Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bauman, Zygmunt
Etica pés-moderna / Zygmunt Bauman ; tradugdo Jodo Rezende Costa . — Sao Paulo:
Paulus, 1997.
(Critérios éticos)
Titulo original: Postmodern ethics.
ISBN 85-349-0904-0
1. Etica moderna — Século 20 2. Pés-modernismo I. Titulo. Il, Série.
96-4263 CDD-170
indices para catélogo sistematico:
1. Etica : Filosofia 170
Colegao CRITERIOS ETICOS
* Q Capital e 0 Reino, Timothy J. Gorringe
+ Etica pés-moderna, Zygmunt BaumanINTRODUGAO
A MORALIDADE NA PERSPECTIVA
MODERNA E POS-MODERNA
‘Seres esmagados séo melhor representados por pedagos e pecas.
Rainer Maria Rilke
Como indicado em seu titulo, este livro constitui um estudo de
ética p6s-moderna, e nao da moralidade pés-moderna.
Essa Ultima, se a tentdssemos aqui, buscaria um inventdrio o
mais compreensivo possivel dos problemas morais, com que os ho-
mens e as mulheres, habitantes de um mundo pds-moderno, se con-
frontam e lutam por resolver — novos problemas desconhecidos de
geragées passadas ou nao percebidos por elas, assim como novas
formas que tomaram agora velhos problemas, situados inteira-
mente no passado. Nao sao poucos os problemas das duas espécies.
A “agenda moral” de nossos tempos esta cheia de itens em que escri-
tores éticos do passado mal ou sequer tocaram, e por boa razdo: em
sua época eles néo eram articulados como parte da experiéncia hu-
mana. Basta mencionar, ao nivel da vida diaria, os miltiplos temas
morais que surgiram da atual situagéo das relagées entre os casais,
da parceria sexual e familiar — notérias por sua subdeterminacao
institucional, flexibilidade, mutualidade e fragilidade; ou a multi-
dao de “tradicdes”, algumas sobreviventes apesar dos empecilhos,
outras ressuscitadas ou inventadas, que lutam por lealdade e pela
autoridade de guiar a conduta pessoal — embora sem esperancas de
estabelecer hierarquia comumente acordada de valores e de normas
que dispensasse seus destinatérios da tarefa vexante de fazer suas
préprias escolhas. Ou, no outro extremo, 0 do contexto global da vida
contemporanea — podem-se mencionar os riscos de magnitude inau-
5dita e verdadeiramente cataclismica, que surgem das linhas cruza-
das de propésitos parciais ou unilaterais, que nao se podem determi-
nar de antem4o ou estéo fora do campo visual no tempo em que se
planejam as agées por causa da maneira como se estruturam essas
agées.
Esses problemas aparecem muitas vezes neste estudo, mas ape-
nas como pano de fundo contra o qual procede o pensamento ético da
idade contemporanea e pés-moderna. Trata-se deles como do contex-
to experiencial em que se forma a perspectiva especificamente pés-
moderna sobre a moralidade. E a forma como sao vistos e se lhes atri-
buem importancia quando contemplados da perspectiva ética pés-
moderna que é aqui 0 objeto de investigagao.
O tema verdadeiro deste estudo é a prépria perspectiva pés-
moderna. A afirmagao principal do livro é que, no resultado da idade
moderna, que atinge sua fase autocritica, muitas vezes autode-
nigrante e de muitos modos autodesmantelante (o processo que se
pensa que o conceito de pés-modernidade capta e comunica), muitos
caminhos antes seguidos por teorias éticas (mas nao pelos interesses
morais dos tempos modernos) comegaram a parecer mais semelhan-
tes a uma alameda cega; ao mesmo tempo se abriu a possibilidade
de uma compreenso radicalmente nova dos fendmenos morais.
Qualquer leitor familiarizado com “escritos pés-modernos” e
escritos correntes sobre pés-modernidade logo notara que essa inter-
pretagao da “revolugéo” p6s-moderna na ética é contenciosa, e nao é
absolutamente a tinica possivel. O que se chegou a associar-se com a
nogao pés-moderna da moralidade é muitissimas vezes a celebragao
da “morte do ético”, da substituigao da ética pela estética, e da “eman-
cipagéo Ultima” que segue. A propria ética é denegrida e escarnecida
como uma das constri¢gées tipicamente modernas agora quebradas e
destinadas ao cesto de lixo da histéria; grilhdes uma vez considera-
dos necessarios, agora estimados claramente supérfluos: outra ilu-
sao que homens e mulheres pés-modernos podem muito bem dispen-
sar. Se se precisar de exemplo dessa interpretacao da “revolugao éti-
ca pés-moderna”, nao se pode fazer pior do que consultar 0 estudo
recentemente publidado por Gilles Lipovetsky, Le crépuscule du
devoir (“O crepisculo do dever”, Gallimard, 1992). Lipovetsky, proe-
minente bardo da “libertagao pés-moderna”, autor de “A era do va-
zio” e “Império do efémero”, sugere que entramos finalmente na era
de l'aprés-devoir, uma época pés-deontolégica, em que se libertou
6
nossa conduta dos tltimos vestigios de opressivos “deveres infini-
tos”, “mandamentos” e “obrigagées” absolutos. Em nossos tempos,
deslegitimou-se a idéia de auto-sacrificio; as pessoas nao so esti-
muladas ou desejosas de se langar na busca de ideais morais e culti-
var valores morais; os politicos depuseram as utopias; e os idealistas
de ontem tornaram-se pragmaticos. O mais universal de nossos
slogans 6 “Nenhum excesso!” A nossa era é era de individualismo
ndo-adulterado e de busca de boa vida, limitada sé pela exigéncia de
tolerancia (quando casada com individualismo autocelebrativo e li-
vre de escripulos, a tolerancia sé se pode expressar como indiferen-
¢a). Aera que vem “depois do dever” sé pode admitir uma moralidade
muito “minimalista” e em declinio: uma situagao totalmente nova
segundo Lipovetsky — e ele nos aconselha aplaudirmos seu advento
e alegrar-nos com a liberdade que trouxe em sua esteira.
Lipovetsky, como muitos outros teéricos pés-modernos, comete
o erro gémeo de representar o tdpico da investigagaéo como um recur-
so investigativo; o que se deve explicar como o que explica. Descre-
ver comportamento prevalente nao significa fazer afirmagaéo moral:
os dois procedimentos so tao diferentes em tempos pés-modernos
como soiam ser em tempos pré-modernos. Se a descrigaéo de
Lipovetsky esta correta e nés nos confrontamos hoje com uma vida
social liberada de preocupagées morais, 0 puro “é” que nao se guia
mais por qualquer “deve”, um intercurso social descasado de obriga-
¢do e direito — a tarefa do sociélogo é mostrar como veio a suceder
que regulamentacao moral tenha sido “desencarregada” do arsenal
de armas outrora desenvolvido nas lutas auto-reprodutivas da socie-
dade. Se acontece que os sociélogos fazem parte da corrente critica
do pensamento social, sua tarefa também nao parara nesse ponto.
Recusar-se-iam a aceitar que algo esta certo simplesmente por exis-
tir, e também nao tomariam por concedido que o que os humanos
fazem nao é nada mais do que o que eles pensam que estao fazendo
ou como narram o que fizeram.
A hipétese deste estudo é que o significado da p6s-modernidade
repousa precisamente na oportunidade que oferece ao socidlogo cri-
tico de seguir a espécie, acima mencionada, de inquirigéo com um
propésito maior do que nunca antes. A modernidade tem a estranha
capacidade de frustrar a auto-andlise; ela embrulhou os mecanis-
mos de auto-reprodugaéo com um véu de ilusées sem o qual esses
mecanismos, sendo 0 que sao, nao podiam funcionar adequadamen-
7te; a modernidade devia propor-se alvos que nao se podiam atingir,
para atingir o que podia atingir. A “perspectiva pés-moderna”, A qual
se refere esse estudo, significa sobretudo 0 rasgamento da mascara
das ilusées; o reconhecimento de certas pretens6es como falsas e de
certos objetivos como inatingiveis, e nem, por isso mesmo, deseja-
veis. A esperanca, que guia esse estudo, é de que, sob essas condi-
goes, as fontes de poder moral que, na moderna filosofia ética e pra-
tica politica, estavam escondidas da vista, possam se tornar visiveis,
€ as razoes para sua passada invisibilidade possam ser mais bem
entendidas: e que, como resultado, as oportunidades de “moralizagao”
da vida social possam — quem sabe — ser reforgadas. Resta a ver se 0
tempo da pés-modernidade passard para a historia como creptsculo
ou como renascimento da moralidade.
Sugiro que a novidade da abordagem pés-moderna da ética con-
siste primero e acima de tudo nao no abandono de conceitos morais
caracteristicamente modernos, mas na rejeigdo de maneiras tipica-
mente modernas de tratar seus problemas morais (ou seja, respon-
dendo a desafios morais com regulamentacao normativa coercitiva
na pratica politica, e com a busca filoséfica de absolutos, universais
e fundamentagées na teoria). Os grandes temas da ética — como di-
reitos humanos, justica social, equilibrio entre cooperagao pacifica e
auto-afirmagao pessoal, sincronizagéo da conduta individual e do
bem-estar coletivo — néo perderam nada de sua atualidade. Apenas
precisam ser vistos e tratados de maneira nova.
Se se veio a se distinguir a “moral” como o aspecto do pensar,
sentir e agir do homem relativo a discriminagao entre “certo” e “er-
rado”, foi obra de modo geral da idade moderna. Na maior parte da
histéria humana, fez-se pouca diferenga entre padroes agora estri-
tamente distintos da conduta hunana, tais como “utilidade”, “verda-
de”, “beleza”, “propriedade”. No modo “tradicional” de vida, em que
raramente se olhava a distAncia e em conseqiiéncia raramente se
refletia, tudo parecia flutuar ao mesmo nivel de importancia, sendo
pesado sobre as mesmas escalas de coisas “certas” versus “erradas”
a serem feitas. A totalidade de modos e meios, em todos os seus as-
pectos, era vivida como se fosse avalizada por poderes que nenhuma
vontade ou capricho humano podiam desafiar; a vida em seu conjun-
to era produto da criagao de Deus, monitorada pela providéncia divi-
na. Vontade livre, se afinal existe, podia significar somente ~ como
8 -
santo Agostinho insistiu e a Igreja repetidamente repisou ~ liberda+
de de escolher 0 errado contra o certo — isto 6, de transgredir 0s man«
damentos de Deus: afastar-se do modo do mundo tal como Deus 0
ordenou; e tudo o que se afastava do costume era visto como trans+
gressdo desse tipo. Estar no certo, de outro lado, nao era questao de
escolha: significava, pelo contrario, evitar a escolha — seguindo o modo
costumeiro de vida. Tudo isso, porém, mudou com o gradual afrou-
xamento da forga da tradigao (falando sociologicamente — da vigi-
lancia coletiva apertada e ubiqua, ainda que difusa, e da adminis-
tragao da conduta individual) e com a crescente pluralidade de con-
textos mutuamene auténomos em que veio a se conduzir a vida de
crescente numero de homens e mulheres; em outras palavras, com 0
langar desses homens e mulheres na posigao de individuos, dotados
de identidades ainda-ndo-dadas, ou dadas mas esquematicamente —
confrontando-se assim com a necessidade de “construi-las”, e fazen-
do escolhas no processo.
Sao as agdes que a pessoa precisa escolher, agdes que a pessoa
escolheu dentre outras que podia escolher mas que nao escolheu,
que é preciso calcular, medir e avaliar. A avaliagdo é parte indispen-
sdvel da escolha, da tomada de decisao; é necessidade sentida por
humanos como tomadores de decisao, necessidade sobre a qual rara~
mente refletem os que agem apenas por habito. Uma vez que venha
a avaliar, porém, fica evidente que “util” nao é necessariamente “bom”,
ou “belo” nao tem que ser “verdadeiro”. Uma vez que se fez a pergun-
ta sobre os critérios da avaliagao, as “dimensées” da mensuragao co-
megam a ramificar-se e crescer em direcées cada vez mais distantes
entre si. O “modo certo”, uma vez unitdrio e indivisivel, comega a
dividir-se em “economicamente sensato”, “esteticamente agradavel”,
“moralmente apropriado”. As agdes podem ser certas num sentido, e
erradas noutro. Que agdo deve ser medida e por que critérios? E. se
numerosos critérios se aplicam, a qual dar prioridade?
Podem-se encontrar em Max Weber (quem mais que qualquer
outro pensador propés a agenda para nossa discussdo da experién-
cia moderna) duas apresentagées logicamente irreconcilidveis do
surgimento da modernidade. De um lado, ficamos sabendo que a
modernidade comegou com a separagdo entre o campo familiar e a
empresa de negécios — divércio que em principio podia prevenir ao
perigo de critérios mutuamente contraditérios de eficiéncia e
aproveitabilidade (que sao certos e adequados para negécios) e pa-
9drées morais de partilha e cuidado (que sao certos e adequados para
a vida familiar carregada de emogées) se encontrarem sempre no
mesmo territério, langando assim a pessoa que toma deciséo em po-
sigdo desesperadamente ambivalente. De outro lado, sabemos de
Weber que os reformadores protestantes tornaram-se, conscientes
ou ndo, os pioneiros da vida moderna precisamente porque insisti-
ram em que “a honestidade é a melhor politica”, que a vida em seu
conjunto esta carregada de sentido moral, que tudo que se fizer, em
qualquer area da vida, tem significado moral —e de fato produziram
uma ética que abarcava tudo e recusavam-se resolutamente a dei-
xar sem consideracao qualquer aspecto da vida. Sem divida, ha con-
tradigao légica entre as duas apresentacées. E todavia, contraria-
mente a légica, nao significa necessariamente que uma das apresen-
tagdes seja falsa. O busilis é precisamente que a vida moderna néo
se conforma ao “ou/ou” da légica. A contradigao entre as apresenta-
¢6es reflete fielmente o verdadeiro conflito entre tendéncias igual-
mente vigorosas da sociedade moderna; uma sociedade que é “mo-
derna” na medida em que tenta, sem cessar mas em vao, “abarcar 0
inabarcavel”, substituir diversidade por uniformidade, e ambivaléncia
por ordem coerente e transparante —e, ao tentar fazé-lo, produz cons-
tantemente mais divisées, diversidade e ambivaléncia do que as de
que se conseguiu livrar.
Ouvimos muitas vezes que as pessoas adquiriram mentalidade
individualista, interessando-se egocentricamente sé por si mesmas,
a medida que, com o advento da modernidade, ficaram sem Deus e per-
deram a fé em “dogmas religiosos”. A preocupacdo consigo mesmos,
que marca os individuos modernos, é, segundo essa apresentacao,
produto da secularizagaéo, podendo-se reparar tanto suscitando de
novo o credo religioso como estimulando uma idéia que, embora se-
cular, pudesse pretender com sucesso compreensividade semelhan-
te a das grandes religides que gozaram de dominio quase total antes
de serem assaltadas e aluidas pelo ceticismo moderno. E preciso, de
fato, ver as conexées em ordem inversa. E porque os desenvolvimentos
modernos forgaram os homens e as mulheres a condigao de individuos
que viram suas vidas fragmentadas, separadas em muitas metas e
fungées soltamente relacionadas, cada uma a ser buscada em con-
texto diferente e segundo pragmatica diversa — que foi improvavel
que uma idéia “onicompreensiva” promovendo vis4o unitaéria do
mundo servisse bem a suas tarefas e assim atraisse sua imaginagdo.
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Bsta 6 a razéo pela qual legisladorés 6 pensadores modernos
sentiram que a moralidade, antes de ser “trago natural” da vida hue
mana, é algo que se precisa planejar e inocular na conduta humana;
essa 6 a razao pela qual tentaram compor e impor uma ética oni
compreensiva e unitaria — ou seja, um cédigo coeso de regras morais
que pudessem ser ensinadas e as pessoas forgadas a obedecer; e essa
também é a razao por que todos os seus mais sérios esforgos de agir
assim se comprovaram vaos (embora quanto menos exitosos se com-
provassem seus esforcos passados, tanto com mais empenho o ten-
tassem). Criam honestamente que 0 vazio, deixado pela agora extin-
ta ou ineficaz supervisao moral da Igreja, podia e devia preencher-se
com um conjunto, cuidadosa e habilmente harménico, de regras ra-
cionais; que a razdo podia fazer o que a crenga nao estava mais fa-
zendo; que com seus olhos, tornados largamente abertos, e com suas
paixdées, postas em repouso, os homens poderiam regular seus rela-
cionamentos mtituos néo menos, e talvez mais e melhor (de maneira
mais “civilizada”, pacifica e racional) que na época em que se viam
“cegados” pela fé e em que seus sentimentos, nao dominados e nao-
domesticados, corriam selvagens. Em linha com essa convic¢ao, fize-
yam-se sem cessar tentativas de construir um cédigo moral que —
nao mais se escondendo sob mandamentos de Deus — proclamasse
em alto e bom som corajosamente sua proveniéncia “feita pelo ho-
mem” e apesar disso (ou antes, gragas a isso) fosse aceito e obedecido
por “todos os seres humanos”. De outro lado, nunca parou a busca de
um “arranjo racional da convivéncia humana” — um conjunto de leis
concebidas de tal modo, uma sociedade administrada de tal sorte,
que fosse provavel que os individuos, exercendo sua vontade livre e
fazendo suas opgoes, escolhessem 0 que é reto e apropriado e nao 0
que é errado e mau.
Pode-se dizer que, embora a condigdo existencial dos homens e
das mulheres sob as condigdes da vida moderna fossem muito dife-
rentes do que era antes, a velha pressuposigéo — de que a vontade
livre se expressa apenas em escolhas erradas, que a liberdade,
ndo monitorada, sempre verga para a licenciosidade e assim é, ou
pode-se tornar, inimiga do bem — continuou a dominar mentes de
filésofos e praticas de legisladores. Foi a pressuposicao tacita, mas
quase sem excegdo, do moderno pensamento ético e da pratica por
ele recomendada, de que individuos livres (e, situados nas modernas
condigées, s6 poderiam ser livres) deviam ser prevenidos de usar sua
Liliberdade para fazer o mal. E nao se admira. Quando vista “desde o
alto”, pelos responséveis pelo “curso da sociedade”, pelos guardas do
“bem comum”, a liberdade do individuo devia preocupar o observa-
dor; ela 6 suspeita desde o inicio, pela simples imprevisibilidade de
suas conseqiiéncias, de ser de fato constante fonte de instabilidade,
elemento de caos que se deve refrear para assegurar e manter a
ordem. E a visao dos filésofos e dos legisladores s6 poderia ser uma
“visdo do alto” — a visio dos que se confrontavam.com a tarefa de
legislar a ordem e reprimir 0 caos. Nessa visdo, para assegurar que
individuos livres fizessem 0 que é reto, alguma forma de coagao ti-
nha que entrar em jogo. Seus impulsos indéceis e potencialmente
maus deviam ser mantidos em xeque — seja a partir de dentro ou de
fora: seja pelos agentes mesmos, pelo exercicio de seu “melhor ‘juizo”,
suprimindo seus instintos com a ajuda de suas faculdades racionais
— ou expondo os agentes a pressées externas racionalmente planeja-
das que assegurassem que “nado compensa fazer 0 mal”, e assim fos-
se desencorajada de fazé-lo a maioria dos individuos na maior parte
do tempo.
Os dois modos de fato estavam intimamente conexos. Se os indi-
viduos fossem destituidos de faculdades racionais, nao reagiriam
adequadamente a estimulos e indugées externos, e os esforcos para
manipular recompensas e punigées, por mais habeis e engenhosas
fossem, seriam desperdicados. Desenvolver capacidades individuais
de julgamento (treinar individuos para ver o que é de seu interesse e
seguir seus interesses uma vez que os viram) e administrar os inte-
resses de tal maneira que a busca do interesse individual os levasse
a obedecer a ordem que os legisladores quisessem instalar, tinham
que se ver como mutuamente condicionantes e complementares; sé
teriam sentido juntos. Mas, de outro lado, ver-se-iam potencialmen-
te em propésitos cruzados. Visto “do alto”, o julgamento individual
jamais poderia parecer inteiramente confidvel, simplesmente pelo
fato de ser individual e assim enraizado em autoridade outra quea
dos guardiaes e porta-vozes da ordem. E era provavel que individuos
com verdadeira autonomia de julgamento dissentissem e resistis-
sem a interferéncia simplesmente por ser interferéncia. A autono-
mia de individuos racionais e a heteronomia de administragao racio-
nal nao poderiam ir um sem o outro; mas também néo poderiam
coabitar pacificamente. Estariam ajuntados para o melhor e 0 pior,
destinados a colidir e lutar sem fim e sem nenhuma perspectiva de
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paz duradoura. O conflito que o seu estar-juntos nunca parou de #@+
rar continuou sedimentando, num extremo, a tendéncia andrquica
de rebelar contra regras sentidas como opressao, e, no outro, as vie
s6es totalitarias que sé podiam tentar os guardas do “bem comum”.
Essa situagao aporética (aporia: em suma, uma contradigao que
nao se pode superar, uma contradi¢éo que resulta em conflito que
nao se pode resolver) havia de permanecer a sorte da sociedade mo-
derna, como um artificio auto-admitidamente “nAo feito pelo homem”
—mas foi a marca comercial da modernidade ndo admitir que a sorte
fosse irreparavel. Foi o trago caracteristico da modernidade, talvez 0
trago que a define, que a aporia tenha sido tida como conflito ainda
nao resolvido, mas em principio resolvivel, como transtorno tempo-
rario, como imperfeicdéo residual no caminho da perfeigdo, como res-
to de ndo-razdo no caminho do dominio da razdo, como momentaéneo
lapso de razao a ser logo retificado, como sinal de ignorancia, ainda
nao inteiramente superada, do “melhor ajuste” entre o individuo e
os interesses comuns. Um esforgo a mais, uma faganha maior da
razao, e a harmonia haveria de ser aleangada — para nunca mais se
perder. A modernidade sabia que estava profundamente ferida, mas
pensava que a ferida era curavel. E assim nunca parou de buscar
ungiiento curativo. Podemos dizer que permaneceu “modernidade”
enquanto e na medida em que se recusou a abandonar essa crenca @
esses esforgos. A modernidade refere-se esencialmente A solugdo de
conflito, 8 admissao de nenhuma contradigao exceto de conflitos aces-
siveis 4 solugdo e 4 sua espera.
O moderno pensamento ético, em cooperagéo com a moderna
pratica legislativa, lutou para abrir via a essa solucao radical sob as
bandeiras gémeas da universalidade e da fundamentagdo.
Na pratica dos legisladores, a universalidade significou o domi-
nio sem excegéo de um conjunto de leis no territério sobre 0 qual
estendia sua soberania. Os filosofos definiram a universalidade como
aquele trago das prescrigées éticas que compelia toda criatura hus
mana, s6 pelo fato de ser criatura humana, a reconhecé-lo como direito
e aceitd-lo em conseqiiéncia como obrigatério. As duas universalida-
des acenavam-se mutuamente sem realmente se fundirem. Mas coo-
peraram, estreita e frutuosamente, mesmo sem ter havido nenhum
contrato assinado ou depositado nos arquivos estatais ou nas biblio-
tecas universitarias. As praticas (ou intengées) coercitivas do legis-
13lador de uniformizacao supriram o “fundamento epistemolégico” so-
bre o qual os filésofos podiam construir seus modelos de natureza
humana universal, enquanto o sucesso dos filésofos em “naturali-
zar” o artificio cultural (ou antes, administrativo) dos legisladores
ajudou a representar o modelo legalmente construido do sujeito do
estado como a incorporagdo e o compéndio do destino humano.
Na pratica dos legisladores, as fundamentagées significavam os
poderes coercitivos do estado que tornavam a obediéncia as regras
expectativa sensata; a regra era “bem fundada” na medida em que
gozava do suporte desses poderes, e fortalecia-se a fundamentagao
com a eficdcia do suporte. Para os filésofos, as regras seriam bem fun-
dadas quando as pessoas, de que se esperava segui-las, criam que ou
podiam ser convencidas de que por uma razao ou outra segui-las era
a coisa certa a fazer. “Bem fundamentadas” eram essas regras 4 me-
dida que ofereciam resposta cogente 4 questao: “Por que devo obe-
decé-las?” Via-se a fixagdéo dessa fundamentagao como imperativo,
uma vez que era provavel que individuos auténomos, confrontados
com exigéncias legais/éticas, fizesem essas perguntas — e sobretudo
a pergunta: “Por que devo eu ser moral?” Em todo caso, os fildsofos e
legisladores esperavam que fizessem essas perguntas — visto que
ambos pensavam ou agiam com a pressuposigdo de que boas regras
devem ser regras artificialmente planejadas, sob a mesma premissa
de que os individuos, quando livres, nao abragariam de maneira ne-
cessariamente voluntaria boas regras sem ajuda, e sob o mesmo prin-
cipio de que, para agir moralmente, os individuos devem primeiro
aceitar as regras de comportamento moral, e de que isso no aconte-
ceria se nao estivessem persuadidos primeiro de que agir moralmente
é mais agradavel que agir sem moral, de que as regras, a que sao
chamados a aceitar, designam de fato o que é agir moral. De novo —
como no caso da “universalidade” — as duas versoes de “fundamenta-
ges”, sem nunca se harmonizarem, cooperavam e complementavam-
se mutuamente. A crenga popular de que as regras séo bem justi-
ficadas no que elas fazem facilitaria a tarefa das agéncias coercit:
vas, enquanto a pressao inflexivel das sangdes legais derramaria
sangue nas veias secas do argumento filoséfico.
Tudo por tudo, a busca perseverante e inflexivel de regras, que
“se fixardo”, e de fundamentagdes que “ndo se abalarao”, hauriu sua
forga da fé na praticabilidade e no triunfo tiltimo do projeto huma-
nista. Uma sociedade livre de contradigées irremoviveis, uma socie-
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dade que aponta o caminho, como a légica faz, para corrigir solugdes
somente, pode eventualmente ser construida, dados suficiente tem-
po e boa vontade. O planejamento certo e o argumento final podem,
devem e hao de ser encontrados. Com essa fé, os dedos chamuscados
néo doeriam demais, nao haveria esforcos iniiteis, e o fracasso das
esperangas de ontem s6 incitaria os exploradores a esforgos ainda
maiores hoje. Toda receita presumidamente “a toda prova” compro-
var-se-ia errada, desautorizada e seria rejeitada, mas nao a prépria
busca de receita verdadeiramente a toda prova, receita que, como
uma delas certamente haver4 de fazer, langara base para busca ulte-
rior. Em outras palavras, o pensamento e a pratica morais da mo-
dernidade estavam animados pela crenga na possibilidade de um
cédigo ético ndo-ambivalente e ndo-aporético. Talvez ainda nao se
tenha encontrado esse cédigo. Mas com certeza ele esta 4 espera na
virada da esquina. Ou na virada da proxima.
E a descrenga nessa possibilidade que é pés-moderna, “p6s” nao
no sentido “cronolégico” (ndo no sentido de deslocar e substituir a
modernidade, de nascer s6 no momento em que a modernidade ter-
mina e desaparece, de tornar a visio moderna impossivel uma vez
chegada ao que lhe é préprio), mas no sentido de implicar (na forma
de conclusao, ou de mera premoni¢do) que os longos e sérios esforgos
da modernidade foram enganosos, foram empreendidos sob falsas
pretensées, e sao destinados a terminar — mais cedo ou mais tarde —
0 seu curso; que, em outras palavras, é a propria modernidade que
vai demonstrar (se é que ainda nao demonstrou), e demonstrar além
de qualquer divida, sua impossibilidade, a vaidade de suas espe-
rangas e o desperdicio de seus trabalhos. O cédigo ético a toda prova
— universal e fundado inabalavelmente — nunca vai ser encontrado;
tendo outrora chamuscado muitissimas vezes nossos dedos, sabe-
mos agora o que nao sabiamos entéo ao embarcarmos nessa viagem
de exploragao: que uma moralidade nao aporética e nao ambivalente,
uma ética que seja universal e “objetivamente fundamentada”, cons-
titui impossibilidade pratica; talvez também um oximoron, uma con-
tradi¢ao nos termos.
E a exploracao das conseqiténcias dessa critica pés-moderna de
modernas ambigées que constitui 0 assunto deste estudo.
Sugiro que sao as seguintes as marcas da condigao moral, tais
como surgem uma vez contempladas desde a perspectiva moderna.
151. As assergdes (mutuamente contraditérias, se bem que amit-
de afirmadas com a mesma forga de convieao): “Os seres humanos
sao essencialmente bons, e apenas precisam de ajuda para agir se-
gundo sua natureza’”, e: “Os seres humanos séo essencialmente maus,
e devem ser prevenidos de agir segundo seus impulsos”, sio ambas
erréneas. De fato, os humanos sao moralmente ambivalentes: a
ambivaléncia reside no coragao da “primeira cena” do humano face a
face. Todos os subseqiientes arranjos sociais — instituigdes ampara-
das pelo poder, assim como as regras e os deveres racionalmente
articulados e ponderados — desenvolvem essa ambivaléncia como seu
material de construgdo, dando o melhor de si para purificd-lo de seu
pecado original de ser ambivaléncia, Os Ultimos esforgos so inefica-
zes ou acabam exacerbando o mal que desejam desarmar. Dada a
estrutura priméria da convivéncia humana, moralidde ndo-ambiva-
lente é essencial impossibilidade. Nenhum cédigo ético logicamente
coerente pode “harmonizar-se” com a condigao essencialmente
0 impulso moral; na melhor das hipsteses, pode silencid-lo e
paralisd-lo, tornando assim as oportunidades do “bem que é feito”
nao mais fortes, talvez mais fracas do que de outra forma teriam
sido. Segue que nao se pode garantir a conduta moral; nem por con-
textos melhor planejados para a agao humana, nem por motivos mais
bem formados da ago humana. Precisamos aprender a viver sem
essas garantias e conscientes de que nunca se oferecerdo essas ga-
rantias — de que uma sociedade perfeita, assim como um ser huma-
no perfeito, nao é perspectiva vidvel, ao passo que tentativas de pro-
var 0 contrario acabam sendo mais crueldade que humanidade e cer-
tamente menor moralidade.
2. Fenémenos morais sao intrinsecamente “nao-racionais”. Vis-
to que s6 séo morais se precedem A consideracdo de Propésitos e
cAlculos de ganhos e perdas, ndo se ajustam ao esquema de fins e
meios. Também escapam de explicagdes em termos de utilidade ou
servigo que prestam ou sdo chamados a Prestar ao sujeito moral, a
um grupo ou a uma causa. Nao sao regulares, repetitivos, monéto-
nos ou previsiveis de forma que lhes permitisse ser representados
como guiados por regras. EB principalmente por essa razdo que ndo
se podem exaurir por qualquer “cédigo ético”. Pensa-se a ética se-
gundo os padrées da Lei. Como faz a Lei, esforca-se ele para definir
as agdes “adequadas” e “inadequadas” em situagdes em que vigora.
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Propée-se um ideal (raramente atingido na pratica) de produzir de-
finigdes exaustivas e nao-ambiguas; tais como prover regras nitidas
para a escolha entre adequado e inadequado e nao deixar nenhuma
“Area cinzenta” de ambivaléncia e de miltiplas interpretagées. Em
outras palavras, age com o pressuposto de que em cada situagao de
vida pode-se e deve-se decretar uma escolha como boa em oposigées
a numerosas outras, e assim agir em todas as situagées pode ser
racional, visto que os agentes também s4o racionais como devem
ser. Mas essa pressuposigéo omite o que é propriamente moral na
moralidade. Muda os problemas morais do campo da autonomia moral
para o campo da heteronomia amparada pelo poder. Substitui 0 co-
nhecimento, que se pode aprender, das regras, pelo eu moral consti-
tuido pela responsabilidade. Coloca a responsabilidade para com os
legisladores e guardidos do c6digo no lugar que antes tinha sido da
responsabiliade para com o Outro e para com a propria consciéncia
moral, 0 contexto em que se faz a decisao moral.
3. A moralidade é incuravelmente aporética. Poucas escolhas (e
apenas as que sao relativamente triviais e de menor importancia
existencial) sao boas sem ambigiiidade. A maior parte das escolhas
morais sdo feitas entre impulsos contraditérios. O que, porém, é mais
importante é que quase todo impulso moral, se se age sobre ele ple-
namente, leva a conseqiiéncias imorais (da maneira mais caracte-
ristica, o impulso de cuidar do Outro, quando levado ao extremo, con-
duz a aniquilacao da autonomia do Outro, a dominagaio e opressdo);
todavia, néo se pode implementar nenhum impulso moral a nao ser
que o agente moral seriamente se esforce para estender 0 esforgo ao
limite. O eu moral move-se, sente e age em contexto de ambivaléncia
e € acometido pela incerteza. Dai que a situagao moral livre de ambi-
gitidade tenha apenas a existéncia utépica como horizonte e estimu-
lo talvez indispensaveis para um eu moral, mas nao como alvo rea-
lista de prdtica ética. Raramente atos morais podem trazer comple-
ta satisfagao; a responsabilidade que guia a pessoa moral est4 sem-
pre adiante do que foi e do que pode ser feito. Nao obstante todos os
esforgos em contrario, a incerteza acompanhard necessariamente
para sempre a condigao do eu moral. Pode-se, com certeza, reconhe-
cer 0 eu moral por sua incerteza se tudo o que devia ser feito foi feito.
4. A moralidade nao é universalizével. Essa afirmagdo ndo en-
dossa necessariamente 0 relativismo moral, expresso na proposigao,
muitas vezes proposta e aparentemente semelhante, de que a
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