41; Drawer, "Syria,"
em CAH 2.1, pp. 417-36; A. Goetze, "The Sruggle for the Domination of Syria (1400-1300
B.C.)", em CAH 2.2, pp. 1-8.
- O.R. Gurney, The Hitites (Baltimore: Penguin, 1964); Seton Lloyd, Early Highland Peoples
of Anatolia (New York: McGraw-Hill, 1967).
~ O. R. Gurney, "Anatolia c. 1600-1380 B. C.," em CAH 2.1, p. 676.
94 H istória de I srael no A ntigo T estamento

na região forçaram Tudalias e seus sucessores a abrir mão de suas guarni­


ções na Síria.
Por fim, essas perdas foram restabelecidas por um rei hitita, comumente
apontado como o fundador do Império hitita, Suppiluliumas (1380-1346).8
Foi ele quem conduziu os hititas a uma posição de preeminência no extre­
mo oriente do mundo mediterrâneo, precisamente no mesmo tempo em
que Josué conquistava e se estabelecia em Canaã. Essa supremacia foi al­
cançada por meio de ações militares e por tratados internacionais que re­
giam a situação entre suseranos e vassalos. Aproximadamente em seu pri­
meiro ano, Suppiluliumas lançou-se em uma campanha militar experi­
mental na Síria, que na época era dominada teoricamente pelo rei de Mitani,
Tusratta. Mas segundo uma carta escrita por Tusratta para Amenotepe III,
rei do Egito, os hititas foram forçados a retirar-se.9 Os egípcios e os hititas,
nesse interregno, desenvolveram relações bastante amigáveis. Suppiluliu­
mas, por exemplo, escreveu uma carta congratulando Amenotepe IV por
sua ascensão ao trono egípcio;10 e este, apesar de ligado por casamento ao
rei Tusratta, não interferiu nos problemas entre os hititas e Mitani.
Finalmente, para não mais ser restringido, o ambicioso monarca hitita
lançou uma invasão de grandes proporções na Síria (aprox. 1365) e apode­
rou-se de toda a região entre o Mediterrâneo e o Eufrates, dominando ao
sul até o Líbano. Isto causou um alarme considerável em Gubla (Biblos),
como pode ser visto na desesperada correspondência entre Rib-Adda de
Gubla e Am enotepe IV.11 A fim de não antagonizar-se com o Egito,
Suppiluliumas resolveu não mais estender sua campanha para o sul. Vis­
to que Amenotepe estava nessa época extremamente envolvido em ques­
tões religiosas e filosóficas, os hititas nada tinham a temer. Essa situação
provocou uma espécie de vácuo em Canaã, ou seja, não havia ali forte
dominação de superpotências, o que permitiria o livre percurso de Israel
para estabelecer-se ali como reino.

Os estados sírios

Os estados sírios achavam-se pressionados entre os hititas e o povo de


Mitani. Halab, juntamente com Alalaque e Tunip, tornou-se vassalo dos

8 Goetze, "Domination of Syria", em CAH 2.2, pp. 5-20.


9 Knudtzon, El-Amarna, # 17.
10 Ibid., #41.
11 Ibid., # 68-96; Ronald F. Youngblood, "The Correspondence of Rib-Haddi, Prince of
Byblos", dissertação para obtenção de Ph.D., Dropsie College, 1961.
A C onquista e a O cupação de C anaã 95

hititas. A princípio, Ugarite permaneceu independente dos hititas e dos egíp­


cios, mas por fim aliou-se a eles. O estado de Amurru, entretanto, tirou van­
tagem desse momento em que as grandes potências não se pronunciavam
para expandir sua influência desde o Médio Orontes até o Mediterrâneo.
Seu rei, 'Abdi-Asirta, tornou-se uma grande ameaça a Rib-Adda, e seu filho
Aziru finalmente tomou Gubla. Aziru, então, fez um tratado com Niqmaddu
de Ugarite, no qual ambos decidiram participar da mesma sorte dos hititas;
isto disparou uma resposta dos mitanitas que, por sua vez, provocou uma
retaliação por parte dos hititas. Suppiluliumas fez um tratado com
Niqmaddu e então atacou a capital de Mitani, Wassugani, mas o rei Tusratta
conseguiu escapar. Então Suppiluliumas manteve a Síria sob forte domina­
ção hitita e até poderia ter avançado por Canaã em direção ao Egito, o que
não ocorreu devido à crescente ameaça dos assírios, fator que desviou sua
atenção de marchar para o oriente até a sua morte.12

Egito

Os egípcios também desempenharam função significativa durante o


período da conquista. E estranho que a história egípcia não relate em
nenhum lugar o êxodo ou a conquista, mas dado que os egípcios tendi­
am a registrar somente as vitórias e não as derrotas, não há porquê es­
pantar-se da omissão. Amenotepe II (1450-1425), o faraó do êxodo, não
tinha mais qualquer interesse em empreender uma campanha na Pales­
tina após seu quinto ano de reinado - o ano do êxodo. Seu filho Tutmose
IV (1425-1417) aparentemente lançou-se em uma campanha no extremo
norte - em Arã-Naharaim. Isso pode ter acontecido enquanto Israel ain­
da estava no deserto do Sinai, não ocasionando qualquer efeito na con­
quista. Amenotepe III (1417-1379) reinava durante o período em que Is­
rael invadiu e ocupou Canaã. Porém sua atenção não se voltava para
defender seus interesses em Canaã, mas para as artes e para a caça. Qual­
quer que tenha sido a atividade militar na ocasião, esta foi dirigida con­
tra a Núbia ao sul. Isto se tornou providencial para Israel, pois, confor­
me já vimos anteriormente, tanto os mitanitas quanto os hititas - e, mais
tarde, os assírios - estavam em sua maior parte discordando uns dos
outros, tornando-se incapazes de ocupar o espaço em Canaã produzido
pelo desinteresse do Egito. Apenas os cananeus, completamente desor­
ganizados entre si, estavam no caminho.

12 Quanto ao reino de Suppiluliumas e seu relacionamento com a Síria, ver em Kenneth A.


Kitchen, Suppiluliiima and Amarna Pharaohs (Liverpool: University of Liverpool, 1962).
96 H istória de I srael no A ntigo T estamento

O destino dos egípcios em nada mudou com a ascensão de Amenotepe


IV (1379-1362).13 Filho de Amenotepe III e de uma rainha mitanita chama­
da Tiy, ele tornou-se a figura mais intrigante da história do antigo Oriente
Médio. Sua maior contribuição não foi no campo político, militar ou cul­
tural, mas no desenvolvimento de um quase monoteísmo ao redor do deus
Re-Harakhte, uma divindade representada por Aton ou por um disco so­
lar. Ele centralizou o culto em uma cidade construída especificamente para
esse fim, chamada Akhetaton (el-Amarna) e mudou seu próprio nome para
Akhenaten, para se adequar melhor à significação de seu compromisso.
Tamanho era seu interesse pela religião que se tornou indiferente aos ne­
gócios externos.
Muitas das cartas de Amarna, encontradas em seus arquivos reais em
Akhetaton, são oriundas de príncipes cananeus que, reconhecendo sua
soberania formal sobre eles, apelavam a Akhenaten para sair em seu auxí­
lio e livrá-los de toda sorte de perigos. Tais apelos, também enviados a seu
pai, ficaram sem resposta justamente porque os faraós estavam mais pre­
ocupados com seus respectivos lazeres. É importante notar que as datas
relativas a Amenotepe III e Akhenaten coincidem com a tradicional data
da conquista. O outro lado da moeda da indiferença egípcia pelos negóci­
os em Canaã revela, sem dúvida, a mão de Jeová, que providenciou as
circunstâncias apropriadas para que seu povo pudesse possuir a terra que
Ele lhes havia prometido.

Os 'apiru

Nossa perspectiva do mundo do Oriente Médio antes e durante a con­


quista não pode ser concluída sem a observação de alguns eventos na
própria Canaã. Isso envolve primeiramente uma consideração dos 'apiru
ou habiru - um povo cuja presença destruidora e maciça em Canaã é
gritante nas cartas de Amarna. Eles são descritos como mercenários sem
destino, que algumas vezes se tornavam uma ameaça para todos os esta­
dos cananeus, e outras vezes lutavam em lados opostos nas guerras en­
tre cidades.
Quando a existência dos 'apiru foi pela primeira vez descoberta nos
textos de Amarna, muitos estudiosos da Bíblia imediatamente concluíram
que, após uma longa espera, uma evidência extrabíblica havia sido encon­

13 Para um relato envolvente da história, cultura e contribuição de Amenotepe IV


(Akhenaten), ver John A. Wilson, The Culture of Ancient Egypt (Chicago: University of
Chicago Press, 1951), pp. 213-31.
A C onquista e a O cupação de C anaã 97

trada para confirmar a conquista de Canaã por Israel.14 Isto se baseava na


coincidência da data das cartas com a cronologia tradicional da conquista
e na admirável similaridade lingüística entre 'apiru (ou Habiru) e 'ibri
("hebreu"). Contudo, muito tempo antes, referências aos 'apiru já haviam
sido confirmadas, oriundas do antigo mundo do Oriente Médio, tão anti­
gas quanto o antigo Período Acadiano (cerca de 2360-2180). Em muitas
partes dos textos o nome aparece na forma logográfica SA.GAZ, a forma
preferida nas cartas de Amarna, com exceção das que vinham de Abdi-
Hepa, rei de Jerusalém.15 Etimologicamente SA.GAZ está ligado a um verbo
sumeriano que significa "assassinar; matar"; um LUSA.GAZ era um assas­
sino. No acadiano essa forma aparece como habbatu, "ladrão", ou talvez
"pessoa despejada".16 A forma silábica habiru/hapiru/ápiru é cronológica e
geograficamente espalhada. A etimologia acadiana não é clara, embora
William Albright tenha associado o termo a epeni ("poeira"; cf. Heb. 'apar)
e sugerido que os 'apiru fossem caravaneiros, ou "homens do pó".17 Essa
sugestão não tem achado apoio universal.
Está claro que nenhum dos termos usados para descrever os 'apiru
têm qualquer significação étnica. Os 'apiru não eram uma nacionalidade,
mas provavelmente uma classe social. Eles são geralmente olhados com
desprezo, como viandantes sem raízes, mercenários que vendiam seus
serviços a quem mais lhes oferecesse. Este é o quadro que emerge muito
claramente dos textos de Amarna.18
A questão do relacionamento dos 'apiru com os hebreus é de particular
importância. É óbvio que os termos destes povos não são idênticos, visto
que 'apiru aparece na história bem antes de qualquer data plausível para
Abraão e existe em números muito além do que qualquer população de
hebreus concebível, pelo menos até o tempo da conquista. Além disso,
dificilmente os hábitos e costumes dos 'apiru se enquadrariam com o re­
trato bíblico dos hebreus. Finalmente, os termos 'apiru e ‘ibri, embora

14 Para um relato que procura relacionar a história de Israel como sendo a dos 'apiru,
ver Moshe Greenberg, The Hab/píru (New Haven: American Oriental Society, 1955),
pp. 3-12.
15 Para explicar a exceção, William L. Moran propõe a idéia que o escriba era de origem
síria, da mesma forma que seu senhor ("The Syrian Scribe of the Jerusalem Amarna
Letters," em Unity and Diversíty, editado por Hans Goedicke e J.J.M. Roberts [Baltimore:
Johns Hopkins University Press, 1975], p. 156).
16Assyrian Dictionary, editado por Ignace J. Gelb et al. (Chicago: Oriental Institute, 1956),
vol. H, pp. 13-14.
17William F. Albright, "Abraham the Hebrew," BASOR 163 (1961): 36-54.
18 Greenberg, Hab/píru, pp. 70-76.
98 H istória de I srael .wo A ntigo T estamento

fonética e lingüisticamente semelhantes, não parecem ter uma etimologia


comum. Como já sugerido, a etimologia de 'apiru é desconhecida,19 mas
'ibri parece voltar ao ancestral de Abraão, Eber ('eher). Um hebreu, então,
era um heberita. Isso parece ser quase certo à luz de Gênesis 10.21, que diz
ter sido Sem "o pai de todos os filhos de Eber". A genealogia semita de
Gênesis 11.10-26 começa com Sem e termina com Abraão, mas próximo ao
meio dá ênfase a Eber (vv. 14-17). Parece que o genealogista quis informar
ser Abraão um semita cuja ancestralidade derivava de Eber, tornando-o
um eberita, ou seja, hebreu.20
Em virtude da semelhança entre 'apiru e 'ibri, é bem provável que
este tenha sido ocasionalmente confundido com aquele.21 O estilo de
vida patriarcal pode ter levado alguns observadores a concluir que
Abraão, o hebreu, foi na verdade Abraão, o 'apiru. Talvez isso explique
por que no Antigo Testamento os israelitas raramente se referiam a si
mesmos como hebreus, pois se tratava de um epíteto usado normal­
mente pelos estrangeiros, na maioria das vezes com sentido pejorativo.
Por exemplo, quando a esposa de Potifar, movida de frustração, acu­
sou José de tê-la assediado, ela o descreveu como "h eb reu " (Gn
39.14,17). Da mesma maneira a filha de Faraó referiu-se a Moisés (Ex
2.6), e os filisteus a Israel (1 Sm 4.6,9).
Apesar de os estranhos não haverem distinguido de maneira bem
clara os 'apiru dos hebreus, os israelitas eram bem conscientes de tal
diferença. Percebe-se isto, conforme já proposto, em sua relutância em
chamarem a si próprios de hebreus, como se vê em uma ou duas passa­
gens em que os israelitas falam acerca dos hebreus (mais corretamente,
'apiru), descrevendo um povo que não eles próprios. Em 1 Samuel 13,
Saul manda tocar a trombeta de guerra e diz: "Ouçam isso os hebreus"
(v. 3). Que a passagem não é uma referência aos israelitas é confirmada
pela subseqüente diferenciação entre "os hom ens de Israel" e os
"hebreus" (vv. 6,7). Toda a passagem indica que Saul, já nesse seu iní­
cio de carreira e em face da ameaça dos filisteus, alugou em seu favor
tropas de mercenários para lutar ao lado de sua milícia israelita. Esses
mercenários bem poderiam ter sido os 'apiru, em vez de os hebreus. A
natureza instável dos 'apiru, uma peculiaridade atestada, parece refle­
tir-se em um encontro com os filisteus: "...e também estes se ajuntaram
com os israelitas que estavam com Saul e Jônatas" (1 Sm 14.21). Sem

19 Ibid., pp. 90-91.


20 Ibid., pp. 92-93.
21 Ibid., pp. 93-94, n. 44.
A C onquista e a O cupação de C anaã 99

dúvida israelitas e hebreus, nessas passagens, não podem ser vistos


como um mesmo povo.22

O s 'a p iru e a co n q u is ta

Enquanto os israelitas faziam clara distinção entre si e os 'apiru, os


escribas que compuseram a correspondência de Amarna a tinham muito
mal definida. Visto que tal correspondência se refere às condições caóticas
encontradas em Canaã na primeira metade do século XIV - condições atri­
buídas na maior parte aos ataques violentos feitos pelos 'apiru - , e que a
data tradicional da conquista e ocupação de Canaã por Israel corresponde
exatamente a esse período, é quase impossível não associar o tumulto que
se passou em Canaã aos israelitas e 'apiru, ainda que ambos não sejam
identificados separadamente nos textos de Amarna. Em outras palavras,
para os cananeus, os 'apiru eram os hebreus e os hebreus eram os 'apiru.
Esse ponto de vista é tão forte que alguns defensores da data mais re­
cente para o êxodo, conforme visto anteriormente (p. 66), afirmam que a
conquista feita por Josué precede o êxodo de Moisés.23 Além de reivindi­
carem uma reinterpretação radical da tradição bíblica - que afirma terem
sido ambos contemporâneos - essa tese exige necessariamente a rejeição
das doze tribos no êxodo, da aliança feita no Sinai e da peregrinação no
deserto, em favor de uma hipótese em que apenas algumas tribos teriam
participado do êxodo, e as restantes teriam sido as que contribuíram para
a conquista bem no início. Porém, seria muito mais satisfatório abandonar
a hipótese de um êxodo mais recente e ver nos documentos de Amarna
uma evidência extrabíblica para a participação das doze tribos na con­
quista de Canaã desde seus primórdios.
Contudo, esta posição também não está isenta de problemas, uma vez
que o livro de Josué parece não se referir aos 'apiru; nem o comportamen­
to destes, conforme claramente descrito nos textos de Amarna, pode en­
quadrar-se com a narrativa bíblica dos israelitas. A falta de referência aos
'apiru não é uma grande dificuldade, desde que a maior parte do período
da conquista antecede a era de Amarna por cerca de vinte e cinco anos,

22 Essa posição tem sido não apenas exposta, mas forçosamente defendida por Norman K.
Gottwald, The Tribes ofYahweh (Mary-knoll, N.Y.: Orbis, 1979), pp. 417-25. Para uma
excelente discussão acerca da evolução dos termos que se referem aos hebreus, ver em
Nadav Na'aman, "Habiru and Hebrews: The Transfer of a Social Term to the Literary
Sphere," JNES 45 (1986): 271-88.
23 Por exemplo, T.J. Meek, Hebrew Origins (New York: Harper and Row, 1960), pp. 21-23.
o
<5 Monte
^ Hermom

MA R
MEDITERRÂNEO

A
Monte
Halaque
A CONQUISTA
DE C A N A Ã
Cades-Barnéia
A C onquista e a O cupação de C anaã 101

precedendo, portanto, as referências mais antigas aos 'apiru em Canaã.24


Além disso, é característico da historiografia bíblica ser extremamente se­
letiva quanto a detalhes. Caso a presença dos 'apiru tenha sido considera­
da pelo historiador bíblico como pouco relevante para o propósito reden­
tor da conquista, então eles seriam completamente esquecidos. Algumas
grandes potências como os cassitas, os mitanitas e os egípcios estavam no
mínimo envolvidos indiretamente nos negócios em Canaã no início do
décim o quarto sécu lo, e m esm o assim nem um sequer desses
envolvimentos foi mencionado no livro de Josué. Também não é possível
argumentar que a razão para tais omissões é que a conquista ocorreu de
fato em uma data mais recente, no séc XIII, porque as grandes potências
envolvidas da época - Assíria e Egito - também não são mencionadas.
Tudo o que pode ser dito é que as preferências particulares do historiador
foram o fator determinante para a escolha de quem iria ou não ser incluí­
do em seu relato. Além disso, pode ser que o historiador tenha agrupado
os 'apiru (como ele também o faz com outros povos) juntamente com os
cananeus, hititas, amoritas ou outros.
Com respeito à descrição dos 'apiru feita pelos textos de Amarna e suas
diferenças do que está registrado na Bíblia acerca dos israelitas, é necessá­
rio dizer que esta diferença apenas confirma nosso argumento de que os
'apiru e os hebreus, apesar de terem muito em comum, eram povos essen­
cialmente distintos. Parece que os 'apiru estiveram em Canaã antes da era
de Amarna e se punham freqüentem ente ao lado de reis cananeus
opositores. Os israelitas entraram em Canaã em bloco, de uma só vez, e
foram considerados hostis aos cananeus. Não se pode conhecer hoje como
os israelitas e os 'apiru relacionavam-se durante e após a conquista, mas é
provável que os ápiru, percebendo o grande sucesso dos israelitas em
Canaã, tenham se mudado para outras áreas, seguindo o tradicional estilo
de vida nômade. Ou, como já foi proposto, permaneceram (pelo menos
até algum ponto) e foram assimilados por Israel ou passaram a servi-los
como mercenários.
É importante notar que a atividade dos 'apiru é comprovada nos mate­
riais de Amarna oriundos de duas regiões do litoral leste do Mediterrâneo
- Síria e Palestina. Visto que a conquista não se estendeu para além da
Palestina, as cartas sírias não possuem relevância imediata. Quanto a al­

24 Greenberg (Habi/piru, p. 74, n. 62) data as cartas da Palestina como que pertencendo aos
primórdios do reinado de Amenotepe IV. Edward F. Campbell, Jr., diz que todas as
cartas datam do trigésimo ano de Amenotepe III até o final do reinado de Akhenaten
("The Amarna Letters and the Amarna Period," BA 23 [I960]: 10).
102 H istória de I srael no A ntigo T estamento

guns textos de origem palestina, existem apenas dezesseis deles que men­
cionam os 'apiru:25

1. EA 243. Biridiya de Megido nota que "a hostilidade dos SA.GAZ


na terra é muito forte".
2. EA 246. Biridiya faz uma reclamação dizendo que os dois filhos de
Lab'ayu de Siquém subornaram SA.GAZ para fazer guerra contra ele.
3. EA 254. Lab'ayu de Siquém diz que ele não sabia que seus dois
filhos tinham feito negociações com os SA.GAZ.
4. AO 7096. Shuwardata, da região montanhosa mais ao sul, diz que a
despeito do fato de todos os seus amigos, com exceção de ER-Heba,
terem-no abandonado, ele havia aniquilado o homem SA.GAZ que
surgiu (ou se levantou) na terra.
5. EA 271. Milkilu de Gezer suplica ajuda contra os SA.GAZ, que pa­
reciam ser seus próprios servos.
6. EA 273. Badat-UR.MAH MES de Sapuna, percebendo que "a terra do
rei" tinha desertado diante de SA.GAZ, insiste com ele para que
envie ajuda.
7. EA 274. Ba'lat-UR.MAHMES apela por socorro para que Sapuna não
seja destruída.
8. EA 286. ER-Heba de Jerusalém diz que toda a terra já tinha caído
nas mãos dos 'apiru. Além disso, todos os governadores já tinham
desertado.
9. EA 287. ER-Heba diz que Gezer, Ascalom e Laquis supriram o ini­
migo com comida, óleo e outras necessidades. O "inimigo" aqui
aparentemente é Milkilu de Gezer, e os filhos de Lab'ayu de Siquém,
que são os colaboradores dos 'apiru.
10. EA 288. ER-Heba faz uma reclamação dizendo que o rei foi omisso
mesmo em face das mortes de Turbazu de Zilu, Zimrida de Laquis
e Yapth-Addu de Zilu, que morreram nas mãos dos 'apiru.

25 Os textos estão publicados por Knudtzon, El-Amarna (EA). William F. Albright identifi­
ca o autor de AO 7096 como sendo Shuwardata (ver em James B. Pritchard, Ancient Near
Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição [Princeton: Princeton University
Press, 1955], p. 486, n. 13). E claro que existem muitos outros textos que, da mesma
forma, são oriundos da Palestina e que jamais mencionam os SA.GAZ / 'apiru. O qua­
dro que surge desses relatos em nada é diferente. São mencionadas as mesmas escara­
muças entre as cidades, as mesmas mesquinharias e a mesma subserviência aos reis
egípcios, além de registrarem o mesmo ambiente chafurdado num caos e ilegalidade
que foram o resultado das invasões promovidas por inimigos externos. Ver esta descri­
ção em Campbell, "Amarna Letters," BA (1960): 2-22.
A CosQJiSTA EA O cupação de C anaã 103

11. EA 289. ER-Heba indica que Milkilu tomara Rubutu para si mes­
mo, que o povo de Gath-Carmelo tinha estabelecido uma guarni­
ção em Beth Shan e que Lab'ayu tinha entregado Siquém para os
'apiru.
12. EA 290. Er-Heba reclama que Milkilu e Shuwardata se apoderaram
de Rubutu e que uma cidade próxima a Jerusalém tinha caído nas
mãos do povo de Queila - portanto a terra do rei estava agora no
controle dos 'apiru.
13. EA 298. Yapahi de Gezer diz que seu irmão rendeu-se aos SA.GAZ
em Muhhazi.
14. EA 299. Yapahi diz que os SA.GAZ eram fortes contra ele.
15. EA 305. Shubandu das regiões ao sul da Palestina observa que os
SA.GAZ eram fortes contra ele.
16. EA 318. Dagantakala das regiões ao sul da Palestina descreve a se­
vera imposição que sofrera nas mãos dos SA.GAZ/habbati.

As pessoas mais importantes alistadas nesses textos são Lab'ayu, de


Siquém, e Milkilu, de Gezer. Os filhos de Lab'ayu pagaram aos mercenári­
os 'apiru para atacarem Megido, e eles próprios tornaram-se aliados dos
'apiru quando estes atacaram Jerusalém. E muito interessante o fato de
Siquém não estar alistada como uma das cidades conquistadas por Josué,
mas ter sido o local para a renovação da aliança, que aconteceu próximo à
morte de Josué. Isso daria tempo de sobra para que Lab'ayu e seus filhos
tivessem se rendido completamente aos 'apiru (israelitas), um processo
que teve início no período de Amarna (EA 287, 289).26
Quanto a Megido, seu rei é mencionado como um dentre os trinta e um
reis que foram derrotados por Josué (Js 12.21), porém não há qualquer
narrativa explicando como tal fato sucedeu. E muito provável que o rei de
Megido estivesse descrevendo um ataque israelita no momento em que
falava dos filhos de Lab'ayu assalariando os SA.GAZ (EA 246).27
Milkilu de Gezer aparece em um momento (EA 271) sob o ataque dos
SA.GAZ e, em outro (EA 287), como seu aliado. Segundo Josué 10.33, Horão

26 Edward E Campbell, Jr. E James F. Ross, "The Excavation of Shechem and the Biblical
Tradition," BA 26 (1963): 9-11. Campbell e Ross afirmam que a cidade de Siquém foi
conquistada por Israel "sem o uso de qualquer armamento" e também da "pacífica
simbiose refletida nas narrativas de Jacó". A última observação chega ser estranha por­
que a estória de Jacó e Siquém (Gn 33.18-34.31) pode refletir qualquer coisa, menos
uma relação pacífica. Um forte contraste é visto nos textos de Amarna que, sem sombra
de dúvida, apontam para uma assimilação pacífica de Siquém.
27 H.H. Rowley, Fróm Joseph to Joshua (London: Oxford University Press, 1950), pp. 110-11.
104 H istória de I srael no A ntigo T estamento

de Gezer perdeu sua vida e seu exército28 quando se lançou num ataque
surpresa contra Israel, pois vinha em auxílio de Laquis. Horão muito pro­
vavelmente foi o predecessor de Milkilu, quem primeiro se mostrou hostil
aos SA.GAZ, mas acabou unindo-se a eles. Um fato muito interessante é
Josué 16.10, onde está escrito que os israelitas não expulsaram os cananeus
de Gezer, mas que seus habitantes tornaram-se escravos dos efraimitas.
Isto está perfeitamente de acordo com a reclamação de ER-Heba contra
Milkilu, a qual diz ter este "dado a terra ao rei dos 'apiru" (EA 287).
Ba'lat-UR.MAHMESde Sapuna, um local por outro lado desconhecido,29
fala acerca do perigo iminente vindo dos SA.GAZ, como fazem Shubandu
e Dagan-takala, igualmente de locais desconhecidos. Yapahi30 de Gezer
diz que seu irmão caiu diante dos SA.GAZ em Muhhazi (Tel Mahoz, a
oeste de Gezer).31 Já que este local não é mencionado na narrativa da con­
quista, torna-se pouco relevante para nós.
As cartas provenientes de Jerusalém, entretanto, são de valor inestimá­
vel. O remetente, um homem chamado ER-Heba (Abdi-Hepa), descreve
uma deserção completa diante dos 'apiru. Ele mostra-se particularmente
perturbado diante da grande deslealdade de Gezer, Ascalom e Laquis. Sob
o domínio de Milkilu, a cidade de Gezer, conforme vimos, aparentemente
rendeu-se a Josué sem necessidade de haver uma batalha. Ascalom não
aparece em Josué, mas está presente em Juízes 1.18 como a cidade tomada
pelos filhos de Judá como parte de sua herança. Visto que Ascalom é asso­
ciada a Gezer nos textos de Amarna, e Gezer foi a princípio hostil aos
israelitas antes de submeter-se ao domínio de Josué, não está fora de ques­
tão a hipótese de que Ascalom, como Gezer, após uma hostilidade inicial,
tenha se tornado aliado de Israel (EA 287).
Laquis aparece em Josué 10 como uma das confederadas de Jerusalém
na oposição entre amoritas e israelitas. Depois de Josué haver matado o

28 Rowley (ibid., p. 100) engana-se quando afirma que existe uma inconsistência entre
Josué 10.33 e 16.10, já que a última referência indica que Gezer tinha sido aniquilado e a
primeira diz que ele estava sob a dominação dos Israelitas. Josué 10.33 diz que Horam,
rei de Gezer, morreu em batalha juntamente com os demais reis que se uniram a ele em
guerra contra Josué em Laquis. Isso em hipótese alguma quer dizer que a cidade de
Gezer foi destruída.
29 Campbell, "Amarna Letters," BA 23 (1960): 20, identifica esse Sapuna com Zafon da
região inferior do vale do Jordão, um ponto de vista que não tem sido geralmente acei­
to.
30Ou Yapa'u segundo Shlomo Izre'el, "Two Notes on the Gezer-Amarna Tablets," Tel Aviv
4 (1977): 163. Izre'el oferece aqui um novo estudo de EA 299.
31 Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 440.
A Co.xQuiSTA EA O cupação de C anaã 10 5

rei de Laquis (v. 26), tomou para si a cidade (vv. 31,32), mesmo tendo o rei
de Gezer corrido para auxiliá-la (v. 33).32 Não há razão por que Laquis não
ter se tornado, conforme Gezer, uma colaboradora dos israelitas, como
mencionou ER-Heba (EA 287). Zimrida de Laquis (EA 288) claramente
deve ser distinguido de Jáfia, rei de Laquis (Js 10.3). Contudo, pode ser
que Zimrida tenha sucedido Jáfia após a morte deste em Maquedá.
Em outra carta (EA 289), o rei de Jerusalém diz que Milkilu de Gezer
tomou para si Rubutu (Rabá, próximo à moderna Latrun).33 Josué nada
fala acerca desta captura; assim é possível que Milkilu tenha salvado Isra­
el desse problema. A mesma carta descreve uma guarnição que o rei de
Gate (Shuwardata?) estabelecera em Bete-Seã, bem ao norte. Gate perma­
neceu intocada por Josué (Js 11.22), e Manassés não foi capaz de expulsar
os cananeus de Bete-Seã (Js 17.16; Jz 1.27).
Os textos de Amarna deixam a impressão de que os SA.GAZ/'apiru
lutaram primeiramente contra cidades e povoados que estavam fora da
área de conquista israelita, conforme descrito nas fontes bíblicas. Essas
cartas, que também mencionam locais relacionados com a conquista, não
estão de forma alguma em desacordo com o relato bíblico. De fato, elas o
complementam de forma bastante significativa. É possível distinguir os ~
SA.GAZ/'apiru que operavam fora da região central da Palestina da­
queles que agiam na parte interior, provavelmente os israelitas. Yohanan
Aharoni ficou perplexo ao perceber que apenas quatro das cidades que
existiam naquela região montanhosa, durante a era de Amarna, são men­
cionadas nos documentos de Amarna. Ele atribui isto à completa domi­
nação daquela região pelos habitantes de Siquém e de Jerusalém.34 Não
seria mais sensato admitir que a razão para este silêncio seria o fato de
que todo o interior de Canaã estava nas mãos dos israelitas durante esse
período, com exceção de Siquém e Jerusalém, exatamente segundo a
descrição bíblica?35

52 E verdade que o relato bíblico descreve a população da cidade de Laquis sendo total­
mente destruída. Mas isso em nada impediria que a cidade viesse novamente a ser ha­
bitada, se tornando amigável para com os 'apiru (Israel), conforme está sugerido em EA
287, para que mais tarde viesse novamente a cair em desgraça, como diz em EA 288.
Deve-se dedicar especial atenção ao fato que o texto não diz absolutamente nada com res­
peito à destruição das estruturas físicas da cidade. Ver Eugene H. Merril, "Palestinian
Archaeology and the Date of the Conquest: Do Tels Tel Tales?" GTJ 3 (1982): 114.
22Aharoni, Land ofthe Bible, p. 174.
34 Ibid., p. 175.
" E importante que se saiba que, ao expressarmos nossa própria reconstrução do ambien­
te histórico que permeou os anos da conquista, não descartamos absolutamente os proble-
106 H istória de I srael no A ntigo Testamento

Por fim, não existe absolutamente nada nas correspondências de


Amarna ou no Antigo Testamento que conteste uma data nos primórdios
do décimo quarto século para a conquista. Na verdade, há muitos pontos
a favor. Deve-se reconhecer que a totalidade histórica daquele período
forma o ambiente em que podemos vislumbrar a conquista. Todas as po­
tências internacionais estavam "barradas" quanto aos interesses em Canaã,
deixando assim um vácuo que Israel, pela providência de Jeová, poderia
preencher.

A e s tra té g ia de Jo s u é

A campanha de Jerico

Josué, o sucessor de Moisés como mediador da aliança, já havia se desta­


cado como um homem de sabedoria e um líder militar de coragem. En­
quanto se posicionava no lado oriental do rio Jordão, antecipando-se à
conquista da terra, sua mente já possuía toda uma estratégia militar pre­
parada. Ele percebeu de forma correta que a terra de Canaã dividia-se em
duas grandes áreas que representavam dois elementos étnicos distintos.
Para o sul e na região montanhosa estavam as cidades controladas pelos
amoritas; para o norte, especialmente na planície de Jezreel, estavam as
grandes concentrações de cananeus. Procedendo de acordo com a experi­
mentada estratégia de guerra, Josué sabia que a melhor chance para o su­
cesso baseava-se no princípio "dividir para conquistar".
Para alcançar este propósito ele sentiu necessidade de penetrar em
Canaã pelo norte do mar Morto, seguindo a rota que conduzia ao interior
e que passava por Jericó. Precisamente nesse ponto Josué contemplou seu
maior problema: Jericó estava fortemente armada e preparada para de­
fender-se e impedir a penetração inimiga no interior de Canaã. Além dis­
so, o próprio rio, que nessa época do ano (primavera) estava cheio, consti­
tuía aparentemente uma barreira intransponível contra qualquer avanço
imediato.
Jeová ordenou a Josué que efetuasse a conquista imediatamente (Js
1.2,11), de forma que Josué enviou exploradores para além do rio, a fim de

mas que nosso ponto de vista precisa enfrentar, especialmente no que diz respeito a
falta de correspondência entre os nomes próprios vistos nos textos de Amarna e aqueles
registrados nos livros de Josué e Juízes. Porém, quando nos lembramos de que a con­
quista de Josué já estava há muito tempo terminada na época em que os documentos de
Amarna descrevem o tumulto causado pelos 'apiru, então fica até fácil de se entender
por que alguns nomes são diferentes.
A C O S Q U IS T A E A O C U P A Ç Ã O D E CA NA Ã 107

fazer um levantamento da terra, e especialmente para sondar as possíveis


fraquezas nas defesas de Jericó. Eles descobriram que as notícias acerca
das intenções de Israel já os tinha precedido, e que o povo da terra de
Canaã estava aterrorizado em razão das vitórias dos israelitas no Sinai e
na Transjordânia. Isso produziu um clima extremamente favorável para a
conquista, mas o momento propício estaria perdido caso não encontras­
sem uma maneira de atravessar o Jordão.
Neste instante, Jeová revelou que Ele, o Divino Guerreiro, pelejaria por
Israel da mesma forma que fizera no Egito. Assim como Ele partiu as águas
do mar de Juncos, como um sinal de seu poder cósmico e redentor, agiria
ordenando que as águas do rio parassem de correr. Ele, como o Grande
Rei, iniciaria a conquista começando pelo rio que sempre havia protegido
a terra. Assim o povo compreenderia que a batalha era de Jeová, e que eles
alcançariam vitória sobre vitória reconhecendo que eram parte dos exérci­
tos do Todo-Poderoso.36
E aconteceu que quando a Arca da Aliança - o símbolo da presença de
Jeová - entrou no rio, as águas pararam, submissas a Ele e a Israel, permi­
tindo ao povo passar em terra seca. Como um sinal da natureza redentora
deste feito, Jeová determinou que Josué fizesse a circuncisão de todos os
machos que haviam nascido no deserto, revelando assim a sua identidade
como o povo da aliança; também lhe ordenou que celebrasse a festa da
Páscoa, que havia sido estabelecida pouco antes do êxodo, comemorando
a redenção do povo realizada por Jeová. Por último, Ele apareceu a Josué,
como havia feito com Moisés, confirmando-o como o mediador do con­
certo. Toda esta seqüência - circuncisão, Páscoa e teofania - declarava en­
faticamente que o Israel da conquista era o mesmo do êxodo. O Deus que
tinha salvado seu povo do Egito agora iria salvá-los em Canaã.
Depois de os israelitas terem erigido um altar memorial de pedras para
celebrar sua passagem pelo rio Jordão, os homens de guerra marcharam em
direção sul desde Gilgal (Khirbet el-Mafjar), seu primeiro acampamento em
Canaã, até Jericó (Tel es-Sultan), à distância de apenas três quilômetros. A
cidade é descrita no Antigo Testamento situada em um monte imponente,
que se erguia bastante íngreme desde o riacho adjacente, ao longo do qual
passava "a estrada que subia até Bete-Horon" (Js 10.10), a rota mais impor­
tante para o interior. Relativamente pequena para os padrões da Alta Idade
do Bronze (cerca de dez acres), Jericó era facilmente defensável e pratica­
mente inexpugnável. Josué estava desejoso de conquistar esta cidade não

^ Frank M. Cross, Ccmaanite Myth and Hebrew Epic (Cambridge: Harvard University Press,
1973), pp. 103-5.
108 H istória de Israel no A ntigo T estamento

apenas porque ela guardava a rota que ele intentava tomar, mas também
porque se ele a deixasse intacta, ela se transformaria num bastião da resis­
tência cananéia contra Israel, o que se tornaria uma fonte de problemas ou
mesmo perigo para os exércitos de retaguarda do povo de Deus. Além disso
e por razões não muito bem nítidas, Jeová havia escolhido especialmente
aquela cidade para manifestar o seu julgamento. Quando isso acontecia a
um local ou a um povo, eles eram designados como "consagrados para
Jeová", ou seja, seriam levados ao extermínio. O verbo técnico em hebraico
é haram ("consagrar para destruição"). Objetos debaixo da maldição deveri­
am ser aniquilados (caso estivessem vivos) ou dados a Jeová para seu pró­
prio uso. Em hipótese alguma tal coisa poderia ser guardada sem que para
isso houvesse a expressa permissão de Jeová.37
O primeiro exemplo dessa política foi a destruição dos cananeus e de
suas cidades próximas a Horma (Nm 21.3). De fato, o nome Hormá reflete
a raiz subjacente herem. Essa política foi aplicada de forma semelhante
após a derrota de Seom e dos amoritas na Transjordânia (Dt 3.6). Moisés
também tinha exortado Israel a colocar algumas das cidades cananéias
sob herem, explicando que isso significava que eles não poderiam fazer
acordo nem se unirem em casamento com eles (Dt 7.1-3). Pelo contrário,
Israel deveria destruir seus altares, pedras sagradas, os postes de Aserá e
as imagens (v. 5). A razão era que Israel, mesmo sendo um povo separado
por Deus, poderia retornar ao paganismo através da influência dos
cananeus (Dt 20.17,18).
É óbvio que herem às vezes limitava-se à destruição completa do povo,
não se aplicando às cidades propriamente ditas. E exatamente este o sig­
nificado.das palavras de Moisés quando disse que Jeová entregaria a Isra­
el cidades que eles não haviam edificado, casas cheias de bens e cisternas
que eles não haviam construído (Dt 6.10,11; 19.1). Quando por fim concre­
tizou-se a vitória, Josué relembrou ao povo que Jeová fizera conforme ha­
via prometido - Ele lhes dera cidades que eles não haviam edificado, e
vinhas e olivais que não haviam plantado (Js 24.13).
Um estudo mais cuidadoso revela que durante a conquista, apenas três
cidades cananéias, na realidade, sofreram a totalidade do herem, ou seja, fo­
ram fisicamente destruídas justamente com suas populações. Estas foram
Jerico, Ai e Hazor. Quanto às outras, é dito apenas que foram "tomadas" (lakad)
por Israel e seus habitantes passados ao fio da espada. Por enquanto, pode-se
apenas especular o porquê de Jerico haver sido selecionada para estar sob a
totalidade do herem. É provável que, por ser a primeira cidade cananéia situ­

37 Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, pp. 260-63.
A COXQUISTA E .4 OCUPAÇÃO DE C a NAA 109

ada ao ocidente do Jordão, seu destino servisse como um alerta para todas as
demais cidades, para que levassem em conta que a santidade e o poder de
Jeová é que trabalhavam em favor de seu povo conquistador.
O vilarejo de Jericó vinha sendo ocupado possivelmente desde 7500
a.C.38 Infelizmente a ação deletéria do tempo e das condições climáticas,
combinadas ao trabalho amador e às escavações profissionais, somaram-
se para praticamente impedir a utilização arqueológica e histórica da ci­
dade de Jericó. Baseado em alguns escaravelhos de Amenotepe III, o ar­
queólogo britânico John Garstang datou o nível D em aproximadamente
1400 a.C., e postulou que esta era a cidade destruída por Josué.39 Sendo
assim, Garstand sustentou a data de 1400 para a conquista, e uma mais
antiga correspondente para o êxodo. Suas conclusões foram ainda mais
confirmadas com a descoberta de muralhas que, ao contrário do resultado
normal de um cerco, caíram para o lado de fora, morro abaixo. A isto ele
associou a referência bíblica que descreve a ruína das muralhas de Jericó
como caindo "sob a cidade" (taheta), ou seja, caindo morro abaixo (Js 6.20).40
Contudo, mais recentemente Kathleen Kenyon, outra respeitada arque­
óloga britânica, passou várias estações em Jericó e concluiu, entre outras
coisas, que Garstand havia interpretado as evidências erroneamente, e que
os escaravelhos de Amenotepe pertenciam a um depósito posterior. Seu
nível D, então, tinha de ser remarcado próximo a 1300.41 Se tal reavaliação
já tem trazido problemas para as datas mais primitivas propostas para o
êxodo e a conquista, torna-se ainda pior para uma data mais recente, uma
vez que a conquista de Jericó em 1300 fixaria o êxodo em 1340. Sem dúvi­
da esta reavaliação não beneficia a nenhuma posição. O melhor que se
pode dizer, então, é que a evidência de Jericó é inconclusiva e que, neste
ponto, é de pouco ou nenhum valor para se estabelecer um esboço históri­
co ou cronológico em que se possa visualizar a conquista.

A campanha central

Após Jericó cair e ser destruída - um evento descrito do início ao fim


como um milagre de Deus - Josué enviou espias de Jericó através de uma

:’s Kathleen Kenyon, Archaeology in the Holy Land (New York: Praeger, 1960), p. 42.
39 John Garstang e J.B.E. Garstang, The Story of Jericho (London: Marshall, Morgan and
Scott, 1940), p. 120.
40 Ibid., p. 136.
41 Kathleen Kenyon, Digging Up Jericho (New York: Praeger, 1957), p. 260; idem, "Palestine
in the Time of the Einghteenth Dynasty", em CAH 2.1, p. 545.
no H istória de I srael no A ntigo T estamento

estrada sinuosa até a próxima fortificação cananéia em Ai. Visto que a cida­
de já não mais existia (seu próprio nome significa "ruína"), foi necessário ao
historiador localizá-la como a cidade "que está junto a Bete-Aven, ao orien­
te de Betei" (Js 7.2). Embora Ai seja identificada por muitos estudiosos com
um sítio conhecido simplesmente por et-Tel ("monte de pedras"),42 a me­
nos de quatro quilômetros a leste de Betei (Beitin), esta visão não mais des­
fruta de consenso. De fato, há muitos argumentos convincentes contra ela,
conforme David Livingston e outros estudiosos têm demonstrado.43 É irô­
nico que o segundo dentre os três locais que sofreram o herem seja, como no
caso de Jerico, de valor insignificante para a data da conquista. É preciso
reconhecer que a própria natureza violenta do herem pode ser a própria ra­
zão para que nem Jerico nem a cidade de Ai tivessem condições de produzir
quaisquer evidências arqueológicas significativas.
Depois de uma derrota inicial em sua tentativa de tomar a cidade de Ai
(Js 7.4,5), Josué compreendeu que os termos do herem haviam sido violados
na destruição de Jericó. Um cidadão particular, Acã, tinha se apoderado de
objetos que pertenciam exclusivamente a Jeová; Acã e sua família foram
destruídos como resultado da desobediência (Js 7.22-26). Somente assim
Josué pôde, com um contingente de trinta mil homens, atacar e destruir a
cidade de Ai, por meio de uma estratégia que incluíam emboscadas e arma­
dilhas. Os habitantes de Betei uniram-se aos de Ai na peleja, mas ambos
foram clamorosamente derrotados. Josué então mandou matar os homens e
mulheres da cidade - doze mil ao todo - até que não houve mais nem um
sobrevivente. A própria cidade foi queimada até que tudo se consumiu,
permanecendo apenas uma coluna de fumaça, uma ruína ('ay) no exato sen­
tido da palavra. Somente o gado e alguns tesouros da cidade foram poupa­
dos, e isso segundo as ordens específicas de Jeová (Js 8.27). Ai representa o
exemplo de um herem com especificações bem claras.
Nada mais é dito acerca do encontro de Israel com Betei. A evidência
arqueológica é ambígua, embora pareça ter existido alguns sinais de acam­
pamentos tribais durante o século catorze.44 Pode-se concluir que os

42 Ver especialmente Joseph A. Callaway, "The 1964 'Ai (Et-Tel) Excavations," BASOR 178
(1965): 13-40; "New Evidence on the Conquest of Ai," JBL (1968): 312-20; "The 19688-69
'Ai (Et-Tel) Excavations," BASOR 198 (1970): 7-31.
43David Livingston, "The Location of Biblical Bethel and Ai Reconsidered," WTf 33 (1970):
20-44. Livingston faz a opção por el-Bireh como o sítio de Betei (p. 40) e localiza a cidade
de Ai num pequeno tel localizado nas imediações.
44 Aharoni, Lanei of the Bible, p. 210. Há sinais de habitações na cidade de Beitin no século
catorze mas, conforme a sugestão de Livingston, se Beitin não é a cidade de Betei, esses
sinais são irrelevantes para nossa discussão.
A COXQUISTA EA OCUPAÇÃO DE C a NAÃ 111

betelitas foram destruídos, mas que a sua cidade, como a maioria das ci­
dades cananéias, foi poupada a fim de prover residência para Israel. Em­
bora o livro dos Juízes indique que os efraimitas de fato tomaram Betei,
isto parece ter ocorrido após a morte de Josué.45

Siquém e a renovação da aliança

Havendo atravessado a região montanhosa após a destruição de Ai,


Josué voltou-se para o norte e tomou seu caminho, aparentemente sem
qualquer oposição até a cidade de Siquém (Tel Balatah), cerca de 40 quilô­
metros ao norte de Betei.46 Nesse local tão sagrado devido à associação
com os patriarcas, Josué conduziu o povo numa cerimônia de reafirmação
da aliança, conforme Moisés lhe ordenara (Js 8.30-35; Dt 27.2-8). Anos mais
tarde, bem próximo de sua morte, Josué reuniu novamente o povo de Is­
rael em Siquém para que a nova geração também pudesse comprometer-
se a ser fiel a Jeová (23.1-24.28).47 O fato de Israel ter livre acesso aos mon­
tes Ebal e Gerizim, entre os quais Siquém estava localizada, implica que

45 A passagem de Juízes 1.22-26 é o único relato acerca de uma guerra contra a cidade de
Betei. Um betelita permitiu a entrada de Israel dentro da cidade, resultando com isso
que toda sua população, com exceção desse colaborador, foi destruída. A cidade, contu­
do, foi poupada. Quanto a expressão técnica, "passaram a cidade ao fio da espada", ver
em Merrill, "Palestinian Archaeology", GTJ 3 (1982): 113-14.
46Esse fato ocorreu logo no início da conquista, ou cerca de 1406 a.C. A segunda convoca­
ção em Siquém ocorreu quarenta anos depois (ver pp. 139-140)'. O acesso irrestrito até
Siquém conduz-nos, imediatamente, a duas conclusões: ou os habitantes de Siquém
deram as boas-vindas a Josué, ou já não havia habitantes naquela cidade. Parece que a
primeira hipótese é a mais segura, pois os cananeus de Siquém cooperaram espontane­
amente com os 'apiru dos textos de Amarna (ver p. 102). Mesmo que a assembléia de
Josué 8 tenha ocorrido em cerca de trinta anos antes da mais antiga carta de Amarna, é
totalmente possível que a cordialidade dos siquemitas em relação aos 'apiru / israelitas
tenha sido apenas o resultado de uma política de anos de existência.
47 Muitos estudiosos, é claro, vêem Josué 8 e 24 como sendo tradições variantes de um
mesmo acontecimento. Para uma recente e, ao mesmo tempo, profunda apresentação
dessa posição, ver em J. Alberto Soggin, Joshua: A Commentary (Philadelphia: Westminster,
1972), pp. 220-44. O que essa posição falha em não observar é que havia a necessidade
de que todas as gerações viessem a afirmar seu compromisso com Yahweh. Era mais
apropriado que a assembléia se reunisse no início da conquista e que, de forma seme­
lhante, voltasse a se reunir por mais uma vez na véspera da morte de Josué. Ver em
Marten H. Woudstra, The Book of Joshua, New International Commentary on the Old
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1981), pp. 148-49; Meredith G. Kline, The Structure
ofBiblical Authority (Grand Rapids: Eerdmans, 172), pp. 54-56.
I ll H istória de I srael no A ntigo T estamento

esta cidade ou estava abandonada nesse tempo ou havia se rendido sem


que acontecesse uma batalha.48 O criticismo tradicional mantém, entre­
tanto, que Siquém sucumbiu depois dos ataques impiedosos promovidos
pelas tribos de Simeão e Levi. A base para essa posição é a crença de que o
relato do estupro de Diná, filha de Jacó, cometido por Siquém, filho de
Hamor (Gn 34), é um relato etiológico, cujo propósito é explicar como Is­
rael veio a dominar Siquém.49
Os problemas dessa posição são muito numerosos para ser considerado
aqui, mas algumas observações precisam ser feitas. Primeiro, a história de
Diná indica que apesar de os siquemitas haverem sido dizimados pelos fi­
lhos de Jacó, este ficou tão temeroso de uma retaliação que decidiu partir
imediatamente para Betei. A narrativa da conquista relata o inverso. Israel
já estava em Betei e partiu em direção a Siquém. Segundo, por que estariam
as tribos de Simeão e Levi envolvidas na conquista de Siquém, uma vez que
a porção de Simeão caíra-lhe na região do Negueve, e Levi era, na época de
Josué, uma tribo religiosa isenta do serviço militar? Terceira e mais fatal
observação contra a interpretação etiológica: não há qualquer sinal de con­
flito em Siquém ou a ela relacionado na narrativa da conquista de Canaã.
Por que Gênesis 34 tem sido utilizado para explicar uma batalha que o livro
de Josué, por seu silêncio, deixa claro nunca haver existido? Apelar para as
cartas de Amama, que mostram o rei de Siquém em sérios apuros, nas mãos
de outros reis cananeus, não traz nenhuma vantagem, pois está fora de ques­
tão que os eventos descritos nos documentos ocorreram entre as duas situ­
ações em Siquém (ou seja, entre 1406 e cerca de 1366).

A campanha em direção sul

A o ficar claro que Josué havia ferido o norte de Canaã a partir do sul, e
que efetivamente instalara a nação de Israel na região montanhosa cen­
tral, os cananeus e outras populações decidiram pôr de lado as diferenças
e formar uma só defesa contra Israel. Os heveus (horitas ou hurrianos?) de
Gibeão (el-Jib),50 situados apenas a onze quilômetros ao sul de Betei, fica­

48 Ver nota 46.


49 Robert G. Boling, Joshua, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1982), pp. 251-54;
Meek, Hebrew Origins, pp. 124-28.
50 H.A. Hoffner, "The Hitites and Hurrians," em Peoples of Old Testament Times, editado por
D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), p. 225. Para saber mais acerca da escavação,
história e significação do sítio, ver em James B. Pritchard, Gibeom, Where the Sun Stood Still
(Princeton: Princeton University Press, 1962), especialmente as páginas 24-34.
C onquista e a O cupação de C anaã 113

ram tão apavorados em face do que acontecera a Jerico e a Ai que tenta­


ram uma ação diplomática ao invés de militar. Disfarçados de viajantes
que vinham de muito longe, uma delegação de Gibeão foi a Gilgal - agora
acampamento de Israel - e persuadiu Josué a assinar um pacto de não-
agressão contra eles. Visto que as instruções de Moisés permitiam tais acor­
dos com terras distantes (Dt 20.10-15), Josué não hesitou em assinar o tra­
tado. O acordo requeria que o povo servisse a Israel como escravos, (Dt
20.11; Js 9.15,21,27), uma condição que embora indesejável, era definitiva­
mente melhor do que a morte.51 E claro que os gibeonitas eram alvo do
herem, juntamente com os demais cananeus, e por isso deveriam ser
destruídos (Dt 20.16,17; Js 9.24). Em vez disso, despercebido como estava
Josué, o pacto teve de vigorar, e os gibeonitas com seus amigos heveus de
Quefira (Tel Kefireh), Beerote (Nebi Samwil?) e Quiriate-Jearim (Qiryat
Ye'arim) conseguiram sobreviver, e todas as vilas que ficavam nas oito
quilômetros de Gibeão foram permitidas viver.
Este tratado de não-agressão entre Israel e os heveus foi rapidamente
posto à prova, pois Israel, a parte mais forte do pacto, teve a responsabilida­
de de defender seu novo vassalo contra a ameaça inimiga. A ameaça surgiu
em forma de uma coalisão de reis amorreus que decidiram punir Gibeão
por sua deserção para o lado de Israel (Js 10.1-5). O líder desta coalizão
chamava-se Adoni-Zedeque52 de Jerusalém, então uma fortaleza dos
jebuseus. Sem dúvida os jebuseus eram considerados amorreus, pois Adoni-
Zedeque é contado entre os reis amorreus (Js 10.5). Quanto tempo a cidade
de Jerusalém esteve sob o domínio dos amorreus não pode ser definido,
mas supõe-se que tenha sido desde a sua migração para Canaã, no período
do Bronze Antigo IV (cerca de 2200). Com apenas alguns poucos interlúdios,
a cidade permaneceu sob o domínio dos jebuseus até o tempo em que Davi
a conquistou (1004 a.C.), estabelecendo SQbre ela o seu domínio e transfor­
mando-a em sua capital. Confederados com Adoni-Zedeque estavam Horã,

=1 O ser ou não um tratado entre suserano e vassalo é questionado por F. Charles Fensham,
"The Treaty Between Israel and the Gibeonites", BA 27 (1964): 96-100. Jehoshua M. Grintz,
por outro lado, mantém a posição que estamos diante de um tratado de "proteção". A
diferença encontra-se no nível de servidão, já que o "protégé" tinha muito mais inde­
pendência do que um vassalo comum ("The Treaty of Joshua with the Gibeonites", JAOS
86 [1966]: 114-16,124-26).
:: O fato desse nome não constar das cartas de Amarna como sendo rei de Jerusalém não
deveria em nada nos surpreender, já que esse Adoni-Zedeque teria precedido em cerca
de trinta anos a mais antiga dessas cartas. Portanto, a observação feita por Rowley, que
afirma estarem os nomes pessoais registrados nas duas fontes em total desacordo, é
imprópria para o momento, pelo menos nessa situação (From Joseph to Joshua, pp. 4,42).
1 14 H istória de I srael no A ntigo T estamento

de Hebrom, Pirã, de Jarmute (Khirbet Yarmuk, cerca de 28 quilômetros a


oeste e a sudoeste de Jerusalém), Jafia, de Laquis (Tel ed-Duweir, cerca de 48
quilômetros a sudoeste de Jerusalém) e Debir, de Eglom (Tel el-Hesi, cerca
de 56 quilômetros a sudoeste de Jerusalém). Essas cinco cidades - cujas lo­
calizações formavam uma espécie de triângulo que ocupava toda a porção
ao norte de Judá - eram aparentemente os mais importantes focos de resis­
tência dos amorreus naquele tempo. A sua derrota, portanto, representaria
a abertura de toda a região para a ocupação Israelita.
Quando os cinco reis cercaram Gibeão, a notícia foi logo levada a Josué
em Gilgal dizendo que a cidade estava sob ataque e precisava da ajuda
prometida. Depois de uma noite inteira de marcha Josué chegou a Gibeão,
cerca de 32 quilômetros a oeste de Gilgal. Após uma batalha renhida, os
amorreus bateram em retirada e Israel os perseguiu incansavelmente. Cru­
zando a montanha de Bete-Horom, que passava a oeste de Gibeão, os
amorreus voltaram-se para o sul, rodeando a fronteira oeste de Sefelá,
chegando então até Azeca e Maquedá, aproximadamente a 32 quilôme­
tros de Gibeão. Durante todo o percurso eles sofreram a ira de Jeová, o
Deus guerreiro de Israel, que enviou contra eles uma chuva de grandes
pedras de granizo.53 Os reis conseguiram escapar e acharam refúgio em
uma caverna em Maquedá. Logo que Josué descobriu-lhes o paradeiro,
selou-os dentro da caverna provisoriamente e partiu para liquidar os
amorreus que haviam sobrevivido à chuva de pedras de granizo.
Sua instrução dada aos soldados é deveras interessante: eles não pode­
riam permitir que os amorreus novamente entrassem nas cidades, pois
Josué as queria completamente intactas (Js 10.19). Como já dito, então, o
herem não inclui as estruturas físicas, mas apenas o povo. Portanto, não se
deve tomar a devastação das cidades como prova da conquista e de sua
data, pois a política de Josué, como repetidamente enfatizamos, visava a
poupar as cidades para o próprio uso de Israel. Depois de Josué haver
liquidado completamente os exércitos dos amorreus, voltou até aquela
caverna e retirou os reis ali aprisionados, eliminando-os sumariamente.

53 A erudição crítica nega que haja qualquer historicidade ho milagre descrito nessa estó­
ria, é claro, embora a maioria dos intérpretes concedam, pelo menos, um substrato de
verdade histórica envolvendo tal situação, que foi construída através de uma lingua­
gem poética relatando uma guerra santa. Ver, por exemplo, Trent C. Butler, Joshua, Word
Biblical Commentary (Waco: Word, 1983), pp. 113,115-17. John S. Holladay, Jr., defende
a idéia que a referência à momentânea parada do sol e a lua deve ser relacionada a uma
espécie de consulta astrológica à procura de "bons sinais" vindos dos céus, de forma
que por meio deles Josué teria mais confiança em sua vitória ("The Day(s) the Moon
Stood Still", JBL 87 [1968]: 170,176).
.ACOSQUISTA EA OCUPAÇÃO DE CANAÂ 1 15

Em seguida vê-se o relato da captura de várias cidades dos amorreus e


a matança de seus habitantes. Uma observação cuidadosa dos detalhes
causará a nítida impressão de que as cidades (estrutura física), com talvez
uma exceção, foram poupadas da destruição, ao passo que a população
em cada caso era dizimada. A primeira cidade a sofrer essa destruição foi
Maquedá (Khirbet el-Kheisun?).54 O historiador declara que Josué "tomou-
a" (lakad), um verbo que sempre se refere à captura, e não a uma demoli­
ção.55 Onde subseqüente destruição está envolvida, existem declarações
explícitas a respeito. Outro aspecto a considerar é que Josué "feriu a
Maquedá ao fio da espada". Essa metáfora, aqui traduzida literalmente,
refere-se exclusivamente ao ato de tirar a vida.56 A demolição de mura­
lhas e construções dificilmente são descritas pela expressão "fio da espa­
da". E melhor, então, assumir que o aniquilamento dos cidadãos de
Maquedá é o que está em foco, especialmente porque o autor segue infor­
mando que o estrago causado pela espada incluiu o rei, que com os de­
mais habitantes foi destruído (heherim). Em resumo, Josué tomou Maquedá,
passou os seus habitantes ("a cidade") e o rei ao fio da espada, destruindo-os
totalmente.
Então Josué passou a Libna (possivelmente Tel es-Sâfi, cerca de doze
quilômetros a sudoeste de Maquedá), que sofreu a mesma calamidade vista
em Maquedá. Nessa ocasião Jeová "deu" (nãtan) a cidade e seu rei a Israel, e
Josué passou ela e seus habitantes ao fio da espada, não deixando qualquer
sobrevivente. Laquis foi a próxima a ser atacada. Situada cerca de dezesseis
quilômetros ao sul de Libna, também ela foi entregue nas mãos de Josué, e
aconteceu-lhe o mesmo que o ocorrido a Maquedá e a Libna. Mesmo a in­
terferência de Horão, rei de Gezer, que vivia a mais de 32 quilômetros ao
norte de Laquis, não pôde poupar a cidade e seu povo. A outra cidade,
Eglom, ficava a apenas doze quilômetros a sudoeste de Laquis. Seguindo
ao mesmo estilo monótono de narração, o historiador descreve a queda de
Eglom como ele havia feito com as outras cidades. Hebrom vem a seguir e
parece ser uma exceção à política de preservação da estrutura física da cida­
de. Essa diferença tem sua explicação no fato de Josué haver posto tanto a
cidade quanto seus habitantes sob condenação. Contudo, também aqui a
palavra "cidade" (ou "ela", v. 37) pode significar a população (como aconte­

54 Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford University
Press, 1984), p. 134.
?a Merril, "Palestinian Archaeology," GTJ 3 (1982): 113.
Francis Brown, S.R. Driver and Charles A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old
Testament (Oxford: Clarendon, 1962), pp. 352-53.
116 H istória de I srael no A ntigo T estamento

ce regularmente)57, e a frase seguinte pode ser explicativa - "destruíram a


cidade por completo, ou seja, a todos os que nela habitavam".58 Nesse caso
até a cidade de Hebrom e as vilas que rodeavam-na foram poupadas mate­
rialmente. Seu repovoamento dentro de cinco anos (ver Js 14.6-15)59 certa­
mente sustentaria a idéia de que as muralhas e construções da cidade per­
maneceram, e foram reocupadas pelos israelitas. A última cidade na lista foi
Debir (Tel Beit Mirsim), 24 quilômetros a sudoeste de Hebrom. Seu julga­
mento foi exatamente igual ao das outras cidades já descritas.
O relato da chamada campanha em direção sul está sumariada em Josué
10.40-43. O narrador declara que "feriu Josué toda aquela terra, a região
montanhosa, o Neguebe, as campinas, e as descidas das águas, e a todos
os seus reis; destruiu a tudo o que tinha fôlego, sem deixar nem sequer
um, como ordenara o Senhor Deus de Israel". Note que não houve men­
ção de destruição material das cidades e vilarejos. O estudante objetivo
concluirá então que a razão para tal referência ser omitida no sumário - o
local onde mais se esperaria encontrá-la - é que as estruturas urbanas fo­
ram preservadas intactas, conforme já Moisés havia prescrito.60

57 Num estudo revelador, Rivka Gonen nos diz que a maioria das cidades da Era do Bron­
ze Recente eram cidades não-fortificadas - não havia muralhas para defendê-las e criar
uma barreira contra os que tentassem tomá-las. Ao mesmo tempo houve um rápido
crescimento no número de acampamentos nos séculos décimo quarto e décimo terceiro.
Essas estatísticas batem com o montante da população durante os anos da conquista
("Urban Canaan in the Late Bronze Period", BASOR 253 [1984]: 61-73).
58 Wilhelm Gesenius, Gesenius'Hebrew Grammar, editado por E. Kautzch e A.E. Cowley
(Oxford: Clarendon, 1957), 154a.
59 A vitória contra a liga dos amorreus certamente não ocorreu antes de 1405 e Calebe,
segundo seu próprio testemunho, estava com oitenta e cinco anos quando tomou a ci­
dade de Hebrom como sendo sua herança (Js 14.10, 13,14). Já que ele estava com qua­
renta anos depois que se passaram dois anos do êxodo (v.7), a data da sua aquisição da
cidade de Hebrom deve ter sido por volta de 1399.
60 Até mesmo Manfred Weippert, que interpreta a ocupação de Canaã por Israel como
tendo sido uma espécie de penetração gradual das tribos e que seguiu de perto um
padrão estabelecido de fixação na terra, não acontecendo como que através de uma
operação militar, deve reconhecer que a evidência arqueológica é totalmente silenciosa
a esse respeito (The Settlement ofthe Israelite Tribes in Palestine, traduzido por James Martin
[Naperville, 111.: Allenson, 1971], pp. 128,129). J. Maxwell Miller, que interpreta a ocupa­
ção como tendo sido uma violenta operação militar, deve reconhecer que "os dados
arqueológicos disponíveis simplesmente não se enquadram muito bem com o relato
bíblico da conquista, apesar das datas propostas por algumas pessoas" ("Archaeology
and the Israelite Conquest of Canaan: Some Methodological Observations," PEQ 109
[1977]: 88). É claro que não devemos esperar que as evidências concordem entre si quando
a interpretação dada à conquista é defeituosa.
A COSQUISTA E A OCUPAÇÃO DE C a NAÃ 117

A campanha em direção norte

Com o grande sucesso da campanha militar ao sul, Josué voltou a Gilgal,


a base de Israel durante os primórdios da conquista.61 Mas muito rapida­
mente deu início à fase final de seu plano - a invasão das terras cananéias
no vale de Jezreel e na Galiléia ao norte. Os cananeus por essa época já
estavam cientes de tudo o que havia se passado nas regiões sul e central
da Palestina, e imediatamente formaram uma aliança para resistir o que
sabiam ser um conflito certo com Israel.
O fundador e líder da aliança era Jabim, rei de Hazor (Tel ed-Quedah)
- a maior das cidades do norte e possivelmente de toda a Canaã. Essa
metrópole, cobrindo mais de 110 acres e abrigando talvez mais de quaren­
ta mil habitantes, situava-se estrategicamente sobre uma alta colina, cerca
de 32 quilômetros ao norte do mar da Galiléia, e menos de oito quilôme­
tros a sudoeste do lago Hulé (as águas de Merom).62 Era tradicionalmente
reconhecida por sua liderança na região (Js 11.10), de forma que não foi
difícil para Jabim alistar as demais cidades para apoiá-lo nessa causa. In­
cluía-se na lista Joabe, rei de Madom (Qarn Hattin), cerca de oito quilôme­
tros ao ocidente de Tiberíades, os reis de Simrom (Tel Semuniyeh) e Acsafe
(Tel Keisan).
Simrom situava-se na fronteira norte da planície de Jezreel, perto de 24
quilômetros do Mediterrâneo, e Acsafe cerca de nove quilômetros a sudo­
este de Aco. Portanto, a influência imediata da cidade de Hazor estendia-
se como em um semicírculo que voltava-se para o sul e o oeste, com um
raio de aproximadamente 65 quilômetros. Outros reis que foram alista­
dos, mas não tiveram seus nomes mencionados, reinavam sobre territóri­
os ao norte da Galiléia no vale do Jordão, ao sul de Quinerete (o mar da
Galiléia), nas planícies (a planície de Jezreel) e nas alturas de Dor, prova­
velmente nas encostas-sul da cadeia montanhosa do Carmelo, paralelo ao
Mediterrâneo. Além disso, Jabim solicitou o apoio dos reis cananeus,
amorreus, hititas, ferezeus, jebuseus e heveus de ambos os lados do rio
Jordão e do Hermom, ao norte da região montanhosa de Efraim. Com um
numeroso contingente de infantaria e carros de combate, essas forças com­
binadas esperavam pela vinda de Israel às águas de Merom, um campo de
batalha preparado pela natureza.

61Quanto a Gilgal ser considerado como um centro logístico e estratégico, ver em Abraham
Malamat, "How Inferior Israelite Forces Conquered Fortified Canaanite Cities," BAR 8
(1982): 31.
Quanto a escavação e história desse sítio, ver em Avraham Negev, ed., Archaeological
Encyclopedia ofthe Holy Land (Englewood, N.J.: SBS, 1980), pp. 138-41.
118 H istória d l I srael no A ntigo T estamento

Com um ataque relâmpago Josué caiu sobre os cananeus, abatendo-os


completamente. Os que puderam escaparam e fugiram para o mais longe
possível, chegando a Sidom, que ficava a mais de 64 quilômetros para o
norte; também foram para Misrefote Maim (Khirbet el-Musheirefeh), que
ficava na costa entre o Carmelo e Tiro. Fugiram ainda para o vale de Mispa
(Marj-'Ayyum?),63 próximo ao sul do monte Hermom. Então Josué atacou
a cidade de Hazor e a tomou (lãkad), matando o seu rei e ferindo grande­
mente a população. Então, no que claramente foi uma exceção à política
que vinha seguindo até o momento, ele incendiou a cidade e a demoliu
por completo. Se ainda há necessidade de provar que tomar uma cidade e
passá-la ao fio da espada não é o mesmo que destruí-la materialmente,
note a forma através da qual o historiador descreve o que aconteceu às
cidades que restaram. Israel, ele diz, tomou as cidades que estavam
aliançadas com Hazor, feriu-as ao fio da espada, destruiu-as completa­
mente, mas não queimaram a nenhuma delas com exceção de Hazor (Js 11.12,13).
Tomar uma cidade e passá-la ao fio da espada, mesmo reconhecendo-a
sob a maldição, não é necessariamente reduzi-la a cinzas. Quando é este o
caso, de que Hazor é um exemplo, segue uma afirmação explícita de que
tal cidade foi queimada.

A d a ta d a c o n q u is ta de Jo s u é

A razão por que tem-se enfatizado, e até certo ponto trazido cansaço ao
leitor, que a maioria das cidades cananéias não foram destruídas material­
mente por Josué é que, dentre todos os argumentos utilizados em favor de
uma data apropriada para a'conquista, aquele argumento arqueológico
que atesta uma violenta conflagração das cidades cananéias tem sido vis­
to como o mais importante.64 De fato, sem o argumento arqueológico, pouca
a base resta para uma data mais recente (décimo terceiro século). A destrui­
ção maciça ocorrida no século XIII documentada pela pesquisa arqueoló­

63 Aharoni, Land of the Bible, p. 239.


64 Yigael Yadin, por exemplo, argumenta que a "arqueologia traz uma imensa confirma­
ção que no final da Era do Bronze Recente, alguns israelitas de estilo de vida semi-
nômade destruíram as principais cidades de Canaã; então, gradualmente, construíram
seu novo estilo de vida sedentário sobre as ruínas dessas cidades."("Is the Biblical
Account of the Israelite Conquest of Canaan Historically Reliable?" BAR 8 [1982]: 23). É
surpreendente como Yadim distorce o relato bíblico da conquista e falha em se abrir
para a possibilidade da destruição ocorrida na Era do Bronze Recente ter acontecido
durante a era dos juizes', e não durante a conquista.
\ COSQUISTA E A OCUPAÇÃO DE C a NAÃ 779

gica é atribuída por muitos estudiosos à conquista israelita. Devido à for­


ça deste argumento, a data tradicional para a conquista (princípio do sé­
culo catorze) passou a ser rejeitada. Conseqüentemente, a data mais anti­
ga para o êxodo (1446) também teve de ser ajustada.
x Além de resultar em uma rejeição aviltante e não crítica do claro teste­
munho bíblico, esta visão baseada na arqueologia é apenas uma sugestão,
podendo ser até considerada uma propostãmuito mal fundamentada. Em
‘■'primeiro lugar, não há qualquer documento do décimo terceiro século que
forneça testemunho escrito identificando ou os habitantes das cidades des­
truídas ou seus destruidores. Manter, baseado em artefatos não-literários,
que as cidades destruídas no décimo terceiro século em Canaã eram povoa­
das por cananeus e que foram destruídas por israelitas é presunção. Há tão
pouca diferença entre os sítios arqueológicos cananeus e israelitas, que não
se pode distinguir, baseados em princípios culturais, uns dos outros.65
A devastação de várias cidades por toda a Canaã (ou Israel) no décimo
terceiro século, uma tragédia cuja realidade e quadro geral não podem ser
negados, pode ser explicada como as batalhas de ocupação das cidades e
vilarejos israelitas por seus inimigos, durante o período dos juízes, como
também pode significar a ocupação das cidades cananéias e seus vilarejos
pelos exércitos israelitas durante a conquista. Além disso, a cronologia do
Antigo Testamento requer que o sofrimento de Israel durante, por exem­
plo, o tempo de Débora (ver p. 184) enquadre-se naquele período ligado à
conquista - no décimo terceiro século.
A. A segunda, e a mais veemente razão para se rejeitar a data da conquista
no décimo terceiro século é, ironicamente, a confirmação arqueológica de
um grande número de ruínas naquela época. Se a tese aqui adotada - de
que Josué deliberadamente manteve uma política de preservação das es­
truturas urbanas - está correta, e o registro bíblico consistentemente de­
monstra isto, conclui-se que a evidência de uma destruição ocorrida no
princípio do décimo quarto século se tornaria uma contradição embaraço­
sa com o testemunho bíblico. Assim, os esforços de alguns conservadores
para encontrar nos artefatos arqueológicos uma evidência de uma data
mais antiga devem ser descartados.
Conforme demonstrado anteriormente, apenas três cidades - Jerico, Ai
e Hazor - foram postas sob a condenação do herem e totalmente destruí­
das. Jerico e Ai, por razões já mencionadas, não auxiliam no estabeleci­
mento de uma cronologia. Resta apenas Hazor, sobre a qual infelizmente
ainda existe muita controvérsia. Em sua publicação inicial acerca da cida­

65 Kenyon, Archaeology, p. 209.


120 H istória d e I srael no A ntigo T estamento

de de Hazor, o escavador Yigael Yadin argumentou que a cidade sofrera


várias conflagrações por volta de 1400, exatamente a data sugerida pela
cronologia tradicional.66 Porém, mais tarde, Yadin reviu sua data e dimi­
nuiu 150 anos, de forma que esta encaixou-se no décimo terceiro século,
uma data aceita pela maioria dos estudiosos. Esta revisão, por sua vez,
não permaneceu sem ser desafiada. John Bimson, por exemplo, em uma
meticulosa análise dos dados arqueológicos oriundos de Hazor e das re­
dondezas, concluiu que o ajuste feito por Yadin não apenas foi desne­
cessário como também completamente injustificado. A data inicialmente
proposta por Yadin (1400) está de fato correta. Logo, o único local que
pode ser utilizado nesta discussão - Hazor - apóia inegavelmente uma
data mais antiga para a conquista.67
O resumo das três fases da conquista (Js 11.16-20) confirma a interpre­
tação que vem sendo proposta nesta obra sobre a sua natureza e extensão.
O narrador informa que Josué tomou toda a terra, desde o monte Halaque
(Jebel Halaq), nas profundezas do Neguebe, até Baal-Gade, no vale de Beca,
a oeste do Hermom. Ele capturou e aniquilou todos os reis daquela área,
destruindo totalmente as populações, com exceção dos gibeonitas que, por
meio de uma trapaça, conseguiram que Josué fizesse com eles uma alian­
ça. Nenhuma palavra é mencionada acerca de destruição material, embo­
ra fosse esperada essa informação, uma vez que tal passagem faz uma
recapitulação do procedimento e política então adotados.

A c a m p a n h a c o n tra os e n a q u in s

Quase um adendo ao relato principal da conquista, o historiador agora


refere-se a uma especial campanha de Josué que visava a tratar o proble­
ma dos enaquins (Js 11.21-23). Israel havia encontrado essa raça de gigan­
tes anteriormente, na ocasião em que espionava a terra de Canaã (Nm
13.21-33). O Antigo Testamento atribui sua origem a um certo Enaque (Nm
13.22), um descendente de Arba (Js 15.13), de quem originou o nome da
cidade de Quiriate Arba, conhecida mais tarde como Hebrom (Js 14.15).
No tempo de Josué os enaquins dividiam-se em três principais clãs - os
filhos de Aimã, Sesai e Talmai (Nm 13.22; Js 15.14), a maioria dos quais
vivia nas regiões montanhosas de Judá. O historiador provavelmente des­
taca esta particular operação porque foram estes enaquins que haviam

66Yigael Yadim, "Further Light on Biblical Hazor," BA 20 (1957)-. 44; "The Third Season of
Excavation at Hazor, 1957", BA 21 (1958); 30-47.
67 Bimson, Redating, pp. 185-200.
\ C onquista e a O cupação de C anaà 121

aterrorizado os espias de Israel - exceto Josué e Calebe e que indireta­


mente tinham sido a causa do longo atraso na conquista da terra. Cabia
perfeitamente ao próprio Josué voltar à fortaleza dos gigantes para de­
monstrar a superioridade de Yahweh.
E difícil datar a expedição contra os enaquins, embora a frase "naquele
tempo" (Js 11.21) estabeleça, sem dúvida, uma ligação entre este aconteci­
mento e o relato anterior. Além disso, somos informados de que Calebe foi
agraciado com as cidades de Hebrom e Debir como herança, mas para
adquiri-las seria preciso expulsar os enaquins (Js 15.13-15). Não há dúvi­
da de que a ira de Josué contra os enaquins era a mesma de Calebe - os
dois trabalhavam juntos, com Josué no comando. Essa campanha, obvia­
mente, provinha dos apelos de Calebe para possuir sua herança, um pedi­
do feito quando este estava com oitenta e cinco anos (cerca de 1399 a.C. -
ver em Js 14.7,10). O pedido foi feito especificamente para obter a cidade
de Hebrom, nas regiões montanhosas, para o qual Josué consentiu alegre­
mente. Quanto tempo levou entre o consentimento e a operação militar
que realmente colocou a cidade sob seu controle não pode ser determina­
do, embora, como já mencionado, "naquele tempo" sugere apenas um
pequeno interlúdio.
Os enaquins sobreviventes estavam agora confinados a Gaza, Gate e
Asdode, três dentre as cinco cidades dos filisteus. Talvez Golias e os ou­
tros gigantescos filisteus não fossem de fato verdadeiros filisteus. Eles
podem ter descendido de Enaque, que viveu entre os filisteus e por essa
razão foram assim identificados.

M o d e lo s a lte rn a tiv o s d a c o n q u is ta e o c u p a ç ã o

Josué 12-19 relata essencialmente as alocações das tribos. Uma vez que
a conquista inicial estava completa, uma tarefa que levou aproximada­
mente sete anos (cerca de 1406 a 1399), era necessário iniciar o processo de
ocupação, pois as cidades abandonadas seriam repovoadas rapidamente
pelos habitantes da terra, caso Israel permanecesse por muito tempo fora
delas. Pode-se deduzir que já alguma ocupação estava em andamento
durante aquele tempo, mas está claro que a maioria de Israel ainda se
achava concentrada em Gilgal e sua periferia. De fato, antes que a distri­
buição da terra conquistada fosse feita em lotes e possessões, nenhuma
residência oficial ou permanente poderia ser fixada. Antes de o padrão de
distribuição adotado ser descrito, é importante considerar brevemente duas
formas alternativas de ver a conquista e o estabelecimento de Israel: à vi­
são da tradição crítica e a sociológica. Visto que as duas visões produzi­
122 H istória de I srael no A ntigo T estamento

ram uma variedade de modelos, apenas o mais conhecido ou mais popu­


lar de cada uma será analisado aqui.

O modelo histórico-tradicional

A hipótese documentária e desenvolvimentista da crítica do Antigo Tes­


tamento, que vem dominando a erudição bíblica há dois séculos, produziu
uma abordagem particular sobre a questão das origens e da natureza de
Israel que tem desafiado a pura descrição contida no Antigo Testamento. A
tese dessa obra é que o registro do Antigo Testamento acerca da história de
Israel, incluindo suas origens, deve ser aceito e acatado como um documen­
to prima facie, cuja historiografia é de total confiabilidade, a não ser que haja
fortes razões, internas ou externas, para pensar de maneira diferente. Den­
tre os problemas internos que são levantados, e que levam alguns a questi­
onar a fidedignidade do testemunho bíblico, está o fato de haver supostas
contradições em seu registro, tais como duplicações (registros duplicados
sobre o mesmo relato) e coisa semelhante. As considerações externas con­
sistem em dados arqueológicos e históricos que parecem contradizer o pon­
to de vista bíblico. Mas, se for possível demonstrar que todos os problemas
internos e externos, apontados como motivos para se rejeitar o testemunho
bíblico, são prontamente resolvidos dentro da própria estrutura bíblica tra­
dicional, não mais haverá razão para duvidar do registro do Antigo Testa­
mento. Embora essa tarefa não satisfaça todas as pessoas - pois os pontos
de vista teológicos, filosóficos, e várias outras posições submetem-se a to­
das as disciplinas, inclusive a historiografia - o estudante sem preconceitos
reconhecerá que a construção bíblica da história de Israel possui reivindica­
ções tão fortes quanto qualquer outra. E em nenhum outro lugar essa
confiabilidade pode ser melhor demonstrada do que no caso da conquista e
do estabelecimento de Israel em Canaã.
Nenhum estudioso atual domina tanto o tema das origens e desenvol­
vimento de Israel quanto Martin Noth. Sua análise do assunto irá, portan­
to, servir como representação da principal corrente histórico-tradicional.68

“ Martin Noth, Das system der zw ölf Stämme Israels (Darmstadt: Wissenchaftliche
Buchgesellschaft, 1966): History of Pentateuchal Traditions, traduzido por Bernhard W.
Anderson (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1972); The History of Israel 2a edição
(New York: Harper and Row, 1960), especialmente as pp. 53-163. Para uma apresenta­
ção e crítica ao trabalho de Noth, bem como uma reconstrução alternativa, ver em J.
Liver, "The Israelite Tribes", em World History of the Jewish People, vol. 3, Judges, editado
por Benjamim Mazar (Tel Aviv: Massada, 1971), pp. 193-208.
l. C o S Q U S T A E A OCUPAÇÃO DE C a NAÃ 123

Virtualmente, todos os proponentes dessa escola concordam que houve


uma confederação de doze tribos chamada Israel perto de 1200 a.C. Isto
baseia-se na existência de composições poéticas muito antigas, tais como
o "Cântico de Débora" (Jz 5), que confirma a existência da confederação.
O fato, então, exige uma explicação. Quais fortes razões podem ter criado
a unificação de agrupamentos tribais que, obviamente, em algum tempo
viveram independentes? Aqui há diferença de opiniões. Noth sugere que
é impossível conhecer o motivo da unificação, mas, uma vez concretiza­
da, foi criada uma fé religiosa comum.69 John Bright, por outro lado, man­
tém que o processo foi exatamente o contrário do que normalmente ocor­
reria, ou seja, a fé comum foi o que aproximou as tribos para a unifica­
ção.70 Ambos, porém, concordam que a mistura das tribos produziu a jun­
ção de tradições religiosas e históricas, repassadas para a confederação
pelas próprias tribos, resultando em que cada tradição tornou-se patrimô­
nio comum de todo o Israel. Isto implica em que as tribos, de fato, não
tiveram uma origem comum - certamente não eram descendentes dos doze
filhos de um único pai; ou melhor, o relato do Antigo Testamento a respei­
to de uma origem comum simplesmente reflete o produto final de uma
mistura de tradições.
A confederação é melhor explicada com base nas exigências políticas e
geográficas. As tribos israelitas, conforme defendido, eram primariamen­
te (se não totalmente) não-cananéias, e se uniram em face das ameaças e
pressões dos cananeus e filisteus, a fim de preservar interesses comuns,
evitando assim a destruição ou assimilação. Além disso, muitas das tribos
devem ter compartilhado experiências e tradições históricas semelhantes.
Por exemplo, elas podem ter vivido uma vida de nômades, ou sofrido
debaixo de escravidão opressora, ou podem ter abraçado as mesmas di­
vindades por alguma razão. Esses fatores podem tê-las conduzido a uma
amalgamação, visto que se encontravam na mesma terra.
Pode-se entender como este processo veio a existir através de uma típi­
ca reconstrução. Algumas tribos, ou quem sabe todas, eram descendentes
de imigrantes amorreus que chegaram a Canaã por volta de 2200-2000
a.C., oriundos das regiões mais altas do Eufrates-Balik-Habor. Algumas
delas (Aser, Naftali, Zebulom, Gade e Issacar) foram bem-sucedidas em
sua tentativa de estabelecer-se. Outras, não logrando o mesmo êxito, es­
palharam-se por várias direções. Rúben ficou restrita ao oriente do mar

69 Noth, History o f Israel, pp. 193-208.


John Bright, A History of Israel, 3a edição (Philadelphia: Westminster, 1981), pp. 148-50,
164,165.
12 4 H istória dl I srael no A ntigo T estamento

Morto e começou a desaparecer. Simeão e Levi tentaram tomar Siquém,


mas foram repelidas. Como conseqüência, Simeão passou a diminuir sen­
sivelmente, sendo por fim absorvida pela tribo de Judá. Levi ou foi força­
da a partir para o Egito ou espalhou-se por Canaã; nunca mais voltou a
existir como uma entidade política. José (Efraim e Manassés) partiu e esta­
beleceu-se no Egito. Uma perspectiva alternativa é que Efraim e Manassés
originaram-se no deserto ao oriente de Jerico, entrando em Canaã durante
o período de Amarna, talvez como os detestáveis 'apiru das cartas de
Amarna. Judá residia desde tempos muito antigos no Negueve, provavel­
mente nas imediações de Cades-Barnéia. Dã, a princípio, ficou restrita a
uma minúscula área próxima a planície de Saron e, tempos depois, sob
pressão (filisteus?), foi forçada a restabelecer-se ao norte, em Lais. Por fim,
Benjamim, originalmente ao oeste junto das tribos josefitas, estabeleceu-
se em uma pequena região central em Canaã (próximo a Jerico).
Portanto, o êxodo não envolvera todas as tribos em hipótese alguma,
mas apenas Levi e as tribos de José no máximo, ou talvez somente Levi.
Uma forte e persistente tradição bíblica liga Moisés à tribo de Levi; visto
que Moisés estava no Egito, a tribo de Levi também deve ter estado lá.
Caso haja realmente uma relação histórica entre Josué e Moisés, então
Efraim também deve ser incluída no êxodo, pois Josué era descendente
dessa tribo. É impossível negar a relação de irmãos entre Efraim e Manassés,
logo, Manassés também deve ter se estabelecido no Egito. Esses fatos são
um verdadeiro problema para muitos estudiosos, pois enquanto susten­
tam uma data mais recente para o êxodo, querem identificar os 'apiru como
as tribos de Efraim e Manassés. Em conseqüência, precisam deslocar as
atividades das tribos de José em Canaã para mais de um século antes da
data do êxodo. Isto significa que Josué precedera Moisés cronologicamen­
te, e que se Josué participou de um êxodo, este não pode ter sido o de
Moisés. Talvez, então, as tribos de José estiveram no Egito com Levi, mas
de lá partiram mais de um século antes, sob a liderança de Josué. A lide­
rança de Moisés em seu relacionamento com Josué não reflete necessaria­
mente um fato histórico, mas consolidou-se como uma forte tradição que
caracterizou Moisés como o libertador e o legislador.
Então, alega-se que Moisés conduziu pelo menos a tribo de Levi ao
Sinai, onde foi introduzido ao Jeovismo pelo sacerdote midianita Jetro. Já
conhecedor dos "deuses dos pais" (Elohim, El Shaddai, etc.), por meio de
suas próprias tradições tribais, Moisés fez assim sua maior e mais signifi­
cativa contribuição, ao identificar o Deus Jeová midianita das montanhas
e do deserto como o Deus responsável pela libertação através do êxodo, e
como o Deus de seus ancestrais, o Deus que sempre havia estado com
A C onquista e a O cupação de C anaã 1 25

eles, mas que até então não era conhecido por esse nome. Moisés, portan­
to, tornou-se um missionário de Jeová, e quando ele e sua tribo Levi en­
contraram-se com Judá em Cades-Barnéia, esta então converteu-se ao
Jeovismo. Movendo-se para o norte de Canaã, Judá fez o mesmo a Simeão,
e passou a ser o centro de culto a Jeová. O documento J, a suposta fonte do
pentateuco que enfatiza o nome de Yahweh (Jahve em alemão), por fim foi
criado em Judá e disseminado para todo o Israel, provavelmente nos dias
de Salomão. Quando Moisés chegou a Transjordânia, encontrou-se com
Rúben e Gade. Estas preferiram lá permanecer, mas as duas abraçaram a
fé jeovista e, ao mesmo tempo, passaram para Moisés suas próprias tradi­
ções, que vieram a se transformar na tradição de todo Israel. Então Moisés
morreu. Segundo a opinião de que as tribos de José participaram do êxodo
de Moisés, estas e Levi foram conduzidas por Josué através do Jordão por
volta de 1250. Lá ele estabeleceu suas tribos Efraim e Manassés na região
montanhosa que havia entre as tribos do sul (Judá e Benjamim) e do norte
(Aser, Naftali, Zebulom, Gade e Issacar). Portanto, toda a terra desde Dã
até Berseba veio a ser ocupada por tribos não-cananéias que, por fim, con­
sideravam-se possuidores de uma origem e história comuns.71
A teoria então continua a explicar como ocorreu a fusão das tradi­
ções. E provável que as tribos desde cedo reconhecessem (se com segu­
rança ou não) uma origem araméia comum, bem como divindades e
ancestrais epônimos comuns. Moisés introduziu o Jeovismo em Levi,
José, Judá, Rúben e Gade. Josué, então, o encorajou entre as tribos indí­
genas, e o resultado foi que os costumes tradicionais que distinguiam
as tribos submergiram-se nos interesses de uma comum fé e história
pan-israelita. A criação formal desta ligação pode ser vista na convoca­
ção de Siquém em Josué 24. Entretanto, a questão se foi a "conversão"
que produziu unidade política ou a unidade política que trouxe a con­
versão ainda permanece.
A Voltando a Martin Noth e sua construção de uma liga anfictiônica,72
observamos que ele e muitos críticos da tradição insistem que a confede­
ração baseava-se em uma aceitação comum de várias tradições originais e
independentes:

n Para uma apreciação diferente desse cenário, ver a obra de Benjamim Mazar "The Exodus
and the Conquest", em World History of the Jewish People, vol. 3, pp. 79-93.
Uma definição de "anfictiônico" e um forte protesto contra essa visão de que a união
entre as tribos de Israel era de tal natureza pode ser vista em N. P. Lemche, "The Greek
'Amphictyony' - Could It Be a Prototype for the Israelite Society in the Period of the
Judges?" JSOT 4 (1977): 48-59.
126 H istória de I srael no A ntigo T estamento

1. As promessas feitas aos pais. Algumas tribos entenderam sua exis­


tência em Canaã e seus direitos a esta terra como o cumprimento
das promessas feitas por Deus aos seus ancestrais.
2. Uma libertação miraculosa. O resgate da escravidão foi vivenciado
por algumas tribos, embora Noth não tenha certeza de quais. De for­
ma surpreendente, ele desassocia Moisés do acontecimento original.
3. Uma manifestação de Deus por meio da aliança. Algumas tribos,
mais uma vez não identificadas, contudo provavelmente incluindo
Levi, experimentaram algo profundamente significativo no Sinai,
que para eles ficou claro ter sido uma revelação de Jeová.
4. Uma peregrinação no deserto. Visto que o tema de uma peregrina­
ção no deserto é tão dominante na tradição, algumas tribos devem
ter tido semelhante experiência.
5. Uma conquista ou herança da terra. Uma vez que a conquista tam­
bém é um tema de bastante evidência, pelo menos algumas tribos
devem ter adquirido alguns territórios à força.

Estas cinco principais tradições, distribuídas de alguma forma entre as


doze tribos, foram reformuladas e refinadas, tornando-se assim um estoque
comum para toda a confederação. Sendo assim, a história do pentateuco
(ou hexateuco), conforme encontra-se registrada no Antigo Testamento
canônico, é uma mistura e editoração desses e talvez de outros blocos origi­
nalmente independentes. A redação foi feita de forma tão bem elaborada
que se torna difícil perceber onde se encontram as emendas que caracteri­
zam o arranjo. O leitor leigo, conforme a teoria sugere, não pode sequer
imaginar que, por trás do que à primeira vista é um maravilhoso e consis­
tente relato da história de Israel, existe um intricado complexo de coleção,
edição e montagem de materiais, cujo valor histórico é altamente duvidoso.
Não há como saber absolutamente nada sobre como de fato a história acon­
teceu. Pode-se apenas saber como os redatores perceberam o que seria aquela
história, à medida que apropriaram-se das tradições para seus próprios fins
teológicos, políticos e apologéticos.73

O modelo sociológico

Se o modelo histórico-tradicional é uma reconstrução insatisfatória, o


que dizer acerca de recentes tentativas de considerar a conquista e o esta­

73 Para uma clara apresentação da filosofia e da metodologia subjacente à referida reda­


ção, ver em J. Maxwell, The Olá Testament and the Historian (Philadelphia: Fortress, 1976),
especialmente as pp. 49-69.
A C onquista e a O cupação de C ana 127

belecimento em Canaã seguindo certa abordagem sociológica, especial­


mente como uma espécie de revolta de camponeses?74 Essa abordagem
encontra seu mais poderoso e mais bem esclarecido intérprete na exausti­
va obra de Norman Gottwald, The Tribes o f Yahweh (As Tribos de Javé).
Baseada nas obras de George Mendenhall,75 Robertson Smith76 e Max
Weber,77 a tese de Gottwald expõe que a confederação dos israelitas veio a
existir como resultado de uma revolta organizada de camponeses que de­
safiara o estado de Canaã. Embora sem negar a origem e identificação
não-cananéia das tribos, Gottwald minimiza aquele ponto, concentrando-
se na existência de facto de Israel em Canaã e em seus esforços para lá
estabelecer uma nova ordem social.78
O movimento começou, segundo informa Gottwald, com os 'apiru da
era de Amarna, que serviram de modelo para os camponeses. O próximo
passo foi a unificação dos que eram anteriormente grupos separados por
interesses sociais, políticos, militares e de culto. Gottwald os classifica como
Israel Eloístico. Finalmente, surgiu uma coalizão entre os 'apiru, eloístas e
pastores transumantes de Canaã e do Egito, uma associação que se cha­
mou Israel e que agora adorava Yahweh.79 Em suma, a hipótese de
Gottwald, de qualquer modo, não está relacionada com a noção de con­
quista, mas tem a ver com uma luta de classes entre os camponeses (Isra­
el) e a nobreza de Canaã. O resultado final foi a confederação das tribos e,
como conseqüência, a monarquia.
Não é possível e nem há necessidade de desafiar esse modelo neste
momento. Em primeiro lugar, a tese tem encontrado vigorosas críticas por
parte de estudiosos de várias origens, conforme a referência às revisões de

74 Uma revisão excelente das posições sociológicas mais recentes com respeito a história
de Israel e sua literatura encontra-se em Walter Brueggemann, "Trajectories in O.T.
Literature and the Sociology of Ancient Israel," JBL 98 (1979): 161-85.
75 George E. Mendenhall, The Tenth Generation: The Origins of the Biblical Tradition (Baltimore:
Johns Hopkins University Press, 1973).
76 W. Robertson Smith, Lectures on the Religion o f the Semites (Edinburgh: Adam and Charles
Black, 1889); Kinship and Marriage in Early Arabia (London: Adam and Charles Black,
1903).
77 Max Weber, The Sociology of Religion, traduzido por Ephraim Fischoff (Boston: Beacon,
1963).
78 Gottwald, Tribes of Yahweh, pp. 210-19.
79 Ibid., p. 497. Essa hipótese pressupõe uma conversão religiosa maciça, um fato que
não pode em nada ser comprovado por não haver evidências. Ver Jacob Milgrom,
Religious Conversion and the Revolt Model for the Formation of Israel," ]BL 101 (1982):
169,175-76.
128 H istória de I srael no A ntigo T estamento

The Tribes o f Yahweh poderá demonstrar.80 Em segundo lugar, conforme J.


Maxwell Miller sugere, essa é mais uma "reconstrução moderna que se
impõe à tradição bíblica".81 E, na verdade, uma hipótese (revolta de cam­
poneses) construída sobre uma hipótese (crítica da tradição ao estilo de
Noth e outros), uma abordagem que, na maioria das disciplinas acadêmi­
cas, submeteria seus proponentes ao escárnio e à rejeição como um inves­
tigador científico.
Voltando ao relato do historiador bíblico, impressiona não existir no
texto qualquer tentativa de salvar a sua credibilidade ou mesmo de expli­
car os meios pelos quais a conquista e a ocupação foram concretizadas.
Não há nada improvável no relato de que centenas de milhares de pessoas
estabeleceram-se temporariamente em Gilgal, enquanto seus homens de
guerra empreenderam campanhas militares contra as cidades e vilarejos
por toda a extensão de Canaã. As regiões ao redor de Gilgal, Jerico, e a
parte mais baixa do vale do Jordão são perfeitamente capazes de sustentar
uma população dessa grandeza numérica, seja na questão do espaço físico
ou das terras disponíveis para pastagem, campos cultiváveis ou água. Não
há qualquer indicação no registro acerca de uma ocupação da região em
larga escala, espalhando-se talvez para além das encostas ocidentais do
vale. Também não é de surpreender que Josué e Israel tivessem sido tão
eminentemente bem-sucedidos em suas campanhas militares.
Os cananeus e seus aliados já estavam completamente desmoralizados
devido às notícias das vitórias passadas de Israel e da ameaça de invasão.
Além disso, eles viviam em constantes guerras entre as cidades, ficando
assim totalmente despreparados para efetuar qualquer resistência. Parece
também que Israel os ultrapassava em número de homens de guerra, com
exceção da campanha feita ao norte contra Hazor. Por último, porém não de
menor importância, o próprio Yahweh pelejou por Israel. Essa era uma guerra
santa, e através da intervenção divina muitos feitos foram realizados que,
de outra sorte, não poderiam jamais ter ocorrido. Argumentar que a con­
quista da terra, de acordo com o relato bíblico, não deve ser aceita porque
requer ou pressupõe o sobrenatural é pelejar contra o cerne da fé bíblica:

80 Marvin L. Chaney, JBL 103 (1984): 89-93; Walter R. Wifall, "The Tribes of Yahweh: A
Synchronic Study with a Diachronic Title," ZAW 95 (1983): 197-209; Eugene H. Merril,
Bib Sac 138 (1981): 81-82; Frederic R. Brandfon, "Norman Gottwald on the Tribes of
Yahweh", JSOT 21 (1981): 101-10.
81 J. Maxwell Miller, "The Israelite Occupation of Canaan," em Israelite and Judaean
History, editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster,
1977), p. 279.
A COSQVISTA E A OCUPAÇÃO DE C a NAÃ 129

Deus pôde e verdadeiramente revelou o seu poderoso braço para capacitar


o seu povo a obter vitória contra o impossível. Isto não pode ser desafiado
por meio de argumentos históricos, mas apenas teológicos.

A te rra re p a rtid a e n tre as trib o s

A divisão da terra conquistada e a sua ocupação também não são in­


concebíveis. O processo, é preciso admitir, foi bastante complexo, e alguns
dos relatos parecem contraditórios. Apesar disso, não é impossível imagi­
nar o fato de Josué haver lançado sortes, supervisionado pessoalmente
todos os esforços para a fixação das tribos, e vivido o suficiente para ver
seus objetivos alcançados. Com efeito, todos os estudiosos concordam que
houve um período em Canaã em que não havia israelitas, e que conse-
qüentemente a composição da população ocorreu de modo que toda a
terra foi chamada de Israel.82 A visão crítica da tradição dispõe apenas 200
anos para o acontecimento desta metamorfose, ao passo que a visão tradi­
cional faculta 350 anos, um período sem dúvida bem mais provável para a
complexa e difícil transição do cananeu para o israelita subentendido no
Antigo Testamento e requerido inclusive por hipóteses alternativas.

A distribuição em larga escala

A distribuição da terra feita por Josué é introduzida mediante uma des­


crição geral dos limites que compunham os territórios da Transjordânia
(Js 12.1-6), assim como uma lista das principais cidades que foram toma­
das em Canaã (vv. 7-24). Rúben, Gade e metade da tribo de Manassés pe­
diram e receberam os antigos reinos de Siom e Ogue, reis dos amorreus,
de Hesbom e de Basã respectivamente. Esta posse incluía tudo o que ha­
via entre o rio Arnom, ao sul, e o monte Hermon, no norte; e desde o mar
de Quinerete, o vale do Jordão e o ocidente do mar Morto até os desertos
e o reino de Amom ao oriente. A herança das tribos restantes consistia nas
trinta e uma cidades listadas e, sem dúvida, em muitas outras de menor
importância. A ordem da lista sugere a ordem da conquista, embora um
bom número de cidades não seja mencionado nas narrativas da conquista.
A despeito da aparente grandeza da conquista, houve áreas adjacentes
e mesmo alguns pontos na própria região que não foram tomados por

52 Para uma visão moderadamente crítica e que leva seriamente em conta o relato bíblico,
ver Yohanan Aharoni, "The Settlement of Canaan", em World History of the Jewish People,
editado por Benjamim Mazar, vol. 3, pp. 94-128.
M A R
M E D I TERRÂN
Siquém.
Tanate-Siló
Micmeta
Tapua<

Timnate-Sera•
E F R A I M
Bete-Horom Inferior »Betel
Bete-Horom Superior •Atarote-Adar , . •! a.
. Gibeao Jencb
Geser Aijalom» * Gibeá
Quinate-Jearim* Anatote B E vi
Jerusalém* Én.Semes
Bete-Semes

Hebrom

Debir
Ziclague

OS T E R R I T O R I O S
DAS T R I B O S Horma
13 2 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Josué na ocasião (Js 13.1-7). Isto incluía todo o território dos filisteus, des­
de o vadi el-Arish, ao sul, até o Ecrom, ao norte, ou seja, toda a planície
* costeira da Sefelá. Os filisteus viviam sobretudo em suas cinco principais
cidades, mas outros povos como os gesuritas83 e avvim habitavam entre
eles, particularmente nas regiões desérticas ao sul (Js 13.1-4). No norte de
Canaã as regiões não conquistadas estendiam-se desde Mearah (localiza­
ção desconhecida), uma dependência dos sidônios, até o Afeque situado
na fronteira com os amorreus. Este é provavelmente Afeca, um pouco a
sudeste de Biblos, na Fenícia.84 Os "amorreus" aqui não se referem àque­
les de Canaã, mas ao reino de Amurru, que controlava a região central da
Síria. Esta era aparentemente a fronteira do norte da Terra Prometida.85 A
fronteira oriental dos territórios ao norte, ainda fora do controle de Israel,
estendia-se desde Baal-Gade, um pouco ao ocidente do monte Hermon,
até Lebo-Hamate (ou "a entrada de Hamate"), no Beca, pouco ao oriente
de Gebal (Biblos). Naquela época, a fronteira ao noroeste da terra se esten­
dia desde Misrefote-Maim, na costa do Mediterrâneo, cerca de 28 quilô­
metros ao sul de Tiro, até Baal-Gade86. A área envolvida nesses limites
incluía os reinos de Tiro, Sidom e provavelmente parte de Gebal. Geogra­
ficamente, ela cobria toda a cadeia montanhosa do Líbano, desde o vale
do rio Orontes até o sul das montanhas da Galiléia, e tudo desde o Medi­
terrâneo até o vale de Beca. Os acontecimentos subseqüentes mostrarão
que essa fronteira ao norte praticamente nunca esteve sob o domínio dos
israelitas.

A distribuição da terra para cada tribo

A terra que estava de fato sob o poder dos israelitas foi repartida da
seguinte maneira: Rúben recebeu a área ao leste do mar Morto, entre o rio
Arnon, ao sul, e uma linha de aproximadamente 24 quilômetros ao norte
do mar Morto, em algum ponto bem ao sul de Jazer. Gade reivindicou

83 Esses gesuritas, que viviam num local ainda não definido, próximo ao Neguebe, não
deve ser confundido com aqueles do reino de Gesur, situado a leste do mar da Galiléia.
Ver em Soggin, Joshua, p. 132.
84 Aharoni, Land o f the Bible, p. 238.
85M. Liverani, "The Amorites," em Peoples of Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman,
pp. 123-26.
86 Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan,
1968), mapa 62, que equipara Misrefote-Maim ao rio Litani, que não é mencionado no
Antigo Testamento.
A C onquista e 4 O cupação d e C an aã 13 3

toda a região ao norte de Jazer, beirando ao Jordão, até o mar de Quinerete.


Sua fronteira oriental beirava desde alguns quilômetros a oeste de Rabá,
uma cidade amonita, até o noroeste de Manaim, no rio Jaboque, e d a li'
subia o Jordão até Quinerete. O território oriental de Manassés incluía a
terra entre os amonitas (no oriente) até Gade (no ocidente). A porção sul
mais distante situava-se em Maanaim, e estendia-se para o norte pelo
Iarmuque. Dessa forma, Gade ocupou aproximadamente o sul e o oeste
da Transjordânia, e Manassés o norte e as regiões orientais. A distribuição
que se encontra registrada em Josué 13 parece de alguma forma contradi­
zer o relato em Números 32. Entretanto, há razão para crer que as duas
passagens, ao invés de serem contraditórias, como sugerem muitos estu­
diosos,87 refletem na realidade a distribuição original feita por Moisés e
outra feita por Josué anos mais tarde. A antiga distribuição entremeava as
tribos de Rúben e Gade, dando ensejo a futuras animosidades entre
ambas.88 Josué então pode ter redefinido os territórios de uma e outra para
evitar tal possibilidade.
Josué e o sacerdote Eleazar voltaram-se para a tarefa de delimitar os
territórios designados às demais tribos (Js 14.1-5). Primeiro vieram os lí­
deres de Judá, representados pelo ancião Calebe. Josué foi lembrado das
promessas que Moisés fizera a Calebe de que este receberia uma parte da
terra em que havia estado como espia do povo. Isto, informou Calebe,
havia acontecido quarenta e cinco anos antes, quando ele estava com qua­
renta anos. A missão de espionar a terra tinha se dado no segundo ano
após o êxodo (1445 a.C.); logo, o lembrete de Calebe a Josué deve ser data­
do por volta de 1399, ou seja, sete anos após o início da conquista. Quando
os espias retornaram, Calebe e Josué encorajaram o povo de Israel a entrar
em Canaã, não obstante a presença dos enaquins nas regiões montanho­
sas do sul. Agora, Calebe usava a mesma força contra os mesmos gigan­
tes, e foram-lhe dadas a cidade de Hebrom e outras cidades dos enaquins.
A conquista de Hebrom deve ter sucedido essa requisição (Js 11.21,22; 15.13­
19; Jz 1.9-15).
Depois de expulsar os enaquins de Hebrom, Calebe também tomou
Debir, situada cerca de 24 quilômetros ao sudoeste. Isto ele conseguiu ofe­
recendo sua filha como esposa para qualquer herói que pudesse tomar a
cidade, um feito realizado por seu próprio sobrinho Otniel. Aparentemente
Otniel, mais tarde o primeiro juiz de Israel, estabeleceu-se em Debir - uma

s: Butler, Joshua, pp. 157-63.


ss Eugene H. Merril, "Numbers", em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F.
Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, p. 252.
134 H istória de I srael no A ntigo T estamento

inferência extraída da solicitação de sua esposa por um dote que incluísse


algumas fontes de águas próximas a essa cidade. Tende-se a concluir que
essa conquista de Hebrom e Debir é a mesma descrita em Josué 11.21-23,
já que ambas as cidades são mencionadas também ali. A ligação entre as
duas cidades evidencia-se por terem sido habitadas pelos enaquins, um
povo particularmente detestável para Calebe.
O restante da herança de Judá consistiu em uma vasta área cercada por
uma linha ao sul que corria desde o sudoeste do mar Morto até Cades-
Barnéia, movendo-se daquela região em sentido noroeste até a entrada do
Vadi el-Arish. A fronteira ao oriente era o mar Morto, e ao ocidente, pelo
menos em teoria, o Mediterrâneo. A fronteira ao norte iniciava pouco aci­
ma do desaguamento do Jordão no mar Morto, e estendia-se para o oci­
dente, através de Bete-Hogla ('Ain Hajlah) até as águas de En-Semes ('Ain
el-Hod) e En-Rogel, na junção dos vales de Cedrom e Hinom, em Jerusa­
lém. Sua extensão até o Hinom significa que Jerusalém situava-se ao norte
de Judá, no território de Benjamim. De Jerusalém, o território de Judá con­
tinuava a oeste para Quiriate-Jearim (a morderna Tel el-Azar) e Bete-Semes
(Tel er-Rumeileh). Por fim, passava por dentro de Siquerom (Tel el-Fûl),
pouco ao norte de Ecrom, e para o Mediterrâneo próximo de Jabneel
(Yebna). A lista das cidades que percorrem a delineação da fronteira inclui
somente aquelas que foram conquistadas durante a invasão de Canaã e as
que pertenciam a Judá por promessa. A referência a Jerusalém (Js 15.63)
não implica em que tal cidade houvesse sido destinada à tribo de Judá,
mas apenas que Judá havia feito uma tentativa sem sucesso de expulsar
os jebuseus permanentemente (Jz 1.8).
A herança de Efraim (Js 16.5-10) foi fixada por limites que começavam
em Atarote-Adar (Kefr 'Aqab),89 cerca de 13 quilômetros ao norte de Jeru­
salém. A fronteira ao sul subia até o alto Bete-Horom (Beit 'Ur el-Foqa) e
presumivelmente ao sudoeste para então unir-se com a fronteira de Judá
em algum ponto próximo a Siquerom. Ao norte o ponto inicial era
Micmetate (Khirbet Makhneh el-Foca), menos de 8 quilômetros ao sul de
Siquém. De Micmetate a fronteira corria para o oriente até Tanate-Silo
(Khirbet Ta'na el-Foca) e Janoa (Khirbet Yanum), ao sul, sentido Jerico, e
ao leste para o Jordão. A fronteira mais distante ao sul deve ter começado
no Jordão, dirigindo-se ao oeste, passando por Jerico até chegar a Atarote-
Adar. Novamente, desde Micmetate, a fronteira norte seguia ao oeste para
Tapua (Sheikh Abu Zarad), até o vadi Kanah, seguindo seu curso até o
Mediterrâneo, unindo-se a esse mar na moderna Tel Aviv. Além disso,

89 Oxford Bible Atlas, p. 123.


A COSQUISTA E A OCUPAÇÃO DE C a NAÃ 135

Efraim herdou certas cidades que pertenciam ao território de Manassés


(Js 16.9). Outras cidades permaneceram em poder dos cananeus, notavel­
mente Gezer. E um grande número de cananeus viveu entre os efraimitas
como escravo.
Os clãs de Manassés que não permaneceram na Transjordânia ocuparam
a área próxima ao norte de Efraim, em direção ao vale do Jordão, ao norte. A
fronteira ao sul, então, era o limite norte de Efraim. A cidade de Tapua, que
geograficamente era uma parte da região de Tapua, foi dada por alguma
razão a Efraim (Js 17.8). Por outro lado, Manassés tomou algumas cidades
que geograficamente poderiam ter sido mais apropriadas a Aser e Issacar.
Estas eram Bete-Seã (Tel el-Husn ou Beisan), Ibleã (Khirbet BeTameh), Dor
(Khirbert el-Burj), En-dor (Khirbet Safsâfeh), Tanaque (Tel TTinnik) e Megido
(Tel el-Mutesellim). Devido à grande resistência armada pelos cananeus na
região norte, Manassés não pôde possuir suas cidades de uma só vez, mas
apenas gradualmente subjugou os cananeus, tornando-os seus escravos.
Tanto Efraim quanto Manassés sentiram-se constrangidos com os elemen­
tos cananeus que habitavam nos vales e planícies fronteiriços a seus territó­
rios, de forma que solicitaram a Josué que lhes desse mais terra. Josué repli­
cou que eles deveriam expulsar os cananeus que ainda viviam na subida de
seus bosques; assim, progressivamente se tornariam fortes o suficiente para
removerem os cananeus de Jezreel (Js 17.14-18).
Ainda restavam sete tribos entre as quais seria repartido o restante da
terra. Josué, portanto, reuniu os líderes em Siló (Khirbet Seilun), o novo
centro de culto e política,90 e aconselhou-os a enviar alguns espias às regi­
ões que ainda seriam alocadas. Os espias retornaram com um relatório
que descrevia a terra e indicava a melhor maneira pela qual esta poderia
ser repartida.
Seguindo o relato, Josué resumiu o processo de distribuição. Primeiro,
Benjamim recebeu uma pequena porção entre Judá e Efraim, incluindo as
importantes cidades de Jerico, Betei, Gibeá, Gibeão e Jerusalém. Simeão,
talvez dizimada pelo julgamento de Jeová em Peor, tinha uma população
insuficiente para garantir um distrito para si mesma, tornando-se então
um clã dentro de Judá. Algumas de suas principais cidades foram Berseba,
Hormá e Ziclague, mais tarde muito famosa por seu relacionamento com
o rei Davi.

50 Embora Siló "tenha sido muito desabitada durante a Era do Bronze Recente" (Boling,
Joshua, p. 422), houve ocasiões em que esse fator não era o caso, o que abre a perspectiva
para que ela tenha servido como uma espécie de centro cultural de Israel desde o déci­
mo quarto século em diante.
13 6 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Ao norte do vale de Jezreel coube a herança de Zebulom. Desde Saride


(Tel Shadud), menos de 16 quilômetros ao norte de Megido, passando pela
planície de Jezreel; a fronteira sul de Zebulom corria sentido oeste até al­
cançar a Jocneã (Tel Qeimun). Para o oriente de Saride, a fronteira se es­
tendia em direção a Jafia (Yafa), e dali movia-se para o norte até Gate-
Hefer (Khirbet ez-Zurra') e Rimom (Rumaneh). Pouco acima de Rimom, a
fronteira voltava-se para oeste, passando pelo vale de Ipta El (Vadi el-
Malik).
A segunda tribo a receber herança na região da Galiléia foi Issacar. Sua
fronteira ao oeste alinhava-se desde Jezreel (ZerTn) indo para o norte, atra­
vés de Suném (Sôlem), até Quesulote (Chisloth-tabor). Do oriente de Jezreel
a fronteira seguia para Remete (Jarmute),91 quase a 5 quilômetros do Jordão
e 12 quilômetros ao norte de Bete-Seã. Deste ponto seguia em direção nor­
te ao longo do Jordão e para oeste até o monte Tabor. Issacar então herdou
uma porção de terra muito pequena, cuja grande parte era controlada por
cananeus nos primórdios da história.
Aser estabeleceu-se na costa do Mediterrâneo, ao norte do monte
Carmelo. De Helcate (Tel el-Qassis), no Quisom, sua fronteira seguia em
direção norte até Acsafe e provavelmente até Aczibe (ez-Zib). No sul a
fronteira começava na costa do Mediterrâneo e tocava o monte Carmelo e
Shihor-Libnath (Vadi Zerqa),92 voltava-se a noroeste, ao longo da frontei­
ra de Zebulom e do vale Ipta El. De lá estendia-se até o norte para Bete-
Emeque (Tel Mimâs), passando por Neiel (Khirbet Ya'nim) e Cabul (Kã-
bül), estendendo-se muito longe para o norte, até Ebrom (Abdon?), Caná
(Qânã) e Hosa (Usu?) no Mediterrâneo, apenas 6 ou 8 quilômetros ao sul
de Tiro. A fronteira, é claro, seguia a costa sul do Mediterrâneo até Aczibe.
Surgem muitos problemas quando se empreende uma tentativa de
reconstruir as fronteiras de Aser, dos quais o principal é a aparente per­
da do monte Carmelo e a costa do Mediterrâneo de lá até Aczibe. A pri­
meira fronteira mencionada, desde Helcate até Acsafe (e Aczibe?), pare­
ce ser a ocidental, ao passo que a oriental corria desde o vale Ipta El até
a cidade de Tiro. E bem possível que uma população cananéia controlas­
se o Carmelo e a costa ao norte durante a fase inicial. Um segundo pro­
blema é a aparente localização de Dor dentro de Aser, quando já havia
sido anteriormente designada a Manassés. A solução evidentemente é o
fato de que, por razões inespecíficas, Manassés possuiu algumas cida-

51 Oxford Bible Atlas, p. 138.


92 Oxford Bible Atlas, p. 49. Aharoni, Land of the Bible, p. 258, identifica a Shihor-Libnath
com a Kishon, portanto localizando especificamente o Carmelo fora de Aser.
A C onquista f. a O cupação de C anaã 137

des, inclusive Dor, que na verdade estavam dentro das fronteiras de Aser
(Js 17.11).93
A sexta herança distribuída em Siló foi para Naftali. A fronteira ao sul,
começando em Helefe (Khirbet Trbâdeh?), seguia em direção a Jabneel
(Tel en-Na'am) terminando no Jordão. De Helefe, estendia-se para o oeste
e para o norte, passando através de Hukkok (Yakuk), próximo à curva
nordeste de Quinerete. Embora o restante da fronteira a oeste e ao norte
não seja especificada, a soma de toda a extensão das possessões de Naftali
- até Zebulom ao sul, Aser a oeste e o Jordão ao oriente - pressupõe que
esta tribo estendeu seus limites para o norte o máximo que pôde, chegan­
do até Tiro, ao ocidente, e ao Jordão, a oriente. Esse fato é confirmado pela
lista das cidades fortificadas dessa tribo: En-Hazor (Hazzur), Cades (Tel
Qades) e Hazor (Tel el-Qedah), todas elas situadas no norte da Galiléia.
A herança da tribo de Dã caiu para o oeste de Benjamim, entre as tribos
de Judá e Efraim. Mas em conseqüência de Dã ter-se mostrado inapto para
ocupar as terras ao oeste, no Sefelá, e nas planícies costeiras, a tribo imi­
grou para o norte e apoderou-se do pequeno reino de Lessem (Lais), que
ficava ao norte do lago Hulé. Juízes 18 fornece detalhes a respeito dessa
mudança.
A última distribuição de terra coube ao próprio Josué (Js 19.49,50). Como
Calebe, ele havia afirmado a soberania de Jeová sobre a terra da promessa,
e agora herdava a sua possessão. A cidade que ele havia solicitado e rece­
beu chamava-se Timnate-Heres (Khirbet Tibnah), na região montanhosa
ao oeste de Efraim.

As cidades de refúgio

Antes de sua morte, Moisés determinou que seis cidades de refúgio


fossem nomeadas em Canaã, três ao leste e outras três ao oeste do Jordão
(Nm 35.6-34; Dt 4.41; 19.2). O propósito era providenciar um santuário
para alguém culpado de homicídio até que houvesse oportunidade deste
ser imparcialmente julgado. Uma pessoa culpada de homicídio deveria
ser executada, mas alguém que tivesse matado acidentalmente poderia
permanecer na cidade de refúgio, até a morte do sumo sacerdote então em
ofício. As cidades escolhidas foram Cades (Tel Qades), em Naftali, que
distava apenas oito quilômetros do lago Hulé; Siquém (Tel Balâtah), em
Efraim; Hebron, em Judá; Bezer (Umm el-'Amad), em Rúben, a oito quilô-

Outra solução possível é sugerida na nota 92: se Shihor Libnath deve ser identificada
com a Quisom, então Dor deve ser localizada fora de Aser.
138 H istória de I srael no A ntigo T estamento

metros de distância de Hesbom; Ramote (Tel Rãmíth), em Gade; e Golan


(Sahm el-Jõlân), em Manassés, cerca de 32 quilômetros a leste do mar de
Quinerete. Portanto, de qualquer parte da terra, não seria tão distante en­
contrar um santuário.

As cidades dos levitas

As seis cidades de refúgio estavam entre as quarenta e oito que haviam


sido dadas aos levitas como herança (Nm 35.1-8). Como uma tribo separa­
da para Jeová em lugar de todos os primogênitos de Israel (Nm 3.41), e
servindo ao Senhor no que diz respeito ao serviço sagrado, os levitas, di­
ferentemente das outras tribos, não possuíam um território próprio. Em
vez disso, cidades com terras para pastagens em redor lhes foram garanti­
das, onde poderiam viver entre o povo, ministrando-lhes. Embora proibi­
dos de empregar-se em funções seculares, fora-lhes permitido cultivar
pequenas plantações e criar pouca quantidade de gado. Como exatamen­
te eles exerciam as funções em suas cidades não está claro, embora presu­
ma-se que supervisionavam qualquer atividade religiosa que fosse per­
mitida fora do santuário central. E também, é claro, serviam no tabernáculo
e no templo, de acordo com a escala prescrita.94
Os coatitas receberam algumas cidades em Judá, Simeão, Benjamim,
Efraim, Dã e Manassés ocidental. Os sacerdotes (dos quais todos descen­
diam de Arão, assim eram coatitas) foram restritos a Judá, Simeão e
Benjamim. Portanto, as cidades levitas dessas tribos, que ao todo soma­
vam treze, eram totalmente habitadas por sacerdotes. O motivo para tal
alocação é desconhecido, especialmente nesse período primitivo; porém,
quando Jerusalém tomou-se a capital e o centro de adoração, a sabedoria
em ter os sacerdotes habitando nas proximidades de Jerusalém tornou-se
óbvia. As mais famosas cidades dos sacerdotes eram Hebrom, Debir, Bete-
Semes - estas em Judá e Simeão - e Gibeão e Anatote, em Benjamim.
Hebrom e Debir foram dadas a Calebe, um não-levita, mas agora está cla­
ro que a sua reivindicação estendia-se apenas às imediações da cidade, e
que estas verdadeiramente eram habitadas por sacerdotes. Bete-Semes foi
por pouco tempo (e apropriadamente, em vista de ser uma comunidade
sacerdotal) o lar da Arca da Aliança (1 Sm 6), Gibeão era o local do
Tabernáculo de Moisés nos dias de Davi (2 Cr 1.3), e Anatote, o lar do
sacerdote e profeta Jeremias. A ocupação de Gibeão pelos sacerdotes pres­
supõe, obviamente, a expulsão final dos heveus que lá habitavam. Os

94 Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 2, pp. 358-71.
A C onquista e a O cupação de C anaã 139

coatitas que não eram sacerdotes habitavam em dez cidades, incluindo


Siquém, Gezer, e Bete-Horom, em Efraim; Aijalom em Dã; e Tanaque no
lado ocidental de Manassés.
O clã gersonita de Levi recebeu treze cidades em Issacar, Aser, Naftali e
/ a Manassés oriental. As mais importantes eram Golã, uma cidade de refú-
'y gio; Jarmute e Cades, outra cidade de refúgio. Os meraritas estabelece­
ram-se em doze cidades em Rúben, Gade e Zebulom, incluindo Bezer e
Ramote, duas cidades de refúgio, e Hesbom. Novamente, a distribuição
sábia das cidades levitas garantia pronto acesso para todo israelita que
delas precisasse. ^
Assim que o processo de alocação das tribos chegou ao fim, Josué de­
terminou que todos os homens de guerra das tribos de Rúben, Gade e
Manassés oriental retornassem a seus lares na Transjordânia. Eles haviam
cumprido com a palavra dada a Moisés, segundo a qual ajudariam a seus
irmãos na conquista de Canaã, em troca de permanecerem nas terras ao
leste do Jordão. No caminho de casa, porém, eles erigiram um altar próxi­
mo ao Jordão, cujo propósito, informaram eles, era servir como um monu­
mento comemorativo, um símbolo da unidade perpétua e de fé comum
entre as tribos do oriente e as do ocidente. Antes que o assunto fosse escla­
recido, Josué preparou-se para guerrear, pois entendera que a construção
era um altar em competição com o santuário central em Siló.
A preocupação de Josué refletia a sua compreensão de Deuteronômio
12, que especificava que a adoração comunitária de Israel deveria ser cen­
tralizada. De fato, os altares locais construídos para sacrifícios particula­
res eram permitidos; mas, para todo o Israel, o povo da aliança com Jeová,
somente um local para a adoração era lícito. Josué, portanto, enviou uma
delegação de líderes até as tribos da Transjordânia para informar-se acer­
ca do que significava o altar. Satisfeito por não se tratar de um centro de
culto alternativo, Finéias, o chefe da delegação, voltou a Siló e apresentou
o seu relatório, acalmando assim os ânimos de Israel.

A s e g u n d a re n o v a ç ã o d a a lia n ç a e m S iq u é m

Muitos anos após este episódio, Josué, ciente de que a sua morte estava
próxima, reuniu em Siquém os líderes das tribos para admoestá-los a serem
fiéis à aliança, conduzindo-os em uma cerimônia de reafirmação do pacto.
Em obediência às ordens expressas de Moisés, Josué havia conduzido tal
cerimônia na época em que Israel entrou na terra (Dt 27.1-8; Js 8.30-35). Agora,
ele repetia a ocasião a fim de prevenir qualquer tipo de abandono da alian­
ça, conforme a sua suspeita sobre o altar erguido pelas tribos orientais pró­
14 0 H istória de I srael no A ntigo T estamento

ximo ao Jordão. Além disso, ele agora dirigia-se a uma nova geração de
israelitas, uma geração que, em sua maioria, não havia participado pessoal­
mente da renovação da aliança. Portanto, depois de um período de mais de
trinta anos, a comunidade reafirmou o seu compromisso.95
Josué primeiramente relatou todos os poderosos feitos de Deus em fa­
vor de Israel (Js 23). Ele havia pelejado por eles e lhes dera uma herança na
terra. Ainda que no momento não tivessem possuído toda a terra, Ele as­
segurava o sucesso final. Porém, isto dependeria da obediência do povo e
de uma firme adesão aos princípios da aliança. Qualquer falha a esse res­
peito ocasionaria o juízo de Yahweh, que os removeria da terra.
Assim, em Josué 24 aparece a descrição da renovação da aliança. Era
comum no antigo Oriente Médio que cada nova geração de vassalos ou­
visse e respondesse aos termos da aliança que fora inicialmente firmada
entre seus antepassados e o suserano. Moisés havia inicialmente recebido
a revelação da aliança com Yahweh no Sinai, escrevendo ele mesmo o tex­
to da aliança (essencialmente Êx 20-23) e o contexto histórico no qual ela
foi oferecida (Êx 19) e aceita (Êx 24). Aproximadamente quarenta anos
depois, ele reiterou os termos da aliança nas planícies de Moabe, desta vez
com adornos e emendas apropriados para a nova geração, que estava para
sair do deserto e lançar-se à conquista e à vida sedentária. Josué reafirma­
ra a aliança no início da conquista (Js 8.30-35); agora, vendo que uma nova
geração havia nascido e enfrentado condições completamente novas, mais
uma vez ele reunia o povo para uma renovação da aliança. :
O cerimonial de renovação seguiu o procedimento padrão.96 Josué reu­
niu o povo diante de Yahweh (Js 24.1); então passou a descrever os feitos

95 O cálculo para essa datação reside no fato de Josué, que morreu aos 110 anos de idade
(Js 24.29), haver pronunciado esse discurso bem no fim de sua vida (Js 23.1,2,14). Visto
que ele, sem dúvida alguma, tinha cerca da mesma idade de Calebe (ou talvez um pou­
co mais novo que ele), que estava com oitenta e cinco anos em 1399 a.C. (Js 14.6-12), sua
morte deve ter ocorrido no mínimo por volta de 1375 ou então trinta anos depois da
renovação da aliança descrita em Josué 8. Ver p. 149 para uma argumentação que defen­
de a idéia de que Josué, na verdade, morreu aproximadamente em 1366.
96 Para um comentário de Josué 24 como um texto específico da aliança e registro da ceri­
mônia de renovação, ver Delbert R. Hillers, Covenant: The History o f a Biblical Idea
(Baltimore: Johns Hopkins Press, 1969), pp. 58-66. Hillers com muita precisão indica o
fato de que essa passagem não contém o texto da aliança propriamente dito, mas uma
descrição de como tal aliança foi cumprida (p. 61). Não havia razão para termos áqui
um texto volumoso da aliança, já que é bem provável que Josué estivesse chamando a
atenção do povo para os aspectos essenciais da aliança, conforme vemos delineados em
Deuteronômio.
A C onquista e a O cupação de C akaã 141

de Deus para com Israel, repetindo toda a história sagrada até aquele
momento (vv. 2-13), e os exortou a repudiarem todos os monarcas adver­
sários (outros deuses), sendo fiéis somente a Yahweh (vv. 14,15). O povo
concordou com a interpretação de Josué sobre a história e prometeu total
obediência (vv. 16-18). Josué lembrou-lhes que a guarda da aliança seria
difícil, e que a falha dispararia a ira de um Deus santo (vv. 19,20). Eles, por
sua vez, prometeram servi-lo, rejeitando outros deuses (vv. 21-24).
Após a cerimônia ter-se realizado, deu-se um ritual que incluía o regis­
tro do compromisso e o levantamento de uma esteia comemorativa, que
para sempre serviria de testemunha das promessas feitas (vv. 25-28). Foi
muito apropriado que a cerimônia tivesse ocorrido em Siquém, pois lá o
próprio Abraão, pai de Israel, chamado para uma aliança com Yahweh,
ergueu um altar em celebração da presença teofânica de Deus. O Deus dos
pais era o mesmo Deus de Josué e de sua geração.
Logo em seguida, Josué morreu e foi sepultado em sua cidade, Timnate-
Heres. E assim, como sugerindo o final de uma era - a era patriarcal atra­
vés do cumprimento da promessa patriarcal da terra - o historiador regis­
tra que os ossos de José, miraculosamente preservados por mais de qua­
trocentos anos, foram trazidos e enterrados em Siquém. Assim como essa
região de Siquém (atualmente a cidade de Dotã) marcou o ponto da desci­
da de José ao Egito, em preparação para a salvação do povo de Israel,
agora rrfãrcava o ponto de sua subida em celebração do livramento dado
por Yahweh e o cumprimento de sua promessa. Por último, Eleazar mor­
reu e foi da mesma forma enterrado em Efraim. Era muito evidente que
Israel estava para penetrar em uma nova era de sua experiência histórica.
A ERA D 0 S J UÍ Z E S : A V I O L A Ç Ã O
DA A L I A N Ç A , A N A R Q U I A
E A AUTORIDADE HUMANA
O problem a crítico-literário no livro de Juízes
A cronologia de Juízes
A duração do período
A data inicial
A data de encerramento
Comprimindo a cronologia
O mundo do antigo Oriente Médio
O silêncio do Antigo Testamento
Mesopotâmia
Os hititas
Egito
Os estados siro-cananeus
Os juízes de Israel
O padrão cíclico que caracteriza o período
A natureza da idolatria em Canaã
Otniel
Eúde
Sangar
Débora
Gideão
O reinado malogrado de Abimeleque
Juízes menores
Jefté
Sansão
Samuel
A trilogia de Belém
Mica e o levita
O levita e sua concubina
A história de Rute: ligações patriarcais
Judá e Tamar
Os patriarcas e a monarquia
O papel da donzela moabita

O p ro b le m a c rític o -lite rá rio n o liv ro de Ju íz e s

A maioria dos estudiosos do Antigo Testamento está ciente dos problemas


históricos e literários presentes na transição do livro de Josué para o livro de
Juízes. No centro das dificuldades estão as referências à morte de Josué em
Juízes 1.1 e 2.8, seguidas respectivamente por relatos da conquista e apostasia.
1 44 H istória de I srael no A ntigo T estamento

O procedimento comum dos críticos tem sido, pelo menos, comparar tradi­
ções diferentes que não conseguiram alcançar uma redação satisfatória.1
A solução m ais satisfatória para esta aparente contradição ou
sobreposição de fontes é entender Juízes 1.1-2.9 como uma ponte literária
que conecta o final do relato de Josué ao início das narrativas dos Juízes. O
livro de Josué registra que "Josué, filho de Num, o servo do Senhor, fale­
ceu, sendo da idade de cento e dez anos" (Js 24.29). Exatamente com as
mesmas palavras o autor de Juízes registra a morte de Josué. Para evitar
que o livro iniciasse com a apostasia de Israel e mostrar que esta apostasia
não seguia imediatamente a morte de Josué, o historiador começa com o
relato da campanha de Judá e Simeão contra os cananeus que esporadica­
mente ainda permaneciam na região montanhosa ao sul. E importante notar
que os inimigos não mais são os amorreus, como foi o caso na campanha
inicial liderada por Josué, pois imagina-se que os amorreus tenham sido
expulsos de Judá de uma só vez.2 O rei cananeu especificamente é Adoni-
Bezeque, rei de Bezeque (Khirbet Bezqa), cerca de cinco quilômetros a
nordeste de Gezer.3 Tomando-o como prisioneiro, os homens de Judá le­
varam-no até Jerusalém, onde veio a morrer.

1 Otto Eissfeldt, The Old Testament: An lntroduction, traduzido por Peter R. Ackroyd (New
York: Harper and Row, 1965), pp. 253-55, 257-58; J. Alberto Soggin, lntroduction to the
Old Testament, traduzido por John Bowden (Philadelphia: Westminster, 1980), pp. 166­
70. Uma atitude de cepticismo típica com respeito à historicidade do livro é a que se vê
em Sean Warner: "Parece ser opinião comum entre os historiadores que os dados conti­
dos na primeira parte do livro são historicamente problemáticos, que a estrutura
redacional da segunda parte, a principal deste livro, é definitivamente secundária e de
fato traz pouca ligação entre as histórias contidas no livro, e que a terceira parte tam­
bém é problemática, tornando-se difícil, se não impossível, decidir a favor da autentici­
dade de seus dados" (The Dating ofthe Period ofthe Judges, VT 28 [1978]: 455-56). Devido
a tais suposições infundadas, não é de admirar que o livro-de Juízes tenha se constituí­
do em um problema para a erudição crítica.
2 A campanha na região montanhosa em Judá, sob a liderança de Josué, envolveu os
amorreus (Js 10.6) e, é claro, não estava restrita às tribos de Judá e Simeão. Portanto, esta
não deve ser a batalha em questão. Além disso, Josué estava morto nessa ocasião (Jz
1.1), Judá e Simeão já tinham recebido seus territórios em comum (Jz 15.1; 19.1), e existe
especialmente uma distância entre esse acontecimento e qualquer outro descrito no li­
vro de Josué. Conforme as palavras de Robert G. Boling, Juízes 1 "é uma retrospectiva
do desempenho da geração que sobreviveu a Josué." (Judges, Anchor Bible [Garden City,
N.Y.: Doubleday, 1975], p. 66).
3 Não há qualquer base, textual ou não, para assumir que Adoni-Bezeque seja uma cor­
rupção do nome Adoni-Zedeque (Js 10.1), como sugerido, por exemplo, por George F.
Moore, A Criticai and Exgetical Commentary on Judges (New York: Scribner, 1895), p. 16.
A £>.a dos J uízes : A Violação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 145

A esta altura, o leitor cuidadoso pode perguntar como foi possível aos
homens de Judá obter acesso a Jerusalém, visto que a cidade permaneceu
sob o domínio dos jebuseus até o período de Davi. Antecedendo à ques­
tão, o historiador continua relatando como Jerusalém, pelo menos tempo­
rariamente, veio a ser dominada por Israel. Para isto, o autor utiliza o re­
curso literário deflashback, voltando ao período remoto em que Josué ain­
da era vivo. Portanto, em Juízes 1.8 está contida a descrição da queda de
Jerusalém, um acontecimento explicitamente não relatado em Josué, em­
bora sugerido sem dúvida pela morte do rei de Jerusalém durante a cam­
panha de Josué para o sul (Js 10.22-27). Naqueles dias Jerusalém havia
sido capturada e queimada pelos homens de Judá, mas a população não
foi destruída. De fato, pouco tempo depois, os jebuseus retomaram o con­
trole, e nem Judá (Js 15.63) nem Benjamim (Jz 1.21) puderam desalojá-los
novamente.
O resumo retrospectivo continua com a conquista realizada por Judá
da região montanhosa, o Negueve e a Sefelá, focalizando a tomada de
Hebrom. Provavelmente isto se refere a uma expedição particular contra
Hebrom, em atenção ao pedido de Calebe por sua herança (Js 11.21-23;
14.13-15; 15.13-19), em vez de uma derrota anterior dos reis amorreus
conseguida por Josué e todo o Israel (Js 10.36,37).4 Semelhantemente, a
captura de Debir (Jz 1.11-15; cf. Js 10.38,39) enquadra-se na história da
campanha de Calebe, e não na conquista israelita do sul. E especialmente
apropriado que o historiador repita a história de Calebe e Otniel, uma vez
que Otniel será introduzido como o primeiro dos juízes. Então, vê-se aqui
outra ponte literária e histórica entre os livros de Josué e Juízes.
Essa retrospectiva parentética até o tempo de Josué aparentemente ter­
mina repetindo o relato da entrega de Hebrom e Debir a Calebe. Agora, o
autor retorna à narrativa dos versos 1-7, que diz respeito à conquista efe­
tuada por Judá e Simeão. O autor fala primeiro acerca da assimilação dos
quenitas5 por Judá, e os ataques combinados contra a fortaleza cananéia

4 É mais uma vez importante notar que os inimigos nas campanhas remotas (Js 10) foram
os amorreus, enquanto que na conquista da cidade de Hebrom, com a participação dire­
ta de Calebe, os inimigos foram os enaquins (Js 11) e os cananeus (Jz 1). Parece claro que
os enaquins eram um povo cananeu, e não os amorreus, embora ambos possam ter
coexistido (Nm 13.22; Js 15.13,14).
" O Antigo Testamento identifica os quenitas como midianitas (Jz 1.16), e diz que seu
ancestral foi Hobabe, cunhado de Moisés, que acompanhou o povo de Israel, pelo
menos em parte, do Sinai até Canaã (Nm 10.29-32). Para estudar sobre tal ligação, ver
em H. H. Rowley, From Joseph to Joshua (London: Oxford University Press, 1950), pp.
152-55.
DA

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ISRAEL DURANTE
A ERA DÖS J U Í Z E S
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 147

de Zeftá, um local antigamente conhecido por Hormá (Jz 1.17).6 Então


eles conseguiram tomar três cidades dos filisteus: Gaza, Ascalom e Ecrom.
Finalmente, o historiador relata que Judá e Simeão tomaram todas as ci­
dades montanhosas do sul, incluindo Hebrom, apesar de não ter sido pos­
sível ocupar as planícies porque os seus moradores possuíam carruagens
de ferro.7
Em sintonia com o modelo de conquista descrito no livro de Josué, o
historiador agora volta a atenção para o norte, para a conquista de Betei
pelos homens da tribo de José (Jz 1.22-26). Através de suborno e ameaças
a cidade foi conquistada. Betei tinha sofrido uma considerável perda de
habitantes quando Josué conquistou Ai, mas nada além de uma breve
menção em Josué 12.16 é dito acerca da captura da própria cidade naquele
tempo. O acontecimento em Juízes, então, deve referir-se a um episódio
posterior no qual a tribo de Efraim empreendeu esforços para ocupar o
território herdado (Js 16.1,2). De modo similar, a tribo de Manassés oci­
dental tentou sem êxito reivindicar a sua herança. Com palavras que alta­
mente recordam o relato em Josué, (Jz 1.27,28; cf. Js 17.12), o narrador diz
que Manasses não pôde repelir os cananeus de certas cidades, especial­
mente da planície de Jezreel (Bete-Seã, Tanaque, Ibleam e Megido) e da
planície costeira (Dor). Estas cinco cidades foram por fim habitadas por
Manassés, ainda que tecnicamente pertencessem a Issacar e a Aser (Js 17.11).
A razão é que, em cada caso, elas estavam geograficamente contíguas a
Manassés, e sofriam a intervenção dos cananeus que reivindicavam seus
direitos originais sobre elas.
Ao norte da planície de Jezreel a situação ainda era a mesma. Zebulom
não expulsou os cananeus de Quitron e Naaol; Aser foi frustrado em

6 Israel destruiu certas cidades cananéias quando estava a caminho de Canaã, sendo tais
cidades chamadas coletivamente de Hormá (de herem, "banido; proibido"), em conse-
qüência da sua punição (Nm 21.1-3). Zefate deve ter sido uma cidade reconstruída so­
bre essas ruínas. Ver Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia: Westminster,
1979), p. 216.
7 Visto que a Idade do Ferro na Palestina deve ter-se iniciado por volta de 1200 a.C., o uso
do ferro pelos cananeus constituiria um problema para a cronologia adotada neste vo­
lume, que fixaria as campanhas de Judá e Simeão descritas em Juízes 1 em cerca de
1350. Contudo, pelo menos os hititas já dominavam essa tecnologia e usavam o ferro
aproximadamente em 1400; logo, não há razão por que Canaã não poderia ter importa­
do ferragens por volta do século XIV. Ver em Jacquetta Hawkes, The First Great
Civilizations (New York: Knopf, 1973), p. 113; Leonard Cottrell, The Anvil of Civilization
(New York: New American Library, 1957), p. 157; V. Gordon Childe, New Light on the
Most Ancient East (New York: Norton, 1969), p. 157.
14 8 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Ac o, Sidon, Aczibe, e em muitos outros lugares; e Naftali foi forçado a


coexistir com os cananeus em Bete-Semes e Bete-Anate. Quanto aos
danitas, no sul, foram duramente resistidos pelos amorreus, que aparen­
temente estabeleceram-se nos vales após a conquista, particularmente
em Aijalom e Shaalbim (Selbit), no vale de Aijalon.8 Os efraimitas saí­
ram em auxílio à tribo de Dã, e puseram os amorreus para além de uma
linha que ia desde a Passagem do Escorpião (a "subida de Acrabim") em
direção norte. Provavelmente isto se refere a uma demarcação entre a
própria região montanhosa e a Sefelá, ou planícies ocidentais. Assim, os
amorreus e os primitivos filisteus provavelmente ocuparam a mesma
área pelo menos até a invasão de uma segunda leva de filisteus, os Po­
vos do Mar, em cerca de 1200.
Talvez em resposta ao compreensível sentimento de frustração que Josué
e Israel devem ter sentido pela incapacidade de conquistar a terra rapida­
mente, o Anjo do Senhor apareceu a Israel em Boquim (localização desco­
nhecida) e lhes disse que a inaptidão para possuir completamente a terra
procedia da violação da aliança feita com Yahweh. Eles haviam feito alian­
ça com alguns nativos (os gibeonitas) e falharam em destruir os seus alta­
res. Como havia ameaçado fazer em caso de tal desobediência, Yahweh
permitiu que os cananeus e seus deuses permanecessem na terra como
instrumentos de disciplina.
Parece que o narrador novamente interrompe seu relato da ocupa­
ção pós-conquista, desta vez para retornar à segunda renovação da ali­
ança feita em Siquém. Isto pode ser lido em Juízes 2.6: "E havendo Josué
despedido o povo... cada um à sua herdade", e Josué 24.28: "Então Josué
despediu o povo, cada um para a sua herdade". Juízes 2.6,7 - "foram-
se os filhos de Israel... para possuírem a terra" - é uma recapitulação
de 1.1-2.5 (com exceção de 1.8-15), um resumo de todos os esforços
subseqüentes durante o estabelecimento na terra. Em seguida a ceri­
mônia em Siquém, o povo assumiu a tarefa de ocupar a terra como
vassalos do soberano Deus. E assim o fizeram fielmente durante os dias
da geração de anciãos que viveram após a morte de Josué. Somente

s A movimentação de Dã para localizar-se mais ao norte (Lais) deve ter ocorrido no perí­
odo remoto dos juízes. Não poderia ter acontecido antes do esforço para estabelecer-se
na terra, descrito em Juízes 1.34-36, visto que foi exatamente a pressão dos amorreus
que iniciara a relocação. Também claramente precedeu a chegada dos Povos do Mar/
filisteus, aproximadamente em 1200 a.C. Conforme indica Roland de Vaux, este é o úni­
co texto em que os amorreus se encontram nas planícies, um fato que poderia confirmar
a opinião de que a conquista da região montanhosa, sob a liderança de Josué, foi um fait
accompli (The Early History of Israel [Philadelphia: Westminster, 1978], p. 133, n. 28).
4 E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 149

depois disso passaram a adorar Baal e chafurdar a nação no abismo da


apostasia e da anarquia, que constituem a grande marca do livro de
Juízes.9

A c ro n o lo g ia de Ju íz e s

A duração do período

A data inicial
Antes de iniciar o tópico acerca da apostasia de Israel, é necessário que
uma base cronológica e hj^tórica seja instituída para toda a era dos juízes.
Nossa proposta será prinielro considerar a evidência bíblica interna, e em
seguida, pelo menos resumidamente, o mundo do antigo Oriente Médio
naquela época.
Ao determinar a estrutura cronológica do período^ps juízes, o passo
inicial será o estabelecimento de tcrmini a quo e ad quem.^O segundo baseia-
se em dados precisos que serão considerados mais à frente, mas o primeiro
requer uma reconstrução fundamentada em princípios mais subjetivosTEm
primeiro lugar, está claro que jqsué morreu na idade de 110 anos, alguns
anos após o início da conquista1' A data da conquista fixa-se aproximada­
mente entre 1406 e 1399, já que iniciou-se exatamente quarenta anos depois
do êxodo em 1446 (Dt 1.3),% terminou sete anos mais tarde. Isto conforme o
testemunho de Calebe, que informou estar com quarenta anos no momento
em que ele e Josué espiaram a terra, e com oitenta e cinco ao término da
conquista (Js 14.7-10). Os espias foram enviados dois anos após o êxodo;
nessa época Calebe estava com quarenta anos em 1444, e oitenta e cinco em
1399. Pode-se concluir que Josué era da mesma idade. Ele foi um excelente
guerreiro contra os amalequitas em 1446 (Ex 17.10), e foi chamado de "jo­
vem" pouco tempo depois (Ex 33.11). Embora seja um risco especular, uma
idade de trinta anos para Josué na época do êxodo certamente não é
exorbita n tcCTóesta forma, a data de seu nascimento seria por volta de 1476,
e a data de sua morte, 1366. Otniel, o primeiro juiz, iniciou o seu governo
após esta data.

" O período dos juízes foi um tempo em que quase não houve autoridade central, e tam­
bém se caracterizou como um período em que não havia qualquer senso de patriotismo
ou coesão religiosa, um ponto bem discutido por Alan J. Hauser, Unity and Diversity in
Early Israel Befor Samuel, JETS 22 (1979): 289-303.
; Para uma pesquisa sobre as várias abordagens, ver J.H. John Peet, "The Chronology of
the Judges - Some Thoughts", Journal of Christian Reconstruction 9 (1982-1983): 161-81.
150 H istória de I srael no A ntigo T estamento

■ í)
N A segunda consideração é ainda mais notável. Tanto Josué 24.31 quan­
to Juízes 2.7 enfatizam que Israel serviu a Yahweh fielmente não apenas
nos dias de Josué, mas também durante os anos dos anciãos que lhe suce-
[deramJnsto não pode se referir aos anciãos contemporâneos de Josué na
- época do êxodo e da p eregrin ação no d eserto, visto que estes
presumivelmente foram incluídos na geração rebelde de Israel, e que fora
sentenciad a à m orte no deserto (Nm 1 4 .2 6 -3 5 ).iS o m e n te uma
desconsideração total do texto permitirá crer que houve um número sig­
nificativo de homens acima de vinte anos que sobreviveram ao deserto.
Mas, ainda que tenha existido um pequeno número, houve anciãos desig­
nados posteriormente ao julgamento em Cades-Barnéia, e todos deviam
estar com menos de vinte anos na ocasião. Alguns, sem dúvida, deviam
ser consideravelmente jovens. Mesmo na visão mais conservadora, um
ancião elegível para entrar em Canaã não poderia ter nascido antes de
1464, vinte anos antes da rebelião em Cades-Barnéia. Se ele viveu para ser
tão velho quanto Josué, teria vivido até 1354. Se, porém, ele tivesse nasci­
do pouco antes da rebelião, poderia ter vivido até cerca de 1340. A data de
1340 não é improvável para o início da adoração a Baal. De fato, pode até
ser um pouco antes, visto que Juízes 2.10 indica que toda geração de anciãos
havia morrido, e outra geração, que não conhecia nada sobre Yahweh e
seus atos salvíficos, tinha se estabelecido. E, é claro, Otniel, o primeiro
juiz, não exerceu seu ofício até oito anos após o início do julgamento de
Yahweh (Jz 3.8,9).
Contra essas datas mais recentes, porém, temos a propria introdução
feita por Otniel. Depois que Calebe conquistou' as>cidades de Hebrom e
Debir, seu sobrinho Otniel tomou-lhe a filha, chamada Acsa, para ser sua
esposa. Caso isto tenha ocorrido em 1399 ou pouco tempo depois, então
por volta de 1340 Otniel devia estar em idade bastante avançada, mesmo
que na época de seu casamento estivesse ainda muito jovem. Isto é intei­
ramente possível, embora improvável, pois parece que ele morreu qua­
renta anos após ter libertado o povo de Israel (Jz 3.11). Também pode-se
argumentar que os anciãos da idade de Josué tiveram permissão para en­
trar em Canaã; Eleazar, filho de Arão, claramente tinha mais de vinte anos
na época em que a antiga geração foi proibida de entrar em Canaã (Êx
6.23,25). Pode ser que a apostasia e a subseqüente era dos juízes tenha
vindo após a morte desses anciãos.11 Parece que 1360-1350 é uma data
razoável para a transição entre Josué e os juízes.

11 Warner, de fato, está disposto a admitir o ano de 1373 a.C. para o início da era dos juízes
(.Period of the Judges, VT 28 [1978]: 463).
\ E pa dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 151

A data de encerramento
Como indicado anteriormente, as datas para o final do período dos
juízes podem ser mais precisamente definidas. O argumento, contudo, é
extremamente complexp, e a cada ponto assume a exatidão e a integrida­
de do texto bíblico. Emprimeiro lugar, a data de Juízes 11.26 é de impor­
tância crucial. O juiz Jefté está informando ao rei hostil de Amom que sua
reclamação de que Israel está ilegalmente em território dos amonitas é
inválida: Israel já estava lá por trezentos anos e, na verdade, a terra no
tempo da conquista da Transjordânia não pertencia de forma alguma a
Amom, mas sim aos amorreus. Se, diz Jefté, Amom tem algum legítimo
direito, por que esperaram os amonitas trezentos anos para fazer a recla­
mação?
'V' O ponto que precisa ser enfatizado aqui é o fato de que Jefté comunicou-
se com os amonitas trezentos anos depois da conquista de Siom, um episó­
dio ocorrido em 1406, e dezoito anos após a opressão amonita haver inicia­
do (Jz 10.8). Essa opressão então Começou em 1124 e terminou somente quan­
do Jefté derrotou Amom em 1106, o mesmo ano de sua comunicação com o
rei (Jz 11.33). Deve ser ligada a essas datas a história do governo de Sansão.
Uma leitura cuidadosa de Juízes 10.7,8 mostrará que a opressão amonita
iniciada em 1124 coincidiu com o começo da opressão dos filisteus.12 Po­
rém, o historiador traça apenas um curso de acontecimentos por vez; pri­
meiro escreve sobre a ameaça amonita e seu desfecho (Jz 10.8b - 12.7), e
então trata da opressão dos filisteus e sua resolução (Jz 13.1 - 16.31).
Os filisteus atormentaram Israel popquarenta anos (Jz 13.1), ou desde
1124 até 1084. Sansão nasceu logo no início deste período e julgou Israel
"nos dias dos filisteus, vinte anos" (Jz 15.20). Ou seja, os anos de seu go­
verno caíram exatamente dentro dos quarenta anos de duração da opres­
são dos filisteus (Jz 14.4), mas aparentemente não ultrapassou este tempo,
porque os filisteus parecem ter sido uma ameaça por pouco tempo após
Sansão ter destruído o templo de Dagon (Samuel os subjugou em Mispa).
Muito provavelmente os feitos heróicos de Sansão tenham se iniciado na
metade do período da opressão, quando ele estava com cerca de vinte
anos de idade, e morreu após vinte anos de governo, pouco antes do fim
da opressão.
Procedendo por um outro ângulo, é interessante notar que o golpe fi­
nal contra a opressão filistéia aconteceu sob a liderança de Samuel em

Moore, Judges, p. 277; Abraham Malamat, "The Period of the Judges," em World History
ofthe Jewísh People, vol. 3, Judges, editado por Benjamim Mazar (Tel Aviv: Massada, 1971),
p. 157.
15 2 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Mispa (1 Sm 7.11,13), vinte anos após a arca da aliança ter sido levada
pelos filisteus (v. 2).13 O fim da opressão, conforme observado acima, ocor­
reu em 1084, e essa data marca também a batalha de Mispa. A batalha de
Afeque, que resultou na captura da arca, deve ter ocorrido em 1104, ou
seja, na metade do período de quarenta anos de opressão filistéia. Tende-
se a especular que o ataque dos filisteus possa ter sido uma espécie de
retaliação aos feitos heróicos de Sansão contra os adversários. Seja como
for, a cronologia proposta neste trabalho encaixa-se em tudo o que é co­
nhecido acerca da vida e carreira de Samuel, como também de Sansão.
Sem dúvida, o grande profeta ainda era muito jovem na época da batalha
de Afeque, mas "velho" quando Israel exigiu um rei, e ele ungiu Saul (1
Sm 8.1,5; 10.1). Admita-se que "velho" é um termo extremamente subjeti­
vo, mas é a mesma palavra usada para descrever Davi em seus setenta
anos (1 Rs 1.1,15; cf. 2 Sm 5.4).
Saul foi ungido em 1051 a.C., uma data que será defendida no devido
momento (p. 200); logo, se Samuel estava com setenta anos, seu nascimen­
to deve ter sido em 1121. Isto faria concluir que ele estava com dezessete
anos de idade em 1104, quando a arca foi capturada. Sabemos que Samuel
viveu no mínimo vinte e cinco anos após a ascensão de Saul, porque o
juiz-profeta ungiu Davi como rei quando este tinha provavelmente doze
anos. Davi nasceu em 1041, então uma data por volta do ano 1020 para a
sua unção não pode estar distante da realidade. Samuel viveu até Davi
fugir de Saul para o deserto de Parã (1 Sm 25.1), provavelmente no fim
dos anos 20. O profeta então estava próximo dos cem anos, caso tenha
nascido em 1121. É claro que, se a data parece extremamente avançada
(mas compare com Eli, que morrera aos noventa e oito anos), pode-se
mudar em alguns anos a data do nascimento de Samuel. Se, por exemplo,
ele nasceu em 1116, então tinha apenas doze anos quando a arca foi captu­
rada, e cerca de noventa e cinco anos quando veio a falecer.

Comprimindo a cronologia

O propósito desta exaustiva discussão da cronologia da era dos juízes


é mostrar a consistência dos dados bíblicos e responder às perguntas rela­
cionadas a todo o período entre o êxodo e Salomão. Baseando-se em datas
mais recentes que muitos estudiosos assumem para o êxodo e para a con- -
quista (cerca de 1275 -1250), há somente 300 anos para acomodar os juízes,
Saul, Davi e os quatro primeiros anos de Salomão, que começou a cons­

13 Ralph W. Klein, 1 Samuel, World Biblical Commentary (Waco: Word, 1983). Pp. 65,66.
A E fa dos J uízes: A Violação da A liança , A narquia e ,4 A utoridade H umana 153

truir o templo em 966, o quarto ano de seu reinado. Dificilmente se ques­


tiona os quarenta anos de Davi, e quanto a Saul, deve-se creditar pelo
menos vinte anos. Isto faz restar apenas 235 anos para todos os aconteci­
mentos do livro de Juízes. A solução comum é ignorar os números
registrados no livro ou postular uma considerável justaposição dos perío­
dos de opressão e liberdade. Alguma justaposição, conforme será demons­
trado, é necessária em qualquer posição viável.
Mesmo a remota data proposta para o êxodo (1446) apresenta sérios
problemas, considerando que dos 480 anos existentes entre o êxodo e o
quarto ano do rei Salomão (1 Rs 6.1), 4 são necessários para Salomão, 40
para Davi, 40 para Saul, pelo menos 45 para a conquista e a ocupação, e 40
para a peregrinação no deserto. Sobram apenas 311 anos para o período
dos juízes. Mas ao acrescentar os anos registrados em Juízes, que especifi­
cam a duração das opressões, dos juízes, e dos períodos intermediários de
paz, obtém-se um total de 407 anos. Este resultado é claramente incompa­
tível com 1 Reis 6.1 e até mesmo com a data remota proposta para o êxodo,
a menos que se aceite que os números registrados no livro dos Juízes se
sobrepõem.
Outro problema que parece surgir encontra-se em Atos 13.19,20, onde
o apóstolo Paulo, em discurso feito na sinagoga de Antioquia da Psídia,
indica que houve um período de 450 anos entre o final da conquista e a
vinda do profeta Samuel (segundo a King James Version). Embora não
seja possível saber o que Paulo quis dizer em sua referência a Samuel,
parece melhor entendê-la como uma alusão ao início do ministério públi­
co de Samuel como profeta. Ora, Samuel assumiu o lugar de Eli, que mor­
rera ao receber a triste notícia da captura da arca da aliança pelos filisteus,
na batalha de Afeque. Este fato, conforme mencionado acima, deve ser
datado em cerca de 1104. Seguindo Paulo, é necessário uma data em 1554
para o início do governo de Otniel, algo obviamente impossível. De fato, o
número 450 anos não pode encaixar-se em qualquer cronologia que consi­
dere seriamente 1 Reis 6.1. Este é o motivo por que muitos estudiosos op­
tam por uma leitura alternativa do texto de Atos 13.19,20, uma leitura que
sugere que os 450 anos referem-se à permanência no Egito (400 anos), à
peregrinação no deserto (40 anos), e a conquista (7 anos), um total que se
aproxima de 450 anos. Não importando as objeções, o fato é que esta leitu­
ra contradiz explicitamente a passagem de Êxodo 12.40, que declara que a
estadia de Israel no Egito durou 430 anos, e não apenas 400.
Uma solução melhor é a concepção de que Paulo acrescentou alguns
anos aos períodos de opressão, dos juízes e de paz descritos no livro dos
Juízes, que, como já visto, totalizam 407 anos. Os 40 anos de Eli (1 Sm
154 H istória de I srael no A ntigo T estamento

4.18), o juiz que precedeu Samuel, deve também ser incluído, perfazendo
um total de 450 anos.14 Embora este método de reconstrução cronológica
possa não satisfazer ao moderno homem ocidental, Paulo bem pode tê-lo
usado. Ele não era um especialista em cálculos, mas alguém que se baseou
nos dados dos livros de Juízes e de Samuel, organizando-os de forma a
satisfazer melhor as necessidades. O fato de Paulo incorporar sua inter­
pretação desses dados em um discurso público significa que seus ouvin­
tes entenderam e compartilharam com ele seu modo peculiar de compu­
tar a cronologia.
Não há motivo para rejeitar os dados bíblicos referentes à cronologia
dos juízes pois, conforme já visto, os números são capazes de trazer solu­
ção, uma vez que se veja com seriedade os dados cronológicos fornecidos
pelo Antigo Testamento. É somente quando os estudiosos sentem necessi­
dade, sobre bases puramente subjetivas, de rejeitar ou reinterpretar as in­
formações contidas no texto canônico que surgem dificuldades pratica­
mente insuperáveis, requerendo soluções muito mais criativas (e talvez
até mesmo niilistas).

O m u n d o d o a n tig o O rie n te M é d io

O silêncio do Antigo Testamento

Voltando à história da nação de Israel durante o governo dos juízes,


surpreende inicialmente a descoberta de que não existe sequer uma refe­
rência aos desenvolvimentos cruciais que envolviam as nações de maior
importância daqueles dias, nem mesmo as atividades no Egito. Um turbi­
lhão de assuntos de política internacional e várias campanhas militares
parecem ter sido completamente desviados de Israel. É como se a história
de Israel tivesse se tornado numa espécie de cuTde-sac, totalmente remo­
vida do cenário e dos acontecimentos que tumultuaram aqueles dias.
A razão para esse silêncio é dupla. Em primeiro lugar, o silêncio por si
mesmo é uma declaração em alto e bom som de que, devido às superpo­
tências da época estarem envolvidas com outros assuntos, não havia tem­
po ou energia para se gastar com um pequenino estado bastante isolado
das principais rotas de intercâmbio internacional.15 Em segundo lugar, fi­

14 Ver em Eugene H. Merril, "Paul's Use of 'About 450 Years' in Acts 13.20," Bib Sac 138
(1981): 246-57.
15 Abraham Malamat, "The Egyptian Decline in Canaan and the Sea Peoples," em World
History of the Jewish People, vol. 3, p. 23.
A E ra dos J uízes : A Violação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 755

éis ao estilo e ao método de historiografia bíblica, os historiadores sim­


plesmente não tinham qualquer interesse no vasto mundo daquela época.
Seu interesse era a história sagrada, no melhor sentido do termo, coinci­
dindo com os interesses de Yahweh, o Senhor da história, que desejava
contar a história de seu povo como um agente redentor no mundo. So­
mente quando a Babilônia, Assíria ou Egito constituem-se em dados im­
portantes para essa história da salvação é que são incluídas na narrativa
bíblica. Na verdade, até chegar à fase da monarquia, época em que Israel
tomou-se um reino significativo, procura-se em vão por alguma pista acerca
do mundo exterior.

Mesopotâmia

Para entender como a Palestina existiu em um vácuo por trezentos anos,


é necessário falar pelo menos resumidamente sobre a história extrabíblica.
Geograficamente é apropriado iniciar com Mesopotâmia. Conforme indi­
cado anteriormente (p. 92), o Antigo Império Babilónico abriu caminho
para os cassitas por volta de 1595 a.C., que continuaram a dominar a parte
central e mais baixa da Mesopotâmia até cerca de 1150. Esse foi um perío­
do de relativa regressão e inatividade para toda a região, o que resultou
em pouca ou nenhuma ameaça em direção ao oeste naquele tempo. Para o
norte, porém, os assírios tinham se tornado substancialmente fortes, e ti­
nham dado início à sua política imperialista pela qual tornaram-se famo­
sos. Foi graças a Assur-uballit (1365-1330) que os assírios libertaram-se da
antiga dominação imposta pelos hurrianos. Era ele quem se assentava no
trono dos assírios quando Josué finalmente encerrava a fase de conquista,
e também quando a era dos juízes teve seu início. Seus problemas com os
cassitas ao sul e com os hurrianos de Mitani ao ocidente, entretanto, dei­
xaram-no com pouco tempo e sem qualquer interesse por uma campanha
militar em Canaã.
As atividades anti-cassitas ocuparam os assírios por cerca de quarenta
anos, até que Adade-Nirari I (1307-1275) lançou uma série de ataques e
invasões ao reino de Hanigalbat, que era um estado vassalo situado na
porção superior dos vales do Habor e Balik.16 Obviamente essa atitude ia
contra os hititas que a princípio não tiveram condições para tomar qual­
quer medida punitiva contra os opositores, pois temiam consideravelmente

16 J.M. Munn-Rankin, "Assyrian Military Power 1300 - 1200 a.C.," em Cambridge Ancient
History, 3a edição, editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: Cambridge University
Press, 1975), vol. 2, parte 2, pp. 276-79.
15 6 H istória de I srael no A ntigo T estamento

o Egito. Por fim, Hattusilis, rei dos hititas, fez um acordo com Ramsés II
do Egito (em 1284) e, com seu moral restabelecido, tomou novamente
Habigalbat das mãos dos assírios.
Tukulti-Ninurta I (1244-1208), mesmo conseguindo resultados sur­
preendentes ao norte, oriente e sul através de suas campanhas militares,
falhou terrivelmente no ocidente quando tentou subjugar os hititas.17
Esse fracasso abalou tão sensivelmente os assírios que acabaram tornan­
do-se fracos e incapazes de controlar até mesmo os cassitas da Babilônia.
De fato, Assur-nirari III (1203 - 1198), neto de Tukulti-Ninurta, tornou-
se subserviente a Adad-suma-usur, rei de Babilônia (que agora não era
cassita). Essas ocorrências persistiram até o reinado de Assur-resi-isi I
(1133 -1116), que derrotou a Babilônia, na ocasião governada pelo ilustre
Nabucodonosor I (1124 - 1103).18 O fato deu início a um período de
ressurgência temporária dos assírios, abrilhantado fundamentalmente
por Tiglate-pileser I (1115-1077).19 Rapidamente ele voltou-se para o oes­
te e derrotou Musri, Tadmor e outros territórios arameus, alcançando
finalmente o Mediterrâneo, onde exigiria e receberia as devidas deferên­
cias do Egito, Fenícia e também dos hititas (que agora situavam-se ao
norte da Síria). Contudo, ele não intentou marchar para o sul, em dire­
ção ao próprio Israel. Note que o final de seu reinado deve ser calculado
por volta de sete anos depois de 1084 que, conforme proposto, seria o
término da era dos juízes.

Os hititas

Nossa atenção agora volta-se para a segunda grande potência daquela


época - os hititas. Esse reino, que havia permanecido em estado de
dormência por algum tempo, ergueu-se até atingir uma posição de pree­
minência sob o governo de Suppiluliumas (1380 - 1346). Mais ou menos
na época da morte de Josué, este Suppiluliumas tinha invadido a Síria, e
sentiu-se no direito de exigir qualquer coisa que estivesse nos territórios
até Gubla (Biblos).20 Ele não se esforçou para penetrar o sul de Canaã por­
que ainda sentia-se inseguro quanto ao poderio militar egípcio. Além dis­
so, ele via-se constantemente atacado e ameaçado em seus flancos pelos

17 Ibid., pp. 284-94.


18 D.J. Wiseman, "Assyria and Babylonia c. 1200-1000 B.C.", em CAH 2.2, pp. 453,54.
19 Ibid., pp. 457-64.
20 Anthony J. Spalinger, "Egyptian-Hitite Relations at the Close of the Amarna Period and
Some Notes on Hitites Military Strategy in North Syria," BES 1 (1979): 55.
A E r.a p o s J uízes: A Violação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 157

homens de Mitani e pelos assírios, preferindo assim permanecer no norte


de Canaã, não se estendendo demais nessas campanhas.
O controle hitita da Síria continuou até o reinado de Muwatallis (1320 -
1294), que começou a resistir o imperialismo do Egito (19a Dinastia).21 Em
1300, Ramsés II do Egito atacou os hititas em Cades, no Orontes, mas en­
controu resistência e, por fim, teve de retirar-se. Os hititas não puderam
manter uma política de guerra contra os egípcios por causa da constante
ameaça dos assírios. Na verdade, Hattusilis dos hititas (1286-1265) foi for­
çado a assinar um tratado de paz com Ramsés II, em 1284, em que um não
invadiria o território do outro.22
Depois da morte de Hattusilis, os hititas continuaram a enfraquecer-se,
e certamente nunca fizeram qualquer tentativa de ataque contra a nação
de Israel. Porém, eram eles que tinham o controle da maior parte da Síria
até o tempo em que o império caiu diante de uma súbita e violenta inva­
são dos Povos do Mar, por volta de 1200.23 Sendo assim, os hititas não se
constituíram em qualquer aspecto negativo durante os anos dos juízes.

Egito

Durante o período dos juízes, o Egito foi governado pela 18a, 19a e 20a
Dinastia. A era de Amarna (cerca de 1379-1350), período em que a con­
quista chegou ao fim, já foi examinada em parte (pp. 95-106). Está claro
que, embora Canaã fosse tecnicamente uma província egípcia, os reis do
Egito não dispensavam qualquer interesse na região, mesmo em face dos
constantes apelos enviados pelos reis vassalos de Canaã.
Porém, somente nos anos do reinado de Seti I (1318-1304), membro da
19a Dinastia, realizou-se uma expedição (muito bem comprovada) até
Canaã.24 Ele descreve em uma esteia em Bete-Seã uma campanha a Jezreel,

21 A. Goetze, "The Hitites and Syria (1300 -1200 B.C.)," em CAH 2.2, pp. 252-56.
22 Ibid., pp. 258,59
23 Para um relato sobre os últimos e desesperadores anos da independência dos hititas,
ver em Itamar Singer, "Western Anatolia in the Thirteenth Century B.C. According to
the Hitite Sources," AS 33 (1983): 205-17, especialmente 216,17.
24 R.O. Faulkner, "Egypt: From the Inception of the Nineteenth Dynasty to the Death of
Ramesses III," em CAH 2.2, pp. 218-21. Há alguma possibilidade de que Horemheb, um
comandante que servia sob as ordens de Tutankhamon, tenha conduzido uma campa­
nha em alguma parte de Canaã no princípio do reino desse monarca (aprox. 1360). Ver
em Cyril Aldred, "Egypt: The Amarna Period and the End of the Eighteenth Dynasty,"
em CAH 2.2, p. 72. Caso seja verdadeiro, não produziu qualquer mudança significativa
no curso dos acontecimentos no interior de Canaã.
158 H istória de I srael no A ntigo T estamento

mencionando a tomada de Rafia (Rapha) e Gaza, ambas cidades costeiras


ao mar Mediterrâneo, assim como Bete-Seã, Acco, Tiro e outras situadas
mais ao norte. Em Bete-Seã, ele encontrou-se com os 'apiru, uma referên­
cia bastante provável a Israel, visto ser um registro ligado a uma data mais
avançada.25 É praticamente impossível não notar que Seti evitou pruden­
temente entrar em contato com qualquer parte de Canaã, exceto as planí­
cies costeiras e o vale de Jezreel, ambos fora da área de ocupação israelita.26
Em sua segunda campanha militar, ele exerceu pressão pelo norte até Cades
e Amurru, e na quarta campanha perdeu o controle sobre Cades, fazendo
um tratado com o hitita Muwatallis.27 Em todas as ocasiões, ele evitou o
interior de Canaã.
Não há necessidade de se falar mais sobre Ramsés II (1304 0 1236).28
Embora desqualificado para obter o título de faraó do êxodo, ele perma­
nece contemporâneo por quase sete décadas da história de Israel, durante
a fase central do período dos juízes. Apesar disso, em nenhuma ocasião
seu nome é mencionado no livro dos Juízes, nem ele também faz qualquer
referência a Israel em seus anais.29 A conclusão é que não houve interesse
de ambas as partes.
A primeira campanha realmente significativa de Ramsés foi contra os
hititas em Nahr el-Kalb, no Líbano, durante seu quarto ano de reinado.
No ano seguinte (1300), ele se encontrou com os hititas em Cades, próxi­
mo ao rio Orontes e, como já visto, sofreu uma humilhante derrota. Isto
deve ter encorajado a rebelião entre os vassalos em Canaã, pois por mui­
tos anos Ramsés teve de atender esses pequenos estados, mas em ne­
nhuma vez ele interveio no interior de Canaã, a região dominada pelos

25 Benjamim Mazar, "The Historical Development," em World History ofthe Jezvish People,
vol. 3, p. 15, descreve essas tribos semíticas como "etnicamente próximas aos israeli­
tas". Na verdade, é muito provável que eles realmente fossem os israelitas.
26 Yohanan Aharoni, "The Settlement of Canaan," em World History of the Jeiuish People,
vol. 3, pp. 94,95.
27 A perda de Cades é explicada pelo fato de Ramsés II ter empreendido grande esforço
para reconquistá-la em seu quarto ano de reinado. Ver em Faulkner, "Nineteenth
Dynasty," em CAH 2.2, p. 221. Quanto ao texto do tratado, ver em James B. Pritchard,
Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton
University Press, 1955), pp. 476-79.
28 Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, pp. 225-32; Anthony J. Spalinger, "Traces
of the Early Career of Rameses II," JNES 38 (1979): 271-86.
29 Uma exceção é a referência feita aos "Asar", um povo costeiro que tem sido identificado
pelos estudiosos como a tribo de Aser. Essa menção situaria a tribo no norte de Canaã,
pelo menos nos primórdios do décimo terceiro século. Ver em Mazar, "Historical
Development", p. 19.
A £>_a do5 J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 159

israelitas. Em 1284 fez um tratado de paridade com Hattusilis, e em 1270


casou-se com a filha do rei hitita, um fato que ele atribuiu à sua própria
superioridade sobre Hattusilis. Todos os demais contatos no norte que
ele deixou registrado são classificados como de pouca importância: em
Moabe, Edom e no Negueve, e nenhum desses envolveu confrontos com
Israel por razões óbvias - Israel não fizera nenhuma reivindicação sobre
aquelas áreas.
Por outro lado, Merneptá (1236-1223) não apenas empreendeu uma
campanha na Palestina (em seu quinto ano, 1231), mas menciona uma
derrota que infligiu aos israelitas.30 Esse ataque surpresa parece ter ficado
restrito à região de Jezreel.31 Já foi visto (p. 62) que essa referência a Israel
é uma prova contra uma data mais recente para o êxodo e para a conquis­
ta, pois é muito difícil imaginar como Israel poderia ter sido o maior ini­
migo de guerra de Merneptá em Canaã, caso o êxodo tenha ocorrido no
início de seu reinado, conforme a evidência em favor de uma data mais
recente parece sugerir.32
O reinado de Merneptá também representou o fim de qualquer
envolvimento significativo do Egito na região Siro-Palestinense, e essa
condição durou até o reinado de Shoshenq (945 - 924) da 22a Dinastia.
Até mesmo Ramsés III (1198 -1166), que teve condições de derrotar e
também repelir os líbios e os Povos do Mar, empreendeu apenas uma
expedição à Palestina, sendo tal campanha limitada devido à oposição
dos edom itas.33 Depois que ele morreu, as províncias da região Siro-
Palestinense foram todas perdidas. Quanto aos demais membros da 20a

30 Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, pp. 232-35.


31 Malamat, "Egyptian Decline," em World History of the Jezoish People, vol. 3, p. 24.
Malamat sugere que Gezer naquele tempo estava sob o controle egípcio, um fato que
está em sintonia com o registro bíblico, que afirma que a conquista israelita deixou Gezer
sob o comando dos cananeus (Js 16.10).
32 O determinador que tem sido usado para descrever Israel como um "povo" não pode
conduzir à idéia de um corpo desorganizado; pelo contrário, estava tão organizado que
chegou a ocupar totalmente o interior das regiões montanhosas. Essa é a conclusão pro­
duzida pela análise literária-estrutural da esteia de Merneptá, feita por G. W. Ahlstrõm
e D. E. Edelman, "Merneptah's Israel," JNES 44 (1985): 59-61.
33 Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, p. 244. Pierre Grandet recentemente pro­
pôs que Ramsés construiu fortificações em Bete-Seã, uma teoria que, caso esteja correta,
não modifica o fato de que o Egito não se envolveu absolutamente na região central de
Canaã ("Deux Etablissements de Ramsés III en Nubie et en Palestine," JEA 69 [1983]:
109-14; da mesma forma Malamat em, "Egyptian Decline," em World History ofthe jezoish
People, vol. 3, p. 35).
160 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Dinastia (até cerca de 1085), sabe-se que o Egito não teve participação
alguma nos negócios de Israel.34

Os estados siro-cananeus

Finalmente, a situação da Síria e Palestina durante o período dos juízes


deve receber ao menos uma breve atenção.35 Aproximadamente no início
do governo do juiz Otniel, os hititas começaram dominar toda a Síria, en­
tre o Mediterrâneo e o Eufrates, estendendo essa dominação o máximo
para o sul até o Líbano. O pavor que isso causou nos estados cananeus
pode ser percebido, por exemplo, em uma carta escrita por Rib-Adda de
Gubla (Biblos) para seu superior egípcio. Outros reinos na Síria tiveram
rapidamente de escolher ficar do lado dos hititas ou de Mitani. Elalab
(Aleppo), Alalakh e Tunip tornaram-se vassalos dos hititas. Ugarite, com
seu característico estilo de independência, optou por permanecer fiel ao
Egito. Amurru, entretanto, viu neste conflito entre superpotências uma
chance para expandir sua própria influência. Seu rei, 'Abdi-Asirta, amea­
çou Gubla, e seu filho e sucessor, Aziru, por fim conseguiu anexar aquela
importante cidade da Fenícia. Na ocasião ele firmou um acordo com
Niqmaddu, de Ugarite, que serviu apenas para colocar ambos sob o con­
trole dos hititas. Foi durante aqueles dias que Suppiluliumas, rei dos hititas,
acabou com o controle dos mitanitas sobre a Síria e criou seu próprio siste­
ma de estados vassalos, que incluía Ugarite e Amurru.
Com a penetração de Seti I da 19a Dinastia egípcia no interior da Síria,
os habitantes de Amurru quebraram seu pacto de submissão aos hititas,
mas foram novamente postos sob controle depois que os exércitos de
Ramsés II foram clamorosamente destruídos em Cades (1300).36 Próximo
ao fim do Império hitita, os estados da Síria começaram a afirmar sua in­
dependência, mas sabe-se que até a época em que os Povos do Mar vie­
ram e destruíram esse império, a maioria dos estados da Síria permaneceu
sob controle.

34 James M. Weinstein tenta defender a idéia de que, durante os séculos 12 e 13, percebeu-
se um envolvimento egípcio sem precedentes em Canaã. Porém, dentre todos os luga­
res por ele citados como fortalezas dominadas pelos egípcios, nenhum estava situado
nas regiões montanhosas do interior de Canaã, precisamente onde Israel dominava ("The
Egyptian Empire in Palestine: A Reassessment," BASOR 241 [1981]: 17,18).
35 A. Goetze, "The Strugle for the Domination of Syria (1400 - 1300 B.C.)," em CAH 2.2,
pp. 2-16; para uma discussão quanto a maneira como Ugarit via estas coisas, ver em
Anson F. Rainey, "The Kingdom of Ugarit," BA 28 (1965): 107-12.
36 Faulkner, "Nineteenth Dynasty," em CAH 2.2, pp. 220-21.
r
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 161

Os Povos do Mar eram uma confederação de vários grupos étnicos e


nacionalistas originada primariamente na área do mar Egeu, embora al­
guns possam ter vindo das longínquas regiões ao oeste da Sicília e da Itá­
lia.37 E possível que tenham auxiliado o rei Muwatallis em sua vitória con­
tra o faraó Ramsés em Cades. Alguns desses nomes são conhecidos:
Dardani, Masa, Pitassa, Arawanna, Karkisa e Lukka. Eles penetraram pela
primeira vez na Palestina (aprox. 1230) por terra, através da Cilicia, e apa­
rentemente marcharam até chegar ao Egito. O faraó Merneptá diz ter
rechaçado alguns Povos do Mar que, passando pela Líbia, invadiram o
Egito.38 E possível que os seiscentos filisteus feridos por Shamgar (Jz 3.31)
fossem Povos do Mar penetrando através do norte.39
Uma segunda invasão, inclusive registrada nos textos de Ras Shamra e
em outros lugares, foi responsável pela destruição completa da cidade de
Hattusas (Boghazkeui), capital dos hititas, assim como de Tarso, Carquemis,
Sidom, Quitom40 e Ugarite. Nessa época, os Povos do Mar estabeleceram
residência permanente na baixa região da costa do Mediterrâneo, onde
vieram a ser conhecidos pelos israelitas como filisteus. Esses filisteus não
devem ser identificados com aqueles diretamente associados aos patriar­
cas e ao êxodo, embora representem de fato uma segunda leva de mesma
raça daqueles filisteus primitivos.41
Relacionada aos Povos do Mar, está uma invasão feita pelos egípcios,
que tentou estabelecer uma cabeça-de-ponte naquela região. Ramsés III
descreve em alguns relevos em parede descobertos em Medinet Habu,
que essa invasão, ocorrida em seu oitavo ano de reinado (aprox. 1190),
incluía os seguintes componentes: Peleset, Tjekker, Sheklesh, Sherden,
Weshesh e Denyen. Estes, ele informa, já haviam conquistado os hititas e
os amurru anterior mente. Os peleset e os Tjekker buscaram estabelecer-
se em Canaã; estes habitavam na alta região costeira, próximo a Dor, e
aqueles, conhecidos como os filisteus da Bíblia, habitavam na baixa re­

37 Para ganhar mais base sobre esse assunto, consultar em Trude Dothan, The Philistines
and Their Material Culture (New Haven: Yale University Press, 1982), pp. 1-23.
38 Trude Dothan, "What We Know About the Philistines," BAR 8.4 (1982): 25.
39 Ver em Benjamim Mazar, "The Philistines and Their Wars with Israel," em World Hístory
of the Jewish People, vol. 3, pp. 172,324-25, n. 16.
40 Quiton situa-se na ilha de Chipre, que já produziu abundante material que comprova a
conquista dos Povos do Mar. Ver em Vassos Karageorghis, "Exploring Phiistine Origin
on the Island of Cyprus," BAR 10 (1984): 16-28.
41 Para se consultar uma boa e plausível hipótese que afirma terem os filisteus se origina­
do em Canaã, migrado para o Egeu e, mais tarde, voltado como parte dos Povos do Mar,
ver em T.D. Proffit, "Philistines: Aegeanized Semites," NEASB 12 (1978): 5-30.
16 2 H istória de I srael no A ntigo T estamento

gião.42 Os filisteus provaram ser inimigos inveterados de Israel, e 1


Samuel é o livro que trata deste assunto.
Ao concluir essa história panorâmica dos vizinhos de Israel no perí­
odo de 1360 a 1085, deveria estar claro que Israel permaneceu pratica­
mente intocado diante da agitação internacional. Somente a chegada
dos filisteus apresentou um problema maior, fato que está abundante­
mente registrado na Bíblia. Por outro lado, o Antigo Testamento silen­
cia sobre o vasto mundo e seus conflitos, porque eram considerados
irrelevantes para a história de Israel. Vemos a providencial mão de Deus
em ação para incubar seu povo durante esse período crítico de seu de­
senvolvimento.

O s ju íz e s d e Isra e l

O padrão cíclico que caracteriza o período

A seção retrospectiva de Juízes termina com a referência à morte de


Josué em 2.6-9. Então, de 2.10 até 3.6, o autor introduz o padrão cíclico que
caracterizou a história de Israel por mais de trezentos anos. Após a gera­
ção de Josué haver passado, o povo esqueceu-se de Yahweh, trocando-o
pelos deuses de Canaã. Isto provocou a ira de Yahweh, de forma que Ele
enviou inimigos a Israel a fim de puni-lo e despertar-lhe o interesse em
retornar para os caminhos de Deus. Quando Israel se arrependia, Yahweh
levantava juízes que livravam a nação, e assim experimentavam um perí­
odo de paz e de justo governo. Novamente Israel dava as costas para o
Senhor e caía em apostasia, então uma série de eventos desabavam sobre
a nação, reiniciando o ciclo punitivo. Uma importante razão por que os
israelitas não puderam expulsar todos os inimigos cananeus foi, de fato,
que estes poderiam permanecer na terra como instrumentos sempre que
Yahweh precisasse disciplinar seu povo. Também estes inimigos poderi­
am servir como um teste de lealdade a Yahweh, e treinar a nova geração
de israelitas na arte de fazer guerra. Os inimigos que permaneceram na
terra - os filisteus, cananeus, sidônios e heveus - habitavam na planície
costeira ou na região mais baixa do vale de Baca, ao norte da Galiléia.
Além disso, havia vários outros povos (amorreus, hititas e jebuseus) com
os quais Israel se envolveu por meio de casamentos mistos e adoração
religiosa sincretista.

42 Malamat, "Egyptian Decline," World Historyof the Jewish Peolple, vol 3, p. 34.
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 163

A natureza da idolatria em Canaã

A religião cananéia estava para penetrar em todos os níveis da vida


dos israelitas desde o período dos juízes até pelo menos o tempo do cati­
veiro da Babilônia. Graças aos textos cananeus épicos e relativos ao culto
encontrados em Ugarite (Ras Shamra), como também o Antigo Testamen­
to, é possível reconstruir pelo menos as linhas principais do pensamento e
da prática religiosa em Canaã.43
Essencialmente, a religião em Canaã baseava-se no princípio de que as
forças da natureza eram a expressão da presença e atividade divina, e que
o único meio pelo qual alguém poderia sobreviver e prosperar seria iden­
tificar os deuses responsáveis por cada fenômeno e, mediante ritual pró­
prio, encorajá-los a exercer os poderes em seu favor. Isto é a introdução da
mitologia na realidade. Os rituais sempre envolvem a participação huma­
na, particularmente os sacerdotes que são intimamente ligados ao culto, e
as atividades dos deuses conforme descritas nos mitos.44
Não é possível recriar a totalidade do mito cananeu em detalhes, visto
que os textos são incompletos, e falta em todos os casos um harmonioso e
sistemático ponto de vista. Mas o quadro geral parece ser o seguinte: El é o
cabeça do panteão dos deuses. Como seu próprio nome indica, ele é quase
impessoal, um senhor transcendente, poderoso, uma figura paterna com ar
de benevolência, mas com pouco ou nenhum interesse nos negócios dos
homens. Há momentos em que parece estar à beira da senilidade, e por
muitas vezes vê-se vítima da sedução e dos interesses dos deuses mais jo­
vens. Ele se assenta em um local elevado e sublime situado nas montanhas
do norte, na nascente dos rios, onde possui sua corte e entretém os outros
deuses. Sua esposa é Asherah, a deusa mãe, por cuja fertilidade toda a terra

43 Ver em Johannes C. de Moor, "The Semitic Pantheon of Ugarit," UF 2 (1970): 187-228;


Cyras H. Gordon, "Canaanite Mythology," em Mitologies of the Ancient World, editado
por Samuel N. Kramer (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1961), pp. 183-218; Arvid S.
Kapelrud, Baal in the Ras Shamra Texts (Copenhagen: G.E.C. Gad, 1952); P.D. Miller,
"Ugarit and the History of Religions," ]NSL 9 (1981): 119-28; Julian Obermann, Ugaritic
Mithology (New Haven: Yale University Press, 1948); Ulf Oldenburg, The Conflict Between
El and Ba'al in Canaanite Religion (Leiden: E.J. Brill, 1969); Helmer Ringgren, Religions of
the Ancient Near East (Philadelphia: Westminster, 1973), pp. 124-76.
44 Para um importante estudo acerca do mito, especialmente quando ele se refere ao Anti­
go Testamento, ver em J. W. Rogerson, Myth in Old Testament Interpretation, BZAW 134
(Berlin: Walter de Gruyter, 1974). O mito de uma forma geral está muito bem elucidado
nos trabalhos de Mircea Eliade, particularmente em seu Cosmos and History: The Myth of
the Eternal Return (New York: Harper, 1959).
164 H istória de I srael no A ntigo T estamento

é vivificada. Na Bíblia é referida como "asherim" ou "arbusto". O símbolo


de sua presença e poder era representado pelas plantas sempre verdes. Por
fim, até um tronco de árvore poderia representar essa deusa, servindo como
um santuário onde pudesse ser realizado um ritual.
Porém, a divindade mais importante era Baal, o "senhor" da terra. De
acordo com muitos estudiosos, Baal era um epíteto do deus Hadad, filho de
Dagan (Dagon), freqüentemente mencionado nos textos de Mari e em ou­
tras fontes da alta Mesopotâmia.45 Esses estudiosos propõem que juntamente
a migração dos amorreus para Canaã, ocorrida em 2200 a.C., entrou na terra
o seu panteão de deuses, inclusive o deus Hadad!'A introdução de novos
deuses em Canaã conduziria ou a uma rejeição dos deuses nativos ou, mais
provavelmente, a uma assimilação dos deuses novos. Assim, o que era Hadad
em Mari tornou-se Baal em Ugarite. Como apoio a esta interpretação tem-se
o próprio mito de Baal, que apresenta esse deus em contenda com várias
outras divindades, incluindo o próprio El. Em geral o processo é o desapa­
recimento de El e a ascendência gradual de Baal.
Hadad era o deus da tempestade dos amorreus, que se manifestava na
chuva, trovão e raios. Baal exercia essa função em Canaã e, visto que a
agricultura cananéia dependia totalmente da chuva, sua importância era
óbvia. Mas Baal precisou lutar para obter reconhecimento e preeminência.
Ele não apenas ameaçou o deus El, considerado até então como a fonte de
toda a virilidade, mas também confrontou-se com outros deuses inimigos
tais como Yammu (o Mar), Naharu (o Rio), e até mesmo Motu (a Morte).
Todos estes, zelosos de suas posições no ciclo da natureza - semeadura,
colheita, umidade e seca, vida e morte - opuseram-se vigorosamente a
Baal, na esperança de impedi-lo de construir um palácio, um puro sinal de
soberania, ou de conduzi-lo à morte.
Baal frustou todos estes intentos. Ele tomou a esposa de El como sua
consorte na ocasião. Também incitou um combate com Yammu e Naharu
e castigou-os sem piedade, provando a superioridade da chuva sobre o
mar e a terra. Mesmo quando assassinado por Motu, voltou à vida com o
auxílio de sua irmã Anat, e finalmente extinguiu ele mesmo a morte. De­
pois de um grande intervalo, alcançou a supremacia e dominou tanto o
panteão quanto o culto.
/ O ritual envolvia a dramatização do mito conforme descrito. Centrava-
se na atividade sexual, uma vez que a chuva atribuída a Baal era tida como
o seu próprio sêmen derramado sobre a terra para a fertilizar, impregnan­
do-a com vida, assim como impregnava Aserá (a deusa da fertilidade) no

45 Detalhes acerca do assunto, ver especialmente em Oldenburg, Conflict, pp. 46-163.


A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 165

mito. A religião cananéia era então grosseiramente sensual e perversa,


porque requeria no culto os serviços de homens e mulheres prostitutos
como atores principais no drama.
Diferentemente de Israel, não havia um santuário central. Baal poderia
ser adorado onde houvesse um lugar especialmente visitado pela nume­
rosa presença dos deuses. Esses locais eram originalmente nas colinas (por
isso, "nos altos"), mas tempos depois podiam ser encontrados nos vales
ou até mesmo nas cidades ou vilarejos. Cada local deveria ser marcado
por um poste (áserâ), um pilar (massebâ), ou algum outro símbolo de culto.
Visto que Baal não era onipresente em sentido estrito, cada centro de culto
deveria ter o seu próprio Baal. Assim poderia ser Baal-Peor, Baal-Berite,
Baal-Zebube e outros. Isto também explica por que os deuses de Canaã
eram chamados de Baalim ("os Baals") no Antigo Testamento. Teorica­
mente, havia apenas um Baal, embora fosse senhor de muitos lugares.
Esta descrição bastante simplificada e sintetizada dos mitos e rituais
cananeus agora é suficiente para uma introdução à natureza da apostasia
da de Israel - a sua rejeição de Yahweh, a verdadeira fonte de prosperida­
de e fertilidade, para a adoração do produto da imaginação depravada
que confundia o resultado da bênção divina com sua causa. Foi uma ver­
gonhosa quebra da aliança e uma deslealdade, melhor descrita na frase
"se prostituíram após outros deuses" (Jz 2.17).

Otniel

O primeiro surto de apostasia em larga escala ocorreu após a morte de


Josué, e resultou na invasão de Israel por Cusan-Risatain, de Aram
Naaraim. O escritor revela a atitude que será freqüentemente repetida:
"se esqueceram do Senhor seu Deus; e serviram [adoraram] aos baalins e
a Aserote." (Jz 3.7). Isto implica não apenas um interesse casual na mitolo­
gia, mas também uma participação ativa no ritual, precisamente como foi
no caso em que Israel adorou a Baal-Peor (Nm 25). Cusan-Risatain não
pode ser identificado, mas a segunda parte de seu nome, "Risatain", é
sem dúvida mais um epíteto dado por seus inimigos do que um nome,
pois significa "dupla iniqüidade". Aram Naaraim, literalmente "Aram dos
dois rios", refere-se a uma região elevada do Eufrates ou ao norte da Síria,
que talvez possa ser identificado com o "Kushan-rôm" dos anais de Ramsés
II ou a região "Nhr(y)n" das outras fontes egípcias.46 Nada há em qual-

* Merril F. Unger, Israel and the Aramaeans of Damascus (Grand Rapids: Baker, reedição de
1980), pp. 40,41,134 e 135. '
166 H istória de I srael no A ntigo T estamento

quer parte do nome que rejeite uma data próxima a 1340, visto que
"Naharin" e "Nahrima", pelo menos, consta nos textos egípcios e acadianos
do século quinze.47 É verdade que alguns estudiosos negam o elemento-
prova "Aram", mas Merril Unger tem demonstrado sua existência conti­
da num texto de Naram-Sin, que remonta aos primórdios de 2300 a.C.48
Conforme argumentado (p. 150), o mandato de Otniel deve ser datado
por volta de 1350, que situa a invasão de Cusan-Risatain em 1358, oito anos
antes. Isto é muito possível, visto que naqueles dias Assur-uballit, o podero­
so rei da Assíria, vinha sendo incessantemente atacado por uma tribo araméia
conhecida por Sutu. O rei hitita Suppiluliumas encontrou-se em apuros com
os homens de Mitani e com os assírios; e embora tivesse obtido o controle
do norte da Síria por volta de 1360, os estados-vassalos, incluindo Naharema
(Arã-Naharaim), gozavam de muita liberdade, podendo sem dúvida ter
empreendido conquistas militares independentes, ou simplesmente segui­
do as ordens do próprio rei hitita.49 O Egito naquela época encontrava-se
sem qualquer condição de interferir nesses negócios.
Não é possível saber que tipo de prejuízo Cusan-Risatain causou a Is­
rael, mas certamente os oito anos de ocupação não foram impostos sem
resistência. A expulsão dos arameus pelo juiz Otniel também deve ter cau­
sado algum tipo de destruição, cuja evidência pode ser constatada por
diversas investigações arqueológicas.5051Especular além deste ponto não é
aconselhável.
O que é de mais interessante e importante é a natureza e a função de
um juiz. Está claro que esses indivíduos foram escolhidos e dotados de
poder por Yahweh, a fim de atender a certas emergências, e que este ofício
não era hereditário. Também é aparente que o termo juiz não sugere uma
função jurídica, já que esta responsabilidade recaía sobre os anciãos, mas
significa um ofício de um líder militar e protetor.01 Alguns paralelos nos
textos de Ebla têm sido recentemente apresentados, em que juízes (di-ku),

47 Abraham Malamat, "The Aramaeans," em Peoples of Old Testament Times, editado por
D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), p. 140.
48 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 39.
49 Goetze, "Domination of Syria," em CAH 2.2, p. 16.
50 William E Albright diz que a Palestina no décimo quarto século encontrava-se com
baixo número de habitantes, uma conclusão mantida com base no pequeno número
de cidades fortificadas durante aquele período ("The Amarna Letters From Palestine,"
em CAH 2.2, p. 108). Essa evidência de poucos centros urbanos poderia refletir a des­
truição causada pelos arameus e outros povos predadores durante os dias dos primei­
ros juízes.
51 Malamat, "Period of the Judges," em World History ofthe Jeiuish People, vol. 3, p. 131.
,
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança A narquia e a A utoridade H umana J6 7

coexistentes com reis e anciãos, também parecem não ter tido nenhuma
função jurídica.52 Em Israel, no período entre os grandes mediadores
(Moisés e Josué) e os reis, os juízes serviram como uma espécie de gover­
nadores ad hoc e generais encarregados de libertar o povo das mãos de
----- —

Eúde

Após Otniel ter conseguido repelir os arameus, Israel descansou du^


rante quarenta arios. Visto que a opressão de Cusan-Risatain parece ter
afetado toda a nação, pode-se deduzir que nenhuma outra opressão es­
trangeira paralela atingiu Israel, e que apenas Otniel foi juiz nos anos de­
correntes. O período de paz existiu em toda a terra. Baseando-se na data
de 1358 a 1350 para os anos de opressão, o fim do governo de Otniel dá-se
por volta dé 1310. Então este juiz morreu, dando início ao ciclo.
V;A opressão que surgiu em seguida parece ter afligido apenas uma área
restrita, próxima a Jerico - "cidade das palmeiràs" (Jz 3.13). O inimigo era
Eglon, rei de Moabe, cuja existência, apesar de não mencionada em qual­
quer documento extracanônico, dificilmente pode ser questionada.'Alia­
do aos amonitas e aos amalequitas, èle atacou Israel e exerceu uma sobe­
rania local por, no mínimo, dezoito anos. Não há como datar este período,
precisamente porque deve ter havido algum espaço de tempo entre a morte
de Otniel e a nova apostasia de Israel. Uma data no primeiro quartel do
século XIII (1300-1275) não é de qualquer modo ilegítima.53 Em resposta
ao clamor de seu povo, Yahweh levantou Eúde de Benjamim que, sob o
pretexto de oferecèr tributos ao rei,54 assassinou Eglon.’ Eúde então esca­
pou para as regiões montanhosas de Efraim, onde arregimentou as milíci­
as de Israel para segui-lo até as margens do rio Jordão. Quando os moabitas
tentaram retroceder para sua terra, acharam o caminho bloqueado e fo­
ram destruídos completamente. Os oitenta anos de descanso que se segui­
ram devem referir-se à região centro-leste de Israel, sobre a qual Moabe
tinha exercido controle. Passou no mínimo esse tempo antes que a região
no vámente sofresse em mãos inimigas.

- Giovanni Pettinato, "Ebla and the Bible - Observations of the New Epigrapher's
Analysis," BAR 6 (1980): 40.
- Numa disputa contra Norman Glueck, o estudioso Sean Warner diz que os moabitas,
edomitas e amonitas ocuparam a Transjordânia entre 1400 e 1375, e que já estavam no
local na época de Eúde ("Period of the Judges," VT 28 [1978]: 459).
- Malamat, "Period of the Judges," em World Histoty of the Jeiuish People, vol. 3, p. 155.
16 8 H istória de I srael a 'o A ntigo T estamento

Sangar

O terceiro juiz, Sangar, libertou Israel do poder dos filisteus pouco


tempo após a morte de Eúde. Este acontecimento, presumivelmente
um único incidente, pode estar ligado à chegada dos Povos do Mar, em
cerca de 1230.

Débora

Depois da morte de Eúde - um acontecimento que não pode ser data­


do, mas que não necessariamente ocorreu logo no início dos oitenta anos
de paz - , Israel mais uma vez voltou para os caminhos da perversidade.
Nessa ocasião, o julgamento do Senhor concentrou-se no norte, no vale de
Jezreel e acima deste, envolvendo Jabim, rei de Hazor, e seu general Sísera,
de Harosete (Tel el-'Amr), uma cidade situada no ribeiro d e Quisom ao
leste do monte Carmelo. Por vinte longos anos as tribos do norte sofreram
sob a opressão cananéia, e nada podiam fazer em razão da superioridade
militar do adversário. As referências a carruagens de ferro (Jz 4.3) não
apenas enfatizavam esta vantagem estratégica, como também auxiliam a
datar o evento, visto que o ferro não tinha se tornado comum em Canaã
até por volta de 1200. Fixar uma data entre 1240 e 1220 para essa opressão
cananéia não estaria distante da inform ação bíblica ou dos dados
extrabíblicos adquiridos nas escavações arqueológicas.55
O agente da salvação nessa ocasião foi Débora de Efraim, que estabele­
ceu o local de sua administração entre a cidade de Ramá e Betei. Visto que
a área sob ataque estava bem distante deste local, respondeu Débora aos
urgentes apelos encorajando Baraque, de Cades em Naftali, a menos de 16
quilômetros ao norte de Hazor, a assumir ele mesmo o confronto com Jabim
no monte Tabor. Yahweh conduziria Sísera até o ribeiro de Quisom. Baraque
e as tropas de Naftali e Zebulom poderiam assim descer pelo Tabor e avan­
çar sobre o inimigo quando este estivesse no rio. Baraque recusou-se a

55 Ygael Yadin sugere 1230 ("Excavatíons at Hazor, 1955-58," em Biblícal Archaeologíst Reader,
editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman [Garden City, N.Y.:
Doubleday,1964], vol. 2, p. 223). Estudiosos que insistem em uma data mais recente
para a conquista têm dificuldades aqui, pois não conseguem explicar a existência de
Hazor no final do décimo terceiro século, já que tal cidade havia sido destruída por
Josué. Se, porém, Hazor só foi destruída por volta de 1400, haveria tempo suficiente
para ser reedificada e então mais tarde ser novamente destruída por Débora em 1230.
Ver em Malamat, "Period of the Judges," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p.
135 que, contrariando a Yadin, data a queda de Hazor entre 1150 e 1125.
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 169

prosseguir sem Débora, porque entendia que a juíza ungida de Israel sim­
bolizava a própria presença de Deus.56 Débora, portanto, juntou-se a ele
no monte Tabor, e Baraque, encorajado por tê-la ali, investiu contra as car­
ruagens de Sísera, que aparentemente ficou imobilizado por uma rápida e
inesperada cheia do Quisom (Jz 5.21).57
Sísera conseguiu escapar para Zaananin, uma cidade próxima de Cades,
na região de Issacar,58 refugiando-se na tenda de Heber, o quenita. Os
quenitas eram aparentados com os midianitas, conforme se deduz pelo
fato de ser o sogro de Moisés chamado de midianita e de quenita (Ex 18.1;
Jz 1.16). Esses nomes refletem uma raiz hebraica com significado de "que
trabalha com metais", indicando que o fato de habitarem em tendas pode
não significar um estilo de vida pastoral e nômade, mas um grupo de pes­
soas que, à medida que empreende suas viagens, muda de trabalho cons­
tantemente.59 A mudança de Heber para o norte e sua afiliação com Jabim
podem de fato ter relação direta com o desenvolvimento da indústria do
ferro pelos filisteus e cananeus. De qualquer modo, a mulher de Heber
(Jael) permitiu que seu senso de lealdade aos israelitas sobrepujasse a hos­
pitalidade dos semitas, pois ela mesma matou Sísera dentro de sua tenda.
A derrota de Sísera e o término da opressão de Jabim (Jz 4.24) foram
celebrados no cântico de Débora e Baraque.60 Com uma referência especi­
al ao encontro decisivo no Quisom, eles recitaram os feitos de Yahweh
desde a conquista da Transjordânia até aquele momento (Jz 5.1-5; cf. Dt
33.2,3; SI 68.7-9; Hc 3.3). Nos dias de Sangar e Jael, ocorridos pouco antes,
as estradas eram inseguras para viagem, pois havia muitos bandidos e

56 A respeito da profetisa Débora como o agente de Yahweh no chamado de Baraque, ver


em James S. Ackerman, "Prophecy and Warfare in Early Israel: A Study of the Deborah/
Bark Story," BASOR 220 (1975): 5-14.
- Visto que esse ataque no Quisom não está registrado em Juízes 4, G. W. Ahlstrõm escre­
veu uma obra afirmando ser a referência ao ribeiro no capítulo 5 puramente mito-poé­
tica, não possuindo qualquer valor histórico. Como "prova" então cita o papel do mar
de Juncos na história do êxodo ("Judges 5.20f. and History," JNES 36 [1977]: 287-88).
Esta opinião, que nega a possibilidade da poesia bíblica ser historiográfica, não possui
qualquer base.
55 Veja o mapa 16 em Aharoni, Land ofthe Bible, p. 222.
^ De Vaux, Early EEstory, pp. 537-38.
' Para análise literária e histórico-tradicional deste importante poema, ver David Noel
Freedman, "Early Israelite History in the Light of Early Israelite Poetry," em Unity and
Diversity, editado por Hans Goedicke e J.J. Roberts (Baltimore: Johns Hopkins University
Press, 1975), pp. 3-35; Richard D. Patterson, "The Song of Deborah," em Tradition and
Testament: Essays in Honor of Charles Lee Feinberg, editado por John S. Feinberg e Paul D.
Feinberg (Chicago: Moody, 1981), pp. 123-60.
17 0 H istória de I sraei. no A ntigo T estamento

salteadores. Essas condições caóticas existiam porque Israel tinha adota­


do novos deuses e estava, portanto, experimentando o juízo divino. Então
Deus levantou Débora, que arregimentou homens dentre todas as tribos e
alcançou uma poderosa vitória no Quisom e em Zaananin.
Mas o poema também revela alguns aspectos da natureza provincial
da opressão e a falta de unidade entre as tribos. Débora parece ter sido
juíza de todo o Israel, mas não conseguiu comandar uma frente unida
contra os cananeus no norte. Ela menciona a participação de certos
efraimitas "amalequitas", Benjamim, Maquir, Zebulom, Issacar e Naftali.
Rúben apenas deliberou a participação; Gileade (Gade) nem mesmo fez
isto; Dã "se deteve em navios", que pode ser uma forma proverbial de
descrever a covardia, e Aser permaneceu em sua terra. E notável a ausên­
cia de Judá e Simeão na lista. Isto não significa, contrariando muitos críti­
cos da tradição,61 que as duas tribos não tenham se envolvido na confede­
ração israelita, mas apenas que os fatores distância e rivalidade regional já
começavam a minar a nação.62 Naquela época Judá já estava sentindo seu
isolamento, e as tribos do leste sem dúvida começavam a tomar seu pró­
prio caminho.

Gideão

Após o triunfo de Débora, a terra descansou por quarenta anos. Isto


precisa incluir pelo menos a região central de Israel, pois a próxima opres­
são está concentrada nesta área. Os quarenta anos seriam os anos de 1230
a 1190, caso a proposta de Yigael Yadin, segundo a qual a destruição de
Hazor deu-se no ano 1230, seja aceita. A servidão sob os midianitas apa­
rentemente ocorreu no período de 1190 a 1180, e foi particularmente vio­
lenta, conforme registra a história. Casas e cidades foram totalmente de­
vastadas, de modo que covas e cavernas foram necessárias para abrigar os
filhos de Israel (Jz 6.2). Todos os rebanhos e plantações eram destruídos, e
a terra experimentou grande destruição.
A extensão do massacre foi grave, alcançando desde o vale do Jordão
até o sudoeste em Gaza, mas a narrativa não indica que tenha atingido

61 Por exemplo, A.D.H. Mayes, "The Period of the Judges and the Rise of the Monarchy,"
em Israelite and Judaean History, editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller
(Philadelphia: Westminster, 1977), p. 310; Freedman, "Early Israelite History," em Unity
and Diversity, p. 15.
62 Aharoni, "Settlement of Canaan," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 109; ver
também em Carol L. Meyers, "Of Seasons and Soldiers: A Topological Apprisal of the
Premonarchic Tribes of Galilee," BASOR 252 (1983): 56,57.
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 171

todo o território.63 É importante notar isso, porque freqüentemente argu­


mentam que os midianitas não poderiam ser populosos ou poderosos o
suficiente para devastar todo o Israel. Além de o próprio registro não afir­
mar que Midiã assolou toda a nação, é impossível afirmar qualquer coisa
acerca do tamanho ou da força de Midiã, visto que o Antigo Testamento
não traz informação a esse respeito. O historiador, na verdade, enfatiza
que os midianitas estavam acompanhados pelos amalequitas e por outras
hordas do oriente, e "vinham como gafanhotos, em tanta multidão que
não se podiam contar" (Jz 6.5). Mesmo considerando a descrição como
uma hipérbole, está bem claro que os midianitas eram inimigos bastante
numerosos (cf. Jz 8.10), especialmente se observados à luz da falta de união
entre as tribos de Israel e da falta de força política e liderança militar.
Com infinita paciência, Yahweh levantou um campeão para livrar seu povo,
quando este clamou por seu nome (Jz 6.7). Agora era Gideão, filho de Joás, o
abiesrita, que morava na cidade de Ofra, em Manassés (talvez a moderna
'Affuleh na planície de Jezreel).64 A existência de assentamentos israelitas em
territórios anteriormente dominados pelos cananeus atesta a eficácia da con­
quista sob a liderança da juíza Débora quarenta anos antes. Como havia feito
aos outros, Yahweh manifestou-se como o Anjo do Senhor. Inicialmente,
Gideão resistiu ao chamado de Yahweh, argumentando que Ele havia aban­
donado seu povo nas mãos dos midianitas, e que ele, Gideão, dificilmente
estava qualificado para conduzir o povo, pois vinha de família humilde.
Entretanto, seu protesto foi silenciado quando Yahweh miraculosamente
enviou fogo do céu e consumiu totalmente o sacrifício que Gideão havia
preparado. Naquela mesma noite Gideão desmantelou o altar de Baal e o
poste de Aserá que seu pai havia erguido, construindo no local um altar
em honra a Yahweh. Esta atitude ocasionou a fúria de toda aquela comu­
nidade apóstata e, não fosse a intercessão de seu pai, teria ele morrido nas
mãos dos desobedientes. Se Baal realmente é deus, disse Joás, ele mesmo
se defenda contra o sacrilégio de Gideão.
Os midianitas e seus aliados reuniram-se por uma grande extensão, e
acamparam-se na planície de Jezreel para confrontar Israel. Depois de con­
seguir o apoio de seu próprio clã, Gideão convocou todas as famílias da
tribo de Manassés, Aser, Zebulom e Naftali, preparando-os para a bata­
lha. Essa lista confirma a tese de que os inimigos de Israel naquele período
atacavam apenas em áreas limitadas - nesse caso, em Jezreel e na Galiléia
- e também os juízes eram líderes apenas nestas áreas.

Malamat, "Period of the Judges," em World History ofthe Jewish People, vol. 3, p. 143.
~4 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 263.
172 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Gideão, após certificar-se de que a presença de Deus o acompanhava


(por meio de sinais envolvendo um velo de lã em um terreno), estabeleceu
sua posição na fonte de Harode, situada ao sul do monte Moré, no acam­
pamento dos midianitas. Lá Yahweh ordenou a Gideão que reduzisse o
seu exército; assim, quando a batalha estivesse ganha, seria evidente para
todos que Yahweh, não Israel, era o vencedor. Naquela noite, mediante
uma estratégia que surpreenderia o inimigo - várias trombetas tocadas e
diversos jarros quebrados - Gideão obteve grande vitória sobre seus ini­
migos com apenas trezentos soldados. Em total pânico e desespero,
midianitas lançaram-se uns sobres os outros; depois de muitos serem mor­
tos nesse tumulto, outros fugiram para o leste em direção aos desertos.
Gideão perseguiu-os até chegarem a Beth Shittah (um local até hoje desco­
nhecido), no caminho para Zererah (Zaretã, a moderna Tel Umm Hamad),65
que se situa no Jaboque oriental do Jordão. A localização aproximada de
Beth Shittah pode ser determinada pela sua associação com Abel-Meolá
(Khirbet Tel el-Hilu), situada pouco ao oeste do Jordão, do outro lado de
Tabate (Ras Abu Tabat), e a noroeste de Zaretã.66
Para evitar a fuga de dois líderes midianitas, Orebe e Zeebe, através do
Jordão, Gideão mandou um recado aos efraimitas para que guardassem a
todos os vaus do Jordão ao sul, até Bete Barah, possivelmente próxima à
entrada do Vadi Far'a, passando pelo Jordão através do Jaboque. Portan­
to, os efraimitas se envolveram no conflito porque as rotas de escape dos
midianitas passavam dentro de seu território. A estratégia foi bem-sucedi­
da, e os efraimitas deram a Gideão as cabeças dos dois comandantes como
prova. Aproveitaram, entretanto, para reclamar o motivo de não haverem
sido incluídos no exército, mas Gideão aplacou-lhes a ira convencendo-os
de que a glória maior da guerra ficara com eles, pois haviam matado os
líderes dos midianitas.
O próprio Gideão cruzou o Jordão em busca de dois outros líderes
midianitas: Zeba e Zalmuna. A princípio, chegou a Suçote (Tel Deir 'Alla)
na parte mais baixa do vale do Jordão, a menos de oito quilômetros ao
leste do Jordão. Lá ele pediu alimento para sua tropa faminta, mas o
povo de Suçote negou-lhe, baseando-se em que Gideão ainda não havia
derrotado o inimigo e por isso não merecia apoio. Mais tarde reconhece­
riam a liderança de Gideão quando este voltasse com a cabeça dos che­
fes midianitas. Os residentes de Peniel (Tulul adh-Dhahab),67 a 11 quilô­

65 Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford University
Press, 1984), p. 143.
66 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 284, n. 222.
67 Oxford Bible Atlas, p. 137.
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 173

metros acima do Jaboque, fizeram-lhe o mesmo. Em razão disso Gideão


ameaçou ambas as cidades com punições quando ele retornasse de sua
perseguição.
O que é notável na narrativa dos ataques contra a Transjordânia é o
profundo sentimento de regionalismo desenvolvido em Israel, em quase
150 anos; um espírito que refletia um rompimento da irmandade ou da
coesão entre as tribos. Os homens de Suxote e Peniel eram afinal israelitas,
particularmente da tribo de Gade. A resistência contra Gideão serve pára
ilustrar, mais claramente, a preocupação outrora manifestada por Moisés
e Josué a respeito das tribos estabelecidas ao leste do Jordão (Nm 32.6­
15,20-27; Js 22.13-20). O rio não apenas era uma fronteira física, mas tam­
bém criara uma barreira psicológica e filosófica. As sementes da desinte­
gração israelita começavam a germinar, e não demoraria muito até que as
tribos da Transjordânia se afastassem definitivamente do restante da con­
federação.
Gideão passou adiante dos midianitas em Carcor (Qarqar), entrando
pelo deserto siro-arábico, a mais de 96 quilômetros ao leste do mar Morto.
A despeito do grande número de soldados que compunha o exército ad­
versário (quinze mil midianitas contra trezentos israelitas) Gideão preva­
leceu, espalhando os midianitas e capturarando Zeba e Zalmuna. Retornou
triunfantemente a Peniel, quebrou sua cidadela e feriu de morte todos os
seus habitantes. Então executou os dois reis midianitas como vingança
pelos anos de terror e morticínio infligidos sobre o povo de Manassés.
Quando por fim Gideão chegou à sua cidade natal, Ofra, o povo já o
queria constituir rei, sendo este o primeiro registro de tal sentimento. Tor­
nara-se claro que somente um governo central poderia garantir segurança
e estabilidade. Contudo, Gideão rejeitou a proposta, pois isto violava a
essência do governo teocrático - a eleição divina pela liderança não here­
ditária. Então ele permitiu que uma estola de ouro fosse feita e a pôs em
Ofra, talvez um tipo de paládio ou "manto sagrado",68 mas isto se tornou
em um objeto de adoração que contaminaria o que Gideão havia alcança­
do em favor de Jeová.

O reinado malogrado de Abimeleque

A derrota dos midianitas introduziu quarenta anos de paz, estenden­


do-se de 1180 a 1140. Então, após a morte de Gideão, Israel afastou-se de
Yahweh. A região central da nação passou a adorar no mínimo a divinda-

- Boling, Judges, p. 161.


174 H istória de I srael no A ntigo T estamento

de pagã de Siquém, Baal-Berite. Sem dúvida isto aconteceu porque


Abimeleque (filho de Gideão com uma concubina siquemita) atraiu al­
guns partidários oriundos de Siquém, conseguindo integrar o culto pagão
que lá se desenvolvia com seus próprios interesses monárquicos.
Havia muito tempo que Siquém estava distante da presença de Yahweh.
Neste lugar Abraão construiu o seu primeiro altar, Jacó adquiriu uma pro­
priedade e cavou um poço, José foi enterrado, e Josué conduziu a nação a
uma renovação da aliança. Entretanto, o santuário central fora estabelecido
em Siló, e parece que Siquém foi tomada por elementos anti-javistas, que se
apegaram ao seus velhos deuses estabelecendo um centro de culto a Baal.69
O verdadeiro nome de Baal naquele lugar, Baal-Berite ("Senhor da Alian­
ça"), provavelmente remonta às antigas tradições da aliança feita com
Abraão, continuando até Josué. De acordo com a prática comum, o ato de
fazer aliança com Yahweh foi simplesmente transferido a Baal, até que este,
não Yahweh, foi visto como aquele que fez de Siquém um lugar santo.70
Abimeleque tomou vantagem dessa anti-teocracia e, como filho do he­
rói popular Gideão e a concubina siquemita, atraiu o povo de Siquém para
sua causa política. Afinal, o povo já havia pedido que Gideão fosse o seu
rei. Ele havia declinado a proposta, mas talvez aceitasse seu filho como
seu soberano. Os únicos obstáculos eram os outros filhos de Gideão, então
Abimeleque alugou assassinos para, juntamente com ele, ir à cidade de
Ofra matar seus irmãos. Assim, em Siquém, Abimeleque foi feito rei.
Todavia um dos filhos de Gideão conseguiu escapar àquela chacina. Jotão
predisse que o reinado de Abimeleque não duraria muito tempo, e de fato
dentro de três anos o povo de Siquém voltou-se contra ele. Depois de uma
série de conspirações, Abimeleque achou por bem atacar e destruir a cidade
de Siquém.71 Ele então foi a Tebez (Tubas), cerca de 14 quilômetros ao norte
de Siquém, mas quando tentava incendiar a cidadela, foi morto por uma

69 Ronald E. Clements, "Baal-Berith of Shechem," fSS 13 (1968): 31-32.


70 Essa interpretação opõe-se àquela apresentada pela maioria dos estudiosos, que crêem
que o local foi originalmente dedicado ao culto cananeu, e que mais tarde foi anexado
pelos israelitas e dedicado à adoração de Yahweh. Ver em Martin Noth, The Histoty of
Israel, 2a edição (New York: Harper and Row, 1960), pp. 98-99; G. Ernest Wright,
"Deuteronomy," em Interpreter's Bible, editado por George A. Buttrick (New York:
Abingdon, 1953), vol. 2, p. 326.
71 Bernhard W. Anderson data a destruição de Siquém em 1100 a.C., não divergindo da
cronologia aqui apresentada, a qual determina o período de paz depois da derrota dos
midianitas em 1180 - 1140. Parece que Gideão morreu alguns anos após esse período
pacífico chegar ao fim (Jz 8.28,32,33), talvez em 1120 ("The Place of Shechem in the
Bible," BA 20 [1975]: 16).
£>--* dos J uízes : A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 175

mulher que lançou do telhado uma pedra de moinho sobre sua cabeça. Por­
tanto, a mais remota experiência monárquica de Israel foi abortada.
A lista de lugares na história de Abimeleque deixa claro que seu reina­
do foi limitado não somente nos anos, mas também na extensão geográfi­
ca. Toda sua atividade esteve confinada à região de Manassés; não há qual­
quer sinal de que ele tenha atraído a atenção das demais tribos. Precisa­
mente, Israel como um todo não estava preparado para a monarquia, ou
pelo menos não a que Abimeleque estava disposto a oferecer.

Juízes menores

O reinado de Abimeleque pode ter sido a ocasião para o governo de


Tola, um descendente da tribo de Issacar, a tribo irmã de Manassés, que
situava-se bem ao norte. E fácil imaginar a turbulência criada pelas idéias
mal concebidas de Abimeleque em Manassés. O governo de Tola não en­
volvia um inimigo estrangeiro, mas foi designado para restaurar a paz
dentro de Manassés. Ele vivia em Samir (Samaria?)72 e governou por cerca
de vinte anos. Com base no período de 1180 a 1140 para o período de paz
ocorrido após a derrota dos midianitas (segundo a nossa cronologia),
Gideão pode ter morrido em 1120. Nesse caso Abimeleque reinou de 1120
a 1117, e Tola julgou Israel de 1117 a 1094. Embora não seja possível uma
precisão, como tem sido repetido, as datas apresentadas de forma alguma
são incompatíveis com o que se conhece acerca desse período.
Provavelmente paralelo ou um pouco depois do governo de Tola, le­
vantou-se Jair de Gileade. Esse cidadão abastado de Camon (Qamm), si­
tuada cerca de 19 quilômetros a sudeste do mar de Quinerete, julgou a
Israel (i.e., Gileade) por vinte e dois anos. Admitindo que seu governo
teve início logo que Tola começou a julgar Israel, pode-se datá-lo perto de
1115 - 1093. Mas se for entendido que o governo de Jair iniciou após a
morte de Tola, a data deve avançar para 1094 - 1072. Em qualquer caso é
possível harmonizar o governo de Jair com o governo de Jefté, pois embo­
ra as datas de Jefté sejam quase certo 1106 - 1100, sua administração apa­
rentemente centrou-se em Mispa (JaTad),73 no mínimo 64 quilômetros ao
sul de Camon. Jair limitou-se às cidades de Havote Jair, um distrito mais
ao sul e ao oriente do mar de Quinerete. ’

~ Oxford Bible Atlas, p. 140.


Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmilan,
1968), p. 181; ver também o mapa 78. Martin Noth, contudo, localiza a cidade de Mispa
em el-Mishrefe, dois quilômetros ao norte de Jakad; ver Malamat, "Period of the Judges,"
em World History ofthe Jewísh People, vol. 3, p. 322, n. 78.
176 H istória de I srael no A ntic, o T estamento

Após a ameaça dos midianitas e a curta monarquia imposta por


Abimeleque, Israel mais uma vez deu as costas para Yahweh, e desta vez
foi uma apostasia em larga escala. Começaram a adorar os Baalins e
Astarotes como já faziam de costume, mas agora juntaram os deuses de
Arã, Sidom, Moabe, Amom e Filístia. Conseqüentemente, Yahweh "ven­
deu-os em mão dos filisteus, e em mão dos filhos de Amom... e oprimiram
e vexaram aos filhos de Israel" (Jz 10.7,8). Essa declaração significa que
filisteus e amonitas oprimiram o povo simultaneamente (ver pp. 151,152).
O historiador procede narrando a opressão dos amonitas (Jz 10.8b - 12.7),
e em seguida a dos filisteus (13.1 - 16.31). Este fato é muito importante
para a reconstrução da cronologia desse período.

Jefté

Os amonitas referidos em Juízes 10.8b oprimiram os israelitas da


Transjordânia por dezoito anos. Tentaram inclusive atravessar o Jordão
para também devastarem as tribos de Judá, Benjamim e Efraim. Finalmente,
os israelitas juntaram-se em Mispa e iniciaram uma busca frenética por
um líder capaz de livrá-los. Jefté, filho de Gileade, havia sido forçado ao
exílio em Tobe (et-Taiyibeh), no interior do deserto de Fíauran, onde rapi­
damente ajuntou um grupo marginal. A opressão amonita teve início al­
guns dias depois de seu exílio. Os anciãos de Gileade, que conheciam a
sua força e as suas virtudes de liderança, buscaram-no e o instituíram como
seu comandante. A primeira ação de Jefté foi tentar um entendimento di­
plomático com os amonitas. O inimigo reclamava que as tribos orientais
de Israel estavam ocupando ilegalmente seu território por cerca de trezen­
tos anos. Jefté enviou uma delegação ao rei amonita e lembrou-lhe que
Israel não tinha se apoderado de nenhuma terra dos amonitas na época da
conquista. De fato, o que Amom agora reivindicava como seu território
pertencia naquela época a Siom, rei dos amorreus. Foi a ele que Israel
desapossou, e não aos amonitas. Caso eles realmehte tivessem o direito a
alguma reivindicação, esta não poderia ser legalmente aceita naquele
momento nem no anterior.74 Além disso, Jefté perguntou por que motivo
Amom reclamava os territórios naquele momento, após três séculos da
derrota de Siom (Jz 11.26).

74 Parece que, de fato, a reivindicação dos amonitas era verdadeira e que eles já tinham
sido senhores daquela terra antes do tempo de Seon (Nm 21.26). Ver em Eugene H.
Merrill, "Numbers," em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F. Walvoord
e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, pp. 240-41.
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e .4A utoridade H umana 177

Conforme mencionado anteriormente (pp. 151,152), o número trezen­


tos é importante para a definição não somente das datas do êxodo e da
conquista, mas também dos anos de opressão causados pelos filisteus e
amonitas. A conquista da Transjordânia ocorreu em 1406, exatamente qua­
renta anos depois do êxodo. Portanto, a comunicação entre Jefté e os
amonitas deve ser datada perto de 1106. Não há de fato razão para enten­
der os trezentos anos de outra maneira que não literal. É certo que a vitó­
ria de Jefté sobre os amonitas (que ocorreu logo após Amom não ter dado
ouvidos a Jefté) constituiu o fim de suas ameaças. Uma vez que essa opres­
são durara dezoito anos, seu início pode fixar-se em 1124. Nesse tempo, as
terras em ambos os lados do Jordão desfrutavam um período de paz gra­
ças à eficiente expulsão dos midianitas promovida por Gideão, fato ocor­
rido décadas antes. É possível que as reivindicações dos filhos de Amom
tenham surgido imediatamente após a morte de Gideão, já que não havia
mais motivo para temer a nação de Israel.
Após os amonitas rejeitarem os termos de paz propostos por Jefté, este
os atacou em uma frente desde Aroer (localização desconhecida), situada
em algum ponto ao leste de Rabá (a moderna Amman) até Minnith (loca­
lização desconhecida), também situada em algum lugar ao leste do Jaboque,
chegando a Abel-Keramin (Na'ür?),75 poucos quilômetros a noroeste de
Hesbom. Voltou Jefté para Mispa, onde cumpriu os votos que havia feito
anteriormente solicitando o favor divino.
~ Evidências acerca da desunião contínua e latente hostilidade enjre as
tribos podem ser vistas na reação dos efraimitas ao sucesso de Jefté-^Eles
vinham sofrendo nas mãos dos amonitas e agora cruzavam o Jordão para
encontrar-se com Jefté, a fim de repreendê-lo por não terem sido convoca­
dos para a batalha. Sem pensar nas conseqüências e mantendo o espírito
anarquista da época, os efraimitas ameaçaram incendiar a casa de Jefté.
Então Jefté protestou dizendo que na verdade os havia convocado, mas
não fora atendido (Jz 12.2). Os efraimitas só puderam dizer que os gileaditas
eram renegados por Efraim e Manassés, e assim desleais com Israel.76 Tudo
isto, é claro, refletia problemas originados pela solicitação da Transjordânia
feita pelas tribos de Rúben, Gade e meia-tribo de Manassés oriental. Mais

~ Aharoni, Land of the Bible, p. 429.


Aharoni, "Settlement in Canaan," em World History of the Jewish People, vol. 3, pp. 123­
24. Existe uma forte indicação de que Efraim havia reivindicado uma parte bastante
considerável da Transjordânia, pois há referências acerca da floresta de Efraim (2 Sm
18.6; cí. 17.24). Ver em Malamat, "Period of the Judges," em World History of the Jewish
People, vol. 3, p. 159.
17 8 H istória de I srael a 'o A ntigo T estamento

evidências da alienação das tribos ocidentais e orientais podem ser vistas


na atitude de Jefté de proibir que os efraimitas retornassem ao lado oci­
dental do Jordão depois de pelejarem contra os gileaditas. Ele, inclusive,
posicionou seus homens nos vaus, e qualquer sobrevivente que tentasse
atravessar para o oeste do Jordão, era obrigado a pronunciar "Chibolete"
(,sibbõlet). Caso dissesse "Sibolete", uma peculiaridade fonética do oeste,
automaticamente era identificado como um efraimita, o que culminava
em sua morte.77 Aqui está uma prova de que a distinção lingüística já co­
meçava a marcar a divisão da nação.78
Jefté viveu por mais sessenta anos após a expulsão dos amonitas (1106 -
1100), e foi sucedido três juízes locais. Ibsã, de Belém (provavelmente em
Judá) serviu por sete anos (cerca de 1100 - 1093); Elom, de Aijalom em
Zebulom, julgou por dez anos (cerca de 1093 -1083); e, por último, Abdom,
de Piraton (Far'ata) em Efraim, julgou por oito anos (cerca de 1083 - 1075).
Estes governos podem ter sido simultâneos, totalmente ou em parte, mas
em todo caso não cobriram as áreas afligidas pelos amonitas e pelos filisteus.

Sansão

A opressão causada pelos filisteus iniciou no mesmo ano em que Israel


foi oprimido pelos amonitas (1124), mas é descrita em detalhes somente
após a conclusão do relato de Jefté e os amonitas (p. 151). Este aspecto não
é invalidado pela versão tradicional de Juízes 13.1a - "tornaram a fazer o
que parecia mal aos olhos do Senhor" - pois a palavra "tornaram" não
aparece desta forma no texto hebraico original. Literalmente, o original
quer dizer: "E os israelitas acrescentaram mais à sua maldade," uma ex­
pressão que pode significar "fazer novamente", mas não necessariamen­
te. O verbo yãsap aqui decerto significa "continuar a fazer", mas apenas
acompanhado da partícula ‘ôd significaria "fazer novamente" (Jz 11.14).79
Assim, Israel continuou a fazer males, conforme o narrador registrou em
Juízes 10.6, quando pela primeira vez introduziu a opressão dos filisteus.
Juízes 13.1a serve como uma ponte literária que conduz à primeira refe­
rência, e não pretende sugerir uma seqüência Jefté-Sansão.

77 Ver Ephraim A. Speiser, "The Shibboleth Incident," BASOR 85 (1942): 10-13. Eduard Y.
Kutscher, A History o f the Hebrew Language (Jerusalem: Magnes, 1982), pp. 14-15.
78 Para outras evidências a respeito dessa divisão, ver Malamat, "Period of the Judges,"
em World History of the Jewish People, vol. 3, pp. 160-61, onde o autor declara que Efraim
sempre foi o principal instigador. Ver também Daniel I. Block, "The Role of Language in
Ancient Israelite Perceptions of National Identity," JBL 103 (1984): 339, n. 75.
79 Boling, Judges, p. 85. /
A E m dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 179

A ameaça dos filisteus afetou a tribo de Dã em particular, embora


Efraim, Benjamim e Judá também tenham sentido seu impacto. Por lon­
gos quarenta anos Israel penou sob a incansável e brutal pressão dos
filisteus até que Yahweh levantou Sansão e mais tarde Samuel para livrá-
los do jugo inimigo. A opressão iniciou em 1124 e continuou até 1084. O
governo de Sansão coincidiu com a opressão (Jz 15.20) mas não a ultra­
passou (1 Sm 7.13,14). Visto que sua liderança se estendeu por vinte anos
(Jz 16.31), ele deve ter iniciado o ministério mais ou menos na metade
dos quarenta anos, em 1104. Não devia ter mais de vinte anos de idade
na ocasião, pois seu nascimento ocorrera logo após o início da opressão
filisteia (Jz 13.5). Para resumir, a opressão durou de 1124 até 1084, Sansão
nasceu por volta de 1123, iniciou seu governo em 1104, e morreu no má­
ximo em 1084.
Nascido de pais piedosos, naturais da tribo de Dã em Zorá (Sar'ah),
situada no vale de Soreque, Sansão foi desde seu nascimento um nazireu
poderosamente revestido pelo Espírito de Deus.80 Que isto não implica
necessariamente em espiritualidade pessoal está claro pelo curso da vida
deste jovem. Ele serve como um testemunho eloqüente da natureza dos
juízes. Não era um ofício para o qual alguém se classificava por meio de
dons naturais, integridade pessoal ou herança, mas apenas pela soberana
atuação de Deus. Os vários romances de Sansão com mulheres filistéias
são suficientes para mostrar que seu sucesso em favor de Israel não era
devido ao seu próprio caráter, mas ao de Deus, que vinha sobre ele e o
fortalecia para ser o salvador de seu povo.
*Q) Sansão apaixonou-se por uma mulher filistéia natural de Timná (Tel
Batash), uma cidade situada na fronteira entre Israel e os filisteus. Na festa
de casamento, Sansão apostou trinta mudas de vestidos que seus compa­
nheiros não seriam capazes de decifrar um enigma. Após descobrir que
fora enganado, partiu para a cidade filistéia de Ascalom, matou trinta ho­
mens e retirou deles as vestes festivas para pagar sua aposta. Isto marcou
seu primeiro ataque contra os filisteus. Em seguida ele foi embora. Quan­
do Sansão retornou a Timná, descobriu que sua mulher havia sido dada a
outro homem. Irado, pegou trezentas raposas e as amarrou umas às ou­
tras pela cauda e, após atear-lhes fogo, enviou os animais direto às searas
dos filisteus, queimando totalmente suas colheitas. Quando, em retalia­
ção, os filisteus mataram sua mulher e seu sogro, Sansão matou um gran­
de número de filisteus, dando-lhes o troco. Então os filisteus armaram-se

Para discussão acerca da natureza e função dos nazireus, ver Roland de Vaux, Ancient
Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 2 pp. 466-67.
180 H istória üe I srael no A ntigo T estamento

contra Judá, cujos habitantes ficaram aterrorizados, visto que por seu pró­
prio consentimento viviam sob a dominação dos filisteus (Jz 15.11). Entre­
garam, portanto, Sansão aos filisteus, mas lá, em Ramate-Leí (local desco­
nhecido), Sansão feriu mil de seus inimigos.
J A segunda mulher na vida de Sansão foi uma prostituta de Gaza. En­
quanto a visitava, Sansão foi descoberto por alguns filisteus que decidi­
ram vigiá-lo toda a noite, armando-lhe uma emboscada ao amanhecer.
Porém, à meia-noite, ele levantou-se, tomou o portão da cidade, e o carre­
gou até Hebrom, a quarenta milhas de distância.
Finalmente, Sansão cedeu aos encantos de Dalila, que o traiu revelan­
do aos filisteus que a força de Sansão residia nos cabelos não cortados.
Ironicamente, ele foi levado a Gaza e forçado a mover um grande moinho.
A cidade de onde ele, em toda a sua força, retirara o portão, agora havia se
constituído em sua própria prisão. No devido tempo Sansão foi trazido ao
templo de Dagom, a principal divindade dos filisteus. Seus cabelos - a
marca de seu nazireado e o poder de Deus sobre sua vida - já haviam
crescido novamente e, em uma última tentativa poderosa, derrubou o tem­
plo de Dagon sobre si e os filisteus, matando em sua morte mais inimigos
do que havia matado em vida.
Os críticos recusam-se a ver a narrativa de Sansão como história real
em virtude dos feitos sobrenaturais do herói. Preferem descrevê-las como
lenda ou saga, cujo propósito era enfatizar a idéia de que Yahweh vence­
ra seus inimigos através de um homem revestido de seu Espírito, e não
mediante o uso de um exército de soldados.81 O problema com esse
cepticismo é que ele interpreta erroneamente a natureza das sagas como
um gênero literário82 e, além disso, baseia-se em uma afirmação não crí­
tica de que tais feitos heróicos por si só não poderiam acontecer, e que de
fato não ocorreram. Mas esse tipo de apelação não encontra lugar de
importância na história escrita. Se alguém admite não existir nada afora
o registro bíblico que o contradiga, e que a história bíblica é sui generis,
ou seja, uma história especial e única, então não há um bom motivo para
se rejeitar as histórias de Sansão. Uniformitarismo histórico não deve
pôr uma camisa de força nos fatos ou predeterminar o que aconteceu no
passado.

81 Para conhecer mais este ponto de vista, ver James L. Crenshaw, Samson (Atlanta: John
Knox, 1978), pp. 19-26.
82 Para uma excelente discussão a respeito de saga, especialmente da imprecisão do termo
como uma tradução do alemão Sage, ver John J. Scullion, "Marchen, Sage, Legende: Towards
a Clarification of Some Literary Terms Used by Old Testament Scholars," VT 34 (1984):
324-31.
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança , A narquia e a A utoridade H umana 181

Samuel

Os últimos cinco capítulos de Juízes formam, juntam ente com o


li\rro de Rute, o que poderia ser chamado de trilogia belem ita de his­
tórias, cujo cenário é a era dos juízes. Antes deste fator ser exam ina­
do, é preciso atentar para a narrativa da opressão dos filisteus e todo
o período dos juízes. Isto requer uma atenção aos primeiros capítulos
de 1 Samuel.
Esse livro inicia com a história do nascimento de Samuel, em resposta à
oração de Ana, em Ramatain-Zofim (Rentis), localizada em Efraim, a ape­
nas oito quilômetros a noroeste de Timná Sera - local onde sepultaram o
corpo de Josué, e aproximadamente 29 quilômetros a oeste do tabernáculo
em Siló. Samuel foi dedicado por seus pais para ser um nazireu e servir ao
Senhor em Siló. Embora não fosse um sacerdote de linhagem, era um levi­
ta (1 Cr 6.22-28), um descendente de Coate, e assim poderia ministrar no
tabernáculo e em outros altares locais.
Enquanto Samuel era jovem em Siló, o sumo sacerdote era Eli, um des­
cendente de Itamar, como sugerido pelo fato de mais tarde o sacerdócio
da linhagem de Eli ter sido tomado e entregue a Zadoque, um descenden­
te de Eleazar (1 Rs 2.35; cf. Nm 3.4; 1 Cr 6.8). Embora não haja indícios de
apostasia na vida de Eli, seus filhos efetivamente transformaram a casa de
Yahweh em Siló num santuário cananeu, com toda a corrupção e imorali­
dade associadas ao culto a Baal (1 Sm 2.12-17, 22-25). Foi nesse ambiente
que o jovem Samuel foi chamado por Yahweh e designado para ser profe­
ta e juiz. Também em razão dessas circunstâncias o Senhor trouxe os
filisteus para servirem como instrumento de sua correção.
A presença dos filisteus nos primeiros anos do juizado de Samuel
deve ser a^spciada aos quarenta anos de opressão mencionadas em
Juízes 13.T. Este fato é evidente porque nenhuma cronologia permite
que Samuel tenha sido jovem antes de 1124 (ver pp. 152,153) - o início
da única opressão filistéia conhecida no décimo segundo século - e
também porque está claramente registrado que foi o próprio Samuel
quem finalm ente liquidou os filisteus e permitiu que Israel obtivesse
novamente seus antigos territórios (1 Sm 7.13,14). Esta tarefa realiza­
da por Samuel deve ser datada por volta de 1084, pois a opressão dos
filisteus durou quarenta anos, de 1124 a 1084. A arca da aliança havia
perm anecido em Quiriate-Jearim por vinte anos na época em que
Samuel derrotou os filisteus (1 Sm 7.2). Uma vez que a arca esteve
nessa cidade desde a queda de Siló, com exceção dos sete meses que
182 H istória de I srael no A ntigo T estamento

passou na Filístia (1 Sm 6.1), conclui-se que a data da destruição de


Siló seja por volta de 1104.83
Vejamos mais detalhadamente os eventos ocorridos em 1104. Õ histori­
ador relata que os filisteus tinham se reunido em Afeque, obviamente com
a intenção de batalhar contra os israelitas que estavam acampados em
Ebenézer. Esta Afeque é Râs el-'Ain, situada cerca de 40 quilômetros a
oeste de Siló. Ebenézer ('Izbet Sartah?)84 achava-se a apenas três quilôme­
tros a sudeste de Afeque.85 Quando a batalha travou-se, Israel sofreu uma
terrível derrota. Supersticiosamente, atribuíram o fracasso à ausência da
arca da aliança na batalha. A presença de Yahweh como o Guerreiro de
Israel que conduzia seu exército na guerra santa era simbolizada pela arca.
Mas a guerra santa era sancionada por Yahweh - a mera presença da arca
não era garantia de sua bênção. Apesar disso, a arca foi trazida desde Siló
e, embora tenha aterrorizado os filisteus, que também viam-na como uma
função automática, estes batalharam contra Israel e alcançaram um mag­
nífico triunfo. Os filhos de Eli, Hofni e Finéias, que estavam incumbidos
de guardar a arca, foram mortos e a arca foi levada como um troféu de
guerra. Quando a notícia do desastre chegou a Siló, Eli caiu para trás e
morreu, e a mulher de Finéias deu à luz um filho prematuramente, que foi
chamado de Icabô ("foi-se a glória do Senhor"), uma eloqüente descrição
da perda da arca.
O ataque sobre Israel em Afeque bem pode ter sido uma reação aos
antigos ataques de Sansão contra os filisteus, que começaram mais ou
menos nessa época (1104). Visto que Sansão foi fortalecido miraculosa­
mente pelo Deus de Israel, o que poderia ser melhor do que atacar o
centro religioso israelita em Siló? Entretanto, os filisteus logo aprende­
ram que Yahweh não poderia ser contido dentro de uma caixa, nem seus
poderes eram diminuídos por estar a arca transitando temporariamente

83 Essa data é aproximadamente cinqüenta anos mais antiga do que a usualmente aceita
para a destruição da cidade de Siló; ver, por exemplo, o que diz John Bright em A History
of Israel, 3a edição (Philadelphia: Westminster, 1981), pp. 185-86. Note que o relato bíbli­
co não diz expressamente que Siló fora destruída na época em que a arca foi levada
pelos filisteus. A destruição pode ter ocorrido cinqüenta anos depois de a cidade ter
deixado de ser um centro religioso para Israel. O Salmo 78.60 fala que Jeová abandonou
Siló, um fato confirmado em 1 Samuel 4.11, ao passo que o profeta Jeremias refere-se a
esta destruição (7.12,14; cf. 26.6,9) como conseqüência de sua rejeição como um centro
de adoração a Deus. ,
84 Oxford Bible Atlas, p. 127.
85 Para um excelente gráfico da batalha, ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillian Bible Atlas,
mapa 83, p. 58.
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança , A narquia e 4 A utoridade H umana 183

na Filístia. Como um virtual prisioneiro de guerra no templo de Dagom


em Asdode, Yahweh permaneceu em abjeta humilhação (assim pensa­
vam os filisteus) aos pés da divindade filisteia. Mas, pela manhã, Dagom
estava prostrado diante da arca. Seus assistentes levantaram-no, mas a
cena repetiu-se, e desta vez tinha a cabeça e braços arrancados do lugar.
Em termos bem apropriados, a inigualável invencibilidade de Yahweh
estava sendo afirmada.
Dagom não estava sozinho em sua humilhação, pois uma praga de
^hemorroidas veio sobre todo o povo de Asdode. Ao perceberem que es­
tavam sob o juízo de Yahweh, os líderes decidiram enviar a arca de volta
a uma cidade coirmã chamada Gate. Mas a praga também lá se espa­
lhou; então a arca foi enviada para Ecrom, onde o mesmo aconteceu.
Intensamente frustrados, os príncipes dos filisteus decidiram devolver a
arca para Israel e ofereceram os devidos sacrifícios a Yahweh, a fim de
aplacar-lhe a ira e induzi-lo a interromper a terrível praga. Conduzidos
pelo Senhor, a junta de bois que levava a arca sobre o carro chegou até
Bete-Semes, onde um certo Josué dela tomou conta temporariamente. Lá
os levitas ofereceram a Yahweh um sacrifício de animais. Mas alguns do
povo de Bete-Semes olharam para dentro da arca, um ato que violava a
sua santidade, e por isso muitos morreram. Apavorados, os sobreviven­
tes suplicaram aos moradores de Quiriate-Jearim, distante uns 16 quilô­
metros a nordeste, que guardassem a arca. O porquê dos moradores de
Bete-Semes terem sido mortos por desrespeitarem a arca, enquanto os
filisteus puderam fazer o mesmo com relativa impunidade é bem claro:
as expectativas de Yahweh quanto ao seu povo santo não são as mesmas
para os que não são seus. Ou seja, a arca era santa apenas para o povo
santo.
Durante vinte anos a arca permaneceu em Quiriate-Jearim, na casa de
Abinadabe. Somente após este tempo Samuel exortou o povo a desfazer-
se dos ídolos pagãos, a servir a Yahweh, e preparar-se para expulsar os
filisteus de uma vez por todas. Esse repentino impulso de liderança em
Samuel sugere que ele agora era um homem maduro, e não havia outros
líderes preparados para tal tarefa. Sansão já devia estar morto. Ele morre­
ra enquanto destruía o templo de Dagom em Gaza, no final dos seus vinte
anos de juizado, isto por volta de 1084. Então, vinte anos após os filisteus
terem capturado a arca (em 1104), Samuel assumiu a liderança como juiz e
profeta para pôr fim ao problema causado pelos filisteus. Ajuntou o povo
em Mispa (Tel el-Nasbeh), entre Gibeão e Betei, e ofereceu sacrifícios a
Yahweh, encorajando Israel a enfrentar os filisteus, que já estavam a cami­
nho da batalha. Com a ajuda de Yahweh, Israel derrotou poderosamente o
184 H istória de I srael no A ntigo T estamento

inimigo, expulsando-o de volta a Bete-Car. Este local não pode ser identi­
ficado, mas visto que está associado a Sem (Jeshanah ou el-Burj)86, situada
logo ao sul de Siló, devia localizar-se para o norte. Em todo caso, a batalha
pôs fim à ocupação filistéia em Israel. A opressão de quarenta anos havia
finalmente chegado ao fim. A referência à paz com os amorreus (1 Sm
7.14) significa que a vitória de Samuel sobre os filisteus ocasionou um
período de paz e tranqüilidade entre as populações nativas da região mon­
tanhosa.87
Este feito de Samuel o marcou como juiz, o último de uma longa
sucessão de líderes carismáticos que começara com Otniel. Porém,
mesmo a jurisdição de Samuel era limitada, pois seu circuito ia de Betei
a Gilgal, e desta para Mispa, uma área que não ultrapassava 32 quilô­
metros de extensão. Agora ele estava em constante movimento, mas
periodicamente voltava a Ramá (i.e, Ramataim Zofim), local de sua re­
sidência. A era dos juízes estava abrindo caminho para a monarquia;
dentro de trinta e cinco anos Samuel presidiria a coroação do primeiro
rei em Israel.

A trilo g ia d e B e lé m

Antes de examinar a monarquia de Israel, é preciso atentar para a


chamada trilogia de Belém - as três narrativas cujo cenário descreve o
período dos juízes. São assim designadas porque a cidade de Belém
figura proeminentemente em cada uma delas. De fato, as narrativas
contêm outros temas e motivos em comum.88 Estaremos submetendo
as três histórias a uma análisq detalhada porque representam melhor a
narrativa da história escritaAÈlas dizem respeito a indivíduos em con­
texto mais ou menos particular, cujas identidades e atividades são ape­
sar de tudo inseparáveis, e cj^isivas para a compreensão da monar­
quia davídica que os seguiuVdk.elatos de eventos ocorridos na época
dos juízes, foram eles incluídos no registro sagrado com o propósito de
traçar as origens da dinastia davídica e justificar sua existência em opo­
sição à linhagem de Saul.

86 O texto massorético de 1 Samuel 7.12 diz hassen, mas a leitura preferida, baseada na
Septuaginta, é haysanâ, Jeshanah.
87 R Kyle McCarter, Jr., I Samuel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1980),
p. 147.
88 Ver Eugene H. Merrill, "The Book of Ruth: Narration and Shared Themes," Bib Sac 142
(1985): 130-41.
A E fu dos J uízes : A Violação da A liança , A narquia e 4 A utoridade H umana 185

Mica e o levita

A primeira narrativa descreve a história de Mica e o levita (Jz 17 -1 8 ).89


Parece que um abastado homem de Efraim, chamado Mica construiu uma
casa de ídolos, instituindo seu próprio filho como sacerdote desse santuá­
rio pagão. Isto, segundo descreve o historiador, era característica daque­
les dias, quando "não havia rei em Israel" e "cada qual fazia o que parecia
direito aos seus olhos" (Jz 17.6). Quando um levita de Belém passou pelo
lugar à procura de emprego, Mica o persuadiu a servir como sacerdote em
lugar de seu filho, que não era levita.
Enquanto isso, a tribo de Dã, que não conseguia ocupar todo o territó­
rio herdado, enviou uma comitiva ao norte em busca de outro território.
Pelo caminho, a delegação encontrou-se com o levita, solicitando-lhe in­
clusive um conselho a respeito de seu empreendimento. Satisfeitos, parti­
ram para Lais (Tel el-Qadi), cerca de 19 quilômetros ao norte do lago Hulé,
e perceberam que os habitantes locais viviam vida pacata e desprotegida.
O relatório da delegação encorajou os danitas a partir em massa para Lais.
A caminho de Lais, seiscentos homens de Dã, incumbidos de vencer
aquele povoado pacato, pararam para visitar Mica e insistiram para que o
levita os acompanhasse, juntando-se a eles na condição de sacerdote de
um novo centro religioso que construiriam em Lais. Chegando ao local,
destruíram completamente a cidade e reedificaram-na com o nome de Dã.
Somente neste ponto da narrativa o nome do levita é revelado - não era
outro senão Jônatas, filho de Gérson, neto do próprio Moisés!90 Esta infor­
mação permite que o ambiente histórico seja mais precisamente definido.
Gérson, filho de Moisés, deve ter morrido antes da conquista, como parte
da geração rebelde. Jônatas tinha de estar com vinte anos ou menos em
1444 para que pudesse entrar na terra. Assim é bem provável que estives­
se com cinqüenta e oito anos no início da conquista, sendo portanto cha­
mado de "jovem" em Juízes 17.7. Apesar de ser este um termo impreciso,
sem dúvida não pode ser aplicado a alguém acima de cinqüenta anos. E
mais certo que ele fosse bem mais novo.91 De grande importância também

“ Frank Anthony Spina, "The Dan Story Historically Reconsidered," JSOT 4 (1977): 60-71.
O nun suspensum do Texto Massorético de Juízes 18.30 reflete apenas considerações
apologéticas, e não pode derrubar a forte evidência de manuscritos que lêem "Moisés"
em vez de "Manassés". Ver Moore, Judges, pp. 401-2. —■
Que Jônatas era muito mais novo é sugerido pela evidência de que Gérson nascera de
Moisés e Zípora depois que estes tinham muitos anos de casados: ele fora circuncidado
por sua mãe quando estavam a caminho do Egito, antes do êxodo (Ex 4.24-26). Não
seria impróprio datar o seu nascimento em 1450. Neste caso, ele estaria entre aqueles
18 6 H istória de I srael no A ntigo T estamento

é a referência em Juízes 18.1 ao fato de Dã ainda não haver tomado posse


de sua herança. Por falta de paciência, a tribo decidiu seguir seu próprio
caminho. Deve-se lembrar que o processo de alocação das tribos já havia
terminado dentro de sete anos após o início da conquista (i.e., em 1399 -
ver p. 132). Ajornada de Dã até Lais não pode ter acontecido muito tempo
depois disso.
Os estudiosos geralmente entendem que a migração de Dã foi conse-
qüência de pressões exercidas pelos nativos da região, conforme sugerido
em Juízes 1.34-36. É preciso observar a passagem de Josué 19.47, que rela­
ta que Dã tomou a cidade de Lais (Lesém), após ter sido o seu termo pe­
queno; Dã estava com dificuldades para ocupar seu território herdado.
Em Juízes 18.8-13 esclarece que a tomada de Lais precedeu a ocupação do
território original. A seqüência, então, mostra que uma parte da tribo, im­
paciente por não poder conquistar seu território, moveu-se para o norte
(Lais) por conta própria; os danitas remanescentes ocuparam as cidades
mencionadas em Josué 19.40-46. Destes danitas surgiu Sansão trezentos
anos mais tarde.

O levita e sua concubina

A segunda história da trilogia é acerca de um levita de Efraim que to­


mara como concubina uma donzela natural de Belém (Jz 19-21).92 A cone­
xão Belém-Efraim é novamente posta em evidência; há obviamente uma
deliberada intenção do autor em ambos os episódios. O levita obteve sua
mulher em Belém (para onde ela havia fugido por razão desconhecida) e
retornou a Efraim via Gibeá (Tel el-Füll), de Benjamim, onde encontrou
abrigo e segurança na casa de um ancião. Infelizmente, a mulher foi vista
por homens malignos de Gibeá, que a violentaram por toda uma noite,
deixando-a morta à porta do homem que os hospedara tão gentilmente. O

que obtiveram a graça de entrar em Canaã, já que devia ter menos de vinte anos (1444).
Além disso, em 1399 ele estaria com cerca de cinqüenta anos, e seu filho Jônatas poderia
ser facilmente descrito como um homem jovem. Embora o hebraico na'ar ("homem jo­
vem") possa também referir-se a um assistente ou ministro, em ambos os casos nunca
dá o sentido de um velho ou ancião. Ver Aharoni, "Settlement of Canaan", em World
History ofthe Jezvish People, vol. 3, p. 308, n. 15.
92 A historicidade desse relato é defendido por Malamat, "Period of the Judges," em World
History ofthe Jezvish People, vol. 3, p. 161, que situa o ocorrido entre o juizado de Jefté e o
ataque amonita contra Jabes-Gileade (1 Sm 11). Mesmo que essa data tão recente seja
impossível (ver n. 95), Malamat corretamente chama a atenção para a ligação existente
entre Benjamim e Jabes-Gileade.
\ E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 187

levita então expôs sua triste experiência aos anciãos de todo o Israel, pois
haviam se reunido em Mispa. Então foram à cidade de Betei (Jz 20.18)93,
onde buscaram a direção divina para agir.94
Visto que a concubina era oriunda de Belém, estabeleceu-se que os ho­
mens de Judá seriam os primeiros a atacar Benjamim. Depois de dois dias
de atraso, os israelitas decidiram retirar-se para buscar o favor e a bênção
de Deus através do sumo sacerdote Finéias, neto de Arão.95 No terceiro
dia Israel prevaleceu sobre Benjamim, que quase foi aniquilada. Israel reu­
niu-se outra vez para discutir acerca da quase extinção da tribo. A resolu­
ção foi trazer muitas donzelas de Siló e Jabes Gileade, para servirem como
esposas para cerca de seiscentos benjamitas sobreviventes, preservando
assim a tribo.
A referência a Jabes-Gileade não é sem propósito por parte do historia­
dor. A cidade era de certo modo o lar ancestral de Saul. Também está claro
na narrativa que a mulher do benjamita sobrevivente, ancestral de Saul,
veio ou de Siló ou de Jabes-Gileade. O interesse expressado por Saul na
cidade de Jabes-Gileade parece demonstrar que suas origens remontam
àquele lugar. Saul somente tornou-se rei depois que Jabes-Gileade foi cer­
cada pelos amonitas, e não a destruíram justamente por causa de sua in­
tervenção (1 Sm l l . l - l l ) . 96 Além disso, após a morte de Saul e a vergonha

Tem sido sugerido que bêt-el aqui significa "local de Deus" (i.e., Mispa), e não aquela
cidade com esse nome. Essa sugestão põe em evidência a necessidade de explicar o
surgimento de Betei como um centro de culto, coisa que não tem comprovação neste
período de Israel, exceto nessa narrativa. Portanto, as referências a Betei (Jz 20.18,26;
21.2) devem ser entendidas não como o nome de um lugar, mas como um "lugar santo",
isto é, Mispa (ver Boling, Judges, p. 285). Embora Siló tenha sido o local escolhido para
guardar o tabernáculo e a arca da aliança desde tempos antigos (Js 18.1), já não devia
mais desfrutar do mesmo status pelo tempo da rebelião da tribo de Benjamim, um fato
que está bastante claro tanto pela presença da arca em Mispa (Jz 20.18,23,26-28; 21.1-7)
quanto pelo fato de que, aparentemente, a cidade de Siló já tinha caído em desfavor por
essa época (Jz 21.12,19-23). Porém, alguns anos mais tarde, Siló readquiriu seu status de
honra como o centro de culto da nação, conforme 1 Samuel 3-4.
°4 Para um estudo que discorre acerca da função dessas reuniões, ver Hanoch Reviv, "The
Pattern of the Pan-Tribal Assembly in the Old Testament," JNSL 8 (1980): 85-94.
45 Os eventos dessa narrativa, como aqueles da primeira, devem ser posicionados bem
nos primórdios da era dos juízes. O neto de Moisés e um neto de Arão seriam contem­
' porâneos de uma geração depois da conquista.
* A dissecação dos bois feita por Saul é uma reminiscência do tratamento dado à concubina
do levita, que fora brutalmente estuprada até a morte. Esse relato claramente liga o
início do reinado de Saul com suas origens em Jabes-Gileade, e o acontecimento históri­
co referente à situação.
188 H istória de I srael no A ntigo T estamento

diante dos habitantes de Bete-Seã, os homens de Jabes Gileade pegaram


seu corpo e sepultaram-no em sua cidade (1 Sm 31.11-13), de onde Davi
mais tarde o trouxe para sepultá-lo em Zela, cidade de Benjamim (2 Sm
21.12-14).
A motivação para se incluir essa segunda narrativa da trilogia belemita
é evidente. Reflete um mal aspecto dos benjamitas e, indiretamente, dos
ancestrais que constituíram a dinastia de Saul. O sentimento pró-davídico
parece cristalino para o historiador sagrado.

A história de Rute: ligações patriarcais

A terceira história, a de Rute,97 tem como personagem principal uma


donzela moabita, embora a bênção (Rt 4.11-15) e a genealogia (Rt 4.17­
22) no final mostrem claramente que o principal propósito do novelis­
ta98 foi traçar uma ancestralidade ligando o rei Davi à tribo de Judá e à
cidade de Belém. Como nas duas histórias anteriores, houve um homem
que partiu de Belém de Judá (Rt 1.1; cf. Jz 17.7,8; 19.1-10); mas enquanto
os outros dois mancharam a reputação da cidade pelo comportamento,
Elimeleque e sua família levantaram a sua moral. No livro de Rute vê-se
que a cidade de Belém começa a se constituir no local ideal para o nasci­
mento do rei Davi. Na segunda história, os ancestrais de Saul, os
benjamitas, tinham humilhado e desgraçado uma belemita, o que signi­

97 A antiga tradição canônica entre os judeus tradicionalmente tem incluído e considera­


do o livro de Rute como livro dos Juízes, e tal raciocínio tem base nas fortes conside­
rações literárias e históricas. Seu autor coloca os acontecimentos no tempo "quando
os juízes governavam" (Rt 1.1), e o cenário ainda está envolto nas duas últimas narra­
tivas do livro dos Juízes. (Enquanto as outras histórias são do princípio daquela era,
Rute deve ser localizada no final do período, pois esta heroína está separada de Davi
por apenas três gerações). Além disso, a acusação que comumente servia como um
refrão por todo o livro dos Juízes - "Naqueles dias não havia rei em Israel: cada qual
fazia o que achava mais reto" (jz 17.6; 18.1; 19.1; 21.25) - e que lançava toda aquela era
em uma espécie de caos moral e apostasia da Lei, está sem dúvida refletida nas pala­
vras de abertura do livro de Rute - "Nos dias em que julgavam os juízes," ou seja,
quando não havia um rei.
98 Críticos da forma desde a época de Herman Gunkel têm usado esse termo, que é sinôni­
mo de "história curta", para descrever o livro de Rute. Para defesa do termo, ver Edward
F. Campbell, Jr., Ruth, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1975), pp. 3-6,21.
Jack M. Sasson, contudo, prefere a classificação de "folclore" (Ruth: A New Translation
with a Philological Commentary and a Formalist-Folklorist Interpretation [Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 1979], p. 215), sendo o mesmo procedimento seguido por
Oswald Loretz ("The Theme of the Ruth Story," CBQ 22 [1960]: 391-99).
.A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 189

ficou para eles muita agonia e sofrimento futuros. Contudo, a cidade de


Belém não apenas sobreviveu a essas crises, mas por fim produziu aque­
le que seria o sucessor de Saul, um homem segundo o coração de Deus.
O papel da cidade de Belém nessas histórias jamais deve ser visto como
de pouca importância.
É bastante significativo que o livro de Rute não trace uma genealogia
do rei Davi até os dias dos juízes. A seção genealógica, na verdade,
inicia com Perez, filho de Judá (Rt 4.18); e a bênção de Boaz pelo povo
de Belém explicitamente liga esta cidade (e, portanto, Davi) a Perez e
Judá:

O Senhor faça a esta mulher, que entra na tua casa, como a Raquel e como
a Léia, que ambas edificaram a casa de Israel; e há-te já valorosam ente em
Efrata, e faze-te nom e afamado em Belém. E seja a tua casa como a casa de
Perez (que Tamá teve de Judá), da sem ente que o Senhor te der desta moça
(Rt 4.11b-12).

Obviamente o uso dos sinônimos Efrata e Belém nessa passagem diz


respeito a uma reminiscência da primeira justaposição dos dois nomes,
que é vista na morte de Raquel e no nascimento de Benjamim (Gn 35.16­
19). É possível que aquele incidente, em que Benjamim torna-se o moti­
vo da morte da mulher favorita de Jacó (Israel), em Belém, estivesse já
antecipando o futuro conflito entre Saul e Davi, onde o benjamita (Saul)
viria a se constituir no antagonista daquele que estaria ligado a Belém
(Davi)? Seja como for, há outros antecedentes patriarcais para a narrati­
va Rute-Davi, que indubitavelmente trarão mais proveito e substância a
este tema.

Judá e Tamar
Uma parte da bênção proferida a Boaz e a Rute era que esta família
seria como "a casa de Perez (que Tamar teve de Judá)" (Rt 4.12). Deve-se
lembrar que Tamar, como Rute, era uma estrangeira que havia se casado
com alguém do povo da aliança (Gn 38.6). Quando seu marido Er (irmão
mais velho de Judá) morreu, a lei do levirato passava a ser válida, e de fato
o foi, e ela casou-se com o segundo filho, Onã. Mas esta alternativa legal
não produziu qualquer fruto verdadeiramente útil. O resultado, é claro,
foi a relação incestuosa entre Judá e Tamar, que culminou no nascimento
dos gêmeos Perez e Zerá (Gn 38.24-30). A lei do levirato também está des­
crita na história de Rute (Rt 4.5), mas desta vez houve resultados bastante
produtivos - Boaz suscitou descendência ao nome do falecido marido de
190 H istória de I srael a 'o A ntigo T estamento

Rute." As circunstâncias que produziram tais relacionamentos foram sur­


preendentemente parecidas. Sob um disfarce, Tamar seduziu seu sogro
(Gn 38.14-16). Rute aproximou-se de Boaz escondida na escuridão da
noite (Rt 3.6-14). Depois de saberem todos que Tamar estava grávida,
Judá despediu-a diante do tribunal local, a fim de acusá-la formalmente
de prostituição, para que também a conduzissem à morte. Mas, ao invés
disto, ele mesmo foi envergonhado e condenado (Gn 38.24-26). Seme­
lhantemente, Boaz e Rute compareceram perante os anciãos para anun­
ciarem a redenção desta mulher e seu casamento imediato. Porém, na
ocasião, o casal foi não só foi elogiado como também abençoado (Rt 4.1­
12). Em cada um dos casos, o homem já era avançado em idade, mas
ainda assim estava fértil o suficiente para ser pai de muitos outros filhos,
embora as perspectivas para isto fossem definitívamente negativas. O
que é mais significativo, é claro, é o fato de tanto Tamar quanto Rute
terem filhos que constam da linhagem messiânica e davídica. Esse é o
elo mais forte entre as duas histórias.
A razão por que a Bíblia esforça-se para traçar uma linhagem da des­
cendência de Davi até Judá é encontrada em Gênesis 49.10, quando Jacó,
no leito de morte, proferiu a seguinte bênção:

O cetro não se arredará de Judá,


nem o bastão de entre seus pés,
até que venha Siló; e a ele
obedecerão os povos.

Fica bem claro, através de muitas passagens, que esta promessa foi re­
alizada em Davi, mas não é tão preciso quanto na história de Rute, parti­
cularmente na questão da genealogia. Seu primeiro nome é Perez, o filho
ilegítimo de Judá e Tamar que afirmou seus direitos reais criando um ca­
minho (peres) para si mesmo (Gn 38.29). Ou seja, contrário a todas as ex-9

99 Instrutivos paralelos (e diferenças) entre as duas situações, ver em A. A. Anderson,


"The Marriage of Ruth," JSS 23 (1978): 171-83. A problemática se a relação entre Rute
e Boaz baseava-se na lei do levirato e/ou era uma espécie de casamento tipo go'el, não
pode ser tratada aqui nesse momento. Ver especialmente a monografia de Donald A.
Leggett, The Levirate and Goel Institutions in the Old Testament zvith Special Attention to
the Book of Ruth (Cherry Hill, N.J.: Mack, 1974). Leggett defende persuasivamente a
idéia de que o casamento de Rute era tanto do tipo go'el quanto levirato (ver esp. pp.
209-53). Mas isso não significa que go'el e levirato precisam sempre estar juntos; pelo
menos é o que Jack M. Sasson procura defender em, "The Issue of Ge'ullah in Ruth,"
JSOT 5 (1978): 60-63.
.4 E ra n o s J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 191

pectativas humanas, ele decidiu tomar a iniciativa de estabelecer-se na


linhagem messiânica da promessa.100
Esse método de desviar-se da norma ou tradição comum é, na realida­
de, a maior característica dessa breve genealogia. O processo é repetido
nas circunstâncias que permitiram a inserção de Boaz, visto que ele, con­
forme Mateus, era filho de Salmom com Raabe, a prostituta cananéia (Mt
1.5). Certamente o procedimento não apenas demonstrou ousadia, mas
também provou ser completamente imprevisível, uma mudança no curso
dos eventos. Judá tinha tido um filho de uma mulher, conhecida como
uma prostituta em Canaã; seu descendente, Salmom, fez o mesmo W n
uma outra prostituta cananéia que havia abraçado a fé javista. Pode-se
dizer que até a escolha de Davi foi contrária à convenção, pois ele não era
o filho mais velho de Jessé, senão o mais novo. Além dos limites da pró­
pria genealogia, é significativo o fato de o próprio filho d&.pavi, Salomão,
filho de Bate-Seba, ter nascido de uma mulher que veio a ser a rainha sob
circunstâncias bastante impróprias. Também ele não era o filho mais ve­
lho de Davi, não aquele que teria se tornado seu herdeiro de acordo com
os padrões convencionais. Além disso, ele era filho de uma estrangeira,
uma hitita.
É evidente que o principal objetivo do escritor bíblico foi fazer uma
conexão entre Judá e Tamar, por um lado, e Boaz e Rute, por outro. Essas
ligações seriam o cumprimento da promessa feita a Judá na dinastia de
Davi. Esses fatos não se cumpriram apenas para demonstrar afinidades
entre as histórias de Tamar e Rute, mas também para que os contrastes
mais fortes pudessem ser demonstrados.

Os patriarcas e a monarquia
O segundo propósito da história de Rute é servir de elo entre as eras
patriarcais e a monarquia. O uso das genealogias no Antigo Testamento
tem sido çuidadosamente estudado, e muitos resultados importantes têm
brotado dessas pesquisas.101 Não menos significativo é o reconhecimento
de que os patriarcas, representados por Perez, estão diretamente relacio­
nados com a verdadeira dinastia real de Israel, dinastia representada por

100A imagem é a de uma interdição violenta de seu irmão. Ver em John Skinner, A Criticai
and Exegetical Commentary on Genesis (New York: Scribner,1910), pp. 455-56.
101Robert R. wilson, “The Old Testament Genealogies in Recent Research," JBL 94 (1975):
169-89; idem, Genealogy and History in the Biblical World (New Haven: Yale University
Press, 1977); Marshal D. Johnson, The Purpose of Biblical Genealogies (Cambridge:
Cambridge University Press, 1969).
192 H istória de I srael no A ntigo T estamento

seu cabeça e protótipo messiânico, ou seja, Davi. Nesse contexto, chega a


ser surpreendente o fato de Moisés nem sequer ser mencionado, o que
leva a concluir que esta omissão era intencional porque o principal objeti­
vo era criar uma rápida ponte que ligasse os patriarcas à monarquia, sem
tocar na linha divisória da completa experiência história e teológica de
Israel: o êxodo e a aliança do Sinai.
Ainda que este tema da aliança esteja um pouco fora de nosso alvo
principal, é preciso observar pelo menos que a aliança feita através de
Moisés era diferente das demais alianças descritas na Bíblia, com respei­
to aos aspectos da formalidade e funcionamento.102 Também é aceito que
existem ligações e correspondências im portantes entre as alianças
abraâmica e davídica, que são bem percebidas no livro de Rute. À medi­
da em que escreve, o narrador procura deixar claro que a dinastia de
Davi não surgiu da aliança mosaica, mas, ao contrário, tem suas origens
nas promessas feitas aos patriarcas. Israel, como servo de Yahweh, po­
deria cair ou se levantar, ser abençoado ou amaldiçoado, mas a dinastia
de Davi permaneceria intacta para sempre, pois o próprio Deus decidira
produzir através de Abraão uma linhagem de reis que se encaixariam na
história de Israel, embora sua ramificação se estenderia além das fron­
teiras israelitas. Os reis (plural) prometidos a Abraão (Gn 17.6,16) fundi­
ram-se, mais especificamente, em uma só pessoa, por meio da qual o
cetro real viria a brotar (Gn 49.10). O que brotaria de Judá exerceria além
disso domínio sobre Moabe e Edom (Nm 24.17-19). Quando Samuel foi
enviado a Belém para ungir o sucessor de Saul, foi-lhe dito que Yahweh
já tinha se provido de um outro rei de entre os filhos de Jessé (1 Sm 16.1).
A unção de Davi com óleo, acompanhada com a descida do Espírito San­
to sobre ele, confirmou não apenas a sua escolha dentre os filhos de Jessé,
mas também o cumprimento de uma promessa feita aos patriarcas mui­
tos anos antes.
A justaposição de unção e reinado é marcante em muitas passagens do
Antigo Testamento, não apenas no Salmo 2. Embora este salmo seja anôni­
mo, há boas razões para vê-lo como uma das composições de Davi que
confirmavam ser seu reinado de caráter messiânico, e também para mos­

102A literatura nessa área é vasta, porém, quanto a esse assunto sugerimos especialmente
Moshe Weinfeld, "The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near
East," JAOS 90 (1970): 184-203; Delbert R. Hillers, Covenant: The History of a Biblical Idea
(Baltimore: Johns Hopkins Press, 1969); e George E. Mendenhall, "Covenant Forms in
Israelite Tradition," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward E Campbell
Jr. e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1970), vol. 3, pp. 25-53.
A E r. í dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e a A utoridade H umana 193

trar sua posição como filho de Deus.103 O salmo 110 igualmente fala do
reinado de Davi de maneira que transcende o mero ofício político, embora
não seja a sua filiação o fator de maior ênfase aqui, mas seu sacerdócio.104
Digno de nota é sua ligação com Melquisedeque, um contemporâneo dos
patriarcas que, mais uma vez, passa por cima de toda a instituição de cul­
to contida na aliança de Moisés. Davi funciona como rei e sacerdote, não
em razão de qualquer relação com a nação israelita ou por virtude pró­
pria, mas porque ele permanece como um elo entre a promessa feita a
Abraão e seu cumprimento.
A ligação com os patriarcas é claramente vista na iniciação da aliança
davídica (1 Cr 15-17). Depois de Davi preparar todas as estruturas para a
acomodação da arca, e designar o pessoal especializado para cuidar do
culto e de seu serviço como ministros, ele mesmo vestiu um éfode sacer­
dotal e trouxe a arca para seu novo local (lC r 15.25-28). Ele oficiou uma
cerimônia de sacrifício (1 Cr 16.1-3), uma atitude que, da perspectiva
aarónica, constituía-se numa verdadeira agressão, uma vez que o sacer­
dócio era vetado à tribo de Judá.105 Então, em meio à celebração do estabe­
lecimento da arca e trono, Davi canta um cântico de ações de graças (1 Cr
16.8-36), no qual faz uma referência direta à aliança abraâmica (vv. 15-17),
mas com sabedoria evitou qualquer menção à aliança mosaica. Mesmo no
relato da revelação da aliança com a dinastia de Davi e sua contrita res­
posta ao propósito, não há qualquer declaração explícita acerca da aliança
mosaica, embora o tema de Israel como "o povo de Deus" e "a nação de
Davi" permaneça em posição de destaque (1 Cr 17.7,9,22,24).
Outra fato que chama a atenção é a associação que o evangelista, no
Novo Testamento, faz entre os patriarcas e Davi, em que existe a dimen­
são extra do cumprimento da dinastia davídica na pessoa de Jesus Cristo.
Mateus começa sua genealogia dizendo o seguinte: "Livro da genealogia
de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão" (1.1). O objetivo é afirmar

103Ver Artur Weiser, The Psalms: A Commentary (Philadelphia: Westminster, 1962), pp. 110­
14.
1[I4J.W. Bowker, "Psalm CX," VT 17 (1967): 36.
105Essa mesma questão é tratada pelo autor da epístola aos Hebreus, mostrando que o
sacerdócio de Cristo é não-arônico (e, portanto, sem qualquer relação com a aliança
mosaica), visto que Ele veio da tribo de Judá, embora seja assim mesmo superior aos
sacerdotes da linhagem de Arão, já que seu sacerdócio provém da ordem de Melquise­
deque (Hb 7.11-17). Quanto ao sacerdócio Davi-Melquisedeque, ver Aubrey Johnson,
Sacral Kíngship in Ancient Israel (Cardiff: University of Wales Press, 1955), pp. 27-46., que
sem dúvida é uma apresentação bastante equilibrada e sadia, com exceção do que diz
respeito aos aspectos de causas e origens.
194 H istória de I srael no A ntigo T estamento

que o Messias tem suas raízes históricas em Abraão, e que veio como um
rei da dinastia de Davi em resposta às promessas feitas aos patriarcas.
Que essa era a esperança messiânica de Israel fica fácil provar, pois as
multidões aclamaram a Jesus como seu Messias, quando este entrou triun­
fante em Jerusalém: "Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em
nome do Senhor!" (Mt 21.9). O próprio Jesus confirmou este sentimento
quando, em resposta direta aos fariseus ali presentes, afirmou que ao iden­
tificar o Messias como o Filho de Davi, as multidões também confirma­
vam a anterioridade deste em relação ao próprio Davi, um ponto clara­
mente registrado no Salmo 110 (Mt 22.41-46). O mesmo salmo messiânico
descreve o rei como um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. O
autor de Hebreus trata bastante deste ponto e, embora em parte alguma
mencione o rei Davi nessa conexão, fala do Senhor Jesus Cristo como sen­
do este sacerdote, exatamente como faz o salmo com respeito a Davi. Davi
e Jesus Cristo, como sacerdotes da ordem de Melquisedeque, funciona­
vam fora da ordem estabelecida no sacerdócio mosaico, além de terem o
escopo de seus sacerdócios numa perspectiva universal e muito mais
abrangente, visto que em Hebreus 7.9,10 é dito que até mesmo Levi, que
na ocasião ainda estava "nos lombos" de Abraão, pagou o dízimo a Mel­
quisedeque. Logo, a cadeia que liga Melquisedeque-Davi-Cristo não é de
forma alguma interrompida pelo sacerdócio mosaico, assim como a ca­
deia real Abraão-Davi-Cristo também não é quebrada. O principal propó­
sito de Rute é estabelecer essa mesma continuidade, pelo menos entre
Abraão e Davi.

O papel da donzela moabita


A terceira função do livro de Rute centraliza-se na própria Rute que, do
ponto de vista da revelação e transmissão das verdades divinas, não po­
dia ser considerada um veículo apropriado para manifestar a realeza e
sacerdócio messiânicos. Quando alguém procura entender o papel de Rute
no processo, é fundamental não deixar de lado a questão da nacionalida­
de. Ela era moabita, filha de uma nação descendente de Moabe, filho de
Ló com sua filha mais velha (Gn 19.37). Harold Fisch demonstrou recente­
mente que Ló havia se separado de Abraão, quebrando assim os laços
familiares (Gn 13.11); do mesmo modo, Judá apartou-se de seus irmãos
(Gn 38.1), e Elimeleque deixou a cidade de Belém e seu clã para empreen­
der uma viagem a Moabe (Rt 1.1).106 O desastre ocorreu em cada caso: a
morte deixou ambas as mulheres viúvas. Em ambas as situações, além

106Harold Fisch, "Ruth and the Structure of Covenant History," VT 32 (1982): 429-32.
A E ra dos J uízes: A Violação da A liança, A narquia e .4 A utoridade H umana 195

disso, o problema de perpetuação da família foi resolvido por meio de um


pai, ou a figura deste, embora tenha sido a mulher que dera início ao en­
contro, sempre de forma sutil. Amais notável conexão entre as histórias é
o fato irônico de um descendente do teimoso Ló - a pura e nobre mulher
chamada Rute - efetuar uma reunificação com o clã de Abraão, do qual
anteriormente havia se separado. Ela foi então não apenas um elo vital na
cadeia messiânica de Abraão a Davi (e finalmente Cristo), mas também
um instrumento para unir o abismo entre Judá e Moabe, um típico
paradigma da reconciliação que Deus deseja realizar entre as nações, re­
conciliação que irá cumprir as bênçãos patriarcais.
Ao examinar a lista genealógica em Mateus 1, surpreende o fato de
somente quatro mulheres terem sido ali mencionadas, sendo Rute uma
delas.107 Dessas quatro, duas (Tamar e Raabe) eram cananéias, uma era
moabita (Rute), e a outra, Bate-Seba, presumivelmente hitita. Sem dúvida
elas exemplificam o princípio da soberana graça de Deus, que não apenas
pode usar os estrangeiros (até mesmo o que não possui boa reputação)
para realizar os seus propósitos eternos, como também se deleita em fazê-
lo. E ninguém ilustra tão bem este fato quanto a gentil e fiel Rute. No
cumprimento da bênção profética, ela tornou-se "como a Raquel e como a
Léia, que ambas edificaram a casa de Israel" (Rt 4.11).

ltl7Devemos prestar bastante atenção ao fato de as mulheres terem desempenhado um


papel bastante significativo no ministério de Jesus, particularmente na ocasião de sua
paixão e ressurreição (ver, e.g., Mt 26.6-13; 27.55,56; 28.1-8).
S A U L: A A L I A N Ç A MAL
C OMP R E E ND I D A
A exigência por um reinado
A cronologia do século onze
A escolha de Saul
O primeiro encontro de Saul com Samuel
O profetismo primitivo em Israel
A unção de Saul
O prim eiro desafio de Saul
O declínio de Saul
Desobediência em Gilgal
A ira contra Jônatas
Os inimigos de Saul
Os estados arameus
Os filisteus
Os amalequitas
Considerações teológicas
A intenção divina para com um reinado humano
Falta de entendimento de Saul para com a aliança: violação das prerrogativas sacerdotais
O surgimento de Davi
A unção de Davi
Davi na corte de Saul
Davi e Golias
Davi e Jônatas
A fu ga de Davi
A conspiração de Saul
Davi, o fora-da-lei
O exílio de Davi na Filístia
A morte de Saul

A e x ig ê n c ia p o r u m re in a d o

O refrão do livro dos Juízes: "Naqueles dias não havia rei em Israel"
(17.6; 18.1; 19.1; 21.25) foi finalmente traduzido pelo povo israelita em um
forte clamor a Samuel: "...constitui-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para
que ele nos julgue, como o têm todas as nações" (1 Sm 8.5). Embora a
reação esboçada por Samuel tenha sido negativa (v. 6), o problema não
estava no desejo de possuir um rei, mas sim no espírito antiteocrático com
que o pedido foi feito, e em sua prematuridade.
Um reinado, longe de ser considerado antiético para o propósito de
Deus para Israel,C^ra fundamental para se cumprir o plano da salva-
19 8 H istória de I srael ao A ntigo T estamento

ção.1 O homem foi criado segundo a imagem de Deus para que tivesse
domínio "sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o
gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a
terra". (Gn 1.26-28). Com este fim, o homem foi introduzido no jardim
do Éden para exercer a autoridade sobre a criação e sobre todas as ou­
tras coisas. Abraão e Sara foram informados de que deles surgiriam
reis (Gn 17.6,16), sendo a mesma promessa e aliança reafirmada a Jacó
(Gn 35.11). No momento da bênção patriarcal, Jacó anunciou: "O cetro
não se arredará de Judá, / nem o legislador dentre seus pés, / até que
venha Siló; / e a ele se congregarão os povos" (Gn 49.10). Finalmente,
em Deuteronômio 17.14-20 estão lançadas as regras para a monarquia
que seria instaurada em Israel no tempo de Deus, seguindo os critérios
divinos-^O rei devia ser um homem escolhido por Yahweh (v. 15), e
í) deveria governar o povo de acordo com os princípios contidos na Torá
(vv. 18-20).
Então, a aparente tensão entre a atitude negativa de Samuel (1 Sm 8;
10.17-27) e seu apoio a Saul na época de sua escolha (1 Sm 9.1-10.16) não
tem fundamento histórico.2 De fato, a contenda de Samuel não é por ad­
mitir um reinado em Israel, mas, como já dito, pelo caráter e espírito que
norteavam a decisão do povo - "como o têm as nações" - e pela recusa em
esperar que o próprio Deus fizesse a escolha.
1 A razão para a insistência do povo em possuir um rei é bastante óbvia.
Samuel naquele tempo já era um homem velho, e seus dois filhos, a quem
ele havia designado como juízes para sucedê-lo, eram venais e corruptos.
Além disso, surgiam muitos perigos externos, vindos particularmente das

1 Walter C. Kaiser, Jr. Toward an Old Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1978),
pp. 144-49; Claus Westermann, Elements o f Old Testament Theology (Atlanta: John Knox,
1982), pp. 108-9; Shemaryahu Talmon, "The Biblical Idea of Statehood," em The Bible
World, editado por Gary Rendsburg et al. (New York: Ktav, 1980), p. 239.
2 Muitos críticos afirmam que a suposta tensão é resultado de narrativas paralelas
conflitantes; ver, por exemplo, Siegfried Herrmann, A History of Israel in Old Testament
Times, traduzido por John Bowden (Philadelphia: Fortress, 1975), pp. 131-37. Para ler
um tratamento que rebate de forma convincente esses ataques que dizem haver tradi­
ções conflitantes no texto, ver J. Robert Vannoy, Covenant Renewal at Gilgal (Cherry Hill.
N.J.: Mack, 1978), especialmente as páginas 197-239; também em Lyle Eslinger,
"Viewpoints and Point of View in 1 Samuel 8-12," JSOT 26 (1983): 61-76. Um ponto de
vista moderado, segundo o qual o "deuteronomista" integrou e harmonizou as tradi­
ções primitivas com o intuito de prover uma justificação para que a monarquia fosse
introduzida em Israel, é proposto por Dennis J. McCarthy, "The Inauguration of
Monarchy in Israel: A Form-critical Study of 1 Sam. 8-12," Interp. TJ (1973): 401-22.
200 H istória de I srael no A ntigo T estamento

bandas dos arameus ao norte e dos amonitas ao oriente. Aquela época cla­
mava por um líder forte, que não fosse apenas um líder local, mas nacional,
uma função que somente um rei poderia exercer. Por isso, Yahweh atendeu
o pedido do povo; porém afirmou a Samuel que tal pedido era, na verdade,
uma rejeição ao governo teocrático ideal, e que não era Samuel a pessoa que
estava sendo desprezada. Uma vez que desejavam um rei como o tinham as
demais nações, e não podiam mais esperar pelo escolhido de Yahweh, o
pedido seria concedido para futuros sofrimentos.3 O rei escolhido criaria
uma estrutura de autoridade que exigiria que seus jovens fossem alistados
no exército à força, além de sobrecarregar o povo com um excessivo núme­
ro de impostos que os levariam a chorar e protestar em vão (1 Sm 8.11-18).
Não obstante os alertas, o povo confirmou seu pedido, e iniciou toda a mo­
vimentação para o estabelecimento de Saul como rei.

A c ro n o lo g ia d o s é c u lo o n ze

Antes de considerarmos o reinado de Saul, é importante definir a cro­


nologia do século onze. A parte o período dos juízes, talvez não tenha
havido uma outra era em Israel que tenha sido mais complexa a esse res­
peito do que o século onze.
O ponto de partida será os reinados de Salomão e Davi, cujas datas fun­
damentam-se em dados precisos. Edwin Thiele definiu em sua magistral
obra que a divisão do reino teve lugar em 931 a.C. Esta dada coincidiu com
a morte de Salomão, que reinou por quarenta anos (1 Rs 11.42) e, portanto,
deve ter sucedido Davi em 971. Davi, por sua vez, reinou por quarenta anos
e meio (2 Sm 2.11; 5.5), tendo chegado ao poder em cerca de 1011.4
O maior problema diz respeito a duração do reino de Saul. Está claro
que sua morte ocorreu no ano em que Davi começou a reinar em Hebrom
(2 Sm 1.1; 2.1-4), ou seja, em 1011, embora o ano da ascensão de Saul seja
desconhecido. O apóstolo Paulo, em discurso na sinagoga de Antioquia
da Psídia, declarou que Saul reinara por quarenta anos (At 13.21). Isto
dataria seu reinado no período de 1051 a 1011. A maioria dos estudiosos

3 Quanto a vontade permissiva de Deus, ver J. Barton Payne, "Saul and the Changing
Will of God," Bib Sac 129 (1972): 321-25.
4 Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers of the Hebreu) Kings (Grand Rapids: Eerdmans,
1965), pp. 51-52. O conflito entre marcar a coroação de Salomão no ano 971 e seu traba­
lho inicial no templo, o qual se sabe ter ocorrido em seu quarto ano, até 966, é mais
aparente do que real. O assunto é muito complicado e fora de nosso objetivo para ser
tratado aqui nesta obra. Basta dizer que existem vários métodos de registrar os anos de
um reinado, e nem todos estão baseados estritamente no ano da ascensão.
S*.í l : A A liança M al C ompreendida 201

rejeita esses números, e utilizam-se geralmente de argumentos em nada


melhores que os comumente usados.5 Um exame acurado dos dados bí­
blicos levará a concluir que o número quarenta não foi uma criação de
Paulo, nem uma tradição historicamente sem valor a que ele tenha re­
corrido. Na verdade, esse número é parte essencial do texto.
Infelizmente, onde se poderia encontrar a fórmula comum que caracte­
rizava a duração do reinado de um rei - 1 Samuel 13.1 - existe uma cor­
rupção textual: "Saul tinha... <|irps de idade quando se tornou rei, e reinou
sobre Israel dois anos" (NIV)Í Além da óbvia lacuna envolvendo sua ida­
de, é praticamente impossível encaixar todos os acontecimentos do reina­
do de Saul em um período curto de dois anos. Nesse caso, duas soluções
têm sido comumente oferecidas ao estudante: (1) "Saul era da idade de
trinta anos quando começou a reinar, e reinou quarenta e dois anos sobre
Israel"; (2) "Saul era da idade de trinta anos quando se tornou rei. Quando
estava no segundo ano de seu reinado..." A primeira alternativa tem a seu
favor que seguia a fórmula comum da época (cf. 2 Sm 5.4) e concorda em
essência com os quarenta anos citados por Paulo.
^ Entretanto, contra essa argumentação está o fato de que os números
"trinta" e "quarenta e dois" foram preenchidos, o primeiro por alguns
manuscritos da Septuaginta, e o segundo, por pura conjectura. O número
"trinta" parece estar incorreto, visto que Jônatas, filho de Saul, era o líder
de alguns homens no início do reinado de seu pai (1 Sm 13.2,3), o que seria
impossível caso realmente tivesse sido filho de um homem de trinta anos.
Os "quarenta e dois", segundo tem-se defendido, é necessário a fim de
justificar a data fornecida por Paulo e para se explicar o plural pouco co­
mum em vez da fórmula dualista do número "dois" no texto hebraico.
Contudo, a informação de Paulo poderia ser o resultado de um processo
dedutivo, e a forma plural de "dois" possui forte apoio gramatical em
outros lugares.6 Logo, a melhor leitura do texto seria: "Saul estava com
quarenta anos de idade quando começou a reinar. Quando já tinha reina­
do por dois anos..." O "quarenta" é uma sugestão bastante razoável, já
que nessa ocasião ele tinha um filho adulto.7

5Isso é sugerido por J. Alberto Soggin, A History of Ancient Israel (Philadelphia: Westminster,
1984), p. 50.
’ Wilhelm Gesenius, Gesenius' Hebrew Grammar, editado por E. Kautzsch e A.E. Cowley
(Oxford: Clarendon, 1957), parág. 134e.
~Para um argumento adicional em apoio a essa tradução, ver Eugene H. Merrill, "Paul's
Use of 'About 450 Years' em Acts 13.20," Bib Sac 138 (1981): 256, n.19. Uma sugestão
interessante, que não envolve qualquer emenda é a que Robert Althann propôs, basea­
do na preposição ugarítica b(n), que na tradução de: "Saul já reinava a mais de um ano"
202 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Em apoio à afirmação de Paulo de que Saul reinara por quarenta anos,


vê-se o fato de Is-bosete, filho de Saul, que o sucedeu como rei, estar com
quarenta anos quando começou a reinar (2 Sm 2.10); dessa forma, ainda
não era nascido até que Saul ascendeu ao trono de Israel. Tais conclusões
provam ser verdadeiras quando se faz uma comparação da lista dos filhos
de Saul no início de seu reinado (1 Sm 14.47-51) com uma outra que inclua
todos os seus filhos (1 Cr 8.33; 9.39). A primeira menciona Jônatas, Isvi e
Malquisua, ao passo que a segunda diz Jônatas, Malquisua, Abinadabe e
Esh-Baal. O nome Esh-Baal é idêntico a Is-bosete, e A binadabe é
presumivelmente um outro nome para Isvi (ver 1 Cr 10.2). Quando Saul
foi morto pelos filisteus, morreram também os seus filhos Jônatas,
Abinadabe e Malquisua (1 Sm 31.2). Sendo Is-Bosete o único sobreviven­
te, obviamente não era Abinadabe8, a quem alguns estudiosos insistem
associar.9
Outro aspecto importante é o aparente intervalo ocorrido entre Saul e
Is-bosete, em que se vê o controle exercido por Abner (2 Sm 2.8-11). Por
razões não explicadas, Is-bosete não sucedeu a seu pai de imediato, con­
forme é evidente pelo fato de haver ele reinado apenas dois anos antes de
ter sido assassinado. No ano da morte de Is-bosete, Davi assumiu o con­
trole do reino de Saul, embora já estivesse reinando por mais de sete anos
em Hebrom (2 Sm 1.1; 2.4; 5.1-5). Isto significa que Abner reteve o poder
do norte durante cinco anos antes de Is-bosete ser recebido como o novo
rei. Is-bosete estava com quarenta anos naquela ocasião, e conclui-se que
nascera trinta e cinco anos antes da morte de Saul, ou cerca de 1046. Esses
dados esclarecem melhor o motivo de seu nome não constar da lista dos
filhos de Saul durante os primeiros anos de seu reinado.
De qualquer forma, se Is-bosete estava com trinta e cinco anos no tem­
po da morte de Saul e ainda não havia nascido até o início do reinado de
seu pai, subentende-se que Saul deve ter reinado por mais de trinta e cin­
co anos, um cálculo inteiramente compatível com o número quarenta for­
necido por Paulo. Uma data de 1051 a 1011 é, portanto, bem próxima do
correto.
Diante destas evidências, deve ter havido um espaço de trinta e três
anos entre a batalha de Mispa, quando Samuel findou a opressão filistéia

diz assim: "já por dois anos ele estava reinando sobre Israel..". Não diz nada acerca da
idade de Saul, mas talvez a passagem nunca tenha tido a intenção de dizer ("1 Sam.
13.1: APoetic Couplet," Biblica 62 [1981]: 241-46).
8 Eugene H. Merrill, "1 Samuel," em The Bible Knowledge Commentary, editado por John E
Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, p. 446.
9 E.g., Hans W. Hertzberg, I & 11 Samuel (Philadelphia: Westminster, 1964), p. 120.
i i . i : .A A liança M al C ompreendida 203

(ver pp. 151,184), e seu encontro com os anciãos de Israel, quando estes
lhe rogaram por um rei. O profeta já estava velho, conforme a própria
narrativa atesta (1 Sm 8.1,5), talvez com a idade de setenta anos. Não é de
admirar que o povo estivesse preocupado acerca da iminente crise de li­
derança.

A e s c o lh a d e S au l

O primeiro encontro de Saul com Samuel

Conforme muitos estudiosos já observaram, a escolha de Saul foi mais


baseada em dons carismáticos, bem mais ao estilo dos juízes, do que na
linhagem dinástica normal, caracterizada pela entronização e sucessão.101
ó Ele nãcgpertencia a qualquer linhagem especial - veio de uma pequena
tribo, a tribo de Benjamim, e era filho de Quis que, embora sendo "ho­
mem de aparência", certamente não possuía nem podia reivindicar qual­
quer grau de nobreza.1! Torém , Saul possuía uma aparência física que
impressionava (1 Sm 9.1,2) è uma modéstia que cativava, quase uma auto-
abnegação.
O encontro inicial com Samuel ocorreu no dia em que Saul estava à
procura de algumas jumentas perdidas, uma busca infrutífera que o le­
vou a procurar um famoso vidente em Ramá, na terra de Zufe (i.e.,
Ramatain Zofim). O papel de Samuel como vidente (ro'eh) enfatiza o as­
pecto receptivo de seu ministério profético. Ou seja, um profeta era co­
nhecido como vidente quando conseguia entender a mente de Jeová por
meio de sonhos, visões ou alguma outra forma semelhante. Quando ele
proclamava aquela mensagem como porta-voz de Yahweh, particular­
mente em público, cumpria o papel de nãbi ou profeta. Está claro que, no
caso de Samuel, assim como nos outros profetas, uma pessoa podia ser
vidente e profeta ao mesmo tempo, estando a diferença apenas na ênfase
ou função. E apropriado fazer uma digressão nesse ponto para falar acerca

10 Talmon, "Biblical Idea," em Bible World, pp. 244-45.


11 Bruce C. Birch, seguindo Hugo Gressmann e outros estudiosos, desconsidera o texto de
1 Samuel 9.1-13, reputando-o como um conto folclórico revestido de pouca ou nenhu­
ma base histórica ("The Development of the Tradition of the Anointing of Saul in 1 Sam.
9.1-10.16," JBL 90 [1971]: 58). Somente quando alguém, a priori, tenciona desmentir a
historicidade de alguns acontecimentos, é que poderão as características ditas por Birch
ser usadas para provar que a perícope em questão não passa de folclore. Ele falha ao
deixar de reconhecer que fatos históricos podem ser descritos numa linguagem folclóri­
ca, sem que para isso tenha sua historicidade sacrificada.
204 H istória de I srael no A ntigo T estamento

do profetismo, já que seu início é normalmente associado ao profeta


Samuel.12

O profetismo primitivo em Israel

O fenômeno do profetismo foi universal no mundo antigo do Oriente


Médio, pois sempre que as pessoas tentavam discernir os propósitos e
intenções dos deuses, inevitavelmente surgiam os praticantes da arte da
adivinhação. A prática do profetismo na Mesopotâmia está abundante­
mente documentada em um vasto corpo de textos de adivinhação que
estão chegando ao nosso conhecimento.13 De forma semelhante, os infor­
mes colhidos em Mari, Alalaque, Ugarite e Fenícia têm permitido a re­
construção do quadro completo da arte de interpretar agouros e pressági­
os.14 Embora haja uma relação superficial entre o que é conhecido do
profetismo pagão e o que é relatado na Bíblia, referente ao Israel antigo,
deve-se admitir que a origem divina e não-estática da profecia hebraica é
exclusivamente ímpar no mundo antigo. Não havia manipulação de
Yahweh sobre seu profeta - em contraste com a manipulação feita pelos
deuses sobre seus emissários pois o profeta ou vidente de Deus, mesmo
em posição com pletam en te p assiva, era àinda um instrum ento
autoconsciente, que se apresentava como um receptor e anunciador da
revelação divina, conforme o Espírito de Yahweh o dirigia.
Houve um desenvolvimento do ofício profético no Antigo Testamento,
conforme registrado em 1 Samuel 9.9, de forma bastante clara: "(Antiga­
mente em Israel, indo alguém consultar a Deus, dizia assim: Vinde, e va­
mos ao vidente; porque ao profeta de hoje antigamente se chamava viden­
te)". Mais uma vez, isto é uma questão mais relacionada à mudança de

12 Para um tratamento mais apurado acerca do profetismo no Antigo Testamento como


uma instituição e ofício, ver a obra de Willis J. Beecher, ainda hoje considerada de gran­
de autoridade, The Prophets and the Promise (Grand Rapids: Baker, 1963 reedição), pp. 3­
172. Outra obra bastante útil, embora tida como popular, é a de Hobart E. Freeman, An
Introduction to the Old Testament Prophets (Chicago: Moody, 1968).
13 A. Leo Oppenheim, Ancient Mesopotamia (Chicago: University of Chicago Press, 1964),
pp. 207-27.
14 Herbert B. Huffmon, "Prophecy in the Ancient Near East," em Interpreter's Dictionary of
the Bible, suplement, editado por Keith Crim et al. (Nashville: Abington, 1976), pp. 697­
700; idem, "Prophecy in the Mari Letters," em The Biblical Archaeologist Reader, editado
por Edward F. Campbell, Jr. e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1970), vol. 3, pp. 119-224; Virgil W. Rabe, "The Origins of Prophecy," BASOR 221 (1976):
125-28.
S ‘.l l : A A liança M al C ompreendida 205

ênfase do que a qualquer outra coisa. Até mesmo Abraão foi chamado de
profeta (nãbi - Gn 20.7), como também o foram Arão (Êx 7.1) e Moisés (Dt
34.10). De fato, Moisés foi chamado o maior dentre todos os profetas. Po­
rém, a função mais importante no ministério desses profetas da fase re­
mota do profetismo em Israel não era a de constituir-se num pregador.
Eles profetizavam por ter algo a dizer, e não por terem em sua vida essa
mensagem em primeiro lugar.
O desenvolvimento mais significativo que se pode perceber no Antigo
Testamento é visto na vida de Samuel, que foi o primeiro profeta profissi­
onal de tempo integral, digamos assim (1 Sm 3.20). O significado dessa
situação está descrito da seguinte maneira: "E continuou o Senhor a apa­
recer em Siló, porquanto o Senhor se manifestava a Samuel, em Siló, pela
palavra do Senhor. E veio a palavra de Samuel a todo o Israel" (1 Sm 3.21 —
4.1a). Além disso, Samuel fundou uma escola de profetas que ele mesmo
treinava em todos os aspectos do profetismo, os quais poderiam ser repar­
tidos pelos homens. Obviamente ninguém poderia ser ensinado sobre como
ser um veículo da revelação divina, senão mediante o recebimento desse
dom de Deus. Já nos dias de Elias e Eliseu, existiam companhias organiza­
das de profetas (2 Rs 2.3). No entanto, pode-se verificar a existência de
videntes e profetas que apareciam esporadicamente, até que se origina­
ram os grandes profetas do nono século, homens que estiveram direta­
mente envolvidos com o processo de escrita dos livros sagrados. Com os
grandes profetas, declinava cada vez mais o profetismo organizado que,
com a formação do cânon israelita do Antigo Testamento, chegou ao com­
pleto desaparecimento.

A unção de Saul

Voltando a narrativa, quando Saul e seu servo chegaram a Ramá, toma­


ram ciência de que Samuel oficiaria uma cerimônia em um dos altos, não
muito distante de onde estavam. Então, juntaram-se a Samuel na caravana
que ia ao cerimonial e à festa, não sabendo que Yahweh já havia revelado a
Samuel que Saul chegaria naquele dia, e se tornaria o líder (nãgídy5 de Isra-15

15 Já que Davi, Salomão e outros reis também são chamados de nãgid, e Saul por sua vez é
chamado de melek ("rei") em uma ocasião, deve-se evitar a maximização do fato de Saul
ter como seu principal epíteto o termo nãgid. Este termo significa apenas "alguém pro­
eminente" ou "o chefe". Ver Francis Brown, S.R. Driver e Charles A. Briggs, A Hebrew
and Englísh Lexicon ofthe Old Testament (Oxford: Clarendon, 1962), pp. 617-18. Albrecht
Alt propõe que o termo nãgid foi aplicado a Saul significando que ele era o escolhido de
Yahweh, e que a nação é que foi a responsável por chamá-lo de melek ("The Formation
206 H istória d e I srael no A ntigo T estamento

el, o homem escolhido que iria deter a nova ameaça trazida pelos filisteus.
Ao chegar no lugar alto, Samuel agradou a Saul oferecendo-lhe um farto
banquete. No outro dia Samuel revelou-lhe que ele seria ungido príncipe de
IsraeJLDe acordo com Samuel, a confirmação viria a seguir mediante três
sinaiSfrrimeiro, Saul encontraria dois homens próximos ao sepulcro de Ra­
quel, em Zelzá (localização desconhecida, embora esteja provavelmente entre
Jerusalém e Belém), assegurando-lhe que suas jumentas perdidas haviam
sido encontradas.16 Em seguida encontraria três homens no carvalho de
Tabor (localização desconhecida, mas certamente não era a montanha em
Jezreel). Estes estariam a caminho de Betei para adorarem, e repartiriam
com ele dois pedaços de pão.
Q Finalmente, ele viria para Gibeá-Eloim (Gibeão; i.e., el-Jib),17 local de uma
fortaleza dos filisteus, onde se juntaria a uma caravana de profetas em pro­
cissão. Surpreendentemente, participaria de canções sem nunca tê-las apren­
dido antes. Isso seria um sinal da bênção do Espírito de Deus que estaria
transformando Saul, o homem comum, no príncipe de seu povo. Mais tar­
de, Samuel afirmou que Saul o encontraria em Gilgal. Como um teste de
obediência, teria de pacientemente esperar por Samuel, que viria para ofici­
ar a cerimônia e oferecer o sacrifício.
Quando os três sinais preditos se cumpriram, Samuel juntou todo o
Israel em Mispa para uma cerimônia pública de coroação e investidura (1
Sm 10.17-27). Sem qualquer pretensão ao cargo, Saul tratou de esconder-
se naquele momento; somente após ser encontrado permitiu que fosse
apresentado à assembléia do povo. Logo, Samuel deu início à cerimônia
tratando dos aspectos formais (v. 24). Depois seguiu-se a aceitação do povo
e a aclamação de "Vida longa ao Rei!". Por fim, Saul aceitou os protocolos
do cargo; ele e Israel ouviram o que Samuel explicara a respeito das regras
da monarquia, que provavelmente refletiam as convenções de Moisés, em

of the Israelite State," em Essays oh Old Testament History and Religion [Garden City, N.Y.:
Dtiubleday, 1968], p. 254). Ver também as observações de Roland de Vaux, Ancient Israel
(New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, pp. 70, 94. J.J. Glück resolve a tensão existente
entre melek/nãgid ao sugerir que nãgtd é o equivalente de nõcjed ("pastor") e, portanto,
significa o título de realeza ao invés de um sinônimo de rei ("Nagid-Shepherd," VT 13
[1963]: 144-50).
16 Para uma interpretação proposta para o circuito, ver em Yohanan Aharoni e Michael
Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan, 1968), mapa 86.
17 Assim é o pensamento de Aaron Demsky, "Geba, Gibeah, and Gibeon - An Historico-
Geographic Riddle," BASOR 212 (1973): 27. Demsky defende a idéia de que Gibeom era
a cidade natal de Saul e que Gibeá (Tel el-Fül) foi a cidade que ele escolheu mais tarde
como sua capital (p. 28).
208 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Deuteronômio 17.14-20. Assim, perante Yahweh e a congregação, uma ali­


ança foi feita constrangendo Saul, o pastor ungido do povo, ao curso da
ação.

O p rim e iro d e s a fio de S au l

A pompa da cerimônia não foi capaz de eclipsar os acontecimentos sub-


seqüentes. Embora Saul tivesse sido levado até sua insignificante capital
em Gibeá por alguns partidários, o fato é que outros zombaram dele, tendo-
o como um candidato pouco provável de ser um bom rei. Ã origem humilde
de sua descendência e seu desdém pelas aparições em público explica as
reações contrárias. Mesmo após ter-se estabelecido em Gibeá, em um "palá­
cio" que a arqueologia provou ter sido de pouca importância e beleza,18
Saul sempre mostrou pouca desenvoltura na realeza. De fato, quando es­
tourou a primeira crise nacional, e seus oficiais o procuraram para que pro­
videnciasse o socorro, encontraram-no arando o campo com seus bois. Tudo
isso estava em sintonia com a transição natural da época dos juízes para a
monarquia, pois, além de não expressar qualquer ambição política em si
mesmo, Saul tinha sido constituído rei sobre um povo cujo interesse mais
urgente não era a formação de um imperialismo esplendoroso e elegante,
mas uma expressão tangível de solidariedade para com os interesses co­
muns da nação. Já por muito tempo a nação vinha se dividindo entre leste e
oeste, norte e sul, permitindo que suas fronteiras fossem alvo de agressão
exterior e de desintegração interior. Ora, mesmo sem considerar o aspecto
primitivo do reinado de Saul, é preciso compreender que ele representava a
esperança de sobrevivência para Israel.
Essa esperança foi colocada à prova quase imediatamente, na forma de
um cerco à cidade de Jabes Gileade, por Naás, rei de Amom. Desde que os
amonitas haviam sido esmagados por Jefté, mais de cinqüenta anos antes,
vinham esperando uma oportunidade pura vingar-se de Israel. A drástica
mudança política em Israel e a escolha de um candidato pouco promissor
para a nação constituíram, sem dúvida, um momento oportuno para os
amonitas fazerem o primeiro movimento. A escolha de Jabes-Gileade tam­

18 Gibeá foi escavada por William E Albright que, baseado nos escombros culturais da
cidade capital de Saul, descreve-o como um "líder de espírito rústico" (From the Stone
Age to Christianity [Garden City, N.Y., 1957], p. 292). O sítio está tão descaracterizado
que outro estudioso, Joseph Blenkinsopp, defende a idéia de que a capital do reino de
Saul, na maior parte de seu governo, não foi Gibeá mas Gibeon ("Did Saul Make Gibeon
His Capital?" VT 24 [1974]: 1-7).
i r . l: .4A liança M al C ompreendida 209

bém foi cuidadosamente estudada, pois, além de situar-se distante de


Gibeá, dificultava uma mudança na estratégia logística do exército de Is­
rael, e era provavelmente o local dos ancestrais não-benjamitas de Saul
(ver p. 187).
É evidente que Jabes-Gileade tanto era um alvo militarmente vulnerável
quanto psicologicamente apropriado para os amonitas. Dessa forma, cerca­
ram a cidade e ameaçaram destruí-la totalmente, a menos que seus habitan­
tes decidissem fazer um pacto de submissão e, além disso, deixassem que
seu olho direito fosse retirado.19 Essa exigência sub-humana tinha como
propósito provar a todos a superioridade do rei Naás e a incapacidade do
rei Saul de oferecer proteção ao povo. Era tanta a confiança dos amonitas
que permitiram alguns mensageiros de Jabes-Gileade partir por todo Israel
à procura de socorro. Isto a fim de mostrar que, mesmo ajuntando todas as
suas forças, Israel não seria capaz de resgatar Jabes-Gileade.20
Mas o desafio não ressoou sem uma resposta. Como nos tempos dos
juízes, o Espírito do Senhor apoderou-se de Saul. Ele tomou uma junta de

Frank M. Cross, baseado em seus estudos do texto 4Q Sama de Qunram diz que os
rubenitas e gaditas, que estavam sujeitos a Naás, e que tinha sido da mesma forma
mutilados por sua traição ao rei amonita, conseguiram escapar de Amom, encontrando
refúgio em Jabes-Gileade. Como os que se rebelaram contra o rei mereceram punição,
da mesma forma os que os acolheram também seriam punidos. Então, como Cross ob­
servou, o fragmento de Qumram clarificou o que, de outra forma, continuaria obscuro
caso dependêssemos apenas do Textus Recepticus de Samuel. Ver Cross, "Original
Biblical Text Reconstructed from Newly Found Fragments," Bible Review 1 (1985): 26-33;
idem, "The Ammonite Oppression of the Tribes of Gad and Reuben: Missing Verses
from 1 Samuel 11 Found in 4Q Samuel," em Histonj, Historiography anã Interpretation,
editado por Hayin Tadmor e Moshe Weinfeld (Jerusalem: Magnes, 1984), pp. 148-58;
Terry L. Eves, "One Ammonite Invasion or Two? 1 Sam. 10:27-11:2 in the Light of 4Q
Sama," WTJ 44 (1982): 308-26.
:o Com base em 2 Samuel 2.4b-7, Diana Edelman afirmou felizmente que Jabes-Gileade
não era parte constituinte de Israel, mas um estado vassalo ("SauFs Rescue of Jabesh-
Gilead [1 Sam. 11:1 - 11]: Sorting Story from History," ZAW 96 [1984]: 195-209). Mas
chegou à conclusão errada de que o resgate feito por Samuel daquela cidade não pode­
ria ser considerado um teste para o seu reinado recentemente estabelecido (embora 1
Sm 11.12-14 claramente sugira isto), uma vez que este estado vassalo não poderia existir
e não poderia esperar ajuda, porque Saul ainda não havia se tornado o monarca de um
Reino da Cisjordânia de enormes proporções. O erro de Edelman consiste em passar
por cima da possibilidade de Jabes-Gileade ter-se tornado um estado vassalo devido ao
fato de Saul ter derrotado os amonitas, e, por último, em não aceitar a historicidade da
ligação ancestral entre Saul e Jabes-Gileade, uma ligação que certamente explicaria o
intenso e grande interesse deste pelo local, além da própria convicção que os habitantes
de Jabes-Gileade possuíam de que ele viria em seu socorro.
210 H istória du I srael no A ntigo T estamento

bois, cortou-os em pedaços e enviou a todos os territórios de Israel. Esse


comportamento bizarro, uma reminiscência da atitude do levita envol­
vendo sua concubina assassinada21, foi na verdade uma atitude para alertar
a nação da gravidade do problema, e para persuadi-los a unir-se como um
só corpo em defesa daquela cidade. Em uma manifestação de grande po­
derio militar, que não se via desde os dias de Josué, trezentos mil israelitas
e trinta mil homens de Judá juntaram-se em Beseque (Khirbet Ibziq), cerca
de 24 quilômetros a oeste de Jabes-Gileade. No outro dia atacaram os
amonitas, destruindo-os completamente. Esta vitória pôs definitivamente
uma pedra em cima de qualquer murmuração quanto à liderança de Saul,
e aos seus direitos reais em Israel.

O d e c lín io d e S au l

Desobediência em Gilgal

Diante de tão incontestável prova de que Saul havia realmente sido


ungido por Yahweh, Samuel reuniu todo o povo, desta vez em Gilgal, a
fim de que a nação - agora unida em apoio a Saul - entrasse em aliança
com Yahweh e o seu rei.22 Como agente mediador do concerto, Samuel
aproveitou a oportunidade para verificar sua própria credibilidade entre
o povo (1 Sm 12.1-5), e então passar a fazer uma espécie de retrospectiva
dos atos poderosos cie Deus em favor de seu povo, desde o êxodo até aquele
momento (vv. 6-13)) Israel exigira um rei, e Yahweh concedeu-lhes Saul.
Ora, se Saul e Israel permanecessem fiéis aos termos estabelecidos na ali­
ança, os protocolos definidos em Deuteronômio 17, tudo culminaria em
bênçãos. Caso contrário, experimentariam o desfavor de Yahweh. Então,
como uma amostra de sua autoridade baseada na autoridade de Yahweh,
Samuel invocou raios e trovões vindos dos céus como testemunhas, o que
imediatamente trouxe pânico e terror sobre toda a congregação, visto que
o milagre ocorrera na época da colheita do trigo, no meio da estação seca.
O Deus de Israel era soberano sobre toda a natureza e sobre toda a histó­

21 Para uma atitude semelhante em Mari, ver Archives royales de Mari, editado por Charles-
F. Jean (Paris: Geuthner, 1950), vol. 2, #48,citada por J. Maxwell Miller, "Saul's Rise to
Power: Some Observations Concerning 1 Sam. 9:1-10:16; 10:26-11:15 and 13:2114:4b,"
CBQ 36 (1974): 168.
22 Para um estudo detalhado acerca da assembléia feita em Gilgal como uma espécie de
convocação para a aliança, ver Vannoy, Covenant Renewal at Gilgal, especialmente as
páginas 132-91.
i-»: l : A A liança M al C ompreendida 2 11

ria. A mensagem era bem clara: Israel, mesmo debaixo da monarquia, ti­
nha de submeter-se a Yahweh.
Encorajado pela campanha defensiva contra os amonitas e pelo espíri­
to de solidariedade e aliança expressado pelos israelitas em Gilgal, Saul
deu início ao processo de ofensas contra seu próprio mandato. Os filisteus
já haviam sido expulsos de Israel havia mais de trinta anos por Samuel,
mas continuaram a ameaçar as fronteiras israelitas, chegando mesmo a
penetrá-la consideravelmente em uma ocasião.23 Saul sentiu que havia
necessidade de dar um basta nessas atividades de uma vez por todas. Seu
primeiro assalto às guarnições dos filisteus foi em Geba (Jeba),24 situada a
menos de oito quilômetros da capital (1 Sm 13.3). Jônatas, filho de Saul,
estava no comando de mil homens em Gibeá enquanto Saul tinha dois mil
em Micmás (Mukhmâs), três quilômetros além de Geba. Jônatas deu iní­
cio ao ataque a Geba dos filisteus, mas isso provocou uma forte reação.
Com um vasto número de homens, os filisteus chegaram a Micmás, for­
çando os habitantes da região a evacuar a cidade, enquanto as tropas isra­
elitas fugiam para o oriente, cerca de 19 quilômetros, chegando mesmo a
cruzar o Jordão em direção a Gileade.
Enquanto estava em Gilgal, Saul lembrou-se das palavras de Samuel,
dois anos antes, segundo as quais chegaria um momento em que teria de
esperar pela chegada do profeta, neste mesmo local, por sete dias.25 Teme­

23 Benjamim Mazar, "The Philistines and Their Wars with Israel," em World History of the
Jeivísh People, vol. 3, Judges, editado por Benjamim Mazar (Tel Aviv: Massada, 1971), pp.
175-76.
24 Porém Demsky sugere em "Geba, Gibeah and Gibeon," BASOR 212 (1973): 29-30, que
Geba foi nomeada depois da Geba original (i.e. Gibeá de Benjamim [Jz 20], conhecida
depois como Gibeá de Saul), e não era outra senão a Gibeão (el-Jib). A "Geba de
Benjamim" na maioria dos manuscritos hebraicos de 1 Samuel 13.16 é a mesma Gibeá
de Benjamim.
2- Muitos estudiosos (e.g. P. Kyle McCarter, Jr., I Samuel, Anchor Bible [Garden City, N.Y.:
Doubleday, 1980), p. 228) assumem uma reconstrução desesperadamente confusa quanto
a estes acontecimentos (1 Sm 13.7b-8). Crêem que o historiador bíblico (ou redator) está
sugerindo em 1 Samuel 10.8 que Saul apareceu em Gilgal uma semana antes de sua
eleição como rei quando, de fato, deveria ter comparecido dois anos depois (ver 1 Sm
13.1). Mas, como Cari F. Keil e Franz Delitzsch mostraram há mais de um século, não
existe nenhuma confusão, uma vez que o estudante admita a natureza da sintaxe hebraica
de 1 Samuel 10.8. O que o profeta está dizendo é que se Saul tivesse de ir a Gilgal,
Samuel precisaria fazer o mesmo. Sempre que isto ocorresse, Saul teria de esperar pelo
menos sete dias até que Samuel chegasse. É secundário o fato de Saul não ter ido a
Gilgal até que se passassem dois anos. Ver Keil e Delitzsch, Biblical Commentary on the
Books of Samuel (Grand Rapids: Eerdmans, 1960 reedição), pp. 101-2.
212 H istória de I srael no A ntigo T estamento

roso do ataque iminente que poderia ser desferido pelos filisteus, o pró­
prio Saul ofereceu sacrifícios a Yahweh, violando, dessa forma, não ape­
nas as expressas ordens dadas por Samuel, mas também todas as prescri­
ções que envolviam o próprio ritual do culto. Quando Samuel chegou ao
local, repreendeu o rei e o informou de que sua dinastia, que poderia sub­
sistir para sempre (1 Sm 13.13), estava com seus dias contados. Também
foi o rei informado de que Deus entregaria o governo a um homem segun­
do o seu coração.

A ira contra Jônatas

Após deixar Gilgal, Saul refugiou-se em Gibeá com apenas seiscentos


homens. Os filisteus estavam acampados próximo a Micmás, mas envia­
ram patrulhas de sua base, algumas para Ofra de Benjamim (et-Tai-yibeh),
pouco ao nordeste de Betei; outras patrulhas foram enviadas a Bete-
Horom, a oeste de Micmás; e ainda outras para Zeboim, a noroeste, em
direção a fronteira dos filisteus.26 A liberdade com que se moviam no
interior da terra testificava o perigo que enfrentava a nação comandada
por Saul. Segundo um historiador (1 Sm 13.19-22), essa liberdade pode
ter ocorrido parcialmente em conseqüência da falta de tecnologia do fer­
ro em Israel, uma vantagem estratégica disponível para os exércitos dos
filisteus.27
Aproximando-se mais de Micmás, Saul tomou conta de uma estância
defensiva em Migrom (Tel Miriam), entre Micmás e Geba.28 Jônatas, por
sua vez, sem que ninguém percebesse, partiu para atacar um destaca­
mento filisteu próximo a Micmás, apenas ele e seu armeiro, matando na
ocasião cerca de vinte homens. Essa investida, juntamente com um ter­
remoto, causou um pânico tão violento entre os filisteus que Saul e seus
homens foram imediatamente avisados de que algo estranho acontecia
com os inimigos. Perceberam então que Jônatas e seu armeiro não dor­
miam no arraial, de forma que Saul convocou Aías, o sumo sacerdote,

26 Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa da página 171. x


27 Embora a palavra "ferro" (Heb. Barzel) não apareça nessa passagem, fica claro pelas
fontes consultadas que os filisteus foram os dominadores da metalurgia e exploraram
tal domínio o máximo que puderam. Ver também Trude Dothan, The Philistines and Their
Material Cidture (New Haven: Yale University Press, 1982), p. 20; James D. Muhly, "How
Iron Technology Changed the Ancient World and Gave the Philistines a Military Edge,"
BAR 8 (1982): 52-54.
28Assim diz o Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3aedição (New York: Oxford
University Press, 1984), pp. 73,135.
£*,_ A A liança M al C ompreendida 213

para que trouxesse a arca,29 provavelmente para assegurar a proteção


di\*ina e sua direção. Mas os filisteus estavam em tal alvoroço que aban­
donaram sua posição em Micmás e fugiram para salvar suas vidas. Como
resultado, os m ercenários 'apiru ,30 que tinham sido alugados pelos
filisteus, sentiram-se encorajados a abandonar os fugitivos e unir-se aos
israelitas. Estes mercenários juntaram-se aos israelitas que estavam es­
condidos e àqueles que estavam com Saul para perseguirem os filisteus
em direção nordeste até Bete-Aven (i.e., Betei), e de lá para Aijalom, pró­
ximo à fronteira dos filisteus.
Saul ordenou ao exército que, sob juramento, ninguém comesse abso­
lutamente nada até que Deus desse vitória a Israel. Tal atitude fez com
que seus homens desfalecessem de fome (1 Sm 14.24). Quando os filisteus
fugiram, os israelitas mataram os animais deixados para trás, comendo-os
sem retirarem devidamente o sangue. A quebra do juramento e da lei ceri­
monial de Moisés trouxe um forte pavor sobre Saul, de sorte que resolveu
edificar um altar a fim de oferecer um sacrifício apropriado. Então buscou
ele orientação de Yahweh se deveria ou não insistir na perseguição aos
filisteus, mas nenhuma resposta foi-lhe dada. Saul compreendeu então
que alguém havia cometido alguma falta que desagradara ao Senhor no
juramento por eles feito. Após lançar sortes, soube que seu filho Jônatas
era o culpado, pois, não sabendo do juramento estabelecido para os solda­
dos, havia comido mel no caminho. Somente os apelos do povo impediu
Saul de matar seu próprio filho. Aqui se vê o início da irracionalidade e
loucura de Saul.

29 Assim está registrado no texto massorético de 1 Samuel 14.18. Contudo, parece melhor,
segundo o registro da Septuaginta e outras testemunhas, ler "éfode" em vez de "arca",
pois a arca aparentemente estava ainda em Quireate-Jearim por todo o reinado de Saul.
Além do mais, o contexto técnico indica atividade puramente sacerdotal, pois a narrati­
va sugere que está se recorrendo a um éfode e não à arca (v. 19; cf. vv. 40-42; 23.9; 30.7).
Ver Ralph W. Klein, 1 Samuel, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1983), p. 132,
n.18. G.W. Ahlstrõm, mesmo preferindo adotar o texto massorético nessa passagem,
informa que o éfode aparece nas narrativas de Samuel por todo o período em que a arca
esteve localizada, segundo a tradição, em Quireate-Jearim ("The Traveis of the Ark: A
Religio-Political Composition," JNES 43 [1984]: 145; da mesma forma Antony E Campbell,
"Yahweh and the Ark: A Case Study in Narrative," JBL 98 [1979]: 42-43, n. 32).
30 A visão mais antiga, ou seja, que estes eram os hebreus, é difícil de conciliar com a
mudança de coligação, isto é, com o fato de deixarem os filisteus para aliar-se aos isra­
elitas. É melhor identificá-los, como o faz Norman K. Gottwald, com os 'apiru docu­
mentados nas correspondências de Amarna (The Tribes of Yahweh [Maryknoll, N.Y.: Orbis,
1979), pp. 422-25; ver também o que foi dito acima nas pp. 101-2).
214 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Os inimigos de Saul

Pondo temporariamente de lado a ameaça dos filisteus, o narrador vol­


ta a atenção para um resumo de todas as campanhas militares promovi­
das por Saul. Ele havia se envolvido em embates com os amonitas em
Jabes-Gileade, e talvez em outras ocasiões. Também se engajou em cam­
panhas contra os moabitas, edomitas, e contra o reino arameu de Zobá,
nenhum citado pelo escritor detalhadamente. Apesar disso, à luz desses
episódios, é importante que alguma coisa seja dita acerca do mundo ao
redor de Saul, a fim de poder apreciar melhor as tensões externas que
contribuíram para a deterioração de seu governo.

Os estados arameus
Virtualmente nada é conhecido acerca de Moabe e Edom do século onze,
tanto no Antigo Testamento quanto na literatura extrabíblica, de modo que é
infrutífero especular qualquer coisa que não seja a civilização material.31 Quan­
to aos estados arameus, o quadro torna-se substancialmente mais claro gra­
ças ao volumoso material cuneiforme, oriundo primariamente da Assíria. O
nome dado aos arameus, considerado o mais antigo, era Ahlamú.32 Não foi
senão depois de 1100 que o termo 'armaya (Arameus) surgiu, quando no caso
era usado para descrever as populações seminômades que, por aqueles anos,
haviam ocupado toda a Síria superior e o noroeste da Mesopotâmia. Tiglate-
Pileser I (1115-1077) cita-os como um dos inimigos da Assíria, que ele tentava
controlar. Mas eles não apenas resistiram às pressões dos assírios, como tam­
bém começaram a ocupar e controlar vastas áreas centrais e baixas da Meso­
potâmia. Durante os anos de Saul, eles dominaram todo o norte de Damasco,
atingindo o Eufrates, chegando mesmo a ir além desse rio.33

31 John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples of Old Testament Times, edita­
do por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), pp. 229-34; B. Oded, "Neighbors on the
East," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte I, The Age of the Monarchies:
Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalem: Massada, 1979), pp. 252-61.
Dennis Pardee alistou todas as poucas inscrições que restaram de Moabe, Amom e Edom
conhecidas atualmente, nenhuma delas com data inferior a 850 a.C. (a inscrição de Mesha)
("Literary Sources for the History of Palestine and Syria II: Hebrew, Moabite, Ammonite,
and Edomite Inscriptions," AUSS 17 [1979]: 65-69).
32 Albert Kirk Grayson, Assyrian Royal Inscriptions (Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1976),
vol. 2, p. 13 # 1.
33Merril F. Unger, Israel and the Aramaeans of Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980 reedição),
pp. 38-44. Abraham Malamat, mesmo negando que os Ahlamú fossem os arameus, con­
corda com o julgamento de Unger com respeito ao domínio dos arameus na Síria e nas
5 »: i : A A liança M al C ompreendida 215

O principal reino dos arameus, durante esse período, foi o de Zoba,


governado pela dinastia de Bete Reobe. Esta nação situava-se bem ao nor­
te do vale de Baca, e efetivamente controlava todas as rotas comerciais
desde a Anatólia e sul da Mesopotâmia até o Egito.34 A decadência interna
e militar do império assírio, depois do reinado de Tiglate-Pileser I, e o
contínuo declínio do Egito em seu Terceiro Período Intermediário, permi­
tiram que Zoba se deslocasse praticamente para todas as direções para
assim expandir sua influência e poder. A expansão também incluía a na­
ção de Israel, o que resultou em medidas de retaliação por parte de Saul
contra Zoba. O reino continuou sendo um obstáculo para Israel até a épo­
ca de Davi e Salomão, e mesmo depois deles.

Os filisteus
Era com a Filístia, entretanto, que Saul estava constantemente envolvi­
do, do início ao fim de seu reinado. Esses sobreviventes dos Povos do
Mar, de origem não-semítica, vieram para Canaã como parte de uma mi­
gração maciça de povos que se dirigiam para a Anatólia, Egito, Síria e
outras áreas ocidentais do Mediterrâneo. Eles destruíram o Império Hitita,
inclusive a destruição de cidades sírias como Ugarite. Após uma tentativa
frustrada de conquistar também o Egito, alguns desses Povos do Mar, par­
ticularmente os Peleset e os Tjekker, estabeleceram-se ao longo da porção
central e mais baixa da costa mediterrânea de Canaã. Os Peleset são os
conhecidos filisteus, tão familiares ao leitor da Bíblia (ver p. 161).
Embora tenha havido filisteus em Canaã por muitos anos antes da che­
gada dos patriarcas (ver p. 31), esse grupo também tinha sido "semitizado"
ou, em outra hipótese, absorvido pela nova leva de invasores. Os "novos"
filisteus estabeleceram uma cabeça-de-ponte no sudoeste de Canaã em
cerca de 1200, estabelecendo-se nas principais cidades da região (ou pró­
ximo a elas): Gaza (Ghazzeh), Ascalom ('Askalon) e Asdode (Esdüd), ao
longo da costa; Ecrom (Khirbet el-Muqanna') e Gate (provavelmente Tel
es-Sâfi), no Sefelá.
Tem sido muito comum descrever a forma de governo dos filisteus como
um tipo de pentápole, em que cada governante (Heb. Serem, "senhor")

partes mais altas da Mesopotâmia na época do rei Saul. ("The Aramaeans/' em Peoples
of Old Testament Times, editado por D.J. Wiseman, pp. 135-38; ver também em Yutaka
Ikeda, "Assyrian Kings and the Mediterranean Sea: The Twelfth to Ninth Centuries
B.C.," Abr-Nahrain 23 [1984-1985]: 29, n.lO).
34 Benjamim Mazar, "The Aramaean Empire and Its Relations with Israel/' em Biblical
Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman (Garden
City,N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, pp. 131-32.
216 H istória de I srael no A ntigo T estamento

aparentemente possuía o mesmo nível de autoridade dos demais. Nenhum


empreendimento que envolvesse toda a confederação deveria ser aprova­
do sem o voto da maioria (e talvez unânime). Não se pode saber mais que
isso, pois falta a evidência dos textos filisteus.35
A falta de conhecimento com respeito ao vocabulário dos filisteus
limita qualquer tentativa de definir com precisão o idioma do povo,
embora muitos estudiosos acreditem que se originara na região do mar
Egeu, nas ilhas (e.g., Creta) ou na Ásia Menor (Lídia). Até os textos
nativos serem encontrados, as questões filológicas permaneceram sem
respostas.36
Semelhantemente, é impossível saber qualquer coisa relativa à reli­
gião pré-cananéia dos filisteus, porque todas as divindades por eles
adoradas eram de origem semítica. E bem provável que os filisteus te­
nham absorvido os deuses cananeus, inserindo-os em seu sistema reli­
gioso, identificando seus antigos deuses com as novas divindades re­
centemente encontradas. Seu deus principal era Dagon, conhecido no
norte da Mesopotâmia e Síria como Dagan, pai de Hadade ou Baal. Sua
forma metade homem e metade peixe, conforme sugerido em 1 Samuel
5.4,37 pode mesmo estar refletindo o sincretismo religioso mencionado
pouco acima, no qual os filisteus, sendo um povo do mar, provavel­
mente retiveram as características marinhas de seu deus, adaptando-o
ao novo estilo de vida agrícola em Canaã. Portanto, Dagon era uma
divindade relacionada à agricultura, imposta sobre o deus peixe origi­
nal. Outros deuses dos filisteus eram Baal-Zebube e Astarote, uma deusa
do panteão cananeu, que sem dúvida era adorada pelos filisteus em
Bete-Seã (pelo menos ali [1 Sm 31.8-13]). Os detalhes relativos ao culto
também são bastante incertos, embora existam as referências no Anti­
go Testamento quanto à existência de sacerdotes filisteus (1 Sm 5.5; 6.2),
35 Dothan, Philistines, pp. 18-19. Ver também Hanna E. Kassis, "Gath and the Structure of
the 'Philistine' Society," JBL 84 (1965): 259-71. Kassis é de opinião que a cultura dos
filisteus, conforme descrita no Antigo Testamento, era profundamente misturada com
elementos cananeus, especialmente em Gate.
36 Kenneth A. Kitchen, "The Philistines," em Peoples of Old Testament Times, editado por
D.J. Wiseman, pp. 67-68; Mazar, "The Philistines and Their Wars with Israel," em World
History of the Jewish People, vol. 3, pp. 165-66.
37 O hebraico diz: "Somente seu Dagon (dãgôn) foi deixado," uma frase que os estudiosos
desde os dias de Julius Wellhausen têm compreendido como: "Somente sua parte de
peixe (dãg) foi deixada". Para um apanhado abrangente sobre o assunto, consultar Lewis
Spence, Myths and Legends o f Babylonia and Assyria (London: Harrap, 1916), pp. 151-52;
Ulf Oldenburg, The Conflict Between El and B aal in Cayiaanite Religion (Leiden: E.J. Brill,
1969), pp. 56-57; McCarter, I Samuel, pp. 119-20.
S*.-: l : A A liança M al C ompreendida 217

práticas pagãs de adivinhação (1 Sm 6.2) e saltos no pátio de um tem­


plo (1 Sm 5.5).38
Os conflitos entre Israel e os filisteus são tão antigos quanto o governo de
Sangar, o terceiro juiz, que aparentemente resistiu às incursões do adversá­
rio até cerca de 1230 (ver p. 168). Mas foi Sansão quem primeiro empreen­
deu medidas ostensivas de defesa contra os filisteus, pois já vinham ocor­
rendo fortíssimos choques desde 1124. Pode ser que sessenta ou setenta
anos tenham sido suficientes para eles se reorganizarem, atingindo uma
população forte para empreender uma penetração nos territórios altos de
Israel. Por quarenta anos eles perturbaram Israel, a despeito dos feitos he­
róicos de Sansão, até que por volta de 1084 foram finalmente forçados a
render-se e devolver as cidades israelitas que haviam capturado, retirando-
se assim para o oeste do Sefelá. Contudo, daquela região, continuaram a se
aventurar em campanhas para o interior de Israel, principalmente para as
planícies e vales, onde poderiam utilizar suas carruagens largamente. A cons­
tante pressão filistéia também serviu como fator contribuinte para o levan­
tamento de um rei, uma exigência que tornou-se cada vez maior quando
Samuel já estava idoso e sem condições para libertá-los.
Esta era a situação diante de Saul, quando começou o seu reinado. Não
apenas os filisteus estavam fortemente instalados em áreas como Bete-
Seã, na planície de Jezreel, mas também se empenharam na construção e
ocupação de várias fortalezas situadas no meio da terra de Israel, não muito
distantes de Gibeá, a própria capital do reino de Saul (1 Sm 10.5). Confor­
me já dito, Saul esforçou-se em várias campanhas naquela área na inten­
ção de repelir os filisteus, afastando-os e forçando-os de volta ao seu terri­
tório (1 Sm 14.46), mas não há qualquer evidência de que foram sequer
expulsos de Jezreel. Somente nos dias de Davi, depois de 1000 a.C., os
filisteus viram-se forçados a permanecer em seu território original, em
sua pentápole. Mas deve-se reconhecer a tenacidade desse povo, pois, com
exceção de breves períodos em que foram forçados a pagar tributos a Isra­
el, nunca perderam a independência até quando Samaria foi destruída
pelos assírios, em 722 e Judá ficou submissa a essa potência internacional.

Os amalequitas
Outro inimigo de Saul com características e em circunstâncias total­
mente diferentes eram os amalequitas. Esses nômades do deserto esta­
vam sempre surgindo na história de Israel, quase sempre no papel de

55 Dothan, Philistines, pp. 20-21; Kitchen, "The Philistines", em Peoples of Old Testament
Times, editado por D.J. Wiseman, p. 68.
218 H istória de I srael no A ntigo T estamento

adversário. No deserto do Sinai, atacaram Israel pelas costas, em uma


vergonhosa amostra de covardia (Êx 17.8-16; Dt 25.17-19). Por causa
disso, Yahweh os separou para um julgamento especial. Foram eles que
se juntaram aos cananeus numa campanha contra os israelitas, na oca­
sião em que os hebreus tentaram uma invasão prematura em Canaã
pelo sul (Nm 14.45). Mesmo depois desses acontecimentos, o rei Eglon
dos m oabitas, ao descrever sua conquista da porção centro-leste de
Israel, registra os amalequitas como um dos seus associados na guer­
ra (Jz 3.13). Não há dúvida de que os contingentes amalequitas per­
maneceram nas regiões montanhosas de Efraim depois da morte de
Eglon, pois Débora fala acerca deles, dessa vez favoravelmente, como
seus aliados contra Jabim e Sísera (Jz 5.14; cf. 12.15). No princípio do
décimo segundo século, quando os midianitas foram levantados por
Yahweh para disciplinar seu povo, trouxeram os amalequitas como
aliados (Jz 6.3,33).
O quadro que emerge desses dados é que os amalequitas eram adver­
sários inveterados de Israel, que juntavam-se a qualquer um que se dispu­
sesse a atacar e fazer mal aos israelitas. Não há como afirmar as origens
desta aversão a Israel, embora Amaleque, o patriarca dessas tribos, seja
identificado em Gênesis 36.12 como neto de Esaú. Pode ser que a ira de
Esaú contra Jacó relacionada à herança e direito de primogenitura tenha
achado expressão histórica no anti-semitismo manifestado por Amaleque
contra os hebreus.
Com a investidura do primeiro rei de Israel, o tempo havia chegado
segundo o propósito de Deus para que o antigo problema "amalequitas"
fosse de uma vez por todas resolvido (1 Sm 15.1-3). Ironicamente, a des­
truição dos amalequitas também contribuiria para a destruição e ruína
de Saul. Samuel veio a Saul e revelou-lhe as intenções de Yahweh de pôr
os amalequitas sob o herem, o que significaria riscar tanto o povo quanto
suas posses de sobre a face da terra. Sendo assim, Saul ajuntou suas tro­
pas, marchou para o sul em direção ao deserto, e destruiu os amalequi­
tas até as fronteiras do Egito.39 Antes disso, ele mandou avisar aos
quenitas que viviam entre eles que fugissem, pois eram aparentados com
Moisés e não tinham nada a ver com as maldades de Amaleque (Jz 1.16;
4.11). Saul errou por não ter destruído todos os amalequitas, e também
por não ter eliminado todos os animais. Além disso, trouxe Agague, rei
dos amalequitas, vivo para Gilgal, juntamente com um rebanho escolhi­

39 Yohanan Aharoni, "The Negeb and the Southern Borders," em World History ofthe Jewish
People, vol. 4, parte 1, pp. 292-93.
S a íl : A A liança M al C ompreendida 219

do por ele. Foi lá que Samuel condenou severamente sua atitude de de­
sobediência. Mesmo os argumentos de Saul quanto aos animais, que ti­
nham sido trazidos a Gilgal para serem sacrificados a Yahweh, não fo­
ram suficientes para evitar as censuras do profeta, que naquele momen­
to aproveitou para informar ao rei que seu trono tinha sido rejeitado,
pois já havia um outro homem melhor do que ele preparado para assu­
mira a posição.

C o n s id e ra ç õ e s te o ló g ic a s

A intenção divina para com um reinado humano

A falha e a desqualificação de Saul como rei de Israel não apresenta


um problema histórico, já que os registros concernentes aos reis e às
dinastias mostram que tanto o sucesso quanto as falhas, a ascensão e a
queda fizeram parte tradicionalmente de seu contexto. Mas o final trá­
gico da vida de Saul possui algumas implicações teológicas mais pro­
fundas do que seu papel histórico em Israel. O reinado era parte e uma
parcela fundamental no desenvolvimento do programa de Deus em de­
monstrar sua soberania sobre todas as demais nações e sobre toda a
criação.40 De fato, por todo o antigo Oriente Médio, os povos já refleti­
am sobre o reinado como uma forma de trazer para a terra o poder e a
soberania dos deuses que habitavam no céu, de forma que seus propó­
sitos pudessem aqui se cumprir.41 Esta é a razão por que os reis eram
vistos pelo povo de duas maneiras, como um ser considerado divino
(como no Egito), ou, pelo menos, chamado diretamente pelos deuses,
sendo por eles autorizados a exercer o governo. Em algumas socieda­
des havia um acúmulo de funções que tornavam os monarcas homens-
deuses, trazendo a idéia de uma relação filial entre o homem e os deu­
ses, no mínimo pela adoção.42

40 O rei, considerado como o mentor e o mantenedor da ordem debaixo da vontade de


Deus, é um motivo não apenas para a Torá, mas também para os Salmos e literatura de
sabedoria. Ver Helen Ann Kenik, "Code of Conduct for a King: Psalm 101," JBL 95 (1976):
402-3.
41Ver especialmente Sidney Smith, "The Practice of Kingship in Early Semitic Kingdoms,"
em Mith, Ritual and Kingship, editado por Samuel H.Hooke (Oxford: Clarendon, 1958),
pp. 22-73; Henri Frankfort, Kingship and the Gods (Chicago: University of Chicago Press,
1948), pp. 343-44.
42Ivan Engnell, Studíes in Divine Kingship in the Ancient Near East (Uppsala: Almqvist and
Wiksells, 1943), pp. 4.11, 80-81.
220 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Esta noção é a mesma do Antigo Testamento, embora a divindade ob­


viamente nunca fosse atribuída ao rei humano.43 Não se deve assumir,
entretanto, como muitos estudiosos fazem, que o reinado em Israel teve
suas bases no pensamento comum das civilizações que o cercavam.44 Pelo
contrário, o que se deve ver no reinado do Oriente Médio é um reflexo do
propósito original de Deus que, infelizmente, foi corrompido no decorrer
dos milênios através de sociedade politeístas, onde, entre outros erros,
havia indivíduos poderosos que usavam a noção de reinado com autori­
zação divina como uma justificação para um despotismo impiedoso.
O reinado em Israel, conforme se tem demonstrado (p. 198), foi expressa­
mente previsto e promulgado por Moisés e pelos patriarcas, muito tempo
antes da instituição entrar verdadeiramente em vigor. Mas até que os hebreus
passassem pela mudança que os transformaria de um agrupamento de indi­
víduos em uma nação (uma transição que ocorreu somente depois da saída
no êxodo e das experiências no Sinai), não estavam propriamente constituí­
dos para formar um importante reinado. Foi somente pela providência de
Deus, mediante a escolha de Davi, o "homem segundo o coração de Deus",
que o cenário foi armado para a iniciação do reinado humano em Israel, em
sua maior expressão de grandeza. Nesse caso, Davi não foi apenas um rei,
mas, em sintonia com os propósitos reais e salvíficos de Deus, foi visto como
o filho de Deus. Ou seja, ele foi adotado por Deus para representá-lo na terra,
para que estabelecesse uma dinastia humana pela qual o próprio Filho de
Deus (que também era Filho de Davi), o próprio Jesus Cristo, viesse a reinar.
Somente Davi, portanto, podia servir adequadamente como um protótipo do
Rei Messias. E, do mesmo modo que o Messias seria um profeta e sacerdote,
além de rei, assim Davi exerceria estas funções entre os hebreus, e de uma
forma que operaria fora dos limites normais daqueles ofícios.45

43 Edmond Jacob, Theology of the Old Testament (New York: Harper and Row, 1958), pp.
234-39; Frankfort, Kingship and the Gods, p. 339. Em nossa opinião, Frankfort foi longe
demais em sua tentativa de negar a centralidade do reinado na ideologia israelita (ver
em seu trabalho nas pp. 337-44).
44 Assim pensa, por exemplo, Engnell, em Studies in Divine Kingship, pp. 174-77, na seção
em que ele antevê seu próximo trabalho acerca da monarquia no Antigo Testamento.
Esse é o ponto de vista da chamada escola do Mito e Ritual, que floresceu uma geração
atrás, e quem tem suas idéias expressadas em algumas publicações, como a que foi
editada por Hooke, intitulada Myth, Ritual and Kingship.
45 Dennis J. McCarthy, "Compact and Kingship: Stimuli for Hebrew Covenant Thinking,"
em Studies in the Period of David and Solomon and Other Essays, editado por Tomoo Ishida
(Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), p. 82; Talmon, "The Biblical Idea of Statehood,"
em The Bible World, editado por Gary Rendsburg, pp. 247-48.
S a i l : A A liança M al C ompreendida 22 1

Falta de entendimento de Saul para com a aliança:


violação das prerrogativas sacerdotais.

Saul, apesar de tudo, ainda permanece um enigma, pois não apenas


recebeu a permissão de Deus para reinar,46 ainda que por uma espécie de
concessão ao pedido do povo, como também Yahweh o informou de que,
se ele não falhasse em relação aos aspectos do culto, fundaria uma dinas­
tia que reinaria sobre Israel para sempre (1 Sm 13.13). Essa declaração deve
ser tomada literalmente, mas visto que está claro que o reinado messiânico
estava reservado a Davi, deve-se então concluir que a divisão do reino foi
um resultado previsto, e que os sucessores de Saul, sendo este obediente,
reinariam sobre um reino, talvez Israel, ao norte, enquanto os sucessores
de Davi reinariam, conforme de fato aconteceu, sobre Judá, ao sul.47 A
rejeição de Saul em Gilgal e sua conexão com o oferecimento do sacrifício
não é sem significação no aspecto de sua remoção e do anúncio do
surgimento de Davi.
Na primeira vez, Saul falhou em não esperar pela chegada de Samuel
em Gilgal, e com suas próprias mãos ofereceu ofertas queimadas - uma
função proibida para um não-levita, a não ser por uma dispensação espe­
cial de Deus. Mas isto não está sugerido em nenhum ponto da narrativa.
Na segunda ocasião, Saul achou que podia violar o herem ao poupar al­
guns animais dos amalequitas, que tencionava sacrificar ao Senhor. E plau­
sível que Saul planejasse oferecer os sacrifícios pessoalmente. A reprimenda
de Samuel parece favorecer esta interpretação, pois ele disse a Saul que
"obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender melhor é do que a
gordura de carneiros" (1 Sm 15.22). Tal desobediência, disse Samuel, é
rebelião, um pecado tão pernicioso quanto a adivinhação ou idolatria.
O erro de Saul, então, foi apropriar-se das prerrogativas sacerdotais,
um ato possivelmente associado aos reinos pagãos; mas, sem uma sanção
divina específica, era totalmente impróprio para Saul ou qualquer outro
rei de Israel. O papel dos reis nos cultos era, de fato, quase universal, en­

46 Para uma resolução quanto às supostas contradições nas tradições "deuteronomistas",


ou seja, se o reinado de Saul tinha ou não a sanção divina, ver em A.D.H. Mayes, "The
Rise of the Israelite Monarchy," ZAW 90 (1978): 9-10.
47Visto que a promessa messiânica de realeza fora especificamente conferida a Judá, como
vemos claramente declarada em Gênesis 49.10, os propósitos salvíficos de Deus podem
ter sido restritos (como de fato o foram) dentro dos limites do reino do sul até que
chegassem os tempos escatológicos quando os reinos de Israel e Judá seriam novamen­
te unificados.
H istória de I srael no A ntigo T estamento

tão Saul, imitando o procedimento, poderia ser escusado se não estivesse


contrário ao que está escrito na Lei de Deus. O mandamento era explícito
- os negócios sacerdotais e do culto são exclusividade dos levitas e dos
sacerdotes.
Davi, pelo contrário, operou também nos assuntos do culto, pois, como
rei messiânico, transcendeu e foi isento das restrições contidas na lei a
respeito das ofertas (ver pp. 282,283). Como filho de Deus, foi sacerdote
eterno segundo a ordem de Melquisedeque, se também não o fora da or­
dem de Arão. Conforme o autor de Hebreus cuidadosamente mostra (Hb
5.1-10; 6.13-7.28), o sacerdócio de Melquisedeque foi superior ao de Arão,
visto que Arão e Levi submeteram-se a Melquisedeque enquanto ainda
estavam nos lombos de Abraão, seu pai. Davi, então, como herdeiro espi­
ritual de Melquisedeque (SI 110.4), podia oferecer sacrifícios, e assim o
fez, ainda que não fosse da tribo de Levi, da mesma forma que Jesus Cris­
to da tribo de Judá serve neste momento como o Grande Sumo Sacerdote
nos céus, infinitamente superior aos sacerdotes aarônicos.
Saul, embora escolhido para ser rei de Israel, nunca foi chamado de "fi­
lho de Deus", e em nenhum momento recebeu qualquer privilégio sacerdo­
tal em virtude daquele relacionamento. Aqui está o centro de sua desobedi­
ência e rejeição: de forma arrogante e consciente, Saul penetrou além das
fronteiras estabelecidas, em um espaço de seu reinado que teológica e histo­
ricamente estava reservado para Davi e a sua dinastia somente.

O s u rg im e n to de D a v i

A unção de Davi

O declínio de Saul coincide com o aparecimento e a ascensão de Davi.


Samuel - embora tenha se lamentado quanto à tragédia que se abatera
sobre a vida de Saul - foi até Belém, em obediência a Deus e ao seu chama­
do, onde encontrou entre os filhos de Jessé o rei que Deus tinha provido (1
Sm 16.1). O próprio Yahweh indicou claramente a sua escolha (1 Sm 16.3).
Após o final de um processo seletivo, Davi finalmente compareceu à pre­
sença de Samuel que, por ser profeta antigo, conheceu imediatamente que
ali estava aquele que tinha sido divinamente escolhido, um fato confirma­
do pela visitação do Espírito de Deus sobre ele.48

4S E bastante propício o momento para se falar a respeito da cronologia, especialmente


nesse período transitório da história de Israel. Davi, que subiu ao trono de Judá em 1011
na idade de trinta anos (2 Sm 5.4), nascera em 1041, ou seja, alguns anos depois que Saul
S u l : A A liança M al C ompreendida 223

Davi na corte de Saul

Depois que o Espírito de Yahweh veio sobre Davi, foi permitido que
um espírito demoníaco atormentasse Saul até o dia de sua morte (1 Sm
16.14). Para amenizar seus ímpetos de mau humor e fúria, seus servos
decidiram buscar um músico, cujas melodias pudessem ser um bálsamo
sobre o rei. Providencialmente, Davi foi selecionado, um fato que não ape­
nas beneficiou Saul, mas também permitiu que Davi se familiarizasse com
a vida na corte, preparando-o para o papel público que viria a exercer
mais tarde. Saul gostou muito do jovem e logo fez dele seu armeiro e mú­
sico. Por um breve espaço de tempo esteve Davi com Saul, embora no
próximo acontecimento ele já esteja em Belém.49

Davi e Golias

Poucos anos após o desastroso episódio com os amalequitas, Saul mais


uma vez enfrentava o problema dos filisteus. Embora estes esperassem
reconquistar alguns territórios nas regiões centrais de Israel, o melhor que
conseguiram foi chegar a um impasse contra as forças de Saul em Ephes
Dammin, um local não identificado, mas que o narrador diz situar-se en­
tre Sucote (Khirbet 'Abbâd) e Azeca (Tel Zakari-yeh),50 no vále de Elá,
cerca de 32 quilômetros a sudoeste de Jerusalém. Ambos os lados con­
cordaram que o confronto seria decidido por um duelo, em vez de um
combate aberto, de forma que cada um teve de escolher um guerreiro que
representasse seu povo.51 Os filisteus escolheram Golias de Gate, um gi­
gante com cerca de 3 metros que, provavelmente, descendia dos enaquins,

começou a reinar. Certamente era muito jovem quando recebeu a unção de rei, mas não
tão jovem ao ponto de não ser capaz de olhar e cuidar do rebanho de seu pai sozinho.
Não seria absurdo afirmar que ele tinha doze anos na ocasião. Isto fixa uma data no
princípio dos anos 1020 para o tempo em que Saul foi rejeitado e Davi foi ungido como
o novo rei, uma data que se encaixa bem com a idade de Samuel, que nessa ocasião já
estava com cerca de noventa anos.
49Aperícope da unção de Davi (1 Sm 16.1-13), freqüentemente considerada tardia e histo­
ricamente não confiável, recebe brilhante defesa e análise por Martin Kessler, que a vê
como parte integral da narrativa ("Narrative Technique in 1 Sm 16.1-13," CBQ 32 [1970]:
552-53).
50 Para uma identificação destes sítios, ver Yohanan Aharoni, The Land o f the Bible
(Philadelphia: Westminster, 1979), pp. 442,431.
51 Sobre os lutadores guerreiros, ver Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw­
Hill, 1965), vol. 1, p. 218.
224 H istória de I srael no A ntigo T estamento

já que estes fixaram residência nas cidades dos filisteus após serem expul­
sos de Hebrom por Josué (Js 11.21,22). Israel, contudo, não achava alguém
que representasse a nação e também Yahweh.
Finalmente Davi entrou em cena. Havia estado em Belém para ajudar o
pai idoso e servir-lhe de emissário em tempos oportunos (1 Sm 17.15).
Não é necessário concluir, como muitos estudiosos o fazem, que a presen­
te história e aquela sobre a seleção de Davi como músico da corte são rela­
tos conflitantes, somente por Saul não ter reconhecido Davi na ocasião.52
Primeiro, é impossível saber quanto tempo transcorreu desde que Davi
esteve com Saul. E bem conhecido o fato de os adolescentes sofrerem rápi­
das mudanças no aspecto físico dentro de um ou dois anos, sendo perfei­
tamente possível que Davi (aqui ainda muito jovem) tivesse amadurecido
consideravelmente desde que servira a Saul pela última vez. Além disso,
o estado de saúde mental e emocional de Saul, freqüentemente irregular,
certamente agravou-se durante esse forte período de estresse, talvez a ponto
de sequer reconhecer um velho amigo.
Embora Davi tenha sido enviado para a frente de batalha a fim de levar
suprimento aos seus irmãos, ficou tão ofendido com as maldições proferi­
das pelo filisteu que ele mesmo fez-se voluntário para duelar com Golias.
Tomou consigo uma funda e feriu o gigante em nome e pela honra de
Yahweh (1 Sm 17.45-50). Davi, portanto, mostrou desde o início que seu
zelo era santo, como devia ser o zelo do ungido do Senhor. Ele era o rei-
guerreiro que se juntou a Deus contra todos que desafiassem a soberania
de Yahweh.

Davi e Jônatas

O ato de heroísmo impressionou Saul de tal maneira que determinou a


permanência de Davi em sua corte, e procedeu cumprindo sua palavra de
recompensar o herói que ferisse o filisteu (1 Sm 17.25). Isto incluía a isen­
ção das taxas e impostos para sua família (o motivo por que Saul procurou
saber acerca do pai de Davi em 1 Sm 17.56), o casamento com a filha do rei
e muitas riquezas, isto é, uma ascensão súbita e inesperada, mas já previs­
ta para aquele que se tornaria o genro do rei e comandante do seu exérci­
to. Mas dentre todas as coisas, o mais valioso para Davi foi a profunda
amizade de Jônatas, filho de Saul. Este foi um relacionamento notável.
Jônatas era consideravelmente mais velho do que Davi; então é preciso

52 Ver Otto Eissfeldt em The Old Testament: An Introduction, traduzido por Peter R. Ackroyd
(New York: Harper and Row, 1965), p. 274.
S ' : l : A A liança M ai. C ompreendida 225

considerar a amizade como de pai para filho, em vez de apenas uma ami­
zade comum. A diferença na idade é claramente provada pelo fato de Davi,
como já estudado, ter nascido não antes de 1041, enquanto Jônatas já era
líder de vários homens no princípio do reinado de seu pai, por volta de
1050. Talvez Jônatas fosse uns trinta anos mais velho que Davi. Somente
por especulação pode-se dizer que Jônatas não tinha filhos quando conhe­
ceu Davi, ou que ficara tão persuadido acerca da eleição de Davi como rei,
que o abraçou como o ungido de Yahweh, mesmo antes de Davi ter assu­
mido a função de governante.
Em apoio à última hipótese está a própria renúncia de Jônatas. Ele era
o filho mais velho de Saul e certamente sucederia ao pai no reino. Por isso
Saul advertiu ao filho que enquanto Davi estivesse vivo, Jônatas não teria
como assentar-se no trono, dando continuidade à dinastia de Saul (1 Sm
20.31). Mas Jônatas sabia no íntimo o que na verdade seu pai tentava ne­
gar - Davi era um homem segundo o coração de Deus.53 Sendo assim, ele
se despojou de toda ambição política e ascensão social e juntou-se a Davi,
formando um laço de amizade e lealdade indissolúvel. Os dados esclare­
cem melhor a natureza da aliança estabelecida entre Davi e Jônatas. Men­
cionada pela primeira vez em 1 Samuel 18.1-3, a aliança expressava muito
mais do que amizade. Era um contrato formal pelo qual Jônatas não ape­
nas demonstrava amor humano em mais alto nível, mas também pleitea­
va para si mesmo o favor de Davi como seu senhor e ungido de Yahweh.54
Há várias outras indicações de que Jônatas acatou a escolha de Davi por
Yahweh. Primeiro, a aliança foi feita mutuamente, mas foi uma iniciativa de
Jônatas, e não vice-versa (1 Sm 18.1, 3b; 20.8,16,17). Segundo, Jônatas sub­
meteu-se às mais altas reivindicações de um reinado davídico quando ves­
tiu Davi com seu próprio manto (1 Sm 18.4). Depois, reconheceu que Davi
viveria mais do que ele e, como rei, estaria em posição de mostrar favor aos
seus descendentes (1 Sm 20.14,15,42). Também afirmou de maneira clara
que Davi seria o rei, e Jônatas, seu servo (1 Sm 23.17,18). Terceiro, a aliança
foi feita não apenas com Davi pessoalmente, mas também com toda a di-

53 David Jobling defende a idéia de que a seleção de Jônatas como sucessor de Saul já
estava determinada no relato da batalha, em 1 Samuel 14.1-46, onde ele diz que a narra­
tiva é pró-Jônatas, identificando este como o homem segundo o coração de Deus ("Saul's
Fall and Jonathan's Rise: Tradition and Redaction in 1 Sam. 14-1-46," JBL 95 [1976]: 371).
Essa idéia pode ser sustentada somente se for descartada a evidência em 1 Samuel 13.13,
onde está registrado que toda a dinastia de Saul (incluindo Jônatas) seria substituída
por outra.
34 Ver Tryggve N.D. Mettinger, King and Messiah: The Cível and Sacral Legitimation of the
Israelite Kings (Lund: C.W.K. Gleerup, 1976), p. 39.
226 H istória de I srael mo A ntigo Testamento

nastia davídica (1 Sm 20.16). Jônatas decerto conhecia que a eleição de Davi


era mais que uma escolha ad hoc. Era, na verdade, a inauguração de uma
nova dinastia de reis instaurada pelo próprio Yahweh, que não apenas subs­
tituiria a dinastia de Saul, mas também teria ramificações no plano da re­
denção muito difíceis de entender naquele momento.

A fuga de Davi

A conspiração de Saul
A ascensão de Davi ao poder promovida por Saul foi uma atitude polí­
tica astuta, embora provasse mais a fragilidade psicológica do rei contur­
bado. Com grande coragem temperada pela circunspeção e humildade,
Davi saía às guerras, e voltava tão bem-sucedido que não demorou para a
multidão passar a cantar a respeito de seus feitos, quase de forma lendá­
ria. O rei Saul achou-se eclipsado e, a partir daquele momento, traçou al­
gumas estratégias para livrar-se de seu rival.
Em primeiro lugar, sob influência demoníaca, Saul tentou encravar Davi
com uma lança na parede, pelo menos por duas vezes (1 Sm 18.11; 19.10),
mas Yahweh o livrou de suas mãos. Bastante frustrado, Saul dispensou
Davi da corte, deixando-o apenas dedicado ao serviço militar. Depois, o
rei maquinou um plano pelo qual se veria livre de Davi: obrigou-o a pagar
o preço (mõhar) de cem filisteus mortos, em troca da mão de sua filha Mical.
Isto seria o equivalente a uma alta quantia em prata e ouro (1 Sm 18.25).
Davi não se intimidou e buscou a ocasião, ferindo duzentos filisteus. Quan­
do Saul recebeu os relatórios constatando que a tarefa havia sido cumpri­
da, tratou imediatamente de fazer os preparativos para o casamento. Saul
passou a ter como genro o inimigo que tentava destruir.
A partir de então Saul passou a manifestar abertamente a intenção de
destruir Davi, fazendo com que o próprio Jônatas soubesse de seus pla­
nos. Este, consciente sobre a eleição divina de Davi, buscou fazer seu pai
entender que seria tolice derramar sangue inocente (1 Sm 19.4,5). Tais pa­
lavras até ocasionaram uma reconciliação momentânea, mas Saul logo
estava à procura de Davi para o matar; desta vez, enviou alguns assassi­
nos para o atacar enquanto estivesse dormindo. Porém Mical, ao tomar
conhecimento do plano, avisou o marido, dando-lhe tempo para escapar e
refugiar-se em Ramá junto ao profeta Samuel (1 Sm 19.18).
Permanecendo lá por pouco tempo, Davi procurou Jônatas mais uma
vez, e juntos planejaram um meio de Davi saber se teria ou não um futuro
na corte de Saul. Na ocasião, a intercessão de Jônatas por Davi era total­
mente em vão, porque Saul havia posto no coração que Davi precisava ser
S ‘ \l : A A liança M al C ompreendida 2 2 7

eliminado. Saul percebeu que Jônatas havia reconhecido a legitimação do


reino de Davi, e que expressava lealdade ao homem que era segundo o
coração de Deus (1 Sm 20.30,31). Então, não havia outro caminho para
Davi senão fugir, tornar-se um exilado de seu país e de sua família, caso
ainda esperasse sobreviver para reivindicar seu lugar ao trono.

Davi, o fora-da-lei
Davi foi primeiramente para Nobe,55 uma vila no monte das Oliveiras,
onde o sumo sacerdote presidia sobre o tabernáculo. Visto que Aimeleque
(em outra passagem conhecido como Aías; cf. 1 Sm 14.3; 22.9) era bisneto
de Eli, é razoável admitir que ele ou seu pai Aitube removeram o
tabernáculo de Siló e o instalaram em Nobe. Alguns até hoje questionam o
porquê de tal lugar haver sido escolhido. A arca, é claro, ainda estava em
Quireate-Jearim, sob a custódia da família de Abinadabe.
Tendo escapado de Saul apenas com as roupas do corpo, Davi e seus
companheiros estavam famintos e pediram alimento ao sacerdote.
Aimeleque não sabia acerca do desentendimento entre Saul e Davi, de
sorte que lhes providenciou o único alimento disponível: os pães da pro­
posição do tabernáculo. Tomando a espada de Golias - que tinha sido
guardada debaixo do éfode, talvez como símbolo da superioridade de
Yahweh sobre os filisteus - Davi partiu em direção a Gate, a terra natal
de Golias.56 Este ato de loucura, acentuado pelas representações teatrais
de Davi, acabou convencendo Áquis, rei de Gate, de que Davi estava de
fato insano. Os profetas extáticos do mundo pagão agiam da mesma ma­
neira e, tidos como homens santos, eram isentos de punição, como foi
Davi. O herói hebreu que ferira de morte Golias, obteve o direito de aguar­
dar em Gate.57 De fato, Davi procurava um refúgio em Gate, mas o rei
Áquis, por alguma razão, não achou por bem que Davi permanecesse
em seu meio.
Pelos próximos dez anos, Davi viveu uma vida de fugitivo, movendo-
se de um lado para outro, sem nenhuma ajuda visível. Encontrou refúgio

75 Nobe deve ser identificada com a el-'Isãwiyeh (Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible
Atlas, p. 181). Entretanto, Denis Baly a identifica com a et-Tor (The Geography of the Bible
[New York: Harper, 1957], p. 162).
56Mazar, "The Philistines and Their Wars with Israel," em World History of the Jewish People,
vol. 3, p. 178, sugere que Gate tenha se tornado um importante centro político dos filisteus,
já que as guerras com os israelitas forçaram os filisteus a proteger muito mais as frontei­
ras orientais com Benjamim.
57 Hertzberg, I & II Samuel, p. 183.
22S H istória de I srael no A ntigo T estamento

na caverna de Adulão, uma cidade situada na Sefelá de Judá, cerca de 24


quilômetros a sudoeste de Belém. Na ocasião, sua família tomou ciência
da situação, e juntou-se a outros sob o comando de Davi. Isto sugere que
emergia um consenso a respeito de que Davi, tendo recebido a unção como
rei, estava prestes a liderar um movimento que resultaria em uma grande
revolução e na deposição de Saul. Até mesmo os filisteus perceberam isto
(1 Sm 21.11). É provável que tivessem poupado Davi em Gate precisamen­
te porque poderiam usá-lo para minar o governo de Saul.
Davi, entretanto, preocupava-se mais com sua sobrevivência, embora fi­
que claro que no curso do exílio estivesse cultivando boas relações com seu
clã judaico, a fim de ganhar apoio quando chegasse o tempo de sua monar­
quia. Estrategicamente, fez uma viagem a Mispa em Moabe (local desco­
nhecido), onde requisitou e recebeu permissão para deixar a família ali, vi­
sando protegê-la. E clara a razão de Davi ter escolhido esse local, visto que
sua bisavó Rute era moabita. Também pode ter havido a intenção de conse­
guir o favor de Moabe, pois Davi sabia bem que viria o tempo em que dis­
putaria com Saul o apoio dos reinos vizinhos. Israel já havia guerreado com
Moabe sob o governo de Saul (1 Sm 14.47), então há razão para supor que o
rei de Moabe, como os filisteus, aproveitasse o conflito entre Saul e Davi
para adquirir vantagens. Qualquer acordo que Davi tenha feito com a Filístia
ou Moabe não durou muito tempo, pois já no início de seu reinado ele redu­
ziu ambas as nações a estados tributários de Israel (2 Sm 8.1,2).
Nesse período, o profeta Gade juntou-se a Davi, e o aconselhou duran­
te o restante de seu exílio. Gade recomendou-lhe que deixasse Adulão, e
se deslocasse para a floresta de Erete (localização desconhecida). Enquan­
to isso, Saul, dominado por sua paranóia, acusou os companheiros
benjamitas de deslealdade por não terem confessado que Jônatas, seu fi­
lho, havia desertado e manifestado solidariedade para com Davi. Para
apaziguar Saul, Doegue, que havia observado como o sacerdote Aimeleque
favorecera Davi em Nobe, decidiu contar ao rei tudo o que lá tinha ocorri­
do. Furioso, Saul reuniu os sacerdotes de Nobe e, acusando-os de traição,
matou sumariamente a todos. Ele mesmo colocou a cidade de Nobe sob
herem, apagando-a definitivamente da terra. Porém, Abiatar, filho de
Aimeleque, conseguiu escapar para junto de Davi, e o serviu durante to­
dos os anos que este esteve no deserto. Mais tarde, tornou-se o sumo sa­
cerdote de Israel juntamente com Zadoque, mantendo esta posição até que
Davi veio a falecer, quando então conspirou com Adonias, filho de Davi,
para que Salomão não se tornasse rei. Tal atitude removeu Abitar do ofício
de sumo sacerdote, e ocasionou seu exílio em Anatote quando Salomão
assumiu o poder.
S u l : A A liança M al C ompreendida 229

Davi podia estar fugindo de Saul, mas permanecia sempre bem infor­
mado das necessidades de sua parentela. Os filisteus, talvez testando as
intenções de Davi, fizeram uma incursão na cidade de Queila (Khirbet
Qilã), um vilarejo de Judá ao sul de Adulão. Buscando cuidadosamente o
Senhor através do éfode que Abiatar havia trazido de Nobe (1 Sm 23.6),
Davi convenceu-se da vitória e partiu para Queila a fim de libertar seus
conterrâneos. Ciente, Saul marchou rapidamente para o sul com intenção
de emboscar Davi e seus homens dentro da cidade. Davi soube da chega­
da de Saul a tempo de escapar, buscando refúgio no deserto de Zife que
ficava pouca coisa ao sul de Hebrom. Ele estava certo de que o povo de
Queila, que ele acabara de salvar dos filisteus, não o defenderia contra
Saul. Uma evidência de que Davi não desfrutava de apoio total nem mes­
mo em Judá.
Também os habitantes de Zife provaram ser traiçoeiros, pois não per­
deram tempo em informar ao rei de que Davi escondia-se no meio deles.
Sempre um passo à frente, Davi partiu depressa para o deserto de Maom.
Saul também chegou ao local, e por pouco não capturou o exército de Davi.
Mas antes de prosseguir, teve de voltar para o norte, a fim de impedir uma
invasão dos filisteus em seu território. Davi partiu para o oriente, até En-
Gedi (Tel ej-Jurn), às margens do mar Morto.
Incansavelmente, depois de resolver o problema filisteu, Saul voltou à
perseguição. Seguiu Davi até En-Gedi, mas desta vez quase perdeu sua
própria vida, pois Davi estava em uma posição que poderia matá-lo, caso
realmente o quisesse. Sem dúvida o instinto humano requeria que Davi se
livrasse do rei e buscasse o trono. Porém, a percepção divina prevaleceu,
porque Davi sabia que até que o próprio Jeová o removesse, Saul perma­
neceria o ungido do Senhor. Ele também reconhecia sua unção divina, mas
isso não significava muito no momento. Tudo o que ele sabia era que Deus,
que o tinha escolhido, o colocaria na posição de poder no tempo dEle.
Temporariamente atraído pela bondade e respeito manifestos por Davi,
Saul decidiu retornar para casa. Davi também partiu de En-Gedi e foi para
o deserto de Parã até o Carmelo (Kirmil), dois ou três quilômetros de Maom
(Khirbet MaTn).
Davi ouvira falar de um homem muito rico chamado Nabal, que vi­
via em Maom e era dono de muito gado e vastos territórios no Carmelo.
De novo à beira da fome, Davi pediu àquele homem alimento para si e
para seus homens, o que não era um pedido injusto se considerado o
hábito da apropriação indevida comum aos indivíduos fora-da-lei. Além
disso, com consentimento dos homens de Nabal, Davi protegeu os reba­
nhos deste sem qualquer remuneração (1 Sm 25.15). Apesar disso, Nabal
230 H istória de Israel no A ntigo T estamento

não concedeu o pedido e, não fosse pela intercessão da sábia e bela


Abigail, mulher de Nabal, aquele homem rapidamente teria experimen­
tado a ira de Davi. Abigail providenciou os suprimentos necessários.
Quando Nabal ficou sabendo do que lhe iria acontecer, ficou tão choca­
do que teve um ataque do coração e morreu. Davi, agradecido a Abigail
e ao mesmo tempo envolvido por sua sabedoria e beleza, providenciou
para que ela se tornasse sua esposa. Ele também se casou com Ainoã, de
Jezreel (Khirbet Terrama?),58 uma cidade a sudoeste de Hebrom. A pri­
meira mulher, Mical, tinha nesse tempo sido tomada de Davi e entregue
a outro marido, Paltiel. Depois de Davi se tornar rei em Hebrom, Ainoã
deu à luz seu primogênito, Amnon, e Abigail deu à luz seu segundo
filho, Quileabe (2 Sm 3.2,3).
Mais uma vez os zifitas, que pareciam ter um incontrolável ódio de
Davi, notificaram a Saul que seu inimigo estava entre eles, em Aquilá (lo­
cal desconhecido). Quando Saul chegou ao local, Davi e seu sobrinho Absai
(ver 1 Cr 2.13-16) penetraram furtivamente no acampamento do rei, du­
rante a noite, e facilmente poderiam tê-lo matado juntamente com seu
general de exército, Abner. Novamente Davi reconheceu a santidade do
reinado em Israel e deixou que o destino de Saul fosse consumado pelas
mãos de Yahweh (1 Sm 26.10). Quando Saul despertou e soube que ainda
estava vivo pela misericórdia de Yahweh e seu servo Davi, confessou ou­
tra vez seu pecado contra Davi e prometeu nunca mais buscar tirar a vida
de Davi. Mas Davi sabia que estes eram apenas surtos de paranóia, e que
em momento oportuno voltaria a caçá-lo.

O exílio de Davi na Filístia

Estava claro para Davi que seria apenas uma questão de tempo para
que Saul o alcançasse, de forma que decidiu uma medida drástica - bus­
cou asilo junto a Aquis, rei de Gate. Decerto alguns fatores contribuíram
para um clima de mútua confiança entre Davi e o rei dos filisteus. Pri­
meiro, não havia coisa melhor para Aquis do que a brecha irreparável
entre Davi e Saul. Sem a presença de Davi, Saul ficava sem um comando
militar forte o suficiente para eliminar os filisteus; sem Saul, Davi ficava
sem uma base local para operar. Segundo, Davi se conduziu entre os
filisteus de modo que m ostrava não haver qualquer interesse em
prejudicá-los. Somente uma vez em seus anos de exílio, em Queila, lutou
contra os filisteus, e assim mesmo foi uma medida defensiva. Terceiro,

58 Oxford Bible Atlas, p. 132.


t » ; i ; A A liança M al C ompreendida 231

Davi deve ter comunicado a Áquis sua disposição para submeter-se ao


comando dos filisteus em troca de proteção. Pode ser que tivesse prome­
tido ao rei filisteu tornar o território de Judá um estado vassalo da Filístia
depois que tomasse Hebrom. Existem fatos subseqüentes que parecem
apontar para essa direção.
De qualquer maneira, Áquis recebeu Davi e seus homens com alegria,
garantindo-lhe inclusive liberdade em Ziclague (Tel esh-Shari'ah).59 Davi
morou nessa cidade por mais de um ano (ca. 1012-1011), deixando-a so­
mente após a morte de Saul e sua ascensão ao trono de Judá. Durante esse
tempo, combateu os gesuritas, girzitas e amalequitas no deserto. Median­
te estratégias diplomáticas, trouxe os despojos das guerras para o rei Áquis,
dizendo que vinham de Judá (1 Sm 27.10)! Não é de espantar que Áquis
tenha visto em Davi um renegado de seu povo e um forte aliado dos
filisteus. Davi estava provando ser um servo bastante devotado.
O disfarce rapidamente assombrou Davi, que se viu lutando do lado
errado no conflito, talvez o mais decisivo dentre as várias guerras tra­
vadas entre filisteus e israelitas. Os filisteus tinham se reunido em
Afeque para desferir o golpe mortal contra Israel. Áquis, é claro, insis­
tiu para que Davi se juntasse a ele a aos demais reis em coup de grâce.
Os outros quatro reis não estavam convencidos da lealdade de Davi e,
de fato, achavam que ele mudaria de lado na hora mais renhida da
guerra, unindo-se novamente a Saul. Com muita relutância, Áquis teve
de comunicar a Davi a decisão tomada pelos reis. Embora Davi tenha
expressado com muita sabedoria seu protesto, voltou para Ziclague
bastante aliviado.
Enquanto isso, Israel já tinha se reunido em Gilboa (Jebel Fuqa'ah), uma
montanha situada cerca de 11 ou 12 quilômetros ao sul de Suném (Sôlem).
Aterrorizado pelo grande número de filisteus que vinham ao seu encon­
tro, Saul recorreu a uma médium próximo a Endor, ao norte do monte
Moriá. Tentou disfarçar-se, pois ele mesmo havia proibido tal prática (1
Sm 28.9), mas quando insistiu para que a mulher lhe chamasse Samuel
dentre os mortos, ela imediatamente reconheceu que se tratava do rei.
Apesar disso, ela continuou na descrição da aparição que Saul reconheceu
ser o profeta Samuel. Pacientemente Samuel explicou mais uma vez que
Saul, por causa da desobediência, perdera o direito de reinar, e que Davi
reinaria em seu lugar. Além disso, Samuel afirmou que Saul e seus filhos
morreriam naquele mesmo dia enquanto Israel cairia em desastrosa der­
rota diante dos filisteus.

~ Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, p. 184.


232 H istória de I srael no A ntigo T estamento

A morte de Saul

Na manhã seguinte, os filisteus partiram de Afeque e chegaram a


Suném. Depois de uma batalha sangrenta, Israel viu-se em desvantagem e
fugiu, porém Saul e seus filhos não conseguiram escapar. Quando tudo já
estava perdido, e não havia mais como reverter a situação, Saul preferiu o
suicídio a cair nas mãos dos filisteus (1 Sm 31.4). As pessoas abandonaram
as cidades e vilarejos, deixando-os à mercê dos filisteus. No outro dia en­
contraram os corpos de Saul e de seus filhos. Em uma brutal atitude de
vingança, decapitaram o rei de Israel, tomaram sua armadura e levaram-
na ao templo da deusa Astarote; por fim, amarraram seu corpo pelo lado
de fora da muralha de Bete-Seã. Naquela noite, os homens de Jabes-Gileade,
19 quilômetros a sudeste de Bete-Seã, cruzaram o rio Jordão e resgataram
os corpos de Saul e seus filhos. Depois de os queimarem, pois estavam
completamente mutilados, enterraram os ossos em sua cidade. Assim, Saul
voltou para a casa de seus ancestrais.
Após Davi ser despedido do serviço militar pelos príncipes filisteus,
voltou para Ziclague e descobriu que a cidade estava em ruínas, e que sua
família e a população local haviam sido levadas pelos amalequitas. Abiatar,
o sacerdote, consultou o Senhor por Urim e Tumim, e entendeu que era
vontade de Deus que Davi, acompanhado de seiscentos homens, partisse
atrás do inimigo amalequita. Depois de quatro dias de viagem, cerca de
duzentos homens de Davi estavam tão exaustos e famintos que preferi­
ram ficar em Besor Ravine (Vadi Ghazzeh), uns 24 quilômetros ao sul de
Ziclague. Os outros continuaram e encontraram um egípcio que havia sido
abandonado pelos amalequitas que decidiu informar onde exatamente eles
estavam, caso Davi lhe poupasse a vida. Os homens de Davi alcançaram e
dizimaram os amalequitas, trazendo de volta suas famílias. Depois de di­
vidir os despojos entre os quatrocentos que foram à peleja e os duzentos
que não puderam continuar, Davi enviou uma parte do despojo para os
anciãos de Judá, como um presente. Significativamente, a última cidade
para a qual Davi enviou o presente foi Hebrom. Sua generosidade sincera
serviu para pôr um fim na ingratidão daquele povo que em breve o ungi­
ria como o seu rei.
Depois de três dias em Ziclague, Davi recebeu um amalequita fugitivo
que tinha vindo do campo de guerra em Gilboa, trazendo a notícia acerca
da morte de Saul e de seus filhos. O mensageiro declarou que ele próprio
havia matado Saul, como um ato de misericórdia. Como evidência apre­
sentou a Davi a coroa e o bracelete de Saul (2 Sm 1.1-10). O jovem, na
verdade, não tinha matado Saul, mas era provavelmente uma testemu­
Sa l l : A A liança M al C ompreendida 233

nha. Imaginando ser o momento propício para ganhar o favor de Davi,


declarou ter destruído pessoalmente aquele obstáculo à ascensão de Davi
ao trono. Mas Davi não percebia assim o fato. Ele que, por duas vezes,
havia evitado matar Saul por considerá-lo ungido do Senhor, jamais acei­
taria o fato de que outra pessoa viesse a fazê-lo, ainda mais sendo um
amalequita pagão! Imediatamente ordenou que o amalequita mentiroso
fosse executado pelo crime que não havia cometido. Depois, em um dos
mais expressivos lamentos em toda a literatura, Davi chorou pela alma de
Saul e de Jônatas.
Mas a escritura se cumpriu. O reino de Saul chegou ao fim, exatamente
como Samuel lhe havia dito. Davi ficou em uma encruzilhada. Não podia
simplesmente subir a Gibeá e fazer-se rei, pois Saul tinha um filho sobre­
vivente, Is-Bosete, que reivindicaria sem dúvida o direito de sucessão real.
Por outro lado, havia forte pressão para Davi assumir o comando de Judá,
um movimento que vinha crescendo fazia tempo e chegara ao ápice com a
morte de Saul. Judá estava pronta para reconhecer o reinado de Davi, e a
orientação clara de Yahweh indicava que o centro da autoridade estaria
em Hebrom. Dessa forma, Davi partiu para Hebrom em 1011 a.C. e foi
formalmente coroado rei de Judá (2 Sm 2.4).
D A V I : 0 R E I N A 0 0 DA
A L I A N Ç A
A falta de nacionalidade antes de Davi
Davi em Hebrom
Diplomacia inicial
Davi e Abner
Rei de todo o Israel
Crônicas e história teológica
Jerusalém , a capital
O estabelecim ento do poder de Davi
O problema filisteu
A construção do tabernáculo
O centro do culto antes de Jerusalém
A razão para o atraso
Uma introdução à cronologia davídica

A fa lta d e n a c io n a lid a d e an te s d e D av i

O período de oitenta anos dos reinados de Davi e Salomão é em muitos


aspectos a era de ouro da longa história de Israel. Até aquele ponto, mes­
mo nos melhores anos de Saul, Israel dificilmente se denominou reino ou
mesmo estado, porque ainda não havia um reconhecimento significativo
de uma unidade política fundamental. Não porque houvesse um espírito
teocrático em Israel, pois isto não havia sido de fato traduzido em algo
além de um ideal teológico. Todo o peso do livro dos Juízes foi o lamento
por não existir um rei em Israel; o povo nem mesmo via Deus como seu
rei. Conseqüentemente, não havia unidade política.
A falta de nacionalidade que perdurou por aproximadamente 450 anos
- desde o pacto no Sinai até a entronização de Davi em Hebrom - pode ser
explicada de várias maneiras. Em primeiro lugar, por razões práticas, não
era possível para as tribos nômades que estavam a caminho de Canaã existir
em sentido nacional. Havia certamente uma coesão que os tornava uma
federação, um reconhecimento de mesma ancestralidade e etnicismo, e
bases e objetivos teológicos comuns. Havia também uma constituição à
qual a comunidade e os indivíduos eram sujeitos. Mas não havia uma
terra própria, e sem uma terra, nacionalidade é simplesmente um ideal.1

1 Quanto à terra ("espaço") ser uma necessidade fundamental para a nacionalidade, ver
Walter Brueggemann, The Land (Philadelphia: Fortress, 1977), esp. pp. 28-44.
D avi: O R einado da A liança 237

Durante o período de transição até a conquista (o princípio do século


catorze), a identidade tribal ainda prevalecia. Todavia existia também o
reconhecimento progressivo de que Israel era o povo de Deus, cuja inter-
relação ultrapassa todas as diferenças tribais. Tal atitude permitiu que Josué
unisse as tribos em um sentimento de cooperação e interesses comuns a
fim de conquistar e subjugar as populações cananéias, e fazer pelo menos
uma tentativa de ocupação da terra. Já havia sinais de independência na­
quele período, conforme visto no pedido das tribos de Rúben, Gade e
Manassés (Js 1.12-18). Mas, com sabedoria, Josué conseguiu manter a uni­
dade, e o resultado foi que a confederação permaneceu intacta até o dia de
sua morte.
Chamar Israel sob a liderança de Josué de nação, a despeito de tudo o
que se tem dito, seria impróprio. Josué era mais um mediador da aliança e
líder militar do que um político. A verdadeira autoridade estava nas mãos
dos anciãos, que agiam apenas dentro do limite de seu campo de trabalho.
Não havia uma cidade que servisse como capital, de onde a política naci­
onal produzisse seus rumos, a não ser que alguém considere que Gilgal
ou Siló fossem vistas dessa forma. O modo de operação parecia ser ad hoc.
Qualquer emergência que precisasse de uma convocação intertribal era
feita através da solicitação de Josué, sendo que algumas vezes ele não con­
seguia apoio ou sucesso.
O período dos juízes, desde a morte de Josué (ca. 1366) até o reino de
Saul (1051), deu origem a uma ocupação mais ou menos efetiva de alguns
territórios, mas isso geralmente se acompanhava de uma desintegração
da solidariedade das tribos. Os próprios juízes não eram políticos, e na
maioria das vezes fizeram seu juizado em algumas regiões da terra. Mas
eram os únicos líderes em uma escala nacional. Não havia também um
Moisés ou um Josué que pudesse convocar as tribos para uma unidade de
propósitos e ações. A função de ancião ainda existia entre o povo, mas
raramente se vê um deles agindo de forma decisiva na liderança do povo.
Aqueles anos, conforme registrado repetidamente, foram anos de anar­
quia, quase uma quebra total da Lei e da ordem em todos os aspectos.
A principal razão para essa condição caótica, é claro, era a infidelidade
para com a aliança. O povo, desde os líderes até os menos honrados, havia
abandonado Yahweh e se envolvera em um sincretismo religioso e um
paganismo ultrajante. De fato, esta foi a razão por que Israel fora discipli­
nado por meio de vários inimigos, tais como os moabitas e midianitas (Jz
2.11-23). Mas havia outros fatores um pouco mais difíceis de ser identifi­
cados, que não apenas encorajaram mas também aceleraram as tendênci­
as em direção à divisão regional e decomposição nacional.
238 H istória de I srael no A ntigo T estamento

A geografia obviamente era um deles, especialmente durante o perío­


do formativo.2 O rio Jordão, por exemplo, forma uma divisão natural en­
tre as tribos do oeste e do leste. Em certas partes do ano é quase impossí­
vel cruzar o rio, e certamente uma maior intercomunicação era profunda­
mente desestimulada em qualquer tempo. Talvez tenha sido por isso que
Josué ficara preocupado quanto ao estabelecimento ao leste do Jordão (Js
22.13-20). Ele sabia que limites geográficos poderiam criar fronteiras psi­
cológicas e até espirituais. Uma evidência da divisão entre as tribos do
oeste e do leste pode ser vista na indiferença dos líderes do leste quanto ao
pedido de Gideão, que consistia em que perseguissem os midianitas na­
quelas terras (Jz 8.4-9). Jefté, um líder da Transjordânia, enfureceu os
efraimitas: alegaram que foram convocados para participar da subjuga­
ção dos amonitas (Jz 12.1-6). É interessante que, pelo tempo de Jefté (ca.
1100), já houvesse diferenças dialéticas entre as tribos do oeste e do leste
(Jz 12.6).3 E, mesmo que tais diferenças não constituíssem necessariamen­
te um antagonismo, o fato é que serviam para intensificá-lo.
Rupturas no corpo socio-político de Israel também são aparentes em
toda parte. Uma das ocasiões mais nítidas é a história de Débora. Os
cananeus tinham começado uma devastação nas tribos do norte da planí­
cie de Jezreel. Em resposta, Débora solicitou apoio não apenas às tribos do
norte, que mais sofriam com o problema, mas também às demais tribos de
Israel, conforme registrado em seu cântico (Jz 5.12-18). Os resultados sim­
plesmente desencorajavam. Não houve qualquer apoio das tribos do les­
te, nem do sul de Jerusalém; apenas sinais de ajuda, que incluía também a
sua própria tribo de Efraim. Se não houver aqui um reflexo de hostilidade
aberta entre as tribos, pode-se ver pelo menos uma colossal indiferença
entre elas.
Uma melhor visão das rivalidades regionais e tribais é obtida com uma
atenção cuidadosa na história do levita e sua concubina (Jz 19-21). É um
relato significativo por ser remoto, indicando que a ruptura não tardou a
se manifestar, e por revelar uma tendência cismática, que se expressaria
mais tarde em uma total divisão entre Israel e Judá.
Já foi proposto aqui que um dos propósitos da narrativa é chamar a
atenção para um antagonismo entre Gibeá e Belém (ver p. 187). Gibeá,

2 A ligação entre geografia e história é evidente. Para uma importante discussão acerca
da Síria-Palestina, ver o trabalho de George Adam Smith, The Historical Geography of
the Holy Land (London: Hodder and Stoughton, 1900), pp. 43-59.
3 Sobre esse desenvolvimento surpreendente, ver Eduard Y. Kutscher, A History of the
Hebrew Language (Jerusalem: Magnes, 1982), pp. 14-15.
D avi: O R einado da A liança 239

capital de Saul, obviamente representa a monarquia saulida, e Belém a


davídica. O fato de o levita ser de Efraim prende essa tribo (e todas as
outras do reino do norte) à controvérsia. A concubina havia sido humilha­
da em Gibeá e deixada morta do lado de fora da casa onde o levita tinha
passado a noite. O incidente não apenas provou a falta de hospitalidade e
de respeito desde o princípio, mas também revelou uma total ausência de
autoridade em Gibeá e em Benjamim. Para tornar pior a gravidade da
situação, os anciãos de Benjamim recusaram-se a punir os malfeitores pelo
crime, e chegaram ao ponto de pegar em armas para defender os crimino­
sos. Mediante a expressa ordem de Yahweh, as outras tribos se uniram e
pelejaram contra Benjamim, quase aniquilando-a. Além de tudo isso, mes­
mo com as mulheres benjamitas mortas e a sobrevivência da tribo em pe­
rigo, os israelitas recusaram-se a providenciar esposas para os poucos so­
breviventes. Deram-lhes mulheres de Siló e Jabes-Gileade, da forma mais
antiortodoxa já descrita.
E um fato que este terrível incidente ocorreu e foi registrado com inten­
ção de mostrar a transgressão da lei em Israel na era dos juízes. Entretan­
to, o episódio, destacado dentre muitos outros que poderiam servir igual­
mente para ilustração, também foi incluído com propósito de explicar o
mútuo antagonismo existente entre as famílias saulidas e davídicas, e a
fragmentação política do reino mesmo nos tempos de Davi. A hostilidade
entre Benjamim e Judá é aparente durante os primeiros anos do reinado
de Davi. Ironicamente, durou até Benjamim ser absorvido pela tribo de
Judá e tornar-se parte do reino do sul.
O surgimento da monarquia sob Saul fez pouco para curar a crescente
brecha entre Judá e as tribos do norte. Durante o seu reinado, o abismo
entre as tribos tomava proporções consideravelmente grandes. Por exem­
plo, o historiador aponta que, quando Saul fez uma convocação geral para
livrar Jabes-Gileade de Amom, trezentos mil homens vieram de Israel, mas
apenas trinta mil de Judá (1 Sm 11.8). Quando realizou a campanha contra
os amalequitas, Saul contou "duzentos mil homens de pé, e dez mil ho­
mens de Judá" (1 Sm 15.4).4 Os números são reveladores, mostrando que
Judá proveu um número bastante reduzido de soldados em comparação
com Israel, um fato comprometedor para a própria Judá, uma vez que os
amalequitas viveram por muitos anos em sua fronteira ao sul. Estaria Judá
mostrando sinais de uma postura anti-Saul? Além disso, depois de Davi

4 Por causa dessa referência Ralph W. Klein conclui, de forma correta, que "é muito difícil
afirmar que Judá foi, nalguma ocasião, completamente incorporado ao reino de Saul".
(1 Samuel, Word Biblical Commentary [Waco: Word, 1983], p. 149).
240 H istória de I srael no A ntigo T estamento

ter matado o gigante Golias, "os homens de Israel e Judá" perseguiram os


filisteus (1 Sm 17.52) e, quando Davi foi colocado na corte de Saul, "todo o
Israel e Judá amava a Davi" (1 Sm 18.16). Está claro que Israel e Judá eram
tidos como duas entidades particulares que seguiam seus interesses sepa­
radamente.

D a v i em H e b ro m

Diplomacia inicial

Que o reino de Davi teria de iniciar em Hebrom não devia causar sur­
presa. Ele era da tribo de Judá, e construíra o caminho para o trono através
de seu exílio em Judá, mostrando beneficência para com essa tribo naque­
les dias. Reconhecia daramente que Judá era de facto um organismo políti­
co, se não étnico em seu próprio direito. Além disso, ainda não havia che­
gado o tempo para firmar sua autoridade em Israel, pois Saul tinha deixa­
do um filho sobrevivente que, segundo os princípios da dinastia, o suce­
deria. E ainda: Abner, primo de Saul, que no momento era a pessoa mais
poderosa em Israel, opunha-se intensamente a Davi, assim como fazia todo
o reino ao norte. Davi preferiu permanecer em Hebrom, onde esperaria
pela direção divina a respeito de sua liderança em todo o Israel.
O que se seguiu durante sete anos em Hebrom foi uma verdadeira obra
de arte de diplomacia governamental. Davi sabia que estava sendo visto
por Israel e Judá como o inimigo de Saul, mas, logo que soube da morte do
rei, compôs uma canção exaltando-o. Neste chamado Hino do Arco (2 Sm
1.19-27),5 o rei é descrito como "a glória" e "o poder". Segundo a canção
de Davi, o rei foi aquele que tinha vestido Israel de roupas finas e vestidos
caríssimos, e Israel tinha de lamentar a sua morte. Tal atitude, sem dúvida
sincera, demonstrou aos outros que Davi considerava Saul em seu interi­
or. Qualquer hostilidade que tenha existido vinha somente de um lado e
estava fora do controle de Davi.
A seguir, Davi procurou ganhar o favor do povo de Jabes-Gileade, agra­
decendo-lhe pelo gesto de bravura que manifestara ao resgatar os corpos

5 Acerca da autoridade do texto como da autoria de Davi, ver Masao Sekine, "Lyric
Literature in the Davidic-Solomonic Period in the Light of the History of Israelite
Literature," que faz uma análise da forma e conteúdo desses hinos. Em Studies in the
Period of David and Solomon and Other Essays, editado por Tomoo Ishida (Winona
Lake, Ind.: Eiserbrauns, 1983), pp. 2-4. Ver também David Noel Freedman, Pottery, Poetry
and Prophecy (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1980), pp. 263-74.
D av /: O R einado da A liança 241

de Saul e seus filhos, enterrando-os em sua própria cidade (2 Sm 2.4b-7).


O êxito em sua atitude permitiria que Davi pusesse os pés no norte da
Transjordânia, alcançando uma popularidade em larga escala na afastada
porém importante região. Anos depois Davi retirou os ossos de Saul e
Jônatas de Jabes-Gileade a fim de colocá-los na tumba dos pais, em Zelá
(Khirbet Salah)6 de Benjamim (2 Sm 21.12-14).

Davi e Abner

O maior obstáculo para a expansão do domínio de Davi era Abner, pri­


mo de Saul. No princípio do reinado de Saul, Abner serviu como coman­
dante do exército (1 Sm 14.50). Foi ele quem conduziu Davi à presença de
Saul após o combate com Golias (1 Sm 17.55-57) e que, juntamente com
Davi, assentou-se à mesa do rei (1 Sm 20.25). Também ele foi alvo de zomba­
ria depois que Davi passou por ele e Saul enquanto dormiam no deserto de
Zife (1 Sm 26.5,14,15). Agora, com todas as lembranças em mente, Abner
estava em uma grande posição para barganhar. Se não fosse capaz de subir
ele próprio ao trono, no mínimo faria Davi padecer por isto.
Por cinco longos anos Davi permaneceu contente com seu pequeno rei­
no em Judá. Ao norte, Israel estava envolto em uma série de tumultos
insolúveis. Saul era morto e deixara um filho fraco para substituí-lo. Pri­
meiramente chamado de Ish-Baal ("homem de Baal"), o jovem tornou-se
conhecido por Is-Bosete ("homem da vergonha"),7 talvez um testemunho
da tendência sincretista de Saul. Aparentemente, ele não participou do
combate em Gilboa, onde o pai e os irmãos perderam a vida, e agora pro­
vava não ser capaz de ocupar o trono em Israel. Finalmente, o próprio
Abner - talvez depois de ter vencido os filisteus, expelindo-os da terra - o
tornou rei e fez-lhe de fantoche em Manaim (Tel edh-Dhahab el Gharbi),8
terra de Gileade. O reinado de Is-Bosete durou dois anos, e seu fim coinci­
diu com a mudança de Davi de Hebrom para Jerusalém em 1004 a.C.
Não há dúvida de que Abner dava as ordens nesse reinado de aparên­
cias, e os acontecimentos subseqüentes provam este fato. Primeiro, Abner

6 Conforme Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford
University Press, 1984), p. 143.
~ P. Kyle McCarter, Jr., II Samuel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1984), p.
86, sugere que o 'is registrado no texto massorético de Samuel é preferível ao 'es em 1
Crônicas 8.33 e 9.39. Araiz em todo caso deve ter sido 'is ("homem"). Os rolos de Qumran
claramente apoiam essa posição.
5 Avraham Negev, ed., Archaeological Encyclopedia of the Holy Land (Englewood, N.J.:
SBS, 1980), pp. 191-92.
242 H istória de I srael \ o A ntigo T estamento

e seus homens foram para Gibeão, onde negociaram com Joabe, um repre­
sentante de Davi, possivelmente para tratar da unificação dos dois reinos
(2 Sm 2.12,13). Sem um acordo pacífico, Abner sugeriu que a questão fosse
decidida em um confronto armado: cada lado escolheria doze homens para
um combate corpo-a-corpo, o vencedor do qual assumiria a soberania de
todo o povo. Os homens de Davi saíram vencedores e Abner teve de fugir
com os inimigos em seu encalço. Infelizmente, Asael, irmão mais novo de
Joabe, escolheu perseguir Abner, o guerreiro experiente que, em defesa
própria, matou o jovem. Joabe e seu irmão Absai continuaram na perse­
guição, mas Abner encontrou refúgio entre seus irmãos benjamitas, fican­
do a salvo. Sua pergunta a Joabe na ocasião é bastante interessante: "Até
quando te demorarás em ordenar ao povo que deixe de perseguir a seus
irmãos?" (2 Sm 2.26). Não há talvez uma tentativa de paz aqui? Não esta­
ria Abner à procura de reconciliação, já que era inevitável a tendência que
conduzia Davi ao trono?
O historiador responde a estas perguntas enfatizando que, durante os sete
anos que reinou em Hebrom, Davi fortalecia-se continuamente, ao passo que
a dinastia saulida enfraquecia-se cada vez mais (2 Sm 3.1). Evidências do for­
talecimento de Davi podem ser vistas na multiplicação de suas esposas e fi­
lhos, uma prática comum aos monarcas do Oriente Médio, embora não san­
cionada pela Lei bíblica. Além dos filhos de Abigail e Ainoã, Davi gerou
Absalão de Maaca, Adonias de Hagite, Sefatias de Abital, e Itreão de Eglá. E
importante observar Maaca, pois ela é identificada como filha de Talmai, rei
de Gesur. É uma sugestão de que alguns casamentos de Davi foram realiza­
dos com fins diplomáticos internacionais.9 Gesur aqui é provavelmente um
reino que ficava ao leste do mar de Quinerete.10 Uma aliança com um reino
desse tipo era extremamente importante para Davi, servindo-lhe de "esta­
do tampão" entre Israel e os crescentes estados arameus do norte.
Proporcional à influência de Davi era a percepção de Abner de que
somente ao lado de Davi poderia esperar algum futuro. Havia feito tudo
para apoderar-se do trono - inclusive apossar-se da concubina de Saul - e
mesmo assim fracassou. Passou a explorar os meios pelos quais usaria sua
influência a fim de entregar Israel a Davi, assegurando pelo menos uma
posição como a que tinha com Saul. O próprio envolvimento com Rispá,

9 Jon D. Levenson e Baruch Halpern, "The Political Import of David's Marriages," JBL 99
(1980): 507-18.
10 Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 38. De­
pois que Absalão matou Amnon, fugiu para Gesur, a terra natal de sua mãe (2 Sm
13.37,38).
D avi: O R einado da A liança 243

concubina de Saul, providenciou a ocasião. Depois de propriamente ser


repreendido por Is-Bosete por tomar um poder que não lhe era devido,
Abner voltou-se contra ele, e justificando-se negou qualquer ambição pes­
soal. Mas, por vingança, deu vários passos em favor do reino de Davi (2
Sm 3.6-11).
Inicialmente, Abner enviou uma delegação até Davi oferecendo-lhe uma
proposta de unificação - uma aliança que garantiria uma transferência
pacífica da dinastia saulida para a davídica. As intenções de Abner po­
dem apenas ser sugeridas, mas certamente ele esperava nada menos que
o comando supremo do exército de Israel. Davi aceitou a proposta com
grande entusiasmo, mas, como sinal da honestidade de Abner, exigiu de
volta sua primeira mulher, Mical, filha de Saul. Isto significaria a unifica­
ção das duas famílias reais.
Depois de Mical retornar para Davi, Abner convenceu os anciãos de
Israel, particularmente os da casa de Benjamim, de que seria mais sábio
submeter-se ao reinado de Davi. Contudo, o apelo não era nada teológico,
mas puramente pragmático - Davi era capaz de libertar Israel de seus
inimigos. A falta da apreciação de Davi como o rei messiânico, o represen­
tante eleito de Yahweh na terra, foi um sério defeito do ponto de vista
político de Israel. Para Abner, Davi era um rei conforme os reis das outras
nações.
De acordo com suas palavras, Abner voltou para Davi em Hebrom com
sólido apoio dos anciãos de Israel. Ambos decidiram então fazer uma ceri­
mônia oficial de coroação, em que todo o Israel prometeria lealdade ao
novo rei. Antes de serem definidos os detalhes da festividade, Abner foi
cruelmente assassinado por joabe e Asael, seu irmão. E provável que Joabe
tenha visto na aliança uma ameaça à sua própria posição de comandante
militar.

Rei de todo o Israel

Davi agora estava com um problema potencialmente devastador, que


ameaçava tudo o que havia sido construído em favor da reunificação do
reino. Certamente os anciãos de Israel julgariam que o assassinato de Abner
havia sido ordenado por Davi, a fim de remover o último obstáculo ao
poder.11 Para desfazer imediatamente a impressão, Davi proclamou um

i: James C. Vanderkam tenta mostrar que os assassinatos de Abner e Is-Bosete foram uma
conspiração armada pelo próprio Davi ("Davidic Complicity in the Deaths of Abner
and Eshbaal: A Historical and Redactional Study," JBL 99 [1980]: 521-39). Essa tese ba-
244 H istória de I srael no A ntigo T estamento

dia nacional de lamento e sepultamento do general Abner em Hebrom,


conferindo-lhe todas as honrarias merecidas. O lamento de Davi foi tão
sincero que Israel e Judá o aceitaram de imediato, isentando-o de qual­
quer relação com o crime (2 Sm 3.36-39).
Um sentimento de instabilidade logo correu por Israel, e medidas enér­
gicas precisariam ser tomadas a fim de evitar a anulação do acordo feito
entre Davi e Abner. Então, dois assassinos partiram para Maanaim e ma­
taram Is-Bosete enquanto este dormia à tarde.12 Levando sua cabeça como
prova, partiram para Davi em Hebrom e anunciaram que finalmente o
caminho estava livre para Davi assumir o trono de Saul. Temeroso de que
seu nome fosse envolvido nessa barbaridade, Davi ordenou sem detença
que os matadores fossem executados e seus corpos pendurados publica­
mente em Hebrom. Tomou a cabeça de Is-Bosete e enterrou-a na sepultura
de Abner. Esperava deixar claro que era a eleição divina e não ambição
pessoal que o estabelecia no trono de Saul.
Sem candidato à sucessão de Saul no trono, os anciãos implementaram
os termos do tratado estabelecido entre Abner e Davi, favorecendo o rei­
nado para Davi. Juntaram-se todos em Hebrom, uma demonstração clara
de submissão e boas intenções, reconhecendo ali os direitos de Davi ao
trono por causa de sua ligação familiar, do registro como herói de guerra
e, por último, pela escolha divina. A cerimônia de coroação seguiu a ceri­
mônia da aliança, cujo propósito era permitir que o rei fizesse um pacto
com o povo e com Yahweh, o verdadeiro soberano.

C rô n ic a s e h is tó ria te o ló g ic a

Neste ponto, o primeiro livro das Crônicas inicia um relato paralelo da


história de Israel. O propósito do livro, de autoria desconhecida, é apre­
sentar a história da perspectiva da dinastia davídica. Não que o reino do
norte seja sobrepujado ou considerado de forma negativa, mas apenas Judá,

seia-se em uma alegação sem fundamento de que a narrativa original incriminava o rei
Davi, mas posteriormente foi profundamente modificada para beneficiar o partido pró-
davídico, de forma que sua cumplicidade é praticamente impossível de ser detectada.
12 Os assassinos são identificados como benjamitas, habitantes de Beerote, situada na fron­
teira do território dos filisteus. Visto que os beerotitas aparentemente tiveram de fugir
de sua tribo natal num determinado tempo passado (2 Sm 4.2b-3), pode ser que Saul os
tivesse perseguido (cf. 2 Sm 21.1,2). O assassinato de Is-Bosete pode ter sido um ato de
vingança. Por outro lado, Hans W. Hertzberg conjectura que a expulsão dos beerotitas
seguiu o assassinato de Is-Bosete (I & II Samuel [Philadelphia: Westminster, 1964], pp.
263-64).
D avi: O R einado da A liança 245

a tribo messiânica de Davi, está em destaque.13 Às vezes a narrativa omite


alguns fatos que poderiam ser embaraçosos para Davi e sua dinastia - o
caso com Bate-Seba é o exemplo mais evidente - mas tais omissões não
necessariamente implicam em que o cronista seja fanaticamente leal a
Davi, reescrevendo a história de modo que se conforme ao partido
davídico. Há incidentes suficientemente embaraçosos para se descartar
tal opinião. Na verdade, 1 Crônicas é uma história que evita as repeti­
ções de fatos já bem conhecidos em 2 Samuel, buscando recontar os fei­
tos de Davi que foram fundamentais para a intenção peculiar do cronis­
ta. Ele está primeiramente interessado em realçar os aspectos do culto
no reino de Davi; ou seja, mostrar que o rei messiânico também exerce a
função de sacerdote ungido de Yahweh. Nesse caso, o cronista é mais
um teólogo do que um contador de histórias. Interessa-se mais pelo sig­
nificado do reino de Davi do que pelos processos políticos e militares
que possibilitaram o seu estabelecimento.14
O propósito do cronista é claro desde o princípio, pois não faz referên­
cia à juventude de Davi ou à sua unção, fatos considerados bem conheci­
dos. Ele inicia com a história da partida dos israelitas a Hebrom para cons­
tituir Davi rei. Não há sequer uma palavra acerca dos sete anos de interva­
lo entre a morte de Saul e a ascensão de Davi. Vendo a ascensão como um
fait accompli, o historiador enfatiza apenas que foi Yahweh quem permitiu
a morte de Saul e concedeu o reino a Davi (1 Cr 10.14).
Por outro lado, o cronista é cuidadoso em indicar que já nos anos do
exílio de Davi havia aqueles em Israel e em Judá que reconheciam nele
uma pessoa escolhida por Deus. Isso está claramente registrado em 1 Crô­
nicas 12.1,2 - parentes de Saul estavam no meio dos que se juntaram a
Davi enquanto este morava em Ziclague. Outros vieram de Gade, na
Transjordânia, e ainda outros eram benjamitas não-saulidas (1 Cr 12.16,17).
A princípio Davi os via com alguma desconfiança, mas depois de lhe pro­
meterem lealdade, recebeu-os com alegria. Além disso, quando Davi veio
com os filisteus combater Saul em Gilboa, alguns israelitas que haviam

13 Uma interpretação excelente da forma e função do trabalho de um cronista pode ser


encontrada em Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture
(Philadelphia: Fortress, 1979), pp. 639-55. Para uma avaliação do livro das Crônicas como
um trabalho verdadeiramente histórico, ver Sara Japhet, "The Historical Reliability of
Chronicles," JSOT 33 (1985): 83-107.
14 James D. Newsome, Jr., afirma que. o elemento profético é forte no livro das Crônicas,
servindo para ligar o culto com a monarquia, provendo um caminho para a reinstituição
da adoração no templo pós-exílico e restauração da casa de Davi ("Toward a New
Understanding of the Chronicler and His Purposes," JBL 94 [1975]: 216).
]
246 H istória de I srael no A ntigo T estamento

desertado de Manassés juntaram-se a ele (1 Cr 12.19-22). Fica claro que as


sementes da reunificação de Israel e Judá já tinham sido plantadas antes
de Abner iniciar as negociações formais para seu estabelecimento.
Mais evidência do desejo de mostrar que o reino de Davi foi recebido
com entusiasmo por toda a nação está no embelezamento de 2 Samuel
acerca da delegação enviada a Hebrom. Enquanto 2 Samuel apenas relata
que todas as tribos vieram ao rei em Hebrom (5.1-3), o cronista relaciona
cada tribo por seu nome e o seu número total de homens enviados (1 Cr
12.23-40). Incluídos estavam três mil benjamitas, ainda que tivessem per­
manecido leais a Saul até o último momento. Para descrever o total apoio
a Davi, o narrador informa que as tribos mais distantes não foram remis­
sas em comparecer, e que juntamente com as outras vieram carregadas
com todo tipo de provisões. Por três dias a cerimônia de coroação foi se­
guida de muita festividade e alegria. Sem qualquer dúvida, o reinado de
Davi sobre Israel foi sentido como uma cura que traria benefícios indizí­
veis para o povo de Deus. Finalmente chegara o momento em que o ungi­
do de Deus, esperado por tanto tempo, viria a reinar. Mas a história subse-
qüente revelaria que a pompa da ocasião gloriosa era apenas uma fina
pátina sobre uma estrutura política que não conseguia se desvincular do
faccionismo intertribal.

J e ru s a lé m , a ca p ita l

Enfrentando logo a realidade, Davi tratou de mudar a localização da


capital depois da coroação. Hebrom serviu-lhe apenas enquanto reinava
sobre Judá, mas agora, por diversas razões, não seria apropriada. Primei­
ro, a cidade estava situada muito ao sul e quase inacessível aos habitantes
da Galiléia e da Transjordânia. Segundo, era uma cidade tão importante
na história de Judá que representava praticamente a tribo. Seria impossí­
vel esperar que o restante de Israel desenvolvesse alguma afeição para
com uma cidade fortemente associada à alienação do passado. Terceiro,
Hebrom era uma cidade de levitas; embora não fosse um fator negativo, é
certo que tenderia a corroer a neutralidade nos assuntos religiosos.
Por outro lado, Davi percebeu que não poderia estabelecer a capital
muito para o norte, por exemplo em Siquém ou Siló, porque isto poderia
ser interpretado por Judá como uma traição aberta. Certamente não po­
deria nem pensar em estabelecê-la em Gibeá, porque além de ter sido a
cidade de Saul, lembrava tudo o que trazia repulsa a Judá. A tarefa de
Davi era clara: encontrar um local central que fosse, ao mesmo tempo,
relativamente neutro. Jerusalém, de longe, era a melhor escolha - a mai-
D*m : O R einado da A liança 247

or, mais impressiva e mais estrategicamente situada cidade em toda a


região central.15
Pelo menos por dois mil anos antes de Davi, o monte Ofel tinha sido
chamado por vários nomes, sendo o mais popular Jerusalém ou alguma
forma correlata. A cidade já existia nos tempos de Abraão, o que é confir-

15 G.W. Ahlstrõm oferece uma sugestão interessante, mas biblicamente indefensável. Ele
afirma que Davi era um jebuseu para quem Jerusalém não era uma cidade neutra. Isto
supostamente explicaria a facilidade com que ocupou a cidade, além de alistar como
seu sacerdote o jebuseu Zadoque ("Was David a Jebusite Subject?" ZAW 92 [1980]: 285­
87). George E. Mendenhall não vai tão longe, mas sugere que Davi se apoderou de Jeru­
salém e de outras cidades cananéias a fim de que pudessem prover uma infra-estrutura
urbana necessária para conduzir Israel de seu estágio tribal para um estado monárquico
digno. Porém, ao fazer isso, o rei Davi acabou levando o povo a uma paganização de
seus ideais teocráticos ("The Monarchy," Interp. 29 [1975]: 161-66).
248 H istória de I srael no A ntigo T estamento

mado pelos textos de Ebla16 e, sem dúvida, pela referência a Salem, a cida­
de do rei-sacerdote Melquisedeque (Gn 14.18).17 As Cartas de Amarna
reconhecem Jerusalém como a principal de todas as cidades de Canaã da­
quele período.18 Josué e os israelitas guerrearam contra Adoni Zedeque,
de Jerusalém, durante a campanha para o sul (Js 10). Se naquele tempo a
cidade não conseguiu ser tomada por Josué, é certo que veio a ser con­
quistada após a sua morte (Jz 1.8); apesar de a população de jebuseus ter
recebido permissão para permanecer na cidade, realmente a conquista­
ram pouco tempo depois (Jz 1.21). A cidade viveu praticamente sem se
importar com a dominação israelita, até que Davi finalmente a reconquis­
tou e fez dela sua capital.
A longa história da independência de Jerusalém, como uma ilha no
mar de israelitas, pode ser praticamente atribuída à sua situação geo­
gráfica, que lhe dava grandes condições de defesa. Esta vantagem e as
citadas anteriormente chamaram a atenção de Davi. Mas também in­
cluía um problema real. Como tomariam a cidade sem um longo e cus­
toso cerco?
Como era característico de todas as cidades muradas de Canaã, Jerusa­
lém tinha uma passagem vertical de águas conectada a um túnel ligado a
uma fonte subterrânea fora das muralhas.19 Sendo o sistema necessário
para a sobrevivência de uma cidade cercada, também apresentava o mai­
or perigo, já que providenciava acesso para qualquer um que achasse a
entrada. De alguma forma Joabe encontrou o túnel pelo lado de fora e,
através dele, atacou a cidade. Embora em descrédito por causa da morte
de Abner, ele foi honrado como herói por ter aberto Jerusalém para Davi
efetuar a conquista. Israel possuiu o pequeno monte de Ofel, que veio a
ser conhecido como Sião ou Cidade de Davi. Davi construiu (ou recons­
truiu) as fortalezas para o oriente (i.e., o Milo), expandiu as cidades, mul­
tiplicando dessa forma seu poder defensivo.20

16Jan Jozef Simons, Jerusalem in the Old Testament (Leiden: E.J. Brill, 1952).
17 Gordon J. Wenham, "The Religion of the Patriarchs," em Essays on the Patriarchal
Narratives, editado por A.R. Millard e D.J. Wiseman (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns,
1983), p. 195.
18 Charles F. Pfeiffer, Tel El Amarna and the Bible (Grand Rapids: Baker, 1963), pp. 50-51;
Roland de Vaux, The Early History of Israel (Philadelphia: Westminster, 1978), pp.
103-4.
19 Kathleen Kenyon, Jerusalem (New York: McGraw-Hill, 1967), pp. 19-31. Quanto à natu­
reza e ao curso desse sistema, ver Arie Issar, "The Evolution of the Ancient Water Supply
System in the Region of Jerusalem," IEJ 26 (1976): 131-33.
20 Kenyon, Jerusalem, pp. 49-51.
D avi: O R einado da A liança 249

O e s ta b e le c im e n to d o p o d e r d e D a v i

Neste ponto em 2 Samuel, o narrador deixa a estrutura estritamente


cronológica e passa a fazer uma descrição da história de Davi.21 Isso está
mais definido no início, pelo fato de os ataques dos filisteus contra Davi
serem mencionados somente depois das notas referentes ao seu programa
de construções e crescimento de sua família. O fato de o cronista seguir o
mesmo arranjo significa apenas que ele se utilizou de 2 Samuel como um
modelo nessa situação especial.

O problema filisteu

A pista sobre a prioridade dada aos episódios relativos aos filisteus


encontra-se no fato de terem buscado Davi após este ser ungido rei de
Israel (2 Sm 5.17). Isto aconteceu imediatamente depois da cerimônia de
coroação em Hebrom, e antes de Davi partir para a conquista de Jerusa­
lém. Parece que o objetivo dos filisteus era cortar a reunificação de Israel e
Judá. Por cerca de dez anos os filisteus acreditaram que Davi liderava um
movimento anti-Israel, que não beneficiava outro senão os filisteus. Saul
havia sido um inimigo inveterado desde que se tornara rei e, embora os
filisteus tivessem mantido um ataque contínuo e sistemático, a verdade é
que jamais conseguiram estabelecer uma base no interior do território
israelita. Na verdade, Saul os repeliu, forçando-os a subsistir apenas nos
limites costeiros. Mas com o exílio de Davi a situação mudou. Os filisteus
começaram a olhar Davi, que uma vez havia sido o campeão de Israel e o

21 O que segue é um abandono radical da abordagem tradicional da história de Davi, um


desvio que, apesar de tudo, parece acomodar melhor os dados bíblicos e as evidências
documentais extrabíblicas. Aqui se propõe que o historiador não estava muito interes­
sado em uma seqüência cronológica conforme estava em fazer os principais feitos de
Davi se acomodarem em um tipo de mosaico. Analogias antigas quanto a esse método
historiográfico podem ser encontradas em registros da Mesopotâmia. Ver Hayim Tadmor,
"The Inscriptions of Nabunaid: Historical Arrangement," AS 16 (Chicago: University of
Chicago Press, 1965), pp. 351-63; Mordechai Cogan, "Tendentious Chronology in the
Book of Chronicles," Zion 45 (1980): 165-72 (Hebrew); idem, "Omens and Ideology in
the Babylon Inscription of Esarhaddon," em History, Historiography and Interpretation,
editado por Hayim Tadmor e Moshe Weinfeld (Jerusalem: Magnes, 1984), pp. 85-87;
idem, "The Chronicler's Use of Chronology as Illuminated by Neo-Assyrian Royal
Inscriptions," em Empirical Models for Biblical Criticism, editado por Jeffrey H. Tigay
(Philadelphia: University of Pensylvania Press, 1985), pp. 205-7; G. Frame, "Another
Babylonian Eponym," RA 76 (1982): 157,159.
250 H istória de I srael no A ntigo T estamento

castigo dos filisteus, como um aliado potencial em sua guerra contra Isra­
el. E verdade que Davi não tomou uma atitude ofensiva contra Saul, mas
ele próprio era politicamente um fator divisor que drenava as forças de
Saul, as quais estariam, de outra maneira, direcionadas contra os filisteus.
E provável que os filisteus tenham conseguido maior controle da região
de Jezreel enquanto Saul estava ocupado com Davi no sul.
Em todo caso, Davi não fez nada para desestimular as esperanças dos
filisteus. Deu provas de que estava interessado em aproximar-se deles e
afastar-se de Saul. Isto se expressou na forma da aliança feita com Aquis,
de Gate, na qual se fez de vassalo dos filisteus (1 Sm 27.5-7).22 Assim Davi
garantiu um território inalienável (Ziclague) e segurança contra Saul. O
pacto também o obrigava a combater as guerras dos filisteus, um requisi­
to que quase o levou a lutar contra seu próprio povo.
Parece quase certo que, na ocasião da morte de Saul, Davi retomou a Judá
ainda na condição de servo de Aquis, embora também estivesse na condição
de rei de Judá em potencial. Estava claro para os filisteus que Davi gozava de
uma enorme popularidade entre os habitantes de Judá e, semelhantemente,
que os moradores de Israel ainda o tinham como um inimigo. Seria extrema­
mente vantajoso para os filisteus que as desavenças entre Judá e Israel conti­
nuassem a existir, ficando assim divididos, de forma que Davi se tornasse o
cabeça de um estado que, nominalmente, estaria sob o domínio dos filisteus.
Davi, é claro, queria manter a aliança fictícia com os filisteus, já que tinha o
problema da sucessão real no norte. Pode-se imaginar que Davi tenha se es­
forçado para manter as negociações com Abner em total sigilo.
Não é possível provar se tal hipótese do relacionamento entre Davi e os
filisteus é correta ou não, mas o fato é que os filisteus não perturbaram
Davi até o momento em que souberam da sua coroação em todo o Israel.
Somente então, e tarde demais, descobriram que seu amigo tinha sido um
truque para alcançar o objetivo final - a unificação de Israel. Lançaram-se
então em um ataque contra Davi em Refaim (el-BuqePa), um vale situado
pouco ao sul de Jerusalém. A batalha está descrita em 2 Samuel 23, onde o
narrador informa que Davi fez da caverna de Adulão sua base, enquanto
os filisteus estavam entrincheirados em Belém, 24 quilômetros acima do
vale em direção nordeste.23 Na ocasião, três dos heróis de Davi arriscaram

22 P. Kyle McCarter, Jr., I Samuel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1980), pp.
414-15.
23 Isso é o que dá base para a teoria de que o ataque dos filisteus aconteceu antes que Davi
cercasse a cidade de Jerusalém, pois, por que ele estaria em Adulão se já estava moran­
do em Jerusalém? 2 Samuel 5.17 diz que os filisteus "subiram... a procura dele", ou seja,
na caverna de Adulão (cf. 2 Sm 23.13,14).
D avi: O R einado da A liança 251

suas vidas para roubar água para o rei tirada da fonte próxima ao portão.
Como os filisteus chegaram a Belém e como foram desalojados, não está
especificado. Contudo, somos informados de que Davi conseguiu vencê-
los em Baal-Perazim (talvez Sheikh Bedr).24
Audaciosos, os filisteus partiram novamente para lutar no vale de
Refaim, mas outra vez foram derrotados. Davi agora perseverou em ex­
pulsar os filisteus não apenas da região sul e sudoeste de Jerusalém, mas
também do norte e do oeste. Portanto, conseguiu isolar Jerusalém da ame­
aça filistéia de invasão, e isto facilitou em seguida a tomada da cidade do
domínio dos jebuseus.

A construção do tabernáculo

Embora seja impossível a precisão cronológica, nada é virtualmente


conhecido acerca dos primeiros anos de Davi em Jerusalém. As longas
narrativas que seguem a tomada da cidade são baseadas em um breve
relato de suas atividade de construção na cidade, um projeto realizado
por arquitetos e construtores fenícios sob as ordens de Hirão, rei de
Tiro. Hirão (ou Ahiran) era filho de Abibaal e reinou em Tiro de 980 a
947.25 Esse rei foi contemporâneo de Davi (1011-971) e Salomão (971­
931), embora apenas na última década de Davi. Os dados indicam que
o programa de edificações de Davi deve ter ocorrido no final de seu
reinado, e não no princípio.26 Os últimos projetos incluíram o taber­

24 Proposto com alguma hesitação no Oxford Bible Atlas, p. 123.


25 Frank M. Cross, "An Interpretation of the Nora Stone," BASOR 208 (1972): 17, n. 11. Essas
datas são uma variação de outras apresentadas por estudiosos. Mas uma vez que estão
sempre variando paralelamente com o reinado de Davi, os dez anos são constantes e o
argumento desenvolvido aqui não é afetado. Ver William E Albright, Archaeology and
the Religion of Israel, 3ed. (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1969), p. 128 (969-936); John
Bright, A History of Israel, 3ed. (Philadelphia: Westminster, 1981), p. 204 (969-936); H.
Jacob Katzenstein, The History of Tyre (Jerusalém: Schocken Institute for Jewish Research,
1973), p. 82 (ca. 970 + 34 anos); Benjamim Mazar, "The Era of David and Solomon," em
World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, The Age of the Monarchies: Political
History, editado por Abraham Malamat (Jerusalém: Massada, 1979), p. 90.
26 Tal conclusão é tão diferente da interpretação tradicional que todos as tentativas de
desfazê-la têm sido propostas. Bright (History, p. 204), reconhecendo que os reinados
de Davi e Hirão se sobrepuseram por apenas alguns anos, sugere que o tratado descrito
em 2 Samuel 5.11,12 possa ter sido entre Davi e Abibaal, pai de Hirão. J. Alberto Soggin
admite que existe uma sobreposição bastante limitada, e que não existe evidências de
que o tratado tenha sido feito com Abibaal ou com um outro Hirão. Sua conclusão é que
"as fontes são muito confusas quando se trata de cronologia" (A History of Ancient
252 H istória de I srael no A ntigo T estamento

náculo, edificado sobre o monte Sião, pois o cronista diz claramente


que foi preparado somente depois que Davi edificou casas para si (1 Cr
15.1). A arca da aliança, então, deve ter retornado para a cidade de Je­
rusalém somente nos últimos anos de Davi, já que o tabernáculo foi
construído com o expresso propósito de guardá-la. E certo também que
o desejo de Davi de construir um templo deve ter surgido durante esse
período.
Essa teoria contesta a visão tradicional do reinado de Davi, além de
levantar sérios problemas que precisam ser resolvidos satisfatoriamente
caso seja digna de crédito. Primeiro, o fato de os escritores de Samuel e
Crônicas parecerem sugerir que a arca foi trazida para Jerusalém imedia­
tamente após a cidade ter se tornado capital de Israel, não deve ser enten­
dido de forma estrita. É fácil demonstrar que os historiógrafos de Israel
nem sempre estiveram preocupados com dados cronológicos precisos.27
Uma objeção ainda mais séria é a que diz ser pouco provável que Davi
tenha esperado vinte e cinco anos para tornar Jerusalém o seu local de
governo e o centro de culto nacional. Onde Israel se reuniu durante todos
esses anos para adorar?

Israel [Philadelphia: Westminster, 1984], p. 56). Porém, visto que todos os estudiosos
concordam que Hirão foi contemporâneo de Davi apenas em seus últimos dez anos,
então por que o tratado e o programa de construções não podem ser encaixados nesse
período (ca. 980)? É preciso ter em mente que Hirão não podia estar reinando durante
os primeiros anos do reinado de Davi em Jerusalém (ca. 1004-1000), pois, uma vez que
seu reinado durou trinta e três anos, não haveria como ainda estar vivo durante os anos
do rei Salomão (971-931); no máximo já teria morrido por volta de 970. O templo de
Salomão foi construído pelos engenheiros de Hirão em 966 (1 Rs 6.1) e, segundo os
registros, este rei ainda estava reinando no décimo segundo ano de Salomão (ca. 951; 1
Rs 9.10-14). E possível sugerir que a data mais remota para o início do reinado de Hirão
foi 984, segundo essa linha de raciocínio. O ano 980, então, parece ser uma opinião
bastante sensata. Herbert Donner desfaz o problema de Davi e Hirão dizendo que a
referência de 2 Samuel 5.11 não é histórica, pois fala de um relacionamento que na ver­
dade existiu entre Hirão e Salomão ("Israel und Tyrus in Zeitalter Davids und Salomos,"
JNSL 10 [1982]; 43-52).
27 Cogan, "Chronicler's Use of Chronology," em Empirical Modles, editado por Jeffrey H.
Tigay, pp. 197-209. Hayim Tadmor tem demonstrado que era muito comum nas inscri­
ções reais dos assírios encontrar registros indicando que as construções nos templos e
restaurações eram feitas no primeiro ano daquele reinado, quando, na realidade, as obras
tinham acontecido muitos anos depois que o rei havia assumido o trono ("History and
Ideology in the Assyrian Royal Inscriptions," em Assyrian Royal Inscriptions: New
Horizons in Literary, Ideological, and Histocial Analysis, editado por F.M. Fales [Roma:
Instituto per L'Oriente, 1981], pp. 21-23).
D a v i: O R einado da A liança 253

O centro do culto antes de Jerusalém


Infelizmente há pouca informação acerca do culto nos primeiros anos de
Davi, e mesmo dos anos após a juventude do profeta Samuel. O santuário
central de Siló tinha se deteriorado moral e espiritualmente, como está claro
nas histórias de Samuel, até que a arca foi capturada pelos filisteus por volta
de 1104, e Siló abandonada pouco tempo depois (ver p. 176). A arca ficou em
Quireate-Jearim depois de voltar da Filístia, e de lá Davi a conduziu para a
ddade de Jerusalém. Por outro lado, o tabernáculo estava, pelo menos por
um tempo, situado em Nobe, onde um descendente de Eli, chamado
Aimeleque, era o sumo sacerdote. Esta é uma afirmação razoável à luz da
referência explícita aos pães da proposição dados a Davi (1 Sm 21.4) e à
designação de Nobe como "a cidade dos sacerdotes" (1 Sm 22.19).
Samuel nesse tempo havia se afastado do tabernáculo, passando a ofe­
recer sacrifícios em lugares sagrados e nos altos das montanhas.28 Será
que isso implica em que, nos dias de Samuel, o tabernáculo já não mais
existia por haver sido destruído em Siló? A luz das informações nas Escri­
turas, que narram o encontro de Davi com Aimeleque, pode-se dizer cate­
goricamente não. A razão do afastamento de Samuel do santuário central
está no fato de Saul ter-se apropriado dele. Depois que Yahweh rejeitou
definitivamente Saul, Samuel procurou fazer o mesmo, rejeitando tudo o
que estava associado a Saul, inclusive o tabernáculo (1 Sm 15.34,35).
Tem-se procurado informações precisas acerca do serviço de culto nos
dias de Saul, mas pouco é encontrado. Entretanto, está claro que havia um
centro religioso de adoração instalado em algum lugar ou próximo do cen­
tro político, em Gibeá. Uma possibilidade é Mispa, que se localizava cerca
de oito quilômetros ao norte da capital. Samuel ofereceu sacrifícios a Deus
naquela cidade (1 Sm 7.9), embora isso não implique, necessariamente, na
presença do tabernáculo. Foi naquela cidade que Samuel intercedeu a
Yahweh em favor do povo, para que Ele lhes concedesse um rei (1 Sm 10.17­
24). Naqueles dias era costume consultar o Senhor usando o éfode sacerdo­
tal, que era na verdade um artigo intimamente ligado com o tabernáculo.
Até mesmo a forma como se deu a escolha de Saul - uma técnica binária
sim-ou-não - sugere o lançar de sorte sagrada feito pelos sacerdotes.29

:s Samuel estava particularmente ligado com Mispa (1 Sm 7.5; 10.17), Gilgal (1 Sm 10.8;
11.14) e Ramá (1 Sm 8.4; 15.34; 16.13), embora não haja evidências de atividade religiosa
e de culto em Ramá.
29 A linguagem da passagem "Saul... foi escolhido" é uma reminiscência da descrição do
processo pelo qual o culpado Acã "foi descoberto" (Js 7.16-19), um processo que estava
ligado ao método de seleção divina (Js 7.14) e da presença de Yahweh (Js 7.23). Que o
254 H istória dt ] srael no. A ntigo T estamento

Outra possibilidade, e provavelmente a mais real, é que o culto estives­


se centrado em Gilgal. Esta satisfaz em muitos aspectos, já que durante os
anos da conquista a cidade serviu a esse propósito (Js 5.10; 9.6-15). Além
disso, tanto no episódio em que Saul ofereceu sacrifícios ilegalmente quan­
do suas tropas eram pressionadas pelos filisteus (1 Sm 13.8-10), quanto na
ocasião em que decidiu poupar os rebanhos dos amalequitas para oferecê-
los em sacrifício a Yahweh (1 Sm 15.10-15), o local registrado foi Gilgal,
que no primeiro caso era o local que Samuel havia escolhido para sacrifi­
car a Deus (1 Sm 10.8). Saul, na realidade, estava certo de ir para Gilgal
buscar Yahweh, mas errou gravemente em arrogar-se o direito de servir
como oficiante da cerimônia.
Seja Mispa ou Gilgal o local do tabernáculo, o fato é que, depois de
Saul ter sido rejeitado, deixou de ser. Parece que o local passou a funcio­
nar em uma região próxima a Jerusalém, provavelmente Nobe, pelo me­
nos desde os tempos em que Davi matara o gigante Golias (ca. 1027).
Isso fica subentendido pelo fato de que Davi tomou a cabeça de Golias e
talvez sua espada, e levou-as para Jerusalém (1 Sm 17.54). Mais tarde,
Davi readquiriu a espada de Golias em Nobe (1 Sm 21.9), um vilarejo
situado do outro lado do Quidron da banda de Jerusalém, considerada
parte da Jerusalém maior. Por razões desconhecidas, Saul autorizou, ou
pelo pelos permitiu, que o tabernáculo fosse erigido em Nobe, ficando
bem próximo do monte Sião, onde Davi mais tarde estabeleceu seu pró­
prio santuário.
O tabernáculo permaneceu em Nobe até que Saul, enfurecido com os
sacerdotes por terem acolhido Davi, destruiu a cidade, e evidentemente
moveu o tabernáculo para outro lugar (1 Sm 22.11-19). Pode ser que o
tenha deslocado para a cidade de Gibeão, cerca de cinco a oito quilôme­
tros a noroeste de Gibeá, pois quando o tabernáculo é novamente citado
(durante o reinado de Davi), está naquela cidade (1 Cr 16.39; 21.29). E
mais tarde, Salomão foi até Gibeão adorar Yahweh no tabernáculo de
Moisés, localizado no grande alto (1 Rs 3.4,5; 2 Cr 1.3-6). O porquê de
Salomão ter-se dirigido àquele tabernáculo e não ao tabernáculo edificado
por Davi no monte Sião não está claro, mas no momento não é relevante.
Contudo, é provável que o santuário de Davi, mesmo contendo a arca da
aliança, fosse considerado tão inovador e problemático que até mesmo
seu filho Salomão persistiu em visitar o santuário de Gibèão. Esse fato

éfode estava envolvido nas duas situações é confirmado por 1 Samuel 14.40-42 onde,
pelo mesmo processo, Jônatas foi descoberto, por causa da violação do mandamento
dado por seu pai. Ver Klein, 1 Samuel, pp. 96-97,140.
D w i: O R einado da A liança 255

apóia a nossa teoria de que a arca não foi trazida a Jerusalém senão nos
últimos dias do reinado de Davi.

A razão para o atraso


O assunto da transferência da arca de Quireate-Jearim para Jerusalém
estava, sem dúvida, relacionado com a existência ou não de um local apro­
priado. Isso está claramente descrito em 2 Samuel 6.17 e 2 Crônicas 1.4. A
questão é: por que motivo Davi esperou tanto tempo para construir um
outro tabernáculo, e assim tornar a cidade de Jerusalém o verdadeiro cen­
tro religioso da nação?
Em primeiro lugar, está claro que a ascensão de Davi ao poder, tão
dramática quanto parece, não foi sem dificuldade, requerendo um longo
período de transição. Uma coisa era receber a aclamação popular como
uma figura política e militar, outra bem diferente era mudar a tradição
religiosa e unir o culto e a coroa nele mesmo em Jerusalém. Na história
de Israel até Davi, as linhas de demarcação entre liderança civil e religi­
osa tinham sido cuidadosamente traçadas. Até mesmo Moisés tinha seu
Arão, e Josué e todos os juízes permaneceram estritamente dentro das
responsabilidades não clericais. Por mais de uma ocasião Saul tentou
roubar as prerrogativas exclusivas dos sacerdotes, o que lhe custou mui­
to caro. E não existe qualquer evidência de que ele tentou firmar o
tabernáculo em Gibeá, sua própria capital. A luz desta tradição, como
Davi poderia estabelecer o centro de culto em Jerusalém sem que antes
houvesse uma longa preparação?
De forma mais prática, Davi tinha em suas mãos duas grandes tarefas:
estabelecer uma estrutura governamental apropriada à sua liderança e,
tão importante quanto essa, defender a nação da ameaça dos exércitos
estrangeiros. Só pôde alcançá-las de forma gradual. Conforme o autor de
Samuel, Davi "ia crescendo em poder cada vez mais, porque o Senhor
Deus dos Exércitos era com ele" (1 Sm 5.10). Ele já tinha se encontrado
com os filisteus antes de tomar a cidade de Jerusalém, mas o embate não
pusera um fim nos conflitos com esses adversários. Em pelo menos outra
ocasião - impossível de datar, mas certamente anterior à construção do
seu tabernáculo - Davi venceu os filisteus (2 Sm 8.1). Essa mesma campa­
nha ou talvez outras são referidas entre as batalhas travadas pelos ho­
mens valentes de Davi (2 Sm 23.9-12). Outros inimigos também tinham de
ser submetidos: Moabe, Zobabe, Damasco, Amom, Amaleque e Edom. Com
muito ou pouco sucesso, Davi ou incorporou tais reinos ao seu império,
ou transformou-os em estados clientes. Em todos os acontecimentos, um
significativo período de tempo era exigido nas campanhas, e somente de­
256 H istória de I srael no A ntigo T estamento

pois que as nações foram realmente tratadas, Davi voltou-se totalmente


para as necessidades religiosas da nação (2 Sm 7.1; 1 Cr 17.1).

U m a in tro d u ç ã o à c ro n o lo g ia d a v íd ic a

Neste ponto será válido atentar para a cronologia dos principais aconte­
cimentos na vida de Davi.30 Não há dúvidas quanto à data da conquista de
Jerusalém (ca. 1004) e de sua morte (971). As demais datas não são tão cla­
ras, mas algumas sugestões podem ser feitas. Primeiramente, embora a ida­
de de Salomão quando assumiu o trono não possa ser datada com precisão,
não resta dúvida de que era ainda muito jovem. Em sua oração feita em
Gibeão, ele se diz "uma criança" e, mesmo considerando aqui a presença de
uma hipérbole, seria um embaraço uma idade além de vinte anos (1 Rs 3.7).31
Além disso, quando Davi estava fazendo planos para construir um templo,
referiu-se a seu filho como "moço e inexperiente" (1 Cr 22.5; 29.1). Se Salomão
não tinha mais de vinte anos quando subiu ao trono, provavelmente então
não passava de dezoito quando Davi tratou com ele acerca da construção
do templo (1 Cr 22.6-16; cf. 23.1). Salomão então deve ter nascido em 991,
treze anos após Davi ter tomado a cidade de Jerusalém.32
O nascimento de Salomão ocorreu um ou dois anos depois que seu pai
envolveu-se num relacionamento adúltero com Bate-Seba. Provavelmente
Salomão nasceu durante a época em que Joabe conduzira Israel na peleja
contra os amonitas em Rabá. Uma data apropriada para essa guerra é 993.
Essa é a última batalha de Davi antes de fugir de Absalão, e há boas razões
para acreditar que também foi cronologicamente a última. Com exceção de
2 Samuel 8, que é um catálogo das conquistas no estrangeiro e não propria­
mente parte da narrativa, os outros episódios militares parecem estar des­
critos exatamente na ordem em que os acontecimentos ocorreram.

30 O que segue é uma breve panorâmica do problema que envolve a cronologia da vida de
Davi e sua resolução. Esse assunto é discutido exaustivamente em Eugene H. Merrill,
"O Ano da Ascensão e a Cronologia de Davi," JANES 19 (1987). A ser publicado.
31 A frase na ar qãtõn foi usada, em outras ocasiões, para descrever o moço que apanhava
as flechas de Jônatas (1 Sm 20.35), a pele de Naamã após sua cura miraculosa (2 Rs 5.14),
a criança escatológica que guiará animais selvagens (Is 11.6), o príncipe edomita Hadade
(1 Rs 11.17) e os rapazinhos que zombaram de Eliseu (2 Rs 2.23). Sem qualquer uma
exceção, o que temos aqui são crianças ou adolescentes. Ver Francis Brown, S.R. Driver
e Charles A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (Oxford:
Clarendon, 1962), pp. 654-55.
32 Isso está baseado nas datas acerca do reinado de Salomão (971-931) que são universal­
mente aceitas.
D ■!: O R einado da A liança 257

Tabela 5 A vida de Davi

O nascimento de Davi 1041


A unção de Davi por Samuel ca. 1029
Davi exilado por causa de Saul ca. 1020-1011
A unção de Davi como rei sobre Judá 1011
A unção de Davi como rei sobre Israel
e a conquista de Jerusalém 1004
A grande fome ca. 996-993
As guerras contra os amonitas ca. 993-990
O adultério com Bate-Seba ca. 992
O nascimento de Salomão ca. 991
O violação de Tamar ca. 987
A morte de Amnom ca. 985
O exílio de Absalão ca. 985-982
A construção do palácio de Davi ca. 979
A construção do tabernáculo e a transferência
da arca da aliança ca. 977
A rebelião de Absalão e o exílio de Davi ca. 976
O censo ca.975
A co-regência de Salomão ca. 973-971
A coroação de Salomão e a morte de Davi 971

A série de campanhas contra os amonitas foi provocada pelo tratamen­


to vergonhoso que os embaixadores de Davi sofreram nas mãos do rei
Hanum (2 Sm 10.1-5). O episódio deve ter se passado antes de Davi tor­
nar-se poderoso, já que Hanum e seus conselheiros pareciam não saber da
capacidade de retaliação de Davi. Além disso, Hanum era filho de Naás, o
rei amonita que tinha cercado Jabes Gileade nos primeiros anos do rei Saul
(1 Sm 11.1-5). Considerar que Naás havia acabado de morrer implicaria
ou em um reinado extremamente longo para Naás, ou em uma sucessão
de Hanum nos primeiros anos do reino de Davi.
Quando os amonitas perceberam que Davi representava mais do que a
ameaça suposta, decidiram alugar alguns mercenários de Bete-Reobe, Zobá,
Maacá e Tobe, tentando evitar o ataque de Israel sobre Rabá, a capital dos
amonitas. Joabe e Abisai, os generais de Davi, conseguiram ganhar o dia;
embora não tenham conseguido tomar a cidade, pelo menos forçaram o
recuo dos inimigos (2 Sm 10.6-14; 1 Cr 19.6-15). A perda apenas serviu
como estímulo aos arameus para que se reagrupassem e aumentassem as
suas forças visando a um futuro conflito. Dessa vez seria Hadadezer, de
Zobá, quem se lançaria em guerra contra Israel em Elan ('Alma), no deser­
to a oeste do mar de Quinerete; mas ele seria novamente vencido (2 Sm
10.15-19; 1 Cr 19.16-19). Assim encerrava a assistência dos arameus aos
amonitas.
258 H istória de I srael .wo A wtigo T estamento

O cerco de Rabá prolongou-se até a virada do ano, na mesma época em


que aconteceu o envolvimento entre Davi e Bate-Seba (2 Sm 11.1). Logo, o
conflito entre Israel e os arameus, bem como o primeiro ataque contra a
cidade de Rabá, devem ter acontecido entre 1004 e 993, mais provavel­
mente para o final do período.
Outro caminho a ser explorado concerne à rebelião de Absalão e aos
eventos relacionados. Absalão, filho de Davi com Maaca, nasceu em
Hebrom e, portanto, tinha idade suficiente para liderar uma rebelião con­
tra seu pai logo depois do nascimento de Salomão.33 Quanto tempo de­
pois não se pode dizer ao certo, mas é possível garantir que Davi partici­
pou da campanha contra os amonitas após Salomão ter nascido e antes de
Tamar ser violentada. Uma data provável para a defloração de Tamar é
987. Dois anos após o acontecimento, Absalão matou seu meio-irmão
Amnom (2 Sm 13.23), e exilou-se por três anos (985-982; 2 Sm 13.23). Quan­
do finalmente voltou do exílio, ficou por mais dois anos sem ver o rosto de
seu pai (982-980; 2 Sm 14.28). Então gastou mais quatro anos34 ganhando a
confiança do povo (980-976), até que rompeu definitivamente com seu pai
Davi (2 Sm 15.7,13).
Argumentou-se no princípio (pp. 251,252) que, uma vez que o tabernáculo
de Davi, construído para guardar a arca, não foi levantado antes de vários
outros projetos (incluindo o palácio de Davi) serem completados, a histó­
ria da chegada da arca à cidade de Jerusalém deve refletir um período
posterior ao seu reinado. Isso está baseado no fato de Hirão, rei de Tiro -
na verdade, o construtor do palácio - não ter começado a reinar senão a
partir de 980, não podendo envolver-se em projetos de construção antes
disso. Também é preciso ratificar que não há qualquer referência acerca da
arca da aliança ou do tabernáculo em Jerusalém até o tempo da rebelião
de Absalão. Logo, na história do exílio de Davi para a Transjordânia, oca­
sionada por aquela rebelião, o narrador indica que os levitas, com Zadoque,
carregavam a arca (2 Sm 15.24). Davi pediu-lhes para voltar com a arca
para Jerusalém (implicando em que já havia estado lá), expressando a ar­
dente esperança de que pudesse vê-la mais uma vez, assim como o local
de habitação de Yahweh (2 Sm 15.25). Isso pressupõe a presença do
tabernáculo em Jerusalém. A luz dos fatos discutidos com respeito à data

33 Caso tenha nascido nos primeiros dias do reinado de Davi em Hebrom (1008), Absalão
devia estar com dezessete anos quando Salomão nasceu (991).
34 O texto massorético aqui diz "quarenta" ao invés de "quatro". Embora seja uma leitura
mais difícil de aceitar, o hebraico deve ser descartado em favor da tradução da
Septuaginta, o Siríaco, a Vulgata e Josefo. Ver McCarter, II Samuel, p. 355.
D kyi: O R einado da A liança 259

da rebelião de Absalão, a mudança da arca para o novo tabernáculo deve


ter ocorrido em cerca de 977, assim encaixando mais naturalmente com a
data da ascensão do rei Hirão ao trono (980).
E importante reconhecer neste ponto que as datas sob exame não po­
dem ser consideradas inflexíveis, visto que tanto a cronologia de Hirão
quanto a de Absalão estão sujeitas a debate. Contudo, e isto é o mais im­
portante, nenhum estudioso está disposto a datar o reinado de Hirão an­
tes de 980, nem considerar que a rebelião de Absalão tenha ocorrido mais
cedo por qualquer razão extraída da evidência. De fato, a firme e madura
liderança exibida por Absalão em todos os sentidos indicaria uma idade
de trinta ou trinta e cinco anos. Parece plausível datar a rebelião em 976.35
Uma data em 980 para a ascensão de Hirão permitiria que ele construísse
o palácio de Davi, assim como concederia tempo a Davi para trazer a arca
para o tabernáculo que seria construído depois de seu palácio.
Esta nova maneira de considerar a transferência da arca da aliança tem
uma série de vantagens. Primeiro, explica o motivo de o registro antes da
rebelião de Absalão mostrar-se tão estranhamente silencioso com respeito
a Jerusalém ser o local central do santuário. Segundo, ajusta-se bem com a
noção de que a tradição em Israel não seria fácil de ser repentinamente
quebrada por Davi, e que ele, portanto, não tentou imediatamente promo­
ver a unificação do culto e do governo em um local. A reação de Mical (2
Sm 6.16-20) pode ter significado muito mais do que uma reação contra a
alegria de Davi,36 conforme tem sido alegado, já que era a segunda vez
que Davi tentava trazer a arca para Jerusalém; antes havia sido impedido
por causa da irreverência de Uzá. A chegada da arca aconteceu somente
depois de três meses, ocasião em que Davi se vestiu como sacerdote e
oficiou a cerimônia, conduzindo ele mesmo a procissão. Tal atitude deve
ter constrangido não apenas a Mical, mas também a toda população. Tal­
vez tenha sido esse o motivo que o levou a distribuir comida para todos os
que ali estavam, aproveitando também para lembrar à sua mulher que
ele, e não seu pai Saul, tinha sido escolhido por Yahweh. Pode ser que a
insatisfação com a atitude de Davi tenha alcançado uma proporção tal
que Absalão iniciou sua própria revolução.
Terceiro, a visão defendida nesta obra encaixa melhor a história do cul­
to, especialmente como é delineado pelo cronista. Ele inicia o relato com a
arca da aliança, como o faz o autor de 2 Samuel, descrevendo a tentativa

35 Se Absalão tinha nascido em cerca de 1008, como foi proposto acima, ele devia estar no
princípio de seus trinta anos em 976.
36 David F. Payne, I & II Samuel (Philadelphia: Westminster, 1982), p. 185.
260 H istória de I srael no A ntigo T estamento

frustrada de trazê-la para Jerusalém. A tentativa falhou não apenas por


causa de Uzá, mas fundamentalmente porque as pessoas religiosas
especializadas, envolvidas na ocasião, não estavam devidamente prepa­
radas para carregar a arca - elas a puseram num carro de bois ao invés de
carregarem-na erguida pelas varas. Na segunda tentativa de transferir a
arca, Davi tomou cuidado de convocar sacerdotes e levitas, instruindo-os
sobre a forma correta de transportá-la (1 Cr 15.11-15). É digno de nota que
os sacerdotes Zadoque e Abiatar sejam mencionados, sendo Zadoque
mencionado pela primeira vez (v. 11). Visto que depois desse incidente
Zadoque passou a servir como co-sumo sacerdote juntam ente com
Aimeleque, o filho de Abiatar (2 Sm 8.17; 1 Cr 18.16), é provável que ele
fosse bem mais novo que Abiatar, e muito jovem para que em 1004 já ser­
visse como sacerdote (uma data que tem sido normalmente aceita como a
data da transferência da arca), uma vez que ele ainda continuou servindo
como sacerdote no tempo de Salomão (1 Rs 2.35; 4.4).
De maior interesse ainda é a designação de Henã, Asafe, Etã e outros
músicos levitas e pessoal religioso, todos dentro do contexto da transfe­
rência da arca para Jerusalém (1 Cr 15.19). Alguns desses oficiais perma­
neceram a cargo da arca (1 Cr 16.4-6), enquanto outros, como Zadoque,
foram designados por Davi para servirem no tabernáculo de Moisés, que
ainda permanecia em Gibeão (1 Cr 16.39-42). Essa responsabilidade conti­
nuou nos respectivos tabernáculos até que o templo de Salomão foi final­
mente construído em cerca de 959 (1 Cr 6.31,32). E difícil admitir que o
início de seus mandatos tenha sido tão cedo quanto 1004, e que tenha con­
tinuado até 959. Porém, se o ministério no tabernáculo teve seu início em
cerca de 977, o problema é grandemente aliviado.
Tanto o livro de Samuel quanto o de Crônicas indicam que a transferên­
cia da arca para Jerusalém seguiu-se imediatamente ao desejo de Davi de
construir uma estrutura mais permanente para a adoração de Yahweh. Pen­
sar como alguns estudiosos que o desejo expressado por Davi de edificar
uma casa para Deus surgiu logo assim que o Senhor lhe dera descanso de
todos os seus inimigos, tem causado sérios problemas para muitos intérpre­
tes. Mas isso é exatamente o que aconteceu! Davi esteve ocupado com as
atividades militares durante os primeiros anos de seu reinado, e foi somen­
te depois de Rabá ser subjugada que ele transferiu a arca e fez seus planos
para a construção do templo. O cronista leva a identificar o desejo de Davi
em construir um templo com a transferência da arca da aliança para Jerusa­
lém. Depois de descrever todo o cuidado que Davi teve para com o trans­
porte da mesma, o novo tabernáculo em Jerusalém e o tabernáculo em Gibeão
(1 Cr 16.37-42), o cronista diz que Davi, ao voltar para seu palácio, tendo
D avi: O R einado da A liança 2 61

observado sua estabilidade, comparada à temporalidade do tabernáculo,


concebeu o plano de construir um templo (1 Cr 17.1).
Yahweh rejeitou a proposta de Davi, mas depois de um indeterminado
período de tempo, durante o qual ocorreu a rebelião de Absalão e um infe­
liz recenseamento, o Senhor permitiu que Davi desenvolvesse o projeto da
planta do templo, separasse um pessoal apropriado para o serviço sagrado
e coletasse material necessário para sua construção. A rebelião provavel­
mente terminou em 975, apenas quatro anos antes da morte de Davi. Veio
então o recenseamento: Davi bem pôde ter querido saber ao certo qual era o
grau de lealdade e qual era a força militar de que poderia dispor em casos
de levantes internos ou tentativas de invasões do exterior.
De qualquer maneira, o fim da praga enviada por Yahweh em conse-
qüência do recenseamento coincidiu com o desejo renovado de Davi de
edificar um templo (1 Cr 21.14 - 22.1). Ele ofereceu sacrifícios na eira de
Araúna, o jebuseu, que ficava ao norte de Jerusalém. Quando o Senhor o
respondeu naquele lugar, Davi compreendeu que aquele local deveria ser
o lugar onde o templo seria construído. Assim começou a reunir todo o
material necessário para a construção e repartiu seus objetivos com seu
jovem filho Salomão. Por Davi ser um guerreiro e preocupado com negó­
cios da guerra, a obra de construção do templo devia ser deixada para
Salomão, um homem de paz. Para garantir que Israel obedeceria e aceita­
ria seu filho, Davi fez dele um co-regente em seu reino (1 Cr 23.1). Juntos,
designaram os sacerdotes e levitas que serviriam no templo como canto­
res, porteiros e tesoureiros.
O anúncio formal foi feito a toda a nação. Davi enfatizou aos líderes de
Israel que havia sido escolhido por Yahweh para reinar, mas em razão de
ser um guerreiro, foi impedido de construir o templo. O privilégio foi re­
servado a seu filho Salomão. Sendo assim, ele exortou seu filho a que fos­
se fiel e fizesse a vontade de Deus, construindo o templo exatamente como
Yahweh havia revelado (1 Cr 28.9-12). Finalmente, voltou-se mais uma
vez para os líderes e insistiu para que dessem seus recursos em favor do
progresso da obra, um pedido que foi abertamente aceito e acatado. Davi
os conduziu em uma oração de louvor e compromisso e, no dia seguinte,
em uma cerimônia com grandes sacrifícios (1 Cr 29.20-22). Dois anos de­
pois o povo juntou-se para a cerimônia de coroação de Salomão, desta vez
como o único rei em lugar de seu pai (1 Cr 29.22b,23).37

37 Ver 1 Reis 1.32-40 para uma descrição da unção de Salomão. A narrativa de 1 Reis 1
indica que a conspiração de Adonias para impedir a ascensão de Salomão ao trono (vv.
5-10) chegou ao clímax exatamente antes da cerimônia de coroação. Isso foi cerca de
dois anos depois que Salomão tinha sido nomeado co-regente (1 Cr 23.1). Existem vári-
262 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Em suma, os últimos anos do reinado de Davi podem ser assim descri- i


tos: Davi trouxe a arca para Jerusalém em cerca de 977, Absalão rebelou-se
em 976, o censo foi realizado no ano seguinte, Salomão tornou-se co-re-
gente por volta de 973 e Davi morreu em 971. Portanto, o tabernáculo de
Davi esteve em uso por apenas seis anos na administração de Davi e por
onze anos com Salomão (1 Rs 6.1,37,38). A adoração no tabernáculo de
Moisés em Gibeão presumivelmente chegou ao fim por esse mesmo tem­
po (c. 959).

os fatores que corroboram nossa teoria dos acontecimentos, que incluem um período de
co-regência e uma clara ligação entre 1 Crônicas 29.22b com 1 Reis 1.32-40: (1) quando
Salomão foi ungido, foi reconhecido como rei "pela segunda vez" (1 Cr 29.22b); (2) A
unção de Salomão é mencionada apenas em 1 Crônicas 29.22b e 1 Reis 1.39, uma refe­
rência que surge exatamente depois da rebelião de Adonias; (3) ambos os relatos da
coroação mencionam Zadoque. Embora não estivesse ligado a qualquer uma das ceri­
mônias de unção, o próprio sacerdote Zadoque é ungido na ocasião quando Salomão
foi ungido (1 Cr 29.22b). De fato, 1 Reis descreve que Zadoque se torna o chefe dos
sacerdotes segundo o mandato de Salomão, depois da morte de Davi (2.35). Para os
problemas que surgem quando alguém deixa de admitir a existência de um intervalo de
tempo entre 1 Crônicas 29.22a e b, ver H. G. M. Williamson, 1 and 2 Chronicles, New
Century Bible Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), pp. 186-87.
0 5 A 0 S
T A
O Egito e a independência de Israel
As guerras contra os amonitas
A fon te histórica: a narrativa da sucessão
Considerações cronológicas
Davi e Mefibosete
A grande fome
A causa do conflito
Os aliados dos amonitas
Os arameus
Moabe e Edom
A derrota dos amonitas
A derrota de Edom
O início dos problem as fam iliares de Davi
A violação de Tamar
A vingança de Absalão
Jerusalém como centro do culto
Mélquiseãeque, Jerusalém e o sacerdócio real
Davi como sacerdote
A rebelião de Absalão
A ocasião
O exílio de Davi
A morte de Absalão
Os esforços de Davi para reconciliação
Proposta a Judá
Apelos feitos a Benjamim
M ais problem as para Davi
A rebelião de Seba
O infeliz recenseamento
O plano de Davi para construir um templo
Os motivos de Davi
A resposta de Yahzveh: a aliança davídica
A singularidade do reinado de Davi
Preparativos para o templo
A sucessão salomônica
A burocracia davídica
Militar
Civil
Religiosa
264 H istória de I srael s o A ntigo T estamento

0 E g ito e a in d e p e n d ê n c ia de Isra e l

Uma importante razão para a rápida ascensão de Davi e seu reino


israelita foi a falta de interferência das principais potências, especialmen­
te os egípcios. O reino do Nilo estava, na ocasião, no período conhecido
por Terceiro Período Intermediário (ca. 1100-650).1 Com apenas poucas
exceções, os reis por toda aquela longa era foram impotentes em relação à
política internacional aventureira. Os registros de Psusennes I (1039-991),
da 21a Dinastia, que foi contemporâneo de Saul e Davi, não falam de ne­
nhuma campanha militar especial na Palestina, embora revelem suas rea­
lizações culturais e domésticas.2 Portanto, Saul e Davi não precisaram te­
mer o Egito e, da mesma forma, os filisteus também assim se sentiam. O
sucessor de Psusennes, Amenemope (993-978), foi ainda menos ativo in­
ternacionalmente, e não pode se comparar ao antecessor Psusennes nas
realizações culturais. Mas pode ser que tenha ele sido o rei que ofereceu
refúgio para Hadade, rei de Edom, o qual Davi forçou a partir para o exí­
lio (1 Rs 11.14-22). A conquista de Edom não pode ser datada com preci­
são. Entretanto, conforme será discutido mais tarde, essa deve ter ocorri­
do antes de 980 e, portanto, dentro do período de Amenemope.3 A rainha
Tahpenes, cuja irmã casou-se com o rei Hadade (1 Rs 11.19) deve ter sido
mulher de Amenemope, ou mais propriamente Siamun, embora seu nome
não esteja claramente registrado.4
Siamun (978-959), um construtor expedito, era mais interessado em
diplomacia do que em explorações militares. Foi provavelmente ele que
deu a filha em casamento a Salomão, algum tempo depois do terceiro ano
do rei de Israel (967 - 1 Rs 2.39; 3.1), presenteando à filha a cidade de
Gezer como seu dote (1 Rs 9.16). Em algum ponto no início de seu reina­
do, ele arrancou a cidade de Gezer das mãos dos filisteus e matou seus
habitantes cananeus. Pode ser que Davi tenha contribuído com os egípci­

1 Para uma discussão mais detalhada acerca do tema, ver Kenneth A. Kitchen, The Third
Intermediate Períod in Egypt (1100-650 B.C.) (Warminster: Aris and Phillips, 1973).
2 Donald B. Redford, "Studies in Relations Between Palestine and Egypt During the First
Millennium B.C. II. The Twenty-second Dynasty," JAOS 93 (1973): 4
3 A cronologia desse período no Egito é extremamente complicada, visto que as fontes
são bastante contraditórias e incompletas. De qualquer forma, é pouco relevante aqui se
o faraó em vista era Amenemope ou Siamum. Ver J. Cerny, "Egypt: From the Death of
Ramesses III to the End of the Twenty-first Dynasty," em Cambridge Ancient History, 3a
ed., editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1975),
vol. 2, parrte 2, pp. 644-49.
4 Pierre Montet, Egypt and the Bible (Philadephia: Fortress, 1968), pp. 38-39.
0 * . t: O s A nos de L uta 265

os na ocasião para a tomada de Gezer (1 Cr 20.4).5 Caso tenha sido assim,


a ação ocorreu depois de 978, o primeiro ano de Siamun, e também na
mesma época em que a arca da aliança foi levada para Jerusalém. Esta tese
ganha bastante credibilidade quando observado que a atitude de Davi de
ajudar os egípcios na conquista de Gezer indiretamente o beneficiava tam­
bém, pois a destruição dos filisteus seria um fator positivo para que a arca
fosse trazida para Jerusalém. Isso também explica como um rei egípcio
relativamente fraco conseguiu penetrar tão profundamente em Canaã sem
uma oposição israelita.
A parte esse incidente, nada é conhecido acerca de um envolvimento
egípcio na Palestina durante todo o período da unificação da monarquia
israelita. A aparente indiferença não apenas permitiu aos filisteus manter
sua independência, mas também permitiu que Davi e Salomão criassem
uma poderosa política em Israel que, por fim, tornou-se um alvo para qual­
quer competidor internacional.

A s g u e rra s c o n tra os a m o n ita s

A fonte histórica: a narrativa da sucessão

O primeiro conflito de grandes dimensões que envolveu a nação de


Israel, depois da ocupação da cidade de Jerusalém, foi com os amonitas e
seus aliados arameus. O assunto é introduzido logo no início da longa
seção de 2 Samuel, conhecida como a narrativa da sucessão (2 Sm 9-20; 1
Rs 1-2), assim chamada porque o principal tema parece ser a preparação
de Davi para que seu herdeiro o suceda no trono. Virtualmente, todos os
estudiosos concordam que este é um dos exemplos mais elegantes na histó­
ria escrita do Oriente Médio.6 Ele é ao mesmo tempo uma obra de arte da

; Ronald J. Williams, "The Egyptians," em Peoples of Old Testament Times, editado por D.J.
Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), pp. 94-95. Quanto às dificuldades cronológicas
referentes à identidade desse faraó, ver Redford, "Studies in Relations," JAOS 93 (1973):
5. Quanto à possibilidade do faraó ter sido Psusennes II, ver Abraham Malamat, "The
Kingdom of David and Solomon in Its Contact with Egypt and Aram Naharaim," em
Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr. e David Noel Freedman
(Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, p. 93.
' Ver especialmente J.R Fokkelman, Narrative Art and Poetry in the Books of Samuel, vol. 1,
King David (Assen: Van Gorcum, 1981), e a literatura nele citada. A visão com um acerca
da natureza e da extensão da narrativa da sucessão originou-se com Leonhard Rost, Die
Überlieferung von der Thronnachfolge Davids, BWANT 3.6 (Stuttgart: W. Kohlhammer, 1926).
Outros tratamentos bem interessantes do assunto estão em R. A. Carlson, David, the Chosen
266 H istória de I srael no A ntigo T estamento

biografia que combina de forma magistral as muitas intrigas e conspira­


ções, cenas de brilho sem igual, e com muita beleza, culminando com per­
feitas finalizações.7
O centro de toda a narrativa encontra-se no nascimento de Salomão e
nos acontecimentos que marcaram seu surgimento como o herdeiro do
trono de Israel.8 Seu nascimento ocorreu porque Davi, que deveria estar
liderando seus exércitos contra os amonitas, permaneceu em casa, caindo
em um relacionamento adúltero com Bate-Seba. Embora o filho gerado
tenha morrido, Davi e Bate-Seba tiveram mais tarde Salomão. Portanto, os
detalhes que envolvem a campanha dos amonitas em 2 Samuel estão rela-

King (Uppsala: Almquist & Wiksells, 1964); David M. Gunn, The Story of King David:
Genre and Interpretation, JSOT suplemento 6 (Sheffield: University of Sheffield, 1978);
Roger N. Whybray, The Succession Narrative: A Study of II Samuel 9-20 and 1 Kings 1 and 2,
Studies in Biblical Theology, 2a série, vol. 9 (Naperville, 111.: Alec R. Allenson, 1968);
Ernst Würthwein, Die Erzählung von derThronfolge Davis, Theologische Studien (B) 15
(Zurich: Theologischer Verlag, 1974). Nem todos os estudiosos concordam com as teses
e limites traçados por esses pesquisadores. De fato, alguns duvidam que tal unidade
independente sequer realmente existiu. Ver o alerta consciente de Peter R. Ackroyd,
"The Succession Narrative (so-called)," Interp. 35 (1981): 383-96. Tais debates, entretan­
to, em nada afetam o valor do material histórico e da narrativa apresentada nesse traba­
lho. Para uma análise positiva da narrativa como verdadeiramente histórica, ver Moshe
Weinfeld, "Literary Creativity," em World History of the Jewish People, vol. 5, The Age of
the Monarchies: Culture and Society, editado por Abraham Malamat (Jerusalém: Massada,
1979), pp. 41-43.
7 Quanto a um estudo interessante de algumas variedades de gênero dentro do corpus
maior, ver George W. Coats, "Parable, Fable and Anedocte: Storytelling in the
Succession Narrative," Interp. 35 (1981): 368-82. Coats presta uma atenção especial à
parábola de Natã (2 Sm 12.1-4), a qual ele prefere chamar de fábula, e à anedota
contada pela sábia mulher de Tecoa (2 Sm 14.5-7). David M. Gunn afirma que a real
existência de tais gêneros implica em uma base de transmissão oral para toda a com­
posição e, portanto, determina a falta de confiabilidade histórica ("Traditional
Composition in the Succession Narrative," VT 26 [1976]:214-19). Quanto à uma res­
posta convincente a esse argumento, embora bastante cético com respeito aos deta­
lhes, ver John Van Seters, "Problems in the Literary Analysis of the Court History of
David," JSOT 1 (1976):22-29.
8 Whybray, Succession Narrative, pp. 19-21; J. Alberto Soggin, A History of Ancient Israel
(Philadelphia: Westminster, 1984), p. 43; Tomoo Ishida, "Solomon's Succession to the
Throne of David - A Political Analysis," em Studies in the Period of David and Solomon
and Other Essays (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), pp. 175-76; P. Kyle McCarter,
Jr. "Plots, True or False: The Succession Narratives as Court Apologetic," Interp. 35
(1981): 355-67. Quanto a pontos de vista contrários, ver Ishida, "Solomon's Succession,"
p. 175, n.2.
0v.;; Os A nos de L uta 267

donados com os principais acontecimentos que seguem a ordem da nar­


rativa e, é claro, com a história de Israel.9

Considerações cronológicas

Davi e Mefíbosete
O cenário cronológico da luta contra os amonitas, descrito em 2 Samuel
10, já foi tratado abreviadamente. Foi sugerido que o acontecimento deve
ter ocorrido logo assim que Davi tomou posse da cidade de Jerusalém
(1004), porque Hanum, filho de Naás, havia recentemente assumido o
poder em Amom. Outra pista cronológica é encontrada em 2 Samuel 9,
que muitos estudiosos consideram ser parte integral na ordem da narrati­
va. O capítulo, que precede imediatamente o relato da guerra diz respeito
ao pedido de Davi quanto à possibilidade de haver algum sobrevivente
da casa de Saul, a fim de que pudesse exercer misericórdia em seu favor
por causa de Jônatas. Tal pedido poderia soar como um cinismo, já que era
do interesse de Davi cultivar uma boa política com os que apoiavam o rei
Saul, os quais ainda perfaziam um grande número em Israel. Mas qual­
quer que tenha sido a intenção de Davi, um servo de Saul chamado Ziba
informou a Davi que o filho de Jônatas, Mefibosete, ainda estava vivo e
morando em Lo-Debar (Umm ed-Dabar?), cerca de dezesseis quilômetros
a sudeste do mar de Quinerete.10 Davi mandou buscá-lo, estabeleceu-lhe
uma pensão pública e instruiu o servo Ziba e sua família que o atendes­
sem em todas as suas necessidades.11
Essa história, além de fundamentar a subseqüente aceitação de Davi
por parte dos benjamitas, auxilia a determinar alguns limites cronológi­
cos. Um texto anterior, quase parentético, mostra que Mefibosete era da
idade de cinco anos quando Jônatas morreu em Gilboa. Naquela ocasião,

Hans W. Hertzberg, 1 & 11 Samuel (Philadelphia: Westminster, 1964), p. 303. A ligação


entre a hostilidade dos amonitas e a narrativa da sucessão como um todo é bem traba­
lhada em John I. Lawlor, "Theology and Art in the Narrative of the Ammonite War (2
Samuel 10-12)," GTJ 3 (1982): 193-205.
Yohanan Aharoni and Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan,
1968), p. 180
Política semelhante a essa provisão para os descendentes de Saul concedidas por Davi,
por suas prerrogativas reais e por sua liberalidade, estão confirmadas nos textos
ugaríticos; ver Anson F. Rainey, "The System of Land Grants at Ugarit in Its Wider
Near Eastern Setting," Fourth World Conference on Jewish Studies (Jerusalem, 1967),
p. 190.
268 H istória de I srael no A ntigo T estamento

a criada, em uma tentativa de fuga, tropeçou e deixou a criança cair no


chão, aleijando-a em suas duas pernas (2 Sm 4.4). A questão aqui é que
Mefibosete estava com cinco anos de idade em 1011; logo, ele nascera em
1016. Em 1004, ano em que Davi tomou a cidade de Jerusalém, Mefibosete
estava apenas com doze anos de idade. Tinha já ele um filho quando o rei
ordenou que fosse assistido em suas necessidades (2 Sm 9.12). E precário
construir um caso sobre uma data subjetiva; mas dado a propensão para
casamentos em idades tenras no antigo Israel, é razoável supor que
Mefibosete estivesse com aproximadamente vinte anos de idade na épo­
ca, e que a data de seu retomo foi aproximadamente 996.

A grande fom e
A metade dos anos 990 parece o cenário perfeito para a terrível fome
que assolou a Palestina da época, e que se encontra registrada em 2 Samuel
21.1- 14. A razão por que tal episódio aparece nesse local do texto, ou seja,
fora da ordem cronológica, é que a história da fome encaixa-se melhor em
um outro acontecimento de natureza semelhante, e que está registrado no
capítulo 24. Tudo o que separa as duas histórias são resumos das guerras
filistinas (21.15-22), o cântico de louvor de Davi (22.1-51), o discurso de
despedida (23.1-7), e a lista de seus heróis (23.8-39). O plano do historia­
dor, mais uma vez, é determinado por tópicos, e não por uma ordem cro­
nológica.
Há várias razões para acreditar que o relato mencionado em 2 Samuel
21.1- 14 encaixa-se melhor entre a chegada de Mefibosete a Jerusalém e o
início das guerras contra os amonitas. Em primeiro lugar, a fome devas­
tou a terra porque Saul feriu terrivelmente os gibeonitas (um evento não
mencionado de outra forma), o que representou uma brecha na aliança
estabelecida entre Josué e aquela cidade séculos antes (Js 9.15-20). Parece
pouco provável que a retribuição tivesse sido adiada até os últimos anos
de Davi. Além disso, o preço que os gibeonitas exigiram de Davi para que
a fome viesse a cessar, seria a morte de sete filhos de Saul ou netos. O
preço incluiria dois filhos de Rizpá, concubina de Saul, e cinco filhos de
sua filha Merabe.12 Os sete foram enforcados pelos gibeonitas no início da
colheita da cevada. Rizpá manteve-se junto aos cadáveres dia e noite até
que voltou a chover e a seca foi quebrada. A não ser que seja aceito aqui

12 O texto massorético aqui está escrito "Mical" em vez de "Merabe" (2 Sm 21.8), talvez,
como S. R. Driver sugere, um lapsus calami (cf. 1 Sm 18.19) (Notes on the Hebrew Text and
the Topography ofthe Books o f Samuel, 2a ed. [Winona Lake, Ind.: Alpha, 1984 reedição] p.
352). ,
D avi: O s A nos de L uta 269

uma senhora idosa que, mui amorosamente guardava os corpos de seus


filhos de meia-idade, uma interpretação que forçaria a datar o incidente
nos últimos dias da vida de Davi, deve-se necessariamente admitir uma
data mais antiga.
A data mais antiga é confirmada também pela reação de Davi à devoção
de Rizpá aos cadáveres de seus filhos - ele mandou buscar em Jabes-Gileade
os ossos de Saul e Jônatas, juntando-os aos corpos dos enforcados, de forma
que pudesse dar-lhes um enterro com todas as honrarias de praxe. É difícil
imaginar que Davi esperaria por quarenta anos depois da morte deles para
então dar-lhes um sepultamento digno, ainda mais sabendo que era hora
do rei tentar ganhar de todas as formas a lealdade dos benjamitas, bem como
das demais tribos do norte. De fato, a retirada dos ossos da cidade de Jabes-
Gileade aconteceu alguns anos depois que o próprio Davi parabenizou aque­
les homens pelo que fizeram ao corpo de Saul, uma mensagem que ele en­
viou logo que passou a reinar em Hebrom (2 Sm 2.4-7).
Mesmo assim, a seca não poderia ter acontecido antes do estabeleci­
mento de Jerusalém como capital da nação e do benefício feito por Davi a
Mefibosete. Isso fica claro pelo fato de que Mefibosete fora poupado por
Davi de ser enforcado pelos gibeonitas, uma circunstância que pressupõe
a presença de Mefibosete com Davi.
O melhor ponto de vista parece ser aquele dos três anos de fome ocor­
ridos por volta de 996-993. Mefibosete, conforme já sugerido, tinha idade
suficiente para ter um filho ainda moço. Além disso, as guerras amonitas,
conforme se verá adiante, tiveram de começar por volta de 993, mas não
muito antes. É provável que os amonitas não estivessem com medo de
Davi por causa da terrível seca que devastara a nação, deixando-a
enfraquecida e empobrecida, embora seja isso tudo mera especulação.
Contudo, uma coisa está clara, isto é, se nossa reconstrução estiver corre­
ta. Quando Davi entregou aqueles sete homens nas mãos dos gibeonitas,
estava, na realidade, minando ainda mais suas tentativas de reconciliação
com os benjamitas. O mínimo que ele pôde fazer foi devolver os corpos de
Saul e Jonatas para Benjamim, na esperança de poder aplacar os senti­
mentos feridos das tribos do norte.

A causa do conflito

Nesse tempo Naás, rei de Amom, morreu e foi sucedido por seu filho
Hanum. Infelizmente nenhum dos dois indivíduos foi registrado em fontes
extrabíblicas, de forma que não se pode conhecer mais nada acerca deles,
senão o que está escrito em Samuel e Crônicas. De fato, a história antiga dos
270 H istória de I srael no A ntigo T estamento

amonitas praticamente só pode ser reconstituída através do Antigo Testa­


mento, a não ser quando alguns artefatos incidentais são encontrados.13 Os
amonitas vinham sendo uns dos opressores do povo de Israel (1124-1106)
mesmo antes dos dias de Jefté (1106-1100), e nos dias deste juiz reivindica­
ram o direito de possuir de volta uma terra que já vinha sendo habitada por
Israel por trezentos anos. Não há dúvidas de que eles já tinham habitado o
leste do Jordão desde tempos imemoráveis, até que foram forçados pelos
amoritas a mudar-se para longe dali. Em todo caso, Jefté levantou-se e for­
çou-os novamente a permanecer nos desertos ao leste. Uma outra tentativa
de reivindicar os territórios no oeste ocorreu na época em que Naás reinava,
durante os primeiros anos de Saul (ca. 1050 - 1 Sm 11). Mais uma vez os
amonitas foram derrotados, embora não haja registros que confirmem sua
expulsão para o leste. Aparentemente, permaneceram ao sul do Jaboque,
tendo estabelecido sua capital em Rabá (a moderna Amman, Jordânia). Lá
concentravam-se nos dias de Davi.
Parece que Davi, quando subiu ao trono de Saul, foi congratulado pelo
rei Naás (2 Sm 10.2). Isto não é de causar surpresa, considerando a animo­
sidade entre Naás e Saul. Talvez o rei Naás esperasse que Israel se com­
portasse de forma amigável, já que o rei era Davi, aparentemente um ad­
versário de Saul. Quando o filho de Naás, Hanum, o substituiu no trono,
Davi retribuiu a cortesia manifestada por Naás, enviando a Rabá uma
missão para congratular-se com aquele novo monarca. Porém, as inten­
ções de Davi foram mal interpretadas, e seus oficiais vergonhosamente
tratados e despachados de volta para casa. Tal atitude não podia ser to­
lerada, de forma que Davi enviou Joabe e seu exército até Rabá para vin­
gar-se da afronta.

Os aliados dos amonitas

Os arameus
Estava mais do que evidente a Hanum que havia ele cometido um gra­
ve erro e que, a partir de agora, teria de buscar ajuda, caso ainda quisesse

13 Quanto a uma síntese geral, ver George M. Landes, "The Material Civilization of the
Ammonites," em Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, pp. 69-88. Com respeito aos poucos
textos amonitas que restaram, nenhum é mais antigo do que a época da monarquia no
Israel unificado. Ver Dennis Pardee, "Literary Sources for the History of Palestine and
Syria II: Hebrew, Moabite, Ammonite, and Edomite Inscriptions," AUSS 17 (1979): 66­
69. Ver também B. Oded, "Neighbors on the East," em World History ofthe Jewísh People,
vol. 4, parte 1, pp. 258-62.
D avi: O s A nos de L uta 27]

permanecer vivo. Para isso alugou os serviços dos arameus de Bete-Reobe


e de Zobá, bem como os pequenos reinos de Maaca e Tobe.14
Bete-Reobe era o nome tanto de uma cidade quanto de um estado, sen­
do este impossível de identificar. O reino situava-se no grande vale de
Ba ca, entre as cadeias montanhosas do Líbano e Anti-Líbano, que se es­
tendia de Dã ao sul até o reino de Zobá, no norte.15 A destruição dos hititas
pelos Povos do Mar em cerca de 1200, associada ao rápido declínio da 20a
Dinastia Ramessida, do Egito, tinha deixado a Síria e a alta Mesopotâmia
praticamente nas mãos dos assírios. Devido às necessidades internas de
se tratar com a recentemente imposta Dinastia Babilónica Pós-Cassita e
também com os elamitas, os assírios se viram forçados a permanecer onde
estavam, não se movendo em direção oeste, para tomar proveito do vácuo
político criado na Síria até os dias de Tiglate-pileser I (1115-1077). Ele mar­
chou sobre a Síria para desfazer o crescente reinado político e militar dos
arameus ou qualquer outro que estivesse no caminho.16 Por volta de 1100
os arameus começaram a infiltrar-se na baixa Mesopotâmia de forma mais
forte, e não muito tempo depois um rei de origem araméia assumiu o tro­
no da Babilônia. Esse governante, Ada-apla-iddina (1067-1046), foi o pri­
meiro de uma série de muitos outros arameus que ocupariam os palácios
reais na Mesopotâmia.17 De fato, o grande império caldeu de Nabucodo-
nosor, quinhentos anos depois, teve suas origens na Síria.
Tiglate não pôde dominar as cidades-estados araméias, porque teve de
retirar-se do conflito, em vista da crescente hostilidade babilónica em sua
terra. Ainda que outros reis assírios, como Assur-bel-kala (1074-1057) fi­
zessem esporádicas incursões para o interior da Síria, as cidades-estados
permaneceram na maior parte livres para desenvolver-se, até a ascensão
de Israel sob Davi.18
Zobá parece ter sido o mais forte dos reinos arameus estabelecidos ao
sul. Saul já havia pelejado contra alguns de seus reis (1 Sm 14.47), mas foi
somente durante o reinado de Davi que Zobá, governada na ocasião por

14 Para um relato sucinto sobre o relacionamento de Israel com seus vizinhos ao norte no
período de Davi, ver Benjamim Mazar, "The Aramaean Empire and Its Relations with
Israel," em Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, pp. 131-33.
15 Merrill F. Unger, Israel and the Aramaeans of Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980,
reedição), p. 42.
16 Albet Kirk Grayson, Assyrian Royal Inscriptions (Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1976),
vol. 2, #4, pp. 89-97.
17 D.J. Wiseman, "Assyria and Babylonia c. 1200-1000 B.C.," em CAH 2.2, pp. 466-67.
18 Yutaka Ikeda, "Assyrian Kings and the Mediterranean Sea: The Twelfth to Ninth
Centuries B.C.," Abr-Nahrain 23 (1984-85): 23.
H istória df. I srael no A ntigo T estamento

Hadadezer, filho de Reobe, alcançou seu zénite. Seu território estendeu-se


desde Bete- Reobe, ao norte, alcançando a Hamate, situada a noroeste da
cadeia montanhosa do Anti-Líbano, até o Tadmor, e ao sul até Damasco.19
Dessa forma, Hadadezer fez-se uma figura notável, e provavelmente a ele
Salmaneser III (858-824) referiu-se como o rei dos "amuru", que havia se
apoderado de territórios assírios que pertenciam ao rei Assur-rabi II (1013-
973).20 Esses dados encaixam-se muito bem com a narrativa bíblica que
informa ter Hadadezer chamado algumas de suas tropas "dalém do rio"
(i.e., o Eufrates) para lutar contra o rei Davi (2 Sm 10.16).
Naqueles anos os reinos de Maaca e Tobe eram pequenos tributários
de Zobá (2 Sm 10.6,19). O primeiro localizava-se ao leste do lago Hulé e
o último ao leste e sudeste do mar de Quinerete. Não há nenhuma outra
informação acerca deles.21 Damasco, embora mencionado no resumo de
2 Samuel 8, não era nessa época um importante reino, apesar de, é claro,
ter sido a principal cidade séculos antes de Davi. Realmente ela tornou-
se o centro do poderio e influência arameus até o fim do reinado de
Salomão.

Moabe e Edom
Moabe, cuja opressão acabou culminando no surgimento do juiz Eúde,
no início do décimo terceiro século (Jz 3.12-30), aparentemente deslocou
ou viveu entre os israelitas da tribo de Rúben e Gade, ao leste do Jordão,
desde aquela época em diante. O território moabita era muito flutuante,
mas geralmente se localizava ao leste do Jordão, ao norte do rio Zerede e
ao sul do Arnom.22 E impossível saber qualquer coisa acerca da força e
estabilidade de Moabe nos anos que antecederam o rei Davi, mas é certo
que Gideão evitou a área sul do Jaboque, imediatamente a leste do Jordão,
quando perseguia os príncipes midianitas, o que talvez possa significar
que ele reconhecia no lugar um território dos moabitas. Davi, no início de
seu exílio (ca. 1020), enviou sua família para encontrar refúgio junto ao rei
de Moabe em Mispa, um local que infelizmente não pode mais ser identi­
ficado (1 Sm 22.3,4). Sem as referências bíblicas, o reino dos moabitas des­
se período permanece um mistério.23

19 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 43.


20 J.D. Hawkins, "The Neo-Hitite States in Syria and Anatolia," em CAH 3.1, pp. 391-92.
21 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 45.
22 Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 295; Oded,
"Neighbors on the East," em World History of the ]eivish People, vol. 4, parte 1, p. 256.
23 A.H. VanZyl, The Moabites (Leiden: E.J. Brill, 1960).
f
D a v i: O s A nos de L uta 273

Pouca coisa se sabe acerca de Edom.24 Esse reino, localizado nos pla­
naltos relativamente isolados do leste e do sul do mar Morto, tinha sido
governado pela dinastia de reis desde Esaú. Moisés tinha passado pelo
lado de Edom; seus territórios foram postos de lado e não foram conquis­
tados pelos israelitas na ocupação da Terra Prometida. A única referência
a Edom entre o período mosaico e o de Davi é 1 Samuel 14.47 que diz que
Saul lutou com Edom. Saul obteve alguma vantagem sobre os edomitas
porque alugou um assassino edomita chamado Doegue. Não é possível
determinar se isso implica em que Edom tenha sido um estado vassalo de
Israel.

A derrota dos amonitas

Voltando às guerras amonitas travadas por Davi, encontramos Joabe


cercando a cidade de Rabá (2 Sm 10.6-14). As tropas amonitas guardavam
seus portões enquanto os aliados arameus, cerca de trinta e três mil, reuni­
am-se nos campos vizinhos. A distribuição dos adversários acabou encur­
ralando Joabe, de modo que este decidiu dividir seu exército em duas par­
tes: os melhores homens ficaram com ele para atacar os arameus, ao passo
que o restante dos soldados estariam sob as ordens de seu irmão Abisai, e
atacariam os amonitas. A estratégia deu certo: os arameus fugiram para o
norte, e os amonitas recuaram e se abrigaram em cidades muradas. Foi
assim que Joabe desistiu de persegui-los e voltou para Jerusalém.
Em um segundo episódio, o rei Hadadezer mandou chamar seus ho­
mens que estavam além do Eufrates e os enviou para a guerra contra Isra­
el em Elam ('Alma), sob as ordens de seu general Shobach, cerca de 64
quilômetros a leste do mar de Quinerete. Davi conseguiu uma esmagado­
ra vitória, ferindo os exércitos dos arameus, inclusive o general. O resulta­
do foi a capitulação não apenas de Hadadezer, mas também de todos os
estados vassalos a ele ligados. Assim começou Davi a esculpir seu próprio
império, embora esta não pareça ter sido a sua intenção original.
Tanto um resumo quanto uma ampliação das conquistas feitas por Davi
contra os arameus estão registrados em 2 Samuel 8. Nesta passagem o
historiador declara que dos quarenta mil mortos (2 Sm 10.18), vinte mil
eram de Zobá e vinte e dois mil de Damasco.25 Ele acrescenta ainda que

24John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples of Old Testament Times, edita­
do por D.J. Wiseman, pp. 229-58.
25 Quanto ao problema de harmonizar as cifras em 2 Samuel 8 e 10 com o registro em 1
Crônicas 18, ver o trabalho de Eugene H. Merrill, "2 Samuel" em The Bible Knowledge
274 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Davi tributou a cidade de Damasco e tomou os seus escudos de ouro per­


tencentes aos oficiais do rei, assim como o bronze das cidades que eram
sujeitas a Hadadezer. Os metais, diz o cronista, Salomão utilizou na con­
fecção de artigos para o templo (1 Cr 18.7,8).
A submissão de Hadadezer ocasionou a rendição voluntária de Tou,
rei de Hamate. Inimigo de Hadadezer, talvez Tou tenha se entregado com
vista a obter proteção. A sinceridade de Tou foi expressada através dos
presentes em ouro, prata e bronze, enviados pessoalmente por seu filho
Jorão. Esses metais Davi também guardou para o futuro serviço a Yahweh.
Praticamente todo o Arã estava agora sob a hegemonia de Israel, em­
bora o problema amonita ainda não estivesse totalmente resolvido. Mais
uma vez a cidade de Rabá foi atacada, mas Davi permaneceu em casa.
Enquanto desfrutava da tranqüilidade de Jerusalém, o rei se viu espiando
Bate-Seba, mulher de seu vizinho, que se banhava completamente à vista
do telhado do palácio real. Tomado pela cobiça, mandou trazer a mulher à
sua presença e consumou o adultério. Quando depois soube que a mulher
estava grávida, Davi mandou trazer da batalha o seu marido, Urias, que
pelejava em Rabá, a fim de que parecesse ser o pai da criança. Quando o
plano de trazer Urias para os braços de sua esposa fracassou, Davi imedi­
atamente ordenou ao general que colocasse Urias na linha de frente, onde
a luta estivesse mais árdua para que ali morresse. Depois que a criança
nasceu, o profeta Natã informou ao rei Davi que a espada jamais se afasta­
ria de sua casa. A criança então morreu, como evidência clara do juízo de
Deus, mas Yahweh, por sua graça, permitiu que Salomão nascesse mais
tarde de Bate-Seba e assim preparou o caminho para a sucessão dinástica.
Enquanto isso Joabe derrotava as tropas dos amonitas no campo e, mais
uma vez, sitiou a cidade de Rabá (2 Sm 12.26-31). Não há dúvida de que,
nesse período da história, os moabitas estavam sob o domínio de Israel,
uma vez que Davi, provavelmente, teve de atravessar o território moabita
para alcançar a cidade de Rabá vindo de Jerusalém. A luz do parentesco
com os moabitas, é difícil entender o porquê de Davi ter-lhes dado um
tratamento áspero (2 Sm 8.2,12), ou, da mesma forma, de os moabitas te­
rem se unido aos amonitas contra Israel, interferindo-se nos objetivos mi­
litares de Davi. A queda de Rabá resultou no mesmo tratamento dado aos
amonitas. Davi os tornou escravos e talvez tenha lhes dado uma represá­
lia bastante severa (2 Sm 12.31).

Commentary, editado por John F. Walvoord e Roy B.Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985),
vol. 1, pp. 465,467; Gleason L. Archer, Jr., Encyclopedia ofBíble Difficulties (Grand Rapids:
Zondervan, 1982), p. 184.
£)*«:: Os A nos de L uta 275

A derrota de Edom

As campanhas militares de Davi contra Edom devem ter sido realiza­


das durante o período que antecedeu o nascimento de Salomão. É prová­
vel que os edomitas tenham feito alianças políticas e militares com os
moabitas e amonitas contra Israel, a fim de poderem impedir a penetração
de Davi no interior da Transjordânia, pois, mesmo sendo a campanha na
ocasião dirigida contra os amonitas, os moabitas e edomitas estariam sen­
do igualmente ameaçados. O tempo pode ser melhor determinado em 1
Reis 11.14-22, que descreve a fuga do príncipe edomita Hadade para o
Egito. No resumo das guerras de Davi, em 2 Samuel 8, o historiador indi­
ca que Davi havia esmagado dezoito mil edomitas no vale do Sal (Vadi el-
Milh), que estava situado no Negueve, próximo a Berseba e Arade. Isto
pode ser uma indicação de que os edomitas se lançaram em uma ofensiva
direta contra Israel vindos do sul, visto que o vale estava sob o controle
israelita. O cronista acrescenta que a vitória israelita, na verdade, só foi
concretizada com a atuação de Abisai, que foi o responsável pelo estabele­
cimento de guarnições em Edom. Foi ele, inclusive, quem obrigou os
edomitas a se tornarem vassalos de Davi (1 Cr 18.12,13).
O relato apresentado em 1 Reis não é uma variação de tudo isso, mas
sim um complemento e um relato de eventos subseqüentes. Depois que
Edom foi reduzido à condição de vassalo, parece que Davi e Joabe parti­
ram para o local a fim de sepultar os mortos e colocar um fim na oposição
que ainda restava. Alguns membros da família real de Edom, incluindo
Hadade, conseguiram escapar rumo ao Egito, onde encontraram uma cor­
dial hospitalidade. Mais tarde Hadade retornou para Edom e mostrou ser
o maior responsável da queda de Salomão. Mas por enquanto só é impor­
tante notar que o autor de Reis descreve Hadade como "apenas um meni­
no" na época de seu exílio. Então, após alcançar a maioridade, casar-se e
tornar-se pai de um menino, voltou para Edom pouco tempo depois da
morte de Davi (1 Rs 11.20-22). Esse período da vida de Hadade deve ser
datado por volta de 969. Uma boa época para se datar sua fuga para o
Egito seria 993, data que tem sido vista como o tempo das guerras amonitas.
Portanto, a campanha edomita pode ter sido o fim das guerras contra os
amonitas e arameus (2 Sm 10).
O cenário pode ser reconstruído da seguinte maneira: Quando Joabe
foi enviado para Rabá a fim de completar o cerco da cidade (2 Sm 12.26­
28), Abisai, seu irmão, foi simultaneamente para o vale do Sal combater
uma invasão edomita (1 Cr 18.12,13). Depois de serem alcançados ambos
os objetivos, Davi, que foi pessoalmente a Rabá com o intuito de supervi­
276 H istória de I srael no A ntigo T estamento

sionar a queda, partiu para Edom com Joabe a fim de completar a con­
quista iniciada por Abisai. Então os edomitas tornaram-se um estado tri­
butário de Israel, mas antes a família real edomita conseguira escapar para
o Egito.

O in ício d o s p ro b le m a s fa m ilia re s d e D a v i

Foi depois de todas as vitórias no exterior, de acordo com 2 Samuel,


que a família de Davi passou a ser um foco de problemas - incluindo um
estupro e um assassinato - que quase custou a Davi sua coroa e compro­
meteu a sucessão de Salomão. Os problemas surgiram depois do nasci­
mento de Salomão, filho de Davi e Bate-Seba, cujo adultério foi a principal
causa do tumulto (2 Sm 12.10-14). Já foi sugerido que Salomão tinha vinte
anos quando começou a reinar, de forma que deve ter nascido em cerca de
991. Depois desta data começaram os problemas familiares de Davi. Uma
implicação de tudo isso é que, se a primeira metade do reinado de Davi foi
caracterizada pela bênção e sucesso, a segunda foi marcada pelas dores de
cabeça e derrota.

A violação de Támar

A primeira evidência de que a espada não se apartaria da casa de Davi (2


Sm 12.10) foi, sem dúvida, a violação cometida por Amnom contra sua meia-
irmã Tamar. Nascido de Ainoã, a jezreelita, Amnom era o filho mais velho
de Davi (2 Sm 3.2). Visto que nascera em Elebrom, era um jovem de apro­
ximadamente vinte anos quando forçou a irmã de Absalão e tirou-lhe a vir­
gindade. Ela, aparentemente, nasceu em Jerusalém (1 Cr 3.4-9); portanto,
era muitos anos mais nova que Amnom. Depois de satisfazer a cobiça, a
paixão desmedida pela jovem tornou-se em desprezo, e Amnom recusou-se
a tomá-la como esposa, conforme a lei exigia em tais circunstâncias. Humi­
lhada, Tamar buscou refúgio e consolo em seu irmão mais velho, Absalão.

A vingança de Absalão

Absalão estava furioso e desejoso de vingança, mas percebeu que a


situação precisava ser resolvida com incomum diplomacia. Não seria nada
bom, certamente ponderou, levar o problema a Davi, pois seu pai já havia
comprometido a própria integridade por ocasião do adultério com Bate-
Seba e do assassinato de Urias e, portanto, não faria nada. Além disso,
Amnom era o herdeiro do trono, um fator que o deixava imune a processo
D avi: O s A nos de L uta 277

ou punições. Sendo assim, Absalão deixou a situação arrefecer até que


pudesse divisar uma ocasião oportuna para vingar-se. Nessa época, o de­
sejo de tomar o trono de Israel surgia em Absalão. Destruir a vida de
Amnom não apenas vingaria a honra de sua irmã, mas também abriria
um espaço para que ele sucedesse ao pai no trono.
Davi tomou conhecimento do crime de Amnom e, embora enraivecido,
mostrou-se paralisado em tomar alguma atitude. Talvez tenha imaginado
que seria hipocrisia punir o filho por um pecado semelhante ao seu. Em
todo caso, Absalão por dois anos elaborou um plano que consistia em um
convite a seu pai Davi para uma festa em Baal-Hazor (Tel 'Asür), que fica­
va entre Betei e Siló. Quando Davi disse não poder comparecer, Absalão
insistiu para que enviasse o sucessor em seu lugar. Após Amnom se em­
briagar nas festividades, os assassinos contratados por Absalão o mata­
ram. Depois, Absalão fugiu para seu avô Talmai, rei de Gesur, com quem
encontrou apoio e proteção por três anos.
Já foi defendida aqui uma data próxima a 987 para a violação de Tamar,
985 para o assassinato de Amnom e 985-982 para o exílio de Absalão em
Gesur. Quando Absalão voltou para Jerusalém, uma engenhosa estratégia
de Joabe, permaneceu por mais dois anos (982-980) sem sequer ver o rosto
de seu pai. Foi durante esse tempo que o jovem e belo filho de Davi tor­
nou-se pai de quatro filhos, incluindo uma filha a quem ele deu o nome de
Tamar, começando assim a dar uma boa impressão ao povo de Israel. Por
fim, Joabe conseguiu fazer com que Absalão e Davi se encontrassem, e
houve reconciliação, pelo menos aparentemente. Porém, o espírito de re­
belião já estava entranhado no coração de Absalão e, dentro de quatro
anos, acenderia as chamas da revolução.

Je ru s a lé m co m o ce n tro d o cu lto

É quase certo que durante esse período (980-976) Davi tenha dado iní­
cio ao seu programa de construções (2 Sm 5.9-12), o que incluiria, depois
de tudo pronto, os planos para a edificação do templo. É óbvio que no
reino de Davi houve construções, palácios e edifícios públicos; porém, os
envolvimentos com a expansão do império e os acontecimentos que asso­
lavam sua família impediram a infra-estrutura impressiva característica
de um monarca de sua estatura. A reconciliação com Absalão deu-lhe a
oportunidade esperada, que era transformar a cidade de Jerusalém no cen­
tro religioso e político.
Davi incumbiu Hirão, que tinha acabado de assumir o trono de Tiro,
uma cidade-estado na Fenícia, de prover os materiais e o pessoal especi-
278 H istória de I srael no A ntigo T estamento

alizado para levar avante os projetos de construção.26 Uma vez que a


cidade passou a ter uma aparência mais apropriada para a capital políti­
ca da nação, Davi tomou as devidas providências para transformar a
cidade em um centro religioso. Isso significaria construir um tabernáculo
temporário para adoração e serviço religioso, e a remoção da arca da
aliança de Quiriate-Jearim,27 local onde havia permanecido por cerca de
130 anos.28
Tais medidas não poderiam ser tomadas sem serem sentidas. Em pri­
meiro lugar, não havia qualquer precedente na história de Israel que de­
monstrasse a união religiosa e política da nação em um só local e sob a
liderança de uma única pessoa, pelo menos no período pós-mosaico. O
antecessor de Davi, o rei Saul, fez da cidade de Gibeá sua capital política,
mas não providenciou para que o tabernáculo, durante todo o seu reina­
do, se estabelecesse ali. Obviamente é verdade que Saul agiu em negócios
religiosos de forma semelhante aos monarcas do antigo Oriente Médio, e
os resultados foram desastrosos. O fato é que, sob a liderança de Saul,
Israel não tinha como visualizar o governo político e religioso em uma só
pessoa. Seria diferente sob a liderança de Davi?
Em segundo lugar, o tabernáculo de Moisés estava localizado em
Gibeão, e lá as pessoas, incluindo o próprio Davi, provavelmente reuni­
ram-se para adoração comunitária durante todos os anos de seu reinado
(1 Cr 16.39; 21.29; 1 Rs 3.1-4). Poderia Davi simplesmente remover o
tabernáculo de Gibeão para Jerusalém sem uma específica revelação de
Deus? Provavelmente o tabernáculo tinha sido posto em Gibeão pelo pró­
prio Saul e, visto que a cidade ficava em Benjamim, tribo de Saul, uma
remoção arbitrária realizada por Davi pareceria mal aos habitantes das
tribos do norte. O melhor que Davi poderia fazer - e na verdade foi o que
fez - era deixar o tabernáculo de Moisés por enquanto no mesmo lugar,
em Gibeão, e construir um outro no monte Sião.

26 Para um estudo detalhado acerca do alcance e proporções do programa de construções


do governo de Davi, ver Yohanan Aharoni, "The Building Activities of David and
Solomon," IEJ 24 (1974): 13-16.
27 Baalim de Judá (2 Sm 6.2) pode significar a própria Quiriate-Jearim ou alguma cidade
próxima (Aharoni, Land ofthe Bible, pp. 350-51). Joseph Blenkinsopp sugere que Quiriate-
Jearim pode estar se referindo a "uma área consideravelmente grande", da qual Baalim
fazia parte ("Kiriath-jearim and the Ark," JBL 88 [1969]: 146-47).
28 Como afirma Antony F. Campbell, o propósito maior das narrativas acerca da arca (1
Sm 4-6; 2 Sm 6) é legitimar "a dinastia davídica, a eleição e a teologia de Sião” bem
como demonstrar a rejeição do velho tribalismo em favor da monarquia davídica
("Yahweh and the Ark: A Case Study in Narrative," JBL 98 [1979]: 42-43).
D *vi: O s A nos de L uta 279

A terceira consideração tinha a ver com a relocação da arca da ali­


ança.29 A arca representava a própria presença de Yahweh entre seu
povo. Sem que houvesse uma autorização direta e específica de
Yahweh (e nesse caso não há um claro registro bíblico de uma autori­
zação), qualquer mudança de local poderia ser considerada uma pre­
sunção do rei Davi. A suspeita de tal presunção parecia crescer mais,
especialmente após o trágico episódio envolvendo Uzá e a arca, pois
este desde o início estava no grupo dos que traziam a arca de Quiriate-
Jearim (2 Sm 6.6-8).
Em quarto lugar, mas de forma alguma menos importante, estava o
fato de a cidade de Jerusalém em momento algum da história ter sido
vista como um centro religioso da nação. Desde os tempos patriarcais
até que Davi a conquistou, tinha ela sido dominada pelos pagãos, habi­
tantes de Canaã, e tida como o seu centro religioso, sendo apenas santi­
ficada intermitentemente quando o povo de Deus ali comparecia. Sem
dúvida, então, Davi se valeu da ligação com os patriarcas para justificar
a presença da arca da aliança e do tabernáculo no novo local. De fato,
deve ter sido a ciência da ligação entre Abraão e Jerusalém que o fez
selecioná-la como sua capital. Essa certeza deu a Davi coragem e intrepi­
dez suficientes para, não obstante a oposição que tal decisão viria sofrer,
estabelecer o monte Sião como o novo local permanente da habitação de
Deus na Terra.30

Muitos estudiosos da escola conhecida como "Mito e Ritual" negam a historicidade da


narrativa acerca da arca (1 Sm 4-6; 2 Sm 6), preferindo tê-las como parte de um comple­
xo de mitos que celebravam os triunfos de Yahweh sobre o caos e outros inimigos. Para
uma breve discussão apoiando tais noções, ver Aage Bentzen, "The Cultic Use of the
Story of the Ark in Samuel," JBL (1948): 37-53. Talvez a historicidade das narrativas não
possam ser provadas, mas a existência de objetos semelhantes à arca nos antigos rituais
semíticos de culto, e que foram contemporâneos do Israel da época de Moisés, sem
dúvida rebatem essa forma teológica de pensar na historicidade do texto como um mero
mito; ver William F. Albright, From the Stone Age to Christianity (Garden City, N.Y.:
Doubleday, 1957), pp. 266.
MDavi mesmo articulou sua consciência da escolha de Sião por parte de Yahweh como o
local para construir o palácio e o templo (SI 78.68; 87.2; 132). Quanto a paralelos, ver
Giorgio Buccellati, "Enthronement of the King and the Capital City in Texts from Ancient
Mesopotamia and Syria," em Studies Presented to A. Leo Oppenheím, editado por Robert
M. Adams (Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. 54-61; Baruch Halpen, The
Constitution of the Monarchy in Israel (Chico, Calif.: Scholars Press, 1981), pp. 17-23;
Shemaryahu Talmon, "The Biblical Idea of Statehood," em The Bible World, editado por
Gary Rendsburg et al. (New York: Ktav, 1980), p. 239.
280 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Melquisedeque, Jerusalém e o sacerdócio real

O incidente histórico em vista diz respeito ao encontro de Abraão com


Melquisedeque, descrito em Gênesis 14 e mais tarde interpretado teologi­
camente pelo próprio Davi no Salmo 110. Quando retornava da batalha
com os reis do norte de Damasco, da qual saíra vitorioso, Abraão teve um
encontro com o misterioso Melquisedeque, rei de Salem e sacerdote de El-
Elyon, "Deus Altíssimo" (Gn 14.18). Tendo tomado o despojo da guerra,
Abraão pagou o dízimo de tudo a Melquisedeque depois que o sacerdote
o abençoou em nome de El Elyon.
O Salmo 72 diz que Salém é igual a Sião, ou seja, Salém não é outra
senão Jerusalém. Esta interpretação é comum tanto na tradição judaica
quanto na cristã.31 Por outro lado, a identidade de Melquisedeque é
muito mais problemática.32 Alguns estudiosos descartam completamen­
te a historicidade do personagem e sugerem que o conto seja uma es­
pécie de etiologia destinada a legitimar a cidade de Jerusalém como
um local sagrado para os hebreus.33 Outros vêem essa passagem como
o encontro dos primeiros pais de Israel com um sacerdote cananeu que
os conduziu à fé em El.34 Alguns escritores mais conservadores vêem a
figura de Melquisedeque como uma cristofania, ou seja, uma manifes­
tação pré-encarnada de Jesus Cristo. Esse ponto de vista se baseia no
significado do nome Melquisedeque ("rei de justiça"), na sua associa­
ção com Salém (ele era "rei de Salém" ou "rei de paz") e na compara­
ção explícita de Melquisedeque com Jesus, particularmente na epístola
aos Hebreus (7.3, 15-17, etc.).35

31Ver, por exemplo, Artur Weiser, Psalms: A Commentary (Philadelphia: Westminster, 1962),
pp. 524-26. Isso em nada pretende significar um consenso. John G. Gammie defende a
idéia de que Salém não poderia ser Jerusalém, e que a tradição que envolve a pessoa de
Melquisedeque precisa encontrar suas raízes em outro local, quem sabe em Siquém, de
onde a tradição migrou para Siló, Nobe e, finalmente, Jerusalém ("Loci of the
Melchizedeck Tradition," JBL 90 [1971]: 385-96). Tal idéia vai radicalmente contra o que
está escrito no Salmo 76.2 e em outras passagens.
32Para vários pontos de vista, ver Leopold Sabourin, The Psalms: Their Origin and Meaning
(Staten Island, N.Y.: Alba House, 1974), pp. 360-62
33 Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary, traduzido por John H. Marks (London: SCM;
Philadelphia: Westminster, 1961), pp. 173-76.
34 Georg Fohrer, History of Israelite Religion, traduzido por David E. Green (Nashville:
Abingdon, 1972), pp. 104-5.
35 Citado e convincentemente rejeitado por James A. Borland, Christ in the Old Testament
(Chicago: Moody, 1978), pp. 164-74.
D avi: O s A nos de L uta 28 1

Porém, a melhor interpretação é que Melquisedeque é um tipo de Cris­


to.36 Ele prefigurou a vida e o ministério de Cristo em vários aspectos, mas
principalmente no que dizia respeito a ser ele tanto rei quanto sacerdote,
da mesma forma que Jesus Cristo, como Messias, cumpriu os dois papéis.
Além disso, ele igualmente tipificava a vida e ministério de Davi, um fato
que pode ter surpreendido Davi, mas que apesar disso veio a aceitá-lo. No
Salmo 110 Davi expressamente se refere ao Rei messiânico como um sa­
cerdote segundo a ordem de Melquisedeque, por meio de quem o Senhor
irá julgar as nações (vv. 4-6). Não apenas o Messias, mas também o pró­
prio Davi era tal sacerdote.37
A noção de um sacerdócio real não era totalmente estranha no antigo
mundo do Oriente Médio.38 Os reis regularmente tomavam a liderança
nas atividades de culto e eram, às vezes, os principais sacerdotes em
seus sistemas sacerdotais. Nem mesmo em Israel a noção de um sacer­
dócio real era estranha, por causa de sua ideologia e experiências pró­
prias.39 Nos tempos patriarcais, os pais tinham sido líderes civis e religi­
osos de suas famílias e clãs, oferecendo sacrifícios e desempenhando
outras funções de culto conforme sua vontade. Somente com a criação
da ordem sacerdotal, representada na pessoa de Arão, houve uma base
histórica demarcando as funções reais e sacerdotais, e residindo em pes­
soas diferentes. Essa visão prevaleceu por todo o período do Antigo Tes­
tamento, e até mesmo os discípulos de Jesus não puderam entender como
o Filho de Deus poderia ser ao mesmo tempo Rei e Sacerdote, Soberano
e Salvador. A seita judaica de Qumran antecipava dois messias - um
sacerdotal, descendente de Arão, e um real, descendente de Davi.40 Foi o
autor da Carta aos Hebreus quem pela primeira vez articulou o duplo
papel de Jesus Cristo como Rei e Sacerdote. Jesus poderia ser um sacer­
dote a despeito de seus ancestrais não terem sido da descendência de
Arão, porque o seu sacerdócio era de uma ordem superior - da ordem de
Melquisedeque (Hb 7.4-25).

36 Patrick Fairbairn, The Typology of Scripture (Grand Rapids: Baker, 1975 reedição), vol.l,
pp. 302-5.
37 Leslie C. Allen, Psalms 101-50, World Biblical Commentary (Waco: Word, 1983), pp. 78­
87.
38 Sidney Smith, "The Practice of Kingship in Early Semitic Kingdoms," em Myth, Ritual
and Kingship, editado por Samuel H. Hooke (Oxford: Clarendon, 1958), pp. 22-73.
39 Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, pp. 113-14.
40 Helmer Ringgren, The Faith of Qumran (Philadelphia: Fortress, 1963), p. 182.
282 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Davi como sacerdote

Ser da ordem de Melquisedeque foi também a base do papel de Davi


como sacerdote real e da sua escolha de Jerusalém como o local para a arca
e para o tabernáculo. Ele entendeu que, assim como Melquisedeque era rei
de Salém, ele, como um sucessor de Melquisedeque, deveria reinar em Jeru­
salém. E assim como Melquisedeque era um sacerdote do Deus Altíssimo,
também ele, como sucessor de Melquisedeque, em uma ordem superior à
de Arão, poderia obter o santo privilégio do sacerdócio diante de Yahweh.41
Portanto, sobre essas bases teológicas, Davi pôde estabelecer a cidade
de Jerusalém como centro religioso e político, mas para isso ele teve de
enfrentar sérias dificuldades práticas. Estaria o povo preparado para este
radical ajuste teológico? Iriam eles tolerar que a tradição religiosa fosse
abalada, tradição que negava ao rei o direito de agir em qualquer área
religiosa da nação?
Não é de espantar que Davi tenha reassumido o cortejo com cuidado
redobrado e, depois de seguir os procedimentos corretos e louvar ao Se­
nhor com toda a alegria, a arca foi finalmente trazida ao monte Sião. O
próprio Davi conduziu a procissão, vestido em um éfode de linho, sacrifi­
cando e dançando na presença de Yahweh. Quando a arca já estava segura
e bem arrumada no tabernáculo, Davi e os levitas apresentaram ofertas
queimadas e de comunhão perante Yahweh, atestando assim a aliança exis­
tente entre Yahweh e seu povo Israel. Nem o cronista nem o escritor do
livro de Samuel mencionam um sacerdote durante toda a cerimônia e sa­
crifícios. Claramente Davi se via como um sacerdote e foi aceito pelo povo
e pelos levitas. Seu papel sacerdotal também pode ser visto quando ele faz
a designação do pessoal para o serviço religioso e para o trabalho no
tabernáculo (1 Cr 16.4-6). Esses eram liderados pelo levita Asafe em Jeru­
salém e por Zadoque, o sacerdote que servia no tabernáculo de Moisés em
Gibeão (1 Cr 16.37-39).42 O fato de não haver menção de um sacerdote em

41 Walter Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, traduzido por David E. Green
(Atlanta: John Knox, 1978), pp. 88-93; Walter Eichrodt, Theology of the Old Testament
(Philadelphia: Westminster, 1961), vol. 1, pp. 446-47; Dennis J. McCarthy, "Compact and
Kingship: Stimuli for Hebrew Covenant Thinking/' em Studies in the Period of David and
Solomon and Other Essays, editado por Tomoo Ishida (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns,
1983), pp. 82-85.
42 A referência mais antiga a Zadoque o descreve ocupando um ministério sacerdotal em
Gibeão, e não em Jerusalém, pois há uma teoria que supõe que ele descendia de uma
linhagem sacerdotal cananéia, com origem provavelmente em Melquisedeque, que na
D w i: Os A nos de L uta 283

Jerusalém pode implicar no fato de que o próprio Davi preencheu essa


responsabilidade, pelo menos inicialmente (ou que Abiatar assumiu tal
função).
Pouco depois que Davi completou o tabernáculo de Sião, e depois que
a arca foi posta nesse novo tabernáculo, ele passou a contemplar a dife­
rença contrastante entre seu grande e belo palácio e a estrutura do
tabernáculo, que representava a habitação de Yahweh, o Deus Todo-pode-
roso. Ele questionou o fato de viver com tanta ostentação, ao passo que
Yahweh vivia como um nômade. Assim Davi determinou em seu coração
iniciar os planos para a construção do templo.

A re b e liã o de A b s a lã o

A ocasião

Antes de os planos serem levados adiante, o filho de Davi, Absalão,


instigou uma rebelião contra seu pai, a qual não apenas o obrigou a adiar

época ministrava em um santuário religioso em Jerusalém. De acordo com esse ponto


de vista, Davi trouxe Zadoque para o sacerdócio javista e, por fim, promoveu-o sobre
Abiatar (Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, p. 94). Frank M. Cross, conhecen­
do as dificuldades de tal posição e da genealogia de Zadoque, sugere que este era um
sacerdote da linhagem arônica em Hebrom antes do reinado de Davi em Jerusalém
(Canaanite Myth anã Hebreiv Epic [ Cambridge: Harvard University Press, 1973), pp. 209­
15). Essa última hipótese é totalmente possível, embora não possa ser provada. Walter
Brueggemann interpreta o sacerdócio como a expressão das tensões entre a monolítica
tradição mosaica (sacerdócio de Abiatar) e a criação de um sacerdócio real, universal e
messiânico (sacerdócio de Zadoque). Este último, diz ele, cresceu e prevaleceu nos dias
de Davi, mas foi praticamente destruído nos dias de Salomão. Porém, Brueggemann
não oferece uma única evidência convincente ("Trajectories in OT Literature and the
Sociology of Ancient Israel," ]BL 98 [1979]: 170-71). Assumindo que o Eleazar de 1 Cró­
nicas 24.3 era o pai de Zadoque, e identificando-o com o sacerdote Eleazar de Quiriate-
Jearim (1 Sm 7.1), o estudioso J. Dus (citado por P.R. Davies, "The History of the Arki in
the Books of Samuel," em JNSL 5 [1976]: 17) defende a idéia de que Zadoque era de
Quireate-Jearim. Mas esse ponto de vista não pode ser sustentado, pois Eleazar foi de­
signado sacerdote em Quiriate-Jearim mais de um século antes de Zadoque surgir. Ou­
tro estudioso, Saul Oylam, diz que Zadoque era um auxiliar de Jeoiada (1 Cr 12.27-28),
pai do general de Salomão chamado Benaia. Segundo Oylan, Zadoque era natural de
Kabzeel, dentro do Neguebe. ("Zadok's Origins and the Tribal Politics of David," JBL
101 [1982]: 185). Jeoiada, de fato, era um nagld ("líder"), um chefe na casa de Arão (1 Cr
12.27) e um sacerdote (1 Cr 27.5), mas ninguém deve deduzir imediatamente que Zadoque
tinha ligações arônicas e nem que esse Zadoque seja o mesmo Zadoque sacerdote.
284 H istória de I srael no A ntigo T estamento

seus planos de construção, mas também o forçou a fugir da cidade de


Jerusalém. Tudo isso deve ter ocorrido em cerca de 976, seis anos depois
que Absalão voltou de Gesur. Foi durante esse tempo que Absalão desen­
volveu uma política que enfraquecia a imagem de seu pai, em favor de
sua própria, especialmente em Judá. Quando o momento pareceu propí­
cio, ele insistiu com seu pai que o deixasse ir até Hebrom, sua cidade na­
tal, para oferecer sacrifícios em cumprimento a um voto feito por ele em
Gesur. Ao chegar a Hebrom, fez pública sua conspiração que vinha traba­
lhando havia anos - ironicamente, reivindicou o reino em Hebrom como
Davi havia feito trinta e cinco anos antes (2 Sm 15.7-12).
Quando Davi soube da conspiração, já era tarde demais para fazer algo,
restando-lhe apenas fugir da capital. Absalão ganhava seguidores por todo
o Israel - incluindo Jerusalém - e conseguiu recrutar até mesmo o conse­
lheiro real, Aitofel. As razões para o declínio da popularidade de Davi e
para a ascensão de Absalão não estão totalmente esclarecidas, embora este
pudesse estar perto da verdade quando disse aos cidadãos que o rei, sem­
pre muito ocupado, não podia atender-lhes os pedidos. Absalão insinua­
va-lhes que, se ao menos fosse juiz, tudo faria para que a justiça fosse
estabelecida. A avaliação dos fatos e uma política astuta, equivalente aos
apertos de mãos de hoje, rapidamente alcançaram o coração do povo. Se a
nossa sugestão de que Davi ocupara os anos com construções e com o
estabelecimento de Jerusalém como centro do culto estiver correta, é pro­
vável que Davi tenha negligenciado outros interesses do estado. Além dis­
so, o fato de arrogar-se autoridade religiosa e política pode ter contribuí­
do para sua falta de apoio, pois é bastante evidente que sua atitude o se­
parava de alguns elementos da nação, particularmente os benjamitas. A
reação de Mical, filha de Saul, pode ser um exemplo típico (2 Sm 6.20).

O exílio de Davi

Ávido por evitar a violência, Davi voluntariamente partiu com seus


seguidores e amigos mais chegados. Notáveis entre os seguidores, as
tropas mercenárias estavam compromissadas, é claro, exclusivamente
com Davi, e não com a nação. A intenção de Davi era retornar para
Jerusalém no momento apropriado, já que havia deixado algumas
concubinas para cuidar do palácio enquanto estivesse ausente, e tam­
bém informou o sacerdote Zadoque que voltaria algum dia pela mise­
ricórdia de Deus (2 Sm 15.25).
É válido apontar que nesta conjuntura Davi, enquanto cruzava o
Quidrom em sua rota para a Transjordânia, foi encontrado por Zadoque e
D avi: O s A nos de L uta 285

os levitas, os quais carregavam a arca da aliança. Isso significa, obviamen­


te, que a arca e o tabernáculo já estavam estabelecidos em Jerusalém. O
fato de ser essa a primeira referência a respeito'da arca estar em Jerusalém
reforça a tese de que Jerusalém não se tomou o santuário central até, pelo
menos, a metade do reinado de Davi. Deve ser lembrado que Zadoque
tornou-se o chefe dos sacerdotes em Gibeão somente após a chegada da
arca em Sião. Evidentemente, entre a chegada da arca e a rebelião de
Absalão, Zadoque serviu no tabernáculo davídico. Davi então pediu-lhe
que conduzisse a arca de volta para Jerusalém, porque um dia Yahweh
permitiria que o rei retornasse para vê-la, bem como o seu tabernáculo.
Quando chegou ao monte das Oliveiras, Davi soube que o seu conse­
lheiro de confiança, Aitofel, havia se juntado a Absalão. Nesse momento,
Usai, um grande amigo de Davi, o ajudou em um plano que visava frus­
trar a utilidade de Aitofel para Absalão: Usai voltaria para Jerusalém, ga­
nharia a confiança de Absalão e lhe ofereceria conselhos contrários aos de
Aitofel. Também serviria como um agente secreto para conhecer os planos
de Absalão, passando-os a Davi através de seus filhos Abiatar e Zadoque.
A próxima pessoa com quem Davi se encontrou foi Ziba, o servo de
Mefibosete. Ziba prontamente informou Davi de que seu senhor havia
permanecido em Jerusalém, porque estava convencido de que a queda do
rei resultaria no restabelecimento da dinastia de Saul, tendo ele como o
cabeça (2 Sm 16.1-4). Essa informação, embora pareça uma inverdade, su­
gere que ainda devia existir um resíduo pró-saulida em Israel. Poderia até
ser que esses elementos vissem na ruptura entre Davi e Absalão uma opor­
tunidade para, mais uma vez, dividirem a nação em Israel e Judá, estabe­
lecendo um descendente de Saul no trono do norte. Mais surpreendente é
que os esforços de Davi para unificar a nação tenham sido bem-sucedidos
apenas superficialmente.
A hostilidade latente dos benjamitas expressou-se totalmente mesmo
quando Davi ainda saía da capital. Em Baurim (talvez Ras el-Temim),43 no
flanco sul do monte das Oliveiras, Simei, um parente de Saul, começou a
amaldiçoar e zombar de Davi, lembrando-o de que ele havia usurpado o
trono de Saul, e agora Absalão servia como agente punitivo de Deus. Com
admirável resignação, Davi sofreu a afronta, sabendo que tudo isso vinha
de Deus. E, caso Deus tivesse realmente enviado Simei para o amaldiçoar,
Ele poderia no tempo certo transformar a maldição em bênção.
De volta a Jerusalém, Absalão preparou-se para assumir o controle do
governo. Isto foi simbolizado, dentre outras maneiras, pela apropriação

43 Tentativas foram identificadas em Aharoni e Avi-Yonah, MacMillan Bible Atlas, p. 176.


286 H istória de I srael no A ntigo T estamento

pública das concubinas de seu pai, um ato que no antigo Oriente Médio
geralmente indicava a transferência de poder de um rei para outro.44 Ele
também formulou um plano para perseguir seu pai, a fim de remover qual­
quer ameaça. O plano foi totalmente delineado por Aitofel, que aconselhou
Absalão a perseguir imediatamente Davi, enquanto este ainda estivesse fra­
co e confuso. Mas, estando Absalão pronto para realizar o plano, Usai, que
já havia conquistado sua confiança, aconselhou-o de outra forma. Ele o per­
suadiu de que seria tolice enfrentar o guerreiro experiente Davi com apenas
doze mil homens. Seria melhor esperar e juntar um exército forte o suficien­
te para destruí-lo no campo de guerra ou retirá-lo de alguma fortaleza.
Este conselho pareceu melhor a Absalão, de forma que adiou a persegui­
ção por um tempo. Então Usai enviou Jônatas e Aimaás, filhos de Abiatar e
Zadoque, ao acampamento de Davi, recomendando-lhe que cruzasse o
Jordão imediatamente, e buscasse refúgio em outro local. Aitofel, o conse­
lheiro que ficou ao lado de Absalão, voltou para casa e enforcou-se.
Davi partiu para o leste de Maanaim (Tel edh-Dhahab el-Gharbi),45 no
Jaboque superior. Esta havia sido a capital de Is-Bosete, quando este ainda
reinava, mas é provável que Davi tenha sido bem recebido na cidade, em
conseqüência de sua misericórdia para com Mefibosete, o neto de Saul. Os
amigos da Transjordânia vieram em seu auxílio - inclusive Shobi, filho de
Naás, o rei dos amonitas (2 Sm 17.27). Sem dúvida, ele era irmão de Hanum,
o rei que havia tratado os embaixadores de Davi de forma vergonhosa. Shobi
provavelmente tentava desfazer o mal causado por seu irmão. Também é
claro que os amonitas eram um estado tributário de Israel, de forma que
não havia outra escolha.46 Maquir, de Lo-Debar, também chegou com mui­
tos suprimentos. Uma vez que Mefibosete tinha vivido com este bom ho­
mem antes de Davi o tomar, a generosidade de Maquir é mesmo compreen­
sível. O último benfeitor foi Barzilai, de Rogelim (Bersinya),47 um vilarejo
19 quilômetros a sudoeste de Lo-Debar, local desconhecido. Ele mostrou
favor ao rei, e foi convidado a voltar com Davi para Jerusalém.

A morte de Absalão

Enquanto isso, Absalão cruzava o Jordão com seu exército, dirigido


por Amasa, sobrinho de Davi. Davi dividiu suas tropas em três frentes sob

44 de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, p. 116.


45Aharoni e Avi-Yonah, MacMillan Bible Atlas, p. 181.
46 John Bright, A History of Israel, 3a ed. (Philadelphia: WestminsteíT-1981), pp. 203, 209.
47Assim pensam Aharoni e Avi-Yonah, embora com alguma hesitação, em MacMillan Bible
Atlas, p. 182.
D v .v : O s A nos de L uta 287

o comando de Joabe, Abisai, e do mercenário hitita Itai. Então, permane­


cendo em Maanaim a pedido do povo, Davi enviou as tropas, pedindo
solenemente que seu filho Absalão fosse poupado. Os dois exércitos en­
contraram-se nas florestas de Efraim, e Israel, sob o comando de Absalão,
sofreu terrível derrota, fugindo totalmente humilhado. Durante a fuga,
Absalão ficou preso em alguns galhos e suspenso à vista de todos, e ali
mesmo foi cruelmente assassinado por Joabe (2 Sm 18.4-15).
A despeito do protesto de Joabe, Aimaás correu para informar Davi
acerca da morte de seu filho, mas quando chegou perante o rei, não teve
coragem de contar-lhe. Um mensageiro cusita, entretanto, deu-lhe as más
notícias, e Davi, conforme Joabe havia antecipado, chorou copiosamente.
O lamento de Davi minou a moral das tropas vitoriosas. Eles haviam se
arriscado pelo rei somente para vê-lo lamentar-se por aquele que havia
instigado a rebelião em Israel.
Esta foi a última gota para Joabe. Davi havia punido o jovem que disse­
ra ter matado Saul (2 Sm 1.15); levantou um forte pranto por Abner, que
havia sido morto por Joabe, e lhe deu um enterro com todas as honrarias
(2 Sm 3.31-39); também executou os assassinos de Is-Bosete, que era o seu
principal obstáculo ao trono (2 Sm 4.12); e agora, mais uma vez, Davi cho­
rava para todo o mundo ver, quando na realidade Joabe lhe tinha feito um
grande favor, exterminando o seu adversário (2 Sm 18.33). Uma pessoa
cínica pode sugerir, com alguma justificação, um grau de motivação polí­
tica no lamento de Davi por seus inimigos, mas não parece ter sido esse o
caso. Davi, sem dúvida, queria ter morrido em lugar de seu filho, pois
entendia que a morte deste era, na realidade, o reflexo de seu próprio adul­
tério e da espada que passaria a assolar sua família.
Joabe, entretanto, não via a situação desta maneira. Ele contendeu com
Davi por causa de sua insensibilidade para com os que tudo faziam pelo
rei: "amando tu aos que te aborrecem, e aborrecendo aos que te amam" (2
Sm 19.6). Além do mais, disse Joabe, se Davi não animasse os seus guer­
reiros e seguidores, acabaria só e perdedor.

O s e s fo rço s de D a v i p a ra re c o n c ilia çã o

Proposta a Judá

A repreensão de Joabe forçou Davi a considerar como poderia ganhar a


lealdade de Israel e, mais ironicamente, de sua própria tribo Judá.48 Os

48 Uma interpretação fascinante do processo que envolveu o retorno de Davi, ver Hayim
Tadmor, "Traditional Institutions and the Monarchy: Social and Political Tensions in the
288 H istória de I srael no A ntigo T estamento

habitantes do norte já reconheciam que, com a morte de Absalão, Davi


voltaria a ser o rei. Judá, contudo, não expressava o mesmo sentimento,
um fato de que Davi se achava consciente. Enviou, pois, uma mensagem
aos anciãos de Judá, perguntando-lhes o motivo da relutância em permiti-
lo voltar, especialmente visto que Israel já se mostrava favorável. Assim,
depois de envergonhá-los apelando para a comum ascendência, Davi as­
tutamente colocou no comando de seu exército Amasa, general de Absalão,
em lugar do insolente e agora desacreditado Joabe. Tal atitude agradou o
povo, de forma que foi enviada uma delegação a Gilgal para encontrar-se
com o rei e reafirmar-lhe sua lealdade (2 Sm 19.15).49

Apelos feitos a Benjamim

Quando ficou claro para toda a nação que Judá se associara novamente
a Davi, Simei e Ziba, líderes de Benjamim, conduziram uma caravana de
sua tribo para reconciliar-se com o rei. Embora Abisai estivesse ansioso
por matar Simei em razão de ter este amaldiçoado abertamente o rei, Davi
viu na ocasião uma oportunidade para curar a ferida entre Benjamim e
Judá, e todo o restante de Israel, de forma que o deixou viver.
Agora surge no cenário o jovem Mefibosete. Ziba, em ocasião anterior,
acusou-o de traição ao rei. Quando Davi dirigia-se para Jerusalém,
Mefibosete rapidamente foi explicar ao rei que havia sido mal interpreta­
do. Tinha a intenção de unir-se ao rei, mas não podia fazê-lo devido à
incapacidade física. Mais uma vez Davi mostrou sua habilidade diplomá­
tica, e não apenas restaurou o jovem Mefibosete à sua corte, mas também
perdoou o servo mentiroso Ziba.
Tão bem-sucedidos foram os esforços de Davi em favor da reconci­
liação que Judá e as outras tribos passaram a discutir acerca de quem
era, de fato, a tribo mais fiel, e quem mais tinha se pronunciado a favor
do rei. Judá argumentava que tinha maior ligação com Davi por causa
do mesmo sangue, mas Israel protestou afirmando que eram dez tri­
bos, enquanto Judá era somente uma e, além disso, eles haviam toma­
do a iniciativa de devolver ao rei o trono. Assim, Davi conseguiu har-

Time of David and Solomon," em Studies in the Period ofDavid and Solomon, editado por
Tomoo Ishida, pp. 247-50.
49 Embora Gilgal fosse considerada um local estratégico de reuniões, visto que estava muito
próxima do Jordão, deve-se observar o fato de que a monarquia de Davi está sendo
reafirmada no mesmo local em que Saul tinha feito, pela primeira vez, a aliança real
com a nação (1 Sm 11.14,15).
D avi: O s A nos de L uta 289

monizar-se com o povo ao preço de uma profunda e fatal divisão entre


o norte e o sul.

M ais p ro b le m a s p a ra D a v i

A rebelião de Seba

Aproveitando-se do mal-estar entre as tribos, um benjamita chamado


Seba organizou um novo movimento cismático que rapidamente atraiu
um grande número de seguidores insatisfeitos em Israel. Na verdade, essa
foi uma tentativa abortada a tempo, mas que expressava a divisão política
que aconteceria quarenta anos mais tarde sob a liderança de Jeroboão. Davi,
depois de reinstalar-se em Jerusalém, ordenou que convocassem as milíci­
as de Judá e dessem fim a Zeba, com receio de que acontecesse um mal
pior do que aquele feito por Absalão. Ao perceber que Amasa mostrava-se
lento em resolver a questão, Davi enviou os generais Abisai e Joabe com
seus exércitos. Encontraram-se todos em Gibeão e lá, fingindo abraçar
Amasa, Joabe o matou traiçoeiramente, assumindo novamente o coman­
do (2 Sm 20.9,10).
Joabe perseguiu Seba até Bete-Maaca (Abil el-Qamh), ao norte de Dã.
Quando pareceu que Joabe demoliria a cidade a fim de capturar Seba,
uma mulher sábia que ali morava fez com que o achassem na cidade, e o
mataram ali mesmo, atirando para fora do muro a sua cabeça. Assim a
revolução chegou ao fim, mas deixou sementes de discórdia que anuncia­
vam o pior.

O infeliz recenseamento

Depois das revoluções de Absalão e Seba, foi necessário Davi reavaliar


sua situação militar contra a possibilidade de mais surpresas e emergênci­
as. Isto pode em parte explicar o censo registrado em 2 Samuel 24 (ver 1 Cr
21), um censo que o historiador informa ter sido motivado pelo próprio
Yahweh por causa de sua ira contra Israel. A causa específica de sua ira é
desconhecida, mas Davi não hesitou em obedecer os desejos de seu cora­
ção de fortalecer seu poder, e contar com um exército que lhe valesse nas
horas certas.
Embora Joabe tenha se manifestado contra o recenseamento, foi-lhe
designado a tarefa de supervisioná-lo. Joabe começou a contagem da
Transjordânia, deu a volta pelo norte até Dã, a oeste de Tiro e Sidom e, por
fim, chegou ao sul, até Berseba. O total era oitocentos mil homens de Isra-
290 H istória de I srael no A ntigo T estamento

el e quinhentos mil homens de Judá, excluindo as tribos de Levi e


Benjamim.50 Somente depois de a tarefa ter sido concluída o rei sentiu ter
pecado perante o Senhor - ele havia posto sua confiança na carne ao invés
de em Yahweh. Agora era tarde demais, pois o Senhor já tinha decretado
punir o seu povo em uma dentre as três formas: três anos de fome; três
meses fugindo de seus inimigos ou três dias de praga. Sem saber qual a
decisão certa a tomar, Davi deixou-se levar pelas misericórdias de Deus.
O resultado foi uma praga que ceifou setenta mil almas em todo o territó­
rio de Israel.
Quando o julgamento de Yahweh estava para alcançar a cidade de Je­
rusalém, Ele reteve a espada do anjo no campo de Araúna, um jebuseu
que lá habitava. Tendo visto o anjo com os próprios olhos, Davi caiu pros­
trado diante do Senhor em profundo arrependimento. Então levantou-se,
negociou o campo com Araúna pelo preço real dos imóveis da época e
erigiu ali um altar sobre o qual sacrificou ofertas queimadas e pacíficas
diante de Yahweh. Por fim, a praga cessou.

O p la n o de D a v i p a ra c o n s tru ir u m te m p lo

Os motivos de Davi

O mais significativo em toda a narrativa do censo e suas conseqüências


é que Davi pôde perceber que a eira de Araúna, o jebuseu, deveria ser o
local do templo de Yahweh (1 Cr 21.28-22.1). Obtendo esta percepção,
passou a reunir os materiais e a mão-de-obra especializada para dar início
às preparações da edificação que seu filho Salomão veria terminada.
O desejo de Davi de edificar um templo para Yahweh começou após
Hirão, rei de Tiro, ter-lhe construído um palácio real, e a arca da aliança
ter sido trazida para Jerusalém. Por várias razões, incluindo talvez a rebe­
lião de Absalão, a obra não pôde ser executada naquele período. Agora,
cerca de quatro ou cinco anos depois, o momento parecia propício, especi­
almente porque a eira de Araúna havia sido comprada e designada para
esse propósito.
O motivo da intenção de Davi de construir um templo é claro: ele vivia
em um suntuoso palácio de cedro, enquanto Yahweh habitava em uma
simples tenda (2 Sm 7.1,2; 1 Cr 17.1). É importante entender que, no antigo
Oriente Médio, a soberania de um monarca não era totalmente reconheci-

50 Quanto ao problema destes e outros números altos, ver J. W. Wenham, "Large Numbers
in the Old Testament," Tyn Bull 18 (1967): 19-53, esp. 33-34.
£)v. /: Os A nos de L uta 29 1

da até que tivesse construído uma apropriada habitação.51 Se isto era ver­
dade sobre os reis humanos, quanto mais o seria sobre os deuses, que,
afinal, eram os verdadeiros reis sob os quais os governadores serviam! De
fato, estudos etimológicos indicam que a palavra hebraica "templo" está
relacionada com palácio. Os sumerianos chamavam seu templo de E.GAL
("grande casa"), que foi trazida para o hebraico (hêkal) por meio do acadiano
(ekallu). Até mesmo o templo de Yahweh era considerado não apenas um
lugar para se oficiar cerimônias religiosas, mas também o palácio no qual
Ele, o Soberano do céu e da terra, vivia entre seu povo.52
Além disso, embora parecesse prático para Yahweh habitar em uma
tenda durante os dias da peregrinação no deserto, o fato é que por cerca
de quatrocentos anos a nação já estivera estabelecida na terra. Por que,
perguntava Davi, Yahweh precisaria ainda morar em uma tenda, refletin­
do um período de transição já ultrapassado pela nação? Assim como seu
povo, Yahweh entrou em Canaã para morar e, sendo assim, poderia habi­
tar em um palácio majestoso o suficiente para expressar sua grandeza,
manifestando sua autoridade e soberania sobre todos os outros deuses.

A resposta de Yahweh: a aliança davídica

Essas eram claramente as preocupações de Davi, e formavam a base


para seu pedido implícito de iniciar tal projeto. A resposta de Yahweh foi
atordoante: "...o Senhor te faz saber que o Senhor te fará casa" (2 Sm 7.11).
Ele esteve satisfeito em morar em uma tenda desde o êxodo até o presente
momento. De qualquer forma, ainda que algum dia Yahweh habitasse em
um templo, tal edifício não seria construído por Davi, mas por seu filho
que o sucederia no trono. Então, em uma das mais marcantes e significati­
vas passagens teológicas da Bíblia, Yahweh revelou que Davi, longe de
construir uma casa para Yahweh, seria ele mesmo uma casa, ou seja, uma
dinastia, a qual não mais teria fim (2 Sm 7.11-13). As promessas feitas aos
patriarcas com respeito a um reinado sem fim foram, por fim, cumpridas
em Davi e em seus descendentes.
Yahweh lembrou que havia tirado Davi do aprisco para fazê-lo pastor de
seu povo. A confirmação da eleição divina pode ser vista no êxito de Davi
no passado e nas promessas com respeito ao futuro. O nome de Davi (i.e.,
reputação) seria grande, seu povo habitaria para sempre na terra e seu filho

51 A. Leo Oppenheim, Ancient Mesopotamia (Chicago: University of Chicago Press, 1964),


pp. 95-98.
1,2 de Vaux, Ancient Israel, vol. 2, pp. 282-83.
292 H istória de I srael no A ntigo T estamento

construiria um templo para Yahweh. Seu filho - Salomão, a continuidade


da dinastia e o messiânico Filho de Davi - reinaria para sempre.53
A promessa, geralmente descrita como a aliança davídica, é tecnica­
mente apresentada como uma concessão real, por meio da qual um sobe­
rano graciosamente concede uma bênção ou presente, usualmente na for­
ma de um pedaço de terra ou a liberdade de alguém, a um vassalo. Essa
concessão seria o resultado de uma atitude benéfica para com o rei, mas
poderia simplesmente derivar do amor e generosidade do rei.54 A última
hipótese é, sem dúvida, a mais próxima do correto, pois a promessa do
reinado eterno através de Davi tinha sido articulada antes de seu nasci­
mento. Desde o início foi o propósito de Deus trazer sua soberania sobre
seu povo (e sobre toda a terra) através de uma linhagem real que culmina­
ria no próprio Filho de Deus. Davi conseguiu entender que a linhagem
teria início com ele mesmo.

A singularidade do reinado de Davi

Portanto Davi, que havia assumido um papel sacerdotal superior ao


da ordem aarônica, assumiu também o papel de vice-regente de Deus, o
rei humano que, em virtude de sua adoção por Deus, tornou-se filho de
Deus de forma única e dramática. Os reis do antigo Oriente Médio viam-
se como divinos ou possuidores de autoridade divina; porém Davi, e to­
dos os seus descendentes, compreenderam que o verdadeiro e único Deus
do universo tinha concedido graciosamente sua soberania sobre eles, de
forma que poderiam representá-lo agora e preparar-se para o dia
escatológico, quando o último rei da linhagem, o segundo Davi, reinaria
unicamente e para sempre.55
É impossível aqui prosseguir nas implicações teológicas ou mesmo his­
tóricas do reinado de Davi. Mas uma breve atenção deve ser dispensada a
alguns dos chamados salmos da realeza, que tratam de assuntos da corte.

53 Walter C. Kaiser, Jr., Toiuard an OU Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1978),
pp. 149-64; Talmon, "Biblical Idea," em The Bible World, pp. 247-48.
54 Moshe Weinfeld, "The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near
East," JAOS 90 (1970): 184-203, esp. 185-86. E. Theodore Mullen, Jr., diz que entre os
hititas tais concessões tinham de ser feitas diante de uma testemunha divina. Mullen
sugere que, embora esse detalhe esteja faltando em 2 Samuel 7 e em 1 Crônicas 17, o
mesmo não ocorre no Salmo 89.37 (v. 38 no texto hebraico), um oráculo real cujo propó­
sito, diz ele, é interpretar o oráculo de Natã ("The Divine Witness and the Davidic Royal
Grant: Ps 89.37-38," JBL 102 [1983]: 207-18).
55 Kaiser, Toward an Old Testament, pp. 152,16(1-62.
D \ ' í : O s A nos d l L uta 293

No Salmo 2 Davi descreve-se como o "ungido" (v. 2), que foi gerado como
seu filho (v. 7), e que reinará sobre todas as nações da terra (vv. 8-9). Tal
descrição dificilmente se encaixaria com um rei puramente humano, mas
apenas com aquEle que, como Davi, havia sido especialmente separado
n n r Y a h w p h 56 D p f o r m a s e m e l h a n t e n o S a l m o 1 8 D a v i fala dp rp in a r «n-
bre um povo que não o conheceu pessoalmente (v. 43), e de ser o recipien­
te da hesed de Yahweh ("bondade") para todo o sempre (v. 50). O Salmo 45
celebra o casamento do rei e assegura que Deus o ungiu, de forma que ele
permanece exaltado sobre os demais (v. 7). No Salmo 72 o rei Salomão fala
do reinado eterno e universal do rei (vv. 8-11); o nome do rei permanecerá
para sempre e nele serão abençoadas todas as nações (v. 17). Davi, no Sal­
mo 101, assume o papel que pertence ao próprio Yahweh na função de
juiz moral e espiritual. Ele reivindica as prerrogativas que, de outra ma­
neira, são reservadas exclusivamente a Deus (vv. ^
E no Salmo 110 que os dois ofícios de Davi - rei e sacerdote - são vistos
justapostos.5657 Sua adoção por Yahweh é clarahrente expressa nos versículos
1 e 2, e lhe são feitas promessas de vitória sobre todos os inimigos em
virtude desta ligação. Então, ele passa à ser descrito como um sacerdote
eterno segundo a ordem de Melquisedeque (v. 4). Finalmente, Davi (i.e.,
Cristo) julgará todas as nações e levantará sua cabeça em um último triun­
fo (vv. 5-7).
A resposta de Davi à promessa incondicional de Deus para ele e Isra­
el nesta concessão real é muito importante. Ele estava espantado por
Yahweh tê-lo escolhido dentre todo o povo, tratando-o como se fosse o
mais exaltado de todos (1 Cr 17.17). Sentia-se perplexo porque a escolha
feita por Deus seria,perpétua, ou seja, pertenceria aos seus descendentes
(2 Sm 7.19). Tudo isso, ele diz, tem sido feito pelo único Deus, que graci­
osamente escólheu e redimiu o seu povo Israel como sua propriedade
peculiah Finalmente, ele ora para que Deus se lembre dele e de sua casa
para1sempre, uma oração na qual Davi se mostra confiante da resposta
de Deus (1 Cr 17.27). O mesmo sentimento ecoa nas últimas palavras (2
Sm 23.1-7) de Davi:

X XXX LXXLX X| 11 . .. X X I , 1 1 , LIA '_XI . 1L.l XLXLXX .11_J XI L1X1 LXX LX \_XXXXL LA X. X . ._>,

contudo estabeleceu com igo um concerto eterno,


que em tudo será bem ordenado e guardado [v. 5]

56 Peter C. Craigie, Psalms 1-50, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1983), pp.
65-69. '
57 Samuel Terrien, The Elusive Presence (New York: Harper and Row, 1978), pp. 295-98.
294 H istória de I srael no A ntigo T estament>:

Fora de questão, Davi sabia que Deus o tinha escolhido por sua exclu­
siva soberania, como um instrumento através do qual Ele traria as bên­
çãos temporais e eternas sobre o mundo.

Preparativos para o templo

O desejo de construir um templo para Yahweh resultou em benefícios


inesperados para Davi. Não poderia cumprir o desejo de seu coração, mas
Deus lhe construiria uma casa através da qual sua soberania encontraria
expressão eterna e universal. Além disso, embora Davi não tivesse per­
missão para construir o templo, pelo menos possuía autorização para dar
início aos preparativos da obra. O autor de 2 Samuel raramente dá pistas
acerca dessa preparação, mas Crônicas, que é um livro particularmente
interessado nas questões do culto, a menciona com muitos detalhes.
O cronista deixa claro que os preparativos da construção somente ini­
ciaram depois da aquisição do campo de Araúna, um episódio que deve
ter ocorrido pouco depois das rebeliões de Absalão e Seba. Isso exigiria
uma data bem tarde no reinado de Davi, mas suficiente para acomodar o
recrutamento de pessoal especializado, a compra de materiais e uma bre­
ve co-regência com Salomão. Uma data bem provável seria 973.
Davi deu início ao projeto convocando todos os cortadores de pedras
que viviam em Israel como estrangeiros, ordenando-lhes que preparas­
sem blocos de pedra com um corte perfeito, segundo as especificações (1
Cr 28.12). Isso só foi possível porque o Espírito de Deus já lhe tinha revela­
do todo o projeto e especificações necessárias detalhadamente (1 Cr 28.12).
Ele também se incumbiu de buscar o ferro, o bronze e o cedro para a gran­
de construção.
O próximo passo foi encarregar seu filho Salomão de completar o que
ele podia apenas começar (1 Cr 22.6-13). Ele havia desejado construir o
templo, mas Deus negou-lhe o privilégio, uma vez que era um homem de
guerra. Mas seu filho Salomão (Selomoh), um homem de paz (salôm), seria
o responsável pela construção. Seria o filho de Deus, conforme Yahweh
tinha prometido na concessão real, e se assentaria no eterno trono de Davi
(1 Cr 22.10). O rei Davi, ao sentir que havia chegado o tempo, advertiu
Salomão de que fosse não apenas fiel à construção do templo, mas tam­
bém à Lei.
Davi ordenou que todos os líderes de Israel cooperassem com seu filho
Salomão (1 Cr 22.17). Deus tinha dado descanso ao povo em toda a terra,
de forma que esta era a ocasião de construir o templo e colocar-lhe dentro
a arca, como um sinal de que Deus habitava no meio de seu povo. Davi
D avi: O s A nos de L uta 295

então firmou o pedido de honra e obediência a Salomão, fazendo-lhe seu


co-regente, legitimando assim a autoridade de seu filho.58
Feito isso, Davi lembrou a seus oficiais as suas obrigações para com a
aliança e o templo (1 Cr 28.1-8). Ele quisera construir o templo, Davi reite­
rou, mas não pôde porque era um homem de sangue. Porém Deus o havia
escolhido para ser rei para todo o sempre, uma escolha tão antiga quanto
a bênção das tribos pronunciada por Jacó. Então, dentre os seus filhos,
Yahweh escolhera Salomão para sucedê-lo. Portanto, o mandato divino
de Salomão era tão legítimo quanto o de Davi.
Na presença de todos os oficiais reunidos, Davi procedeu em encarre­
gar Salomão da grande responsabilidade de reinar (1 Cr 28.20-21). Ele de­
veria ser fiel à Lei e a Yahweh. Esta fidelidade seria expressa em sua obe­
diência aos mínimos detalhes da construção, sobre os quais Davi tinha
sido revelado e compartilhado com seu filho (1 Cr 28.11). O templo seria
construído por mãos humanas, mas sua estrutura e dependências teriam
de conformar-se com os desígnios do céu. A estrutura terrena seria um
antítipo do que existia na mente de Deus, e cada detalhe serviria para
comunicar algo de sua natureza e propósito. Nem mesmo o rei poderia
usar sua imaginação ou criatividade nesse projeto tão santo.59
Quanto ao custo da obra, Davi afirmou que vinha acumulando metais e
pedras preciosos no tesouro público (1 Cr 29.1-5). Esses objetos, provenien­
tes dos despojos militares e tributos pagos à nação, foram destinados espe­
cificamente para o serviço de Yahweh. Davi também colocou todos os seus
bens à disposição da construção do templo, e desafiou seus oficiais a faze­
rem o mesmo. O resultado foi impressionante: juntos, os líderes deram 190
toneladas de ouro, 375 toneladas de prata, 675 toneladas de bronze, e 3750
toneladas de ferro, além de muitas pedras preciosas (1 Cr 29.6-9)!
Finalmente, Davi encerrou a reunião cerimonial com uma oração de
louvor e súplica (1 Cr 29.10-19). Exaltou ao Senhor por ser aquEle que

58 Que aqui temos, sem dúvida, uma solenidade de co-regênda, fica claro pelo fato que
Davi, noutra ocasião mais à frente, refere-se a Salomão como sendo o escolhido de Deus
(1 Cr 29.1) e que Salomão foi feito rei "pela segunda vez" (v. 22). Ver em Leon J. Wood,
Israel’s United Monarchy (Grand Rapids: Baker, 1979), pp. 276-77; E. Ball, "The Co-Regency
of David and Solomon (1 Kings 1)" VT 27 (1977): 268-79.
59 Tryggye N.D. Mettinger chega mesmo a dizer que o templo era "céu sobre a terra."
Embora seus paralelos extraídos da antiga mitologia do Oriente Médio possam ser ques­
tionados, sua posição ao referir-se ao templo como a localização terrena de uma habita­
ção divina celestial não estaria longe da verdade ("YHWH SABAOTH - The Heavenly
King of the Cherubim Throne," em Studies in the Period of David and Solomon, editado
por Tomoo Ishida, pp. 119-23).
296 H istória de I srael no A ntigo Testamento

concede todas as bênçãos, inclusive riquezas, e somente dEle os homens


dependem para viver. O rei intercedeu pelo filho e pelo povo, a fim de que
permanecessem fiéis e obedientes às exigências da aliança. Ao final da
oração, o povo expressou seu compromisso, inclinando-se perante Yahweh
e seu rei, o ungido.

A s u c e ss ã o s a lo m ô n ic a

Cerca de dois anos mais tarde, o jovem Salomão foi trazido diante do
povo para a cerimônia pública de coroação. Salomão já havia sido desig­
nado como o sucessor pelo próprio Davi, mas era necessário que sua pos­
se fosse solenizada e ratificada. Um procedimento semelhante havia ocor­
rido com Saul e Davi. Haviam sido escolhidos particularmente em uma
ocasião, e investidos da autoridade diante do povo em outra. O cronista
diz que Salomão estava sendo reconhecido como rei pela segunda vez, e
agora era ungido diante de Yahweh (1 Cr 29.22b). Foi ordenado que todos,
o povo e os oficiais, prometessem obediência e submissão ao novo rei,
incluindo os próprios filhos de Davi (1 Cr 29.23,24).
A impressão comunicada pelo cronista é que a transferência de poder
de Davi para Salomão ocorreu tranqüilamente e sem qualquer oposição.
Mas este não foi o caso, como o escritor de 1 Reis esclarece. O cronista
normalmente estava interessado em resultados básicos, não nas circuns­
tâncias ou ações pelos quais se concretizavam. Isto é verdadeiro especial­
mente em relação à área política, pois o cronista preocupava-se primaria­
mente com as questões do templo e do culto.
Segundo alguns estudiosos, os primeiros dois capítulos de 1 Reis estão
ligados à sucessão da narrativa de 2 Samuel 9-20, porque a ordem da nar­
rativa fica sem sentido sem essa conexão.60 O cenário inicial de 1 Reis 1-2
são os últimos dias do rei Davi, com ênfase nos dias entre a co-regência de
Salomão como sucessor (1 Cr 23.1) e a formalização de seu reinado, na
cerimônia de coroação (1 Cr 29.22b-24). Agora, Davi estava velho e sem
condições para conduzir os negócios do reino. Ele havia iniciado os pre­
parativos da construção do templo, adquirindo a mão-de-obra e os mate­
riais necessários. Também todos estavam cientes de que seu filho Salomão
o substituiria no trono e concretizaria a obra de construção do templo.
A notícia da escolha oficial de Salomão não agradou a todos, particu­
larmente a seu irmão Adonias, que pensava ter maior direito ao trono.
Salomão, afinal, não era o filho mais velho, e pelo costume não poderia

60 Ishida, "Solomon's Succession", pp. 186-87.


D*m : O s A nos d l L uta 297

esperar suceder a seu pai. O mais velho, Amnom, havia sido assassinado
por seu irmão Absalão. E este, o próximo herdeiro (Quileabe, o segundo
mais velho, desapareceu de cena), morreu em uma rebelião fracassada.
Adonias era o quarto filho de Davi e o mais velho sobrevivente. Salomão
era quinze anos mais novo do que Adonias; além disso, era fruto de uma
união no mínimo escandalosa. Apesar disso, Salomão foi amado por
Yahweh desde seu nascimento (2 Sm 12.24), e ficou claro para Davi desde
aquele tempo que Salomão reinaria em seu lugar (1 Cr 22.9-10).
Quando se tornou óbvio para Adonias e os seus seguidores que Davi
tornaria pública a escolha oficial de Salomão, imediatamente tomou me­
didas preventivas. Ajuntou um contingente militar, sem fazer evidente­
mente qualquer alarme, e alistou como conspiradores Joabe e Abiatar. Es­
tes, juntamente com os demais irmãos e outros oficiais, reuniram-se em
En-Rogel (Bir Ayyub), próximo à junção dos vales do Quidrom e Hinom.
Lá aclamaram Adonias como o novo rei (1 Rs 1.9,11,18).
O profeta Natã descobriu a conspiração e, por meio de Bate-Seba, in­
formou a Davi o que estava acontecendo. Natã entrou na câmara real e
confirmou todas as palavras de Bate-Seba, asseverando a Davi que qual­
quer hesitação em tomar uma atitude significaria que seus planos de fazer
Salomão o rei seriam em vão, pois Adonias usurparia o trono. Assim, Davi
convocou o sacerdote Zadoque e outros homens que ainda lhe eram leais,
e imediatamente ordenou-lhes que tomassem providências para coroar
Salomão em Giom, que ficava no vale do Quidrom, pouco ao norte de En-
Rogel.
De acordo com as ordens de Davi, Zadoque, Natã e os outros oficiais
escoltaram Salomão, que foi carregado na mula oficial do rei Davi até
Giom, onde Zadoque formalmente o ungiu rei. O povo, embora reunido
às pressas e talvez em pequeno número, reconheceu com alegria e sole­
nidade a liderança de Salomão, prometendo servi-lo (1 Rs 1.39,40; 1 Cr
29.22). Os sons da festividade e aclamação do rei Salomão chegaram aos
ouvidos de Adonias e seus conspiradores, que ainda celebravam a coro­
ação de Adonias não muito distante daquele local. Naquele momento,
um mensageiro foi até Adonias dizer-lhe que a conspiração havia fracas­
sado, pois Salomão tinha sido coroado com a sanção de Davi e da maio­
ria do povo. Os seguidores de Adonias fugiram enquanto ele próprio
apegou-se ao altar no monte Sião em busca de refúgio contra a ira de
Salomão. Porém o rei Salomão perdoou-lhe a terrível ofensa, e o convi­
dou para as festividades da sucessão. De acordo com o cronista, "todos
os príncipes, os grandes e até todos os filhos do rei Davi prestaram ho­
menagens ao rei Salomão" (1 Cr 29.24).
298 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Pouco tempo após a coroação de Salomão, Davi morreu, na idade de


setenta anos. O seu reinado durou quarenta anos - sete em Hebrom e trin­
ta e três em Jerusalém. O cronista declara que ele desfrutou de uma longa
vida, com riquezas e honra, e que os detalhes de seu reino podem ser acha­
dos nos registros de Samuel, Natã e Gade. Os registros de Samuel têm, é
claro, sobrevivido nos livros canônicos de Samuel. As obras de Natã e Gade
são mencionadas somente nos livros do cronista, e certamente serviram
como principais fontes de informação não contidas em Samuel.

A b u ro c ra c ia d a v íd ic a

Militar

Um estado amplo e importante como Israel requeria uma superestru­


tura administrativa e religiosa.61 De fato, já nos dias em que fugia de Saul,
Davi começava a atrair pessoas ao seu redor, que conseqüentemente for­
maram o núcleo de seu governo. Por razões óbvias, esse grupo de seiscen­
tos (1 Sm 27.2) era essencialmente militar no princípio. No curso de seu
exílio, Davi ganhou o apoio de Abiatar, filho de Aimeleque, o sacerdote.
Abiatar serviria por muitos anos como capelão de Davi.
Pouco se sabe dos sete anos em Hebrom, exceto que Joabe serviu como
comandante militar, pelo menos extra-oficialmente. Depois de chegar a Je­
rusalém, Joabe foi confirmado na posição e manteve-a, não obstante os tem­
pos difíceis, até que veio a ascensão de Salomão, quando optou por seguir
Adonias. Abiatar provavelmente continuou servindo na função de sacerdo­
te, embora como e com quais aparatos ele pôde oficiar os sacrifícios não seja
conhecido. A família de Davi crescera bastante durante aqueles anos, em
parte devido aos casamentos políticos de Davi. Assim ele estabelecia uma
modesta relação internacional, mesmo durante o seu reino em Hebrom.
Os seiscentos homens de Davi devem ter-se fortalecido após ele ser
constituído rei de Judá, embora não haja informações específicas a respei­
to. O fato de Abner ter sentido necessidade de negociar com Davi, ao in­
vés de lhe fazer guerra, indica que Davi representava uma grande ameaça
militar contra Israel. Deve-se lembrar, é claro, que os exércitos de Israel
haviam sido dizimados em Gilboa pelos filisteus. Uma vez estabelecido
como rei sobre todo o Israel, Davi foi capaz de derrotar os filisteus pelo
menos por duas vezes em Refaim.

61 Para uma visão mais abrangente, ver S. Yievin, "Administration," World History of tbe
]ewish People, vol. 5, pp. 147-71.
D w i: O s A nos de L uta 299

A unificação de Judá e Israel trouxe não apenas uma maior responsabi­


lidade para Davi, mas também a necessidade de criar estruturas adequa­
das a fim de possibilitar à nação recobrar-se dos traumas militares exter­
nos e dos conflitos internos. Com um pouco de unidade alcançada, Davi
centralizou o governo em Jerusalém sem sacrificar as distinções e interes-'
ses das tribos. Entretanto, estava ali, na melhor das hipóteses, uma frágil
federação, pois até os últimos anos de Davi o rei precisou lutar contra a
fragmentação, especialmente entre Judá e as tribos do norte. Mesmo as­
sim o sucesso de suas guerras contra os amonitas, arameus e outros atesta
a sua habilidade de organizar a nação, ao menos sobre bases temporárias.
O núcleo do exército de Davi permanecia constituído dos homens que
o serviram no deserto. As tropas eram conduzidas por trinta chefes sobre
os quais havia outros "três valentes" e Joabe (2 Sm 23.8-39). Enquanto es­
tava em Ziclague, juntaram-se a Davi certos parentes de Saul, bem como
um número de gaditas e manassitas (1 Cr 12.1-22). Os homens aumenta­
ram em milhares desde que o pequeno rebanho ungira o rei em Hebrom.
Muitas das tropas não eram regulares, mas convocadas segundo a neces­
sidade.
Durante os períodos normais, vinte e quatro mil homens estavam de
serviço a cada mês (1 Cr 27.1-15). Embora cada tribo tivesse seus oficiais
superiores (vv. 16-22), não há indicação de que faziam parte da convoca­
ção mensal.

Civil

Além dos componentes militares, havia obviamente os oficiais civis que


serviam nos vários departamentos do governo central. Esses incluíam um
cronista, um escriba (ou secretário), conselheiros e outros oficiais cujas
funções não são especificadas. Entre os mencionados por último estão os
filhos de Davi (1 Cr 18.17). Os administradores menores estavam incum­
bidos dos armazéns, dos trabalhadores do campo, das vinhas e olivais e
suas indústrias, dos sicômoros e figueiras, dos rebanhos de gado, came­
los, mulas e pequenos rebanhos (1 Cr 27.25-31). Isso implica a proprieda­
de real sobre as fontes de renda, bem como um forte controle sobre o setor
privado.

Religiosa

A estrutura religiosa de Israel sob o comando de Davi era também alta­


mente organizada. Contudo, pode-se especular acerca da natureza do cul-
300 H istória de I srael mo A ntigo Testamente

to e de como se compunha o pessoal responsável pelo serviço antes da


chegada da arca em Jerusalém. Abiatar, um descendente de Eli, era o sumo
sacerdote nos tempos pré-Hebrom e nos anos em que Davi ali reinou, mas
é obscuro a forma pela qual exerceu a função. Ele possuía a estola sacerdo­
tal, e por meio desta poderia saber a vontade de Deus, mas os sacrifícios
do estado e outros serviços religiosos deveriam ser realizados em vários
altos, particularmente em Gibeão, onde estava o tabernáculo de Moisés.
Uma vez que Davi construiu seu próprio tabernáculo e nele pôs a arca
da aliança, em Sião, apresentou uma hierarquia religiosa altamente sofis­
ticada para lá ministrar (1 Cr 23-26), enquanto traçava os planos para a
construção do templo. Provavelmente, Davi continuou a exercer sua fun­
ção de sacerdote real. Abiatar e Zadoque serviam como sacerdotes arônicos
na ocasião da transferência da arca para Jerusalém (1 Cr 15.11). Mais tarde
o próprio Zadoque serviu no tabernáculo de Moisés em Gibeão (1 Cr
16.39,40). Contudo, lá permaneceu por apenas alguns anos, pois na época
em que Absalão rebelou-se contra o seu pai, Zadoque já servia em Jerusa­
lém. Algum tempo depois, Abiatar aparentemente deixou as atividades
sacerdotais, e seu filho Aimeleque exerceu a função (2 Sm 8.17; 1 Cr 18.16).
Por alguma razão, Aimeleque desaparece de vista, e no momento da su­
cessão de Salomão, Abiatar aparece novamente como sacerdote, desta vez
em oposição a Davi.62 O erro de Abiatar custou-lhe a posição de sacerdote,
pois Salomão, ao tornar-se rei, o depôs, e fez permanecer apenas Zadoque.
Assim o sacerdócio de Eli chegou ao fim, e o de Zadoque teve seu início
formalizado.
Os levitas participaram com os sacerdotes na relocação da arca. Até o
momento não havia qualquer sinal de organização e distribuição de res­
ponsabilidades entre as várias famílias levitas. De fato, a falha em trazer a
arca pela primeira vez é atribuída à falta de procedimentos levíticos apro­
priados (1 Cr 15.13). Portanto, Davi incumbiu alguns levitas de cuidar inin­
terruptamente da arca (1 Cr 16.4-6).63 Não está claro o que isto significava

62 P. Kyle McCarter, Jr., II Samuel, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1984), pp.
253-54, juntamente com outros estudiodos, sugere que 2 Samuel 8.17 está corrompido,
devendo ser lido "Abiatar, filho de Aimeleque." Isto é pouco provável, já que em outra
passagem Zadoque e Aimeleque são alistados como co-sacerdotes (1 Cr 24.3,31), e
Aimeleque é identificado como um filho de Abiatar (1 Cr 24.6). Para uma forte defesa
em favor de nosso ponto de vista, o de que Abiatar foi substituído por seu filho por um
tempo e depois reapareceu em cena, ver Cari F. Keil e Franz Delitzch, Biblical Commentary
on the Books of Samuel (Grand Rapids: Eerdmans, 1960 reedição), pp. 355-67.
63 Quanto a função dos sacerdotes, levitas e pessoal especializado do templo, no período
de Davi, ver de Vaux, Ancient Israel, vol. 2, pp. 372-86.
D w i : O s A nos de L uta 301

a respeito da adoração diária em Sião, pois o grande altar de bronze de


Moisés ainda se encontrava em Gibeão. Pode-se deduzir que também fora
construído um altar em Sião (após comprar a eira de Araúna, Davi ali
construiu um altar), uma vez que a ministração diante da arca exigia sa­
crifícios (1 Cr 16.1,2).
Com os planos para o templo e o culto mais elaborado, seria possível
uma maior demarcação das responsabilidades levíticas. Davi fez uma con­
tagem e constatou que havia trinta e oito mil levitas da idade de trinta
anos para cima. Desses, vinte e quatro mil foram designados para minis­
tros do templo, seis mil para oficiais e juízes, quatro mil para porteiros e
quatro mil para músicos. Todos foram divididos por seus respectivos clãs
- Gérson, Coate e Merari. Os sacerdotes foram organizados em vinte e
quatro divisões determinadas pelo lançar de sortes; cada divisão tinha a
sua vez no serviço do templo. Visto que os levitas serviam aos sacerdotes,
foram divididos de forma semelhante (1 Cr 24.31).
Próximo à morte de Davi, já havia um aparato político e religioso total­
mente estabelecido. As antigas distinções tribais ainda existiam, mas com
Davi surgiu agora um sentimento de nacionalidade e unidade, em negóci­
os seculares e espirituais. Agora Israel era uma nação completa dentre as
demais nações do mundo. Todos os ingredientes necessários à nacionali­
dade - exército, burocracia política e um culto centralizado - estavam bem
estabelecidos. Agora dependia de Salomão construir sobre esse fundamento
e fazer o povo de Deus transformar-se em um reino de sacerdotes por
meio do qual Deus pudesse abençoar o mundo.
S A L 0 H A 0:
CO P I N Á C U L O d 0 P m G 0
Os problem as da transição
O cojtceito de sucessão dinástica
A deslealdade de joabe
A deslealdade de Abiatar
O fracasso da oposição contra Salomão
O conclave em G ib elo
Relações internacionais
Israel e Tiro
Israel e o Egito
O s projetos de construção de Salomão
O templo
Construção e desenho
A aparição do Senhor
A oração de Salomão e a dedicação do templo
O palácio real
Outros projetos
Rupturas no im pério de Salomão
O princípio do declínio
A independência de Edom
Rezim de Damasco
A rebelião de Jeroboão
A forma de governo de Saiomão
Quatro esferas de influência política
A pátria
As províncias
Estados vassalos
Estados aliados
Administração interna
Os distritos administrativos
A política fiscal
Comércio internacional
Apostasia moral e espiritual
Salom ão e a natureza da sabedoria

O s p ro b le m a s d a tra n siç ã o

Ao chegar ao fim de sua vida, Davi via-se no momento de passar a


monarquia que havia permitido a Israel um lugar entre as nações do mun­
do. Ele havia conseguido unir as tribos sem obliterar suas identidades;
guardou as fronteiras da nação contra seus inimigos tradicionais; desen­
volveu relacionamentos internacionais com estados emergentes tais como
os estados arameus, normaímeníe em uma posição superior; e estabeíe-
304 H istória de I srael no A ntigo T estamento

ceu Jerusalém como o centro político e religioso da nação. Esta última con­
tribuição foi a mais importante de todas, pois simbolizava a fusão entre as
tradições patriarcais e sinaíticas e a noção de monarquia humana divina­
mente estabelecida. Davi chegou ao entendimento de que era como um
filho adotivo de Yahweh, que não apenas reinava sobre seu povo, mas
também o representava. Ele conseguiu persuadir a nação desta verdade, e
assim a preparou para assumir seu papel histórico e escatológico como a
nação serva, por meio da qual os povos da terra buscariam a salvação.

O conceito de sucessão dinástica

Como já observado (pp. 296,297), a transferência de Davi para Salomão não


procedeu sem obstáculos. A própria idéia de dinastia não era bem-vista por
muitos israelitas. Além disso, para os que aceitavam a dinastia davídica, de
acordo com as normas prevalecentes, o trono não pertencia a Salomão, mas a
Adonias, por ser o filho mais velho. Esta opinião estava sendo tão fortemente
sentida que, mesmo quando Davi tomou conhecido (bem antes de sua morte)
que seu filho Salomão seria o sucessor real, houve uma tentativa de Adonias
usurpar o trono. Embora o plano tenha fracassado, serviu para alertar Salomão
dos perigos reais e potenciais que confrontavam a sua administração.
As razões para o apoio dado a Adonias, especialmente pelos que ocu­
pavam posições estratégicas no reino, muitos deles fiéis amigos de Davi,
não estão totalmente esclarecidas. Elas devem firmar-se além da tradição
do filho mais velho como herdeiro dinástico, pois certamente a vontade
expressa de Davi excedia em valor tal consideração. A causa não poderia
ser a pessoa de Salomão, pois nada há no registro que o afete. Na realida­
de, o alvo da conspiração não era diretamente Salomão, mas Davi. Salomão
apenas foi a pessoa que se colocou entre Adonias e o trono.

A deslealdade de Joabe

A solução mais plausível parece ser a vanglória pessoal e a ambição


dos conspiradores. Adonias sentiu-se vítima de Davi por haver sido pre­
terido em favor de Salomão; então decidiu fazer ele mesmo justiça. Isso
requeria alguns colaboradores, homens que compartilhavam da mesma
ambição e eram semelhantemente frustrados. Não surpreende que Joabe
fosse um deles. Joabe era sobrinho de Davi, filho de sua irmã Zeruia (1 Cr
2.16); havia ele se destacado pela sua lealdade a Davi desde os anos pré-
Hebrom. Por fim, assumiu o comando de todo o exército de Davi. Mas
acabou cada vez mais sufocado com o que percebia ser uma atitude vaci­
S alomão: D o P ináculo ao P erigo 305

lante, ou no mínimo ambígua, de Davi a respeito de sua política diplomá­


tica e militar. Sempre que Joabe investia enérgica ou violentamente contra
os inimigos de Davi, incluindo Abner e Absalão, o rei invariavelmente
"oferecia a outra face" e buscava medidas mais amenas para resolver o .
problema. Sem dúvida Joabe considerava isto uma fraqueza de Davi, e
pode ser que a tenha percebido também no jovem Salomão.
Uma motivação ainda maior foi que Joabe notou o desprestígio de sua
posição nos planos de Davi. A responsabilidade pela morte de Absalão e
insensibilidade para com o lamento de Davi fizeram com que fosse subs­
tituído, para sua humilhação, pelo seu primo Amassa, um homem que
havia servido na mesma posição a Absalão! A fim de reaver sua posição,
Joabe matou covardemente Amasa e, a partir daí, o relacionamento com
Davi apenas piorou. Havia possibilidade de ser ainda mais rebaixado quan­
do o jovem Salomão ocupasse o trono. Nesse caso, ele decidiu seguir a
rebelião disparada por Adonias na esperança de que o novo rei, ao assu­
mir o trono, o constituísse comandante no novo regime.

A deslealdade de Abiatar •

O segundo maior aliado de Adonias foi o sacerdote Abiatar que, como


Joabe, havia estado com Davi em todos os piores momentos. Ele deixou o
santuário em Nobe e juntou-se a Davi no deserto. Também teve o privilé­
gio de ministrar diante da arca no tabernáculo de Davi, enquanto seu co-
sacerdote Zadoque oficiava em Gibeão. O que então fez com que Abiatar
abandonasse Davi e Salomão, juntando-se a um movimento rebelde co­
mandado por Adonias? A resposta certamente está nos mesmos motivos
que impulsionaram a Joabe. Abiatar temia perder a influência e, talvez,
ser substituído em seu ofício de sacerdote.
Abiatar era descendente direto de Eli, um sacerdote aarônico da linha­
gem de Itamar (1 Cr 24.1-6)1 que seria encerrada por causa dos pecados
dos filhos de Eli (1 Sm 2.30-36; cf. 1 Rs 2.27). Certamente Abiatar conhecia
o julgamento e devia guardar-se constantemente contra a possibilidade

1 Quanto à defesa dessa genealogia, ver Eugene H. Merrill, "1 Chronicles," em The Bible
Knowledge Commentary, editado por John E Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor,
1985), vol. 1, p. 613; Carl F. Keil e Franz Delitzsch, Biblical Commentary on the Books of
Samuel (Grand Rapids: Eerdmans, 1960 reedição), pp. 39-40. Até mesmo Frank M. Cross
admite que "o cronista traça a descendência de Zadoque ao sacerdote aronida Eleazar, e
Abiatar ao sacerdote aronida It&max"(Canaanite Myth anã Hebrew Epic [Cambridge:
Harvard University Press, 1973], p. 196).
306 H istória de I srael no A m ig o T estamextg

deste se cumprir em sua vida. Enquanto desfrutava o favor de Davi, pou­


co tinha a temer. Mas sua posição veio a tornar-se um tanto nublada nos
últimos anos. Abiatar continuava como chefe dos sacerdotes, mesmo de­
pois de ter sido a arca levada para Jerusalém. Sentia-se, contudo, cada vez
mais ameaçado pelo jovem sacerdote Zadoque. No registro bíblico,
Zadoque aparece pela primeira vez quando Davi trazia a arca da casa de
Obede-Edom (1 Cr 15.11). Muito tempo antes ele havia sido co-sacerdote
com Abiatar, servindo primeiro em Gibeão, depois com a arca no monte
Sião (2 Sm 15.24), até que por fim seu nome já precedia o de Abiatar quan­
do mencionados juntos (2 Sm 20.25).
Porém, o que mais alarmava Abiatar era o fato de que a linhagem de
Zadoque tinha origem em Eleazar, filho de Arão. Esta substituiria a linha­
gem de Abiatar algum dia. Não surpreende então que Abiatar tenha acha­
do prudente unir-se ao movimento pró-Adonias. Parecia-lhe inteiramente
lógico que uma mudança no reino em favor de Salomão ocasionaria tam­
bém uma mudança no sacerdócio — Zadoque estaria dentro, e ele, fora.
O passado de Zadoque como sacerdote é um mistério, embora 1 Crôni­
cas 16.39 revele que Davi deixou Zadoque "diante do tabernáculo do Se­
nhor, no alto que estava em Gibeão". Teria Zadoque servido lá anterior­
mente?2 Caso a resposta seja sim, é mais provável que tenha sido descen­
dente de uma família de sacerdotes lá instalada por Saul depois da atroci­
dade cometida em Nobe. E, se esta visão está correta, o próprio Saul, vol­
tando-se para os descendentes de Eleazar, em vez de voltar-se para os de
Itamar, foi um instrumento para que a profecia de Samuel a respeito da
nova sucessão sacerdotal fosse cumprida. Isto deve ter feito com que a
convocação de Zadoque tenha sido mais ainda odiosa para Abiatar, pois
este servia a Davi com toda lealdade desde os dias em que deixara Saul. A
ascendência sacerdotal de Zadoque deve ter sido intolerável para Abiatar.

O fra ca s s o d a o p o siç ã o c o n tra S a lo m ã o

Mesmo com o apoio de tal influência, Adonias não conseguiu o seu


objetivo. Zadoque, Benaia, Natã e outros fiéis servidores de Davi foram
mais hábeis em suprimir seu maligno intento. Persuadiram Davi da rápi­
da coroação de Salomão antes que fosse muito tarde. Mas a aparente aqui­
escência de Adonias rapidamente deu outros sinais de deslealdade e insa­
tisfação. Davi advertiu Salomão a respeito, especialmente com referência

2 Roland de Vaux argumenta que este é o significado tencionado pelo cronista (Ancient
Israel [New York: McGraw-Hill, 1965], vol. 2, pp. 373-74).
Salomão: D o P i .x áculo ao P erigo 307

a Joabe, e de fato aconselhou Salomão a fazer o que ele mesmo nunca


havia determinado — punir Joabe pelos engenhosos assassinatos do pas­
sado (1 Rs 2.5,6). Salomão, entretanto, estava verdadeiramente interessa­
do em perdão e reconciliação. Uma punição com sangue logo no início de
seu reinado poderia manchar a sua caracterização como homem de paz, e
minar a moral que usufruía entre as tribos.
Não passou muito tempo após a morte de Davi para que a oposição
subterrânea contra Salomão começasse a emergir. Primeiro, Adonias pe­
diu a Bate-Seba, agora a rainha mãe, que lhe desse Abisague, concubina
de Davi. Salomão entendeu imediatamente a intenção do pedido: "Pede
também para ele o reino (porque é meu irmão maior)" (1 Rs 2.22). Adonias
tentava incrementar sua autoridade política, e apoderar-se do harém real
representaria transferir a autoridade real para suas mãos. Salomão, con­
vencido de que Adonias estava com seu espírito irreparável, ordenou que
Benaia o executasse.
Salomão também se convenceu da insatisfação de Abiatar, e determi­
nou que ele fosse confinado em sua cidade natal, em Anatote.3 Por fim,
toda linhagem sacerdotal ficou exclusivamente com os descendentes de
Eleazar. Joabe, ao ouvir acerca das decisões de Salomão, fugiu para salvar
a vida e refugiou-se no grande altar em Sião. Depois de apelarem várias
vezes para que saísse do santuário, Joabe, o instigador de assassinados
brutais, foi morto por Benaia. Portanto, a vingança pelas mortes de Abner
e Amasa finalmente se cumpriu. Benaia assumiu o lugar de Joabe como o
comandante geral dos exércitos de Salomão.
Embora Salomão eliminasse a ameaça de Adonias, seu apetite por vin­
gança havia apenas começado. Primeiro, mandou chamar Simei, parente
de Saul que havia escarnecido de Davi em seu caminho para o exílio (2 Sm
16.5-8). Salomão o confinou em uma casa avisando-o de que se deixasse
Jerusalém, morreria imediatamente. Três anos mais tarde, Simei deixou a
cidade para pegar dois escravos fugitivos e foi imediatamente executado.

3 Nobe, provavelmente identificada com el-Tsãwíyeh, situava-se a menos de três quilô­


metros de Anatote, que sem dúvida é a Râs el-Kharrübeh. Ambas as cidades situavam-
se a menos de cinco quilômetros a nordeste de Jerusalém (Yohanan Aharoni e Michael
Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas [New York: Macmillan, 1968], mapa 154). É provável
que depois da queda de Siló como centro religioso, os sacerdotes da linhagem de Itamar
(e de Eli) tenham residido em Anatote, mas fizeram da cidade de Nobe o local do
tabernáculo. Ver Tryggve N.D. Mettinger, "YHWH SABAOTH - The Heavenly King on
the Cherubim Throne," em Studies in the Period of David and Solomon and Other Essays,
editado por Tomoo Ishida (Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1983), p. 129.
H istória d e I srael no A ntigo T estamento

Em razão desses atos de vingança, não surpreende que o autor de Reis


declare: "...assim foi confirmado o reino na mão de Salomão" (1 Reis 2.46).

O c o n c la v e e m G ib e ã o

A cronologia do reino de Salomão não apresenta dificuldades como a


de Davi. Com exceção das passagens não narrativas, que se referem exclu­
sivamente a tópicos e temas, a ordem em 1 Reis e 2 Crônicas reflete o fluxo
geral dos acontecimentos. Parece, entretanto, que a aliança política feita
com Siamum do Egito (1 Rs 3.1) não aconteceu antes das negociações com
os habitantes de Tiro para ajudá-lo na construção do templo. Isto deve ter
sucedido ao momento em que Salomão pediu a Deus sabedoria, pois o rei
de Tiro, Hirão, a reconheceu no filho de Davi (1 Rs 5.7).
O cronista então está correto ao iniciar o relato do reinado de Salomão
com o seu comparecimento em Gibeão. O motivo de Salomão preferir reu­
nir-se com o povo naquele local em vez de em Sião não está claro. Pode ser
que, como sugere o cronista (2 Cr 1.1-6), o interesse de Salomão no mo­
mento estivesse mais no sacrifício ao Senhor do que na arca da aliança.
Afinal, o grande altar de bronze em Gibeão era o altar original de Moisés;
aquele que estava em Sião não desfrutava da mesma tradição.4
De qualquer forma, a decisão de Salomão de fazer o conclave em Gibeão
não desagradou a Yahweh, pois foi ali que o Senhor lhe apareceu, conce­
dendo-lhe o desejo de seu coração — que ele obtivesse sabedoria para
conduzir o povo. Em acréscimo, Yahweh lhe prometeu riquezas e honra
incomparáveis.
A oração de Salomão na ocasião é particularmente significativa, pois
revela claramente sua percepção do papel que exercia como herdeiro na
sucessão davídica. Ele via-se como o cumprimento da promessa divina a
Davi (1 Rs 3.6), e como ocupante do trono de Davi em virtude da eleição
eterna de Yahweh. Esses pensamentos serão ainda melhor trabalhados em
sua oração quando da dedicação e consagração do templo.5

4 Em acréscimo, conforme Jacob M. Myers observa, Zadoque ainda estava associado com
Gibeão, e pode ter insistido com Salomão para buscar Yahweh naquele local (II Chronicles,
Anchor Bible [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965], p. 6).
5 Roddy L. Braun observa que o cronista começa todo seu relato de Salomão afirmando
que ele tinha sido eleito por Deus para construir o templo (1 Cr 22. 28,29), como que esta
tivesse sido a função mais importante em toda sua vida ("Solomon, the Chosen Temple
Builder: The Significance of 1 Chronicler 22, 28 and 29 for the Theology of Chronicles,"
JBL 95 [1976]: 581-90). ”
Salomão: D o P ináculo ao P erigo 309

R e la çõ e s in te rn a c io n a is

Israel e Tiro

Pouco tempo depois da visitação de Deus, Salomão recebeu mensagei­


ros de Hirão, rei de Tiro, parabenizando-o por sua ascensão ao trono de
Israel. Segundo 1 Reis 5.1, já por muitos anos Hirão vinha mantendo um
relacionamento amigável com Davi. Sendo o monarca de um dos mais im­
portantes portos da época, o porto de Tiro, por volta de 980,6 Hirão foi con­
temporâneo de Davi por cerca de dez anos. Esteve envolvido nos progra­
mas de construção de Davi, de forma que Salomão, aproveitando-se da cor­
tesia e bom relacionamento entre os dois monarcas, o convidou a cooperar
na construção do templo e em outros projetos públicos que tinha em mente.
Hirão alegrou-se com a proposta, e sugeriu enviar a madeira a Jope,
via mar, e de lá Salomão a transportaria para Jerusalém. Ele também
enviaria artesãos para ajudar nas dificuldades da construção. Estes
artesãos estariam sob a supervisão de Huram-Abi, um meio-israelita
proficiente em todo tipo de habilidades manuais (2 Cr 2.13-14; cf. 1 Rs
7.13,14).7 Salomão supriria os celeiros de Hirão com grãos e outros gêne­
ros alimentícios em grandes quantidades. Quando todos os detalhes fo­
ram arranjados entre os dois monarcas, um contrato formal foi estabele­
cido (1 Rs 5.12).8

Israel e o Egito

Pouco tempo entre a ascensão de Salomão e o início da construção do


templo em seu quarto ano, fez-se um tratado entre Salomão e o faraó do

6 Ver p. 251. Michael B. Rowton, mesmo diminuindo as datas de Salomão e de Hirão em


nove anos, mostra que há uma semelhança e concordância notável entre as fontes bíblicas
e as fenícias quanto à data do templo ("The Date of the Founding of Solomon's Temple,"
BASOR 119 [1950]: 20-22).
7 Quanto à identificação de Huram-Abi, ver H. Jacob Katzenstein, The History of Tyre (Jerusalem:
Schocken Institute for Jewish Research, 1973), p. 100. O autor do livro dos Reis o aponta
como filho da viúva de Naftali, enquanto o cronista informa que ele era um danita. Sua mãe
provavelmente era danita de nascimento e naftalita por residência ou vice-versa. Ver Eugene
H. Merrill, "2 Chronicles," em Bible Knowledge Commentary, vol. 1, p. 621.
8 Está claro, pelo uso do termo técnico sãlôm ("relações pacíficas"), que esse contrato en­
volvia mais do que uma transação comercial. Ver John Gray, I & II Reis (Philadelphia:
Westminster, 1970), p. 154.
310 H istória de I srael no A ntígo T estamento

Egito. Este era Siamum, da 21a Dinastia, que reinou de 978 a 959. Embora
Siamum estivesse basicamente preocupado com negócios internos, sabe-
se que nutria algum interesse pela Palestina, conforme visto em alguns
relevos que o ilustram em uma pose de vencedor sobre um grupo de pri­
sioneiros. Estes podem ser identificados como os filisteus, em razão de
segurarem um machado duplo típico do Egeu e do oeste da Anatólia.9
Talvez estes filisteus tenham sido subjugados quando, segundo o registro
em 1 Reis 9.16, faraó atacou e capturou a cidade de Gezer, incendiando-a e
matando seus habitantes cananeus. A data dessa campanha anti-filisteus
não é revelada. Já foi sugerido (pág.265) que, se Davi colaborou nessa cam­
panha, uma data pouco depois de 978 não seria improvável. Se, por outro
lado, Davi não participou, a destruição de Gezer provavelmente ocorreu
nos últimos anos de seu reinado, quando ele estava ocupado com outros
problemas internos, como a praga que devastou milhares em conseqüên-
cia de ter ele levantado um censo.10
De qualquer forma, Siamum logo percebeu que Salomão estava se tor­
nando o monarca de um reino que lhe seria rival ou mesmo mais forte em
poder e influência. Portanto, decidiu por uma política de bom relaciona­
mento e diplomacia com o jovem monarca, ainda que tivesse de reconhe­
cer que Salomão lhe era igual em poder.11 Isto se confirma pelo fato de
entregar a sua própria filha como esposa a Salomão, uma concessão quase
que sem paralelo em toda história egípcia, visto que representava o reco­
nhecimento da fraqueza do Egito e sua conciliação. Normalmente os reis
do Egito tomavam princesas estrangeiras, mas jamais davam suas própri­
as filhas a outros reis.12

9 Pierre Montet, Egypt and the Bible (Philadelphia: Fortress, 1968), pp. 36-39. Contra essa
interpretação do relevo de Tanis, ver Alberto R. Green, "Solomon and Siamum: A
Synchronismo Between Dynastic Israel and the Twenty-first Dynasty of Egypt/' JBL 97
(1978): 363-64. Contudo, Green ainda considera Siamum como sogro de Salomão.
10 Abraham Malamat aceita que a conquista de Gezer possa ter precedido a total regência
de Salomão ("A Political Look at the Kingdom of David and Solomon and Its Relations
with Egypt," em Studies in the Period of David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, p.
198).
11 O prestígio de Salomão era tão grande que as práticas de administração egípcias passa­
ram a ser feitas nos moldes das que eram praticadas em Israel. Ver Alberto R. Green,
"Israelite Influence at Shishak's Court?" BASOR 233 (1979): 59-62.
12 Alan R. Schulman/'Dilomatic Marriage in the Egyptian New Kingdom,"/NES 38 (1979):
190-91. H. Darrell Lance sugere que Gezer pertencia ao Egito no início do reinado de
Salomão e que um ataque malsucedido de Siamum contra Salomão permitiu com que a
cidade ficasse sob a autoridade do monarca israelita. A "dádiva" da cidade como um
S alomão: D o P ináculo ao P erigo 3 11

A razão para este acordo pode estar baseada no medo que Siamum
sentia quanto ao tratado existente entre Israel e Tiro, o que podia fazer
Salomão voltar-se contra o Egito. Também há possibilidade de que o rei
do Egito estivesse interessado em usar Salom ão como uma força
neutralizadora contra os filisteus, pois eram inimigos do Egito e amea­
çavam-nos devido à posição fronteiriça que ocupavam ao nordeste. Po­
rém, o mais próximo da verdade é que Siamum conhecia muito bem as
transformações militares que aconteciam na Assíria, e que tais modifica­
ções estavam criando um império ao oriente. Uma aliança com Salomão
faria de Israel um estado tampão entre o Egito e a Assíria, e que se esten­
deria até o rio Eufrates.
As preocupações com o poderio da Assíria eram bem fundadas. Cem
anos antes, o rei assírio Tiglate-pileser I havia intimidado a Síria e a Fenícia
o suficiente para fazer duras exigências ao Egito.13 E verdade que a Assíria
havia entrado em um período de declínio, principalmente por causa das
dificuldades com os arameus. Mas estava evidente que a Assíria se consti­
tuiria em uma séria ameaça para todo o mundo mediterrâneo oriental.
Isto não se cumpriria nos anos de Salomão e Siamum, mas a possibilidade
fez Israel e Egito entrarem em um acordo, pelo menos enquanto Salomão
reinou sobre Israel.
Como parte dos procedimentos legais do casamento, Faraó cedeu a
cidade de Gezer como dote por sua filha. Gezer situava-se no caminho
entre o porto de Jope e Jerusalém. Visto que os materiais enviados de
Hirão para Salomão tinham de desembarcar naquele local, e que transi­
tavam sem qualquer obstáculo, conclui-se que Gezer estava sob o domí­
nio de Salomão na época da construção do templo. Duas considerações
cronológicas precisam ser observadas a fim de datarmos o acordo entre
Siamum e Salomão e o casamento envolvido. A construção do templo
teve início em 966, no quarto ano de Salomão; este evento deve ter segui­
do a aquisição de Gezer por Salomão. Sabe-se também que a morte de
Simei aconteceu em 967, o terceiro ano do reinado de Salomão (1 Rs 2.39).
Esses e outros fatos testificaram a autoridade e controle de Salomão so­
bre seu reino (1 Rs 2.46), e provavelmente fizeram Siamum perceber o
poderio do monarca de Israel.

dote foi, na verdade, um presente sobre o qual Siamum não tinha controle ("Gezer in
the Land and in History," BA 30 [1967]: 34-47).
13 D.J. Wiseman, "Assyria and Babylonia c. 1200-1000 B.C.," em Cambridge Ancient History,
3a edição, editado por I.E.S. Edwards et al. (Cambridge: Cambridge University Press,
1975), vol. 2, parte 2, p. 461.
312 H istória de I srael ko A ntigo T estamento

O s p ro je to s d e c o n s tru ç ã o de S a lo m ã o

O templo

Construção e desenho
Uma vez que Salomão obtinha um firme controle do reino, voltou-se
para o extenso programa de construções, iniciando com a construção do
templo. Davi já havia comprado a eira de Araúna — o local separado por
Deus — e o rei ordenara que o terreno fosse totalmente limpo a fim de
começar a obra. Ele também preparou os materiais da construção, particu­
larmente blocos de pedras trabalhadas e metais preciosos, e fez acordos
com os fenícios para o fornecimento de madeira para construção. Tudo o
que Salomão precisava fazer era reunir os materiais e construtores no mes­
mo local, e dar início à obra.
Hirão foi informado de que tudo estava pronto, então começou o envio
de madeiras para a construção, conforme havia prometido. Salomão en­
viou-lhe os gêneros alimentícios acordados e outros bens como forma de
pagamento. Também foram convocados trinta mil cortadores de lenha para
que mensalmente, em turnos de dez mil homens, fossem auxiliar os traba­
lhadores de Hirão no Líbano. Setenta mil carregadores foram destacados
para o serviço, mais oito mil cortadores de pedras. Todos os trabalhadores
foram supervisionados por três mil e trezentos homens que respondiam
diretamente a Adonirão, o oficial encarregado dos trabalhadores forçados
(1 Rs 5.13-18).14
Infelizmente, apesar da grande quantidade de informações nas fontes
em relação às especificações e aparência do templo, é impossível reprodu­
zi-lo em detalhes.15 O estilo da construção se assemelha ao tabernáculo
construído por Moisés e aos antigos templos do Oriente Médio em ge­
ral,16 mas além disso suas características têm de ser, em grande parte, fru­
to da imaginação estrutural, artística e arquitetônica, baseada nos dados
esparsos e ininteligíveis do texto. Apesar disso, o templo era sem dúvida

14 Quanto ao sistema de trabalhos forçados em Israel, ver J. Alberto Soggin, “Compulsory


Labor Under David and Solomon," em Studies in the Period of David and Solomon, edita­
do por Tomoo Ishida, pp. 259-67.
15 Para esforços na reprodução do templo, ver Carol L. Meyers, "The Elusive Temple," BA
45 (1982): 33-41; Mina C. Klein e Arthur Klein, Temple Beyond Time (New York: Van
Nostrand Reinhold, 1970), pp. 35-49.
16 William F. Albright, Archaeology and the Religion of Israel (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1969), pp. 138-50.
S alomão: D o P ináculo ao P erigo 313

esplendoroso, um monumento impositivo da majestade e glória de Deus.


A obra durou sete anos e certamente foi uma construção sem igual no
mundo antigo do Oriente Médio.

A aparição áo Senhor
Quando o prédio estava terminado e sua mobília já instalada, manufa­
turada sob a supervisão de Huram-Abi, Salomão providenciou para que a
arca da aliança fosse trazida do tabernáculo de Davi, no monte Sião, para
seu novo local de habitação no monte Moriá (1 Rs 8.1-11).17 Com reverên­
cia, os anciãos, sacerdotes e o rei uniram-se em procissão com a arca da
aliança, oferecendo muitos sacrifícios pelo caminho. Uma vez que a arca
foi depositada no Santo dos Santos, atrás do véu, e os sacerdotes se retira­
ram do local, todo o prédio foi preenchido com a nuvem da presença de
Yahweh. Este era um sinal de que Deus aprovara a obra de Davi e Salomão;
este templo era o símbolo visível de sua residência entre o seu povo.
Salomão respondeu a essa evidência da presença localizada de Deus
comparando a forte passagem da nuvem com a divina possessão do tem­
plo. Naquele momento, sendo ele o mediador real e sacerdotal do povo,
voltou-se para a multidão e a abençoou como havia feito seu pai, na oca­
sião em que a arca foi trazida para o tabernáculo em Sião. A bênção con­
sistia em reconhecer que a promessa de que o filho de Davi construiria o
templo havia sido cumprida. Salomão demonstrou que nele se cumpria
a expressão dinástica da aliança que Yahweh havia feito com seu pai (1
Rs 8.20). Agora sentava-se no trono de Davi, e como rei providenciara
um local para que a arca da aliança, o símbolo do trabalho redentor de
Deus para com seu povo, pudesse descansar. Assim ele liga a aliança
mosaica, na qual um povo escravizado havia sido escolhido e libertado,
à aliança davídica, em que um rei messiânico havia sido chamado para
estabelecer uma linhagem que um dia reinaria sobre toda a terra.18

A oração de Salomão e a dedicação do templo


A ligação dessas alianças apenas sugerida no momento em que
Salomão abençoa o povo é melhor trabalhada em sua oração dedicató­
ria. Neste notável tratado teológico, Salomão primeiro celebra a singula­
ridade e incomparabilidade de Yahweh, o Deus que guardou sua aliança

17 Richard E. Friedman argumentou com firmeza que o próprio tabernáculo foi removido
e colocado dentro do templo ("The Tabernacle in the Temple," BA 43 [1980]: 241-48).
18 Gray, I & II Kings, p. 213.
314 H istória nF. I srael no A ntigo T estamento

com Davi e agora a confirmava em seu filho (1 Rs 8.22-26). O rei então


reconhece a incapacidade do templo magnífico de abrigar o Soberano
do céu e da terra. Porém, Deus permitiu-se localizar no templo, de for­
ma que as pessoas deveriam ir lá buscá-lo. Caso cometessem algum pe­
cado e conseqüentemente sofressem derrota, seca, pestilência ou mesmo
cativeiro, deveriam, arrependidos, buscar Yahweh no templo, a fim de
que fossem perdoados e restaurados. Yahweh assim faria, orou Salomão,
porque eles eram o seu povo, a quem Ele havia resgatado do Egito como
sua herança especial (vv. 27-53).
Depois da oração, Salomão abençoou toda a multidão ali reunida. Lem­
brou-lhes de que a dedicação do templo era um sinal do cumprimento da
promessa de Yahweh concedida por meio de Moisés. Ou seja, a sucessão
dinástica e real de Davi e Salomão não era algo contrário aos propósitos
de Deus; pelo contrário, era a extensão lógica e teológica daqueles propó­
sitos (vv. 54-61).
Finalmente, como sacerdote real, Salomão oficiou o oferecimento de
um imenso sacrifício a Yahweh.19 Proclamou que as festividades em Israel
durariam catorze dias. Terminadas as comemorações, o povo voltou cada
um para a sua casa, regozijando-se na bênção de Deus sobre seu rei e so­
bre toda a nação (vv. 62-66).

O palácio real

Depois de ser construído o templo, Salomão passou a construir o seu


próprio palácio, uma obra que levou treze anos para ser concluída. Parece
claro que os dois projetos foram realizados em seqüência, e não simultanea­
mente, pois embora 1 Reis 3.1 registre que Salomão construiu "seu palácio
e o templo do Senhor," o historiador indica que foi preciso sete anos para
a construção do templo (1 Rs 6.39), e treze para o palácio (1 Rs 7.1), soman­
do um total de vinte anos (1 Reis 9.10). O templo, então, foi terminado em
cerca de 959 a.C., e o palácio depois de 946.
A residência real era mais larga do que o templo, consistindo aparen­
temente de um edifício central maior, o Palácio da Floresta do Líbano,
com alas ou estruturas geminadas, tais como a sala da Justiça e as de­

19 A real função de Salomão nos sacrifícios não está claramente definida, como foi no caso
de Davi quando comandou a procissão trazendo a arca para Jerusalém (2 Sm 6), mas
está claro, apesar disso, que Salomão está incumbido de alguns aspectos do culto. Ver
Dennis J. McCarthy, "Compact and Kingship: Stimuli for Hebrew Covenant Thinking,"
em Studies in the Period of David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, p. 81-82.
S momão : D o P íkácvi.o ao P erigo 315

pendências privadas de Salomão. Não é possível determinar como esses


edifícios foram construídos um em relação ao outro, ou em relação ao
templo, mas todo o complexo de prédios deve ter sido extremamente
impressivo.20 Agora a nação de Israel começava a parecer com outros
grandes reinos do mundo, se as construções públicas puderem servir
como um tipo de barômetro.
Por todo esse tempo a filha de Siamum morou em uma residência tem­
porária no monte Sião. Agora que o templo e o palácio estavam termina­
dos, Salomão construiu um palácio para sua esposa favorita, uma cons­
trução que se assemelhava à sala da Justiça e seus próprios quarteirões. O
motivo por que ele a transferiu de Sião tem um significado — muralhas de
proteção não foram previamente construídas em volta da nova parte da
cidade onde estava localizado o templo (1 Rs 3.1; cf. 9.24) e, de um ponto
de vista mais negativo, a permanência da mulher no palácio de Davi era
uma afronta à sua santidade (2 Cr 8.11). O cronista registra a sensibilidade
de Salomão quanto ao fato de ter uma esposa pagã no meio do povo da
aliança.21

Outros projetos

Embora nenhum dos outros projetos de construção de Salomão pos­


sam ser precisamente datados, é apropriado mencioná-los como um
tributo à sua indústria e prosperidade doméstica, e ao seu domínio co­
mercial e político. Primeiro ele fortificou e alargou a cidade de Jerusa­
lém com uma muralha em forma de circunferência, que envolveu toda
a cidade antiga (i.e., monte Sião ou a cidade de Davi), abrangendo tam­
bém o templo e os edifícios públicos situados ao norte de Ofel. A área
media cerca de 99 quilômetros de norte para o sul, e vinte quilômetros
do leste para o oeste. Para os padrões daquela parte do mundo, esta
era uma cidade bastante significativa.22 Como parte do sistema de de­
fesa da cidade e nivelamento, Salomão construiu proteções em Milo (1
Rs 9.15,24; 11.27). Essa palavra, que literalmente significa "recheio",
provavelmente refere-se às estruturas em forma de terraço que foram
construídas nas encostas dos despenhadeiros de certas partes da cida­

20 David Ussishkin identifica pelo menos seis estruturas separadas, algumas das quais
foram unidas em complexos ("King Solomon's Palaces," BA 36 [1973]:78-105).
21H. G. M. Williamson, I and 2 Chronicles, New Century Bible Commentary (Grand Rapids:
Eerdmans, 1982), p. 231.
22 Kathleen Kenyon, Jerusalem (New York: McGraw-Hill, 1967), pp. 56-58.
316 H istória de I srael .wo A wtigo T estamento

de.23 Isso facilitaria a construção de melhores muralhas para defesa e


edifícios de vários tipos.
Por fora da cidade, Salomão autorizou a reconstrução e fortificação de
outras cidades, particularmente Hazor, Megido e Gezer (1 Rs 9.15).24 Este
locais, estrategicamente localizados em rotas comerciais, serviam como
cidades para armazenamento de suprimentos necessários e quartéis mili­
tares, pelos quais o rei exercia efetivo controle do território. Escavações
feitas nesses locais têm fornecido abundante evidência do estilo das
edificações no tempo de Salomão. Bete-Horom (Beit 'Ur et-Tahtã), situada
pouco a noroeste de Gibeão e Baalate (Catra), e um pouco a sudoeste de
Gezer, também foram reforçadas, principalmente porque precisavam pre­
venir-se contra os filisteus ou quaisquer outros que tentassem invadir pela
planície costeira (1 Rs 9.17,18). Tamar ('Ain Husb), no Arabá, cerca de 40
quilômetros ao sul do mar Morto, guardava a fronteira ao sul.25
Postos avançados no exterior da cidade também receberam atenção espe­
cial. O livro dos Reis fala geralmente de locais "no Líbano e em toda terra do
seu [Salomão] domínio" (1 Rs 9.19); o cronista especifica também que Salomão
reconstruiu os locais que ganhara de Hirão, capturou e reconstruiu a cidade
de Hamate Zobá (Hamã), no Orontes, e até mesmo restaurou e fortificou um
importante oásis no deserto, chamado Tadmor (ou Palmyra), cerca de 225
quilômetros a noroeste de Damasco (2 Cr 8.2-6). Assim Salomão criou uma
cadeia de posições defensivas que protegiam não apenas a cidade de Jerusa­
lém e Israel, mas também as principais rotas através de seu império.

R u p tu ra s n o im p é rio de S a lo m ã o

O controle de Salomão sobre um vasto número de cidades espalhadas


pelo reino pressupõe o controle das nações e regiões nas quais as cidades

23 Ibid., pp. 50-51. Para uma visão contrária — que os terraços devem ser identificados
com os "campos do vale do Quidron" (sadmôt qidrôn — 2 Rs 23.4) e não com Milo — ver
Lawrence E. Stager, "The Archaeology of the East Slope of Jerusalem and the Terraces of
the Kidron," JNES 41 (1982): 111-21.
24 Ver, respectivamente, Yigael Yadin, "Excavations at Hazor (1955-1958)," em The Biblical
Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman (Garden
City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, p. 199; Yadin, "New Light on Solomon's Megiddo,"
em The Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, pp. 240-43; Yohanan Aharoni, "The Stratification
of Israelite Megiddo," JNES 31 (1972): 302-11; William G. Dever, "Gezer Revisited," BA
47 (1984): 206-18.
25 Quanto às evidências arqueológicas das fortificações de Salomão no Negueve, ver Rudolph
Cohen, "The Iron Age Fortresses in the Central Negev," BASOR 236 (199): 77-78.
Salomão: D o P ináculo ao P erigo 317

estavam localizadas.26 Isto não surpreende, uma vez que nas guerras con­
tra os amonitas Davi reduziu boa parte dos reinos da Síria e Transjordânia
à condição de vassalos ou de província. E não há indicação de alguma
mudança durante a fase depressiva do reinado de Davi. Certamente o im­
pério foi passado para Salomão intacto. Além disso, as alianças feitas por
Davi com os estados amigos de seu reino, tais como Tiro, não só foram
preservadas por Salomão como também fortalecidas. Além disso, é claro,
ele cultivou importantes relacionamentos, como aquele com o Egito.

O princípio do declínio

Nos últimos anos de Salomão, o império começou a desintegrar-se ao re­


dor. Mesmo o antigo cisma entre Israel e Judá começou a ressurgir. A razão é
explícita no registro bíblico: "Pelo que o Senhor se indignou contra Salomão,
porquanto desviara o seu coração do Senhor Deus de Israel" (1 Rs 11.9). Espe­
cificamente, isto envolve pelo menos a tolerância da adoração idólatra, se não
a promoção de um sincretismo religioso comandado pelo próprio rei. As muitas
mulheres de Salomão, provavelmente adquiridas durante o curso das várias
negociações, tratados internacionais e outras alianças, exigiram que ele lhes
fizesse um local apropriado para os seus deuses. Nesse tortuoso caminho,
Salomão construiu altares nos lugares altos e outras instalações de culto a fim
de pacificá-las. Como conseqüência, o castigo de Yahweh levou à perda do
império, um juízo que Salomão viu com seus próprios olhos. Mas, por amor a
Davi, não estaria tudo perdido. Israel realmente se voltaria para Jeroboão, um
dos oficiais chefes de Salomão, mas Judá e Jerusalém permaneceriam sob o
domínio da casa de Davi para sempre.

A independência de Edom

A primeira ruptura na estrutura imperial de Salomão surgiu no leste


do mar Morto, na província de Edom. Este reino orgulhoso havia sido
tomado por Davi em algum tempo na primeira metade de seu reino,
provavelmente em conexão com as guerras amonitas. No curso daquela
conquista, Joabe implementou uma política de genocídio que destruiu a
maior parte da população masculina. Mas um dos que compunham a
família real, o príncipe Hadade, conseguiu escapar. Viajando pelo deser­
to, passando por Midiã e Parã, esse príncipe e seus seguidores chegaram
ao Egito, onde encontraram refúgio, provavelmente sob a proteção do

26 John Bright, A Hístory o f Israel, 3a ed. (Phíladelphia: Westminster, 1981), p. 214.


318 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Faraó Amenemope (993-978).27 Hadade provavelmente não alcançou


idade para se casar até o reinado de Siamum (978-959), e é provável que
tenha se casado com a cunhada deste (1 Rs 11.19). Se isto estiver correto,
percebe-se a ironia de Siamum ao dar sua filha como esposa a Salomão,
e sua cunhada para Hadade, o maior inimigo de Israel.
O retorno de Hadade para Edom deve ser datado bem no início do
reinado de Salomão, porque, de acordo com o historiador sagrado, o que
o incentivou a voltar foi a notícia das mortes de Davi e Joabe (1 Rs 11.21).
Ele esperou o melhor momento por cerca de trinta anos, pois somente
após Salomão envelhecer, Hadade, como outros adversários de Salomão,
passou a reivindicar independência. A extensão reconquistada pelos
edomitas não está clara,28 pois a próxima vez em que são mencionados
(cerca de setenta e cinco anos depois) aparecem vivendo sob um fraco
controle imposto por Jeosafá, rei de Judá (1 Rs 22.47).

Rezim de Damasco

A segunda fonte de dificuldades externas para o reinado de Salomão era


Rezim de Damasco.29 Depois de Davi vencer Hadadezer, rei de Zobá, Rezim,
que anteriormente era vassalo de Hadadezer, ganhou forças e estabeleceu
seu próprio domínio em Damasco.30 Embora Damasco fosse, pelo menos
teoricamente, uma província de Israel sob o comando de Salomão até o final
de sua vida, fica claro que Rezim foi uma constante irritação durante todos
esses anos. Finalmente ele ou seu sucessor, Tabrimmon, tirou a cidade de
Damasco de sob o controle de Israel. Isso provavelmente ocorreu pouco
depois da morte de Salomão e da divisão do reino.

A rebelião de feroboão

O terceiro instrumento registrado da punição de Yahweh foi um homem


chamado Jeroboão, filho de Nebate, um dos mais confiáveis e importantes

27 Green, "Solomon and Siamum," JBL 97 (1978): 363, n. 49.


28 Pode ser que, conforme B. Oded, Hadade readquiriu o firme controle de Edom, mas não
da região do Golfo de Acaba ("Neighbors on the East," em World Histoty of the Jewish
People, vol. 4, parte 1, The Age of the Monarchies: Political History, editado por Abraham
Malamat [Jerusalem: Massada, 1979], p. 254).
29 Para a sugestão de que Rezon é idêntico a Hezion, fundador da dinastia damascena, ver
Merrill F. Unger, Israel and the Aramaeans of Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980,
reedição), p. 57.
30 Ibid., p. 54.
Salomão: D o P ináculo ao P erigo 319

oficiais da corte salomônica. O historiador informa que no processo de cons­


trução de Milo, em Jerusalém, Salomão encontrou-se com o jovem Jeroboão,
o qual impressionou tanto ao rei por suas habilidades que rapidamente foi
promovido ao cargo de supervisor dos trabalhadores no distrito de Efraim
(1 Rs 11.27,28). Yahweh também havia notado Jeroboão. Quando Salomão
começou com a apostasia, o profeta Aías, de Silo, um certo dia chamou
Jeroboão à parte e disse-lhe que dez tribos de Israel se separariam do reina­
do de Davi e que ele, Jeroboão, havia sido escolhido por Yahweh para ser
seu líder. Essas informações chegaram aos ouvidos de Salomão, e Jeroboão,
embora aparentemente inocente de qualquer pretensão política, teve de fu­
gir para o Egito. O rei egípcio na ocasião era Shoshenq (945—924), da 22a
Dinastia, conhecido por sua habilidade governamental, e que ainda causa­
ria sérios problemas a Judá e Israel cinco anos depois da morte de Salomão.
Jeroboão ficou com Shoshenq até a morte de Salomão, voltando depois para
tornar-se o primeiro rei do reino do norte de Israel.

A fo rm a d e g o v e rn o de S a lo m ã o

Quatro esferas de influência política

A pátria
Surge então a pergunta: pode o termo império ser aplicado à hegemonia
israelita do décimo século?31 Se por "império" entende-se uma vasta exten­
são territorial, não. Mas, se o significado for uma relativa expansão territorial
que impõe um domínio sobre países e povos, incorporando-os ao estado
dominante, então os reinos de Davi e Salomão enquadram-se perfeitamen­
te na descrição.32 Porém, uma linha de raciocínio frutífera poderia conside­
rar as várias esferas de influência política que Davi e Salomão exerceram. A
primeira é a própria terra. Israel, sob o domínio de Davi, conseguiu fazer a
transição política de um agrupamento desunido e, muitas vezes, isolado
uns dos outros, para uma nação definida, caracterizada por um forte gover­
no central, e uma presença diplomática e militar unificada entre as nações

31 Quanto aos termos descritivos para as várias fases do estado israelita e suas ramifica­
ções sócio-políticas, ver a obra de Malamat, "A Political Look," em Studies in the Period
of David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, pp. 192-97.
32 Um estudo que trata da profundidade do termo "império" foi feito por Carol L. Meyers,
"The Israelite Empire: In Defense of King Solomon," Michigan Quarterly Review, 22 (1983):
415-16.
H istória de I srael no A ntigo T estamento

do mundo. Mas Israel sob Davi e Salomão estava geograficamente


coextensivo aos antigos territórios das tribos, ou seja, a nação ocupou ape­
nas aquela área que havia sido determinada para as tribos na época da con­
quista. Histórico e escatologicamente, o Antigo Testamento fala de um Isra­
el que se expandirá para além de suas fronteiras tribais, mas isso parece
nunca ter sido o caso no período da monarquia unida.

As províncias
Sob o domínio de Salomão, Israel não incorporou formalmente, sob
sua jurisdição, as terras que estavam fora de suas fronteiras tradicionais.
Salomão herdou de Davi um complexo de províncias consistindo em rei­
nos e estados imediatamente contíguos a Israel. Esses incluíam Damasco,
Amom, Moabe, Edom e outros principados menores. Como províncias,
tais áreas não eram consideradas partes integrais da terra, mas, apesar
disso, perdiam sua soberania nacional e ficavam sob o controle de Salomão,
por meio de governadores ou outros subordinados. As províncias eram
obrigadas a pagar tributos e taxas, e esperava-se delas que defendessem
Israel contra as hostilidades externas. Em troca, podiam esperar a prote­
ção e os benefícios do governo central.33

Estados vassalos
A terceira esfera de influência política, e a que melhor define o termo
império, tornando-o aplicável ao Israel de Salomão, foi o complexo de esta­
dos vassalos mais distante e menos rígido. Essas nações clientes — inclu­
indo Zobá, Hamate, Arábia e possivelmente a Filístia — foram trazidas
para debaixo do domínio de Israel por meio da diplomacia internacional
ou mediante a força militar. Contudo, seja por um ou outro meio, tais esta­
dos vassalos possuíam certo grau de autonomia, incluindo governantes
nativos e política fiscal interna. Eram obrigados a reconhecer a suserania
do rei de Israel, providenciar os pagamentos das taxas de bens e serviços
ao rei em datas definidas em um calendário e, acima de tudo, manter a
lealdade ao governo central em quaisquer circunstâncias, especialmente
em tempos de guerra. Salomão, o Grande Rei, responsabilizava-se por
defender as áreas do seu império e fornecer apoio quando necessitassem.34

33 Albrecht Alt, Essays on Old TestamentHistory and Religion (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1968), pp. 284-97.
34 Detalhes sobre Salomão como o Grande Rei que exercia autoridade sobre um amplo
sistema de estados vassalos são, na realidade, muito esparsos no registro bíblico, mas
S.-.lomão: D o P ináculo ao P erigo 32 1

Estados aliados
Finalmente, a política imperial de Salomão também incluía uma rede de
tratados de mútuo benefício com potências próximas e mesmo distantes de
seu reino, com quem ele se ligaria em termos de amizade e cooperativismo.
Esses tratados reconheciam a igualdade das partes contratantes e normal­
mente continham provisões para mútua defesa, comércio, tráfego livre, ex­
tradição ou semelhantes. O melhor exemplo conhecido nas Escrituras é o re­
lacionamento entre Salomão e Hirão, rei de Tiro.35 Nenhum dos governantes
estava subordinado ao outro, e as provisões acordadas beneficiariam ambas
as partes. Tiro providenciou homens e materiais para os vultuosos projetos
de construção de Salomão, ao passo que Israel enviou a Hirão navios cheios
de alimentos. Mais tarde Salomão cedeu vinte cidades da Galiléia a Hirão.
Embora Hirão não houvesse ficado satisfeito, pagou ainda assim 120 talentos
de ouro por elas (1 Rs 9.10-14). Os fenícios — sem dúvida como uma expres­
são da validade de seu tratado — também supriram Israel com marinheiros
para a marinha mercante israelita (1 Rs 9.26-28).36
No início de seu reinado Salomão também fez tal acordo com o Egito. O
pacto foi ratificado pelo casamento de Salomão com a filha de Siamum e
por seu dote: a cidade de Gezer. Não se sabe o que Salomão deu em retorno,
embora possa ter sido não mais do que proteção à fronteira nordeste do
Egito. O documento também continha cláusulas relativas ao comércio, pois
Salomão comprou carruagens do Egito, as quais em seguida exportou para
os hititas e reis arameus ao norte. Contudo, o tratado não devia ter uma
cláusula a respeito de extradição, pois Jeroboão fugiu para o Egito e lá per­
maneceu em segurança até a morte de Salomão (1 Rs 11.40). Mas também é
possível que naquele tempo as relações pacíficas entre Israel e Egito já tives­
sem sido rompidas. Certamente estavam nos últimos dias de Shoshenq, pois
foi desferida uma forte invasão nos territórios de Judá e Israel.

Administração interna

Há pouca informação acerca de como se processava a administração


imperial no dia-a-dia, mas o registro refere-se a uma organização e buro-

tal relacionamento pode ser admitido sobre as bases de estruturas semelhantes no anti­
go Oriente Médio. Ver George E. Mendenhall, "Covenant Forms in Israelite Tradition,"
em The Biblícal Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr. e David Noel
Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1970), vol. 3, pp. 28-32.
35 Dennis J. McCarthy, Old Testament Covenant (Atlanta: John Knox, 1972), p. 43.
36 Jack M. Sasson, "Canaanite Maritime Involvement in the Second Millenium B.C.," fAOS
86 (1966): 126-37.
322 H istória de I srael no A ntigo T estamento

cracias em Israel.37 Quase simultaneamente à ascensão ao trono de Israel,


Salomão teve de tomar medidas enérgicas para solidificar sua posição
mediante várias decisões administrativas. Essas incluíram a substituição
do sacerdote Abiatar pelo sacerdote Zadoque, e a escolha de Benaia para
assumir o comando geral do exército. Entre os seus oficiais superiores es­
tão os secretários, o escrivão, o supervisor dos oficiais dos distritos, o con­
selheiro pessoal do rei, o chefe do pessoal que trabalhava no palácio, e o
diretor dos trabalhos forçados.
Os oficiais dos distritos eram, na verdade, governadores cujas jurisdi­
ções podem ser mais ou menos classificadas com o mesmo significado de
áreas tribais. Cônscio da força da tradição, Salomão não combateu as dis­
tinções existentes entre uma tribo e outra, embora soubesse que a perma­
nência desses isolamentos apenas serviriam como obstáculos para o cres­
cimento de uma unidade, impedindo que Israel constituísse uma nação. A
tarefa de Salomão era, sem dúvida, difícil, pois teria de desenvolver um
sentimento de coletividade e nacionalidade, mediante a centralização do
governo, sem com isso ofender os antigos ideais das tribos.
A solução encontrada foi dividir a nação em doze distritos adminis­
trativos, preservando assim a identidade das tribos e, ao mesmo tempo,
os doze meses do ano.38 Cada um dos distritos estava sob a supervisão
de um governador (1 Rs 4.7-19) que se reportava diretam ente ao
supervisor dos oficiais dos distritos. Cada distrito tinha a responsabili­
dade de prover os gêneros alimentícios para o governo central por um
mês inteiro todos os anos. Quando havia a necessidade de se arregimentar
soldados dentre as tribos, ou quando os projetos de construção civil exi­
giam um número maior de trabalhadores, havia uma convocação geral,
provavelmente obedecendo a critérios de quantidade de população, sem
estar relacionado à rotatividade anual. Por exemplo, quando Salomão
recrutou 180.000 homens para seus projetos civis, ele os chamou dentre
todos os que constituíam seu reino, sem levar em conta qualquer afiliação
tribal (1 Rs 5.13-15).
Entretanto, havia uma distinção entre os israelitas convocados para um
serviço temporário e os não-israelitas que realizavam trabalhos forçados
permanentemente (1 Rs 9.15-22). Estes eram os habitantes que sobraram

37 S. Yeivin, "Administration," em World History of the Jewish People, vol. 5, pp. 147-71.
38John Bright, "The Organization and Administration of the Israelite Empire," em Magnalia
Dei, the Mighty Acts of God: Essays on the Bible and Archaeology in Memory of G. Ernest
Wright, editado por Frank M. Cross et at. (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1976), pp. 193­
208; de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, pp. 133-36.
S lomão: D o P ináculo ao P erigo 323

das nações autóctones da terra de Canaã. Sem estarem sob o pacto da lei,
não desfrutavam dos direitos de livres cidadãos do reino, e eram os pri­
meiros candidatos a todo tipo de trabalho requerido pelo rei. Os israelitas,
por outro lado, serviam permanentemente apenas no serviço militar —
talvez na reserva ou como profissionais — e como supervisores dos traba­
lhadores engajados nos projetos de construções civis.39

Os distritos administrativos

Já se mencionou que os doze distritos correspondiam basicamente às


áreas ocupadas pelas doze tribos, mas os limites são debatidos até hoje e
não podem ser definidos. O historiador forneceu algumas informações;
então é preciso esforçar-se para, pelo menos, ter uma idéia geral dos limi­
tes e de suas implicações na história de Israel.40
O primeiro dos distritos é conhecido como "a região montanhosa de
Efraim" e pode ser considerado basicamente idêntico à tribo de Efraim.
O segundo ficava a oeste de Judá e Benjamim, na região que original­
mente pertencia aos filhos de Dã. O terceiro distrito, "a terra de Hefer,"
estendia-se pela costa do Mediterrâneo entre Jope, na direção sul, e o
Vadi Shihor, no norte. Portanto, sua situação geográfica correspondia ao
oeste de Efraim e Manassés teoricamente, mas na prática esteve sob o
controle cananeu até o tempo de Davi e Salomão. O quarto distrito abran­
gia toda planície costeira ao norte de Hefer, até que englobava o monte
Carmelo. Essa região tinha sido parte de Manassés e Zebulom mas, como
no caso de Hefer, permaneceu na maioria dos anos sob a dominação dos
cananeus. O quinto distrito estendia-se irregularmente pelo Megido, no
noroeste, até Bete-Seã, no leste, e Jokmeam, a sudeste. Este era essencial­
mente o lado mais ocidental de Manassés, com exceção das regiões cos­
teiras da tribo, que não foram incluídas.
O sexto distrito, centralizado em Ramote-Gileade, era uma enorme área
na Transjordânia que ocupava quase totalmente as terras entre os rios
Jaboque e o Yarmuk, desde 16 quilômetros ao leste do Jordão até o interior
dos vastos desertos orientais. Basicamente, pode-se dizer que esse distrito
se comparava ao antigo lado oriental da tribo de Manassés. O sétimo dis­
trito também se situava na Transjordânia, correndo toda a extensão entre
o mar de Quinerete e o mar Morto, ficando a oeste do reino dos amonitas.

39 Soggin, "Compulsory Labor Under David and Solomon," em Studies in the Period of
David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, p. 266.
40 Ver o interessante gráfico feito por de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, p. 134.
324 H istória de I srael no A ntigo T estamento

O oitavo estava para o norte e consistia na área original destinada à tribo


de Naftali e no território conquistado pelos filhos de Dã.
O nono distrito estava ao ocidente e incluía todo o território de Aser,
e a parte de Zebulom não conquistada pelo quarto distrito. Foi deste
nono distrito que Salomão cedeu algumas cidades para Hirão (1 Rs 9.11),
tornando-se toda a costa ao norte do Carmelo um território fenício.41 O
décimo distrito era virtualmente o mesmo da tribo de Issacar, estenden­
do-se para o vale de Jezreel, ao oriente, e para o norte de Bete-Seã. O
décimo primeiro era coextensivo com Benjamim mas não incluiu a cida­
de de Jerusalém. O décimo segundo estava na Transjordânia, ao sul de
Gileade e Amom, e ao norte do rio Arnom, fronteira com Moabe. Basica­
mente, este era o mesmo território de Rúben.
Como é possível ver, os limites originais das tribos foram mantidos
quando houve a distribuição dos distritos, embora houvesse novos distri­
tos sendo criados em áreas que haviam estado sob controle cananeu ou de
outra força exterior. Vários outros aspectos dos distritos de Salomão pre­
cisam ser observados. Primeiro, nenhuma tentativa foi feita para incluir a
Filístia no plano, embora Salomão tivesse poderio militar suficiente para
conquistá-la e incorporá-la como parte de seu reino. E ele teria ampla base
teológica para fazê-lo, porque a Filístia ficava exatamente nos limites da
terra prometida aos patriarcas e a Moisés. Pode ter sido por razões práti­
cas que Salomão preferiu coexistir pacificamente com a Filístia a gastar
suas energias e recursos para manter esse recalcitrante e ambicioso povo à
força debaixo de seu controle.42
Segundo, é impossível não perceber o desaparecimento das tribos de
Dã e Zebulom como entidades distintas. Não há como saber o motivo,
mas parece que, no caso de Dã, o rei Salomão deliberou eliminá-la ou
incorporá-la em Naftali, a fim de neutralizar a tendência ao paganismo
que vinha caracterizando a tribo desde os primeiros dias dos juízes.
O terceiro fato foi a transferência da faixa costeira de Aser de Israel
para a Fenícia.43 A única explicação racional para isto é uma aparente ne­
cessidade de caixa da parte de Salomão. Após vinte anos de construções,

41 Quanto ao problema da fronteira geral entre Fenícia e Israel, assim como a transferência
das cidades em particular, ver B. Oded, "Neighbors on the West," em World History of
the Jeioish People, vol. 4, parte 1, pp. 234-35.
42 Oded, "Neighbors on the West," p. 239, é de opinião que a Filístia era, pelo menos, um
estado tributário quando Salomão reinava em Israel.
43 Herbert Donner, "The Interdependence of Internai Affairs and Foreign Policy during
the Davidic-Solomonic Period (with Special Regard to the Phoenician Coast)," em Studies
in the Period ofDavid and Solomon, editado por Tomoo Ishida, pp. 207-8.
326 H istória de I srael no A ntigo T estamento

faltou-lhe recursos financeiros para pagar toda a madeira e o ouro que


Hirão e o rei da Fenícia haviam providenciado. Só o ouro avultava a 120
talentos. Hirão ficou insatisfeito com o negócio, mas parece que aceitou as
cidades, pelo menos por pouco tempo.
O mais notável de todo esse fato é que Judá e Jerusalém não foram
incluídas no processo de designação dos distritos.44 Isto implica em que
Jerusalém e seus arredores foram considerados um distrito federal isen­
to das obrigações determinadas para as demais tribos. Está claro que
havia uma linha de demarcação entre Israel e Judá pelos comentários do
historiador: "Judá e Israel eram tão numerosos quanto a areia da praia"
(1 Rs 4.20) e "Judá e Israel habitavam seguros, cada um debaixo da sua
videira, e debaixo da sua figueira" (1 Rs 4.25). A isenção de taxas, traba­
lhos forçados e outras obrigações pode ser compreendida à luz da
ancestralidade judaítica de Salomão, mas também pode ter sido um fa­
tor decisivo que contribuiu para a divisão do reino.45 Quando Roboão,
filho e sucessor de Salomão, decidiu aumentar ainda mais a carga do
povo, ou seja, os serviços e impostos, ocasionou um clamor desesperado
das tribos do norte:

Que parte temos nós com Davi?


Não há para nós heranças no filho de Jessé!
As vossas tendas, ó Israel! Cuida agora
da tua casa, ó Davi (1 Rs 12.16).

E óbvio que as reclamações dos israelitas não se baseavam apenas no


aumento de serviço ou impostos, mas também nos encargos discrimi­
natórios. O silêncio de Judá com respeito a essa opressão é uma evidência
de que não eram vítimas.

44 Roland de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, p. 136, sugere que Judá provavelmente está sendo
mencionada em 1 Reis 4.19b ("o distrito"; cf. RSV: "E havia um oficial na terra de Judá").
Contudo, não há base para esta opinião, pois a designação de Judá, mencionada pelo
historiador na época de Salomão pode perfeitamente estar associada às divisões feitas
por Josué 15.21-62 muitos anos antes.
45 Simon J. De Vries sugere que havia um sistema, não registrado, de taxação e de alista­
mento para Judá — de outra forma teria havido, inevitavelmente, algum tipo de relato
mencionando a insatisfação, inquietação e revolta (1 Kíngs, Word Biblical Commentary
[Waco: Word, 1985], pp. 71-72). Mas este é precisamente o ponto! O tratamento
discriminatório foi o principal motivo para a ruptura e divisão do reino. Ver J. Alberto
Soggin, A History of Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), pp. 82-83.
5U_<;a m o : D o P ináculo ao P erigo 327

A política fiscal

O problema da taxação leva-nos a considerar a base fiscal do império


de Salomão.46 O governo central possuía seus recursos oriundos do traba­
lho forçado e dos rendimentos dos próprios cidadãos. Entretanto, nada é
dito acerca do valor ou do percentual das taxas impostas sobre as fontes
israelitas. Embora o peso parecesse excessivo ao povo, como sempre são
as taxas, a vasta riqueza de Salomão não poderia basear-se apenas nos
impostos domésticos.
A resposta está nos impostos e tributos pagos pelas províncias e esta­
dos vassalos, e na magistral capacidade de Salomão de fazer negócios
internacionais. Além disso, em Israel havia um grande número de ho­
mens escravos, remanescentes cananeus, que viviam em vários enclaves
pela terra. O trabalho forçado desses escravos permitia aos israelitas vol­
tar-se para as ciências e para o comércio internacional. Assim surgia um
fenômeno em Israel — uma afluente classe média que podia empreen­
der tempo e recursos em novas maneiras criativas de desenvolver a cul­
tura e o comércio.47
Algo do confortável estilo de vida conquistado através da política de
Salomão é captado pelo historiador: "...comendo, bebendo e alegrando-
se" (1 Rs 4.20). Então, como se para explicar o modo pelo qual este estado
se concretizou, ele passa a discorrer acerca do domínio de Salomão sobre
toda a terra, desde o Eufrates até o Egito, um domínio que exigiu de seus
estados-clientes um pagamento de taxas e tributos durante toda a sua vida.
Especificamente, e como exemplo, somente as necessidades diárias do pa­
lácio consistiam em 30 coros de flor de farinha, 60 coros de farinha, 10 bois
cevados, vinte bois de pasto e 100 carneiros. Parte dessa quantidade de
alimentos era fornecida pelas tribos de Israel, mas a maior parte vinha dos
tributos impostos aos estados estrangeiros.
As exigências pessoais de Salomão, tão gigantescas quanto possam pa­
recer, significavam uma ínfima parcela de tudo o que entrava nos cofres
do reino. Todos os anos, diz o historiador, entrava em Israel cerca de 666
talentos de ouro, além da quantia que a nação recebia dos tributos e do
comércio (1 Rs 10.14,15). Essa vultosa importância vinha apenas das taxas
e dos tributos. Não é de espantar que o rei Salomão pudesse esbanjar tan­

46 de Vaux, Ancient Israel, vol. 1, pp. 140-41.


47 Hanoch Reviv, "The Structure of Society," em World History of the Jewish People, vol. 5,
pp. 138-43.
328 H istória de I srael no A ntigo T estament:

to esplendor em Jerusalém e em todo o reino, nem causa surpresa que


visitantes do oriente chegassem para ver a magnificência de Salomão com
os próprios olhos.

Comércio internacional

O comércio internacional era outra principal fonte de prosperidade de


Israel. Provavelmente era realizado com as nações sob o seu controle polí­
tico, mas o registro comprova operações comerciais entre Israel e nações
com as quais ele mantinha um relacionamento pacífico. Salomão servia
como um corretor nessas negociações internacionais. Aproveitando-se da
localização estratégica de Israel, que ficava no caminho das rotas comerci­
ais, ao leste do Mediterrâneo, Salomão fez de Israel uma câmara de com­
pensação, por onde as mercadorias internacionais passavam. Estas eram
taxadas enquanto entravam e saíam dos limites de Israel. Toda a quantia
aumentava o tesouro da nação.
Este processo pode ser visto no tratado entre Hirão de Tiro e Salomão,
no qual Hirão providenciaria madeira para as construções de Salomão e,
em troca, receberia grãos e azeite. Esta parece ter sido uma negociação
justa, sem nenhuma vantagem especial para alguma das partes. Israel não
tinha madeira suficiente para dar continuidade aos seus programas de
construção, e Tiro estava imprensada entre o mar e as montanhas, depen­
dendo da importação de gêneros alimentícios.48 Alguns anos mais tarde,
com o término das construções, o acordo precisou ser renegociado, pois
parece que Salomão não pôde mais continuar o pagamento das madeiras
importadas de Hirão. Como isto aconteceu, em vista da riqueza de Israel,
não se pode esclarecer, a menos que tal riqueza tenha sido acumulada
após o contrato em questão. De fato, o cronista parece supor esta hipótese.
Ele diz que depois de vinte anos de construção, Salomão "edificou [re­
construiu] as cidades que Hirão lhe tinha dado, e fez habitar nelas os fi­
lhos de Israel" (2 Cr 8.2). Isto pode significar que Salomão, pouco depois
de ceder essas cidades a Hirão, comprou-as de volta, em razão de uma
repentina mudança em seus haveres.
De qualquer forma, Hirão não se preocupou com o fato de Salomão
recobrar as cidades, pois também ele fornecia marinheiros para servir
na marinha mercante de Israel (1 Rs 9.26-28).49 Operando na base de

48 Oded, "Neighbors on the West," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 233.
49 Os fenícios eram, é claro, marinheiros reconhecidos. Ver Oded, "Neighbors of the West,"
pp. 228-30.
S klúmão: D o P ináculo ao P erigo 329

Eziom Geber, o porto edomita no Golfo de Acaba, a frota percorreu


gTandes distâncias à procura de ouro, madeira de sândalo, pedras pre­
ciosas, marfim, macacos e babuínos (1 Rs 10.11-12,22). As rotas incluí­
am Ofir (provavelmente na baixa Arábia50 ou na região centro-leste da
África) e Társis (possivelmente Sardenha51 ou mesmo a Espanha). Não
é impossível que as frotas de Salomão tenham alcançado a longínqua
índia.
O comércio terrestre era feito particular mente sobre cavalos e carrua­
gens.52 O próprio Salomão possuía mil e quatrocentas carruagens e doze
mil cavalos nas cidades destinadas a guardá-los, e em Jerusalém. Mas,
sem dúvida, negociou muitos deles, pois ele servia como intermediário
na compra e venda dos bens mais valorizados da época. Foram os hicsos
e os hurrianos que introduziram a carruagem no mundo do Oriente Mé­
dio, e sua popularidade foi cada vez mais difundida pelos cananeus e
filisteus.53 Somente na época de Davi passaram os israelitas a utilizar
esse equipamento sofisticado de guerra. Na época de Salomão, ironica­
mente, todo o comércio de carruagens e cavalos estava sob o controle de
Israel. A razão é que os egípcios produziam as melhores carruagens (1
Rs 10.28,29).54 Cada cavalo era estimado em 150 shequels de prata, e
cada carruagem em 600 shequels. A mercadoria seria comercializada com
os hititas e com as cidades-estados araméias do norte da Síria. Porém, no
centro estava a nação de Israel, e é evidente que Salomão conseguiu um
grande lucro com a situação.
Outra fonte de renda provinha à parte dos tributos ou comércio. Con­
sistia em presentes voluntários de monarcas abastados que visitavam o
reino de Salomão, oriundos de todas as partes do mundo conhecido da
época. A visita mais celebrada dentre todas é a da rainha de Shebá (mais
tarde conhecida como Sabá); seu reino localizava-se no sudoeste da pe­

50 Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 15.


31 Ibid.
32 Yutaka Ikeda, "Solomon's Trade in Horses and Chariots in Its International Setting," em
Studies in the Period of David and Solomon, editado por Tomoo Ishida, pp. 215-38.
33 Ibid., pp. 216-18.
34 No texto massorético está escrito mimmisrãyim ("do Egito"), mas muitos estudiosos su­
gerem a emenda mimmusri ("de Musri"), baseados nas várias referências do antigo Ori­
ente Médio a um local chamado Musri (Gray, l & II Kings, pp. 268-69). Contudo, não há
qualquer base textual para essa idéia, e Ikeda ("Solomon's Trade," pp. 215, 227-29) tem
argumentado não apenas que a própria existência de um Musri afora o Egito é duvido­
sa, mas também que o Egito de fato tornou-se um centro de criação de cavalos nos
tempos pré-Salomônicos.
330 H istória d e I srael no A ntigo Testaments

nínsula Arábica, a mais de mil e novecentos quilômetros distante de Jeru­


salém.55 Possuidora de uma riqueza fabulosa, esta nobre mulher ouviu
acerca da sabedoria de Salomão e de sua ligação com Yahweh, de forma
que decidiu visitá-lo, com todo tipo de bens raros e preciosos, incluindo
especiarias, pérolas e 120 talentos de ouro. Salomão a tratou bem, embora
o registro não especifique os detalhes. Certamente tais visitas não apenas
acrescentavam mais fortunas aos tesouros de Salomão, mas também o fa­
ziam reconhecido no mundo antigo do Oriente Médio. Pode-se afirmar
sem receio de contradição que Israel, sob o domínio de Salomão, alcançou
o pináculo do poder e prestígio internacionais. Juntamente com a Assíria
e com o Egito, Israel certamente poderia reivindicar ser uma das três gran­
des potências do século X.

A p o s ta s ia m o ra l e e s p iritu a l

As proezas militares, políticas e econômicas de Israel tornaram-se ape­


nas um verniz que cobria a degradação social, cultural e espiritual dos
últimos anos de Salomão. O registro bíblico atesta inequivocamente a con­
duta justa e íntegra de Salomão e seu reinado no princípio, mas revela a
profunda mudança ocorrida no quadro quarenta anos mais tarde.
Salomão herdara de seu pai a responsabilidade de governar e, mais
importante ainda, de ser o líder espiritual do povo. A primeira ele cum­
priu razoavelmente bem — ou, no mínimo, efetivamente. A segunda, por
outro lado, foi um fracasso. Isto ainda é mais trágico porque, em sua mo­
cidade, Salomão tomou precaução contra esta eventualidade. Ele iniciou
o seu reinado com uma santa convocação em Gibeão, e lá teve um encon­
tro com o Deus vivo (1 Rs 3.4,5). Quando indagado sobre o seu maior
desejo, Salomão pediu sabedoria a fim de conduzir e julgar o povo. Ele foi
o responsável pela construção do templo, e por sua gloriosa compleição.
Depois de mais de vinte anos Deus lhe apareceu pela segunda vez, e rea­
firmou suas promessas contidas no pacto (1 Rs 9.1-9). Deus comunicou a
Salomão sua satisfação com o templo e o desejo de estabelecer seu nome
naquele lugar para sempre. Por outro lado, sua bênção contínua sobre a
casa real e sobre o templo seria condicional: se Salomão permanecesse fiel
e obediente, a bênção não seria interrompida; se viesse a desobedecer, seu
reinado, o templo, e toda a nação seriam lançados fora da presença de
Yahweh, até que Ele, por sua infinita graça, os restaurasse novamente. A

Gus Van Beck, "Frankincense and Myrrh," em The Biblical Archaeologist Reader, vol. 2,
p. 125. '
S alomão: D o P ináculo ao P erigo 331

história subseqüente revela que exatamente isto aconteceu. Salomão e seus


descendentes violaram a aliança, de modo que Israel e Judá sofreram as
conseqüências da derrota e deportação.
A deterioração espiritual de Salomão (e de Israel) não aconteceu da noite
para o dia, é claro, e nem se pode dividir o reino em um período de justiça e
um período de rebelião. É preciso ver o processo como um afastamento
gradual do padrão de santidade com o qual ele havia se comprometido
(pelo menos idealmente) no início de seu reinado. Parece que o jovem rei,
embora abençoado com as mais nobres intenções, achou-se preso no vórtice
das circunstâncias históricas que fugiam ao seu controle. O livro de
Eclesiastes descreve sucintamente o que tais conflitos representavam.
O autor do livro dos Reis deixa escapar que o rei Salomão assumiu
alguns compromissos no princípio que já apontavam para seu futuro com­
portamento e atitudes.56 Ele casou-se com a filha de faraó; embora tenha
sido um casamento de conveniência para cumprimento de fins políticos,
esta atitude violava o código de conduta que se esperava de um eleito,
filho real de Yahweh (Dt 17.14-17). Além disso, embora amasse Yahweh e
andasse segundo seus estatutos, Salomão adorou nos lugares altos que,
com exceção do que estava em Gibeão, eram tabu. O historiador também
deixa claro a ligação entre os casamentos ilícitos de Salomão e sua adora­
ção a outros deuses. Ele informa que Salomão amou muitas mulheres es­
trangeiras além da filha de faraó, e que elas o encorajaram à apostasia e ao
sincretismo (1 Rs 11.3).
A ilícita poligamia não iniciou tarde na vida de Salomão. Há evidência,
por exemplo, de que Salomão já havia se casado com uma mulher pagã,
chamada Naamá, amonita, antes de seu casamento com a filha do faraó.
De fato, ele casou-se com Naamá antes mesmo de tornar-se rei, pois ela foi
a mãe de seu filho Roboão, que era da idade de quarenta anos quando
assumiu o trono de seu pai, após este reinar quarenta anos (1 Rs 14.21).
Além do mais, Salomão tomou para si mulheres de Moabe, Edom, Sidom
e dos hititas, embora tal comportamento fosse proibido em Israel (Êx 23.31­
33; 34.12-16). Gradualmente desviaram seus corações de Yahweh até que
a apostasia os conduziu à adoração de Astarote, Moloque e Camos, junta­
mente com Yahweh. Ele até providenciou lugares nos altos montes, onde
pudesse com suas mulheres participar de rituais pagãos associados a tais

56 Quanto à omissão do cronista a respeito dessas atitudes negativas de Salomão e as ra­


zões teológicas para ter agido assim, ver Raymond B. Dillard, "The Chronicler's
Solomon," WTJ43 (1981): 290-92; Roddy L. Braun, "Solomonic Apologetic in Chronicles,"
JBL 92 (1973): 503-16.
332 H istória de I srael no A ntigo T estamente

divindades. Foi essa mistura de poligamia física e espiritual que trouxe


sobre Salomão e o reino o julgamento de Yahweh, um julgamento que
ficou registrado historicamente na separação irremediável da nação em
duas partes.

S a lo m ã o e a n a tu re z a d a sa b e d o ria

Toda essa decadência moral e espiritual aconteceu a despeito de Salomão


ter sido abençoado por Deus com notável sabedoria, sendo conhecido em
todo o mundo antigo como o homem mais sábio dentre os mortais (1 Rs
4.31). Como pôde um homem tão dotado por Deus ser tão insensível à voz
do Espírito? A resposta encontra-se na natureza da sabedoria bíblica.
É impossível aqui entrar no complexo assunto acerca da sabedoria,
mas pelo menos um breve comentário precisa ser feito.57 Primeiro, é pre­
ciso reconhecer que em Israel e em todo o antigo Oriente Médio, a sabe­
doria não era sinônimo de conhecimento, educação ou ciência, mas esta­
va relacionada à maneira certa de viver, uma habilidade possuída ape­
nas por quem conhecia e temia a Deus. Esta é a razão por que o Antigo
Testamento enfatiza a dicotomia entre o sábio e o louco (i.e., entre o justo
e o pecador).58
Isto não significa, entretanto, que alguém poderia tornar-se sábio sem
atentar para os fatos e os fenômenos. Evidências da sabedoria de Salomão
podem ser vistas nos três mil provérbios que compôs, além de mil canções
que tratavam de assuntos seculares, como árvores, animais, pássaros e
peixes (1 Rs 4.32,33). A sabedoria implícita aqui não está apenas no enten­
dimento da botânica ou zoologia, mas na perspicácia em reconhecer que
esses organismos, como toda a criação, são a obra de Deus e que, em suas
características e hábitos, os propósitos de Deus para a vida em geral po­
dem ser discernidos.59
Utilizando símiles e metáforas retiradas diretamente da natureza,60 a
literatura de sabedoria do Antigo Testamento também procurava pene­
trar o caráter e personalidade humana. Mesmo sem os benefícios da psi­
cologia e psiquiatria moderna, ela compreendeu os impulsos da natureza
básica dos seres humanos e suas emoções, podendo oferecer conselhos

57 Para um estudo produtivo, ver James L. Crenshaw, Old Testament Wisdom: An Introduction
(Atlanta: John Knox, 1981).
58 Ibid., pp. 24, 31.
59 Ibid., pp. 50-52.
60 Delbert R. Hillers, "The Effective Simile in Biblical Literature," JAOS 103 (1983): 185-85.
S ‘ L o .u  o : D o P ináculo ao P eriqo 333

baseados na moral e ética da própria natureza de Deus. Enquanto os tex­


tos dispõem de vasta ilustração, o melhor exemplo pode ser visto na nar­
rativa referente às duas prostitutas que reivindicavam o mesmo bebê, e
levavam a questão até Salomão (1 Rs 3.16-28). Em uma das mais belas
expressões da verdadeira sabedoria do Antigo Testamento, o rei ordenou
que a criança fosse dividida ao meio, e cada mulher recebesse uma meta­
de. A verdadeira mãe, movida pelo genuíno instinto maternal, clamou ao
rei a fim de que a criança fosse deixada viva. A decisão sábia de Salomão
não foi achada em um manual ou nos muitos anos de experiência de vida,
mas vinha do entendimento fundamental do caráter de Deus e daqueles
que foram criados à sua imagem.
Voltando agora ao problema do desvio de Salomão em face de sua pre­
eminente sabedoria, deve-se simplesmente admitir que é possível ser sá­
bio no sentido bíblico do termo, e ainda assim falhar em viver de acordo
com suas implicações. O pecado de Salomão em multiplicar esposas e se­
guir após os seus deuses não adulterou a sua sabedoria, mas certamente
cancelou qualquer reivindicação de sua parte, para si ou para o reino, de
acordo com os seus princípios.
Finalmente, depois de quarenta anos nos quais ele viu Israel alcançar
um estado nunca antes conhecido, e que jamais o alcançaria novamente,
Salomão morreu. Pela misericórdia do Senhor ele morreu antes de ser for­
çado a ver com os próprios olhos o fruto de sua política desastrosa e extra­
viada: a ruptura do reino em duas partes irreconciliáveis.
As raízes da divisão nacional
A ocasião imediata da divisão nacional
A sucessão de Roboão
A rebelião de Israel
A ascensão de Jeroboão
O reino de Roboão
O reino de Jeroboão
A pressão das nações ao redor
A bias de Judá
Asa de Judá
Considerações cronológicas
As guerras de Asa
O novo surgim ento da Assíria
Nadabe de Israel
A dinastia de Baasa de Israel
O reino de Baasa
O reino de Elá
Omri de Israel
Josafá de Judá
Co-regência com Asa
As realizações de Josafá
Acabe de Israel
A maldade de Acabe
O ministério de Elias
As invasões de Ben-Hadade
A morte de Acabe
A ameaça da A ssíria
Os sucessores de Acabe
Acazias de Israel
Jorão de Israel
A unção de Hazael de Damasco
Jeorão de Judá
A unção de Jeú

A s ra íz e s d a d iv isã o n a c io n a l

A morte de Salomão abriu caminho para um dos mais traumáticos e


decisivos acontecimentos da longa história de Israel — a formal e perma­
nente divisão do reino entre as dez tribos do norte, que doravante passari­
am a se chamar Israel ou Efraim, e a tribo de Judá, ao sul. Embora tenha
abalado a nação psicologicamente, a divisão não deve ter causado surpre­
sa ao povo esclarecido, porque as raízes políticas e teológicas do cisma
eram profundas no passado de Israel.
336 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Já se observaram alguns sintomas de doença no povo da aliança. Isto


foi exacerbado por outros fatores, alguns dos quais fora do controle hu­
mano. Por exemplo, a própria distribuição das terras feita por Josué con­
tinha dentro a semente da separação — fronteiras naturais que, por neces­
sidade, separavam o povo. Além disso, o Jordão separava as tribos do
leste e do oeste; o resultado era um sentimento de mútua desconfiança e
alguns conflitos militares vez por outra. Semelhantemente, as chamadas
tribos da Galiléia estavam isoladas de Manassés e Efraim por causa do
vale de Jezreel. Neste caso, a separação entre elas não era tanto geográfica
quanto prática. Os cananeus, que não puderam ser expulsos de Jezreel e
outros vales e planícies, ocuparam o espaço entre o Israel norte e o central
até o reinado de Davi. Evidências do isolamento da Galiléia acharam ex­
pressão mais tarde, nos tempos do Novo Testamento.1
O mais importante, entretanto, foi o antigo e contínuo senso de bifur­
cação entre Judá e as outras tribos. Mais uma vez a geografia parece ter
exercido um papel; no mínimo proveu um habitat que permitiu o desen­
volvimento independente de cada tribo. A tribo de Judá não se comunica­
va com as tribos do norte em razão da largura e profundidade do vale de
Soreque, na região central de Israel. Ao oeste estavam os filisteus; ao sul, o
perigoso deserto do Neguebe e também as populações nômades da re­
gião, sempre hostis aos estrangeiros; ao leste, havia o mar Morto. Assim
Judá era a tribo mais isolada de Israel e, portanto, a mais sujeita ao senti­
mento de não pertinência.
Este fato é irônico, pois Judá, desde o princípio, tinha a promessa patri­
arcal de assumir a liderança política e teológica da nação. Quando Jacó
deu a bênção final a seus filhos, afirmou: "O cetro não se arredará de Judá..."
(Gn 49.10); esta é uma indicação incontestável de que a localização do rei
histórico e messiânico se acharia nesta tribo. A genealogia de Davi, no
livro de Rute e em 1 Crônicas 2.3-17, estabelece a ligação entre a promessa
patriarcal e seu cumprimento histórico e, de uma vez por todas, demons­
tra a primazia teológica da tribo de Judá sobre .as demais tribos, a despeito
das suas dificuldades geográficas.2
Durante o longo período dos juízes, emergiu uma tensão entre o
princípio teológico que preconizava a realeza de Judá e sua alienação
das tribos do norte. Um dos propósitos da conhecida trilogia de Belém,
especialmente a história de Rute, é estabelecer a cidade de Belém (e

1 Denis Baly, The Geography of the Bible (New York: Harper, 1957), p. 190.
2 Eugene H. Merrill, "The Book of Ruth: Narration and Shared Themes," Bib Sac 142
(1985): 130-41. '
338 H istória de I srael no A ntigo T estament:

portanto, Judá) como o local de nascimento da verdadeira dinastia.


Outro propósito é revelar, quase em forma de parábola, as raízes da riva­
lidade entre o remado de Saul, que estava centrado em Gibeá de Benjamim,
e a dinastia de Davi, originária de Belém. Também é particularmente no­
tória a história do levita que trouxe sua concubina belemita para Gibeá,
onde ela foi cruelmente violentada e assassinada pelos homens de
Benjamim. Longe de sentir remorso e buscar punição para os criminosos,
a tribo de Benjamim preferiu empunhar as armas e guerrear contra Judá e
as demais tribos, até ser quase aniquilada. De fato, a tribo seria eliminada
e, como conseqüência, não haveria Saul ou o seu reinado, mas isto não
ocorreu porque as mulheres de Jabes-Gileade e Siló foram forçadas a ca­
sar-se com os homens sobreviventes de Benjamim. Claramente, o propósi­
to da história é mostrar a injustiça feita contra a tribo de Judá e as inclina­
ções malignas da tribo de Benjamim.
Pelo final da era dos juízes, a polarização Judá-Israel já era um fait
accompli. O autor de Samuel diz que o exército de Saul era constituído por
homens de Israel e homens de Judá (1 Sm 11.8; 15.4; 17.52); ele também
mostra que os filisteus percebiam Judá (i.e., as forças de Davi) como uma
entidade distinta de Israel. Parte dessa percepção sem dúvida refletia o
desejo dos filisteus de separar Israel, mas também era produto de um re­
conhecimento geral de que tal divisão de fato já existia.
Qualquer dúvida ainda pendente foi eliminada quando Davi cedeu aos
pedidos de seus conterrâneos e tornou-se o rei em Hebrom, um reinado
estabelecido à parte. Mediante uma série de passos diplomáticos e estra­
tégias políticas, Davi tornou-se também o rei das tribos do norte; porém,
as negociações levaram sete anos para serem concretizadas. A aparente
unidade não passava de uma fachada, pois seu filho Absalão instigou uma
revolta, valendo-se da instabilidade entre o sul e o norte. Além disso, quan­
do Davi retornou do exílio, teve de paliar o ódio e a inveja de alguns ele­
mentos da nação antes de reivindicar a sua lealdade mais uma vez. Na
verdade, mesmo após a sua volta, ele precisou cortar uma revolução pela
raiz, comandada por um membro da facção saulida.
Embora não haja uma declaração específica do rompimento entre Isra­
el e Judá nos anos de Salomão, uma claro depoimento é feito a respeito da
isenção de Judá de todos os impostos e taxas. Como e por que o sábio
Salomão cometeria um erro assim tão grave permanece um mistério, más
provavelmente não havia outra decisão mais desastrosa e divisora para a
nação. O milagre é que a rebelião aberta do reino do norte ocorreu apenas
depois da sua morte. Foi somente a personalidade forte e diplomática de
Salomão que impediu que o caldeirão transbordasse durante o seu reino.
.4 M o.xarquia D ividida 339

Houve também o aspecto teológico na ruptura do reino.3 Os confli­


tos intertribais em Israel e as atitudes impensadas na política de Salomão
devem-se ao seu destempero espiritual: Salomão violou a aliança entre
Yahweh e Davi, uma aliança para com a qual ele, como herdeiro da di­
nastia, tinha obrigações. Especificamente, sua desobediência foi mani­
festada em seus casamentos malfeitos e em sua tolerância para com os
deuses pagãos, mas tais erros podem não ter sido os mais sérios dentre
seus pecados. O narrador afirma que o Senhor indignou-se contra
Salomão "porquanto desviara o seu coração do Senhor Deus de Israel, o
qual duas vezes lhe aparecera" (1 Rs 11.9). Salomão seguiu outros deu­
ses, o que constituía a essência da infidelidade. Por essa razão, o reino,
com exceção de Judá e Jerusalém, seria tomado de suas mãos e de seus
descendentes, e entregue a Jeroboão (1 Rs 11.11-13).

A o c a s iã o im e d ia ta d a d iv isã o n a c io n a l

A sucessão de Roboão

Jeroboão ben-Nebate, o supervisor dos trabalhos forçados do distrito


de Efraim, já havia sido informado pelo profeta Aías que seria o rei de
dez tribos de Israel (1 Rs 11.31). Uma tribo, Judá, permaneceria nas mãos
da dinastia de Davi em razão da aliança incondicional entre Yahweh e
Davi.4 Deus havia escolhido Jerusalém como seu local de habitação na
terra, e Davi e seus descendentes lá serviriam para sempre, como uma
lâmpada emitindo para o mundo a luz da radiante presença de Deus e
os seus propósitos salvíficos. Nada poderia apagá-la. A semente de Davi
poderia ser disciplinada em consequência de sua deslealdade para com
Yahweh, mas não para sempre. Em seus planos inescrutáveis, Yahweh

3 Esse é o principal argumento da chamada visão deuteronomista do livro dos Reis, que
afirma ser a preocupação fundamental dessas histórias examinar cada rei baseado na
sua conformidade ou fracasso para com a aliança e Yahweh. Ver John Van Seters, In
Search of History (New Haven: Yale University Press, 1983), pp. 311-14, 359-61.
4 Como resultado, Benjamim juntou-se a Judá, e ambas formaram uma única tribo, co­
nhecida por Judá (ver 1 Reis 12.21; 2 Cr 11.1,10; 15.2,9; Ed 4.1). É bastante significativo
que Benjamim tenha se unido à Judá para saudar Davi, que retornava do exílio na
Transjordânia (2 Sm 19.16-17). Portanto, a deserção de Benjamim para a família de Davi
pode ter ocorrido ainda nos tempos pré-Salomônicos. Quanto ao problema das dez tri­
bos deixadas ao norte e somente uma ao sul, ver Cari E Keil, The Books of the Kings
(Grand Rapids: Eerdmans, 1950), pp. 179-81; Z. Kallai, "Judah and Israel — A Study in
Israelite Historiography," IEJ 28 (1978): 256-57.
340 H istória d e I srae /, eo A ntigo T e s t â m e s

Tabela 6 Os reis da monarquia dividida

Israel Judá

Jeroboão 931 — 910 Roboão 931 — 913


Nadabe 910 — 909 Abias 913 — 911
Baasa 909 — 886 Asa 911 — 870
Elá 886 — 885
Zimri 885
Onri 885 — 874
Acabe 874 — 853 Josafá 873 — 848
Acazias 853 — 852
Jorão 852 — 841 Jeorão 848 — 841
Jeú 841 — 814 Acasias 841
Atália 841 — 835
Jeoacaz 814 — 798 Joás 835 — 796
Jeoás 798 — 782 Amazias 796 — 767
Jeroboão II 793 — 753 Uzias 792 — 740
Zacarias 753
Saium 752
Menaém 752 — 742 Jotão 750 — 731
Pecaías 742 — 740
Peca 752 — 732 Acaz 735 — 715
Oséias 732 — 722 Ezequias 729 — 686
Manasses 696 — 642
Amom 642 — 640
Josias 640 — 609
Jeoacaz 609
Jeoiakim 608 — 598
Jeoiachim 598 — 597
Zedequias 597 — 586

completaria seus propósitos eternos através de Davi, o servo escolhido


(1 Rs 11.34-39).
Salomão foi sucedido por seu filho Roboão, que reinou por dezessete
anos, de 931 a 913.5 Aparentemente ele foi o primeiro filho de Salomão,
fruto de um casamento de diplomada com Naamá, de Amom (1 Rs 14.21).
Visto que Roboão estava com quarenta anos quando se tornou rei, após
ter seu pai reinado por quarenta anos, é bastante provável que Salomão

5 Quanto às datas da monarquia dividida, ver Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers
of the Hebrew Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1965). Para um estudo elucidativo que
examina as dificuldades envolvidas na reconstrução de uma cronologia baseada nos
dados bíblicos, ver a obra de Hayim Tadmor, "The Chronology of the First Temple
Period," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, The Age of the
Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalem: Massada, 1979),
pp. 44-60; Alberto R. Green, "Regnal Formulas in the Hebrew and Greek Texts of the
Books of Kings," JNES 42 (1983): 167-80; J. Maxwell Miller, "Another Look at the
Chronology of the Early Divided Monarchy," JBL 86 (1967): 276-88.
A M onarquia D ividida 34 1

tenha se casado com Naamá durante o breve período de co-regência com


Davi. O casamento também pode ter sido realizado a fim de credenciar o
jovem Salomão ao governo da nação.
Como seu pai, Roboão também foi um polígamo. Casou-se com a neta
de Davi (portanto, sua própria prima), Maalate (2 Cr 11.18), e Maaca, filha
de Absalão.6 Roboão ajuntou dezoito mulheres e sessenta concubinas, al­
gumas das quais ele pode ter herdado de Salomão. O perfil geral de Roboão
é descrito da seguinte maneira: "E fez o que era mau, porquanto não pre­
parou o seu coração para buscar ao Senhor" (2 Cr 12.14).
O fato mais marcante acerca da sucessão de Roboão ao trono de
Salomão é que tal cerimônia ocorreu fora de Jerusalém, especificamente
na cidade de Siquém (1 Rs 12.1,2; 2 Cr 10.1). Sem levar em consideração
se a coroação deve ser entendida como uma cerimônia separada de uma
outra que já havia sido realizada em Jerusalém por Judá,7 o fato é que a
nação estava tão dividida que Roboão sentiu necessidade de ir ao antigo
centro de renovação da aliança, a fim de ganhar a confiança das tribos
do norte. Siquém foi o lugar onde Josué convocou a nação para reafir­
mar o compromisso com Yahweh. Talvez Roboão tenha achado apropri­
ado e necessário reunir-se ali novamente para consertar uma monarquia
esfacelada.

A rebelião de Israel

A fragilidade da situação é aparente pelo fato de a coroação haver se


tornado uma negociação, na qual o porta-voz de Israel, Jeroboão, deter­
minou condições para Roboão obter o apoio do norte (1 Rs 12.3,4).
Salomão, disseram eles, tratou-os com severidade e injustiça. Roboão
precisava rever a situação, acenando-lhes com uma nova perspectiva.
Assim, buscou os conselheiros de seu pai,8que prontamente recomenda­

6 Há várias indicações de que este Absalão não era o mesmo filho de Davi: (a) a neta de Davi,
filha de Absalão, chamava-se Tamar (2 Sm 14.27); (b) em 1 Reis 15.2,10 está escrito Abishalom
em vez de Absalão; (c) o pai de Maaca, em outro local, é chamado de "Uriel de Gibeá" (2 Cr
13.2). Ver também Eugene H. Merril, "2 Chronicles," em The Bible Knowledge Commentary,
editado por John F. Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, p. 629.
7 Assim pensa Jacob M. Myers, II Chronicles, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1965), p. 65.
8 Abraham Malamat tem proposto que os anciãos (zeqenim) e os jovens (yeladim) não
representam grupos de idades diferentes, como se fossem sistemas políticos com duas
câmaras de votação, compostos por delegados do povo e representantes dos príncipes
("Kingship and Council in Israel and Sumer: A Parallel," JNES 22 [1963]: 247-53).
342 H istória de I sraël no A ntigo T estament :

ram-lhe ceder às exigências de Israel. Os amigos de infância, porém, su­


geriram que Roboão intensificasse ainda mais o jugo sobre o povo. Infe­
lizmente, Roboão desconsiderou a sabedoria dos anciãos e ameaçou os
súditos com trabalhos ainda mais pesados. Assim, o passo foi dado para
o julgamento de Yahweh sobre a casa de Davi, em conseqüência de sua
deslealdade.
A delegação israelita unanimemente articulou o que vinha se desen­
volvendo, mas que até aquele momento não haviam expressado — uma
declaração de independência:

Que parte temos nós com Davi?


E não há para nós heranças no filho de Jessé!
Às tuas tendas, ó Israel!
Provê agora da tua casa, ó Davi (1 Rs 12.16).

Essas palavras marcaram uma separação final, irreversível. Em uma


tentativa desesperada de reconciliação, Roboão enviou aos líderes israeli­
tas seu administrador de obras públicas, Adorão, para com eles negociar,
mas este não obteve êxito — foi apedrejado até morrer, e Roboão fugiu
humilhado para Jerusalém.

A ascensão de Jeroboão

O povo de Israel aclamou Jeroboão como monarca do recém-formado


reino.9 O rei imediatamente pôs em prática suas habilidades administra­
tivas, estabelecendo sua capital em Siquém, uma cidade considerada san­
ta por todos os habitantes de Israel. Também obteve vantagem do bom
relacionamento cultivado com o Egito durante o seu exílio sob o domínio
do Faraó Sisaque.10
Mas o rompimento final entre Judá e Israel ocorreu, é claro, median­
te o juízo de Deus, um fato constantemente repetido pelo historiador
sagrado. Na verdade, seria um esforço inútil de Roboão, ou qualquer

9 Logo depois de tomar ciência de sua escolha como o futuro rei das dez tribos do norte,
Jeroboão fugiu de Salomão e encontrou refúgio com Sisaque, fundador da 22a Dinastia (1
Rs 11.40). Ver Pierre Montet, Egypt and the Bible (Philadelphia: Fortress, 1968), p. 40.
10 J.P.J. Oliver, baseando-se sobre a idéia que Jeroboão foi rei sobre uma nação, ao invés de
apenas um espaço territorial, tenta argumentar que não houve uma capital no norte
antes que Onri construísse a cidade de Samaria ("In Search oí a Capital for the Northern
Kingdom," JN SL11 [1983]: 117-32). Esse argumento baseia-se em teorias sócio-antropo­
lógicas que não possuem nem um pouco de suporte no texto bíblico.
A M onarquia D ividida 343

outro, tentar um conserto. Mas ele realmente tentou. Ao voltar para


Judá, reuniu um grande exército para retomar Israel à força. Porém o
profeta Semaías o dissuadiu deste propósito, explicando que o ocorri­
do vinha de Deus, e deveria necessariamente ser aceito (1 Rs 12.21-24;
2 Cr 11.1-4).

O re in o d e R o b o ã o

Durante os três primeiros anos de seu governo, Roboão tentou ao má­


ximo acomodar-se ao inalterável fato de que presidia uma pequena parte
do reino de outrora. Judá ainda era o povo de Deus, e ele o herdeiro da
dinastia de Davi, com todos os privilégios contidos na aliança; mas, para
as demais nações, Judá não passava de uma sombra dos dias de glória de
Salomão. Roboão, portanto, precisou conciliar os ideais teocráticos de Judá
como povo eleito, e a realidade do dia-a-dia e da vida militar.
Uma das primeiras medidas de Roboão foi desenvolver um programa
de fortificações em seu pequeno reino contra interferências externas, es­
pecialmente por parte de Israel. Isso envolveu a incorporação de Benjamim
ao seu território, uma importante realização cujo significado não se pode
distinguir,11 e a construção de cidadelas que rodeavam todo o perímetro
do reino (2 Cr 11.5-12).12 Também constituiu seu filho Abias como vice-
regente,13 e distribuiu seus outros filhos por todo o território como coman­
dantes das cidades fortificadas (2 Cr 11.22-23).
Os acontecimentos mais importantes nessa primeira fase do reina­
do de Roboão não foram planejados ou criados por ele. Os sacerdotes e
levitas, que habitavam com as tribos do norte, abandonaram suas cida­
des natais após Jeroboão estabelecer cultos ilegítimos. Este fato enco­
rajou outros sacerdotes do norte a mudar-se para a tribo de Judá ou,
pelo menos, a tornar-se mais simpáticos para com a família de Davi (2
Cr 11.13-17). Jeroboão, em resposta, estabeleceu os santuários rivais em
Dã e em Betei.
Roboão estava afastado da presença de Yahweh e da aliança havia
muito tempo. Esta postura espiritual não ficou sem conseqüências pois,

11 Ver nota 4.
12 Quanto à distribuição dessas cidades, ver Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah,
Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan, 1968), mapa 119.
13 Contudo, não há evidência de co-regência aqui, conforme S. Yedin mostrou ("The Divided
Kingdom: Rehoboam-Ahaz/Jeroboam-Pekah," em World History of the Jewish People,
vol. 4, parte 1, p. 130).
344 H istória de I srael no A ntigo T estamente

em seu quinto ano, Judá sofreu uma forte invasão dos exércitos egípci­
os comandados por Shoshenq. Este Faraó, o fundador da 22a Dinastia
egípcia, foi o primeiro líder egípcio que, depois de muitos anos, recon­
quistou a grandeza do antigo Egito.14 Durante o seu vigésimo primei­
ro ano de reinado (945-924),15 conseguiu reunificar o Alto e o Baixo Egito,
restabeleceu o comércio internacional com Biblos e outros estados
fenícios e arameus e, por último, esperou pacientemente por uma oca­
sião apropriada para atacar Israel. Ele já havia, inclusive, concedido
asilo político a Jeroboão, inimigo de Salomão e futuro rei de Israel, um
indício não apenas de simples misericórdia, mas também de ambições
políticas.
Quando Salomão morreu, em 931 a.C , Shoshenq não tardou a desferir
0 golpe contra Judá. Usando um incidente nas fronteiras com alguns
semitas da região,1617 Shoshenq fez o primeiro movimento para o norte de
Judá. Tomando as cidades fortificadas e chegando às portas dos muros de
Jerusalém, por volta da primavera de 926/925, o rei egípcio partiu para o
norte de Israel com seu exército e muitos mercenários a seu serviço. Todo
este acontecimento deve ter assustado Jeroboão, que provavelmente sen­
tia-se seguro com respeito ao Egito. Mas, em um movimento característico
da inconstância tradicional dos egípcios, Shoshenq tentou conquistar Is­
rael, uma vez que percebera a facilidade com que Judá havia se rendido.-
Não se sabe por que Shoshenq não deu continuidade à campanha.
Talvez estivesse satisfeito com os tributos que exigira de Judá e Israel,
particularmente os ricos tesouros do templo. De qualquer forma, sua
morte impediu qualquer outra atitude mais drástica. Seu filho Osorkon
1 (924-889) evitou outras conquistas, pelo menos por um tempo, interes­
sando-se mais por esbanjar riqueza no templo de Atom. A vultosa quan­

14 I. E. S. Edwards, "Egypt: From the Twenty-second to the Twenty-fourth Dynasty," em


Cambridge Ancient History, 3a edição, editado por John Boardman et al. (Cambridge:
Cambridge University Press, 1982), vol. 3, parte 1, pp. 539-49.
15 As datas para a 22a Dinastia do Egito baseiam-se praticamente em dados irrefutáveis.
Ver Kenneth Kitchen, "Late-Egyptian Chronology and the Hebrew Monarchy," JANES
5 (1973): 231-33.
16 Edwards, "Egypt," em CAH 3.1, p. 546.
17 De fato, Yeivin interpreta os registros da expedição de Sisaque (uma inscrição encontra­
da na parede do grande templo de Karnak) como que indicando que o propósito origi­
nal desse rei era atacar o reino de Israel, e não o de Judá. Yeivin defende a idéia que
Sisaque estava tentando abrir as rotas comerciais para Biblos e Mesopotâmia, além de
disciplinar a Jeroboão por não ter pago um tributo a ele devido ("Divided Kingdom,"
em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 133-34).
A M onarquia D ividida 345

tidade de ouro e prata ali empregada18 procedia possivelmente do tem­


plo de Jerusalém.
O pecado que gerou essa devastação na terra e a espoliação do templo
foi realmente sério. O autor de 1 Reis indica que Roboão e seus compatri-
n f o c q f in m m 3
ica 11 Hp P O T T V D O T t â T n P T í t O íc\ c}\latra.
r\ fT P t T 7 c tat
f

ram lugares altos, pedras sagradas (massebôt) e os postes de Aserá, além


de se envolverem em rituais de prostituição sodomita.19 Não causam es­
panto todos esses acontecimentos, dado o sincretismo religioso ppSmovi---
do por Salomão, influenciado por suas mulheres pagãs, incluindo Naamá,
mãe de Roboão.
Os doze anos finais do reinado de Roboão parecem ser descfitos de for­
ma mais favorável pelos narradores. Porque humilhando-se Roboão, "a ira
do Senhor se desviou dele, para que o não destruísse de todo" (2 Cr 12.12).
Mas estes também foram anos de conflito com Jeroboão. O registro sagrado
diz que Judá e Israel lutaram continuamente (1 Rs 14.30). Infelizmente, não
há registro de qual dos dois (se houve umj ^icou em vantagem. Em um
sentido, é claro, todos perderam; porque o espetáculo de irmãos contra ir­
mãos não apenas desrespeitava os filhos de Jacó, mas o próprio Deus.

O re in o d e Je ro b o ã o

Se era má a situação religiosa em Judá, em Israel de Jeroboão era ainda


pior.20 O novo rei estabelecido, que obtivera a promessa de uma dinastia
eterna diante de Yahwehxcaso permanecesse fiel ao Senhor (1 Rs 11.38),21

18 Segundo James H. Breasted, não menos que 560.000 libras (A History of Egypt [New
York: Bantam, 1967], p. 444).
18 Quanto aos equipamentos e práticas dessas pseudo-religiões, ver Helmer Ringgren,
Religions of the Ancient Near East (Philadelphia: Westminster, 1973), pp. 158-69.
20 Róbèít L. Cohn presenteou-nos com uma excelente análise literária da estrutura quiástica
da narrativa de Jeroboão (1 Rs 11.26—14.20). Esse estudo ilustra, mais uma vez, o fato de
qpe as seções históricas da Bíblia, embora decididamente verdadeiras em conteúdo, po­
deriam estar (e freqüentemente estiveram) agrupadas em blocos literários que, compara-

estão completamente fora da ordem. Mas, no caso em questão, não parece ser esse o pro­
blema ("Literary Techinique in the Jeroboam Narrative," ZAW 97 [1985]: 23-35).
21 Essa promessa é análoga àquela dada a Saul (ver 1 Sm 13.13). Visto que nos dois casos o
rei falhou em cumprir as condições estabelecidas por Yahweh e, conseqüentemente,
não houve uma dinastia que continuasse para todo sempre, fica totalmente infrutífero
especular acerca do "porque não" do cumprimento dessas promessas da aliança davídica.
Ver em Cohn, "Literary Technique," ZAW 97 (1985): 27.
346 H istória de I srael no A ntigo T estamente

criou um reino que se tornou o modelo de iniqüidade para sempre, com o


qual os futuros reis malignos de Israel seriam comparados (1 Rs 13.34;
15.30; cf. 16.2,3,19, etc.). Sua dinastia, se de fato pode assim ser chamada,
durou apenas vinte e quatro anos, ou seja, duas gerações. Este foi o pa­
drão de Israel. Judá, a despeito dos tempos de apostasia, manteve-se sem­
pre sob a dinastia de Davi. Em Israel havia a turbulência infinda de uma
família real substituindo outra; a nação conheceria cinco diferentes dinas­
tias no curto período de 210 anos.
Jeroboão, conforme já se observou, reconstruiu a cidade de Siquém e a
constituiu sua capital. Peniel (Tulul edh-Dhahab),22 ao leste do Jordão sobre
o rio Jaboque, também foi reconstruída, talvez como um centro provincial
da Transjordânia (1 Rs 12.25). A associação de Siquém e Peniel com Jacó
provavelmente foi o que impulsionou Jeroboão à escolha destas cidades.23
Qualquer tradição religiosa que possa ter motivado a escolha de Siquém
e Peniel não influenciou no estabelecimento de Betei e Dã como centros de
culto. Para Jeroboão estava evidente que nenhum esforço político promo­
vido pelo governo poderia evitar o costume israelita de comparecer às
grandes festividades em Jerusalém, onde poderiam adquirir novamente o
espírito de unidade nacional e religiosa. Portanto, era necessário provi­
denciar lugares sagrados em Israel, onde o povo pudesse oferecer seus
sacrifícios e adorar a Deus.
Esta decisão de Jeroboão foi efetivamente contrária à exigência feita
por Moisés de uma adoração centralizada em um só local (Dt 12.1-14). Na
mente de Jeroboão, as exigências práticas sobrepujaram os requisitos teo­
lógicos. Ele precisava impedir, a qualquer custo, a reunificação de Israel e
Judá, expondo-se ao risco de perder os seus privilégios reais. Além disso,
ele pode ter pensado, uma vez que Israel estava independente de Judá,
que Jerusalém já não mais era o centro religioso para Israel, embora lá
estivesse o templo e a arca.
A razão para Jeroboão estabelecer os santuários em Betei e Dã, em vez
de em Siquém, é bastante problemática. Em Judá, afinal, as atividades re­
ligiosas e políticas se combinavam apenas em um lugar: Jerusalém. Por
que não seria assim em Israel? Siquém certamente não seria um local de­
sapropriado para o culto, já que nenhum outro local em Israel desfrutava
de tão grande tradição. Abraão, Jacó e José estiveram intimamente associ­
ados ao local, e Josué ali convocou o povo para uma renovação da aliança

22 Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 440.
23 Baruch Halpern, "Levitic Participation in the Reform Cult of Jeroboam I," JBL95 (1976):
31-32.
A M onarquia D ividida 347

com Yahweh. Deve-se supor que Jeroboão, com seu espírito pragmático,
buscou um local que desfrutasse de uma forte tradição e uma localização
apropriada. Betei era eminentemente qualificada.24 Em Betei Jacó encon­
trou-se com Yahweh — pelo menos em duas ocasiões — e poderia se dizer
que ali está a formação da fé de Israel. Além disso — e este era o fator mais
importante para Jeroboão — Betei situava-se na fronteira com Judá e, ao
mesmo tempo, na estrada principal que ligava o norte ao sul. O povo de
Israel, vindo de todos os lados do reino, poderia chegar ao local com mui­
ta facilidade. Além disso, eles precisariam passar por Betei, caso insistis­
sem na peregrinação até Jerusalém, o que seria seriamente desmotivador.
A escolha de Dã, por outro lado, é muito mais difícil de explicar. A
cidade situava-se na fronteira norte de Israel, como ficava Betei na frontei­
ra sul. Era razoavelmente acessível aos habitantes de Jezreel e a todos os
demais pontos do norte. Contudo, era identificada por todos como um
local de intensa idolatria, que excedia até mesmo a tolerância de Jeroboão.
E preciso lembrar que quando os danitas mataram o povo de Laís e ocu­
param seu território, trouxeram consigo Jônatas, neto de Moisés, e o cons­
tituíram sacerdote da cidade; também montaram imagens de prata que
haviam roubado de Mica (Jz 18.30-31). Assim Dã se estabeleceu como cen­
tro de adoração pagã. Como Jeroboão poderia esperar que o povo de Isra­
el peregrinasse para um local tão comprometimento com a idolatria?
Talvez a resposta se encontre na forma e natureza do culto criado por
Jeroboão. Ele criou deuses em forma de bezerros de ouro em seus dois cen­
tros religiosos, descrevendo-os como os deuses que haviam libertado Israel
do Egito. Também constituiu sacerdotes fora da linhagem levítica e, em Betei
pelo menos, designou o décimo quinto dia do oitavo mês para ser um dia
especial de festas. Os estudiosos dividem-se a respeito do completo significa­
do das inovações de Jeroboão, mas uma coisa está clara — ele estava identifi­
cando Betei e Dã com o êxodo.25 Os dois bezerros, fossem ídolos de verdade
ou apenas pedestais em que se presumia estar o Yahweh invisível,26 são remi­
niscências do bezerro de ouro produzido por Arão quando Moisés estava
ausente, no monte Sinai. As palavras de apresentação são praticamente as

24 Ibid., p. 32.
25 Ibid., pp. 39-40.
26 William F. Albright, Yahweh and the Gods of Canaan (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1969), pp. 197-98. John N. Oswalt argumenta de forma bastante persuasiva que os be­
zerros eram, na verdade, ídolos; se fossem apenas pedestais para o invisível Yahweh,
não teriam despertado tanta indignação contra Aarão, no passado, e contra Jeroboão no
presente ("The Golden Calves and the Egyptian Concept of Deity," EQ 45 [1973]: 13-20).
348 H istória d e I srael no A ntigo Testamento

mesmas em ambas as ocasiões: "Vês aqui teus deuses, ó Israel, que te fizeram
subir da terra do Egito!" (Ex 32.4; cf. 1 Rs 12.28). Os dois relatos mostram que
a criação desses deuses e seu reconhecimento foram seguidos por festivais.
Além disso, Arão funcionou como sacerdote e, na ausência de Moisés, como
o mediador da aliança. Agora Jeroboão, além de sua função de rei, instalou-se
como o cabeça do culto, comparecendo no altar em Betei para oferecer sacri­
fícios. Ou seja, ele via-se como um segundo Arão, que possuía o direito de
estabelecer e supervisionar um novo sistema religioso à parte o que acontecia
em Jerusalém. Ele arrogava-se a prerrogativa da monarquia davídica, ou seja,
o direito do rei com eleito e filho adotivo de Deus, não apenas para servir
como líder político de Israel, mas também como o sacerdote mediador.2
Jeroboão percebia a si mesmo como o equivalente à dinastia messiânica em
Israel, um sacerdote real segundo a ordem de Melquisedeque.
Essa interpretação da ótica de Jeroboão a respeito de seu papel no reino
explica o motivo de sua intrepidez em assumir o sacerdócio, e empossar
outros sacerdotes que não fossem da linhagem de Arão. Também isto ex­
plica a sua coragem de estabelecer locais de adoração em Betei e Dã; pois
se Davi, um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, moveu o
tabernáculo e a arca para Jerusalém — um local até o momento sem qual­
quer significação ou tradição religiosa para Israel — , por que Jeroboão
não poderia arbitrariamente criar o seu próprio culto em Betei e Dã, espe­
cialmente pelo fato de a primeira cidade possuir grande tradição?
E notável que Jeroboão tenha conseguido inserir os bezerros de ouro
em seu culto, especialmente considerando o destino do bezerro de Arão
(aquele ídolo foi consumido até as cinzas e, misturado em água, foi bebi­
do pelos apóstatas que o adoraram). O motivo por trás da ação de Jeroboão
pode ter sido uma intensa animosidade contra os levitas,2728 pois estes to­
maram as espadas e feriram os adoradores do bezerro de Arão. Jeroboão
desprezou os levitas e escolheu os seus próprios sacerdotes. Em uma ati­
tude irônica, construiu os bezerros como símbolo de seu desdém para com
o sacerdócio levítico. Não teria o próprio neto de Moisés, Jônatas, se ante­
cipado a Jeroboão, ao servir como primeiro sacerdote de um centro religi­
oso competitivo em Dã? Além desta história conceder credibilidade à ci­

27 John Gray, I & II Kings (Philadelphia: Westminster, 1970), pp. 315-18.


28 Frank M. Cross diz, juntamente com outros estudiosos, que esse ataque de Jeroboão
contra o sacerdócio aarônico não passa de uma interpretação do escritor (ou redator)
deuteronomista do livro dos Reis, pois na verdade Jeroboão constituiu sacerdotes da
linhagem de Arão para servirem em Betei (Canaanite Myth and Hebrew Epic [Cambridge:
Harvard University Press, 1973], pp. 198-200). Esta interpretação só pode ser sustenta­
da caso o registro na narrativa bíblica seja completamente desconsiderado.
.A M onarquia D ividida 349

dade de Dã, também revela que mesmo na própria família de Moisés ha­
via espaço para divergências religiosas. Como poderia Jeroboão ser acu­
sado de irreligiosidade por seus bezerros de ouro, se o próprio neto de
Moisés havia oficiado sacrifícios em um culto idólatra em Dã?
E preciso admitir que muitos dos argumentos nas linhas anteriores são
especulativos. Em uma análise final, não é possível conhecer os motivos
ou considerações de Jeroboão. Mas está claro que ele se via como um sa­
cerdote e rei de um novo sistema religioso para ele totalmente legítimo.
Debate-se ainda como ele ligou tudo isso com o passado, especialmente
com o incidente do bezerro de ouro após o êxodo. Mas é unanimemente
aceito que as atitudes de Jeroboão foram pecaminosas e, de fato, a própria
epítome da apostasia aos olhos de Yahweh.
A insatisfação de Yahweh era tão óbvia que Ele enviou um profeta de
Judá para falar contra Jeroboão e seu recente sistema religioso (1 Rs 13).
Quando ele chegou a Betei, este homem sem nome na Bíblia profetizou
contra o altar ali erigido, pois simbolizava o próprio coração da apostasia.
Viria um tempo, disse ele, quando um filho de Davi, chamado Josias, des­
truiria em pedaços o altar, e nele seriam oferecidos os corpos dos sacerdo­
tes iníquos que ali serviam. O profeta então voltou-se para Jeroboão. Quan­
do o pseudo-sacerdote estendeu sua mão para prender o homem de Deus,
esta tornou-se ressequida e sem força. Ainda assim a misericórdia de
Yahweh restaurou a mão do rei. Era evidente que ele e sua religião cor­
rompida estavam debaixo do juízo de Deus.
No curso da história, Abias, o herdeiro do trono de Israel, adoeceu terri­
velmente. Apesar dos apelos de sua mãe ao profeta Aías, o jovem príncipe
falecera (1 Rs 14.17). A razão, Aías apontou, estava clara. Jeroboão, embora
abençoado com a maior parte do reino de Davi, não possuía os padrões
davídicos. Violou os mandamentos e a aliança com Yahweh, seguindo ou­
tros deuses e rejeitando o Deus de Israel. Portanto, Yahweh findaria a dinas­
tia de Jeroboão rapidamente, e transportaria Israel para além do rio Eufrates,
em conseqüência de seus pecados em seguir Jeroboão (1 Rs 14.6-16).
Os detalhes acerca dos últimos anos do reinado de Jeroboão estão in­
completos. Ele transferiu a capital para Tirza (Tel el-Fár'ah), cerca de doze
quilômetros a nordeste de Siquém, pois foi para lá que sua esposa retornou
depois de encontrar-se com o profeta Aías. Não se sabe ao certo o motivo
da transferência, embora a invasão de Sisaque contra Judá e Israel em 926 /
925 possa ter resultado na destruição de Siquém ou, pelo menos, precipi­
tado a transferência de Jeroboão para um local mais seguro.29 Sabe-se que,

29 J. Alberto Soggin, A History of Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 108.


350 H istória de I srael no A ntigo T estament:

por outro lado, Jeroboão esteve em constante guerra com Roboão e, após a
morte do rei de Judá, continuou o conflito com o herdeiro do trono, Abias,
o filho de Roboão que reinou apenas por três anos. Infelizmente, não há
informações concretas a respeito desses conflitos. A teoria mais plausível
é que os reis de Davi tentaram reconquistar os territórios de Israel, e assim
restaurar todo o reino de Davi.

A p re s s ã o d as n a ç õ e s ao re d o r

Através das fontes extrabíblicas, pode-se obter certas informações que


irradiam uma luz indireta sobre Israel e Judá nos anos de 931 a 910 a.C. No
Egito, Osorkon I reinou de 924 a 889, ultrapassando os reinados de Roboão
e Jeroboão.30 Embora não haja qualquer registro de seu envolvimento na
Palestina até o ano de 897, ele de fato tomou medidas para reafirmar as
relações egípcias com a cidade de Biblos.31 E certo que tais medidas não
apenas garantiam um relacionamento comercial benéfico para as duas na­
ções, mas também serviam como uma base egípcia firmada indiretamente
no norte de Israel. Além disso, o acordo garantiria ao Egito um aliado que
serviria de tampão contra a expansão militar dos arameus.
Já se comentou anteriormente a respeito do início de uma dinastia de
arameus em Damasco, criada por Hezion (Rezim) durante o reinado de
Davi, que provavelmente retrocede a 990 a.C. Embora a cronologia seja
um pouco incerta, parece que Heziom viveu pelo menos até a morte de
Salomão, e depois disso foi substituído por seu filho Tabrimmon, neto de
Ben-Hadade (900-841).32 Essa sucessão é registrada pelo historiador bíbli­

30 Edwards, "Egypt," em CAH 3.1, pp. 549-52.


31 H. Jacob Katzenstein, The History of Tyre (Jerusalem: Schockem Institute for Jewish
Research, 1973), p. 121.
32 Essas datas são aproximações inferidas dos dados citados por Merrill F. Unger, Israel
and the Aramaeans of Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980 reedição), pp. 56-61. A
data mais antiga para Ben-Hadade (que precisa de um reinado extremamente longo de
quase sessenta anos) está baseada sobre o fato de o rei Baasa de Israel, em cerca de seu
décimo terceiro ano (896 a.C.), ter sofrido uma forte derrota nas mãos de Ben-Hadade (1
Reis 15.20). Para evitar esse problema de um reinado tão longo, os estudiosos sugerem
que um Ben-Hadade I e um Ben-Hadade II tenham vindo antes de Hazael. Ver William
H. Shea, "The Kings of the Melqart Stela," Maarav 1.2 (1978-1979): 159-60. Conforme o
próprio Shea indicou, estabelecer sucessivos Ben-Hadades seria ir de encontro ao pa­
drão de dinastia comum na Síria e na Palestina. Frank M. Cross complica ainda mais o
assunto com três sucessivos Ben-Hadades entre 885 e 841 ("The Stele Dedicated to
Melcarth by Ben-Hadade of Damascus," BASOR 205 [1972): 42).
A M onarquia D ividida 35 1

co (1 Rs 15.18) e aparentemente confirmada na conhecida esteia de Ben-


Hadade, onde está escrito: "Bir-hadad, filho de Tab-Rammân, filho de
Hadyân, rei de Aram."33
Nada é registrado sobre os feitos de Heziom e suas campanhas milita­
res, exceto que ele rompeu com Hadadezer, rei de Zobá, e restabeleceu-se
em Damasco (1 Rs 11.23,24). De um centro estratégico, passou a atormen­
tar Salomão e, mais tarde, o rei Jeroboão e Roboão. Pôde fazer isto com
relativa impunidade, porque as guerras entre Israel e Judá estavam muito
intensas nesse período. Outros fatores que indicam a ascensão de Damas­
co foram a relativa fraqueza dos estados arameus e a constante impotên­
cia da Assíria, pelo menos até o reinado de Adade-Nirari II (911-891). Além
disso, os Povos do Mar da baixa Mesopotâmia não se constituíam uma
ameaça nessa época.

A b ia s de Ju d á

A situação de Judá após a morte de Roboão deteriorou-se sensivelmen­


te, pois seu filho e sucessor Abias (913-911) não andou nos caminhos de
Davi. Mesmo assim, diz o narrador: "Mas por amor de Davi o Senhor lhe
deu uma lâmpada em Jerusalém, levantando a seu filho depois dele" (1 Rs
15.4) Mais uma vez, a bênção incondicional contida na aliança de Yahweh,
baseada na promessa a Davi, garantia estabilidade ao reino, não obstante
o rei que se assentava no trono.
Evidências da contínua misericórdia de Yahweh podem ser vistas nos
bons resultados obtidos por Abias contra todos os esforços de Jeroboão
para derrotá-lo. O cronista particularmente enfatiza este fato.34 Depois de

33 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 56. Essa interpretação da esteia de Ben-Hadade
(conhecida de outra forma por esteia de Melqart) de forma alguma é aceita universal­
mente. Quanto a uma análise alternativa, ver J. Andrew Dearman e J. Maxwell Miller,
"The Melqart Stele and the Ben Hadads of Damascus: Two Studies," PEQ 115 (1983): 95­
101. Dearman é de opinião que não houve nenhum rei com o nome de Ben-Hadade
entre 865 e 806 (portanto, ele nega a historicidade de 1 Reis 20 e 21-1-38), enquanto
Miller identifica o Ben-Hadade da esteia como o filho de Hazael (depois de 806), por­
tanto, também deixando de acreditar na historicidade dos relatos acerca de Acabe. Ver
também Shea, "The Kings of the Melqart Stela," p. 170; B. Oded, "Neighbors on the
East," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 267.
34 Por várias razões — a falta de um paralelo em 1 Reis, o número enorme de soldados, a
idéia de que o cronista está teologizando em vez de descrevendo — muitos estudiosos
não aceitam a historicidade do registro da batalha de Zemaraim. Ver os argumentos de
Ralph W. Klein, " Abijah's Campaign Against the North (2 Chron. 13) — What Were the
352 H istória de I srael no A ntigo T estament :

subir ao trono, Abias viu-se ameaçado por Jeroboão no monte Zemaraim


(Ras et-Tahuneh), distante cerca de dois ou três quilômetros de Betei.55
Abias decidiu partir para guerrear, e marchou em direção norte com seus
homens visando a reconquistar os israelitas para o reino de Davi (2 Cr
13.4-12). Lembrou aos israelitas que Yahweh havia feito uma aliança ape­
nas com Davi, e a nação liderada por Jeroboão era ilegítima. Além disso,
Abias afirmou que Jeroboão aproveitou-se da instabilidade de Roboão para
criar uma monarquia rival. Embora alguém contestasse a objetividade de
Abias, seu argumento de que o culto idólatra promovido por Jeroboão era
contrário à vontade de Deus em todos os aspectos jamais poderia ser ne­
gado. Uma vez que a fé verdadeira estava apenas em Judá e na observân­
cia das exigências de Yahweh, Abias afirmou que só restava a Israel voltar
para Davi imediatamente.
Jeroboão não quis ouvir aquelas palavras e cercou os exércitos de Abias
por todos os lados. Para validar a posição teológica de Abias, o próprio
Yahweh tomou a frente do conflito e libertou seu povo da calamidade. Abias
prosseguiu e capturou as cidades israelitas de Betei, Jesaná (el-Burj?) e Efrom
(et-Taiyibeh), prejudicando assim Jeroboão no aspecto religioso e político.
Israel jamais conseguiu se recuperar desse golpe. Abias, entretanto, cresceu
em poder, conforme atesta o tamanho de seu harém (2 Cr 13.21).

A sa de Ju d á

Considerações cronológicas

Jeroboão viveu dois ou três anos a mais que Abias, de forma que foi
contemporâneo de Asa por um breve tempo. Asa foi o próximo rei da
linhagem de Davi, e o autor do primeiro livro dos Reis o identifica como
filho de Maaca (1 Reis 15.10), mas visto que decerto é filho de Abias, o
texto na verdade refere-se ao neto de Maaca. O motivo para a indicação
genealógica é que Maaca havia autorizado a construção de um poste ídolo
de Aserá em Jerusalém, mas o rei Asa mandou derrubá-lo, além de várias

Chronicler's Sources?" ZAW 95 (1983): 210-17. Negar a historicidade de um aconteci­


mento simplesmente porque tal evento não é descrito nos outros registros sinóticos é
deixar a questão em suspense e desprezar o fato de que o cronista tinha acesso a outras
fontes. John Bright chega à conclusão de que "o incidente é, sem dúvida, histórico" (A
History of Israel, 3a edição [Philadelphia: Westminster, 1981], p. 234).
35 Quanto a uma reconstrução da estratégia, ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible
Atlas, mapa 121.
A M onarquia D ividida 353

outras reformas promovidas. Pode-se concluir que Asa era muito novo
quando começou a reinar, porque seu pai havia reinado apenas três anos e
era também muito jovem quando morreu. Asa governou por quarenta anos
(911-870), um governo longo, mas cujo fim é considerado prematuro, pois
o historiador tem o cuidado de informar que Asa ficou enfermo dos pés
nos últimos três anos de sua vida (1 Rs 15.23). Não é possível saber se o
motivo de sua morte está associado à doença, mas certamente este mal o
impediu de exercer as funções reais. Então seu filho Josafá serviu como
co-regente nos últimos três anos de reinado.36
A estrutura cronológica do reinado de Asa é um pouco complexa e jus­
tifica uma discussão detalhada. O cronista inicia declarando que, com a
sucessão de Asa, estabeleceu-se um período de dez anos de paz (911 —
901). Exatamente neste período (ou pouco depois dele) Asa deu início às
grandes reformas religiosas que culminaram na deposição de sua própria
avó e na destruição do poste ídolo de Aserá. Caso a teoria de que ele assu­
miu o trono ainda menor de idade esteja correta, as reformas não começa­
ram imediatamente. Pode ser que dez anos tenham se passado para Asa
alcançar a maioridade e a independência tornar-se possível.
Durante esse tempo Asa também melhorou as posições de defesa do rei­
no de Judá reformando os fortes construídos por Roboão, e talvez tenha
construído outros. Por todos esses anos, o cronista enfatiza, Judá esteve em
paz (2 Cr 14.6), e as reformas chegaram ao seu ápice em uma festa em Jeru­
salém, onde não apenas os habitantes de Judá foram convidados, mas todos
os fiéis de Efraim, Manassés e Simeão (2 Cr 15.8-15). Este grande aconteci­
mento ocorreu no décimo quinto ano do reinado de Asa (c. 896).
Por fim, Asa envolveu-se em uma guerra no trigésimo quinto ano de
seu reinado (2 Cr 15.19); esta informação cria um problema para a crono­
logia. Enquanto o trigésimo quinto ano de Asa corresponderia ao ano 876,
o versículo seguinte (2 Cr 16.1) indica que Asa foi à guerra em seu trigési­
mo sexto ano, presumivelmente 875, contra Baasa, de Israel, que morrera
em 886 — onze anos antes! A guerra mencionada no ano trinta e cinco do
rei Asa foi provavelmente contra Zerá, o etíope, uma batalha geralmente
datada pouco depois de 900.37

36 Thiele, Mysterious Numbers, p. 70. Quanto à co-regência ser uma característica da mo­
narquia em Israel e Judá, ver Thiele, "Coregencies and Overlapping Reigns Among the
Hebrew Kings," JBL 93 (1974): 174-200.
37 Edwards, "Egypt," em CAH 3.1, p. 52, fixa a guerra em 897, encaixando-se com nossa
data da grande assembléia (896), para a qual foram trazidos os despojos (2 Cr 15.11)
presumivelmente dos inimigos etíopes. Ver também Yeivin, "Divided Kingdom," em
354 H istória de I srael no A ntigo T estament:

Várias resoluções têm sido propostas para este dilema. Alguns estudiosos
simplesmente corrigem "trigésimo quinto" e "trigésimo sexto" para "décimo
quinto" e "décimo sexto", mas não há evidência textual para isto.38 Outros
drasticamente alteram os anos de Baasa, tornando-o contemporâneo de Asa
em seus últimos anos.39 Esse método de ajuste cronológico não apenas retira
a autoridade do testemunho bíblico, mas também força um ajuste na cronolo­
gia de praticamente todos os outros reis de Judá e Israel. Além disso, atrapa­
lha completamente a data da campanha militar contra Zerá.
A melhor solução parece ser a que foi proposta por Edwin Thiele. Para
ele o "trigésimo quinto" e o "trigésimo sexto" não se referem aos anos do
reinado de Asa, mas aos anos que correspondem à diferença entre a data em
questão e a divisão do reino.40 Visto que a divisão do reino normalmente é
datada em 931, o trigésimo quinto ano seria 897 e o trigésimo sexto, 896.
Embora esta seja uma maneira incomum de mencionar os acontecimentos
do governo de um rei, não é inerentemente impossível ou improvável. Além
disso, se os anos de Roboão (17) e Abias (3) forem acrescidos dos 15 anos de
Asa que precederam a sua primeira campanha militar em guerra (cf. 2 Cr
15.10 e 19), somará um total de 35, exatamente conforme sugere o narrador.
Se o conflito entre Asa e Baasa aconteceu no trigésimo sexto ano (2 Cr
16.1), a guerra no trigésimo quinto (15.19) deve ter sido aquela em que
Asa encontrou-se com Zerá em Mareshah, uma vez que não há registro de
outro acontecimento. A data dessa batalha teria sido no décimo quinto
ano do reinado de Asa — 897. Nenhuma fonte extrabíblica trata a respeito
de Zerá; a descrição do Antigo Testamento parece indicar que ele era da
Núbia, ou um mercenário da Arábia a serviço de Osorkon I.43

World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 136; Kenneth A. Kitchen, The
Third Intermediate Period in Egypt (1100-650 B.C.((Warminster: Arts and Philips, 1973),
p. 309.
38 Esta solução foi citada, mas não considerada válida por Edward L. Curtis, A Criticai
and Exegetical Commentary on the Books of Chronicles (Edinburgh: T. & T. Clark, 1910),
p. 387. Raymond B. Dillard afirma que o cronista está trabalhando com uma tradição
textual diferente e que o leitor moderno deve conviver com a possibilidade de que aquela
tradição foi um erro, ou pelo menos uma variante com Samuel/Reis ("The Reign of Asa
[2 Chronicles 14-16]: An Example of the Chronicler's Theological Method," JETS 23 [1980]:
217).
39 William F. Albright, The Biblical Period from Abraham to Ezra (New York: Harper, 1963),
p. 116-17.
40 Thiele, Mysterious Numbers, p. 60.
41 T.C. Mitchell, "Israel and Judah Until the Revolt of Jehu (931-841 B.C.)," em CAH 3.1,
pp. 462-63; Kitchen, Third Intermediate Period, p. 309.
A M onarquia D ividida 355

As guerras de Asa

Em sua primeira aventura militar, Asa reconheceu a necessidade do


favor divino, de forma que invocou o nome de Yahweh. O cronista diz que
Yahweh não apenas o ajudou, mas também "feriu os etíopes diante de Asa
e diante de Judá: e eles fugiram" (2 Cr 14.12), uma frase lembrando a anti­
ga tradição da guerra santa. Zerá sofreu grandes perdas de Mareshah (Tel
Sandahannah),42cidade próxima a Laquis, caminho direto para Gerar, mais
de 32 quilômetros a sudoeste. Aparentemente, Gerar estava nas mãos dos
egípcios naqueles dias, pois 2 Crônicas 14.12-15 descreve a destruição e
pilhagem do território inimigo.
A campanha de Asa contra Baasa no ano seguinte é de maior interesse
e importância não apenas porque envolve a casa dividida de Israel, mas
porque este conflito também inclui os arameus. O autor de Reis informa
que houve guerra entre Asa e Baasa por todos os seus dias (1 Rs 15.16);
sem dúvida ele quis dizer que havia um espírito de hostilidade entre am­
bos, que eventualmente se manifestava em agressões intensas.
A provocação partiu de Baasa (909-886), que em seu décimo terceiro
ano de reinado construiu uma fortaleza em Ramá (er-Râm), localizada pró­
ximo a fronteira entre Israel e Judá. O propósito da estrutura era evitar
que os israelitas fossem a Judá. Esta era exatamente a intenção de Jeroboão
quando escolheu a cidade de Betei como centro religioso do reino do nor­
te. Durante o reinado de Baasa, grande parte dos israelitas percebeu a fa­
lência moral e espiritual do reino de Israel, e por isso optou por deixar o
reino e viajar para o sul, às vezes com intenção de participar das festivida­
des em Judá, ou de estabelecer-se ali permanentemente.
Baasa pretendia impedir esse trânsito. Asa, por alguma razão, viu o
movimento como uma ameaça a sua segurança, de forma que imediata­
mente tomou providências para garantir o apoio de Ben-Hadade, rei de
Damasco. Este já possuía um acordo com Israel, mas o rei de Judá o fez
lembrar do compromisso e aliança existentes entre os seus antepassados
(2 Cr 16.3). E para instigá-lo, Asa lhe prometeu ouro, prata do templo e do
tesouro real.
Estabelecido o acordo, Ben-Hadade marchou contra o norte de Israel e,
em rápida sucessão, tomou as cidades de Ijom (Tel ed-Dibbin), Dã, Abel-
Bete-Maaca, e uma grande extensão de Naftali, incluindo a região de
Quinerete, ao oeste do mar de Quinerete ou Galiléia.43 Baasa então recuou

42Aharoni, Land of the Bible, p. 439; aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas.
43 Quanto a rota, ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 124.
356 H istória de I srael no A ntigo T estamento

e abandonou seu projeto em Ramá, voltando para sua capital em Tirza,


talvez na expectativa de um ataque de Ben-Hadade até mesmo contra sua
capital. Asa desmanchou a obra em Ramá e, usando as próprias pedras da
fortaleza, construiu uma muralha de defesa para seu reino em Geba (Jeba')
e Mispa (Tel en-Nabesh), a primeira ao leste e a segunda a oeste de Ramá.
O fato de Ben-Hadade haver feito aliança com Israel e Judá é um
indicativo do crescimento e influência de Damasco sobre os pequenos es­
tados da Síria e Palestina. É também um tributo à diplomacia de Ben-
Hadade, que sabia o momento de cancelar um tratado e investir em outro
para a sua própria vantagem. Ele não apenas foi muito bem pago com
ouro e prata do templo de Jerusalém, como também tornou-se senhor de
uma vasta extensão de terras ao norte de Israel, obtendo acesso direto à
costa do Mediterrâneo. Damasco já desfrutava dos benefícios de sua loca­
lização, pois estava em contato com a estrada real e outras principais rotas
para o sul e leste do Anti-Líbano. Agora, seu controle estendia-se a todas
as principais estradas que vinham do Egito, através das planícies costei­
ras que conduziam à Mesopotâmia.44

O n o v o s u rg im e n to d a A s s íria

A ascensão de Damasco foi possível em parte pela ausência da interfe­


rência externa, especialmente das grandes potências como a Assíria.45 Con­
tudo, a liberdade que o mundo mediterrâneo oriental desfrutou desde os
dias de Tiglate-pileser I, mais de um século antes, chegava ao fim. Os ob­
servadores da época já podiam discernir, por volta de 900, as agitações
que se passavam no gigante Assíria. Embora ainda restassem cinqüenta
anos, os pequenos reinos do oeste já podiam escutar a sua vinda.
Em sua quarta campanha militar, Adade-Nirari II (911— 891)46 fez sua
primeira incursão para o oeste, um assalto sobre a região de Hanigalbat, no

44 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 62.


45 Inscrições paralelas assírias e aramaicas foram recentemente encontradas em uma está­
tua da metade do século nove. Descobertas em Tel Fakheriyeh, na região de Gozã, indi­
cam que os assírios estavam sendo política e culturalmente influenciados pelos vizi­
nhos arameus. Pode ser que a ascendência dos arameus tenha sido o fator fundamental
para o processo de expansão para o oeste, iniciado durante o reinado de Assur-nasirpal
II. Quanto ao significado da estátua, ver A.R. Millard, "Assyrian and Aramaeans," Iraq
45 (1983): 106; Ran Zadok, "Remarks on the Inscription of Hdys'y from Tel Fakhariya,"
Tel Aviv 9 (1982): 117-29.
46 Albert Kirk Grayson, "Assyria: Ashur-dan II to Ashur-Nirari V (934-745 B.C.)," em CAH
3.1, p. 250.
A M onarquia D ividida 357

Tabela 7 Os reis neo-assírios

Adade-Nirari II 911 — 891


Tukulti-Ninurta II 890 — 884
Assur-nasirpal II 883 — 859
Salmaneser III 858 — 824
Shamshi-Adad V 823 — 811
Adade-Nirari III 810 — 783
Salmanaser IV 782 — 773
Assur-dan III 772 — 755
Assur-nirari V 754 — 745
Tiglate-pileser IÍT 745 — 727
Salmaneser V 727 — 722
Sargão II 722 — 705
Senaqueribe 705 — 681
Esaradom 681 — 669
Assurbanipal 668 — 627
Assur-etil-ilani 627 — 623
Sin-sum-lisir 623
Sin-sar-iskun 623 — 612
Assur-uballit II 612 — 609

Eufrates superior. Ali isolou e derrotou as tribos dos arameus e as tribos


Suhu.47 Em uma série de sucessivos ataques (901-896), finalmente conquis­
tou todo o Hanigalbat, incorporando-o na esfera de influência dos assírios.
Outras tribos araméias da região superior do Habor caíram por volta de
900. Portanto, quando Ben-Hadade começou a reinar (ca. 900), toda a Meso-
potâmia superior estava firmemente sob o domínio dos assírios. Ben-Hadade,
como Asa, Baasa e outros governantes, estava ciente dos grandes aconteci­
mentos ao norte, e compreendeu claramente o que estava para suceder em
seu pequeno reinado. Não é possível discordar acerca da assinatura de tra­
tados internacionais de mútuo auxílio, feitos entre os vários estados que
compunham a Síria e a Palestina, tratados como os que são vistos no Antigo
Testamento, entre Asa e Ben-Hadade, e entre Baasa e Ben-Hadade.
O sucessor de Adade-Nirari, Tukulti-Ninurta II (890-884), continuou a
política de seu antecessor, com a clara intenção de criar um império assírio.
E muito importante para o estudante do Antigo Testamento saber a res­
peito das terras conquistadas no oeste, a caminho do Mushku, na Anatólia
central, uma campanha ocorrida em 885.48 Sua carreira foi bruscamente
interrompida, e a tarefa de construção de um império assírio passou a ser

47 Ver Albert Kirk Grayson, Assyrian Royal Inscriptions (Wiesbaden: Otto Harrassowitz,
1976), vol. 2, pp. 86-87, #2,11, 30-41.
48 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, p. 252; Assyrian Royal Inscriptions,vol. 2, p. 104, #1,
11.33-45.
358 H istória de I srael no A ntigo T estamento

de Assur-nasirpal II (883-859).49 Este iniciou um programa anual de cam­


panhas militares para o oeste muito conhecido por sua crueldade. Por vol­
ta de 875, conseguiu subjugar todos os estados arameus do norte, alguns
tão distantes quanto Bit-Adini. Mesmo assim, Israel, Judá e Damasco obti­
veram uma trégua de vinte e cinco anos ou mais até que, por fim, também
foram tragados pelo redemoinho que ocasionou uma reviravolta interna­
cional provocada pelos assírios, dirigindo-se para o oeste, e depois para o
sul, através da terrível máquina de guerra chamada Salmaneser III.

N a d a b e de Isra e l

Logo depois que Asa passou a reinar em Judá, Jeroboão morreu e seu
filho Nadabe assentou-se em seu trono em Israel (1 Rs 14.20). O reinado
durou dois anos (910-909), e caracterizou-se pela repetição dos atos peca­
minosos de seu pai. Então a palavra profética do profeta Aías cumpriu-se:
Nadade foi cortado violentamente, terminando assim a dinastia de
Jeroboão sobre a casa de Israel, a qual durou apenas duas gerações (1 Rs
14.14). Para assegurar-se de que a casa de Jeroboão nunca mais se assen­
taria no trono de Israel, Baasa, o assassino de Nadabe, exterminou toda a
família real. Tudo isso aconteceu, diz o historiador teólogo, "por causa
dos pecados de Jeroboão, o qual pecou, e fez pecar a Israel, por causa da
provocação com que provocara ao Senhor Deus de Israel" (1 Rs 15.30).
Caracterizações semelhantes de vários outros reis de Israel se repetirão
com esse mesmo refrão.50

A d in a s tia de B a a s a de Isra e l

O reino de Baasa

O agente da ira santa de Yahweh foi Baasa ben Aías, de Issacar, um


oficial israelita. Parece que Nadabe estava cercando Gibeton (Tel el-Melât),
uma fortaleza dos filisteus a oeste de Gezer, e esperava estabelecer uma

49 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 2o3-59; Yutaka Ikeda, "Assyrian Kings and the
Mediterranean Sea: The Twelfth to Ninth Centuries B.C.," Abr-Nahrain 23 (1984-1985):
23-26.
50 Esse é apenas um dentre os vários temas encontrados em 1 e 2 Reis que reflete a conde­
nação profética na história de Israel por causa da violação da aliança. Ver Ziony Zevit,
"Deuteronomistic Historiography in 1 Kings 1 2 - 2 Kings 17 and the Reinvestiture of
the Israelian Cult," JSOT 32 (1985): 57-73.
A M onarquia D ividida 359

abertura ou futuro ponto de invasão na região noroeste de Judá. Também


seria uma oportunidade de livrar-se do problema filisteu, que estava mui­
to próximo da cidade de Gezer, local destinado ao armazenamento de ví­
veres em Israel. Enquanto acontecia o cerco, Baasa matou o rei de Israel e
voltou para Tirza, reivindicando para si o trono do norte.
Baasa, fundador da segunda dinastia de Israel, reinou por vinte e qua­
tro anos (909-886), contemporâneo de Asa, rei de Judá. A dinastia pode ter
mudado, mas a natureza do governo não se alterou, pois Baasa, como
Nadabe, andou nos caminhos de Jeroboão. Muito tempo antes, um profe­
ta chamado Jeú ben-Hanani, pronunciou sobre Baasa a mesma sentença
que Aías pronunciara sobre Jeroboão: a casa do rei seria completamente
aniquilada, ainda que o Senhor por sua misericórdia o tivesse permitido
subir ao poder (1 Rs 16.1-4). A oferta de Yahweh para um reinado perpé­
tuo não era uma ilusão, mas uma realidade que se baseava em uma condi­
cional. Se Jeroboão, ou Baasa, ou qualquer outro a quem Deus permitisse
chegar ao poder, fosse obediente à aliança que firmava a vontade de Deus
em qualquer situação, teria sua descendência estabelecida para sempre
em Israel. Mas se, por outro lado, fosse desleal e se afastasse — e todos os
reis de Israel fizeram isso — sem dúvida o juízo de Deus viria sobre sua
vida. A monarquia messiânica estava reservada apenas a Davi e seus des­
cendentes de Judá, mas isso não quer dizer que não haveria um governo
para sempre em Israel.
À parte as lutas com Asa, que ocuparam a última parte de seu reinado
(896-886), pouco se sabe acerca de Baasa. Ele havia feito um tratado com
Ben-Hadade, de Damasco, em que este quebraria seu acordo com Asa, rei
de Judá. Em troca, Baasa lhe entregaria uma considerável faixa de terra no
norte de Israel. Parece que Baasa morreu de maneira natural, uma experi­
ência rara entre os reis de Israel.

O reino de Elá

Como Jeroboão, Baasa fundou uma dinastia que durou apenas duas
gerações — ele e seu filho Elá. E, conforme Nadabe, Elá também reinou
apenas dois anos (886-885). Surpreendentemente, a semelhança continua,
pois Elá, como Nadabe, também foi assassinado por um oficial confiden­
te. Quando em uma ocasião encontrava-se embriagado com seus oficiais
na casa de Arsa, seu mordomo chefe, foi atacado por Zimri, comandante
da divisão de carruagens, e lá mesmo morreu (1 Rs 16.8-14). Zimri, em um
ato de justiça- poética, passou a exterminar toda a família de Baasa, da
mesma forma que este havia tratado a parentela de Jeroboão. Mas Zimri
360 H istória de I srael no A ntigo T esta i /e n t t

era um intruso, sem qualquer aprovação divina para o cargo de rei. Por­
tanto, não originou nenhuma dinastia e, de fato, sobreviveu apenas por
sete dias. A festa na casa de Arsa aconteceu enquanto os exércitos de Isra­
el, sob o comando de Omri, mais uma vez cercavam a cidade de Gibetom.
Quando receberam a notícia nos campos de batalha, as tropas ali presen­
tes aclamaram o seu general, Omri, como rei, colocando-o em evidente
oposição a Zimri (1 Rs 16.16). Omri e seus seguidores partiram em direção
a Tirza. Quando Zimri percebeu que não tinha apoio e estava prestes a ser
capturado por Omri, incendiou seu próprio palácio e morreu nas chamas.51
O caminho para o reino agora parecia abrir-se diante de Omri.

O m ri de Israel

Mas a ascensão não se efetivaria tão facilmente, pois Tibni ben-Ginate


havia alcançado alguns seguidores, precipitando outra grande crise na li­
derança nacional de Israel. Não se sabe quem era ele ou de onde veio, mas
seus esforços para ser uma alternativa melhor que Omri fracassaram rapi­
damente, pois fora assassinado e Omri permaneceu sem qualquer obstá­
culo ao trono (1 Rs 16.21-22). Durante os seis primeiros anos dos doze que
reinou (885-874), Omri manteve a capital do reino ainda em Tirza; porém,
em torno de 880, adquiriu um imponente monte de um homem chamado
Semer por dois talentos de prata, e deu um outro nome ao local: Samaria.
Ali ele construiu grandes fortificações ao redor do monte, e dentro de vá­
rios palácios e prédios governamentais.
Este sítio vinha sendo habitado e desabitado durante muitos anos, des­
de tempos bem remotos. Porém, somente depois que Omri transformou-o
na capital de Israel e o centro governamental da nação, Samaria alcançou
notoriedade.52 É surpreendente que tal prestígio nunca tenha se desen­
volvido antes, já que o local era extremamente estratégico. Localizada no
topo de uma colina, tem-se uma visão nítida do vale abaixo ao redor de
toda a elevação. Assim, o local era difícil de atacar e estratégico para a
defesa. Samaria permaneceu como capital de Israel, até que caiu sob o
poder dos assírios em 722. O local depois tornou-se um tipo de assenta-

31 Para evidências arqueológicas do incêndio e da reconstrução preliminar de Omri em


Tirzá, ver D.N. Pienaar, "The Role of Fortified Cities in the Northern Kingdom During
the Reign of the Omride Dynasty," JNSL 9 (1981): 151-52.
52 G. Ernest Wright, "Samaria," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward
F. Campbell, Jr., e David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2,
pp. 248-57.
A M onarquia D ividida 36 1

mento sob o domínio dos assírios e dos persas. Herodes, o Grande, a re­
construiu e deu-lhe o nome de Sebaste, em homenagem a Augusto César,
seu patrono (Sebastos é a palavra grega para "Augustus").
A mudança da capital, de Tirzá para Samaria, cerca de 19 quilômetros a
oeste, não foi bem recebida por todos em Israel. Anos depois, uma comu­
nidade rebelde fez de Tirza seu quartel general, e até a metade do século
oito continuou a competir com Samaria. Não está claro o motivo por que a
mudança foi realizada, já que o rei estava ciente da falta de apoio que isso
lhe causaria. Talvez ele entendesse sua dinastia como a representante de
Deus que construiria uma nova realidade, bem diferente de Jeroboão e
seus sucessores. E um claro sinal disso seria a rejeição da capital escolhida
por Jeroboão, em favor de uma cidade não contaminada pelo passado.53
Embora haja pouca informação bíblica a este respeito, Omri foi de fato
um dos mais influentes reis nos primórdios de Israel. Ele era tão conceitu­
ado pelas grandes potências do mundo que seu nome tornou-se um sinô­
nimo para seu reino. Por exemplo, nos textos assírios escritos mais de cem
anos depois de sua morte, Israel é chamado de Bit Humri ("casa de
Omri").54 Os reis israelitas posteriores eram às vezes chamados de filhos
de Omri, mesmo sendo de dinastias diferentes.
A razão do prestígio de Omri não é clara para os estudiosos, embora o
relativamente próspero e poderoso reino de seu filho Acabe sugira que
Omri tenha lançado um firme fundamento. Sem dúvida ele seguiu uma
política fiscal severa, e por meio da diplomacia conseguiu antecipar-se
aos ataques inimigos. Ao mesmo tempo, construiu para seu reino uma
penetração comercial e política em outras nações que muito lhe favorece­
ram. Um importante exemplo foi seu relacionamento com Etbaal, rei de
Tiro e Sidom (887-856). Como resultado, houve o casamento de seu filho
Acabe com a princesa de Tiro, a conhecida Jezabel.55 Este casamento mos­
trou-se desastroso para a vida espiritual de Israel (e Judá). Em outros as­
pectos, a relação de Omri e Etbaal foi obviamente vantajosa para ambas as
partes. Tiro sem dúvida sentia-se ameaçada pelo crescimento de Damasco
ao leste, e recebeu com alegria o novo aliado.56 Israel, desde os tempos de

53 Para outras sugestões, ver Herbert Donner, "The Separate States of Israel and Judah,"
em Israelite and Judaean History, editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller
(Philadelphia: Westminster, 1977), pp. 402-3.
54 Mitchell, "Israel and Judah," em CAH 3.1, p. 467.
55 Katzenstein, History of Tyre, p. 144.
56 B. Oded, "Neighbors on the West," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte
1, p. 234.
362 H istória df. I srael no A ntigo T estasíl * ^

Davi possuía uma ligação com Tiro, o que significava uma abertura maior
para o mundo comercial. Tal ligação havia sido aparentemente quebrada
ou tornou-se sensivelmente enfraquecida nos tempos pós-salomônicos de
Israel, de modo que Omri, ávido por restaurar os benefícios de um comér­
cio crescente em seu reino, firmou a aliança com Tiro com muita satisfação.
Ao mesmo tempo, as relações mais próximas entre os fenícios e israelitas
devem ter sido vistas com suspeita por Damasco. Assim, não causa surpre­
sa que Ben-Hadade logo entrasse em guerra contra o reino de Israel.57

J o s a f á d e Ju d á

Co-regência com Asa

Antes de se considerar o conflito entre Acabe e Ben-Hadade, é necessá­


rio rever a transferência do poder de Asa, rei de Judá, para seu filho Josafá.
A melhor reconstrução cronológica exigirá a data de 870 para a morte de
Asa e 873 para a ascensão de seu filho Josafá. Esse intervalo de tempo só
pode ser preenchido por uma co-regência de três anos, fato sugerido pela
doença de Asa, a qual afetou os seus pés e o debilitou sensivelmente, quan­
do reinava em seu trigésimo nono ano (2 Cr 16.12). Isto pode ter ocorrido
em 873, o ano em que Josafá começou a reinar junto a seu pai. A co-regência
era freqüentemente usada por outros reis, tanto em Judá quanto em Israel.58
A avaliação do reinado de Asa nas fontes históricas varia um pouco.
Ambos os relatos concordam que ele foi essencialmente bom e andou nos
caminhos de Davi. Removeu a idolatria, com exceção dos lugares altos, e
buscou restaurar a pura adoração a Yahweh. As reformas foram realiza­
das sob a orientação do profeta Azarias (2 Cr 15.1-8). O profeta assegurou
que Yahweh estaria com Judá da mesma forma que esteve com os ances­
trais nos dias dos juízes, porém o favor divino era condicionado à obedi­
ência e à busca de Deus. Ao terminar as reformas, Asa convocou uma reu­
nião em Jerusalém para oferecer um grande sacrifício a Yahweh e reafir­
mar que o povo estava aliançado com ele (2 Cr 15.9-15).
Por outro lado, Asa fez um acordo com Ben-Hadade, solicitando apoio
contra o rei Baasa de Israel, uma atitude severamente criticada pelo profe­
ta Hanani (2 Cr 16.1-9). Ao invés de confiar em Yahweh, para alcançar o
livramento, Asa voltou-se para os recursos humanos e chegou mesmo a
esvaziar os tesouros sagrados a fim de comprar uma resposta para seu

57 Quanto às razões das hostilidades, ver Unger, Israel and the Aramaeans, p. 66.
58 Thiele, Mysterious Numbers, p. 70.
A M onarquia D ividida 363

problema. E para agravar mais o seu erro, Asa mandou prender o homem
de Deus que trouxera a palavra de repreensão, e frustrado aplicou medi­
das de repressão e opressão sobre seu povo. Mesmo ao contrair a enfermi­
dade nos pés, buscou tratamento médico ao invés de Yahweh, pois a do­
ença lhe foi permitida para que voltasse novamente para Deus.
Há uma diferença significativa entre a natureza da desobediência de Asa e
a de seus contemporâneos israelitas. A desobediência destes envolvia um afas­
tamento total de Yahweh e dos padrões da aliança. Asa, a despeito de seus
erros, ainda conservava um coração sensível para Deus. Seu pecado não con­
sistiu em insubmissão à vontade soberana do Senhor, mas em sua confiança
na sabedoria e recursos humanos. Deus, que conhece o coração, pode ler os
impulsos e motivações que permanecem ininteligíveis aos homens.

As realizações de Josafá

Josafá, filho de Asa, subiu ao trono de Judá com trinta e cinco anos de
idade, e reinou por vinte e cinco anos (873-848), incluindo os três anos de
co-regência com seu pai. Por esse tempo, Acabe reinava em Samaria; foi
sucessor de Omri em 874. Portanto, Josafá começou seu governo no quar­
to ano de Acabe (1 Rs 22.41). Visto que Acabe reinou por vinte e dois anos
(até 853), os dois foram contemporâneos durante a maior parte de seus
respectivos reinados.
O veredicto da história é brando com Josafá — ele andou com Yahweh,
especialmente em seus primeiros anos, e removeu todos os vestígio de idola­
tria, com exceção dos lugares altos (1 Rs 22.43; 2 Cr 17.3-6). Percebe-se que no
início não confiava em Acabe, pois seus primeiros projetos incluíram melhorias
nas fortificações, bem como o aumento do número de homens das guarnições
que faziam fronteira com Israel (2 Cr 17.1,2). Contudo, a suspeita não durou
por muito tempo, e por fim Josafá já havia criado um vínculo com Acabe,
chegando mesmo a casar-se com uma israelita da família real. A aliança com
Acabe ainda redundaria em uma severa repreensão do profeta: "...Devias tu
ajudar ao ímpio, e amar aqueles que ao Senhor aborrecem? Por isso virá sobre
ti grande ira de diante do Senhor" (2 Cr 19.2).
Em razão das bênçãos divinas e de um rigoroso programa de controle
fiscal, Josafá estabeleceu o reino de Judá com sabedoria e prosperidade que
não se viam desde os tempos de Salomão. O governo evocou tal estima entre
seus vizinhos que alguns deles, especificamente os filisteus e os árabes, sub­
meteram-se ao seu domínio voluntariamente e pagaram-lhe o devido tributo
(2 Cr 17.10,11). As razões não eram totalmente devidas ao respeito, pois havia
sem dúvida algum interesse, uma vez que precisavam do apoio militar de
364 H istória de I srael no A ntigo T estamento

Judá contra o visível crescimento da Assíria. Eles voltaram-se naturalmente


para Josafá porque este havia acumulado uma reserva de alimentos e verba
tão grande que gerou um exército de enormes proporções.
Uma fonte ainda mais poderosa da força de Josafá, uma força vinda do
coração e do espírito, foram as atividades missionárias que ele inaugurou
em Judá no seu terceiro ano (2 Cr 17.7-9). Muitos líderes de origem sacer­
dotal decidiram lançar-se em uma campanha em toda parte, ensinando a
Torá à medida que passavam pelas regiões. Mais tarde, com a aliança en­
tre Josafá e Acabe, esses evangelistas puderam penetrar também no terri­
tório de Israel, mais precisamente nas regiões montanhosas de Efraim, le­
vando uma mensagem de reconciliação com Yahweh (2 Cr 19.4).
Josafá também foi o responsável por uma drástica mudança no sistema
judiciário da nação de Judá (2 Cr 19.5-11). Estabeleceu juízes em todas as
fortalezas e cidades fortificadas e, em Jerusalém, criou uma corte suprema
constituída por pessoal religioso e secular. Eles eram incumbidos de dar
audiência às causas oriundas dos tribunais inferiores. Sobre todos esses
juízes estava Amarias, o sumo sacerdote, e Zebadias, o oficial superior de
todo o Judá. Todos esses o rei designou que fossem juízes fiéis, diante de
Yahweh, pois perante Ele responderiam por seus atos, e seus padrões san­
tos deveriam ser transmitidos ao povo.
O registro histórico é silencioso a respeito dos eventos posteriores ao
ano 868, que corresponde ao terceiro ano de Josafá (ver 2 Cr 17.7). O relato
reaparece em 853, ano em que Acabe obteve a ajuda de Josafá para
readquirir a cidade de Ramote-Gileade, que na ocasião estava sob o domí­
nio dos arameus (1 Rs 22.1-4). Esta campanha militar mostrou-se uma gran­
de derrota para ambos, e Acabe morreu no conflito, deixando seu filho
Acazias em seu lugar. Como conseqüência para Judá, Josafá não apenas
teve de ouvir a repreensão do profeta Jeú, de que Josafá amava os que
detestavam Yahweh, como também ocasionou em Judá uma série de guer­
ras e outras tragédias.
Alguns dos pequenos estados que compunham a Transjordânia, como
os moabitas, amonitas e Meum,59 por causa da derrota e morte de Acabe
lançaram-se em um ataque contra Josafá (2 Cr 20.1). O rei de Judá soube

59 O meha'ammônîm ("dos amonitas") no Texto Massorético deve ser lido (junto com a
Septuaginta) mehamme'ûnîm ("dos meunitas"). Os meunitas eram uma tribo de arameus
que viviam em Edom e em outras regiões ao leste e sul do mar Morto (cf. 1 Cr 4.41; 2 Cr
26.7). Ver Merrill, "2 Chronicles," em Bible Knowledge Commentary, vol. 1, p. 634; H.G.M.
Williamson, 1 and 2 Chronicles, New Century Bible Commentary (Grand Rapids:
Eerdmans, 1982), pp. 293-94.
A M onarquia D ividida 365

que as forças rivais já haviam cruzado o mar Morto e estavam acampados


em Hazazon-Tamar (i.e., En-Gedi).60 Temeroso a esse respeito, Josafá con­
vocou a nação para um jejum obrigatório e reuniu o povo em Jerusalém
para buscar o Senhor. Na oração, o rei lembrou o Senhor de suas antigas
promessas, e lhe disse que os que anteriormente haviam sido poupados
por Israel, na época de Moisés, procuravam agora destruir a nação de Judá
(2 Cr 20.10-12).
A resposta de Yahweh veio por meio de um levita chamado Jaaziel,
que assegurou ao rei e ao povo que Deus estava com eles, e que tudo o
que deveriam fazer era permanecer preparados e ver o livramento que
Yahweh daria a Judá. No outro dia, os exércitos de Josafá mobilizaram-
se e partiram em direção ao deserto de Técoa para lutar contra seus ad­
versários. O clamor levantado a Yahweh, a adoração feita em Jerusalém
e a direta intervenção de Deus mostram claramente que esta era uma
guerra santa, e que a batalha pertencia ao Senhor.61 E justamente por
isso, ou seja, por ser a batalha de Yahweh, uma forte confusão veio sobre
os adversários de Judá, de modo que passaram a ferir-se a si mesmos,
sem que sobrasse um de seus exércitos. Josafá voltou em triunfo para
Jerusalém, cantando louvores a Yahweh, além de tomar do inimigo um
grande despojo de guerra.
Como já foi visto, o rei Acabe de Israel foi sucedido por seu filho Acazias,
que reinou por apenas dois anos (853-852). Alguém poderia pensar que
Josafá teria aprendido a lição, e não mais faria acordo com a casa de Aca­
be, mas evidentemente isto não aconteceu, pois uma aliança foi feita com
Acazias (2 Cr 20.35-36). O acordo foi estritamente comercial, e não militar,
mas apesar disso não foi bem visto aos olhos de Yahweh. E, mais uma vez,
um profeta foi até Josafá e lhe disse que a grande esquadra de navios,
construída em Eziom Geber em uma parceria com o reino do norte, seria
completamente destruída; e assim se cumpriu.
A presença de navios de Judá em Eziom Geber, o porto do território de
Edom situado no Golfo de Acaba, mostra que o reino do sul ainda continuava
a dominar os edomitas. De fato, o autor do livro dos Reis diz que nos últimos

60 A maioria dos estudiosos identifica Hazazom-Tamar como Tamar ('Ain Husb) no Arabá,
ao sul do mar Morto. Ver Aharoni, Land of the Bible, p. 140. Deve-se observar a seme­
lhança entre Hazazon-Tamar com En-Gedi, visto que a narrativa diz que o inimigo vie­
ra "do outro lado do mar" (i.e., o mar Morto). Consulte a rota sugerida por Aharoni e
Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 13.
61 Frank M. Cross, Canaanite Myth and Hebrew Epic (Cambridge: Harvard University
Press, 1973), pp. 105-6.
366 H istória de I srael no A ntigo T esta m ent

anos de Josafá, os edomitas não tinham rei sobre si, mas estavam sob a admi­
nistração de um oficial superior que, sem dúvida, era o representante do rd
de Judá no local (1 Rs 22.47). Mas a situação não permaneceu assim por muito
tempo. No ano seguinte, Edom, nos anos de reinado de Jorão, o segundo filho
de Acabe, já possuía um rei da própria nação (2 Rs 3.9).
A independência de Edom foi alcançada sem lutas, conforme mostram
os registros. Quando o rei de Israel conseguiu convencer Josafá, rei de
Judá, a guerrear contra a província revoltosa de Moabe, também contou
com o apoio do rei de Edom. Pode ser que o desastroso episódio da perda
das esquadras em Eziom-Geber tenha sido a causa da libertação de Edom.62
Porém, essa independência não duraria muito tempo, pois na época de
Jeorão, filho de Josafá, Edom seria mais uma vez reconquistada para o
reino de Judá (2 Rs 8.20).
O aspecto mais significativo da rebelião ocorrida em Moabe é o fato de
que Josafá, pela terceira vez, fez uma outra aliança com a dinastia de Aca­
be. A sua persistência em envolver-se com os infiéis colegas do norte é
inexplicável, uma vez que Josafá não precisava de seu auxílio e nem mes­
mo lucrava com tal aliança, obtendo desta apenas muitas tristezas.

A ca b e de Is ra e l

A maldade de Acabe

O ímpeto de Josafá de envolver-se em tantas confusões procedia da


influência do reino do norte, começando com Acabe. Depois de suceder
Omri em 874, Acabe governou os próximos vinte anos com prosperidade
e influência internacional — graças à severa política de seu pai — mas este
período também caracterizou-se pela decadência moral e espiritual. Como
não bastasse a apostasia entre o povo para com Yahweh, Acabe casou-se
com Jezabel, filha do rei Etbaal, de Sidom, a qual inseriu seu deus Baal e a
adoração a Aserá em Samaria. Pela primeira vez o culto a Yahweh foi ofi-
dalmente substituído pelo paganismo, não havendo sequer permissão para
que ambos coexistissem na mesma região.63

62 De fato, John R. Bartlett é da opinião que a destruição dos navios não foi ocasionada por
um desastre natural mas por causa de conflitos militares com os edomitas ou israelitas
("The Moabites and Edomites," em Peoples of Old Testament Times, editado por D.J.
Wiseman [Oxford: Clarendon, 1973], p. 236).
63 Quanto à natureza do culto fenício, ver Donald Harden, The Phoenicians (New York:
Praeger, 1962), pp. 82-114.
A M onarquia D ividida 367

O ministério de Elias

Ao invés de riscar seu povo da terra, o Senhor levantou um dos mais


fascinantes e misteriosos personagens bíblicos — Elias, o profeta — para
confrontar-se com os habitantes de Israel, pregando contra seus pecados e
anunciando o julgamento divino. Um dia Elias apareceu subitamente di­
ante de Acabe, e profetizou que Israel passaria por alguns anos de seca,
em conseqüência do afastamento de Yahweh e da associação com Baal (1
Rs 17.1). Três anos mais tarde (1 Rs 18.1), Elias reapareceu e confrontou-se
com os profetas de Baal e Aserá no monte Carmelo, que era o mais famoso
centro religioso de adoração a Baal. O resultado do conflito foi um total
descrédito dos profetas pagãos e seus deuses. Após todos eles serem mor­
tos, Elias anunciou a Acabe o fim próximo da seca. Baal, o suposto deus
do trovão, do raio e da fertilidade, teve de retirar-se em total humilhação
diante de Yahweh, o único e verdadeiro Deus, que provou ser a única fon­
te de vida e bênçãos.64
Mesmo esta demonstração miraculosa do poder de Yahweh não desper­
tou a fé em Acabe que, juntamente com Jezabel, forçou Elias a refugiar-se em
Horebe (Sinai). Lá o profeta encontrou-se face a face com Yahweh, no mesmo
local em que Moisés o havia encontrado seiscentos anos antes. O claro signi­
ficado do episódio é que o Deus da aliança ainda estava lá para encontrar-se
com seu povo e abençoá-lo, à medida que se dispusessem a obedecê-lo. O
Deus do Carmelo era o Deus de Horebe. E era também o soberano Deus de
Israel e das nações. A evidência da superioridade de Deus estava no chamado
de Elias — ele deveria voltar e ungir Eliseu como o profeta sucessor, Jeú como
rei de Israel, e Hazael como rei de Damasco (1 Rs 19.15,16).
A cronologia das histórias de Elias é extremamente complexa e difícil
de reconstruir,65 mas a referência a Jeú e a Hazael sugere que eram pesso­
as conhecidas do profeta. Jeú, entretanto, não se tornou rei antes de 841—
doze anos após a morte de Acabe — e reinou por vinte e oito anos. Parece

64 A respeito desta história como polêmica anti-cananéia, ver Leah Bronner em The Stories
of Elijah and Elisha (Leiden: E.J. Brill, 1968); George E. Saint-Laurent, "Light from Ras
Shamra on Elijah's Ordeal upon Mount Carmel," em Scripture in Context, editado por
Carl D. Evans et al. (Pittsburgh: Pickwick, 1980), pp. 123-39. Frank E. Eakin, Jr. indica
que a vitória de Elias declarou publicamente que o culto a Yahweh era de uma natureza
completamente distinta, evitando assim que o javismo fosse absorvido pelo baalismo
("Yahwism and Baalism Before the Exile," JBL 84 [1965]: 413).
65 A cronologia das histórias era algo de pouco interesse para o historiador, pois sua maior
preocupação e concentração estavam no desenvolvimento e associações por temas. Ver
Robert L. Cohn, "The Literary Logic of 1 Kings 17-19," JBL 101 (1982): 333-50.
368 H istória de I srael no A ntigo T estamento

então que o ministério de Elias teve início nos últimos anos de Acabe, no
mínimo quatro anos antes de sua morte. A base para esta afirmação é que
o chamado ocorreu antes de Ben-Hadade cercar Samaria, aproximadamen­
te quatro anos antes da morte de Acabe na campanha de Ramote-Gileade,
em 853 (1 Rs 20.1,26; 22.1). A data de 857 seria bastante apropriada para a
caminhada de Elias ao monte Horebe. Visto que tal viagem ocorreu de­
pois dos três anos de seca, Elias deve ter-se encontrado com Acabe pela
primeira vez em cerca de 860, catorze anos após o início de seu reinado.
Esse tempo seria suficiente para que toda as condições de apostasia des­
critas na Bíblia pudessem firmar-se.

As invasões de Ben-Hadade

A razão para Ben-Hadade atacar Samaria não está declarada, mas pode-
se deduzir que este rei não se agradava da amizade crescente entre Israel e
Sidom, cuja evidência achava-se na união matrimonial entre Acabe e Jezabel.
Ben-Hadade certamente viu a aliança entre as duas nações como um obstá­
culo ao seu livre acesso ao mar e às principais rotas comerciais da costa.66
Além disso, caso a cronologia aqui defendida esteja correta, Salmaneser III
da Assíria já estaria, por esse tempo, em seu programa de expansão interna­
cional para o oeste, atingindo a Aram e a Palestina, forçando conseqüente-
mente o rei Ben-Hadade a colocar-se em posição defensiva. O historiador
bíblico indica que Ben-Hadade estava acompanhado de outros trinta e dois
reis, um indício de que ele também havia feito outras alianças para tratar
com a futura ameaça assíria. Pode ser, é claro, que ele tenha pedido ajuda a
Acabe, cujo recuo fez Ben-Hadade tentar a coalizão à força.
Seja como for, Ben-Hadade cercou a cidade de Samaria, exigindo o pa­
gamento de um exorbitante resgate por sua liberdade (1 Rs 20.3). Acabe,
provavelmente sem opção, aceitou os termos; mas Ben-Hadade continuou
a sua demanda, exigindo desta vez todos, os bens de Acabe. Ao recusar a

66 Unger também sugere que Ben-Hadade, aproveitando-se do fato de Israel estar enfra­
quecido por causa da grande fome, tentava evitar uma possível aliança entre Israel e
Assíria (Israel and the Aramaeans, p. 66). Pela linguagem de 1 Reis 20.3,4, Burke O.
Long concluiu que Acabe era um vassalo de Ben-Hadade e que este cobrava o tributo
proporcional ao relacionamento. Quando a carga de tributos chegou a um nível insu­
portável, o rei de Israel decidiu partir para guerra e recuperou sua independência. Em
um segundo encontro (vv. 26-34) os dois protagonistas são vistos em nível de igualda­
de ("Historical Narrative and the Fictionalizing Imagination," VT 35 [1985]: 407-12).
Embora nada mais no registro sugira esse relacionamento, a hipótese não deve ser
descartada.
A M onarquia D ividida 369

exigência e receber uma palavra de um homem de Deus, Acabe decidiu


guerrear contra o inimigo, enquanto Ben-Hadade e seus confederados es­
tavam em uma orgia regada à bebidas. Israel obteve uma poderosa vitória
contra os arameus.
No ano seguinte, Ben-Hadade decidiu voltar à guerra, mas Acabe o
interceptou em Afeque, provavelmente localizada na planície ao leste do
mar de Quinerete.67 Os arameus estavam confiantes que triunfariam nes­
sa guerra, pois criam que a derrota anterior deveu-se ao fato de Yahweh
ser um "deus" das montanhas (1 Rs 20.28). Mas agora se encontravam na
planície, confiantes de que a vitória estava garantida, visto que os israeli­
tas não contariam com Yahweh nessa região. Esta visão provinciana do
Deus do universo provou ser um entendimento fatal, pois Yahweh deu a
Israel completa vitória. Na verdade, não fosse o desejo de Acabe de fazer
uma aliança com Ben-Hadade, o rei arameu teria morrido naquele dia.
Um tratado de paz estabeleceu-se entre as duas nações, em que Ben-
Hadade se viu obrigado a devolver todas as cidades de Israel que haviam
sido tomadas pelos reis que o antecederam, além de garantir o livre co­
mércio entre Israel e Damasco (1 Rs 20.34). As cidades que voltaram para
o domínio de Israel provavelmente foram as que Ben-Hadade tomou de
Baasa quarenta anos antes (1 Rs 15.20), e outras que haviam sido perdidas
para Heziom e Tabrimon, antes de Ben-Hadade. Sem dúvida, ambos os
reis percebiam outros benefícios no tratado, particularmente a criação de
uma frente comum contra Salmaneser.

A morte de Acabe

A aliança rapidamente criada mostrou-se extremamente frágil, e den­


tro de três anos — após passar a sua utilidade — foi quebrada. Dessa
vez, Acabe decidiu recuperar a cidade de Ramote-Gileade (Tel Rãmith)
das mãos de Damasco. Esta importante cidade foi capital de um impor­
tante distrito nos anos do rei Salomão, mas Damasco a tomou alguns
anos antes de Acabe subir ao trono, provavelmente durante o conflito
entre Baasa e Ben-Hadade. E possível que Acabe tenha se interessado
novamente pela cidade em razão de sua posição estratégica, ao longo da
principal rota que vinha da Assíria. Também o encontro de Acabe com
Salmaneser, rei da Assíria, em Carcar (ver abaixo) pode ter desenvolvido
no rei de Israel um sentimento de imperialismo e extensão territorial, de

67 Aharoni, Land of the Bible, p. 381, n. 45, associa esse local a 'En Gev, um "Afeque infe­
rior" situado abaixo e poucos quilômetros a noroeste de Fiq, "Afeque superior."
370 H istória nF. I srael no A ntigo T esta .u f \~:

maneira que decidiu readquirir a Transjordânia, iniciando o processo de


restauração da glória de Israel.
Mas todo este assunto é teórico, pois Acabe morreu sem realizar esses
feitos. Seu corpo foi trazido de volta a Samaria, e cachorros lamberam-lhe
o sangue (1 Rs 22.38), exatamente conforme o profeta Elias havia predito
(1 Rs 21.19). Assim o iníquo reino de Acabe chegou ao fim. Mas a casa
perversa de Omri ainda não havia findado, pois o filho de Acabe, Acazias,
assumiu o trono em seu lugar.

A a m e a ç a d a A ss íria

Nesse ponto é importante examinar o contexto internacional a fim de


entender as frenéticas maquinações de Ben-Hadade, Acabe, Josafá, e ou­
tros governantes de pequenos estados no litoral mediterrâneo. Está claro
que os olhares do mundo, incluindo Aram e Palestina, estavam voltados
para apenas uma direção — a poderosa Assíria. Esse império redivivo pas­
sou a desenvolver uma política de expansão territorial, em direção oeste,
nos anos de Adade-Nirari II (911-891). A política continuou ainda mais
intensa sob Tukulti-Ninurta II (890-884) e, nos anos de Acabe e Josafá, já se
tornava bastante ameaçadora sob o reinado de Assur-nasirpal II (883-859).68
Em cerca de 875, este rei forçou uma penetração a oeste*até Bit-Adini, na
porção superior do rio Eufrates, culminando na dominação assíria sobre
todos os estados arameus da região. E foi seu sucessor Salmaneser III (858­
824), o primeiro a deixar claro que o objetivo da Assíria era estender sua
hegemonia sobre todo o mundo ocidental.6970
Salmaneser conquistou dentro de três anos a Bit-Adini, e então moveu-
se em direção oeste através do Eufrates para conquistar a importante e es­
tratégica cidade de Carquemis/0 Essa campanha militar ocorreu em 857,
um ano antes de Ben-Hadade e Acabe fazerem um tratado em Afeque, de
maneira que a razão do pacto se esclarece — ambos deixaram de lado as
diferenças e uniram-se em favor da autopreservação. Por volta de 853,71

68 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 253-59.


69 Quanto à política imperial dos assírios, centrada principalmente nos interesses econô­
micos e comerciais, ver Hayim Tadmor, "Assyria and the West: The Ninth Century and
Its Aftermath," em Unity and Diversity, editado por Hans Goedicke e J.J.M. Roberts
(Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1975), pp. 38-40.
70 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, p. 260.
71 William H. Shea sugere que a batalha de Carcar aconteceu em 854, uma data que de fato
permite mais tempo para o conflito entre os arameus e os israelitas. ("A Note on the
Date of the Battle of Qarqar," JCS 29 [1977]: 242).
A M o n a r q u ia D iv i d id a 3 7 /

Salmaneser m ovesse para o sul até Carcar (Khirbet-Qerqur), no rio Orontes,


não muito mais do que 160 quilômetros da cidade de Damasco. Naquele
local, segundo os próprios anais históricos do povo, o rei da Assíria viu-se
em guerra contra uma coalizão de reis comandados por Ben-Hadade, da
qual fazia parte também Acabe.7273É verdade que ao estilo assírio, Salmaneser
alegou ter conseguido uma vitória esmagadora, mas não aconteceu assim.
O próprio fato de não ter avançado, mas regredido para sua capital em Calá
indica que, na melhor das hipóteses, houve empate. Além disso, depois do
conflito em Carcar, Acabe e Ben-Hadade sentiram-se tão livres da Assíria
que romperam o tratado de paz e reiniciaram suas hostilidades.
Enquanto retirou-se para o oriente, Salmaneser incorporou a Babilônia
em sua esfera de influência logo após uma guerra civil naquele local em
850. Finalmente retornou para o oeste e impôs um cerco a Damasco em
841, na ocasião governada por HazaelA Israel, agora sob o rei Jeú, evitou
a mesma calamidade pagando um alto tributo a Salmaneser.74 Mas, o rei
da Assíria decidiu abandonar, por um tempo, sua política de opressão no
oeste, permitindo a Israel e Judá um descanso por quase cem anos.

O s s u c e ss o re s d e A ca b e

Acazias de Israel

O período de doze anos que entremeou a morte de Acabe e a ascen­


são de Jeú foi coberto pelo reinado de dois dos filhos de Acabe, Acazias
(853-852) e Jorão (852-841). Acazias, como seu pai, continuou a adorar

72 Quanto ao texto, ver James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old
Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 278-79.
73 J.A. Brinkman, "Additional Texts from the Reigns of Shalmanaser III and Shamshi-Adad
V," JNES 32 (1973): 43-44.
74 Esse fato está registrado no famoso Obelisco Negro. A fotografia e a tradução estão
presentes no trabalho de D. Winton Thomas, editor, Documents from Old Testament
Times (London: Thomas Nelson, 1958), pp. 54-55. P. Kyle McCarter, Jr. afirma que o ia-
ú-a (ou ia-a-ú) na esteia deve ser identificado com Jorão, e não Jeú. Se houver preferên­
cia para uma leitura que identifique "Yaw" como "Jorão" é possível solucionar dois
problemas: (a) o rei em questão é chamado "filho de Omri", que seria uma designação
imprópria para Jeú, já que este rei eliminou toda a família de Omri e fundou sua própria
dinastia; e (b) é pouco provável que um rei viesse a pagar tributos em seu primeiro ano
de reinado ("Yaw, son of 'Omri': a Philological Note on Israelite Chronology," BASOR
216 [1974]: 5-7). Para uma solução, ver Edwin R. Thiele, "An Aditional Chronological
Note on 'Yaw, Son of 'Omri'," BASOR 222 (1976): 25-28.
372 H istória de I srael no A ntigo T estament*

Baal e outros deuses pagãos. Também foi repreendido pelo profetas


Elias. A confrontação entre ambos sucedeu depois que Acazias feriu-se
em uma queda, e enviou mensageiros a Baal-Zebube, deus dos filisteus,
inquirindo as perspectivas de sua reabilitação. (2 Rs 1.1,2). Elias inter­
ceptou os mensageiros e lhes anunciou o desprazer de Yahweh pela
consulta do rei às divindades pagãs. Então o homem de Deus declarou
a sentença do Senhor a respeito de Acazias — o rei de modo algum
conseguiria recuperar-se.
Já se falou a respeito da união comercial entre Josafá e Acazias, com o
fim de estabelecer uma indústria marítima na região. Quando fracassou o
acordo, os edomitas aproveitaram-se da ocasião e, temporariamente, tor­
naram-se independentes de Judá. Aparentemente, os vizinhos ao norte de
Edom, os moabitas, libertaram-se de Israel, pois vinham servindo ao reino
do norte desde a época de Omri.75 A rebelião dos moabitas aconteceu pre­
cisamente após Acazias sofrer um acidente, ou talvez depois de seu irmão
Jorão assumir o reinado. Nessa época, surgiu entre os moabitas um líder,
chamado Mesha, que os conduziria à liberdade. Sem dúvida Mesha per­
cebeu na morte de Acabe e no acidente de Acazias uma ocasião propícia
para livrar-se do jugo de Israel.76 Assim, logo que Jorão assumiu o trono
em lugar de seu irmão, imediatamente providenciou para que os moabitas
voltassem à condição de vassalos (2 Rs 3.4-9a).

Jorão de Israel

O segundo filho de Acabe também era perverso, mas não tanto quanto
seu pai ou sua mãe, pois decidiu extinguir o culto e a adoração a Baal em
favor do quase-jeovístico culto de Jeroboão. Isto pode parecer um bom
sinal, mas dificilmente qualifica Jorão como um reformador. Josafá, é cla­

75 Gary Rendsburg sugere que Moabe havia se libertado de Israel durante os tempos
turbulentos que caracterizaram o cisma de Jeroboão, e que ficaram nessa condição
até o reinado de Omri ("A Reconstruction of Moabite-Israelite History," JANES 13
[1981]: 67).
76 A documentação extrabíblica é encontrada na chamada inscrição de Mesha. Temos o
texto no livro de Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 320-21. Se quiser buscar um
material que faz uma brilhante ligação entre os dados contidos nessa inscrição com os
detalhes do Antigo Testamento, ver em Oded, "Neighbors on the East," em World History
of the Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 256-57; Bayla Bonder, "Mesha's Rebellion Against
Israel," JANES 3 (1970-71): 82-88. Rendsburg, "Reconstruction," p. 68, diz que a revolta
aconteceu nos últimos dias de Acabe, mas essa é uma maneira errada de interpretar o
que diz no texto de Mesha.
.4 M onarquia D ividida 373

ro, apoiou Israel contra os moabitas.77 Como em sua colaboração a Acabe


contra os arameus, Josafá insistiu para que um genuíno homem de Deus
fosse consultado a respeito do empreendimento. O profeta chamava-se
Eliseu, filho de Safate, discípulo de Elias. Ele revelou que Yahweh lhes
concederia uma grande vitória.78
Animados, os reis de Israel, Judá e Edom viajaram pelo sul rodeando o
mar Morto, passando a seguir pelo território de Edom, rumo a Moabe.79
Quando chegaram ao rio Zerede, que é a fronteira entre Edom e Moabe,
viram que o rio estava na época da cheia e transbordava muito. Enquanto
isso, os moabitas haviam marchado para o sul a fim de confrontar-se com
os invasores. Na aurora do dia, com o reflexo dos raios do sol, as águas do
rio tornaram-se vermelhas — como sangue. Achando que seus adversári­
os tinham se destruído mutuamente, decidiram avançar em um ataque
final. Descobriram mais tarde o seu grave erro. Em desespero, o rei de
Moabe sacrificou seu filho primogênito sobre o muro da cidade (2 Rs 3.27).
Indignados peio horror do sacrifício humano, Israel e Judá abandonaram
o local e não tomaram o reino de Moabe.
Um outro evento importante no reinado de Jorão foi a visita do general
Naamã (2 Rs 5). Este corajoso general dos exércitos de Ben-Hadade con­
traíra uma enfermidade em sua pele. Ouvindo falar acerca de Eliseu atra­
vés de sua serva israelita, Naamã decidiu ir a Samaria em busca de cura. O
pronto acesso à capital de Israel indica que a ruptura com Damasco da

77 James D. Shenkel afirma que o rei de Judá aqui descrito é Acazias, e não Josafá. Ele
constrói sua teoria baseado na Septuaginta, especialmente na revisão de Luciano do
texto grego, cujas cronologias ele considera superior às que estão registradas no texto
massorético (Chronology and Recensional Development in the Greek Text of Kings
[Cambridge: Harvard University Press, 1968], pp. 92-108). Caso ele esteja certo, todo o
período da história bíblica precisará ser reescrito. Thiele, "Coregencies," JBL 93 (1974):
184-88 demonstrou, por outro lado, que Shenkel chegou à sua teoria "ajustando" o texto
das versões gregas que ele utilizou para corroborar suas conclusões.
78 O aparecimento de Eliseu neste momento (2 Rs 3.11) pode ser interpretado como um
indício de que Elias já havia sido arrebatado para o céu. Mesmo assim, Elias escreveu
uma carta para Jeorão de Judá (2 Cr 21.12-15), que reinou depois de Josafá. Green, em
"Regnal Formulas," JNES 42 (1983): 176, afirma que Eliseu foi o autor dessa carta, mas
parece ser melhor a opinião de Green quanto à existência de uma co-regência entre
Josafá e Jeorão, o que claramente resolveria a tensão (cf. 2 Reis 1.17).
79 Quanto ao itinerário percorrido pelos reis de Judá e Edom, ver Aharoni e Avi-Yonah,
Macmillan Bible Atlas, mapa 132. J. Liver lançou a teoria de que os reis tomaram essa
rota um tanto circular, ao invés de uma que fosse pelo norte do mar Morto, em virtude
das grandes fortalezas, conforme escrito no texto de Mesha. Esse rei tinha construções
ao norte de Moabe ("The Wars of Mesha, King of Moab," PEQ 99 [1966]: 27).
374 H istória dl I srael no A ntigo T estaue —

época de Acabe estava agora sanada, embora a reação de Jorão à carta de


Ben-Hadade em favor de Naamã não tenha sido tão amigável.
A frágil natureza da reconciliação entre Israel e Damasco torna-se mais
aparente quando Naamã retorna para seu país curado e convertido a
Yahweh, pois as hostilidades começam a surgir entre as nações (2 Rs 6.8).
Os conflitos partiram de Ben-Hadade, mas a guerra transformou-se em
um lamento para o seu reino. Cada passo que ele tencionava dar, o rei de
Israel tomava ciência; isto o levou a pensar em espionagem ou traição.
Mas finalmente o rei de Damasco descobriu que o profeta Eliseu era a
fonte desta inteligência (Deus lhe revelava a estratégia dos arameus). En­
tão Ben-Hadade partiu para Dotã, local em que Eliseu morava, para elimi­
nar de vez o problema. Mas Yahweh protegeu o seu servo e cegou os ini­
migos, conduzindo-os a Samaria. Eliseu avisou Jorão para poupá-los e
deixá-los voltar para seus lares. Nunca mais os arameus enviaram poucos
soldados para lutar contra Israel.80
Entretanto, os arameus voltaram rapidamente com um vasto exército,
e cercaram Samaria. O cerco foi tão eficiente que, dentro da cidade, a po­
pulação foi fortemente castigada pela fome, agindo como canibais. Quase
ao ponto de render-se, alguns mendigos que moravam do lado de fora da
muralha perceberam que os arameus haviam fugido desesperadamente.
O Senhor fez com que acreditassem que os hititas e egípcios vinham em
socorro de Israel. A fuga dos arameus foi tão repentina que deixaram o
acampamento intacto, providenciando o alimento de que eles desespera­
damente precisavam.
As datas correspondentes às duas invasões de Ben-Hadade e da visita
de Naamã não estão totalmente firmes, embora as narrativas seguintes
forneçam alguma luz (2 Rs 8.1-6). Nessa história o profeta Eliseu adverte a
uma mulher sunamita, cujo filho havia sido restaurado à vida (2 Rs 4.8­
37), que ela deveria partir da região porque estavam decretados sete anos
de fome no local. Assim ela partiu dali e quando voltou após os sete anos,
achou suas terras ocupadas por outra pessoa. Então ela apelou para o rei
que, após consultar Geazi, o servo de Eliseu, decidiu que os seus bens lhe
seriam devolvidos. O interesse histórico aqui é a referência a Geazi. No
fim da história de Naamã, este jovem foi acometido de uma enfermidade
na pele e obrigado a deixar o serviço ao lado de Eliseu. A história de Naamã,
então, deve seguir o período da fome. Além disso, se este período ocorreu

Esse deve ser o significado de 2 Reis 6.23, pois por algum tempo depois disso Aram
voltou com um grande exército (6.24). Ver T.R. Hobbs, 2 Kings, Word Biblical
Commentary (Waco: Word, 1985), p. 78
A M onarquia D ividida 375

durante todo o reinado de Jorão (852-841), deve ter se estendido até 845. A
cura de Naamã e as duas invasões de Ben-Hadade devem ser datadas pró­
ximo ao final do mandato de Jorão.81

A u n ç ã o de H a z a e l d e D a m a s c o

Então, bem próximo ao fim do reinado de Jorão, Eliseu procedeu na


implementação de duas partes não cumpridas da comissão que seu mes­
tre Elias havia recebido no Horebe: a unção de Jeú como rei de Israel e de
Hazael como rei de Damasco. Eliseu partiu primeiro em direção a Damas­
co (2 Rs 8.7-15). Se Ben-Hadade e Jorão estavam ou não reconciliados é
uma questão irrelevante neste momento. De qualquer forma, Ben-Hadade,
esperando uma cura divina para sua enfermidade, recebeu bem o profeta
Eliseu. Quando Ben-Hadade enviou seu servo Hazael para inquirir do pro­
feta se ficaria ou não curado, recebeu uma resposta bastante enigmática:
"Certamente não sararás. Porque o Senhor me tem mostrado que certa­
mente morrerás." (v. 10). Eliseu anunciou então que Hazael seria o novo
rei — uma grande tragédia para Judá, pois ele infligiria uma cruel e inces­
sante guerra contra o povo de Deus. Encorajado por esta palavra, Hazael
foi ao quarto de Ben-Hadade e matou-o, asfixiando-o enquanto dormia.
Depois do episódio, Hazael iniciou um período de muito derramamento
de sangue na história dos arameus.

Je o rã o de Ju d á

Antes de descrevermos a unção de Jeú, é necessário observar a histó­


ria de Judá contemporânea de Jorão. Josafá vivera mais do que Acabe e
seu filho Acazias, alcançando o quinto ano de Jorão. Morreu apenas em
848, e foi substituído por seu filho Jeorão, que reinou por apenas oito
anos (848 — 841).

81 Green, "Regnal Formulas," JNES 42 (1983): 178, prefere pensar que o cerco à cidade de
Samaria (2 Reis 6.24 - 7.20) aconteceu entre 845 e 841. Essa é uma data bastante razoá­
vel, pois é tardia o suficiente para englobar o período de sete anos de fome e o cerco de
Dotã (2 Rs 6.8-23). Ele também sugere que o contato inicial de Eliseu com a mulher
sunamita (2 Rs 4.8) aconteceu dez anos antes do final dos sete anos de fome — seu filho
nasceu, pelo menos, um ano depois daquele primeiro contato e estava com, no mínimo,
dois anos quando faleceu, e a fome durou outros sete anos. Além disso, Green concluiu
que o primeiro contato de Eliseu e a sunamita deve ter ocorrido no reinado de Josafá,
visto que Jeorão reinou menos de dez anos. Logo, a presença de Josafá na campanha
militar contra os moabitas é totalmente histórica (2 Reis 3).
376 H istória de I srael no A ntigo T estament:

Um dos resultados das alianças feitas por Josafá com a dinastia de Omri
agora ficava evidente. Jeorão, diz o historiador, era tão mau quanto Acabe
e os reis de Israel, pois sua mulher era Atália, filha de Acabe. Josafá apa­
rentemente arranjou o casamento, pois havia se juntado aos que despre­
zavam o Senhor. Porém, mesmo sendo Jeorão pecador, Yahweh não des­
truiu Judá, pois prometera a Davi que a lâmpada de sua dinastia não se
apagaria (2 Cr 21.5-7).
Desde o início de seu reinado, Jeorão mostrou grande inclinação para
derramar sangue, e esta foi uma característica de toda a sua administra­
ção. Temendo a possibilidade de um golpe de estado por parte de seus
irmãos, ordenou que todos fossem assassinados (2 Cr 21.4). Porém ele tam­
bém começou a sofrer reveses. Primeiramente, Edom rebelou-se e estabe­
leceu sobre si seu próprio rei. Esta nação vivera um relacionamento flutu­
ante com Judá durante muitos anos.82 Nos últimos anos de Josafá, Edom
obteve uma independência temporária (1 Rs 22.47; 2 Rs 3.9), mas no início
do reinado de Jeorão, tornou a ficar sob o controle de Judá. Agora, mais
uma vez Edom rebelava-se. Embora Jeorão enviasse um grande contin­
gente militar para pôr fim à insurreição, Edom permaneceu livre da auto­
ridade de Judá (2 Rs 8.20-22).
Libná (Tel es-Sâfi?),83 uma importante cidade na Sefelá, também se
rebelou, provavelmente pela influência dos filisteus próximos à região,
pois, juntamente com os árabes que moravam próximo aos cuxitas, lan­
çaram um ataque contra Jerusalém. O palácio real foi pilhado e despoja­
do, e toda a família real, com exceção do filho mais novo, Acazias, foi
morta à espada (2 Cr 21.16,17).84 Tudo isso aconteceu porque Jeorão cons­
truiu lugares altos e induziu Judá a desviar-se. Além disso, esses aconte­
cimentos já haviam sido preditos pelo profeta Elias em uma carta escrita
ao rei Jeorão (2 Cr 21.12-15), o único escrito que restou daquele ilustre
homem de Deus.

82 Para uma boa análise dos períodos alternados de independência dos edomitas e sua
subserviência a Judá, ver Green, "Regnal Formulas," JNES 42 (1983): 176-77.
83 Essa identificação é um tanto questionável. Ver em Avraham Negev, editor,
Archaeological Encyclopedia of the Holy Land (Englewood, N.J.: SBS, 1980), p. 188;
Yeivin, "Divided Kingdom," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1,
p. 150.
84 O fato de não existir nenhuma evidência na narrativa, ou na arqueologia, de que a cida­
de foi destruída, levou muitos estudiosos a interpretar a campanha aqui discutida como
um ataque contra as cidades situadas bem próximas a Jerusalém. Ver, por exemplo,
Myers, II Chronicles, p. 122.
A M onarquia D ividida 377

Jeorão faleceu através de uma excruciante morte em razão de uma en­


fermidade nos intestinos85 e foi sucedido por Acazias, que reinou apenas
um ano (841). Sendo filho de Atália e sobrinho de Jorão, Acazias evidente­
mente foi mau. Mas esta ligação familiar significava mais do que a defici­
ência espiritual: seria a própria causa de sua morte.

A u n ç ã o d e Je ú

Vejamos então o cumprimento da comissão que Elias recebera no mon­


te Horebe — a substituição da dinastia de Omri por outra, dessa vez fun­
dada por Jeú. Hazael, que subiu ao trono de Damasco por causa de um
assassinato, iniciou o seu reinado (841-801) resistindo a um ataque contra
Ramote-Gileade efetuado pela coligação de Jorão e Acazias (2 Rs 8.28,29).
Jorão esperava recuperar essa estratégica cidade aproveitando-se da con­
fusão em Damasco por causa da conspiração de Hazael. De qualquer for­
ma, os problemas aumentaram para o rei de Israel, pois ele feriu-se e teve
de retirar-se para Jezreel, seu centro administrativo ao norte, a fim de re­
cuperar-se. Acazias, sobrinho do rei, deixou o campo de batalha e partiu
para fazer uma visita ao seu tio.
Enquanto isso Jeú, filho de Ninsi (na verdade filho de Josafá, o filho de
Ninsi), um comandante do exército israelita, recebeu um jovem profeta
enviado por Eliseu, que lhe informou que Yahweh o havia escolhido para
ser o rei de Israel. O jovem profeta ali mesmo o ungiu. Quando Jeú decla­
rou aos amigos e também oficiais do exército aquilo que tinha ouvido, eles
o aceitaram como o novo rei. Imediatamente Jeú arquitetou uma conspi­
ração que o levasse ao trono de Israel e, induzindo os amigos a manter o
assunto em segredo, partiu para Jezreel a fim de concretizar seu plano. Ao
chegar à cidade, encontrou-se com Jorão e Acazias, que logo descobriram
o motivo da visita. Jorão foi morto por Jeú no campo de Nabote, conforme
profetizado por Elias (2 Rs 9.25,26), e Acazias tentou escapar para Sama­
ria, mas foi apanhado e levado à presença de Jeú, que provavelmente esta­
va próximo a Ibleã, cerca de 16 quilômetros ao sul de Jezreel. Acazias no­
vamente conseguiu escapar, mas foi ferido e morreu em Megido.86

85 Green, "Regnal Formulas," JNES 42 (1983): 176, n. 31, propõe que a doença tenha sido
uma intussuscepção causada por hipermotilidade intestinal associada à inflamação
no cólon.
86 Esse cenário relativo a Acazias é uma reconstrução baseada em 2 Reis 9.27 e 2 Crônicas
22.7-9. Para maiores detalhes, ver Merrill, "2 Chronicles," em Bible Knowledge
Commentary, vol. 1, p. 636.
378 H istória de Israel no A ntigo T estament.

Assim Jeú destruiu os reis de Israel e Judá e permaneceu sozinho no


controle. A dinastia de Omri finalmente chegara ao fim, a iniquidade em
Judá foi parcialmente purgada, e uma nova oportunidade chegava para o
povo de Deus.
A D I N A S T I A DE J E Ú E 0 J U D Á
COKTEMPORÃNEO
O reinado de Jeú em Israel
Atália de Judá
O papel das outras nações
As incursões da Assíria
A fraqueza do Egito
Joás, rei de Judá
Os anos de justiça
Os anos de apostasia
A situação externa
Hazael de Damasco
O retomo da Assíria
Jeoacaz, rei de Israel
O cenário internacional
Assíria
Egito
Damasco
Jeoás, rei de Israel
Amazias, rei de Judá
Jeroboão II, rei de Israel
A cronologia do período
A glória de Israel
Uzias, rei de Judá
O m inistério dos profetas
Organização dos profetas
O ofício de profeta
História do profetismo
Os escritos proféticos mais antigos
Obadias
Joel
Amós
Jonas

0 re in a d o d e Je ú em Israel

A data de 841 a.C. é uma das mais significativas da história do Antigo


Testamento, pois marca o fim dos reinos de Jorão, de Israel, e de Jeorão e
Acazias, de Judá, bem como o início do reinado de Jeú, o fundador da
dinastia de maior duração que governou no reino do norte (841-753).1 Além
disso, 841 foi o ano em que, do ponto de vista humano, a linhagem

1 Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers of the Hebrew Kings (Grand Rapids: Eerdmans,
1965), pp. 50-52.
380 H istória de I srael no A ntigo Testament:

messiânica de Davi ficou suspensa por um triz, pois como resultado do


assassinato de Acazias, sua mãe Atália, filha de Acabe, iniciou uma des­
truição sistemática de toda a família real em Judá. Providencialmente, um
dos filhos de Acazias sobreviveu e a dinastia de Davi pôde continuar. Fi­
nalmente, 841 também foi o ano em que o imperador assírio Salmaneser
III empreendeu sua mais bem-sucedida campanha em direção oeste, sem
dúvida a de maior extensão territorial.2 Ele cercou Hazael de Damasco, e
teria invadido e conquistado o território de Israel não fosse o rei Jeú ter
decidido pagar ao assírio um enorme tributo.
Como mostra o capítulo anterior, Jeú foi levantado por Yahweh e rece­
beu a incumbência de remover a perversa dinastia de Omri do trono para
sempre. Ele realizou a tarefa não apenas matando o último rei da dinastia
(Jorão), mas também removendo do cenário a rainha mãe, Jezabel (2 Rs
9.21-37). Foi ela a grande responsável por toda a aceitação do culto a Baal
em Israel. Em conseqüência de seus muitos pecados, o profeta Elias pre­
disse que ela sofreria uma horrível morte (1 Rs 21.23), e Jeú sentiu-se feliz
em poder cumprir a profecia.
Jeú voltou-se para os membros sobreviventes da descendência de Aca­
be. Certo de que contava com o apoio dos líderes em Samaria, mandou
que exterminassem a família real e enviassem suas cabeças até ele em Jezreel
como prova. Logo que isto sucedeu, Jeú usou o ato para convencer o povo
de Jezreel de que ele obtinha apoio de Samaria e que, de fato, eles já havi­
am decidido repudiar a família de Acabe. Então continuou o extermínio,
matando todos os amigos e parentes de Acabe em Jezreel (2 Rs 10.11). Por­
tanto, os dois centros governamentais de Israel estavam agora sob o con­
trole de Jeú.
Porém, duas tarefas ainda o aguardavam em Samaria. No decorrer
da viagem, Jeú encontrou-se com alguns parentes de Acazias de Judá;
ali mesmo os feriu, como fizera anteriormente ao rei. Então, ao chegar
a Samaria, eliminou o restante dos membros da família de Acabe até
não haver mais um sequer. Este porém não foi o único motivo que o
trouxe até Samaria. Jeú sabia bem que o motivo que afastou Israel de
Yahweh deveria ser traçado até chegar aos líderes da nação, de forma
que convocou uma reunião com todos os profetas e sacerdotes de Baal
sob o pretexto de oferecer um grande sacrifício de adoração a esse deus,
e para reconduzi-los à posição oficial de líderes religiosos. Então, após

2 Albert Kirk Grayson, "Assyria: Ashur-dan II to Ashur-Nirari V (934-745 B.C.)," em


Cambridge Ancient History, 3a ed., editado por John Boardman et al (Cambridge:
Cambridge University Press, 1982), vol. 3, parte 1, pp. 262-63.
.A D inastia de J eú e o J udá C ontemporâneo 381

conseguir reuni-los em um grande templo de Baal, Jeú enviou para lá


uma tropa de homens armados, fechou todas as portas e janelas, e ma­
tou todos de uma só vez. Por fim, Jeú mandou que fossem retirados do
templo toda a parafernália que compunha o culto a Baal e converteu o
local em banheiro público (2 Rs 10.27),3 d em o stra n d o tod o seu despre­
zo para com essa religião pagã.
O fato de Jeú erradicar a dinastia de Omri e a adoração a Baal poderia
parecer um retorno ao verdadeiro Jeovismo. Infelizmente, este não foi o
caso, porque embora fosse um adversário do culto a Baal, não se mostrava
um adorador de Yahweh. Era na realidade um sincretista ao estilo de
Jeroboão, e praticou o culto dos bezerros de ouro em Dã e Betei. Por isso
veio sobre ele uma palavra de juízo da parte de Yahweh: por haver sido
fiel no cumprimento da vontade de Deus contra Acabe e sua família, sua
dinastia perduraria por longos anos, mas não perpetuamente (2 Rs
10.30,31). Este rei contemplou com os próprios olhos o início dos juízos de
Deus sobre seu reino, particularmente na perda de extensão territorial para
outros reinos.

A tá lia de Ju d á

O jovem rei Acazias de Judá recebeu a má influência de sua mãe Atália,


e seus principais conselheiros haviam sido membros da corte real de Isra­
el. Tudo o que eles propunham, assim fazia o rei, incluindo a união com
Jorão naquela malfadada campanha contra Hazael, em Ramote-Gileade
(2 Cr 22.5). Após as mortes prematuras de Acazias e outros membros da
família real, promovidas por Jeú, não houve alguém poderoso o suficiente
para assumir o lugar de Acazias em Judá. Neste caso, sua própria mãe
subiu ao trono.
Filha da casa real de Israel, Atália viu a morte de seu filho não como
uma tragédia, mas como uma maneira de submeter Judá ao controle de
Israel. Atália supunha que isto seria vital para que a linhagem de Omri
fosse restabelecida em Samaria. Portanto, depois da morte de Acazias, ela
eliminou todos os filhos e netos que ainda lhe restavam em Jerusalém!
Pela providência divina, a filha de Jeorão, Jeoseba ,4 lançou mão de seu
pequeno sobrinho Joás, filho de Acazias. Pelos seis anos em que Atália

3 Ver T.R. Hobbs, 2 Reis, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1985), p. 130.
4 Jeoseba era filha de Jeorão (2 Rs 11.2), mas não de Atália. O cronista aponta o fato de
Jeoseba ser a mulher do sumo sacerdote Jeoiada (2 Cr 22.11).
382 H istóríá d l I srael s o A\ ligo Tlo; ■.*;

reinou ilegitimamente (841-835), o menino foi escondido no templo e cria­


do por Jeoseba e seu marido, o sumo sacerdote Jeoiada .3*5
Finalmente, chegou o momento propício em que Jeoiada faria Joás, o
verdadeiro descendente do rei Davi, assenta-se no trono de Judá. Ele con­
quistou o apoio dos oficiais do exército que, por sua vez, obtiveram o apoio
dos levitas e dos cabeças dos clãs para o plano proposto. Este envolvia
espalhar soldados em pontos estratégicos para guardar o templo e, com
exceção dos levitas e sacerdotes, qualquer que forçasse a entrada no local
seria morto. Depois disso, Joás foi trazido de seu esconderijo e posicionou-
se próximo ao grande altar em frente ao templo. Jeoiada, com uma cópia
da lei de Moisés, procedeu à cerimonia de coroação do novo rei. A assem­
bléia não pôde conter a alegria e clamou: "Viva o rei!" (2 Rs 11.12).6
Atália, que parecia desconhecer todo o plano, ouvindo as aclamações
da grande festividade, correu para o templo. Compreendendo imediata­
mente o que se passava, gritava "Traição!", mas ninguém lhe deu ouvi­
dos. Apavorada, correu para o Portão do Cavalo, mas ali mesmo foi morta
pelos guardas de Jeoiada. Este sumo sacerdote aproveitou a ocasião para
conduzir o povo a uma renovação de seus votos e de sua aliança com
Yahweh, insistindo para que o rei e o povo se dispusessem a ser obedien­
tes e fiéis ao Senhor (2 Rs 11.17). Em resposta ao apelo, a multidão demo­
liu o templo de Baal, esmagou e reduziu a pó os ídolos e altares do culto, e
matou o sacerdote do templo pagão. Então Jeoiada restabeleceu a adora­
ção no templo exatamente como estava prescrita na lei de Moisés. Final­
mente, conduziu o jovem rei para fora do templo e assentou-o no trono de
seu pai Davi, simbolizando a continuidade da promessa de Deus de que
nunca faltaria a Davi descendente que se assentasse em seu trono.

O p a p e l d as o u tra s n a çõ e s

As incursões da Assíria

O interregno sob Atália coincidiu com os primeiros seis anos do reina­


do de Jeú em Israel, um período pouco referido no registro bíblico. Os

3 A ilegalidade do reinado de Atália pode ser visto no fato que o historiador interrompe
seu padrão de narrativa não incluindo o período dessa rainha em sua contagem crono­
lógica. Só podemos admitir a existência desses seis anos através de dedução. Ver em
Walter R. Winfall, "The Chronology of the Divided Monarchy of Israel," ZAW 80 (1968):
328-29; Thiele, Mysterious Numbers, p. 71.
6 A linguagem do texto reflete a cerimônia e o ritual de coroação; ver John Cray, l & ll
Kings (Philadelphia: Westminster, 1970), pp. 575-75.
A D inastia de J eú e o J edá C ontemporâneo 383

anais assírios, porém, são muito úteis para adquirir informações acerca
deste período. Depois da batalha de Carcar, em que uma coalizão de reis
do ocidente uniu-se para deter o programa de expansão territorial assírio
no oeste, o rei assírio Salmaneser III retirou-se de volta para sua terra natal
a fim de resolver alguns problemas pelos próximos quatro anos. Retornou
para o oeste em 849, 848, 845 e 841, e em todas as data exceto na última
obteve resistência. Contudo, em 841 ele tentou derrotar Hazael, de Da­
masco, e forçou o rei de Israel (Jeú) a pagar-lhe elevado tributo, conforme
está registrado no famoso Obelisco Negro .7 O fato de Jeú estar em seu
primeiro ano pode ser uma coincidência, mas é inteiramente possível que
a instabilidade causada pela sua violência tenha favorecido um ataque
estrangeiro .8 De qualquer maneira, o fato de Salmaneser ter praticamente
destruído Damasco e estabelecido seu senhorio sobre Israel permitiu-lhe
liberdade para tratar de outros assuntos. Logo, depois de 838 ele se ocu­
pou com o norte da Síria e com a Média e Armênia, ao leste a ao norte.
Como conseqüência, Israel tornou-se vulnerável aos ataques depredató-
rios de Hazael. Agindo como instrumento de Yahweh, ele marchou contra a
Transjordânia e arrancou de Israel tudo o que estivesse ao sul do Arnom (2
Rs 10.32,33). A razão política para isso é bem aparente. Jeú, ao invés de jun­
tar-se a Hazael para fazer resistência aos assírios, submeteu-se a Salmaneser
como um de seus vassalos. Portanto, a invasão de Hazael nos territórios de
Israel era uma medida contra o reino do norte e também contra os assírios.
Parece que uma data razoável para a invasão de Hazael seja 837- 836, pois
não poderia ter ocorrido enquanto Salmaneser estivesse presente na região
(ele partiu depois de uma campanha malsucedida contra Damasco em 838).
Por outro lado, era óbvio que Hazael desejava vingar-se de Salmaneser, e
não poderia perder a chance que tão rapidamente lhe apareceu.9

A fraqueza do Egito

Durante todo esse tempo o Egito estava bem informado e conscien­


te da situação turbulenta entre Judá e Israel; e embora quisesse obter

7 Quanto ao texto, ver James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Olá
Testament, 2a ed. (Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 280.
8 Michael C. Astour sugere de forma desafiadora que o massacre promovido por Jeú foi
feito na intenção de destruir qualquer elemento anti-assírio em Israel e Judá, de forma a
poder apaziguar a Assíria ("841 B.C.: The First Assyrian Invasion of Israel,"/AOS 91
[1971]: 388-89).
9 Herbert Donner, "The Separate States of Israel and Judah," em lsraelite and Judaean History,
editado por John H. Hayes e J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1977), p. 413.
384 H istória de I srael xo A m ig o T e >t -.

alguma vantagem, não poderia fazê-lo em virtude do crescimento do


império assírio. O Egito não resistiria a Salmaneser, de sorte que seu
rei, Osorkon II (874-850), rapidamente buscou aliança com os arameus
e os estados da Palestina na esperança de evitar o avanço dos assírios
em direção ao Egito .10 Esses acordos eram mais do que palavras e assi­
naturas, pois havia tropas egípcias entre aqueles que resistiram
Salmaneser em Carcar, em 853.11
Depois que Osorkon foi sucedido por Takeloth II (850-825), o Egito en­
fraqueceu ainda mais, pois Tebas agora levantava-se contra o norte do
próprio país, em uma tentativa de alcançar a independência do Alto Egi­
to. Portanto, nem Joás ou Jeú poderiam esperar qualquer apoio dos egíp­
cios contra qualquer inimigo, fosse ele Hazael ou Salmaneser.

Jo á s , rei d e Ju d á

Os anos de justiça

Os fatos que ocorreram durante os anos do ilícito governo de Atália,


em Judá, não estão registrados explicitamente nas Escrituras, embora se
possa deduzir que durante seis anos (841-835) seu reinado esteve livre de
qualquer problema semelhante ao que Israel enfrentava com Hazael. Pro­
vavelmente Hazael considerava Atália uma aliada, ou no mínimo uma
inimiga de Jeú, por ter este aniquilado sua família.
Finalmente, o verdadeiro descendente de Davi assentou-se no tro­
no, e reinou durante quarenta anos (835-796). Visto que ele tinha ape­
nas sete anos quando se tornou rei, ficou sob a tutela de Jeoiada, o sumo
sacerdote, cuja autoridade sobre o jovem monarca estendia-se ao pon­
to de escolher suas esposas (2 Cr 24.3). Os anos de apostasia sob Atália
atingiram a vida religiosa da nação. Particularmente grave era o fato
de o templo e os serviços sagrados haverem sido abandonados. Joás, já
no princípio de seu reinado, decidiu reformar e restaurar a casa de
Yahweh (2 Rs 12.4,5). Portanto, incumbiu os sacerdotes e levitas de sa­
írem a todas as cidades e vilarejos de seu reino a fim de obter as ofertas
para a manutenção do templo.
Embora o apelo resultasse no acúmulo de fundos, a obra tardou por
alguma razão, e até o vigésimo terceiro ano de Joás (cerca de 814) não

10 Kenneth A. Kitchen, The Third Intermediate Period in Egypt (1100-650 B.C), (Warminster:
Aris and Phillips, 1973), p. 324.
11 Ibid., p. 235.
386 H istória d l I srall no A ntigo T esta o.- ■-

havia qualquer indício da obra .1213 O rei Joás então ordenou ao sumo sa­
cerdote Jeoiada que providenciasse a construção de um gazofilácio ao
lado do grande altar, onde os sacerdotes depositariam as ofertas do povo.1'
Um apelo foi feito por todo o reino para que trouxessem suas ofertas ao
templo; e com alegria o povo ofertou. Joás assalariou trabalhadores para
iniciar a restauração. Tão honestos e fiéis eram os que contabilizavam o
dinheiro que o povo não lhes exigia um relatório. A quantia empregada
pelos supervisores para o pagamento dos trabalhadores servia apenas
para este propósito. Nem mesmo para os utensílios do templo se empre­
gou esse dinheiro. Finalmente, quando toda a obra de reparação e res­
tauração já estava terminada, os vasos da casa de Yahweh foram feitos
do que sobrou da prata e ouro trazidos pelo povo em sua generosidade e
espontaneidade.

Os anos de apostasia

Pouco tempo depois de as obras de restauração do templo serem


encerradas, Jeoiada, o sumo sacerdote, morreu (2 Cr 24.15). Então se
foi a estabilidade espiritual que inspirara Joás quase desde o seu nasci­
mento; Joás afastou-se dos caminhos de Yahweh e passou a tolerar a
adoração a Aserá, a deusa de sua avó Atália. Para acrescentar ainda
mais aos seus pecados, autorizou que o profeta Zacarias fosse assassi­
nado. Este era filho de seu querido mentor Jeoiada, e havia sido envia­
do por Yahweh para repreender o rei e convocá-lo a abandonar seus
maus caminhos.
A atitude de Joás causou a repreensão de Deus, na forma da invasão
dos arameus sobre o território de Judá, ameaçando consideravelmente a
própria Jerusalém (2 Cr 24.23-25). Muitos líderes de Judá foram mortos e o
próprio Joás foi ferido. E ainda mais trágico foi a sua morte, pois foi vítima
de seus próprios oficiais, que se aproveitaram do momento de convales­
cença do rei para matá-lo em seu leito. Tudo isto aconteceu, diz o historia­
dor sagrado, por causa dos pecados de Joás e de Judá, pois abandonaram
ao Senhor (2 Cr 24.24).

12 Quanto a uma análise da coincidência do vigésimo terceiro ano de Joás e o último de Jeú
em 814, ver Thiele, Mysteríous Numbers, p. 74. Quanto ao argumento de que o ano da
ascensão de Joás foi 835 e que em 814 temos seu vigésimo terceiro ano, ver pp. 71-72.
13 Essa prática de repartir a custódia financeira do templo tem sido grandemente
esclarecida por um texto assírio citado por Victor Hrowitz, "Another Fiscal Practice
in the Ancient Near East: 2 Kings 12.5-17 and a Letter to Esarhaddon (LAS 277),"
JNES 45 (1986): 289-94.
A D i \astia de J e O e o J i/ da C ontemporâneo 387

A situação externa

Hazael de Damasco
A invasão dos arameus que culminou na morte de Joás não pode ter sido
a mesma campanha de 2 Reis 12.17,18, pois Hazael já havia morrido em 801,
e Joás ainda viveu até 796. Além disso, os dois relatos nada têm em comum,
exceto o inimigo.14 Por exemplo, somente em 2 Reis está escrito que a cidade
de Jerusalém teria caído nas mãos do inimigo, não fosse o rei Joás ter saído ao
encontro do rei arameu com muito ouro, que retirara do tesouro do templo.
Conforme já se observou, o rei Hazael aproveitou-se da ausência de
Salmaneser III, da Assíria, para investir um ataque sem tréguas contra Isra­
el, seu constante e inveterado inimigo ao sul. A invasão resultou na perda
de grande extensão territorial de Israel, especialmente na Transjordânia. Após
a morte de Jeú de Israel, os conflitos apenas aumentaram, pois o filho de
Jeú, Jeoacaz (814-798), foi constantemente afligido por Hazael. O autor do
livro dos Reis indica que as hostilidades dos arameus continuaram agora
sob o herdeiro Ben-Hadade II (2 Rs 13.3,22-25). Não fosse a intervenção de
Adade-Nirari III da Assíria nos conflitos da região siro-palestinense, os
arameus teriam subjugado Israel e Judá completamente.

O retorno da Assíria
A imunidade de Hazael com respeito à interferência da Assíria durou
não apenas pelo restante dos anos de Salmaneser III, mas também por
todo o reinado de seu filho e sucessor Shamshi-Adad V (823-811).15
Shamshi-Adad chegou ao poder por meio de uma grave rebelião e pelo
apoio do rei dos Povos do Mar, Marduk-zakir-sumi I. Com exceção de
Damasco, os estados clientes ao oeste permaneceram subservientes e bem
administrados, de forma que não houve pressão alguma da Assíria na re­
gião. De fato, tal envolvimento tornou-se um ponto de discussão, pois
desde 818 até sua morte, Shamshi-Adad esteve totalmente ocupado em
muitas guerras com seus antigos aliados na Babilônia. Portanto, é fácil
entender como Hazael sentiu-se verdadeiramente livre, entre 837 e 805,
para empreender qualquer política entre seus vizinhos.

14 Infelizmente, muitos estudiosos interpretam incorretamente os textos de 2 Reis 12.17,18


e 2 Crônicas 24.23-25, afirmando que são registros-variantes do mesmo acontecimento;
ver, por exemplo, Jacob M. Myers, II Chronicles, Anchor Bible (Garden City, N.Y.:
Doubleday, 1965), p. 138-39.
15 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 269-71.
388 H istória de I srael no A ntigo T est -. >.<i

Próximo da ascensão de Adade-Nirari III (810-783) ao trono da Assíria,


os babilónicos foram subjugados, mas isso não despertou de imediato o
interesse assírio nos negócios do ocidente. Adade-Nirari era apenas um
garoto quando substituiu seu pai, sendo acompanhado durante anos por
sua mãe, conhecida pelo nome de Sammuramat.16 Juntos, reedificaram a
cidade de Calá e tornaram-na sua capital e, depois de recuperar a Gozam
em 808, Adade-Nirari pressionou em direção oeste, e em 805 empreendeu
uma campanha militar contra Damasco e Palestina. Sucessivas campanhas
até 79617 deixaram a maior parte da Síria sob o controle assírio, mas todo
esse território, incluindo Damasco e a região mais ao sul, mas rapidamen­
te conseguiu libertar-se em virtude das muitas ameaças que os assírios
recebiam de outras nações. Somente em 743, com Tiglate-Pileser III no tro­
no, a Assíria reassumiria sua posição imperialista no ocidente.

J e o a c a z , rei de Israel

A invasão de Hazael em Judá, registrada apenas em 2 Reis, parece ter


ocorrido depois do vigésimo terceiro ano de Joás (i.e., depois de 814).18
Este foi o ano em que o templo foi reformado e enriquecido. O tributo que
Joás pagou ao rei Hazael para salvar a cidade de Jerusalém sem dúvida
proveio das ofertas do templo. Além disso, o vigésimo terceiro ano de Joás
também foi o ano da morte do rei Jeú e da ascensão de seu filho Jeoacaz ao
trono de Israel (2 Rs 13.1). O autor do livro dos Reis é cuidadoso em apon­
tar que esses fatos coincidiram com os ataques de Hazael contra Israel, de

16 William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancíent Near East (New York: Harcourt
Brace Jovanovich, 1971), p. 129. Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 271-72, não está
de acordo com essa afirmação, argumentando que a noção de uma co-regência está ba­
seada em uma má interpretação do texto relevante.
17 Baseado na esteia de Rimah, que menciona Jeoás de Samaria (798-782), a maioria dos estu­
diosos situa a última campanha de Adade-Nirari contra Mansuate em 796. William H. Shea,
contudo, sugere que a esteia de Rimah, como a esteia de Sabá, refere-se a uma campanha
mais anterior (805) naquela mesma região. Isso, evidentemente, exige que o reinado de
Jeoás seja situado da mesma forma ("Adade-Nirare III and Jehoash of Israel," fCS 30(1978]:
101-13). Shea não leva em conta o fato de as inscrições reais serem compostas de forma
bastante estereotipada, e desconsidera que lugares diferentes possam ter sido conquistados
em campanhas com intervalo de dez anos entre uma e outra. Ver também Hayim Tadmor,
"The Historical Inscriptions of Adade-Nirari III," Iraq 35 (1973): 141-50.
18 S. Yeivin situa a invasão de Hazael em 813 ("The Divided Kingdom: Rehoboam-
Ahaz/Jeroboam-Pekah," em World History o f the ]ewish People, vol. 4, parte 1, The
Age of the Monarchies: Polítical History, editado por Abraham Malamat (Jerusalem:
Massada, 1979), p. 152.
A D inastia de J eú e o J udá C ontemporâneo 389

maneira ainda mais intensa (13.3).19 É possível que a morte de Jeú, em 814,
tenha servido de estímulo para Hazael lançar seu ataque contra Israel e, ao
mesmo tempo, contra as cidades de Gate e Jerusalém. Shamshi-Adad da
Assíria estava completamente ocupado em suas guerras contra a Babilônia
nesses anos, de forma que não pôde evitar as conquistas de Hazael.
Mesmo sendo um rei injusto e mau perante os olhos do Senhor, o rei
Jeoacaz clamou a Deus durante os dias em que Hazael castigava seu rei­
no, de sorte que Yahweh enviou um "libertador" que livrou Israel das
mãos dos arameus (2 Rs 13.5). Para a maioria dos estudiosos, esse "liber­
tador" foi Adade-Nirari III que, conforme visto, lançou-se em uma inten­
sa campanha ao oeste em 805, que resultou na subjugação de Hazael e,
portanto, na libertação da nação de Israel.20 Enquanto isso, Israel estava
reduzido a um miserável e insignificante estado, pois o historiador sagra­
do diz que o exército contava com apenas cinqüenta cavaleiros, dez carru­
agens e dez mil homens de infantaria!
A segunda campanha de Damasco contra Jerusalém, que resultou no
ferimento quase mortal de Joás e, por fim, em sua própria morte, não pode
ter sido dirigida por Hazael, pois este morrera em 801,21 embora Joás te­
nha vivido até 796.22 O rei arameu que surge no cenário (não há registro
de seu nome) deve ter sido o filho de Hazael, Ben-Hadade II, que conti­
nuou a política de intervenção de seu pai nos negócios de Israel e Judá.
Em suas mãos Yahweh entregou o reino do norte continuamente durante
os dias de Jeoacaz (2 Rs 13.3), mas Jeoás, filho de Jeoacaz, foi forte o sufici­
ente para reaver as cidades israelitas que estavam sob o controle de Ben-
Hadade (13.25). E, por fim, Jeroboão II conseguiu recuperar todo o territó­
rio que pertencera ao reino de Salomão, e que estava por muito tempo no
poder dos arameus (2 Rs 14.25-27).

19 A redução do território israelita pode ser vista nos Óstracos de Samaria, que registram
o pagamento de taxas de algumas poucas cidades próximas da capital (Yeivin, "Divided
Kingdom," p. 153).
20 Quanto ao que está escrito na "Placa de Nimrud", ver Pritchard, Ancient Near Eastern
Texts, pp. 281-82. Aqui Hazael é identificado como Mari' ("Senhor"), embora aquele fosse
seu nome, ao invés de título. Ver Merril F. Unger, Israel and the Aramaeans of Damascus
(Grand Rapids: Baker, 1980 reedição), p. 83. Adade-Nirari também derrotou Damasco e
seu rei Ben-Hadade em 796, de sorte que ele também pode ter atuado como "libertador"
de Israel, que naquela ocasião estava sob o governo de Jeoás (Hayim Tadmor, "Assyria
and the West: The Ninth Century and Its Aftermath," em Unity and Diversity, editado por
Hans Goedicke e J. J. M. Roberts [Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1975], p. 40).
21 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 82.
22 Thiele, Mysterious Numbers, pp. 72-73.
390 H istória de I srael no A ntigo T est -.'-'.L'~:

O ce n á rio in te rn a c io n a l

Assíria

Antes de iniciar o oitavo século, com os reinados de Jeoás, de Israel, e


de Amazias, de Judá, é necessário observar atentamente o contexto inter­
nacional que influenciaria inevitavelmente a história do reino dividido.
Vejamos a Assíria, que na ocasião já era a mais poderosa força militar e
política estabelecida no Oriente Médio, e que continuaria mantendo a
hegemonia por quase dois séculos seguidos.
A retirada de Adade-Nirari III da região oeste depois de 796 deixou a
região praticamente sem a influência dos assírios por mais de cinqüenta
anos. Esse rei foi sucedido por seu filho, Salmaneser IV, que reinou por
apenas dez anos (782-773).23 Salmaneser viu-se na defensiva contra o rei­
no de Urartu na maior parte de seu governo, e foi incapaz de controlar
todo o seu império, principalmente as regiões mais distantes, como Arã.
Seu irmão Assur-dan III (772-755) não foi melhor do que seu antecessor,
embora haja registro em seus anais de uma campanha militar contra Da­
masco, em seu primeiro ano de reinado, e muitas outras contra Hatarika
(Hadrach).24 A impotência militar da Assíria está claramente sugerida pela
falta de campanhas em quatro anos — uma omissão quase única — e pela
fraqueza de Assur-dan em reprimir os levantes civis, particularmente em
Gozã.
Um terceiro filho de Adade-Nirari, chamado Assur-nirari V (754-745),
assumiu o trono. Seu curto reinado pôde empreender apenas uma campa­
nha verdadeiramente eficaz, cujo alvo foi Arpade em 754. Seu assassinato
em Calá pôs fim à era impotente dos assírios, pois após este episódio surgiu
um dos maiores e mais respeitados monarcas assírios: Tiglate-Pileser III.

Egito

Ao sul da Palestina está o Egito, que naqueles anos atravessava uma


fase complexa, em razão de duas dinastias coexistentes no país — a 2 2 a e a
23a.25 Takeloth II, da 22a Dinastia (850-825), testemunhou a intensa batalha

23 Grayson, "Assyria," em CAH 3.1, pp. 276-77.


24 Ibid., p. 277.
25 Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 326-33. Quanto às datas pouco diferentes e uma discus­
são detalhada da cronologia do Egito nesse período, ver Klaus Baer, "The Libyan and Nubian
Kings of Egypt: Notes on the Chronology of Dynasties XXII to XXVI," JNES 32 (1973): 6-15.
À D inastia de J eú e o J udá C ontemporâneo 39 1

de Tebas dividir-se, uma brecha que parecia inevitável. Entretanto, antes


de ver a sua concretização, Takeloth morreu e foi sucedido por seu filho
Shoshenq III, que usurpou o trono de seu irmão mais velho, Osorkon. Ini­
cialmente, Shoshenq parecia reunificar o norte e o sul com algum sucesso,
mas por razões até hoje desconhecidas um monarca rival chamado
Pedubast apresentou-se em Leontópolis. Este fundou a 23a Dinastia, que
reinou por vinte e cinco anos sobre o ocidente do Delta (818-793).
Embora Shoshenq III tenha assumido o lugar de Faraó em Tanis por
mais de cinqüenta anos (825-773), seu reino foi somente um pequeno prin­
cipado quando comparado com os seus antecessores. Para aumentar os
problemas, muitos chefes da região do Delta começaram a proclamar sua
independência contra Shoshenq, e também contra Pedubast. O alto Egito
professou aliança com Pedubast, mas isto se compensou através do
surgimento dos príncipes do norte do Delta e pela crescente presença dos
núbios no extremo sul do país. Por volta de 737, Piankhy, da Núbia, rei­
vindicou o direito de reinar sobre Tebas, e fundou a 25a Dinastia no local.
Dez anos mais tarde, Tefnakht I (727-720) fundou a 24a Dinastia, a conhe­
cida linhagem real dos Saítas, no extremo norte do Delta. Essas duas famí­
lias reais viveram paralelamente, conforme ocorreu com a 22a e a 23a Di­
nastias em seus últimos anos. A primeira terminou com Osorkon IV, em
cerca de 715, e a segunda com Shoshenq VI, no mesmo período .26
O que é evidente neste contexto histórico-político é que o Egito se apre­
sentava como um estado completamente desestruturado e fragmentado
pela maior parte do século VIII. Israel e Judá não temiam este inimigo ao
sul, e ironicamente o buscaram quando se viram acossados pela Assíria.

Damasco

Mais uma vez, Damasco estava livre para molestar seus inimigos ao
sul. Mas agora a situação era diferente, pois tanto Israel quanto Judá esta­
vam sendo governados por reis criativos e corajosos, que não apenas re­
sistiram a invasão dos arameus, mas também tomaram medidas decisivas
para expandir seu território, à custa do inimigo.

Je o á s , rei d e Israel

O terceiro na linhagem de Jeú de Israel foi o filho de Jeoacaz, conhecido


por Jeoás, que reinou de 798 a 782. Também ele não se desviou dos peca-

Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 362-77.


392 H istória de I srael no A ntigo TE S T -.vm r

dos de Jeroboão, "os quais ele ensinou a Israel". Mas ainda assim Deus lhe
foi gracioso e o capacitou para prevalecer não apenas contra os arameus,
mas também contra Amazias, rei de Judá. O fato de ter consolado Eliseu
próximo de sua morte e de ter recebido deste muitos conselhos (2 Rs 13.14­
19) contribuiu para que Jeoás não fosse visto como mais um rei israelita na
tradição de seus antecessores.
A visita de Jeoás ao profeta Eliseu deve ter ocorrido bem no princípio de
seu reinado, talvez em cerca de 796. Esta sugestão tem base no fato de Ben-
Hadade II ter acabado de subir ao trono de Damasco, sucedendo Hazael, que
morrera em 801. Hazael foi um problema constante para Jeú e seu filho Jeoacaz;
agora que estava morto, parecia ter chegado o momento certo para Israel vin­
gar-se contra aquele reino e readquirir seus territórios perdidos. Sem dúvida
este fator motivou Jeoás a buscar os conselhos do antigo profeta. Ele desejava
saber se os arameus, liderados por Ben-Hadade, seriam entregues nas mãos
de Israel. Após receber uma resposta positiva, partiu contra Ben-Hadade e,
conforme predisse o profeta Eliseu, obteve três grandes vitórias, e todas pro­
porcionaram a recuperação de territórios perdidos. Se nele houvesse mais fé
em Yahweh, teria destruído completamente os arameus.
Não há especificação das cidades recuperadas, exceto que haviam sido
conquistadas por Ben-Hadade na época de Jeoacaz, pai de Jeoás (2 Rs 13.25).
Este é um dado importante, porque Ben-Hadade, que iniciou seu reinado
em 801, decidiu continuar a política de agressão contra Israel. Embora
Yahweh tivesse suscitado um libertador, nos anos entre 805 e 796, o rei
assírio Adade-Nirari teve de retornar para sua terra a fim de resolver al­
guns problemas internos, o que deixou Israel novamente indefeso. Ben-
Hadade aproveitou o afastamento do rei assírio para tomar alguns territó­
rios israelitas. Por isso não é de espantar que o rei Jeoás buscasse a orien­
tação de Deus.

A m a z ia s , rei d e Ju d á

Outra indicação de que as campanhas de Jeoás contra Damasco ocorre­


ram no princípio de seu reinado é que, depois de Amazias tornar-se rei de
Judá, Jeoás teve pouco tempo para tratar com os arameus, pois agora Judá
tornara-se sua maior preocupação. Amazias, o filho de Joás, chegou ao
trono de Davi em 796 e reinou até 767, vivendo quinze anos a mais do que
Jeoás. No geral, é mencionado de forma favorável, embora não tenha se­
guido Yahweh de todo seu coração.
Ao estabelecer seu domínio com firmeza, Amazias passou a punir aque­
les que haviam assassinado seu pai. Depois, reorganizou e reconstruiu a
A D inastia de J eú f. o J vdá C ontemporâneo 393

máquina militar de Judá, com objetivo de não apenas proteger o reino das
ameaças ao redor — Israel, que na ocasião estava melhor equipado e pre­
parado — mas também readquirir os territórios perdidos nos cinqüenta
anos anteriores.
As relações com Israel ainda não haviam se deteriorado ao ponto de haver
uma guerra aberta, pois Amazias empregou em seu exército cem mil merce­
nários israelitas. Segundo o cronista, esta atitude não foi sábia, pois Israel já
havia sido rejeitado por Yahweh e não poderia ajudar o seu povo. Judá teria
de confiar no Senhor, não na força humana. Ironicamente, quando o próprio
Amazias decidiu não levar consigo os homens de Israel, sua atitude disparou
um conflito de grandes proporções entre os dois reinos (2 Cr 25.5-13).
O primeiro objetivo de Amazias, quando saiu com um imenso exército,
era recuperar a província de Edom, pertencente a Judá. Nenhuma menção
de Edom é feita desde o reinado de Jeorão, cinqüenta anos antes, quando
se rebelou contra Judá, tornando-se uma nação independente .27 Sem dú­
vida permaneceu nessa condição até os anos de Amazias, de maneira que
o empreendimento de Amazias não era tanto uma reação à recente seces­
são edomita quanto era uma tentativa de recuperar a antiga glória de Judá.
De qualquer forma, os exércitos de Judá encontraram as forças defensi­
vas de Edom no vale do Sal (Vadi el-Milh), entre Berseba e Arade, e vence­
ram sobejamente os edomitas. Com indescritível brutalidade, Amazias
matou dez mil homens de Edom na peleja, e outros dez mil jogou de um
despenhadeiro para que morressem nas rochas embaixo. Então foi a Sela,
a cidade-capital dos edomitas e a colocou sob o domínio de Judá nova­
mente (2 Rs 14.7; 2 Cr 25.11-12).
O encontro triunfante com os edomitas pode ter concedido ao rei
Amazias um certo prestígio, mas em nada contribuiu para estabelecer uma
posição espiritual como líder do povo, pois dentre os espólios da guerra
estavam os ídolos dos edomitas, que ele adorou em Jerusalém. Apesar do
apelo de um homem de Deus, Amazias continuou a sua desenfreada de­
sobediência, de forma que um profeta anônimo predisse a trágica e vio­
lenta morte do rei (2 Cr 25.14-16).
Enquanto isso, os mercenários israelitas que haviam sido dispensa­
dos do serviço, voltaram para sua terra enfurecidos, matando, ferindo e
saqueando por onde passavam. O alvo principal de sua fúria, segundo o
cronista, foram as "cidades de Judá, desde Samaria, até Bete-Horom"(2

27 Evidentemente a revolta contra Judá no tempo de Jeorão (2 Rs 8.20-22) permitiu a Edom


tornar-se independente até ser reconquistado por Amazias. Ver B. Oded, "Neighbors on
the East," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 255.
394 H istória de I srael no A ntigo T estame '~

Cr 25.13). Esta informação é surpreendente, pois revela que existiam co­


lônias de Judá espalhadas em alguns locais no reino do norte .28 Talvez
essas cidades fossem aquelas que Asa capturara; também poderiam ser
as cidades para as quais Josafá enviou sacerdotes e levitas como mestres
(ver 2 Cr 15.8; 17.2; 19.4).
Obviamente Amazias atribuiu esse massacre a Jeoás, desafiando-o em
seguida à guerra (2 Cr 25.17; cf. 21 ) .29 Sua recente conquista de Edom deve
ter servido como fator de encorajamento para se voltar contra um adver­
sário mais forte do que ele. Mas Jeoás também estava confiante, pois por
essa época havia conseguido derrotar Ben-Hadade, de Damasco, e recu­
perar as cidades perdidas por seu pai. Tudo estava preparado para uma
confrontação entre os dois reis, um conflito que poderia definir a
reunificação de ambos os reinos sob o domínio de um ou de outro.
A resposta de Jeoás foi enviada em forma de parábola, na qual ele se
comparava a um grande cedro e o rei de Judá um cardo que estava no
Líbano (2 Cr 25.18,19). O cardo exigia do cedro que lhe entregasse sua
filha para ser-lhe esposa, mas os animais do campo passaram por cima
do cardo, e destruíram-no. Dessa forma, Jeoás avisou a Amazias que sua
vitória contra Edom não deveria dar-lhe falsa esperança de conquistar o
poderoso Israel.
Este aviso não fez bem ao rei Amazias, que imediatamente conduziu
seu exército à batalha em Bete-Semes. O cronista enfatiza que a pertiná­
cia do rei de Judá procedia de Yahweh, pois o Senhor tencionava punir
Amazias por sua prática idólatra (2 Cr 25.20). Judá não apenas caiu em
desgraça, como também Amazias foi levado prisioneiro e forçado a vol­
tar para Jerusalém na companhia de Jeoás. Lá ele viu com os próprios
olhos a destruição da muralha de sua cidade e o saque dos tesouros acu­
mulados no templo de Yahweh.
Amazias quase perdeu sua vida na ocasião. Na verdade, o porquê de
Jeoás ter-lhe poupado é um mistério, pois evidentemente o levou a Sama-

28 Alguns estudiosos erram exatamente aqui. H. G. M. Williamson, por exemplo, afirma


que se deve ler Migrom, em vez de Samaria (1 and 2 Chronicles, New Century Bible
Commentary [Grand Rapids: Eerdmans, 1982], p. 330). Yeivin, "Divided Kingdom," em
World History ofthe Jezvish People, vol. 4, parte 1, p. 159, propõe que "de Samaria" está se
referindo ao ponto de origem dos que atacavam, ou seja, às tropas que vinham de Sa­
maria para invadir as cidades de Judá.
29 Yeivin, "Divided Kingdom," em World History ofthe Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 160,
é da opinião que isso não passou de um convite a um entendimento para estreitamento
das relações comerciais; porém, o uso do mesmo termo ("viram-se cara a cara") em 2
Reis 14.11 e 2 Crônicas 25.21 claramente desfaz essa teoria.
A D inastia de J eú e o Jun.Á C ontemporâneo 395

ria como prisioneiro (2 Rs 14.13,14). A resposta pode estar relacionada à


data do acontecimento. Tanto o autor do livro dos Reis quanto o cronista
enfatizam que Amazias viveu quinze anos a mais do que Jeoás (2 Rs 14.17;
2 Cr 25.25). Talvez seja uma sugestão de que a libertação de Amazias do
coritrole isrciGlitci cÍ0 \tG”SG à mortG c!_g sgi1 sil^oz _A.csim 3 bcitcilhci cIg Bgêg-
Semes provavelmente ocorreu em 783 ou 782.3031
Os últimos quinze anos de Amazias não foram mais tranqüilos em con-
seqüência da morte de Jeoás, pois o próximo rei de Israel, JerobôãtTÍ^
tornou-se mais poderoso e ameaçador. Além disso, uma conspiração estaA
va sendo trabalhada em Judá para remover Amazias do trono. Em 767, os
conspiradores tentaram consumar o fato, e o rei precisou escapar de Jeru­
salém. Ele dirigiu-se para Laquis, mas foi alcançado naquele local e assas­
sinado. O fato não deve ser interpretado como uma ação contra a dinastia
real de Davi, pois seu próprio filho, Azarias (Uzias), co-regente de Judá já
por mais de vinte anos, assumiu o trono em seu lugar. A teoria mais pro­
vável é que a conspiração tenha sido motivãd^ por um desejo de restaurar
a pura adoração a Yahweh (2 Cr 25.27).T e "A

Je ro b o ã o II, rei de Isra e l

A cronologia do período \

As mortes de Jeoás e Amazias e suas respectivas sucessões levantam


alguns problemas cronológicos, que precisam rapidamente ser trabalha­
dos neste momento. Jeoás morreu em 782, e nesse tempo seu filho Jeroboão
II começou a rèinah Jeroboão, por sua vez, morreu em 753, mas o autor do
livro dos Reis informa que ele reinou por quarenta e um anos (2 Rs 14.23).
A melhor solução para o problema dos doze anos a mais seria estabelecer
uma có-regência entre Jeroboão e Jeoás, de forma que os quarenta e um
anos hoüyessem iniciado em 793.32 Mas não há nas Escrituras qualquer

30 Qutra possibilidade a ser considerada é que Uzias foi convocado a suceder Amazias
porque este foi levado em cativeiro pelo rei Jeoás. Nesse caso, aquela batalha (Bete-
jc i i L o j ic iia ut.: sei pu?"-1U.,«U« U11. um, u u L1V..U.

Thiele sugere que os "quinze anos" a mais referem-se ao período entre o final do cati­
veiro de Amazias (que terminou quando Jeoás morreu, em 782) e sua própria morte em
767 (Mysterious Numbers, pp. 86-87). Uzias teria então servido sozinho como rei durante
dez anos, enquanto Amazias estava em cativeiro.
31 Myers, II Chronkles, p. 146.
33 Edwin R. Thiele, "Coregencies and Overlapping Reigns Among the Hebrew Kings,"
JBL 93 (1974): 192-93.
396 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t ic , o T e s t a n£.*-~n

apoio a essa hipótese, embora já tenhamos visto esse tipo de estrutura em


Judá, além de ter sido uma prática muito comum no antigo do Oriente
Médio. Também os reinados de Jeoacaz e Jeoás de Israel foram marcados
por perigos internos e externos que, sem dúvida, imprimiram uma marca
de fragilidade, gerando a necessidade de garantir a sucessão da dinastia.
Outros fatores como a doença também poderiam motivar o estabelecimento
da co-regência.
Se uma sobreposição de doze anos entre Jeoás e Jeroboão é problemáti­
ca, o que dizer então dos vinte e cinco anos compartilhados por Amazias,
de Judá, e seu filho Uzias? Os estudiosos estão unidos em aceitar a data de
740 para a morte de Uzias, de forma que os cinqüenta e dois anos mencio­
nados no livro dos Reis e das Crônicas requerem que a data de ascensão
seja fixada em 792, apenas quatro anos depois da coroação de Amazias.
Visto que Amazias morreu em 767, Uzias foi seu co-regente por vinte e
cinco anos. Embora isto pareça improvável, certamente não é impossível
e, na verdade, é a melhor maneira de acomodar toda a evidência.33 Amazias
estava com vinte e cinco anos de idade quando começou a reinar, em 796
(2 Rs 14.2). Em 792, ano em que a co-regência de Uzias se iniciou, Amazias
estava com cerca de vinte e nove ou trinta anos. Uzias tinha dezesseis
anos nessa ocasião,34 de modo que Amazias tinha apenas catorze anos
quando seu filho nasceu. Sem dúvida, é uma idade muito tenra para ser
pai de um filho, mas no contexto dos casamentos do mundo antigo, não
seria tido por inaudito .35
Assim os dados cronológicos a respeito dos reinados de Jeroboão
II e Uzias podem ser organizados quando postulamos uma longa co-
regência com seus pais. As exigências políticas e militares da prim ei­
ra metade do século oito tornaram tais decisões razoáveis. Também
deve-se observar que Jeroboão e Uzias foram contem porâneos na
maior parte de seus reinados, o primeiro reinando de 793 a 753, e o
segundo de 792 a 740.

A glória de Israel

Nos textos históricos, os relatos acerca do reinado de Jeroboão são


esparsos, mas os profetas do período têm muito a dizer sobre as condições

33 Ibid., p. 193.
34Esse é o significado de 2 Reis 14.21. Ver Thiele, Mysterious Numbers, pp. 83-84. Pela maior
parte de seu reinado, então, Amazias foi co-regente com seu filho.
35 Roland de Vaux, Ancient Israel (New York: McGraw-Hill, 1965), vol. 1, p. 29.
À D i n a s t i a d e J e ú e o J l id á C o n t e m p o r â n e o 397

existentes em seu governo. O julgamento proferido é que ele foi mau peran­
te os olhos do Senhor. Entretanto, estabeleceu uma liderança política abso­
luta. Seguindo os passos de seu pai Jeoás, a quem presumivelmente ajudou
em suas campanhas militares, Jeroboão foi capaz não apenas de recuperar
os territórios de Israel sob o domínio de Damasco por muitos anos, mas
também de trazer todo o sul de Aram e a Transjordânia de volta ao poderio
de Israel (2 Rs 14.25-28). Não houve outro reino que, desde os tempos de
Salomão, tenha conseguido dominar sobre tamanha extensão territorial.
Mas isso não aconteceu em razão da piedade de Jeroboão; pelo contrá­
rio, foi apesar de sua iniqüidade. Na verdade, como o profeta Jonas pro­
clamou, a razão da libertação de Israel era que Yahweh permanecia mise­
ricordioso com o seu povo e lembrava-se de seu pedido para não os des­
truir (2 Rs 14.25-27). Viria ainda o dia do julgamento de Israel, mas esse
não era o tempo. Agora, era momento de alívio e até de favor. Talvez a
recuperação do reino conduzisse a nação ao zelo pela aliança.
As incursões de Jeroboão só foram possíveis porque a Assíria encontra­
va-se em más condições no momento. O poderoso império chegara ao pon­
to mais baixo, de forma que não podia intervir em assuntos internacionais.
Quanto a Ben-Hadade II de Damasco, este foi gravemente derrotado e hu­
milhado por Zaquir de Amate, em cerca de 773 .36 De fato, é possível que
tenha morrido nessa batalha. Ele já havia perdido algumas cidades para
Jeoás, de Israel, e, na ocasião de sua morte, deixou a cidade de Damasco
praticamente em falência. Jeroboão empreendeu seu programa de restaura­
ção do império de Israel ou no intervalo entre a morte de Jeoás (782) e Ben-
Hadade II (ca. 773) ou pouco tempo depois. A cidade de Damasco foi inclu­
ída em suas conquistas, embora sua derrota para Israel não esteja registrada
em nenhuma fonte extra-bíblica; por isso é menos considerada pela maioria
dos estudiosos.37 Muito provavelmente Damasco foi tomada por Jeroboão
durante o reinado do sucessor de Ben-Hadade, cujo nome infelizmente não
está registrado na história. O próximo monarca de Damasco conhecido cha­
mava-se Rezim, que chegou ao poder em cerca de 750 e que, como aconte­
ceu ao rei anterior, morreu junto com sua cidade em 732.38 Uma outra pos­

36 Maiores informações quanto às datas sugeridas, ver Unger, Israel and the Aramaeans, pp.
85-89. Uma tradução e comentário da esteia de Zakir podem ser achados em D. Winton
Thomas, editor, Documents from Old Testament Times (London: Thomas Nelson, 1958),
pp. 242-50.
37 Oded, "Neighbors on the East," em World History of the Jeioish People, vol. 4, parte 1, p.
268, deixa aberta essa possibilidade, citando a escavação de 'En Gev e o tratado de Sfire
como evidência.
38 Unger, Israel and the Aramaeans, p. 95.
398 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a o t

sibilidade é que não há informação de um rei em Damasco entre os anos de


773 e 750 porque não se levantou neste período um governante nativo.34 A
conquista de Jeroboão da área norte de Hamate deve ter sido tão decisiva
que Damasco nem mesmo pôde estabelecer-se como estado tributário, in­
corporando-se diretam ente ao im pério de Jeroboão. Não se pode
desconsiderar que o reaparecimento de um rei arameu, na pessoa de Rezím
(750), coincidiu exatamente com a época da morte de Jeroboão e seu filho
Zacarias, em 753 — os últimos membros da poderosa dinastia de Jeú.

U z ia s , rei de Ju d á

O reino de Judá também experimentava um grande desenvolvimento


sem precedentes, tudo graças à fidelidade e piedade do rei Uzias. Durante
a co-regência com seu pai, Amazias, Uzias aprendeu muito sobre como
lidar com os negócios do Estado. Tanto o autor do livro dos Reis como o
cronista apontam que Uzias, diferente de seu pai, era um rei querido do
povo. Uma normal sucessão dinástica pela morte de um rei não seria des­
crita com estas palavras: "Então todo o povo tomou a Uzias... e o fizeram
rei" (2 Cr 26.1). Está claro que a sua aclamação ocorreu enquanto seu pai
ainda vivia e reinava. Em outras palavras, o povo forçou uma co-regência
sobre a nação .3940
Pode-se encontrar apoio para a teoria de uma co-regência em duas ou­
tras declarações. Primeiro, ambas as fontes históricas enfatizam o que, de
outra maneira, parece apenas ser de interesse secundário — Uzias recons­
truiu a cidade de Elá e devolveu-a para Judá depois da morte de seu pai (2
Rs 14.22; 2 Cr 26.2). E nítida a impressão de que a atitude de Uzias foi
tomada logo que seu pai morreu, embora mesmo durante seu mandato
como co-regente viesse ponderando o assunto. De outra forma, a menção
de que isso ocorreu após a morte de Amazias é tão auto-evidente que se
torna sem sentido.

39 T.C. Mitchel faz referência a um certo Hadianu (= Hezion) do período que está registra­
do apenas em uma inscrição de Salmanaser IV, mas que não foi publicada ("Israel and
Judah from Jehu Until the Period of Assyrian Domination [841-c. 750 B.C.]," em CAH
3.1, p. 510). Essa é a conhecida esteia de Pazarcik. A identificação de Hadianu como um
rei de Damasco, porém, é incerta.
40 Yeivin ("Divided Kingdom," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 161)
sugere que Amazias foi verdadeiramente deposto em favor de Uzias, mas não há razão
para se pensar que o caso chegou a esse extremo, pois o tempo de duração do reinado
de Amazias vai até 767, ao passo que a co-regência de Uzias começou em 792.
A D in a s t ia de J eú e o J vdá C o n tem po rân eo 399

Ainda mais significativo é a declaração do cronista de que Zacarias ins­


truiu o jovem Uzias no temor de Deus (2 Cr 26.5). Na ausência de qualquer
outra identificação conclui-se que esse Zacarias não é outro senão o filho de
Jeoiada, que foi mencionado em conexão com a idolatria de Joás. É preciso
. lembrar que esse formidável profeta repreendeu o rei por permitir a adora­
ção de ídolos em Jerusalém, e por isso Zacarias foi executado (2 Cr 24.17­
22). A partir daí uma série de acontecimentos culminou na morte de Joás em
796. O martírio de Zacarias aconteceu apenas um ano antes. Portanto, para
que Uzias fosse instruído por esse sacerdote, seria necessário estar em uma
idade própria para o ensino, no máximo em 797. Esta data acomoda-se per­
feitamente à teoria de uma co-regência em 792, quando Uzias estava com
dezesseis anos. Nesse caso, ele estaria com onze anos em 797, uma idade já
apropriada para buscar a Deus, nos dias de Zacarias.
O reino de Uzias é descrito de forma resumida em 2 Reis, mas bastante
gloriosa pelo cronista. O interesse de Uzias em questões militares é
enfatizado da seguinte maneira: reorganizou e reestruturou o exército, até
que o efetivo subiu para mais de trezentos mil homens bem treinados.
Deu-lhes armamento bastante sofisticado, como, por exemplo, máquinas
para cerco, que permitiam que as muralhas do adversário fossem escala­
das, e plataformas de onde seus homens pudessem arremessar munição
contra os inimigos, as catapultas.
Assim Uzias lançou-se contra os filisteus, quebrando as muralhas de
Gate, Jabne (Yebna) e Asdode, e construindo cidades próximas a Asdode
e outros lugares que oferecessem posições defensivas de seu reino (2 Cr
26.6). Depois voltou-se contra os árabes da região de Gur Baal (Tel Ghurr),
entre Berseba e Arade ,41 e submeteu-os. Os meunitas que viviam no
Arabá, nas proximidades do mar Morto, também capitularam. Finalmen­
te, Uzias prevaleceu sobre os amonitas e transformou-os em um estado
cliente de Judá .42 Aparentemente isto não era definitivo, pois Jotão, filho
de Uzias, teve de repetir a subjugação de Amom, pelo menos uma vez (2
Cr 27.5). O resultado de todo esse envolvimento foi o grandioso fortale­
cimento que a nação experimentou, cujo rei ganhou respeito e admira­
ção em lugares muito distantes.
Mas Uzias não foi apenas um "destruidor"; também foi um grande
construtor, edificando instalações para defesa no interior e ao redor de

41 Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a ed. (New York: Oxford University
Press, 1984), pp. 69,130.
4: Oded, "Neighbors on the East," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p.
262.
400 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t w e *—:

Jerusalém. Sua principal realização foi a construção de torres e a escava­


ção de cisternas no deserto e no Sefelá, um feito da engenharia e tecnologia
agrícola que serviria como um modelo para as gerações futuras, o que
inclui os nabateus e os israelitas de nossa era .43 A observação do cronista
de que Uzias "era amigo da agricultura" (2 Cr 26.10) é um forte indício
dos motivos que o impeliram a desenvolver projetos tão criativos.
Tragicamente, os sucessos de Uzias nos negócios militares contribuíram,
por outro lado, para o seu fracasso, pois o historiador relata: "...exaltou-se o
seu coração até se corromper" (2 Cr 26.16). Desconsiderando totalmente a
lei de Moisés (Nm 16.40), Uzias arrogou-se o direito e o privilégio de ofere­
cer incenso no templo de Yahweh, uma tarefa exclusiva dos sacerdotes. Na
ocasião o sacerdote Azarias o defrontou, ordenando-lhe que saísse do recin­
to sagrado. Ao recusar-se a obedecer ao sacerdote, o juízo de Deus veio so­
bre ele através de uma doença de pele. Uzias ficaria leproso pelo resto de
seus dias, vivendo isolado da comunidade, passando o governo ao seu filho
Jotão. Mesmo na ocasião de sua morte, seu corpo não pôde ser enterrado na
sepultura dos reis de Judá, mas em um campo ao lado, um silencioso
memorial pelo seu desrespeito às coisas santas de Deus.
E importante enfatizar aqui que o pecado de Uzias não consistiu pro­
priamente no oferecimento de incenso, mas em fazê-lo no templo de Jeru­
salém, sobre o altar do incenso. Este privilégio estava reservado aos sacer­
dotes da linhagem aarônica. Como herdeiro de Davi — o sacerdote segun­
do a ordem de Melquisedeque — Uzias de fato obtinha as prerrogativas
sacerdotais. Mas a função como sacerdote messiânico não poderia con­
fundir-se com as funções específicas dos sacerdotes aarônicos. Ainda que
as regras referentes ao sacerdócio messiânico não estejam registradas no
Antigo Testamento, certamente o oferecimento de incenso na casa do Se­
nhor era uma exclusividade aarônica .44

O m in is té rio d o s p ro fe ta s

Nossa discussão está quase chegando ao fim do período de cem anos


iniciado com Jeú, o qual culminou na violenta morte de seu quarto suces-

43 Eugene H. Merrill, "Agriculture in the Negev: An Exercise in Possibilitism," NEASB 9


(1977): 25-35; Lawrence E. Stager, "Farming in the Judean Desert During the Iron
Age,"BASOR 221 (1976): 145-58; Yohanan Aharoni, "The Negeb and the Southern
Borders," em World History of the jewish People, vol. 4, parte 1, p. 296.
44 Conforme de Vaux tem demonstrado, os reis tinham o direito e agiram como sacerdotes
em ocasiões especiais, mas esse privilégio não se estendia às ações consideradas de "ex­
clusividade sacerdotal" (Ancient Israel, vol. 1, p. 114).
A D in a s t ia d e J e ú e o J v d á C o n t e m p o r â n e o 401

sor em Israel, Zacarias, e no patético fim de Uzias, o governante rival do


sul, apenas treze anos mais tarde. Mas toda a história ainda não foi conta­
da. Através dos escritos dos profetas contemporâneos que conheciam es­
ses monarcas e eram cidadãos de seus reinos, é possível aprender a respei­
to das forças sociais e econômicas, políticas e religiosas que se combina­
vam para modelar a história de ambas as monarquias.

Organização dos profetas

Já se notou que os profetas e videntes do antigo Israel exerceram um


papel bastante significativo na vida da nação. O profeta Samuel é um dos
mais ilustres, em razão do seu ministério de mediação entre Yahweh e o
povo desde bem cedo em sua vida, e também do papel de embaixador de
Deus para estabelecer o reino. Mas o seu grande legado é a escola de pro­
fetas que aparentemente fundou, e cujos membros, tais como Natã e Gade,
eventualmente apareciam para anunciar a palavra de Deus aos reis sob
quem serviam.
Embora seja difícil saber até que ponto os profetas foram organizados
formalmente sob Samuel, está claro que apareciam em grupos ou bandos,
e participavam de um estilo de vida comunitário. Entretanto, grande par­
te deles parecia viver isolada, agindo conforme a orientação do Espírito
de Deus. Eram eles membros de uma companhia de profetas, ou repudia­
vam esta idéia por associá-la às instituições pagãs? Como estavam eles
ligados ao culto e ao sacerdócio? Eram elementos que constituíam a hie­
rarquia religiosa estabelecida, ou viam-se a si mesmos como verdadeiros
adversários desta? Será que possuíam alguma ligação com o palácio? Pro­
clamavam a Palavra apenas para agradar ao rei? Se não, como eram vistos
pelo rei?

O ofício de profeta

Estas e muitas outras questões importantes têm sido examinadas em


vários tratados de teologia que discorrem sobre o papel do profeta .45 Po­
rém, para o propósito desta obra, é necessário apenas reconhecer que os
verdadeiros profetas de Deus foram levantados por Ele para servir como
um tipo de terceira ordem, juntamente com o sacerdote e o rei. Seu papel

45 Veja, por exemplo, Willis J. Beecher, The Prophets and the Promise (Grand Rapids: Baker,
1963 reedição); Joseph Blenkinsopp, A History of Prophecy in Israel (Philadelphia:
Westminster, 1983); C. Hassel Bullock, An Introduction to the Old Testament Prophetic Books
(Chicago: Moody, 1986).
402 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T i .' ~ -

era de origem mais divina e importante do que o rei e o sacerdote; não era.
entretanto, "oficializado" no sentido em que eram os outros. De fato, ao
invés de transitar nos círculos da política e da religião estabelecida, os
profetas agiam por fora, como instrumentos de correção ou conselheiros.’ 7
Mesmo assim não eram vistos como adversários do templo ou do Estado,
mas como porta-vozes de Deus, chamados para falar palavras de bênçãos,
encorajamento, conselho, repreensão ou juízo para o povo, sacerdote e rei,
conforme a necessidade. Em nenhuma lugar do Antigo Testamento os pro­
fetas olharam com desrespeito ou desaprovação para o ofício dos reis e
dos sacerdotes.4647 Ao contrário, eles sabiam diferenciar bem os ofícios ins­
tituídos por Deus e as pessoas que ocupavam esses cargos. Houve sacer­
dotes e reis justos e perversos que receberam o devido tratamento dos
profetas. Do mesmo modo havia profetas justos e injustos. Os ofícios nun­
ca eram desprezados em razão do mau testemunho de alguns.
Todas as sociedades do mundo antigo tinham os seus profetas, mas os
de Israel destacavam-se em vários sentidos .48 Em primeiro lugar, eles ti­
nham a total consciência de que eram chamados por Deus e, se de fato
eram servos de Yahweh, adaptavam-se aos estritos critérios necessários à
função, a fim de provar a sua credibilidade e genuinidade. Agiam em nome
de Yahweh, e todas as palavras proféticas cumpriam-se totalmente no tem­
po e momento histórico preditos.
Além disso, os verdadeiros profetas foram instrumentos de Deus, e não
agiam como os adivinhadores pagãos, que praticavam as artes mágicas
em busca de satisfazer suas divindades, manipulando-as indiretamente
em favor de seus planos e propósitos. Os profetas de Yahweh não conheci­
am a mente de seu Deus, a menos que Ele decidisse revelar-se mediante
sonhos, visão ou outra maneira. Nem podiam mudar os propósitos de
Deus através de encantamentos ou outros meios mecânicos. Entretanto,
podiam orar com perseverança e induzir outros a fazer o mesmo; e em res­
posta poderia acontecer de Deus mudar as suas intenções. Mas tal resposta
nunca estava baseava em qualquer habilidade ou simpatia do profeta. Pelo
contrário, ela procedia da misericórdia e graça de Deus, e era concedida
exclusivamente para a glória de seu santo nome e para o bem de seu povo.

46 G. Ernest Wright e Reginald H. Fuller, The Book of the Acts of God (Garden City, N.Y.:
Doubleday, 1960), pp. 149-51.
47 Walther Eichrodt, Theology of the Old Testament (Philadelphia: Westminster, 1961), vol. 1,
pp. 364-69.
48 Walther Zimmerli, Old Testament Theology in Outline, traduzido por David E. Green
(Atlanta: John Knox, 1978), pp. 99-107.
A D ix a s t ia d e J e O e o J u d á C o n t e m p o r â n e o 403

Finalmente, o verdadeiro profeta, associado ou não a uma compa­


nhia de profetas, era o grande responsável por seu ministério diante de
Deus. E esta é a grande diferença entre os profissionais que serviam nas
culturas ao redor de Israel e os profetas de Yahweh. Os profetas pagãos
vendiam seus serviços para aqueles que melhor os assalariassem, bus­
cando sempre uma palavra de seus deuses favorável a seu cliente. Os
profetas de Israel, por outro lado, faziam mais do que desvendar os mis­
térios dos céus e da terra. Eles foram além da interpretação de sinais e
maravilhas, e trataram de questões referentes à moralidade, justiça e ao
reino de Deus. Este é o motivo de os oráculos dos profetas não serem
apenas proféticos, mas fundamentalmente proclamações. Os profetas
realmente falaram de temas em um futuro próximo ou distante, mas
nunca perderam contato com o mundo presente em que viviam. Confor­
me a necessidade, falavam à sua geração, fosse uma palavra de correção
ou de encorajamento. Somente em Israel havia esse profetismo, pois ape­
nas nessa nação os profetas eram instrumentos sem interesse próprio
que serviam como a boca do único Deus.

História do profetismo

Tal movimento iniciou com Samuel e produziu uma linhagem de indi­


víduos, cujos nomes já foram mencionados em nossa revisão histórica;
homens de Deus como o próprio Samuel, Natã, Gade, Aías, Jeú filho de
Hanani, e Zacarias. Além destes há uma plêiade de outros que perfaz a
história sem terem seus nomes mencionados. Muitos desses estavam as­
sociados à escola de profetas estabelecida por Samuel, e não é possível
saber se ela permaneceu em vigor, e nos mesmos moldes, após a morte do
profeta. De qualquer forma, a escola serviu como uma instituição de ensi­
no e referencial para movimentos semelhantes ao que se vê em Elias e
Eliseu, particularmente na vida deste último, em cujos dias há freqüente-
mente a expressão "filhos dos profetas" (2 Rs 2.3,5,7; 4.1,38; 5.22, KJV ).49
Essa comunidade de profetas teve seu início quando Elias ungiu Eliseu
em cerca de 855 a.C. Eliseu tornou-se discípulo e aprendeu com seu mes­
tre para, mais tarde, substituí-lo no ministério. Em algum ponto, outros
jovens profetas também se associaram a Elias e Eliseu e, quando Elias foi

4“ James G. Williams entende corretamente a frase sugerindo a liderança de uma figura


maior (e.g., Samuel, Elias ou Eliseu), que comandava uma fraternidade de profetas ("The
Prophetic 'Father': A Brief Explanation of the Term 'Sons of the Prophets,' " JBL 85 [1966]:
344-48).
404 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t ^m l * ^

levado para o céu, eles já existiam como uma comunidade de número con­
siderável, cuja base de ação eram as cidades de Betei e Jericó. Não há dú­
vida de que esses homens viviam em um regime de internato, bem próxi­
mo ao sistema monástico. Isto é evidente pelo fato de se multiplicarem em
Jericó a ponto de o lugar tornar-se pequeno. Então Eliseu os encorajou a
construir alojamentos apropriados (2 Rs 6.1,2).
Antes de Elias ser transladado para o céu, foi considerado em sua co­
munidade como o grande mestre. A transferência de seu manto para o
discípulo Eliseu significava indubitavelmente que este agora substituía o
mestre; e prontamente foi reconhecido pelos jovens profetas. O termo que
utilizavam para referir-se aos seus mentores era "pai", o que esclarece não
apenas a forma como se sentiam a respeito de seus líderes, mas também a
significação da frase "filhos dos profetas". Embora esta frase e até mesmo
a existência de uma comunidade não possam ser provadas em outra parte
(mesmo imediatamente após a morte de Eliseu ),50 o profeta Amós, vinte e
cinco anos depois da morte de Eliseu, negou qualquer vínculo com o
profetismo formal, afirmando ao rei Jeroboão II que não fora treinado para
ser profeta e nem era "filho de profeta" (Am 7.14). Esta não era uma crítica
à ordem profética, mas simplesmente uma declaração de que não era afi­
liado ao grupo.
Geralmente se faz uma distinção entre os profetas canônicos que escre­
veram suas profecias e aqueles que, como Elias e Eliseu, não deixaram
nenhum registro (com exceção da breve carta de Elias em 2 Cr 21.12-15).
Algumas vezes conclui-se, baseado nos escritos preservados, que os pro­
fetas canônicos foram de alguma forma superiores ou mais teológicos que
os demais .51 Mas isso é uma proposição sem base, pois dois dos maiores
profetas — Moisés e Samuel — não são contados entre os canônicos, e
mesmo assim criaram obras literárias quase incomparáveis tanto pelo es­
tilo de composição quanto pelos aspectos teológicos envolvidos.
A diferença reside no fato de que Deus, para sua própria glória, es­
colheu preservar os escritos dos profetas que vieram depois de Elias e,
por razões que somente Ele conhece, não incluiu em seu cânon Natã,
Gade e todos os demais profetas dos primórdios de Israel. Além disso,

30 J.R. Porter, de fato, vê os "filhos dos profetas" como uma comunidade ad hoc, que surgiu
como uma reação à dinastia de Omri, especialmente sob Eliseu, ficando restrita apenas
àquele período. (Q, N, 330~'',32, JTS 32 [1981]: 423-29). Não há evidência de que essas
comunidades de profetas tivessem sido tão restritas a esse ponto.
51 W. O. E. Oesterley e Theodore H. Robinson, Hebrew Religion: Its Origin and Development,
2a ed. (New York: Macmillan, 1937), pp. 222-23.
A D in a s t ia d e J e ú e o J u d ã C o n t e m p o r â n e o 405

é óbvio que nem tudo que os profetas escreveram tornou-se canoniza­


do. Também não é possível saber por que o processo seletivo que de­
terminou a profecia canônica iniciou com Obadias e terminou com
Malaquias. De qualquer forma, essa é uma questão irrelevante para
este estudo. Tudo o que se pode saber no texto bíblico é que o Espírito
do Senhor controlou tanto a seleção dos profetas quanto a composição
de seus textos.

Os escritos proféticos mais antigos

Obadias
Os quatro primeiros profetas canônicos — Obadias, Joel, Amós e Jonas
— escreveram suas profecias durante o período que estamos tratando (840­
740). A melhor análise crítica desse pequenino livro de Obadias permite
estabelecer a data de sua composição na metade do século nove ou quase
em seu final, de forma que (juntamente com o profeta Joel) ele se torna a
mais antiga produção dos escritos proféticos .52 Infelizmente, nada é co­
nhecido acerca do autor, nem ele menciona eventos ou pessoas específicas
que conduzam a datas seguras. Sua mensagem trata de Edom, que em sua
arrogância e auto-suficiência recusou auxílio a Judá quando Jerusalém es­
tava sob ataque. Embora alguns acontecimentos históricos até possam en­
caixar-se na descrição, também é possível concluir que o profeta viveu
nos dias de Jeorão, rei de Judá, quando os filisteus e árabes atacaram Jeru­
salém e saquearam o palácio. Na ocasião, levaram a família real, exceto
Acazias, o filho mais novo de Jeorão (2 Cr 21.16,17). A razão por que este é
um período plausível para Obadias é que Jeorão anteriormente invadira
Edom, na tentativa de reprimir uma rebelião em andamento contra Judá.
Os esforços de Jeorão fracassaram, de forma que toda a arrogância descri­
ta por Obadias é fruto da independência conquistada por Edom (2 Rs
8 .20, 21).
Quando Jerusalém foi sitiada e atacada por seus inimigos, os edomitas
tornaram-se não apenas indiferentes aos sofrimentos da cidade, como tam­
bém uniram-se aos exércitos que passaram a pilhar seus tesouros, regozi­
jando-se juntamente com os adversários da humilhação de Judá e Jerusa­
lém. Mas o pecado maior, diz Obadias, era que Judá e Edom eram irmãos;
os edomitas tinham de ajudá-los nessa hora. O trágico resultado pelo or­
gulho de Edom é que ele seria destruído no dia do Senhor, e seu povo se
tornaria cativo.

52 Gleason L. Archer, Jr., A survey of Old Testament Introduction (Chicago: Moody, 1964), p. 288.
406 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t -a. ' E ^

Joel
A profecia de Joel fala de um tempo em que houve uma severa praga e
fome quase que sem precedentes na terra santa (1 .2 -2 0 ), seguidas de uma
terrível invasão a Judá por numerosos exércitos do norte (2.1-10). Deus
teria misericórdia de seu povo e desviaria os seus inimigos, fazendo-os
cair em ruína (2.12-20). Então a fome também terminaria e a terra voltaria
a produzir e ter prosperidade (2.21-27).
Tanto as conquistas militares quanto a fome foram, por algumas vezes,
a fonte de desastre e sofrimento para Israel e Judá, mas essa justaposição
descrita por Joel não poderia ser comum. Tal seqüência também foi vista
nos dias de Eliseu. Deve ser lembrado que o profeta intercedeu diante do
rei Jorão em favor de uma mulher que fugira para a Filístia, a fim de esca­
par da fome que durou sete anos. Ao retornar, a mulher constatou que sua
casa e propriedades haviam sido invadidas, então buscou o auxílio do
profeta. O rei exigiu que todos os seus bens lhe fossem devolvidos (2 Rs
8.1-6). Parece claro que a fome ocorreu próximo ao início do reinado de
Jorão, ou seja, em cerca de 852 a 845.
Também é preciso lembrar que Salmaneser III teve de enfrentar uma
coalizão de reis arameus e palestinos em Carcar, em 853. Os assírios foram
forçados a retirar-se por muitos anos, pois tiveram de resolver questões
em seu país. Porém, em 841, ele conquistou a cidade de Damasco, gover­
nada então por Hazael, e cobrou de Jeú um altíssimo tributo logo no pri­
meiro ano de reinado em Israel. Não havia motivo para Salmaneser não
continuar sua conquista até atingir a cidade de Samaria, culminando por
fim em Jerusalém. Jeorão reinava na época em Judá. Em razão dos proble­
mas enfrentados, tal como a rebelião dos edomitas, Jeorão não podia ofe­
recer uma séria resistência à superioridade dos exércitos assírios.
Por que Salmaneser não continuou sua campanha, uma vez que o suces­
so estava aparentemente garantido? Para qualquer um que atenta para o
fato de que a história em análise final cumpre o divino propósito, a resposta
é clara. O Senhor Deus de Judá graciosamente interferiu na ocasião, fazen­
do o poderoso exército do norte voltar, além de pôr um fim à calamidade da
praga (2 Cr 21.7). Em nossa opinião, o profeta Joel descreve precisamente
esses acontecimentos, e escreve acerca deles em algum ponto entre o início
da fome (ca. 852) e a invasão dos assírios (841). Portanto, Joel teria sido um
profeta contemporâneo de Obadias e de Eliseu, e todos os três teriam exer­
cido ministérios importantes durante o reinado de Jeorão de Judá .53

53 Quanto a algumas formas alternativas e especialmente argumentos que tratem de uma


data pós-exílica, ver Leslie C. Allen, The Books o f Joel, Obadiah, Jonah and Micah (Grand
A D in a s t ia d e J e ú e o J u d á C o n t e m p o r â n e o 407

Amós
Amós de Tecoa, o profeta ousado e independente da corte de Jeroboão
II, exerceu seu ministério nos dias de Uzias e Jeroboão (Am 1.1). Visto que
nenhum outro rei é mencionado, pode-se então admitir que Amós tencio­
nava dizer que seu ministério público desenvolveu-se por completo en­
quanto esses dois reis reinavam, entre 767 e 753. Mais precisamente, Amós
revela que a mensagem de Deus veio sobre ele "dois anos antes do terre­
moto" (1 .1 ), mas tal acontecimento não pode ser datado dogmaticamente.54
A profecia de Amós está repleta de alusões históricas, especialmente nos
oráculos referentes às nações (caps. 1—2). Ele faz menção, em primeiro lu­
gar, às calamidades infligidas por Hazael de Damasco contra Gileade, que
ocorreram nos dias de Jeú (1.3-5). A abominável atitude de Hazael resulta­
ria em sua própria destruição e na deportação de seu povo. Isso ocorreu em
732, quando Tiglate-Pileser III, da Assíria, capturou a cidade de Damasco e
encerrou a sua participação na história do Antigo Testamento.
Os filisteus são julgados em conseqüência de sua colaboração com Edom
contra o povo de Deus em Judá (1.6-8). Essa informação encaixa-se perfei­
tamente no registro histórico até certo ponto, pois, conforme visto em co­
nexão com a profecia de Obadias, Edom rebelou-se contra Judá, e os filisteus
aproveitaram-se da ocasião para conquistar Jerusalém, levando cativos os
membros da família real. O relato em 2 Crônicas 21 deixa assim o proble­
ma, mas o profeta Amós indica que os prisioneiros foram subseqüente-
mente entregues aos edomitas. Nem é preciso dizer que eles passaram
maus momentos ali. Em razão desta atitude, o profeta declara que as cida­
des dos filisteus sofreriam a ira de Yahweh. Sob Sargão II, da Assíria, a ira
desceu sobre eles em 712.55
Amós procede indicando que a cidade de Tiro, do mesmo modo que os
filisteus, entregou os prisioneiros israelitas aos edomitas (1.9,10). Essa foi
uma violação direta do acordo entre Israel e Tiro, que vigorava desde os
dias de Davi e Hirão. Infelizmente não é possível ligar a referência de Amós

Rapids: Eerdmans, 1976), pp. 19-25. A data mais antiga que defendemos nesta obra, é
brilhantemente defendida por A. R Kirkpatrick, The Doctrine of the Prophets (London:
Macmillan, 1892), pp. 57-72.
54 Hans Walter Wolff chama a atenção para as evidências do estrato VI em Hazor de um
grande terremoto que ali se verificou em 760 a.C. Essa data localiza-se exatamente na
metade dos reinados de Jeroboão e Uzias, quando reinavam sozinhos. (Joel and Amos
[Philadelphia: Fortress, 1977], p. 124).
William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near East (New York: Harcourt
Brace Jovanovich, 1971), p. 140.
408 H is t ó r ia d f. I s r a e l n o A n t ig o T e s t a m e t t

à Tiro ao relato descrito em Reis e Crônicas, mas isso não significa que
Amós não esteja sendo histórico nesse ponto. Ele simplesmente incluiu
um fato histórico que, por alguma razão, não foi registrado tanto por uma
quanto pela outra fonte. Como Damasco e Filístia, Tiro também seria
destruída por seu pecado contra Israel. Os registros assírios estão repletos
de referências à destruição ali ocorrida.
Edom é o próximo objeto da mensagem profética de juízo (1.11,12).
Aqui está uma declaração geral a respeito da hostilidade de Edom contra
Israel e Judá, desde os dias da travessia no deserto até o presente momen­
to. Ecoando o radical alerta emitido por Obadias, Amós predisse o dia em
que Edom seria reduzido a cinzas, uma calamidade que sobreveio ao rei­
no nos dias de Esaradom e Assusbanipal da Assíria .56
O próximo seria Amom, ainda outra nação que compartilhou da mes­
ma origem de Israel (1.13-15). A ocasião específica para a dura palavra do
profeta contra Amom ocorreu quando esta nação vivia seus momentos de
expansão territorial e maltratava os habitantes de Gileade. A área, situada
ao ocidente de Amom, já havia sido reivindicada por eles desde os dias do
juiz Jefté, ao fim do décimo segundo século. Podem ter ocorrido outras
tentativas não registradas nos séculos subseqüentes para obter o território
à força, de forma que a ocasião particular citada pelo profeta não pode ser
determinada. Talvez ele esteja se referindo à coalizão criada entre os
amonitas, moabitas e meunitas contra o rei Josafá no final de seu reino.
Embora a aliança tenha sido um fracasso, poderia refletir as reais inten­
ções dos amonitas de penetrar no território de Judá .57 De qualquer forma,
o pronunciamento do profeta foi o mesmo: Amom sofreria uma terrível
derrota. A conquista desse reino efetuou-se por Senaqueribe em 70158 ou,
caso seja preferível uma data posterior, por Nabucodonosor em 582.59
Finalmente, Amós volta-se para a última das nações vizinhas, Moabe,
e pronuncia as acusações e as sentenças contra o povo. A razão para a ira
divina desta vez, ironicamente, foi o desrespeito de Moabe para com os
ossos do rei de Edom, que foram queimados até serem reduzidos a pó.

56 John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples of Old Testament Times, edita­
do por D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1971), p. 140.
57 Oded, "Neighbors on the East," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p.
262, identifica a ocasião como uma forma dos amonitas tomarem vantagem sobre a
pressão dos arameus sobre Israel e Judá no tempo de Ben-Hadade I e Hazael.
58 A. T. Olmstead, History of Assyria (Chicago: University of Chicago Press, 1975, reedição),
p. 300.
59 John Bright, A History of Israel, 3a ed. (Philadelphia: Westminster, 1981), p. 352.
A D in a s t ia d e J e ü e o J u d á C o n t e m p o r â n e o 409

Não é possível identificar precisamente o momento referido pelo profeta


nem qual seria o real significado do julgamento. Amós não podia estar se
referindo à coalizão entre Jorão de Israel e os reis de Judá e Edom para
combater Mesha, rei dos moabitas, e colocá-lo sob o domínio de Israel (2
Rs 3). Quando Mesha na ocasião percebeu que sua causa estava perdida e
sua vida corria sério risco, tomou seu próprio filho e o ofereceu em sacri­
fício ao deus Camos como oferta queimada. Ao verem isso, diz o historia­
dor, os israelitas se indignaram e terminaram ali a batalha. Porém, Amós
faz referência à queima dos ossos do rei de Edom, um fato que provavel­
mente aconteceu perto de seus dias .60 E possível que a ira de Deus sobre
os moabitas, conforme articulado por Amós, não tenha sido apenas por­
que Deus estava ultrajado pelo desrespeito aos mortos, mas também por­
que tal atitude atrapalhou o propósito de Israel de conquistar os moabitas.61
Por isso, diz o profeta, Moabe seria punido, conforme aconteceu durante
as muitas campanhas assírias na região.
A principal preocupação de Amós era com seu povo, em Judá, e mais
ainda com o reino do norte, Israel. Ele falou sobre a violação da aliança
em Judá, e o juízo que inexoravelmente cairia sobre o reino. Mais especi­
ficamente, Amós descreveu as condições morais e espirituais que carac­
terizavam Efraim (ou Israel) nos dias de Jeroboão II. A classe alta, que
crescera em número e em prosperidade em virtude da forte liderança do
rei, começou a oprimir os pobres de todas as maneiras possíveis. Vende­
ram os necessitados como escravos (2 .6 ), cobiçaram vergonhosamente
as propriedades dos desamparados (2.7) e, em uma atitude de profunda
hipocrisia, no ato da adoração a Yahweh, usavam as vestes que haviam
arrebatado como pagamento e consumiam o vinho adquirido nas extor­
sões. Tudo isso e muito mais eles fizeram, não obstante terem sido resga­
tados por Yahweh da escravidão no Egito, tornando-os seu povo eleito e
especial. O resultado então seria a destruição de Betei, o local de todo o
sincretismo religioso, e a destruição das habitações luxuosas dos ricos e
nobres (3.13-15).
Parte do julgamento já viera sob a forma de fome, seca e pragas de inse­
tos, sem contar as muitas guerras e conflitos que sensivelmente debilitaram
a nação (cap. 4). Amenos que Israel decidisse abandonar os maus caminhos
e rejeitar definitivamente a idolatria, buscando a Yahweh com sincero arre­
pendimento, o juízo viria sobre a nação sem misericórdia. Os assírios já ha-

60 Wolff, Joel and Amos, pp. 150-51.


Thomas E. McComiskey, "Amos," em Expositor's Bible Commentary, vol. 7, Daniel-Minor
Prophets, editado por Frank E. Gaebelein (Grand Rapids: Zondervan, 1985), p. 291.
410 H istória de I srael no A ntigo T esta

viam conquistado Calné (Kullâni)62 no norte da Síria, talvez nas primeiras


campanhas militares de Salmaneser III, e continuaram nesse processo até
tomar Hamate.63 Até mesmo a Filístia já havia sofrido nas mãos dos atacan­
tes estrangeiros (6.2). Quanto tempo a mais, então, os tolos moradores de
Samaria esperariam para passar por esses sofrimentos? Enquanto se refes­
telavam em suas camas de marfim e se empapuçavam com as melhores
iguarias e vinhos da região, seus corações tornaram-se insensíveis aos cla­
mores do pobre e do desamparado; por isso pagariam um grande preço.
No meio de sua missão profética para Samaria, Amós foi interceptado
pelo sacerdote de Betei, Amazias, que lhe ordenou que parasse de pregar
e voltasse imediatamente para Judá (7.10-13). Em resposta contra a acusa­
ção de que profetizava por dinheiro, como faziam os profetas pagãos, Amós
afirmou que deixara seus negócios para cumprir a comissão que Deus lhe
dera. Como embaixador de Yahweh, ele anunciava o julgamento divino
sobre Amazias e sua família, bem como sobre toda a terra de Israel. Eles
seriam levados cativos para uma terra estranha, lá amargariam um forte
sofrimento e teriam muita fome da palavra de Deus.
Contudo, um remanescente seria salvo e, no seu dia, Yahweh se levan­
taria e reergueria o tabernáculo caído de Davi, tornando-o poderoso como
o fora nos dias antigos (9.11). Naquele dia, disse Amós, Yahweh traria os
seus redimidos de volta para a terra, um local que seria indescritivelmente
fértil e produtivo. Nesse tempo tornar-se-iam tão firmemente estabeleci­
dos em sua verdade que não mais seriam arrancados dali e transportados
para outro local.

Jonas
Amós não estava só em seu testemunho contra Jeroboão II. Jonas, filho
de Amitai, de Gate-Hefer (Khirbet ez-Zurra', cerca de oito quilômetros a
noroeste do monte Tabor),64 o único profeta oriundo da Galiléia, também
proclamou a palavra de Yahweh para este rei de Israel, mas sua palavra
foi de encorajamento. Jeroboão obteria de volta Damasco e Hamate e, por­
tanto, restauraria o reino de Israel e sua extensão territorial, conforme fora
nos dias de sua grandeza (2 Rs 14.25). Já foi proposto que essa bem-suce­
dida campanha não ocorreu antes de 773, de modo que a profecia desse
acontecimento, descrito por Jonas, deve ter ocorrido pelo menos uns pou­
cos anos antes dessa data. A referência a Jonas em 2 Reis 14 deveria ser

62 Martin Noth, The Olá Testament World (Philadelphia: Fortress, 1966), p. 261.
63 J.D. Hawkins, "The Neo-Hitite States in Syria and Anatolia," em CAH 3.1, pp. 390-94.
64 Yohanan Aharoni, The Land ofthe Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 257.
A D inastia de J eú f. o J udá C ontemporâneo 41 1

uma evidência suficiente de que ele foi personagem histórico, e não um


herói de uma parábola, conforme muitos estudiosos alegam.65 É claro que
sua historicidade não é questionada em razão de sua mensagem a Jeroboão,
mas sim pelo registro de suas incursões e viagens, inclusive a Nínive, como
o primeiro missionário de Israel.
Não é possível entrar em um debate profundo sobre as controvérsias
que envolvem o gênero literário, e que contribuem para a polêmica acerca
do livro de Jonas. Para nós é suficiente que o próprio Jesus tenha afirmado
indiretamente sua historicidade comparando o fato histórico de sua pró­
pria morte, sepultamento e ressurreição com a experiência de Jonas no
ventre do grande peixe (Mt 12.40).66 Afirmar, como fazem alguns críticos
da redação, que Jesus sabia que Jonas era legendário e comparava-se a um
relato fictício, ou que Jesus nunca fizera ele próprio a comparação — esta
fora colocada em sua boca pelos apologistas do Cristianismo primitivo —
põe em questão não apenas a história de Jonas, mas também a de Jesus. Se
alguém não considerar Jonas como uma narrativa histórica, torna-se pra­
ticamente impossível afirmar a historicidade de qualquer outro fato no
Antigo Testamento.
De uma maneira mais positiva, os fatos do livro de Jonas encaixam-se
precisamente no período em que o profeta está localizado pelo autor de
Reis. Já se observou que a profecia de Jonas para Jeroboão antecedeu al­
guns poucos anos 773. O cenário de seus escritos precisam ser vistos um
pouco depois disso, pois o livro termina com Jonas em grande desespero e
derrotado. É pouco provável que depois desta situação ele tenha tido co­
ragem para voltar a Israel e desfrutar qualquer credibilidade entre o povo.
Como já foi visto várias vezes, a Assíria, depois de Adade-Nirari III
(810-783), entrou em profunda depressão. Levantes internos e pressões de
poderosos inimigos, tais como Urartu e os estados arameus, mantiveram-
na em posição de defesa até a época de Tiglate-Pileser III, que subiu ao
trono em 745. Esta data coincidiu exatamente com o período em que Israel
sob Jeroboão II e Judá sob Uzias reconquistaram territórios, que haviam
sido tomados anos antes, e grande parte de seu prestígio. Neste período
Jonas está envolvido em seu ministério profético.

65 Allen, foel, Obadiah, Jonah and Micah, p. 175-81. George M. Landes, baseado em premissas
lingüísticas, diz que a melhor data para esse livro seria o sexto século ("Linguistic Criteria
and the Date of the Book of Jonah," Eretz-Israel 16 [1982]: 162-63). Mas, mesmo que suas
conclusões estejam corretas, o que se pode provar é que o livro, em sua presente forma,
deriva exatamente daquele período. Para uma réplica da visão de Allen de que Jonas é
uma parábola, ver D.J. Wiseman, "Jonah's Nineveh," Tyn Ball 30 (1979): 32-34.
n6 Eugene H. Merrill, "The Sign of Jonah," JETS 23 (1980): 23-30.
412 H istória de I srael no A ntigo T e s t w e s t :

Dados esses limites cronológicos, o período mais provável para a mis­


são de Jonas à cidade de Nínive foi durante o reinado de Assur-dan III
(772-755). Embora não haja nenhuma inscrição real sobrevivente do perí­
odo, a lista dos epônimos assírios e outros testemunhos indiretos confir­
mam seu mandato como um período de tumultos jamais vistos anterior­
mente.67 Assur, Arrafá, Gozã e muitos outros estados rivais que dependi­
am da Assíria revoltaram-se. Além disso, a nação foi acometida de pragas
e fomes repetidamente, até que o império chegou a uma terrível situação
de total empobrecimento e desordem.
Este seria o tempo ideal para Jonas entregar sua mensagem de julga­
mento e o programa de redenção universal do Deus de Israel. O culto e o
panteão assírios estavam totalmente enfraquecidos e fracassados. Sem
dúvida nunca houvera uma situação tão propícia para que o rei e seus
súditos dessem ouvidos à voz do profeta de Deus. Além disso, a Assíria já
começava a tornar-se o chicote de Deus. Com o passar de alguns poucos
anos seu papel estaria claro e afirmado. Seria muito apropriado que o ins­
trumento da ira de Deus primeiro tivesse a oportunidade de ser objeto de
sua graça. E, conforme vemos, o rei e todo o povo se arrependeu, mesmo
que superficialmente e sem resultados duradouros.68 E justamente por­
que aceitaram a palavra da salvação, tornaram-se os primeiros frutos da
fé entre os gentios. Jesus, de fato, afirmou que o juízo imposto sobre os
fariseus seria maior do que o que recairia sobre Nínive. Este povo arre­
pendeu-se diante da palavra de Jonas (e novamente Jesus confirmou a
historicidade do profeta), mas os fariseus não se arrependeram com a pre­
gação daquele que era maior do que Jonas (Lc 11.32).

67 Thiele, Mysterious Numbers, p. 211-12. Quanto à ausência de inscrições reais, ver W.


Schramm, Einleitung in die assyrischen Kõnigsinschriften (Leiden: E.J. Brill, 1973), vol. 2,
p. 123.
68 Wiseman, "Jonah's Nineveh," Tyn Bull 30 (1979): 51, cita uma carta de um rei que não
se sabe o nome, provavelmente Assur-dan III, endereçada a Mannu-ki-Asssur, gover­
nador de Gozã, com as seguintes palavras: "Decreto do rei. Você e todo seu povo, sua
terra e seus campos terão de humilhar-se e chorar pelo espaço de três dias diante do
deus Adad e arrepender-se. Terão de purificar-se por seus rituais, de forma que possa
haver descanso (qulu, silêncio)." Esse texto é bem semelhante ao arrependimento des­
crito pelo profeta Jonas.
U i *

0 C A S T I G O D E Y A H W E H:
ASSÍRIA E O JUÍZO DIVINO
Fatores responsáveis pela queda de Israel
O fim da dinastia de Jeú
A A ssíria e Tiglate-Pileser III
M enaém de Israel
Os últim os dias de Israel
A rebelião de Peca
A volta de Tiglate-Pileser
A cronologia do reinado de Peca
Oséias de Israel
O papel do Egito
O impacto da queda de Samaria
hnplicações teológicas
Deportação
A origem dos samaritanos
Judá e a queda de Samaria
O problema da cronologia
jotão de Judá
Acaz deJudá
Sargão II da Assíria
Ezequias de Judá
Os anos de co-regência
A reforma de Ezequias
A rebelião contra a Assíria
Senaqueribe e o cerco de Jerusalém
O envolvimento do Egito
A morte de Senaqueribe
Os últimos anos de Ezequias
A doença de Ezequias
A campanha de Senaqueribe
Os últimos quinze anos
O ponto de vista dos profetas
Oséias
Isaías
Miquéias

F a to re s r e s p o n s á v e is p e la q u e d a de Isra e l

Pela metade do oitavo século uma série de acontecimentos tiveram iní­


cio e, dentro de trinta anos, a cidade de Damasco entraria em colapso,
Samaria seria conquistada, o reino de Israel chegaria ao seu fim, e Judá
quase seria subjugada. A causa de tudo isto foi o renascimento do podero­
so Império Assírio comandado por Tiglate-Pileser III e sua imbatível má­
414 H istória de I srael no A ntigo T estâmest .

quina de guerra. Por mais de 130 anos os assírios aterrorizariam não ape­
nas os habitantes de Judá, mas todo o Oriente Médio até que, anos depois,
surgiria Nabopolassar e seu ilustre e famoso filho, Nabucodonosor, que
finalmente eliminaria essa ameaça para sempre.
A tarefa deste capítulo é traçar os vários e intricados fatores que culmi­
naram na destruição de Israel e na quase eliminação de Judá. São fatos de
natureza profundamente teológicas, como todos os demais acontecimen­
tos na Bíblia. Os historiadores e os profetas deixam bastante claro que Is­
rael e Judá semearam vento, e por isso colheram tempestade. Afastaram-
se dos compromissos estabelecidos com a lei, passando a sofrer as maldi­
ções que ali estão registradas.
Havia, é claro, outras razões mundanas nesse contexto. Houve tira­
nia e inaptidão no governo dessas nações, irresponsabilidade na política
fiscal, falta de sabedoria nas relações internacionais e nas alianças várias
vezes estabelecidas, lutas de classes, crimes, violência e uma série de
outras enfermidades que adoeceram Israel e Judá em todos os seus seg­
mentos. É um milagre que estas nações tenham durado todo aquele tem­
po. Pode-se concluir com os profetas que isto só foi possível pela miseri­
córdia e amor de Deus, que lembrava-se de seu pacto, apesar do esqueci­
mento do povo.

O fim da d in a s tia de Je ú

Indícios da violência nos últimos trinta anos de Israel podem ser vistos
no fim sangrento da dinastia de Jeú. Por causa de sua obediência em re­
mover a família de Omri e o baalismo implantado na terra, Jeú recebeu a
promessa de um longo reinado e de prosperidade (2 Rs 10.30). Seus des­
cendentes ainda ocupariam o trono por mais quatro gerações, um recorde
de longevidade na tumultuada sucessão real no reino do norte. Finalmen­
te, depois de quase noventa anos, o último descendente da casa real de
Jeú, cujo nome era Zacarias, foi assassinado quando estava em seu sexto
mês de reinado (753).1 O autor da tragédia foi Salum, filho de Jabes, o qual
não pôde ver os frutos de seu ato violento, pois também seria assassinado
dentro de um mês (2 Rs 15.8-15).
O líder da conspiração contra Salum foi Menaém, filho de Gadi, de
Tirza. As repetidas referências a Samaria e Tirza no registro bíblico (2 Rs

A não ser nos casos indicados, as datas apresentadas neste capítulo quanto aos reis de
Israel e de Judá estão baseadas em Edwin R. Thiele, The Mysterious Numbers of the Hebrew
Kings (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), p. 81.
0 C astigo de Yahweh : A ssíria e o J uízo D ivino 415

15.13-16) são muito mais do que simples menções. O que estava envolvi­
do era mais do que apoderar-se do governo de outrem; na verdade, era
uma tentativa de buscar o restabelecimento do domínio da base política
em Tirza.2 Deve-se lembrar que Jeroboão I, após ter morado temporaria­
mente em Siquém, estabeleceu a capital de Israel em Tirza, a qual lá per­
maneceu até que Omri comprou a colina de Semer e ali construiu sua nova
capital, chamada Samaria, em cerca de 880 a.C. Certamente a transferên­
cia de capital não foi bem recebida pela maioria das pessoas. Alguns reti­
veram um sentimento ruim, procurando exaltar novamente a cidade de
Tirza. E possível que Menaém fosse um dos representantes desta facção
política anti-Samaria, mas no interesse de ganhar o apoio do povo, deci­
diu lá manter a capital de seu reino.
Menaém reinou por dez anos (752-742), e foi contemporâneo de Uzias
em sua última década. Este, como seus predecessores, é descrito como
um rei mau que não se apartou dos caminhos de Jeroboão, filho de
Nebate. Não há detalhes sobre seu reinado, exceto que na época da
invasão assíria ele pagou um pesado tributo ao rei Tiglate-Pileser (2 Rs
15.19,20).

A A s s íria e T ig la te -P ile s e r III

Durante a ausência de influência política e militar da Assíria, nas déca­


das após a morte de Adade-Nirari III (783), o trono finalmente foi ocupa­
do por um usurpador, Tiglate-Pileser III (também chamado de Puiu ou,
conforme o Antigo Testamento, Pul),3 que reinou de 745 a 727.4 Ele levan­
tou-se determinado a realizar três grandes tarefas em seu reinado: restau­
rar a ordem em Babilônia, readquirir o controle da Síria e defender as fron­
teiras ao norte contra Urartu. O tumulto em Babilônia já durava muito
tempo, mas foi exacerbado com a chegada dos imigrantes arameus que,
juntamente com a população autóctone, criaram a formidável entidade

2 John Bright diz que Tirza era a "capital de quondam" (A History of Israel, 3a ed. [Philadelphia:
Westminster, 1981], p. 271). Mas, como outros estudiosos, ele deixa de observar que a
cidade de Tirza ganha uma atenção incomum por parte do historiador bíblico.
3 A.T. Olmstead, History of Assyria (Chicago: University of Chicago Press, 1975 reedição),
p. 181; Bright, History, p. 270.
4 Quanto a mais informações sobre o reinado de Tiglate-Pileser, ver J.D. Hawkins, "The
Neo-Hitite States in Syria and Anatolia," em Cambridge Ancient History, 3a ed., editado
por John Boardman et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1982), vol. 3, parte
1, pp. 409-15.
416 H istória de I srael no A ntigo T estami

política conhecida por Kaldu (= Caldeus).5 Por fim, todo o processo cul­
minaria no surgimento do Império Neo-Babilônico. A solução de Tiglate
para o problema babilónico foi instalar um governante nativo, Nabonassar.
Urartur foi posto sob controle através de uma série de campanhas milita­
res que o reduziram ao status de província.
O maior interesse de Tiglate estava no oeste, de maneira que, depois
de ficar a situação estabilizada em todos os lugares, voltou-se para outra
direção. Em sua primeira campanha para a Síria, em 743, venceu Arpade
(Tel Erfad), ao norte de Aleppo, e aterrorizou os pequenos estados rema­
nescentes — Síria e Palestina —, pois alguns capitularam sem oferecer
qualquer resistência, ao passo que outras nações tentaram mediante as
armas escapar da destruição.6 Menaém de Israel estava entre os que não
resistiram.7 Tanto os anais de Tiglate-Pileser como o Antigo Testamento
comprovam que o rei de Israel buscou rapidamente pagar tributo ao rei
da Assíria, a fim de manter sua posição em Samaria.8 Embora o Antigo
Testamento não relate, é provável que Tiglate-Pileser tenha feito conta­
tos com Uzias (=Azarias) de Judá. Há um texto assírio em que tal hipóte­

5 Esse desenvolvimento é profundamente documentado em J.A. Brinkman, A Political


History of Post-Kassite Babylonia, 1158-722 B.C., Analecta Orientalia 43 (Rome: Pontifical
Institute, 1968).
6 Quanto à situação que resultou no domínio das terras da Transjordânia pelos assírios,
ver B. Oded, "Neighbors on the East," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte
1, The Age of the Monarchies: Political History, editado por Abraham Malamat (Jerusalem:
Massada, 1979), pp. 270-72.
7 William W. Hallo, "From Qarqar to Carchemish: Assyria and Israel in the Light of New
Discoveries," em The Biblical Archaeologist Reader, editado por Edward F. Campbell, Jr. e
David Noel Freedman (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1964), vol. 2, pp. 169-70. Louis D.
Levine, porém, diz que foi em 738, ou seja, quatro anos depois da morte de Menaém
segundo a cronologia bíblica, a campanha assíria que forçou Menaém a pagar tributo
("Menahem and Tiglath-pileser: A New Synchronism," BASOR 206 [1972]: 40-42). Mas
enquanto Levine diz que existe um "firme sincronismo" entre Menaém e Tiglate-Pileser
(p. 42), seu argumento baseado na esteia iraniana que afirma que Menaém pagou tribu­
to depois de 742 permanece sem provas. Para uma réplica bastante eficaz, ver a obra de
H. Jacob Katzenstein, The History of Tyre (Jerusalem: Schocken Institute for Jewish
Research, 1973), p. 205. William H. Shea, "Menahem and Tiglath-pileser III," JNES 37
(1978): 43-49 também segue a mesma linha de raciocínio de Levine, embora a data que
ele escolhe para o pagamento do tributo seja em 740, que para nós ainda é uma data
muito tarde. Mordechai Cogan também aceita o ano de 740, pelo menos para o tributo
de Turbail de Tiro ("Tyre and Tiglath-pileser III," JCS 25 [1973]: 96-99).
8 Quanto aos textos assírios, ver James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to
the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 283a.
O C a s t ig o de Y a h w f .h : A s s ír ia e o J u íz o D iv in o 417

se pode encontrar algum apoio, embora seja bastante ambíguo e não to­
talmente confiável.9
Uma segunda série de campanhas começou em 734 e continuou até
732. Estas resultaram na captura de Gaza e no desesperado apelo do rei
Acaz, de Judá, a Tiglate, para juntos combaterem contra Peca, rei de Israel,
e Rezim, de Damasco (2 Rs 16.5-7; Is 7.1,2). O rei da Assíria concordou, e
em 732 forçou Damasco a uma rendição. Israel também teria sofrido o
mesmo se Peca não fosse assassinado e substituído por Oséias,10 um fan­
toche nas mãos do rei assírio. Enquanto isso, Acaz já tinha se vendido ao
seu novo senhor assírio por um amargo e doloroso preço.
Os anos finais de Tiglate-Pileser ocuparam-se mais uma vez com a
Babilônia. De fato, sua necessidade de tratar o problema crônico forçou-o
a interromper suas campanhas ao oeste, concedendo a Israel e a Judá um
p o u co m ais d e tem po. M esm o d ep o is d e a Babilônia, agora sob a a u d acio­
sa e persistente liderança de Marduk-apla-iddina (Merodaque-Baladan no
Antigo Testamento),11 ter sido forçada a submeter-se, Tiglate-Pileser nun­
ca voltou para o oeste.
Quando Tiglate-Pileser morreu em 727, foi sucedido por seu filho
Salmaneser V, que reinou por apenas cinco anos (727-722).12 Por dois anos
ele esteve ocupado com as rebeliões internas na Babilônia que consumiram
os últimos anos de seu pai. Então, em 725, partiu para o oeste, visando re­
conquistar o domínio da Fenícia e da Filístia. Daí seguiu-se um cerco de três
anos à cidade de Samaria, cujo resultado culminou em seu colapso em 722 e
na deportação de sua população. A cidade de Tiro continuava cercada na­
quele meio tempo, e foi tomada pelo seguinte rei dos assírios, chamado
Sargão II. Este também reivindicou ter conquistado Samaria,13 mas a maio­

9 Hallo, "From Qarqar to Carchemish," em Biblicol Archaeologist Reader, vol. 2, p. 170, in­
terpreta " Az-ri-a-u de Ia-ú-da-a-a" como uma referência a Azarias, divergindo de estu­
diosos tais como Siegfired Herrmann, que alega ser essa uma referência a um rei do
nordeste da Síria chamado Ya'udi (A History of Israel in Old Testament Times, traduzido
por John Bowden [Philadelphia: Fortress, 1975], p. 246). Em favor da posição de
Herrmann há a completa ausência de referências bíblicas a respeito de uma incursão
assíria até o sul, chegando mesmo no reino de Judá na época de Azarias.
10 Quanto ao texto assírio, a "tabuleta de Nimrud", ver D. Winton Thomas, editor,
Documents from Old Testament Times (London: Thomas Nelson, 1958), p. 55.
11 Quanto a um relato completo de sua vida e carreira, ver J.A. Brinkman, "Merodach-
Baladan II," em Studies Presented to A. Leo Oppenheim, editado por Robert M. Adams
(Chicago: University of Chicago Press, 1964), pp. 6-53.
12 Hawkins, "Neo-Hittite States," em CAH 3.1, pp. 415-16.
13 Essa reivindicação é feita nos anais de seu primeiro ano d e reinado. Ver Pritchard, Ancient
Near Eastern Texts, p. 284b.
418 H istória d l I srael no A ntigo T e s t -, h í ■■c

ria dos estudiosos está de acordo que ele estava apenas ganhando crédito
por um empreendimento atribuído a Salmaneser.14

M e n a é m de Isra e l

Voltando agora para Menaém de Israel, sua submissão voluntária a


Tiglate-Pileser pode ter alguma relação com a conspiração que lhe foi ar­
mada. De fato, apenas dois anos depois que substituiu seu pai Menaém,
Pecaías foi assassinado por Peca e um gileadita (2 Rs 15.25).15 Não é possí­
vel saber se Menaém tornou-se um defensor da causa assíria, tentando
assim afastar a ameaça durante seus anos de declínio, ou se a conspiração
deveu-se ao fato de o rei ter sentimentos pró-assírios. O certo é que Menaém
pagou a Tiglate-Pileser "m il talentos de prata, para que a sua mão fosse
com ele, a fim de firmar seu reino na sua mão" (2 Rs 15.19).
Esse estratagema, embora mau para uma nação que reivindicava a con­
fiança exclusiva no Deus da aliança, poderia até ter funcionado, caso não
ocorresse a morte de Menaém e Tiglate-Pileser não tivesse voltado para o
norte. Mas a história não é feita por "se". Menaém morreu após retirar
esse dinheiro de Israel à força, e foi sucedido por Pecaías (742-740). Tiglate-
Pileser, satisfeito com a submissão de Menaém, tratou de reorganizar os
estados ao norte da Síria e Fenícia,16 deixando Israel tratar de seus própri­
os assuntos internos.

O s ú ltim o s d ia s de Israel

A rebelião de Peca

A rebelião que aparentemente havia começado nos dias de Menaém


veio à tona nos dias do reinado de Pecaías. Mal iniciara seu governo, foi
atacado por Peca, filho de Remalias, um oficial do exército que colaborou
com o elemento gileadida que se opunha fortemente à influência dos
assírios (2 Rs 15.23-25). Com Pecaías fora do caminho, Peca se autoprocla-
mou rei e imediatamente rompeu o tratado com os assírios. Na verdade,

14 A crônica imparcial babilónica atribui a queda de Samaria inequivocamente ao rei


Salmaneser V. Ver Hayim Tadmor, "The Campaigns of Sargon II of Assur: A
Chronological-Historical Study," JCS 12 (1958): 22-40, 77-100.
15 H.J. Cook, "Pekah," VT 14 (1964): 128.
16 Ver especialmente Katzenstein, History of Tyre, pp. 204-5. Quanto a um tratamento mais
elucidativo da estrutura imperial assíria no oeste, ver I. Eph'al, "Assyrian Dominion in
Palestine," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 282-88.
0 C astigo d l Yahw eii: A ssíria e o J uí? o D ivino 419

essa atitude de Peca foi tomada porque Tiglate-Pileser estava envolvido


em seus problemas imperiais. Não é possível definir se Peca agia por zelo
patriótico ou tencionava criar uma confederação Siro-Palestina que pu­
desse suplantar a Assíria, sobre a qual tornar-se-ia o líder.

A volta de Tiglate-Pileser

Qualquer que fosse o objetivo de Peca, ele estava condenado ao desa­


pontamento, pois dentro de seis anos (cerca de 734) Tiglate-Pileser retornaria
para o oeste e rapidamente voltaria a anexar vastas áreas da Síria e da Pales­
tina, especialmente na Galiléia e Transjordânia.17 As cidades conquistadas
incluíam Ijom (Tel ed-Dibbin), Abel-Bete-Maaca (Abil el-Qamh), Janoa
(Yanüh), Cades (Tel Qades) e Hazor (Tel el-Qedah),18 todas localizadas na
antiga área das tribos de Aser e Naftali. Gileade pode ser destacada por seu
forte sentimento anti-assírio. Pela primeira vez, o historiador bíblico fala de
um costume assírio que teria um profundo impacto na história subseqüente
de Israel — Tiglate-Pileser levaria alguns cativos para a Assíria.
Enquanto isso, Oséias, filho de Elá, vendo a escritura na parede, livrou-
se de Peca e, com a aprovação dos assírios (ou por ordem direta), tornou-
se o último dos reis de Israel. Seu reinado (732-722) marca o início da últi­
ma década da história de Israel no Antigo Testamento.

A cronologia do reinado de Peca

Antes de traçarmos os acontecimentos daquela década, faz-se necessá­


rio atentar para os problemas relativos à cronologia de todo o período,
particularmente a data que trata acerca do próprio rei Peca, de Israel.19
Essencialmente, o problema está em torno do registro de que Peca come­
çou a reinar no qüinquagésimo segundo ano de Uzias (740), e que ele rei­
nou por vinte anos (2 Rs 15.27). Se este terminus a qno estiver correto, ele
morreu em 720, o que obviamente é impossível, porque ela pós-data o
término do reino, e não deixa qualquer espaço para o reinado de Oséias.

17 B. Oded, "Observations on Methods of Assyrian Rule in Transjordania After the


Palestinian Campaign of Tiglath-Pileser III," ]NES 29 (1970): 177-86.
18 Todas essas identificações são de Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia:
Westminster, 1979), pp. 429-43.
19 Esse problema ocupa todo um capítulo no livro de Thiele, Mysterious Numbers (pp. 118­
40), o que nos mostra quão complexa é a questão. Enquanto a presente discussão é
devedora ao trabalho de Thiele, existem diferenças em diversos pontos.
420 H istória de I srael no A ntigo Test -

Outra possibilidade é que, com os vinte anos de reinado e a sucessão do


trono por Oséias, em 732, Peca na verdade começou seu reinado em 752. A
maior objeção a essa hipótese é que não existe qualquer evidência que indi­
que um período de co-regência de Peca com Menaém ou Pecaías. O número
vinte é por isso descartado como um erro cometido pelo escriba.20 Mas antes
desta interpretação ser abandonada, deve-se considerar as circunstâncias
peculiares da ascensão de Peca. Em estrito sentido, não houve na realidade
uma co-regência entre Peca e Menaém. Peca não tinha sangue nobre, então
Menaém dificilmente o teria honrado desta forma. Mas Peca pode ter sido
reconhecido como fundador de uma dinastia rival por alguns segmentos da
população, especialmente em Samaria e ao seu redor.21
A base para esta hipótese é o fato de que Peca reinou por vinte anos e
foi assassinado em 732; começou a reinar no mesmo ano em que Menaém
assassinou Salum, tornando-se rei (752). Menaém era natural de Tirza, e
evidentemente representava uma facção anti-Samaria que ali se mantinha
desde os dias de Omri. Provavelmente, Peca era o principal representante
do partido pró-Samaria; embora tivesse de suportar com paciência doze
anos como comandante dos exércitos de Israel,22 ele desfrutava do apoio
de pessoas influentes em Samaria, e muitas já o reconheciam como rei.23
Pelo menos, com Menaém e Tiglate-Pileser fora do cenário, Peca sentiu-se
livre para tomar a iniciativa. Ele matou a Pecaías, declarou a independên­
cia de Israel contra a Assíria e ficou sozinho no poder pelos próximos oito
anos. Não há como provar essa hipótese, é claro, mas sem dúvida é uma
explicação bastante plausível quando comparada aos dados conhecidos.

20 A negação desse número vinte está claramente mencionado por T.R. Hobbs, 2 Kings,
Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1985), p. 201. Quanto a emendas propostas,
ver Cook, "Pekah", VT 14 (1964): 121-22.
21 Muitos estudiosos têm o costume de incluir no período de governo de um rei os anos
quando ainda era apoiado por algumas minorias. John Gray, por exemplo, vê o terminus
a quo para o rei Peca quando este se levantou contra Menaém, que foi uma aberta decla­
ração de que era contra os assírios (I & II Kings [Philadelphia: Westminster, 1970], pp.
64-65).
22 Apoio quanto a esse papel pré-monárquico de Peca pode agora ser encontrado num
selo e é comentado por Pierre Bordreuil, "A Note on the Seal of Pekah the Armor-Bearer,
Future King of Israel," BA 49 (1986): 54-55. Ver também Cook, "Pekah," VT 14 (1964):
124-26.
23 Cook, "Pekah," VT 14 (1964): 127, diz que as inscrições assírias (Pritchard, Ancient Near
Eastern Inscriptions, pp. 283-84) chamam Menaém de "Menaém de Samaria", ao passo
que Peca é conhecido como o governador de Bit Humria, a designação normal que os
assírios davam ao reino de Israel. Isso claramente sugere um Israel dividido; "Menaém
O C astigo de Yahweh : A ssíria e o J uízo D ivino 421

Oséias de Israel

Já vimos que Oséias, o último rei de Israel, chegou ao poder como um


adido dos assírios. Suas opções eram extremamente limitadas, pois no
mesmo ano de sua ascensão, em 732, Damasco foi reduzida a cinzas, e
estava claro que Tiglate-Pileser tinha em mente Samaria como seu próxi­
mo alvo. Na verdade, Oséias não era um verdadeiro aliado dos assírios, e
é possível constatar esse fato no momento em que Tiglate-Pileser precisou
retornar para o leste, a fim de reprimir um levante na Babilônia. Na oca­
sião, o rei de Israel decidiu declarar-se livre da suserania assíria. Ele teve
pouco tempo para desfrutar da independência, pois levantou-se na Assíria
Salmaneser V com a mesma política imperialista de seu pai. Salmaneser
chegou a Israel em 725 para exigir lealdade de Oséias. Quando compreen­
deu que não mais a tinha, cercou Samaria por três anos, até que o povo se
entregou em 722.

O pwpel do Egito

Uma das razões que motivaram o rei Oséias a proclamar sua indepen­
dência dos assírios foi que este percebeu o grande crescimento do Egito.24
Na época da sucessão de Salmaneser, um nobre da casa real em Sais, cha­
mado Tefnakht I (727-720), fundara a 24a Dinastia do Egito, no norte do
Delta. Os príncipes das dinastias 22ae 23alogo reconheceram sua soberania.
Com todo esse apoio, Tefnakht I sentiu-se forte suficiente para empreender
um programa de unificação de todo o Egito, o que também incluía uma
campanha militar contra o sul, para assim submeter a dinastia núbia dos
Piankhy (737-716). Estes, conhecidos como a 25a Dinastia, resistiram a
Tefnakht com bravura e, em um conflito final em Mênfis, não apenas saí­
ram-se vencedores, como também assumiram o controle de todo o Egito.
Piankhy então retornou para o sul sem que tivesse estabelecido algum
tipo de administração no Delta. Isto permitiu que Tefnakht e outros prín­
cipes do Delta se restabelecessem. Um desses príncipes, Osorkon IV (730-

de Samaria" pode indicar apenas um reconhecimento formal como sendo o rei do local.
William H. Shea, ao discutir um conjunto de ostracas da região de Samaria, nota que os
anos nove e dez referem-se a Menaém e que o ano quinze refere-se a Peca. A conclusão
de Shea é que o reinado de Peca cobriu um período completo de vinte anos, período
esse parcialmente contemporâneo a Menaém e que continuou depois da morte desse.
("The Date and Significance of the Samaria Ostraca," IEJ 27 [1977]: 21-23).
24 Keneth A. Kitchen, The Third Intermediate Period in Egypt ( It 00-650 B.C.) (Warminster:
Aris and Phillips, 1973), pp. 362-68.
422 H istória de I srael xo A ntigo T fat -, ol

715), membro da 22a Dinastia, provavelmente é aquele que está descrito


como "rei do Egito", a quem Oséias suplicou por socorro (2 Rs 17.4).-
Infelizmente o apelo não foi atendido, e Salmaneser levou até o fim o cer­
co sem qualquer interferência.

O im p a cto d a q u e d a de S a m a ria

Implicações teológicas

A queda de Samaria foi um golpe que abalou não apenas a política de


Israel, mas também o seu entendimento da natureza da aliança. O ano de
722 marcou definitivamente o fim do reino do norte? Teriam as promessas
e a paciência de Deus finalmente se esgotado? Estas interrogações deveri­
am estar nos lábios dos sobreviventes e de todos os habitantes de Judá.
Ainda que o trono de Davi estivesse estabelecido em Jerusalém, poderia
Judá esperar um futuro diferente?
As questões foram tratadas primeiramente pelos profetas. Porém, de
forma quase única em seu relato, o autor de 2 Reis também trata das im­
plicações teológicas para a nação de Israel. A queda de Samaria e a depor­
tação de sua população foram o claro resultado dos pecados cometidos
contra Yahweh (17.7). O povo de Deus tornou-se infiel para com o Senhor
que os livrara do Egito, adorando e servindo a outros deuses (17.15-17). E
fizeram isto apesar dos constantes avisos dos profetas de Deus de que tal
atitude consistiam em grave traição. O resultado inevitável foi o julga­
mento de Deus, um juízo que se manifestou na forma de exílio, expulsan­
do os judeus de sua terra prometida.
Mas Judá não estava melhor (17.19). Eles imitaram a apostasia de Isra­
el, e assim podiam esperar o mesmo destino. A apostasia personificou-se
no primeiro rei de Israel, Jeroboão, que se tornou para todas as gerações
subseqüentes um modelo de iniqüidade e mau comportamento. Não sur­
preende que o único remédio para 210 anos de infidelidade e apostasia
espiritual fosse a deportação da terra da promessa para as nações que,
ironicamente, teriam de ser o alvo da salvação proclamada por Israel.

Deportação

De acordo com a política normal dos assírios, os deportados de Isra­


el foram levados para as demais nações do Império Assírio e, do mes-25

25 IbicL, p. 374.
O C astigo de Yahw eii: A ssíria e o J uízo D ivino 423

mo modo, habitantes de outros povos estabeleceram-se em Samaria.26


O propósito obviamente era suprimir qualquer sentimento de naciona­
lismo, e assim inibir tendências de rebelião e independência. Mas a de­
portação e o restabelecimento teriam um impacto ainda maior sobre o
Judaísmo e a Igreja Primitiva, pois a m iscigenação resultante desse
conglomerado de pessoas produziria os Sam aritanos, vistos pelo Ju­
daísmo como uma raça de cães, mas carinhosamente tratados pelo
misericordioso Messias.
O narrador bíblico menciona apenas três paradeiros para os israelitas
que foram dispersos naquela ocasião: Haia, Gozã e "as cidades dos Medos"
— embora certamente a dispersão tenha se espalhado muito mais.27 Não é
possível identificar Haia,28 mas Gozã não é outra senão a famosa cidade de
Tel Halaf,29 no rio Habor, aproximadamente 96 quilômetros a sudoeste de
Arã. Quão irônico é o fato de os israelitas da diáspora terem se instalado
próximo à cidade de seu pai Abraão! E como se eles tivessem de recomeçar
tudo de novo. As "cidades dos Medos" situavam-se bem ao leste e ao centro
da cadeia montanhosa do Zagros, entre os atuais Irã e Iraque.
Uma deportação anterior já havia acontecido nos dias de Tiglate-Pileser,
mas limitou-se, em sua maioria, às duas tribos e meia da Transjordânia. O
cronista, em sua bem resumida recapitulação das genealogias tribais, diz
que Tiglate-Pileser levou as tribos do leste do Jordão em cativeiro (1 Cr
5.26). Isto não é um anacronismo ou uma falsa atribuição de conquistas de
Salmaneser que foram creditadas a Tiglate-Pileser, conforme alguns estu­
diosos costumam afirmar,30 mas uma amplificação do texto de 2 Reis 15.29,
que resume a campanha de 734-732: "Nos dias de Peca, rei de Israel, veio
Tiglate-Pileser, rei da Assíria, e tomou a Ijom, a Abel-Bete-Maaca, a Janoa,
a Quedes, a Hazor, a Gileade e à Galiléia, a toda a terra de Naftali, e levou
os seus habitantes para a Assíria". Seu destino foi virtualmente o mesmo
que o corpo principal de israelitas viria a ter dez anos depois, com exceção

26 Eph'al, " Assyrian Dominion in Palestine," em World History of the Jewish People, vol. 4,
parte 1, p. 283.
27 Muitos nomes hebreus têm sido encontrados em Calá; ver William F. Albright, "An
Ostracon from Calah and the North-Israelite Diaspora," BASOR 149 (1958): 33-36; I.
Eph'al, "Israel: Fali and Exile," em World History of the jewish People, vol. 4, parte 1, pp.
190-91.
28 Eph'al, porém, iguala-a com Halahlu, uma cidade e distrito a noroeste de Nínive ("Isra­
el: Fali and Exile," em World History of the jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 189-90).
29 Martin Noth, The Old Testament World (Philadelphia: Fortress, 1966), p. 261.
30 Isso é dado a conhecer por H.G.M. Williamson, 1 and 2 Chronicles, New Century Bible
Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1982), p. 67.
424 H istória de I srael no A ntigo T estamente

de que o cronista acrescenta o nome Hara, talvez uma corrupção de arê


(madday), "cidades (dos Medos)" (cf. 2 Rs 17.6; 18.II).31

A origem dos samaritanos

Os povos trazidos para Samaria, por outro lado, provinham de lugares


distantes tais como Babilônia, Cutá (Tel Ibrahim, cerca de 32 quilômetros
a nordeste de Babilônia), Ava (Tel Kef 'Aya, no rio Orontes, no norte da
Síria),32 Hamate (Hamã) e Sefarvaim (próximo a Hamate na Síria superi­
or).33 Tal aglomerado de povos obviamente introduziu uma confusão de
línguas, costumes e práticas religiosas.34 A despeito do novo ambiente, os
deportados começaram a instalar seus cultos nativos em Samaria, até que
Yawheh impôs o seu julgamento: enviou leões para matar alguns do povo.
Quando o rei da Assíria (presumivelmente Sargão II) ouviu falar do de­
sastre que se abatera sobre a nova colônia, decidiu enviar para lá sacerdo­
tes israelitas que comandassem o culto em Betei e instruíssem o povo na
forma correta de adoração (2 Rs 17.27,28).35 O resultado foi um sistema
altamente sincretista, pois enquanto o povo adorava e servia Yahweh ape­
nas com os lábios, continuava a servir a seus deuses nos lugares altos da
terra. Essa situação, segundo o historiador sagrado, ainda vigorava em
seus dias, pelo menos tão recente quanto 560 a.C. E persistiu ainda depois
disso, conforme se vê pelo testemunho de escritores pós-exílio como Esdras
e Neemias. A despeito das atividades missionárias desenvolvidas perio­
dicamente pelos javistas de Judá, apenas gradualmente Samaria aderiu ao
culto monoteísta, conforme visto no Novo Testamento.

31 Edward L. Curtis, A Critical and Exegetical Commentary on the Books of Chronicles


(Edinburgh: T. & T. Clark, 1910), p. 126.
32 Oxford Bible Atlas, editado por Herbert G. May, 3a edição (New York: Oxford University
Press, 1984), p. 123.
33 Yohanan Aharoni e Michael Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas (New York: Macmillan,
1968), mapa 150.
34 Quanto à prática assíria de impor costumes estrangeiros em províncias recém-adquiri-
das, como Israel, ver o trabalho de Morton Cogan, Imperialism and Religion: Assyria, Judah
and Israel in the Eight and Seventh Centuries B.C.E. (Missoula, Mont.: Scholars Press, 1974),
pp. 105-10. Tais imposições jamais foram feitas aos estados clientes, de sorte que Judá,
devido ao pagamento de tributos e outras expressões de fraternidade e aliança, foi to­
talmente deixado autônomo em suas práticas religiosas, sem interferência externa. Ver
Cari D. Evans, "Judah's Foreign Policy from Hezekiah to Josiah," em Scripture in Context,
editado por Carl D. Evans et al. (Pittsburgh: Pickwick, 1980), p. 158.
33 Quanto a um exato paralelo num texto assírio, ver Shalom Paul, "Sargon's Administrative
Diction in II Kings 17.27," JBL 88 (1969): 73-74.
0 C astigo de Yahweh : A ssíria e o J uízo D ivino 425

Ju d á e a q u e d a de S a m a ria

O problema da cronologia

A história da queda de Samaria e a deportação nacional de Israel não


estaria completa, é claro, sem uma referência à sua nação vizinha, Judá. O
ano 740 marcou a morte do rei Uzias de Judá e, conforme declara o profeta
Isaías, o ponto inicial de seu ministério (Is 6.1). Já se destacou anterior­
mente que Uzias pecou por arrogar-se o direito de agir como um sacerdo­
te aarônico, sendo por isso acometido por uma terrível doença de pele. Foi
afastado das funções reais e posto numa quarentena em local isolado. A
doença impossibilitou-o de tal maneira que foi obrigado a passar o gover­
no a seu filho Jotão (2 Cr 26.21). Quando exatamente isso aconteceu?
O historiador sugere que Jotão começou seu reinado no segundo ano
de Peca e continuou no trono por dezesseis anos (2 Rs 15.32-33). Por
outro lado, Acaz, seu filho, subiu ao trono doze anos antes da ascensão
de Oséias de Israel (2 Rs 17.1), que seria em 744.36 O problema que emer­
ge desses dados é o seguinte: se Acaz começou a reinar em 744 e seu pai
Jotão reinou por dezesseis anos antes dele, é lógico que Jotão iniciou seu
governo em 760. Complicando ainda mais a questão, para que Jotão ti­
vesse iniciado seu reinado no segundo ano de Peca, é necessário que este
iniciasse o seu próprio reinado em 762. Até então as autoridades tradici­
onalmente têm datado o início do governo de Peca em 740, depois dos
dezesseis anos de Jotão!
Entretanto, já foi proposto que Peca fora reconhecido como rei por al­
guns segmentos em Israel em cerca de 752. Nossa sugestão agora é postu­
lar que os "dezesseis anos" de Jotão consistiram basicamente em duas par­
tes: (1) um período que se pode chamar de regência dominante e (2) uma
co-regência com Acaz. Esta última abarca um período de 750 a 740, o ano
da morte de Uzias. Tudo indica que esses anos foram oficialmente uma
co-regência, visto que Uzias permaneceu como titular da função até 740.
Porém, o cronista insiste em afirmar que a completa autoridade foi dada a
Jotão quando se constatou a incapacidade de seu pai, de forma que na
prática ele era o governante (2 Cr 26.21).37 Logo, é precisa a afirmação de

36 Thiele, Mysterious Numbers, p. 129.


37 O termo "regência dominante" é aqui apresentado descrevendo a situação incomum na
qual um filho (aqui Jotão) assume a co-regência com seu pai (aqui Uzias/Azarias), mas
na verdade em posição superior, pelo menos funcionalmente. Essa é claramente a inten­
ção de 2 Crônicas 26.21.
426 H istória de I srael \'o A rtigo T esta oi ;

que o reinado de Jotão iniciou-se no segundo ano de Peca, partindo do


pressuposto de que Peca começou a reinar em 752.
Mais apoio a estes limites cronológicos para Jotão pode ser achado no
fato de Rezim de Damasco, que reinou de 750 a 732,38 juntamente com
Peca, ter começado a atormentar a nação de Judá nos dias do reinado de
Jotão (2 Rs 15.37). Essa situação estendeu-se até os dias de Acaz, filho de
Jotão (2 Rs 16.5). Visto que Rezim morreu em 732 (como também o rei
Peca), é certo que Acaz tenha iniciado seu reinado antes desta data. De
fato, o autor do livro dos Reis diz que Acaz começou a reinar no décimo
sétimo ano de Peca, que provavelmente é 735 (2 Rs 16.1). Da mesma forma
que seu pai, ele reinou por dezesseis anos (v.2), enquadrando-se entre 735­
719. Contudo, como já mencionamos, Oséias de Israel começou seu reina­
do em 732 e, segundo o registro em 2 Reis 17.1, encaixa-se com o décimo
segundo ano de Acaz. Isto sugere que Acaz, na verdade, começou a reinar
em 744, e não em 735.
Parece que a solução para o problema seria postular uma co-regência
entre Jotão e Acaz, de 744 a 735, depois de Acaz dominar absoluto por
dezesseis anos. Os "dezesseis anos", em outras palavras, referem-se apenas
ao seu reinado absoluto e independente, ao passo que o "décimo segundo
ano de Acaz", que está intimamente ligado à ascensão de Oséias, refere-se
ao décimo segundo ano desde o início da co-regência de Acaz. Também há
outros dados que informam que Acaz teria de estar vivo pelo menos em
715, pois neste ano ele seria sucedido por seu próprio filho Ezequias. Essa
data para Ezequias é praticamente correta, visto que seu décimo quarto ano
testemunhou a invasão de Judá pelos exércitos de Senaqueribe (2 Rs 18.13),
uma campanha que todos os estudiosos datam em 701. Portanto, a referên­
cia que trata da ascensão de Ezequias ao trono de Judá no terceiro ano de
Oséias (729 — 2 Rs 18.1) deve, certamente, pertencer a uma outra co-regên-
cia — uma de catorze anos entre Acaz e Ezequias.
Porém, se Acaz viveu até 715 e iniciou seu reinado em 735, como
pôde reinar por dezesseis anos? Para nós, a resposta está em admitir
uma co-regência de quatro anos entre Jotão e Acaz (735-731) que, por
alguma razão desconhecida, não está inclusa no total de anos dos rei­
nos de cada um. Em outras palavras, eles foram iguais durante este
período.39

38 Merrill F. Unger, Israel and the Aramaeans o f Damascus (Grand Rapids: Baker, 1980
reedição), p. 95.
39 Cook, "Pekah," VT 14 (1964): 121, sugere que 2 Reis 15.30 "retém uma tradição que diz
que Jotão viveu por quatro anos depois que oficialmente seu reinado chegara ao fim."
O C a s t i g o d e Ya h w e h : A s s í r i a e o J u í z o D i v i n o 427

Vejamos então o resumo de nossa reconstrução: Jotão tornou-se co-re-


gente em 750, enquanto seu pai Uzias ainda era vivo. Por onze anos ele
serviu na corte de seu pai nessa posição superior, até que Uzias faleceu em
740. A partir daí assumiu o trono absoluto até 735. Mas, antes da morte de
Uzias, Jotão designara seu filho Acaz como seu auxiliar direto na co-re-
gência em 744. Então, em 735, os dois tornam-se soberanos e iguais em
autoridade até 731. Nesse tempo, Acaz inaugurou sua regência absoluta
de dezesseis anos, que durou até 715. Ezequias tornou-se auxiliar direto
de seu pai em 729 e serviu nesta posição até 715, quando passou a reinar
absoluto até o ano 696. Então ele elegeu seu filho Manassés como seu au­
xiliar direto até 686.
A idade dos monarcas no momento de sua ascensão também está re­
gistrada nas Escrituras, e torna-se relevante para esta discussão. Jotão, con­
forme a Bíblia, tinha vinte e cinco anos quando assumiu a co-regência com
Uzias, em 750 (2 Rs 15.33). Acaz estava com vinte anos quando iniciou sua
co-regência (2 Rs 16.2). O raciocínio aqui é claro, pois, se ele tinha vinte
anos em 744, o ano que marca o início de sua co-regência, conclui-se que
seu nascimento foi em 764. Por conseguinte, Jotão teria nascido em 775 e,
aos onze anos de idade, já seria pai de seu filho, uma manifesta impossibi­
lidade. Obviamente, Acaz estava com vinte anos em 735 (e Jotão, seu pai,
com quarenta) e morreu em 715, com a idade de quarenta anos. Ezequias
tinha vinte e cinco anos quando começou seu mandato. Como no caso de
Acaz, a idade deve corresponder à época em que iniciou sua regência ab­
soluta em 715, pois se ele estava com vinte e cinco anos em 729, seria um
ano mais novo que seu pai Acaz! Mas, se estivesse com vinte e cinco anos
em 715, a data de seu nascimento seria 740, quando Acaz estava com quin­
ze anos. Ainda assim o cálculo pode parecer um pouco problemático, mas
é perfeitamente possível e nada incomum para a época.40 Além disso, é
muito mais razoável que qualquer outra alternativa.
Concluindo este trabalho, é necessário enfatizar que os dados que pa­
recem irreconciliáveis para muitos estudiosos podem ser integrados har­
moniosamente.41 Postular co-regências e ascensões ao trono em idades
prematuras não está em desacordo com o costume do antigo Oriente Mé­

40 Thiele, Mysterious Numbers, p. 128.


41 Thiele mostra-se tão relutante em admitir doze anos de co-regência (de acordo com sua
reconstrução) entre Jotão e Acaz por um lado, e Acaz e Ezequias por outro, que acaba
cometendo um erro ao atribuir uma falha na cronologia ao editor bíblico, ou seja, que o
editor localizou erroneamente o início dos reinados de Peca e Jotão em 740-749 em vez de
doze anos antes (Mysterious Numbers, pp. 138-40). Nenhum outro estudioso se dispôs a
428 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t - .o l s ^

dio.42 Além disso, os únicos dados disponíveis são os que se encontram no


texto; rejeitá-los em favor de um ceticismo que não oferece nenhuma al­
ternativa, senão a afirmação de um erro textual é deixar em aberto a ques­
tão, desconsiderando o método erudito. A menos que alguém prove, base­
ado exclusivamente no Antigo Testamento, que a reconstrução aqui proposta
é impossível ou improvável, o melhor a ser feito é reconhecê-la de forma
objetiva e imparcial como pelo menos digna de consideração.

Jotão de Judá

Voltando para a narrativa histórica, Jotão, rei de Judá, reinou em lugar


de seu pai de 750 a 740, o ano da morte de Uzias, e depois sozinho até 731 (2
Cr 27.1-9). Ele foi descrito pelo escritor sagrado como um bom rei, que fez o
que era reto diante de Yahweh. O povo, porém, continuava suas práticas
pagãs, queimando e sacrificando nos lugares altos. Como Uzias, Jotão
engajou-se em um programa de defesa interna e ao redor de Jerusalém, uma
obra necessária considerando os tempos agitados em que vivia. Em algum
ponto, talvez logo após as campanhas de Tiglate-Pileser (743-738), quando
Menaém de Israel foi forçado a pagar tributos, Jotão lançou-se em ataque
contra Amom e reduziu-o a um estado tributário por cerca de três anos.
Parece que isto só foi possível porque Tiglate viu-se obrigado a voltar para a
Assíria, depois de 738. Se esta suposição estiver correta, a subjugação dos
amonitas perdurou até 735, justamente o ano em que Acaz (partidário dos
assírios) assumiu a co-regência com seu pai. Sem dúvida há uma ligação
entre a ascensão de Acaz ao trono (como co-regente) e o fato de o nome dos
amonitas não constar das antigas listas dos estados tributários de Tiglate-
Pileser, já que mais tarde os vemos pagando tributos juntamente com Acaz.43

desenredar as complexidades da cronologia das monarquias de Israel como Thiele, que


tenta de todas as maneiras reter os dados contidos no Texto Massorético. É estranho que
justamente aqui ele se mostre tão radical contra o fato de Acaz ter sido feito co-regente
com seu pai Jotão enquanto este mesmo ainda era co-regente com seu pai Uzias. Uma
atenção mais cuidadosa ao texto de 2 Crônicas 26.21 aliviaria muito mais a tensão. Sem
dúvida é difícil entender por que os cronistas, em certas ocasiões, datam uns reinados
como regência única e outros como co-regência. Contudo, tal dificuldade no pensamento
moderno não deve, em hipótese alguma, desqualificar o texto e a narrativa dos historia­
dores antigos, pois foram intérpretes e redatores fiéis dos acontecimentos de seus dias.
42 Quanto a esse tema, sugerimos que se pesquise a interessante e persuasiva documenta­
ção oferecida por Nadav Na'aman, "Historical and Chronological Notes on the Kingdoms
of Israel and Judah in the Eighth Century B.C.," VT 36 (1986): 83-91.
43 Hallo, "From Qarqar to Carchemish," em Biblical Archaeologist Reader , vol. 2, p. 171.
O C a s t ig o d e Ya h w e i i : A s s ír ia l o J u íz o D iv in o 429

Bem mais importante para a política externa de Judá foi a abominável


aliança entre Damasco e Samaria conduzida pelos reis Rezim e Peca, res­
pectivamente, a qual representou uma forte ameaça contra o Reino do Sul
nos dias de Jotão. Com início em 735, a aliança foi uma espécie de represá­
lia contra Judá, agora governado por Acaz e Jotão, por não haver se dis­
posto a fazer coalizão contra Tiglate-Pileser, uma vez que todos os reis da
Filístia e Edom estavam engajados (734-732). Segundo o profeta Isaías,
Acaz recusou-se a cooperar a fim de não ser destruído; assim, preferiu
apoiar os assírios a ver seu país arrasado (Is 7).

Acaz de Judá

A narrativa bíblica sugere, assim como propõe nossa cronologia, que a


campanha militar Rezim-Peca contra Judá não foi direcionada ao rei Jotão,
embora tecnicamente ele ainda estivesse no comando, mas sim ao seu fi­
lho Acaz, que ainda não tinha vinte e cinco anos na ocasião. Diferente de
seu pai e avô, esse jovem monarca foi mau e apóstata, e assim, conforme o
cronista declara em sua interpretação teológica dos acontecimentos,
Yahweh o entregou nas mãos de Rezim, o rei de Aram (2 Cr 28.5), que o
derrotou e levou cativo muitos habitantes de Judá. Da mesma forma, ele
foi vítima de Peca, rei de Israel, sofrendo duras perdas, incluindo o seu
próprio filho e vários oficiais superiores. Peca, como Rezim, levou muitos
prisioneiros e pilhagem para sua capital.
Essas duas campanhas punitivas, não mencionadas em parte alguma
pelo autor do livro dos Reis, devem ter acontecido em 735 ou pouco tem­
po mais tarde, pois tanto Rezim como Peca foram mortos por volta de 732.
Conforme já foi sugerido, essas campanhas provavelmente foram uma re­
taliação contra a inclinação de Acaz pela Assíria e sua recusa em partici­
par da aliança criada pelos reinos que formavam o bloco siro-palestino. A
necessidade desta liga protetora era mais evidente para as nações do oes­
te, pois Tiglate-Pileser começava novamente sua segunda série de campa­
nhas, determinado a restabelecer a hegemonia assíria por todo o Mediter­
râneo. Previamente, ele fizera com que Menaém de Israel lhe pagasse tri­
butos e, no mesmo ano, também subjugou o rei Rezim.
Rezim provavelmente restabeleceu a dinastia dos arameus em Damas­
co, depois da morte de Jeroboão II de Israel, em 753. Provavelmente, em
seus dias de glória, Jeroboão incorporara Damasco ao seu reino (773), in­
troduzindo assim um interregno de vinte anos de escravidão, até a chega­
da de Rezim ao poder. A nova independência de Damasco estava direta­
mente ligada ao caos existente em Samaria, que presenciava uma violenta
430 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t a m e n t -:-

revolução contra a dinastia de Jeú em favor da dinastia de Menaém. Pode-


se até admitir que o tributo pago a Tiglate-Pileser por Menaém tinha um
duplo propósito — conseguir o apoio da Assíria contra o rei Rezim de
Damasco e garantir que a nova dinastia se estabelecesse poderosamente
em Samaria.
Com a retirada de Tiglate-Pileser em 738, Rezim e Peca de Israel tive­
ram condições de preparar a confederação siro-palestinense, cujo pro­
pósito era resistir a uma segunda fase do plano assírio de conquistar o
oeste. Na ocasião, Damasco tornara-se a poderosa base e a natural líder
de toda a Síria, recrutando estados ao norte em favor de sua causa.4445
Rapidamente Tiro, Sidon e outros centros fenícios se uniram. Até mesmo
os filisteus e edomitas aderiram, embora talvez relutantemente. Apenas
Judá se esquivou. Apesar de suas faltas, Acaz foi astuto o suficiente para
perceber que a total dominação do leste mediterrâneo pela Assíria era
uma questão de tempo. Então decidiu lançar a sorte em favor do vence­
dor em potencial, ao invés de unir-se aos que acreditavam poder resistir
ao inevitável.
As invasões de Rezim e Peca (735) foram logo seguidas por uma tenta­
tiva de conquista de Jerusalém. Através de um cerco, forçariam a sua sub­
missão à liga recém-formada. Acaz, encorajado pelo profeta Isaías, não
cedeu. Ao invés disso, enviou um frenético pedido de ajuda a Tiglate-
Pileser. Durante a crise, os filisteus e os edomitas aproveitaram-se da situ­
ação e fizeram duras incursões pelo território de Acaz, capturando alguns
postos avançados (2 Cr 28.16-18). O rei Rezim, percebendo talvez o dispa­
rate do cerco a Jerusalém, partiu em direção sul para capturar a estratégi­
ca cidade portuária de Elá, entregando-a nas mãos dos edomitas (2 Rs
16.5,6). Judá assim perdeu o acesso ao mar pelo sul.
Quando Tiglate-Pileser descobriu a mudança dos acontecimentos, vol­
tou para o oeste em 734, atacou as cidades de Ascalom, Gaza e Gezer, e
levantou um cerco a Jerusalém. Depois, atacou fortemente o recalcitrante
rei de Damasco, Rezim, em 732. O estrago foi tão grande que a cidade
nunca mais tornou-se significante nos tempos do Antigo Testamento. Fi­
nalmente, ele retirou de Israel seus territórios fronteiriços e estabeleceu
seu adido no trono israelense: o jovem Oséias.43

44 Eph'al, "Israel: Fali and Exile," em World History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, pp.
184-85.
45 Hallo, "From Qarqar to Carchemish," em Biblical Archaeologist Reader, vol. 2, pp. 173-74.
Quanto aos textos assírios, ver a obra de Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 283­
84. Baseado numa recente observação de um sincronismo entre a Assíria e Israel, Na'aman
O C a s t i g o d e Ya / i w e h : A s s í r i a e o J u í z o D i v i n o 431

Acaz pagou um preço espetacular por sua sobrevivência, não apenas


em termos monetários, mas especialmente pelos compromissos morais e
espirituais que sua barganha política o forçou a cumprir. Conforme ob­
serva o cronista bíblico, no fim Tiglate-Pileser deu para Acaz tribulação,
e não socorro (2 Cr 28.21). Acaz teve de pilhar o templo para pagar o alto
tributo exigido e, em gesto de agradecimento, ofereceu sacrifícios aos
deuses da Assíria, a quem ele creditou os méritos da salvação. Além dis­
so, estabeleceu centros de culto dos deuses pagãos por toda a terra. Não
surpreende que o profeta Isaías tenha castigado o rei Acaz com os mais
duros termos e predito o dia em que Judá também conheceria o terrível
açoite assírio (Is 7.17).
Este açoite não veio de uma só vez, pois Acaz se manteve subserviente
aos assírios pelo resto de seus dias. Além disso, Tiglate-Pileser achou-se
envolvido com uma série de rebeliões em sua terra, especialmente por
parte dos babilónicos. Tiglate-Pileser não poderia voltar para o oeste ain­
da que quisesse e, quando as pressões diminuíssem, ele já estaria morto.

Sargão II da Assíria

O sucessor de Tiglate-Pileser foi Salmaneser V (727-722), que por fim to­


mou a cidade de Samaria em seu último ano, mas decididamente evitou qual­
quer conflito com o reino de Judá. Talvez o acordo feito entre Acaz e os assírios
ainda estivesse em vigor. O mesmo pode ser dito quanto a Sargão, sucessor
de Salmaneser, pelo menos até a morte de Acaz em 715. Em nenhuma inscri­
ção o rei Sargão menciona alguma marcha contra Judá naqueles anos — em­
bora seus registros estejam repletos de ações contra os vizinhos de Judá. Tam­
bém não há nenhuma menção no Antigo Testamento.46 Isto é uma eloqüente
prova de que o rei Acaz era submisso aos reis da Assíria, uma lealdade esta­
belecida mediante a desobediência direta ao Senhor da aliança.
Sargão — que provavelmente não era filho de Tiglate-Pileser, conforme
alguns procuram provar — foi um usurpador e reinou sobre o vasto Império
Assírio de 722 a 705. Sendo um dos reis mais guerreiros da Assíria, também
foi o responsável por algumas das mais significativas campanhas durante
seus dezessete anos de reinado. Nos anais de seu primeiro ano, ele credita a si

propõe que Oséias depôs ao rei Peca depois que Tiglate se retirou do oeste, em 732. O
coup d'état e a sucessão de Oséias devem ser datados em 731, aliviando assim o proble­
ma de um reinado de nove anos para Oséias, encerrado em 722 ("Historical and
Chronological Notes," VT 36 [1986]: 71-74).
4n Hawkins, "Neo-Hitite States," em CAH 3.1, pp. 416-17.
432 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a m e

mesmo as honras por haver tomado a cidade de Samaria, embora o relato


bíblico informe que Salmaneser V foi o verdadeiro responsável pelo feito.
Como afirmam muitos estudiosos, o rei Sargão atribuiu a si a grande conquis­
ta para que seu primeiro ano de reinado não ficasse em branco.47
A ascensão de Sargão disparou uma série de rebeliões por todo o Impé­
rio. Em 720 ele começou a tratar os conflitos, fazendo uma aliança com os
elamitas e babilónicos em Der (Bedrai), cerca de 128 quilômetros a nor­
deste de Babilônia.48 Provavelmente ele foi derrotado, embora cada lado
reivindique a vitória. O líder das forças babilónicas foi Marduk-apla-iddina
(o conhecido Merodaque-Baladan, da Bíblia).49
Imediatamente Sargão moveu-se em direção oeste, para subjugar a for­
te coalizão siro-palestinense comandada por Hamate.50 Tomou de volta
Damasco e Samaria,51 que no momento era considerada uma província
assíria, e exigiu que Judá reafirmasse lealdade mediante o pagamento de
um pesado tributo. Dali passou por Ecrom e Gaza, chegando até próximo
à fronteira egípcia, onde forçou o líder do Baixo Egito, conhecido por Sib'e,
a render-se.52 Finalmente, voltou-se para o norte e completou o cerco a
Tiro que, cinco anos antes, havia sido conquistada por Salmaneser.53
Um pouco mais tarde, em uma segunda campanha a oeste em 717-716,
Sargão invadiu e arrasou Carquemis, e mais uma vez moveu-se para o sul
a caminho do Egito, onde venceu a principal e decisiva batalha travada
próximo do Vadi el-Arish.54 Não há nenhum registro de um confronto

47 William W. Hallo e William K. Simpson, The Ancient Near East (New York: Harcourt
Brace Jovanovich, 1971), p. 138.
4S Albert Kirk Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles (Locust Valley, N.Y.: J.J. Augustin,
1975), pp. 73-74, Chronicle 1.1. 33-37
49 Brinkman, "Merodach-Baladan II," em Studies Presente to A. Leo Oppenheim, editado por
Robert M. Adams, p. 13.
50 Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, p. 285.
21 Portanto, Samaria foi tomada duas vezes. Ver Eph'al, "Israel: Fall and Exile," em World
History of the Jewish People, vol. 4, parte 1, p. 187.
52 Kitchen, Third Intermediate Period, p. 373, interpreta o nome como Re'e e não Sib'e, iden­
tificando-o como o comandante do exército que estava sob o domínio de Osorkon IV (n.
743). Moshe Elat sugere que o intenso interesse da Assíria pelos negócios egípcios, des­
de os tempos de Tiglate-Pileser em diante, era fundamentalmente econômico. Sua con­
quista do bloco siro-palestinense foi feita para que as rotas comerciais que levavam ao
Egito permanecessem acessíveis ("The Economic Relations of the Neo-Assyrian Empire
with Egypt," JAOS 98 [1978]: 20-34).
53 Katzenstein, History of Tyre, pp. 229-30.
54 Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 375-76; Pritchard, Ancient Near Eastern Texts,
p. 286c.
O C a s t i g o d e Ya h w e h : A s s í r i a e o J u í z o D i v i n o 433

com o reino de Judá; portanto, conclui-se que Acaz, agora em seu penúlti­
mo ano de reinado, permanecia leal e submisso ao rei da Assíria.55

E z e q u ia s d e Ju d á

A situação mudou radicalm ente depois de 715, entretanto, pois


Ezequias, filho de Acaz, afirmou lealdade única a Yahweh e rompeu total­
mente a aliança com a Assíria (2 Rs 18.7). Na ocasião Sargão não pôde
punir a aberta insubordinação, mas em 712 ele (ou um emissário seu) vol­
tou para o oeste a fim de reprimir qualquer manifestação contrária a seu
governo que porventura Ezequias houvesse instigado.56 Depois que feriu
seus estados clientes - , possivelmente Judá estava incluído na lista - Sargon
retornou para a Assíria a fim de lidar mais uma vez com o Marduk-apla-
iddina, da dinastia dos Povos do Mar de Babilônia.57 Além disso, Sargão
achou necessário proteger mais seus flancos a noroeste por causa de
Mushku, na Ásia Menor, até que, em 709, ele conseguiu estabelecer um
tratado de paz com o rei Mita.58 Por fim, Sargão sofreu uma séria invasão
dos Cimerianos do norte, em 706, e é possível que tenha morrido no ano
seguinte, vítima dessas hostilidades.59

Os anos de co-regência

Voltando ao início do reinado de Ezequias, observa-se que ele se tor­


nou co-regente com Acaz no terceiro ano de Oséias, rei de Israel (2 Rs
18.1), em 729 a.C. Nessa época, estava ele com onze anos de idade,60 e
provavelmente não foi influenciado pela apostasia promovida por seu pai.
Mas sem dúvida o afastamento de Deus produziu um grande impacto na

55 Evans diz de fato que "não há evidências... de que Judá em qualquer ocasião tenha
sofrido ações militares feitas por Sargão II" ("Judah's Foreign Policy," em Scripture in
Context, p. 161).
56 Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 286-87. Para uma excelente visão de toda a
campanha, ver Gerald L. Mattingly, "An Archaeological Analysis of Sargon's 712
Campaign Against Ashdod," NEASB 17 (1981): 47-64.
57 Isso ocorreu no décimo segundo ano de Merodaque-Baladan ou 710 a.C. Ver Grayson,
Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 75, Chronicle 1.21-5; Brinkman, "Merodach-Baladan
II," em Studies Presented to A. Leo Oppenheim, editado por Robert M. Adams, pp. 18-19.
?s Hawkins, "Neo-Hitite States," em CAH 3.1, p. 421.
57 Olmstead, History of Assyria, p. 267.
"J Os "vinte e cinco anos" em 2 Reis 18.2 obviamente referem-se à idade de Ezequias em
715, quando ele começou sua regência única.
434 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t -

vida do jovem monarca. Logo que assumiu o reino, aos vinte e cinco anos
de idade, ele já estava tão frustrado com os longos anos de falência espiri­
tual que imediatamente iniciou um grande movimento de reforma que
permeou todos os aspectos de Judá.

A reforma de Ezeqnias

A dependência da Assíria estava integralmente relacionada com o


declínio espiritual que Judá experimentava sob o governo de Acaz. Foram
as pressões de Tiglate-Pileser que enfraqueceram o coração de Acaz, fa­
zendo-o abandonar Yahweh e a aliança, e ainda abraçar os cultos pagãos
da Assíria. Então não surpreende que as relações políticas de Ezequias
com a Assíria, agora sob Sargão II, fossem quebradas.
Uma leitura atenta das fontes disponíveis revela que, embora o aviva-
mento espiritual se espalhasse em Judá, não é possível dizer que sua in­
fluência imediata tenha interferido na quebra das relações com a Assíria.61
O cronista diz que logo no primeiro mês de reinado,62 o rei Ezequias rea­
briu o templo e restabeleceu os serviços sagrados (2 Cr 29.3). Isto requeria
uma obra de reparo, uma vez que os recintos sagrados não apenas torna­
ram-se ritualmente impuros em razão dos sacrilégios de Acaz, como tam­
bém deterioraram-se fisicamente pela ausência de uma manutenção pró­
pria. Portanto, Ezequias reuniu os sacerdotes e levitas, encarregando-os
de se consagrarem novamente para o serviço sagrado e juntos renovarem
a aliança com Yahweh.
Dezesseis dias foram gastos para a obra da purificação. Quando a
obra finalmente encerrou-se, o rei Ezequias convocou uma santa as­
sembléia e ordenou aos sacerdotes que trouxessem ofertas para se­
rem queimadas e oferecidas a Yahweh, bem como ofertas pelo pecado
em favor de todo povo. Então, à medida que os sacrifícios eram ofere­
cidos, o coral e as orquestras do templo retumbaram fortes louvores a

61 Evans diz que não havia qualquer indicação de uma rebelião anti-assíria na época da
reforma ("Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 162).
62 Mordechai Cogan descreve com bastante percepção que essa foi uma "pseudo-data"
que marcou apenas o interesse de Ezequias pelos negócios do templo, mas não necessa­
riamente de sua reforma ("The Chronicler's Use of Chronology as Illuminated by Neo­
Assyrian Royal Inscriptions," em Empirical Models for Biblical Criticism, editado por Jeffrev
H. Tigay [Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985], pp. 202-3). Quanto ao
porquê do cronista cobrir com mais detalhes os acontecimentos que envolveram a refor­
ma do rei Ezequias, quando se compara o relato com 2 Reis, ver Jonathan Rosenbaum,
"Hezekiah's Reform and the Deuteronomistic Tradition," HTR 72 (1979): 23-43.
O C a s t i g o d e Ya h w e h : A s s í r i a e o J u í z o D i v i n o 435

Deus. O culto findou com o oferecimento de ofertas de ação de gra­


ças, que atestavam a sinceridade e a completa dedicação daqueles que
as traziam.
Quando o mês da Páscoa chegou, no primeiro ano de Ezequias, o rei
quis restaurar a festa como uma observação nacional — parece que ela
não vinha sendo celebrada apropriadamente por muitos anos — , mas
percebeu ser fisicamente impossível em virtude dos poucos sacerdotes
qualificados (2 Cr 30.1-9). Além disso, não houve tempo hábil para a
divulgação de suas intenções, e para que o povo viesse de todas as
extremidades dos dois reinos. Então o rei decidiu adiar a celebração da
Páscoa para o segundo mês, e enviou mensageiros desde Dã até Berseba,
convidando o povo para a grande festividade que se realizaria em Je­
rusalém.63 A mensagem de Ezequias era mais do que um mero convite;
era um apelo a Israel, e também a Judá, para que se voltassem para o
Deus de seus pais e renovassem a aliança com Yahweh. Poderiam ser
apenas um remanescente, mas Deus os abençoaria e restauraria seu fa­
vor sobre o povo.
Entretanto, tão endurecida estava a nação, que muitos decidiram não ir
a Jerusalém para celebrar a Páscoa. Apesar disso, um grande número de
israelitas se ajuntou no décimo quarto dia para participar do festival que
comemorava sua eleição e redenção como povo de Deus. Alguns estavam
ritualmente impuros, provavelmente devido à lassidão espiritual, mas
Ezequias intercedeu por eles perante o Senhor, a fim de que Ele não olhas­
se para as mãos impuras do povo, mas para os seus corações dedicados (2
Cr 30.18,19).
A festa não durou os sete dias prescritos, mas estendeu-se por catorze
dias, pois o povo estava cheio de alegria. O cronista relata que desde os
tempos de Salomão não se comemorava a Páscoa assim. E Deus, dos céus,
ouviu e se agradou das canções de louvor.
Como resultado da restauração do culto a Yahweh, todo vestígio e sím­
bolo pagão foi destruído. Isto incluía não apenas os altos do sul ao norte,
como também a serpente de bronze que Moisés fizera no deserto do Sinai
(2 Rs 18.3-4; 2 Cr 31.1). Um indicativo de quão profunda era a apostasia de
Israel é o fato de que adoravam qualquer objeto que, no passado, servira-
lhes como símbolo da graça de Deus.

O próprio fato de Ezequias sentir-se à vontade para enviar mensageiros por todo o
Israel, na expectativa de obter uma resposta favorável, é uma prova indiscutível, segun­
do o estudioso Hanoch Reviv, de que a Assíria comandada por Sargão tinha pouco con­
trole da região ("The History of Judah from Hezekiah to Josiah," em World History ofthe
Jewish People, vol. 4, parte 1, pp. 194-95).
436 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a u e ' - :

Seguiu-se à renovação da aliança com Yahweh a reorganização dos


oficiantes religiosos e de suas responsabilidades.64* O rei Ezequias divi­
diu os sacerdotes e levitas conforme prescrevia a Lei de Moisés, e orde­
nou ao povo que viesse ao templo e trouxesse seus dízimos e ofertas
para a manutenção da casa de Deus. O comando foi prontamente aten­
dido com muita generosidade, e após quatro meses acumulou-se mui­
to dinheiro e bens para o santuário. Foram trazidas tantas ofertas que o
rei teve de construir outros depósitos para armazená-las. Alguns ho­
mens foram encarregados de administrar o patrimônio, de modo que
os sacerdotes, levitas, e suas famílias pudessem obter a porção que lhes
determinava a lei, sendo moradores de Jerusalém ou não. Assim o rei
Ezequias fielmente desempenhou suas funções de rei e sacerdote pe­
rante o Senhor, de maneira que o cronista relata que ele prosperou em
seu reino (2 Cr 31.21).

A rebelião contra a Assíria

Em algum tempo no início de seu reinado, provavelmente logo após a


reforma religiosa acima descrita, Ezequias rebelou-se contra Sargão, da
Assíria, e recusou-se a pagar-lhe o pesado tributo que fora exigido de Acaz.
Em seguida atacou alguns estados controlados pelos assírios, como a
Filístia, fazendo pesadas incursões pela região, tomando alguns de seus
entrepostos que haviam sido estabelecidos em Judá (2 Cr 28.18).63
Estranhamente, nem o livro dos Reis nem o das Crônicas relata a rea­
ção de Sargão à ousada atitude de Ezequias. Porém, o profeta Isaías fala
a respeito. Já se falou da campanha de Sargão em 717-716, na qual ele
acabou com uma rebelião em Carquemis, no norte da Síria. Na ocasião,
ele subjugou Shilkanni (= Osorkon IV) do Egito no Vadi el-Arish. Agora
(715), o rei Acaz de Judá, o fiel vassalo dos assírios, estava morto, e no
trono reinava seu filho Ezequias, um impetuoso anti-assírio. A razão de
Sargão não saber a respeito da mudança na administração ou, se estava
ciente, por que não tomou providências imediatas contra a rebelião de

64 A centralização do culto naturalmente resultou em uma reorganização política e admi­


nistrativa incomparavelmente melhor. Tal reorganização interna pode ser evidenciada
por mais de mil alças de jarros daquela época, em que se tem gravado o selo real (Imlk)
e que foram descobertas em. Laquis e noutros sítios arqueológicos. Evans crê que os
jarros reais foram produzidos para coleção e distribuição de ofertas religiosas ("Judah's
Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 163).
63 B. Oded, "Neighbors on the West," em World History of the Jeiuish People, vol. 4, parte 1,
p. 244.
O C a s t ig o d e Ya h w e h : A s s ír ia e o J u íz o D iv in o 437

Ezequias, permanece um mistério. Ao invés, Sargão voltou para Dur-


Sharrukin (Khorsabad), sua capital.66
Uma pessoa de fé verá a atitude negligente de Sargão como um clás­
sico caso de providência divina. Com os assírios de volta à sua terra,
Ezequias teve oportunidade de efetivar a reforma e ainda enviar mensa­
geiros à província assíria de Samaria, convidando os israelitas para a
Páscoa. Esse descanso prolongou-se até 712, quando Sargão retornou para
o oeste a fim de reprimir a rebelião filistéia em Asdode,67 estabelecer
relações diplomáticas com Shabako, o sucessor núbio de Osorkon e* fi­
nalmente, punir a rebeldia de Ezequias. Isaías faz menção dessa campa­
nha assíria (20.1), mas nenhuma fonte, bíblica ou não, revela as consequ­
ências sobre o reino de Judá. Conclui-se então que os objetivos malévo­
los de Sargão não prevaleceram, embora haja um texto assírio que refe­
re-se ao estado de ]udá como um tributário de Sargão. Isto significa que
o rei Ezequias esteve, pelo menos temporariamente, sujeito ao rei da
Assíria.68 Quanto ao restante dos dias de Sargão (712-705), Judá ficou
imune da interferência assíria, mas com a ascensão de Senaqueribe hou­
ve mudança, e aproximadamente em 701, os assírios mais uma vez par­
tiram em direção oeste.

Senaqueribe e o cerco de Jerusalém

Senaqueribe reinou de 705 a 681. Embora fosse filho de Sargão, ele deu
início a algumas das maiores mudanças na política dos assírios, incluindo
a transferência da capital do reino de Dur-Sharrukin para Nínive.69
Senaqueribe mal assumira o governo e estourou uma rebelião na Babilônia,

66 Hallo e Simpson, Ancient Near East, p. 140.


67 Eph'al, "Assyrian Dominion in Palestine," em World History of the Jeivish People, vol. 4,
parte 1, p. 277.
68 Quanto à lista dos que pagavam tributos, a qual incluía o nome de Judá, ver Cogan,
Imperialism and Religicm, p. 118. Ele julga que a lista é datada de 712 a.C. Baseado nesta e
em outras evidências, A.R. Jenkins vai mais além e diz que o cerco de Jerusalém no
décimo quarto ano de Ezequias tem de estar ligado ao rei Sargão, e não a Senaqueribe
("Hezekiah's Fourteenth Year," VT 26 [1976]: 284-98), acalmando assim o problema da
hipótese das duas campanhas. Além do fato de que essa explicação necessariamente
exigiria uma data para a ascensão de Ezequias em 727 (Jenkins) em vez de 729, confor­
me já foi estabelecido, ela também vai diretamente contra o claro registro bíblico que
relaciona o décimo quarto ano de Ezequias com Senaqueribe (esp. 2 Reis 18.13).
09 Olmstead, History of Assyria, pp. 283-336. Quanto aos textos assírios com respeito a
Senaqueribe, ver Daniel D. Luckenbill, The Annals o f Sennacherib (Chicago: University of
Chicago Press, 1927).
438 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t a \i e \ ~ :

comandada pelo eterno adversário, Marduk-apla-iddina.70 Este líder da


dinastia araméia dos Povos do Mar havia acabado de retornar do exílio
imposto por Sargão, mas com uma tenacidade característica, logo conse­
guiu apoio do povo e de alguns estados elamitas orientais e arameus oci­
dentais para promover novamente a independência de Babilônia. Até mes­
mo Ezequias pode ter se juntado a ele. Marduk-apla-iddina no mínimo
enviou embaixadores à cidade de Jerusalém solicitando o apoio de
Ezequias; não se sabe, entretanto, se o auxílio se concretizou (Is 39).
De qualquer forma, Senaqueribe prevaleceu e tomou a cidade de
Babilônia, restabelecendo a soberania dos assírios na região. Ele também
forçou uma subjugação sistemática de toda a área dos Povos do Mar. Sur­
preendentemente, Marduk-apla-iddina instigou outra rebelião em 700, mas
também foi derrotado. Dessa vez, porém, os assírios estabeleceram o fi­
lho de Senaqueribe, Assur-nadin-sumi, como regente da Babilônia.71
Enquanto isso, Ezequias era motivado pelos egípcios a rebelar-se contra
os assírios (2 Rs 18.13,21). Então em 701, Senaqueribe marchou para o oeste,
e pelejou contra o Egito e Judá em Eltekeh (Tel esh-Shallaf), a oeste de Gezer,
e ameaçou Jerusalém com severo castigo.72 Ezequias foi forçado a pagar um
tributo exorbitante para poder escapar da destruição, o que resultou no es­
vaziamento dos tesouros do palácio e do templo.73 Insatisfeito, o rei da Assíria
decidiu infligir um cerco à cidade que certamente traria muita fome, doen­
ças e mortandade à cidade de Jerusalém, não fosse a intervenção miraculosa
de Yahweh na destruição do exército assírio, a qual forçou o retorno de
Senaqueribe de mãos vazias para a cidade de Nínive.74

70 H.W.F. Saggs, "The Assyrians," em Peoples o f Old Testament Times, editado por D.J.
Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), p. 163; Louis D. Levine, "Sennacherib's Southern
Front: 704-669 B . C JCS 34 (1982): 29-34. Quanto ao texto, ver Luckenbill, Sennacherib,
1.1-64.
71 Olmstead, History of Assyria, pp. 289-90; Levine, "Sennacherib's Southern Front," JCS 34
(1982): 41; Brinkman, "Merodach-Baladan II," em Studies Presented to A. Leo Oppenheim,
pp. 26-27.
72 Quanto ao texto, ver Luckenbill, Sennacherib, 2.37-3.49.
73 É interessante notar, como já o fez A.R. Millard, que o tributo não foi entregue imediata­
mente, mas depois enviado a Nínive. Isto dá a entender que Ezequias apenas fez uma
promessa de pagamento, o que deixou Senaqueribe insatisfeito. Então ele ordenou um
segundo cerco, mas Ezequias honrou seu compromisso mesmo depois que os assírios
foram forçados a se retirar ("Sennacherib's Attack on Hezekiah," Tyn Bull 36 [1985]: 71).
74 A tese proposta pelo famoso estudioso John Bright (History of Israel, p. 300), de que
Senaqueribe empreendeu duas campanhas militares contra Jerusalém, e que foram in­
tercaladas por um espaço de quinze anos, não tem como ser aceita. Abase que sustenta
O C a s t i g o d e Ya h w f . h : A s s í r i a e o J u í z o D i v i n o 439

O envolvimento do Egito

Antes de um exame detalhado desta crise, é necessário observar rapi­


damente a situação política do Egito, visto que as fontes bíblicas, particu­
larmente Isaías, enfatizam consideravelmente o envolvimento do Egito
nos negócios de Judá naquele tempo.75 Já descrevemos a situação confusa

tal idéia é o argumento de que Tiraca, da Núbia (2 Reis 19.9), que conduziu um exército
egípcio para a Palestina na época do cerco de Jerusalém imposto por Senaqueribe, esta­
va com apenas catorze a dezoito anos de idade em 701. Isso, obviamente, o desqualificaria
como o comandante daquela campanha, de forma que a sugestão proposta é que ele
conduziu uma outra campanha quinze anos mais tarde, em 686. A idéia de que Tiraca
era um adolescente em 701 está baseada em uma má interpretação da cronologia da 25a
Dinastia e das esteias 4 e 5 de Kawa. Como o próprio Kitchen demonstra, Tiraca estava
com vinte ou vinte e um anos de idade em 701 e, portanto, bem hábil para ser pelo
menos "o responsável pela expedição." O fato de ele ser chamado de "rei cusita" em 2
Reis 19.9 pode ser apenas uma antecipação proléptica de seu reinado, que realmente
começou em 690 (Third Intermediate Period, pp. 157-61). Além disso, não existe referência
nos anais de Senaqueribe ou mesmo no Antigo Testamento de uma campanha contra
Jerusalém depois de 701, embora Bright e outros estudiosos proclamem ter descoberto
uma quando isolam o texto de 2 Reis 18.14-16 de seu contexto (dessa forma vendo-a
como o registro de uma campanha em 701), deixando 2 Reis 18.17-19.37 e Isaías 36 — 37
como registro dessa tal segunda campanha.
Danna Fewell demonstrou que a passagem de Reis, sobre a qual as duas campanhas
costumam se basear, é uma "unidade coesiva" que tem uma estrutura concêntrica e
perfeitamente perceptível. Enquanto não chegam ao acordo acerca do número de cam­
panhas, a análise que Fewell faz do texto pode conduzir a apenas uma conclusão — a de
que o historiador descrevia um episódio maior ("Sennacherib's Defeat: Words at War in
2 Kings 18.13 - 19.37," JSOT 34 [1986]: 79-90). Ver também Anson F. Rainey, "Taharqa
and Syntax," Tel Aviv 3 (1976): 40.
Contudo, a pouco tempo um estudioso chamado William H. Shea comparou alguns dos
recentemente publicados textos assírios (K 6205 + BM 82-3-23,131), palestinos (o Papiro
Adon) e egípcios (uma inscrição no templo em Karnak), e concluiu que eles indicavam
decisivamente que realmente houve uma segunda campanha de Senaqueribe, que ele
data em 688/687 ("Sennacherib's Second Palestine Campaign," JBL 104 [1985]: 401-18).
Shea baseia boa parte de seu argumento nos estudos dos textos assírios de Hayim Tawil,
que falam dos projetos de construção do rei Senaqueribe de sistemas de irrigação em
Musur (monte Musri próximo de Nínive), em 694. Tawil associa o acádio Musri com o
hebraico masôr de 2 Reis 19.24 (=Is 37.25), e diz que os mensageiros assírios não poderi­
am estar se gabando, em 701, de um acontecimento que só iria ocorrer em 694. Sendo
assim, Tawil sugere que a palavra hebraica que designa Musri pode ter sido posta no
vernáculo por um editor posterior ("The Historicity of 2 Kings 19.24 [=Isaiah 37.25]: O
problema de Ye'orê Masôr," JNES 41 [1982]: 195-206).
75 Ver especialmente Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 356-87.
440 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a t e

vivida pelo Egito durante o último terço do século oito. Duas dinastias, a
22a e 23a, reinaram sobre uma parte bastante limitada na região do Delta,
ao passo que a 24a Dinastia crescia e se localizava em Sais, no norte, e a 25a
dinastia também se desenvolvia muito no extremo sul. Por volta de 737,
Piankhy, o rei núbio da 25a Dinastia, assumiu o controle de todo o sul do
Egito. Coagindo o norte, através da batalha crucial de Mênfis, ele também
conseguiu submeter o Baixo Egito.
Mas quando Piankhy voltou para o sul, Tefnakht, da 24a Dinastia, rei­
vindicou ser o líder do Baixo Egito. Osorkon IV, da 22a Dinastia (o rei So
da Bíblia), aparentemente parecia ser seu servo. Depois que Piankhy mor­
reu, Shabako, o próximo rei da 25a Dinastia, moveu-se para o norte a fim
de unificar o Egito contra a ameaça de invasão de Sargão. Com dificulda­
de, ele conseguiu a unificação desejada, mas somente pela extradição de
um príncipe filisteu para Sargão é que foi poupado do que certamente
seria uma devastação para seu reino. A partir de então, Shabako só reinou
porque obteve permissão dos assírios, até que morreu em 702.
Shebitku, um dos filhos de Piankhy, seguiu Shabako. Com espírito re­
volucionário, logo após a morte de Sargão, em 705, Shebitku com seu exér­
cito armado moveu-se para o norte em 701 para juntar-se aos estados pa­
lestinos, que incluíam Judá, no esforço de deter o avanço do novo rei da
Assíria, Senaqueribe.76 Quando Shebitku chegou, é possível que o rei
Ezequias já houvesse prometido seu tributo ao rei assírio. De qualquer
forma, Senaqueribe suspendeu suas hostilidades contra Jerusalém quan­
do soube que Shebitku estava a caminho. Então confrontou o Egito e
Judá em Eltec.77 Vitorioso, Senaqueribe repartiu seu exército, deixando
parte para manter a defesa contra os egípcios e a outra para retomar
contra Jerusalém, aparentemente para punir Ezequias por sua colabora­
ção com os rebeldes.
Mas agora, um novo contingente militar, maior e mais poderoso, co­
mandado pelo príncipe egípcio Tiraca estava a caminho. Senaqueribe foi
informado de tal movimento egípcio, mas advertiu Ezequias de que seu
auxílio em nada seria proveitoso, uma vez que os assírios já haviam
destruído esses mesmos inimigos uma vez (2 Rs 19.9-13). De fato, o Egito

76 Nadav Na'aman, "Sennacherib's 'Letter to God' on His Campaign to Judah," BASOR


214 (1974); 33-34.
77 E possível, é claro, que a cobrança do tributo exigido pelos assírios e a destruição das
cidades interioranas de Judá tenha sucedido e não precedido a vitória de Senaqueribe
em Eltec. Ver Eph'al, "Assyrian Dominion in Palestine," em World History of the Jewish
People, vol. 4, parte 1, pp. 278-79.
O C a s t i g o d e Ya i i w e h : A s s í r i a e o J u íz o D iv in o 4 41

provou ser uma "cana quebrada" (2 Rs 18.21): Shebitku e Tiraca retira­


ram-se, sem causar nenhum dano aos assírios. Mas Ezequias descobriu
que não precisava do Egito de forma alguma, pois os exércitos de Yahweh
logo repeliriam a poderosa máquina de Senaqueribe.

A morte de Senaqueribe

Depois que Senaqueribe voltou para a Assíria, ele descobriu que esta­
va com um duplo problema: a primeira dinastia dos Povos do Mar e tam­
bém os elamitas.78 Ele tentou uma invasão naval em Elam, mas foi repeli­
do, e os elamitas, por sua vez, atacaram Babilônia. Assur-nadin-sumi, o
filho de Senaqueribe, que lá era o governador, foi levado cativo. Três anos
depois, em 692, ocorreu uma batalha árdua entre os elamitas e assírios no
vale Diyala, um conflito que terminou em um empate. A Babilônia, que na
ocasião estava sob o domínio do nativo Musezib-Marduk, foi atacada e
saqueada por Senaqueribe em 689,79 e permaneceu sem rei pelos últimos
oito anos de Senaqueribe, que morreu vítima de uma conspiração armada
por dois de seus filhos.80 O tumulto permitiu que um outro filho de
Senaqueribe, o conhecido Esaradon, ocupasse o lugar de seu pai, manten­
do o controle da situação que ameaçava explodir.81

Os últimos anos de Ezequias

Com esse cenário em vista, será mais fácil reconstruir de alguma forma
o confuso registro cronológico da última parte do reinado de Ezequias,
conforme 2 Reis, 2 Crônicas e Isaías. A confusão surge porque o relato não
se apresenta em ordem cronológica, especialmente em Isaías, e porque os
historiadores sagrados, como é freqüentemente o caso, preferem ordenar
suas discussões por temas, tópicos, ou assuntos teológicos, diferentemen-

78 Olmstead, History of Assyria, pp. 283-86; Levine, "Sennacherib's Southern Front," JCS 34
(1982): 41. '
79 J.A. Brinkman, "Sennacherib's Babylonian Problem: An Interpretation," JCS 25 (1973):
94-95.
80 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 81, Chronicle 1.3. 34-38. Simo Parpola
demonstrou que o assassino foi o filho de Senaqueribe chamado Arad-Ninlil, um nome
equivalente ao Adrameleque da Bíblia ("The Murderer of Sennacherib," em Death in
Mesopotamia, editado por Bendt Alster, Rencontre assyriologique internationale 26
[Copenhagen: Akademisk Forlag, 1980], pp. 171-82).
'• Ver o chamado Prisma B em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 289-90.
442 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a m e n t

te dos historiógrafos modernos.82 Apesar disso, as linhas principais são


bastante semelhantes e os acontecimentos podem ser propriamente har­
monizados. O que segue é algo repetitivo de nossa prévia discussão, mas
a ênfase agora é sobre o ponto de vista bíblico.

A doença de Ezequias
A história começa com a doença de Ezequias, um episódio registrado
em todas as três fontes (2 Rs 20.1-19; 2 Cr 32.24-26; Is 38,39). Ela deve ter
ocorrido antes da invasão de Senaqueribe, uma vez que o acontecimento
é antecipado. O papel de Merodaque-Baladan é bastante significativo
aqui, pois ele enviou mensageiros para ostensivamente se congratula­
rem pela recuperação de Ezequias, mas na realidade buscava apoio para
a independência do reino dos Povos do Mar. Aquela rebelião começara
em 703; então é quase certo que a doença de Ezequias tenha se manifes­
tado após esta data.83 Em acréscimo, a oração de Ezequias por recupera­
ção ocasionou a prolongação de sua vida em quinze anos. Ele morreu
em 686 (depois de um reinado de vinte e nove anos, que começou em
715); logo, a oração deve ter sido feita em 701. A doença propriamente
pode ser datada em 702 ou 701.

A campanha de Senaqueribe
Bem pouco tempo após Ezequias recuperar-se de sua enfermidade, e
após a partida dos embaixadores de Merodaque-Baladan, Senaqueribe par­
tiu para o oeste e pressionou terrivelmente Jerusalém, uma campanha re­
gistrada em Reis e Isaías. Apenas se especula o motivo da campanha, embo­
ra a maioria dos estudiosos assuma que Ezequias associou-se à coalizão
siro-palestinense contra os assírios. Se esta visão de que Merodaque-Baladan
enviou seus mensageiros a Jerusalém primeiro e em seguida Ezequias fez

s2 Evans, "Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 84.


83 Reviv data a ida dos mensageiros em 703-702 ("The History of Judah from Hezekiah to
Josiah," em World History of the Jeivish People, vol. 4, parte 1, p. 196). Em parte porque
Merodaque-Baladan é chamado de Rei em Isaías 39.1, John H. Walton sugere a data de
703, a última data na qual ele é conhecido por esse título ("New Observations on the
Date of Isaiah," JETS 28 [1985]: 129; ver também Julian Reade, "Mesopotamian Guidelines
for Biblical Chronology," Syro-Mesopotamian Studies 4.1 [1981]: 2; Brinkman, "Merodach-
Baladan II," em Studies Presented to A. Leo Oppenheim, p. 33). A missão diplomática não
poderia ter sido tanto tempo antes, porque ela surge após a doença de Ezequias, em
cerca de 702.
O C a s t i g o d e Y a h w e h : A s s í r i a f. o J u í z o D i v i n o 443

algum acordo mútuo de defesa estiver correta, o ataque de Senaqueribe a


Jerusalém deve ter tido um objetivo específico: punir Ezequias por sua des­
lealdade, cortando o relacionamento deste com a dinastia dos Povos do Mar.
E certo que algo semelhante aconteceu, pois está implícito na mensagem
de Ezequias a Senaqueribe que, tendo este devastado a maior parte de Judá,
agora liderava tropas contra os egípcios, filisteus e outros próximos a Eltec.
Em abjeta contrição Ezequias confessou: "...Pequei; retira-te de mim; tudo o
que me impuseres levarei" (2 Rs 18.14). Claramente Ezequias está admitin­
do algum tipo de ofensa contra administração de Senaqueribe, provavel­
mente a recusa em pagar o tributo exigido pelos assírios. Então ele prome­
teu que enviaria mais tarde um enorme tributo, chegando ao ponto de ar­
rancar o ouro das portas do templo e dos seus pilares. Observa-se,
incidentalmente, que os representantes de Merodaque-Baladan admiraram-
se da riqueza do palácio de Ezequias, o que certamente não poderiam ver
caso a visita ocorresse após Senaqueribe exigir o pesado tributo.84
Aparentemente satisfeito, e também pressionado no campo de guerra,
Senaqueribe retirou-se de Jerusalém e arremeteu contra uma coalizão re­
belde primeiramente em Laquis, e depois em Libna (2 Rs 18.17; 19.8). Ele
os derrotou e devastou um grande número de cidades e vilarejos de Judá,
e então retornou para Jerusalém.85 Enquanto isso, o rei Ezequias se prepa­
rou para enfrentar um cerco prolongado; então mandou fechar os poços
de água que estavam fora da cidade, para impedir que os assírios os utili­
zassem. Também reforçou as muralhas e armazenou grande número de
armas (2 Cr 32.1-5).
Na peleja contra Laquis, Senaqueribe preferiu enviar três de seus ofici­
ais, um tartãnu, um rab-sãris e um rab-sãqeh86 para que negociassem com
Ezequias os termos da rendição. Com propósito de evitar os custos de
deslocamento dos exércitos para aquele local, tentaram conquistar a cida­

84 Evans, "Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 163.


85 O curso dessa campanha agora pode ser muito mais bem entendido graças à fusão de
dois fragmentos textuais (Na'aman, "Sennacherib's 'Letter to God,' BASOR 214 [1974]:
25-39), que acabou se constituindo na grande descoberta para a harmonização dos rela­
tos bíblicos e assírios; ver Nadav Na'aman, "Sennacherib's Campaigns to Judah and the
Date of the LMLK Stamps," VT (1979): 69-70. A destruição de Laquis em 701 também
tem sido confirmada através dos estudos minuciosos de David Ussishkin, "The
Destruction of Lachish by Sennacherib and the Dating of the Royal Judean Storage Jars,"
Tel Aviv 4 (1977): 52-53.
86 Esses três termos significam "principal comandante," "eunuco-mor" e "mordomo-che­
fe", ver Gray, I & II Kings, p. 678. Quanto a rab-saqeh, ver Richard A. Henshaw, "Late
Neo-Assyrian Officialdom," JAOS 100 (1980): 290, 299.
444 H i s t ó r i a d e I s r a e l ,y o A n t i g o T e s t a m e n t

de pela intimidação. Os enviados de Senaqueribe lembraram o povo de


que a poderosa máquina de guerra assíria não tinha respeito por deuses
ou homens. Mesmo a notícia de que Tiraca, rei do Egito, estava a caminho
com seus exércitos não ajudou. Os embaixadores de Senaqueribe passa­
ram a clamar em alta voz para que todo o povo pudesse ouvir e entender.
Se eles se entregassem, o rei da Assíria não puniria Jerusalém. E até re­
compensaria os habitantes da cidade, garantindo-lhes paz e prosperidade
como nunca haviam tido antes.
Essa tentativa de tomar a cidade teria alcançado seu objetivo não fosse
a intervenção de Isaías, que insistiu com o rei Ezequias para que confiasse
em Yahweh a fim de obter a salvação. O profeta assegurou que Deus inter­
viria em favor do povo, e faria os assírios se retirassem (2 Rs 19.6,7). En­
quanto isso, o rab-saqeh retornou a Senaqueribe para dar-lhe seu relatório,
porém não o achou em Laquis, mas em Libna. Senaqueribe ouviu falar de
um movimento de enormes tropas núbias, comandadas por Tiraca, que
seguiam em direção norte. O rei da Assíria entendeu que esta era a razão
da intransigência de Ezequias, de forma que imediatamente enviou outro
grupo de embaixadores a Jerusalém com uma carta do rei assírio, aconse­
lhando Ezequias a render-se. A carta questionava: como o rei do Egito
poderia servir de algum auxílio se por várias outras ocasiões os assírios
provaram sua superioridade sobre todas as nações que se lhe opunham?
Ao receber a carta, a primeira providência do rei de Judá foi apresentá-la
perante o Senhor, suplicando-lhe que se manifestasse poderosamente contra
o blasfemo rei da assíria. Ezequias disse ao Senhor que, de fato, Senaqueribe
humilhara os deuses das outras nações, mas estes não eram verdadeiramente
deuses nem aquelas nações eram o povo de Deus. Agora o Deus de Judá
poderia demonstrar, de uma vez por todas, que Ele é o único Deus.
Não muito tempo depois da oração, chegou a palavra do profeta Isaías
afirmando que Yahweh enviaria a resposta. O Deus de Israel conhecia to­
dos os sucessos dos assírios muito antes de existirem; na verdade, tudo
isso aconteceu pela permissão de Deus. O orgulho dos assírios e seu fra­
casso em não perceber que eram apenas um instrumento de Yahweh re­
sultariam em sua própria tragédia. Quanto a Judá, este seria poupado da
máquina de guerra assíria, pois Yahweh com seu braço forte preservaria a
cidade de Davi.
Naquela mesma noite o anjo de Yahweh feriu 185.000 homens do exér­
cito assírio.87 Devastado e totalmente desmoralizado, Senaqueribe aban­

87 Os céticos, é claro, consideram o relato como uma "narrativa teológica," segundo as palavras
de Ronald E. Clements, Isaiah and the Déliverance ofjerusalem, suplemento 13 do JSOT (Sheffield:
0 C astigo de Yahweh : A ssíria e o J uízo D ivino 445

donou seus planos de conquistar Jerusalém, e retornou com o que lhe res­
tou de seus exércitos para a capital em Nínive. Os anais de Senaqueribe
registram em termos triunfais seu sucesso no cerco imposto ao rei Ezequias,
em Jerusalém — "como um pássaro engaiolado," 88 mas, de acordo com a
n r á t i r a tr a r li r in n a l nrnnaravam-«p a« v itriria e p n m i t i a m - ç p nç tpvpqpç

Os últimos quinze anos


Os historiadores bíblicos silenciam acerca dos últimos quinze, anos do
reinado de Ezequias. O cronista informa que foram dias de prosperidade
incomum (2 Cr 32.27-29). Os tesouros novamente encheram^ge de bens, e
novos celeiros e armazéns foram construídos para armazenarias abun­
dantes colheitas que se seguiram. Ezequias também construiu um túnel
para suprir Jerusalém com água em abundância, trazida de fora das mu­
ralhas — um milagre da engenharia que até hoje causa espanto e admira­
ção.89 Houve outros empreendimentos durante o& ânos de seu governo.90
Ezequias morreu em 686, deixando o reino W s n^ãos de seu filho e co-
regente, Manassés, um homem profundamente iníquo.

O p o n to d e v is ta d o s p ro fe ta s

Antes de encerrarmos a retrospectiva deste período mais importante


da história de Israel, é necessário observar a fase através dos olhos dos
profetas que participaram dos maiores eventos e interferiram nos resulta­
dos. Já nos referimos repetidamente ao profeta Isaías que, pelos dados
históricos em seu livro, suplementa os livros dos Reis e das Crônicas. Mas
sua apresentação prpsaica do fato histórico é apenas uma pequena parte
de seu significado. Muito mais importante é sua interpretação dos fatos e
de seu papel cpm'o mensageiro de Deus com respeito aos negócios políti­
cos e reiigiosps de Israel. Imbuído de seu ofício profético, Isaías era tanto

of Sheffield,1980), p. 21. Quanto ao episódio como um exemplo da intervenção


divina, ver Millard, "Sennacherib's Attack on Hezekiah," Tyn Bull 36 (1985): 75-77.
88 Luckenbill, Sennacherib, 3.18-23.
rVCLLl LICCi L1\C1L^ U11, ) CI ll DUICIU \ l \ \ !UiI\. C
lVV“I J.111, 1
. S t /, W, /J. . V^llClllLH UU ICAIU

de uma inscrição encontrada num túnel e seu significado histórico, ver Victor Sasson,
"The Siloam Tunnel Inscription," PEQ 114 (1982): 111-17.
90 O surpreendente crescimento populacional que se verificou em Jerusalém e suas vizi­
nhanças, depois de 700 a.C. e que, segundo M. Broshi, foi o resultado de uma migração
em massa que vinha de Israel, tem sua confirmação convincentemente provada e docu­
mentada pela evidência arqueológica ("The Expansion of Jerusalem in the Reigns of
Hezekiah and Manasseh," IEJ 24 [1974]: 21-26).
446 H i s t ó r i a de I srael no A n t ig o T e s t a m e n - :

um participante ativo de sua sociedade quanto um porta-voz através do


qual as verdades contemporâneas e escatológicas eram mediadas. Isaías
não estava sozinho, pois Oséias e Miquéias eram seus contemporâneos e
também deram suas próprias contribuições. O mais antigo dos três, Oséias,
será estudado primeiro.

Oséias

Oséias, filho de Beeri, um profeta cujo ministério concentrou-se prin­


cipalmente no Reino do Norte, exerceu seu ministério por muitos anos.
Ele próprio revela que profetizou durante os anos de Uzias, Jotão, Acaz
e Ezequias de Judá, e nos dias de Jeroboão II, rei de Israel (Os 1.1). Esta
apresentação deve ser entendida como uma base histórica para a mensa­
gem do profeta, indicando uma mudança de residência ou, no mínimo,
de interesse de Israel para Judá. É possível ver isso no reinado de Jeroboão
II — o único rei de Israel que aparece nessa lista, cujo governo encerrou-
se em 753 — e o de Ezequias, que iniciou sua co-regência em 729 e seu
reinado independente em 715. Não há como explicar o motivo de o pro­
feta Oséias ter omitido os reis Menaém, Peca e Oséias — todos de Israel,
a não ser que ele tenha deixado Samaria nos últimos anos de Jeroboão,
ou que as intenções proféticas de seu ministério não tivessem relação
com esses reis.91 A última hipótese, sem dúvida, é a mais provável den­
tre as duas.92 Infelizmente há poucos indícios em seus escritos de qual
era o local de sua residência em qualquer momento de seu ministério.
Logo no início de seu livro, Yahweh ordena que Oséias case-se com
uma mulher adúltera. Pouco depois — não há motivo para supor que esse
relato é uma parábola ou uma experiência figurada93— nasce-lhe um filho
cujo nome, Jezreel, significava que a dinastia de Jeú estava prestes a che­
gar ao fim. Isto realmente aconteceu quando Zacarias foi assassinado por
Salum, em 753. Visto que Zacarias não é mencionado por Oséias, a profe­

91 Francis I. Andersen e David Noel Freedman oferecem uma sugestão bastante plausível,
de que Oséias via em Jeroboão o último e real descendente no trono de Israel, tanto
porque ele era o último (com exceção de Zacarias) da linhagem de Jeú, quanto porque,
após sua morte, iniciou-se uma era sem paralelos de uma política catastrófica naquele
reino (Hosea, Anchor Bible [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1980], pp. 147-48).
92 Conforme as palavras de E.B. Pusey, Oséias "marca sua profecia com os nomes dos reis
de Judá, porque o reino de Judá era considerado o reino da teocracia" (The Minor Prophets
[Grand Rapids: Baker, 1967 reedição], vol. 1, p. 19).
93 Quanto aos vários pontos de vista, ver em C. Hassel Bullock, An Introduction to the Old
Testament Prohphetic Books (Chicago: Moody, 1986), pp. 88-92.
O C a s t ig o d e Y a h w e h : A s s ír ia e o J u íz o D iv in o 447

cia deve ter sido dita enquanto Jeroboão ainda estava vivo. E uma vez que
a estrutura de toda a composição é tal que a "metáfora do casamento" é
claramente sua parte mais antiga, uma data pouco antes de 753 parece
mais conveniente como um terminus a quo para o ministério público de
Oséias.
O comando de Yahweh para que Oséias se casasse com a adúltera Gomer
tinha o propósito de simbolizar o caráter adúltero de Israel, com quem
Yahweh, através do pacto no Sinai, tinha se "casado". Certamente Gomer,
que era uma ilustração da infidelidade na aliança, estava incontaminada
na ocasião de sua união com o profeta; apenas mais tarde tornou-se uma
prostituta, alugando-se a qualquer amante que a desejasse. Assim, disse o
profeta, a nação de Israel havia feito, e por causa deste comportamento
iníquo, precisava ser despejada mediante o divórcio. Apesar de Israel ter
se desviado do amor divino, indo após os baalins daquela geração, Yahweh
se mostraria benigno e traria de volta para si o seu povo, curando definiti­
vamente suas feridas.
As referências aos amantes de Israel (e.g., Os 2.5,7) é uma forma inci­
siva de descrever a incrível apostasia que Oséias testemunhou por toda
parte durante os anos de Jeroboão. Por causa de seu próprio nome o
Senhor tolerou os centros de culto pagão localizados em Dã e Betei, que
eram a total negligência da aliança mosaica. Essa apostasia produziu toda
sorte de violência e crimes, passando a existir uma insensibilidade uni­
versal para com a vontade de Deus e sua santidade. O povo procurava
os lugares altos e as cavernas para envolver-se em todo tipo de ritual
que incluía a prostituição. Tão perversa e caótica tornara-se a situação
que o profeta entendeu não haver mais esperança para a intercessão.
Efraim estava firmemente unida aos seus ídolos; até certo ponto Judá
permaneceu livre de todo o embaraço, então Oséias intercedeu para que
o reino do sul mantivesse distância de Gilgal e Bete-Aven (4.15).9495
Com esta palavra, Oséias pode ter de fato começado a residir em Judá,
pois a partir daquele momento ele parece ver o reino de Israel quase que a
distância. Por exemplo, ao referir-se ao "rei Jarebe" (KJV) da Assíria —
provavelmente uma cifra para Tiglate-Pileser IIP3 — o profeta informa

94 Muitos estudiosos vêem aqui a referência a Judá como uma interpolação editorial feita
por um redator posterior; ver, por exemplo, Hans Walter Wolff, Hosea (Philadelphia:
Fortress, 1974), p. 89. James L. Mays, porém, mostra que esse não é o caso em hipótese
alguma: o profeta está avisando a Judá para não cair na mesma armadilha que sua irmã
do norte caíra (Hosea [Philadelphia: Westminster, 1969], p. 77).
95 Wolff, Hosea, pp. 104,115.
448 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a m e n t s

que Efraim “subiu à Assíria" (5.13). Essa é sua forma de descrever a sub­
missão do rei Oséias aos assírios em 732. Além disso, as referências à Judá
tornam-se ainda mais proeminentes, ainda que Efraim permanecesse a
razão principal da profecia de Oséias.
De acordo com seu chamado profético, Oséias continua a apelar para
que Israel se arrependa. Realisticamente, entretanto, ele parece sentir a
impossibilidade. O povo de Deus não tem nenhum desejo de voltar-se
para Ele. Ao contrário, seus olhos voltam-se para os assírios e para os
egípcios, uma estratégia que só os levará à destruição. O apelo ao Egito,
que o profeta Oséias cita em 7.11, pode ter sido aquele que o rei Oséias
fez (2 Rs 17.4). Na ocasião, o Egito era comandado por Osorkon IV, exa­
tamente nos dias tumultuosos da transição de Tiglate-Pileser III para
Salmaneser V (727 — este número corresponde com a referência à conti­
nuidade do ministério do profeta até os dias de Ezequias). Mas Oséias
seria cortado, diz o profeta, da mesma maneira que "Salmã destruiu Bete-
Arbel" (Os 10.14-15).96 Salmã, sem dúvida, não é outro senão Salmaneser
V (727-722), o rei assírio que finalmente conquistou Samaria e levou ca­
tivos seus habitantes.
A situação histórica de Israel é sem esperança, diz Oséias, mas a histó­
ria n ão é o fim d o p roblem a. Chegaria o dia em que Deus traria de volta o
seu povo, agora curado para sempre de sua idolatria, e os laços da aliança
de amor, que uma vez unira ambos, seriam mais uma vez vistos no casa­
mento entre Deus e o seu povo.

lsaías

Talvez o maior e mais amado profeta de todo o Antigo Testamento,


lsaías, filho de Amoz, era um jovem contemporâneo do profeta Oséias.
Segundo sua própria informação, envolveu-se no ministério profético em
740, bem no ano da morte do rei Uzias, ano em que o serafim tocou em
seus lábios com uma brasa que havia sido tirada do altar. Na ocasião, o
Senhor, alto e sublime, comissionou-o para que fosse ao seu povo com
uma mensagem de salvação e julgamento (Is 6).
E impossível e completamente fora de propósito neste livro tratar dos
pontos teológicos que envolvem a profecia de lsaías. Em vez disso, exami­
nemos os seus escritos como fundamento histórico que auxiliará na me­
lhor compreensão da história de Israel. Freqüentemente, lsaías utiliza os

96 Aharoni, Land ofthe Bible, p. 431, identifica a cidade de Bete-Arbel como Irbid or Arbela,
uma cidade em Gileade, ao sudeste do mar de Quinerete.
O C a s t i g o d e Ya h w e h : A s s í r i a £ o J u í z o D i v i n o 449

dados históricos quando profetiza à nação. E até mesmo quando pronun­


cia os oráculos escatológicos de Deus, não se desprende de sua sociedade.
Embora às vezes o profeta forneça evidências cronológicas ou referênci­
as históricas a acontecimentos que auxiliam na datação de sua mensagem, a
verdade é que este não parece ser o caso. E impossível reconstruir com pre­
cisão o padrão histórico que envolve esse material. A forma geral com que
ele apresenta seus vaticínios parece seguir um curso cronológico ordeiro,
mas há muitas passagens que estão ligadas apenas por tópicos ou por con­
teúdo teológico, em vez de por ordem cronológica. Um típico exemplo está
registrado em seu próprio chamado para o ministério profético, pois mes­
mo sendo o acontecimento mais antigo em todo o livro, vê-se o mesmo evento
registrado no capítulo 6 de sua profecia, e não no início do livro.
Há duas principais narrativas no livro de Isaías: capítulos 7— 8 e ca­
pítulos 36—39. A primeira ocorre rvo reinado de Acaz, e a última no de
Ezequias. Ambas foram aludidas em nossa descrição do reinado desses
reis, mas agora é importante que os detalhes especiais sejam considera­
dos cuidadosamente. O cronista, de fato, dá a entender que uma das
maiores fontes do reino de Ezequias — uma fonte que ele provavelmen­
te teve como sua base — foi a obra de Isaías (2 Cr 32.32). Em acréscimo à
essas duas maiores passagens acima mencionadas, outras referências
históricas e acidentais também ocorrem por todo livro e ajudam a com­
pletar o quadro político e histórico que se passava naqueles dias, acres­
centando substancialmente à nossa discussão.
A longa e brilhante carreira do príncipe dos profetas abrange partes de
ou todo o reinado de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias (740-681). E notável o
fato de ele rvão fazer qualquer menção a um só rei de Israel na introdução
de seu livro, embora o faça mais tarde. A razão deve ser que ele foi um
profeta para o reino do sul, não havendo, portanto, necessidade de referir-
se a algum rei de Israel na introdução de seu livro.97 Além disso, depois da
queda de Samaria em 722, não houve mais rei ou Estado de Israel, de modo
que Isaías fixou a atenção exclusivamente em Judá pela maior parte de
seu ministério. E, de fato, uma análise mais detalhada de sua profecia re­
vela que o Sitz im Leben de praticamente todos as suas obras ocorreu após
722. A exceção é a narrativa do capítulo 7, onde a fatal aliança de Acaz
contra Rezim, de Damasco, e Peca, rei de Israel, é relatada.
Logo no início de sua mensagem, há um texto disputado,98 um rib-, no
qual o profeta fala de Jerusalém, "a Filha de Sião," sendo poupada da

97 Edward J. Young, The Book oflsaiah (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), vol. 1, pp. 28-29.
98 Quanto a esse importante gênero profético literário, ver Berend Gemser, "The Rib- or
Controversy Pattern in Hebrew Mentality," VT suplemento 3 (Leiden: E.J. Brill, 1955),pp.
450 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a u e v - ;

ruína que se abateu sobre outras cidades de Judá como uma cidade sob
um cerco (1.2-9)." Claramente, Israel já havia caído e Jerusalém estava em
grande apuro. Imediatamente, pensa-se na campanha de Senaqueribe em
701, quando os assírios subiram contra todas as cidades fortificadas de
Judá e as tomaram, segundo registrado em 2 Reis 18.13. O próximo orácu­
lo, porém, descreve um período bem mais anterior, talvez aquele de Jotão,
pois é feita uma declaração de que crianças governariam sobre Judá (3.4
— Acaz?) e que Yahweh entraria em juízo contra todos os juízes iníquos
que oprimiram seu povo (3.13-15).100 As mulheres de Jerusalém pareciam-
se com as mulheres de Samaria, todas arrumadas com ornatos materialis­
tas. Ostentavam-se orgulhosamente e eram indiferentes para com o Se­
nhor. Este período encaixa-se perfeitamente no intervalo entre Uzias e
Ezequias. E não há nenhuma evidência interna para se datar os capítulos
4 e 5 de outra maneira.
O capítulo 6, é claro, relata o chamado do profeta em 740, "o ano da
morte do rei Uzias" (6.1). O cenário de Isaías 7.1— 10.4 ocorre muitos
anos depois desse episódio, equivalente ao tempo da coalizão Rezim-
Peca contra Judá. Este pacto foi feito entre nações que por séculos eram
hostis uma contra a outra, mas que, em face da ameaça de invasão de
Tiglate-Pileser III em 734, esqueceram momentaneamente as suas dife­
renças. Embora Jotão ainda fosse tecnicamente o rei de Judá (até que
morreu em 731), está claro que o real poder estava nas mãos de seu filho
Acaz, que preferira colocar-se ao lado da Assíria a apoiar a coalizão en­
tre Damasco e Israel, atraindo para si a ira destes reis.
A narrativa de Isaías refere-se aparentemente aos esforços de Rezim e
Peca para capturar Jerusalém, e não às campanhas independentes feitas
em tempo anterior (2 Cr 28.5-8). Acaz, então, já havia sofrido nas mãos de
seus vizinhos do norte e aterrorizava-se ao pensar em ser alvo de uma

120-37; Herbert B. Huffmon, "The Covenant Lawsuit in the Prophets," JBL 78 (1959):
285-95; James Limburg, "The Root and the Prophetc Lawsuit Speeches," JBL 88 (1969):
291-304; Kirsten Nielsen, Yahweh as Prosecutor and Judge: An Investigation of the Prophetc
Lawsuit (Rib-Pattern), JSOT suplemento 9 (Sheffield: University of Sheffield, 1978).
99 Peter Machinist presta atenção à fraseologia aqui e noutras passagens em Isaías que
fazem referência aos assírios e compara-a com as inscrições reais desse povo que foram
escritas durante aqueles anos ("Assyria and Its Image in the First Isaiah," JAOS 103
[1983]: 724-29). Não há dúvida de que Isaías testemunhou tudo o que escreveu e que
estava também familiarizado com a linguagem e literatura assírias.
““Thomas K. Cheyne, The Prophecies of Isaiah (New York: Thomas Whittaker, 1886), vol. 1,
p. 22; Franz Delitzsch, Biblical Commentary on the Prophecies o f Isaiah (Grand Rapids:
Eerdmans, 1954 reedição), vol. 1, p. 139.
O C a s t ig o d e Ya h w e h : A s s ír ia e o J u íz o D iv in o 451

outra campanha, o que provavelmente resultaria na perda de sua capital


e, provavelmente, de sua própria vida.101
Exclusivamente por sua graça, Yahweh enviou o profeta Isaías para
assegurar ao rei Acaz que este seria poupado das mãos de Rezim e Peca.
Disse-lhe também que os dias destes reis estavam contados, e seus esfor­
ços para banir Acaz do trono, estabelecendo em seu lugar o filho de Tabeel,
não prosseguiriam. O profeta aconselhou Acaz a buscar um sinal de
Yahweh para confirmar todos estes acontecimentos, mas o rei já havia
determinado no coração buscar socorro com o rei da Assíria. Isaías então
profetizou que uma virgem conceberia, e o seu filho seria chamado de
Emanuel. Este seria o sinal da misericórdia de Deus, a despeito de toda a
incredulidade de Acaz. Na providência de Deus, aquEle Filho, no senti­
do messiânico, era Jesus de Nazaré. Mas o sinal específico para Acaz e
sua corte era uma criança, não identificada, que nasceria de uma jovem
mulher conhecida pelo rei.102 Antes que a criança alcançasse a idade de
discernir entre o bem e o mal, Rezim e Peca perderiam os seus tronos, e
Acaz começaria a sofrer a depredação de seu aliado assírio. Damasco
caiu em 732 e Rezim, seu rei, foi sumariamente executado. Quase simul­
taneamente Peca foi assassinado, e em seu lugar levantou-se o rei Oséias,
um aliado dos assírios. Assim, o cumprimento da palavra profética ocor­
reu dentro de dois anos. Sete anos mais tarde, Salmaneser V finalmente
tomou a cidade de Samaria, causando também espanto e terror ao reino
de Acaz. Não foi senão no reinado de Ezequias, cerca de dez anos de­
pois, que a Assíria iniciou suas campanhas sistemáticas contra Judá e
quase eliminou o reino do Sul, como acontecera com o reino do Norte. E
sobre essa série de ataques que o profeta Isaías está profetizando. As
incursões dos assírios resultariam na ocupação das terras de Judá, em

101A maioria dos estudiosos vê os acontecimentos de 2 Crônicas 28.5-8 e Isaías 7.1-2 como
idênticos, porém uma leitura cuidadosa sugere que Rezim e Peca primeiro conduziram
ataques separados contra Acaz e, depois, juntaram-se em uma outra campanha pouco
tempo depois. Quanto a uma apresentação bastante convincente desta interpretação,
ver Young, Book of Isaiah, vol. 1, pp. 267-69.
102Para esse e outros pontos de vista que tratam dessa importante passagem messiânica,
ver Herbert M. Wolf, "A Solution to the Immanuel Prophecy in Isaiah 7.14 - 8.22," JBL
91 (1972): 449-56; Walter C. Kaiser, Jr., Toward an Old Testament Theology (Grand Rapids:
Zondervan, 1978), pp. 207-20. Kaiser afirma que o filho da promessa era Ezequias, filho
de Acaz, mas já se discutiu anteriormente que Ezequias nasceu em 740. Somente conje­
turando que houve erros textuais por todo o relato (algo que o próprio Kaiser não faz)
pode-se admitir esse tipo de identificação. Um defensor desta visão é John McHugh,
"the Date of Hezekiah's Birth," V T 14 (1964): 446-53.
452 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t -m í --

uma diminuição acentuada da população nativa, e na total destruição


do sistema agrícola do país.
Deste mesmo período vem o alerta de Isaías 9.8-21, que fala do terror
que se abateria sobre a cidade de Samaria, causado pelos inimigos de
Rezim: os assírios e seus aliados. Daí seguiria um julgamento semelhante
sobre Judá do qual, ironicamente, Israel fazia parte. Todo este complexo
de acontecimentos deve ser associado à rendição de Israel a Tiglate-Pileser
em 743-742, e à invasão subseqüente de Judá primeiramente por Rezim, e
depois por Peca, na década seguinte.
O cenário dos oráculos de Isaías 10.5-19 surge muitos anos depois e
estão relacionados com o julgamento dos assírios, os quais Yahweh envi­
ara contra Judá para discipliná-lo. Os assírios não compreenderam que
eram apenas uma vara utilizada pelo Deus onipotente de Israel. Eleva­
ram-se a si mesmos sobremaneira, de modo que em seus murais e docu­
mentos da época encontrados, atribuem a si mesmos a destruição das
cidades de Damasco e Samaria (Is 10.8-11; cf. 2 Rs 18.34,35; 19.12,13).
Toda a vanglória pode ser vista nas próprias palavras de rab-saqeh, quan­
do se dirigia ao rei Ezequias na ocasião em que Senaqueribe impôs cerco
sobre Jerusalém em 701. A iminência da ameaça assíria é descrita pelo
profeta nos mais vívidos termos (Is 10.28-32). Os assírios já haviam en­
trado em Aiate (Khirbet Haiyân),103 menos de dezesseis quilômetros de
distância ao norte de Jerusalém, diz o profeta, e passaram por Migrom
(Tel Míriam),104 bem mais próximo da capital. Deixaram seus suprimen­
tos em Micmás (Mukhmâs),105 cidade próxima a Migrom e planejaram
acampar-se em Geba (Jebá)106 ao sul, em preparação para o cerco de Je­
rusalém. O terror caiu sobre Ramá, Gibeá, Galim (Khirbet ka'kül),107 Laís
(el-Isawiyeh?),108 e Anatote (Râs el-Kharrübeh),109 todas pequenas cida­
des ao norte da capital. Parece que também existia um avanço assírio
pelo sul, pois o profeta anuncia que a população de Madmena,110 entre

103Aharoni, Land of the Bible, p. 430.


104Oxford Bible Atlas, p, 135.
105Aharoni, Land of the Bible, p. 439.
106 Ibid., p. 435.
107Oxford Bible Atlas, p. 129.
106Ibid., p. 134. Aharoni e Avi-Yonah, porém, identificam el-Isawiyeh com Nobe (Macmillan
Bible Atlas, p. 181).
109Aharoni, Land of the Bible, p. 430. Para um bom mapa que descreve a rota de Senaqueribe,
ver Aharoni e Avi-Yonah, Macmillan Bible Atlas, mapa 154.
110Ou Madmaná — ver Aharoni, Land of the Bible, p. 346. Porém, a maioria dos estudiosos
identifica Madmena com um ponto ao norte (talvez Khirbet Soma), e toda a lista das
O C a s t i g o d e Ya h w e h : A s s í r i a e o J u í z o D i v i n o 453

Berseba e Hebrom, desocupara a cidade. Os cidadãos de Gebim (desco­


nhecida) e Nobe,111 no monte das Oliveiras, também preparavam-se para
a devastação inevitável que viria pelas mãos dos assírios.
Este oráculo de Isaías é extremamente importante para a reconstrução
da estratégia de Senaqueribe em suas duas operações contra Jerusalém
em 701, mais particularmente para a primeira, que resultou na promessa
de Ezequias de pagar-lhe um tributo. Na ocasião Senaqueribe estava em
Laquis, e já havia atacado as cidades fortificadas de Judá (2 Rs 18.13,14).
Essas cidades incluem, certamente, aquelas mencionadas por Isaías na lis­
ta acima. Deduz-se que Senaqueribe estava em guerra contra a cidade de
Laquis, pois esta era uma fortaleza que guardava o caminho para Jerusa­
lém, ou seja, o caminho daqueles que vinham do sul naquela direção.112
Quando os embaixadores de Senaqueribe retornaram, depois de terem
ameaçado e exigido a rendição de Jerusalém sem êxito, não mais encon­
traram seu rei em Laquis, mas em Libna, cerca de dezesseis quilômetros
de distância e na direção norte. Portanto, parece que os assírios, uma vez
que tomaram as cidades do norte, do sul e do leste de Jerusalém, estavam
decididos a tomar as cidades de defesa estabelecidas ao ocidente, a fim de
tornar Jerusalém completamente vulnerável. Quando conseguiram seu ob­
jetivo, chegou a vez de formar o cerco em Jerusalém e, não fosse a inter­
venção divina, sem dúvida a capturaria definitivamente.
Um relato completo da campanha de Senaqueribe em 701 encontra-
se no livro de Isaías, capítulos 36 e 37. Entretanto, o profeta desmente
que houve uma primeira fase — a devastação do interior e a exigência
do tributo — com apenas um versículo (36.1), e concentra-se exclusiva­
mente na libertação sobrenatural de Jerusalém das mãos dos assírios. O
propósito claramente é demonstrar e enfatizar a intervenção de Yahweh
em favor de seu povo, em resposta à intercessão de Isaías e do rei
Ezequias. Tem-se aqui, portanto, um clássico exemplo de "história sa­
grada", uma historiografia que registra de forma acurada os fatos, mas
que concerne fundamentalmente o significado teológico desses aconte­
cimentos.

cidades indica que a marcha vinha apenas do norte. Ver Otto Kaiser, Isaiah 1-12
(Philadelphia: Westminster, 1972), p. 152.
111Ver p. 215, n. 55; p. 289, n. 3.
112Baseado nos conhecidos selos de Imlk, Nadav Na'aman identifica as cidades fortificadas
com a lista de quinze cidades encontradas em 2 Crônicas 11.6-10, uma passagem que ele
data no período de Ezequias. Ele afirma que Ezequias reforçou as fortalezas e os postos
avançados de defesa que haviam sido construídos muitos anos antes, durante o reinado de
Roboão ("Hezekiah's Fortified Cities and the LMLK Stamps," BASOR 261 [1986]: 10-11).
454 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a m e n t :

O verdadeiro ponto apresentado por Isaías não é o conflito existente en­


tre Judá e os assírios, mas entre suas teologias e ideologias. A pergunta cen­
tral é: Quem é Deus? A essência do discurso de rab-saqeh significava que a
Assíria era invencível porque seus deuses eram invencíveis (36.13-20). Por­
tanto, seria inútil para Ezequias buscar o Senhor, já que os deuses de Hamate,
Arpade e Sefarvaim não puderam resistir a máquina de guerra assíria. O
próprio conteúdo da carta recebida por Ezequias, cujo remetente era
Senaqueribe, dizia claramente que Yahweh não poderia evitar a fatalidade
que estava por vir contra aquela cidade, pois seria como os outros deuses
das outras nações, que não conseguiram livrar suas cidades (37.10-13).
Ezequias percebeu corretamente a ameaça assíria como uma questão
teológica, e não política ou militar, pois se voltou para Yahweh e confes­
sou que somente Ele era o soberano entre todos os reinos da terra. Sua
soberania baseava-se no fato de ter sido Ele o criador dos céus e da terra,
uma autoridade exclusivamente dEle. E justamente por isso os deuses das
outras nações foram destruídos diante dos assírios, pois, na verdade, não
eram deuses, mas criação de seus adoradores néscios.
A mensagem de Isaías em resposta à oração de Ezequias também pos­
sui o mesmo sentimento. Os assírios, disse o profeta, tinham zombado e
escarnecido de Yahweh, Deus de Judá (37.21-35), mas esqueceram-se de
que fora Ele mesmo o que havia levantado os assírios, permitindo-lhes ser
um instrumento na correção de seus filhos rebeldes. Os deuses dos assírios
nada tinham a ver com o sucesso da nação ou com a crise em Judá. Além
disso, Yahweh mostraria para todas as nações e reinos que Ele é que havia
levantado os assírios e tinha também o direito e o poder de abatê-los. E,
naquela mesma noite, Yahweh abateu o rei Senaqueribe e seus exércitos.
Outra demonstração da soberania de Yawheh sobre todos os demais siste­
mas religiosos aconteceu, ironicamente, no próprio templo dos deuses
assírios, de quem o rei Senaqueribe tanto se vangloriava (37.38).
Senaqueribe foi assassinado em Nínive enquanto adorava o deus Nisroque.
O deus que falhara com ele em Jerusalém foi, vinte anos mais tarde, ex­
posto como um produto da imaginação assíria: não pôde livrar um de
seus servos devotos, que buscava-o com sinceridade.
Examinamos as principais passagens contidas no livro de Isaías que servi­
ram como documento histórico. Isto não quer dizer, é óbvio, que o restante de
sua profecia, mesmo com as seções estritamente escatológicas, não tenha va­
lor como testemunho para a história de Israel. Pelo contrário, o restante do
livro é extremamente importante como um aferidor da temperatura que en­
volvia a época em que o profeta viveu. Mas o valor das outras seções, do
ponto de vista histórico, é sensivelmente limitado pelo fato de o profeta ter
O C a s t i g o d e Y a h w e h : A s s í r i a e o J u íz o D iv in o 455

vivido por um longo período de tempo (765-680). Assim, qualquer luz que o
livro lance sobre assuntos históricos, sociológicos, econômicos e políticos não
pode ser prontamente conciliada com algum evento histórico específico. E o
problema se intensifica com a impossibilidade de datar a maior parte dos
oráculos, senão de maneira extremamente subjetiva. Esta insegurança impe­
de o historiador de querer usá-los. Por outro lado, onde o profeta estava cons­
cientemente engajado em narrar os acontecimentos, ele proveu informação
tanto da situação histórica quanto do significado teológico.

Miquéias

Finalmente, a breve produção do profeta Miquéias encerrará este capí­


tulo. Infelizmente, ele fornece ainda menos documentação histórica do
que seu contemporâneo mais velho e ilustre Isaías.113 Miquéias também
foi um profeta de Jerusalém, mas sua mensagem, diferentemente de Isaías,
estava dividida entre os dois reinos. A impressão geral do declínio moral e
espiritual em Israel e em Judá que caracteriza o livro de Isaías também se
encontra em Miquéias, mas ele não compôs sua mensagem de julgamento
e esperança em uma matriz de narrativa histórica, como fez ocasional­
mente Isaías. Portanto, Miquéias deve ser utilizado com cautela como uma
testemunha da seqüência dos acontecimentos de seus dias.
Os oráculos mais antigos de Miquéias antecedem o ano de 722, pois ele
profetiza a queda de Samaria como a expressão da ira de Yahweh contra a
casa real de Israel (1.6,7). Jerusalém também foi alcançada por sua palavra
profética de julgamento, pois seu rei, sem dúvida Acaz, conduzira a nação
de Judá para os mesmos pecados abomináveis. A palavra de julgamento
chegaria aos ouvidos dos filisteus e esses se regozijariam em face da ruína
que estava por vir sobre Judá.
O restante da mensagem de Miquéias não pode ser datado com preci­
são. Israel e Judá viriam a sucumbir, mas o mesmo aconteceria com seu
terrível adversário, a Assíria (5.5,6). Na plenitude dos tempos, porém, o
povo do Senhor seria restaurado e, sob o domínio de seu Rei Messias,
desfrutariam para sempre da aliança eterna feita com seus pais (7.7-20). E
assim Miquéias, como Isaías, encerra sua mensagem com uma nota de
esperança, uma palavra que parecia estar em profundo contraste com as
terríveis perspectivas para Judá no início do sétimo século.

113Uma excelente, embora breve, introdução ao contexto histórico do profeta Miquéias


pode ser encontrada em Leslie C. Allen, The Books ofjoel, Obadiah, Jonah and Micah (Grand
Rapids: Eerdmans, 1976), pp. 239-53.
ESPERANÇA DESVANECENTE:
A D E S I N T E G R A Ç Ã O DE J U D Á
O legado de Ezequias
Orgulho e suas consequências
A superficialidade das reformas
Manassés de Judá
Amom de Judá
O cenário internacional: A ssíria e Egito
Josias de Judá
Relações com a Assíria
Reformas religiosas
A q u e d a de Jer u s a lém
A catastrófica destruição em Megido
Jeoacaz de Judá
Jeoiaquim de Judá
O Império Neo-Babilônico
O contexto histórico
Nabopolassar
A sucessão de Nabucodonosor
Jeoiaquim e Zedequias de Judá
As consequências
O testemunho dos profetas
Naum
Habacuque
Sofonias
Jeremias

O le g a d o d e E z e q u ia s

Depois da morte do bom rei Ezequias, em 686, e do profeta Isaías, Judá


entrou em um processo de declínio em todos os setores, do qual não mais
viria a recuperar-se, exceto pelo breve reinado de Josias. As sementes des­
sa deterioração, que perdurou por exatamente cem anos (686-586), não
são fáceis de traçar, mas certamente o próprio Ezequias possui alguma
responsabilidade, mesmo que no cômputo geral, o testemunho da histó­
ria esteja substancialmente a seu favor.

Orgulho e suas conseqüências

Uma falha específica no caráter de Ezequias pode ser vista no seu com­
portamento para com os embaixadores de Merodaque-Baladã, de Babilônia.
O cronista refere-se a esse incidente de forma bastante sucinta: a cura de
458 H is t ó r ia d e Israel no A n t ig o T estâm e sd:

Ezequias realizada por Yahweh tornou o rei orgulhoso, de sorte que o Se­
nhor usou os embaixadores da Babilônia para testar o seu coração (2 Cr
32.25,31). O autor de Reis e o profeta Isaías declaram que o rei Ezequias
expôs os tesouros do reino à embaixada babilónica (2 Rs 20.12-15; Is 39.1­
4). Esses visitantes chegaram para solicitar o apoio de Ezequias, um anti-
assírio, à causa de Merodaque-Baladã, que por muitos anos tentava criar
um estado caldeu soberano e independente da Assíria. O fato de Ezequias
ter aberto seus tesouros para os embaixadores de Babilônia pode ser a
expressão de um suposto apoio à causa dos caldeus, de forma que queria
impressioná-los mostrando-lhes sua força e seu poder. Tal atitude foi má
aos olhos do Senhor, ocasionando a ira de Yahweh contra Judá e Jerusa­
lém. Ezequias arrependeu-se, mas Isaías o informou de que chegaria o
tempo em que os descendentes políticos desses m esm os caldeus
retornariam para Jerusalém. Eles despojariam todo o tesouro de Judá e
levariam seus filhos e filhas para a corte real da Babilônia.

A superficialidade das reformas

O pecado do rei em si não poderia ter precipitado a profecia do jul­


gamento. Tal atitude foi apenas um ato público isolado, embora extre­
mamente sério, pois tinha sido cometido pelo próprio rei. Ainda mais
grave, entretanto, era a situação espiritual e moral que se perpetrava
no meio da população, com uma violação indescritível da aliança. Uma
breve revisão do livro de Isaías revelará a apostasia e a perversidade
que existia no reino, a despeito da reforma promovida por Ezequias no
princípio de seu governo. A adoração tornara-se profundamente hipó­
crita (1.10-15), os poderosos exploravam os mais fracos e indefesos (1.21­
23), e a classe alta desfrutava a luxúria que lhes advinha da extorsão e
dos altos tributos pagos pelo pobre (3.16-24). Yahweh havia libertado
seu povo da opressão egípcia, plantando-os em uma terra próspera e
farta, conhecida como a terra da promessa. Mas quando o Senhor espe­
rava colher frutos maduros, o povo produziu frutos desprezíveis (5.1­
7). Consumidos pelo espírito da ganância e glutonaria, embriagavam-
se desde a manhã até a noite, em total desrespeito e descaso para com o
Senhor (5.8-12). Até mesmo os líderes, incluindo profetas e sacerdotes,
afastaram-se da verdadeira aliança e prostituíram seus ofícios em fa­
vor de seus interesses.
O nobre caráter de Ezequias opõe-se radicalmente ao de sua geração
má. Qualquer que tenha sido o benefício da reforma religiosa, percebe-se
claramente que fora superficial e temporária, pois o veredicto profético
E speran ç a D esva n e c en te : A D e s in t e g r a ç ã o d e J udá 459

para aquela geração de Judá é unânime: culpados de alta traição. E, uma


vez que a influência restringente de Ezequias e Isaías não mais estava em
ação, a vida moral e espiritual de Judá declinou rapidamente.

M a n a s s é s d e Ju d á

O declínio de Judá pode ser melhor compreendido quando se observa


a vida do filho de Ezequias, o rei Manassés, que chegou ao domínio abso­
luto em 686, permanecendo no poder até 642.1 O fato de ele ter reinado
por cinqüenta e cinco anos só pode ser explicado mediante uma co-regên-
cia com Ezequias, em cerca de 696 até 686. A razão para o rei Ezequias
haver decidido elevar um menino de doze anos a tal posição é um assunto
para especulação. Mas é possível que a doença de Ezequias (cerca de 702)
0 tenha motivado a tomar as mediadas necessárias para garantir a suces­
são dinástica.2
Igualmente misteriosa foi a incapacidade de Ezequias de comunicar os
princípios de retidão a seu filho, pois Manassés provou ser uma antítese
de seu pai. Após tomar posse do reino, Manassés imediatamente se voltou
para os deuses cananeus que eram adorados na terra antes da conquista.
Semelhante a Acabe de Israel, ele erigiu altares para os baalins e para as
imagens de Aserá, chegando mesmo ao extremo de oferecér sacrifícios
humanos, incluindo seus próprios filhos, em uma ocasião no vale de Hinon.
Praticantes de todo o tipo de arte religiosa pagã — feiticeiros, encantado­
res, bruxos, agoureiros, médiuns e espíritas — foram elevados em posição
de destaque na terra. Mas a maior e mais ofensiva de todas as blasfêmias
cometidas por Manassés foi a instalação de uma imagem da deusa Aserá
no recinto sagrado do templo — considerado pelo próprio Yahweh o local
exclusivo e perpétuo de sua habitação (2 Rs 21.2-7).
O resultado de todo o descaso para com a justiça foi a Palavra de Yahweh
através dos profetas de que Judá sofreria o mesmo juízo de Israel. O mes­
mo critério pelo qual Samaria fora julgada seria aplicado a Jerusalém, e o
veredicto de culpado seria inquestionável. Então Judá, o elemento rema­
nescente do povo de Deus, seria levado cativo.

1 Exceto com indicação em contrário, as datas reais utilizadas neste capítulo baseiam-se
em Edwin R.Thiele, The Mysterious Numbers ofthe Hebreiv Kings (Grand Rapids: Eerdmans,
1965), p. 61. A cronologia dos últimos anos de Judá também apresenta problemas em
seus detalhes — um assunto que não pode ser tratado nesta obra — mas foi bem traba­
lhada em Alberto R. Green, "The Chronology of the Last Days of Judah; Two Apparent
Discrepancies," JBL
1 Thiele, Mysterious Numbers, pp. 157-58.
460 H is t ó r ia d e Israel no A n t ig o T e s t -m i ---.

O cronista relata que a tolice de Manassés em não dar ouvidos aos pro­
fetas ocasionou sua deportação para a Babilônia pelas mãos dos assírios (2
Cr 33.10-13). O monarca assírio responsável certamente era Assurbanipal
(668-627), filho e sucessor de Esaradon.3 A referência a Babilônia, como
tendo sido o local para onde o rei Manassés fora deportado, serve como
importante instrumento de datação cronológica, uma vez que Assurbanipal
não se tornou senhor de Babilônia antes de 648.4 Manassés não pôde ter
ido para lá antes disso. Maiores informações podem ser extraídas dos anais
de Assurbanipal, que registram a invasão ao Egito em 667 que, por fim,
resultou na tomada de Tebas e que contou, inclusive, com a ajuda material
de Manassés.5 O texto assírio revela claramente que Manassés era um dos
vassalos de Assurbanipal desde 667.6 A ida para a Babilônia em 648 ou
pouco depois pressupõe que Manassés violara seu pacto de submissão a
Assurbanipal de alguma forma.
Não se sabe quanto tempo o rei de Judá esteve na Babilônia, mas prova­
velmente ele foi conduzido ao arrependimento e à fé bem no princípio de
seu cativeiro. O Senhor ouviu suas orações e clamor e, pela sua grande mi­
sericórdia, trouxe-o de volta para Jerusalém e restaurou-lhe o trono de Davi.
Manassés então demoliu todas as imagens e altares pagãos que ele próprio
mandara erguer e restaurou a adoração ao verdadeiro Deus. O povo conti­
nuou a reunir-se nos altos, observa o cronista, mas tão-somente para servir
a Yahweh (2 Cr 33.17). Manassés também fortificou ainda mais Jerusalém e
os postos avançados, uma tarefa necessária em vista da possibilidade de
mais interferências assírias pelo oeste ou, quem sabe, da exigência de mais
tributos ao rei de Judá. Para os assírios, Manassés ainda era seu vassalo.7

3 John Bright lança a teoria de que Manassés pode ter sido conduzido ao cativeiro porque
apoiou ou incentivou a rebelião promovida por Samas-sum-ukin (652-648), que era o
irmão de Assurbanipal e vice-rei da província de Babilônia (A Hist ory of Israel, 3'1edição
[Philadelphia: Westminster, 1981], p. 311). Porém, muitos estudiosos negam a historici­
dade dessa deportação e de qualquer relato a ela relacionado, atribuindo tudo a uma
linguagem poética ou a alguma tentativa de produzir edificação. Ver, por exemplo, J.
Alberto Soggin, A History of Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 239.
4 B. Oded, "Judah and the Exile," em Israelite and Judaean History, editado por John H.
Hayes and J. Maxwell Miller (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 294.
5 James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 2a edição
(Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 294.
6 Hanoch Reviv, "The History of Judah from Hezekiah to Josiah," em World History o f the
Jewish People, vol. 4, parte 1, The Age of the Monarchies: Political History, editado por
Abraham Malamat (Jerusalém: Massada, 1979), p. 200.
7 Ibid.
462 H is t ó r ia d e Isr a e l no A n t ig o T estam est:

A inclusão de todos os pecados de Manassés, sua deportação, arrepen­


dimento e restauração pelo cronista bíblico é mais instrutiva, porque ser­
ve como uma prefiguração do próprio cativeiro de Judá. A nação também
cometeria várias atrocidades e pecados, de sorte que seria deportada para
a Babilônia. Lá também os cativos chegariam ao arrependimento e, em
razão do pacto mantido por Deus, seriam finalmente restaurados. Os pro­
fetas da ocasião devem ter utilizado a experiência de Manassés como exem­
plo para indicar o fim de Judá.

A m o m de Ju d á

Amom, filho de Manassés, parece não ter aprendido a lição, pois anu­
lou o padrão estabelecido por seu pai e restaurou o paganismo que carac­
terizara os primeiros anos do reinado de Manassés (2 Rs 21.19-24; 2 Cr
33.21-25). Este deve ter sido o resultado dos vários anos em que Amom
viveu na corte de seu pai enquanto imperava o paganismo, pois ele nas­
ceu pelo menos dezesseis anos antes de Manassés arrepender-se e retomar
para Jerusalém (ver 2 Rs 21.19). Também é provável que ainda existisse no
reino alguns focos de resistência contra a reforma religiosa promovida, os
quais buscavam o retorno ao antigo status quo. Parte da estratégia foi in­
duzir o jovem rei a abandonar a política de seu pai e lançar um outro
programa de governo.
Também é razoável assumir que a volta de Manassés para casa foi com­
prada pelo alto preço da lealdade ao governo assírio e que Amom, sempre
cauteloso com Assurbanipal, tentava manter boas relações. Por isso as au­
toridades acreditam que o assassinato do filho de Manassés só pode ter
sido conseqüência dessa política pró-assíria, e que seus algozes foram ho­
mens de um suposto partido anti-assírio (2 Rs 21.23). Estes rebeldes foram
exterminados por um movimento contra-revOlucionário que instalou o fi­
lho de Amom, Josias, no trono (2 Rs 21.24).8 Se os detalhes deste cenário
estão corretos ou não, o certo é que Josias rebelou-se contra a Assíria, en­
contrando a morte em uma tentativa de apoiar a aliança medo-caldaica,
cujo propósito era a destruição do reino assírio.

O ce n á rio in te rn a c io n a l: A s s íria e E g ito

Será bastante instrutivo neste ponto observar o cenário internacional


do sétimo século, particularmente quando o mundo estava dominado pe-

Bright, History, pp. 316-17.


E speran ç a D esva n e c en te : A D e s in t e g r a ç ã o d e J udá 463

los assírios e egípcios no princípio e, depois, pelos babilónicos.9 Dentro de


oito anos, após a incorporação de Babilônia ao seu reino em 689,
Senaqueribe foi assassinado enquanto adorava seu deus em Nínive. Seu
filho, Esaradon, que servia no reino de seu pai como um representante na
Babilônia, teve de retornar imediatamente para Nínive a fim de restaurar
a ordem e apoderar-se do trono da Assíria. Enquanto isso, os assassinos,
dois dos próprios filhos de Senaqueribe, fugiram e estabeleceram-se em
Urartu. Então passaram a ameaçar e causar muitos problemas para os
assírios ainda por muitos anos.
A dinastia dos Povos do Mar aproveitou-se do momento difícil e instá­
vel para engendrar mais uma vez sua própria independência em Babilônia.
Os rebeldes esperavam obter o apoio dos elamitas, mas como tal não acon­
teceu, Esaradon teve a oportunidade de reprimir a revolução e designar
um governador segundo sua vontade.10
Outra fonte de problemas surgiu no noroeste, e caracterizou-se por uma
série de escaramuças promovidas pelos Asguzaya, que mais tarde passa­
ram a ser conhecidos por Citas. Estes causaram enormes danos ao império
assírio, especialmente porque roubaram consideráveis extensões territoriais
da fronteira. Também no oeste os sidônios estavam promovendo uma rebe­
lião contra a autoridade assíria e somente depois que o rei Esaradon sa­
queou a cidade (677), pôde trazer estabilidade para a região mais uma vez.11
Então, Esaradon fez uma série de tratados com os Medos — inimigos
incessantes dos estados da Mesopotâmia. Esses tratados, muitos dos quais
ainda hoje sobrevivem, são importantes porque proveem informações va­
liosas não apenas acerca dos aspectos históricos da época, mas também
acerca da estrutura dos textos neo-assírios do gênero.12 A aliança docu­
mentada era extremamente frágil, pois em dez anos os medos e assírios
estavam novamente em conflito.
Esaradon estava envolvido mais uma vez com seu insolúvel problema
— os Povos do Mar, que como cães ferozes persistiam em obter a indepen­

9 Para a seguinte discussão, ver especialmente os textos de Esaradon que foram publica­
dos por Rykle Borger, Die Inschriften Asarhaddons, Kõnigs von Assyrien, AFO supplement
9 (1956): Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 289-91.
10 Quanto à política conciliatória de Esaradon a respeito da Babilônia, ver J.A. Brinkman,
"Through a Glass Darkly: Esarhaddon's Retrospects on the Downfall of Babylon," JAOS
103 (1983): 35-42.
" H. Jacob Katzenstein, The History o f Tyre (Jerusalem: Schocken Institute for Jewísh
Research, 1973), p. 259.
:2 D.J. Wiseman, The Vassal Treatíes of Esarhaddon (London: British School of Archaeology
in Iraq, 1958).
464 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o Te s t a u it :

dência babilónica dos assírios.13 A princípio, ele tentou forçar o fim da


rebelião, mas parece que nada resolvia a questão, a menos que ele institu­
ísse seu poderio de uma vez no local. Sendo assim, Esaradon estabeleceu
dois de seus filhos como co-regentes. Assusbanipal governaria a Assíria e
um segundo filho, Samas-sum-ukin, governaria a Babilônia.14 Esta deci­
são favoreceria o orgulho dos povos, pois seriam equiparados aos assírios,
permitindo-lhes que exercessem controle sobre toda a Mesopotâmia. Em­
bora o plano funcionasse por um tempo, os assírios esqueceram-se da de­
terminação quase fanática dos príncipes caldeus, os quais pretendiam
dominar Babilônia a qualquer custo.
Com o problema babilónico solucionado, pelo menos por um tempo,
Esaradon empreendeu a expedição mais bem-sucedida dentre todas as
que realizou: a conquista do Egito.15 O reino do Nilo estava sendo go­
vernado na ocasião (671 a.C.) por um rei da Núbia, chamado Tiraca, que
estava envolvido em outros problemas. Assim ele perdeu Mênfis e todo
o Baixo Egito para os assírios.16 Mas recuperou-se do golpe e retomou o
Baixo Egito em cerca de 669. Na ocasião, o Esaradon partiu para o Egito
a fim de resolver a crise ali existente, mas morreu no caminho.17 É pro­
vável que Manasses de Judá houvesse se tornado um vassalo dos assírios
na ocasião em que Esaradon conseguiu obter vitória sobre os egípcios,
em 671.
Tiraca tornou-se rei da ilustre 25a Dinastia núbia na ocasião do faleci­
mento de seu irmão Shebitku em 690. Como um jovem oficial militar com
cerca de vinte anos, ele participou de uma campanha egípcia contra o rei
Senaqueribe, quando o Egito e alguns aliados tentavam rechaçar a amea­
ça assíria que vinha contra Judá, em 701. Quando, por fim, Tiraca foi cons­
tituído Faraó, estabeleceu um reinado pacífico por toda a metade de seu
reinado — por vinte e seis anos. Em cerca de 674, os assírios voltaram a
ameaçar. Embora Esaradon à princípio não tivesse obtido sucesso nas fron­
teiras egípcias, sendo repelido pelas forças do Nilo, ainda assim persistiu
na captura de Mênfis, o que ocorreu em 671. Mesmo após a morte de

13 A.T. Olmstead, History of Assyria (Chicago: University of Chigado Press, 1975 reedição),
pp. 350-52.
14 Ibid., pp. 396-97.
15 Kenneth A. Kitchen, Third Intermediate Period in Egypt (1100-650 B.C.) (Warminster: Aris
and Phillips, 1973), pp. 391-92.
16 Quanto aos textos assírios que documentam a conquista, ver Albert Kirk Grayson,
Assyrian and Babylonian Chronides (Locust Valley, N.Y.: J.J. Augustin, 1975), p. 85, Chronicle
1.4. 23-27.
17 Ibid., 11. 30-33.
E speran ç a D e s v a n e c f .n t e : A D e s i n t e g r a ç ã o d e J udá 465

Esaradon, os egípcios tiveram pouco alívio, pois Assurbanipal, o novo rei


dos assírios, deu início às suas próprias operações militares contra o Egito
em 667.18 Isto resultou não apenas na queda de Mênfis por mais uma vez,
mas também na penetração das forças assírias em Tebas, tida como o cora­
ção do Egito. Tiraca foi forçado a mover-se para o sul, para Napata, e den­
tro de três anos (664) morreria ali.
Na Assíria, Assurbanipal (668-627)19 tomou rápidas providências após
a morte de seu pai para assegurar uma monarquia exclusiva.20 Logo que
assumiu o trono, teve de tratar com os medos, que não apenas violaram os
tratados firmados com Esaradon, mas também bloquearam as estradas
principais que davam acesso ao interior do Irã. O próprio irmão de
Assurbanipal, Samas-sum-ukin, que reinava nas províncias de Babilônia,
também sentia-se desconfortável sob a liderança do irmão, passando en­
tão a desenvolver planos para fortalecer o seu domínio.
Entretanto, a preocupação maior de Assurbanipal era a situação peri­
gosa existente no Egito.21 Assim que a situação se mostrou favorável, ele
adotou novamente a política imperialista de seu pai com respeito ao Egi­
to. Retomou Mênfis e, após morte de Tiraca, respondeu a uma ameaça de
contramedidas egípcias. Por sua vontade, estabeleceu no trono do Egito o
rei Psamético, filho de Neco I, de Sais, introduzindo assim a 26aDinastia.22
As contramedidas egípcias acima mencionado foram adotadas por
Tantamani (664-656), sobrinho de Tiraca, que foi hábil o bastante para to­
mar tem porariam ente a cidade de M ênfis, matar Neco I, o último
governante da 24a Dinastia (Saite), e conquistar a simpatia de todo Egito
para ser o próximo faraó. Mas as campanhas de Assurbanipal em 663 for­

18 Litchen, Third Intermediate Period, pp. 392-93.


19 A cronologia da segunda metade do último século da história assíria é extremamente
problemática. O sistema admitido aqui é o que temos em Joan Oates, "Assyrian
Chronology, 631-612 B.C., Iraq, 27 (1965): 135-59.
20 As fontes primárias para o reinado de Assurbanipal podem ser achadas em Robert S.
Lau, The Annals ofAshurbanipal, Semitic Study Series 2 (Leiden: E.J. Brill, 1903); M. Streck,
Ashurbanipal, 3 vols. (Leipzig: J.C. Hinrichs, 1916); R.C. Thompson, The Prisms of
Esarhaddon and of Ashurbanipal (London: Oxford University Press, 1931); Arthur C.
Piepkorn, Historical Prism Inscriptions of Ashurbanipal (Chicago: University of Chicago
Press, 1933); Mordechai Cogan, "Ashurbanipal Prism F: Notes on Scribal Techniques
and Editorial Procedures," JCS 29 (1977): 97-107. Ver também nota 26.
21 As complexas negociações entre Assurbanipal e o Egito estão brilhantemente documen­
tadas e explicadas por Anthony J. Spalinger, "Assurbanipal and Egypt: A Source Study,"
JAOS 94 (1974): 316-28.
22 Kitchen, Third Intermediate Period, pp. 394-95.
466 H is t ó r ia d e Isr a e l no A n t ig o T e s t a m e '-

çaram a Tantamani para fora do norte, embora ainda continuasse sendo


reconhecido como o rei de Tebas.
Psamético nesse tempo (663-610) foi designado o governador do Egito
por Assurbanipal e, como um servo fiel, recebeu todo o apoio dos assírios
para estabelecer seu domínio também no Delta, no Médio Egito e em Tebas,
tudo em cerca de 656. Ele retirou Tantamani de seu trono. Assim, por volta
de 655, o Egito esteve unido desde a Núbia até o Mediterrâneo debaixo de
um único soberano. Encorajado por este sucesso e pelos problemas que
Assurbanipal enfrentava em outras regiões, Psamético recusou-se a conti­
nuar o pagamento dos tributos aos assírios em cerca de 656, embora o
Egito permanecesse mais ou menos um aliado da Assíria até a sua morte
ou mesmo depois desta.
As dificuldades enfrentadas por Assurbanipal vinham, em parte, dos
elamitas, mas fundamentalmente de seu próprio irmão, Samas-sum-ukin,
que ainda dominava na Babilônia.23 As razões para o conflito eram comple­
xas, mas a crise realmente se agravou quando o rei Samas-sum-ukin passou
a discordar publicamente das atitudes de seu irmão Assurbanipal, especial­
mente na questão da escolha de governantes que buscavam sempre circuns­
crever a autoridade do rei da Babilônia.24 Esta atitude culminou na forma­
ção de uma coalisão entre Elão, Guti, Amurru, Arábia, certos estados arameus
e a própria Babilônia, que juntando forças, atacou os assírios bem no início
de 652.2526Mas Assurbanipal resistiu aos ataques e conseguiu sair vitorioso.
Profundamente desmoralizado, seu irmão Samas-sum-ukin suicidou-seA
Assurbanipal puniu severa e cruelmente os elamitas, e derrotou os prínci­
pes dos arameus que haviam participado do levante contra os assírios. Es­
sas medidas de retaliação foram adiadas por várias razões até os anos 642­
639. Depois disso, os anais de Assurbanipal se encerraram e, como conse-
qüência, seus últimos treze anos são completamente obscuros.27
Sabe-se que Assusbanipal foi sucedido por seu filho Assur-etil-ilani (627­
623). Os registros desse acontecimento estão indelevelmente gravados na

23 Olmstead, History of Assyria, pp. 440-52.


24 Sami S. Ahmed, "Causes of Shamash-shum-ukin's Uprising, 652-651 B.C.," ZAW 79
(1967): 1-13. Quanto a outras possibilidades, ver em G. Frame, "Another Babylonian
Eponym," RA 76 (1982): 166.
25 J.A. Brinkman, "Foreign Relations of Babylonia from 1600 to 625 B.C.: The Documentarv
Evidence," AJA 76 (1972): 279. *
26 Olmstead, History of Assyria, p. 475. Os feitos de Assurbanipal estão, dessa vez, comple­
tamente convincentes na obra de Mordechai Cogan e Hayim Tadmor, "AshurbanipaFs
Conquest of Babylon: The First Official Report - Prism K," Or 50 (1981): 229-40.
27 Olmstead, History of Assyria, pp. 627-28.
E speran ç a D esv a n e c este : A D e s in t e g r a ç ã o d e J vdá 467

parede, e os observadores mais atentos da história assíria puderam con­


cluir que os dias dos assírios estavam coutados. Assur-etil-ilani conseguiu
suprimir duas rebeliões que surgiram em seu breve reinado, mas a
Babilônia, Média, Fenícia e Judá rebelaram-se abertamente contra sua au­
toridade.
Depois de uma rápida rebelião promovida por Sin-sum-lisir, um se­
gundo filho de Assurbanipal, o reinado de Assur-etil-ilani chegou ao fim
por causa de um terceiro filho, Sin-sar-iskun (623-612). Isso aconteceu no
terceiro ano de Nabopolassar, o sucessor do governador assírio que reina­
va em Babilônia e que se chamava Kandalanu.28 Sin-sar-iskun iniciou as
hostilidades contra Nabopolassar com a intenção de readquirir o domínio
da Babilônia para os assírios, mas Nabopolassar mostrou-se mais hábil
em sua resistência e tomou medidas ofensivas.
Gradualmente, o território de Sin-sar-iskun foi diminuindo, e ele não
foi capaz de reverter a situação. Em cerca de 614 a antiga cidade de Assur
foi perdida para os Medos e, em apenas dois anos, a cidade de Nínive caiu
nas mãos destes inimigos. Nabopolassar relata — em um dos mais bem
conservados e documentados registros da época, "As Crônicas Babilónicas"
— que ele até tentou unir-se a Cyaxares, o rei da Média, na conquista de
Assur, mas não pôde fazê-lo porque ficou detido na Babilônia.29
Com a queda de Nínive e Sin-sar-iskun, o último rei da Assíria che­
gou ao poder. Seu nome era Asur-uballit II (612-609). Ele foi um oficial
do exército que conseguiu reorganizar as forças assírias em Arã, mas
teve de abandonar a cidade quando esta ficou sob forte ataque dos
babilónicos.30 Neco II, do Egito, esforçou-se para auxiliar os assírios,
obviamente temendo o poder que surgia no eixo Medo-Babilônico. O
exército egípcio foi interceptado pelo pequeno exército de Josias de Judá,
o que sem dúvida pode ter sido o fator determinante para a vitória dos
babilónicos naquele conflito.31
Forçado a abandonar Arã, Assur-uballit moveu-se em para o oeste no­
vamente, mas dessa vez para a importante cidade de Carquemis, que se
situava na porção superior do Eufrates. Porém, os exércitos babilónicos
partiram incansavelmente na direção dos assírios em 605, sob o comando
do jovem príncipe Nabucodonosor e eliminaram definitivamente os

28 Oates, "Assyrian Chronology," Irarq TI (1965): 146-48.


;u B.M. 21901, 11. 28-29, publicados em D.J. Wiseman, Chronicles of Chaldaean Kings (625­
556 B.B.) in the Brifisíi Museum (Londorr. Trastees of the British Museum, 1961), p. 59.
22 B.M. 21901, 11. 58-62.
Quanto ao contexto e estratégia usada na batalha de Megido, ver Abraham Malamat,
"Josiah's Bid for Armaggedon," JANES 5 (1973): 267-79.
468 H is t ó r ia d e Isr a e l no A n t ig o T e s t .w z -

assírios.32 Mais uma vez os egípcios enviaram reforços, mas também fo­
ram rechaçados e retirados da Síria e da Palestina. Assim, os assírios desa­
pareceram do cenário como uma potência mundial, depois de mais de mil
e duzentos anos de existência nacional. A vara de Yahweh cumprira o seu
propósito e agora tinha sido posta de lado.

Jo s ia s de Ju d á

Relações com a Assíria

Contra esse contexto, o registro bíblico do reinado de Josias ganha toda


a significação, pois como tem enfatizado esta obra, as histórias bíblicas
não se deram em um vácuo. Isto se torna particularmente verdadeiro quan­
do se constata as rotas internacionais de comércio que cruzavam a Palesti­
na. Não poderia aquela pequena terra ficar estática à parte, apenas obser­
vando como um espectador. Inevitavelmente a Palestina estava envolvida
nas tendências políticas do mundo naquela época, como um pequeno bote
que involuntariamente é atraído para o centro de um redemoinho.
Em nenhuma outra época isto foi mais evidente que nos dias do rei
Josias, pois durante seu reinado (640-609), toda a balança de poder no Ori­
ente Médio mudou radicalmente do que vinha sendo nos últimos trezen­
tos anos. A Assíria não passava de ruínas e o Egito, apesar de mais estável,
era uma mera sombra do que um dia havia sido. Por outro lado, os Medos
e seus parentes, os Persas, iniciavam uma política de expansão nas regiões
mais altas do Irã e já mostravam fortes indícios de que um dia seriam um
sério fator a considerar. Mais dramático, entretanto, foi a ascensão meteórica
do Império Neo-Babilônico na fundação dos Reinos Caldeus. Sem dúvida
este era um manifesto para todo o mundo de que a Babilônia agora era o
centro do poder, e que passaria a ditar o curso dos eventos humanos por
um longo tempo.
Tal era a situação do mundo quando Josias assumiu o poder ao su­
ceder seu pai Amom. Anteriormente propomos que Amom, como seu
pai Manassés, permaneceu fiel aos assírios, tendo sido morto por ele­
mentos que supunham que o colapso da Assíria era iminente. O fato de
o Egito, o grande vizinho ao sul, ainda permanecer fiel aos assírios não
fazia diferença para esses rebeldes. Mas a maioria dos habitantes de
Judá não compartilhava o mesmo sentimento, pois os assassinos de
Amom foram também sumariamente executados, e o partido pró-assírio
estabeleceu em seu lugar o rei Josias, que na ocasião estava com oito

32 B.M. 21946, 11.1-7.


E speran ç a D esva n e c en te : A D e s in t e g r a ç ã o d e J udá 469

anos de idade.33 Visto que toda a informação acerca da política de Josias indi­
ca que ele era contrário aos assírios, é seguro admitir que sua posição inicial
mudou em poucos anos, e ele tornou-se um veemente antagonista da Assíria.
No passado, os profetas alertaram sobre o perigo de se afiliar aos assírios,
mas aqueles que ministraram nos dias de Josias — Jeremias, Habacuque e
Sofonias — são relativamente silenciosos acerca dos assírios. Naum é uma ex­
ceção; de fato, todo seu livro é uma descrição da destruição que se abateria
sobre a cidade de Nínive. Mesmo assim não existe qualquer menção no livro de
Naum que descreva uma aliança entre Judá e os assírios. A atenção dos profe­
tas, nos dias de Josias, voltam-se para os babilónicos, pois lá pelo início do rei­
nado de Josias, em 640, já ficava claro que o julgamento que se abatería sobre a
nação de Judá não viria pelas mãos dos assírios, mas dos babilónicos. Diferen­
temente da Assíria, Babilônia não era para ser resistida. Conforme as próprias
palavras do profeta Jeremias, o que Judá teria de fazer era submeter-se à
Babilônia, não como um estado vassalo, mas em reconhecimento do inexorável
fato de que a Babilônia era um agente de Yahweh para disciplinar o seu povo.
O ponto aqui é que as fontes informam pouco sobre o relacionamento
de Josias com a Assíria. De fato, durante seu reinado, os assírios não fo­
ram considerados como dignos de menção, senão em seus últimos dias,
quando os exércitos de Judá interceptaram as forças egípcias em Megido,
pois Josias cooperava com a coalizão Medo-Babilônica em Arã, que culmi­
nou na destruição final dos assírios.

Reformas religiosas

O real interesse do rei Josias se concentrava na reforma religiosa.34 Bem


cedo em seu reinado, em oitavo ano (632), quando ele estava com dezesseis
anos, Josias voltou o seu coração para Deus, e quatro anos mais tarde em­
preendeu uma limpeza sistemática de todo e qualquer vestígio de paga­
nismo em seu governo (2 Cr 34.3).35 Na verdade, quando o rei Manassés

33 Não se deve desconsiderar as motivações religiosas daqueles que apoiavam Josias, pois,
segundo a opinião de Cari D. Evans, o "povo da terra" foi quem estabeleceu o jovem
monarca no trono "a fim de guardar a sucessão davídica" ("Judah's Foreign Policy from
Hezekiah to Josiah," em Scripture in Context, editado por Carl D. Evans et al. [Pittsburgh:
Pickwick, 1980], pág.170).
34 A sugestão cínica de alguns estudiosos (por exemplo, W. Eugene Claburn, "The Fiscal
Basis of Josiah's Reforms," JBL 92 [1973]: 11-22) de que os motivos ou métodos de Josias
iam além de religiosos, não encontra fundamentação alguma no texto.
35 O autor do livro dos Reis não faz qualquer referência a uma data anterior ao décimo
oitavo ano do reinado de Ezequias (622), o ano da descoberta do manuscrito da Torá, da
470 H is t ó r ia o r Isr a e l no A n t ig o T e s t -,

retornou de seu exílio na Assíria, chegou a dar início a uma série de refor­
mas, mas seu filho Amom desfez todas as boas obras de seu pai e, dentro
de dois anos, tempo de duração de seu reinado, reinstalou todas as divin­
dades cananéias e sua adoração. Josias não apenas mandou retirar todas
essas abominações, como também incluiu as regiões longínquas do norte
até Naftali em sua reforma.36 É de particular interesse a destruição do al­
tar e dos lugares altos de Betei, como a ocasião em que mandou queimar
os ossos dos sacerdotes que haviam servido por muitos anos como ofici­
antes dessas abominações durante os anos de Jeroboão I (2 Rs 23.15-20).
Sem dúvida a antiga profecia de que chegaria o dia em que todos os altos
e altares de Betei, dedicados às divindades pagãs, seriam completamente
destruídos e expurgados da terra referia-se a Josias (1 Rs 13.1,2).
Entretanto, a remoção da idolatria de Judá se constituía apenas em um
lado das reformas daqueles dias. Havia a premente necessidade de se res­
tabelecer o culto oferecido a Yahweh, baseado nos preceitos estabelecidos
pela lei de Moisés, restaurando inclusive as estruturas da adoração no tem­
plo. Essa obra maravilhosa iniciou no décimo oitavo ano do rei (622), quan­
do foram decretadas as reformas no prédio já bastante castigado, pois desde
os dias de Ezequias (havia sessenta anos) não se faziam quaisquer reparos
(2 Rs 22.5,6). Depois de uma alta soma de dinheiro ser levantada junto ao

reforma e da grande celebração da Páscoa (2 Rs 22.3; 23.23). Embora seu relato pareça
comprimir uma série de acontecimentos em um espaço de um ano, na verdade, deve
ter-se desenrolado por vários anos, começando no oitavo ano de Josias, segundo a pró­
pria descrição do cronista. John Gray sugere que o homem que compilou o livro dos
Reis provavelmente encaixou os três estágios da reforma em um só (I & II Kings
[Philadelphia: Westminster, 1970], p. 275). Mordechai Cogan, por outro lado, contempla
o relato no livro das Crônicas como um exemplo de como se datava as principais reali­
zações de um monarca em seu primeiro ano ou nos seus primeiros anos de reinado,
nesse caso para mostrar "logo de início sua profunda preocupação e motivação interna
para as coisas santas" ("The Chronicler's Use of Chronology as Illuminated by Neo­
Assyrian Royal Inscriptions," em Empirical Models for Biblical Criticism, editado por Jeffrev
H. Tigav [Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985], pp. 204-5). Embora se
deva reconhecer a admirável teoria, ainda continua sendo difícil de acreditar. Frank M.
Cross e David Noel Freedman têm feito tentativas de estabelecer uma ligação entre os
acontecimentos do oitavo, décimo segundo e décimo oitavo ano do rei Josias e as prin­
cipais crises com a história assíria. Porém, tais tentativas mostram-se deficientes e pou­
co prováveis. Ver "Josiah's Revolt Against Assyria," JNES 12 (1953): 56-58 e a resposta
de Evans, "Judah's Foreign Policy," em Scripture in Context, p. 171.
36 Conforme indica o estudioso Reviv em "History of Judah", em World History of the Jewish
People, vol. 4, parte 1, pp. 203-4, a influência política do rei Josias se estabelecia muito
além das fronteiras da nação de Judá.
E sp e r a n ç a D esvan ec en te: A D e s in t e g r a ç ã o d e J uda 471

povo, o rei comissionou o sacerdote Hilquias para supervisionar toda a


obra e também certificar-se de que o dinheiro seria corretamente empre­
gado no projeto. Durante a construção, à medida que o dinheiro era retira­
do dos cofres do templo, o sacerdote deparou-se com uma cópia do Livro
da Lei de Moisés. Imediatamente ele a entregou a Safã, o escriba, para que
este fizesse chegar o material às mãos do rei. O rei, depois de ouvir aque­
las palavras, foi compungido em seu espírito e rasgou suas vestes, humi­
lhado diante da palavra de Deus quanto ao iminente julgamento que esta­
va por vir sobre sua nação.
Não é possível aqui debater acerca da natureza e conteúdo desse manus­
crito. Mas está bem claro que consistia basicamente no livro do Deuteronô-
mio e, semelhantemente, de todo o Pentateuco, já que algumas das medidas
adotadas por Josias são o reflexo dos ensinamentos de Moisés.37 Porém, há
uma pergunta intrigante: como pôde a Lei de Moisés perder-se e ser encon­
trada apenas em 622, e mesmo assim por acaso? A erudição liberal afirma
que o documento em questão era o livro de Deuteronômio, e que este nunca
esteve perdido de todo. Na verdade, dizem eles, o livro era composto de
predições ditadas por um determinado círculo de profetas que estava inte­
ressado nas reformas religiosas. E com propósito de conseguir apoio canônico
para suas palavras, atribuíram-nas à Lei de Moisés. A obra poderia estar
relacionada diretamente à tradição mosaica, mas certamente não fora escri­
ta pelo próprio Moisés, e sim por escribas anônimos do sétimo século. Tal­
vez ela tenha sido escrita por um movimento secreto nos dias de Manassés
e colocada propositadamente no Templo, na esperança de que pudesse ser
encontrada e inspirasse Manassés a buscar Yahweh. Infelizmente, o livro
não foi descoberto durante seus dias, mas apenas casualmente em 622.38
Esta reconstrução desconsidera a tradição universal dos judeus a res­
peito da autoria de Deuteronômio, e também falha em explicar como é
possível que ninguém nos dias de Josias, incluindo os escribas e sacerdo­
tes, questionasse a suposta autoridade mosaica de um documento que,
segundo diz essa escola de pensamento, não possuía nenhuma tradição.
Além disso, os aspectos relacionados com a reforma de Josias, e que pare­
cem estar calcados no ensino de Deuteronômio, já eram conhecidos na
vida religiosa de Israel antes de Josias. O crítico deve admitir que as mai­
ores recomendações de Deuteronômio eram conhecidas muito tempo an-

Ver especialmente a obra de Oswald T. Allis, The Five Books of Moses (Philadelphia:
Presbyterian and Reformed, 1949), pp. 178-84.
Essa visão está convenientemente resumida, embora não completamente aceita por Ernest
W. Nicholson, Deuteronomy and Tradition (Philadelphia: Fortress, 1967), pp. 1-17.
472 H is t ó r ia d e Isr a e l vo A n t ig o

tes da descoberta do manuscrito do templo. Sendo assim, é realmente in­


crível que Deuteronômio existisse por tanto tempo e simplesmente desa­
parecesse até que Hilquias o descobrisse.
Na era da imprensa e da disseminação de materiais impressos em mi­
lhões de cópias, é realmente difícil compreender a escassez de textos escri­
tos no mundo antigo. Até mesmo alguns dos mais importantes registros,
compostos em tábuas de argila, são colecionados em cópias únicas, apesar
da reconstrução de algumas das grandes bibliotecas do mundo antigo. O
que, então, pode ser dito a respeito dos manuscritos de papiro, couro e
pergaminhos, que serviram de material para o registro dos escritos do
Antigo Testamento? Além disso, é bastante provável que as Escrituras do
Antigo Testamento, em qualquer época da história de Israel, não passas­
sem de doze cópias no máximo. Elas foram preservadas com extremo cui­
dado, pois estariam sujeitas às guerras, desastres naturais, ou simples­
mente à desintegração com o tempo. Era presumível que um rei diabólico
e déspota como Manassés fizesse tudo para destruí-las a fim de propagar
sua própria apostasia. De alguma maneira, pela providência de Deus, um
sacerdote piedoso ou escriba conseguiu guardar uma cópia em lugar se­
guro no templo, e orou para que esta não perecesse até que tivesse sua
posição restaurada como o sustentáculo de Israel.
Sem dúvida foi isto o que aconteceu. Josias, conhecendo bem que aquele
documento era a verdadeira Palavra de Deus, buscou o Senhor para saber
as conseqüências daquelas palavras em seus dias. A resposta veio através
da profetisa Hulda, que confirmou a efetivação dos juízos contidos no
manuscrito. Josias, porém, seria poupado, pois se inclinara a buscar o Se­
nhor com todo o seu coração. Josias não reagiu a estas palavras com auto-
satisfação, mas demonstrou um verdadeiro amor pelo povo conduzindo-
o a uma renovação do pacto com seu Deus. Ele ajuntou os líderes de Judá
e o povo de Jerusalém no templo. E lá, depois de ler os preceitos contidos
na aliança, declarou seu fiel compromisso à Lei do Senhor (2 Rs 23.1-3).
A cerimônia de restauração da aliança deu-se durante a celebração da
Páscoa, talvez a maior dentre todas as registradas na história de Israel
desde os dias de Moisés e Samuel (2 Cr 35.1-19). Tudo foi conduzido se­
gundo as prescrições contidas no manuscrito recém-descoberto, que exi­
gia meticulosa atenção para a organização e preparação dos levitas e sa­
cerdotes, para a forma correta de conduzir a arca e os rituais de sacrifício.
O próprio rei entrou com trinta mil ovelhas e bodes, e três mil bois para
repartir com o povo. Outros líderes, inspirados em seu exemplo, fizeram
notáveis contribuições. Quando tudo estava pronto, iniciou o sacrifício e o
sangue foi aspergido, conforme prescrevia a lei de Moisés. Os músicos no
E sp e r a n ç a D esva n e c en te : A D e s i n t e g r a ç ã o d e J udá 473

templo reuniram-se no culto e os porteiros cumpriram detalhadamente


suas responsabilidades. Finalmente os leigos, de Samaria e Judá, rende­
ram louvores ao Senhor, que mais uma vez os libertara do fardo do paga­
nismo e da incredulidade, fazendo-os seu povo especial em toda terra.
Contudo, nem mesmo isto foi suficiente para que o juízo de Deus fosse
cancelado. O pecado do rei Manasses conduzira a nação ao ponto de repu­
diar a aliança estabelecida com Jeová. Uma semente de destruição inevitá­
vel havia sido plantada em Judá, apesar de Manassés ter-se arrependido
mais tarde e Josias haver promovido as reformas religiosas. Isto não fora
suficiente para mudar o coração e o estilo de vida do povo (2 Rs 23.26,27).
A conseqüência inevitável foi a derrota e a deportação, da qual mais tarde
surgiria o remanescente justo e fiel, como um instrumento nas mãos de
Deus para fazer cumprir seus propósitos redentores na terra.

A q u e d a de J e ru s a lé m

A catastrófica destruição em Megido

As fontes nada revelam acerca dos próximos treze anos, mas em 609, o
faraó Neco II, do Egito, respondeu um apelo urgente de Assur-uballit, da
Assíria, e marchou para Arã, através da Palestina, a fim de ajudar o amigo
a livrar-se do poderio militar babilónico. Josias, porém, era fiel à Babilônia
e, ciente dos planos de Neco, providenciou rapidamente a interceptação
dos exércitos egípcios, esperando derrotá-los ou, no mínimo, dificultar
sua chegada a Arã (2 Rs 23.29). Apesar de Judá, sem dúvida, haver recupe­
rado muito de sua força e território, ainda não era capaz de enfrentar o
exército egípcio. Mas Josias corajosamente encontrou-se com Neco em
Megido, embora o cronista relate que esta decisão do rei não foi segundo o
coração de Deus (2 Cr 35.22).34*39 O resultado foi uma vergonhosa derrota de
Judá e a morte do rei fora do tempo, com apenas trinta e nove anos de
idade. Não é possível definir a motivação do pecado de Josias,40 mas, para

34 Stanley Brice Frost descreve as omissões dos "deuteronomistas" desse detalhe como
uma "conspiração do silêncio", pois se tornou extremamente difícil para ele conciliá-las
com seu quadro do reinado de Josias. O cronista, porém, não se intimidou ao atribuir a
morte de Josias ao seu próprio pecado ("The Death of Josiah: A Conspiracy of Silence,"
JBL 87 [1968]: 369-82). Mas se houve uma tentativa de "cobrir" o caso ou amenizar a
situação, por que a narrativa da morte do rei acabou registrada no livro dos Reis?
40 Quanto a possíveis explicações, ver Abraham Malamat,"The Last Kings of Judah and
the Fali of Jerusalém," IEJ 18 (1968): 137, n. 1.
474 H is t ó r ia d e Israel no A n t ig o T esta wí ".

seus contemporâneos, Josias tornou-se um símbolo de retidão e devoção a


Yahweh e ao seu povo. O profeta Jeremias compôs alguns cânticos de la­
mento em sua homenagem, e o cronista relata que eles eram cantados pelo
povo até os seus dias (2 Cr 35.35).

Jeoacaz de fndá

A morte de Josias deve ter abalado as aspirações dos piedosos de Judá,


que esperavam a continuidade da paz, prosperidade e devoção religiosa
que haviam sido introduzidas. Mas esta preocupação era o triste reflexo
da superficialidade com que o povo guardava a aliança. De fato, não tar­
dou para que a nação se envolvesse com a iniqüidade.
O sucessor de Josias foi seu filho maligno Jeoacaz,41que reinou por ape­
nas três meses, já que Neco II do Egito pôs fim ao reino (2 Rs 23.31-33). Os
exércitos de Neco, embora forçados pelos babilónicos a recuar para o su­
deste do Eufrates, depois da batalha de Arã, permaneceram com uma par­
cela de hegemonia na baixa Síria e na Palestina. A preocupação dos
babilónicos com os remanescentes da resistência assíria foi a razão por
que não reivindicaram aquelas áreas até a queda de Carquemis, em 605.
O domínio dos egípcios na Palestina é claramente descrito na forma com
que Neco tratou Jeoacaz. Ele foi removido do trono de Judá e enviado para
Ribla, na Síria central, onde permaneceria sob a custódia egípcia. Neco esta­
beleceria em seu lugar o irmão mais velho de Jeoacaz, Jeoiaquim, e, como
sinal evidente da soberania do Egito, exigiu de Judá um tributo de cem
talentos de prata e um talento de ouro. Jeoacaz foi tirado de Ribla e enviado
ao Egito, permanecendo exilado naquele país até o fim de seus dias.

Jeoiaquim de Judá

Enquanto isso Jeoiaquim, envolvido com a terrível missão de arreca­


dar o pesado tributo exigido pelos egípcios, teve de apelar para o único
recurso disponível: aumentar os impostos do povo (2 Rs 23.35). Sem dúvi­
da a medida era totalmente impopular e desgastou substancialmente sua
imagem junto ao povo; porém, nada podia ser feito enquanto o Egito esti­
vesse no comando. A libertação deste jugo ocorreu em 605, quando Nabu-
codonosor, então comandante dos exércitos babilónicos, cruzou o Eufrates,

41 Malamat assume que a aclamação de Jeoacaz como rei, por parte do "povo da terra" (2
Rs 23.30), mesmo não sendo o filho mais velho, não passou de um golpe para colocar no
trono de Judá um monarca anti-egípcio ("Last Kings," p. 140).
E s p e r a n ç a D e s v a n e c e n t e : A D e s in t e g r a ç ã o d e J udá 475

expulsou os egípcios da Palestina, e colocou Jeoiaquim debaixo de sua


proteção. Porém, logo ficaria evidente que esta proteção não era nada se­
não uma escravidão contínua sob um novo senhor.

O Império Neo-Babilônico

O contexto histórico
O Império Neo-Babilônico exerceu um papel crucial na vida de Judá
de 609 a 539 a.C. Para este período há disponível um bom número de do­
cumentos históricos de valor e objetividade inestimáveis, que suplementa
o Antigo Testamento, além de prover uma visão incomum dos fatores com­
plexos que, combinados, conduziram Judá à queda e restauração.42 Po­
rém, agora é preciso uma descrição dos acontecimentos históricos da épo­
ca para melhor compreensão.43
Logo após o colapso da dominação cassita na metade do século doze, o
norte da Mesopotâmia caiu nas mãos dos assírios e o sul foi destinado à
Segunda Dinastia Isin, que se manteve no poder até 1027. Depois, houve
uma série de dinastias menores (1026—980), a primeira das quais foi a
Segunda Dinastia dos Povos do Mar, assim chamada porque seus domíni­
os estendiam-se até as costeiras pantanosas do Golfo Pérsico. Então, um
nativo da Babilônia, Nabu-mukin-apli (979-944), conseguiu assenhorar-se
da área dos Povos do Mar. Por volta de 890, os assírios haviam derrotado
os babilónicos. Até sua derrota final, cujo início foi em 626, os assírios man­
tiveram o controle da Mesopotâmia central e sul, embora tenham havido
algumas rebeliões esporádicas. Chegaria o tempo em que eles perderiam
o domínio daquela região.
Durante esse tempo, os migrantes arameus moveram-se gradualmente
para a bacia do Tigre-Eufrates. Eles começaram a coexistir com outros gru­
pos étnicos, como os Kaldu (ou Caldeus), que são referidos pela primeira
vez nos anais de Assur-nasirpal II, da Assíria (ca. 878).44 As três maiores e
principais tribos dos Caldeus — Bit-Yakin, Bit-Dakkuri e Bit-Amukani —
surgem pela primeira vez nos textos da era de Salmaneser III (ca. 850). Por
fim, eles constituíram o principal elemento político do sul, os verdadeiros
precursores do Império Neo-Babilônico que seria fundado por Nabopo-

42 Recursos fundamentais bibliográficos e documentais desse período são encontrados em


Rykle Borger, "Der Aufstieg des neusbabylonischen Reiches," JCS 19 (1965): 59-78.
43 Ver especialmente J.A. Brinkman, A Polítical History of Post-Kassite Babylonia, 1158-722
B.C., Analecta Orientalia 43 (Rome: Pontifical Institute, 1968).
44 Ibid., p . 2 6 0 .
476 H istó ria d e Israel no A n t i g o T esta v e '-;

Tabela 8 Os reis neo-babilônicos

Nabopolassar 625 — 605


Nabucodonosor II 605 — 562
Evil-Merodaque 562 — 560
Ner.iglissar 560 — 556
Labasi-Marduk 556
Nabonidus 555 — 539

lassar em 626. É correto dizer então que "Caldeus" e "Neo-Babilônicos"


são termos intercambiáveis para descrever um povo ou povos que ocupa­
ram a região central e mais baixa da Mesopotâmia nos tempos pós-cassitas.
Embora suas raízes possam ser encontradas no estoque sumério-acadiano,
já pelo primeiro milênio tinham assimilado outros elementos étnicos, sen­
do o mais destacado oriundo das tribos araméias.

Nabopolassar
O movimento final em direção a tão esperada independência babilónica
dos assírios começou, ironicamente, sob o governo de Samas-sum-ukin
(668-648), filho de Esaradon da Assíria e vice-rei da Babilônia. Seu irmão,
Assurbanipal (668-627), opôs-se-lhe radicalmente, suspeitando de inten­
ções separatistas. Depois de uma rebelião malsucedida promovida por
Samas-sum-ukin, Assurbanipal reinou sobre uma Assíria e Babilônia
unificadas. E possível que os registros que atestam um governante
babilónico chamado Kandalanu estejam se referindo a Assurbanipal por
seu pseudônimo.45 O sucessor de Assurbanipal foi Assur-etil-ilani (627­
623). Havia outro filho, chamado Sin-sum-lisir, que por pouco tempo apo­
derou-se do governo de Babilônia (623). Sin-sar-iskun, então, dominou na
Assíria (623-612) e tentou submeter Sin-sum-lisir no sul. Porém foi impe­
dido por Nabopolassar, um caldeu que ironicamente havia sido designa­
do governador dos Povos do Mar três anos antes pelo próprio Sin-sar-
iskun, que na ocasião era o general dos exércitos assírios incumbidos de
rechaçar as forças de Babilônia.46
Segundo uma crônica babilónica, Nabopolassar se engajou em batalha
contra Sin-sar-iskun em Uruque, e prevaleceu definitivamente.47 A partir

45 Oates, "Assyrian Chronology," Iraq TJ (1965): 159; ver também Julian Reade, "The
Accession of Sinsharishkun," JCS 23 (1970): 1.
46 Oates, "Assyrian Chronology," Iraq TJ (1965): 143.
47 Wiseman, Chronicles, p. 51 (B.M. 25127).
E spera n ça D esva n ecen te: A D e s in t e g r a ç ã o d e J udá 477

deste momento, ele assumiu formalmente o trono da Babilônia em 23 de


Novembro de 626, embora a atitude não obtivesse o apoio da população
assíria. Por três anos Nabopolassar defendeu seu reino contra os assírios,
que tenazmente tentavam reconquistá-lo. Por fim, ele conseguiu afastar
Sin-sar-iskun, que recentemente havia se constituído rei, e o expulsou de­
finitivamente em 623.48
Nove anos mais tarde, em 614, Nabopolassar tomou a antiga cidade
sagrada de Assur, depois de ela já ter sido saqueada pelos Medos.49 Na­
queles dias ele fez uma aliança com o rei medo Ciaxerxes, um relaciona­
mento que pode ser confirmado pelo casamento que uniu suas famílias.50
Então, em 612, Nabopolassar capturou a cidade de Nínive,51 sendo apoia­
do por Umman-Manda (talvez os Citas)52 e pelos Medos. Os assírios mu­
daram sua capital para Arã, mas Nabopolassar, novamente apoiado por
Umman-Manda,53 tomou a cidade, ocupou-a pelo espaço de um ano, e em
609 repeliu os assírios e seus aliados egípcios que tentavam recapturar
Arã. Nabopolassar expulsou-os para o ocidente através do rio Eufrates.54
Pelos próximos três anos, os babilónicos estiveram preocupados com a
tarefa de negociar com Urartu, a fim de abrir rotas comerciais e garantir a
segurança das fronteiras ao norte. Por fim Nabopolassar voltou-se para a
única fortaleza assíria ainda sobrevivente — Carquemis. Em 605, derro­
tou definitivamente os assírios, e forçou os egípcios a se retirarem do nor­
te da Síria.
Contudo, o grande golpe em Carquem is não foi desferido por
Nabopolassar, mas por seu jovem filho e comandante chefe, Nabucodo-
nosor. Insatisfeito com a derrota de Neco e de seus exércitos, este príncipe
partiu em seu encalço, cruzou o Eufrates e todo o caminho que conduz a
Hamate. De fato, o Antigo Testamento sugere que Nabucodonosor os per­
seguiu até a entrada do Egito e que, nessa ocasião, ele forçou Jerusalém a
pagar-lhe um pesado tributo e a entregar-lhe prisioneiros, dentre os quais
estava o profeta Daniel.55

48 Reade, "Accession," fCS 23 (1970): 5.


49 Grayson, Assyrian anã Babylonian Chronicles, p. 93, Fall of Nineveh Chronicle 24-30.
50 Wiseman, Chronicles, p. 14.
51 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 94, Fall of Nineveh Chronicle 38-49.
32 Wiseman, Chronicles, p. 16.
53William F. Albright identificou os Umman-Manda como os medos ao invés de citas, um
ponto de vista que parece estar correto ("The Seal of Eliakim and the Latest Pre-exilic
History of Judah, with Some Observations on Ezekiel," JBL 51 [1932]: 86-87).
54 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, p. 96, Fall of Nineveh Chronicle 66-72.
MWiseman, Chronicles, p. 26, citando 2 Reis 24.7 e Josefo, Antiquities of the Jews 10.6.
478 H istó ria d e I srael xo A n tig o Test-vi

A sucessão de Nabucodonosor
Quando Nabopolassar morreu inesperadamente, Nabucodonosor aban­
donou seu projeto de perseguir o faraó Neco e retornou para a Babilônia,
a fim de garantir sua sucessão. E assim ele o fez, em 7 de Setembro de 605,
permanecendo na cidade até a passagem do ano, quando novamente vol­
tou os olhos para o oeste, pois intentava implementar um programa de
extensão territorial naquela direção.
Deve-se lembrar que Jeoiaquim de Judá foi o homem designado por Neco
do Egito para ocupar o trono da Palestina e do sul da Síria, entre os anos 609
e 605. Como seu irmão Jeoacaz, Jeoiaquim também foi mau perante os olhos
de Yahweh e, por isso, alvo do juízo de Deus. Antes de Nabucodonosor
expulsar definitivamente os egípcios da Palestina, o estado de Judá era
vassalo do rei do Egito, sendo forçado a pagar um pesado tributo a faraó.
Nabucodonosor expeliu os egípcios da região, mas imediatamente incorpo­
rou Judá ao Império Babilónico, exigindo o tributo que era pago aos egícios.
Uma observação cuidadosa das fontes revela que Nabucodonosor pene­
trou profundamente no território Siro-Palestinense após a queda de
Carquemis, e que algumas de suas tropas chegaram a se movimentar até bem
próximo à cidade de Jerusalém. Em uma rápida ação, ele invadiu o Egito, fez
o rei Jeoiaquim lhe prestar juramento de lealdade, e enviou um número de
judeus cativos para sua própria capital, Babilônia. Tudo isto aconteceu em
poucas semanas, pois em cerca de 15 de Agosto de 605, Nabopolassar morreu
e Nabucodonosor teve de voltar imediatamente para a Babilônia.
Conforme indica o autor do livro dos Reis, o rei Jeoiaquim permane­
ceu leal aos babilónicos pelos três anos seguintes (605-602). Por alguma
razão não específica, ele rebelou-se,36 e a resposta foi certa (2 Rs 24.1,2).
Nabucodonosor enviou tropas da Babilônia e de alguns estados vassalos
do oeste, tais como Arã, Moabe e Amom, forçando Jeoiaquim a subme­
ter-se.57 O cronista diz que Nabucodonosor chegou mesmo a prender
Jeoiaquim "com cadeias" a fim de levá-lo para Babilônia como prisionei-56

56 Malamat, "Last Kings," IEJ 18 (1968): 142-43, associa a rebelião de Jeoiaquim ao conflito
entre os babilónicos e os egípcios, que se deu no inverno de 601 /600 a.C, que é confirmado
por uma carta escrita em aramaico da cidade de Saqqarah. Quanto ao teor dessa carta, ver
William H. Shea, "Adon's Letter and the Babylonian Chronicle," BASOR 223 (1976): 61-64.
37 Wiseman, Chronicles, p. 31, indica que a campanha contra o rei Jeoiaquim não é men­
cionada nos registros da Babilônia (B.M. 21946, invertido 5-7) porque o principal obje­
tivo de Nabucodonosor concentrava-se no Egito, e não em Judá. Ver também John R.
Bartlett, "Edom and the Fall of Jerusalem, 587 B.C.," PEQ 114 (1982): 16, acerca da
opinião de que "arameu" deve ser mantido em 2 Reis 24.2 e não substituído por
E s p e r a n ç a D e s v a n e c f . n t f : A D e s in t e g r a ç ã o d e J u d á 479

ro de guerra (2 Cr 36.6). Aparentemente, a punição não pareceu severa,


mas Nabucodonosor ordenou que o templo fosse saqueado, e seus uten­
sílios sagrados fossem conduzidos para a capital e depositados nos tem­
plos pagãos. Até a sua morte, em 598, o rei Jeoiaquim permaneceu sub­
serviente aos babilónicos.
Enquanto isso, Nabucodonosor havia empreendido uma série de cam­
panhas rumo ao ocidente, contra os vizinhos de Jerusalém. Na verdade,
eles eram uma preocupação para a administração real, pois sem dúvida
encorajaram Jeoiaquim a rebelar-se contra Nabucodonosor. De qualquer
forma, o cronista diz que a primeira campanha de Nabucodonosor, depois
que sucedeu a seu pai, ocorreu em seu primeiro ano de reinado (604). Nesse
tempo, ele penetrou profundamente na Palestina e tomou Ascalom, cidade
dos filisteus. No quarto ano de seu governo (601), empreendeu uma guerra
contra faraó Neco II na fronteira do Egito, um conflito que acabou empata­
do. Mas talvez os babilónicos não tivessem sido malsucedidos, pois parece
que no caminho de volta ele tomou o reino de Judá.

Jeoiaquim e Zedequias de Judá

Em seu sexto ano (599-598), Nabucodonosor marchou rumo ao norte da


Síria, e no sétimo ano (599-597), tomou a cidade de Jerusalém das mãos de
Jeoiaquim, filho e sucessor de Joaquim (2 Rs 24.10-17). Em 15/16 de março de
597, ele estabeleceu um outro filho de Josias como o novo rei, cujo nome era
Zedequias.58 A última campanha registrada nas crônicas babilónicas foi con­
tra os elamitas. Infelizmente, as crônicas são interrompidas em 594-593 e nada
mais se sabe acerca dessas fontes babilónicas até 557-556.0 Antigo Testamen­
to fala deste histórico momento, quando Nabucodonosor toma Jerusalém em
587-586, mas as fontes extra-canónicas são completamente silenciosas.
Depois de substituir seu pai no trono de Davi, Jeoiaquim sem dúvida
manteve uma postura anti-babilônica que produziu a reação imediata de
Nabucodonosor. Com apenas três meses no poder, Jeoiaquim viu sua cida­
de cercada pelos exércitos babilónicos e rapidamente capitulou.59 A família

"edom ita", como sugerem muitos estudiosos. As hostilidades praticadas pelos


edomitas contra Arade estão descritas nas cartas daquele período, e bem podem refle­
tir, segundo Yohanan Aharoni, os anos 587 a 586 ou 600 a 598 ("Three Hebrew Ostraca
from Arad," BASOR 197 [1970]: 28).
58 B.M. 21946, invertido 11 - 13.
59 Malamat, "Last Kings," IEJ 18 (1968): 144, conclui que o cerco durou no máximo um
mês.
480 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a u l ' ~ :

real foi deportada juntamente com outros líderes e pessoas de influência,


como o profeta Ezequiel. Além disso, a nata das forças militares e os mais
habilidosos dentre o povo também foram conduzidos para o exílio. Por fim,
Nabucodonosor se serviu por mais uma vez dos tesouros do templo e le­
vou-os consigo para Babilônia, como um sinal de completo sucesso.
Embora Zedequias, que era tio de Jeoiaquim e filho de Josias, houvesse
sido deixado no governo como um rei-fantoche de Judá, está claro que o
povo de Jerusalém considerava o rei Jeoiaquim como o legítimo sucessor
do trono de Davi até o dia de sua morte.60 Nunca mais Jeoiaquim voltou
para Jerusalém, mas, depois de anos como prisioneiro político na Babilônia,
deram-lhe um benefício financeiro, e aparentemente ele passou a ser tra­
tado como um convidado na corte babilónica (2 Rs 25.27-30). Pode ser que
a comunidade judaica espalhada pelo Império Babilónico ainda sonhasse
com o retorno de Jeoiaquim, conduzindo-os de volta à terra e restaurando
a glória da antiga casa de Davi.61
Zedequias, entretanto, era o rei de facto de todo o Judá deixado na
terra em 597. Mau como foram seus irmãos, ele não atentou para as ad­
moestações do profeta Jeremias, para aceitar a soberania dos babilónicos
como a vontade de Deus para a nação. Rebelou-se contra Nabucodono­
sor, ocasionando o desastre fatal para o reino.62 Não é possível precisar
esta data (ver Ez 17.11-18), mas em 588, Nabucodonosor lançou um ata­
que contra Jerusalém, por meio de um cerco que culminou na queda da
cidade e no fim da monarquia judaica, em Julho de 586 (2 Rs 25.2-7).63
Zedequias conseguiu escapar por uma abertura na muralha da cidade e
fugiu para os lados de Jerico, mas logo foi capturado e conduzido à pre­
sença de Nabucodonosor que, na ocasião, estava alojado na Síria, na ci­
dade de Ribla. Nesta cidade, o rei de Jerusalém teve de presenciar a exe­
cução de seus filhos. Depois, vazaram-lhe os olhos e conduziram-no as­
sim para a Babilônia.

60 Albright, "Seal of Eliakim," JBL 51 (1932): 91-92. Quanto à ambivalência criada pela
existência de dois reis em Judá em sua última década, ver Martin Noth, "The Jerusalem
Catastrophe of 587 B.C. and Its Significance for Israel," em The Laws in the Pentateuch and
Other Essays (Edinburgh: Oliver and Boyd, 1966), pp. 266-80.
61 Jon D. Levenson sugere que o historiador ergue uma esperança mesmo em face do apa­
rente desespero ("The Last Four Verses in Kings," JBL 103 [1084]: 361).
62 Malamat, "Last Kings", IEJ 18 (1968): 151, associa essa rebelião à ascensão de Hofra do
Egito, em 589, um acontecimento que estimulou Zedequias a quebrar suas relações e
obrigações políticas com o governo central de Babilônia.
63 Abraham Malamat, "The Lst Years of the Kingdom of Judah", em World History of the
Jewish People, vol. 4, part 1, pp. 218-20.
E s p e r a n ç a D f. s v a n e c e n t e : A D e s i n t e g r a ç ã o d e J u d á 481

As conseqüências

Os principais prédios e residências de Jerusalém foram destruídos e


incendiados pelos exércitos de Babilônia, sob o comando de Nebuzaradã.
Arrebentaram as muralhas de defesa, e a cidade outrora magnificente
foi vista como uma ruína, incapaz de proteger os miseráveis que lá ain­
da residiam.
Todos os objetos de valor foram tomados pelos babilónicos e carrega­
dos triunfantemente como espólio de guerra. A população, com exceção
dos mais miseráveis, foi deportada irremediavelmente em massa. Somen­
te poucos, dentre eles o profeta Jeremias, puderam permanecer. Os princi­
pais líderes da nação, como o sumo sacerdote Seraías e todos os seus assis­
tentes, foram levados à presença de Nabucodonosor e sumariamente exe­
cutados. Assim Judá e Jerusalém deixaram de ser o foco especial dos olhos
do Senhor na terra. A responsabilidade de continuar a aliança estava ago­
ra sobre os exilados por todo o Mediterrâneo oriental, desde o Egito até o
Golfo Pérsico. Yahweh trabalharia com eles a fim de cumprir sua promes­
sa imutável de redenção e reconciliação. E a respeito disso todos os profe­
tas da época testemunharam.
O cronista, como habitualmente, faz uma declaração acerca do sig­
nificado teológico desses eventos catastróficos. Jerusalém caiu, apesar
dos esforços de Yahweh por meio de seus profetas, de restaurar o seu
povo. Mas eles escarneceram de suas palavras até que não mais houve
remédio senão a destruição e deportação (2 Cr 36.15,16). Havendo re­
jeitado a postura de filhos da aliança e servos de Yahweh, a comunida­
de judaica espalhada pelo cativeiro agora cumpriria o papel de escra­
vos em terra estranha. Somente quando se cumprisse o tempo da disci­
plina, o povo poderia sonhar com o retorno à sua terra. Então
reassumiria a responsabilidade de ser verdadeiramente a nação santa e
o povo de Deus.

O te s te m u n h o d o s p ro fe ta s

Nossa discussão do último século da história de Judá tem conduzido


exclusivamente à uma crítica da história política e militar daqueles dias,
mas agora é necessário analisar a questão de forma mais extensa. E claro
que os historiadores bíblicos também tentaram fazê-lo, pois selecionaram
os acontecimentos e os preservaram na forma escrita para os leitores con­
temporâneos, lembrando-se das implicações teológicas dos julgamentos
que viriam sobre a nação.
482 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T l - T-. o i

Naum

Um dos profetas mais antigos é Naum, o elcosita, cuja mensagem em


sua totalidade é uma sentença contra o Império Assírio.64 Pouca coisa se
sabe acerca de sua vida e personalidade, pois ele não faz qualquer alusão
a si mesmo, exceto na introdução do livro. Também não há qualquer outra
informação sobre ele em todo o Antigo Testamento. Sua profecia contra a
cidade de Nínive é especialmente importante porque apenas ele e Jonas
estiveram preocupados com a Assíria. Porém, diferentemente de Jonas,
onde Nínive é alvo da grande misericórdia de Deus, Naum profetiza o
iminente julgamento divino sobre a cidade.
Depois de uma pequena introdução em forma de cântico, na qual o
Senhor é descrito como o majestoso vingador (1.2-8),65 o profeta se volta
tanto para Judá como para Nínive, profetizando sobre esta uma iminente
destruição, em razão de sua idolatria e crueldade para com o povo de
Deus. Como a cidade de Tebas, Nínive também cairia e tornar-se-ia um
espetáculo para todo o mundo. Nenhuma preparação defensiva resolve­
ria, visto que a sentença já estava determinada. Sua queda seria o fim ca­
tastrófico de uma forte nação, uma chaga que, segundo as palavras do
profeta, não poderia jamais ser curada.
Embora não seja possível determinar com precisão a data do pronuncia­
mento anti-assírio, certamente já havia forças operando no mundo que eram
radicalmente contrárias ao poderio assírio. A grande cidade de Nínive caiu
nas mãos dos babilónicos em 612, mas a total ausência de referência aos
babilónicos é a prova de que o profeta não se referia necessariamente a este
povo ou influência. Por outro lado, Tebas sucumbiu em 613, um evento que
parece de alguma forma remoto ao presente de Naum. Parece que o profeta
já antevia a queda do Império Assírio antes mesmo que as forças de
Nabopolassar surgissem no cenário internacional daqueles dias. Uma boa
incursão nos últimos três anos do rei Assurbanipal (640-627) acrescentará
informações importantes para o raciocínio histórico dessa questão.
Por esse tempo, Josias, o rei de Judá impetuosamente anti-assírio, já
havia assumido o poder. Judá experimentara terrível sofrimento nas mãos

64 Quanto a uma breve discussão introdutória desses assuntos, ver Roland K. Harrison.
Introductíon to the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1969), pp. 926-30.
63 Ralph L. Smith, Micah-Malachi, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1984), pp. 72­
73. Outros estudiosos, baseados em um suposto padrão acróstico, veem o hino esten­
der-se através de 2.3. Ver, por exemplo, George Buchanan Gray, The Form ofHebrew Poetry
(London: Hodder and Stoughton, 1915), pp. 243-63. Isso, porém, requer uma emenda
muito imaginativa para ser tomada em consideração.
E s p e r a n ç a D e s v a n e c e s t e : A D e s in t e g r a ç ã o d e J u d á 483

dos assírios durante o reinado de seu avô Manassés, um fato registrado


pelo profeta Naum (2.11-13). Sem dúvida a política internacional desen­
volvida por Josias foi alvo das reprimendas e ameaças dos assírios. Uma
palavra de consolo oferecida por Naum a Judá teria sido singularmente
apropriada e encorajaria o rei Josias, que deve ter sentido uma certa inse­
gurança em face do poderio dos assírios. Há possibilidade de que Naum
houvesse atuado como um dos primeiros arautos para a reforma em Judá,
em 632, no oitavo ano do jovem monarca de Judá.

Habacuque

Menos se sabe ainda a respeito do profeta Habacuque.66 O certo é que


ele era um talentoso compositor de música (ver 3.19) assim como um pro­
feta, e que profetizou no final dos anos da história política de Judá. Sua
menção aos babilónicos é um indício claro de que eles já haviam se torna­
do independentes e ameaçadores daquela região, assim pressupondo a
ascensão de Nabopolassar ao trono de Babilônia em 626 (1.6-11). Um
terminus ad quem de 605 é praticamente certo, visto que o julgamento de
Judá parece ser totalmente no futuro.67 Por outro lado, Judá se encontra
em perigo — abundância de injustiça e falta de conserto — o que afasta
totalmente a possibilidade de que Josias governasse Judá nesta ocasião. A
descrição do declínio moral e anarquia civil parece encaixar-se mais com
os primeiros anos do rei Jeoiaquim (609-605), pouco antes de as maldades
de Judá ocasionarem a intervenção divina por meio de Nabucodonosor.
A descrição de Habacuque das hordas babilónicas é gráfica ao extremo
(1.5-11). Eles já haviam começado a conquista das nações de uma maneira
ainda não testemunhada pelo mundo antigo. Nada podia detê-los. Pareci­
am determinados a tornar-se os senhores do mundo. Além disso, eram
auto-suficientes. Habacuque sentia dificuldade em ver a Babilônia pagã e
arrogante como o instrumento de Deus para a punição de Judá e de outras
nações ao redor (1.13).
A resposta do Senhor confirma o sentimento do profeta de que aquele
povo era iníquo, pois em sua sede de conquista, derramara muito sangue
inocente. Embora Yahweh permitisse o êxito nas conquistas, os babilónicos

66 Harrison, Introduction, pp. 931-38.


67 Harrison, Introduction, p. 936, com a maioria dos estudiosos, data o livro depois de 605.
Gleason L. Archer Junior estabelece uma data em algum ponto entre 607 ou 606 a.C. A.
data desse último parece ser mais apropriada (A Survey of Old Testament Introduction
[Chicago: Moody, 1984], p. 344).
484 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T e s t a m e \~

beberiam do próprio cálice do julgamento divino. Todos os pedidos e sú­


plicas que fizessem aos seus deuses seriam inúteis, pois só Yahweh é Deus.
Satisfeito, o profeta compôs um hino em que celebra a magnificente
pessoa do Senhor e suas grandes obras na história.68 Desde o êxodo até a
conquista, Yahweh manifestou seu poderoso braço contra os inimigos, tra­
zendo grandes vitórias e salvação para o seu povo (3.1-15). Não importa o
que aconteça, canta o profeta, todas as coisas terminarão bem, pois Yahweh
é o Deus soberano.

Sofonias

O cenário da mensagem do terceiro profeta dos últimos anos de Judá


— Sofonias — é mais facilmente determinado, como também o é a identi­
dade do autor. Ele relata que pertencia à linhagem real, ou seja, era
tataraneto do rei Ezequias,69 e que profetizou durante o reinado de Josias
(1.1). A ausência de referências às reformas de Josias sugerem uma data
nos primeiros anos do reinado deste, ao invés de uma posterior à purifica­
ção do templo (622).70 Esta sugestão apóia-se na descrição do declínio moral
e espiritual de Judá. O povo se inclinava e adorava às hostes do céu, e
jurava pelo deus Moloque,71 como o fizeram nos dias de Manassés e de
Amom, e até mesmo nos anos em que Josias era ainda criança (1.4-6). Tudo
isso, diz o Senhor, seria punido no grande dia de seu juízo, que sobreviria
à nação de forma iminente e inevitável.
Mas Judá não estaria só no tempo da ira, pois havia outras nações que
também desprezaram a graça de Deus e sofreriam suas conseqüências. Os
filisteus eram os primeiros da lista (2.4-7), e de fato experimentaram a
terrível mão de Nabucodonosor em sua primeira campanha (604).72 Os
moabitas e amonitas, genealogicamente primos de Judá, e que já haviam

68 Ver especialmente a obra de William F. albright, "The Psalm of Habakkuk/' em Studies


ofOld Testament Prophecy, editado por H.H. Rowley (Edinburgh: T. & T. Clark, 1950), pp.
1-18.
69 Ver, porém, Smith, Micah-Malachi, p. 125, que argumenta que essa não poderia ser uma
referência ao rei Ezequias, visto que ele não tinha nenhum filho com o nome de Amari­
as. A objeção baseia-se na hipótese de que, se o rei Ezequias de fato tinha um filho
chamado Amarias, este seria mencionado mais à frente em algum lugar.
70 Harrison, Introduction, p. 940.
71 Para uma possível confirmação arqueológica da adoração a Moloque nesse mesmo pe­
ríodo, ver Randall W. Younker, "Israel, Judah, and Ammon and the Motifs on the Baalis
Seal from Tel el-'Umeiri," BA 48 (1985): 173-80.
72 Wiseman, Chronicles, p. 69 (B.M. 29146, 1. 18).
E spera n ça D esv a n ecen te: A D e s in t e g r a ç ã o d e J udá 485

demonstrado todo seu ódio para com a nação de Deus, também sofreriam
sua queda (2.8-11). Embora não haja evidência explícita nas fontes que
confirme estes dados, não há razão para acreditar em contrário.73
O oráculo referente aos etíopes (2.12) tem a ver com a derrota da dinas­
tia núbia, que reinou sobre o Alto Egito em Tebas. O cumprimento preciso
desta profecia é de difícil interpretação; mas, muito embora os oráculos
referentes às outras nações tratem de julgamento e punição que seriam
infligidos pela Babilônia, é provável que a tentativa de conquista do Egito
em 567 por Nabucodonosor é que esteja em vista nessa passagem.74
A queda da Assíria por meio dos babilónicos é a última da lista das
nações estrangeiras que incorreriam na ira do Deus de Judá, em vista dos
maus tratos aplicados ao povo de Yahweh (2.13-15). Na ocasião do pro­
nunciamento, Nínive ainda permanecia intocada, uma indicação de que o
ministério de Sofonias precedeu à queda em 612. Isso também confirma a
impressão de que o ministério do profeta floresceu durante os primeiros
anos do reinado de Josias, e também sugere que os outros oráculos da
série antedatam a destruição de Nínive. Esta grande cidade, proclama o
profeta Sofonias, seria completamente devastada e deixada sem habitan­
tes. De fato, a própria localização de Nínive foi esquecida pelo mundo, até
que as escavações em Kuyunjik revelaram o antigo sítio onde estava loca­
lizada a antiga cidade.75
Finalmente, Sofonias falou mais uma vez para sua própria cidade e nação,
castigando juízes, profetas e sacerdotes por sua infame desconsideração com
a lei de Yahweh (3.1-7). A despeito de seus freqüentes e dramáticos livramen­
tos concedidos a Judá, quando era afligido por seus inimigos, o povo sempre
se recusava a temer a Deus e se desviar de seus maus caminhos. Yahweh,
portanto, reuniria as nações para o julgamento, e Judá também sentiria a sua
fúria. Mas, tanto do meio dos pagãos quanto de Judá, emergiria um remanes­
cente fiel que agradaria ao Senhor e que serviria como testemunha para os
povos da terra. Mesmo os dispersos pelos cantos mais longínquos retornariam
e seriam restaurados pelo favor do Senhor Deus (3.14-20).
A linha entre o cumprimento histórico e escatológico é sempre muito
fina e difícil de discernir. Aqui em Sofonias, como em todos os profetas,

73 John R. Bartlett, "The Moabites and Edomites," em Peoples ofOld Testament Times, edita­
do D.J. Wiseman (Oxford: Clarendon, 1973), pp. 242-43.
74 Quanto ao texto, ver Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, p. 308; ver também Alan
Gardiner, Egxjpt ofthe Pharaohs (London: Oxford University Press, 1961), pp. 361-62.
75 André Parrot, Nineveh and the Old Testament (New York: Philosophical Library, 1955),
pp. 16-17.
486 H is t ó r ia d e I s r a e l x o A n t ig o Testam ent.

essa demarcação é indistinta. Porém/está claro que os juízos de Deus so­


bre Judá e sobre as demais nações ocorreram por mais de uma vez nos
tempos do Antigo Testamento, e que sempre emergiu dessas ocasiões um
povo purificado, voltado exclusivamente para a aliança mosaica e seus
termos de salvação. E igualmente correto que os juízos e processos de res­
tauração dos tempos históricos não exauriram o que os profetas tinham
em vista; pelo contrário, lançavam sobre a história a perspectiva que ain­
da estava por vir, o encontro final entre a humanidade e o Senhor, no qual
julgamento e salvação encontrariam sua última expressão.

Jeremias

Certamente a maior e mais informativa voz dentre todos os profetas da


geração pré-exílica de Judá foi Jeremias, que é significativo não apenas
como fonte histórica, mas também como interpretador teológico.76 Ele in­
troduz seu livro identificando-se como filho de Hilquias e cidadão da co­
munidade sacerdotal de Anatote (Râs el-Kharrübeh) — cidade dos levitas
que se situava para os lados do norte, nas encostas do monte das Olivei­
ras. Isto sugere que Jeremias cumpria um duplo papel: o de sacerdote,
para o qual estava qualificado por seu nascimento e treinamento, e tam­
bém o de profeta, pela virtude do chamado divino. Sobre este fato, nada
deve ser dito além de que um membro de uma família sacerdotal foi cha­
mado para profetizar. Certamente nada sugere nos escritos de Jeremias
que ele fosse um profeta de culto ou tivesse algum interesse no templo
além do que qualquer outro profeta da época.77
Felizmente, Jeremias data muitos de seus oráculos, embora a estrutura
de seu livro não esteja estritamente em ordem cronológica. Para evitar as
especulações, então, à medida que a história de Judá for sendo reconstruída
através de Jeremias, não contaremos com as passagens que não ofereçam
pistas cronológicas. Apesar disso, visto que as seções sem data também
auxiliarão a compreensão do ambiente em que viveu o profeta, uma breve
atenção será dispensada a estas passagens.
Com uma precisão incomum, logo no início o profeta determina os li­
mites cronológicos de sua profecia. A palavra de Deus lhe veio no décimo
terceiro ano do reinado de Josias, ou seja, em 627 (1.2). Seu ministério pú­

76 Para uma apreciação de Jeremias como fonte histórica, ver F. Charles Fensham,
"Nebukadrezzar in the Book of Jeremiah," JNLS 10 (1982): 53-65.
77 George Fohrer, History of Israelite Religion, traduzido por David E. Green (Nashville:
Abingdon, 1972), pp. 261-62.
E spera n ça D esv a n ec en te: A D e s in t e g r a ç ã o d e J udá 487

blico continuou por todos os reinados de Jeoacaz, Jeoiaquim, Joaquim e


Zedequias, alcançando o fim do reino em 586, e até mesmo além disto.
Portanto, ele foi testemunha dos principais acontecimentos da nação de
Judá em seus quarenta anos finais. Sabe-se que Jeremias continuou a pro­
fetizar mesmo depois do cataclísmico julgamento de Jerusalém, pois lhe
foi oferecida a condição de permanecer em Judá, ao invés de ir em cativei­
ro junto com os demais habitantes da cidade para a Babilônia. Uma vez
que sua escolha foi permanecer em Jerusalém por um tempo, ele foi para o
Egito, indubitavelmente contra sua vontade. O último acontecimento em
seu livro é o relato da libertação de Jeoiaquim da prisão, benefício conce­
dido em 562 por Evil-Merodaque, rei da Babilônia. Embora Jeremias esti­
vesse com cerca de oitenta e cinco ou noventa anos de idade, não há razão
para negar que ele pessoalmente tenha registrado suas memórias, inclusi­
ve a libertação de Jeoiaquim.
A chamada de Jeremias para o ministério profético surgiu, conforme re­
gistrado, em 627, bem depois das tentativas iniciais de Josias para reformar a
nação, mas cinco anos antes da descoberta do livro da Torá no templo e do
grande avivamento religioso que se seguiu. Isso explica o motivo das mensa­
gens iniciais de Jeremias para Judá terem sido de caráter bastante condenatório.
Ele fora chamado para falar a respeito da erradicação e destruição das nações,
incluindo Judá, e de sua futura restauração e restabelecimento (1.10). Anação
escolhida precisava ser informada de seus pecados e de suas conseqüências,
uma mensagem repugnada pelo povo, mas Jeremias, o mensageiro, seria pro­
tegido por Deus de qualquer reação violenta.
A essência do pecado de Judá era a sua deslealdade para com Yahweh seu
Deus, que a livrara do Egito, inserido-a na terra prometida. Durante todos os
anos seguintes, a nação seguiu o caminho da desobediência, abandonando o
Senhor e servindo aos deuses ou, segundo as palavras de Jeremias:

Porque o meu povo fez duas maldades:


a mim me deixaram,
o m anancial de águas vivas,
e cavaram cisternas, cisternas rotas,
que não retêm as águas (2.13).

Toda a disciplina aplicada pelo Senhor por meio da Assíria e do Egito


não fora suficiente. O povo permanecia negando o seu Deus e, como uma
mulher infiel, se unira aos seus amantes (3.1).
Mas Yahweh ainda amava seu povo e desejava que se reconciliassem
com Ele. Portanto, Ele ordenou a Jeremias que falasse uma palavra de es­
perança — não apenas para os habitantes de Judá, mas também para os
488 H i s t ó r i a d e I s r a e l n o A n t i g o T f. s t a m Z '. t :

que estavam em Israel. Esta palavra pode ter estimulado o rei Josias a
convidar os moradores de Israel para comparecer à comemoração da Pás­
coa, em 622. Mas Jeremias via uma contradição entre a mensagem de oti­
mismo e a evidente ameaça que despontava no horizonte.78 Logo Jerusa­
lém estaria cercada, e embora os profetas e sacerdotes pregassem a paz,
esta não era pressentida na realidade (8.11). Ao contrário, o que se ouvia
era o resfolegar dos cavalos inimigos (8.16).
Porém, isso não significava necessariamente uma completa aniqui­
lação, pois o Senhor graciosamente perdoaria a seu povo e manteria
suas promessas para aqueles que se arrependessem e renovassem o
pacto. Este remanescente ainda seria restaurado à sua terra em um dia
futuro, à terra que lhes fora entregue por causa da promessa que Yahweh
havia feito aos seus pais no passado (16.14,15). O cativeiro era um re­
sultado esperado, e certamente haveria muitos desastres e destruição
de todo tipo. Como um sinal daqueles tempos incertos, Jeremias foi
prevenido pelo Senhor de que permanecesse solteiro, pois qualquer fi­
lho nascido ao profeta certamente pereceria na catástrofe que aguarda­
va a nação (16.1-4). Mesmo assim, havia esperança para aquele que
confiasse no Senhor. Este sobreviveria e permaneceria de pé no dia da
vingança e da ira do Senhor Deus (17.7,8).
A maior parte dos capítulos 1 a 17 do livro de Jeremias ocorre durante
o reinado de Josias, provavelmente antes da restauração do templo e da
descoberta do rolo da Torá, em cerca de 622.79 A mensagem é quase toda
de condenação e julgamento, sugerindo que não houvera qualquer tipo
de arrependimento nacional. É justo admitir que a mensagem de juízo
iminente sobre Judá causou forte impacto sobre Josias que, aconselhado
pelo profeta, empregou as medidas necessárias para a reforma, conforme
registrado nas fontes históricas. Embora a reforma não houvesse sido pro­
funda nem seus resultados permanentes, como parecem indicar as cele­
brações públicas, de forma alguma o ministério de Jeremias foi em vão em
seus primeiros anos.
Uma vez que não há marcos cronológicos específicos, não há meio de
determinar se as palavras de Jeremias, entre 622 e a sucessão de Jeoiaquim,

78 Edwin M. Yamauchi identifica o inimigo do norte como uma combinação de caldeus e


citas, a presença do último sugerida pelos artefatos de guerra característicos dos citas,
os quais foram achados na Palestina ("The Scythians: Invading Hordes from the Russian
Steppes," BA 46 [1983]: 90-99).
79 Não se pode deduzir com isso que os capítulos 1 a 17 representam uma unidade literá­
ria independente. Quanto ao complexo arranjo do livro de Jeremias, ver a obra de John
Bright, Jeremiah, Anchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), pp. lv.lxxxv.
E sperança D esvanecente: A D esintegração de J udá 489

em 608, estão registradas em seu livro. Já se definiu que os capítulos 1 ao


17 estão diretamente ligados aos primeiros anos do rei Josias. Também
deve se destacar que quase todos os capítulos restantes podem ser, de al­
gum a maneira, associados a um período depois de 609. Isto fortemente
sugere que os anos entre 622 e 608 foram relativamente estáveis; anos de
paz e renovação espiritual, não havendo necessidade de uma palavra pn>
fética de julgamento.
A situação transformou-se radicalmente após 609, quando o filho ma­
lévolo de Josias, Jeoiaquim, assumiu o poder. Quase imediatamente vê-se
o retorno do ministério profético e público de Jeremias. A evidência mais
antiga está no capítulo 26, onde Jeremias recebe uma palavra de Yahweh
"no início do reinado de Jeoiaquim". Logo Jeoacaz e Jeoiaquim conduzi­
ram Judá para a infidelidade espiritual. Jeremias respondeu à crise, ad­
vertindo que Jerusalém seria destruída como a famosa Siló, caso não se
arrependesse a tempo, pois os profetas de Deus já vinham falando com a
nação (26.9). Alguns do povo exigiram que Jeremias fosse executado por
causa de sua mensagem impopular. Outros pediam que ele fosse poupa­
do como fora Mica, nos dias de Ezequias, e que sua mensagem fosse rece­
bida como uma advertência de Deus para o povo. Embora o segundo gru­
po prevalecesse e Jeremias fosse deixado livre, outro profeta, Urias, não
tão afortunado, teve de pagar com a vida por seu testemunho intrépido
da verdade (26.20-24).
No ano em que Nabucodonosor veio pela primeira vez a Jerusalém e
exigiu de Jeoiaquim o pagamento de tributos (605), Jeremias registrou
muitos acontecimentos importantes. Os dados cronológicos precisos que
o profeta inclui em seu relato indicam que a cidade já tinha caído e
Jeoiaquim estava tecnicamente sob o controle dos babilónicos. Mas, ainda
assim, a cidade permanecia intacta e seus habitantes sofreram bem pouco.
Esta foi a causa do otimismo e do descaso para com os sinais de alerta
emitidos pela primeira incursão babilónica.
Portanto, Jeremias pronunciou um juízo ainda maior (cap. 25). Ele
vinha anunciando a palavra do Senhor ao povo por vinte e três anos,
sem qualquer resultado satisfatório. Por isso o castigo seria a aproxi­
mação de Nabucodonosor, que dessa vez causaria uma completa des­
truição e um cativeiro de setenta anos para a população de Judá (25.11).
A nação, por outro lado, não seria a única a experimentar o castigo de
Deus, mas todas as nações vizinhas também sofreriam os duros golpes
desferidos pela máquina de guerra babilónica. Os detalhes da conquis­
ta estão contidos nos capítulos 46 a 49. O Egito, mencionado em pri­
meiro lugar (46.2-28), fora recentemente hum ilhado na batalha de
490 H istória dl I srael no A rtigo T estami. \■

Carquemis. Este, no entanto, foi apenas o início dos problemas, pois


Nabucodonosor não ficaria satisfeito enquanto a cidade de Mênfis não
fosse completamente arrasada e Tebas trazida para debaixo da autori­
dade e controle babilónicos. Tudo isso Nabucodonosor conseguiu em
cerca de 567.
Os filisteus também conheceram a ira de Deus (47.1-7). Antes de Neco
II, do Egito, atacar a cidade de Gaza em sua campanha militar de 609,
Jeremias já havia profetizado que cinco cidades dos filisteus seriam víti­
mas de conquistas militares que sobreviriam repentinamente do norte. A
palavra se cumpriu na campanha de Nabucodonosor em seu primeiro ano
de reinado, em 604.
Moabe (48.1-47), Amom (49.1-6) e Edom (49.7-22), embora estivessem
relacionados por parentesco com Judá, também não escapariam ao juízo.
A águia babilónica voaria rasante e se apoderaria de sua presa, consumin­
do-lhe a carne, deixando os ossos à vista. Mesmo assim, o Senhor não
permitiria que Moabe e Amom desaparecessem da terra. Mas, a respeito
de Edom, este jamais se recuperaria, perdendo seu lugar na terra, como
Sodoma e Gomorra.
Finalmente, os pronunciamentos de juízo alcançaram as cidades de
Damasco, Quedar e Hazor, que também conheceriam o forte martelo do
império babilónico (49.23-33). As cidades seriam devastadas e deixadas
em pó, e sua população seria espalhada pelos quatro ventos. Sua constan­
te recusa em servir o Deus de Israel e obedecer seus estatutos, pela medi­
ação de sua graça através do povo escolhido, certamente resultaria em
irremediável julgamento.
Também no quarto ano de Jeoiaquim, o Senhor ordenou a Jeremias que
escrevesse todos os juízos concernentes a Judá e às demais nações em um
livro. Segundo o registro bíblico, o escrivão Baruque escrevia as palavras
à medida que Jeremias as proferia, utilizando um rolo de manuscrito (cap.
36). Provavelmente isto aconteceu depois de Nabucodonosor submeter
Jerusalém, pois o rolo continha os julgamentos que Jeremias pronunciou
depois que o rei Jeoiaquim capitulou. O primeiro dos julgamentos — so­
bre o Egito — foi, como já visto, liberado depois da batalha de Carquemis.
Baruque tomou o rolo de manuscrito e leu-o diante do templo no nono
mês do quinto ano de Jeoiaquim, o qual havia sido proclamado como um
dia de jejum (Jr 36.9,10).80

80 Bright, Jeremiah, p. 182, indica que esse foi o mesmo mês em que os exércitos babilónicos
saquearam a cidade de Ascalom. O jejum promulgado em Judá pode ter sido feito exa­
tamente por causa do ataque.
E sperança D esv a n eceste: A D esintegração de J udá 491

O conteúdo do manuscrito perturbou sobremaneira o rei, dado as conde­


nações nele contidas, de maneira que tomou o livro e rasgou-o em várias
partes. Em seguida, queimou-o num braseiro que ficava diante de seu trono.
Era a prova de que Jeoiaquim não temia aquelas palavras. A razão para o
desprezo pode estar no fato de ele não haver sido propriamente infligido
pelos babilónicos, embora Nabucodonosor lhe tivesse exigido um pesado tri­
buto e deportado um número de prisioneiros importantes. Certamente ele
sentia que desfrutava de proteção em virtude de ser um vassalo da Babilônia.
Mesmo assim, a palavra profética era insistente: Jerusalém cairia sob
julgamento divino e seu povo seria espalhado pelos confins da terra. E
como evidência de que tais palavras não falhariam, Jeremias laboriosa­
mente ditou mais uma vez o conteúdo do livro para o escrivão Baruque.
Desta vez a mensagem dirigiu-se especificamente para o rei Jeoiaquim.
Sua família nunca mais se assentaria no trono de Davi, e ele mesmo mor­
reria e seu corpo seria exposto ao calor de dia e à geada de noite, em razão
de sua desobediência (36.30).
A única mensagem de Jeremias claramente endereçada a Joaquim, fi­
lho de Jeoiaquim, está registrada no capítulo 22, cujas palavras tratam da
rejeição de Jeoiaquim e de sua linhagem. A data deste oráculo provavel­
mente ocorreu após a morte de Jeoiaquim. Após uma palavra introdutória,
em que o jovem monarca é incitado a voltar-se para Yahweh, Jeremias
lembra-lhe que a ambição e a política de auto-suficiência promovida por
seu tio Jeoacaz e seu pai Jeoiaquim resultaram em exílio e em violentas
mortes. Caso não procurasse fazer melhor — e Jeremias certamente é pes­
simista nesta questão —, o jovem rei também experimentaria o mesmo
fim trágico. Joaquim seria conduzido para a Babilônia como um troféu, e
nunca mais retornaria para sua terra. E ainda seus filhos nunca se assenta­
riam no trono de Davi (22.24-30). A história confirma o cumprimento das
palavras do profeta Jeremias. Mas a dinastia de Davi não deixou de ter um
representante no trono, um descendente legítimo, que o próprio Deus pre­
servara para validar suas promessas. Este descendente viria da linhagem
de um outro filho de Davi, Natã, ao invés de Salomão.81 Jesus, filho adoti­
vo de José, descendente de Jeoiaquim, foi concebido no ventre de Maria,
que era descendente de Davi, mas não dos reis de Judá que o sucederam.

81 Marshall D. Johnson, The Purpose of Biblical Genealogies (Cambridge: Cambridge


University Press, 1969), pp. 243-49. Devo esta referência e sua profunda significação
ao colega Darrel Bock. Ver também Eugene H. Merrill, "1 Chronicles,'' em The Bible
Knowledge Commentary, editado por John F. Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.:
Victor, 1985), vol. 1, p. 595. '
492 H istória de I srael no A ntigo T estam en d -

Logo no início do reinado de Zedequias, no ano 593 (27.1; cf. 28.1), Jere­
mias reiterou a mensagem de julgamento sobre a nação de Judá e seus
vizinhos (caps. 27—28), dizendo que Nabucodonosor viria, e que seria
completamente inútil resistir-lhe de qualquer forma. A única prudência
seria submeter-se às suas ordens. Porém, havia outras vozes proféticas em
conflito com a de Jeremias, as quais diziam que o exílio logo terminaria e
Joaquim retornaria para Jerusalém, trazendo os artigos do templo que fo­
ram roubados e levados para a Babilônia em 605 e em 597. Uma dessas
vozes, um profeta chamado Hananias, filho de Azur, declarava nitidamente
que o retorno ocorreria em um prazo máximo de dois anos (28.3,4). Antes
deste tempo, Hananias já estava morto e, após cumprir-se o período, pôde-
se comprovar que suas palavras eram mentirosas e as de Jeremias, verda­
deiras. O cativeiro duraria setenta anos.
Por esse tempo, Jeremias escreveu duas cartas, uma endereçada aos
que estavam no cativeiro (29.4-23), e outra composta em forma de oráculo
profético contra a Babilônia (caps. 50-51). A primeira foi enviada aos cati­
vos por uma delegação que fora despachada pelo rei Zedequias a fim de
ter uma audiência com Nabucodonosor. A segunda, por meio de uma de­
legação que incluía o próprio Zedequias. O motivo de tais viagens não é
esclarecido, embora seja possível que estivessem relacionadas com a apre­
sentação anual dos tributos ao rei de Babilônia.82
De qualquer forma, a carta continha instruções para que os cativos se
estabelecessem na terra de seus dominadores e, pacientemente, esperas­
sem pelo momento do retorno, que se cumpriria somente após os setenta
anos indicados na profecia. As condições de existência favoráveis são evi­
dentes, pois o profeta instrui o povo a casar-se, ter filhos, constituir casas
e negócios, submetendo-se às autoridades babilónicas. Dificilmente ele fa­
lava a prisioneiros de guerra perecendo em campos de concentração. O
profeta menciona que Zedequias, o atual ocupante do trono, em pouco
tempo não mais ali estaria, e qualquer vestígio do antigo reino do sul sim­
plesmente iria desaparecer. Para eles, o futuro consistia em viver na
Babilônia, não mais em Jerusalém, embora a situação não fosse definitiva,
pois Deus, em seu próprio tempo, os traria de volta para a terra.
O julgamento da Babilônia (caps. 50—51) é descrito em termos grá­
ficos como um colapso meteórico de um império magnífico, infligido
pelos inimigos que se levantaram do norte. A queda seria o fator fun­
damental para o retorno dos filhos de Israel, e também uma lição, para
que pudessem perceber, como a Assíria, que a Babilônia servira aos

82 Bright, Jeremiah, p. 211.


E sperança D esvanecente: A D esintegração de J udá 493

propósitos de disciplina do Senhor concernentes a Israel e Judá. Os


Medos e seus aliados reduziriam a cidade a cinzas, e sua própria loca­
lização seria completamente esquecida. Para simbolizar o fato, Jeremi­
as ordenou ao mensageiro responsável por entregar o texto escrito do
o rácu lo q u e o le s s e em p ú b lic o na B abilônia. D epois, e le d ev eria am ar­
rar ao escrito uma pedra e atirá-lo no rio Eufrates. Assim como afun­
dou a pedra no interior das escuras águas, Babilônia desapareceria no
mar das nações (51.63,64).
O crescimento dos egípcios e sua influência na primeira década do sex­
to século começou a causar uma mudança no equilíbrio do poder no Ori­
ente Médio. O rei Zedequias, um relutante servo da Babilônia, quebrou
seu tratado de submissão a Nabucodonosor em 588, ocasionando a imedi­
ata retaliação. Mesmo quando os exércitos da Babilônia estavam em mar­
cha para o oeste, Jeremias proclamou, na parábola do vaso e do oleiro
(cap. 18) e do vaso quebrado (cap. 19), que o fim de Judá estava próximo.
Como fora dito na parábola, Jerusalém seria quebrada e esmagada, e se
tornaria um objeto de refugo.
A intrepidez do profeta Jeremias e sua aparente tentativa de enfraque­
cer a moral de Judá custou-lhe uma noite de prisão (cap. 20). Mesmo liber­
tado no dia seguinte, o preço que começava a pagar — seu estresse físico e
psicológico — levara-o a questionar seu chamado e mensagem. Como ele
podia pregar submissão aos exércitos estrangeiros se, nas horas de maior
crise nacional, os profetas instigavam as autoridades e o povo a confiarem
exclusivamente em Deus como aquEle que os libertaria de toda opressão?
O rei e o povo também faziam a mesma pergunta. Se de fato os babilónicos
estavam chegando, não deveria o profeta orientá-los a resistir no poder de
Deus, em vez de miná-los com uma mensagem de rendição incondicio­
nal? Quando o rei Zedequias pediu conselhos a Jeremias, tudo o que ou­
viu foi que devia render-se aos babilónicos. E a razão era simples: Deus
determinara a destruição da cidade e nada poderia ser feito para alterar o
veredicto. A oposição humana aos decretos de Deus fatalmente conduzira
a trágicas conseqüências.
No meio do cerco a Jerusalém, parecia por um tempo que os falsos
profetas estavam certos e Jeremias errado, pois Hofra, do Egito, chegou na
terra e forçou Nabucodonosor a voltar-se para a retaguarda de seus exér­
citos (37.11).83 Com os babilónicos temporariamente afastados, a cidade
pôde respirar com mais alívio. Até mesmo Jeremias aproveitou a situação
para deixar a capital e resolver negócios em sua terra, Benjamim. Mas na

83 Malamat, "Last Kings," IEJ 18 (1968): 152, data esse episódio na primavera de 587.
494 H istória df I srael no A ntigo T estamen t :'

ocasião ele foi acusado de estar fugindo para os caldeus, sendo por isso
lançado no calabouço (37.15). O mal se tornaria ainda pior: os rumores de
que Jeremias era um adido dos caldeus em Jerusalém resultou em seu
encarceramento num poço de lamaçal onde certamente pereceria, não fos­
se a intercessão do etíope Ebede-Meleque (38.7-13).
Ainda na prisão, Jeremias ofereceu seu último conselho a Zedequias: ren­
der-se, para que ele, a família, e toda a cidade fossem poupados da morte e
devastação (38.17-23). Zedequias quase foi persuadido. Mas o orgulho de
sua posição e a necessidade de manter a coragem em face de certa calami­
dade impediu que acedesse às palavras do homem de Deus. Tal pertinácia
contra a verdade causou a destruição do rei e de todo o povo.
Em 587, um ano antes da queda de Jerusalém, Hananeel insistiu com
Jeremias (seu primo) para que comprasse dele um campo em Anatote (32.6­
15). Certamente porque se fosse levado para o cativeiro, Jeremias poderia
guardar aquele pedaço de terra. Conforme a direção de Deus, Jeremias
concordou em comprar o campo, e chamou o escrivão Baruque para subs­
crever a escritura da compra. Depois guardou-a em um jarro de barro, a
fim de que fosse preservada por muitos dias, até o final do cativeiro, e
seus herdeiros pudessem requerê-la em dias vindouros.
A atitude de Jeremias era um testemunho da promessa de Yahweh de
trazer de volta seu povo e instaurar uma nova aliança (32.37-41). Yahweh
mesmo tomaria a iniciativa de suscitar dentre seu povo um remanescente
com um novo coração, uma nova disposição para amá-lo e obedecer-lhe.
Certamente a terra ainda desfrutaria de abundância e bênção. Do meio da
devastação, surgiria uma nova cidade e um novo país, cheios de vida e
esperança. A antiga promessa feita por Deus de que sempre haveria des­
cendente que se assentasse no trono de Davi iria vigorar para sempre (33.14­
18). Na verdade, a situação presente não podia ser comparada com o glo­
rioso futuro já preparado. Seriam dias de restauração, em que Yahweh
cumpriria o seu plano redentor para Israel e todas as nações da terra.
Finalmente chegara o dia do julgamento predito por Jeremias e seus com­
panheiros profetas. As muralhas de Jerusalém foram rompidas e os exércitos
caldeus ocuparam a cidade. Zedequias tentou escapar furtivamente da morte
e do cativeiro, mas foi alcançado e conduzido à presença do rei da Babilônia.
Lá teve seus olhos vazados e foi conduzido cego e escravo para a capital do
Império. Jerusalém foi despojada de todos os seus ricos tesouros e queimada
a fogo (39.1-10). Enquanto isso, Jeremias foi libertado e não seguiu com os
exilados para a Babilônia, pois obteve o direito de escolher ir para o cativeiro
ou ficar em Jerusalém. O profeta, mesmo após essa devastação, ainda presen­
ciaria acontecimentos terríveis e até mesmo seria envolvido em um deles.
E sperança D esvaneceste : A D esintegração d e J udá 495

Antes dos babilónicos partirem e deixarem a região, escolheram um


homem chamado Gedalias, um judeu a favor dos caldeus, para governar
os pobres deixados na terra (40.7). Ele se estabeleceu politicamente em
Mispa e de lá administrava os negócios de Judá segundo as determina­
ções do governo babilónico. Mas nem todos estavam satisfeitos com a si­
tuação e, dentro de pouco tempo, uma conspiração foi instigada por Ismael,
filho de Netanias, contra a autoridade de Gedalias. Ismael representava
os interesses de Baalis, rei dos Amomitas,84 que aparentemente estava
enciumado ou talvez temeroso acerca da possibilidade de surgir um esta­
do judeu semi-independente, pois já havia uma forte atração para que os
judeus espalhados pelas nações vizinhas voltassem para sua terra.85
Quando um oficial do exército judeu, cujo nome era Carea, tomou ci­
ência da conspiração, imediatamente propôs ao governador a eliminação
de Ismael (40.13-15). Mas Gedalias não lhe deu crédito. Após alguns me­
ses, Ismael e alguns companheiros foram recepcionados pelo governador
em Mispa, quando subitamente o mataram, assim como a alguns oficiais e
soldados babilónicos presentes (41.1-3). Ismael levou os prisioneiros dire­
tamente para Amom, mas antes mesmo de ultrapassar Gibeom, foi inter­
ceptado por Joanã e seus homens, que conseguiram libertar os prisionei­
ros. Porém, Ismael escapou e fugiu para os termos de Amom. Joanã partiu
em direção do Egito, pois acreditava que Nabucodonosor, furioso, man­
daria destruir o que restava de Judá. Imaginou que o rei da Babilônia o
culparia pela morte de seus soldados e do governador estabelecido na
recém-formada província dos caldeus (41.16-18).
No caminho, partidários de Joanã se encontraram casualmente com o
profeta Jeremias, e angustiados lhe pediram que intercedesse por eles a
Deus, e que lhes desse alguma orientação naquele momento. Jeremias lhes
declarou que deviam ficar na terra. Os babilónicos não os incomodaria,
pois Yahweh cuidaria deles. Caso partissem para o Egito, sofreriam a es­
pada e a fome (cap. 42).
Joanã, apesar disso, desconsiderou a palavra do profeta e partiu para o
Egito, levando membros da família real que haviam sido deixados na terra
sob os cuidados de Gedalias. Até mesmo Jeremias foi obrigado, juntamente

84 Para uma nova e importante confirmação desse nome, ver Larry G. Herr, "The Sarvant
of Baalis," BA 48 (1985): 169-72. Henry O. Thompson e Fawzi Zayadine identificaram
anteriormente Baalis (corretamente) como o filho de Aminadabe que tem seu nome numa
inscrição cunhada em uma garrafa de Tel Siran ("The Works of Amminadab," BA 37
[1974]: 13-19).
85 Bartlett, "Edom and the Fall of Jerusalem," PEQ 114 (1982): 18-19.
496 H istória de I srael no A ntigo T estamento

com Baruque, a segui-los em direção sul, até que, por fim, chegaram a Táfnes
(Tel Dafanneh), no nordeste do Delta (43.1-7).86 Neste local, Yahweh reve­
lou a Jeremias que Nabucodonosor construiria um toldo real exatamente no
local escolhido pelos judeus para se refugiarem. A destruição que viria so­
bre o Egito também atingiria os judeus que para lá se refugiaram.
Jeremias preparou uma mensagem para circular entre todos os judeus
que habitavam no Egito. Eles já haviam assimilado o estilo de vida egíp­
cio, incluindo o sistema religioso, e assim negaram sua identidade como
filhos da aliança com Yahweh. Então, sofreriam as conseqüências de seus
atos, da mesma forma que seus ancestrais. A comunidade judaica do Egi­
to seria destruída, com exceção de um pequeno rebanho que voltaria para
a terra (44.1-14).
Novamente, a palavra profética foi desprezada. Ao invés de se volta­
rem para o Senhor, os judeus do Egito votaram fidelidade aos deuses pa­
gãos, atribuindo-lhes o mantimento e a proteção (44.15-19). Com resigna­
ção, Jeremias profetizou que o Egito sofreria a ira de Deus por suas ofen­
sas. Ofra (Apries), o governante na ocasião (589-570), seria entregue aos
inimigos estrangeiros, e a aparentemente proteção dos judeus simples­
mente ruiria diante de seus próprios olhos (44.30).
A história de Jeremias se encerra neste ponto (c. 585), com exceção da
nota concernente à libertação de Jeoiaquim no ano 562. Na ausência de
documentos que provem o contrário, parece provável que Jeremias tenha
passado o resto de seus dias no Egito, vivendo entre a comunidade ali
estabelecida. Não se sabe por que ele não registrou os acontecimentos de­
pois de 585. O que se pode imaginar é que ele manteve contato com os
judeus espalhados pelo mundo, como atesta a referência à libertação do
rei Jeoiaquim.

86 Para uma confirmação dos relatos históricos e geográficos do profeta Jeremias com res­
peito aos acampamentos judaicos no Egito, ver Eliezer D. Oren, "Migdol: A New Fortress
on the Edge of the Eastern Nile Delta," BASOR 256 (1984): 31-32.
0exílio e o primeiro
mo no
Uma visão panorâmica
Os estágios das deportações
A vida na diáspora
O retorno do exílio
A situação m undial durante o exílio
O declínio e a queda âo Império Babilónico
As origens do Império Persa
O povo judeu durante o exílio
£m Judá
Em Babilônia
A visão de Ezequiel
A visão de Daniel
No Egito
A situação mundial durante o período da restauração
Cambises II da Pérsia
Dario Histapes da Pérsia
O prim eiro retorno
Ciro como um agente de Yahiveh
Sesbassar, o líder do retorno
O número dos que voltaram
Problemas decorrentes do retorno
A influên cia benéfica dos profetas
Ageu
Zacarias

U m a v is ã o p a n o râ m ic a

Os estágios das deportações

A primeira vez que Jerusalém submeteu-se ao poderio de Babilônia foi no


ano 605 a.C, o marco inicial para a contagem dos setenta anos preditos pelo
profeta Jeremias. Um período encerrado com a queda e rendição da cidade de
Babilônia em 539.1 Os longos anos em que a elite política, militar e religiosa
de Judá esteve longe de sua terra são popularmente conhecidos como o exílio
na literatura moderna, um termo singularmente apropriado, um vez que não

1 John Bright, feremiah, Arvchor Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1965), pp. 16—61.
Este é obviamente um número aproximado, visto que o cativeiro foi, de fato, apenas de
sessenta e seis anos, mas o número é bem aproximado ao do profeta Daniel (Dn 9.1,2). A
referência aos setenta anos em Zacarias 1.12 e 7.5 se aplica a um período diferente, ou
H h H i R i í i ,E 1 ' r:. ■L A - . T r ■T l - 7 E E

apenas sugere a remoção forçada da população de judeus para a Babilônia,


como também comunica a ausência de Yahweh durante o processo. A tragé­
dia do exílio não pode ser interpretada como apenas a deportação de um
povo para outra terra, ou a destruição de uma cidade e seu santuário central.
Na verdade, Deus havia se retirado do meio de seu povo, uma ausência sim­
bolizada por uma das visões de Ezequiel, na qual a Shekinah movia-se do
templo para o monte das Oliveiras (Ez 11.23). De certa forma, portanto, o fim
do cativeiro dos judeus em 539-538 não pode ser sinônimo do exílio, porque
Yahweh não retornou na ocasião para habitar no templo. Pelo contrário, os
profetas predisseram que seu retorno aconteceria apenas na era escatológica,
quando o próprio Messias seria a glória de Deus (Ag 2.7-9).
A primeira fase do exílio de Judá foi simultânea com a ascensão de
Nabucodonosor (605-562) ao trono de Babilônia. Este jovem príncipe, der­
rotando os egípcios na batalha de Carquemis em 605, foi, mediante a ines­
perada morte de seu pai, obrigado a abandonar o propósito de expulsar
os egípcios da Palestina. Mesmo assim, no caminho de retorno, Nabuco­
donosor saqueou Jerusalém, conduzindo muitos judeus em cativeiro para
a capital do Império.2 Deixou no trono de Judá o rei Jeoiaquim, que veio a
rebelar-se, forçando o retorno de Nabucodonosor em 601. Também em
597 ele retornou, depois que Joaquim, filho de Jeoiaquim, subiu ao trono.
Nabucodonosor enviou-o para o exílio, onde permaneceu até a morte. En­
quanto isso, Zedequias, irmão de Jeoiaquim, foi estabelecido no trono de
Judá. Também esta ação foi malsucedida, pois Zedequias era instável e de
pouca confiança. Assim, Nabucodonosor decidiu retornar para Jerusalém,
desta vez para destruí-la completamente, carregando consigo a nata da
sociedade israelita para o cativeiro (586).

A vida na diáspora

Permaneceu esta situação até que ascendeu ao poder o imperador Ciro,


que em 538 promulgou um decreto de libertação.3 Sendo assim, a maior

seja, entre a destruição do templo (586) e sua reconstrução (515). Ver David L. Petersen.
Haggai and Zechariah 1-8 (Philadelphia: Westminster, 1984), p. 149; Petersen, porém, pre­
fere as datas de 590-520.
2 O silêncio nos registros da Babilônia com respeito ao cerco de Jerusalém em 605 (ver Dn
1.1) não é suficiente para provar a inexistência de tal acontecimento. Ver D.J. Wiseman.
"Some Historical Problems in the Book of Daniel," em Notes on Some Problems in the Book
of Daniel, editado por D.J. Wiseman et al. (London: Tyndale, 1965), p. 18.
2 Quanto à conquista de Babilônia e aos eventos que a conduziram, ver A.T. Olmstead.
History of the Persian Empire (Chicago: University of Chicago Press, 1948), pp. 49-58.
O E xílio e o P rimeiro R etorno 499

parte do exílio foi vivida entre os anos 586 a 538. Há poucos dados, quer
nas fontes bíblicas quer não, a respeito das condições da Palestina durante
esse período, embora a evidência aponte para um profundo pessimismo
por toda a parte.4 Os judeus exilados que, antes ou depois das deporta­
ções feitas por Nabucodonosor, decidiram partir para o Egito (novamente
as fontes são escassas) tiveram uma condição aparentemente melhor, ape­
sar de ficarem confinados a um único lugar, Elefantina.5
Entretanto, é possível identificar melhor o cotidiano dos cativos na
Babilônia. A literatura bíblica contém indícios de a vida lá era agradável,
e o povo ajustou-se rapidamente ao novo local.6 Estas conclusões são
confirmadas por algumas placas de escrito cuneiforme que testificam
acerca da vida dos judeus.7 Yehezkel Kaufmann argumenta que não há
evidência de anti-semitismo entre os babilónicos e que, de fato, os ju ­
deus desfrutavam de bem-estar econômico e até mesmo assumiam altos
postos políticos.8

4 Ver William E Albright, The Biblical Period from Abraham to Ezra (New York: Harper,
1963), p. 84-87. Quanto a algumas sugestões acerca da organização política, ver Sean E.
McEvenue, "The Political Structure in Judah from Cyrus to Nehemiah," CBQ 43 (1981):
353-64.
5 Bezalel Porten, Archives from Elephantine: The Life of an Ancient Jewish Military Colony
(Berkeley: University of California Press, 1968). Quanto aos acampamentos espalhados
no Egito, ver em Elizer D. Oren, "Migdol: A New Fortress on the Edge of the Eastern
Nile Delta," BASOR 256 (1984): 35-36.
6 Por exemplo, Jeremias 29.4-7; Ezequiel, 33.30-32. Para uma visão contrária, ver J.M.
Wilkie, "Nabonidus and the Later Jewish Exiles," JTS 2 (1951): 36-44.
7 Esses consistem em documentos de Murashu e outros materiais discutidos em Michael
D. Coogan, "Life in the Diaspora: Jews at Nippur in the Fifth Century B.C.," BA 37
(1974): 6-12. Esses materiais foram originalmente publicados por Hermann V. Hilprecht
e Albert T. Clay, Business Documents of Murashu Sons of Nippur Dated in the Reign of
Artaxerxes I (464-424 B.C.i. Babylonian Expedition 9 (Philadelphia: University of
Pennsylvania, 1898).
8 Yehezkel Kaufmann, History of the Religion of Israel, vol.4, caps. 1-2, The Babylonian
Captivity and Deutero-Isaiah (New York: Union of American Hebrew Congregations,
1970), pp. 9-11; ver também Julian Morgenstern, "The Message of Deutero-Isaiah in
Its Sequential Unfolding," HLICA 29 (1958): 5-6. Evidência de um tratamento ainda
mais especial dos judeus é visto no caso de Jeoiaquim, que recebeu uma pensão real
por Evil-Merodaque; ver William F. Albright, "King Jehoiachin in Exile," em The Biblical
Archaeologist Reader, editado por David Noel Freedman e G. Ernest Wright (Garden
City, N.Y.: Doubleday, 1961), vol. 1, pp. 106-7. Coogan, "Life in the Diaspora," BA 37
(1974): 9-10, sugere que "não existem indícios de discriminação ou de restrição religi­
osa ou de qualquer outra espécie de preconceito étnico. Os judeus estavam engajados
nas mesmas formas de contrato, participavam das mesmas taxas de juros como os
O E xílio e o P rimeiro R etorno 5 01

De qualquer forma, está claro que na época do decreto de Ciro, a maio­


ria dos judeus exilados pertencia a uma geração que não conhecia a sua
pátria. Tinham nascido no exílio e, embora sonhassem com Jerusalém, eram
o povo da Babilônia. A geração mais antiga e os idealistas ansiavam por
retornar ao lar, mas é fato notório que Sesbassar, Zorobabel e outros líde­
res do retorno aparentemente não conseguiram um grande número de
judeus para acompanhá-los à pátria. Obviamente isto não é difícil de com­
preender, visto que em Babilônia eles eram relativamente prósperos, sen­
do doloroso reiniciar a vida em uma terra de morte e cinzas. Mas o princi­
pal ponto aqui é a grande adaptação e assimilação do povo. Como outros
refugiados e povos deportados, os judeus demonstraram a flexibilidade
da psique humana, não apenas permanecendo na terra, mas permitindo a
terra penetrar-lhes.
Argumentar que os judeus, comprometidos com a comunidade e a
tradição como eram (e são), poderiam viver sob condições relativamente
favoráveis no exílio babilónico e não absorver sua cultura é assumir uma
tenacidade resoluta ou um isolamento rígido opostos ao que é conheci­
do acerca de Judá no exílio. Os judeus, sempre um povo de fácil adapta­
ção e até mesmo coesivo, têm historicamente demonstrado um desejo e
uma habilidade para serem bons cidadãos em qualquer local onde habi­
tem. Isso se estende ao serviço militar, educação, cultura e, não menos, à
linguagem. É ilegítimo e contrário às evidências assumir que os judeus
cativos da Babilônia, quer por coerção quer por escolha, tenham se isola­
do física ou intelectualmente. Eles absorveram profundamente o estilo
da sociedade em que viviam, e ainda assim retiveram a apreciada fé,
vida e tradições de seus ancestrais.9 Mais particularmente os profetas
Isaías e Ezequiel revelaram uma consciência dessas duas realidades —
os antigos caminhos dos antepassados e o novo mundo de que partici­
pavam, cujas imagens, metáforas e padrão de vida serviriam aos santos
propósitos de Deus.10 Eles falaram a um povo que estava imerso na cul-

seus vizinhos contemporâneos não-judeus de Nippur." Embora as circunstâncias des­


critas por Coogan reflitam a vida dos exilados um século depois, não existem razões
para sentir que havia diferenças apreciáveis no tratamento daqueles que moraram
naquele local no sexto século.
9 Arthur J. Zuckerman, "The Coincidence of Centers of Jewry with Centers of Western
Civilization," em Shivím: Essays and Studies in Honor oflra Eisenstein, editado por Ronald
A. Brauner (New York: Ktav, 1977), pp. 99-116.
10 A consciência de Ezequiel a respeito da Babilônia veio, é claro, pelo fato de ser ele uma
testemunha ocular e participante do cativeiro, enquanto Isaías profetizou acerca de tais
coisas especialmente nos capítulos 40—55; ver Eugene H. Merrill, "The Language and
H h =

tuia local. Como melhor poderiam comunicar os eternos propósitos de


Deus para o seu povo, assim como para a Babilônia, que não no próprio
idioma tão familiar? Deveríamos esperar dos profetas algo além de que
eram homens da mesma época, que falavam para sua comunidade em
linguagem que pudesse ser entendida pelo povo? A língua certamente
era hebraica, mas o hebraico notado em toda parte estava permeado de
sutis diferenças léxicas e literárias, cuja fonte não foi outra senão a influ­
ência cultural e religiosa sofrida na Babilônia.

O retorno do exílio

No tempo de Deus o exílio chegou ao fim e o processo de retorno teve


início, embora não sem obstáculos. Nabucodonosor morreu em 562, um
fato que precipitou a queda do Império Babilónico e abriu caminho para
Ciro, rei dos Persas. O filho e sucessor de Nabucodonosor, Evil Merodaque,
assumiu as rédeas do império em 562-560,11 e deu provas de sua total ine­
ficiência. É conhecido como o responsável por soltar Jeoiaquim da prisão
e prover-lhe uma pensão real até a morte. Depois dele levantou-se
Neriglassar (560-556), cunhado de Evil Merodaque, o qual nada fez para
impedir o iminente colapso do império. Seu filho Labasi-Marduque tam­
bém não pôde salvar o reino, e foi assassinado provavelmente por um
partido que pelejava contra a soberania do culto ao deus Marduque. Este
partido conseguiu estabelecer no trono Nabonido (555-539),12 um fiel de­
voto de Sin, o deus-lua, cuja adoração era centralizada nas cidades de Ur e
Arã. Em razão deste culto ao deus Sin, Nabonido acabou distanciando-se
da população de Babilônia e do clero religioso, pois aquela cidade era a
principal capital da adoração de Marduque. Segundo as inscrições desco­
bertas, Marduque estava bastante insatisfeito com a postura de Nabonido,
de sorte que passou a procurar por um "outro pastor" que apascentasse
corretamente seu rebanho babilónico.13

Literary Characteristics of Isaiah 40—55 as Anti-Babyloniam Polemic", dissertação de


Ph.D. na Universidade de Columbia, 1984.
11 O tratamento autoritário de seu reinado é visto em Ronald H. Sack, Amel-Marduk 562­
560 B.C.: A Study Based on Cuneiform, Old Testament, Greek, Latin and Rabbinical Sources
(Neukirchen-Vluyn: Butzon und Bercker Kevelaer, 1972).
12 Essa série de acontecimentos é documentada em Sidney Smith, Babylonian Histórica!
Texts Relating to the Capture and Downfall ofBabylon (London: Methuen, 1924). Ver tam­
bém Raymond P. Dougherty, Nabonidus and Belshazzar, Yale Oriental Series 15 (New
Haven: Yale University Press, 1929); Olmstead, History, pp. 34-38.
13 Uma espécie de propaganda escrita (o conhecido Relato Acerca de Nabonido Cantado
O E xílio e o P rimeiro R etorno 503

Tal "pastor" seria o Ciro de Ancham que, tendo submetido os Me­


dos e outros rivais,14 criou um dos mais poderosos exércitos de toda a
história da humanidade. Ciro, um general de inteligência estratégica
admirável, passou parte de sua vida desferindo ataques-relâmpago con­
tra vários adversários, tanto próximos quanto distantes. Com a experi­
ência de guerra, Ciro cercou Babilônia, tomando-a praticamente sem
resistência em 539. O rei Nabonido tinha o hábito de ausentar-se da
capital, e fazia-o até mesmo (ou especialmente) nas comemorações de
Ano Novo, quando como de costume participava dos rituais tradicio­
nais. Suas ausências eram cada vez mais freqüentes e demoradas, de
forma que o real governo da cidade estava nas mãos de seu filho
Belsazar. Foi este desafortunado vice-rei que presenciou o colapso da
nação com a chegada de Gubaru, o comandante persa e governador de
Gutium. Parece que Belsazar morreu durante ou pouco depois do con­
flito,15 enquanto seu pai Nabonido foi capturado e em seguida solto
condicionalmente. Duas semanas depois, Ciro marchou triunfantemente
pela cidade e celebrou com alegria a derrota de seu rival, tornando-se o
senhor absoluto do oriente.16
Ciro pôs em prática uma política beneficente, permitindo a todos os
exilados o retorno para suas terras. Os judeus, é claro, também esta­
vam incluídos, e viram neste decreto a bênção de Deus, como cumpri­
mento da palavra profética. Para eles, esta libertação não era menos
significativa que aquela do êxodo sob a liderança de Moisés. Na verda­
de, a linguagem dos profetas, por exemplo Isaías 40— 66, está repleta
de imagens do êxodo. E verdade que a maioria dos judeus da disper­
são preferiu permanecer em suas casas, especialmente os que mora­
vam em Babilônia, mas aqueles que tinham seus olhos voltados para o
propósito eterno de Deus viram no cativeiro um instrumento de corre-

em Versos Persas), que delata os pecados cometidos por Nabonido mas que, por outro
lado, exalta em refrões a escolha de Ciro como amado de Marduque, pode ser pesquisada
em Smith, Babylonian Historical Texts, pp. 82-97; e em A. Leo Oppenheim, "Babylonian
and Assyrian Historical Texts," em James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating
to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 312-315.
O famoso Cilindro de Ciro também relata a mesma coisa (pp. 315-316). Quanto a
transliteração do texto, ver F.H. Weissbach, Die Keilinschriften der Achameniden,
Vorderasiatische Bibliothek 3 (Leipzig: J.C. Hinrichs, 1911), pp. 2-7.
14 Stephen Langdon, Die neubabylonischen Königsinchiften, Vorderasiatische Bibliothek 4
(Leipzig: J.C. Hinrichs, 1912), pp. 252-61, n. 6 (Nabon), esp. 1.29-35.
15 Dougherty, Nabonidus and Belshazzar pp. 174-175.
16 Olmstead, History, pp. 38-51.
H

ção. E o retorno à pátria era o sinal de que ainda tinham um pape!


redentor a desempenhar.

A situ a ç ã o m u n d ia l d u ra n te o exílio

O declínio e a queda do Império Babilónico

Um ano após a conquista de Jerusalém, Nabucodonosor lançou outro


cerco, dessa vez contra a parte marítima de Tiro, pois já havia capturado
Sidom, Arvade e a porção continental da própria Tiro.17 O cerco durou
treze anos, mas mesmo após a ilha render-se em 573, os babilónicos con­
seguiram pouco lucro em vista de seus esforços. Tentando obter mais
vantagens nessa campanha militar, Nabucodonosor decidiu mover-se
para o sul, em direção ao Egito. No ano 568 ele devastou uma extensa
porção do vale do Nilo. Somente o Delta ocidental parece ter escapado
na ocasião.18
Os anos que restaram a Nabucodonosor permanecem um mistério. Não
há dúvidas de que ele morreu em 562 e foi substituído por seu filho Evil-
Merodaque. Conforme já se observou, este filho de Nabucodonosor foi o
responsável pela libertação de Jeoiaquim. Salvo este acontecimento, seu
governo é visto de forma totalmente negativa, de modo que em 560 ele foi
assassinado por Neriglassar, marido de sua irmã.
Neriglassar empenhou-se para, no mínimo, empreender uma campa­
nha pela cadeia montanhosa do Taurus, o que sem dúvida foi motivado
pelas intensas movimentações dos Medos, que vinham em sua direção
através da Anatólia central. Ele também se comprometeu na edificação de
uma série de construções. Porém, seu mandato foi de curta duração (560­
556). Seu filho Labasi-Marduque, jovem e vigoroso, assumiu o governo,
mas foi assassinado em apenas trinta dias.
A participação de Nabonido na morte de Labasi-Marduque ainda não
está esclarecida, mas de qualquer forma ele estava no trono, substituin­
do a dinastia de Nabopolassar, a qual durara exatamente setenta anos.19
Nabonido era filho de um nobre chamado Nabu-balatu-iqbi e Adda-
guppi, uma sumo sacerdotisa do deus-lua. A influência religiosa que esta
mulher exerceu, cuja idade ultrapassou os cem anos, causou forte im­

17 H. Jacob Katzenstein, The History of Tyre (Jerusalem: Schocken Institute for Jewish
Research, 1973), pp. 330-31.
18 Ibid., pp. 338-39.
19 Oiinstead, History, pp. 35-36.
O E xílio e o P rimeiro R etorno 505

pacto na vida religiosa de seu filho, contribuindo fatalmente para a que­


da final de Babilônia.20
Caso Nabonido seja o alto oficial da corte no oitavo ano (597) de
Nabucodonosor, ele mesmo devia estar avançado em anos em cerca de
555.21 E esta hipótese não está sem fundamento lógico, pois há infor­
mações de que sua mãe, que morreu em 547, nasceu em 650.22 Alguns
estudiosos tentam identificar Nabonido com Labynetus, um mediador
na disputa entre os Lídios e os Medos em 585.23
Nabonido, sempre influenciado por sua mãe, tornou-se um fiel e con­
sagrado servo do deus-lua Sin. Enquanto um simples cidadão, ainda que
importante, esse fato não causou nenhuma dificuldade particular. Quan­
do se tornou rei da Babilônia, entretanto, a situação mudou dramatica­
mente, pois a cidade era o centro religioso de culto ao deus Marduque,
líder no panteão babilónico. O conflito estabeleceu-se precipitando não só
a ruína de Nabonido, mas também de todo o Império Babilónico.
Mas a crise ainda obteve um bom intervalo, pois logo que assumiu o
trono de Babilônia, Nabonido informou a todos que tivera um sonho, em
que o deus Marduque lhe dizia para reedificar o templo de Sin, conhecido
por E-hul-hul.24 Claramente esta era uma tentativa do novo rei de justifi­
car a introdução do culto ao deus Sin dentro da jurisdição religiosa do
deus Marduque, e também para tentar abafar e conciliar as suspeitas do
povo e dos sacerdotes.
Do início ao fim do seu primeiro ano de reinado, em 555, Nabonido,
tendo apaziguado temporariamente os seus críticos, empreendeu sua pri­
meira campanha rumo ao nordeste, a qual resultou na conquista de Hamate
e Arã. Em seu terceiro ano, voltou à Síria e tomou outras cidades naquela
região. Provavelmente Arã era o seu principal objetivo, pois juntamente
com a antiga Ur constituía o centro de adoração ao deus Sin. Ele mesmo
forjou um tratado unindo-se a Ciro contra os Medos que, na ocasião, obti­
nham o controle de Arã. Os Medos deixaram a cidade para guerrearem

20 Peter R. Ackroyd, Exile and Resteration (Philadelphia: Westminster, 1968), pp. 19-20.
21 Dougherty, Nabonidus and Belshazzar, p. 31.
22 Albert Kirk Grayson, Assyrian and Babijlonimi Chronides (Locust Valley, N.Y.: J.J. Augustin,
1975), p. 107, Crônica de Nabonido 2.13-14; ver também Oppenheim, "Historical Texts,"
em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, pp. 311-12, quanto aos assim chamados Textos
da Família de Nabonido, que traçam sua vida desde o vigésimo primeiro ano do reina­
do de Assurbanipal até o nono de Nabonido.
23 D.J. Wiseman, Chronicles ofChaldaean Kings (626-556 B.C.) in the Brítsh Museum (London:
Trustees of the British Museum, 1961), p. 39.
24 Oppenheim, "Historical Texts," em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, p. 310.
H 7 r

contra os persas, proporcionando a Nabonido uma oportunidade para en­


trar na cidade e reivindicá-la para si mesmo.25
Logo Nabonido iniciou a restauração de Arã como centro de culto. Cons­
truiu uma grande estátua do deus-lua e reconstruiu o templo de E-hul-
hul. A atitude do rei provocou suspeitas nos sacerdotes de Babilônia, que
se lhe tornaram hostis. Para eles, Nabonido não tencionava apenas elevar
a posição do deus Sin, mas desejava substituir definitivamente a adoração
a Marduque.26 A situação tornou-se tão desconfortável para Nabonido que
ele mesmo impôs-se um exílio de dez anos em Tema, o grande oásis do
deserto Siro-arábico, do lado oriental do mar Vermelho.27 Este exílio ocor­
reu em seu sexto ano de reinado (550).
Porém isto não significou a abdicação do reino. Nabonido apenas
deixou os negócios nas mãos de seu filho Bel-sar-usur (Belsazar). Há
poucos documentos para esclarecer este período.28 Mas não há dúvi­
da de que, durante os anos de exílio, Nabonido esteve muito envolvi­
do com campanhas m ilitares, especialmente contra as tribos árabes
que se tornavam um sério problema, em vista do rápido crescimento.
Além do aspecto militar, Nabonido cultivou o hábito de colecionar
antigüidades e restaurar objetos de arte. Assim esteve envolvido na
reconstrução de alguns templos destruídos e muitas outras constru­
ções an tigas.29 Quanto a Belsazar, praticam ente nada se sabe a seu
respeito até a fatídica noite de 539, ocasião em que ele leu a escritura
que fora gravada na parede, a qual determinava sua iminente des­
truição e queda.
Durante os anos em que Nabonido morou em Tema, Ciro esteve com­
pletamente absorvido com a preparação de um poderoso império. Fal­
tava apenas a incorporação da Babilônia em seu vasto domínio, de ma­
neira que estabeleceu sua meta em direção à conquista. No inverno de
539 Ciro tomou a cidade de Opis, situada próximo ao rio Tigre. Poucos

25 Sidney Smith, [saiah, Chapters XL-LV (London: Oxford University Press, 1944), p. 33.
26 Assim está soletrado no Relato Acerca de Nabonido Cantado em Versos Persas. Ver
Smith, Babylonian Historkal Texts, p. 88; Oppenheim, "Historical Texts," em Pritchard,
Ancient Near Eastern Texts, pp. 312-15.
27 Enquanto silencioso acerca do sexto ano, a Crônica de Nabonido registra que ele estava
em Tema no sétimo ano (549). Ver Grayson, Assyrian and Babylonian Cbronicles, p. 106,
Crônica de Nabonido 2.5.
25 Ver, porém, Dougherty, Nabonidus and Belshazzar, pp. 96-97,133; Gerhard F. Hasel, "The
Book of Daniel: Evidences Relating to Persons and Chronology," AUSS 19 (1981): 42-45;
A.R. Millard, "Daniel 1-6 and History," EQ 49 (1977): 71-72.
29 William L. Reed, "Nabonidus, Babylonian Reformer or Renegade?" LeiTQ 12 (1977):24
O E xílio e o P rimeiro R etorno 507

dias depois, em 10 de outubro, ele conquistou Sipar sem qualquer re­


sistência. Durante esse tempo, Nabonido pôde retornar à Babilônia e,
com os próprios olhos, testemunhou a queda e o colapso de sua glorio­
sa cidade, indefesa diante das forças do Império Persa, comandadas
por Gubaru, governador de Gutium. A queda ocorreu em 12 de outu­
bro. Duas semanas depois, em 29 de outubro de 539, Ciro entrou na
cidade em paz, não permitindo qualquer destruição. Estabeleceu no
governo o próprio Gubaru e deixou a administração civil e religiosa
permanecer inalterada.30

As origens do Império Persa

As raízes de Ciro originam-se com os medos e os persas. Ambos eram


descendentes de tribos arianas que se moveram da Rússia em direção sul

Tabela 9 Os reis da Pérsia

Ciro II 559-530
Cambises II 530-522
Gaumata 522
Dario Histaspes 522-486
Xerxes 486-465
Artaxerxes I 464-424
Dario II 423-404
Artaxerxes II 404-358

para o platô urartiano, e por volta de 1000 a.C. estabeleceram-se nas vizi­
nhanças do lago Urmia (hoje geograficamente reconhecido como o extre­
mo noroeste do Irã). Gradualmente, os medos se moveram para o leste e
ocuparam o oeste do Irã, no sul do mar Cáspio, enquanto os persas migra­
vam para o sul, estabelecendo-se no sudoeste do Irã, voltados para o Gol­
fo Pérsico.31
A linhagem real de que Ciro fazia parte foi fundada por Acamenes,
que reinou de 700 a 675.32 Foi ele quem emprestou seu nome para a di­
nastia acamenida. Seu filho Teispes (675-640) estendeu os territórios da
Parsa (Pérsia) em direção sul, até atingir a Passárgada. Em razão da gran­
de extensão do reino, Teispes dividiu-o entre seus dois filhos, Ariaramnes,

30 Grayson, Assyrian and Babylonian Chronicles, pp. 109-11, Crônicas de Nabonido 3.12-28.
31 Roman Ghirshman, Iran (Hammondsworth: Penguin, 1954), pp. 90-96.
32 Quanto ao próximo cenário até Ciro II, ver Ghirshman, Iran, pp. 95-126.
no sul, e Ciro I, no norte. Ele também reconquistou sua independência,
não mais submetendo-se aos medos, os quais controlaram a Pérsia em
cerca de 670.
A linhagem de Ariaramnes (640-615) incluiu Arsames, Histaspes e Dario
Histaspes; a de Ciro I (640-600) produziu Cambises I (600-559) e Ciro II (559­
530), o que criou o império. Cambises, estabelecido como governante da Pérsia
após esta ser novamente tomada pelos medos e constituída uma província,
casou-se com a filha do rei da Média, conhecido por Astiages. Deste casamen­
to nasceu Ciro II, que unia em si mesmo as famílias reais da Média e da Pérsia.
Um contemporâneo de Acamenes, da Pérsia, foi Deioces, da Média,
de quem muito pouco se sabe. Seu filho Fraortes (675-653) fez de Parsa
um estado vassalo, mas sua morte no campo de batalha contra os assírios,
em 653, contribuiu para Teipes readquirir a independência. O trono na
Média permaneceu sem monarca de 653 até 625 em conseqüência da do­
minação Cita no noroeste do Irã. Porém, no tempo apropriado levantou-
se Ciaxares (625-585) que venceu os citas e os assírios, estabelecendo para
a Média o controle de toda a região norte da Mesopotâmia e do Irã. Nes­
se mesmo tempo, ele forçou a submissão da Pérsia, momento em que
decidiu pôr Cambises no trono daquele estado vassalo. Ciaxares foi subs­
tituído por seu filho Astiages (585-550), cuja filha viria a ser a mãe do
grande Ciro II.
O próprio Ciro, na verdade, era um vassalo de seu avô, e reinava em
uma região conhecida por Ansan.33 O jovem monarca tomou a liberdade
de estabelecer sua capital em Passárgada, e deu início ao processo de uni­
ficação de uma série de tribos da Pérsia que ainda resistiam ao novo go­
verno imperial. Ele também conseguiu estabelecer aliança com Nabonido,
rei da Babilônia, uma ação equivalente a uma rebelião contra Astiages,
visto que os babilónicos eram na ocasião, os inimigos mais hostis do reino
da Média. Por esta razão Ciro foi oficialmente convocado para compare­
cer diante do rei em Ecbátana, capital do império. Mas corajosamente de­
cidiu não ir. Astiages desferiu um ataque contra seu neto, mas seu exército
desertou. Ciro marchou contra Ecbátana, aprisionou seu avô, e fez da Média
uma província da Pérsia.
Com este golpe, Ciro reivindicou todos os territórios da Média, cau­
sando uma confrontação imediata com a Lídia. Um poderoso reino no
mar Egeu, no lado oeste da Ásia Menor, Lídia era comandada naqueles
anos por Cresus, um monarca de reputação tão elevada que era conside­
rado como os heróis épicos da literatura grega. Cresus antecipou-se às

33 Olmstead, History, pp. 34-51; Smith, Isaiah, pp. 35-48.


O E xílio e o P rimeiro R etorno 509

aspirações de conquista de Ciro, e marchou para evitar a chegada dos


persas nos territórios de influência helénica. Mas Ciro mostrou-se mais
poderoso, e na batalha forçou o recuo de Cresus até a capital Sardes,
derrotando-o finalmente em 547. Ciro transformou o reino de Cresus em
uma nova satrapia persa, chamada agora de Saparda, e desenvolveu re­
lações amigáveis com os gregos da região, que mais tarde o serviriam
como aliados e mercenários.
Babilônia, entretanto, com a ausência de Nabonido, começava a deteri­
orar interna e externamente sob a incompetência de Belsazar. Muitas pro­
víncias babilónicas, como Elam, renderam-se aos persas, e em 539 Ciro
enviou um exército contra a Babilônia, sob o comando de Gubaru.34 A
cidade caiu sem nenhuma batalha e Ciro transformou-a na capital de mais
uma de suas satrapias, chamada Babirus, que incluía em sua jurisdição a
Síria, Fenícia e Palestina.
Uma das razões para a pronta capitulação da Babilônia era a aversão
do povo pela política de Nabonido e de seu filho, cuja postura religiosa
desprestigiava abertamente o deus Marduque. Ciro já ganhara a reputa­
ção de um imperador iluminado, que agia com benevolência e era eclético
em seu ponto de vista. Um aspecto de sua política era que reconhecia os
direitos dos deuses nativos sobre os seus seguidores, e não tentava
suplantá-los com os seus próprios deuses. De fato, ele chegou à Babilônia
mediante as ordens expressas de Marduque, que se enfurecera com a
irreverência de Nabonido, e desejou substituí-lo por um outro rei, um
pastor que mais fielmente apascentasse seu rebanho. O pastor, é claro,
não era outro senão Ciro.
A política de Ciro beneficiou sensivelmente os judeus exilados em
Babilônia, pois Ciro conferiu a Yahweh o mesmo respeito dado a Marduque
e a outras divindades. A conseqüência lógica de sua política foi o decreto
que permitia aos judeus o retorno à sua terra. Somente em um templo
restaurado em Jerusalém Yahweh poderia agir efetivamente como o Deus
de Judá. Assim, em fiel obediência a Yahweh, Ciro decidiu repatriar o povo
judeu. Providenciou autorizações para que eles voltassem e reconstruís­
sem a cidade e o templo para seu Deus.

34 As Crônicas de Nabonido declaram que no décimo sexto dia de Tashritu, "Ugbaru, gover­
nador de Guti, e o exército de Ciro entraram em Babilônia sem qualquer batalha" (3.15-16).
Continua o relato dizendo que "Gubaru, seu oficial do distrito, designou os oficiais distritais
em Babilônia" (3.20) e que "na noite do décimo primeiro dia do mês de Marchesvan, Ugbaru
morreu" (3.22). William H. Shea sugere que (também é nossa opinião) Ugbaru e Gubaru são
a mesma pessoa, e que ambos têm de ser distinguidos do Gubaru constituído sátrapa por
Ciro algum tempo depois ("Darius the Mede: Na Update," AUSS 20 [1982]: 245).
H ut ■ A r

Após o decreto em 558, Ciro continuou a expandir seu magnificente


império. Sua morte ocorreu em 530, em um combate contra Massageta, no
vale do rio Jaxartes, na Ásia Central.

O p o v o ju d e u d u ra n te o exílio

Em Judá

Em meio a todos esses acontecimentos que devastaram o mundo, o


povo eleito de Deus manteve sua identidade, embora não mais como uma
nação estabelecida em um lugar. Os miseráveis que evadiram as três de­
portações para a Babilônia em 605, 597 e 586, assim como os fugitivos no
Egito, somavam talvez não mais que vinte mil almas.35 Com Jerusalém e
as maiores cidades em ruínas, esses pobres sobreviveram do trabalho agrí­
cola e como criadores de gado. Alguma idéia da calamitosa situação pode
ser extraída do livro das Lamentações de Jeremias que, embora poético,
descreve realisticamente como foi a vida não apenas para o profeta como
também para os cidadãos que ali habitavam (ver também Ez 33.21-29).
Não se pode concluir, entretanto, que não havia mais senso de comunida­
de em Judá.36 Certamente houve esforços para reconstruir não apenas casas e
cidades, mas também as infra-estruturas da vida social. E dentro das estrutu­
ras provinciais impostas na terra pelos babilónicos emergia algum tipo de
governo local. Além disso, o culto não desaparecera, embora a destruição do
templo possa ter alterado a sua forma original. Provavelmente, algo seme­
lhante às sinagogas que surgiram por toda parte anos depois, na Diáspora,
pode ter aparecido em Judá para satisfazer as necessidades do povo de estu­
dar a Torá.37 Mas, no cômputo geral, os textos bíblicos silenciam a respeito da
natureza e atividades da comunidade que não fora para o exílio.

Em Babilônia

Ironicamente, embora Judá permanecesse o local geográfico do povo


da aliança, Babilônia tornara-se histórica e intelectualmente o seu lar. E
isto era verdade não apenas nos anos de exílio, mas por séculos depois. De

35 Albright, Biblical Period, p. 87.


36 Uma excelente análise da situação de Judá durante os tempos do cativeiro pode ser
vista em Ackroyd, Exile and Restoration, pp. 20-31.
37 Para várias sugestões, ver a obra de Solomon Zeitlin, "The Origin of the Synagogue,"
em The Synagogue: Studies in Origins, Archaeologist and Architecture, editado por Joseph
O E xílio e o P rimeiro R etorno 5 ]J

fato, nos primeiros séculos da Era Cristã, Babilônia era um centro religio­
so judaico que desenvolvera uma tradição completamente separada de
Jerusalém e Alexandria. Foi lá que os judeus mais devotos criaram o co­
nhecido Talmude Babilónico, e uma escola de massoretas da Babilônia
produziu sua própria família de textos bíblicos e manuscritos.38
Particularmente isto não surpreende, pois os exilados, não tão nume­
rosos, eram a nata política, intelectual e religiosa da sociedade judaica. No
cativeiro, eles viveram juntos em seus próprios guetos. Uma vez que esta­
va evidente que permaneceriam no exílio ainda por muito tempo, come­
çaram a fixar-se, compraram propriedades e se engajaram em negócios.
Há evidências de que alguns tentaram a resistência, mas finalmente per­
ceberam que a coexistência pacífica seria o único caminho.39 De fato a vida
tornou-se tão confortável que a maioria não retornou para Judá quando
saiu o decreto de Ciro.

A visão de Ezequiel
A melhor percepção da vida no exílio da Babilônia é encontrada em
Ezequiel, que passou todos os anos de seu ministério público no local.
Como Jeremias, ele era sacerdote, conforme atesta seu testemunho (1.3) e
seu grande interesse pelo culto. Seus escritos auxiliam particularmente
nossa investigação, porque na maior parte estão em ordem cronológica e
repletos de dados históricos.40
O profeta inicia o relato definindo o cenário — ele estava com os exilados
próximo do rio Quebar, no décimo terceiro ano. O Quebar é o nar kabari men­
cionado pelos registros babilónicos, um canal que forma uma extensão do rio

Gutmann (New York: Ktav, 1975), pp. 14-26; Martin Noth, "The Jerusalem Catastrophe
of 587 B.C. and Its Significance for Israel," em The Lazos in the Pentateuch and Other Essays
(Edinburgh: Oliver and Boyd, 1966), pp. 263-64; Peter R. Ackroyd, Israel Under Babylon
and Persia (London: Oxford University Press, 1970), pp. 27-28.
38 Samuel Safrai, "The Era of the Mishnah and Talmud (70-640)," em A History of the Jeivish
People, editado por Haim H. Ben-Sasson (Cambridge: Harvard University Press, 1976),
pp. 373-82. Quanto ao cativeiro da Babilônia como um cenário para o florescimento do
judaísmo, ver D. \Vinton Thomas, "The Sixth Century B.C.: A Creative Epoch in the
History of Israel," 155 6 (1961): 33-46.
39 John Bright, ,4 Histom of Israel, 3a edição (Philadelphia: Westminster, 1981), p. 346; William
H. Shea, "Daniel 3: Extra-Biblical Texts and the Convocation on the Plain of Dura,"
AUSS 20 (1982): 30-32.
40 Para uma revisão de todas as datas, ver K. S. Freedy e Donald B. Redford, "The Dates
in Ezekiel in Relation to Biblical, Babylonian and Egyptian Sources," JAOS 90 (1970):
462-85.
512 H istoria de I srael \o A'.t ;«;--

Eufrates.41 O "décimo terceiro ano" provavelmente é uma referência ao seu


décimo terceiro ano.42 Era 593 a.C , o décimo quinto ano do cativeiro de
Jeoiaquim, como informa o profeta (1.2). O hábito de datar os acontecimentos
baseado no cativeiro de Jeoiaquim corrobora a opinião de que Jeoiaquim, e
não Zedequias, era considerado o verdadeiro herdeiro do trono de Davi.43
Ezequiel fora comissionado por Yahweh para ministrar à comunidade
exilada que vivia próxima ao Quebar, especialmente os que estavam nos
acampamentos de Tel Abibe (3.15). Sua mensagem para o povo centrava-se
na iminente destruição de Jerusalém. Sem dúvida eles pensavam que a ci­
dade santa sobreviveria, ainda que de lá fossem deportados. Eles precisa­
vam entender, porém, que Jerusalém era invencível apenas enquanto o povo
fosse fiel para com Deus. E de acordo com os fatos, eles falharam em perma­
necer fiéis. Como conseqüência, viria sobre Jerusalém o iminente e irreme­
diável julgamento. Através de uma série de ilustrações — representando o
cerco a Jerusalém (4.1-3), raspando sua cabeça (5.1-4) e preparando algemas
(7.23-27) — Ezequiel preconizava a iminente destruição de Sião.
No sexto ano, 592, Ezequiel estava em sua própria casa juntamente com
um concílio de anciãos de Judá, quando repentinamente o Senhor condu­
ziu-o em visão até Jerusalém, onde ele testemunhou uma série de abomi­
nações cometidas pelos líderes de Judá no santo templo de Deus (cap. 8).
O resultado foi a partida dos querubins e da glória de Deus do templo,
ficando suspensos sobre o monte das Oliveiras. Isto significava que a ani­
quilação da cidade estava próxima. Mas, antes que a glória de Deus se
afastasse do santo templo, o profeta ouviu a mesma promessa que todos
os seus antecessores ouviram: o povo de Deus passaria por um amargo
cativeiro e escravidão por causa de seus pecados, mas Ele mesmo iria dar-
lhes um coração novo, para que verdadeiramente o adorassem e servis­
sem, de modo que retornariam para sua terra. Como ossos secos que fo­
ram trazidos à vida, eles rejuvenesceriam e se uniriam novamente — Isra­
el e Judá — e o próprio Davi reinaria sobre ambos (11.14-21; cap. 37).

A visão de Daniel

Daniel é a segunda maior fonte de informação acerca da vida no exílio


antes do decreto de Ciro. De fato, Daniel viveu além daquela era e fornece

41 Agora é conhecido por satt en-ntl; ver Walther Zimmerli, Ezekiel: A Commentary on the
Book of the Prophet Ezekiel (Philadelphia: Fortress, 1979), vol 1, p. 112.
42 Walther Eichrodt, Ezekiel (Philadelphia: Westminster, 1970), p. 52.
43 Zimmerli, Ezekiel, vol. 1, pp. 114-15.
O E xílio e o P rimeiro R etorno 513

inestimável documentação sobre a dominação dos persas na Babilônia e


seu subseqüente governo sob Dario, o medo, e Ciro. Não há espaço nesta
obra para tratar da historicidade do livro de Daniel e dos acontecimentos
registrados.44 Tudo o que precisa ser dito é que o livro não tem se mostra­
do contrário às informações extrabíblicas, e que retórica e linguagem en­
quadram-se com os padrões lingüísticos do sexto século, era em que o
livro parece ter sido escrito. Apenas nas linhas mais subjetivas da evidên­
cia nega-se historicidade ao autor e ao livro.
Segundo as próprias palavras, Daniel estava entre os nobres depor­
tados por Nabucodonosor durante a primeira conquista de Jerusalém
(605). Logo que chegou à Babilônia, Daniel e alguns de seus compa­
nheiros foram separados por Aspenaz, oficial da corte, e treinados nas
artes e ciências dos caldeus. O aparente propósito seria prepará-los para
serem membros de um corpo diplomático que pudesse mais tarde re­
presentar os interesses da Babilônia, talvez na própria Palestina. Eles
eram estudantes aptos, mas decidiram em seus corações não se conta­
minar com as iguarias do rei, pois desejavam manter-se puros na lei de
seu Deus.
No segundo ano de seu reinado, Nabucodonosor teve um sonho que
deixou-o profundamente desatinado (Dn 2). Então ordenou que todos os
adivinhos do império se apresentassem para revelar-lhe o sonho e a inter­
pretação sob pena de morte. Como ninguém pôde assim fazer, Daniel apre­
sentou-se diante do rei. Informando-o de que falava como emissário do
Deus verdadeiro, Daniel revelou não apenas o sonho, mas também sua
interpretação. Convencido de que Daniel falara a verdade, Nabucodono­
sor reconheceu o poder de Yahweh e promoveu Daniel e seus três amigos
a posições de grande autoridade na província de Babilônia. Embora nem
Daniel nem seus companheiros possam ser identificados nos textos
extrabíblicos, há bastante evidência de que estrangeiros, incluindo judeus,
se destacaram nos cargos governamentais em Babilônia e, ocasionalmen­
te, chegaram aos mais altos escalões.45

44 Veja, por exemplo, Arthur J. Ferch, "The Book of Daniel and the 'Maccabean Thesis'"
AUSS 21 (1983): 129-41; John Goldingay, "The Book of Daniel: Three Issues," Themelios 2
(1977): 45-49; Gerhard F. Hasel, "The Book of Daniel and Matters of Language: Evidences
Relating to Names, Words, and the Arramaic Language,"ALiSS 19 (1981): 211-25; Millard,
"Daniel 1-6 and History," EQ 49 (1977): 67-73; Gordon J. Wenham, "Daniel: The Basic
Issues," Themelios 2 (1977): 49-52; Edwin M. Yamauchi, "Daniel and Contacts Between
the Aegean and the Near East Before Alexander," EQ 53 (1981): 37-47.
45 Shea, "Daniel 3," AUSS 20 (1982): 46-47.
Mais tarde Nabucodonosor teve outro sonho, e Daniel declarou-lhe a
interpretação: por não reconhecer a soberania do Deus Altíssimo, o rei
teria sua vida reduzida a uma existência animal. Por sete anos ele ficaria
insano e impossibilitado de reinar (Dn 4). Ao fim deste período, seria res­
taurado e assumiria novamente a regência. Tudo isto se cumpriu, e Nabu­
codonosor finalmente reconheceu que era apenas um instrumento nas mãos
do Deus do céu.
Os céticos negam que Nabucodonosor sequer tenha sofrido alguma
moléstia descrita por Daniel, mas seu argumento é extremamente fraco.46
Mesmo que a insanidade do rei seja corroborada pelos documentos
extrabíblicos, é importante notar que os registros babilónicos são quase
totalmente omissos a respeito da última década de sua vida. Os esforços
para salvar a credibilidade da história mediante a sugestão de que Daniel
não se referia a N abucodonosor mas a Nabonido47 são totalmente
insatisfatórios, pois não apenas compromete a credibilidade do registro
de Daniel como fonte histórica, como também a alegação da insanidade
de Nabonido traz pouca semelhança com acontecimentos relatados em
Daniel.48
Por razões desconhecidas, Daniel nada menciona acerca do período
entre os reinados de Nabucodonosor e Belsazar. Quando reassume a nar­
rativa, ele trata da noite de 539 quando Belsazar, em um banquete regado
a muito vinho, recebeu uma palavra do Deus do céu, a qual dizia que os
Medos e os Persas estavam a caminho para destruir toda a glória de
Babilônia. Percebendo talvez a inevitabilidade do julgamento, Belsazar
decidiu honrar o homem de Deus que lhe trouxera a fatídica mensagem,
elevando-o a terceiro governante do reino. Isto implica em que Nabonido
era o primeiro, Belsazar o segundo, e Daniel o terceiro.49
Esta organização, porém, não iria adiante, pois Nabonido foi captu­
rado por Gubaru, o general da Pérsia, Balsazar foi assassinado, e
Babilônia tornou-se apenas uma das satrapias do império persa. As re­
ferências de Daniel a "Dario, o M edo" (Dn 5.31; 6.1) e "Dario, filho de
Xerxes" (Dn 9.1) parecem ser a descrição do general Gubaru. Foi ele
quem o imperador Ciro colocou sobre todo o reino da Babilônia (Dn
9.1). A mudança no governo babilónico apenas ergueu Daniel à posi­

46 Veja, por exemplo, Louis F. Hartman e Alexander A. Di Lella, The Book of Daniel, Anchor
Bible (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1978), pp. 178-79.
47 Ackroyd, Exile and Restoration, p. 37.
48 Hasel, "The Book of Daniel," AUSS 19 (1981): 38-42.
49 William H. Shea, "Nabonidus, Belshazzar and the Book of Daniel: An Update," AUSS
20 (1982): 133-49.
O E xílio e o P rimeiro R ltôrno 515

ção de estadista, pois Ciro rapidamente viu nele habilidade adminis­


trativa, pois havia se destacado nessa função por mais de sessenta anos.
Portanto, Dario, o Medo, designou-o para ser um dos três principais
supervisores de todo o sistema provincial do império persa.30 A efici­
ência de Daniel era tal que Dario planejava elevá-lo à posição máxima
do governo. Mas os inimigos de Daniel, tomados por inveja, consegui­
ram um meio de fazer o rei decretar a morte de Daniel. Contudo, por
intervenção divina, o profeta foi salvo, e o rei Dario confessou publica­
mente a soberania do Deus de Daniel.
Foi no primeiro ano de "Dario, o Medo" (i.e., 539) que Daniel com­
preendeu que os setenta anos profetizados por Jeremias já estavam no
fim, e que seus compatriotas logo retornariam para Jerusalém e recons­
truiriam o santo templo, que na ocasião ainda estava em ruínas (Dn
9.1,2). O decreto logo seria emitido pelo imperador Ciro e milhares de
Judeus voltariam para sua terra, e a aliança mais uma vez seria respei­
tada pela nova comunidade em solo sagrado. Daniel rapidamente per­
cebeu que o exílio ainda estaria em vigor enquanto o templo de Jerusa­
lém permanecesse destruído, por isso orou fervorosamente a Deus para
que Ele se compadecesse do santuário em ruínas (9.17) e voltasse a fa­
zer seu nome vigorar naquele lugar (9.19). A resposta a essa oração
chegou durante os anos dos profetas Ageu e Zacarias, que foram ins­
trumentos divinos usados para exortar e incentivar o povo a recons­
truir a casa de Deus.
Mas havia ainda uma resposta maior aos clamores de Daniel. Basean­
do-se na idéia numérica dos setenta anos de exílio, Yahweh prometeu que
ao fim de "setenta semanas", Ele faria uma obra maior do que apenas
reconstruir o templo dos judeus.
Ele enviaria seu Ungido, o Salvador messiânico que morreria por seu
povo, e poria um fim nos longos anos de oposição aos propósitos de Deus
(Dn 9.24-27).5051

50 Essa designação, embora decretada pelo próprio Ciro, foi posta em ação por "Dario, o
Medo" (Dn 5.31; 6.1; cf. 6.28). Parece melhor, sem iniciar um debate aqui, aceitar a opi­
nião de Shea, que identifica "Dario, o Medo" com Gubaru, governador de Gutium, que
à frente do exército persa conquistou Babilônia ("Darius the Mede," AUSS 20 [1982]:
234-47). Quanto à opinião de ser Dario um segundo Gubaru (cf. n. 34), ver John C.
Whitcomb, Jr., Darius the Mede (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1963). Para
uma identificação deste com o próprio Ciro, ver Wiseman, "Some Historical Problems,"
em Notes on Some Problems, pp. 9-16.
51 J. Dwight Pentecost, "Daniel," em The Bible Knowledge Commentary, editado por John F.
Walvoord e Roy B. Zuck (Wheaton, 111.: Victor, 1985), vol. 1, pp. 1361-65.
f 16 H a t . - a : e 1s =a - l A■:

No Egito

A terceira maior concentração de judeus depois do colapso ocorrido em


Jerusalém encontrava-se no Egito. A terra do Nilo sempre foi um dos locais
favoritos de Israel quando estavam à procura de refúgio. Abraão foi para lá
por ocasião da grande fome na terra santa. José e, mais tarde, Jacó e sua
família também se estabeleceram nesse país. Anos mais tarde, Jeroboão lá
buscou asilo. Tudo isto porque há uma grande proximidade entre o Egito e
a Palestina, além de existir uma forte afinidade entre os dois povos. Embora
o Egito tivesse feito dos hebreus seus escravos por muitos anos, tornando-
se inclusive símbolo ou tipo da escravidão, ainda assim era visto com favor
especial pelo Senhor. Muitas promessas escatológicas com respeito a Israel
incluem benefícios especiais para o povo egípcio (Is 19.24,25).
Não é de estranhar que os refugiados judeus e israelitas escapassem
para o Egito vez por outra nos tempos bíblicos. É quase certo que assim
fizeram na conquista de Samaria em 722 pelos assírios, e Jeremias registra
uma ocasião em que foi forçado a partir para o Egito depois da destruição
de Jerusalém pelos exércitos de Nabucodonosor. Esse contingente de
hebreus no Egito era formado basicamente de oficiais do exército, mem­
bros da família real e judeus que tinham recentemente voltado para Judá
das cidades que a circundavam, depois que Gedalias fora designado go­
vernador da recém-formada província babilónica (Jr 43.4-7). Naquele epi­
sódio, o destino inicial deles foi a cidade de Tafnes (Tel Dafanneh), no lado
oriental ào Deita (Jr 43.8), mas íinalmente se estabeleceram em Migdol
(Tel el-Heir), no lado norte do Delta, e também em Mênfis. À medida que
se estabeleciam, moviam-se para o sul em direção ao Alto Egito, criando
novas colônias de hebreus ou unindo-se a outras já existentes (Jr 44.1).
A conquista babilónica finalmente chegou e trouxe uma profunda des­
truição, segundo as palavras de Jeremias, o profeta de Deus. Porém, nem
todos os judeus no Egito pereceram na ocasião, pois pelo menos uma da­
quelas colônias judaicas — a de Elefantina no Alto Egito — sobreviveu e,
em tempos pós-exílicos, tornou-se não apenas o centro da vida política de
Israel no Egito, como também desenvolveu um culto paralelo e rival ao de
Jerusalém.52 Mesmo mais tarde, no quarto século, Alexandre encorajou a
mudança de milhares de judeus da Palestina para sua nova cidade . Em
poucas gerações aquela comunidade tornou-se talvez a maior e mais cria­
tiva comunidade de judeus, conhecida por todo o mundo pela sua capaci­
dade intelectual e notável estilo de vida.

52 Porten, Archives from Elephantine


O E xílio e o P rimeiro R etorno 517

A s itu a çã o m u n d ia l d u ra n te o p e río d o de re s ta u ra ç ã o

Antes de irmos muito longe em nossa história, é importante examinar


o contexto histórico e cultural das comunidades do exílio, particularmen­
te as da Babilônia, que retornaram para a terra da promessa e iniciaram a
restauração predita por todos os profetas. As fontes bíblicas que tratam do
tema são os livros de Esdras e Neemias, que são uma fonte rica de infor­
mação do período desde o decreto de Ciro (538) até o governo de Neemias
(ca. 430), mas mesmo tais informações precisam ser preenchidas por uma
reconstrução cuidadosa da história da Pérsia.

Cambises II da Pérsia

Em 530, Ciro partiu para o rio Jaxartes, localizado na Ásia central, a fim
de impedir as intenções de Massageta, que violava as fronteiras noroeste
do reino da Pérsia. Mas a batalha foi a última participação de Ciro, que
morreu após ficar seriamente ferido por três dias. Seu filho Cambises, que
ficara a cargo dos negócios do reino, conduziu o corpo de seu pai de volta
para Passárgada, e providenciou o sepultamento. Em seguida, assumiu o
trono acamenida.
Cambises II (530-522) já vinha ocupando por muitos anos algumas po­
sições importantes na administração de Ciro. E desde o início de 538 já
havia sido apontado por seu pai Ciro como o substituto no trono.53 Na
época em que assumiu o império, ele era governador do importante dis­
trito que rodeava Sippar, no norte da Babilônia. E ainda possuía o título
de "Rei da Babilônia" — um claro e inconfundível indício de toda a fama
e prestígio que desfrutava na região. Ao assumir o império, consolidou
imediatamente a boa imagem que usufruía naquela região. Para garantir
que sua ascensão ao poder não fosse ameaçada por um outro candidato,
Cambises casou-se com suas irmãs e mandou executar seu irmão Bardiya,
um fato que escondeu do povo.
A primeira maior ação do novo rei foi a invasão do Egito, o único dos
quatro principais reinos pré-persas (Média, Lidia, Babilônia, Egito) que
ainda não havia sido conquistado.54 Juntamente com aliados da Fenícia,
ele atacou Amasis II (570-526) e continuou vencendo Psamtik III (526-525)
em Pelusium. Depois de executar Psamtik, Cambises marchou para o sul
até alcançar a fronteira com a Etiópia, anexando imediatamente seus terri­

53 Olmstead, History, pp. 86-93,107-8.


54 Ibid., pp. 88-92.
518 H is t ó r ia d e I s r a e l n o A n t ig o T e s t a m e s t -

tórios mais próximos. Então organizou todo o Egito em uma satrapia cha­
mada Mudraya, tendo Mênfis como capital. Estabeleceu ali um de seus
companheiros, Ariandes, como o sátrapa desta nova jurisdição, e retornou
imediatamente para a Pérsia.
Não demorou muito para Cambises descobrir que um usurpador —
que reivindicava ser Bardiya, seu irmão assassinado — havia tomado o
poder. O impostor provavelmente era Smerdis ou Gaumata, e já havia con­
quistado muitos adeptos na Babilônia. Em 1 de Julho de 522, foi aclamado
rei de todo o império. Quando Cambises viu que tudo estava perdido,
cometeu suicídio.

Dario Histapes da Pérsia

O sucesso de Gaumata, ironicamente, deve-se ao fato de Cambises ter


escondido do povo a morte de seu irmão Bardiya, não tendo como provar
o fato. Bardiya talvez tenha ganhado muito prestígio e admiração por um
partido contrário ao governo de Cambises, e provavelmente nem mesmo
aceitaram sua ascensão ao trono da Pérsia. Mas nem todos foram engana­
dos por Gaumata, pois também havia uma conspiração contra sua vida
para restaurar no trono persa o legítimo sucessor de Cambises. O líder
dessa conspiração, Dario Histapes, com seis outros colaboradores, assas­
sinou Gaumata em 29 de setembro de 522, estabelecendo a si mesmo no
poder.55
Mas o movimento liderado por Dario não convenceu a opinião públi­
ca, que sensivelmente se opôs às suas atitudes. Embora fosse de sangue
real, uma vez que descendia de Teispes por intermédio de Ariaramnes,
tinha contra si a agravante de não pertencer à família direta de Ciro. A fim
de impedir qualquer oposição futura, Dario preparou uma enorme inscri­
ção em que revelou detalhadamente como Cambises havia assassinado
Bardiya, seu irmão. Revelou ainda que Gaumata jamais poderia ser iden­
tificado com Bardiya, pois era na realidade um impostor. Embora esta
medida aliviasse a tensão criada em torno da administração de Dario, es­
pecialmente por parte dos líderes do império persa, não foi forte o sufici­
ente para eliminar as rebeliões que surgiam no império. Em meio a essa
forte tensão, Babilônia tornava-se alvo constante de preocupação para
Dario. De fato, as rebeliões surgiram naquela cidade, mas Dario não tinha
poderio militar bastante forte para enfrentar as insurreições ali surgidas.
Então por meio de medidas diplomáticas, Dario conseguiu restabelecer

55 IbicL, pp. 107-16.


O E xílio e o P rimeiro R etorno 519

em 520 a autoridade persa no trono de Babilônia. Com este feito, os de­


mais estados em rebelião logo afirmaram-lhe lealdade.
Com a paz e a estabilidade no governo, Dario deu início à imple­
mentação de grandes reformas administrativas. De grande importância
era o desenvolvimento contínuo de um sistema legal que já havia se tor­
nado famoso pela inalterabilidade dos editos do rei. Tanto Daniel (6.8,12,15)
quanto Ester (1.19) demonstraram estar cientes deste aspecto da jurispru­
dência persa. Baseando-se, sem dúvida, nas antigas leis precedentes, como
o código de Hamurabi, o sistema de leis de Dario era administrado com,
no mínimo, uma preocupação teórica pela justiça.56
Outra realização foi a introdução de uma política fiscal completamente
revisada.57 Dario padronizou a cunhagem de moedas e definiu as medi­
das para pesos e medidas, facilitando sensivelmente todo o comércio. In­
felizmente essas reformas foram acompanhadas de uma drástica inflação
no império, o que ocasionou uma intervenção estatal no setor privado.
Essas alterações repercutiram mal por todo o império, e rapidamente con­
duziram Dario à ruína.
Uma terceira área de bastante atividade foram os projetos de constru­
ção civil. Por volta de 521, Dario removeu sua capital para Susã, situada
cerca de 482 quilômetros a noroeste da antiga capital, e lá construiu um
belíssimo e suntuoso palácio.58 É a essa estrutura que Ester e Neemias se
referem como a "cidadela de Susã" ("palácio de Susã" KJV). Mais tarde
em seu reinado, Dario empreendeu a construção de uma nova cidade cha­
mada Persépolis, onde ele intentava estabelecer permanentemente a capi­
tal do império. Ele chegou mesmo a dar início ao projeto, mas foi seu filho
e sucessor Xerxes quem deu continuidade à obra e completou-a totalmen­
te. Susã provavelmente continuou sendo a capital política e administrati­
va, ao passo que Persépolis tornou-se mais ou menos uma "casa de espe­
táculos", para onde os reis da Pérsia levavam seus convidados a fim de
impressioná-los com toda sua beleza.59
A única parte do império que ainda permanecia fora de todos esses pro­
gramas em 520 era a satrapia de Mudraya, isto é, o Egito.60 Dario dirigiu-se

56 Ibid., pp. 119-34.


57 Ibid., pp. 186-94.
58 William Culican, The Medes and Persians (New York: Praeger, 1965), pp. 87-89.
59 Ibid., pp. 89-90. Quanto a uma excelente pesquisa acerca da arte na Pérsia e sua arquite­
tura, ver em Denise Schmandt-Besserat, Ancient Persia: The Art of an Empire (Austin:
University of Texas, 1978).
60 Olmstead, History, pp. 141-44.
para essa terra distante em 519, passando com milhares de homens pela Síria
e Palestina. Essas terras banhadas pelo Mediterrâneo faziam parte da satrapia
babilónica, mas, devido a distância tanto de Babilônia quanto de Susã, esta­
vam menos suscetíveis à supervisão. Como resultado, os tumultos e rebeliões
eram freqüentes no local, e somente quando os reis persas aplicaram uma
intervenção direta, alguma medida de ordem pôde ser estabelecida.
Este foi o caso em Judá no ano 520. Os judeus começaram a reconstru­
ção de Jerusalém e do templo, mas imediatamente encontraram oposição
pelos samaritanos e Tattenai, o sátrapa da província. Dario foi informado
pelos líderes judeus que o próprio Ciro havia autorizado os projetos de
construção. Quando mandou investigar os anais do império e constatou
que tais palavras eram verdadeiras, Dario ordenou que as hostilidades
contra os judeus cessassem completamente. Sem dúvida seu itinerário pela
Palestina foi mais para averiguar se suas determinações tinham realmente
sido cumpridas.
Ao entrar no Egito em 519, Dario marchou livremente até a cidade de
Mênfis. Esta cidade rapidamente submeteu-se em razão da simpatia de
Dario pelo culto local, mas antes que pudesse consolidar seus objetivos no
Egito, teve de voltar às pressas para Susã, a fim de combater as tentativas
de usurpação do trono.61
Dario permaneceu em Susã nos anos seguintes, mas por fim reassumiu
sua campanha de expansão territorial. Em cerca de 516, ele já havia feito
campanhas em direção à índia, e então retornou à África para tratar com
os líbios. Mas as tentativas de penetração pelo norte não foram bem suce­
didas, pois ali ele encontrou forte resistência por parte dos Citas e foi for­
çado a retirar-se. Ainda insatisfeito, voltou-se para a Europa. Sua primeira
tentativa de dominar os estados do Egeu falhou quando os estados Jónicos,
que já faziam parte do Império Persa, decidiram proclamar a independên­
cia e passaram a ajudar seus irmãos de sangue que estavam sendo amea­
çados. Mas a vitória final pertenceu aos persas, e culminou na incorpora­
ção de todo o oeste da Ásia ao reino de Dario.62
Movido pelo ímpeto da vitória, Dario precipitou-se pelo mar Egeu, em
490, para conquistar a cidade de Atenas e outras cidades-estados que for­
mavam a península da Grécia.63 A cidade de Eretria sofreu séria destrui­

61 G.B. Gray e M. Cary, "The Reign of Darius," em Cambridge Ancient History, 2a edição,
editado por J.B. Bury et al. (Cambridge: Cambridge University Press, 1939), vol. 4, pp.
182-84, 212-14.
62 Ibid., pp. 214-28.
63 Ibid., pp. 233-68.
O E xílio e o P rimeiro R etorno 52 1

ção e seus habitantes foram levados em cativeiro. Por isso, os atenienses


enfrentaram os persas na decisiva batalha de Maratona, onde os persas
sofreram uma desastrosa e humilhante derrota, e foram forçados a retirar-
se dali para a porção continental da Ásia. Convencido de que o fracasso
devia-se à falta de contingente militar, Dario resolveu voltar mais uma
vez para atacar os gregos, pois queria terminar o que havia começado.
Mas a revolta que estourou no Egito impediu-o de concretizar a conquista
e, antes que pudesse resolver seus problemas internos e reassumir uma
campanha de guerra na Europa, Dario morreu, deixando seus planos nas
mãos de seu filho Xerxes (486-465).
Em bora tiv e sse os m esm os d e feito s de cará te r com uns aos
governantes poderosos — um orgulho sem fim, muita ambição pessoal
e supervalorização de habilidades pessoais — Dario era relativamente
perspicaz, culto e benigno. Ele projetou e iniciou a construção da mag­
nífica cidade de Persépolis, até hoje considerada uma das maravilhas
do mundo antigo. Também patrocinou a escavação do canal entre o rio
Nilo e o mar Vermelho. Um dos projetos mais importantes foi a criação
de uma rede de estradas que interligou completamente seu vasto im­
pério, além de um forte sistema postal que beneficiou a comunicação
entre as várias satrapias ali reunidas como nunca existira antes. E mais
importante de tudo, ele possibilitou o desenvolvimento de um ambi­
ente propício para o retorno dos judeus a Jerusalém. Debaixo de sua
administração eles estavam livres de qualquer ameaça, senão por aque­
les pequenos adversários ao redor.

O p rim e iro re to rn o

Ciro como um agente de Yahiveh

No século dezenove foi encontrado um cilindro cuja inscrição registrava


o grande decreto de Ciro autorizando os cativos da Babilônia a retornarem
para seus lugares de origem. A inscrição foi primariamente uma propagan­
da criada para demonstrar que Ciro havia sido chamado por Marduque,
deus da Babilônia, e que seu reinado era segundo a permissão de todos os
deuses. Não se pode negar a habilidade política e psicológica do homem.
De fato, sua política de permitir o retorno dos exilados para suas terras o
ajudou a ganhar o coração dos habitantes de seu reino.64

64 Essa política também tinha seu lado negativo. Ver Amelie Kuhrt, "The Cyrus Cylinder
and Achaemenid Imperial Policy," JSOT 25 (1983): 83-97.
522 H istoria de hRM.L \o A 1_

Os historiadores bíblicos e os profetas reconheceram que em Ciro se


cumpria o chamado de Yahweh, e não de Marduque. Yahweh foi quem
deu a Ciro as condições para cumprir a missão que lhe estava determina­
da. Isaías falou acerca dele como um "pastor" de Yahweh (44.28), o "ungi­
do" que era sustentado pela mão direita de Deus, de sorte que tinha poder
para submeter as nações (45.1). Seria ele o homem a quem o Senhor usaria
para fazer seu povo voltar e reconstruir sua cidade e templo.
Não é possível dizer qual foi a participação de Daniel neste processo, mas
não ajuda alguém achar que tenha sido um papel de grande importância. De
qualquer maneira, os exilados judeus entenderam que o decreto de Ciro pro­
vinha do próprio Deus. Tanto o cronista (2 Cr 36.22,23) como Esdras (1.1-4)
interpretaram o decreto como um cumprimento da palavra do profeta Jere­
mias e reafirmaram que fora Yahweh, e não Marduque, quem inspirou Ciro a
tomar esta nobre medida. Mas não se pode ler no texto que Ciro tenha se
tornado um adorador de Yahweh. Ele não era mais adorador de Yahweh do
que Nabucodonosor havia sido, quando exaltou Yahweh perante Daniel.
Ambos eram sincretistas que buscavam razões políticas para aceitarem seus
novos deuses em seus respectivos panteões. Não é possível negar, entretanto,
que ambos estavam sob o controle do Deus soberano dos céus e da terra, que
os usou, soubessem ou não, para cumprir os seus santos propósitos.65

Sesbassar, o líder do retorno

A principal fonte de informação acerca do primeiro retorno do exílio é


Esdras, o sacerdote zadoquita (7.1-5) e escriba profissional, além de mes­
tre da Torá. Embora ele mesmo não tivesse retornado a Jerusalém até 458,
oitenta anos após o decreto, obviamente ele possuía excelentes fontes, in­
cluindo os memorandos escritos e a palavra transmitida oralmente, e pro­
vê detalhes notáveis.
De acordo com Esdras, Ciro não apenas deu permissão para os judeus
retornarem para sua terra, como também estipulou que fossem assistidos
em tudo pelos povos que os cercavam (1.3,4). Além disso, os tesouros rou­
bados por Nabucodonosor do templo de Jerusalém e postos nos santuári­
os pagãos tiveram de ser devolvidos a Sesbassar, o príncipe de Judá. E
possível que Jeoiaquim tenha falecido nesses dias. Depois de ser designa­
do governador por Ciro sobre o recém-formado estado (5.14), Sesbassar

65 Eugene H. Merrill, "Daniel as a Contribution to Kingdom Theology," em Essays in Honor


of J. Dwight Pentecost, editado por Stanley D. Toussaint e Charles H. Dyer (Chicago:
Moody, 1986), pp. 211-25.
0 E xílio e o P rimeiro R etorno 523

conduziu os exilados de volta a Jerusalém (1.11), onde iniciou os funda­


mentos do novo templo (5.16). Visto que ele não mais é mencionado no
relato subseqüente, a identidade de Sesbassar tornou-se matéria de inten­
so debate. Muitos estudiosos afirmam com convicção que ele é Zorobabel66
— a figura de maior expressão política das primeiras décadas do Judá
restaurado. Porém, tal identificação torna-se quase impossível de defen­
der, uma vez que Zorobabel em momento algum é chamado de príncipe e,
além disso, não é filho de Jeoiaquim, mas de Sealtiel (Ed 3.8). É muito
mais provável que Sesbassar seja o mesmo que Shenazzar, um dos filhos
de Jeoiaquim mencionado em 1 Crônicas 3.18.67 No versículo seguinte,
Zorobabel é listado como filho de Pedaías, um outro filho de Jeoiaquim,
da mesma forma que Sealtiel. Ora, se ele era filho de Sealtiel ou de Pedaías,
Zorobabel seria sobrinho de Shenazzar (i.e., Sesbassar). É provável que
Sesbassar tivesse morrido logo depois de retornar para Jerusalém, e que
Zorobabel o tenha sucedido como líder do povo.

O número dos que voltaram

O número total dos que voltaram foi 42.360, acrescidos de 7.337 es­
cravos e 200 cantores (Ed 2.64,65). Parece que estes eram basicamente
judeus, embora não seja descartada a possibilidade de israelitas estarem
incluídos nesse grupo.68 Neemias observa que em seus dias (7.4,5), ou
seja, quase cem anos depois, Jerusalém ainda era um local pobremente
habitado. Dessa forma, Neemias buscou as listas genealógicas para de­
terminar ao certo se alguns dos que primeiro retornaram, em virtude de
sua linhagem, deveriam ter residido em Jerusalém ou em alguma locali­
dade vizinha. Isto corrobora a impressão de que apenas uma pequena
porcentagem de judeus que estava de volta era de fato natural de Jerusa­
lém. Entretanto, quando alguém lembra o sofrimento da cidade nas mãos
dos babilónicos em 605,597 e 586, e que apenas cerca de vinte e cinco mil

66 Por exemplo, Cari F. Keil, The Books of Ezra, Nehemiah, and Esther (Grand Rapids:
Eerdmans, 1950 reedição), p. 27.
67 Bright, History, p. 362; Hayim Tadmor, "The Babylonian Exile and the Restoration," em
A History of the Jewish People, editado por Haim H. Ben-Sasson (Cambridge: Harvard
University Press, 1976), p. 168.
68 Os povos cativos em Babilônia não deixaram de manter sua homogeneidade e identida­
de por todo esse período, de sorte que não teriam tido qualquer problema para se reuni­
rem em um grupo separado a fim de retornar para suas terras. Ver I. Eph'al, "The Western
Minorities in Babylonia in the 6th-5th Centuries B.C.: Maintenance and Cohesion," Or
47 (1978): 74-90, especialmente na p. S3.
524 H i s t ó r i a d e I s r a e l '. c .A

foram levados para o exílio, não é difícil acreditar que os naturais de


Jerusalém estivessem tão diminuídos em número. Além disso, os des­
cendentes dos judeus que nasceram e foram criados na cultura e estilo
de vida babilónicos estavam indubitavelmente inclinados a permanecer
na Babilônia, em vez de retornar para o que certamente seria um estilo
de vida radicalmente inferior.

P ro b le m a s d e c o rre n te s d o re to rn o

Deve ter se passado bastante tempo para o retomo ser organizado e a


jornada em si ser completada. Quando Esdras refere-se ao sétimo mês
(3.1), quer dizer o sétimo mês do primeiro ano daqueles que haviam
retornado para reconstruir a cidade e o templo. Provavelmente esta data
era 537, uma vez que o decreto de Ciro foi emitido em 538.69 Por aquele
tempo o povo começou a se estabelecer. No sétimo mês, sob a inspirada
liderança de Josué, o sacerdote, e Zorobabel, o povo construiu um altar
sobre as ruínas do antigo que estava no monte do templo e celebrou a
primeira festa dos Tabernáculos, pois não a comemoravam desde a de­
portação para a Babilônia. Então, como Salomão fizera séculos antes, o
povo mandou que trouxessem materiais de Tiro e Sido para iniciar a
construção da casa do Senhor. Os alicerces foram lançados no segundo
mês do ano seguinte, em 536, e todo o trabalho estava sendo supervisio­
nado pelos sacerdotes. Uma vez concluída esta fase, o povo reuniu-se no
local e regozijou-se na presença de Deus, cantando o mesmo hino que
Davi havia composto na ocasião em que a arca da aliança fora deposita­
da no tabernáculo construído no monte Sião (1 Cr 16.34). Mas a alegria
não era unânime, pois o prédio edificado em nada poderia ser compara­
do ao construído pelo rei Salomão. Os sentimentos misturados dos anti­
gos que se lembravam do primeiro templo (Ed 3.12,13) foram um dos
principais problemas enfrentados por Ageu (Ag 2.3).
O lamento dos anciãos deve ter desmoralizado Zorobabel e seus com­
panheiros, mas certamente não era o único problema que enfrentavam.
Os samaritanos, aquela mistura de israelitas não deportados com povos
do norte transplantados pelos reis assírios deu origem a um culto sincretista
que possuía aparência de Jeovismo, mas a essência era pagã. Assim que
ouviram sobre o retorno dos judeus e sobre a reconstrução da cidade e do
templo, quiseram unir-se imediatamente a eles. Reconhecendo a impure­

69 F. Charles Fensham, The Books of Ezra and Nehemiah, New International Commentary
(Grand Rapids: Eerdmans, 1982), pp. 58-59.
O E xílio e o P rimeiro R etorno 525

za do sistema religioso samaritano, e talvez motivados por um senso de


exclusividade, os líderes judeus declinaram da proposta. Assim despreza­
dos, os samaritanos tentaram impedir a obra do templo, uma hostilidade
que continuou por dezesseis anos (536-520).
Uma mudança na situação dos judeus surgiu com a ascensão de Dario
Hystapes ao trono da Pérsia em 522. Após dois anos, período necessário
para que sua autoridade fosse estabelecida, Dario pôde (em cerca de 520)
tratar de outras questões em locais mais distantes de seu império, o que
incluía o forte antagonismo entre os judeus e samaritanos. Os conflitos se
intensificaram depois que Ageu e Zacarias, no segundo ano de Dario, in­
centivaram fervorosam ente a retom ada das obras do tem plo. Os
samaritanos apelaram para Tatenai, o sátrapa de toda a região oeste do
Eufrates. Ele e seus subordinados, depois que investigaram a situação,
desafiaram a autoridade com que os judeus reivindicavam o direito de
reconstrução. Insatisfeito com a resposta dos judeus, Tatenai enviou uma
carta ao imperador Dario questionando a legalidade das construções fei­
tas pelos judeus (Ed 5).
Visto que os judeus apelavam para o decreto promulgado pelo impera­
dor Ciro, Dario passou a investigar nos anais de Babilônia se de fato tal
documento existia. Uma cópia foi descoberta em Ecbátana, a antiga capi­
tal da Média onde Ciro residia na época do decreto.70 Completamente con­
vencido da causa legítima dos judeus, Dario emitiu um parecer em favor
daquele estado: ordenou que Tatenai e seus homens não apenas cessas­
sem qualquer tipo de interdição no novo estado judaico, mas também que
financiassem toda a reconstrução e serviços religiosos associados ao novo
templo (Ed 6.6-12). Qualquer falha no cumprimento destas determinações
ocasionaria duras retaliações. Uma vez que Dario, alguns meses depois,
decidiu empreender campanha contra o Egito, é bem provável que ele
tenha parado em Jerusalém durante o caminho para constatar se suas or­
dens haviam sido cumpridas.

A in flu ê n c ia b e n é fic a d o s p ro fe ta s

Ageu

Conforme já se observou, Ageu e Zacarias tiveram influência direta no


encorajamento do povo, incentivando-os a prosseguir as obras de recons­
trução do templo. Por dezesseis longos anos pouco tinha sido feito, exceto

70 Olmstead, History, p. 57.


526 H isioría ut: 1>r \f. a .4 T i. "

a construção dos alicerces. Por outro lado, o povo construíra casas para si
mesmo e começava a desenvolver um próspero estilo de vida. Porém, a
casa de Yahweh estava em ruínas. E o povo acomodara-se diante da opo­
sição dos samaritanos.
O profeta Ageu, acerca de quem nada se conhece, falou primeiro. Pro­
vavelmente conhecendo que Dario havia se estabelecido em Susã e que,
não muito depois, apoiaria a causa dos judeus, Ageu exortou o povo para
que deixasse de lado seus próprios interesses e iniciasse as obras do tem­
plo imediatamente (1.4-9). Em três semanas, Zorobabel e Josué reuniram
uma força de trabalho com novo entusiasmo. Conforme a construção to­
mava forma, via-se que jamais poderia se comparar com a grandeza do
templo de Salomão. Mas isso não era o mais importante, Ageu dizia ao
povo. O que realmente importava era que um dia Yahweh encheria a hu­
milde estrutura com sua glória (2.6-9). Então nesse dia o templo verdadei­
ramente cumpriria sua real função.

Zacarias

Dois meses após o primeiro pronunciamento de Ageu, levantou-se po­


derosamente o profeta Zacarias, cuja mensagem clamava por arrependi­
mento. A obra no templo prosseguia, mas a mera construção não era sufi­
ciente para a necessidade básica do povo, que era restaurar o relaciona­
mento com seu Deus e renovar mais uma vez o pacto com Ele (1.2-6). Três
meses depois, ainda no segundo ano de Dario, Zacarias teve sua primeira
série de visões. Uma de suas mensagens afirmava que o templo seria con­
cluído. Também profetizou a vitória apocalíptica que Judá teria sobre to­
das as nações inimigas e a união de todos os povos arrependidos com
Yahweh, mediante o testemunho de seu povo. Zorobabel e Josué repre­
sentavam a autoridade civil e religiosa, e seriam grandemente exaltados
na presença do Messias no Dia escatológico (caps. 3—4). Então, em um ato
notável, Zorobabel aproximou-se de Josué e, vendo nele um protótipo do
Messias, coroou-o com o diadema real (6.9-15). Fazendo assim Zacarias
uniu os privilégios reais e cúlticos em uma só pessoa, da mesma forma
que Davi. Josué, de alguma maneira, simbolizava a linhagem davídica
rediviva.
O templo se completou em 515, no sexto ano de Dario, vinte anos
após os fundamentos serem lançados (Ed 6.15). Esta data marca o térmi­
no dos "setenta anos" profetizados por Jeremias no sentido religioso,
pois enquanto Yahweh não estivesse habitando em seu templo em Jeru­
salém, o povo nunca teria um lar de verdade. Embora a Shekinah, um
O E xílio e o P rimeiro R etorno 527

detalhe reservado para o fim dos tempos, não se manifestasse no encer­


ramento das obras de reconstrução, ainda assim o povo regozijou-se na
presença de Deus por toda sua bondade, e dedicou-lhe seu templo com
toda alegria e júbilo em seus corações, trazendo generosas ofertas para a
casa de Deus. Tanto judeus quanto prosélitos comemoraram a próxima
Páscoa com um entendimento especial, pois assim como Deus trouxera
seu povo para fora do Egito novecentos anos antes, ordenando-lhes na
ocasião a celebração da Páscoa, assim fazia agora aquele povo resgatado
do jugo e da escravidão em Babilônia, e que poderosamente havia
retornado para sua terra prometida.
Com o término da festividade segue-se um silêncio na história de Judá.
Os registros retornam pouco depois de Xerxes assumir o trono da Pérsia
(486-465). A bela judia Ester, depois de conquistar o coração do rei, muda­
ria todo o curso dos judeus no exílio.
RESTAI) RACÃO E NOVA
gf' E S P E R A N Ç A
A influência persa
Xerxes
Artaxerxes I
Ester
Outros retornos posteriores: Esdras e Neemias
O problema da prioridade
Esdras: sacerdote e escriba
Neemias, o governador
M alaquias, o profeta

A história do Israel no Antigo Testamento chegou ao fim cem anos de­


pois da construção do segundo templo. Pouca coisa se sabe nas Escrituras
acerca dos anos 515 a 474, de forma que o conteúdo desse capítulo deve
ficar restrito quase exclusivamente à metade do quinto século.1 As fontes
mais completas que discorrem acerca desses anos são os livros de Esdras e
Neemias, embora as contribuições de Ester e Malaquias também sejam
muito válidas para se obter um quadro mais preciso dos problemas en­
frentados pela comunidade judaica, a que permaneceu no exílio e a que
retornou para Judá.

A in flu ê n c ia p e rsa

A Pérsia continuou sendo a grande potência do mundo nos anos finais


da era bíblica de Judá e, de fato, continuaria ainda por muitos anos até o
aparecimento de Alexandre, o Grande, em 333 a.C. e sua conquista de
Persépolis, em 330. E importante então fazer uma breve revisão sobre a
história persa, de forma que a história bíblica possa ser ainda melhor com­
preendida.

1 Uma excelente fonte bibliográfica acerca deste período pode ser encontrada em
Menachem Mor e Uriel Rappaport, "A Survey of 25 Years (1960-1985) of Israeli
Scholarship on Jevish History in the Second Temple Period (539 B.C.E. - 135 C.E.),"
BTB 16 (1986): 56-58. As dificuldades de reconstruir a história de um período sobre o
qual há poucos textos bíblicos são bem descritos por Peter R. Ackroyd, "Faith and Its
Reformation in the Post-exilic Period: Sources," TD 27 (1979): 323-34.
530 H .s:

Xerxes

Dario Histapes, o rei por meio do qual o templo dos judeus foi nova­
mente construído, morreu em 486, sendo sucedido por seu filho Xerxes —
conhecido no Antigo Testamento por Assuero.2 Já por alguns anos ele ti­
nha sido apontado por seu pai como o herdeiro, de modo que não houve
tensão ou animosidade na substituição da liderança do império. Por sua
excelente administração em Babilônia, Xerxes foi admiravelmente prepa­
rado para assumir a responsabilidade maior no Império Persa.
Os anos iniciais da administração de Xerxes foram dedicados ao térmi­
no de seu palácio real em Susã, e ao embelezamento descomunal da cida­
de de Persépolis. Este último projeto foi o que mais ocupou-o durante os
vinte anos que esteve à frente do império (486-465). Sua maior preocupa­
ção, no entanto, era com o Egito, que se opusera contra a sua autoridade
logo que assumiu o trono. Contudo, a força de Xerxes era verdadeiramen­
te grande, de maneira que conseguiu resolver o problema egípcio em me­
nos de dois anos. Porém, reprimindo a religião egípcia, Xerxes alienou os
sacerdotes. Assim não poderia esperar uma subserviência egípcia.
Xerxes seguiu os mesmos passos de seu pai. Nutriu um interesse
incomum pelo oeste e pela conquista da Grécia. Após reorganizar seus
exércitos e navios, partiu para o oeste em 481. Os estados mal divididos
da Grécia não foram capazes de formar uma efetiva coalizão, sendo gra­
vemente feridos pelos persas. Mesmos os bravos espartanos foram derro­
tados na batalha de Termópila, uma luta sangrenta que lhes custou a vida
do último homem. Mas em Salamina o quadro mudou. Xerxes encurralou
milhares de guerreiros gregos na cidade e subestimou sua coragem quase
fanática. Como resultado, perdeu mais de duzentos navios. Foi necessário
buscar uma explicação para o grande fracasso, e os persas acusaram de
covardes os mercenários fenícios e egípcios. Ofendidos, os mercenários
decidiram retornar para suas terras, abandonando os exércitos persas.
Xerxes, então, decidiu voltar para a Pérsia, e deixou no comando das
tropas persas seu general Mardonius, que assumiu a guerra na Grécia. Em
razão de vários erros de estratégia, Mardonius foi perdendo batalha após
batalha, até que por fim perdeu a vida na batalha de Platea. O golpe final
nas aspirações de Xerxes à conquistar a Grécia foi administrado em Micale,

2 Quanto ao curso da história persa sob Xerxes, ver A.T. Olmstead, History of the Persian
Empire (Chicago: University of Chicago Press, 1948), pp. 230-88. Robert Dick Wilson, A
Scientific Investigation of the Old Testament (Chicago: Moody, 1959), p. 69, n. 25. Estas
obras têm demonstrado definitivamente que "Assuero" é a tradução do grego "Xerxes".
R estauração e N ova E sperança 531

em 479. Os gregos já haviam destruído dois dos exércitos persas e força­


ram o terceiro a recuar para a Ásia. Enquanto os persas permaneciam des­
norteados, os gregos percebiam que uma frente unida poderia prevalecer.
Em 478, eles formaram a Liga Deliana, cujo principal estado era Atenas.
As implicações deste ato para a criação de uma nação grega são óbvias.
Xerxes tornava-se completamente desacreditado. Iniciou deste modo
uma vida promíscua, relacionando-se com as mulheres mais belas da cor­
te, inclusive as esposas de alguns oficiais, semeando as sementes da dis­
sensão irreparável.3 Terminou, por fim, sendo assassinado por um oficial
do palácio ou marido ciumento.

Artaxerxes I

O governo deveria passar para Dario, filho mais velho de Xerxes, mas
seu irmão Artaxerxes assassinou-o e assumiu o trono da Pérsia. A conspi­
ração foi ajudada por Artabanus, o capitão da guarda.4 Artaxerxes tentou
restabelecer a confiança do povo na administração central do império me­
diante a reorganização do sistema de satrapias e pela redução das taxas de
impostos. Mas a medida não obteve o efeito esperado, e muitas terras par­
ticulares passaram a ser incorporadas pelo governo porque não consegui­
am pagar suas obrigações fiscais. O resultado foi a insatisfação e até mes­
mo revoltas, particularmente nas mais remotas províncias. Por volta de
460, os egípcios se recusaram a pagar os tributos aos persas, solicitando
apoio à Liga Deliana, que decidiu apoiá-los. Mas os persas conseguiram
subornar os espartanos para que declarassem guerra contra Atenas. Este
fato não apenas neutralizou o apoio da Liga Deliana aos egípcios, como
também prejudicou os atenienses, colocando ambos em perigo.
Atenas conseguiu sobreviver e formou um império próprio,5 provo­
cando a reação dos persas. De 450 até o início das Guerras do Peloponeso
(431), o controle territorial de ambos os lados do Egeu passava de um para
o outro, sem nenhuma vantagem permanente para os persas ou para os
atenienses. Péricles, orador e estadista, começava a conduzir os atenienses
para uma posição de liderança entre todos os estados gregos por volta de
458. Essa preeminência causou medo e ressentimento por parte dos ou­
tros estados. As guerras civis na região livraram Artaxerxes da preocupa­

3 Maiores informações acerca desses anos podem ser colhidas na obra de Heródoto, History
9.109-13.
4 Olmstead, History, pp. 289-90.
5 J.B. Bury, A History of Greece (London: Macmillan, 1963), pp. 346-425.
5A

ção com as províncias ocidentais, permitindo-o atentar para os problemas


internos, incluindo os conflitos em Judá com respeito à construção dos
muros de Jerusalém. Sua morte em 424 coincidiu aproximadamente com
o final do período do Antigo Testamento. Assim se torna o ponto apropri­
ado para o fim da revisão da história persa.

Ester

A única testemunha bíblica do reinado de Xerxes é o livro de Ester, cuja


historicidade tem sido negada por praticamente todos os estudiosos da
escola crítica.6 Tal rejeição não é porque o livro contradiz informações co­
nhecidas do período persa, grego, ou outra fonte extrabíblica7 — e certa­
mente não contradiz; mas provém do fato de que essas fontes não explici­
tamente corroboram os detalhes da Festa de Purim ou a existência de Es­
ter e seu primo Mardoqueu.8 Mas o silêncio jamais deve ser considerado
um argumento infalível em favor de alguma coisa, especialmente quando
se trata de historiografia. A menos que haja evidências realmente provem
o contrário, resta admitir que o livro de Ester é um documento perfeita­
mente digno de confiança, e que procura descrever fielmente todos os acon­
tecimentos ocorridos nos dias do narrador da história.
O livro de Ester inicia no terceiro ano de Xerxes (ca. 483). Nesse mo­
mento, o rei encontra-se em Susã, presidindo um majestoso banquete ofe­
recido em honra de seus subordinados espalhados por todo o império:
desde a índia até a Etiópia, conforme o próprio narrador explicita. Duran-

6 Para uma típica visão, ver J. Alberto Soggin, Introduction to the Old Testament, traduzido
por John Bowden (Philadelphia: Westminster, 1980), p. 404, que resume o seguinte: "O
que nós temos não são detalhes de acontecimentos que, na verdade, ocorreram, mas
uma novela histórica". Quanto a uma forte defesa da historicidade do livro, ver Gleason
L. Archer Jr., A Survey of Old Testament Introduction (Chicago: Moody, 1964), pp. 404-6; e
J. Stafford Wright, "The Historicity of the Book of Esther," em New Perspectives on the
Old Testament, editado por J. Barton Payne (Waco: Word, 1970), pp. 37-47.
' Conforme Robert Gordis faz menção, "Qualquer que seja a data, o autor de Ester mos­
tra-se intimamente conhecedor das leis da Pérsia, bem como de seus costumes e lingua­
gens durante o período acamenida." ("Studies in the Esther Narrative," JBL 95 [1976]:
44). Para uma visão semelhante, ver A. R. Millard, "The Persian Names in Esther and
the Reliability of the Hebrew Text," JBL 96 (1977): 481-88.
s Porém, um dos textos persas não datados, menciona um certo Marduka (o equivalente
babilónico do nome hebreu Mardoqueu), que foi um dos altos oficiais durante Dario
Histapes ou Xerxes. Carey A. Moore sugere que "Marduka pode ser o Mardoqueu da
Bíblia" ("Archaeology and the Book of Esther," BA 38 [1975]: 74).
R estauração e N ova E sperança 533

te seis meses Xerxes mostrou o esplendor de sua corte. Agora coroava sua
estratégia com um banquete de sete dias.9 Depois de uma semana de festa
e vinho, o rei ordenou que a rainha Vasti fosse trazida até os convivas, a
fim de que sua beleza lhes fosse exibida (Et 1.10-12). Quando Vasti se recu­
sou a apresentar-se, Xerxes a depôs da posição e passou a buscar outra
que pudesse assumir o lugar da rainha (Et 2.1-4).10
Assim o narrador introduz Ester, a moça judia que morava em Susã
com seu primo Mardoqueu. A presença deles ali sugere a larga exten­
são da diáspora judaica um século depois da queda de Jerusalém e,
como já se enfatizou, o fato de a maioria dos judeus permanecerem
na terra do exílio mesmo após a autorização do retorno para Jerusa­
lém. A influência da cultura babilónica é vista nos nomes dos prota­
gonistas da história.11 "M ardoqueu" é a transliteração para o hebrai­
co do nome do deus babilónico M ar duque. Por que um judeu piedoso
carregaria este nome não é fácil de responder.12 O nome da prima é
semelhantemente pagão em sua origem. "E ster" é uma forma de Istar,
a deusa babilónica do amor e da guerra. Ela também tinha um nome
hebreu, Hadassa, pelo qual provavelmente era conhecida na com uni­
dade judaica da cidade.
A proeminência de Mardoqueu na corte persa atesta que os judeus po­
deriam assumir altos cargos no governo e na sociedade.13 Não se deve
apoiar neste fato, entretanto, pois Mardoqueu orientou Ester a esconder
sua identidade judaica, sendo bem provável que ele tenha feito o mesmo.
Talvez isto explique por que ambos adotaram nomes pagãos para si.
Depois do tempo requerido para a preparação das moças, Ester foi de­
clarada rainha de Xerxes em seu sétimo ano (479). Por esse tempo, Xerxes
já era senhor tanto do Egito quanto da Babilônia. Mas nem todas as suas
campanhas militares foram bem-sucedidas, pois a guerra contra os gregos

9 Há, portanto, uma separação entre os seis meses de celebração e a semana do banquete.
Carey A. Moore sugere que essa celebração tinha a ver com a vitória sobre o Egito e com
uma demonstração de confiança em preparação para suas campanhas gregas (Esther,
Anchor Bible [Garden City, N.Y.: Doubleday, 1971], p. 12; ver também Wright,
"Historicity," em Neiv Perspectives, p. 37).
10 Wright, "Historicity" em New Perspectives, pp. 40-43, apresenta alguns argumentos para
demonstrar que a Vasti do livro de Ester não é outra senão a Amestris dos textos clássicos.
11 Moore, Esther, pp. 19-20.
12 Para mais informações, ver Michael D. Coogan, "Life in the Diaspora: Jews at Nippur in
the Fifth Century B.C.," BA 37 (1974): 10-11.
13 Ibid., p. 10; Bezalel Porten, Archives from Elephantine: The Life of an Ancient Jewish Military
Colony (Berkeley: University of California Press, 1968), pp. 279-80. -
HíiTüP'- :> E h ‘ kEi ' . , . . A vt: g T íin v r -:

revelou uma grande derrota. Em 479, Xerxes retornou do oeste e deixou


no comando de suas tropas Mardonius, que foi finalmente derrotado na
batalha de Platea. Parece claro que Ester se tornou rainha pouco tempo
depois que Xerxes se retirou da Grécia.
As derrotas de Xerxes podem ter suscitado uma conspiração contra
si, um plano descoberto por Mardoqueu, o qual seria executado por
dois oficiais do próprio palácio (Et 2.19-23). A atitude de Mardoqueu
foi registrada nos anais da Pérsia e teria importância vital para que
mais tarde ele pudesse ganhar o favor do rei. A necessidade de tal fa­
vor surgiu quando Xerxes promoveu Hamã a primeiro-ministro, e este
ordenou que todos os oficiais se ajoelhassem em sua presença, mas
Mardoqueu recusou-se a fazê-lo. Quando lhe perguntaram sobre o as­
sunto, Mardoqueu afirmou que o comportamento era contrário aos seus
princípios como judeu. Enfurecido, Hamã decidiu eliminar não apenas
Mardoqueu, mas também toda a comunidade judaica de Susã e em todo
restante do império. Na ocasião, Xerxes já havia desistido de atacar os
gregos, e buscava culpar alguém pelo seu fracasso. Aproveitando-se
do episódio, Hamã sugeriu ao rei que os culpados poderiam ser os ju ­
deus; a idéia não pareceu mal aos olhos de Xerxes. Assim o decreto
para a aniquilação dos judeus foi promulgado, e seria executado no
décimo segundo ano de Xerxes, em 474.
Durante esse intervalo, numa noite em seu palácio, o rei gastou parte
de seu tempo lendo os arquivos da Pérsia que registravam os grandes
feitos do reino. Então descobriu que o judeu Mardoqueu havia denuncia­
do a conspiração contra a vida do rei (Et 6.1-3). Percebeu ainda que nada
havia sido feito para recompensar o ato. Então decidiu honrar Mardoqueu,
fazendo-o um de seus oficiais superiores. Também declarou à rainha que
fizesse qualquer pedido. Corajosamente, Ester revelou sua identidade ju­
daica e relatou ao rei tudo o que Hamã planejava contra Mardoqueu e o
seu povo. Após tomar ciência de tudo, o rei ordenou a execução imediata
de Hamã e emitiu um outro decreto concedendo direitos de defesa para os
judeus de todo o império. Quando os oficiais de todas as províncias en­
tenderam que o próprio rei não era favorável à atitude de Hamã, suprimi­
ram toda campanha anti-semita. Por mais uma vez, o Deus de Israel es­
tendera seu poderoso braço em favor de seu povo.
Para comemorar esta poderosa libertação, o povo instituiu a Festa do
Purim, uma cerimônia que marcava o final do lamento e o início do júbilo
(Et 9.26-28). Juntamente com as demais festividades mosaicas, esta festa
também passaria a constar no calendário anual dos judeus, servindo como
testemunho da fidelidade do Senhor.
R estauração e N ova E sperança 535

O u tro s re to rn o s p o s te rio re s : E s d ra s e N e e m ia s

O problema da prioridade

Passados dezesseis anos da instituição da Festa do Purim em Susã,


Esdras, o sacerdote e escriba, empreendeu sua viagem de Babilônia para
Jerusalém, liderando também um contingente de judeus que decidiram
retornar para a terra santa. Ele especificamente data sua viagem no sétimo
ano do rei Artaxerxes, ou seja, em 458 (Ed 7.8). O seu retorno contou não
apenas com a permissão, mas também com um decreto do rei — o texto
que Esdras deixou registrado — que dizia que toda prata e ouro que Esdras
recebera do rei, de origem babilónica, poderiam ser usados no templo de
Yahweh, na compra de animais para oferecer os sacrifícios prescritos na
Lei, e que, para este fim, muitos judeus poderiam ser levados para se res­
ponsabilizarem pela compra dos animais. Caso as despesas fossem mais
altas que o previsto, os cofres da Pérsia estariam abertos para o comple­
mento. Por fim, Esdras também recebeu autonomia para estabelecer ofici­
ais do governo por todas as satrapias estabelecidas além do Eufrates. Es­
ses seriam homens entendidos nos assuntos administrativos e que preser­
variam a Torá.
Um problema que precisa ser tratado aqui é a identidade do Artaxerxes
que promulgou o decreto. A data do retorno de Esdras e a seqüência cro­
nológica de Esdras e Neemias dependem da resposta a esse problema. Os
eruditos tradicionais assumem que foi sob a administração de Artaxerxes
I (464-424) que Esdras fez sua viagem para Jerusalém, e que Neemias foi
beneficiado por este mesmo rei treze anos depois.14 As caravanas de Esdras
partiram quando Artaxerxes estava em seu sétimo ano (458), e Neemias
partiu em seu vigésimo ano (445).
Uma visão alternativa propõe que quem retornou de fato para Jerusa­
lém em 445, sob os auspícios de Artaxerxes I, foi Neemias, e Esdras não
viajou para a Palestina senão no sétimo ano de Artaxerxes II, que reinou
de 404 a 358.15 Este ponto de vista tem sido aceito por muitos nos meios
acadêmicos de ensino bíblico. O retomo de Esdras teria sido em 398, com
uma vantagem cronológica de Neemias sobre Esdras de mais de quarenta

14 Uma discussão detalhada do problema pode ser vista em John Bright, A History of Israel,
3a edição (Philadelphia: Westminster, 1981), pp. 391-402.
15 Otto Eissfeldt, The Old Testament: An Introduction, traduzido por Peter R. Ackroyd (New
York: Harper and Row, 1965), p. 554; Norman H. Snaith, "The Date of Ezra's Arrival in
Jerusalem," ZAIN 63 (1951): 62-63.
H u r '.?u. ■■ A--.-

e cinco anos. Por outro lado, a posição de John Bright é de que Esdras
chegou em 428, já que, segundo ele, o "sétimo ano" em Esdras 7.7,8 é um
erro, pois deveria constar "trigésimo sétimo ano", uma opinião defendida
sem muito fundamento.16
Há quatro grandes argumentos que vão de encontro ao ponto de vista
tradicional:
1. Neemias voltou para Jerusalém para reedificar as muralhas; embora pareça
que quando Esdras retornou, as muralhas estavam de pé.1718Porém, as palavras
de Esdras — "... Deus, para restaurar as suas ruínas e para que nos desse
um muro de segurança em Judá e em Jerusalém" (Ed 9.9b) — dificilmente
podem ser entendidas literalmente, uma vez que não havia muros ao re­
dor de Judá. Além disso, Esdras emprega a palavra gader para "muralha",
ao passo que a palavra comum para descrever as muralhas de Jerusalém é
hômâN Contudo, há razão para se acreditar que havia algum tipo de mu­
ralha construída pouco antes da chegada de Neemias, já que ele está sur­
preso pelo fato de estarem destruídas (Ne 1.3,4).19 Por que ele ficaria sur­
preso ao descobrir, 140 anos depois do evento, que Nabucodonosor der­
rubara as muralhas da cidade? De fato, é inconcebível que Neemias des­
conhecesse o acontecimento. A muralha que ele menciona devia ser uma
referida em seus dias.
2. Parece que Esdras e Neemias não faziam idéia da existência um do outro, e
não há evidências de que foram contemporâneos. As três passagens em que eles
aparecem juntos — Neemias 8.9; 12.26,36 — são simplesmente glosas posterio­
res.20 A última parte do argumento não possui qualquer base bíblica, e é
um clássico exemplo de se tomar uma questão como provada. A primeira
parte, então, perde completamente a sua força, uma vez que Neemias men­
ciona Esdras. O fato de Esdras não ter mencionado Neemias pode ser ex­

16 Bright, History, p. 400.


17 Ibid., p. 393.
18 F. Charles Fensham, The Books of Ezra and Nehemiah, New International Commentary
(Grand Rapids: Eerdmans, 1982), pp. 130-31; I.H. Eybers, "Chronological Problems in
Ezra-Nehemiah," Die Ou-Testamentiese Werkgemeenskap in Suid-Africa 19 (1979): 12.
19 Peter R. Ackroyd, Israel Under Babylon and Persia (London: Oxford University Press, 1970),
pp. 174-75. Esdras 5.3 pode estar indicando que Zorobabel dera início à reconstrução da
muralha. O significado do aramaico Tissarna é, por outro lado, pouco claro, embora a
Vulgata e a Síríaca traduzam-na como "muralha". Ver Cari F. Keil, The Books of Ezra,
Nehemiah, and Esther (Grand Rapids: Eerdmans, 1950 reedição), p. 27; Snaith, "Date of
Ezra's Arrival," ZAW 63 (1951): 58-59; Eybers, "Chronological Problems," Die Ou-
Testamentiese Werkgemeenskap in Suid-Africa 19 (1979): 10,12.
20 Eissfeldt, Old Testament, p. 552.
R estauração e N ova E sperança 537

plicado pelo fato de ele ter iniciado seu trabalho cerca de treze anos antes
de Neemias chegar à Palestina. Além disso, era comum contemporâneos
não mencionarem um o outro. Isto pode ser ilustrado por Ageu e Zacarias,
Isaías e Miquéias, e outros.
Tentando respeitar os textos em Neemias que se referem a Esdras, Bright
admite que ambos foram contemporâneos, mas mantém que Neemias sur­
giu primeiro. Ele também propõe uma reorganização cronológica do ma­
terial histórico. Na interpretação tradicional, Esdras retornou para Jerusa­
lém em 458 (Ed 7—8). Quando ele foi informado de que muitos de seu
povo haviam se casado com mulheres de outras culturas, raça e religião,
conduziu o povo a uma confissão pública de pecados (Ed 9— 10). Em 445,
depois de Neemias voltar e reconstruir as muralhas de Jerusalém, Esdras
leu a lei para os israelitas (Ne 8), que se arrependeram de seus pecados e
se comprometeram a guardar e cumprir a Lei (Ne 9— 10). Bright afirma
que, uma vez que Esdras foi comissionado por Artaxerxes para ensinar a
Lei (Ed 7.25), a leitura desta deve ter ocorrido logo após sua chegada. Além
disso, "a sensibilidade do povo quando confrontado pelo sacerdote por
causa dos casamentos mistos (Ed 10.1-4) e sua prontidão em conformar-se
com a Lei (v.3) sugere que a leitura pública já havia sido feita".21 Bright
então sugere que, logo que chegou à cidade em 428 (Ed 7—8; Ne 8), Esdras
procedeu à leitura da Lei, e o povo confessou seus pecados, jurando obe­
diência aos preceitos contidos na aliança de Moisés (Ne 9— 10).
A proposta de Bright seria bastante atrativa se não fosse o acréscimo do
número "trinta" para os versículos 7 e 8 de Esdras 7. Sua opinião é que a
passagem originalmente era lida como se Esdras viesse a Jerusalém no tri­
gésimo sétimo ano de Artaxerxes, em 428. Segundo essa cronologia, Neemias
chegou primeiro, em 445, retornou para Susã em 433, e então, em seu retor­
no a Jerusalém poucos anos depois, encontrou com o sacerdote Esdras pela
primeira vez. Porém, na busca de uma solução, deve-se achar outra manei­
ra de alcançá-la que não seja a manipulação arbitrária do texto.
3. Esdras parece ter tratado a questão dos casamentos mistos com mais severi­
dade do que Neemias. Argumenta-se que Neemias foi bastante leniente, exi­
gindo apenas que os pais não mais dessem seus filhos em casamento para
estrangeiros (13.25), ao passo que Esdras ordenou que todos os casamen­
tos já efetuados fossem desfeitos (10.10-14).22 Entretanto, esta é uma tênue
evidência. Se, conforme a visão tradicional mantém, a reforma de Esdras

21 Bright, History, p. 396.


22 J. Maxwell Miller e John H. Hayes, A History of Ancient Israel and Judah (Philadelphia:
Westminster, 1986), pp. 473-74; Snaith, "Date of Ezra's Arrival," ZAW 63 (1951): 61.
338 H is t ó r ia d e I s r a e l \ o A

aconteceu em cerca de 457 e a de Neemias em 430, depois que voltou de


Susã, os vinte e cinco anos que separam um do outro seriam tempo sufici­
ente para que os habitantes de Jerusalém e Judá se envolvessem nova­
mente no problema de casamentos mistos. Além disso, é arbitrário argu­
mentar que uma medida foi mais decisiva que a outra. Esdras e Neemias
responderam a situações peculiares que enfrentaram com medidas apro­
priadas, conforme percebiam o problema.23
4. O sumo sacerdote contemporâneo de Neemias foi Eliasibe (Ne 3.1,20,21;
13.28), mas Esdras retirou-se para as câmaras de Joana, o filho de Eliasibe (Ed
10.6). Como Esdras poderia preceder Neemias se, segundo as Escrituras,
ele viveu na época do filho do sacerdote que ministrava nos dias de
Neemias?24 Este argumento surge de Neemias 12.10,11,22, onde a linha­
gem sacerdotal é listada como Jesua, Joiaquim, Eliasibe, Joiada, Jonatã (uma
variação de Jeoanã, como também o é Joanã) e Jadua. Aqui está claro que
Joanã é, na verdade, neto de Eliasie, não seu filho, tornando o problema
ainda mais difícil de ser solucionado. Além disso, Joanã aparece no papiro
de Elefantina como sumo sacerdote de Jerusalém no décimo sétimo ano
de Dario II.25 Este seria o ano 407, cinqüenta anos após a data tradicional
da chegada de Esdras em Jerusalém e de suas reformas. Portanto, ele deve
ter retornado no sétimo ano de Artaxerxes II (ca. 398), e não no sétimo ano
de Artaxerxes I.
Em resposta, deve-se notar que o Eliasibe de Esdras 10.6 não é chama­
do de sacerdote, de forma que não pode ser o Eliasibe dos anos de
Neemias.26 Também Joanã é filho de Eliasibe em Esdras, mas neto em
Neemias. Josefo registra que este neto de Eliasibe matou seu próprio ir­
mão, Jesua, quando Bigvai, o sucessor de Neemias no governo, tentou
estabelecê-lo como sumo sacerdote.27 E difícil crer que Esdras se sentisse
confortável em repartir seu ministério com alguém de caráter tão corrom­
pido.
Uma proposta atrativa para harmonizar as evidências é oferecida por
Frank Cross, segundo a qual existe uma haplografia na genealogia sa­
cerdotal descrita em Neemias 12.28 Ele apresenta uma lista original em

23 Eybers, "Cronological Problems," Die Ou-Testamentiese Werkgemeenskap in Suid-Africa 19


(1979): 14.
24 Ackroyd, Israel Under Babylon and Pérsia, p. 193.
25 Miller e Hayes, History, p. 469.
26 Fensman, Ezra and Nehemiah, p. 136.
27 Frank M. Cross, "A Reconstruction of the Judean Restoration/' Interp. 29 (1975): 188-89
(publicada também no JBL 94 [1975]: 4-18).
28 Ibid., pp. 189-90.
R estauração e N ova E sperança 539

que constam dois Eliasibes e dois Joanãs, um par na época de Esdras e


outro na de Neemias. O problema com esta teoria é que não há qualquer
manuscrito que lhe sirva de apoio, sendo tida apenas como conjectura.
Embora isto aliviasse o problema da seqüência de Esdras e Neemias,
não é possível reconstruir textos baseando-se no que poderia apoiar uma
hipótese histórica.
De acordo com o exame desta evidência, parece claro que a visão cro­
nológica tradicional de que Esdras precedeu Neemias é a mais sensata. É
claro que tem os seus problemas, mas provê uma estrutura confortável
com a qual ambos os livros podem ser entendidos.

Esdras: sacerdote e escriba

Esdras recebeu permissão de Artaxerxes I para conduzir um grupo de


exilados de volta a Jerusalém. Este rei autorizou Esdras a tomar qualquer
decisão nas províncias além do Eufrates, o que incluía Judá. Será impor­
tante verificar se houve algum fator político que motivou Artaxerxes a
assumir esta posição beneficente, pois é difícil crer que o rei agia por mo­
tivos puramente carismáticos.
Já sugerimos que a neutralização da Liga Deliana, depois de 460, dei­
xou Artaxerxes livre para tratar com alguns assuntos mais próximos de
sua terra. Ele deu ordens a Megabyzus — um oficial que havia subornado
as autoridades de Esparta para guerrearem contra os atenienses, e que
também fora governador de uma de suas satrapias, a da Síria — para con­
duzir os exércitos da Pérsia para o sul, da Cilicia para a grande guerra no
Egito, os aliados dos atenienses. Depois de derrotar os exércitos atenienses
em Prosopitus (uma ilha no Delta do Nilo), Megabyzus conseguiu subme­
ter todo o Egito em 456.29 As evidências mostram que, já por volta de 458,
Artaxerxes considerou a província leal de Judá como um importante meio
da ação disciplinadora contra o Egito.30 E qual seria a melhor maneira de
efetuar isto senão concedendo a Esdras, um líder judeu popular e influen­
te, permissão para restabelecer a vida e cultura judaica naquela pequena
terra tão crucial para o sucesso da Pérsia?
Ao reunir a caravana que partiria para Jerusalém, no Canal Ahava,
Esdras os conduziu ao jejum e oração, e distribuiu entre os sacerdotes lí­
deres e os levitas os tesouros que recebera do rei e da comunidade judaica

29 Olmstead, History, p. 308.


30 Carl Schultz, "The Political Tensions Reflected in Ezra-Nehemiah," em Scripture in
Context, editado por Carl D. Evans et al. (Pittsburgh: Pickwick, 1980), pp. 233-34.
HhTORU. i’E U rree TEe í EE -

(Ed 8.15-30). Quando chegaram à cidade, apresentaram ofertas queima­


das a Yahweh e deram início à reconstrução e restauração. O templo havia
sido acabado cinqüenta e oito anos antes, mas desde aquele momento en­
trou em Judá um tempo de decadência moral e espiritual. Esdras viu-se
forçado a tomar medidas para purificar a vida religiosa e social da jovem
comunidade.
O primeiro ponto a ser tratado foi o casamento entre judeus e pessoas
de outras culturas. O sacerdote foi informado que o povo, sacerdotes e
levitas tinham constituído família desta maneira, contradizendo os ensi­
nos na lei de Moisés. Tão aflito estava Esdras que chorou profundamente
na presença do Senhor (Ed 9.3-15). Deus tinha sido fiel em preservar um
pequeno rebanho, e trouxe-os do cativeiro e do exílio, evitando que a vida
no estrangeiro destruísse o povo. Mas agora o sacerdote temia que este
povo abençoado se afastasse de Deus e perdesse os privilégios como povo
escolhido. Como fizeram seus antepassados, na época de Josué, quase mil
anos antes, eles também se envolveram em alianças impuras com os po­
vos da terra. Se o Senhor não lhes perdoasse o pecado, não haveria espe­
rança de permanecer na terra como a nação de Deus.
A resposta do povo resultou da angústia do sacerdote Esdras. Eles se
arrependeram e os sacerdotes e demais líderes reafirmaram seu compro­
misso para com a aliança do Sinai (Ed 10.1-8). Três dias depois, todos os
homens da nação estavam reunidos em Jerusalém e lá receberam instru­
ções para que dissolvessem aquelas uniões ilegais. Embora o relato não
esclareça muito o assunto, o fato é que os culpados por terem assumido
um relacionamento misto tiveram de divorciar-se de suas companheiras.
Mas a necessidade de uma ação similar vinte e cinco anos mais tarde sob
Neemias sugere exatamente o contrário.

Neemias, o governador

Nada mais está registrado acerca de Esdras e seu ministério depois de


seu primeiro ano em Judá até que Neemias chegou, em 445, treze anos
depois. Não resta dúvida de que esses anos foram bastante difíceis para
Esdras, com respeito à administração interna e a incessante oposição dos
samaritanos e outros povos. Os motivos que determinaram a ida de
Neemias à Jerusalém são um testemunho claro e evidente dos problemas
que Esdras enfrentava, e tudo o que Neemias lá encontrou apenas os con­
firma.
Depois que Megabyzus, o governador da Síria, conseguiu subjugar os
egípcios, tomou os comandantes da Grécia e do Egito e levou-os até Susã,
R e s t a u r a ç ã o e N ova E s p e r a n ç a 541

prometendo não lhes fazer mal. Esta promessa foi sustentada por muitos
anos, mas em 449, a viúva de Xerxes e rainha mãe, exigiu a execução de
Amestris. Ao perceber que as exigências da mulher foram acatadas,
Megabyzus enfureceu-se sobremaneira, fugiu de volta para a Síria e de lá
declarou sua independência do governo persa. No início, por ter um forte
contingente que o seguia, saiu-se vitorioso em duas guerras que os persas
lhe fizeram, mas depois de conseguir apoio para suas causas, retornou a
Susã e declarou-se novamente fiel ao rei da Pérsia.31
A relevância deste fato para a narrativa da viagem de Neemias rumo a
Jerusalém é que a satrapia Siro-Palestina encontrava-se em situação extre­
mamente precária. O rei Artaxerxes sabia que o acontecimento poderia se
tornar um modelo para futuras rebeliões nas províncias além do Eufrates,
e que, se isto realmente acontecesse, os persas não teriam condições de
reavê-las. Sem dúvida ele estaria disposto a tentar algo para consolidar
sua liderança naquelas longínquas províncias. Quando Neemias se tor­
nou voluntário para voltar a Jerusalém, o rei viu a oportunidade para o
cumprimento de seus desejos e projetos, pois seu copeiro sempre lhe tinha
sido leal. Assim ele seria o elemento-chave para manter a harmonia e sub­
missão de Judá à administração persa. A presença de Neemias seria um
instrumento de pacificação na região.32
Megabyzus rebelara-se em 449 e reafirmou sua lealdade em cerca de
dois anos depois. De acordo com Neemias, ele pediu autorização para
voltar a Jerusalém em 445, no vigésimo ano de Artaxerxes (2.1). Não seria
errado supor que as condições nas regiões siro-palestinas estivessem caó­
ticas depois de 449, e que ali havia uma necessidade quase desesperadora
de liderança. A situação de Judá era uma das mais difíceis, pois sofria
rebeliões e contra-rebeliões, além de estar frequentemente sob ataques
verbais, se não físicos, dos samaritanos e seus aliados. O relato acerca das
muralhas quebradas de Jerusalém refletem, com toda certeza, os conflitos
e devastações que a cidade sofrera durante esses anos.
Neemias é uma das figuras mais inspiradoras da historia bíblica. Como
foi nos dias da diáspora judaica, muitos jovens que ali residiam eram inte­
ligentes e capazes para assumir posições no governo persa. Neemias era
um desses que, por suas habilidades, foi levado à posição de copeiro do
rei.33 Para alguém exercer esta função era necessário haver uma confiança

31 Olmstead, History, pp. 312-13.


32 John M. Cook, The Persian Empire (New York: Schocken, 1983), p. 128.
33 Quanto ao verdadeiro significado da função de copeiro na corte persa, ver Olmstead,
History, p. 217: "Depois de Xerxes vem o copeiro que, nos tempos acamenidas, exercia
uma influência muito maior do que o próprio comandante-chefe do exército".
542 H istória de I srael s o A stig o T esta ie

mútua, pois o copeiro poderia ser subornado para derramar algum vene­
no no copo do rei ou fazer outra maldade semelhante. A despeito da in­
tensa fidelidade para com o rei, Neemias tinha uma fidelidade ainda mai­
or para com seu Deus. Embora jamais estivesse em Jerusalém, seu coração
pertencia àquela cidade, e como Daniel ele deve ter orado todos os dias
com a face voltada para Sião.
Em 445, o irmão de Neemias, Hanani, e alguns de seus companheiros de
viagem retornaram de Jerusalém (Ne 1.1-3). Não se sabe a natureza da via­
gem e nem se ele estava a serviço do rei, mas de qualquer forma eles relata­
ram a Neemias a desgraça e a tristeza que presenciaram em todos os cantos
da cidade. Ao ouvir essas palavras, o coração de Neemias ficou completa­
mente pesaroso, de sorte que entrou imediatamente em jejum e oração por
muitos dias. Ele lembrava ao Senhor as suas grandes e preciosas promessas
de restauração. Também se humilhou pedindo ao Senhor que ele pudesse
encontrar favor diante do rei, e depois disso fosse dispensado para viajar
para Jerusalém na intenção de ser usado por Deus de alguma forma.
Logo Artaxerxes notou no semblante de seu copeiro uma grande triste­
za e inquiriu dele o motivo. Após ser inteirado de todos os fatos que atri­
bulavam o espírito de Neemias, o rei autorizou a partida de seu copeiro
para a cidade de Jerusalém e lhe deu cartas reais que garantiam acesso
seguro por todas as províncias além do Eufrates, e patrocínio do governo
persa para a reconstrução (Ne 2.7,8). Quando chegou à cidade, Neemias
descobriu que a situação era bem pior do que imaginava. As muralhas e
outras estruturas estavam tombadas em ruínas e os oficiais e administra­
dores de outros distritos foram radicalmente contrários à reconstrução.
Um desses governadores, Sambalate, o Horonita, tem seu nome confir­
mado no papiro aramaico de Elefantina, onde está registrado que ele foi
governador de Samaria no décimo sétimo ano de Dario II, ou seja, em 407.34
Visto que por esse tempo ele já tinha filhos adultos, provavelmente ele ha­
via sido governador quarenta anos antes. Tobias, governador de Amom, é
menos conhecido.35 Gesém, o arábio, o terceiro principal antagonista, é
visto nos registros extracanônicos. A fonte primária dessas informações
é uma bacia de prata descoberta em 1947 em Tel el-Masskhütah, no Bai­

34 H.L. Ginsberg, "Aramaic Letters," em James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts
Relating to the Old Testament, 2a edição (Princeton: Princeton University Press, 1955), p.
492; Porten, Archives, pp. 289-93. A família de Sambalate é bem conhecida nos papiros
de Samaria; ver Frank M. Cross, "Papyri of the Fourth Century B.C. from Dâliyeh," em
New Directions in Biblical Archaeology, editado por David Noel Freedman e Jonas C.
Greenfield (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1971), pp. 47-48, 59-63.
35 Ver, porém, Benjamim Mazar, "The Tobiads," em IEJ 7 (1957): 137-45.
R e s t a u r a ç ã o e N ova E s p e r a n ç a 543

xo Egito.36 Da mesma maneira que três outras bacias, esta contém uma ins­
crição dedicatória à deusa Han'-Ilat. Além disso está escrito em certa linha,
"aquela que Qaynu, filho de Gasmu, rei de Quedar, trouxe como oferta para
Han'-Ilat." Gasmu é o Gesém da Bíblia. Com base na característica lingua­
gem aramaica, na natureza da bacia e nas moedas atenienses descobertas
no mesmo sítio, essa inscrição foi datada em 400.
O motivo maior para esses antagonistas resistirem à obra de restaura­
ção da cidade não se concentrava necessariamente no culto a Yahweh. Se­
tenta e cinco anos antes do episódio, é verdade que as razões estavam
diretamente relacionadas com o culto (Ed 5.3). Porém agora a resistência
era contra o restabelecimento de mais um estado rival e poderoso dentre
os demais daquela região. Certamente eles se uniram a Megabyzus em
sua revolta contra a administração persa, e passaram a ver o governador
Neemias como um líder a favor da dominação persa naquelas províncias,
tornando-se uma espécie de vigia para o rei Artaxerxes. O próprio fato de
eles se sentirem no direito de interferir nas reformas comandadas por
Neemias é uma prova de que já havia uma certa independência desses
povos para com o governo persa, especialmente depois de tomarem ciên­
cia do conteúdo da carta de autorização dada por Artaxerxes.37
Neemias não perdeu tempo: em três dias ele empreendeu uma grande
pesquisa do perímetro exato da cidade para, com os números exatos à
mão, poder determinar os passos necessários para a reconstrução dos
muros. Imediatamente os líderes se aproximaram e se dispuseram a aju­
dar na tarefa, de maneira que a obra não tardou a começar. Depois de uma
tentativa fracassada, Sambalate, Gesém e Tobias, que tentaram desestimular
o povo escarnecendo da obra, partiram para uma tática diferente: argu­
mentaram sobre a deslealdade dos judeus para com o trono da Pérsia,
mas isto foi em vão, pois a obra tinha sido autorizada pelo próprio rei. A
medida que a construção chegava ao fim, os inimigos de Israel se desespe­
ravam, percebendo que a cidade ficaria novamente invulnerável à ação de
exércitos estrangeiros. Para eles, tudo isso tinha dois significados básicos:
os judeus automaticamente proclamariam sua independência dos persas,
e depois buscariam o controle de toda a região, criando um reino redivivo
de Davi, o que não estava distante das perspectivas dos profetas. Neemias
teve de defender a obra contra todos esses ataques.

36 William J. Drumbrell, "The Tel el-Maskhuta Bowls and the 'Kingdom' of Qedar in the
Persian Period," BASOR 203 (1971): 33-34.
37 J. Alberto Soggin, A History of Ancient Israel (Philadelphia: Westminster, 1984), pp.
272-74. ’ ’
544 H istória de I srael \ o A.xtigo T esta mesto

Quando a tentativa de ridicularizar mostrou-se ineficaz, os adversários


da construção atacaram de outra forma: tentaram conquistar a amizade de
Neemias, oferecendo também seu apoio à reconstrução. Na verdade, havia
um plano para assassinar Neemias. Os protagonistas da conspiração foram
Sambalate e Gesém, que pediram para o governador encontrá-los em uma
planície conhecida pelo nome de Ono (Kafr'Anã),38 cerca de dezesseis qui­
lômetros a leste de Jope.39 Por cinco vezes eles entraram em contato com
Neemias. Na quinta vez o contato foi feito através de um documento oficial
onde Sambalate, o grande adversário de Neemias, acusava o governador
de manter em oculto ambições reais e que, no devido tempo, proclamaria
sua independência de Artaxerxes (Ne 6.5-7). Na carta, Sambalate deixou
transparecer que não revelaria essas coisas ao rei da Pérsia se, em troca,
Neemias se dispusesse a encontrá-los para algumas negociações.
Neemias imediatamente rejeitou a proposta, que seria uma maneira de
afastá-lo da cidade para ser sumariamente executado. Mas as intrigas não
tinham se esgotado. Um homem chamado Semaías, filho de Delaías, o
quinto a ser alugado por Tobias e Sambalate, suplicou a Neemias que bus­
casse refúgio e proteção no templo, a fim de guardar sua vida contra al­
guns assassinos que tencionavam matá-lo (Ne 6.10-14). Neemias compre­
endeu que tal demonstração de covardia repercutiria negativamente en­
tre o povo e, logo em seguida, baixaria sensivelmente o moral dos traba­
lhadores, além de desacreditá-lo diante da nação. Por isso, Neemias não
aceitou aquele conselho mortífero e, como homem de Deus, lançou-se pe­
rante a face do Senhor, buscando nEle refúgio e proteção.
Passaram-se apenas cinqüenta e dois dias e as paredes foram termina­
das. O curso e extensão da área urbana não podem ser determinados hoje,
em virtude da inacessibilidade arqueológica. Porém, o quadro que o livro
de Neemias apresenta da cidade de Jerusalém sugere que era bem menor
do que a Jerusalém anterior ao cativeiro.40 Somente depois que os macabeus
alargaram-na, no segundo século a.C., pode-se dizer que a cidade chegou
às mesmas dimensões de seus tempos antigos. Apesar de tudo, o término
da reconstrução das muralhas de Jerusalém frustraram as perversas in­
tenções dos inimigos de Judá, os quais puderam constatar que a mão de
Deus estivera em todo aquele negócio (Ne 6.16).

38 Yohanan Aharoni, The Land of the Bible (Philadelphia: Westminster, 1979), p. 440.
39 Esse era provavelmente considerado um lugar neutro, situado entre Asdode e Samaria,
e também fora das fronteiras de Judá; ver Jacob M. Myers, Ezra-Nehemiah, Anchor Bible
(Garden City, N.Y: Doubleday, 1965), p. 138.
40 Kathleen Kenyon, Jerusalem (New York: McGraw-Hill, 1967), p. 105-11.
R e s t a u r a ç ã o e N ova E s p e r a n ç a 545

Depois de assegurar que a cidade já estava bem protegida, Neemias


deu início à mais importante de todas as tarefas. Ele precisava agora reor­
ganizar toda a vida e administração pública e, acima de tudo, efetuar uma
sólida e profunda reforma espiritual.41 Logo de início, ele designou que
houvesse porteiros, cantores e outros que serviriam no santuário, além de
estabelecer seu irmão, Hanani, como o prefeito da cidade. Então passou a
tratar dos problemas econômicos da província (Ne 5.1-5). O profeta Ageu
já havia tocado no ponto central do problema, ou seja, ele percebeu que as
pessoas que tinham se restabelecido na terra preocupavam-se exclusiva­
mente com suas vidas, criando uma mentalidade puramente consumista,
construindo habitações cada vez mais atrativas e confortáveis, ao passo
que a casa de Deus permanecia em ruínas. Os pobres da terra também
estavam sendo esquecidos (Ag 1.2-6). Esse mesmo espírito prevaleceu du­
rante os dias do sacerdote Esdras, e agora confrontava N eem ias. O proble­
ma tinha se exacerbado pela guerra civil instigada por Megabyzus e a cons­
tante interferência dos samaritanos e seus aliados. Certamente o novo cer­
co em Jerusalém durante as semanas de construção provocou instabilida­
de no povo, aumentando a miséria para muitos, pois o alimento estava
em falta e os que o possuíam vendiam-no a preços exorbitantes'.
Tudo isso provocou uma confusão na economia sem precedentes. Al­
guns judeus tiveram de hipotecar suas casas em troca de comida, e outros
buscaram empréstimos com juros elevados na Pérsia. Muitos se viram in­
capazes, depois de algum tempo, de pagar o que deviam, de maneira que
foram obrigados a entregar seus próprios filhos e filhas aos credores para
serem vendidos como escravos. O mais vergonhoso era que os que lucra­
vam com a situação não eram os pagãos, mas os judeus ricos! Eles escravi­
zavam seus próprios irmãos e irmãs, ao mesmo tempo que a própria co­
munidade judaica usava esse dinheiro para libertá-los das mãos dos gen­
tios (Ne 5.6-8). Furioso, Neemias ordenou que essa prática perniciosa ces­
sasse, e todas as propriedades confiscadas fossem devolvidas a seus legí­
timos donos.
Outro passo administrativo e político tomado por Neemias foi a me­
lhor redistribuição dos judeus na terra. Aparentemente, a maioria dos que
retornaram do cativeiro tinha se estabelecido nos vilarejos e cidades em
que a destruição babilónica havia sido mínima. Jerusalém estava abando­
nada em virtude de sua destruição massiva (Ne 7.4). Mas agora que o

41 Quanto ao escopo da reforma, ver Edwin M. Yamauchi, "Two Reformers Compared:


Solon of Athens and Nehemiah of Jerusalem," em The Bible World, editado por Gary
Rendsburg et al. (New York: Ktav, 1980), pp. 269-92.
546 H i s t ó r i a d e I s r a e l s o A s t í g ^ T e í t -. v s

templo e as muralhas de Jerusalém estavam reconstruídos, a cidade rece­


beria um grande número de famílias que tentariam se restabelecer na ca­
pital de Judá. O plano desenvolvido por Neemias envolvia um levanta­
mento genealógico das famílias, permitindo que voltassem para a cidade
apenas aquelas que habitavam lá anteriormente.
Finalmente, estava próximo o sétimo mês daquele ano. Neemias ajun­
tou o povo em Jerusalém para celebrar os festivais de outono. No primei­
ro dia do mês, o dia de Ano Novo, Esdras pôs-se de pé para ler a Torá
diante de todos os que ali estavam (Ne 7.73—8.3). Quando alguns come­
çaram a chorar, Neemias os exortou a regozijar-se perante o Senhor, pois
aquele era um dia de festa. Eles começaram a construir suas tendas de
acordo com as instruções para a Festa dos Tabernáculos. Quando chegou
o décimo quinto dia do mês, celebraram por uma semana a maravilhosa
provisão de Deus para com seu povo no deserto, enquanto os conduzia
para a Terra Prometida. Durante todas as comemorações, Esdras lia as
Escrituras, e o povo se regozijava por este novo êxodo e preservação.
No dia vinte e quatro do sétimo mês, Neemias convocou uma assem­
bléia especial com o propósito específico de assumir um maior compro­
misso com a lei (Ne 9.1). O texto deste compromisso é apresentado em
forma de oração que inicia com a exaltação de Yahweh como o Criador:
somente Ele é Deus.42 Depois, o Senhor é apresentado como o Deus da
história que elegeu Abraão e os patriarcas, prometendo-lhes uma heran­
ça — a terra de Canaã. Ele os redimiu da opressão egípcia, deu-lhes a Lei
no Sinai, e depois de haver efetuado a correção e punição de muitos no
deserto, por causa de suas desobediências, introduziu-os na terra que
jurara dar a seus pais. Mesmo assim, eles continuaram a pecar até que
foram arrancados da terra e levados em cativeiro para várias nações es­
trangeiras. Foi uma dura lição, mas Deus sempre se mostrou gracioso
para com seu povo, e por sua misericórdia trouxe-os de volta. Estavam
novamente na terra, mas ainda permaneciam vassalos de um rei estran­
geiro (Ne 9.32-38). '
Uma vez que pronunciaram o compromisso com a Lei, os líderes escre­
veram essas palavras e puseram suas assinaturas no documento. Fizeram
uma aliança com aquelas palavras mediante o juramento e a maldição,
caso não as cumprissem. Da mesma forma todo o povo também se com­
prometeu com os preceitos e mandamentos da lei. Flouve um apelo espe­
cial para que o povo não se casasse com pessoas de outras nações, e não

42 Para Neemias 8-10 como um material do pacto, ver Dermis J. McCarthy, "Covenant and
Law in Chronides-Nehemiah," CBQ 44 (1982): 34-35.
R e s t a u r a ç ã o e N o va E s p e r a n ç a 547

negligenciasse suas obrigações para com a casa de Deus mediante a entre­


ga de seus dízimos e o oferecimento do primogênito.
Todos esses acontecimentos parecem ter ocorrido em um ano, 445, o
primeiro ano de Neemias em Jerusalém. Ele ficou na cidade por mais doze
anos, e depois voltou para Susã por um breve espaço de tempo (Ne 5.14;
13.6,7). Está claro que durante esses anos de ausência (ca. 433-430), o
repovoamento e redistribuição de terras autorizados por Neemias foi re­
almente posto em prática. Essa pode ter sido a ocasião em que o sacerdote
Eliasibe mudou-se para Jerusalém.43 De qualquer forma, quando Neemias
voltou de Susã para Jerusalém, encontrou Eliasibe na cidade e, para seu
profundo desgosto, achou também Tobias, seu velho adversário. Tobias
estava ligado por laços familiares de casamento a alguns dos líderes de
Jerusalém (Ne 6.17,18), e de alguma forma conseguiu um acesso direto ao
templo de Deus juntamente com todos os que apoiavam sua causa.
Neemias imediatamente mandou que Tobias fosse expulso das câmaras
do templo e determinou que estas fossem purificadas.
Não é possível determinar quais foram os negócios urgentes que im­
peliram o restaurador Neemias de volta para Susã em 443. Pode ser que
a resposta seja bastante simples: é possível que seu período de licença já
estivesse expirado, sendo-lhe necessário retornar para renová-la. De qual­
quer forma, ele não demorou muito na capital do império, embora sua
curta ausência tenha sido um período grande o suficiente para todo tipo
de problemas ressurgir. Neemias viu que os levitas tinham sido negli­
genciados, o dia de sábado já não era observado e os malsucedidos casa­
mentos mistos voltaram a ser comuns no meio do povo. Até mesmo um
dos filhos do sacerdote Joiada tinha se casado com a filha de Sambalate
(Ne 13.28)!
Mais uma vez, Neemias viu-se forçado a promulgar uma série de mu­
danças. Ele dedicou as muralhas44 — provavelmente no aniversário de
sua construção — e aproveitou a ocasião para estabelecer um sistema
que providenciava sustento para os levitas além das ofertas do povo de­

43 Fensham, Ezra and Nehemiah, p. 260. Fensham indica corretamente, em nossa opinião,
que esse Eliasibe não deve ser confundido com o sumo sacerdote Eliasibe, visto que este
jamais seria identificado como alguém responsável pelos armazéns do templo (Ne 13.4).
44 Embora muitos estudiosos liguem Neemias 12.27-47 com 6.15 (eg., Myers, Ezra-Nehemiah,
p. 202), não há nada implícito na "dedicação" que a limite ao ato inicial de compromis­
so. Bright (Histonj, p. 383) propõe que a dedicação inicial ocorreu alguns anos depois da
construção. As frases "naquele tempo" em Neemias 12.44 e "naquele dia" em 13.1, e a
unidade de 12.27-13.3 tornam claro que todos os eventos registrados dali em diante
aconteceram depois da volta de Neemias para Jerusalém em cerca de 430.
terminadas pela Lei. Ele também fez com que as determinações de Moisés
a respeito dos estrangeiros, especialmente os amonitas e moabitas, fos­
sem lidas, de sorte que não houvesse mistura na santa congregação de
Israel (Ne 13.1-3; cf. Dt 23.3-6). Essa atitude foi uma resposta direta à
presença de Tobias, o amonita, nos recintos sagrados do templo. "Pm s^-
guida, as palavras se voltaram contra o problema da quebra do sábado,
e Neemias determinou que este fosse observado tanto pelos judeus quanto
pelos gentios que ali habitavam, a fim de evitar o juízo e a ira divina.
Finalmente, Neemias repreendeu os culpados pelos casamentos mistos,
castigou-os fisicamente e os advertiu que a continuação desta'prática
desagradava principalmente ao Senhor. y *-

M a la q u ia s , o p ro fe ta

A última fonte de informação histórica do Antigo Testamento presenci­


ada por alguém que viveu aquela época é o profeta Malaquias. Pouco se
sabe acerca dele — até mesmo o seu nome45 — mas não está claro se seu
ministério chegou a coincidir com alguma parte do governo de Neemias.
A ausência de referências a Neemias e o fato de Malaquias ter falado con­
tra um povo que demonstrava evidente desequilíbrio social e religioso —
que Neemias havia corrigido quando voltou de Susã pela segunda vez —
sugerem que o profeta exerceu seu ministério durante os anos em que
Neemias esteve fora. Os anos de 433 a 425 provavelmente equivalem ao
período profético de Malaquias.46
Em Malaquias não há qualquer registro que indique a presença de
Neemias e Esdras.'Alguns estudiosos crêem que Esdras morreu antes de
432.47 Isso pode ser a resposta para a situação caótica de Judá durante os
anos de ausêricia de Neemias, uma condição que provocou o clamor de
Malaquias para o arrependimento nacional e para as reformas que estari­
am pqr vir através do próprio Neemias. O maior peso sobre o profeta é a
violação da aliança da Lei. Deus sempre amou seu povo, dizia Malaquias,
mas este nunca havia assimilado a profundidade deste amor, e na verda-

45 ......... , ....__ _____________________________ _ „„


para uma pessoa que, na verdade, tinha um outro nome. Ver Joyce G. Baldwin, Haggai,
Zechariah, Malachi (Downers Grove, 111.: Inter-Varsity, 1972), p. 211.
46 Walter C. Kaiser, Jr., Mnlachi: God's Unchanging Love (Grand Rapids: Baker, 1984), p. 17.
47 Por exemplo, Eybers, "Chronological Problems, " Die Ou-Testamentiese Werkgemeenskap
in Suid-Africn 19 (1979): 15. Se Esdras morreu antes de 432, a dedicação das muralhas
deve ter sido celebrada antes de Neemias retornar para Susã, pois Esdras é listado como
um dos participantes daquela ocasião (Ne 12.36).
R e s t a u r a ç ã o e N ova E sp e r a n ç a 549

de retribuía-o com desonra e desobediência (Ml 1.6-14). Tudo isto pode


ser visto na própria indiferença do povo para com as ofertas, pois enquan­
to se empenhavam em importar o melhor para suas próprias casas, os
sacrifícios eram da pior espécie, com animais cegos e doentes. Os próprios
sacerdotes se voltavam contra Deus, violando abertamente o compromis­
so de levitas (Ml 2.8). Além disso, muitos judeus tinham se divorciado de
suas mulheres, sinalizando assim seu descaso para com os ensinamentos
das Escrituras (Ml 2.10). Como resultado, o Senhor enviaria seu mensagei­
ro messiânico para purgar o mal enraizado no coração do povo e purificar
um remanescente que andaria diante da presença do Senhor em verdade.
Naquele dia, diz Malaquias, se levantará o "sol da justiça, trazendo salva­
ção nas suas asas" (4.2) e o Senhor "converterá o coração dos pais aos
filhos, e o coração dos filhos a seus pais" (4.6). E será assim que o eterno
propósito de Deus chegará à sua consumação, quando enfim a história
alcançará seu clímax através do maravilhoso ato de amor e sacrifício de
seu Filho Unigénito.
A história de Israel no Antigo Testamento se encerra com as derradei­
ras palavras do profeta que escreveu este último livro canônico. Mas a
história de Israel como um reino de sacerdotes não finda aqui. Neste sen­
tido, o Antigo Testamento acha sua expressão maior nas páginas do Novo
Testamento, com grandes propósitos de Deus para a Igreja e para o Israel
escatológico.
Nosso intuito nesta obra não foi apenas contemplar a história de Israel
como um fenômeno sóciopolítico, mas como o cumprimento do plano re­
dentor de Deus, ou seja, como uma mensagem teológica. A humanidade,
alienada de Deus pela queda, é ainda o objeto de seu amor e sua graça. O
Antigo Testamento conta a história da implementação da graça mediante
o veículo de um elemento humano (Abraão) que deu origem a uma nação
eleita (Israel), um reino de sacerdotes cuja tarefa era demonstrar o que
significa ser o povo redimido de Deus e o mediador da revelação salvadora
para o mundo.
A nação falhou miseravelmente nos tempos do Antigo Testamento, mas
o remanescente continuou e ainda continua a ser testemunha da aliança
inabalável que o Senhor faz com o seu povo. O reino de sacerdotes, então,
não é uma relíquia dos tempos e lugares antigos, mas uma manifestação
na terra dos graciosos propósitos do Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Esta bibliografia contém uma visão completa da história e civilização
do Antigo Oriente Próximo e de Israel. O maciço volume de literatura
nestas disciplinas requer que nossa lista seja altamente seletiva. Para arti­
gos de jornal acerca de tópicos mais específicos, veja as notas de pé de
página ao longo do livro.

O A n tig o O rie n te P ró x im o

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