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resenha

Book review

Ficções neurocientíficas e a medicalização das subjetividades


na contemporaneidade

Neuroscientific fictions and the medicalization of subjectivities


in contemporaneity

Ficciones neurocientíficas y la medicalización de las subjetividades


en la contemporaneidad

ANATOMIA DE UMA EPIDEMIA: PÍLULAS alimentando a epidemia de doenças mentais


MÁGICAS, DROGAS PSIQUIÁTRICAS E O incapacitantes.
AUMENTO ASSOMBROSO DA DOENÇA O autor entrevistou usuários e ex-usuários
MENTAL. Whitaker R. Rio de Janeiro: Editora de psicotrópicos, frequentou manicômios, re-
Fiocruz; 2017. 421 p. ISBN 9788575414927 uniões de médicos com pacientes, sessões gru-
pais; pesquisou em jornais, revistas científicas
doi: 10.1590/0102-311X00005818 e congressos médicos. Sobretudo com base na
exposição de algumas histórias reais evidencia a
complexidade da relação dos sujeitos com a me-
Robert Whitaker, jornalista investigativo, foi dicação e com suas supostas doenças, além da es-
ousado ao escolher como objeto de pesquisa os treiteza que é presumir que conflitos subjetivos
transtornos mentais e sua gestão contemporâ- possam ser resumidos a desequilíbrios químicos
nea, pautada quase que exclusivamente no uso que clamam por medicamentos.
de psicotrópicos. No livro Anatomia de uma Epi- Dessa perspectiva, o autor reatualizou dois
demia: Pílulas Mágicas, Drogas Psiquiátricas e o Au- pontos interligados e extremamente caros para
mento Assombroso da Doença Mental, o autor elege aqueles interessados na problemática da medica-
um enigma a ser desvendado: por que o número lização e, sobretudo, no campo do mental. Trata-
de doentes mentais inválidos teve um aumen- se da produção, pela medicina, de verdades e de
to vertiginoso nos últimos 50 anos nos Estados doenças. Na década de 1960, os teóricos clássicos
Unidos apesar da Revolução Psicofarmacológica da medicalização criticavam a crescente exten-
da década de 1950? são da medicina para campos que até então não
Ao iniciar o estudo, Whitaker não duvidava lhe pertenciam, o que fez emergir conflitos acer-
de que os pesquisadores houvessem descoberto ca do estatuto médico, social, epistêmico e onto-
as causas das doenças mentais e que tal conhe- lógico das doenças.
cimento ajudaria no desenvolvimento de drogas A autoridade para definir e tratar as con-
para controlar os “desequilíbrios” da química dições desviantes pressupõe a construção de
cerebral. Porém, sua exaustiva pesquisa desven- verdades sobre elas. A partir da constituição da
dou não apenas que o progresso na identificação Medicina Moderna, a leitura religiosa do des-
das causas biológicas dos distúrbios mentais e o vio, baseada no ideário cristão de salvação, foi
desenvolvimento de drogas eficazes para estas subvertida e se enunciou a problemática da cura,
condições são uma ilusão, mas também que o donde os discursos médicos passaram a regular
paradigma de tratamento medicamentoso vem as práticas e laços sociais de forma colossal 1.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença


Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodu-
ção em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja
corretamente citado. Cad. Saúde Pública 2018; 34(3):e00005818
2 resenha book review

Essa é a grande novidade da modernidade que mongering 2 a arte de “vender” doenças novas ou
sobrevive nos dias de hoje: a fantasia de que o de alargar os limites das categorias diagnósticas
discurso científico da medicina é produtor de já existentes como forma de aumentar o merca-
verdades inquestionáveis. Nessa seara, as ques- do de consumo das drogas psiquiátricas. Outros
tões são muitas: O discurso médico é um dis- autores têm usado o termo farmacologização 3
curso científico? O discurso psiquiátrico é um para expressar a medicalização contemporânea,
discurso médico? Há um único modelo de cien- fortemente pautada na transformação de condi-
tificidade? O que é um discurso científico? O dis- ções humanas em oportunidades para interven-
curso científico é um discurso verdadeiro? ções farmacológicas.
Whitaker não tem pretensões epistêmicas e O jornalista nos mostra ainda que os medi-
não se aventura em promover um debate sobre camentos são verdadeiras armadilhas, no sentido
a relação entre ciência e verdade, mas mostra de de promoverem um alívio sintomático a curto
forma bem fundamentada que apesar da histó- prazo, mas perturbarem um sistema de neuro-
ria contada pela Psiquiatria ser a de uma ciência transmissores que promove adaptações com-
rigorosa em ação, a realidade é muito distante pensatórias do cérebro. Em consequência dessas
disto. Os cientistas não identificaram qualquer mudanças, a pessoa que retira o medicamento
processo patológico ou anormalidade cerebral torna-se vulnerável a recaídas, o que provoca a
que pudesse causar os sintomas dos quais os pa- ilusão de que a droga é indispensável.
cientes se queixam. O autor afirma a inexistência Mas Whitaker argumenta que são as próprias
de estudos bem conduzidos de longo prazo sobre drogas – e não as doenças – as responsáveis pela
os efeitos dos psicotrópicos. Também desbanca, recaída. O uso contínuo das drogas psiquiátricas
com expressiva consistência teórica, a teoria do causa doenças mentais incapacitantes e tem ge-
desequilíbrio químico dos transtornos mentais. rado uma epidemia de doentes mentais crônicos.
Whitaker não se limita a apontar a fragilida- Illich 4 diria que estamos diante de uma iatrogê-
de da Psiquiatria como saber científico, mas nos nese clínica, isto é, que parte dos distúrbios psi-
mostra que diversos estudos evidenciaram a ine- quiátricos de hoje são doenças criadas na medida
ficácia das drogas psiquiátricas. Outros demons- em que são condições clínicas das quais os medi-
traram eficácia comprovada de alguns medica- camentos, os médicos e as instituições de saúde
mentos em termos de alívio de sintomas em cur- são os agentes patogênicos.
to prazo e um desastroso desfecho a longo prazo. Whitaker se pergunta por que, apesar das evi-
A evidência de que a maioria dos psicotrópicos dências, a sociedade acredita na existência de uma
tem efeitos benéficos a curto prazo mas cobram “revolução psicofarmacológica”. A problematiza-
um alto preço a longo prazo, tanto em termos fí- ção desse aspecto é, talvez, a maior fragilidade do
sicos quanto psíquicos, é o dado mais importante trabalho. O autor reduz a vitória da Psiquiatria
do livro. Ela nos faz entrar no segundo ponto ca- Biológica ao esforço de psiquiatras em superar a
ro aos estudiosos da medicalização: a produção imagem da fragilidade científica própria da espe-
de doenças. cialidade. Faz referência ao empenho dos psiquia-
Uma das faces clássicas da medicalização tras em reabilitar a imagem dos psicotrópicos e
é a expansão das fronteiras diagnósticas ou a contar a história dos transtornos mentais dentro
classificação de condições próprias da vida co- de uma perspectiva centrada exclusivamente no
mo transtornos mentais, passíveis de tratamen- modelo biomédico, fortemente associado à ver-
to médico. Whitaker reafirma essa realidade na dade científica no imaginário social.
atualidade da Psiquiatria, sobretudo no que se Como resposta à perda de mercado para ou-
refere à bipolaridade e à patologização dos com- tras terapias, que se mostraram mais eficazes,
portamentos de crianças e adolescentes. Auto- configurou-se aquilo que Whitaker denomi-
res contemporâneos têm chamado de disease nou de uma “aliança espúria” entre a indústria

Cad. Saúde Pública 2018; 34(3):e00005818


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farmacêutica e os psiquiatras. De fato, o autor formação da dor em sofrimento ao promover


tem bons argumentos para sustentar essa pre- processos de simbolização e criação de novos
missa. Porém, por não se aprofundar na reflexão circuitos pulsionais. Os medicamentos servem
sobre o que está em jogo em tal ilusão social, aca- ao registro da dor, em que não há apelo ao ou-
ba por se aproximar de uma apreensão ortodo- tro. Nesse sentido, o trabalho de Whitaker é uma
xa do fenômeno da medicalização, perdendo a leitura imprescindível, pois nos incita a rever o
oportunidade de refinar a problemática. paradigma de cuidado pautado no uso contínuo
Poderíamos perguntar o que incita as subje- de psicotrópicos.
tividades contemporâneas a se inscreverem tão
facilmente no circuito da farmacologização. Van
Der Geest & Whyte 5 sugerem que os medica- Paula Gaudenzi 1
mentos, em sua concretude, são commodities que
1 Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do
facilitam processos simbólicos e sociais. Eles in-
Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz,
dicam que a cura pode ser objetificada. Sabemos Rio de Janeiro, Brasil.
do poder atrativo das pílulas em uma governa- paula.gaudenzi@gmail.com
mentalidade neoliberal, cujo capital humano é o
novo bem a ser investido 6. A psicofarmacologia,
pautada num discurso que naturaliza a condição
1. Foucault M. O nascimento da clínica. São Pau-
humana, serve bem para as subjetividades con-
lo: Forense Universitária; 2005.
temporâneas forjadas no registro do empresaria- 2. Healy D. The latest mania: selling bipolar disor-
mento de si e da exigência de performance. der. PLoS Med 2006; 3:e185.
Remediar o mal-estar tornou-se sinônimo de 3. Williams SJ, Martin P, Gabe J. The pharmaceu-
ticalisation of society? A framework for analy-
medicar o mal-estar. A força da indústria farma-
sis. Sociol Health Illn 2011; 33:710-25.
cêutica é inquestionável, mas ela e os médicos 4. Illich I. A expropriação da saúde. Nêmesis da
não conseguiriam, sozinhos, fazer do medica- medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1975.
mento este objeto de desejo privilegiado da atua- 5. Van Der Geest S, Whyte SR. O encanto dos me-
lidade. O alívio da dor a curto prazo certamen- dicamentos: metáforas e metonímias. Socieda-
de e Cultura 2011; 14:457-72.
te é um dado fundamental para entendermos o 6. Foucault M. Nascimento da biopolítica: curso
apelo às drogas. Mas devemos considerar tam- no Collège de France. São Paulo: Martins Fon-
bém, com Birman 7, que a experiência psíquica tes; 2008.
contemporânea é marcada pelo triunfo da dor 7. Birman J. O sujeito na contemporaneidade: es-
paço, dor e desalento na atualidade. Rio de Ja-
sobre o sofrimento. O apelo ao outro está em
neiro: Civilização Brasileira; 2012.
baixa e é precisamente ele que possibilita a trans-

Cad. Saúde Pública 2018; 34(3):e00005818

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