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Vol 1_Imagens do Brasil nas lentes dos viajantes

Chapter · January 2016

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2 authors, including:

Maged Talaat Mohamed Ahmed Elgebaly


Aswan University
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Nosso projeto de ensino da língua portuguesa e suas manifestações culturais e políticas parte de uma perspectiva dialógica, intercultural, interacional e
interdisciplinar View project

Nesse projeto, procuramos levantar os conceitos da crítica cultural do neo-colonialismo e a hegemonia cultural View project

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Tempo de escrita e de ensaio
Imagens do Brasil nas lentes dos viajantes

Luciana Marino do Nascimento


Maged Talaat Mohamed Ahmed ElGebaly
(Organizadores)
Tempo de escrita e de ensaio
Imagens do Brasil nas lentes dos viajantes
Conselho Editorial Técnico-Científico Mares Editores e Selos Editoriais:

Renato Martins e Silva (Editor-chefe)


http://lattes.cnpq.br/4416501555745392

Lia Beatriz Teixeira Torraca (Editora Adjunta)


http://lattes.cnpq.br/3485252759389457

Ilma Maria Fernandes Soares (Editora Adjunta)


http://lattes.cnpq.br/2687423661980745

Chimica Francisco
http://lattes.cnpq.br/7943686245103765

Diego do Nascimento Rodrigues Flores


http://lattes.cnpq.br/9624528552781231

Dileane Fagundes de Oliveira


http://lattes.cnpq.br/5507504136581028

Erika Viviane Costa Vieira


http://lattes.cnpq.br/3013583440099933

Joana Ribeiro dos Santos


http://lattes.cnpq.br/0861182646887979

José Candido de Oliveira Martins


http://www.degois.pt/visualizador/curriculum.jsp?key=5295361728152206

Liliam Teresa Martins Freitas


http://lattes.cnpq.br/3656299812120776

Marcia Tereza Fonseca Almeida


http://lattes.cnpq.br/4865156179328081

Ricardo Luiz de Bittencourt


http://lattes.cnpq.br/2014915666381882

Vitor Cei
http://lattes.cnpq.br/3944677310190316
Tempo de escrita e de ensaio
Imagens do Brasil nas lentes dos viajantes

1ª Edição

Luciana Marino do Nascimento


Maged Talaat Mohamed Ahmed ElGebaly
(Organizadores)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2016
Copyright © da editora, 2016.

Capa e Editoração
Mares Editores
Imagem: Mapa das Américas de Diego Gutiérrez (1562)

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Tempo de escrita e de ensaio: Imagens do Brasil nas


lentes dos viajantes / Luciana Marino do Nascimento;
Maged Talaat Mohamed Ahmed ElGebaly
(Organizadores). – Rio de Janeiro: Mares, 2016.
218 p.
ISBN 978-85-5927-013-6
1. Análise e crítica literária. 2. Literatura I. Título.

CDD 801. 95
CDU 82

2016
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Tempo de escrever e de ensinar ........................................................... 13

Ensino de literaturas de língua portuguesa no Egito ........................... 16

Um aventureiro alemão no Brasil: Hans Staden .................................. 25

Uma paisagem tropical: Uma leitura da obra Tratado da Província do


Brasil, de Pero de Magalhães de Gândavo ........................................... 35

Dez Anos no Brasil: o relato de Carl Seidler ......................................... 43

O Brasil nas cores dos viajantes ............................................................ 62

O Relato de Viagem de Burton: Entre a História e a Literatura .......... 78

O Brasil no espelho de Fernão Cardim ................................................. 87

A Província do Espírito Santo vista pelo Viajante Auguste François


Biard ....................................................................................................... 99

De viagens e viajantes: Aimé-Adrien Taunay lê o Brasil .................... 116

Imagens do Rio de Janeiro vistas por um viajante francês................ 131

Notas e Notícias de um Viajante Brasileiro na Europa ...................... 147

O Sonho do Monarca: Um Império nas Letras ................................... 158

Oswald inventa uma História para o Brasil ........................................ 164

Cores do Brasil: Uma análise da “Chrônica Geral e Minuciosa do


Império do Brasil” ............................................................................... 177
Tempo de escrever e de ensinar

Para tudo há uma ocasião, e um tempo para cada


propósito debaixo do céu:
tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e
tempo de arrancar o que se plantou, tempo de curar,
tempo de derrubar e tempo de construir,
tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e
tempo de dançar,
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las, tempo
de abraçar e tempo de se conter, tempo de procurar e
tempo de desistir, tempo de guardar e Tempo de lançar
fora,
tempo de rasgar e tempo de costurar, tempo de calar e
tempo de falar.
Eclesiastes 3:1-7

O enunciado utilizado na epígrafe desse texto se coaduna com essa

proposta de publicação, ou seja, essa coletânea constitui um “ tempo de

ensaio” para a escrita dos nossos alunos da Graduação, após um tempo de

ensinar e dialogar com eles. Tal publicação é fruto dos resultados dos

trabalhos finais desenvolvidos na Disciplina de FUNDBRAS- Fundamentos da

Cultura Literária Brasileira, ministrada durante o primeiro semestre de 2016

- 13 -
e que privilegiou em sua ementa, um exercício das mais variadas leituras

sore o Brasil.

Vale ressaltar que a produção discente deve ser desenvolvida e

incentivada em diversas situações: no decorrer da Graduação, por meio dos

trabalhos desenvolvidos em sala de aula, na participação dos alunos na

iniciação científica (institucional, interna e voluntária), nos estágios

extracurriculares e/ou curriculares, na apresentação de trabalhos em

encontros científicos, nos trabalhos de conclusão de curso e na publicação

de artigos. Dentro dessa perspectiva, acreditamos que o incentivo à

publicação dos nossos alunos de Graduação constitui, na expressão de Pedro

Demo “um processo de competência humana, com qualidade formal e

política, encontrando no conhecimento inovador, a alavanca principal da

intervenção ética”.

Essa iniciativa se encontra articulada ao que hoje vem sendo um dos

grandes desafios da produção acadêmica, qual seja, a socialização do

conhecimento produzido na Universidade, em especial, dos alunos da

Graduação, tendo em vista que, na Pós-graduação, a publicação é uma das

exigências das agências de fomento. Dessa forma, é por meio de iniciativas,

- 14 -
ainda que pequenas, como esta, que se lançam as sementes para a formação

do futuro pesquisador e também do professor-pesquisador.

Cabe-nos ressaltar que hoje se encontra em curso um projeto de

pesquisa intitulado Cartografias urbanas nos universos brasileiro e árabe,

o qual inclui alunos da graduação em Língua Portuguesa da Universidade de

Aswan e alunos da Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, sendo que,

durante o mês de agosto, o Prof. Dr. Maged ElGebaly esteve em visita à

Faculdade de Letras, realizando uma série de palestras para os alunos da

instituição.

Profa. Dra. Luciana Marino do Nascimento


Departamento de Ciência da Literatura
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada
Faculdade de Letras da UFRJ.
Prof. Dr. Maged Talaat Mohamed Ahmed ElGebaly
Coordenador do Departamento de Língua Portuguesa da Universidade de
Aswan- Egito

- 15 -
Ensino de literaturas de língua portuguesa no Egito1

Prof.Dr. MAGED ELGEBALY2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Curso de graduação em Língua Portuguesa da Universidade de
Aswan foi criado em 2014 para formar egípcios com habilitação nessa língua
e em suas literaturas. Ele conta, até o presente momento, com 20
estudantes. Curiosamente quase todos são mulheres: 12 alunos no primeiro
ano e 8 alunas no segundo ano. O curso tem duração de quatro anos letivos,
(8 semestres), sendo que ao final dos quais os estudantes obterão o título
de Bacharel em Língua Portuguesa e suas literaturas. Também, para
acompanhar as novas dinâmicas cibernéticas dos nossos estudantes,
criamos o Grupo do Departamento de Língua Portuguesa da Universidade
de Aswan3 no Facebook e no Whatsapp. As interações do grupo do Facebook
são bastante dinâmicas e permitem ações, tais como: filiar-se a outros
grupos interessados na divulgação da língua portuguesa e suas letras,
agendar atividades dentro e fora do grupo, divulgar eventos, fazer novas
amizades, bater papo com professores e amigos dos países onde se fala
língua portuguesa, compartilhar materiais, vídeos e fotos e enviar
comentários. Assim, o grupo do departamento se orgulha hoje por ser um
espaço de diálogo entre várias culturas.

1
A primeira versão desse trabalho foi publicada sob o título “Apontamentos sobre o ensino
de literaturas de língua portuguesa no Egito”, nos Cadernos do CNLF Ensino de Língua e
Literatura , vol. XX, nº3, no II Congresso Internacional de Linguística e Filologia (CILF), do
Círculo Fluminense de Filologia e Lingüística (CiFEFiL) na Universidade Veiga de Almeidas
(UVA), 2016, Rio de Janeiro, diponível em
http://www.filologia.org.br/xx_cnlf/cnlf/cnlf_03/005.pdf.
2
Departamento de Língua Portuguesa-Universidade de Aswan
3
https://www.facebook.com/groups/494171350726055/?fref=ts

- 16 -
A criação do curso de graduação em língua portuguesa não foi tarefa
fácil, pois enfrentamos certos discursos que dificultaram a iniciativa, tais
como:
1- A língua portuguesa é uma segunda língua subordinada ao
departamento de língua espanhola, como é a situação da
Universidade de Ain Shams e outras universidades árabes.
Essa situação deriva da falsa crença popular de que a língua portuguesa é
um dialeto da língua espanhola.
2- A língua inglesa é suficiente para a comunicação entre os árabes e a
Comunidade dos Países Falantes de Língua Portuguesa.
Na verdade, nos países da CPLP, a população não domina a língua
inglesa e essa língua fica como um filtro que não transmite de modo natural
as memórias culturais dos falantes de língua portuguesa. Durante o processo
de abertura do departamento em Aswan, superamos esses discursos
destacando a relevância dessa língua na atual conjuntura mundial e a
necessidade do seu ensino para melhor comunicação entre os Países Árabes
e a CPLP. Esperamos poder continuar por esse caminho futuramente.

ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA EGÍPCIOS


No primeiro ano do curso, como foi o contato inicial do aluno com a
nova língua, ensinamos o português em variadas disciplinas: gramática,
conversação, leitura de textos, redação. Utilizamos no Departamento o livro
Falar, Ler, Escrever, de Emma Eberlein e Samira Iunes, o qual foi adequado
ao modo de aprendizagem com o qual está acostumado o aluno egípcio, por
apresentar metodologia estrutural-comunicativa. O livro é complementado
com a Gramática Ativa (I e II), de Isabel Coimbra e Olga Mata Coimbra,
versão adaptada ao Português Brasileiro por Lamartine Bião Oberg. Esses
livros são complementados com atividades de maior interação nas tarefas
comunicativas usadas na sala de aula com materiais autênticos.
Nos níveis iniciais e elementares, os estudantes enfrentaram certos
problemas linguísticos:

- 17 -
- No nível fonético, os alunos não faziam distinção entre o b e o p. Ambos
são fonemas de mesmo ponto e modo de articulação, mas o p não faz parte
da língua árabe. Exemplos de erros dos alunos são: núpio no lugar de núbio
ou combrar no lugar de comprar. Também foram constatados problemas na
distinção entre as vogais abertas e fechadas e na pronúncia dos sons nasais,
ausentes também na língua árabe. Contribuem para esses problemas
interferências da língua inglesa e francesa. Alunos com conhecimento prévio
de língua italiana não apresentaram problemas com as vogais, visto que o
português e o italiano têm maior semelhança nesse aspecto (exceto os sons
nasais).
- No nível morfossintáctico, os alunos também apresentaram problemas na
aprendizagem do gênero das palavras, especialmente as terminadas em –e,
-gem, ou em ditongo nasal. Não todos os problemas enfrentados pelos
alunos têm a ver apenas com a interferência da língua materna (o árabe),
mas ocorreram também outros tipos de problemas com a interferência da
língua estrangeira inglês. O inglês interfere na posição de adjetivo antes do
substantivo, então casos como Aswan é bonita cidade foram frequentes, por
exemplo.
- No nível semântico, os problemas se deram devido ao fato de os estudantes
terem desenvolvido na sua educação fundamental e secundária uma
mentalidade monossêmica, na qual uma forma tem um significado só e um
siginificado tem uma só forma de expressá-lo. Durante as oficinas de leitura,
mostramos como um significado pode ser expresso por variadas formas e
como uma forma pode ter variados sentidos dependendo do contexto e da
situação comunicativa. Assim, pretendemos passar de uma mentalidade
monossêmica a uma mentalidade polissêmica na interpretação dos textos.
Nem todos os problemas dos alunos são linguísticos, há outras questões
relacionadas com a aprendizagem e a comunicação. Quando o estudante
termina o primeiro livro da Gramática Ativa 1 e metade do livro Falar, Ler e
Escrever, já começa a ter um nível que oscila entre o elementar e o
intermediário, o que nos permite iniciar o ensino das literaturas de língua

- 18 -
portuguesa. Os estudantes começam, portanto, a ter contato direto com as
disciplinas de literatura a partir do segundo ano letivo, o terceiro semestre
do curso.
Ensino das literaturas de língua portuguesa
O Departamento adota a visão do professor Antônio Cândido da
literatura como um direito humano. No currículo do curso, a Literatura
consta basicamente nas disciplinas de Leitura de textos e História da
literatura, que visam desenvolver a competência literária dos estudantes.
Na disciplina Leitura de textos, trabalhamos com os tipos e os gêneros
textuais. Inicialmente, procuramos ensinar os tipos textuais, como a
descrição, a narração e a argumentação. Na disciplina História da literatura,
estudamos diferentes épocas da história da literatura portuguesa, brasileira
e aspectos das literaturas africanas, da Idade Média até a
contemporaneidade. Em cada etapa, o aluno aprende as principais
características da época, os autores relevantes e as obras canônicas de cada
época. Também, tentamos dedicar aulas específicas para questões teóricas
conceituais e técnicas, como as figuras da linguagem, as técnicas da poesia
e da pintura, as da narrativa e do cinema e as do drama e do teatro. Ao
decorrer da análise literária de textos escolhidos pelos próprios alunos, (a
partir de uma lista de escritores sugerida pelo programa), vamos
apresentando as questões teóricas da crítica literária.
No desenvolvimento dessa competência enfrentamos vários
desafios. Um deles é que o estudante, tomado pelo pensamento
pragmático, sempre espera aprender algo que possa usar como ferramenta
de trabalho. Por isso, ao início, despreza a reflexão literária. Aos poucos,
começa a sentir o gosto da experiência literária e sua relevância para a
compreensão da sua realidade.
Também, por serem falantes não nativos da língua portuguesa, os
estudantes egípcios têm problemas na compreensão da terminologia
literária em geral e dos conceitos da história da literatura luso-brasileira em
especial. Também, por isso começamos o ensino da literatura apresentando

- 19 -
as principais técnicas operadoras na leitura dos variados genêros literários
(narrativa, poesia, drama, etc).
Inicialmente, o estudante egípcio questiona as diferenças culturais
na literatura e se confronta com diversos modos de percepção dessas
diferenças. Muitas vezes são questionadas na sala de aula temas de gênero,
como o tipo de vestimenta da mulher, as relações sociais da mulher e seu
papel na sociedade. Também, são criticados os olhares eurocêntricos sobre
os árabes, os negros e os índios, promovendo um pensamento crítico e de
aproximação da diversidade cultural e do pensamento existente em ambos
os lados do atlântico. No decorrer dessas aulas com temas polêmicos,
procuramos criar um ambiente agradável e aconchegante, com petiscos,
café ou chás, para atenuar as tensões que podem surgir e incentivar a
experiência positiva da discussão acadêmica.
Também enfrentamos o fato de que os estudantes chegam ao curso
sem conhecimento dos principais acontecimentos da história mundial e,
especialmente, aqueles que influenciaram a literatura luso-brasileira
contemporânea, tal como o movimento de contra-cultura, ou, por exemplo,
as consequências da primeira e da segunda guerra mundial. Por essa razão,
tentamos valorizar bem mais a literatura como uma porta de entrada para
os alunos conhecerem o próprio contexto social em que estão inseridos. Na
medida em que vamos introduzindo um repertório de variadas referências
históricas, nossos estudantes vão deixando de considerar o repertório
islâmico como o único no mundo para produzir um olhar plural e crítico que
considere as diferenças culturais e se alimenta desta diversidade. Nesse
sentido, recorremos à estratégia das excursões a variados lugares históricos
no Egito, fora do espaço habituado do estudante, o que representa um
avanço na ampliação do repertório dos estudantes.
Outra estratégia que utilizamos foi promover visitas de falantes de
língua portuguesa para desenvolver atividades culturais e de pesquisa com
os estudantes. Ao mesmo tempo, organizamos a I e a II Jornada de Língua
Portuguesa. A primeira jornada ocorreu em 2015, com a visita do Prof. Dr.

- 20 -
Benjamin Abdala Junior, que ministrou conferência sobre as fronteiras
múltiplas na literatura. A segunda foi em 2016, com a visita do Prof. Dr. José
Clécio Quesado, que ministrou palestra sobre aspectos gerais da literatura
portuguesa. No mesmo ano, organizamos oficinas de leitura com o escritor
Habib Zahra e a artista plástica e ilustradora Valeria Rey, que nos
apresentaram seus livros O burro errante e O último golpe do lobo mau.
A ampliação desse repertório e o desenvolvimento da experiência
intercultural permite aos estudantes superar o olhar fragmentário e
começar a se apropriar de uma abordagem holística da realidade, a partir de
uma ótica que considere as novidades das Ciências Humanas e Sociais.
Benjamin Abdala Júnior (2012) destaca que

A historiografia assim entendida não se volta apenas para


o que já foi, mas recupera a memória em seu processo
para projetá-la para o futuro. Este, para Ernst Bloch,
afigura-se como um princípio esperança (BLOCH, 1976),
uma forma de utopismo ontológico onde o homem, ativo
e inquieto, sente-se desejoso de aperfeiçoamentos
futuros.

Assim, com o ensino e a aproximação dos processos históricos das


literaturas de língua portuguesa, vemos nascer no estudante a
desconstrução gradual das religiosidades fechadas, o desenvolvimento de
diálogos internos entre a cultura secular e a religiosa e o pensamento crítico
das tradições das gerações mais velhas; a abertura às diferenças culturais e
a reflexão intercultural sobre sua realidade, seu corpo e os contrastes
sociais. Dessa maneira, o contato dos alunos egípcios com as literaturas de
língua portuguesa apresenta uma reinterpretação dos valores éticos e
estéticos da sua realidade.
Cabe ressaltar que os alunos desenvolveram, a partir das aulas da
história das literaturas de língua portuguesa, uma série de reflexões sobre
as questões de gênero e do papel da mulher na sociedade. E essas reflexões

- 21 -
literárias participam, portanto, do desenvolvimento emocional e social da
personalidade dos estudantes. Nesse sentido, o professor Benjamin Abdala
Júnior (2012) afirma que:

A história da literatura deve ser vista, entendemos,


nessa plurivocidade discursiva, com relatos
entrecortados, conflituosos, como matéria voltada
para o antes que pode vir a ser o depois. No
enovelado de linhas que se embaraçam, torna-se
necessário se buscar ainda intersecções e
confluências com conjuntos de outros repertórios,
sem perder a especificidade do modo de se conhecer
a realidade que vem da literatura.

AVALIAÇÃO DOS ESTUDANTES


Como prática das instituições universitárias egípcias, no final de cada
semestre, os estudantes são submetidos a provas. Buscamos, no nosso
departamento, elaborar avaliações que possam explorar o conhecimento do
aluno sobre os conceitos históricos e literários, com perguntas de análise e
de crítica e que impliquem a relação entre as ideias. Na disciciplina de
interpretação de textos, no primeiro ano, a prova tem como foco as
habilidades gerais de compreensão textual, como a identificação do tema e
a conexão entre as ideias. A partir do segundo ano, a prova tem outra parte,
que foca na compreensão de um gênero literário como a poesia, a narrativa
e o drama e o conecta a outras linguagens da arte. A disciplina história das
literaturas de língua portuguesa tem uma prova própria e varia entre
perguntas dissertativas e perguntas de múltiplas escolhas. Em todo o
processo da avaliação, nosso principal objetivo é a orientação e não a
penalização e, por isso, recorremos a um caminho mais contrutivo a partir
da experiência que traz o estudante para a sala da aula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

- 22 -
Ao longo do nosso relato, mostramos aspectos do ensino da língua
portuguesa e de suas literaturas no curso de Línguas do Departamento de
Língua Portuguesa na Universidade de Aswan, no Egito. Essa experiência nos
mostrou variados tipos de diálogos interculturais. Temos o diálogo não
somente entre as literaturas de língua árabe e as literaturas de língua
portuguesa, mas também entre as literaturas nacionais e regionais da CPLP
e seus canônes literários legitimados. Nesse diálogo, emerge a
problematizaçao da canonização literária no currículo, mas surge também o
diálogo entre literaturas de língua portugesa e literatura Iberoamericana,
entre literaturas de língua portuguesa e outras literaturas do continente
americano, europeu e asiático. Todo esse processo apresenta o potencial de
conduzir a formação de novos leitores das literaturas de língua portuguesa
em espaços inéditos e promissores.

Bibliografia

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Literaturas em Língua Portuguesa: histórias e


estórias. Matraga (Rio de Janeiro), v. 19, p. 10-24, 2012.

DE NICOLA, José. Painel da literatura em língua portuguesa. São Paulo:


Editora Scipione. 2011.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Tradução de Sírio Possenti.


São Paulo, editora contexto, 2005.

CANDIDO, Antonio. “Direitos Humanos e literatura”. In: A.C.R. Fester (Org.)


Direitos humanos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989.

____. O Direito à Literatura. In: Vários Escritos. São Paulo: Duas cidades,
1995.

COIMBRA, Isabel; MATA, Olga. Gramática Ativa 1 e 2: Versão Brasileira


Segundo o Novo Acordo Ortográfico. Lisboa: Editora Lidel. 2011.

- 23 -
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto,
2007.

LIMA, Eberlein.E.O.F.; IUNES, Samira.A. Falar... Ler... Escrever... Português:


um curso para estrangeiros. São Paulo: E.P.U., 1999.

MONTEIRO, PEDRO MEIRA (ORG.). A primeira aula. Trânsitos da literatura


brasileira no estrangeiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2014.

SAID, Edward, Orientalism. London: Penguin, 1978.

_____. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.

LIMA, Emma Eberlein O. F. e Iunes, Samira A. Falar... Ler... Escrever. Um


curso para Estrangeiros. São Paulo: Editora Pedagógica Universitária, 1999.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência


cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

TAKAHASHI, Neide Tomiko. Leitura Literária em português-língua


estrangeira (PLE) no Brasil: representações, compreensão e produção
textual. Tese de Doutorado. Orientadora: Profª. Drª. Rosane de Sá Amado,
FFLCH, USP, São Paulo, 2015.

______. Textos literários no ensino de português-língua estrangeira (PLE) no


Brasil. Dissertação de Mestrado. Orientador: Prof. Dr. Reginado Pinto
Carvalho, FFLCH, USP, São Paulo, 2008.

ZAHRA, Habib e REY, Valéria. O burro errante. Recife: Editora Cubzac, 2012.

____. O último golpe do Lobo Mau. Recife: Editora Cubzac, 2014.

- 24 -
Um aventureiro alemão no Brasil: Hans Staden

Ana Beatriz de Souza


Andressa Borges
Christian Ignácio
Wanderson Lucas4

INTRODUÇÃO
No chamado período quinhentista de nossa história, muito se viajou
e se escreveu sobre o Brasil recém descoberto, o que se convencionou a
chamar de literatura informativa sobre o Brasil. Também conhecidas como
Período de Informação, ou Literatura Colonial, essas obras eram geralmente
escritas por Europeus relatando suas viagens ao Brasil. Estes autores
relatavam suas viagens, normalmente, por motivos pessoais ou obrigação
profissional
Entre os textos deste período, podem ser mencionadas diversas
obras, como A Carta de Achamento do Brasil de Pero Vaz de Caminha, o
primeiro dos textos quinhentistas, de primeiro de maio de mil e quinhentos;
Diário da Navegação da Armada que foi à terra do Brasil", de Pero Lopes de
Sousa, narrando a expedição de Martim Afonso de Sousa, em 1532; o
Tratado descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa, a qual
tenta descrever os aspectos geográficos, econômicos e históricos da colônia.
Como se pode notar nos exemplos apresentados acima, a maioria
desses textos foram escritos por Portugueses e apresentavam a forma de
cartas e diários de viagem. Entretanto, desse período, também se destacam
algumas obras de outras nacionalidades europeias, como Viagem à terra do

4
Acadêmicos do Curso de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Este trabalho foi originalmente apresentado à Profa. Dra. Luciana Nascimento como
parte dos requisitos para avaliação da disciplina de Fundamentos da Cultura Literária
Brasileira, ministrada no primeiro semestre de 2016.

- 25 -
Brasil, do Francês Jean de Léry, e Duas Viagens ao Brasil, de Hans Staden,
livro do qual tratamos nesse trabalho.
Apesar de seu caráter supostamente descritivo, essas obras possuem
um caráter aventureiro em seu enredo e estética. É bastante perceptível que
os autores misturam fantasia com os relatos reais, em alguns momentos
apenas exagerando na descrição de certos acontecimentos. Essas
características são bastante perceptíveis no livro de Hans Staden.
Duas Viagens ao Brasil ou As Viagens ao Brasil é uma obra do alemão
Hans Staden, escrita em 1557, na qual as histórias de um viajante europeu
em suas duas principais viagens a solo brasileiro são contadas.
Hans nasceu em uma região que, mais tarde, seria reconhecida como
território alemão - a Prússia - e começou suas aventuras viajando a Portugal.
Em sua primeira viagem ao Brasil, o papel principal do viajante ao lado dos
portugueses foi na guerra contra os franceses, chefiando a artilharia de
guerra. Já na segunda viagem, após naufragar próximo a Santa Catarina em
um navio espanhol e depois sofrer outro naufrágio, tentando chegar a São
Vicente. É nesta segunda expedição que Hans Staden é capturado por índios
da tribo Tupinambá e mantido cativo para ser dado como presente a um
"selvagem".
O termo selvagem, seguramente empregado por Hans Staden e
repetido ao longo do artigo, é um termo - longe do emprego dos gregos -
pejorativo. Claramente, não é usado apenas para designar os nativos da
terra Brasilis, mas para - segundo a fé cristã - desumanizar a figura dos
nativos e equiparar suas crenças como bárbaras e suas ações a selvageria. A
imagem dos índios é, nesta obra, apresentada de forma ambígua: ao mesmo
tempo que são vistos como ingênuos e puros pela falta de contato com o
mundo e, consequentemente, seus pecados, essa natureza intocada
também faz com que os indígenas não possuam uma civilização adequada -
de acordo com a visão eurocêntrica - o que, "obviamente", justificaria a
necessidade de catequização desses povos.

- 26 -
As terras pertencentes ao Novo Mundo mexiam com a imaginação
dos habitantes do continente europeu, principalmente na questão do
canibalismo que é usado para reforçar uma imagem de selvagens acerca dos
índios. Costume indígena normalmente associado a rituais de guerra, o
canibalismo era algo desconhecido para os europeus e, por isso, instigava
sua curiosidade. Uma terra distante e estranha, com povos indígenas de
costumes extraordinários foi o suficiente para fazer a obra de Hans Staden
amplamente conhecida e, por conseguinte, um ótimo meio de propagação
do pensamento europeu acerca de índios e terras desbravadas - um
pensamento colonizador e catequizador.
A narrativa, apesar de ter o objetivo de relatar reais acontecimentos
de forma convincente e, porque não, didática, possui também caráter
cultural e religioso, uma vez que Hans a usa para exaltar seu deus e conferir
a ele sua salvação. Diz muito sobre como as diferenças culturais entre os
índios e europeus afetavam o ponto de vista, no caso, deste último,
conferindo à história sua própria realidade. Ao se fazer de apenas uma
vítima de todos os acontecimentos e demonstrar como seu deus atende a
todos os seus pedidos, apesar de pouco lógico, Hans confere essa certa
realidade e causa maior identificação para com o público alvo, uma vez que
fica claro que é um livro europeu escrito para europeus.
O princípio da alteridade - servindo de base teórica para analisar os
relatos de Hans Staden em suas aventuras no Brasil e as posteriores
releituras das obras do autor alemão - consiste no processo de situar a si
mesmo e aos outros em interações situadas em um determinado tempo,
espaço e contexto sociocultural. Nesse sentido, o texto Eus e os olhares
sobre os outros expõe partes retiradas da obra de Staden e também de
outros textos produzidos a partir da mesma, com o objetivo de mostrar o
quanto a visão do europeu era condicionada por regimes de verdade
previamente construídos antes mesmo do contato direto com o Novo
Mundo. Esses regimes de verdade eram provenientes de práticas já em
terras europeias, tais quais o cristianismo, a construção dos indígenas como

- 27 -
esse outro estranho e canibal e do Novo Mundo como uma terra de belezas
tropicais e bizarrices.
Um desses trechos aborda o tema do canibalismo e a cultura da tribo,
adjetiva os índios como bárbaros a todo momento, temendo a hora em que
será devorado, e descreve ritos que seriam a “preparação” para tal.
Entretanto, no meio da narrativa, inclui acontecimentos que seriam de
ordem divina, de seu deus que irá salvá-lo por ser um “bom fiel” e,
consequentemente, punir os indígenas que possuem práticas tão
“abomináveis”. A simples abordagem de uma preferência por parte de seu
deus e o fato de que ele é mais digno que os índios, retrata sua visão de um
egocentrismo religioso que não é só sua, mas como antes abordado, um
retrato da Europa cristã do século XVI. Além de se tratar de interesses
políticos como ao manter uma visão eurocêntrica e escravista de tribos
indígenas, há também uma falta de imparcialidade na narrativa de Hans
Staden. Apesar de evidenciar o verdadeiro motivo do texto - o qual é
abertamente nomeado na própria narrativa como a gratificação ao deus do
locutor -, não desmerece o caráter de documento histórico, uma vez que
ainda é um relato de um viajante pelas terras brasileiras no século XVI.
A descrição religiosa feita por Hans é o retrato de uma Europa cristã
e preconceituosa quanto a outros povos por serem desconhecidos. O
próprio Hans parece tender a descrever o que vê de forma a corroborar
descrições já anteriormente utilizadas, carregando já consigo preceitos e
expectativas do que irá presenciar e da forma como as coisas se darão. Tal
falta de originalidade é apenas uma perpetuação de um ponto de vista
temeroso à cultura abordada: das tribos canibais.

AS MUITAS AVENTURAS
Em Um Alemão na Terra dos Canibais, Ronald Raminelli expõe uma
crítica em relação às viagens de Hans Staden, com centralidade na visão do
europeu afetada pelos conceitos pré formados que, mais tarde, dariam
origem ao colonialismo e ao imperialismo. Além disso, se preocupa,

- 28 -
majoritariamente, não em falar sobre as aventuras de Hans Staden, mas
sobre como a narrativa foi fundamental na criação de uma imagem sobre o
Brasil que se difundiria na Europa, baseada principalmente em conceitos
colonizadores e religiosos, focando na prática canibalista. Ao que parece, o
relato de Hans Staden tinha por objetivo não retratar os costumes dos povos
nativos da América, mas sim estabelecer estratégias de sobrevivência para
futuros exploradores que viessem a ser capturados.
Ao retornar à Europa, Hans Staden se encarregou de escrever o livro
que serviria a esse propósito. Não se tratou, entretanto, de um livro tático
apenas. Hans Staden teria se preocupado em retratar os vários costumes
dos Tupinambás, tribo indígena que o capturou: seus hábitos de guerra, sua
alimentação e outros costumes. Além disso, Hans Staden descreveu os
detalhes da cerimônia antropofágica da tribo. Os nativos, segundo as
narrativas publicadas, consideravam ser uma honra um prisioneiro ser
morto ao enfrentar sua bravura, enfrentar a "sina de ser consumido pela
tribo" (RAMINELLI, 2007, p. 2).
Após o relato de Hans Staden, o Brasil passa a ser conhecido na
Europa como a “terra dos canibais”, sendo anteriormente conhecida como
a “terra dos papagaios”. A ênfase cristã do narrador apenas corroborou para
uma imagem aterrorizante ao redor dos índios e suas práticas canibais,
incentivadas por ilustrações das editoras, que criavam um cenário de terror
e, para parecerem mais aterrorizantes e reais, colocavam o narrador nas
imagens, sempre aterrorizado e clamando ao seu deus.
A narrativa, carregada de pressupostos e preconceitos coloniais,
difunde a ideia de inferioridade de povos africanos e ameríndios. Além de
ser conveniente à cultura cristã que, ao evidenciar a barbaridade de tais
povos pode reforçar a importância da catequese e a “civilização” desses
povos - segundo o conceito europeu de homem civilizado - serve também a
interesses coloniais, para que seja apoiada a exploração e ocupação destas
terras.

- 29 -
Tal fato é evidente nas entradas do livro "Hans Staden: suas viagens
e captiveiro entre os selvagens do Brasil". Em nenhum delas, os nativos são
chamados de outra forma senão selvagens.
Em outro momento do livro, Hans Staden narra o processo de
preparação antes de ser entregue àqueles que o sacrificariam. Em uma
passagem, o autor equipara o seu sofrimento ao sofrimento de seu ícone
religioso cristão, além de descrever como foi tratado pelas mulheres da tribo
e os seus temores em frente ao eminente sacrifício.

"Puxaram-me para fora, pelas cordas que ainda tinha


no pescoço, até a praça. Vieram todas as mulheres
que haviam nas sete cabanas e levaram-me, e os
homens se foram embora. Assim me levaram; eu não
sabia o que queriam fazer de mime me lembrava do
soffrimento do nosso redemptor Jesus Cristo quando
era maltratado pelos innocentemente pelos infames
judeus” (STADEN, 1525-1576)

Um fato a ressaltar no relato de Ronald Raminelli é a banalização,


generalização e preconceito em relação às práticas tribais da América e da
África que os escritos de Hans Staden e de aventureiros posteriores a ele
causaram na retratação de cenas de captura na indústria cinematográfica. A
imagem de cerimônias típicas influenciou para o imaginário europeu que
inferiorizava e "fetichizava" a figura dos nativos.
Um segundo texto que oferece uma visão menos heroica de Hans
Staden é Imaginário e alteridade: canibalismo e 'willkomen' na obra de Hans
Staden, apesar de ser repetitivo, de certa forma, em relação aos textos
previamente analisados. Por isso, focaremos somente em dois aspectos: o
cativo e "willkomen".
Baseando-se em estudos de Ciclie Nunes, Daiana Nascimento dos
Santos propõe a figura de um Hans Staden, não como o astuto aventureiro

- 30 -
que foi capaz de ludibriar os selvagens, mas como o cativo inseguro, sem
perspectiva de vida, sob o jugo dos índios Tupinambás. Essa insegurança,
longe de enfraquecer o aventureiro, alimentou sua percepção sobre os
hábitos dos nativos segundo afirma Kim Beauchesne (2004).
Daiana Nascimento dos Santos aponta, também, a construção da
imagem do índio por Hans Staden. Porque, enquanto cativo - e apesar de
sua capacidade de observação, era inevitável que a figura dos nativos fosse
descrita como “selvagens comedores de homens" (NASCIMENTO, 2000, p.
3). A autora acrescenta, ainda que dada essa experiência, não haveria
melhor testemunha que Hans Staden, o cativo, a vítima, o possível
sacrificado, a amálgama entre o mundo dos selvagens e os europeus.

Assim, a figura do cativo Hans Staden ocupa um


grande espaço na narrativa com expressões de
sofrimento e angústia, apresentadas pelo infortúnio
vivido pelo protagonista segundo a construção de
sua imagem de prisioneiro.
'Ellos estaban parados en mí alredor y me
amenazaban de cómo iban a comerme. Ahora
cuando yo estaba así en gran angustia y desconsuelo
[...]' (NASCIMENTO, 200, p. 6).

A autora aborda, então, a mudança na relação entre os nativos e


Hans Staden com uma ironia de "willkomen". Dentre as várias situação -
palavras da autora - destaca-se o primeiro momento de "willkomen" por
parte dos índios, quando estes percebem características físicas que
diferenciavam Staden de um homem português - sendo ele, mais
provavelmente francês conforme ele próprio afirmava. Tendo em vista que
tupinambás só haviam entrado em contato com portugueses e franceses, a
narrativa de Staden parecia ser crível. Iniciou-se, supostamente, então, uma
relação amistosa entre os nativos e Staden, podendo o aventureiro circular

- 31 -
livremente - esse comportamento pode ser confundido, no entanto, com o
processo de sacrifício, no qual o prisioneiro integrava a tribo, podendo até
mesmo casar-se com ativas.
Um segundo aspecto de "willkomen" por parte dos índios foram as
supostas manifestações divinas que se seguiam logo após Hans Staden se
comunicar com o seu deus. Os índios interpretavam essas manifestações
como prova da existência desse deus e de sua proteção em relação ao
aventureiro.
De toda forma, a autora conclui, afirmando ter sido esse fator
"willkomen" determinante para a sobrevivência de Hans Staden entre os
tupinambás, a observação dos seus costumes e a narrativa do período de
cativeiro, na qual ele é retratado, por si mesmo, como o herói, aquele que
sobreviveu os sofrimentos do cativeiro entre selvagens incivilizados.
Os relatos de Hans Staden serviram de base para a criação de um
filme chamado Hans Staden. O filme é de 1999 e foi produzido em uma
parceria entre Brasil e Portugal. Hans Staden foi dirigido por Luiz Alberto
Pereira.
O filme ganhou diversos prêmios e possui uma fotografia que, como
diversos textos quinhentistas, exalta a beleza natural das terras Tupiniquins,
mas muitas vezes de forma romantizada e estereotipada. Uma curiosidade
sobre o filme é o fato de este ser um dos poucos do cinema em que os atores
falam predominantemente o Tupi. Diversos momentos da obra mostram a
cultura dos índios Tupinambá, incluindo o ritual de sacrifício e canibalismo
com o inimigo, ritual ao qual Hans sobrevive usando os conhecimentos
adquiridos sobre a cultura dos nativos.
Alguns dos prêmios que o filme recebeu foram o prêmio do Festival
de Cinema de Brasília nas categorias de melhor trilha sonora e melhor
direção de arte e no Festival de cinema brasileiro de Miami, ganhou na
categoria de melhor fotografia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo todos os aspectos acima destacados, acreditamos que a
utilização dos escritos de Hans Staden sobre as suas expedições ao Brasil
deva ser feita cautelosamente. Embora não diferente de textos já
conhecidos da Literatura de Informação, citando mais uma vez a carta de
Pero Vaz de Caminha, a análise empregada pelo texto ao qual esse escrito
serve, parece muito tendenciosa. Contudo, a obra é valiosa fonte de
registros culturais e históricos sobre os povos indígenas da época, além de
sobre as navegações e o território brasileiro, dado que o livro II de Hans
Staden é completamente descritivo sobre processos de navegação e fauna
e flora do Brasil, país sendo explorado pelo narrador.
Enquanto isso, na obra cinematográfica Hans Staden há uma
preocupação com neutralidade e realidade, para simplesmente expor o que
aconteceu com o personagem - ingenuamente, pois a própria narrativa não
é neutra ou meramente expositiva - no filme Como era gostoso meu francês
há uma parcialidade explícita, justamente criticando o excesso de
preconceitos e a visão eurocêntrica religiosa com a qual são tratadas muitas
obras do período. Demonstrando como em todas as obras, mesmo que não
intencionalmente, há certa parcialidade e como isso é um retrato do próprio
criador, assim como seus consumidores. Não apenas em contexto artístico-
histórico, mas também social, a visão de algo desconhecido será
interpretada de diferentes formas a partir de quem vê.
Além disso, o fator "willkomen" parece se mostrar como
determinante para a sobrevivência de Hans Staden entre os tupinambás, a
observação dos seus costumes e a narrativa do período de cativeiro, na qual
ele é retratado, por si mesmo, como o herói, aquele que sobreviveu os
sofrimentos do cativeiro entre selvagens incivilizados.

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REFERÊNCIAS

FONSECA, Vitória Azevedo da. Eus e os olhares sobre os outros: Relatos de


Hans Staden e suas releituras cinematográficas. In: Revista Outros Tempos,
vol. 7, n. 9, 2010. Disponível em http://www. outrostempos. uema.
br/revista_vol7_9_pdf. Acesso em 12 de junho de 2016.

HANS Staden. Direção: Luiz Alberto Pereira. Roteiro: Luiz Alberto Pereira.
100 min. Brasil-Portugal. 1999.

KALIL, Luis Guilherme Assis. Os canibais tonsurados: a antropofagia nas


crônicas de Schmidl, Staden e Léry. In: Anais do VIII Encontro Internacional
da ANPHLAC. Vitória: UFES, 2008, p. 1-19. Disponível em http://anphlac.
fflch. usp. br/sites/anphlac. fflch. usp. br/files/luis_kalil. pdf. Acesso em 13
de Junho de 2016.

PAIS, Julia Valesca. Hans Staden e Duas Viagens ao Brasil. Disponível em:
http://triplov. com/letras/JULIA-VALESCA/Nico-Sena/Hans-Staden. html.
Acesso em 12 de Junho de 2016.

RAMINELLI, Ronald. Um Alemão na terra dos canibais. In: Revista de História


da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 2, no 18, p. 54-58, mar. 2007.
Disponível em http://www. revistadehistoria. com. br/secao/retrato/um-
alemao-na-terra-dos-canibais. Acesso em 12 de Junho de 2016.

SANTOS, Daiana Nascimento dos. Imaginário e alteridade: canibalismo e


“willkomen na obra de Hans Staden. In: Labirinto. Revista dos Centro de
Estudos do Imaginário. Porto Velho: UNIR, 2001. p. 1-8. Disponível em
http://www. cei. unir. br/artigo114. html. Acesso em 12 de junho de 2016.

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Uma paisagem tropical: Uma leitura da obra Tratado da
Província do Brasil, de Pero de Magalhães de Gândavo

Mathilde Tremoy Lambert


Raizza Silva dos Santos5

INTRODUÇÃO
Nos empreendimentos marítimos realizados pelos portugueses,
pouca atenção foi dada às terras da América, pois, os Lusos demonstravam
maior interesse nas conquistas do Oriente. Entre 1500 até a efetiva
ocupação da Terra Brasilis, alguns relatos descreveram o Brasil, entre eles a
obra de Gândavo, Tratado da Província do Brasil. Sobre esse Tratado,
Sarrissa Carneiro de Araújo, assim se manifesta:

A História da província sãcta Cruz a que vulgarmente


chamamos Brasil, publicada em Lisboa, em 1576,
constitui uma das obras canônicas do discurso de
expansão ultramarina portuguesa sobre o Brasil. Seu
autor, o letrado, humanista e professor de latim,
Pero de Magalhães Gândavo, foi o primeiro
português a escrever uma história dedicada
exclusivamente à América portuguesa (ARAUJO,
2009, p. 72).
É importante ressaltar que a obra de Gândavo compõe com a Carta
de Caminha, as primeiras notícias acerca do Brasil, o que marca uma espécie
de “literatura informativa sobre o Brasil”

5
Esse trabalho é resultado da Disciplina Fundamentos da Cultura Literária Brasileira-
FUNDBRAS, ministrada pela Profa. Dra. Luciana Nascimento, durante o 1ºsemestre de 2016,
na Faculdade de Letras de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ.
Acadêmicas do Curso de Letras Português-Inglês, da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro- UFRJ.

- 35 -
Estas escrituras de Gândavo, sobre o Tratado da Terra do Brasil
ocorreu antes da História da Província Sãcta Cruz, com uma de suas
finalidades, a publicidade. A História saiu impressa em Lisboa logo depois de
escrita.
Neste relato, o autor fala sobre a certa insignificância do que era
então o Brasil. Várias vezes mostra as riquezas da terra, os recursos naturais
e também sociais existentes nela, possivelmente para convidar pessoas a
imigrar para estas terras, sendo também uma publicidade para imigração.
Ele faz uma descrição geral do país, e depois descreve os povoados
litorâneos e sua geografia também. Além disso, ele nomeia árvores,
comenta sobre as frutas, diferentes peixes, diversos animais, fala sobre o
céu, o clima, o mar e também os índios.

O BRASIL DE GÂNDAVO
O texto de Gândavo marca uma etapa fundamental tanto para a
formação do povo brasileiro, como para a formação da imagem europeia
sobre a nova terra dos papagaios. Tal qual um traçado de viagem e utilizando
o gênero textual do tratado, a obra de Gândavo objetiva realizar uma
descrição do Brasil, nos primórdios de sua história, por meio de um texto de
propaganda para a colonização portuguesa.
Em seu prólogo, Gândavo deixa explicito a vontade de “denunciar em
breves palavras a fertilidade e abundância da terra do Brasil”, chamando os
“pobres e desamparados” que viviam em Portugal a mudar-se para essa
nova terra. Ele comenta que esta terra é “muito rica e haver nela muitos
metais” e que há “grandes tesouros”
Gândavo descreve diversos aspectos da Terra Brasilis: a posse,
ocupação e nominação (da terra, na terra). Tendo viajado longas distâncias
entre as capitanias hereditárias, como provedor da capitania baiana, o
cronista não deixava de tomar notas das cousas principais da terra e dos
índios.

- 36 -
Gândavo descreve no Tratado primeiro, as Capitanias de Tamaracá,
Pernambuco, da Bahia de Todos os Santos, de Ilheos, Porto Seguro, Spírito
Santo, Rio de Janeiro e por fim, Sam Vicente.
A Capitania de Tamaracá tinha “muitas e boas terras pera se
povoarem e fazerem nellas fazendas”. . Na Capitania de Pernambuco,
pensava ser “huma das ricas terras do Brasil, tem muitos escravos indios que
he a principal fazenda da terra. Daqui os levão e compram pera todas as
outras Capitanias”. A Bahia de Todos os santos era a mais populosa e onde
veio a ser a capital da terra sãnca, Salvador, “por ser lugar mais conveniente
e proveitoso pera os moradores da terra”. Ele também cita a cidade de Villa
Velha. A descrição da Capitania de Ilheos continha várias descrições de seus
rios e seria onde “ha terras mui viçosas e muitas agoas pera se poderem
fazer engenhos dassucre, as quaes tambem se perdem por não haver gente
que as vá povoar. ”, e que “homens vivão mui abastados e fação muitas
fazendas”. Sobre os rios descritos, “Em todos estes Rios ha muita
abundancia de peixes e de caça”. Seguindo para a Capitania de Ilheos, há
muitos engenhos “dassucre”, muitas lagoas e rios que “. Tem tanta
abundancia dagoa que podem andar nella quaesquer nãos”.
Complementando com o fato de haver “muitas terras e mui viçosas arredor
della, e muita caça” sendo “huma das abastadas terras de mantimentos que
ha no Brasil he esta Capitania dos Ilheos”.
No capítulo quinto, o autor comenta a existência de uma tribo hostil,
os Aymorés. Diferentes dos demais índios, eram descritos como “brutos
animaes” e “gente atreiçoada”. As terras, da Capitania de Ilheos até o Spírito
Santo, que esta tribo habitavia “Muitas terras viçosas estão perdidas junto
desta Capitania as quaes não são possuidas dos portuguezes por causa
destes índios”
Continuando a descrição das capitanias, a partir do capítulo quinto,
Gândavo retorna escrevendo sobre a Capitania do Spírito Santo. Esta teria
apenas um engenho, porém seria o “melhor assucre que ha em todo o
Brasil”. A Capitania do Rio de Janeiro, “esta he a mais fertil e viçosa terra que

- 37 -
ha no Brasil” e “as terras desta Capitania mui largas, e sabem quam
proveitosas são pera toda gente pobre que as for possuir”. Por fim, comenta
sobre “as mais frias terras que ha no Brasil” que vem a ser a Capitania de
Sam Vicente.
No Tratado Segundo, capítulos primeiro e segundo, Gândavo faz sua
análise (e propaganda) das “cousas que são geraes por toda costa do Brasil”;
sobre as fazendas da terra, que seus moradores “todos têm terras de
Sesmarias” e que só não é mais próspero, por causa dos escravos e dos
índios que fugiam, logo “não tivera comparação a riqueza do Brasi”. As
fazendas mais rentáveis eram as de assuscres, algodões e pao. Sobre os
animais, ele também fala da abundância de bois e vacas, e da falta de
cavalos, que há poucas Cabras e ovelhas. Ele também comenta que com
“dous pares ou meia duzia de escravos” faz-se seu sustento; informa que se
dorme em redes, “este costume tomarão os indios da terra”; que aqui se
gosta de ajudar aos pobres e fazer obras pias, diferente do que acontecia em
Portugal na mesma época: “dajudar huns aos outros com seus escravos e
favorecem muito os pobres que começão a viver na terra. Isto se costuma
nestas partes: e fazem outras muitas obras pias por onde todos têm remedio
de vida e nenhum pobre anda pelas portas a pedir como neste Reino”.
A partir do capítulo terceiro, Das Qualidades da Terra, começa-se
pela descrição do verão e do inverno e a questão da força do vento. Comenta
sobre a geografia local, a qualidade da terra, e as árvores sempre verdes.
Avisa que não se planta trigo, mas que as pessoas comem mandioca “esta se
faz da raiz duma planta que se chama mandioca, a qual he como inhame”;
que “. Ha muita abundancia de marisco e de peixe por toda esta Costa; com
estes mantimentos se sustentão os moradores do Brasil sem fazerem gastos
nem diminuirem nada em suas fazendas”.
No capítulo quinto, comenta que há muito veados e porcos a se
caçar, além dos tatus, que, como nunca havia visto antes, tentou descrever
da melhor maneira em “são tamanhos como coelhos e têm hum casco à
maneira da lagosta como de cagado, mas he repartido em muitas juntas

- 38 -
como laminas; parecem totalmente hum cavallo armado, têm hum rabo do
mesmo casco comprido, o focinho he como de leitão, e não botão mais fora
do casco que a cabeça, têm as pernas baixas e crião-se em covas, a carne
delles tem o sabor quasi como de galinha”. No geral, o Brasil tem uma grande
abundância para caça.
No capítulo sexto, ele descreve as fruitas, em especial os ananazes
(abacaxi), os cajuis (cajus), as bananas, nomeada a partir dos índios Pacovas,
com que se sustêm os escravos por poder ser assada e que também é
oferecida aos doentes, bracases, algumas outras frutas já conhecidas pela
corte e a infinidade de laranjas e limões. Sobre o caju, há a seguinte
descrição:

Outra fruita se cria numas arvores grandes, estas se


não plantão, nascem pelo mato muitas; esta fruita
depois de madura he muito amarella: são como
peros repinaldos compridos, chamão-lhes Cajús, têm
muito sumo, e cria-se na ponta desta fruita de fora
hum caroço como castanha, e nasce diante da
mesma fruita, o qual tem a casca mais amargosa que
fel, e se tocarem com ella nos beiços dura muito
aquelle amargor e faz empollar toda a boca; pelo
contrario este caroço assado, he muito mais gostoso
que amendoa; são de sua natureza mui quentes em
estremo. Ha na terra tantos destes caroços que os
medem aos adqueires. E desta maneira nunca está o
Brasil sem fruitas.

No capítulo sétimo, é descrito os costumes dos índios, os “barbaro


gentio". No geral, são contrários uns aos outros e isso é um benefício pois,
“permitiu Deos que fossem contrarios huns dos outros, e que houvesse
entrelles grandes odios e discordias, porque se assi não fosse os portuguezes

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não poderião viver na terra nem seria possivel conquistar tamanho poder”
de gente; mataram-se muitos “os governadores e capitães da terra
destruirão-nos pouco a pouco e matarão muitos deles”, muitos fugiram
(para o Sertão) e ficaram na costa apenas os “de paz”, os “amigos dos
portugueses”; não têm as letras L, R, ou F, portanto não teriam Lei, Rei ou
Fé, o que seria uma “cousa digna de espanto”. Os índios também estariam
vivendo desordenadamente, andam nus, vivem em aldeias, obedecem ao
líder por vontade e não por força, nada adoram, nem creem em outra vida;
são guerreiros e vivem em guerra, usam arco-e-flecha, e tomam prisioneiros
“ou sejão portuguezes ou quaesquer outros indios seus imigos”; Gândavo
descreve em detalhes o ritual antropofágico, menciona seus adornos;
descreve o a inversão de valores do feminino “Estas deixão todo o exercicio
de mulheres e imitão os homens e seguem seus officios como se não fossem
mulheres”, que é aceito.
Nos dois últimos capítulos, oitavo e novo, Gândavo retoma o assunto
dos animais e “a variedade das creaturas que ha dumas terras pera outras”,
que há alguns que são “mui feros e peçonhentos” capazes de engolir um
veado inteiro e utiliza as palavras do vocabulário dos índios, como giboiossú,
boiteninga e hebijaras. Comenta também sobre lagartos, tigres, formigas
pequenas e grandes, mosquitos, ratos,lobos marinhos e porcos marinhos.
No final deste capítulo, complementa sobre a infinidade de “bichos” que
habitam esta terra, que “outros muitos bichos ha nestas partes pela terra
dentro que será impossivei poderem se conhecer nem escrever tanta
multidão, porque assi como a terra he grandissima, assi são muitas as
qualidades e feições das creaturas que Deos nella criou. ”
Por fim, ele comenta sobre as esmeraldas da Capitania de Porto
Seguro, as “pedras verdes que havia numa serra muitas legoas pela terra
dentro”. Comenta também sobre ouro, outros metais e “grãos”, que “dizem
que se descobrirão nesta terra grandes minas”.

- 40 -
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O relato de Gândavo lança mão de um quadro de referências de
inúmeros textos, trazendo para a cena escrita imagens advindas do
imaginário mitológico-literário e das informações adquiridas, registros do
que ele viveu na “provincia do Brasil”, sua riqueza e diversidade aliados a
uma futura prosperidade para quem aqui habitar.
Testemunha verdadeira da formação do país e do povo brasileiro,
Gândavo soube traduzir a realidade que brotava do aparente paraíso e, por
isso, pode ser considerado como o primeiro repórter do Brasil. Este Tratado
é uma parte de propaganda para futuros colonos em potencial que ainda
viviam em Portugal e tinham incertezas sobre a terra brasilis, e também, se
analisarmos de outra forma, podemos considerar de uma de estratégia
militar pois o mesmo descreve o terreno e o inimigo (no caso os índios “não
amigos dos portugueses”).

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Sarrissa Carneiro. A história (1576) de Pero de Magalhães Gândavo:


notas para uma releitura desde a retórica e a gramática. In: Locus: revista de
história, Juiz de Fora, v. 15, n. 2 p. 71-83, 2009. Disponível em http://locus.
ufjf. emnuvens. com. br/locus/article/viewFile/920/790.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultrix,


1993.

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da


Província de Santa Cruz. [1576] Disponível em http://www. dominiopublico.
gov. br/download/texto/bv000290. pdf. Acesso em 03/12/2013

_______. Tractado da terra do Brasil no qual se contem a informação das


cousas que ha nestas partes feito por P. º de Magalhaes Gandavo.
Manuscrito, 16-. Biblioteca Nacional de Lisboa, Manuscrito, COD-552. 16--.
Edição manuscrita do século XVII. Disponível em http://purl. pt/211. Acesso
em 03/12/2013.

- 41 -
________. GANDAVO, Pero de Magalhães. Historia da prouincia sa[n]cta
Cruz a que vulgarme[n]te chamam Brasil / feita por Pero Magalhães de
Gandauo, dirigida ao muito Illsre s[e]nor Dom Lionis P[ereir]a gouernador
que foy de Malaca e das mais partes do Sul na India. Impresso em Lisboa :
na officina de Antonio Gonsaluez : vendense em casa de Ioão lopez liureiro
na rua noua, 1576. Biblioteca Nacional de Lisboa, Edição Original de 1576.
Disponível em http://purl. pt/121. Acesso em 03/12/2013.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos no


descobrimento e colonização do Brasil. São. Paulo: Companhia das Letras,
2010.

LIMA, Francisco Ferreira de. Gândavo: da objetividade e de suas traições. In:


Revista Légua e meia: Revista de Literatura e Diversidade Cultural, UEFS, V.
6, N° 4, 2008, p. 121-136. Disponível em http://leguaemeia. uefs.
br/4/4_121gandavo. pdf. Acesso em XXX/XXX/2016

- 42 -
Dez Anos no Brasil: o relato de Carl Seidler

Daniele Darrieux
Leandro Lacerda
Mariana Farias
Rebecca Reina
Vitor Silveira6

INTRODUÇÃO
O Rio de Janeiro do início do século XIX caracterizava-se por ser ainda
uma cidade de feições coloniais, não obstante os melhoramentos realizados
com a vinda da corte para a cidade. Ainda hoje, podemos observar na
paisagem carioca lugares que remontam a essa época, como é o caso do
conjunto do Paço Imperial e dentre os inúmeros textos que se produziram
acerca do Brasil e do Rio de Janeiro dessa época, estão os relatos de viajantes
estrangeiros, como o alemão Carlos Seidler em sua obra Dez Anos no Brasil.
Carl Seidler durante sua estadia revela-se muito crítico em vista das
questões sociais, econômicas e políticas das quais percebeu no Rio de
Janeiro, e, ao decorrer de seu relato, impregna seu texto com seus valores e
morais, pela missão “turística” no Brasil estar confiada a ele mesmo e à sua
visão de mundo alemã e europeia, reflexo constituído por seus costumes e
cultura de seu país natal. Depreende-se também que por sua escrita
demonstrar adjetivações e artifícios ficcionais a respeito da terra brasileira,
ele constituiu-se por ser um grande literato e intelectual, por conhecer ao
menos um pouco sobre a terra em que estava adentrando. Sua visão

6
Acadêmicos do Curso de Letras Português-Inglês, da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Este trabalho foi originalmente apresentado á Profa. Dra. Luciana
Nascimento como parte dos requisitos para avaliação da disciplina de Fundamentos da
Cultura Literária Brasileira, ministrada no primeiro semestre de 2016.

- 43 -
emancipadora valoriza a liberdade das pessoas, especialmente a dos negros
visto no início de seu relato, embora mostrasse demasiado racista diante de
diversas situações. De acordo com Sylvia E. Lenz, o viajante mercenário
Seidler ao traçar a sua biografia nos seus Dez anos de Brasil, demonstra
aspectos um tanto pitorescos do Brasil (LENZ, 2006, p. 4).

NO RIO DE JANEIRO DO INÍCIO DO SÉCULO XIX


Desde a segunda metade do século XVIII, quando se tornara capital
da colônia (1763), a cidade do Rio de Janeiro vinha crescendo de forma
significativa. No início do século XIX, após a vinda da corte portuguesa e,
sobretudo, a Abertura dos Portos às Nações Amigas (1808), que incorporou
o Brasil à expansão da Revolução Industrial e do capitalismo internacional, o
Rio de Janeiro passou a crescer de maneira muito mais acelerada. Centro das
decisões políticas e principal porto exportador e importador do país, a
cidade funcionava como polo de redistribuição da economia brasileira, ainda
essencialmente agrária, e desenvolvia cada vez mais os setores comerciais e
de prestação de serviços.
Seduzido pela possibilidade de fama e riqueza, o mercenário alemão,
Carl Friederichs August Seidler, oriundo de Hamburgo, chega à capital do
Império, em fevereiro de 1826, após 103 dias de viagem e assim ele
demonstra em sua obra Dez Anos de Brasil, as razões da sua vinda:

Um cadete é da casta militar, como a crisálida é da


classe das borboletas: em Braunschweig eu tinha
usado a túnica de cor e por isso pensei que
imediatamente poderia fazer de soldado no Brasil,
pensei mesmo que, pelo grande sacrifício de
abandonar a pátria e todas as alegrias do lar, D.
Pedro I poderia sumariamente dar-me uma túnica
nova, melhor. Minha resolução estava tomada, mas

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era difícil atinar com a maneira de realizá-la
(SEIDLER, 2003, p. 60).

Carl Seidler (2003), ao aportar no Brasil trouxe consigo muitas ideias


e pensamentos sobre a terra que estava prestes a visitar e conhecer, de
modo a descobrir individualmente se o Brasil era de verdade ou não o
mundo de fantasias, o qual era por muito comentado, ao mencionarem a
terra conquistada da América do Sul. E ao chegar estritamente com olhos de
um turista que buscava aventurar-se e adentrar-se pela linda costa
brasileira, desfez todos os mitos que envolvia o novo mundo, apresentando
um olhar mais negativo do que positivo, o que estava de acordo com o seu
ponto de vista europeu, civilizado: “[...] pintarei o país do duplo ponto de
vista da natureza e da cultura [...] descreverei esta Nação nas relações mais
recíprocas das diversas raças, de seu caráter, costumes e vida política”
(SEIDLER, 2003, p. 59).
A exaltação à natureza do Brasil já é sentida com as primeiras
palavras do mesmo em seu relato Dez Anos no Brasil, ao dizer que o Brasil é
a terra matriz da natureza e do mundo das fadas (SEIDLER, 2003, p. 57), onde
não errou, pois realmente o país é rico em verde e em cultura. Mencionando
assim um caráter selvagem da natureza remanescente no país e nas pessoas
que ali habitavam, de certa maneira, na época de sua visita.
Na página conseguinte afirma o que o trouxe aqui: o turismo, em sua
essência, ao proferir: “Tinhamos adquirido nossos bilhetes de espectadores
[...]” (SEIDLER, 2003, p. 58). O que condiz com seu seguinte vislumbre, ao ver
os índios, e denomina-los como brasileiros natos: “Eram todos brasileiros
natos, isto é, índios [...]” (SEIDLER, 2003, p. 58) Então desembarcou no Forte
de Villegagnon e ainda sem saber ao certo o que esperar, ocorre uma
situação deveras desagradável a seu ver, em relação ao aspecto pungente e
remanescente que se sucedia ao negro naquela terra:

A primeira impressão que colhemos da vida humana

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no Rio de Janeiro [...] destruiu todos os sonhos
idílicos [...] Passou por nós grande embarcação que
levava dezoito negros [...] estreitamente
acorrentados uns aos outros; [...] É essa a tão gabada
emancipação dos escravos, a liberdade brasileira,
pensei eu comigo, e desviei meus olhos do
espetáculo (SEIDLER, 2003, p. 58).

Apesar da terrível primeira impressão, o viajante seguiu por terra


para complementar sua viagem à América do Sul, e inicia assim sua descrição
geográfica da província do Rio de Janeiro, seu povo, seu urbanismo, e
essencialmente seu lado bom e ruim, em vista de sua natureza e cultura. Em
sua segunda impressão ao caminhar na cidade brasileira, encanta-se pela
província, ao enaltecer sua beleza geográfica, além de seu poder econômico,
embora ressaltando que a seu ver, as pessoas que a habitavam eram deveras
antiquadas no sentido religioso e conservador: “A província do Rio de
Janeiro é das menores [...] do Império do Brasil [...] Contudo, é seguramente
a mais rica e mais povoada. [...] Esta província é a mais linda pedra preciosa
da coroa imperial do Novo Mundo, realmente nova, mas sumamente
antiquada” (SEIDLER, 2003, p. 59).
Complementarmente ao poder financeiro da cidade do Rio de
Janeiro, percebe onde a economia da província apoiava-se no café, que era
o predomínio entre todos os artigos de exportação do Brasil. Além do café,
Seidler (2003) descreve que algodão, açúcar, ipecacuanha e “algum pau de
tinturaria” também são artigos de exportação do Brasil. O autor também
afirma que o câmbio de dinheiro e o tráfico branco de negros são as
principais fontes financiais do estado. Tal economia circulava por meio de
um sistema monetário baseado no peso e no cunho, além de ainda estar
competindo com o cobre e o papel, que eram trocados por prata no banco.
Um desses bancos era o Banco do Brasil, que já havia sido fundado, cujo qual
Seidler (2003) descreve como um serviço monetário que não trata bem seus

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clientes, ao dizer sobre sua unidade principal que o banco funcionava
somente quando o banqueiro o queria: “[...] este banco é uma maravilha da
arte, que abre, fecha e se estende, a Bel prazer do dominador [...] pelo seu
conteúdo recebe maior importância [...] deve-se considerar como uma
espécie de teatro ou escritório de loteria, onde a tolice humana é posta à
prova” (SEIDLER, 2003, p. 64)
Apesar de seu grande poder econômico se comparado às outras
províncias brasileiras da época, via-se por entre as ruas e casas da província
do Rio de Janeiro que a riqueza da cidade não se refletia em seu espaço
urbano e arquitetônico:

As ruas do Rio são na maior parte compridas, tortas


e estreitas, as casas quase todas baixas, sujas e
edificadas em estilo vulgar, sem levar em conta
questões de gosto e de comodidade da vida social, à
feição da vontade no momento e da urgência” (p. 60)
.

E ainda relaciona essa falta de beleza urbanística aos moradores das


casas em geral: “Os moradores do Rio são muito comodistas [...] encontram-
se até casas muito distintas onde um necessitado procurará em vão os
lugares que tais de necessidade geral” (SEIDLER, 2003, p. 62). Dentre as ruas
do Rio, Seidler (2003) menciona duas em especial: a Rua do Ouvidor e a Rua
Direita:

[...] [a Rua do Ouvidor] recebe encanto


singularmente mágico para o forasteiro sem amigos
e sem alegria pelas inúmeras casas de modas quando
à noite brilhantemente iluminada. [...] Tanto a
alfândega como o banco ficam na Rua Direita, na
qual ainda há [...] só nas [casas] mais ricas se veem

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tapetes e muitas vezes os rés-do-chão não é
assoalhado. Em toda parte reina arranjo barroco do
material da distribuição e dos ornamentos
arquitetônicos quando tais existem (SEIDLER, 2003,
p. 61-62).

Ainda ao tratar da Rua do Ouvidor, complementa com uma


informação interessante, a de que o Rio era uma cidade muito influenciada
pelas modas francesas e por sua cultura, ao constatar que nesta rua, onde
haviam os corredores mais abertos, os franceses ocupavam-na
consideravelmente por moradia:

[...] quase todas as casas desta rua pertencem a


franceses ou são por eles alugadas, e fazem bons
negócios como artífices ou comerciantes. [...] O Rio
de Janeiro é mesmo um local de despejo das modas
francesas e da sua cultura de fancaria (área
comercial de trabalhos mal acabados) (SEIDLER,
2003, p. 62)

Para finalizar sua opinião sobre o contexto urbano do Rio de Janeiro


da época, critica a falta de higiene pelos moradores, aliás, pelos negros, pelo
menos é o que conta. Além de condenar os animais rastejantes que na
cidade proliferavam por resultado da falta de senso ambiental da cidade:

[...] negros encarregados de transportar para a praia


toda sorte de lixo, por sua vez se revelem demasiado
comodistas para levarem o vaso transbordante em
longa caminhada até o mar, e na primeira esquina
despejam toda a porcaria e se vão embora. [Ratos]
[...] se multiplicam todos os anos medonhamente

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[...]; Miríades de mosquitos e de bichos de pé [...]
metendose debaixo das unhas dos pés e aí pondo
seus ovos, centenas de centopeias e escorpiões
(SEIDLER, 2003, p. 63).

Entretanto, não foram esses os únicos podres da província do Rio,


Seidler (2003) ainda manifesta o seu repúdio à corrupção vigente dos
moradores da cidade, ao ser extorquido por um alfandegário, por cobrar
taxas absurdas, mas que por sorte foi neutralizado com ajuda de outro
alemão: “Humilhado, escafedeu-se o esperto aduaneiro [...] Semelhantes
extorsões [...] ainda acontecem todos os dias, em escalas cem vezes maior,
na alfândega do Rio” (SEIDLER, 2003, p. 63).
Apesar de tal situação negativa que passou, tece também algumas
palavras sobre a alfândega do Rio, cuja a beleza lhe chamou a atenção:

[...] [A alfândega] é bonita e espaçosa; merecia ter


sido construída para fins mais nobres. [...] as coisas
nela armazenadas nem sempre estão na melhor
segurança [...] os ratos o devoram, e o que os ratos
não devoram atam-no as formigas brancas”
(SEIDLER, 2003, p. 64). Outro edifício que lhe
aumentaram as pupilas foi sua visita à Capela
Imperial (Nossa Senhora da Conceição) que ficava no
fim da Rua Direita, em comunicação com o paço por
meio de corredores, cuja destacava-se por sua
simplicidade exterior e riqueza interior. Seidler
(2003) descreve que D. Pedro costumava
comparecer pontualmente à Capela Imperial e era
“muitas vezes extremamente ridículo ver como o
monarca de um dos maiores e mais ricos países da
Terra se extenuava a acompanhar pedaços de pau

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dourados e figuras de santos. Semelhante suor
imperial não cai fertilizante como chuva primaveril
sobre os campos áridos da pátria” (SEIDLER, 2003, p.
66).

Nesse sentido, Seidler (2003) afirma que é chocante que a enorme


avareza ou o profético espírito de especulação de D. Pedro nunca permitisse
qualquer melhoramento ou embelezamento no edifício. Às sextas-feiras, o
autor narra que o popular imperador dava audiência pública na Capela
Imperial, “na qual toda a gente, de qualquer classe, naturalmente sob a
influência da competente proteção ou cabala, podia entregar-lhe sua
petição e até, quando julgado necessário, falar-lhe pessoalmente. Cenas
grotescas sucediam então; talvez depois achemos lugar para narrá-las”
(SEIDLER, 2003, p. 67)
O olhar de Seidler (2003) que a tudo perscruta em relação à natureza
do Brasil, ao seu povo e às suas práticas não constitui simples descrição de
sua experiência pessoal nas terras brasileiras, mas representa um
pensamento tributário do discurso romântico do século XIX; que se ora
enalteceu as belezas e riquezas naturais do novo mundo e a bondade de
seus nativos e ora culpabilizou essa mesma natureza pelo atraso do
continente, nunca deixou de marcar presença nas narrativas acerca da
América e assim podemos observar a descrição que o viajante faz acerca das
meninas de boas famílias e de sua religião, constatando a fragilidade da
educação das moças: “Meninas das melhores famílias figuram anjos, com
asas de seda e em tricô cor de carne, e são verdadeiramente anjos que ao
primeiro olhar convertem ao mais duro ateu, pois aqui como em toda a parte
o amor é a mais bela religião” (Seidler, 2003, p. 67). Seidler também
descrevia que no povo brasileiro havia muito riso, beijos, bebida e rapé.
Os quartos daquela época foram descritos pelo autor como
delicados, mas não confortáveis, o que remete à inspiração oriunda de Paris,
ou seja, uma tentativa de parecer um país europeu, ao menos em seus

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aspectos visuais de hotelaria. Nesse sentido, Seidler (2003) usa de sua
descrição do quarto em que estava hospedado para relembrar
características instrínsecas brasileiras: “O estilo do conjunto é meio italiano,
exótico, inexpressivo e corrupto; nada de extraordinário se nota” (SEIDLER,
2003, p. 67).
O autor alemão disserta sobre a Câmara dos Deputados em seu
texto. Ao o fazer, ele afirma que o que há de notável no lugar supracitado
não é seu caráter histórico ou recordativo, mas sim os debates que ali
realizam os deputados:

A tolice rude, a protérvia ignorante, com que esses


representantes da nação brasileira sustentam seus
presumidos direitos e muitas vezes abdicam do
essencial, para conquista sem importância; a
arrogância ridícula, com que se equiparam às nações
européias, até em certos sentidos presumem passa-
las mil vezes; os desaforos verdadeiramente
bárbaros com que mutuamente se honram em seus
discursos, pondo adequado remate ao carnaval;
tudo se ajunta para oferecer uma das mais
degradantes cenas da vida pública do Brasil e do
espírito coletivo, para o estrangeiro atônito, que a
princípio aqui se julgava diante duma assembléia dos
homens mais notáveis duma grande nação”
(SEIDLER, 2003, p. 69).

Seidler também afirma que os deputados sempre se afiguram


preteridos pelos brancos e entendem que com o seu lugar na Câmara
adquiriram um trono de tirano;pretendendo, assim, "suprir as suas
deficiências da natureza madrasta por lúcida inteligência e brilhante talento,
e forçar senão o respeito, o temor público" (SEIDLER,2003, p. 69);e para tal,

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gritam e fazem barulho. O alemão prossegue afirmando que os deputados
imitam os maus atores teatrais, que procuram arrancar aos berros o favor
do público e então questiona o que mais se poderia dizer de uma nação que
se faz representar por semelhante gente: "A nação brasileira, que ela mesma
se cognomina de grande, trate primeiramente de limpar sua Câmara de
Deputados, para então pensar em encher o seu museu com raridades”
(SEIDLER, 2003, p. 70). Sobre o Museu, Seidler (2003) afirma:

[...] o museu de Paris ou o de Berlim é mais rico que


o do Rio de Janeiro em artigos brasileiros
interessantes, naturais ou artefatos. A culpa é parte
da nação, nova demais, parte do governo,
demasiado pretensioso ou às vezes sobrecarregado
de outras cogitações mais prementes. [...]A nação
brasileira, que ela mesma se cognomina de grande,
trate primeiramente de limpar sua Câmara de
Deputados, para então pensar em encher o seu
museu com raridades” (SEIDLER, 2003, p. 70)

Sobre a vida cultural e a arte teatral, Seidler (2003) afirma que:

Mas nem no teatro desaparece o despotismo, que


aqui deixa ver as orelhas, qual burro roubado. Todos
os espectadores são obrigados, ao aparecer a família
imperial, a voltarem o rosto para esse camarote até
que suba o pano; a mesma exigência barbárica pre-
valece nos intervalos. O melhor contraste para esse
servilismo formam os negociantes norte-
americanos, sempre abundantes na “divina cidade
imperial” [...] Durante o governo de D. Pedro ainda
havia freqüentes bailados e óperas italianas. Nisso

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em parte se procedia bem; [...] Notadamente os
bailados eram representados por uma companhia
contratada em Paris e nada deixavam a desejar. A
dança também tem sua estética. Com a abdicação do
imperador, a arte mímica, já quase extenuada até a
morte, recebeu o golpe de misericórdia (SEIDLER,
2003, p. 80).

Entretanto, Seidler nota que a política fazia parte do teatro,


afirmando que por baixo das vestimentas teatrais havia peças de roupa de
política secreta. O viajante em sua narrativa relata um episódio violento
acontecido no Teatro e demonstra a sua infelicidade ao assistir uma “peça
crioula”, afirmando que foi forçado para tal. Durante a peça, o autor
adormeceu e foi acordado por gritos de “Viva a república!”, ecoando gritos
de “a república! A república!”. Diz ele que era um eco muito significativo,
mas que mais tarde os fatos desmentiriam, uma vez que em seguida se
ouviam os gritos do outro lado: “Viva D. Pedro II”. Então, o tumulto se
estabeleceu. Na primeira fila, ergueu-se um juiz de paz com as galantarias
portuguesas, reclamando em silêncio. “Em resposta, o mesmo jovem que
primeiro dera viva à república exibiu de suspensórios arriados e
indecentemente aquilo que aqui não posso exibir e o comentou com breve
monólogo” (SEIDLER, 2003). O juiz de deu ao oficial de guarda ordem para
“imediatamente mandar carregar as armas e ocupar triplicemente as portas
do teatro, de modo que não pudesse escapar um só dos muitos
desordeiros”, pois não era possível descobrir um responsável único. Mas
quando apareceram os soldados, contra eles foram disparados vários tiros
de pistola, dos camarotes e da platéia, “e a multidão furiosa avançou sobre
eles como a maré tempestuosa” (SEIDLER, 2003) Então, o juiz de paz perdeu
a calma e paciência, estava trêmulo e orgulhoso como um general depois de
uma batalha ganha. Deu ordem de atirar. “As balas caíram em cheio no
grosso da multidão e num segundo havia mais de trinta mortos e feridos”.

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Entre os feridos, Carl Seidler (2003) afirma que infelizmente havia um suíço,
a quem com certeza era sumamente indiferente que o Brasil fosse república
ou monarquia. Tal infelicidade comprova mais uma vez o racismo de Seidler.
Além disso, é possível extrair de tal episódio que o debate vigente em época
era o de o Brasil ser república ou monarquia, debate este que ia muito além
dos cenários puramente políticos, uma vez que em pleno momento de
entretenimento, instalou-se uma guerra por motivos políticos, se assim
pode-se afirmar: “Acrescia que desde que o teatro assumira caráter político,
os espectadores ali não estavam seguros da vida” (SEIDLER, 2003).
No que se refere ás instituições militares, Seidler (2003) critica o
Ministério da Guerra, afirmando que “[...] não é senão um pajem que pode
usar espada sem direito de desembainhá-la” (SEIDLER, 2003, p. 77) Por outro
lado, ao citar o Arsenal de Marinha, não dispensa elogios no que concerne à
sua grandiosidade e beleza, no entanto, o considera um mero produto da
insensatez. Ao falar sobre o Arsenal de Guerra, ainda, Carlos Seidler o
descreve como caro e “inservível”, acrescentando que haviam problemas no
que tange à sua organização e administração de recursos: “Nem D. Pedro
podia obviar a essa desordem, nem impedir a roubalheira” (SEIDLER, 2003,
p. 78).
Seidler (2003) presta elogios ao aqueduto carioca, o descrevendo
como “a mais notável de todas as obras que ornam a cidade imperial”. Ele
comenta sobre sua serventia para o consumo de água em longas viagens
marítimas e sobre sua importância para o abastecimento de água da cidade,
dissertando, ainda, sobre a grande disputa que ocorria entre os negros para
encher os galões quando o nível de água do aqueduto era baixo.
O olhar de Seidler (2003) sobre o negro se mostra preconceituoso,
elitista e oportunista, já que ele não os descreve como humanos, como
podemos observar em: “No Brasil o negro verdadeiramente não é melhor
que um irracional e não se deve trata-lo como homem, por mais que
semelhante afirmativa pareça inumana” (SEIDLER, Op. Cit. , p. 79). Em
nenhum momento, o autor se mostra preocupado com a situação de

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exploração sofrida pelos afrodescendentes, mas apenas encara sua função
como necessária para a manutenção da economia do império: “Os mulatos
já são de nascença apenas obra de remendo da natureza, por isso são peritos
remendões”. Nota-se a visão racista e escravista, logo incomodava-lhe a
presença de negros em ambientes de entretenimento. Tal afirmação se
comprova não somente quando o suíço alemão narra a sua tristeza em ver
que os atores mulatos recebiam muitos aplausos dos espectadores, mas
também em muitos outros momentos do texto. A tristeza de Seidler
continuou ao ver que uma obra alemã (“O Guilherme Tell, de Schiller”)
tornou-se comédia portuguesa, segundo ele, pois Guilherme Tell, o corajoso
campônio suíço, aparecia de roupa vermelha e chapéu de três bicos, com o
traje sobrecarregado de galões dourados e outras bugigangas: “E a cara
amarela, de macaco, redonda e brejeira, que aparecia como defunta
esperança da vida debaixo dos três bicos, completava o ridículo de todo o
conjunto. Na verdade difícil rir dessa comédia de macacos”. SEIDLER, 2003,
p. 80).
O suíço- alemão também descreve os alojamentos dos suboficiais,
apresentando uma visão quase narrativa do lugar:

As casernas da imperial cidade brasileira estão em


geral em péssimo estado, assim como o soldado leva
vida miserável, estúpida; [...] De ambos os lados no
grande alojamento alinham-se as tarimbas, apertado
espaço onde à noite o soldado pode estender sua
esteira de palha, que de manhã tem que enrolar.
[...]E então se lá ruge a tempestade e o
madeiramento ressequido range e geme, como um
espírito que pela meia noite nem na cova acha
sossego; se a chuva penetra abundante pelo telhado
e pelas juntas mal unidas e como um dilúvio ameaça
envolver as vítimas inocentes da tolice e do

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despotismo; se os mosquitos e outros insetos
nocivos realizam naqueles cadáveres vivos a fábula
dos vampiros; se a lembrança da pátria e da
liberdade afigura aos corações modorrentos as
fogueiras da Inquisição – então, durma quem puder
(SEIDLER,Op cit, p. 80).

Nesse trecho da descrição, o autor explicita a total insalubridade das


casernas, evidenciando seu sentimento de horror em relação ao lugar. Além
das casernas, Seidler lança um olhar sobre as praças públicas da cidade,
chamando a atenção para a descrição do Campo de Sant’Ana, discorrendo
sobre sua importância histórica e mencionando o investimento do
imperador no embelezamento da mesma. O autor cita, ainda, a Praça da
Constituição, destacando as belas casas, como o teatro, e estabelecendo
uma relação poética entre a desintegração da coluna da Constituição com a
falha da própria; e a Praia Emanuel, principal mercado de legumes e aves da
cidade, segundo a análise do autor.
Ao descrever os pontos turísticos do Rio de Janeiro, começa pelo
Jardim Botânico, que Seidler o chama de Jardim Público: “[...] Assim é tudo
no Brasil! luxo e pompa só se apresentam no mais próximo presente. [...]
Atendendo a um capricho do momento, desperdiçam-se as maiores somas,
e o que hoje se constrói amanhã se deixa arruinar” (SEIDLER, Op. Cit, p. 90).
Ao término de sua descrição, o autor, critica arduamente os cidadãos
brasileiros em relação à conservação do patrimônio público. Segundo ele,
naquele momento, o Jardim Público estava sendo cuidado por negros, que
exerciciam duplas funções, eram jardineiros e guardas, e que nada
entendiam delas. Compara á época do reinado do imperador, onde, segundo
ele, tudo era melhor organizado e conservado. Ao final de seus comentários
referentes ao Jardim Botânico, o viajante tece pequenas observações sobre
a Glória, e, mais uma vez, relembra como era o local durante o império de
D. Pedro:

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E hoje em dia ali não se celebram mais festas tão
brilhantes como antigamente, quando D. Pedro com
sua esposa tão solene e despoticamente as animava;
nem a pequena, engraça da D. Maria da Glória brinca
mais lá em cima com o turíbulo, despertando com
seu olhar infantil e seu cântico o entusiasmo beato
de um povo deslumbrado, pois ela tornou-se rainha
de Portugal (SEIDLER, Op. Cit, p. 98).

Sobre a observação que faz da Paria de Botafogo, o viajante alemão


afirma ser esse lugar uma obra prima da natureza. Segundo ele, até mesmo
os brasileiros residentes do local são mais sociáveis que os que habitam as
outras partes da cidade. O autor acredita que isto se deve ao fato da
influência exercida pelos europeus residentes de Botafogo. Ele também diz
que o ambiente contribui para o diferencial no comportamento dos homens,
o que fica explícito nos adjetivos utilizados, tais como cordial, atencioso e
gentil, para descrevê-los. Em relação aos residentes “a maior parte dos
ministros estrangeiros; negociantes ricos, sobretudo ingleses, [...]” (SEIDLER,
Op. Cit. , p. 87) A partir disto, podemos perceber porque há poucas críticas
a este específico lugar. Em um de seus passeios, o suíço alemão, faz visita a
um restaurante, onde com o auxílio de um escravo como guia, procura
explorar mais de perto a natureza em volta daquele lugar. A partir dali, ele
novamente menciona a sua admiração pela natureza do Rio de Janeiro e a
destaca como entre todas as cidades, era a mais abençoada. Ele fala sobre
as plantações que ali encontra, no jardim do restaurante, e, relembra o fato
da Imperatriz Leopoldina ter trazido para cá as mais diversas plantas raras:

Encontram-se alamedas de árvores de cânfora;


craveiros ostentam em toda a parte suas perfumadas
flores vermelhas; a palmeira sago estende seus

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amplos leques por sobre os galhos verdes da árvore
do pão; campos de árvores de chá, cuidadas por
chineses; lindas árvores de noz-moscada e de canela;
quase todas as especiarias e raridades das Índias
Orientais acharam aqui nova pátria (SEIDLER. Op. Cit.
p. 88).

Contudo, segundo ele, nada é aproveitado: sobre as plantas que dão


frutos, estes não são colhidos ou então, são roubados por escravos. Exceto
o chá trazido para cá pelo rei D. João IV: este sim era plantado e colhido com
rigor de acordo com a sua origem, chinesa. Neste caso, os cultivadores eram
chineses trazidos de sua pátria, para que a plantação não perdesse a sua
originalidade e mantivesse o mesmo nível de qualidade. De acordo com
Seidler, havia pouca diferença entre o cultivo na China e o cultivo aqui.
Contudo, não só em relação a produção do chá, mas também de outras
especiarias, nada é fiscalizado no Brasil pelo governo, não há cuidado com o
cultivo de plantas, e ele chama de os brasileiros de preguiçosos, e faz uso da
seguinte metáfora “reproduz-se o caso da montanha a partir um
rato”(SEIDLER, 2003, p. 89) pois, segundo o autor, se houvesse um maior
aproveitamento de tudo o que é produzido no Brasil, não haveria tantos
gastos para a importação de produtos.
Em visita à Quinta da Boa Vista, Seidler mostra-se encantado pela
beleza do local e pelo fato dos jardins serem muito bem aproveitados, e, por
fim, é sarcástico ao dizer que por contada arquitetura do local, quase não dá
para se acreditar que este fica situado no Rio de Janeiro:

Todos os arredores da Quinta são igualmente


românticos e belos; por toda parte, em S. Cristóvão
e em torno, o olhar, já deslumbra do de tantas
belezas, descobre os mais ricos jardins e parques;
nenhum pedaço de terra inaproveitada, por menor

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que seja; quase se acreditaria que estamos no país
mais civilizado de todo o mundo, tomar-se-ia o Brasil
por uma enorme Provença. Na verdade, não se
poderia incorrer em mais grave engano! (SEIDLER.
2003, p. 90).

Após fazer uma exposição crítica e avaliativa de algumas de suas


primeiras impressões sobre seus passeios pelo Jardim Botânico e pela
Quinta Imperial na cidade do Rio de Janeiro, Carl Seidler (2003) continua
expondo suas percepções sobre o que ele acredita que sejam pontos
positivos e negativos das paisagens cariocas, entretanto, agora com foco na
Quinta Imperial. Além disso, em sua visita ao Jardim Botânico, ele descreve
a viagem por água, da cidade à S. Cristóvão, como igualmente bela e muito
mais cômoda do que o passeio que o conduziu à Imperial Quinta da Boa
Vista, considerando a magnitude e beleza da paisagem e a facilidade de se
chegar ao devido local.
Ao mencionar que todos os produtos de comércio de S. Cruz, como
cavalos, bois, porcos e aves, eram comumente expedidos à venda para a
cidade gerando lucros ao Imperador, Carl Seidler ressalta que D. Pedro
dedicava muito mais tempo e atenção na administração de sua fortuna
pessoal do que na do Império e, por isso, a probabilidade de ele enriquecer
era muito maior do que reerguer as finanças do Estado, que naquela época,
estavam profundamente decaídas. Ademais, ele ainda faz questão de
evidenciar o desvantajoso estado arquitetônico de S. Cruz: “A cidadezinha
mesmo não pode absolutamente ser chamada bonita; consiste numa única
fileira de casinhas baixas e mal construídas, geralmente penates de pobreza
e desasseio” (SEIDLER, Op. Cit. , p. 93).
Ao citar a cidade de Itaguaí, Carl Seidler aponta que tal cidade
adquiriu certa importância pelo seu comércio com a capital, pois,
diferentemente do que acontecia antigamente, o café passou a ser
transportado por terra somente até Itaguaí, e de lá era transportado pelo

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mar até o Rio de Janeiro, facilitando, assim, as negociações entre os
comerciantes. Em seguida, o autor descreve a paisagem da Serra dos órgãos
como sendo uma região acidentada e montanhosa, com muitos penhascos
e com um aspecto áspero e selvagem. Vale ressaltar que ele é extremante
preconceituoso (e perfeitamente ajustado ao eurocentrismo) ao descrever
a aparência, o comportamento e as vestes típicas e simples dos moradores
de tal região a quem ele se refere como “essa gente”, insinuando que todos
fossem criminosos em potencial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Obra Dez Anos no Brasil, de Carl Seidler apresenta um aspecto do
Brasil que não estava completamente identificado nos livros de História pelo
seu caráter unilateral de visão rotineira a partir de um estrangeiro alemão
um tanto conservador e leigo em relação ao nosso país. Esse relato
distingue-se da corriqueira pesquisa histórica devido à sua intrínseca gama
de detalhes do cotidiano das pessoas e do urbanismo do Rio de Janeiro de
início de século XIX, o que torna tal obra uma experiência de reviver a cultura
brasileira, através de uma imagem singular e peculiar e não tão conhecida
da província do Rio.

REFERÊNCIAS

ERTZOGUE, Marina H. “O estrangeiro”: enredos imaginados sobre a solidão


em Carl Schlichthorst, Carl Seidler e François Biard. In: Nuevo Mundo-
Debates, 2008,p. 1-12. Disponível em https://nuevomundo. revues.
org/31893. Acesso em 01 de julho de 2016.

GONÇALVES, Roberta Teixeira. Viagem ao Brasil: as lembranças de Carl


Seidler. In: Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP -
Campinas, setembro, 2012. Disponível em http://www. encontro2012. sp.
anpuh. org/resources/anais/17/1338490439_ARQUIVO_Anpuh2012. pdf
Acesso em 10 de julho de 2016.

LENZ, Sylvia E. Memórias de oficiais alemães do exército imperial. In: Usos

- 60 -
do passado. Anais do XII Encontro Regional de História. Anpuh: Rio de
Janeiro, 2006, p. 1-7. Disponível em http://www. rj. anpuh.
org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Sylvia%20Ewel%20Lenz. pdf.
Acesso em 10 de julho de 2016.

SEIDLER,. Dez Anos no Brasil. Trad. Bertoldo Klinger. Brasília: Editora do


Senado Federal, 2003. Disponível em

http://www2. senado. leg. br/bdsf/item/id/1069. Acesso em 02 de junho de


2016.

- 61 -
O Brasil nas cores dos viajantes

Beatriz Dias Parente


Ticyane Garcez Telles
Marcus Vinicius Flexa Rodrigues7

INTRODUÇÃO
A palavra “paraíso”, na sua concepção moderna nos remete sempre
à um lugar utópico, composto por uma visão de natureza espetacular e
tranquilidade. Muitos dos destinos turísticos comportam o adjetivo
“paradisíaco” para auxiliar nas suas ofertas e procuras. Contudo, fica a
pergunta: Por que o paraíso está atrelado à nossa concepção de lazer? Por
que tantos estrangeiros enxergam o Brasil como um lugar paradisíaco ainda
nos dias de hoje?
Essa ideia permeia no pensamento do viajante há um bom tempo. A
palavra paraíso tem na sua concepção etimológica do termo avéstico pairi-
daeza (jardim /cercado) que logo foi incorporado pelo mítico Jardim do Éden
e esse não demoraria pra se disseminar entre os fiéis do cristianismo
(durante a idade média) como um lugar que todos querem estar.
Sérgio Buarque de Holanda, na sua obra Visão do Paraíso defende
que os descobridores e o processo de colonização se estabeleceram pelos
mitos edênicos que povoavam o imaginário luso-castelhano na época das
grandes navegações. O que se entende por mitos edênicos é a crença
inspirada na teologia medieval de que o Paraíso não era um conceito
abstrato e inatingível, mas sim um lugar distante, porém ao alcance dos

7
Acadêmicos do Curso de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Este trabalho foi originalmente apresentado como parte dos requisitos para
avaliação da disciplina de Fundamentos da Cultura Literária Brasileira, ministrada no 1º
semestre de 2016, pela Profa. Dra. Luciana Nascimento.

- 62 -
homens. Essa visão era bastante difundida no cristianismo medieval pela
leitura do livro de Gênese, livro da criação, o que facilitaria a transposição
de paraíso para o que eles concebiam como “novo mundo”. Nesse âmbito,
os viajantes do século XVI tinham o desafio de narrar o novo mundo aos seus
compatriotas. Esses viajantes conheciam nova flora, fauna e sociedades.
Fatores como a amenidade climática, abundância de recursos naturais,
inexistência de doenças indicavam que ali se encontrava de fato o paraíso.

A crença na realidade física e atual do Éden parecia


então inabalável. E posto que o exame detido da
questão escape às finalidades do presente estudo
convém, entretanto, notar que aquela crença não se
fazia sentir apenas em livros de devoção ou recreio,
mas ainda nas descrições de viagens, reais e fictícias,
como as de Mandeville, e sobretudo nas obras dos
cosmógrafos e cartógrafos. Do desejo inexplicável de
atribuir-se, nas cartas geográficas, uma posição
eminente ao Paraíso Terreal, representado de
ordinário no Oriente, é bem significativo o modelo
de mapa-mundi mais corrente no mundo
(HOLANDA, 1992, p. 149).

Do século XVI ao século XVIII e início do século XIX, o Brasil teve a


visita de diversos viajantes de diversas origens e ocupações. O Rio de
Janeiro, por ser um porto de grande importância era um dos mais visitados,
e consequentemente um dos mais retratados pelos estrangeiros. Jean
Marcel Carvalho França faz uma seleção de 35 testemunhos dos viajantes
sobre o Rio de Janeiro através dos séculos, desde pilotos, poetas à
degredados à cumprir suas penas no Brasil auxiliaram na construção da
concepção do Brasil na Europa: “O Brasil é um território muito mal
conhecido na Europa. Os portugueses, por razões políticas, não divulgam

- 63 -
quase nenhuma informação sobre essa sua colônia. Daí, as descrições
vinculadas nas publicações geográficas inglesas serem, estou certo,
terrivelmente errôneas e imperfeitas” (França, 1999, p. 189)
O relato das viagens passa por uma modificação a partir do século
XVIII. Antes a narrativa era de experiências e sofrimento dos autores. A partir
do século XVIII o discurso do viajante tem mais um caráter científico e os
estrangeiros que estiveram no Brasil nesse período tinham uma visão
civilizatória, ou seja, enxergavam o ser americano como inocente ou
bárbaro, e que eles (os europeus) tinham essa missão de conduzi-los à
maturidade. Sobre a visão dos estrangeiros sobre o Brasil:

Questão primeira e imprescindível para a


abordagem dos relatos é tomar consciência de que
os homens que os produziram são sujeitos dotados
de pré-conceitos e referenciais culturais próprios,
como qualquer sujeito sociocultural. Os viajantes
estrangeiros procediam de meios culturais
diferentes dos existentes em território brasileiro do
século XIX (MOREIRA, 2009, p. 2).

Até o século XVIII o que se tinha de produção de discursos sobre o


novo mundo eram depoimentos de indivíduos instruídos, informação
textual, iconográfica e cartográfica. Além dos homens da ciência vieram
também os marinheiros, traficantes, corsários e piratas, que registravam em
forma de roteiros, diários de viagem, com objetivo de corrigir a geografia do
globo, diminuir perigos de navegação, conhecer melhor a ocupação,
costumes, contribuir para um melhor conhecimento antropológico e
científico do novo mundo. Os relatos dos viajantes dos setecentos
transforma a navegação antes encarada como confuso e perigoso em algo
aventureiro. No século das luzes esses textos, imagens e mapas são a
materialização das experiências diretas e pessoais, de observações

- 64 -
comprovadas e que se tornaram transmissíveis. Ao longo do século XVIII foi
crescendo a preocupação em representar de forma pura e natural a
natureza exótica e tropical. Uma gama de indivíduos, entre esses piratas,
cartógrafos, desenhadores, cientistas de diversas nacionalidades, com
diversas motivações (política, econômica ou científica) constroem esse
discurso. Esse material produzido tinha uma função didática e de
entretenimento das massas. O esclarecimento dos compatriotas era uma
obrigação. Ainda nesse século aumentou bastante o contingente de
estrangeiros, e por consequência aumentaram os relatos individuais e quase
todos podiam ser autores, que por vezes produziam versões simples e de
fácil compreensão para a comercialização na Europa.
No ano de 1808 a situação mudou. A vinda da família real e a
abertura dos portos provocaram mudanças significativas nas explorações
científicas do Brasil. Antes o Brasil estava limitado pelas políticas comerciais
dos portugueses. Com o bloqueio continental da França e Inglaterra,
Napoleão invade a península Ibérica forçando a família real fugir para o
Brasil. A abertura dos portos às nações amigas e a autorização de viagens e
permanência aumentou a vinda de estrangeiros para o Brasil,
principalmente para o Rio de Janeiro, o que aproximaria ainda mais o Brasil
da Europa. Aumentou o desejo de conhecer o país exótico por parte dos
estrangeiros que tinham uma visão civilizatória. Uma descoberta da “cultura
do povo” pelos eruditos. É necessário ter em mente que esses relatos e
materiais informativos para os europeus eram carregados de pré-conceitos.
Após a instalação da corte, os estrangeiros começam um processo de
domesticação da paisagem americana. O ambiente não-europeu fez com
que os viajantes realçassem o lado exótico e pitoresco, como um museu que
não assusta, mas encanta. É nesse panorama que as missões artísticas
europeias se desenvolveram no Brasil.

A elaboração de memoriais descritivos ou de


inventários textual-visuais da natureza, homem e de

- 65 -
suas obras, tornou-se um registro comum em todo o
mundo, com as missões exploratórias, científicas,
desde o século XVIII na Europa e a partir do século
XIX nas América e África. No Brasil, as primeiras
missões científicas- artísticas estrangeiras ocorreram
no inicio do século XIX, e foram elas que nos
deixaram gravuras e pinturas de um Brasil “visto
pelos viajantes” (BELLUZZO, 1994).

O BRASIL NA TELA DOS ARTISTAS VIAJANTES


Com a chegada de artistas no Brasil, foram registrados grande parte
do que conhecemos hoje sobre o nosso passado, registros esses que
formavam partes de nossos costumes, como a fauna, a flora, cenas do
cotidiano e tudo o que era característico da cultura brasileira. Esses artistas
foram muito importantes para influenciar nossas artes, trazendo novas
características de outros estilos para as obras futuras de artistas brasileiros,
contribuíram na transformação do desenvolvimento estilístico.
No século XVII, no Brasil, ocorreu uma invasão holandesa no
nordeste por fatores de grandes mudanças que estava surgindo. A cana-de-
açúcar, que era a principal fonte de riqueza, ajudou no desenvolvimento de
muitos territórios. Quando Portugal ficou sob domínio espanhol, o açúcar
brasileiro que anteriormente era comercializado pela Holanda foi
interrompido. Em 1624 as tropas invadiram a Bahia, mais tarde no ano de
1630 Pernambuco seria invadido, e assim por 24 anos os holandeses
ocuparam o nordeste. Artistas holandeses tiveram uma grande participação
cultural nessa invasão, registrando nos mínimos detalhes tudo o que
valorizaram e os impressionaram de acordo com tamanha beleza exótica,
beleza de um país tão diferente, deixando uma documentação visual e uma
eterna memória do passado.

- 66 -
O que apresentam em comum imagens constituídas
de modo tão diversificado, senão o fato de
revelarem aspectos do país sob a forma de
fragmentos, que por sua vez compõem outras
histórias? É o que indicam índios introduzidos na
pintura religiosa quinhentista portuguesa ou os cajus
presentes nas naturezas mortas pintadas em
residências holandesas do século XVII. Ou, ainda,
pássaros brasileiros que figuram decorativamente
em tetos palacianos. É o que se pode pensar da
mistura de ícones do Brasil, da África, do México e do
Peru em composições sob a ótica de domínio
holandês. Fomos introduzidos ao gosto e na medida
dos europeus, inventariados pouco a pouco, e não
estou certa se adquirimos alguma vez completa
visibilidade (BELLUZZO, 1996, p. 15).

Hoje se pode analisar através das pinturas holandesas a forma em


que os artistas entendiam de acordo com seu ponto de vista, é notória em
algumas obras a presença da antropofagia (consumo da carne humana),
porém, não era tão comum essa prática, somente em rituais. Outro ponto
bem retratado era a nudez dos índios, eles os pintavam e os cobriam com
folhas, como se os comparassem com Adão e Eva, como se comparasse o
Brasil como um paraíso terrestre.
Dentre todos os artistas, destacam-se Frans Post, um homem que
destacou os detalhes das paisagens e nos deixou com uma vasta
documentação desse Brasil com mais de cem pinturas que retratavam a
mata, as paisagens e os engenhos, preferindo retratar por um ângulo visto
de longe; e Albert Eckhout, que valorizava mais a fauna e a flor por ser
botânico porém também não deixava de explorar a beleza humana,

- 67 -
diferente de Post, apresentava nas pinturas suas imagens bem próximas, nos
mínimos detalhes.

Figura 1 Vista de Itamaracá - Frans Post. Fonte:


http://temasdeartecontemporanea. blogspot. com.
br/search?q=um+brasil+holand%C3%AAs

Figura 2. Albert Ekhout – Mercado Brasileiro. Fonte: http://www. historiadasartes.


com/nobrasil/arte-no-seculo-17/arte-holandesa/

A missão diplomática inglesa ocorreu em 1825 e os principais


pintores foram Charles Landseer e William John Burchell, tais homens que
pintaram a beleza do Brasil para divulgação na Europa. Uma beleza exótica
e desconhecida trouxe estranhamento principalmente com os grupos
étnicos representados pelos negros e os índios. Landseer representou muito
os negros nas suas obras com aquarelas e desenhos, que ao mesmo tempo
causava estranhamento (também por causa das cenas de escravidão) e
admirava os ingleses; e muitas obras foram feitas com o estímulo da vista do
Rio de Janeiro. Landseer se instalou no Rio de Janeiro, conheceu de perto a

- 68 -
zona bastante rural, por isso suas obras se baseiam em registros geográficos,
humanos, e da natureza Fluminense, sendo de fundamental importância
para apreendermos a imagem do Rio de Janeiro. Durou dezoito meses sua
viagem, Landseer, o integrante da Missão Diplomática. Viajou pelo Brasil e
por Portugal. Permaneceu no Brasil por dez meses e por muitos meses viveu
no Rio de Janeiro, a cidade que morou a maior parte do seu tempo no Brasil.
Visitou também São Paulo, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco e Santa
Catarina, deixando belos registros dessas cidades.

Figura 3 A Imperatriz Leopoldina 1 - Charles Landseer. Fonte: http://www. ims.


com. br/ims/explore/artista/charles-landseer/obras

- 69 -
Figura 4. Sem título 1- Chales Landseer. Fonte: http://www. ims.
com. br/ims/explore/artista/charles-landseer/obras

SOBRE A MISSÃO ARTÍSTICA FRANCESA DE 1816


No Brasil, em 1808, a chegada da Família Real ao Brasil tonou-se um
acontecimento que alterou a história da, então, colônia de Portugal. Nesse
período, Napoleão Bonaparte havia tomado o poder na França e
conquistado grande parte da Europa. Temendo a invasão de Portugal pelo
general francês, Dom João VI, escoltado pela marinha inglesa, se refugia com
toda a nobreza portuguesa na colônia e se instala na cidade do Rio de
Janeiro.
Com a chegada da Corte Real, surge a necessidade de
desenvolvimento de serviços no Brasil, principalmente, no Rio de Janeiro.
Dom João VI resolve tomar decisões que suprissem essa carência de serviços
e que progredissem o país tão pouco explorado. Dentre as decisões, estavam
“a abertura dos portos ao comércio estrangeiro; liberdade de comércio e de
exploração de indústria; regime protecionista aos produtos brasileiros”
(TAUNAY, 1956, p. 7).
Além das medidas econômicas e políticas, Dom João percebe a
necessidade de se “estabelecer no Brasil uma Escola Real de ciências, artes
e ofícios, em que se promovesse e difundisse a instrução e conhecimentos
indispensáveis aos homens” (apud TAUNAY, 1956, p. 2). Num panorama
artístico deficiente, em que a capital do país não possuía nenhum apelo
estético e que até mesmo homens poderosos ignoravam as artes, surge a

- 70 -
ideia de se contratar artistas europeus para que fundassem essa escola de
ciências e artes.
Após o Iluminismo e a Revolução Francesa (1789-1799), períodos de
grande importância intelectual e política, a França se tornou uma grande
referência, em diversos aspectos, na Europa e no mundo. Antes mesmo da
explosão da Belle Époque, os franceses exerciam sua influência no campo
cultural: na moda, culinária e literatura, por exemplo.
Em 1815, com a queda do império Napoleônico e a retomada da
relações diplomáticas com a França, Dom João vê a oportunidade de trazer
franceses para o Brasil para que iniciassem a Missão Artística. Além disso,
em meio a um cenário de destruição (após as guerras napoleônicas) na
Europa e a volta da monarquia ao poder da França, cidadãos franceses
enxergam no Brasil a oportunidade de refúgio e o começo de uma nova vida.
Sob o patrocínio do governo lusitano e em busca do país de belezas
naturais, artistas franceses se organizam na Missão para se instalar no Rio
de Janeiro, em 1816; são eles: Joaquim Lebreton (líder da Missão), Nicolau
Antonio Taunay (pintor), Augusto Maria Taunay (escultor), Jean Baptiste
Debret (pintor histórico), Augusto Grandjean Montigny (arquiteto), Carlos
Simão Pradier (gravador), Segismundo Neukomm (compositor), Francisco
Ovide (engenheiro); além de assistentes e das famílias dos missionários.

SOBRE NICOLAU ANTONIO TAUNAY (PARIS, 10/02/1755 - PARIS,


20/03/1830)
Taunay veio para o Brasil junto à esposa e aos cinco filhos, além do
irmão e também missionário, o escultor Augusto Maria. Taunay nasceu em
uma família empobrecida por desavenças políticas e religiosas, porém muito
prestigiada no mundo das artes.
O artista desde a infância demonstrava habilidades para a pintura e
fez parte da Academia Real de Pintura da França e da Itália. Ficou conhecido
pelas pinturas de paisagens e pelas expedições em florestas em busca dos
cenários naturais para serem retratados em suas obras.

- 71 -
Ao chegar no Brasil, Taunay se viu maravilhado pela beleza da
paisagem e pelo clima, e então apelidou o lugar de “País do Sol”. O pintor se
instalou em meio à natureza da floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde
realizava suas expedições pela mata.
Depois do estado de euforia com a natureza, Taunay e os outros
artistas, aos poucos, percebiam os problemas do lugar. Acreditavam que o
atraso do Rio de Janeiro não condizia com o posto de capital e percebiam os
habitantes como um povo ignorante quanto às artes e sem instrução; o que
deu origem a uma imagem do país que perdurou por muito tempo.
Taunay deixou cerca de 700 quadros, em sua maioria, de natureza
neoclassicista. Seus quadros transmitem calma e tranquilidade, possuem a
predominância de cores claras e vivas e demonstram o apreço pelo
bucolismo. Para os neoclassicistas, a vida em meio à natureza era o refúgio
ideal da vida das grandes cidades; Taunay encontrou no Brasil o lugar
perfeito para celebrar a natureza.
Algumas obras da estadia do artista no Brasil:

Figura 5. Entrada da Baía e da cidade do Rio a partir do terraço


do convento de Santo Antônio. Fonte: http://enciclopedia. itaucultural.
org. br/pessoa24452/nicolas-antoine-taunay

- 72 -
Figura 6. Vista da Igreja da Glória. Fonte: http://enciclopedia.
itaucultural. org. br/pessoa24452/nicolas-antoine-taunay

Figura 7 Vista do Outeiro, Praia e Igreja da Glória. Fonte:


http://enciclopedia. itaucultural. org. br/pessoa24452/nicolas-antoine-
taunay

- 73 -
Figura 8. Vista do Pão de Açúcar a partir do terraço de Sir Henry
Chamberlain. Fonte: http://enciclopedia. itaucultural. org.
br/pessoa24452/nicolas-antoine-taunay

Figura 9. Cascatinha da Tijuca. Fonte: http://entretenimento.


uol. com. br/album/taunay_pinacoteca_album. htm#fotoNav=2.

- 74 -
Figura 10. Largo do Machado em Laranjeiras. Fonte:
http://entretenimento.uol.com.br/album/taunay_pinacoteca_album.
htm#fotoNav=2.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O pensamento de todo viajante ao se deparar com uma terra
desconhecida é sempre dotado de pré-conceitos e necessidade de relatar
suas experiências. No Brasil, a imagem de paraíso terrestre vigora até os dias
de hoje, e isso é fortemente explicado pela visão de mundo europeia e os
mitos edênicos que povoavam o imaginário dos viajantes na época dos
descobrimentos. Ao longo dos séculos, o Brasil recebeu visitas de diversos
viajantes que deixaram suas impressões escritas e pintadas. Apesar de ser o
olhar do europeu sobre a sociedade, cor local e hábitos, não se pode
descartar tais documentos. São Importantes ícones que recuperam a
formação de uma identidade brasileira.

REFERÊNCIAS
TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística de 1816. Ministério da Educação,
1956.

VIDAL, Laurent; DE LUCA, Tania Regina. Franceses no Brasil. Séculos XIX-XX.


São Paulo: UNESP, 2009.

- 75 -
HOLANDA, Sergio Buarque. Visão do paraíso: os motivos edênicos no
descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense,
1992.

BELLUZZO, Ana Maria de M. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Meta livros
Odebrecht,v. 3,1994

MARTINS, William de s. Viajantes estrangeiros, letrados brasileiros e as


festas religiosas no Rio de Janeiro: A visão civilizadora (C. 1800-1860). In:
Projeto História. Revista do Programa de Pós-Graduação em História da
PUC-SP. São Paulo: PUC-SP, n. 42, junho. 2011. p. 303-324. Disponível em
http://revistas. pucsp. br/index. php/revph/article/viewFile/10209/7669.
Acesso em 10/06/2016.

MOREIRA, Bruno Alessandro. Os relatos dos viajantes estrangeiros no Brasil


oitocentista: possibilidades historiográficas. In: Ciclo de Estudos históricos.
Anais. Ilhéus: UESC, 2009. p. 1-8. Disponível em http://www.
uesc.br/eventos/cicloshistoricos/anais/bruno_alessandro_gusmao_moreir
a. pdf. Acesso em 20/06/2016.

OLIVEIRA FILHO, Odil José. Projetos de promissão: a literatura da expansão


ultramarina portuguesa no Brasil (século XVI). In: Revista de Letras UNESP,
n. 39, 1999, p. 37-48. Disponível em seer. fclar. unesp. br/letras. Acesso em
28/06/2016.

SQUEFF, Letícia. Revendo a missão francesa: A Missão artística de 1816. In:


Atas do I Encontro de História da Arte. Campinas: IFCH/UNICAMP, n. 2, 2004.
p. 133-140. Disponível em http://www. unicamp. br/chaa/rhaa/atas/atas-
IEHA-v2-133-140-leticia%20squeff. pdf . Acesso em 20/06/2016.

VIDAL, Laurent; DE LUCA, Tania Regina. Franceses no Brasil. Séculos XIX-XX.


São Paulo: UNESP, 2009.

SITES CONSULTADOS

http://temasdeartecontemporanea. blogspot. com. br/2013/07/um-brasil-


holandes. html. Acesso em 10/07/2016

- 76 -
http://advivo. com. br/blog/iv-avatar-do-rio-meia-ponte/a-missao-artistica-
francesa. Acesso em 28/06/2016.

http://www. historiadasartes. com/nobrasil/arte-no-seculo-17/arte-


holandesa/ Acesso em 28/06/2016.

http://redememoria. bn. br/2012/01/a-missao-artistica-francesa/ Acesso


em 17/06/2016

http://bndigital. bn. br/francebr/missao_artistica. htm Acesso em


10/07/2016

http://enciclopedia. itaucultural. org. br/pessoa24452/nicolas-antoine-


taunay Acesso em 17/06/2016

http://www. ims. com. br/ims/explore/artista/charles-landseer/obras


Acesso em 18/06/2016

http://entretenimento. uol. com. br/album/taunay_pinacoteca_album.


htm#fotoNav=2. Acesso em 12/06/2016.

- 77 -
O Relato de Viagem de Burton: Entre a História e a Literatura

Gabriella de Oliveira
Ian Kury
Letícia Cazaroti
Marina Guimarães8

INTRODUÇÃO
Antes da vinda da família real em 1808 e da subsequente abertura
dos portos para as “nações amigas”, o Brasil era uma terra de difícil acesso
aos estrangeiros, principalmente à exploração científica estrangeira, já que
Portugal temia a ambição dos países europeus emergentes e queria
resguardar o seu monopólio sobre a colônia. Com o estabelecimento da
Corte portuguesa, e principalmente pela influência da Imperatriz
Leopoldina, o século XIX no Brasil foi marcado pela abertura econômica e
cultural e pelo grande influxo de estrangeiros, propiciando uma maior
aproximação entre o Brasil e a Europa.
A terra brasileira, o "novo mundo", ainda representava uma espécie
de incógnita para os europeus e demandava estudos sistemáticos sobre seu
território e seu povo. Era um território atrativo para expedições científicas,
sobre as quais vários viajantes, cientistas e aventureiros produziram
registros, que abrangiam os mais variados interesses e áreas do
conhecimento. Em geral, esses viajantes tinham como objetivo principal a
busca do conhecimento científico, a avaliação das riquezas naturais, a
indagação dos costumes dos habitantes e a formação de seus povoados.
Algumas nações, como a França, Grã-Bretanha e Império Russo financiavam

8
Acadêmicos do Curso de Letras, respectivamente, Português-Russo, Português-Russo,
Português-Francês e Português-Grego da Faculdade de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro - UFRJ. Este trabalho é resultado da Disciplina Fundamentos da Cultura
Literária Brasileira - FUNDBRAS, ministrada pela Profa. Dra. Luciana Nascimento, durante o
1ºsemestre de 2016, na Faculdade de Letras de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ.

- 78 -
viagens que, além de uma descrição física dos novos territórios e observação
de seus habitantes e seus costumes, tinham em vista notificar os potenciais
econômicos dos continentes (ROSSATO apud SCHEMES, 2015, p. 2).
Exploradores como Sir Richard Francis Burton contaram ao longo da
história suas aventuras em obras literárias que podem ser reconhecidas
como pertencentes a um gênero específico, caracterizado pelo seu
hibridismo – o “relato de viagem” ou “literatura de viagem”. Neste trabalho
fazemos uma breve reflexão sobre o relato de viagem como gênero literário
e ao mesmo tempo sobre seu lugar no campo da História.
Em seguida, utilizamos uma amostra da obra de Burton, o livro
Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, para ilustrar essa discussão e trazê-
la para um contexto literário e histórico brasileiro. De acordo com Schemes
(2015), é importante “localizar em que momento da [...] trajetória [do
viajante] a viagem transcorreu” (SCHEMES, 2015, p. 3)
Burton, quando veio morar no Brasil e teve a oportunidade de fazer
o relato em questão, já tinha vasta experiência como explorador e também
como escritor. Já passara por experiências perigosas, pitorescas e que muito
marcaram sua vida em viagens pela Índia, por vários cantos do mundo árabe,
pela África em busca da nascente do Nilo, etc. Era hábito constante de
Burton fazer abundantes anotações durante suas aventuras, e antes do seu
período no Brasil ele já tinha escrito diversos livros narrando suas
experiências (RICE, 1991). Seus textos sobre o que vivenciou no Brasil
refletem um escritor já maduro, confortável com o gênero em que escreve
(o relato de viagem) e seguro de si e das suas opiniões. Burton se sentia
suficientemente à vontade e confiante para expressar seu gosto pessoal
como uma perspectiva importante e digna de ser considerada; não perdia,
entretanto, sua grande objetividade ao descrever o mundo do ponto de vista
científico. Essa tendência ora ao subjetivo, ora ao objetivo será usada para
justificar a pertinência dessa obra tanto ao campo da História quanto ao da
Literatura.

- 79 -
Além disso, o interesse de Burton em notificar a importância seu
trabalho é muito perceptível em várias passagens, nas quais ele faz suas
observações sobre os potenciais de desenvolvimento econômico do
território brasileiro. Como por exemplo, na dedicatória do relato em estudo
ao Lorde Stanley, membro do Parlamento Britânico:

[...] uma região tão rica em dádivas da natureza, tão


farta em possibilidades ainda inexploradas e tão
ansiosa de progresso; para um Império preso a nós
pelos laços do comércio, pelo seu elevado e honroso
desempenho no que diz respeito aos créditos
públicos; para um povo que provoca a nossa
admiração pela sua jovem e gloriosa história como
colônia e por sua perseverança, patriotismo e
confiança em si mesmo, na guerra dos últimos três
anos; e para uma comunidade tão ligada à nossa pelo
governo monárquico e constitucional, e pelas
relações amistosas, que datam do Dia da
Independência, estarei certo (para usar a frase
estereotipada) de que tempo e trabalho não foram
gastos em vão(BURTON, 2001, p. 18).

O LUGAR DO RELATO DE VIAGEM NA LITERATURA


Alguns críticos literários questionam se o relato de viagem seria de
fato um “gênero literário”. Para Mary Anne Junqueira, “trata-se de um
corpus documental consideravelmente diversificado, sendo improvável
encontrar homogeneidade entre essas fontes” (2011, p. 45-46). Ou
seja, seria muito difícil englobar textos tão heterogêneos em um bloco
único. Para Jam Borm, (BORM apud SCHEMES, 2015, p. 7) é problemático
definir o relato de viagem como um objeto, já que este “é um “gênero
composto por outros gêneros literários”. Seria uma espécie de gênero

- 80 -
híbrido, já que pode ser composto de discursos narrativos e descritivos,
apresentar um caráter fictício, autobiográfico, científico, entre outros.
Roberto Carlos Ribeiro (2010, p. 223) condensa essa discussão quando
propõe que o hibridismo é justamente o traço caracterizador de todo relato
de viagem.
O gênero relato de viagem se localizaria na fronteira entre a História
e a Literatura. O crítico literário Terry Eagleton considera que o “atributo de
literatura não estaria na origem do texto, ou em elementos intrínsecos, mas
na relação que as pessoas estabelecem com os textos” (EAGLETON apud
SCHEMES, 2015, p. 8). Portanto, por um lado, os leitores têm uma tendência
a receber e consumir esse tipo de obra como uma obra literária, já que não
deixa de conter relatos altamente pessoais e subjetivos; por outro lado, seria
razoável reivindicar a denominação de “relato histórico” para o relato de
viagem, porque esse gênero trata da descrição realista de paisagens e
costumes, sem ter necessariamente um caráter literário (RIBEIRO
apud SCHEMES, 2015, p. 7).
É evidente em Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho que Burton
se sentia à vontade para expressar sua própria opinião sobre elementos
artísticos e naturais. Ele demonstra sua tendência a fazer juízos de valor, por
exemplo, em seu relato sobre São João d’El Rei, quando escreve:

À nossa esquerda, fica a horrorosa capela de Nossa


Sra. do Monte, parecida com os templos das
modernas colônias espanholas, com duas janelas
(com persianas pintadas de vermelho) e uma só
porta, dando a impressão de um rosto sem nariz
(BURTON, 2001, p. 172).

Outro exemplo – e aqui se nota até mesmo algum racismo, não raro
naquela época – é de quando ele descreve a igreja do Rosário em Morro

- 81 -
Velho: “A nave e o altar-mor são caiados de branco, e a ornamentação é
pobre e de mau gosto – gosto de negro” (BURTON, 2001, p. 244).
Outro argumento a favor da inclusão do relato de viagem no campo
da Literatura é a presença de passagens poéticas no texto, como no trecho
seguinte, do mesmo livro, sobre a beleza da paisagem da Baía de Guanabara,
pouco depois da partida do Rio de Janeiro em direção a Petrópolis:

À tarde, a fria neblina das montanhas, densa como a


fumaça de caldeiras, agarra-se aos rochedos, desce
pelas majestosas encostas, levanta-se sobre as
gargantas e os vales e revoluteia sobre os escuros e
altaneiros picos: dá a impressão de um oceano de
espuma avançando para inundar o mundo (BURTON,
2001, p. 52).

A heterogeneidade da obra de Burton, redigida com rigor, alto poder


descritivo e também com nuances de humor, é composta também de relatos
sobre fatos históricos, como a Revolução de Barbacena, observações
recheadas de ironia crítica, principalmente em relação à administração dos
portugueses e alguns costumes no Brasil. Entre os exemplos, citamos um
sobre um cemitério em Rancharia, no caminho para Juiz de Fora: “Como é
costume no Brasil, o cemitério ocupa uma elevação bem visível, e as
moradas dos mortos estão muito mais bem situadas que as dos vivos”
(BURTON, 2001, p. 70); e outro sobre a negligência dos portugueses no
planejamento das estradas de sua colônia:

Nesse estágio da sociedade, porém, “trabalhar para


os outros” desacredita uma pessoa
consideravelmente, e o verdadeiro português, da
velha escola, prefere fazer qualquer coisa a satisfazer
as necessidades de seus vizinhos. [...] Estávamos

- 82 -
viajando pela estrada que liga a metrópole do
Império à Capital da Província do Ouro e dos
Diamantes (BURTON, 2001, p. 86).

AS INCURSÕES DE BURTON EM OUTRAS ÁREAS DO CONHECIMENTO


Em contrapartida, há material objetivo mais do que suficiente para
defendermos que esse livro é um “relato histórico” tanto quanto uma obra
literária. Burton, um explorador de grande fama devido a suas audazes
expedições pelos oito polos do mundo, manifesta interesse por diversas
ciências, e em sua obra sente-se nitidamente seu conhecimento mesmo
sobre detalhes muito técnicos e específicos, além de um hábito de ser
minucioso em suas pesquisas em várias áreas.
Em Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, ele descreve não só os
lugares de modo geral, mas também especificidades geográficas, geológicas,
zoológicas, botânicas, químicas, linguísticas, econômicas e até
antropológicas e sociológicas de tudo que observa. Por exemplo, na
passagem seguinte fica clara a sua preocupação com o rigor científico ao
mencionar uma espécie de morcego que encontrou:

[...] ele fora brutalmente atacado pelo morcego


(Vespertilionaso ou Phyllostomus spectrum), um
filóstomo; chamado na região morcego andira ou
guandira. Esses grandes morcegos marrons, de vôo
de fantasma e gosto de canibal, estão limitados ao
continente americano [...] (BURTON, 2001, p. 145).

Na elucidação seguinte sobre um termo em tupi (em uma nota),


Burton revela seu interesse linguístico, e preocupação em, inclusive, corrigir
erros de outrem que encontrou durante sua pesquisa.

- 83 -
A andorinha também é conhecida pelo seu nome
tupi, taperá ou majoí. A primeira dessas palavras não
deve ser confundida com “tapera”, que o Dicionário
traduz por “aldeia velha” ou “sítio abandonado”, e
nota que, de acordo com Pison, também significa
“andorinha”, o que não é verdadeiro (BURTON,
2001, p. 280).

Seria possível listar aqui dezenas de exemplos em Viagem do Rio de


Janeiro a Morro Velho dessa exatidão de Burton em todo tipo de medidas:
de preços, pesos, dimensões, etc. Uma listagem exaustiva desses casos,
entretanto, foge ao nosso escopo, e basta para a nossa argumentação ter
em mente o fato de que, embora em alguns momentos tenhamos um Burton
poético e subjetivo, há também uma abundância de informações objetivas
em suas obras, que até hoje são importantes para estudos de diversas
ciências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Ribeiro (2007, p. 156), o relato de viagem pode ser considerado
um “ponto de partida” da literatura brasileira. A historiografia literária, que,
em geral, considera o relato de viagem da “Carta de Pero Vaz de Caminha”
como a primeira obra da literatura brasileira, teria, assim, desempenhado
um papel fundamental no desenvolvimento da literatura em geral no Brasil,
estendendo-se para “uma forma de conhecimento cultural das raízes do
próprio país” (RIBEIRO apud SCHEMES, 2015, p. 9). Afinal, a visão dos
viajantes europeus sobre o desconhecido, influenciada pela experiência de
alteridade, é que lhes permitiu uma capacidade de descrição especial de tais
detalhes que passariam despercebidos pelos nativos. “Deste modo, os
relatos dos viajantes estrangeiros possuem a qualidade de, entre outras
coisas, abordar de maneira incisiva aspectos que passam de maneira

- 84 -
involuntária, ou até mesmo se fazem ausentes, em outros tipos de fontes”
(MOREIRA, 2009, p. 4).
Ribeiro também relata que, apesar dessa importância inicial, o
gênero do relato de viagem é visto como secundário de uma perspectiva
mais ampla da literatura brasileira (sendo considerado por alguns
pesquisadores um “gênero menor”).
Burton, com suas habilidades de explorador experiente e poliglota,
seu invejável rigor científico e sua capacidade de desenvolver um texto
poderoso do ponto de vista literário, vem nos persuadir de que talvez o lugar
do relato de viagem no contexto literário nacional tenha sido subestimado,
e que até o final do século XIX, quando o livro Viagem do Rio de Janeiro a
Morro Velho foi escrito, a relevância desse tipo de literatura no país foi muito
grande.
Assim, pelos argumentos apresentados, não julgamos correto
empurrar mais para o lado da História ou mais para o da Literatura o relato
de viagem, particularmente como manifesto no trabalho de Burton, e em
vez disso aceitar sua pertinência simultânea e altamente relevante a essas
duas áreas.

REFERÊNCIAS

BURTON, R. F. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado


Federal, 2001.

EAGLETON, T. Teoria da Literatura: uma introdução. 6ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2006.

JUNQUEIRA, M. A. Elementos para uma discussão metodológica dos relatos


de viagem como fonte para o historiador. In: JUNQUEIRA, M. A; FRANCO, S.
M (Org). Cadernos de Seminários de Pesquisa (vol. II). São Paulo:
Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. Universidade de São Paulo / Humanitas, 2011. Disponível em

- 85 -
http://historia. fflch. usp. br/sites/historia. fflch. usp. br/files/CSP2. pdf.
Acesso em 12 de junho de 2016.

MOREIRA, B. A. G. Os Relatos dos Viajantes Estrangeiros no Brasil


Oitocentista: Possibilidades Historiográficas. In: Ciclo de Estudos Históricos.
Anais. Ilhéus: UESC, 2009.

RIBEIRO, R. C. Literatura de viagem e historiografia literária brasileira. In:


Revista Letras & Letras, Uberlândia, n. 23, vol. 1. p. 145-159, jan. /jun. 2007.
Disponível em http://www. seer. ufu. br/index.
php/letraseletras/article/view/25280/14073. Acesso em 19 de junho de
2016.

RICE, E. Sir Richard Francis Burton: O agente secreto que fez a peregrinação
a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe As Mil e Uma Noites para o
ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

ROSSATO, L. A lupa e o diário: história natural, viagens científicas e relatos


sobre a Capitania de Santa Catarina (1763-1822). Itajaí: Universidade do Vale
do Itajaí, 2007.

SCHEMES, E. F. A literatura de viagem como gênero literário e como fonte


de pesquisa. In: Anais do XXVIII Simpósio Nacional de História - Lugares dos
historiadores velhos e novos desafios. Disponível em http://www. snh2015.
anpuh. org/resources/anais/39/1439245917_ARQUIVO_2.
ARTIGOANPUH2015Elisa-Final. pdf. Acesso em 19 de junho de 2016.

- 86 -
O Brasil no espelho de Fernão Cardim

Dênis Silva da Silveira


Gabriela da Silva Borges
Marcela de Oliveira Martins Pereira9

INTRODUÇÃO
O processo de colonização e formação da sociedade brasileira foi
marcado pelo imaginário religioso, tendo em vista que no projeto de
expansionismo europeu estava subjacente a ideia de cristianização dos
povos. A colônia Santa Cruz, pertencente a Portugal, foi a terra a ser ocupada
para exploração, cultivo, extração; fonte de matérias primas (pau-brasil,
cana de açúcar, ouro..). para o mercado externo. Tal colônia, como pode-se
deduzir, tratava-se do Brasil, forma como passou a ser referida mais tarde
por conta da matéria prima mais explorada no início da colonização, da qual
se extraia uma tintura vermelha semelhante à brasa. E como se pode ver no
trecho da carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel:

De ponta a ponta é toda praia...muito chã e muito


fremosa. [...] Nela até agora não pudemos saber que
haja ouro nem prata...porém a terra em si é de
muitos bons ares assim frios e temperados como os
de Entre-Doiro-e-Minho. Águas são muitas e
infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-
a aproveitar dar-se-á nela tudo por bem das águas
que tem, porém o melhor fruto que nela se pode

9
Acadêmicos do Curso de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Este trabalho foi originalmente apresentado à professora Luciana Nascimento como
avaliação na disciplina de Fundamentos da Cultura Literária Brasileira, ministrada na
Faculdade de Letras da UFRJ, no 1º semestre de 2016.

- 87 -
fazer me parece que será salvar esta gente e esta
deve ser a principal semente que vossa alteza em ela
deve lançar” (Pero Vaz de Caminha - 1500. Apud.
BOSI, 2006. p. 15).

Percebe-se um propósito mercantilista da viagem (a preocupação


com o ouro e a prata). E a catequese dos índios tinha sido muito importante
para os portugueses, o espírito missionário (a salvação do índio) oferecia
uma justificativa para a exploração econômica.
E foi nesse contexto que surgiram os primeiros escritos a respeito do
Brasil tratando da instauração do processo colonial. Viajantes e missionários
vindos de Portugal colheram várias informações a respeito dos homens
brasileiros e da natureza. Sendo o primeiro desses textos de origem
portuguesa, a carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel, que se
tratava de uma literatura de viagens. Sobre a qual Alfredo Bosi ressalta:
Espírito observador, ingenuidade ( no sentido de um
realismo sem pregas ) e uma transparente ideologia
mercantilista batizada pelo zelo missionário de uma
cristandade ainda medieval: eis os caracteres que
saltam à primeira leitura da Carta e dão sua medida
como documento histórico (BOSI, 2006. p. 14).

Literatura que louva a terra enquanto ocasião de glória para a exaltar


a metrópole. Neste contexto o nativismo em Caminha, como em outros
cronistas, situa-se no nível descritivo sem qualquer conotação subjetiva ou
polêmica. O que parece prever um certo otimismo quanto às
potencialidades da colônia, com "visão do paraíso" como motivo das
descrições: Eldorado, Éden recuperado, fonte da eterna juventude, mundo
sem mal, volta à Idade de Ouro. Descrevendo com um tom simples e sóbrio,
franco e atento ao que vê, sejam os homens e seus hábitos, seja o relevo.
Isso sem apelar facilmente a construções imaginárias, mas, claro, sob uma

- 88 -
objetividade relativa ao universo do autor: humanista, católico, interessado
no proveito do Reino.
Já quanto a crônica dos jesuítas, tem caráter informativo e ainda
incluí intenção pedagógica e moral. Os missionários da Companhia de Jesus,
quando chegaram, uniram fé ao zelo constante pela conversão das gentes
brasileiras, e os escritos catequéticos são exatos documentos. Enquanto
maior relevância literária entre os missionários jesuítas tem-se José de
Anchieta, único no qual se acha o veio religioso que se pressupõe ter toda
obra religiosa. Este era um poeta e dramaturgo, seus autos eram pastorais e
tinham por objetivo a edificação do índio e do branco em certas cerimônias
litúrgicas, porém o mesmo não acontece com seus poemas que valem em si
como estruturas literárias. Ainda, a depender do interesse ou grau de
compreensão do público a doutrinar, escrevia ou em português ou em tupi.

Paralelamente à crônica leiga, aparece a dos jesuítas,


tão rica de informações e com um "plus" de intenção
pedagógica e moral. Os nomes mais significativos do
século XVI são os de Manuel da Nóbrega e Fernão
Cardirn, merecendo um lugar à parte, pela relevância
literária, o de José de Anchieta (BOSI, 2006. p. 18).

Contudo, outro nome não menos importante entre os cronistas do


período do descobrimento do Brasil colônia foi Fernão Cardim que, assim
como Anchieta, era um missionário jesuíta. Esse, como um Provincial,
enviava para os superiores informes que recolhia nas capitanias e que
circulavam sob o nome de Tratado da Terra e da Gente do Brasil. E é a partir
desse jesuíta que neste trabalho teremos a visão de uma das importantes
crônicas do descobrimento, sendo que estas constituíram importantes
documentos tanto informacionais quanto literários. De acordo com Bosi,
esses textos se converteram tanto em testemunhos do tempo, como
também em sugestões temáticas e formais, que mais trade, ou seja, no

- 89 -
século XIX, voltaram a ser lidos quando a inteligência brasileira procurou nas
raízes da terra e do nativo, imagens para afirmar o Brasil em face do
estrangeiro (BOSI, 2003, p. 20).

CARDIM E AS GENTES BRASILEIRAS


As missões jesuíticas se situaram incluídas no conjunto de medidas
empreendidas pela Reforma católica apesar de ser anterior ao Concílio de
Trento que nas suas determinações representava a Contra-Reforma
(movimento que não somente defendia o catolicismo frente ao avanço
protestante ou perseguia as heresias, mas também pretendia uma reforma
mais ampla, até no interior da Igreja). Isso porque a expansão do catolicismo
esteve presente desde cedo nos processos de colonização europeus, pois,
como afirma Célia Cristina Tavares, a Contra-Reforma deveria ser entendida
como um fenômeno que englobou um grande espaço temporal e geográfico.
Assim, as reformas religiosas tiveram igualmente sua projeção no além-mar
ibérico (TAVARES, 2004, p. 90).
Embora houvesse divergência entre os interesses eclesiásticos e da
coroa, a expansão cristã sempre esteve ligada aos interesses da desta, que
mantinha o controle da igreja por meio do padroado. Este que, segundo o
Dicionário do Brasil Colonial por Ronaldo Vainfas, era um regime que a
“Igreja instituía um indivíduo ou instituição como padroeiro de certo
território, a fim de que ali fossem promovidas a manutenção e propagação
da fé cristã. Em troca, o padroeiro recebia privilégios, como a coleta dos
dízimos e a prerrogativa de indicar religiosos para o exercício das funções
eclesiásticas” (VAINFAS, 2000, p. 466). E foi através das missões de
conversão de gentios, patrocinadas pela coroa portuguesa, a qual possuía o
padroado de várias regiões, que o espírito da Contra-Reforma encontrou
terreno nos domínios ibéricos.
Em função da Contra-Reforma, foi criada em 1537, a Companhia de
Jesus para a manutenção da fé nos diversos territórios além-mar. Esta estava
diretamente ligada aos serviços de catequização, era formada por bispos e

- 90 -
padres e foi o exemplo mais notável de uma ação missionária ao redor do
mundo. As missões jesuítas foram marcadas por um espírito prático de
conversão, com o esforço de adaptação às diferentes realidades assim como
a proximidade entre missionários e nativos. O levou muitas vezes a uma
aproximação cultural com os grupos a serem evangelizados.
A chegada dos jesuítas na América portuguesa garantiu o monopólio
das atividades de conversão do gentio com a fundação do primeiro bispado.
Por isso, quando Fernão Cardim chegou no Novo mundo, presenciou um
momento relativamente avançado nos serviços missionários. Os
missionários já demonstravam agudo senso prático na aproximação com as
sociedades locais e na compreensão de seus elementos sociais. Da mesma
forma, já haviam desenvolvido há tempos grupamentos de nativos em
aldeias como meio de fazer avançar sua atividade apostólica. Assim, a
convivência com as sociedades nativas esteve presente desde cedo como
estratégia de conversão. O encontro entre nativos e colonizadores assumiu
dinâmicas distintas e respondeu a casos particulares situados entre as
diferentes esferas do social. O fenômeno produziu, assim, adaptações e
substituições culturais forçadas ou não. Percebe-se, assim, a necessidade de
entender determinados aspectos das dinâmicas locais, a fim de que os frutos
do cristianismo pudessem ser efetivos.
De formação religiosa, o Jesuíta Fernão Cardim se encontrava em
consonância com os projetos da Contra Reforma empreendida pela Igreja
Católica frente à Reforma Protestante e seus escritos nos revelam a visão de
um religioso acerca de povos distantes e distintos. Cardim faz a associação
do deus local Tupã com o Deus Cristão: “Não têm nome próprio com que
expliquem a Deus, mas dizem que Tupã é o que faz os trovões e relâmpagos,
e que este é o que lhes deu as enxadas, e mantimentos, e por não terem
outro nome mais próprio e natural, chamam a Deus Tupã” (CARDIM, 1925,
pg. 47). E em outra passagem o jesuíta, após a cerimônia de absolvição,
utiliza da língua nativa para dizer : xê rair tupã toçô de hirunamo, sc. —filho,

- 91 -
Deus vá contigo”. . Como se pode observar, houve diversas adaptações da
ação missionária na Terra Brasilis e uma delas, foi na linguagem.
Os jesuítas reportavam todos os acontecimentos relevantes por meio
de cartas, que tinham um funcionamento bem peculiar dentro na
companhia já que serviam tanto para informar os superiores sobre as
questões locais como a fauna e flora e como era a atuação da companhia,
além de animar os noviços acerca do que eles poderão esperar ao embarcar
em suas missões em terras exóticas.

Era através das notícias epistolares que noviços e


visitadores se preparavam para sua atuação nas
missões que se acreditava frutificarem. Destaco,
portanto, que se esperava que os textos fossem
capazes de elucidar sobre um ‘estado de coisas’ que
acionaria uma intervenção. Sem dúvida intervenção
evangelizadora, já que entre religiosos, mas nem por
isso menos relevante para a colonização
(FERNANDES, 2009, p. 180).

A influência das cartas só aumentava a medida que mais chegavam.


Alimentando as expectativas dos jesuítas para o mundo que eles escolheram
abraçar:

Motivo de consolação uma vez que das cartas vindas


da Europa dirimiam-se dúvidas e aflições concretas
do como proceder com os nativos, além de
representarem um evento de comoção pela
percepção de união entre os religiosos, reafirmando
as escolhas que haviam feito para suas vidas (LEÃO,
2005, p. 30).

- 92 -
Por isso, em várias passagens, Cardim descreve a maneira que eles
são recebidos em cada localidade tantos por portugueses quanto por índios:
“Os portugueses recebem o padre nesta terra com tantas honras e mostras
d’amor que não há mais que pedir” (CARDIM, 1997, p. 96). Ou ainda na
passagem: “Pelo caminho fizeram grande festa ao padre, umas vezes o
cercavam, outra o cativavam, outras arremedavam pássaros muito ao
natural; no rio fizeram muitos jogos ainda mais graciosos, e têm eles n’água
muita graça em qualquer coisa que fazem. Estas coisas de ordinário faziam
de si mesmos, que não é tão pouco em brasis e meninos achar-se habilidade
para saberem festejar e agasalhar o Payguaçu” (CARDIM, Op. cit. , p. . 83) e
Cardim, prossegue afirmando que diante dos moradores portugueses e
índios, “fomos bem agasalhados, com grandes sinais de amor e abundância
do necessário” (CARDIM, Op. cit. , p. 90). Nota-se que em um número grande
de passagens, há referência às maneiras de como os jesuítas foram
agasalhados.
Outra ocorrência comum, que era tanto para especificar aos seus
superiores de como está indo as missões como entusiasmar os noviços, é
que há sempre uma contagem de conversões que foram feitas em cada
localidade como nessa passagem: “Muitas missões se fizeram por ordem do
padre visitador nesses dois anos pelos engenhos e fazendas dos
portugueses; nelas se colheu copioso fruto e se batizaram passante de três
mil almas. . ” (CARDIM, idem, p. 86). No tocante à demonstração dos
números de convertidos, esta servia como um reforço positivo para os
noviços crerem que o caminho para a evangelização dos gentios, por mais
árdua que fosse, não seria em vão.
Fernão Cardim viveu por mais de 42 anos no Brasil e por causa disso
pode observar muito bem o comportamento dos índios e dos portugueses e
com isso descrever com grandes detalhes os hábitos desses dois povos tão
distintos um do outro . Como era o casamento dos índios:

- 93 -
Nenhum mancebo se acostumava casar antes de
tomar contrário, e perseverava virgem até que o
tomasse e matasse correndo-lhe primeiro suas
festas por espaço de dois ou três anos; a mulher da
mesma maneira não conhecia homem até lhe não vir
sua regra, depois da qual lhe faziam grandes festas
(CARDIM, idem, p. 48).

Cardim como um verdadeiro etnólogo descreve os costumes,


alimentos, a vestimenta e a moradia indígena :

Não têm dias em que comam carne e peixe; comem


todo gênero de carnes, ainda de animais imundos,
como cobras, sapos, ratos e outros bichos
semelhantes, e também comem todo gênero de
frutas, tirando algumas peçonhentas … [...]
Todos andam nus assim homens como mulheres, e
não têm gênero nenhum de vestido e por nenhum
caso verecundant, antes parece que estão no estado
de inocência nesta parte, pela grande honestidade e
modéstia que entre si guardam … [...]
Usam estes índios de umas ocas ou cascas de
madeira cobertas de folha, e são de comprimento
algumas de duzentos e trezentos palmos, e têm duas
e três portas muito pequenas e baixas (CARDIM,
idem,p. 48-50).

Fernão também fez um apanhado das tribos e línguas que existiam


em sua época e entre aquelas amigos dos portugueses e as nações bárbaras
que ele descreveu:

- 94 -
Todas essas setenta e seis nações de tapuias, que
têm as mais delas diferentes línguas, são gente
brava, silvestre e indômita, são contrários quase
todas do gentio que vive na costa do mar. ”. E
apresentou possíveis os motivos de fracasso, e um
alerta aos futuros jesuítas que por essas bandas aqui
aportassem, da não-conversão desses índios:" com
os tapuias, não se pode fazer conversão por serem
muito andejos e terem muitas e diferentes línguas
dificultosas (CARDIM, idem, p. 62).

O religioso também reclama do comportamento de alguns


portugueses que enganavam índios que tinha grande estima pelos padres:

Portugueses de ruim consciência se fingem padres,


vestindo-se em roupetas, abrindo coroas na cabeça,
e dizendo que são abarês e que os vão buscar para
as igrejas dos seus pais, que são os nossos, os trazem
enganados, e em chegando ao mar os repartem
entre si, vendem e ferram, fazendo primeiro neles lá
no sertão grande mortandade, roubos e saltos,
tomando-lhes as filhas e mulheres, etc. , e se não
foram estes e semelhantes estorvos já todos os desta
língua foram convertidos à nossa santa fé (CARDIM,
1997, p. 86).

Ele também comenta os que se perderam no meio dos pecados:

Os encargos de consciência são muitos, os pecados


que se cometem neles não têm conta; quase todos
andam amancebados por causa das muitas ocasiões;

- 95 -
bem cheio de pecados vai esse doce, porque tanto
fazem: grande é a paciência de Deus, que tanto sofre
(CARDIM, idem,p. 92).

No que se refere aos aspectos religiosos, o jesuíta identifica uma falta


de fé: “As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem
frequentam as missas, pregações, confissões, etc”.
Ao mencionar os escravos, o religioso ressalta também a importância
do casamento e do batismo entre eles: “principalmente nos casamentos e
batismos dos índios e escravos de Guiné” (CARDIM, idem, p. 76). Os escravos
também são mencionados quando ele fala das dividas que os portugueses
tem ao manter eles: “alguns devem muito pelas grandes perdas que têm
com escravaria de Guiné, que lhes morrem muito, e pelas demasias e gastos
grandes que têm em seu tratamento” (CARDIM, idem, p. 92).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, Fernão Cardim realizou, por meio de processos de
aproximação entre as culturas dos portugueses e dos índios, o projeto do
missionarismo jesuítico influenciado pela Contra-Reforma, que estava
associado a um desejo expansionista de Portugal com interesses
mercantilistas em tornar o Brasil em uma colônia lucrativa. Nesse contato
entre as culturaS, as obras que retrataram a gentes e a topografia brasileira
foram várias, escritas por escritores diferentes, não só missionários sobre as
ordens da Companhia de Jesus quanto viajantes (não que fossem menos
católicos que os anteriores) que mandavam relatos sobre a colônia para a
metrópole.
E com isso, pudemos observar como outros fizeram que a literatura
de informação produzida por Fernão Cardim sabe equilibrar a seriedade e
carga que devia conter os documentos jesuítas da época com seu
aprofundamento narrativo e sua admiração pelos acontecimentos do Novo
Mundo. Por mais que alguns de seus documentos não puderam ter sido

- 96 -
devidamente aproveitados na época, ainda hoje temos uma carga
informativa importante para entendermos o que foi a catequização dos
índios na América portuguesa, uma vez que sua escrita também abrangesse
portugueses que por aqui viviam, bem como as ações da Companhia de
Jesus.

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira 43 ed. São Paulo:


Cultrix, 2006.

CAMINHA, Pero de Vaz. Carta a el rey D. Manuel. Edição ilustrada e transcrita


para o português contemporâneo e comentada por Maria Angela Vilela. São
Paulo: Ediouro, 1999.

CARDIM, Fernão Cardim. Tratados da terra e gente do Brasil. Introdução e


notas de Ana Maria de Azevedo. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997.

FERNANDES, Eunícia Barros Barcelos. As Palavras Como Linhas: Fernão


Cardim. Revista Brasileira de História das Religiões, Ano I, n. 3, p. 167-185,
Jan. 2009. Disponível em http://www. dhi. uem.
br/gtreligiao/pdf2/texto%209. pdf. Acesso em 20/06/2016.

___ Fernão Cardim: a epistolografia jesuítica e a construção do outro.


Tempo, Niterói , v. 14, n. 27, p. 176-198, 2009. Disponível em http://www.
historia. uff. br/tempo/site/?p=352. Acesso em 12/06/2016.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Companhia


Editora Nacional/ Editora da Universidade de São Paulo, 1969.

LEÃO, Lucas Carneiro. Relatos do Padre Fernão Cardim (1583-1625):


Missionação no Brasil da Contra Reforma, 2005. Monografia TCC, Graduação
em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2005. Disponível em www. historia. ufpr.
br/monografias/2005/lucas_carneiro_leao. pdf. Acesso em 08/07/2016.

- 97 -
TAVARES, Célia Cristina da Silva. Jesuítas e Inquisidores em Goa: A
Cristandade Insular (1540-1682). Lisboa: Roma, 2004.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad.


Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

VAINFAS, Ronaldo (dir). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de


Janeiro: Objetiva, 2000.

SITE CONSULTADO

NOENBERG, Cláudia de Geus. Fernão Cardim e seu entendimento sobre o


gentio. http://literaturadauepg. blogspot. com. br/, 2010. Acesso em 10 de
julho de 2016.

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A Província do Espírito Santo vista pelo Viajante Auguste
François Biard

Aline Marinho Feitosa de Carvalho


Camille Esteves de Melo
Larissa da Silva Aires
Lidiane Mazzeo G de Albuquerque
Maria Leidiana Ferreira Rodrigues
Suzana da Motta Bantim10

INTRODUÇÃO
Foi no ano de 1530, exatamente, que começou a imigração dos
colonos Portugueses para o novo território, com o objetivo de dar início ao
plantio da cana- de- açúcar no Brasil, além do objetivo claro de marcar o
território “recém - descoberto”, por medo de outros países quererem fincar
sua bandeira aqui e também competir pelas riquezas da nossa atual Pátria
(BUENO, 2013).
Dentre todos os imigrantes que aqui chegaram, em especial, os
Portugueses, mas outros estrangeiros também vieram, em especial, os de
países europeus, começaram a vir para o Brasil, por volta do século XIX, em
busca de melhores condições de vida e trabalho e posteriormente fugindo
de grupos de perseguição durante as Grandes Guerras. Não podemos deixar
de lado, a vinda dos negros africanos para o Brasil, que eram comercializados
como mão-de-obra, a fim de trabalhar em fazendas e em casas de família
(BUENO, 2015).
A chegada do Português na Terra Brasili foi muito bem retratada na
Carta escrita ao Rei de Portugal, D. Manoel, por Pero Vaz de Caminha. A

10
Acadêmicos do Curso de Letras/Inglês; Letras/Italiano da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este trabalho foi originalmente apresentado à Prof.
ª Dra. Luciana Nascimento como parte dos requisitos para avaliação da disciplina de
Fundamentos da cultura literária brasileira, ministrada no 1º semestre de 2016, na Faculdade
de Letras da UFRJ.

- 99 -
princípio, receoso e ao mesmo tempo maravilhado com aquele novo
continente, cheio de belezas e riquezas naturais, que poderiam ser extensiva
e exaustivamente exploradas por eles. Vaz de Caminha pinta uma imagem
vívida e altamente detalhada sobre os índios:

A feição deles é serem pardos, um tanto


avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem
fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir
suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca
disso são de grande inocência. Ambos traziam o
beiço de baixo furado e metido nele um osso
verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa,
e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta
como um furador. Metem-nos pela parte de dentro
do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os
dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-
no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem
lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber. Os
cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados,
de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa
grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E
um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte,
na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas
de ave amarela, que seria do comprimento de um
coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o
toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos,
pena por pena, com uma confeição branda como, de
maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui
basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem
para a levantar (Vaz de Caminha, 1500).

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Outras fontes também registraram as primeiras imagens do Brasil,
como os relatórios de viagem, as crônicas, os textos historiográficos
produzidos nos primeiros 150 anos do achamento do Brasil e também a
produção literária no período do Brasil colônia. No poema Descrição da Ilha
de Itaparica, por exemplo, de Manuel de Santa Maria Itaparica, temos uma
visão das terras brasileiras. O sujeito poético questiona se os Deuses
conhecem as formosuras de nossa terra, diz sobre a fartura de nossos frutos
e de uma natureza tão cheia de cores:

Entre elas todas têm lugar subido


As uvas doces, que esta Terra cria,
De tal sorte, que em número crescido
Participa de muitas a Bahia:
Este fruto se gera apetecido
Duas vezes no ano sem porfia,
E por isso e do povo celebrado,
E em toda a parte sempre nomeado.
(Manuel, Canto XLVIII, 1769).

Em outro trecho, o sujeito poético de Itaparica, “desenha” a


grandiosidade de matas verdes e férteis, suas qualidades e quantidades:

Os coqueiros compridos e vistosos


Estão por reta série ali plantados,
Criam cocos galhardos e formosos,
E por maiores são mais estimados:
Produzem-se nas praias copiosos,
E por isso os daqui mais procurados,
Cedem na vastidão à bananeira,
A qual cresce e produz desta maneira.

- 101 -
(Manuel, Canto XLIX, 1769).

Destas, entre outras imagens pintadas (descritas em cartas e em


poesias), a visão do imigrante ao ver nossas Terras, eram sempre a mesma:
a perplexidade girada em torno do índio, a fartura de frutos (quantidade e
variedade), as belas matas verdes, as belas praias de águas límpidas e
citando Camões: “formosa Ilha, alegre e deleitosa” (Camões, Canto IX, 2000).
A carta de Pero Vaz de Caminha é a literatura essencial, de caráter descritivo
quase que fotográfico, retratando primeiro essa Terra promissora e logo
após seu povo alegre e receptivo. No artigo de Eneida Leal Cunha (2006), ela
retrata o relato de Caminha em duas vertentes: “Em primeiro lugar, a ênfase
nas dimensões, quantidades e qualidades, na grandeza da terra”. E em
segundo lugar, uma visão menos panorâmica a respeito das “gentes”
(Cunha, 2006, p. 1).
A partir dessas visões dos imigrantes estrangeiros acerca das
riquezas e belezas de uma terra promissora e recém-descoberta pelos
Portugueses, analisaremos as aventuras de François Auguste Biard, por ora,
em terras Cariocas e Capixabas, ao que muito podemos remeter aos relatos
de Caminha, - que podem ser comparados aos “movimentos de uma câmera,
que se aproxima progressiva e reiteradamente de uma mesma cena,
repetindo-a, ampliando-a, tornando-o aos poucos mais precisa, mais nítida
e abrangente” (Cunha, 2006, p. 1).

A PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO PINTADA POR BIARD


François Auguste Biard é um francês pintor de costumes, que deseja
conhecer os índios “brasileiros” de perto, estudar de maneira informal seus
comportamentos, costumes, tradições, gostos, etc. , e então decide narrar
de maneira descritiva e com riqueza de detalhes sua aventura, por assim
dizer, pelas terras Brasileiras com o objetivo de obter modelos selvagens
para suas pinturas: “Eu queria encontrá-los fosse como fosse. Negros já eu

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vira muitos na África e até mesmo em Paris. Não me interessavam mais.
Teimava era em conhecer os índios. ” (BIARD, 2004, p. 53).
Biard fica então surpreso ao ver uma Terra diferente da “Terra
Virgem” que ele esperava, e sim uma que já sofria com as explorações de
suas riquezas. Era diferente de tudo que lhe fora “pintado”, de tudo aquilo
que imaginara, - um Brasil cheio de matas verdes, águas cristalinas, praias
paradisíacas e índios como uma alegoria cuja qual, se visitava o Brasil com
o, às vezes, único, propósito de vê-los. “Que não deixa de expressar seu
desapontamento ao encontrar uma natureza já modificada pelo homem ou
índios civilizados. ” (SARNAGLIA, 2013, p. 153). Em contato com um italiano,
chamado por ele de Sr. X, ele consegue realizar esse desejo de visitar uma
aldeia indígena do Espírito Santo, mais precisamente em Santa Cruz, cidade
vizinha de Vitória, através de uma troca de favores.
Faz-se importante salientar que além do Sr. Biard, vários outros
franceses viajaram para o Brasil em busca da natureza tropical, do exótico,
do novo. Um desses viajantes foi o francês Auguste Saint-Hilaire (1779) que
assim como Biard, se deslumbrou por essa ‘Terra Encantada’ e atribuiu a sua
jornada descrever os índios e recolher espécimes desconhecidas por ele e
por seu país de origem:

Durante esse período, viajou por diversas províncias


do centro-sul, observando, recolhendo e registrando
novas espécies vegetais (no total foram cerca de
trinta mil espécimes coletadas). Saint-Hilaire
dedicou-se também à descrição dos costumes e
hábitos indígenas, bem como a retratação do sertão
brasileiro (LIMA, 2010, p. 26).

François começa então sua aventura em busca dos índios, narrando


sua conturbada viagem de barco, do Rio de Janeiro ao Espírito Santo, com a
riqueza de detalhes de uma realística pintura. Fala sobre os navios que eram

- 103 -
tripulados por negros e sobre como isso lhe era seguro, pois os negros
cumpriam as ordens a eles dadas com a “brevidade exigida”; fala ainda sobre
o incêndio do outro navio- incêndio esse que ocorreu devido a caldeira deste
outro navio ter explodido com o aumento da pressão-, do terror vivido
naquela noite, e de como de três das vítimas do incêndio, a única que foi
“desenganada” e ignorada fora a do negro:

Um incêndio principiou a se manifestar, mas a


tripulação acudindo a tempo pudera dominá-lo. Os
homens que nos trouxeram não estavam mortos
como no primeiro instante supuséramos; enrolaram-
nos em panos molhados de “cachaça”, aguardente
de cana-de-açúcar. O ardor como que os chamou de
novo à vida. Com grandes cuidados foram os três
deitados em camas onde viajariam até tocarmos em
Vitória; ali ficariam em tratamento. O médico de
bordo tinha esperanças de salvar dois deles; quanto
ao terceiro, um negro, era uma chaga viva da cabeça
aos pés. Este mesmo não morreu; vi-o meses depois,
tinha apenas a pele toda manchada como o couro de
um tigre (BIARD, 2004, p. 55).

O incêndio aconteceu devido ao aumento de pressão da caldeira do


outro navio, pois, os maquinistas cobiçosos de aumentar as marchas
acabaram forçando-a. Porém, a tribulação acudiu o incêndio a tempo, para
assim, dominá-lo. Além disso, entre as vítimas do ocorrido, apenas o negro
não recebeu os devidos cuidados, como fora mencionado anteriormente.
Isso, faz entrar em questões polêmicas sobre a forma desumana como eram
tratados; escravizados, mortos e humilhados.
Pouco depois de chegar em Vitória, Biard, foi dar uma volta pela
cidade; foi, ali que viu pela primeira vez um grupo de índios formando uma

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espécie de bairro. Reparou que eles já possuíam alguns hábitos civilizados.
Quando entrou numa das habitações; em quase todas, mulheres
preparavam rendas de almofada. No dia seguinte, prosseguiram-se à
viagem; notou que a região na qual tanto sonhara, nada de virgem a tinha,
pois já havia sofrido várias modificações.
Porém, não desistindo do que tanto sonhara prosseguiu viagem e,
finalmente, o francês, atingiu as matas virgens, que tanto suspirara. Sentiu
a sensação de uma nova experiência, onde o machado nunca havia
trabalhado; na qual a água doce substituía a salgada; plantas aquáticas
encobriam as praias. Ficara extasiado com tamanha admiração.
Há, contudo, contrastes. Descobriram, repentinamente, uma clareira
que havia abatido muitas árvores, deixando apenas uma fileira em pé. Além
disso, Biard encontrou no alto de um outeiro, uma grande palhoça, dentro
de um terreno plano cheio de poças d’água e de grama. Diante dessas e
outras situações, a admiração do francês cessara; ficara triste e
desencantado no momento em que ia justamente realizar seu tão imaginado
sonho:

E logo minhas impressões poéticas se dissiparam ao


pôr o pé em terra. Vi logo, no alto de um outeiro,
uma palhoça maior do que as dos índios de Santa
Cruz, dentro de um terreno plano cheio de poças
d’água e de grama. No horizonte matas cujo aspecto
não me interessava mais. Para limparem o terreno
onde fora levantada a habitação, tinham botado
abaixo várias árvores cujos troncos e galhos,
inclusive as trepadeiras das que tinham sido
poupadas do machado, foram queimados (BIARD,
2004, p. 66).

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É importante destacar nesta descrição, a relação do francês com seu
hospedeiro. Para Biard, o Sr. X o dissuadira; atendia todas as suas
necessidades em espécie, na tentativa de quando ele regressasse ao Rio
pudesse indenizá-lo do que houvesse gastado em despesas. Incomodado
com tamanha hospitalidade, o francês, solicitou que facilitasse os meios para
seu regresso:

Não tivera eu a ousadia de ir expor e recomendar


seus planos de colonização ao próprio Imperador?
Ele me dissuadira de trazer comigo dinheiro, pois
aqui se encarregaria de atender às minhas
necessidades dessa espécie, até que no meu
regresso ao Rio pudesse indenizá-lo do que houvesse
despendido com minhas despesas. Eu me achava,
portanto, a sua mercê, e essa perspectiva não era
nada risonha. (BIARD, 2004, p. 68).

No centro da praça havia ainda uma grande pedra na qual eles


prendiam os índios acusados de algum delito. A influência dos jesuítas sobre
essas almas que deles beberam as primeiras noções do cristianismo se foi
transmitindo de geração em geração e ainda hoje os padres são
rigorosamente respeitados.
Biard, como um artista e também viajante, beneficiou-se dos dons
para exprimir as sensações provocadas pelo encontro com uma natureza
fascinante e nova. À vista disso, em seus desenhos, o pintor deixou
externaras emoções desse encontro. Em contrapartida, o pintor mostra em
seus relatos que se via em situações de desgosto e perigo. Os desprazeres
eram causados, principalmente, pelos insetos, que chegavam mesmo a
impedir que o pintor realizasse seus trabalhos, como, por exemplo, quando
pintava sentia-se desconfortável pelos insetos que se aproximavam e pelos
ruídos que o apavorava. Um fato interessante, citado pelo o pintor foram as

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visitas noturnas dos caranguejos: “[...] e pus-me a de espreita; a um pequeno
ruído, acendi de golpe o candeeiro e descobri os caranguejos a atacar a
minha pintura. ” (BIARD, 2004, p. 84).

Certa vez eu estava pintando um tronco de árvore


coberto por trepadeiras que o envolviam como os
arcos de um tonel. Enquanto trabalhava, não deixava
de prestar atenção a insetos lezardos que passavam
perto de mim, sempre na mesma direção; ouvia,
mais distantes, gritos de aves, alguns deles a se
tornarem mais próximos. Pensei a princípio se
tratasse de uma tempestade prestes a se
desencadear e como tinha de percorrer bem uma
légua antes de chegar a casa tratei de meu regresso,
quando de súbito me vi coberto da cabeça aos pés
por um exército de formigas. Mal tive tempo de me
levantar, derramando tudo quanto tinha dentro de
minha caixa de tintas, e fugi a toda velocidade,
procurando-me ver livre das formigas (BIARD, 2004,
p. 85).

Com referência aos insetos ele sofreu muito devido ao seu péssimo
hábito de andar descalço e também devido à precariedade do seu aposento.
O saneamento básico das cidades era muito deficiente. Além disso, naquela
época deve-se ressaltar que a higiene não era satisfatória: “Os hábitos de
higiene da população eram incompatíveis com as normas conhecidas de
"saúde pública”. ” (Folha de São Paulo, 2007). Devido a isto, uma mulher
auxiliada por uma vela, retirava bichos de seu pé, o que causava o aumento
e o acúmulo de moscas no local. Contudo, ele não desanimava de percorrer
as matas e os lugares pitorescos, para retratar as suas pinturas:

- 107 -
Sendo hábito levantar-me da cama cedinho,
costumava me deitar à noite também cedo, e se às
vezes me demorava em ir para cama era por estar
ocupado numa operação bem dolorosa. Existe no
Brasil, um insetozinho, quase invisível, o pulex
penetrans ou bicho-de-pé, um danadozinho de
animal que se introduz debaixo das unhas ou em
qualquer outra pate dos pés; uma vez ali aninhado,
por vezes profundamente, faz a sua postura e os
milhões de ovos vão crescendo dentro de um saco.
[...] Certa vez tive preguiça de realizar minha caçada
habitual e no dia seguinte encontrei onze ninhos no
polegar do pé direito. É fácil de se avaliar que esses
buracos de onde se extraem os sacos se prestam à
invasão de novas pulgas (BIARD, 2004, p. 85).

Ademais não era só os insetos e animais que preocupavam Biard,


todavia poderia sofrer ataques de animais peçonhentos. Enquanto passava
a sua estadia, no Espírito Santo, ele viveu momentos de pânico e perigo, ora
era um inseto, ora era um animal, desta vez, segundo ele, ao fazer uma
observação no mato, dos pássaros ele foi surpreendido por uma surucucu,
sendo que sobre esse animal ele ouvira falar e sabia da fama, em função
disto, ele conhecera através dos relatos que seu bote era certeiro.

Ainda hesitante, carreguei minha espingarda com


dois tiros. A cabeça escondera-se, mas percebia-se o
corpo através dos movimentos por entre as plantas
onde se metera. Depois de ter verificado qual
caminho a tomar no caso de uma súbita retirada de
defesa, atirei visando a cabeça da serpente que
reaparecera. A dificuldade, porém, era de constatar

- 108 -
se a bala atingira mesmo; poderia estar apenas
ferida e reagir. [...]. Tornei a carregar a arma e com
cautela fui me aproximando para conhecer de perto
o inimigo com quem me batera. Decididamente eu
era um bravo; há tempos um manequim se vira
vítima de meus socos e hoje eu matara um
caranguejo! (BIARD, 2004, p. 75).

Faz-se possível recordar que o Sr. F. Biard encontrava-se à mercê dos


cuidados do Sr. X, visto que ficara responsável de alimentá-lo e vesti-lo
durante essa trajetória e, posteriormente seria reembolsado. Entretanto,
graças a generosidade de um senhor chamado Taunay, Biard conseguiu o
dinheiro que precisava para dar continuidade a sua excursão pelas terras do
Espírito Santo.
Durante seu percurso por essas terras, presenciou eventos de grande
importância para os índios, por exemplo, o espetáculo da queimada, evento
no qual os índios colocavam fogo em diversas árvores em ordem de fazer
uma enorme fogueira e encontravam-se para beber. Devido a extrema
beleza daquela queimada, considerada um espetáculo ao ar livre, Biard
decide pintar aquele momento como habitual. Porém, devido à proximidade
dele para com as chamas, centelhas de fogo quase atingiram seus olhos, mas
graças a sua agilidade, conseguiu escapar. Após esse incidente, ele retorna
ao local para admirar o fogo remanescente que ia corroendo o restante das
árvores, fazendo com que os animais ao redor abandonassem seu habitat
natural. Diante daquela paisagem, Biard recordou as diversas discussões
políticas acerca do Brasil, discussões feitas por terceiros sobre o futuro dessa
magnífica terra:

Diziam uns que o Brasil seria um dia presa de


aventureiros americanos; afirmavam outros que em
breve o Norte se separaria do Sul, tornando-se uma

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república, forma de governo, aliás, que o resto
acabaria também adotando. Sobretudo achavam
que tais acontecimentos seriam consequências da
dificuldade de se substituir a raça negra, máxime não
houvesse um auxílio dos colonos (BIARD, 2004, p.
90).

Apesar de concordar com essas predições, Biard obtinha uma opinião


particular sobre futuro do Brasil, baseando suas opiniões políticas nas
invasões ocorridas nessa terra desde os primórdios. Afirma, portanto, em
um primeiro momento, que os portugueses se apropriaram das terras
brasileiras, posteriormente os holandeses, mas foram expulsos pelos
portugueses. Desse modo, a fusão da raça portuguesa com a ração indígena
originou a raça brasileira. Com o crescimento da população, as tribos foram
migrando para o interior do país, e há quem diga que um dia a raça brasileira
será substituída por outros povos, havendo um embate entre esses povos
para decidir quem é dono das terras, sobrando somente senhores da
mesma. Biard alega que os verdadeiros oponentes do Brasil são aqueles que
obrigam famílias completas a se locomoverem de um local para outro, sem
nenhuma oportunidade de levar consigo o que lhe pertence e, compara
esses inimigos a formigas que se distribuem em várias funções para
conquistar/destruir tudo o que toca.
Ao longo do sertão, situado na região do rio Doce, passava seus dias
explorando, desmatando, matando pássaros, animais silvestres e
aumentando sua coleção, coleção esta que levaria de volta para a Europa. A
cada passo de sua jornada ia desenhando formas e traços daquele lugar,
conseguindo sempre o auxílio de seus companheiros de viagens: os índios.
Apesar de todos os empecilhos durante o caminho (animais selvagens,
lugares de difícil acesso), e algumas imagens já terem sido pintadas, sempre
achava algo em peculiar que merecesse ser “eternizado” em suas pinturas,
improvisando um esboço dessas paisagens, visto que tinha que ficar com os

- 110 -
braços para cima devido ao caminho ser feito em sua maior parte de
lamaçais e rios. Durante essas explorações quase morrera ao se deparar com
uma surucucu, cobra muito venenosa, mas com a ajuda de um dos índios
que lhe assistia, foi salvo da cobra, sendo possível notar o cuidado que Biard
demonstrou ao se disponibilizar para ver se a cobra realmente estava morta,
tendo como objetivo torná-la em mais um item de sua coleção.
Em seguida, após longos dias de caminhadas e experiências, foram
acolhidos em uma casa indígena. Porém, Biard só percebe que dois dos seus
índios haviam desaparecido quando esses foram carregados para dentro da
aldeia quase mortos. Almeida, índio que matara a cobra, possuía ferimentos
gravíssimos e morreu dois dias depois, o outro já chegara morto. Todavia,
Biard lembrou-se que nunca teve a oportunidade de pintar um índio vivo,
por isso, decidiu pintar um índio já morto. Decide, então, a pintar o índio
morto no instante que todos deixam seu aposento. Enquanto pinta o
cadáver, a mãe do índio aparece no quarto, mas não se incomoda com a
cena, pelo contrário, auxilia Biard em seu trabalho. Contudo, um dos
anfitriões da casa chega ao deparar-se com aquela cena fica irritado e manda
Biard parar imediatamente. Indignado pela forma como fora tratado, Biard
arruma suas malas e parte.
Passou horas procurando abrigo e quando encontrou precisou
esperar, pois não havia ninguém em casa. A família retorna a casa e Biard
repara que eles falavam português, mesmo sendo índios. Ao perguntar a
eles se eles conheciam um velho europeu, não houve resposta, pois não
entenderam a pergunta, visto que o português dos índios era mais
aperfeiçoado do que do Sr. Biard. Por isso, Biard pergunta novamente:
“Onde mora um homem que é branco como eu sou? ” (BIARD, 2004, p. 98).
Um dos homens fica irritado e pega a espingarda e pergunta em francês o
que ele desejava. Biard explica que desejaria morar em alguma aldeia, pois
gostaria de continuar sua expedição e solicita que o índio o acompanhe até
a próxima aldeia para buscar abrigo. Entretanto, ao chegar lá o proprietário
sabendo das intenções de Biard, indaga que ele queria morrer, afirmando

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que “Ninguém pode morar aqui antes de um mês, principalmente à noite,
sob pena de correr um grande perigo” (BIARD, 2004, p. 99). No entanto, por
falta de opções, Biard decide se instalar naquele lugar, mesmo correndo
perigo. No dia seguinte, ofereceram a ele um intérprete chamado Manuel
que servia também de empregado. Biard acreditava que sua influência
dentre aquele povo iria ser benéfica, visto que eles deixariam de ser tão
supersticiosos e ainda se beneficiaria de suas iguarias.
Devido a fuga de Biard do antigo abrigo, houve uma grande procura
por ele acarretando consequências desagradáveis, pois seu antigo
hospedeiro possuía diversos inimigos e espalhou que Biard era um homem
branco de grande influência e deveria ser alvo de ataques. Porém, ele não
se importou, pois o que almejava tinha se concretizado que era se livrar do
italiano. Ainda possuía bastante dinheiro graças ao Sr. Taunay, e enviou
alguns índios até Santa Cruz para comprar mantimentos e utensílios. Com a
ajuda de Manuel conseguiu transformar o local onde morava em um lugar
aconchegante e perfeito para se trabalhar.
Os índios daquela área observavam Biard a capturar insetos, animais,
plantas e começaram a ajudá-lo e em troca ele lhes dava presentes. Por esse
motivo, sua coleção foi se tornando cada vez mais extensa. Durante essas
visitas, Biard além de pintar os índios, podia escolher quem ele desejasse
pintar, facilidade que ele não encontrara em outras aldeias. Certo dia, Biard
houve vozes vindo de fora de sua barraca e avista um grupo de botocudos
indagando a Manuel quem morava ali e o que fazia. Manuel disse quem
morava ali, mas não sabia traduzir as atividades exercidas por Biard.
Os botocudos vinham de Vitória, pois haviam participado de uma
reunião com o presidente da capitania. Logo se tornaram amigos e trocaram
especiarias. Biard ficou admirado com a aparência dos botocudos, visto que
eles possuíam imensas rodelas de madeira em suas orelhas e rodelas de
cactos na boca que servia como prato que cortava a carne antes de ingeri-
la. Apreciou a companhia dos botocudos, embora nunca tenha visitado o
local que eles habitavam, mesmo sendo próximo a sua casa.

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François descreveria as situações nas quais via, vivia e compartilhava
das visões de outros viajantes sobre as terras brasileiras e explorava de tudo
que havia de melhor pelas terras. Entretanto, narrava singularmente
trazendo-nos as suas experiências particulares e peculiares, que eram tanto
o resultado do contato com o outro, índios, viajantes, os diferentes, quanto
fruto de suas experiências anteriores.
Além disso, perdura por muitas vezes em seus relatos a ironia e o
aspecto pitoresco: “[...] Há muito tempo eu desejaria comer ao jantar um
guisado de palmitos [...]” (BIARD, 2004, p. 105). Enraivecia-se quando os
mosquitos maruins os picavam, fato este que criava certa comédia em parte
de sua narrativa:

Pude trabalhar com segurança alguns instantes, de


repente uma alfinetada na testa. Matei o agressor
após longa peleja. Retomei a paleta. Outra
mordilhaça, outro combate. Sem querer fiz uma
brecha no mosquiteiro e deu-se imediatamente uma
invasão. Era demais! Atire tudo ao chão:
mosquiteiro, pincéis, caixas de tintas, o diabo. Quis
puxar os cabelos com desespero, mas eram tão
curtos! Se Manuel estivesse ali, ter-lhe-ia abatido
(BIARD, 2004, p. 109).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, foi possível observar como os viajantes
estrangeiros viram o Brasil, sendo que seus relatos e pinturas constituem
verdadeiros documentos históricos e ficcionais acerca do Brasil em 1800.
Uma vez que, foi após a chegada da Família Real que pode deixar registrada
a literatura que é conhecida como Literatura Quinhentista.
No decorrer do século XIX, o Brasil recebeu a visita de vários viajantes
estrangeiros, dentre eles, o francês Biard. A Nova Terra foi retratada por

- 113 -
ele, a natureza selvagem e pitoresca. O seu relato foi descrever o que via e
o que vivia, assim, o pintor estava expondo os acontecimentos singulares
que ele presenciava. Ele procurava reproduzir nas suas telas a natureza
selvagem e os habitantes.
O objetivo desta obra é falar das atividades e das aventuras vividas
pelo francês, de como chegou à Província do Espírito Santo e como foi a sua
permanência. Em outras palavras, Auguste, escreveu a sua narração,
elaborando episódios, que formou o imaginário da Província do Espírito
Santo no século XIX. Para mais, ele havia encontrado uma terra já habitada
pelos portugueses e os nativos já tinham sido “domesticados” e
catequizados.
Biard teve uma grande importância para a história porque através de
seus relatos e gravuras pode-se construir uma visão de mundo daquela
época. Ele não se preocupou em apenas retratar belas imagens, mas
também de reproduzir a vida em seu âmbito sociocultural. Posto isso,
mostrou para a posteridade como era a Província do Espírito Santo. Mesmo
sendo o personagem das suas narrativas, o francês produziu documentos
históricos daquele período.

REFERÊNCIAS
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01/06/2016.

ITAPARICA, Manuel de Santa Maria. Descrição da ilha de Itaparica, em 1769.


Projeto Livro Livre – Livro 301, Poeteiro Editor Digital: São Paulo, 2014.

LÉllis, Francisco; BOCCATO, André. Os banquetes do Imperador. São Paulo:


Ed. SENACSP, 2014.

LIMA, Carolina Carvalho Ramos. Os viajantes estrangeiros nos períodos


cariocas (1808-1836). Dissertação de Mestrado apresentado ao curso de
História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus
de Franca, como requisito parcial para obtenção de grau de Bacharel em
História. Franca, 2010.

SARNAGLIA, Marcela. Viajantes, natureza e índios: a província do espírito


Sant no relato de Auguste François Biard (1858-1859). Dissertação de
Mestrado apresentado História Social das Relações Políticas do Centro de
Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo,
como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre em História. Vitória:
UFES, 2013.

- 115 -
De viagens e viajantes: Aimé-Adrien Taunay lê o Brasil

André Salomão das Neves


Clara Angélica Machado Rego
Dukellen Silva dos Santos
Thaynara Santos dos Reis11

INTRODUÇÃO
A historiografia literária, na maioria das vezes, tem registrado que os
relatos produzidos pelos europeus que estiveram no Brasil, nos primeiros
tempos, revelam uma primeira visão do nosso país. Trata-se de um olhar
estrangeiro diante do desconhecido, daquele que procura entender o novo
a partir daquilo que conhece. Ou seja, com seus valores, sua cultura e seus
pré-conceitos.
Nesse sentido, esses textos corresponderam às expectativas
eurocêntricas, sem levar em conta a percepção do outro. Relatos que
também apresentam elementos típicos do imaginário de seus autores, e que
compõe um gênero que fez muito sucesso no século XVI, principalmente em
Portugal e Espanha. Satisfazendo a curiosidade dos europeus sobre as
conquistas levadas a efeito por portugueses e espanhóis, sobretudo nas
Índias, na Ásia e na América.
Conforme explica Bosi, o complexo colonial dos três primeiros
séculos de domínio português no Brasil propiciou textos destinados a
informar e louvar as terras recém conhecidas. Essa “literatura de
informação” consistiu-se de escritos de viajantes e missionários e revela o
imaginário do europeu recém-chegado (BOSI, 2006, p. 13-26).

11
Acadêmicos do Curso de Letras Português – Hebraico e Português – Inglês, da Faculdade
de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ. Este trabalho é resultado da
Disciplina Fundamentos da Cultura Literária Brasileira- FUNDBRAS, ministrada pela Profa.
Dra. Luciana Nascimento, durante o 1ºsemestre de 2016, na Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ.

- 116 -
Gucci abordou o imaginário europeu no binômio remoto/maravilhas.
Ou seja, de um lado, o fascínio do remoto e desconhecido, tema
tradicionalmente explorado pela literatura da antiguidade clássica, e, de
outro, as maravilhas descritas em relatos de navegações anteriores, que
falam de terras de natureza pródiga e exuberante, clima temperado, ócio e
promessa de muita riqueza (GIUCCI, 1992).
Sergio Buarque de Holanda ainda ressaltou um terceiro aspecto, a
religiosidade do viajante. A Visão do Paraíso, explorada por ele em obra de
mesmo nome, é um dos traços mais fortes desse imaginário ou, pelo menos,
o mais explorado nos relatos das conquistas marítimas de espanhóis e
portugueses. Tendo como aporte o mito edênico, a Visão do Paraíso se
revela na produção literária colonial pela exaltação à natureza, à abundância
de alimentos, riquezas e metais preciosos, à ingenuidade do nativo e ao
clima temperado (HOLANDA, 2000)
A partir dos autores, pode-se pensar em um imaginário do
colonizador europeu condicionado por três elementos básicos: 1) o grau de
desconhecimento que possui em relação às novas terras, (em termos
giuccianos, o remoto); 2) as expectativas nutridas em relação à terra (em
termos giuccianos, as maravilhas); e, 3) a religiosidade; O imaginário
revelado nas pinturas e nessa literatura que perdura até o final do século XVI
é, assim, repleto de fantasias e representa aquilo que o viajante europeu
desejou encontrar nas novas terras.
A medida que esses três elementos se alteram o imaginário sobre o
novo mundo também se altera. Há o que Giucci chamou de esvaziamento
do discurso do maravilhoso, ou seja, há uma quebra de expectativa que afeta
diretamente o relato sobre o novo mundo (GIUCCI, 1992). O Paraíso, no séc.
XVII, ganha feições mais infernais além das paradisíacas já conhecidas, que
convivem em um dualismo bastante complexo. É quando começam a ser
mencionados, por exemplo, os primeiros traços negativos em relação à
vegetação ou ao clima.

- 117 -
Mas, é somente no séc. XVIII que a natureza das viagens de europeus
para a América muda sensivelmente, e com ela a natureza dos registros de
viajantes. Praat (1999) identifica dois eventos principais para tal mudança:
1) a publicação de Systema Natural, de Carl Liné – obra que visava classificar
todas as formas vegetais do planeta; e, 2) a inauguração da primeira
expedição científica internacional da Europa, que visava determinar a forma
exata da Terra (PRAAT, 1999, p. 41-76).
A transformação do imaginário europeu promovida pelo
renascentismo científico pode ser claramente percebida nos relatos de
viajantes do séc. XVIII, marcados pela pretensão de descrever a natureza
vegetal e/ou responder se a Terra teria formato esférico, como defendido
pelos franceses, ou esferoide como proposto pelos ingleses. Essa literatura,
produzida sob a pretensão científica, foi avidamente devorada na Europa e
tem como temas principais o relato de sobrevivência, as maravilhas exóticas
e as “curiosidades antropológicas” (IBIDEM).
O Brasil oitocentista recebeu inúmeros viajantes estrangeiros, que
por seu turno, apresentaram relevante contribuição para o conhecimento
do Brasil e de seu interior. Mas, é no séc. XIX, com a vinda família real para
o Brasil e a abertura dos portos que as viagens de exploração científica
ganham maior força e novos contornos. Pretende-se, neste trabalho, fazer
uma leitura das pinturas de Aimé-Adrien Taunay, tendo como horizonte os
conceitos de zona de contato, propostos por Praat. Procurando, de acordo
com sues estudos, “enfatizar as dimensões interativas e improvisadas dos
encontros coloniais” (IBIDEM, p. 32).

OS VIAJANTES ESTRANGEIROS E O BRASIL


O conceito de zona de contato, definido por Praat (1999), diz respeito
ao espaço social de encontro entre povos que mantém “relações
extremamente assimétricas de dominação e subordinação” e no qual essas
culturas ao mesmo tempo em que se chocam, também se fundem. É o que
acontece, por exemplo, nos encontros coloniais, em que os sujeitos, que

- 118 -
anteriormente estavam separados pelo tempo e pela geografia,
transformam-se à medida que estabelecem relações uns com os outros.
Uma análise de viagens e viajantes do séc. XIX que tenha como
perspectiva essa ideia de contato, ou seja, que procure salientar a mútua
afetação entre os sujeitos envolvidos nos encontros coloniais, pode
contribuir para um entendimento mais holístico da produção científica e
artística desses viajantes. À medida que procura entender de que forma
esses registros podem ser percebidos como resultado da interação, e em
que grau essa interação caracteriza-se pelo afastamento ou pela
aproximação.
É com tal pretensão que procura-se, neste trabalho, compreender a
obra de Taunay como fruto da zona de contato. Portanto, procede-se com
uma contextualização dos fatores históricos que condicionaram o tipo de
movimento artístico-científico em que está inserida sua obra. Para, em
seguida, a partir de uma amostra de sua obra, procurar perceber em que
momentos ela é caracterizada pelo olhar distante do colonizador e em que
momentos esse olhar sucumbe à afetação da zona de contato.

O CAMINHO DAS VIAGENS EXPLORATÓRIAS DO SÉC. XVIII A XIX


As terras colonizadas por europeus, de um modo geral, receberam
intenso fluxo de viajantes em missão exploratória no séc. XVIII. O
financiamento de viagens ao redor do globo, de imanente caráter biológico,
culminou em acúmulo de capital e de conhecimento para alguns países
europeus. Enquanto esses mesmos cultivavam nas colônias sociedades
primitivas tais como simples objetos de exploração científica e social. A
sistematização da natureza fomentava “o apogeu do tráfico de escravos, o
sistema de plantations, o genocídio colonial”. Inseparáveis eram o contato
social e a sistematização natural no processo de legitimação do controle
europeu (PRAAT, 1999,p. 74).
Diante do intenso desbravamento e incursões ao redor do mundo há,
também, o intenso enriquecimento da coroa portuguesa durante os anos de

- 119 -
1715 a 1755. A exploração aurífera no Brasil estimulava uma nobreza vigente
progressivamente mais rica. Todavia, em Portugal “a agricultura e a indústria
se definhava e o país começava a sentir o efeito da emigração em massa
para o Brasil, e todas as riquezas do Brasil ou ficavam perdidas em empresas
insensatas ou passavam apenas por Portugal indo direto para a Inglaterra”.
Apesar de muito rica, Portugal passava por percalços para tornar-se um dos
protagonistas na corrida taxonômica (HIRONDINO,s. n).
Nas últimas duas décadas do séc. XVIII, Portugal financiou as
primeiras incursões de caráter propriamente científico ao Brasil, nomeadas
Viagens Filosóficas. O império português insistia na não repercussão da
fauna e flora descobertos em sua colônia, protegendo seus territórios do
interesse de potências rivais. Por esse mesmo motivo também restringia as
viagens exploratórias ao Brasil pretendidas por outros países (IBIDEM).
O desenvolvimento científico possuía Carl Liné, inventor do modelo
de nomeação biológica (taxonomia), como cerne da idealização europeia de
sistematização do conteúdo natural. A prática lineana estimulava um
modelo de “imperialismo biológico” que auxiliou na edificação do cenário
europeu de supremacia científica, por meio do qual “os cidadãos europeus
se relacionaram com outras partes do mundo” (PRAAT, 1999, p. 52-53).
As realizações científicas foram importantíssimas para estimular o
crescente da infraestrutura europeia, salientando a nova realidade dos
europeus. Tem-se, nesse momento, um mundo europeu moldado “por meio
da escravidão e monopólios protegidos pelo estado”, que patrocinava
incursões marítimo-territoriais visando acrescer ao conhecimento humano
e propagar a Europa como “o centro da civilização, reclamando o legado do
Mediterrâneo para si” (IBIDEM, p. 37).
No início do século XIX mudanças significativas ocorrem tanto nas
terras europeias quanto nas terras brasileiras. A Europa vive grande
instabilidade devido às Guerras Napoleônicas, a Inglaterra e os países
aliados, como Portugal, vivem tempos difíceis, uma vez que o comércio
encontra-se dificultado pelo bloqueado efetuado com a invasão francesa da

- 120 -
Península Ibérica. É nesse momento que a família real portuguesa foge para
o Brasil, acompanhada de grande contingente administrativo e funda na
colônia a nova sede administrativa portuguesa (OBERACKER JR, 1962).
Com a chegada da família real em 1808 novas medidas
administrativas são tomadas, entre elas, a abertura dos portos às noções
amigas, o primeiro passo a favorecer a aproximação com esses países da
Europa. Em 1815, quando a Europa já desfruta de certa estabilidade política,
tem início um ciclo de expedições artísticas e científicas que tiveram como
destino as terras brasileiras, muitas das quais financiadas pela própria coroa
portuguesa que desejava trazer ao Brasil ares mais “civilizados”. Destinadas
a produção artística, e à descrição da fauna, flora e sociedade brasileira, tais
expedições começaram a mudar a fisionomia colonial (IBIDEM).
Em 1816, a convite da coroa portuguesa, o Brasil recebe a Missão
Artística Francesa, que tem por objetivo oficial fundar a Escola Real de Artes
e Ofícios, que se tornaria a Primeira Academia de Arte no Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves. A viagem financiada pela coroa foi também uma
ação diplomática que visava resolver o conflito que opunha Portugal e
França pela posse da Guiana. Recebendo, portanto, os artistas franceses que
apoiaram o regime napoleônico e que agora, distantes da França governada
pelos Bourbon, poderiam recomeçar suas carreiras nos trópicos, sob o
regime da monarquia portuguesa (IBIDEM).
Entre os artistas, liderados pelo acadêmico francês Joachim
Lebreton (1760-1819) estão: o pintor Debret (1768-1848), o arquiteto
Grandjean de Montigny (1776-1850), o gravador de medalhas Charles-
Simon Pradier (1783-1847), o escultor Auguste-Marie Taunay (1768-1824) e
seu irmão o paisagista Nicolas Antoine Taunay (1755-1830), um dos
principais nomes da expedição e patriarca dos Taunay (IBIDEM).
Mais do que o ensino de arte a expedição representava à Portugal a
reescrita do Brasil: de paraíso longínquo à expoente da civilização europeia
nos trópicos. Entre seus objetivos encontravam-se, portanto, as missões de:
louvar a monarquia, produzir imagens que registrassem a pompa da corte e

- 121 -
construir nela um ambiente artístico. Construindo, assim, a presença da
monarquia portuguesa nas terras brasileiras e no mundo. Entre os artistas
que, após a chegada da expedição no Porto Seguro do Rio de Janeiro,
imprimiram seu olhar sobre o Brasil, está Adrien-Aimé Taunay, cuja obra é
objeto de análise desta pesquisa.

AIMÉ-ADRIEN TAUNAY LÊ O BRASIL


Nascido em Paris no ano de 1803, Taunay chega ao Brasil em 1816,
acompanhando seu pai, que servia à Missão Artística Francesa. Apenas dois
anos mais tarde, Taunay parte em sua primeira viajem expedicionária de
circunavegação, atuando como desenhista auxiliar. Em 1820, quando
retorna ao Rio de Janeiro, o jovem dedica-se ao estudo de línguas e arte.
Mas, é em 1825, já sob o Império de Dom. Pedro I, que ele é convidado a
participar como desenhista da expedição liderada pelo alemão George
Heinrich von Langsdorff, cônsul geral da Rússia no Brasil. O jovem integra a
equipe de 1825 a 1928 quando morre na tentativa de atravessar a nado o
rio Guaporé.
Iniciada em 1824, a expedição Lansdorff foi financiada pelo governo
do Czar Alexandre I e fez parte das iniciativas russas para renovar as relações
comercias com o Brasil. Taunay integra a equipe de Langsdorff substituindo
J. M. Rugendas, em uma viagem em que diferentes artistas e naturalistas
partem em direção ao interior de São Paulo e Minas Gerais. O objetivo da
expedição foi registrar a fauna, a flora, a língua e os costumes das sociedades
que ocupavam esses territórios. Essa pesquisa tem como escopo, portanto,
as obras produzidas por Taunay durante a expedição capitaneada por
Langsdorff.
A expedição partiu do Rio de Janeiro rumo a Santos, onde fez
pequenas incursões por via fluvial e de onde partiu pelo rio Tietê rumo à
província de Mato Grosso. Segundo Costa (2007) a expedição foi marcada
pela dificuldade de convivência que o pintor tinha com o chefe, observada
tanto nos registros do diário deste como em registros do próprio Taunay. Os

- 122 -
cânones impostos pelo chefe da expedição nem sempre foram obedecidos
por Taunay, o que possibilitou uma coleção de aquarelas permeada por
muitas de suas impressões pessoais e por novos elementos próprios do
romantismo (COSTA, 2007, p. 1-9).
A fim de procurar entender de que forma suas obras podem ser
percebidas como resultado da interação típica da zona de contato, e em que
grau essa interação caracteriza-se pelo afastamento ou pela aproximação,
se procederá a seguir com a análise de quatro das pinturas de Adrien-Aimé
Taunay12.

Figura 11 Bombacaceae – Chorisia speciosa, 1825

Entre suas obras de caráter mais naturalista encontra-se o


Bombababeae – Chorosa speciosa, na qual há um flagrante interesse
botânico. Todavia, mesmo nessa aquarela de composição mais descritiva os

12
Uma versão digital de obras de Adrien-Aimé Taunay pode ser encontrada na Enciclopédia
Itaú Cultural, as datações utilizadas nesta pesquisa seguem a mesma orientação teórica desta
página. Disponível em: <http://enciclopedia. itaucultural. org. br/pessoa22167/adrien-
taunay>.

- 123 -
primeiros traços de um romantismo nascente se evidenciam. Característica
que Costa (2007) reconhece ser uma das marcas da obra taunayana.
Taunay afasta-se do ideal positivista da expedição quando suas
pinceladas assumem características mais evocativas e metafóricas, como as
que podem ser percebidas, nesta obra, sobretudo, pela presença dos
pássaros em movimento. O ideal naturalista, contudo, é evidenciado, entre
outros aspectos, pelos diferentes estágios de maturação dos frutos
cuidadosamente registrados.
Mantem-se nessa aquarela, considerado, evidentemente, seu
contexto de produção, a postura mais cientificista e taxonômica
característica do imperialismo biológico nascido no séc. XVIII. O que permite,
nesse momento, identificar um Taunay cuja interação na zona de contato
caracteriza-se por um maior afastamento do social, ainda que não se possa
falar em um colonialismo flagrante.

Figura 12- Índias Xiquitos da missão de São Rafael, 1827.

Em As Índias Xiquitos da missão de São Rafael, de aquarela e tinta,


composta possivelmente em 1827, observamos características mais
colonialistas, seja por sua nomeação, seja por sua composição. Percebe-se
na pintura uma representação mais taxonômica do nativo, aproximando-se

- 124 -
do tipo de ideal que motivou a expedição liderada por Langsdorff e
distanciando-se das impressões mais etnográficas de Taunay registradas em
outras obras. A figura feminina não recebe um nome próprio e seus traços
faciais procuram ser representados com relevante acuidade, cuja
aproximação do ideal lineano se dá, mormente, pela própria composição de
representações frontal e de perfil. Mas, também no cuidado de representar
os com detalhes os elementos de sua indumentária. Neste aspecto, porém,
um caráter mais etnográfico e crítico parece de aviltar: a menção à
religiosidade da mulher indígena representada na pintura.
Essa menção parece se dar por dois elementos: 1) a cruz que pende
em seu peito e que aparece em seu formato completo mesmo na versão em
perfil, contrariando a excelente proporção angular do restante da imagem,
o que pode levar a crer que trata-se de uma duplicação de registro
intencional; e, 2) o nome dado à obra “Índias Xiquitos da missão de São
Rafael” que declara a orientação cristã da comunidade registrada.
A partir desses elementos, é possível sugerir um olhar de Taunay
mais complexo, que evidencia o princípio de um mútuo afetamento típico
da zona de contato. Por um lado, há o pintor preocupado em catalogar a
sociedade visitada, por outro lado, parece haver um jovem iluminista
interessado em registrar a religiosidade imposta à comunidade indígena dos
Xiquitos. Hipótese coerente com o corpo de sua obra, que, na representação
dos Bororo, é marcada pelo que Costa (2010) observou como um “texto
visual” que fornece dados biográficos dos representados.

- 125 -
Figura 13 Canto noturno dos índios bororos, 1827

A missão de documentador das sociedades indígenas também se


evidencia na obra Canto noturno dos índios bororós. Aqui, porém, há um
interesse taxonômico muito menor que na obra analisada anteriormente. Os
corpos não são o primeiro interesse do autor o que se evidencia pelo tipo de
iluminação adotada que além de salientar o momento noturno deixa pouco
espaço para detalhes fisionômicos. Ainda assim, parecer salientar a ausência
de pinturas corporais, o que não se vê em pinturas que representam o
período diurno, podendo ser, por isso, encarado como um indicador das
práticas bororo.
Outro aspecto que chama a atenção é a iluminação que incide sobre
a aquarela no quarto de imagem superior esquerdo, evidenciando um
homem branco presente no ritual. O homem representado traja roupas que
não o identificam com a comunidade, com a fronte baixa parece portar-se
com respeito diante do ritual bororo e se observado com cuidado, está
próximo ao grupo, mas fora do círculo de bororos que se reúne. A mesma
iluminação também revela a proximidade de uma via fluvial, que pode ser

- 126 -
uma sinalização da importância do rio na identidade do povo bororo, auto
denominado boa.
Costa (2010) afirma que os boa, muito provavelmente, foram a única
comunidade indígena com a qual Adrien Aimé-Taunay teve contato direto.
O que pode explicar a riqueza de detalhes de suas representações sobre os
boa, bem como a maior “autonomia” das figuras representadas identificada
pela maior contextualização das imagens e menor rigidez taxonômica. Aqui,
temos um Taunay muito diferente do analisado nas obras anteriores, seu
olhar parece ler um Brasil de grande riqueza cultural e afastar-se da
representação estritamente naturalista.

Figura 14. Rio Quilombo, no distrito da Chapada, 1827

Obra que já foi analisada por Costa (2007), Rio Quilombo, no distrito
da Chapada é outra pintura que revela uma leitura dos trópicos cuja
interação se caracteriza pela aproximação das figuras representadas.
Segundo a autora, embora o título faça menção ao curso fluvial a pintura

- 127 -
representa muito mais a metáfora que o rio veicula, compreendida pelas
anotações no verso da folha:

Vista do rio Quilombo. Esse rio, que contém ouro e


diamantes, tem suas nascentes no alto da Serra da
Chapada. Formado pelos rios Cachoeira, onde
também existe uma lavra de ouro, e outros rios
menos consideráveis, o rio Quilombo deságua no rio
Manso, que forma uma barra com o rio Cuiabá
depois de sua união com o rio da Casca, muito acima
do porto de Cuiabá. [...](COSTA, 2007, p. 15).

Para Costa, ao mesmo tempo em que documenta a riqueza da flora,


é a representação das lavadeiras em seu ofício que impõe o rigor da
apresentação de Rio Quilombo. Demostrando como Taunay supera as
exigências do registro positivista e pronuncia-se diante da imagem
registrada (IBIDEM: 14-16). Mais uma vez, temos um olhar de aproximação
com o objeto representado que evidencia um Taunay imerso nas terras
brasileiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da pesquisa constatou-se que as interações entre viajantes
e visitados é um complexo bloco de imaginários entrecruzados. O olhar dos
viajantes torna-se menos estrangeiro a medida que o que procura registrar
já não é o desconhecido, mas uma realidade sociológica no qual está
verdadeiramente inserido. A obra de Aimé-Adrien Taunay é um exemplo
dessa complexidade. Quando Taunay lê o Brasil o faz por duas perspectivas
distintas, ora se aproximando de sua origem europeia, e portanto de seus
valores, sua cultura e seus pré-conceitos, ora se aproximando do ambiente
social no qual está inserido e, portanto, da possibilidade de valorização da
cultura brasileira. Embora não se possa pensar em uma aproximação total,

- 128 -
uma vez que o etnocentrismo é parte da própria estratégia de sobrevivência
humana.
O romântico Taunay ultrapassa a orientação positivista que recebeu
e em seus traços pitorescos imprime suas impressões sobre as entidades
representadas. Seu imaginário não distancia-se completamente do antigo
imaginário europeu antigo, marcado pela visão do paraíso. O que pode ser
observado na exuberância com que registra a fauna e a flora e na menção
que faz às riquezas de nossas terras. Mas é sem dúvidas um representante
de viajantes que começam a ter maior interação com as comunidades que
visitam e, portanto, maior identificação e improvisação.

REFERÊNCIAS

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Cultrix, 2006.

COSTA, Maria de Fátima. Aimé-Adrien Taunay e os registros dos índios


bororo. In: Escritos. Revista da Fundação Casa de Rui Barbosa, ano 6, n. 3
2012. Disponível em http://www. casaruibarbosa. gov.
br/escritos/numero06/artigo10. php. Acesso em 11 de julho de 2016.

COSTA, Maria de Fátima. Aimé-Adrien Taunay: um artista romântico no


interior de uma expedição científica. In: Fênix. Revista de História e Estudos
Culturais. Abril. /Maio. /junho 2008, vol. 5, n. 02, ano 5, 2008. Disponível em
www. revistafenix. pro. br. Acesso em 11 de julho de 2016.

GIUCCI, Guilhermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Trad. Josely


Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org). História geral da civilização brasileira.


Tomo I. Vol. 1. A época colonial. São Paulo: Difel, 2000.

____. História geral da civilização brasileira. Tomo II. vol. 1. O Brasil


monárquico. São Paulo: Difel, 2000. p. 119-131.

- 129 -
OBERACKER JR. , Carlos H. Viajantes, naturalistas e artistas estrangeiros. In:
HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org). História geral da civilização brasileira.
São Paulo: Difel, 2000. Vol. 1 tomo 2.

PRATT, Mary. Os olhos do Império- relatos de viagem e transculturação.


Bauru: EDUSC, 1999.

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http://enciclopedia. itaucultural. org. br/pessoa22167/adrien-taunay.
Acesso em 03 de julho de 2016.

HIRONDINO. Portugal no século XVIII. Disponível em http://www. hirondino.


com/historia-de-portugal/portugal-seculo-xviii/. Acesso em 5 de julho de
2016.

- 130 -
Imagens do Rio de Janeiro vistas por um viajante francês

Déborah de Souza
Eduarda Guimarães
Isabella Brandão
Rafaella Figueira13

INTRODUÇÃO
O século XIX foi um período em que quase todos viajavam. Com as
distâncias encurtadas pela navegação a vapor, e também pela ideia, popular
na época, de que as viagens eram um dos melhores meios de se obter
conhecimento, a quantidade de viajantes e de publicações sobre viagens
aumentou significativamente. Era o que podemos chamar de “a era dos
viajantes” (ECKARDT, 2009, p. 72).
Neste contexto o artista François-Auguste Biard também realizou
suas viagens, uma delas ao Brasil. Nascido em 1798, na cidade de Lyon, na
França, Biard foi um pintor e naturalista de grande renome, conhecido por
suas obras de aspecto satírico que interessavam a todos: dos especializados
em arte ao grande público. Estudou na Escola de Belas Artes de Lyon e, de
1827 a 1830, foi professor de desenho da Marinha, dando aulas a bordo do
navio La Bayardère, o que possibilitou ao pintor viajar por toda a Europa e
conhecer diferentes lugares e culturas.
Biard, então, tornou-se fascinado por viagens. Coletava objetos
exóticos oriundos de suas expedições por interesses antropológicos e
registrava suas impressões por meio de pinturas e textos. Algumas de suas
obras, no entanto, não eram tão fiéis a realidade assim. “Seus quadros

13
Acadêmicos do Curso de Letras – Português/Espanhol, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Esse trabalho é resultado da Disciplina
Fundamentos da Cultura Literária Brasileira- FUNDBRAS, ministrada pela Profa. Dra. Luciana
Nascimento, durante o 1ºsemestre de 2016, na Faculdade de Letras de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

- 131 -
misturavam viagem e fantasia, com o objetivo de não só dar a conhecer os
lugares por onde havia passado, mas também distrair e divertir seu
leitor/espectador. ” Além de pintor, Biard também exerceu o cargo de
retratista oficial da corte de Luís Filipe, na época da Monarquia de Julho na
França, posto que lhe proporcionou ainda mais excursões (SARNAGLIA,
2013).
Não demorou muito para que sua grande paixão por viagens o
trouxesse até o Brasil. Estimulado pelos populares relatos e pinturas sobre a
América, e interessado, principalmente, em conhecer os índios que aqui
viviam, Biard embarcou em 1858 em direção à Bahia. Durante sua estada, o
pintor percorreu várias cidades brasileiras e conviveu com diversas tribos
indígenas. Ao regressar para a França, publicou, em 1862, o livro Deux
années au Brésil (“Dois anos no Brasil”), que reúne relatos e ilustrações
sobre sua estadia em terras tupiniquins (SARNAGLIA, 2013).
Suas impressões acerca do país fizeram muito sucesso na Europa,
onde foram publicadas na França e, posteriormente, na Itália, e onde
circularam durante todo o século XIX. No Brasil, no entanto, o livro só foi
publicado em 1945, quase um século depois da vinda de Biard, pela coleção
Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, que tinha o objetivo de reunir
obras que sintetizassem o país. De acordo com Yussef, autor do texto
François-Auguste Biard: retratos do Brasil com humor e ironia, a peculiar
visão do pintor sobre o índio como um “indivíduo corrompido”, a qual
deteriora a imagem do Brasil, divide os críticos quanto à veracidade da obra.
No entanto, tal visão foge da tradicional idealização romântica dos indígenas
brasileiros e permite desta forma, uma análise mais ampla dos nativos.
Assim, com este presente trabalho, procuramos mostrar a visão de
Biard acerca do Brasil nos dois primeiros capítulos do seu livro Dois anos no
Brasil. Além disso, destacaremos seus motivos para tal viagem e toda sua
travessia até a chegada ao país tropical e suas impressões. :

- 132 -
Mesmo que, à primeira vista, a obra de Biard não se
apresente tão rica como as narrativas de outros
viajantes estrangeiros, ela surpreende exatamente
pela capacidade que o viajante tinha de captar o
ridículo da vida. Humor e exagero à parte, a obra de
Auguste François Biard contribuiu para o
entendimento sociológico, antropológico e cultural
do Brasil do Segundo Reinado, como se poderá
aquilatar nas páginas seguintes (SARNAGLIA, 2013,
p. 66).

A TRAVESSIA E O RIO DE JANEIRO VISTOS POR BIARD


No primeiro capítulo da obra, Auguste François Biard narra sua
grande viagem ao Brasil. Logo, que todos sabem do seu local de destino,
começa uma série de conselhos para melhorar sua viagem que segue à risca,
mas nenhum conselho é verdadeiramente bom:

Sobretudo, não me esquecesse de escolher um


camarote a bombordo, por que nele, a caminho da
América, poderia abrir minha vigia para gozar os
ventos elíseos. Cometi loucuras para conseguir essa
vantajosa situação, mas o vento foi tão vi o lento
durante a travessia que só se podiam abrir
justamente as vigias de estibordo, enquanto eu
morria de calor no meu camarote (BIARD, 2004, p.
12)

As indagações ao regressar também foram calorosas, porém ele já


estava esperando por isso já que sempre viajava a lugares novos e
desconhecidos pela maioria, como o Polo Norte: “Quando voltei, as

- 133 -
perguntas substituíram as recomendações: – Você deve ter agüentado um
calor dos diabos, hein?!” (BIARD, 2004, p. 12).
Biard aborda os motivos da sua viagem à América. Por causa de um
alargamento nas estradas, teve que se mudar do seu querido apartamento,
onde montou um pequeno museu com novos objetos que ele trazia consigo
a cada nova viagem. O segundo motivo foi quando conheceu um general
belga que residia na Bahia, e ao fim de uma agradável conversa sobre as
maravilhas desta terra, ele já estava convencido que deveria conhecer o
Brasil.
O francês foi um grande viajante e realizou no Brasil seu último
grande empreendimento exploratório. Ele buscava sempre relacionar suas
pinturas com assuntos históricos e científicos, por isso suas viagens tinham
o objetivo de pintar os costumes e as curiosidades dos quatro cantos do
mundo. Como relata o artigo do Pedro de Andrade Alvim, Biard associado a
revista Musée des Familles foi um propagador de cultura para a massa
iluminista da época:

As aventuras e desventuras do pintor francês pelo


interior das terras brasileiras foram transcritas em
livro intitulado Dois anos no Brasil – Deux années au
Brésil –, publicado em 1862, na cidade de Paris. Sua
obra destaca-se entre as demais produções de
viajantes por sua linguagem irônica e, por vezes,
satírica, que, aliada ao exagero, provocam grande
empatia no público leitor. No livro, Biard coloca-se
como o herói da narrativa, uma vez que, ao narrar
suas aventuras, participa das mais variadas situações
nas quais, muitas vezes, passa por momentos
perigosos ou de desconforto. A obra mescla
observações pessoais com aspectos culturais e

- 134 -
sociológicos dos lugares visitados (SARNAGLIA, 2013,
p. 13).

Em Londres, embarcou no vapor TYNE e os primeiros dias passaram


fazendo relações e escolhendo com quem conversar naquela longa
travessia. Ele passou seus dias analisando todos do navio para tentar
descobrir quem era o príncipe alemão que estava causando tanto mistério.
A seguir, começou a observar todos os passageiros e divaga o motivo deles
estarem indo ao Brasil.
Ao passar em Madeira conheceu igrejas maravilhosas que lhe
lembravam as da Itália, mas não iria recordar. Quando avistou Cabo Verde
logo percebeu a diferença esplendorosa da ilha. Mas, ao pisar em terra,
percebe que tudo é selvagem e insuportavelmente quente.
Chegando em Pernambuco, ficou encantado com o céu com seus
vários tons de cinza por causa das nuvens carregadas e acima delas surgiu o
Cruzeiro do Sul que lhe deu saudades de casa ao pensar quão longe estava
de lá. Entre Pernambuco e Bahia decidiu coletar um objeto para sua coleção
e teve a primeira lição de embelezamento, quando um marinheiro pegou
um peixe voador prendeu numa madeira e passou num barril de salmoura
que ficou rígido ao contato com o ar.
Por meio da crítica ideológica de Mary Louise Pratt, situamos Biard
no contexto da literatura de viagens que a partir da segunda metade do
século XVIII, designa qualquer viajante difusor da transculturação no período
colonial.

A coleta de espécimes, as construções de coleções, o


batismo de novas espécies, a identificação de outras
já conhecidas, tornaram-se temas típicos nas viagens
e nos livros de viagens. Ao lado, dos personagens de
fronteiras, como o homem do mar, o conquistador,
o cativo o diplomata [...]” (PRATT, 1999, p. 59).

- 135 -
O colecionismo dos viajantes estrangeiros que alimentaram os
museus de história natural pela Europa contribuiu com informações e
testemunhos de épocas, com a produção de imaginários multifacetados na
ordenação de uma certa identidade do Brasil:

Foi também através do alargamento do colecionismo


naturalista, inserido no realismo das luzes,
preocupado em catalogar, em sistematizar, em
decifrar a natureza das coisas, a fim de desmistificá-
las e disponibilizá-las para uso e serviço do homem
que o conhecimento científico pode avançar. Suas
práticas contribuíram para transformar o Império
numa grande zona de contato e inseri-lo numa rede
internacional de aquisições (CAMARGO, 1997, p.
586).

Nesse sentido, em seu relato Auguste François Biard apresenta, no


segundo capítulo do livro Dois anos no Brasil, sua experimentação com o
Brasil. Ele, conforme desvenda e interpreta o país através de sua
sensibilidade, faz uma construção de imagens. Essas imagens permitem ao
leitor uma aproximação com a época pelo olhar de um francês. Além disso,
são memórias escritas, documentadas e guardadas, sendo assim, podem ser
sempre revisitadas. Essa linha tênue entre a construção de imagens,
recorrente nos discursos dos viajantes naturalistas no século XIX, e a vivência
nesse lugar a ser desvendado é assim considerado por Flora Medeiros
Lahuerta:

Luciana Martins (2001), por outro lado, acredita que


todo o processo de formulação de imagens sobre o
Brasil do início do século XIX, através do olhar

- 136 -
estrangeiro, estava imbuído num contexto em que o
sujeito observador era tomado de surpresas e
construía sua narrativa conforme ia construindo a si
mesmo, através da experiência vivida. A autora
acredita, portanto, na realização de um aprendizado
e de uma construção constante do sujeito e da
paisagem. Além disso, as imagens gestadas neste
processo indicariam, para ela, “não uma geografia
estática do passado, mas uma geografia imaginativa
em formação, onde, no registro material das
paisagens dos lugares, vislumbram-se, nebulosas, as
paisagens das idéias” (Martins, 2001, p. 12).
Realmente percebe-se, nos relatos, a matéria viva de
que eram feitos, desenrolando-se durante o
percurso, ou seja, concomitantemente com a própria
experiência (LAHUERTA, 2006, p. 2).

A primeira memória desse capítulo começa com a cena de sua


chegada à Bahia. Ela foi um dos destinos que essa viagem proporcionou a
Auguste Biard. Assim que nela chegou, o pintor francês se decepcionou. A
Bahia que via frente a seus olhos não era a mesma que esperava e com que,
antes, vislumbrara em seus pensamentos. Há, portanto, uma quebra de
expectativa. Ele relata a composição do lugar, mostrando, por exemplo, a
presença de pessoas de outros países, como “negociantes franceses,
ingleses, portugueses, judeus e católicos” (BIARD, 2004, p. 28). Percebe-se,
portanto, a vasta origem de povos que vinham e exploravam de algum
modo, o Brasil:

Quando o tempo clareou, não fiquei nada satisfeito.


O que se me oferecia à vista não correspondia à idéia
que eu fizera do Brasil; talvez tivesse outra

- 137 -
impressão mais tarde ao desembarcar, mas não
confiava muito em que tal acontecesse (BIARD, 2004,
p. 27).

Após a passagem pela Bahia, o viajante chega ao Rio de Janeiro e


encanta-se. Ainda dentro do navio, é apresentado à cidade. Nesse
momento, o leitor pode conhecer elementos que caracterizavam alguns
bairros na época, como o Catete – um bairro parecido com o estilo Saint
Germain -. Além disso, as imagens do Pão de Açúcar, do Corcovado e do
Jardim Botânico são mencionadas e o fascínio que elas causam também,
assim, nota-se que a beleza natural do Rio já é admirada há muitos anos.

“Olhe ali Botafogo” dizia-me ele, “o hospital fica ao


fundo, deste lado; aquela colina à beira-mar,
povoada de casinhas cerca das de árvores, é a Glória;
perto, onde você vê aquelas habitações brancas e
róseas, é o Catete, o bairro Saint Germain do Rio; a
outra colina, onde existe um aqueduto, chama-se
Santa Teresa, recanto muito aprazível. Vá morar lá;
não há febre amarela. No alto daquele rochedo fica
o Castelo. Não está vendo os sinais? Todos os navios
são ali anunciados desde que aparecem ao longe”.
Todos esses pormenores tinham para mim grande
interesse, pois denotavam achar-me numa cidade
que não se parecia com a Bahia. Sem querer fui me
entusiasmando também; meu companheiro
continuava a me mostrar tudo o que era visto, com
minúcias, e com um carinho tal que se diria fossem
todos esses aspectos de sua propriedade (BIARD,
2004, p. 29)

- 138 -
Auguste conta, inclusive, sobre os procedimentos de um recém-
chegado de viagem, como as bagagens irem primeiro à alfândega. O pintor
narra seus passos até o hotel e, também, suas observações: sua passagem
pela rua do Ouvidor, a falta de ventilação no quarto em que se hospeda, o
calor insuportável da cidade, a quantidade enorme de insetos. Um dos
processos que o viajante precisou passar foi apresentar-se ao cônsul da
França, Sr Taunay, para mostrar suas recomendações: um dos objetivos do
pintor era fazer uma excursão pelo interior.

Entrementes, fundeávamos dentro do porto. Não se


devia pensar em conduzir logo suas bagagens;
tinham de ir para a alfândega e ali demorariam dois
ou três dias. [...] Entramos na famosa rua do Ouvidor,
rua francesa de ponta a ponta; os comerciantes ali
estabelecidos denominam-na modestamente de rua
Vivienne. [...] O que fazia mais falta era o ar. Viver no
Brasil sem ar é suportar o suplício dos cárceres de
Veneza. [...] Tivemos já de combater os mosquitos,
cujas picadas são terríveis. [...] No dia seguinte ao da
nossa chegada fui visitar o Sr. Taunay, cônsul da
França, para quem trouxera cartas de recomendação
(BIARD, 2004, p. 30-31).

Impressões sobre os costumes com os quais se depara são relatadas


no capítulo. Por exemplo, escreve sobre as vestimentas, sobre as estruturas
arquitetônicas, sobre a área do cais. Ainda, compara com seu país: “[...] e os
jardins, por mais interessantes que sejam, não se parecem com os nossos. ”
(BIARD, 2004, p. 33). Faz um comentário curioso a respeito da polidez da
etiqueta brasileira: não se falava diretamente com o monarca, havia um
intermediário responsável por isto.

- 139 -
Os caixeiros das lojas, manejando as vassouras, já
vestiam, às 7 da manhã, elegantes redingotes de
casimira. [...]. Passamos por uma praça onde havia
um magnífico chafariz, bem original aliás, porquanto
dispunha de umas dezenas de torneiras como jamais
vira em quantidade. Uns cinquenta negros e negras,
sempre aos berros, sucessivamente, iam enchendo
seus potes sem grande demora (BIARD, 2004, p. 32).

O viajante Auguste narra, entusiasmado, sobre sua audiência com


Imperador no Palácio de São Cristóvão, local onde ele costuma permanecer
durante uma parte do ano. O Imperador é descrito por ele como uma pessoa
bondosa e gentil, inclusive, como alguém que ajuda qualquer um
independentemente da classe social. Oferece ao pintor um apartamento
para que se mantivesse ao longo de sua temporada no Rio, pois havia se
interessado por seu trabalho: “Contrariamente ao que me asseguram, sua
Majestade acolhe bondosamente todos os que o procuram, sem distinção
de classe” (BIARD, 2004, p. 34).
O francês segue com sua viagem na cidade sempre descobrindo
novos lugares e anotando suas percepções. Segundo ele, havia o costume
de um negro ser responsável por transportar os objetos e maletas e, quando
isto não era seguido, havia um estranhamento por parte das pessoas,
característica de um país por tanto tempo escravocrata. Ao longo da
narrativa, descreve uma pequena excursão que fizera, falando das
plantações de café, da descoberta de uma cachoeira que o inspirou a pintar.
Sua presença na cidade como pintor influenciou outros artistas.

Essa pequena excursão foi me como um prelúdio de


todas as maravilhas do Brasil; por todos os lados
plantações de café [...] nos países em que predomina
a escravidão fica feio a quem quer que seja carregar

- 140 -
embrulhos; o costume é de se fazer acompanhar de
um negro, que leva esses pequenos objetos [...]
Tomei um banho, o que me fez muito bem, e durante
o dia inteiro pintei, à sombra de copa das árvores e a
ouvir o estrondo da cachoeira. Enfim, eu vi via! Eu
voltara a ser pintor! [...] Na minha ausência figuras
eminentes pela posição social e pela cultura haviam
resolvido fundar no Rio uma Sociedade dos Amigos
da Arte, e minha presença nessa cidade fora o
natural pretexto para proporcionar aos amadores
um estímulo [...] (BIARD, 2004, p. 36-38)

Essa excursão em busca das terras e das imagens naturais e esse


vislumbramento pela cachoeira, que o energiza, têm um fundamento
compartilhado por outros viajantes do século XIX: a natureza. A novidade de
cores e texturas compõe um cenário novo e exótico que é digno de pinturas
e desenhos, conforme afirma Belluzo:

O tema indissociável da experiência do viajante do


século XIX é a paisagem. Com a vinda da corte
portuguesa para o Brasil, especialmente após a
independência, chegam ao país artistas
profissionais, diletantes com domínio do desenho.
Ancoram no Rio de Janeiro passageiros de viagens
turísticas pelo mundo. Possuem uma visão educada
na estética do pitoresco e buscam desfrutar
paisagens características. Mais do que a descrição
naturalista, predominam entre eles a abordagem
romântica do passeio pelos arredores e pelos jardins,
a visão do homem “original” na floresta virgem ou a

- 141 -
forte sensação da grandiosidade do universo”
(BELLUZO, 1996, p. 18).

Ainda no segundo capítulo, o francês é convidado a pintar um quadro


da Imperatriz, além do das duas princesas. Dessa forma, o Palácio de São
Cristóvão foi um de seus destinos rotineiros. Destaca a amabilidade da
Imperatriz. Seu trabalho era sempre admirado pelo Imperador.

Esperando por isso, comecei dois quadros: o de Sua


Majestade a Imperatriz e o das duas princesas. Ia
diariamente a São Cristóvão, que fica a alguns
quilômetros da cidade. [...] A impressão de bondade
que a Imperatriz oferecia a todo mundo que dela se
acercava não se desmentiu para comigo. [...] O
Imperador, com frequência, vinha assistir ao meu
trabalho e me surpreendia com o acerto de suas
apreciações (BIARD, 2004, p. 40).

Essa foi uma de suas ocupações e, durante esse tempo, continuou


atenciosamente notando os costumes, as características físicas da cidade.
Por exemplo, as embarcações trazendo à cidade mantimentos, a maneira
como estes eram levados do navio à terra, a comida típica dos mais pobres
– carne seca com feijão e café - , as movimentações no cais, a quantidade de
insetos. Também, o desejo por parte de alguns de retirar um morro da
cidade – segundo estas acabaria com a febre amarela, doença que rondava
essa época – que poderia servir para, futuramente, aterrar um espaço de
mar. Além de mostrar a composição da rua do Ouvidor, apesar de não gostar
dela.

Nos intervalos do meu trabalho eu continuava a


observar os costumes da terra. Ia todos os dias ao

- 142 -
mercado. É ali que melhor se apreciam os usos de um
povo...Todas as manhãs embarcações trazem das
ilhas próximas laranjas, bananas, lenha, peixes; é um
espetáculo divertido no qual tomam parte os negros
a gritar, chamar, rir ou chorar. E como esses barcos
não podem se aproximar do cais por causa de uma
rampa de pedras que desce até o mar, outros pretos,
munidos de um balaio redondo, entram n’água e por
vezes formam fila para se despacharem mais
depressa. Quando é alta a maré, aumenta o pagode
costumeiro; caem mercadorias dentro d’água e os
escravos recebem como castigo socos e pauladas.
Nas vizinhanças, abrigadas em barracas, negras
vendem café e carne seca com feijão, prato habitual
da gente pobre e frequentemente das classes mais
finas (BIARD, 2004, p. 41).

Um dos últimos episódios do segundo capítulo é o do 7 de setembro.


Ele escreve que acha curiosa a quantidade de pessoas festejando, sendo que
algumas delas são escravas. Para ele, não fazia sentido estas comemorem
independência e liberdade quando não as têm. Também, relata um leilão de
escravos que viu, além de mencionar que alguns, às vezes, eram separados
de suas famílias.

Decorridos alguns dias, estávamos a 7 de setembro,


e todo o Rio se alvoroçou. Era a data de
Independência do Brasil [...] Centenas de negros
gritavam por toda parte: “Viva a Independência do
Brasil”. Deste modo, sem compreender as próprias
palavras pronunciadas, os pobres negros festejavam
a liberdade de um povo de que eram escravos. [...].

- 143 -
Assisti uma vez a uma venda de escravos num
armazém e, de outra, numa casa particular após um
falecimento. Não notei diferença entre as duas
formas de comércio; [...] (BIARD, 2004, p. 47).

Ao final do capítulo, conta que o Imperador, impressionado com a


qualidade de suas pinturas, deseja um retrato de si próprio. Auguste assim
o faz. Esse evento mostra o quanto seu trabalho era bom e valorizado,
sendo, dessa forma, um pintor importante: “Viera o imperador ver os três
retratos quase prontos, e após me elogiar o trabalho, pela sua semelhança,
declarou-me querer também o seu” (BIARD, 2004, p. 49).
Com esse capítulo do livro Dois anos no Brasil, tem-se uma descrição
muito detalhada de um viajante francês. O pintor faz comentários sutis que
hoje ajudam a ter acesso a uma reminiscência sobre o Rio de Janeiro.
Também proporciona ao leitor um conhecimento sobre os costumes que
caracterizam esse período. Além de criar imagens com suas pinceladas e
quadros, Auguste François Biard as cria, também, por meio de palavras
nesse capítulo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, impulsionado pela onda de viagens do século XIX, François-
Auguste Biard sai da França rumo ao Brasil. Fascinado por viagens, a terra
nas Américas despertava seu interesse. O abandono forçado de sua casa por
conta de planos urbanísticos de alargamento aliado a uma conversa com um
general belga que morava na Bahia foram motivos suficientes para leva-lo à
América, viagem esta que resultou no livro Dois anos no Brasil.
A importância deste livro como produtor de conhecimento sobre o
Brasil do século XIX é inegável. Sua descrição de nossas paisagens, nossos
costumes são claras e detalhadas, fazendo-nos retornar àquela realidade.
Além desses relatos há imagens dessa sua viagem deixando toda sua obra
mais rica. Além de contribuir para o retrato do Brasil daquela época.

- 144 -
Com a presente obra, têm-se um novo panorama do que seria esta
terra na América. Toda aquela terra idealizada, com seus habitantes
estereotipados é desconstruída. Biard mostra que aqui não é uma grande
selva, com selvagens vagando pelas ruas, onde todo tipo de tragédia pode
acontecer. Nada de extraordinário, inovador era observado. Era, na verdade,
tudo bem semelhante ao que já conhecia.
Enfim, seu livro Dois anos no Brasil traz a visão detalhada de um
viajante estrangeiro acerca desse seu lugar de destino. Com uma narrativa
bastante descritiva há todo um detalhamento de como era o Brasil dessa
época. O viajante nos mostra não só sua imagem física, mas também os
costumes dos que aqui residiam e, assim, desconstruindo toda a imagem de
um lugar selvagem, singular, pitoresco.

REFERÊNCIAS

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Revista de Cultura, maio de 2016. Disponível em
http://arcagulharevistadecultura. blogspot. com. br/2016/04/pedro-de-
andrade-alvim-francois-biard-e. html. Acesso em 28 de junho de 2016.

BELLUZO, Ana Maria. A Propósito d’o Brasil dos Viajantes. In: Revista USP.
São Paulo, n. 30, p. 8-19, junho/agosto 1996. Disponível em http://www.
revistas. usp. br/revusp/article/view/25903/27635. Acesso em 28 de junho
de 2016.

BIARD, Auguste François. Dois anos no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2004.
Disponível em http://www2. senado. gov. br/bdsf/item/id/1082. Acesso em
30 de maio de 2016.

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultrix,


1993.

CAMARGO, Téa. Colecionismo, Ciência e Império. In: CEDOPE. Ata da VI


Jornada Setecentista. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2005. p. 576-587.

- 145 -
ECKARDT, Isadora. A perspectiva científica da literatura de viagem do século
XIX: Auguste de Saint-Hilaire. In: Revista Vagão, vol 4, 2009. p. 72-83.
Disponível em http://www. uel. br/pos/letras/EL/vagao/EL4Art7. pdf.
Acesso em 05de julho de 2016.

LAHUERTA, Flora Medeiros. Viajantes e a construção de uma idéia de Brasil


no ocaso da colonização (1808-1822). Scripta Nova. Revista electrónica de
geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de
agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (64). Disponível em: http://www. ub.
es/geocrit/sn/sn-218-64. htm. Acesso em 28 junho 2016

PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: Relatos de viagem e


transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.

SARNAGLIA, Marcela. Viajantes, natureza e índios: a província do Espírito


Santo no relato de Aguste François Biard (1858-1859). Dissertação de
Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social
das Relações Políticas do Centro de Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória: UFES, 2013.

VENANCIO, Giselle Martins. Dois anos no Brasil, de François-Auguste Biard:


entre o tempo da escrita e o da publicação. Outros Tempos, Rio de Janeiro,
vol. 11, n. 18, 2014 p. 264-279.

YUSSUF, Omotayo Itunnu. François-Auguste Biard: retratos do Brasil com


humor e ironia. In: Biblioteca Brasiliana Guita e José Midlin. Disponível:
https://www. bbm. usp. br/node/85. Acesso em 25 de junho de 2016.

- 146 -
Notas e Notícias de um Viajante Brasileiro na Europa

Amanda de Oliveira Noronha


Guilherme Bahiense Rodrigues da Silva
Yasmim Nogueira Leite14

INTRODUÇÃO
As viagens e deslocamentos são recorrentes ao longo da história da
humanidade e seus registros por meio de textos nos remetem à antiguidade,
aos textos exemplares de Homero, Virgílio, entre outros. De acordo com
Romano, as viagens forma sofrendo modificações ao longo da história:

As viagens que se estendem desde a Antiguidade até


inícios do século XIX eram motivadas principalmente
por fins práticos; em geral, cumpriam razões de
Estado, testemunhadas, por exemplo, nas paredes
do Palácio de Persépolis, que ilustram as missões
diplomáticas na Antiga Pérsia do rei Dario; religiosas,
como Édipo indo a Delfos consultar o oráculo; ou
comerciais, registradas, por exemplo, no Livro das
Maravilhas, de Marco Polo. Principalmente os
comerciantes frequentavam as estradas e os
caminhos marítimos. Em menor proporção, também
andarilhos, escritores e estudiosos viajavam.
A finalidade das viagens começa a se modificar no
auge do capitalismo mercantil, a partir do século XVI,
quando empreendedores individuais, como o

14
Este trabalho é resultado da avaliação na Disciplina FUNDBRAS - Fundamentos da Cultura
Literária Brasileira, ministrada pela Professora, Dra. Luciana Nascimento, no primeiro
semestre de 2016, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Acadêmicos dos Cursos de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

- 147 -
francês Paulmier de Gonneville; aventureiros, como
Hans Staden; ou eruditos, como Michel de
Montaigne, passam a viajar por razões de cunho
pessoal. No século XVI ressurgem também as
mansões de verão na Itália, o que marca o início da
moderna.
Em fins do século XVII, sobretudo jovens aristocratas
britânicos empreendem longas excursões pelo Velho
Continente, que duravam de seis meses a dois anos,
com o intuito de conhecerem a vida mundana e
distinguirem-se da mentalidade utilitária da
burguesia ascendente, exaltando valores da
gratuidade, entre os quais o das viagens sem
obrigação (ROMANO, 2013, p. 33-34).

Nesse trabalho, temos por objetivo fazer uma leitura do texto Notas
de um viajante brasileiro, de autoria de Francisco Belisário Soares de Souza,
publicada em 1882. Em sua coletânea de cartas, o autor destaca vários
pontos de suas viagens pela Europa, menciona os costumes parisienses e
vangloria Paris e a Europa a todo o momento, destacando seus aspectos
culturais e sociais, como podemos observar no trecho em que se lê: “Paris
vai tomando o aspecto ordinário da primeira cidade de prazer do mundo. Os
theatros estão abertos e apresentam novas peças para a estação do
inverno” (SOUZA, 1882, p. 1). O autor destaca também o estilo de vida
europeu, inclusive suas férias de verão, os castelos, as caçadas. Segundo ele,
“para o homem de boa sociedade, caçar é tão indispensável como qualquer
dos hábitos mais indeclináveis da existência” (SOUZA, 1882, p. 2). Naquela
época, as senhoras se divertiam com saraus, os passeios de carro e cavalo e
exibições de arte:

- 148 -
Quantas [senhoras], porém, ao aproximar destes
dias sombrios, chuvosos, já bastante frios, não se
aborrecem nos vastos salões dos castelos, e não
suspiram pela volta a Paris, para esse turbilhão de
divertimentos, para esta grande capital da moda e
dos prazeres! (SOUZA, 1882, p. 2).

Outro ponto que é bastante perceptível, logo no início da obra, é a


visão que o sul-americano tem do próprio continente em relação à Europa.
É nítida a exaltação do continente e da cultura europeia, e é nítida também
a sensação de inferioridade cultural e estrutural por parte dos próprios
nativos do sul da América. “Para nós, habitantes do sul da América, este
êxodo das grandes cidades, as ondas enormes de povo que invadem e
espalham-se por todos os lugares de villeggiatura no litoral ou nas
montanhas, é um espetáculo surpreendente” (SOUZA, 1882, p. 3)
Naquela época, o fervor e tumulto tomavam conta da Europa.
Multidões eram encontradas em todo lugar que se ia, seja nas viagens a
trem, nos rios ou lagos. É possível perceber também a organização, ou falta
dela, por parte do povo europeu. As ruas ferviam, os restaurantes, hotéis,
trens estavam sempre abarrotados. Não só a cidade, mas também as
montanhas e áreas rurais eram lotadas de turistas. O continente não parava
um minuto. No seguinte trecho, podemos ver mais uma forma de influência
que a Europa exercia sobre o Brasil:

Naquela época admirou-nos encontrar nos


lindíssimo lagos da Suíça e da Itália vapores os mais
ordinários e primitivos, assim uma espécie desses
que na nossa formosa baia de Guanabara fazem a
viagem do Barreto e da piedade. Quão diferentes das
elegantes e confortáveis embarcações que sulcavam
então os lagos da Escócia! (SOUZA, 1882, p. 7).

- 149 -
No decorrer de suas cartas, o autor também aborda assuntos como
política, história e economia, até então desconhecidos pelos brasileiros.
Como mencionado anteriormente, Belisário viajou por vários países
europeus, destacando suas peculiaridades culturais, econômicas e políticas.
Em sua nota sobre a Bélgica, o autor declara que

A Bélgica é um dos países melhor governados e


administrados da Europa, e para isto reúne
excelentes condições. Ocupa território sumamente
restrito, tendo apenas duzentos e noventa
quilômetros na maior extensão e cento e oitenta na
maior largura, mas é habitada por uma raça dotada
de muitas das aptidões apreciáveis dos alemães e
dos franceses (SOUZA, 1882, p. 227).

O capítulo trata do modo de cobrança do imposto de consumo, como


se usa no Brasil e na maioria dos países Europeus. O autor descreve com
grande entusiasmo o funcionamento das fábricas francesas:

O modo de cobrança do imposto de consumo, como


se usa aqui e na maioria dos estados europeus, é
impraticavel no Brasil. Não se poderia, pois, ahi
estabeleceI-o mas o que se deve, o que urge, é
abolir, não só sobre o assucar, como sobre todos os
generos da nossa exportação. Como não basta dizel
o, entraremos em alguns pormenores. A. questão é
tão capital para o Brasil, interessa tanto todo e sen
systema tributario, que, estamos certos, obteremos
a benevolencia do leitor para esta digressão, que,

- 150 -
aliás, promettemos manter fora das discussões
propriamente scientificas e tech nicas.
Na fabrica de assucar que visitámos, ao chegar á
ultima operação, ao ensaque e peso do assucar,
notámos a presença de um empregado de régie, da
ado ministração fiscal. Os sacos têm o peso ele cem
kilogrammas, e depois de cosidos reunem-se as
pontas do barbante n'urrr pedaço de chumbo, com o
sinete da 1'égie. Em todas as fabricas está
permanentemente um empregado tomando nota do
assucar que se pesa e chumbando os sacos. Outros
empregados de ordem superior percorrem as
fábricas e ficalisam o trabalho. 15(SOUZA, 1882, p.
62).

Também merece a atenção do viajante Belisário, a cultura do café no


Brasil e o problema da erosão do solo:

A obra de que copio este trecho, do Sr. J. Clavé, assegura,


con dados officiaes até o anno de 1876, que em todos os
arrolamentos a população decrescia sempre, sendo nos
vinte e cinco annos últimos de menos trinta mil almas, o
que prova uma diminuição constante dos meios de
existência. Também actualmente são consideráveis as
despezas que se fazem em França para remediar estes
males. O que, porém, me parece mais útil seria que a
administração ensinasse às populações os meios de por si
obviar a taes dificuldades, antes que o mal seja irreparável,
ou quais.

15
Mantivemos a grafia original.

- 151 -
Só n'um ponto, partindo de Lugano, na Itália, noite uma
collina cortada em taboleiros regulares com o fim de
impedir que as chuvas carregassem as terras. Não observei
em parte alguma os regos, os canaes de esgoto para aguas
pluviaes, como se pratica nos cafezaes de Ceylão, nem os
vallos horizontaes e paralelos que os agronomos
aconselham para receber as aguas nas terras áridas, e
permitir sua lenta infiltração, em vez da precipitação
violenta acarretando o humus.
Os nossos escritores agrícolas, que falam tanto em
estrumar os morros de café, esgotados pelas primeiras
plantações, deveriam primeiro ensinar os meios de
conservar o estrume natural que já existe, e que as chuvas
torrenciaes arrastam e precipitam nos córregos (SOUZA,
1882, p 220).

A literatura de viagens é um gênero que agrega tipologias textuais


diversificadas, o que faz dela um gênero de fronteira, também pela
circunstância de problematizar a separação epistemológica entre ficção e
realidade.
Caracterizar teoricamente o gênero é pensar na natureza e
complexidade do fenômeno literário que, utilizando como intermediário a
linguagem, coloca sempre a questão da capacidade mimética da linguagem,
isto é, a capacidade da linguagem de representar a realidade. Por se tratar
de um gênero em que, frequentemente, o narrador-viajante aborda uma
cultura estrangeira, a literatura de viagens é rica em imagens literárias do
outro civilizacional, tornando-se, por isso, um terreno fértil para os estudos
gerais, que analisam a forma como dada cultura percepciona a outra e como
as ordens discursivas servem à perpetuação de estereótipos.
Em notas de um viajante brasileiro, o autor relata a sua experiência
como um jornalista, banqueiro e político. Em cada capítulo ele aborda um

- 152 -
tema relativo ao assunto, trazendo argumentos convincentes e bem
explicados sobre a sua visão e vasta experiência em cada uma dela.
A relação entre os textos, inicialmente é de autores apaixonados pela
escrita e pela busca do verídico. O primeiro comparando fontes e autores
diversos para exemplificar sua obra, tornando-a mais clara, além de literária.
Já na Segunda, nota-se o estudo sobre outras nações, trazendo as diferenças
dentro do campo político. Ambos retratam as diferenças na cultura,
mostrando as diferenças culturais, observações através da experiência de
viagem, do conhecimento e comparando as nossas diferenças, que
persistem até nos dias de hoje.

O VIAJANTE DESLUMBRADO
Francisco Belisário Soares de Sousa (Itaboraí, 9 de novembro de
1839 – Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1889) foi um jornalista,
banqueiro e político. Belisário foi diretor do Banco do Brasil, deputado
provincial, deputado geral, ministro da fazenda, conselheiro de Estado e
senador do Império do Brasil de 1887 a 1889.
Em 1881, Belisário viajou por diversos países da Europa. Suas
anotações sobre assuntos culturais, econômicos, políticos, industriais,
comerciais foram publicadas pelo “Jornal do Comercio”, e depois resultaram
na obra Notas de um viajante brasileiro.
Em A Crônica, Jorge de Sá nos mostra a origem e as características da
crônica, nos mostrando que para além do formato do texto curto publicado
no jornal, o gênero seguiu longa trajetória percorrida pela crônica, até
chegar a esse texto ligado às questões circunstanciais do cotidiano, como
por exemplo, um flagrante na esquina, o comportamento de uma criança,
ou de um adulto, um incidente doméstico, dentre outros. Uma das
definições de crônica é a narração histórica como nos afirma Jorge de Sá: “A
Literatura brasileira nasceu na crônica e os melhores cronistas nasceram no
Brasil” (SÁ, 1985, p. 7). De acordo com o autor, A carta de Pero Vaz de
Caminha para o rei de Portugal. D. Manuel em 1500, narrava seu dia a dia e

- 153 -
mostrava sua opinião sobre as pessoas e os costumes brasileiros. Por ser um
texto que os costumes brasileiros. Por ser um texto que narrava o cotidiano
e envolvia o leitor, é considerada a primeira crônica da literatura brasileira
Portanto, fazendo analogias pode-se dizer que Notas de um viajante
brasileiro e uma narração histórica falando sobre assuntos econômicos,
políticos, industriais, comerciais e é uma viagem pelo tempo, em terras e
sobre povos desconhecidos pelo público brasileiro da época. Essas
anotações devem ser situadas no seu próprio tempo e não podem ser
descontextualizadas.

O nosso escossez extasiava-se de ver o nosso extase, que


era" sincero. Ao chegar a Glasgow nos mostrava de longe
as duas maiores e verdadeiramente extraordinarias
chaminés: «São as mais altas de Glasgow, nos observava,
e, portanto, as mais altas do mundo. » Bem se vê que os
yankees acharam feito o modelo de sua linguagem. Já disse
que aos inglezes não se devem fazer observações e reparos
sobre o que lhe pertence. Um dia, á mesa, me animei a
dizer que era pena não viessem tão beIla iguaria
convenientemente temperadas, pois eu nunca conseguia
no meu prato pôrlhes o sal neces ario e e colher bem n'a
variedade de môlhos, que me cercavam, quaes melhor
convinham, nem em que proporção deveria empregal-os:-
Pois com este alimento se tem feito os nos os grande
homens, me replicou o nosso, aliás, tão amavel cicerone. -
Imagine-se o que seriam si outro fosse o seu systema,
tornei pela minha vez. Brillat Savarin é destã opinião :-Tout
le monde mange, mais sculement l'home d’esprit sair
manger. Não repeti, porém, ao meu archipatriotico
companheiro de viagem este aphorismo do autor da
PlIysiologict do Gosto, embora me viesse á mente. Pois, até

- 154 -
nisto, quem lIa de Ter! o· francezes procuram imitar os
inglezes. Na sociedade já está. introduzido o com ás cinco
horas da tarde, para que se espere o jantar ás sete e meia
ou oito boras da noite, tudo á moch da Inglaterra. Como
brasileiro,. eu preferiria uma chicará de café; mas para a
sociedade ingleza o café cheira muito a botequim, falta-lhe
distincção por este motivo, mas por imitação do lligh-life,
os fl'ancezes vão se aco tumanclo ao chá (*) (SOUZA, 1882,
p. 132- 133).

O Cronista, na maior parte dos casos, escreve em primeira pessoa, o


que faz o leitor se aproximar do escritor e se envolver com as histórias. Cada
um tem o seu estilo e sua visão de mundo, por isso cada cronista expõe sua
forma pessoal de compreender o acontecimento.

o fim do outono,-A primavera e os passeios de verão.


- O exodo das cidades para. o campo . -Incommodo
da multidão. - Os « tLU·istas. ») - Os hoteis. -O lago
dos Quatro Cantões, o Righi e a sua estrada de ferro.
-Petropolis; a nossas cidades das montanhas. -As
celebridade~ medica de Paris. -O uso das aguas
mineraes:-As cidades de villeggiatura em França. -
Abusos dos superlativos; necessidade de andar
prevenido com o modo de faUar dos francezes. -Uma
tarde em Aix. -O lago de Bourget; recordações de
Lamartine. -As horas de janta}' em França e na
Allemanha. -Volta aos habitos dos nossos maiores”
(SOUZA, 1882, p. 9).

No texto “Por uma poética da viagem”, o narrador-viajante sente o


espaço como uma substância a ser trabalhada E relata sobre seu grupo de

- 155 -
teatro geográfico e narra os lugares por que passa fotografando. Ele
remonta as rotas antigas para pensar como viajante. Relembra sua viagem a
Austin, capital do Texas, Estados Unidos entre 2009 e 2010 no qual busca
novos caminhos para a produção artística e sua vivência em solo estrangeiro,
fez com que seus olhos voltassem às características individuais e preciosas
daquela cidade do oeste dos Estados Unidos. Ressalta a parte mais rica e
pobre da cidade, com guetos e condomínios, captava a natureza do lugar e
condomínios por meio da fotografia:

O fazendeiro tinha montado a sua fábrica, derribado


mata e plantado canna; cada anuo mudava a planta-
ção para este ou aquelle logar; a fertilidade das
terras foi desapparecendo, o pousio não era mais
sufficiente para restituil-a, pois, em logar de capoeira
grossa só nascia herva rara e inutil: com a pobreza do
solo veiu a pobreza para todos. Em muitos destes
municipios conheci homens abastados, ricos mesmo,
que, tendo empregado a fortuna no logar, acham-se
hoje mui reduzidos, acompanhando o geral
empobrecimento de quanto os cerca. (SOUZA, 1882,
p. 144-145).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ser viajante faz com que o sentido seja aguçado para as coisas mais
simples e o corpo está aberto a experiências e foi, então, sob a percepção
da leitura, que Belisário relatou sua viagem num livro. A sensação de sentir-
se viajante e a atenção as minúcias sensoriais compartilhada com o leitor
através de uma espécie de jornada, descrevendo características e costumes
sobre diversos países da Europa, com enfoque em Paris (sente-se que ele
tem muito apresso por este País)., com suas questões econômicas, sociais,
políticas fazendo comparações com o Brasil.

- 156 -
REFERÊNCIAS

ROMANO, Luís Antônio Contatori. Viagens e Viajantes: Uma literatura de


viagens contemporânea. In: Revista Estação Literária. Londrina, Volume
10B, p. 33-48, jan. 2013. Disponível em tp://www. uel. br/pos/letras/EL.
Acesso em 17/06/2016.

MENDONÇA, Schlatter Luiza. Por uma poética das viagens. Porto Alegre:
UFRGS. Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de
Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, 2013. Disponível em: https://www. lume. ufrgs.
br/bitstream/handle/10183/67182/000872888. pdf?sequence=1. Acesso
em 23/06/2016

SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Ática, 1985. Disponível em: http://www.
orelhadelivro. com. br/livros/121696/a-cronica/. Acesso em 24/06/2016

SCHEMES, Elisa Freitas. A literatura de viagem como gênero literário e como


fonte de pesquisa. In: Anais do XVIII Simpósio Nacional de História, 2015, p.
1-13. Disponível em: http://www. snh2015. anpuh.
org/resources/anais/39/1439245917_ARQUIVO_2.
ARTIGOANPUH2015Elisa-Final. pdf. Acesso em 24/06/2016

SOUZA, Belisário. Notas de um viajante brasileiro. Rio de Janeiro: Garnier,


1882. Disponível em: http://www2. senado. leg. br/bdsf/item/id/242536.
Acesso em 24/06/2016

- 157 -
O Sonho do Monarca: Um Império nas Letras

Felipe Chaves Gonçalves Pinto


Henrique Cunha Lopes
Joabe da Silva de Souza
Wirley Alves de Souza. 16

INTRODUÇÃO
O Segundo Reinado foi regido por Pedro de Alcântara João Carlos
Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel
Gabriel Rafael Gonzaga, mais conhecido como Dom Pedro II. Neste período,
muitos avanços na ciência, tecnologia, literatura e educação ocorreram.
O período viveu relativa estabilidade social, não havendo revoluções
de grande porte. Alguns historiadores atribuem tal tranquilidade ao bom
estado da economia brasileira, sustentada mormente pela cafeicultura. A
Guerra do Paraguai (1864-1870) e conflitos com oficiais do Exército,
membros do clero e fazendeiros trouxeram, contudo, desgaste ao comando
do imperador, que começou a ser visto com os olhares desconfiados de uma
elite econômica que, apesar de defender o fim da administração
monárquica, visava manter seus privilégios sociais.
Os anos do Segundo Reinado podem ser considerados, também,
como uma fase de forte agitação social. Como principal fator das mudanças,
estava a emancipação política da nova nação que, há pouco tempo
independente, transbordava com novas ideias e procurava o
estabelecimento de uma identidade cultural própria. Nesse período, várias

16
Acadêmicos do Curso de Letras/Português-Japonês da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este trabalho foi originalmente apresentado como
parte dos requisitos para avaliação da disciplina de Fundamentos da Cultura Literária
Brasileira, ministrada no 1° semestre de 2016, pela Profa. Dra. Luciana Nascimento.

- 158 -
questões se tornaram fonte de debates intensos, entre elas a proeminente
questão escravista.
A dinâmica revolucionária, no entanto, não ocorreu apenas em
âmbito social. No meio artístico (e principalmente na literatura), observou-
se grande ímpeto para a produção de obras de cunho inovador, que
refletissem e valorizassem anseios e reflexões locais frente à produção
artística clássica e universal que, até então, era hegemonicamente
produzida. Tais obras, em seu caráter marcadamente nacionalista, foram,
em suma, o estopim para o desdobramento do movimento romântico (que,
em seu primeiro momento, tinha o índio como personagem principal) em
terras brasileiras.
Entre os principais apoiadores da arte nacionalista e romancista
produzida na época, está a figura de Dom Pedro II que, “a partir da década
de 40, torna-se uma espécie de mecenas das artes” (SOUZA, 2012, p. 85). A
arquitetura de uma produção cultural nacionalista sistemática foi
intensamente impulsionada pelo Imperador, que tinha como missão e
desejo principal construir um arcabouço literário singularmente brasileiro.
Entre as suas principais contribuições para o desenvolvimento do que
posteriormente seria chamado de Romantismo, está o investimento em
políticas de educação e produção literária, como a fundação do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, a realização de traduções originais das
principais obras literárias do cenário internacional e a intensificação do
contato entre os artistas brasileiros e as tendências culturais europeias da
época. O apoio incondicional do governante logrou ao movimento
romântico ampla abrangência. A visão e os ideais romancistas extrapolavam
as fronteiras da arte, tornando-se ferramentas relevantes até mesmo a
questões de ordem social e política.
Não obstante o pretensioso objetivo de sintetizar uma identidade
genuinamente brasileira, a abordagem do Imperador e seus seguidores às
questões nacionais era, no entanto, estéril. As primeiras obras românticas
buscaram estabelecer a figura indígena como representante genuíno e

- 159 -
incondicional da alma brasileira, caracterizando-se, assim por completo
desprezo a questões históricas. Além disso, ao ignorar os debates sociais da
época (como, por exemplo, a questão escravista), apoiar-se
fundamentalmente em moldes europeus e ser sumariamente um
movimento palaciano, o Romantismo falhava em sua ambiciosa tentativa de
ser um retrato do Brasil.
O movimento se caracterizou, portanto, por sua contradição. Se, por
um lado, os autores românticos pretendiam veicular a essência da
identidade brasileira em suas obras, por outro, as temáticas e técnicas das
produções românticas eram eurocentricamente insensíveis a questões
populares e históricas. A figura de Dom Pedro II tornou-se, assim, enfoque
principal desta contradição: apesar de apoiar a construção de uma
identidade brasileira, o Imperador era o principal símbolo do domínio
europeu sobre a cultura brasileira.

UM SONHO PARA O MONARCA


Em Sonho do Monarca: Poemeto abolicionista, João Marques de
Carvalho (1866 – 1910), fazendo uso de uma linguagem mordaz e direta,
posiciona-se a favor da abolição da escravidão (questão social amplamente
discutida durante o período do Segundo Reinado) e dirige diversos ataques
à figura imperial de Dom Pedro II e o sistema de governo que o monarca
representava. Já é claro, desde a introdução, o desprezo do autor pelo
Imperador, evidenciado no uso de termos salientes e até mesmo ofensivos
para um “súdito”: Não tremas, não, não tremas! Toda cobardia/ É indigna
d'um rei que affronta cada dia/ Seus subditos fieis/ Co'o cynismo mais vil/ a
deturar as leis” (p. 8). Nestes versos, faz-se claro que, apesar de essa ser a
principal preocupação do autor, a questão escravocrata não é o foco
exclusivo do poema. Há, mesmo que de maneira velada, uma indignação
referente à posição subalterna e passiva dos súditos diante do monarca que
pode, assim, seguir sua vontade a qualquer hora, posicionando-se, até
mesmo, acima das leis.

- 160 -
Logo após a breve introdução, encontramo-nos no leito de um
imperador adormecido e, aparentemente, atormentado por sonhos maus.
O autor nos convoca: “Leitor, anda commigo, atira para longe/ O receio, vêm
ver o sonho mau do rei…/ O temor só assenta em cérebros de monge/ que
só tem fanatismo em perverter a grei” (p. 9) e inicia, então, a narrar o
julgamento do Imperador por Deus. Os escravos mortos são chamados e
fazem-se presente ao pronunciarem em uníssono: “Eis o reu, eis o rei, o
amigo dos malvados,/ Que à fome nos mataram!” (p. 11) O texto, ao trazer
o Imperador a um julgamento divino, cria um paralelo entre o seu “cynismo
mais vil” e a justiça de Deus, que é absoluta e sistemática em sua aplicação.
O julgamento prossegue e, diante das provas flagrantes
apresentadas ao divino juiz, Pedro é condenado: “Meu Pae ordena, ó rei,
que sejas condemnado/ Ao supplício sem fim das penas eternaes!/ É justa a
punição, foi grande o teu pecado!/ Surgí, féras! Surgí, demonios infrenaes!”
(p. 13). Em seguida, o próprio Deus o manifesta o motivo da condenação:
“Vaes sofrer para sempre e a culpa é tua só. / Compaixão não tiveste pela
raça escrava/ Que perseguiste, ó fera, ríspido e sem dó” (p. 13). Pedro, o
cínico mais vil, é, assim, julgado e condenado por suas culpas por uma justiça
indiscutível e onisciente: a divina.
Chegado o fim do texto, encontramos Pedro sofrendo as duras penas
de seu pecado: “Nada mais pôde vêr… Os genios infernaes/ A carnes lhe
rasgavam loucas, alegremente…/ Apenas muito ao longe, ouviu uma
dolente/ Canção d'anjinhos loiros, castos, idéaes. . ” (p. 14). É exatamente
através dessa estrofe que o autor encerra o poema. Aquilo que foi sugerido
como um sonho do Imperador acaba, assim, sem seu despertar, epifania e
conscientização esperados. Acaba como se acabam vidas. Acaba como se
acabaram as vidas de tantas pessoas que, obrigadas ao trabalho escravo,
viveram apenas aquilo que foram autorizadas a viver. O sonho do monarca
acaba, assim, como tantas outras coisas. Esse sonho pode, até mesmo, ser
sua vida de fato. Um sonho real – e aqui é deixada a ambiguidade da palavra.
O poema nos permite deduzir, então, que o Imperador nunca sonhou de fato

- 161 -
e a narrativa é apenas o seu derradeiro e certo julgamento. Nesta visão,
Pedro possivelmente nunca acordaria, ao contrário: apenas sofreria seu
fatídico fim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há como negar o caráter nacionalista presente em Sonho do
Monarca: Poemeto abolicionista, no entanto, é possível identificar
características radicalmente diferentes das encontradas nas produções
românticas do Segundo Reinado. Isso pode ser evidenciado pelo desapreço
à figura do Imperador e pela tentativa de aproximação das temáticas
literárias às temáticas sociais reais do Brasil no século XVIII.
O poemeto, portanto, desvia substancialmente do Romantismo.
Enquanto este se caracterizava como um movimento particularmente
elitista que procurava descrever o Brasil por lentes e moldes europeus
idealizados, a obra de João Marques de Carvalho procura se aproveitar de
temáticas originais, trazendo à questão escravista à tona. A falta de
conformismo da obra pode ser encontrada, sobretudo, na depreciação da
figura do Imperador, lastro fundamental para o movimento romântico e
suas ambições contraditoriamente eurocêntricas.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, João Marques de. O Sonho do Monarcha: Poemeto


Abolicionista. Recife: Typografia Industrial, 1886. Disponível em
http://www2. senado. leg.
br/bdsf/bitstream/handle/id/242838/000560435. pef?sequence=1. Acesso
em 19 Jun. 2016.

LIMA, Luciano Demetrius Barbosa. O Romantismo na narrativa de Um Barão


Amazônico: Subjetividade, patriotismo e sentimentos na obra Motins
Políticos. Disponível em http://www. upf. br/ppgh/download/5. Artigo_-
__luciano. doc. Acesso em 19 Jun. 2016.

- 162 -
MOSSÉ, Benjamin. Dom Pedro II, Imperador do Brasil. São Paulo: Cultura
Brasileira, 1889. Disponível em http://www2. senado. leg.
br/bdsf/handle/id/242475. Acesso em 19 Jun. 2016.

SOUZA, Rosane de. D. Pedro II: Influências de um mecenas tradutor


na construção de um nacionalismo literário. Revista Alpha. 2012. Disponível
em http://alpha. unipam. edu.
br/documents/18125/25962/d_pedro_ii_influencias_de_um_mecenas.
pdf. Acesso em 19 Jun. 2016.

- 163 -
Oswald inventa uma História para o Brasil

Geisiane Cristine Pinto Silva


Juliana dos Santos Delduque
Victória Braz Souza
Victória de Lima La Pasta17

INTRODUÇÃO
A literatura enquanto arte participa e capta a sociedade onde se
encontra inserida. Assim como a história é uma criação humana, que
apresenta várias versões de um mesmo fato, a literatura também recria os
fatos históricos, narrando àquilo que poderia ter acontecido por carregar
muitos saberes, nela um pouco de todas as ciências podem ser encontradas.
A literatura lida com a realidade e com a irrealidade, por meio dela os
homens buscam a representação dos tempos mais antigos até a vanguarda.
Mesmo que não seja possível representar o real, há um esforço por parte
dos homens para fazer esta representação utilizando as palavras, por meio
da escrita, onde existe uma reflexão durante a produção da literatura, sendo
necessário refletir várias vezes durante a produção de um texto.
Tanto a história quanto a literatura se enriquecem utilizando a ficção.
No caso da história, o uso da ficção torna seu discurso invalido, pois, essa
disciplina não deveria nunca se afastar dos fatos. A proposta da história é
relatar fatos a partir da coleta e seleção de registros. A literatura, por outro
lado, não tem obrigação com a verdade, ela busca outros níveis de
subjetividade que não são apresentados pela história. Literatura e natureza
possuem naturezas diferentes e, embora muitas vezes partam da mesma
origem, possuem abordagens distintas na criação do texto.

17
Acadêmicas do Curso de Letras: Português/Inglês, da Faculdade de Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Este trabalho foi originalmente apresentado à Profa. Dra. Luciana
Nascimento como parte dos requisitos para avaliação da disciplina de Fundamentos da
Cultura Literária Brasileira, ministrada no primeiro semestre de 2016.

- 164 -
Um dos autores mais famosos por recontar a história através da
literatura foi José Oswald de Sousa Andrade, ou, como é mais conhecido,
Oswald de Andrade. Nascido em São Paulo em 11 de janeiro de 1890, foi
escritor, ensaísta e dramaturgo brasileiro. Ficou reconhecido como um dos
mais importantes introdutores do Modernismo no Brasil, tendo participado
da Primeira Geração Modernista, também conhecida como “Fase Heroica”
junto com outros artistas provenientes da literatura e outras artes como
Mario de Andrade e Tarsila do Amaral. Além de romances e peças, Oswald
lançou dois manifestos: o manifesto Antropofágico e o manifesto da Poesia
Pau Brasil. Ambos foram responsáveis por iniciar movimentos dentro do
movimento, o Movimento Antropofágico e o Movimento Pau Brasil,
respectivamente.
O Manifesto da Poesia Pau-Brasil, interesse maior deste trabalho, foi
publicado no Correio da Manhã no dia 18 de março de 1924. Na época,
quando perguntando sobre o nome do manifesto Oswald disse “Pensei em
fazer uma poesia de exportação e não de importação, baseada em nossa
ambiência geográfica, histórica e social. Como o pau-brasil foi a primeira
riqueza brasileira exportada, denominei o movimento de Pau-Brasil.
Diante do exposto, interessa-nos fazer uma leitura dos poemas da
obra Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade, buscando enfocar os diálogos
intertextuais e a reescrita da história sob o signo da paródia.

POESIA PAU BRASIL E A PARÓDIA DA HISTÓRIA


A PARÓDIA
Segundo Sant’Anna, apesar do termo “paródia” ter sido
institucionalizado apenas a partir do séc. XVII, sua história vem de bem
antes, tendo o termo sido citado por Aristóteles em sua Poética, que atribuiu
a sua origem à Hegemon de Thaso (séc. V a. C).
Suas definições têm variado em pouca medida ao longo do tempo.
No dicionário de literatura de Brewer, paródia é definida como “uma ode
que perverte o sentido de outra ode (grego: para- ode)” (BREWER apud

- 165 -
SANT’ANNA, 2003, p. 12). Cabe lembrar que originalmente a ode era um
poema para ser cantado. Com esse conhecimento, Shipley explica que o
“termo grego paródia implicava a ideia de uma canção que era cantada ao
lado de outra, como uma espécie de contracanto” (SHIPLEY apud
SANT’ANNA, 2003, p. 12).
Sendo assim, a origem da paródia é musical. Shipley ainda determina
três tipos básicos de paródia em seu dicionário de literatura: verbal, formal
e temática. Ademais, antes de Tynianov e Bakhtin, dois dos principais
teóricos de literatura, a paródia era simplesmente considerada um
subgênero, próxima do burlesco.
Segundo Sant’Anna (2003) foi Tynianov, em seu trabalho de 1919,
que primeiramente sofisticou o conceito de paródia, estudando-o
conjuntamente com o conceito de estilização. Ainda segundo Sant’Anna,
esse mesmo pensamento foi mais tarde reproduzido por Bakhtin em 1928,
que se tornou então o teórico mais citado em estudos sobre paródia.
Embora ambos os autores estivessem focados no âmbito literário, a
aplicação do conceito de estilização também serve para outras modalidades
fora da literatura.
Além de sua origem musical e da conhecida manifestação na
literatura, é importante ressaltar a relação da paródia com a representação.
Levando em conta o sentido de representação como peça de teatro, a
paródia teve um papel importante e curioso nesse âmbito, tendo “uma
função complementar nas peças dramáticas” (SANT’ANNA, 2003, p. 30) Mas,
não sendo esse o foco primário do trabalho, passemos para a representação
num sentido mais psicanalítico. Nesse sentido, a paródia seria uma
reapresentação, ou seja, outro modo de pôr uma coisa que já foi
apresentada. Segundo Sant’Anna: “a representação psicanalítica seria a
emergência de algo que ficou recalcado e que agora volta à tona. [...] uma
nova e diferente maneira de ler o convencional. [...] é uma tomada de
consciência crítica” (p. 31).

- 166 -
As artes dos tempos atuais têm sido fortemente caracterizadas pela
abundância da presença das paródias, especialmente neste último sentido
de ser uma reapresentação. Ainda segundo Sant’Anna:

A paródia é um efeito de linguagem que vem se


tornando cada vez mais presente nas obras
contemporâneas. A rigor, existe uma consonância
entre a paródia e a modernidade. Desde que se
iniciaram os movimentos renovadores da arte
ocidental na segunda metade do séc. 19, e
especialmente com os movimentos mais radicais do
séc. 20, como o Futurismo (1909) e o Dadaísmo
(1916), tem- se observado que a paródia é um efeito
sintomático de algo que ocorre com a arte do nosso
tempo (SANT’ANNA, 2003, p. 7).

Um dos introdutores e principais representantes da paródia como


reapresentação na literatura brasileira foi Oswald de Andrade, com seu
manifesto pau Brasil. Nesta obra, ele almejava recontar a história do Brasil
invertendo pontos de vistas, usando para tal objetivo as paródias. A seguir,
lidamos com a presença das paródias em sua Poesia Pau Brasil.

A PARÓDIA DA HISTÓRIA
A Semana de Arte Moderna, ou Semana de 22, aberta em 11 de
fevereiro de 1922, foi apoiada por aristas de diversas áreas, como Oswald
de Andrade, Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos e Mario de Andrade, que
desejavam uma renovação no cenário artístico brasileiro e, mais do que isso,
um resgaste de origens. Embora sua importância não tenha se sobressaído
em sua época, ela foi reconhecidamente importante para o
desenvolvimento da ideologia do Modernismo no Brasil, escola que
predominou no espaço artístico brasileiro por parte do século XX e ainda viu

- 167 -
sua influência se estender para movimentos que perduraram até o final do
século, como o Tropicalismo e até mesmo a Bossa Nova.
No entanto, seria incorreto dizer que foi o momento mais importante
do Modernismo, e até o mesmo o pontapé deste, como vários críticos
colocam. Afinal, o processo de reflexão, de criação de pensamentos e
ideologias já havia começado muito antes. Oswald de Andrade, um dos
mentores do movimento Modernista no Brasil, já havia percebido a
necessidade de ajustar as contribuições estrangeiras à realidade brasileira,
anunciando o projeto Pau-Brasil por volta de 1915.
O projeto da Poesia Pau Brasil, que visava “proceder à incorporação
da cor local á dinâmica cultural do país como estratégia para se consolidar a
identidade nacional” (BOAVENTURA, 1985) por meio da “pesquisa da poesia
e da arte brasileira na obra de antepassados, na fundação e no manancial
atávico da raça” (idem), porém, só foi realmente posto em palavras escritas
em 1924, com a publicação do Manifesto Pau-Brasil no Correio da Manhã,
dois anos depois da Semana de Arte Moderna.
Com a Poesia Pau-Brasil, Oswald pretendia se desviar de todos os
paradigmas de construção de poesia. Paradigmas esses que, para o autor,
haviam aprisionado a poesia brasileira, tornando-a apenas uma cópia dos
jeitos do outro. A poesia brasileira antes do Pau-Brasil não refletia
verdadeiramente a cultura e o povo local, e assim sufocava a brasilidade.
Para reverter esse quadro, o poeta defende em seu manifesto “A língua sem
arcaísmos, sem erudição. Natural e neológico. A contribuição milionária de
todos os erros. Como falamos. Como somos”.
O conceito é posto em prática, então, nas várias poesias que
seguiram no livro Pau Brasil (1925). Há, de certa maneira, simplicidade de
construção é vista em poemas como negro fugido:

O Jerônimo estava numa outra fazenda


Socando pilão na cozinha
Entraram

- 168 -
Grudaram nele
O pilão tombou
E caiu (ANDRADE, 1925)

O poema se configura de fácil leitura, ao contrário da maioria dos


poemas parnasianos que se constituíam de palavras não comuns e
construções mais elaboradas. Essa característica da poesia pau-brasil pode
levar ao erro de enxerga-la como fruto de um trabalho não esmerado, o que
não é verdade, como elaboraremos mais para frente. Em negro fugido,
também está presente a linguagem popular a qual Oswald havia se referido
em seu Manifesto Pau-Brasil, se manifestando na palavra “numa”.
Outro poema em que a linguagem popular se apresenta, dessa vez
de forma muito mais acentuada, é o capoeira. O poema trata-se
majoritariamente da representação de um diálogo e, talvez por este motivo,
é composto de vários excertos retirados da língua oral. A seguir:

- Qué apanhá sordado?


- O quê?
- Qué apanhá?
Pernas e cabeça na calçada.
E caiu (ANDRADE, 1925)

A Poesia Pau-Brasil seria, então, a responsável por trazer ao


consciente dos brasileiros uma nova perspectiva. Uma perspectiva que traria
a dupla visão do mundo, baseada na dicotomia floresta-escola. A floresta é
a síntese do primitivo enquanto a escola é a manifestação máxima da cultura
do invasor. A manipulação das duas na poesia resulta na expressão de
antíteses, uma poesia que traga tanto o natural quanto o maquinário,
expressão da modernidade. E assim, Oswald define: “Uma visão que bata
nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas
questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau Brasil”.

- 169 -
No manifesto, Oswald de Andrade também defendia a poesia pau-
brasil como a continuação natural e necessária do trabalho da geração
futurista. Com a junção dos opostos que resulta no Brasil e com a quebra
dos padrões de poesia para que se eleve então o sentimento poético
brasileiro, a poesia Pau-Brasil, se transformaria na poesia de exportação.
Ao manifesto Pau-Brasil, seguiu-se o Manifesto Antropófago,
publicado quatro anos depois, na primeira edição da Revista de
Antropofagia. Nele, Andrade apresenta o conceito de antropofagia, conceito
que pode ser entendido de diversas maneiras. Na poesia oswaldiana há uma
extrapolação desses conceitos a fim de desconstruir padrões e dicotomias
recorrentes no século XX.
A antropofagia, em um primeiro momento, é associada ao
canibalismo, tomando o seu sentido literal, vinculado a rituais ameríndios e
africanos. Entretanto, Oswald de Andrade usou do conceito de antropofagia
para propor uma solução à questão da identidade nacional brasileira, que se
encontra em um conflito entre se reconhecer como cultura americana
(primitiva) ou se vislumbrar com o ocidente.
Nesse contexto, a antropofagia deixa de ser um tabu e passa a ser
visto como um elemento natural do homem, que se alimenta da cultura do
outro, formando em si um ser intercultural, se aplicando não apenas aos
primitivos que se “alimentaram” da cultura ocidental, como também do
homem branco que se inter-relaciona mesmo que inconscientemente com
a cultura ameríndia.
No trecho “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do
antropófago” Oswald conceitua a antropofagia como um voltar-se para a
diferença, ampliando o devorar não apenas aos objetos com qualidades
desejáveis, mas a toda diferença.
Contemporaneamente, há um novo uso do termo antropofagia
associado à busca pela superação das igualdades sociais presentes na
estrutura social brasileira, citado por Oswald em “na moral de escravos se

- 170 -
forjaria a técnica e se desenvolveriam as forças produtivas da sociedade e,
por oposição, suas forças libertárias” (ANDRADE, 1925)
Posteriormente à semana de arte moderna e a publicação do
Manifesto Pau Brasil (1924), Oswald percebeu que precisava assumir uma
postura mais radical e junto a diferentes colaboradores começou a
apresentar na Revista de Antropofagia, o movimento antropofágico.
Publicou então, em 1928, o Manifesto Antropofágico:

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente.


Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos
os individualismos, de todos os coletivismos. De
todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos
Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei
do antropófago [...] (ANDRADE, 1928, p. 6)

Há também no Manifesto Antropófago uma crítica ao romance


indianista de Alencar, que descreve ufana e utopicamente o índio, dando-
lhe traços de personalidade ocidental e importando conceitos europeus ao
invés de criar um personagem realisticamente brasileiro: “contra o índio
tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de
D. Antônio de Mariz”.
A ideia ecoada no Manifesto Antropófago de busca pelo natural, pelo
primitivismo, aquilo que foi deturpado com a chegada do colonizador, já
estava presente no primeiro manifesto, o Manifesto Pau-Brasil, que depois
foi atualizado na prática com o lançamento do livro de poesias Pau-Brasil
(1925). Todo o conceito de “se alimentar da cultura do outro” pode ser

- 171 -
visualizado no “parodismo” aplicado por Andrade nas poesias da primeira
seção do livro, denominada História do Brasil.
A paródia é utilizada por Oswald de Andrade como meio recontar a
história do Brasil, dessa vez através dos olhos dos índios, do ser primitivo.
Com isso, o autor busca (re) encontrar a essência do brasileiro, o “produto
interno mais primitivo e representativo do conteúdo fundador da
nacionalidade [...]” (SANTINI, 2008, p. 107). O que Oswald quer é ver a
realidade, a história, sem a venda que a colonização, com a sua impiedosa
vontade de cobrir o natural com seus maneirismos e catequizações, nos
impôs.
Ao pegar os textos de cronistas que escreveram sobre o Brasil no
período de colonização e reescreve-los, através de colagens, justaposições e
outras estratégias, Oswald aplica o conceito antropofágico de “comer” a
cultura do outro e então a vomita com suas próprias modificações atribuídas
aos conceitos do primitivo, à sua visão de mundo.
O livro é dividido em oito seções, todas nomeadas com letras
capitalizadas, sendo que cada seção se constitui de maneira diferente. A
primeira seção, chamada HISTÓRIA DO BRASIL, se constitui de oito séries, e
é toda paródia. Cada série pega o nome de uma personalidade da história,
cronistas a serem parodiados, e então se seguem vários poemas curtos com
seus títulos escritos em letras minúsculas. A primeira série foi nomeada
PERO VAZ CAMINHA, e parodia a famosa Carta do Descobrimento.
A primeira modificação que Oswald incute é na supressão do “de” no
nome do cronista. Pero Vaz de Caminha passa a ser somente Pero Vaz
Caminha; um nome passa a ser um verbo e é assim é construída uma oração.
“O ‘Caminha’ está relacionado, então, á expansão do olhar sobre a própria
terra [...]. A poesia “caminha” por outra rota, não mais marítima, mas
cultural e ideológica, de redescoberta [...]” (SANTOS, 2009, p. 328). A Carta
do Descobrimento, transfigurada por Andrade, passa como um relato
narrado sincronicamente.

- 172 -
No primeiro poema da série, intitulado a descoberta, o poeta recorta
frases da carta original e as “cola” no poema, invertendo ordens e
suprimindo conjunções, pronomes e intercalações explicativas. Assim,
Oswald torna o texto mais direto e mais “popular”. Ainda assim, o poeta
mantém características provenientes do português arcaico, como em “Até a
oitava de Paschoa” (verso 1, grifo nosso) e em “E houvemos vista de terra”
(verso 4, grifo nosso), criando um efeito irônico que eleva a paródia a níveis
mais altos, como podemos ver a seguir:
Em outro poema da série, chamado primeiro chá, Oswald narra uma
das primeiras experiências de convivência entre nativos e viajantes e a
consequente dominação cultural, que para Oswald, teve início logo ali, ainda
que sutil. No terceiro e último verso: “Fez o salto real”, o autor retira a
expressão “fez o salto real” da obra original, a Carta do Descobrimento, e a
insere em seu poema para expressar a atitude dominadora dos
colonizadores, logo após a dança.
O projeto da poesia Pau-Brasil, ainda que inovador, tanto
esteticamente quanto no conteúdo, não foi livre de críticas. Críticos da
época rechaçavam a falta de lirismo que ocorria “em decorrência do seu
acentuado formalismo, do gosto pela forma e pelo efeito” (BOAVENTURA,
1986). Carlos Drummond de Andrade foi um de seus críticos. Apesar de
admitir a importância da poesia pau-brasil como um instrumento para
conferir à poesia os tons necessários de brasilidade, ele tinha medo de que
o projeto de Oswald pudesse conduzir a poética brasileira a uma
“desintelectualização” ao instaurar elementos instintivos, como a
vulgaridade, no lugar do esforço poético.
Outro crítico da obra de Oswald de Andrade foi Tristão Athayde.
Crítico renomado da época, ele dizia que Oswald “numa forma pindorâmica
de um anseio europeu, abolia todo o esforço poético de beleza e
construção” (BOAVENTURA, 1986). Muito das atitudes, porém, provém do
espanto que a inovação de Oswald causou em seus contemporâneos.
Segundo o ensaísta Sérgio Milliet: “Confessamos, porém que era difícil ao

- 173 -
letrado brasileiro, que se abeberava na subliteratura do neo-parnasianismo,
entender essa poesia, toda de extremo requinte, de muito pudor e emoção,
tudo escondido sobre a caricatura da piada” (MILLIET apud BOAVENTURA,
1986).
As críticas, no entanto, não impediram que a Pau-Brasil tivesse
admiradores contemporâneos. Um dos mais fervorosos foi o também
modernista, Mário de Andrade, autor do romance Macunaíma. Nas palavras
dele: “estou inteiramente Pau-Brasil e faço uma propaganda danada do pau-
brasilismo” (ANDRADE apud BOAVENTURA, 1986).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Oswald de Andrade reconta a história por meio da literatura,
utilizando-se da paródia em suas obras. O autor introduziu a paródia como
reapresentação na literatura brasileira e é uma das figuras de maior prestígio
para o Modernismo no Brasil. É incontestável que seu projeto do Manifesto
Pau Brasil, além de desenvolver, foi de considerável relevância para
consolidar a identidade nacional. Através da Poesia Pau Brasil, o poeta
modernista quebra os conceitos de poesia trazidos da cultura ocidental que
tornavam as poesias brasileiras, na época, apenas um espelho da forma de
se fazer poesia do colonizador.
Apresentando como marca a paródia, Oswald de Andrade expressa a
história do Brasil na sua essência primitiva, ou seja, sem a interferência do
invasor, por intermédio do Manifesto Antropófago. Segundo Oswald de
Andrade, a poesia Pau Brasil é aquela capaz de fazer com que o brasileiro
adquira uma dupla forma de interpretar o mundo. O projeto da Poesia Pau
Brasil causou espanto aos críticos da época, recebendo assim avaliações
negativas. Contudo, havia também seus admiradores. Para concluir, embora
o projeto da Poesia do Pau Brasil tenha recebido críticas negativas, é
inegável que era uma inovação completamente autêntica e puramente
brasileira.

- 174 -
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto
Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação e
crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3 ed. Petrópolis: Vozes;
Brasília: INL, 1976.

ANDRADE, Mário de. "Oswald de Andrade: Pau Brasil”. Sans Pareil; Paris,
1925.

BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária no


colégio de França. 14 ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

BOAVENTURA, Maria Eugenia. O Salão e a Selva: uma biografia ilustrada de


Oswald de Andrade. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.

BOAVENTURA, Maria Eugênia. Projeto Pau-Brasil: Nacionalismo e


Inventividade. Revista Remate de Males [online], São Paulo, nº 6, p. 45-53,
1986. Disponível na internet: http://www. unicamp.
br/~boaventu/page13d. htm Acesso em 26 de junho de 2016.

ALMEIDA Maria Cândida Ferreira “Só a antropofagia nos une”. In MATO,


Daniel. Cultura, política y sociedad Perspectivas latinoamericanas. CLACSO,
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos
Aires/Argentina, 2005. p. 83-106. Disponível em biblioteca. clacso. edu.
ar/ar/libros/grupos/mato/FerreiradeAlmeida. rtf. Acesso em 10 de junho de
2016.

QUEIROZ, Aurismar. Oswald de Andrade e a Poesia Pau Brasil. In: Gazetando.


Informativo da Educação 2012. Disponível em http://www. gazetando. com.
br/2012/10/oswald-de-andrade-e-poesia-pau-brasil. html. Acesso em 07 de
julho de 2016.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. 7ed. São Paulo:
Editora Ática, 2003.

- 175 -
SANTINI, Juliana. A Poiesis Pictórica de Pau-Brasil: Tradição, Ruptura e
Identidade em Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. ÍCONE – Revista de
Letras, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 105-122, jul. 2008.

SANTOS, LAO. O percurso da indianidade na literatura brasileira: matizes da


figuração [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica,
2009. Disponível em http://www. culturaacademica. com.
br/_img/arquivos/%7BDD183832-0D1B-44A8-BBBF-
5141C0458016%7D_Percurso_da_indianidade_na_literatura_brasileira_V2
-BxRes. pdf. Acesso em 01 de julho de 2016.

- 176 -
Cores do Brasil: Uma análise da “Chrônica Geral e Minuciosa
do Império do Brasil”

Chuana Di Franco Moura


Elaine Vieira de Abreu
Ninive Lopes
Matheus Gomes Alves18

INTRODUÇÃO
Os europeus chegaram às Américas tomados pelo imaginário
medieval que circundava as terras desconhecidas além do oceano que hoje
conhecemos como Atlântico. Os portugueses, em especial, por terem sido
os pioneiros na expansão ultramarina, já possuíam grande experiência em
deslocar-se para terras longínquas e colonizarem outros povos, como
aconteceu com suas colônias na Ásia, como na Índia e até mesmo em Macau.
As especiarias, ou produtos exóticos na Europa já eram comercializadas no
Mediterrâneo desde o século XIV, e naturalmente eram uma grande fonte
de lucro para os lusitanos, movimentando um mercado altamente rentável.
Cristóvão Colombo, em 1492, foi o primeiro a desbravar as terras das
Américas, tendo sua conquista despertado o interesse das demais nações
nessas terras. Impulsionados pelo desejo de ampliar seu comércio, os
portugueses lançaram-se ao mar até que aqui desembarcaram em 1500.
Ao chegarem aqui, depararam-se com uma bela paisagem, um
verdadeiro paraíso terrestre como se acreditava há séculos. Depararam-se,
inclusive, com nativos cuja aparência e cujos costumes e cultura distinguiam-
se das suas. Os índios, termo genérico a que se referiram os europeus por
julgarem estar em um território que fazia parte das Índias, possuíam a pele

18
Acadêmicos do Curso Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Este trabalho foi apresentado como avaliação final da disciplina Fundamentos
da Cultura Literária Brasileira – FUNDBRAS, ministrada no primeiro semestre de 2016, na
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ.

- 177 -
bronzeada, os cabelos negros e lisos, o corpo pintado de uma pigmentação
desconhecida chamada urucum e eram ornamentados por penas, brincos
feitos de madeira, entre outras ornamentações feitas de ossos de animais
que lhe alargavam suas orelhas, seus lábios e suas narinas. Os viajantes
estrangeiros encararam com estranheza e até mesmo medo tais
características, principalmente o fato dos indígenas, andarem nus,
contrariando completamente as crenças cristãs de que se deve guardar o
corpo e manter o pudor. Como uma forma de agradar o indígena e a
princípio fazer um contato amistoso, o europeu trocou objetos como
espelhos, bijuterias e outras quinquilharias, enquanto os indígenas davam a
eles, especiarias, o que era muito mais benéfico para o viajante estrangeiro
que para o indígena. O europeu, pelo fato de generalizar o indígena,
considerando- o apenas como selvagem e bugre, ignorou o fato de estarem
classificando os nativos em apenas um grupo genérico, quando na realidade
eles pertenciam a vários grupos, ou tribos, com costumes, cultura,
organização social e línguas diferentes. Observando tamanha diversidade
cultural, os europeus enxergaram uma oportunidade de segregar esses
grupos étnicos que aqui existiam, a fim de causar conflitos entre eles e se
beneficiarem econômica e politicamente. Posteriormente, um trabalho
minucioso e completo sobre a cultura e língua indígena, foi feito pelos
irmãos Villa-Lobos em outro período da história brasileira.
Há trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha que evidenciam o
primeiro contato do europeu com o indígena, as primeiras impressões do
colonizador acerca do nativo, assim como um parecer sobre as belezas
naturais da terra recém conquistada :

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas


vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas.
Vinham todos rijamente em direção ao batel. E
Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos.
E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala

- 178 -
nem entendimento que aproveitasse, por o mar
quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um
barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava
na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe
arremessou um sombreiro de penas de ave,
compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e
pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal
grande de continhas brancas, miúdas que querem
parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão
manda a Vossa Alteza [...]. A feição deles é serem
pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e
bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura
alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de
encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara.
Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam
o beiço de baixo furado e metido nele um osso
verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e
da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta
como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do
beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes
é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali
encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe
estorvo no falar, nem no comer e beber. Os cabelos
deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia
alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza,
rapados todavia por cima das orelhas. E um deles
trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte
detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave
amarela, que seria do comprimento de um coto, mui
basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as
orelhas [...] Mostraram-lhes um papagaio pardo que o

- 179 -
Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e
acenaram para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo
dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe
pegaram, mas como espantados [...] Esta terra,
Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o
sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem,
de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha
que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de
costa. Traz ao longo do mar em algumas partes
grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas;
e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes
arvoredos. De ponta a ponta é toda praia...muito chã
e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do
mar, muito grande; porque a estender olhos, não
podíamos ver senão terra e arvoredos -- terra que nos
parecia muito extensa. [...] (CARTA DE PERO VAZ DE
CAMINHA. [1500] Disponível em objdigital. bn.
br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta. pdf).

Passado o momento do primeiro contato entre europeus e indígenas,


o colonizador quis diminuir as diferenças culturais e religiosas existentes,
lançando mão de medidas como a criação da Companhia de Jesus para
catequizar e assimilar culturalmente o indígena, com o intuito de coibir
revoltas por parte dos nativos devido a tais diferenças culturais e religiosas.
O fato de os indígenas crerem em um deus maior, Tupã, e em divindades
menores e na força ancestral da natureza, incomodou o europeu que estava
habituado há séculos a impor sua crença através de violência ou da
catequese. Dessa maneira, os jesuítas desembarcaram no Brasil, destacando
a figura do Padre José de Anchieta, que catequizavam os indígenas, dando-

- 180 -
lhes lições sobre a Bíblia Sagrada, além de moldar o seu comportamento
segundo os modos civilizados europeus. Isso significava que práticas pagãs,
relacionamentos poligâmicos e antropofagia, para certas tribos, não eram
permitidos. Tendo enxergado nas riquezas da terra uma fonte inesgotável e
inestimável de lucro, os europeus tentaram escravizar os indígenas,
forçando-os a trabalhar como mão-de-obra na extração do pau-brasil e nas
plantações de cana-de-açúcar. Entretanto, o indígena apesar de ter
trabalhado a serviço do colonizador, não pôde ser catequizado, tanto que
foi substituído pela mão-de-obra de escravos africanos.
A Cultura Indígena foi sobrepujada há séculos pelos europeus em seu
próprio país de origem. No entanto, sua riqueza mitológica e literária
influenciou e permanece influenciando os costumes dos brasileiros sejam
eles descendentes diretos de indígenas ou não. Autores brasileiros
inspiraram-se na mitologia indígena para, através da Literatura, criar uma
identidade nacional brasileira para um país que estava na transição de
colônia para Império e necessitava de afirmação. José de Alencar na primeira
fase do Romantismo brasileiro foi um autor que exaltou com maestria a
cultura indígena e, mediante a ela, a formação da identidade nacional. Como
exemplos, podemos citar trechos de dois de seus romances de sua fase
indigenista mais célebre: Iracema e O Guarani:

[...] Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio, buscou a


margem do rio, onde crescia o coqueiro.
Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas
entranhas; porém logo o choro infantil inundou sua alma
de júbilo.
A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro
filho nos braços e com ele arrojou-se às águas límpidas do
rio. Depois suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos então
o envolviam de tristeza e amor.
- Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.

- 181 -
Arará, pousada no olho do coqueiro, repetiu Moacir; e
desde então a ave amiga unia em seu canto ao nome da
mãe, o nome do filho. [...]” ( ALENCAR, 2000, p. 253 - 254).

Neste trecho da obra, é nítida a alusão que o autor faz ao sofrimento


da índia durante o parto, simbolizando o nascimento do povo brasileiro, e
consequentemente, da identidade nacional. Iracema sofre porque fora
deixada em sua terra com o filho de um homem branco no ventre durante
uma guerra, criança esta que é mestiça, fruto de um relacionamento
ilegítimo perante as leis cristãs, assim como o surgimento desta nova pátria.
A natureza possui função de personagem, sentindo as dores da índia, no
caso da palmeira, que cede à dor, como Iracema. A ave nativa grita o nome
da criança, reafirmando o nascimento do primeiro brasileiro fruto do
relacionamento de uma nativa com um português, nome este indígena.
O Epílogo de O Guarani igualmente evidencia por meio de uma
metáfora, a formação da identidade brasileira:

Então se passou sobre esse vasto deserto de água e céu


uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um
espetáculo grandioso, uma sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se
entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água,
e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira
nos seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.
Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se,
inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo
vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava
ao lugar que a natureza lhe havia marcado.
Luta terrível, espantosa, louca, desvairada: luta da vida
contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da
força contra a imobilidade.

- 182 -
Houve um momento de repouso em que o homem,
concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo
contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o
corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível:
Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das
águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra
já minada profundamente pela torrente.
A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente,
resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou
alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações
aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase
inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um
acento de ventura suprema:
— Tu viverás!...
Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela,
ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser
o gozo da vida eterna.
— Sim?...murmurou ela: viveremos!...lá no céu, no seio de
Deus, junto daqueles que amamos!...
O anjo espanejava-se para remontar ao berço.
— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora
no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá,
Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...!
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida
reclinou a loura fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores
e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas
purpúreas de um beijo soltando o vôo.
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...

- 183 -
E sumiu-se no horizonte [...] ( ALENCAR, 1998, p. 37)

Nesta cena final do romance em que a residência de D. Antônio de


Mariz é incendiada durante a guerra contra os aimorés em que todos
falecem e restam apenas o índio Peri e a moça branca Ceci. Peri ao perceber
que seu objeto de devoção corria perigo com a cheia do rio, sobe até o topo
de uma árvore onde os dois se abrigam. A devoção que Peri tem a Ceci, como
se ela fosse uma espécie de anjo ou santa, denota a submissão do índio ao
branco socialmente. A árvore traz consigo um simbolismo bíblico como a
árvore do conhecimento do bem e do mal que havia no Jardim do Éden. Peri
e Ceci são os únicos representantes humanos sob a Terra, responsáveis por
darem início a criação de uma nação de povo miscigenado que buscava por
sua identidade, o povo brasileiro.
Em um período posterior da história da literatura brasileira, os
autores modernistas realizaram um resgate neste intuito de criar uma
identidade nacional. Entretanto, nesse momento a linguagem foi o principal
mecanismo de diferenciação entre a cultura brasileira e a portuguesa, já que
a gramática normativa importada de Portugal se distanciava dos falares
regionais brasileiros. Macunaíma, de Mário de Andrade, foi um romance
modernista repleto de referências folclóricas e culturais brasileiras e
adquiridas dos europeus e de outros povos que aqui estiveram que
revolucionou na arte do narrar por mesclar elementos de prosa e verso. O
trecho do romance que descreve melhor o herói como representante do
povo brasileiro, é a seguinte:

[...] Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha


de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho. Porém
no rio era impossível por causa das piranhas tão vorazes
que de quando em quando na luta pra pegar um naco de
irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água
metro e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem

- 184 -
no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que-
nem a marca dum pé-gigante. Abicaram. O herói depois de
muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se
lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele
buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em
que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada
brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco,
louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E
ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da
tribo retinta dos Tapanhumas.
Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do
pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja da
negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito
maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar
da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou:
Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume
foi-se e ante fanhoso que sem nariz.
Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara
toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um
bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a
palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho
da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos
pés dele são vermelhas por terem se limpado na água
santa. Macunaíma teve dó e consolou:
Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais
sofreu nosso tio Judas! [...] (ANDRADE,1998, p. 37,).

Macunaíma é um herói tipicamente brasileiro segundo os


estereótipos: indígena e preguiçoso. Neste trecho, ele toma banho no rio e
percebe que no fundo há uma placa em que há a marca de um pé gigante.
Ele se lava, e de negro, sai loiro, branco e de olhos azuis. Jinguê, seu

- 185 -
companheiro de tribo, foi lavar-se e por mais que esfregasse ficou cor de
bronze. Manaape, por sua vez, conseguiu apenas lavar os pés e as mãos que
ficaram brancos e o restante do corpo permaneceu negro.
As referências bíblicas têm como função ressaltar os valores cristãos
a que os europeus submeteram indígenas e negros a crerem e para
simbolizar que apesar de esta terra abrigar habitantes de diversos grupos
étnicos, somos todos filhos de Deus. A presença de um branco, um indígena
e um negro na narrativa, reforça a diversidade étnico-cultural brasileira, de
um povo miscigenado. A ironia de Mário de Andrade ao final do capítulo,
fica por conta das mãos vermelhas de Manaape, que é negro, denotando o
sangue derramado pelos escravos africanos e seu sofrimento, sendo
comparado a Judas, no fim.
Desde o princípio, o contato entre os nativos e os europeus foi
cercado de misticismo. Gradativamente, tornou-se mais complexo e
virulento a medida que os interesses econômicos e políticos se tornaram
prioridade para o colonizador. A dominação foi uma consequência e ainda
que o indígena tenha tido sua cultura sobrepujada e seu povo quase que
exterminado do território brasileiro, a literatura brasileira teve a função de
afirmar o seu valor e, com isso, sua resistência.

O PARAÍSO TERRESTRE E A TERRA BRASILIS


Desde o início da Expansão Ultramarina na Europa nos séculos XV e
XVI, muito se especulava acerca das terras de além mar. O imaginário
popular europeu, povoado de lendas e mitos envolvendo monstros
marinhos, sereias que enfeitiçavam os marinheiros abordo, além de
histórias trazidas por viajantes que narravam a presença de monstros
terríveis e selvagens no Novo Mundo, criava um clima quase que mitológico
aos europeus que desconheciam estas terras. De acordo com Lima (2011) :

Procurando alargar os estudos sobre as camadas sociais


desclassificadas no Brasil, Laura de Mello e Souza

- 186 -
pretendeu apresentar as múltiplas tradições culturais que
desaguavam no mundo da feitiçaria e religiosidade
popular na colônia portuguesa entre os séculos XVI e XVIII.
Para a realização de sua pesquisa, a autora sentiu a
necessidade de remontar ao século XVI, época em que
visões paradisíacas 8 e infernais se alternavam no
imaginário do europeu colonizador. Laura de Mello e
Souza lembra que em época em que o conhecimento do
mundo era apenas três continentes, três mares e doze
ventos, os conhecimentos de territórios como a Europa
setentrional e os oceanos Índico e Atlântico se misturavam
com o imaginário, ficcional e fantasioso. Neste momento a
autora reconhece a contribuição de Sergio Buarque de
Holanda em Visão do Paraíso, que demonstra o
deslocamento do mito do Paraíso terrestre vindo dos
confins da Ásia e África em direção ao Oceano Atlântico
(LIMA, 2011, p. 7- 8)

Os europeus aqui desembarcaram e depararam-se com um povo de


cultura e costumes completamente distintos dos seus. Os indígenas
andavam nus, pintavam seus corpos com urucum e ornavam-se com penas.
Acreditavam em diversos deuses, o que, aos olhos dos europeus cristãos,
era considerado paganismo, e, portanto, uma forma de pecado. O
casamento monogâmico e seguindo as leis cristãs dos europeus,
simplesmente não existia na cultura local, já que entre a cultura indígena era
comum homens e mulheres manterem relações com mais de um parceiro.
Para combater tais práticas ditas pecaminosas, a Companhia de Jesus foi
fundada.
O primeiro documento que registra a visão do europeu ao chegar em
terras brasileiras, é a carta de Pero Vaz de Caminha. Nela, o viajante
descrevia a então descoberta Terra de Vera Cruz como um lugar de muita

- 187 -
beleza, abundância e riquezas naturais, repleto de referências de um
imaginário paradisíaco medieval que já habitava a mente do europeu há
séculos, mediante a existência do relato do Jardim das Delícias. Portanto, o
Brasil perante os olhos do colonizador se tornou uma terra de onde
poderiam retirar muito lucro. Segundo Marília Lucília Barbosa Seixas ( 2003):

A carta de Pêro Vaz de Caminha, que dava conta ao


rei D. Manuel do achamento de uma nova terra, à
qual deram o nome de Vera Cruz, transmite-nos a
primeira imagem de um território prodigiosamente
belo e com inúmeras promessas de riquezas. [...] Os
navegadores, missionários, colonos e viajantes lusos
foram, com certeza, os mais importantes retratistas
de um Brasil que se lhes manifestou desde o início
como uma terra verdadeiramente paradisíaca, pois
as realidades do Novo Mundo revelavam-se, a cada
momento, completamente preenchidas de todos os
símbolos paradisíacos, símbolos esses que eles tão
bem conheciam dos inúmeros relatos medievais que
descreviam o Jardim das Delícias, constituindo por
isso, aos seus olhos, um verdadeiro acervo de
prodígios e maravilhas. Este maravilhoso território
estava igualmente repleto de deslumbrantes
riquezas naturais, com uma variedade e abundância
inauditas que o mostraram desde o início
completamente auto-suficiente. Para além do mais,
a sua assombrosa fertilidade revelou-o, com o
decorrer dos anos, como extraordinariamente
propício à exploração e desenvolvimento de cada vez
mais novas fortunas (SEIXAS, 2003, p. 8).

- 188 -
Entretanto, a Carta de Pero Vaz de Caminha não foi o único
documento a retratar a Terra de Vera Cruz pelos olhos dos europeus recém-
chegados a nossas terras. Ao contrário do que se imagina, a literatura
Quinhentista é bastante rica e vasta e os autores de Quinhentos retrataram
as terras então descobertas cada um de uma maneira inteiramente peculiar,
visando cada qual um aspecto do olhar do colonizador sobre a terra
colonizada. Como exemplos de autores quinhentistas, podemos citar padre
Manuel da Nóbrega com as Cartas Jesuíticas I – Cartas do Brasil, que além
de tratar das missões jesuíticas no Brasil, alude às riquezas da terra; Cartas
Jesuíticas III – Cartas, Informações, Fragmentos Históricos, do padre José de
Anchieta, o religioso transmite a mensagem de que o território é muitíssimo
belo e de que “todo Brasil é um jardim”, na História da Província de Santa
Cruz, de Pêro de Magalhães de Gândavo, exalta a riqueza do território e sua
fertilidade, sendo um hino de louvor à Terra Brasilis; Tratados da Terra e
Gente do Brasil, do padre Fernão Cardim, é um relato da experiência
brasileira, um tratado sobre a diversidade geográfica do país; Notícia do
Brasil, de Gabriel Soares de Souza, escrito durante o período em que
desempenhava a função de senhor de engenho, relata o que acorria à sua
volta no novo país; por fim há o Coisas Notáveis do Brasil, do padre Francisco
Soares, texto longo dividido em duas partes, uma histórica, em que descreve
a história administrativa e religiosa do Brasil, além da atividade urbana da
colônia e as guerras entre colonos e índios. A segunda parte é um relato
minucioso da fauna e flora brasileiras, descritas como riquíssimas e exóticas.
O trabalho de Francisco de Soares foi fruto de extensa pesquisa e itinerância
pelo território brasileiro.
A presença da Companhia de Jesus, liderada pelos padres jesuítas,
cujo objetivo era catequizar os indígenas, foi relatada em documentos
históricos, a citar a “Chronica geral e minuciosa do Império do Brasil”, de
Alexandre Mello Moraes. A seguir serão dados alguns exemplos de
fragmentos de cartas relatando a permanência dos jesuítas em território
brasileiro assim como sua ação entre os nativos:

- 189 -
E' prohibido aos Jesuitas penetrarem. o interior do
Brazil sem licença do Goyernadór Geral 155-1 o
motivo do conteúdo deste alvara. deprohibição não
o pouele descobrir El-rei em data de 21 de Julho de
1554, escreve a D. Duarte da Costa, qne não consinta
que os jesuitas entrem pela terra dentro sem sua
licença, e isto depois de bem informado do lugar,
para onde pretendessem ir, e lhe pareça que não
correrão risco e nem as pessoas que com elles forem
(MORAES, 1879, p. 60).

No trecho acima, o autor nos mostra a proibição dos jesuítas de


penetrarem o interior do Brasil sem a licença do Governador Geral, sendo
necessário informar o lugar para onde pretendessem ir. Há, também:

Aldeias dos índios que jesuítas converterão em


povoações
O padre provincial Luiz da Gran mandando os padres
pregar o Evangelho aos índios conseguirão fundar as
seguintes povoações: 1- A da Ilha de Itaparica, 5
leguas distante da cidade com a invocação de Santa
Cruz em Junho de 1551, e ao sul da ilha, com casas e
igreja, ficando nella o padre. Antonio Peres e o irmão
Manoel de Andrade. E' hoje a fi'eguezia da Vera Cruz.
2- Povoação de Tatuape,-a, com a Invocação de
Jesus, com casas e igreja, ficando nella o padre
Antonio Rodrigues e o irmão Paulo Rodrigues. 3-
Povoação de S. Pedro, sendo a mais populosa, por
terem concorrido para as aldêas de Cabogy. A 32
leguas para o interior a Povoaçâo de Sancto Andre,

- 190 -
com igreja e casas,os índios estava em guerra com os
das aldeúas de Itapictui. Voltando o padre Luiz da
Gran para o sul da Bahia em acamalá hoje Caman-ú
e fundou : Povoação de N. S. da Assumpção.
Povoação de Tapel-aguá, junto ao rio Tinharé, com a
invocação de S. Miguel, aggregando-lhe os inclios
das aldêasvisinhas. Havião as aldêas de S. Paulo,
Santiago, Santo Antonio, e !lo do Espirito Santo.
queforão convertidas em povoações regulares com
casas e igreja. O padre Luiz de Granbaptisou nessas
povoações e aldêas em 1562 para mais de 5 mil
indigenas. Passando·se neste anno á Pernambuco
fundou a ígleja de N. S. da Joaça de pedra e cal
(MORAES, 1879, p. 60)

Este relato descreve como a catequese e conversão dos índios foi um


mecanismo de povoamento do território brasileiro, já que por onde
passavam, os jesuítas construíam moradas e igrejas para reafirmar o
controle da colônia de acordo com as leis cristãs.

Carta de el-rei ao governador D. Duarte da posto em


favor dos jesuítas 1554. Os jesuítas do Brazil
queixando-se a el-rei de não serem pagos, Sua Alteza
em carta de 21 de Novembro de 1554 determina ao
governador D. Duarte da Costa que não só favoreça
aos padres, como lhes pague o que Sua Alteza
ordenou que se lhe désse, para que eles edifiquem
um collegio igual ao de Santo Antão, e que de tudo
lhe dê parte (M. ined). (MORAES, 1879, p. 64).

- 191 -
Nesta carta, do rei ao governador D. Duarte, ele comunica à
autoridade a queixa dos jesuítas por não estarem sendo pagos pelo serviço
de catequese prestado à corte. O rei exige que a quantia prometida seja paga
e que seja construído um colégio que os missionários farão de morada.

Esmola aos Jesuitas 1564


Pelo Alvará de 11 de Março de 1564 manda el·rei dar
por esmola aos Jesuitas, a importância arrecadada
da venda da Fazenda tomada a Miguel Gomes
Branco, como devedor a Fazenda real, na Bahia; cujo
dinheiro, se entregaria aos Padres para o seu
mantimento (Ms. Ined).”
Os jesuítas têm seu pagamento por direito, mediante
uma quantia arrecadada na Fazenda tomada a
Miguel Gomes Branco, como devedor a Fazenda real,
na Bahia.
Morre em Roma o Padre Diogo Lainez Geral da
Companhia de Jesus 1564
Em Fevereiro de 1564 falleceu em Roma o Padre
Diogo Lainez Geral da companhia de Jesus. Neste
mesmo anuo se edificou a Igreja e casa dos Padres
da companhia na villa e capitania de ilheos, que os
moradores desde 1553 tinhão pedido o Padre
Nobrega, sendo o primeiro Jesuita quo ai residio o
Padre Balthazar Alvares (MORAES,1879, p. 861,)

Esta é uma nota de falecimento em Roma do Padre Diogo Lainez


Geral, o primeiro jesuíta a estabelecer-se em terras brasileiras na capitania
de Ilhéus.

- 192 -
E' eleito Geral perpetuo pela ordem Jesuitica e o
Santo Padre Francisco de Sarja 1565
Neste anno de 1565 foi eleito em Roma, em
congregação, o Santo Padre Francisco de Borja, Geral
perpetuo da ordem Jesuitica; e e,m seguida
elleelegeo visitador geraldaprovinciadoBrazil, em
seu nome ao Padre 19nacio de Azevedo, sendo este
o primeiro que teve a provincia do Brazil, o qual
chegou, neste cargo á Bahia no dia 22 de Agosto de
1566. - Na Bahia achou o col1egio da cidade com 30
religiosos e uma classe de ler, escrever e doutrina
christã para os meninos; 2 classes de latim e uma de
casos: tinha annexas 5 Aldeias. e em cada uma del1as
um Padre e um irmão, Em !Pernambuco residião 2
Padres: na Villa de Ilheos 3 Padres: na de Porto
Seguro 2 Padres: no Espirita Santo 4 Padres, ;com
chsse de ler, escrever e de doutrina christã para os
meninos e 2 Aldeias : em S. Vicente 12 Padres e 2
classes: uma de ler, escrever e doutrina christã para
os meninos, e outra de latim: em t'iratininga 6 Padres
com algumas Aldeias. Na guerra do Rio de Janeiro
estavão 2 Padres. Era neste tempo Reitor o Padre
Gregorio Seltão, e tinha todo o poder e
administração. O Padre Ignacio de Azevedo, repartia
os officios dando o governo do collegio ao ministro e
em segundo lagar ao coadjutor para as cousas
miúdas (MORAES 1879, p. 86).

Esta é uma nota da eleição do Padre de Sarja como uma espécie de


líder da ordem jesuítica. O documento fornece dados de com quantos outros

- 193 -
religiosos ele esteve nas outras capitanias além das guerras entre
portugueses e índios em que esteve presente e ainda os cargos que ocupou:

Fundação do collcgio dos Jesuitas


O padre Ignacio de Azevedo, irmão d9 D. Jeronymo
de Azevedo, que havia sido nomeado em Roma por
S. Francisco'de Borja, visitador geral, tiriha vindo da
Bahia com o governador Mem de á, e finda a guerra
contra os francezes, partio para S. Vicente com o
bispo D. Pedro Leitão, e depois de visitar as casas
dalli e as aldêas, tratarão do fundação do collegio do
Rio de Janeiro, como desejava el-rei D. Sebastião, e
sahindo de S. Vicente no mez de Julho de 1567, em
companhia do mesmo bispo Leitão, do padre
provincial Emanoel da Nobrega e José de Anchieta,
chegárão ao Rio de Janeiro achando Mem de Sá
occupado na edificação da cidade, e no coração
della, e face da rua, deu sitio para um collegio, e logo
em nome de el··rei D. Sebastião lhe applicou dote
para 50 religiosos, que o padre Ignacio de Azevedo
aceitou e agradeceu em nome da communidade. A
escriptura authentica da doação e dote foi passada
em Lisboa, firmada pela mão real no dia 6 de
Fevereiro de 1568, cuja cópia manuscripta eu a
possuo. O padre Ignacio de Azevedo, deixou o padre
Nobrega encarregado de tudo, e ao padre Anchieta
para o ajudar, e se embarcou para a Bahia, onde
chegou no dia 8 de Março ele 1568 e dahi se
embarcando para Lisboa, alli chegou no mesmo
anno, e no de 1569 partio para Roma, afim de
informar ao geral S. Francisco de Borja do estado da

- 194 -
ordem no Brazil. , Ficárão fundando a igreja e
collegio do Rio de Janeiro os padres Nobrega,
Anchieta, Laiz da Gran, Antonio Rodrigues, Balthasar
Fernandes e Antonio da Rocha, os quaes em pouco
tempo concluirão as obras. A primitiva cidade de S.
Sebastião fundada por Mem de Sá, foi no Morro de
S. Sebastião no do Castello, com as ruas e largos que
ainda existem, e como o commercio queria estar
mais em contacto com o movimento maritimo, forão
os moradores edificando casas na varsea, e
infileirando-as de um e outro laclo, e assim formando
as ruas. Entre os monos de S. Sebastião, hoje do
Castello, do Carmo, hoje de Santo Antonio, de
Manoel de Brito, hoje de S. Bento, da Conceição do
Livramento, de Paulo Caeiro, hoje da Formiga, o de
Santa Thereza, hoje do Pinto, de S. Diogo, antes da
Pina morro da Lagoinha, hoje Paula Mattos, de Pedro
Dias, hoje do Senado, o do Desterro ,hoje de Santa
Thereza,era uma vasta planície paludosa composta
de lagôas, charcos e mangues. Foi do anno de 1636
que alinharão das ruas de que se compõe a cidade
velha, da Valla para baixo. A povoação da cidade de
S. Sebastião do Rio de Janeiro desde 1568 até 1808
épocha da chegada da corte portugueza para ella,
era muito limitada. Entre as ruas, travessas e beccos,
quasi todas com grandes intervallos, erão
conhecidas com os nomes que adiante passo a
nomear.
No archivo do thesouro nacional existem dous livros,
que servirão para o lançamento e cobrança da der.
ima urbana dos predios das ruas das freguezias de S.

- 195 -
José, Só, Engenho-Velho, Santa Rita e Candelaria a
cargo dos superíntendentes Luiz Joaquim DuC). ue-
Estrada Furtado de Mendonça e José da. ilva
Loureiro, cujo lançamento dos predios foi mandado
fazer na cidade do Rio de Janeiro, pelo alvará de 27
de Junho de lOS, delles copiei a relação das casas
com toda a fidelidade, sendo ajudado neste trabalho
pelo intelligentearclúvista do mesmo thesouro
nacional José Antonio Corrêa de Araujo. A este
trabalho acrescentei algumas particularidades que
mencionei a respeito das ruas do Rio de Janeiro no
tomo 50 da minha Geographia e Historiea. Este
cadastro que fiz, servirá de base no futuro, para se
avaliar o incremento da capita~ do imperio em
relação a época da chegada do principe regente, com
a familia real e corte portugueza ao Rio de Janeiro,
no dia 7 de Março de 1808 (MORAES,1879, p. 90).

Este documento é um relato da fundação da cidade do Rio de Janeiro


por Mem de Sá, cidade esta fundada entre os morros do Castelo e de São
Sebastião. A cidade foi criada para ser o sítio dos jesuítas, o local onde fariam
sua morada e progrediriam não apenas com o seu trabalho de catequese e
conversão dos indígenas, mas também com seu trabalho político e
administrativo da colônia, além de documentação da terra recém
descoberta para as autoridades portuguesas. A carta relata as doações que
foram feitas para que a cidade fosse estabelecida e assim reconhecida
burocraticamente pela coroa portuguesa, além de citar as autoridades
envolvidas em tal processo. As ruas e locais de importância turística e
histórica assim como suas mudanças ao longo do tempo são citados.
A visão de Paraíso Terrestre do Brasil pelos europeus evoluiu a
medida em que eles aqui se estabeleciam e através de suas cartas e relatos,

- 196 -
ampliavam sua percepção de realidade acerca da Terra de Vera Cruz. A
princípio, havia, como já foi citado anteriormente, toda uma crença
mitológica de que existia nas terras de além-mar, ilhas paradisíacas repletas
de verde e árvores frondosas de onde poderiam ser colhidos frutos
saborosos, crenças estas presentes em várias fontes, como a Bíblia cristã,
lendas medievais, escritos da Antiguidade Clássica entre outros. Aqui os
viajantes de fato encontraram uma natureza exuberante e até mesmo
exótica aos seus olhos habituados as calmas pradarias, conquanto se
depararam inclusive com as diferenças culturais dos nativos e tiveram de
lidar tomando medidas cabíveis ou não em relação aos desafios e
dificuldades que tamanha diversidade lhes traria a curto e longo prazo. Em
um segundo momento, o colonizador enxergou nestas terras recém-
descobertas uma fonte de riquezas e de conhecimento a ser adquirido, daí
a necessidade de serem elaborados tantos escritos em relação a fauna local,
a vegetação, a geografia, as línguas e costumes dos nativos, além de,
paradoxalmente, o colonizador estudar formas de catequizar o indígena,
obrigando-o a viver sob as leis cristãs, assimilando-o e aculturando-o de
forma velada, porém igualmente agressiva. No estágio final, o colonizador
vislumbra o lucro que a riqueza natural poderia gerar, iniciando dessa
maneira uma colonização extrativista, que se inicia com o cultivo e extração
do pau-brasil, em seguida a da cana-de-açúcar e em um período posterior
da história brasileira, a extração cafeeira, já durante o período imperial e sob
um regime escravocrata, não sendo mais o indígena a mão-de-obra a ser
utilizada.

Na primeira unidade, Do Paraíso Terreal ao Paraíso


Quinhentista, acompanhamos a evolução da crença
do homem ocidental acerca da existência e
localização de um Paraíso Terrestre. Visamos
essencialmente demonstrar que os nautas,
missionários, colonos e viajantes lusos, fizeram no

- 197 -
Brasil o reconhecimento de uma paisagem já
conhecida através das inúmeras descrições
medievais, que tratavam dos cenários do sonhado
Jardim das Delícias. Ao reencontrarem notas
edénicas, julgaram mesmo ver concretizado no Brasil
o mito da Idade de Ouro: serão estas as 18 A
NATUREZA BRASILEIRA primeiras riquezas
entrevistas nesta nova Terra. Foi esta a primeira
imagem do Brasil. A segunda unidade, intitulada Das
Grandezas Naturais do Brasil, tem por fim anotar e
descrever as principais características de uma
natureza extraordinariamente dadivosa,
constatando a existência no Brasil de uma natureza
abundante, generosa e belíssima, recriando-se assim
a imagem de uma terra verdadeiramente
paradisíaca, que proporcionava sem trabalho a
subsistência e alegria daqueles que a habitavam [...]
A terceira unidade, à qual demos o título Das
Grandezas e Riquezas do Brasil, procura
precisamente identificar as «novas fortunas»,
analisando o papel que os produtos que se
revelaram economicamente mais rentáveis
desempenharam na economia Maria Lucília Barbosa
Seixas 19 do reino, tanto na época em análise, como
em épocas posteriores. Embora sendo também
grandezas naturais, estes produtos proporcionaram
maiores rendimentos económicos do que as riquezas
analisadas na segunda unidade. Estas grandezas e
riquezas eram não só aquelas que os europeus
encontraram como naturais do Brasil, mas
igualmente as que para lá transplantadas produziam

- 198 -
mais do que nos seus locais de origem (MORAES,
1879, p. 90 ).

Para que se chegasse a um conceito do que é de fato essa visão do


paraíso, por vários estágios as teorias que supunham o que era o paraíso
terrestre passaram. Desde o momento em que a existência dessas terras
paradisíacas apenas existia no imaginário e na literatura do mundo ocidental
até então conhecido, evoluindo para a chegada dos europeus em nossas
terras e os relatos e documentações do novo espaço e povo conquistado até
finalmente o colonizador vislumbrar como uma forma de lucro as riquezas e
transformar as belas paisagens em um local de extração, houve uma
evolução no pensamento do colonizador. O colonizador deixou como legado
problemas sócio-político-econômicos que perduram até os dias de hoje pelo
fato de ter iniciado aqui uma colonização extrativista, que visava apenas
retirar os bens naturais e materiais daqui e transportá-los a Portugal a fim
de obter capital e manipular os nativos a fim de que esquecessem sua
cultura ou mesmo a considerassem negativa do ponto de vista cristão, a fim
de que perdessem sua identidade cultural. Entretanto, a miscigenação
resultante do choque cultural contribuiu para a formação étnico-cultural
deste país, cuja herança ancestral e adquirida pelos outros povos que aqui
passaram, contribuíram e corroboraram para a herança cultural imensurável
que possuímos e que do povo brasileiro jamais será roubada.
Assim, a Terra Brasilis fazia parte do que era considerado um Novo
Mundo, expressão que em um primeiro olhar, denota certa transparência,
uma vez que afirma um pedaço de terra novo e longínquo. Contudo,
analisando o termo de forma mais profunda, nota-se uma referência não
apenas locativa e terreal, mas uma alusão a um locus primordial, um espaço
disponível para se construir um mundo novo, evitando erros do passado. Na
Mitologia Cristã, o pecado primordial, o primeiro erro humano com
consequências drásticas, é retratado no episódio da queda de Adão e Eva do
Jardim do Éden. Como é de conhecimento geral, tal episódio foi acarretado

- 199 -
pela ação de Eva comer o fruto divino daquele Jardim, a maçã (do Latim,
malus). Esse mito denota um processo de expulsão de um local ameno, que,
no princípio, proporcionava a saciedade de todas as necessidades humanas,
causado por uma espécie de corrupção físico-moral.
Nesse contexto, a Terra Brasilis fora considerada durante um grande
tempo o Paraíso Terrestre e, consequentemente, um local de saciedade, de
excessos e riquezas, que poderiam saciar todas as necessidades de uma
Europa endividada com as constantes crises e com navegações infrutíferas.
Assim, embora o mito do paraíso terrestre tenha as suas origens ainda na
Idade Média, tal mito ganhou força novamente no século XVI entre diversos
pensadores, salvaguardando a concepção de que o Paraíso localizava-se no
Brasil. É importante considerar também que São Tomás de Aquino foi o
primeiro a desenvolver uma hipótese equatorial do mito, que afirmava a
existência do Paraíso abaixo do que atualmente se chama linha do equador.
Dessa forma, a terra brasilis fazia parte de um imaginário de regresso à Idade
de Ouro da humanidade, um local caracterizado pela sua abundância de
recursos. Como afirma Seixas (2003):

A sedução do tema paradisíaco influenciou os


portugueses e os outros povos cristãos de toda a
Europa, como vimos, durante a Idade Média, e
continuará a exercer a sua influência na era dos
grandes descobrimentos marítimos. Tal sedução
explica muitas das reacções a que deu lugar, entre os
lusos, o contacto de terras ignoradas do Ultramar. O
encontro de paisagens idílicas e populações simples
lembrava-lhes o Paraíso Terreal (SEIXAS, 2003,p. 38).

Logo, analisando o primeiro documento escrito que descreve a Terra


de Vera-Cruz, a carta de Pero Vaz de Caminha ao El-rei D. Manoel, nota-se a
existência de diversos elementos descritivos no escrito que parecem

- 200 -
estimular a interpretação de que o Paraíso Terrestre finalmente fora
redescoberto. Inicialmente, observa-se uma escolha vocabular rica em
adjetivos e outras expressões qualitativas, sendo uma característica
ordinária ao discurso descritivo. Todavia, em uma análise mais rigorosa,
observa-se que Caminha faz uma descrição que sugere quatro símbolos
ordinários ao imaginário do Jardim do Éden. O primeiro símbolo pode ser
constatado na imagem paradisíaca que Caminha veicula, chegando afirmar
que tudo que se plantava na terra haveria de se frutificar e, sugerindo que
seus habitantes alimentavam-se estritamente do que a natureza provia. No
excerto abaixo da carta, tais características apresentam-se claras:

Eles não lavram nem criam nem há aqui boi nem vaca
nem cabra nem ovelha nem galinha nem outra
nenhuma alimária que costumada seja ao viver dos
homens, nem comem senão desse inhame, que aqui
há muito, e dessa semente e frutos que a terra e as
árvores de si lançam; e com isto andam tais e tão
rijos e tão nédios que o não somos nós tanto com
quanto trigo e legumes comemos (CARTA DE PERO
VAZ DE CAMINHA[1500]).

Tal símbolo também fora utilizado nas interpretações anteriores do


Paraíso Terrestre, que consideravam sua localização em outro lugar. Essas
interpretações anteriores na maioria das vezes eram veiculadas por uma
visão de mundo cristã com influências das religiões pagãs.
O segundo símbolo seria a afirmação de uma terra com extensões
aquáticas infindas. Invoca-se tal princípio nessa análise, pois nas descrições
pretéritas do Paraíso Terrestre, constantemente era considerado seu locus,
um sítio insular rodeado por águas infindas. Essa grande importância dada a
existência de água em tal local conecta-se com a descrição originária do
Jardim do Éden, que postulava a existência de um rio principal que a todos

- 201 -
nutria e quatro outros rios derivados. Assim, a constatação da existência de
grandes extensões hídricas tanto fluviais quanto marítimas corroborou com
essa visão da Terra Brasilis como o Jardim do Éden.
O terceiro símbolo faz-se claro na afirmação de um local com um
clima fresco, de bons ares e temperado. Historicamente, na cultura
ocidental, a representação do anti-paraíso foi caracterizada pelo fogo e pelo
calor, sendo esses meios de sofrimento para a alma pecadora. Na Divina
Comédia, de Dante Alighieri, observa-se tal descrição, assim como na própria
Bíblia Sagrada. Dessa forma, o calor e o fogo seriam signos ligados ao
sofrimento e à penitência, enquanto o clima fresco, de bons ares e
temperado fariam referência ao oposto disso, ou seja, à felicidade e à
perfeição. Esse símbolo corrente em outros escritos de viajantes europeus
mostra justamente que o Novo Mundo e, especialmente, a Terra Brasilis
eram vistos como uma maneira de se retornar ao estado inicial de pureza.
O quarto símbolo aqui apresentado refere-se a apresentação de uma
terra colorida, marcada por uma fauna e flora riquíssimas. Inicialmente, a
característica de possuir várias cores já é um signo importante. É ordinário
àquilo com muitas cores a figuração de uma singularidade, uma univocidade.
É conferido, então, um caráter singular a Terra Brasilis, com a mesma
característica dada ao Paraíso. Em um segundo aspecto, o colorido também
se diferencia do monotonal, característica de locais baixos e comuns à
Mitologia Cristã, nesse caso, ao Inferno. Contudo, no que concerne à fauna
e à flora do local, afirma-se que, por haver variadas vegetações e diferentes
tipos de animais, a abundância dos frutos e da beleza, além das relações de
poder assimétricas entre o homem e o animal, fazem grande referência à
imagem do Paraíso.

BRASIL DAS PAISAGENS


O documento a ser analisado, da autoria do Dr. Alexandre de Mello
e Moraes, então ministro do Império do Brasil, é um relato epistolar de
cunho obviamente histórico, literário pela sua forma e também político.

- 202 -
Mello de Moraes inicia seus escritos, relatando os problemas da colônia,
queixando-se da ausência de uma organização política eficiente e de
autoridades que detivessem conhecimento e poder suficientes para
administrar uma colônia de tamanha importância e extensão. Neste trecho,
o ministro expressa seu descontentamento para com a deficiência dos
serviços no Brasil :

[...] Quando a posteridade ambiciosa de noticias do


passado historico do Brazil, perlustrar os meus
escriptos, e lêr os meus queixumes, pelos desfavores
que experimentei da parte governo brazileiro dirá,
como disse o Grande Padre Vieira, que o Flrazil no
seu tempo vivia enfermo, porque os que o
govel'l1avão Yivião da mentira, porque mentem ás
línguas, á imaginação, aos puvidos, aos olhos,
porque tudo mentem, e todos mentem. Um paiz
fundado na mentira e na falsa política, filhas das duas
Escholas de direito, que desgraçadamente se
estabelecerão em Olinda e S. Paulo, o estado a que o
tem reduzido é o da chican::l judiciaria; e por isso,
quem quizer furtar authorisado no Brazil, não
necessita pegar no revolver, porque correrá risco de
vida, entre na justiça, que ficará c m o alheio sem
difliculdade. Disse o Padre C.
Vieira, fallando das injustiças do seu tempo no Brazil,
que sem justiça não ha reino, nem provincia, nem
cidade, nem ainda companhia de ladrões, que possa
conservar-se. Os que tem governado o Brazil, cuidio
da politica, e esta é tão tacanha e miseravel que s6
se empenhão por eleições, emquanto que deixam o
paiz sem industria, sem agricultura, sem commercio,

- 203 -
sem navegação nacional e sem nada (1), e apenas
com um pessoal enorme de juizes e empregados
publicos, que absorvendo toda a seiva do Estado,
nada possuimos que preste, porque tudo nos vem do
estrangeiro (MORAES, 1879, p 9-10).

Mello de Moraes também cita o fato de o povo brasileiro


desconhecer sua história anterior à chegada dos portugueses, suas origens.
Segundo ele, isso se deve ao fato de não haver registros ou relatos que
documentem a história do povo que ali vivia antes da chegada dos europeus,
assim como sua cultura e costumes, principalmente, por falta de
investimento da metrópole em expedições e estudos sobre o assunto. Essa
tarefa de documentar os antecedentes da história da colonização do Brasil,
assim como o funcionamento político e econômico da colônia está a seu
cargo.

Ha caminho dc 32 annos que collecciono


documentos originales e copias autenticas, em
proveito da historia do Brazil, porque reconheci que
um povo que não sabe a sua origem, e nem o que
praticarão os seus maiores ignora tudo, não tem
passado, vive do presente; e por isso é, que os nossos
homens de Estado, conservão o paiz como elle se
acha, por que não o conhecem; porque não o
estudão; e porque não querem excavar, nem gastar
as sommasiguaes as que tenho despendido para o
estudar e conhecer. (MORAES, 1879, p. 11).

Ele inicia os relatos discorrendo sobre Cristóvão Colombo e sua


empreitada em desbravar as terras desconhecidas de além-mar. Colombo
vai à Gênova, a Lisboa e a Inglaterra oferecer-se a descobrir o Novo Mundo

- 204 -
à procura de patrocínio. Na Espanha, enfim adquire auxílio financeiro do rei
Fernando V e de sua mulher Isabel, juntamente com o apoio do Frei João
Pires. Desse modo, em 3 de agosto de 1492 deixa a Europa com três
caravelas, as famosas Santa Maria, Pinta e Nina e, em 11 de outubro de 1492
desembarca na Ilha de Guanahy, uma das Lucayas que batizou como S.
Salvador. Dentre os territórios descobertos por Colombo, estão a Ilha de
Cuba e São Domingos, o Haiti. O viajante em outra expedição às terras
desconhecidas ainda avistou a embocadura do rio de Orenoque, na Ilha de
Trindade em 1498 e, em uma quarta viagem, avistou a costa do continente
americano. Cristóvão Colombo não foi reconhecido pelos seus feitos, que
foram transferidos para Américo Vespúcio. Colombo falece pobre na prisão
e sem reconhecimento algum.
No caso do Brasil, Pedro Álvares Cabral deixa Portugal em 9 de março
de 1500 e desembarca em terras brasileiras em 21 de abril de 1500, nas
quais no dia 3 de maio plantou uma cruz e batizou como Terra de Vera Cruz.
El- Rei D. Manoel escreve aos reis católicos de Portugal para dar-lhes conta
das ocorrências na nova terra descoberta por Álvares Cabral, onde
encontraram gente nua, morena, ainda na primeira infância.

Em 9 de Julho de 1501 El-rei D. Manoel, de Portugal,


escreve aos reis catholicos dando·lhes conta de todo
o succ"dido na viagem de Pedro Alvares Cabral,
descobrindo a Terra da Santa Cruz. na qual achou
gente nua, como na primeira infancia. Pedro Alvares
Cabral chegou de volta da sua viagem li. Lisbôa no dia
31 de Julho deste mesmo anno de 1501
(MORAES,1879. p. 19).

Um relato interessante no documento descreve a primeira


exportação de pau-brasil do Brasil para Europa, onde o preço subiu e foi
imediatamente proibido seu comércio, monopolizando sua comercialização

- 205 -
para a fazenda real. A extração do pau-brasil valorizou as terras brasileiras
perante às demais nações europeias, o que resultou no desejo desses países
de se apossarem do território da colônia portuguesa.

O primeiro carregamento de Pao Brazil que saiu da


Bahia, para Lisboa, foi feito em dois navios em 1503,
o qual Pao sendo exposto ao mercado da europa deu
subiu preço,e por isso, motivou a prohibição
immediata do comercio delle, monopolisando-se a
sua venda para a fazenda real, mediante contracto
feito com especuladores, dos quaes exclusivamente
ficou pertencendo este commercio, foi a importâcia
que se de ao Pão Brazil foi o que acendeu a cubiça
das varias Nações da Europa em possuir o continente
Brazileiro ( MORAES, 1879, p. 21).

A Coroa portuguesa, temendo que os espanhóis estabelecidos no Rio


Prata, tivessem como meta tomar o território brasileiro, decidiu tomar
medidas militares que evitassem a invasão espanhola. Então, Portugal
monta uma armada e enviam Martim de Souza ao Brasil para tomar as
medidas necessárias e fundar uma colônia regular no Brasil. Martim confisca
três navios franceses na altura do Cabo de Santo Agostinho repletos de Pao
Brasil. Seguindo viagem para o sul, na Bahia, em São Vicente ele funda a
primeira colônia regular no Brasil, a de São Vicente.

El-rei D. João III temendo que os hespanhoes já


estabelecidos no Rio da Prata quizessem se estender
pelas terras do Brazil, preparou uma armada e a'
confiou a Martim Affonso de Souza para vir ao Brazil
tomar as providencias que julgasse necessários e
fundar uma colonia regular no sul do Brazil. [...]Neste

- 206 -
mesmo anno Martim Affonso de Souza, é mandado
ao Brazil, e na altura do cabo de Santo Agostinho
aprisionou tres navios francezes carregados de páo
Brazil (Ibipapitanga), e enviando o capitão João de
Souza, com dous delles á Lisboa, e seguindo viagem
para o sul entrou na Bahia de Todos os Santos, onde
se demorou alguns dias: e depois continuando a
'viagem, avistou no àia 1° de Janeiro de 1532 a
embocadura da enseada de Nicterohy, entre duas
montanhas que suppondo ser a de um Rio, o
denominou- Rio de Janeiro. Receioso de entrar pela
bocca do Rio de Janeiro, foi saltar na Praia Vermelha,
que ficou com o nome de Praia de Martim Affonso, e
não achando conveniente o lugar para fundar uma
colonia, seguio para o R. io da Prata, e de volta
entrando no dia 5 de Janeiro de 1532, dia de S,
Vicente, em uma Bahia, a denominou de S. Vicente,
onde fundou a primeira colonia regular portuguesa
(MORAES, 1879, p. 26).

Em 1536, Braz Cubas fundou o primeiro engenho de açúcar o qual


nomeou Iguàgussi, em Icrypatuba, na Capitania de São Vicente. À medida
que o engenho crescia e se desenvolvia, gerando lucro para seu proprietário,
o território foi povoado por marinheiros e viajantes que se estabeleciam no
local, expandindo o território da capitania.

Braz Cubas fundou o primeiro engenho de assucar


em ]536 chamado Inguagussi, em Icrypatuba, na
capitania de S. Vicente, cujas terras obteve do
capitão-mór Antonio de Oliveira; depois obteve as
terras do Oiteirinho de Santa Catharina, que se

- 207 -
achava coberto de mato virgem. A boa aucoragem
que offerecia o porto de Santos fez que elle
edificasse casa para tratamento dos marinheiros, e
como aqui já vivião dous lavradores Domingos Pires
e Pascoal Fernandes, forão afluindo outros
moradores e a povoação se estabeleceu e progredio
( MORAES, 1879, p. 28).

O território brasileiro durante o período colonial foi dividido em


capitanias hereditárias, regiões que eram legadas a famílias determinadas
pela Coroa portuguesa para administrar aquele território. Propriedades
eram construídas nesses locais, assim como fazendas de extração de cana-
de-açúcar, minas de ouro e diamantes, fazendas destinadas a criação de
gado, moendas de água entre outras atividades rurais e extrativistas
extremamente lucrativas.

D. João III dividio O vasto territorío do Brazil em


capitanias de cem legoas de costa; e as deu a
diversas pessoas para povoa-las, sendo a Martim
Afonso de Souza a de S. Vicente: a de Santo Amaro,
a Pero Lopes de Souza; a da Parahyba do Sul a Pero
de Góes; a do Espirito Santo,'a Vasco Fernandes
Coutinho: a de Porto Seguro, a Pero ou Pedro de
Campos Tourinho,. a de filheos a Jorge de Figueiredo
Corrêa; a da Bahia de Todos os Santos, a Francisco
Pereira Coutinho; a de Pernambuco, a Duarte Coelho
Pereira, da qual tomou posse em 2 de Junho de 1535;
e a do Maranhão, ao historiador João de Barros
(MORAES, 1879, p. 28).

- 208 -
Nota-se, numa análise mais genérica, que as informações veiculadas
nas crônicas são concatenadas por uma linguagem voltada ao mercado,
traduzindo uma visão igualmente mercantil do homem. A carga semântica
do relato é patente em seu frame, em que se observa repetidamente a
palavra “ordenado” e referências monetárias aos antigos salários, indicando
a importância do dinheiro para trazer colonos ao Novo Mundo em sua
primeira fase de colonização.
Faz-se, assim, patente, na obra, uma abordagem de um passado de
objetificação, de reificação do tipo humano. Tal visão historiográfica, se
contrastada com o projeto de estado do Império Brasileiro, parece propor a
existência de um passado português marcado pelo aproveitamento abusivo
das riquezas da terra brasilis e pela negação de sua autonomia, afirmando
um ponto de vista parcial do autor.
Também se pode afirmar que, numa apreciação igualmente geral, a
obra recebe como título a palavra “chronica”, originária do grego Χρόνος e
do latim chronus ,significando “tempo”. À frente disso, considera-se que a
crônica é um gênero textual voltado justamente à abordagem do cotidiano,
do simples e do efêmero. Muitos historiadores, sabendo de tais
características da crônica, consideram-na uma importante fonte histórica,
uma vez que relata a vida em sociedade em seus aspectos mais corriqueiros,
discriminando costumes e pensamentos em determinado tempo. Havendo
tal compreensão, Mello Moraes nomeia seus escritos como “chronicas”,
considerando que são afirmações hodiernas, contudo integralmente fiéis à
história da formação do Brasil.
Como já foi exposto anteriormente, Moraes faz uso de um discurso
parcial, forjado por relatos históricos igualmente parciais. Assim, em uma
análise sucinta do texto integral, não são todos os fatos da história do Brasil
que são descritos na obra e também não são todos os episódios que são
apresentados com a mesma importância. Observa-se que os episódios com
narrações mais longas fazem referência à Coroa Portuguesa ou aos atos por
ela veiculados na Terra Brasilis. Os acontecimentos efêmeros, quotidianos,

- 209 -
que se apresentam justamente como alvos de uma crônica, possuem pouca
descrição. Tal análise indica que Moraes, ao abordar o tema da formação do
Brasil, não possuía um interesse eminentemente científico, mas político.
É importante considerar que é considerada nesse presente artigo
uma visão de discurso de Foucault (1976). Assim, a fim de promover uma
compreensão clara da análise apresentada, a definição de discurso
considerada é a seguinte: “Discursos são práticas que sistematicamente
produzem os objetos sobre os quais falam”. Assim, à medida que Moraes
constrói seu discurso, é simultaneamente criada uma realidade, uma noção
de mundo. Nesse caso, uma noção de Brasil.
Frente a isso, ao abordar os feitos da Coroa Portuguesa e suas
características, observa-se na obra um uso excessivo de adjetivos, que, como
é notório, veiculam uma característica a um referente. Tais adjetivos
discriminam um projeto de construção de uma imagem do Império do Brasil
oposta à Coroa Portuguesa, proporcionando uma descrição maniqueísta.
Igualmente se constatam várias referências aos habitantes primitivos da
terra, com um uso majoritário de adjetivos de semântica bem marcada,
como o seguinte presente na página 30 da obra, “preço de resgate dos
pobres índios”. Esses adjetivos, em grande maioria, denotam uma noção de
pena, de pesar, afirmando que o “brasileiro original”, o “índio”, era
explorado pela Coroa Portuguesa. Portanto, é veiculado um discurso de que
o passado do Brasil era um jogo de interesses, em que a terra nunca era vista
como fim, mas como meio. Moraes transparece em seu trabalho que o
Império do Brasil é justamente o oposto disso, promovendo, assim, uma
preleção política marcada pela idealização da cor local, do “tipo brasileiro”.
Pode-se também afirmar que a descrição do passado do Império do
Brasil é marcada por factóides discretos e, em alguns casos, não dialéticos.
Embora uma parte considerável dos episódios tenha uma importância
considerável na história do Brasil, outros fatos apresentados são puramente
descritivos e não dialogam entre si, numa noção moderna de materialismo
histórico-dialético.

- 210 -
Além disso, ao nomear a sua obra de “Chronica Geral e Minuciosa do
Império do Brazil”, Moraes também formula um discurso, pois discrimina
uma prática, cujos efeitos semânticos são visíveis. Ao invés de nomeá-la
como “Chronica Geral e Minuciosa do Brazil”, o autor faz uso da expressão
“Império do Brazil” para designar todo o país. Essa expressão era corriqueira
na época e chegou a ser oficialmente considerada o nome do país. Contudo,
tal escolha vocabular formula um discurso de apagamento do passado e de
inexistência de um Brasil do passado. Em outras palavras, ela transmite a
semântica de que só haveria necessariamente um Brasil com o Império.
Novamente, observa-se o cunho político da obra.
Ademais, constata-se nessa obra um contraste bem claro na
descrição de uma intenção de povoamento e outra de exploração por parte
do colonizador. Tal contraste se apresenta explicitamente na análise desta
parte da obra:

Duarte Coelho Pereira em 26 de Abril de 1542


escrevendo a el-rei D. João III, lhe participa ter dado
ordem a se fazerem mais alguns engenhos de
assucar por haver em Pernambuco grande
quautidade de cannas plantadas, bem como pede a
el-rei permissão para haver escravos da Africa para a
lavoura de Pernambuco (MORAES, 1879, p. 32).

Esse trecho apresenta um quadro de aproveitamento das riquezas da


Terra Brasilis, discriminando uma visão ordinária a uma forma de
colonização de exploração. Também se observa uma concepção discreta de
território, enfatizada pela díspar nomeação do local de onde advém os
escravos como África e do local de trabalho como “a lavoura de
Pernambuco”, mas não no Brasil. Essa visão exploratória, contudo,
diferencia-se da visão apresentada depois, nas páginas 33-34:

- 211 -
Duarte Coelho Pereira em 20 de Dezembro de 1546
escrevendo a el-rei D. João III, não s6 ractifica o que
lhe commumnicou em outras cartas, como lhe
lembra as providencias que se devem tomar em
provoito da Nova Luzitania (Brazil) e lhe pede
remedio aos muitos damnos que está padecendo a
sua capitania, e que lhe não mande mais
degradados, visto serem tão mãos, que todos os dias
os manda enforcar. Pede a S. Alteza que order. e a
todas as pessoas a quem deu terras no Brazil as
venha povoar e residir nellas ; bem como lhe mande
ouvidor que saiba e entenda o que ha de fazer
(MORAES,1879, p. 32-33).

Vale ressaltar um outro aspecto da obra de Moraes, verifica-se a


existência de um choque de valores estrangeiros com valores endêmicos.
Embora os colonos apresentados nos relatos não fossem brasileiros e,
portanto, fossem socializados de uma forma distinta, percebe-se, na
descrição apresentada, que esses começavam a apresentar
comportamentos endêmicos, naturais daquele local. De forma mais clara, o
relato de Moraes apresenta uma dicotomia entre a visão de certos valores
em Lisboa ( metonímia do Velho Mundo) e da Nova Lusitânia ( metonímia
do Novo Mundo). Há, portanto, um embate moral entre essas duas
categorias, especialmente no que concerne à noção de justiça, como se
observa no seguinte trecho: “Em 10 de Maio de 1548 Affonso Gonçalves
escreve a el·rei D. João III queixando-se de que na terra da Santa Cruz não se
administra justiça” (MORAES, 1879, p. 34).
Verifica-se igualmente no relato outra dicotomia, explícita na
expressão “Este paiz” e no estado de colônia de exploração do Brasil naquele
momento. Percebe-se o uso de tal termo em um contexto narrativo bem
específico em que a Terra Brasilis, dessa vez referida como Brazil, corre o

- 212 -
risco de ser tomado pelos franceses – ou seja, em um contexto de perda
eminente, como sugere a passagem a seguir:

Na carta de 12 à e Maio de 154. 8, Luiz de Góes diz a


el-rei que por seu filho Pera de Góes communicou-
Ihe que convém soccorrer as capitanias e costas do
Brazil, porque este paiz está arriscado de ser tomado
pelos francezes, visto como desde o anno de 1546
vem 7 e 8 não francezas ao Cabo-Frio e Rio de Janeiro
carregar e commerciar com os Indios (MORAES,
1879, p. 34).

As questões que envolvem o mundo colonial são importantes para


entender como se deu a ocupação efetiva desse belo, vasto e rico território.
Por isso, a “Chronica Geral e Minuciosa do Império do Brazil”, de Alexandre
Jose de Mello, apresenta assuntos como a ligação entre o Estado e Igreja e
forma de administração que transformou o Brasil em uma espécie de
"empresa" no período colonial.
Observa-se claramente o vínculo Clero- Rei: enquanto o Estado
administrava a colônia, a igreja garantia a "domesticação" dos povos por
meio dos ensinamentos religiosos. Para entender melhor essa relação,
primeiro, precisa-se saber que ela se deu através do regime de padroado,
que era um acordo entre o papa e o rei.
Neste pacto, a Coroa portuguesa tinha o dever de expandir o
catolicismo através da construção de igrejas e conservá-las nas terras
conquistadas. Por meio disso, pode-se ver na crônica a implantação de
diversas igrejas no território brasileiro. Uma delas é a "Igreja da Candelaria"
relatada a seguir:

Como vimos a igreja da Candelaria foi construida por


Antonio Martins Palma e sua mulher D. Leonor

- 213 -
Gonçalves, éntre os annos de 1600 á 1604. Esta
igreja foi doada á Misericordia, sendo provedor
Salvador Corrêa de Sá, por seus fundadores, por
escriptura de 14 de Setembro de 1636, e creada
freguezia em 1634.
Estando arruinada as paredes, a irmandade do
Santissimo Sacramento á pedido dos parochianos
derão começo a nova igreja, benzendo a primeira
pedra o bispo D. José Joaquim Justiniano de
Mascarenhas Castello Branco no dia 6 de Junho de
1775, em. presença do Marquez de Lavradio, vice-rei
do Estado, no primeiro anno do pontificado de Pio
VI, vigario collado da freguezia da Candelaria João
Pereira de Araujo e Azevedo, provedor da irmandade
o capitão Francisco de Araujo Pereira, e escrivão o
capitão José Alvares Esteves (Vid. a acta) (MORAES,
1879, p. 121)

A contraposição do pacto era que a Coroa portuguesa tinha o direito


de nomear bispos e recolher os dízimos ofertados pelos fiéis à igreja, como
visto em "Nossa Senhora da Apresentação, em Irajá" relatado na passagem
seguinte: “O templo da parochia de Irajá foi fundada pelo Revd. Dr. Gaspar
da Costa, que foi o primeiro vigario della, pago por el-rei, por serem delle os
dizimos (Sintuado Marianno temo: 10 pag. 196)). (MORAES, 1879, p. 191).
Outro ponto importante é a compreensão do sistema administrativo
implantado por Portugal no Brasil, chamado de capitanias hereditárias – era
uma política que tinha a intenção de dividir as terras brasileiras para obter
maior lucratividade para os lusitanos.
Para isso acontecer, adotaram-se algumas medidas. Uma delas foi a
carta de adoção, que era uma concessão para o capitão donatário – este que
tinha quer ser português, homem bom e com ligação a coroa portuguesa. A

- 214 -
segunda medida adota foi a carta foral, que era um documento que
estabelecia os direitos e deveres que o líder tinha que cumprir para com sua
metrópole.
Foi nessa situação de direitos e deveres dos lideres das terras que
ficou conhecida as sesmarias. Segundo este sistema, os territórios eram
distribuídos a quem desejasse e pudesse cultivá-los, como visto no trecho
de "sesmarias na cidade":

Mem de Sá deu em 25 de Maio de 1568 sesmarias


dentro da cidade a Clemente Ferreira; a mesma
graça concedeo a Pedro Seabra em 28 de Junho do
mesmo anno. Christovão de Banos em 1573 deu
sesmarias a varios moradores da cidade, sendo em
11 de setembro do mesmo anno a dos terrenos do
morro de S. Bento, vargem e o morro da Conceição,
a Manoel de Brito, que doou o morro aos frades de
S. Bento em 25 de Março de 1590; e no lugar onde já
existia uma Ermida de N. S. da Conceição edificada
por Aleixo ManoeI, o velho, com consentimento de
Manoel de Brito e seu filho Diogo de Brito de
Lacerda. Deo sesmarias a outras pessoa dentro da
cidade. [...] (MORAES, 1879, p. 191).

Sendo assim, pode-se dizer que a igreja participou ativamente no


período colonial, pois teve um papel relevante de estabelecer um
relacionamento pacífico e de submissão entre os habitantes desse paraíso
desconhecido. Com os ânimos controlados, o Estado conseguiu implantar as
práticas mercantilistas com mais facilidade para alavancar no seu objetivo
primário de enriquecer a nação.

- 215 -
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conquista da América era algo almejado por europeus e demais
povos do planeta há séculos e a existência do Paraíso Terrestre já era
presente no imaginário dos viajantes antes mesmo que algo além de meros
mitos, lendas e passagens bíblicas comprovassem que de fato uma terra
paradisíaca e repleta de beleza, fartura e riquezas existisse. Embora a
conquista de outros países da América tivesse representado um grande
avanço na expansão ultramarina da qual os países ibéricos foram os
pioneiros, a América portuguesa foi de fato a maior conquista adquirida
pelos viajantes, especialmente com a descoberta do Brasil.
Aqui os portugueses encontraram o lugar propício para expandir-se
não somente territorialmente, mas principalmente comercialmente,
tornando esta uma colônia extrativista, uma vez que os produtos que aqui
existiam não existiam no Hemisfério Norte e para lá foram levados e
comercializados. Primeiramente a extração do pau-brasil, seguida pela da
cana-de-açúcar, do ouro, diamantes e demais pedras preciosas e mais tarde
do café, gerou uma quantia infindável de lucros para metrópole além de
prestígio e poderio internacional.
O indígena foi encarado como ser exótico que deveria ser
catequizado e mais tarde utilizado como mão-de-obra, tendo sua cultura e
religião desapropriadas. A literatura fez uma tentativa de recobrar os danos
causados ao passado colonial valorizando o nativo, relembrando suas raízes
culturas para afirmar sua identidade nacional, assim como o altíssimo grau
de mestiçagem e miscigenação do povo brasileiro e sua diversidade étnico-
cultural.
Como afirmou Mello Moraes em sua crônica, um país aparentemente
sem história e carente de buscar suas origens, necessita de documentos que
relatem como foi o seu estabelecimento como nação, assim como os
mecanismos políticos que levaram esse país a se erguer economicamente.
Daí a função da literatura quinhentista de relatar a evolução do Brasil como
território em expansão e crescimento.

- 216 -
REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Iracema. 3 ed. São Paulo: Ática, 2009.

_____. O Guarani. São Paulo: Moderna, 2000.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. São Paulo: Ática, 1998.

FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. A vontade de Saber. São


Paulo: Graal, 1997.

LIMA, José de. A Atualidade de Visão do Paraíso. Contemporâneos. Revista


de Artes e Humanidades, n. 8 Maio- Out 2011. Disponível em http://www.
revistacontemporaneos. com.
br/n8/dossie/a%20atualidade%20de%20Visao%20do%20paraiso. PDF.
Acesso em 20/06/2016.

MORAES, Mello de. Chronica Geral e Minuciosa do Império do Brasil. Rio de


Janeiro: Thypografia Carioca, 1879.

SEIXAS, Barbosa. Maria Lucília. A Natureza Brasileira nas Fontes Portuguesas


do Século XVI. Para uma tipologia das grandezas do Brasil. Viseu, Portugal:
Passagem Editores, 2003. Disponível em clientes. netvisao.
pt/phanenbe/passagem/A%20Natureza%20Brasiliera. pdf. Acesso em
28/06/2016.

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