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v.7 nº20 ISSN 1809-9815


setembro > dezembro | 2012
Sesc | Serviço Social do Comércio
Administração Nacional

Questionário de avaliação
da distribuição

xxxxxxxxxx/XXXX-XX/XX

CARTÃO-RESPOSTA
NÃO É NECESSÁRIO SELAR

O SELO SERÁ PAGO PELO SESC-DN

AC BARRASHOPPING
22640-970 Rio de Janeiro - RJ
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Avaliação da distribuição
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v.7 nº 20
setembro > dezembro | 2012
Sesc | Serviço Social do Comércio
Administração Nacional

iSSN 1809-9815
SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012

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Sesc | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional

PRESiDENtE Do CoNSELHo NACioNAL


Antonio oliveira Santos
DiREtoR-GERAL Do DEPARtAmENto NACioNAL
maron Emile Abi-Abib

CooRDENAÇÃo EDitoRiAL
Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento
mauro Lopez Rego

CoNSELHo EDitoRiAL
Álvaro de melo Salmito
mauricio blanco
Nivaldo da Costa Pereira
SECREtÁRio ExECutivo
mauro Lopez Rego
ASSESSoRiA EDitoRiAL
Andréa Reza

EDiÇÃo
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral
Christiane Caetano
PRoJEto GRÁfiCo
vinicius borges
SuPERviSÃo EDitoRiAL
Jane muniz
PREPARAÇÃo E PRoDuÇÃo EDitoRiAL
Duas Águas| ieda magri
REviSÃo
Elaine bayma
REviSÃo Do iNGLêS
idiomas & cia
DiAGRAmAÇÃo
Livros & Livros | Susan Johnson
PRoDuÇÃo GRÁfiCA
Celso Clapp

Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - vol. 1, n. 1 (maio/


ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : Sesc,
Departamento Nacional, 2006 - .
v.; 30 cm.
Quadrimestral.
iSSN 1809-9815
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. brasil. i.
Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional, 2006 - .

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.


As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.

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SumÁRio
APRESENtAÇÃo5
EDitoRiAL7
SobRE oS AutoRES8
iNtERPREtAÇÕES Do bRASiL E CiêNCiAS
SoCiAiS, um fio DE ARiADNE10
André botelho

CotAS AumENtAm A DivERSiDADE DoS


EStuDANtES SEm ComPRomEtER o
DESEmPENHo?36
fábio D. Waltenberg
márcia de Carvalho

tRêS CRÍtiCoS: ANtoNio CANDiDo, PAuLo


EmÍLio E mÁRio PEDRoSA78
francisco Alambert

GoNÇALo m. tAvARES: o ENSAio, A DANÇA, o


ESPÍRito LivRE114
Júlia Studart

CAio PRADo JR. E o iNtELECtuAL mARxiStA


HoJE148
marco Aurélio Nogueira

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APRESENtAÇÃo
A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um
espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira.
Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação.
Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a
publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no
Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas
páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício
poder-se-ão manifestar.
Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da
Sinais Sociais é garantida. O fundamento desse pressuposto está nas
Diretrizes Gerais de Ação do Sesc, como princípio essencial da enti-
dade: “Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo
ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como
principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.”
Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos – de
acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais
heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos.
Importa para a revista Sinais Sociais artigos cujas fundamentação
teórica, consistência, lógica da argumentação e organização das ideias
tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises
que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou
lhes apresentem um novo olhar sobre os objetos em estudo.
O que move o Sesc é a consciência da raridade de revistas seme-
lhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com
suas reflexões como para segmentos do grande público interessados
em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país.
Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao
mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais desse deba-
te é a intenção do Sesc com a revista Sinais Sociais.

Antonio Oliveira Santos


Presidente do Conselho Nacional do Sesc

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EDitoRiAL
O entusiasmo não pode ser induzido de forma determinista; será
transmitido por meio de suas manifestações? A hipótese afirmativa nutre
as expectativas acerca do presente número da revista Sinais Sociais, que
traz fios vívidos de entusiasmo, na primeira, segunda e terceira pessoas.
Os personagens presentes nos trabalhos desta publicação − essas
“pessoas”− diferem em origens, temas e percursos, mas têm aqui res-
saltadas suas conexões às realidades em que se inseriram, para com
elas interagir, de forma a contribuir para sua compreensão e alteração,
segundo suas particulares perspectivas.
Nestes textos está presente também o elogio ao ensaio, como forma,
como recurso, como reiterada possibilidade de acesso subjetivo e di-
reto aos contextos físicos e práticos, abstratos e teóricos.
São muitos os sujeitos referidos direta ou indiretamente pelos au-
tores. Antonio Candido, Paulo Emilio e Mário Pedrosa são os críticos
cujas visões da arte e cultura do Brasil são cotejadas por Francisco
Alambert. Gonçalo M. Tavares é o autor do Livro da dança, obra da
qual Júlia Studart faz detida análise. Caio Prado Jr. é tomado como
exemplo por Marco Aurélio Nogueira para a discussão do papel do
intelectual marxista no mundo contemporâneo. Oliveira Vianna é o
historiador que tem obra evocada por André Botelho, que reafirma a
validade das interpretações autorais para o entendimento do passado
e a percepção do presente.
Compõe ainda esta Sinais Sociais o artigo de Fabio D. Waltenberg
e Márcia de Carvalho. Da análise sobre os resultados das ações afir-
mativas no Brasil, um pormenor não deve escapar à atenção: foi o
protagonismo das universidades que trouxe o tema para a esfera pú-
blica, lidando frontalmente com uma questão até então relegada ao
escaninho das imutáveis perversidades nacionais.
De diversos sujeitos, portanto, e de seus entusiasmos ao lidar com
linhas iluminadoras de nossos labirintos sociais, tratam os artigos aqui
apresentados.
Maron Emile Abi-Abib
Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc

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SobRE oS AutoRES
André Botelho
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador do CNPq e da Faperj e
coordenador do Grupo de Trabalho Pensamento Social no Brasil, da Sociedade Brasileira
de Sociologia (SBS). Autor de diversas publicações, livros e artigos na área de pensa-
mento social brasileiro, destacando-se entre os mais recentes: Um enigma chamado
Brasil, organizado com Lília M. Schwarcz (Companhia das Letras, 2009), Revisão do
pensamento conservador, organizado com Gabriela Nunes Ferreira (Hucitec, 2010) e
Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança, também organizado com Lília
M. Schwarcz (Companhia das Letras, 2011).

Fábio D. Waltenberg
Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e
membro do Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desi-
gualdade e Desenvolvimento (CEDE) da mesma universidade.

Francisco Alambert
Professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), onde
leciona História Social da Arte e História Contemporânea na graduação e na pós-gra-
duação. Também é crítico de arte, colabora em diversos jornais e revistas, no Brasil e
no exterior. Publicou, entre outros livros, Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos
curadores (Boitempo, 2004), escrito em parceria com Polyana Canhête, que recebeu
o prêmio Jabuti na categoria Artes. Na USP, participa da coordenação do grupo de
pesquisa Desformas – Formação e Desmanche de Sistemas Simbólicos.

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Júlia Studart
Poeta e doutora em Teoria Literária, Textualidades Contemporâneas, pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) – bolsista integral CNPq, Brasil / Universidade Nova
de Lisboa (UNL) – bolsista CAPES, 2011. Trabalha com literatura contemporânea
brasileira e portuguesa; artes visuais e teoria da dança. Publicou Wittgenstein & Will
Eisner – se numa cidade suas formas de vida (Lumme Editor, 2006), Marcoaurélio!, com a
artista visual Milena Travassos (Dragão do Mar, 2006) e Livro segredo e infâmia (Editora
da Casa, 2007). É autora de “O impacto da impressão”, caderno de apresentação do
livro Breves notas, de Gonçalo M. Tavares (Editora da Casa/Edufsc, 2010). Organizou
o livro Conversas, diferença n.1 – ensaios de literatura etc. (Editora da Casa, 2009). É
colaboradora do jornal O Globo com resenhas sobre literatura contemporânea.

Márcia de Carvalho
Professora do Departamento de Estatística e doutoranda do Programa de Pós-Gradua-
ção em Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do Núcleo de
Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigualdade e Desenvolvimen-
to (CEDE) da mesma universidade.

Marco Aurélio Nogueira


Professor titular de Teoria Política e coordenador do Instituto de Políticas Públicas e
Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Doutor em Ciência
Política pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado na Universidade de
Roma (1984-1985), foi diretor da Editora Unesp (1987-1991) e da Escola de Gover-
no e Administração Pública da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap)
(1991-1995). É colunista do jornal O Estado de S. Paulo e autor, entre outros, dos livros
Em defesa da política (Senac, 2001), Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e
políticos da gestão democrática (Cortez, 2004), Potência, limites e seduções do poder
(Editora Unesp, 2008) e O encontro de Joaquim Nabuco com a política. As desventuras
do liberalismo (Paz e Terra, 2010).

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iNtERPREtAÇÕES Do
bRASiL E CiêNCiAS
SoCiAiS, um fio
DE ARiADNE
André Botelho

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O artigo procura problematizar a visão cristalizada pelas Ciências Sociais sobre
o ensaísmo brasileiro dos anos de 1920-1940. Com base em um estudo de
caso, a partir de resultados de pesquisa sobre Francisco José de Oliveira Vianna
e sua sociologia política, discute a atualidade das chamadas interpretações do
Brasil. Tal procedimento analítico é entendido como condição para repensar
o estatuto dos ensaios e sua capacidade de interpelação contemporânea às
Ciências Sociais e à sociedade brasileira.
Palavras-chave: interpretações do Brasil; Ciências Sociais; sociologia do conhe-
cimento; Oliveira Vianna

This article aims to problematize the views of Brazilian essayism crystallized by


the Social Sciences from the 1920s to the 1940s. Based on a case study from
research findings on Francisco José de Oliveira Vianna and his political socio-
logy, it discusses the relevance of the so-called interpretations of Brazil. This
analytical procedure is understood as a prerequisite for rethinking the status
of the essay and its contemporary interpellation capacity towards the Brazilian
Social Sciences and society.
Keywords: interpretations of Brazil; the Social Sciences; sociology of knowledge;
Oliveira Vianna

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iNtRoDuÇÃo

Entre as décadas de 1920 e 1940 foram publicados alguns dos mais


instigantes estudos sobre a formação da sociedade brasileira, comu-
mente chamados ensaios de interpretação do Brasil. Publicado em
1920, Populações meridionais do Brasil, de Francisco José Oliveira
Vianna, abre a produção do período, seguido, na mesma década, por
Retrato do Brasil, de Paulo Prado, em 1928. Em 1933 foram publica-
dos Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, e Evolução política do
Brasil, de Caio Prado Júnior, três anos depois apareceram Sobrados e
mucambos, também de Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
de Holanda. Na década seguinte, voltaram aos prelos Caio Prado e
Oliveira Vianna, o primeiro com Formação do Brasil contemporâneo,
em 1942, o segundo com Instituições políticas brasileiras, em 1949,
para citar apenas alguns dos mais emblemáticos ensaios do período.
Essas interpretações do Brasil continuam nos interpelando contem-
poraneamente, a despeito da relação ambígua que as Ciências Sociais
têm mantido com eles desde o início da sua institucionalização como
carreira universitária e profissional na década de 1930. Como se tra-
tava então de demarcar um “campo científico”, compreende-se que
o desenvolvimento das Ciências Sociais tenha sido pensado a partir de
uma polarização mais disjuntiva entre o seu caráter “científico” e o
“pré-científico” dos ensaios de interpretação do Brasil. Em que “cien-
tífico”, naturalmente, foi quase sempre tomado estritamente como
sinônimo de conhecimento válido.
Diferente da monografia científica que veio a se impor como forma
narrativa própria à moderna ciência ocidental, também nas ciências
sociais brasileiras, o ensaio não expõe na sua narrativa fragmentada
um conteúdo pronto de antemão. Mas, em uma constante tensão en-
tre a exposição e o exposto, repõe uma ideia fundamental, como um
fragmento que busca vislumbrar o todo de que é parte. Nesse movi-
mento, esboça-se o traço distintivo do ensaio como forma: a tentativa
de recomposição da relação sujeito/objeto do conhecimento fraturada
pela tradição cartesiana. Por isso sua inteligibilidade parece, em parte,
condicionada à própria relação de contraposição que mantém pere-
nemente com o padrão científico positivista.
Daí Theodor Adorno ter discutido o ensaio como forma de “pro-
testo contra as quatro regras que o Discours de la méthode de

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Descartes erige no início da moderna ciência ocidental” (ADORNO,
1986, p. 177); ainda que, se considerada da perspectiva do ensaio,
por sua vez, a objetividade pretendida na monografia decorra neces-
sariamente de um arranjo subjetivo:

o que em Descartes era consciência intelectual quanto à necessidade de


conhecimento, se transforma na arbitrariedade de um ‘frame of referen-
ce’, de uma axiomática que precisa ser colocada no início para satisfazer
a necessidade metodológica e a plausibilidade do todo [...] [que] apenas
escamoteia as suas condições subjetivas (ADORNO, 1986, p. 179).

Enfim, estamos diante de regimes distintos de “subjetividade” e “ob-


jetividade” do conhecimento social que validam seus próprios instru-
mentos linguísticos, narrativos e outros e que por isso não podem ser
subsumidos uns nos outros. Ao mesmo tempo, porém, são também
autorreferidos, no sentido que mobilizam frequentemente categorias
de contrastes, cujos significados são extraídos tanto do que se nega,
quanto do que se afirma.
No caso brasileiro, aquele tipo de recomposição entre sujeito/objeto
divisado no ensaio em geral parece ter sido, em grande medida, in-
terpretado mais como um “desvio” em relação ao rigor científico do
que propriamente como um “contraponto” possível a ele. O que su-
gere, entre outras coisas, o sentido hegemônico e duradouro assumido
pelo positivismo entre nós. É razoável, de todo modo, considerar que
o ensaio parecia ameaçar alguns dos seus princípios. Afinal, a adoção
do padrão cognitivo-narrativo científico positivista que regeu a institu-
cionalização das ciências sociais, e seus correspondentes princípios de
isenção e neutralidade, parecia assegurar uma representação da relação
externa do cientista com os fenômenos que investigava. Também nos
ensaios de interpretação do Brasil, “o decifrar da realidade não está na
somatória de dados objetivos, mas muito mais na sua multiplicação com
elementos da subjetividade“ dos seus autores (WEGNER, 2006, p. 339).
Mais do que entre os pioneiros sociólogos profissionais, porém, foi
em um momento posterior, já nas décadas de 1970 e 1980, que os
ensaios e suas interpretações do Brasil acabaram por ser desqualifica-
dos como meras “ideologias”. Procedimento especialmente marcante
na análise de determinadas tradições intelectuais, como o chamado
“pensamento conservador” dos anos 1920-30 e o “nacional-desen-

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volvimentismo” dos anos 1950-60, para lembrar dois casos emblemá-
ticos. Em vários momentos da nossa história intelectual o pensamento
conservador, por exemplo, foi menosprezado levando, contudo, a que
se negligenciasse a vigência dessas formas de pensar no âmbito da
cultura política. Essa dimensão deveria interessar àqueles que estão
voltados para o estudo dos efeitos sociais das ideias, porque ela é
decisiva para se compreender, entre outras coisas, como se constitui
no Brasil uma cultura política que menospreza a monumental desi-
gualdade que marca a nossa sociedade. E, também, porque avessa à
democracia, não acredita na ação coletiva e favorece a que o homem
comum não leve a sério os seus iguais (FERREIRA; BOTELHO, 2010).
Malgrado seu expressivo crescimento nas últimas décadas ou, talvez
por isso mesmo, persistem algumas visões simplificadoras, e mesmo in-
gênuas sobre o pensamento social (BASTOS; BOTELHO, 2010). Como
aquelas que supõem ser suficiente identificar a sua pesquisa como um
tipo de conhecimento antiquário sem maior significação para a socie-
dade e para as ciências sociais contemporâneas. E não são incomuns
ainda hoje visões segundo as quais as ciências sociais, quando conce-
bidas em acepção positivista e orientadas para o mundo empírico e
para o acúmulo de conhecimento objetivo sobre ele, já deveriam ter
solucionado as questões colocadas pelas interpretações mais antigas.
Por outro lado, e isso é fundamental para manter a controvérsia viva,
não faltam pesquisas, realizadas inclusive entre os próprios cientistas
sociais contemporâneos, indicando a persistência da importância das
interpretações do Brasil no conjunto da produção das Ciências Sociais
brasileiras (BRANDÃO, 2007, p. 24)1.
Mas longe de constituir um traço idiossincrático da sua prática no Brasil,
a controvérsia sobre a importância do pensamento social, como aquela
sobre a importância dos clássicos, expressa uma característica crucial das

1
É significativo, assim, que já no próprio âmbito de sua institucionalização no
Brasil tenham surgido tantos trabalhos sobre a história das Ciências Sociais, como
indica o fato de que 46 de 121 obras de sociologia publicadas, no Brasil, entre
1945 e 1966 tratem da própria disciplina (VILLAS BÔAS, 1992, p. 135). Isso
para não falar dos balanços sobre a tradição intelectual brasileira anterior à ins-
titucionalização, realizados, por exemplo, por Florestan Fernandes em “Desen-
volvimento histórico-social da sociologia no Brasil”, originalmente publicado na
revista Anhembi em 1957 (FERNANDES, 1980) ou por Alberto Guerreiro Ramos
em Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo, de 1954 (RAMOS, 1995).

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Ciências Sociais em geral que, como toda disciplina de natureza inte-
lectual, traz em si uma “história construída” (LEVINE, 1995; GIDDENS,
1998; ALEXANDER, 1999). Assim, a reflexão contínua sobre as Ciências
Sociais remete a um aspecto crucial da própria identidade cognitiva das
disciplinas que a compõem. Afinal, em contraste com o que ocorre nas
ciências naturais, a lógica das Ciências Sociais exige que, para que ela
atinja seus fins, refaça o seu próprio caminho, se assemelhando, neste
aspecto, ao trabalho de Penélope (BRANDÃO, 2007, p. 24).
Todavia, como no caso mais amplo das Ciências Sociais em relação
aos seus clássicos, o significado das interpretações do Brasil, objeto por
excelência da área de pesquisa do pensamento social, para a busca
contemporânea de conhecimento continua em aberto. Isso expressa,
igualmente, a ausência de consensos cognitivos estáveis no interior das
Ciências Sociais praticadas no Brasil e, no limite, um campo de possibi-
lidades e conflitos a respeito da sua própria identidade. Minha hipótese
quanto ao seu significado heurístico para as Ciências Sociais, é que o
pensamento social pode representar uma espécie de repertório inter-
pretativo a que os pesquisadores podemos recorrer para buscar moti-
vação e perspectiva nas diferentes áreas que as compõem. Isso porque,
em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea, e
do decorrente fracionamento do conhecimento, as interpretações do
Brasil não representam apenas uma modalidade de imaginação socioló-
gica encerrada no passado. Elas também constituem um espaço cogniti-
vo de comunicação entre presente, passado e futuro que pode nos dar
uma visão mais integrada e consistente da dimensão de processo que o
nosso presente ainda oculta – um fio de Ariadne, por assim dizer.
É esta hipótese que apresento para discussão, embora não me pare-
çam simples os desafios nela envolvidos. Para torná-la menos abstrata
recorrerei a um dos exemplos mais emblemáticos do pensamento social
brasileiro, Oliveira Vianna e os possíveis significados heurísticos da sua
sociologia política, mobilizando, para isso, alguns resultados recentes
de pesquisa (BOTELHO, 2007; 2008; 2010; BOTELHO; LAHUERTA,
2010). Antes, contudo, alguns problemas mais gerais de ordem teórico-
metodológica da sociologia do conhecimento devem ser enfrentados.
Deter-me-ei em dois deles ligados especificamente à pesquisa do pen-
samento social. Em primeiro lugar, em um plano mais amplo, a questão
da relação entre “textos” e “contextos” na pesquisa sociológica contem-
porânea; em segundo, as diferentes possibilidades de recuperação dos
textos clássicos para as atividades cotidianas da disciplina atualmente.

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1 tExtoS ou CoNtExtoS: A CRiSE DA SoCioLoGiA Do CoNHECimENto

Começo por observar que para que o significado heurístico das


interpretações do Brasil para as Ciências Sociais em suas diferentes
especialidades contemporâneas possa ser avaliado é preciso encontrar,
antes de tudo, formas consistentes de aproximação entre questões do
presente e interpretações do passado. O que, por sua vez, exige pesqui-
sas que possam qualificar justamente o perfil propriamente cognitivo
das interpretações de que a sociedade brasileira vem sendo objeto ao
longo do tempo. Assim, não será toda perspectiva metodológica em-
pregada na reconstituição da história das Ciências Sociais no Brasil que,
por seus próprios objetivos, estará apta a levar a tarefa a cabo, embora
suas contribuições para o esclarecimento daquela história sejam ine-
gáveis e não possam ser minimizados. Sem pretender ser exaustivo,
observo que um passo crucial na direção da pesquisa do perfil propria-
mente cognitivo da tradição intelectual brasileira foi dado pelo recente
trabalho de Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político
brasileiro (2007). Nele, Brandão persegue o fio que nos tem ligado, na
prática das Ciências Sociais – e nas suas formas correspondentes de
pensar o Brasil e nele atuar –, ao nosso passado intelectual, para além
dos marcos institucionais. Trata-se de um programa de pesquisa con-
sistente que, explorando a fundo as consequências do fato de que
nenhuma inovação intelectual se realiza em um vazio cognitivo, propõe
nova inteligibilidade para o pensamento político-social brasileiro. Mais
do que mera testemunha do passado, este constituiria o índice da exis-
tência de um corpo de problemas e soluções intelectuais – “um esto-
que teórico e metodológico”. Autores de diferentes épocas são levados
a se referir a esse “estoque”, ainda que indiretamente e, guardadas as
especificidades cognitivas e políticas de cada um, no enfrentamento
de velhas questões postas pelo desenvolvimento social. Não se trata de
minimizar o influxo cognitivo externo a que também as Ciências Sociais
brasileiras estão sujeitas em sua prática cotidiana; e sim de reconhecer
que, ainda assim, o pensamento político-social brasileiro tem represen-
tado “um afiado instrumento de regulação de nosso ‘mercado interno
das ideias’ em suas trocas com o mercado mundial” (BRANDÃO, 2007,
p. 23-24).
Todavia, uma questão metodológica importante suscitada pelo livro
de Brandão é saber se o pertencimento a uma “família” intelectual

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constitui um ponto de partida estrutural da análise, ou antes, um pro-
blema mais contingente. Problema cujo sentido, sendo variável em
relação à combinação com outros fatores internos e externos de com-
posição das obras, somente a pesquisa comparativa poderia então
apontar caso a caso. Afinal, apesar de algumas linhagens terem se tor-
nado mais cristalizadas, como em qualquer família, também no caso
da tradição intelectual brasileira, como bem lembra o autor, por vezes
“os mais próximos são os mais distantes, e ninguém pode impedir que
um Montecchio se apaixone por uma Capuleto” (p. 39). Nesse senti-
do, penso que um dos aspectos mais produtivos derivados da proposta
seria justamente o de, cruzando diferentes linhagens, surpreender afi-
nidades eletivas e escolhas pragmáticas onde elas não são evidentes,
esperadas, intencionais – seja em termos cognitivos ou normativos2.
Pensando em termos teóricos mais gerais, diria, com algum exagero,
que a constituição do pensamento social como um repertório ou espaço
de comunicação cognitivo implica, em certo sentido, completar o mo-
vimento analítico característico da sociologia do conhecimento. Esta,
como se sabe, tem estado voltada, desde a síntese teórica formulada por

2
Foi justamente nessa direção que procurei reconstituir analiticamente a for-
mação de uma agenda de pesquisas, de Populações meridionais do Brasil até
Homens livres na ordem escravocrata (1964), de Maria Sylvia de Carvalho Fran-
co, passando por Coronelismo, enxada e voto (1949), de Victor Nunes Leal, e
diferentes pesquisas de Maria Isaura Pereira de Queiroz desenvolvidas desde a
década de 1950, procurando destacar suas continuidades e descontinuidades
(BOTELHO, 2007). No plano das continuidades, argumentei que estas pes-
quisas mantêm, em primeiro lugar, a tese central do ensaio de Vianna sobre a
configuração histórica particular das relações de dominação política no Brasil
fundada no conflito entre as ordens privada e pública e não diretamente assi-
milável ao conflito de classes enraizado no mundo da produção; bem como,
em segundo lugar, sua tendência teórico-metodológica a relacionar a aquisi-
ção, distribuição, organização e exercício de poder político à estrutura social
com o objetivo de identificar as bases e a dinâmica da política na própria vida
social. Com relação, por sua vez, às descontinuidades cognitivas internas entre
os diferentes trabalhos que compõem a vertente da sociologia política brasileira
destacada, argumentei que são distintas, sobretudo, as concepções de socieda-
de e, nelas, o relacionamento entre ação e estrutura social, que assume e que
procura conferir verossimilhança com os próprios resultados obtidos no estudo
da constituição, organização e reprodução das relações de dominação política.

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Mannheim (1976), para o esclarecimento da constituição social das
ideias e das relações mais ou menos condicionadas que mantêm com
os grupos sociais e as sociedades que as engendram (apesar de Man-
nheim também levar em conta as gerações). Sua premissa paradigmá-
tica é a de que

existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos


adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens so-
ciais. [...] A abordagem da Sociologia do Conhecimento não parte do
indivíduo isolado e de seu pensar a fim de, à maneira do filósofo, pros-
seguir então diretamente até às alturas abstratas do “pensamento em
si”. Ao contrário, a Sociologia do Conhecimento busca compreender
o pensamento no contexto concreto de uma situação histórico-social,
de onde só muito gradativamente emerge o pensamento individual-
mente diferenciado (MANNHEIM, 1976, p. 30-1).

Certamente esse postulado da sociologia do conhecimento não per-


maneceu incólume desde o seu surgimento como empreendimento
organizado no início do século XX; além de ter sofrido progressivamente
a concorrência, de um lado, de perspectivas estruturalistas (Saussure)
e pós-estruturalistas (Foucault) e, de outro, do chamado marxismo
ocidental (Adorno, Benjamin, Gramsci e outros), que convergia com a
ênfase de Mannheim na questão dos condicionantes sociais da cultura,
ainda que operasse uma realocação desta para a esfera da dominação
ideológica. Um dos principais estímulos para sua revitalização veio de
Pierre Bourdieu que “trouxe o conhecimento de volta para o mapa da
sociologia em uma série de estudos sobre ‘prática teórica’, ‘capital cultural’
e o poder de instituições como as universidades para definir o que conta e
o que não conta como conhecimento legítimo” (BURKE, 2003, p. 16).
O caso da teoria sociológica de Pierre Bourdieu (1974), que tem sido
muito empregada, embora com sentidos distintos e resultados muito
diferentes, parece, com efeito, exemplar para discutir os limites da so-
ciologia do conhecimento para a pesquisa da dimensão cognitiva das
interpretações do Brasil. Pois, por se concentrar no “contexto” em detri-
mento do “texto”, essa perspectiva pouco favorece, em função dos seus
próprios objetivos, uma abordagem mais consistente da dimensão cog-
nitiva das interpretações do Brasil, não obstante possa trazer subsídios

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decisivos para a discussão sobre a mediação social do conhecimento.
Para Bourdieu, “textos” representam no máximo pretextos para a aná-
lise sociológica da cultura, uma vez que a questão analítica valorizada
passa a ser a das posições ocupadas e das estruturas de legitimação mo-
bilizadas pelos produtores na configuração de um dado campo. Nesse
sentido, questões como origens sociais e posições nas estruturas de po-
der, sociabilidade e dinâmica interna de classes ou grupos sociais, estra-
tégias cotidianas de inserção e de viabilização das carreiras nos marcos
institucionais dominantes ou, ao contrário, por meio dos circuitos mais
ou menos informais e alternativos a eles, entre outras, ganham prepon-
derância nas análises (BASTOS BOTELHO, 2010a).
A importância dos “textos” para a sociologia também tem sido, por
outro lado, afirmada. É o caso da recente defesa de Jeffrey Alexander
de um “programa forte” para a sociologia, claramente influenciado
pela sociologia da religião de Émile Durkheim. Em As formas elemen-
tares da vida religiosa (1912), Durkheim procurou relacionar crenças
religiosas e cognitivas no interior de uma teoria geral das represen-
tações coletivas, valorizando o simbolismo coletivo como princípio
constituinte da realidade social. Tirando consequências desse postula-
do em seu programa, Alexander argumenta que a sociologia não de-
veria se ater apenas ao estudo de “contextos”, devendo compreender
também o estudo de “textos” – entendidos não apenas como textos
formais ou escritos, mas também “manuscritos não escritos”, “códi-
gos” e “narrativas” (ALEXANDER, 2000, p. 32, tradução minha). Essa
reorientação constituiria a principal condição para que se pudesse
identificar a dimensão semântica das instituições e das ações sociais,
ou a “textualidade das instituições e a natureza discursiva da ação so-
cial” (p. 34). A premissa fundamental dessa “sociologia cultural” está
na afirmação de que tanto a ação, independente do seu caráter instru-
mental, reflexivo ou coercitivo com relação ao seu contexto externo,
“se materializa em um horizonte emotivo e significativo” quanto as
instituições, independentemente do seu caráter impessoal e tecnocrá-
tico, possuem fundamentos ideais que “conformam sua organização,
objetivos e legitimação” (p. 38-39).
Da perspectiva de Alexander, o programa “forte” para a sociologia
consiste precisamente em afirmar que a “cultura opera como uma
‘variável independente’ na conformação de ações e instituições” (p. 39).

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Assim, ao contrário do que deve ocorrer na “sociologia cultural”,
na “sociologia da cultura” a cultura é uma variável apenas “branda”
submetida a diferentes variáveis “fortes” e mais tangíveis da estrutura
social. Nessa acepção, argumenta Alexander, o poder explicativo da
cultura consiste apenas “no melhor dos casos, em participar na repro-
dução das relações sociais” (p. 39). Nessa sugestão radical de desaco-
plamento entre cultura e estrutura social, ou por outra, de afirmação
da ideia de autonomia cultural, Alexander vê a única possibilidade de
definir-se um “programa forte” para a sociologia da cultura capaz de
identificar e qualificar sociologicamente o poder da cultura na con-
formação da vida social3. A esse respeito, penso que continua válida

3
Exemplo crucial da sua proposição analítica encontra-se em “A preparação
cultural para a guerra: código, narrativa e ação social” que fecha o volume
Sociologia cultural. Formas de classificação nas sociedades complexas. Nele,
Alexander aborda da perspectiva da sociologia cultural, isto é, considerando
a cultura como variável independente, problemas de “simbolismo político” (e
não de motivos racionais) em nações democráticas, uma vez que as guerras
não se fariam sem a mobilização dos sentimentos e crenças dos cidadãos.
Substantivamente, analisa as “dinâmicas culturais internas” presentes nos pre-
parativos dos Estados Unidos para a Guerra do Golfo Pérsico em 1991, descar-
tando as ideias de “manipulação exercidas pelos governos” e de “contestação
dos movimentos contrários à guerra” como suficientes para compreender os
processos de legitimação da guerra (p. 256). Daí que destaque literatura de
ficção, filmes e informações objetivas sobre a guerra como elementos mobi-
lizados por diferentes grupos sociais de interesse na definição da estrutura
semântica do conflito. O “sentido” cultural da guerra pode ser apreendido a
partir da articulação de três elementos fundamentais: código, que separa dico-
tomicamente – mas não de modo contingente, e sim estrutural – certas quali-
dades simplificadas como “bem e mal”, “puro e impuro”, “amigos e inimigos”
e “sagrado e profano” (p. 256); narrativa, que permite que aqueles códigos
dicotômicos adquiram sentido em relação a uma experiência histórico-univer-
sal, fazendo a guerra corresponder a um processo de “imaginação coletiva” (p.
258); e gênero, que confere a capacidade dessa narrativa histórico-universal
sublimar os processos sociais aumentando a importância simbólica da guerra
entre os cidadãos. Em suma, a complexidade da guerra só ganharia inteligi-
bilidade sociológica, recuando-se até a sua preparação cultural, a partir da
qual tornar-se-ia possível discriminar o caráter semanticamente orientado das
ações e instituições desde a estrutura interna das formações discursivas que
lhe conferem sentido e legitimidade coletivas.

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a advertência de Max Weber (2004, p. 167), feita ao final de A Ética
protestante e o espírito do capitalismo, sobre a insensatez das tentati-
vas de substituir uma concepção de primazia causal materialista por
outra idealista – ou vice-versa – na explicação das condutas humanas
mantendo intacto, contudo, o verdadeiro problema de método envol-
vido que é justamente o princípio de monocausalidade.
A advertência de Max Weber, aliás, é fundamental para o problema
específico que estamos tratando e se desdobra em duas considerações
principais. Em primeiro lugar, considero que a reorientação analítica
necessária à pesquisa da dimensão cognitiva do pensamento social bra-
sileiro não possa se limitar ao estudo de contextos, devendo compre-
ender também o estudo de textos. Não se trata, é preciso deixar claro,
de supor a autonomia dos textos; porém, recusar essa tese não implica
necessariamente aceitar a oposta, do condicionamento da sociedade
sobre as ideias como algo já dado de antemão – não importando aqui
se os condicionantes são entendidos em termos econômicos, políticos,
institucionais ou biográficos. Por isso, também a visão disjuntiva entre as
abordagens chamadas textualistas e contextualistas que se apresentam,
em grande medida, como concorrentes no debate contemporâneo do
pensamento social brasileiro (PONTES, 1997), pode ser, em parte, pro-
blematizada. Tomadas de modo disjuntivo, ambas as posturas podem
acarretar ordenações que, ao lado de inegáveis méritos, não deixam
também de apresentar certos limites simplistas. Assim, mesmo reconhe-
cendo as diferenças entre aquelas perspectivas, é possível sugerir, no
lugar da escolha exclusiva entre texto ou contexto, que se reconheça e
se qualifique a tensão existente entre estes termos, na medida em que
ela é constitutiva da própria matéria que cumpre à análise ordenar.
Em segundo lugar, se não há consenso sobre a importância dos clás-
sicos nas Ciências Sociais em geral, o mesmo se pode dizer quanto
às vertentes sensíveis à orientação semântica da vida social, isto é,
entre aquelas que reconhecem a importância dos textos clássicos nas
atividades cotidianas da disciplina. No que se refere às vertentes con-
temporâneas da sociologia voltadas para a pesquisa dos significados
dos textos clássicos da disciplina, pode-se demarcar o debate em duas
posições contrastantes cujo ponto crucial de discordância diz respeito
à questão da intencionalidade dos autores. Questão cuja polêmica
perene nas Ciências Sociais foi recolocada contemporaneamente, de

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um lado, pelas provocações críticas da chamada “teoria da recepção”
(JAUSS, 1978) e, de outro, pelo chamado “contextualismo linguísti-
co” de Quentin Skinner (TULLY, 1988; SKINNER, 1999). Assim, uma
vertente que se poderia denominar “contextualista” afirma, via con-
textualismo linguístico, ser necessário recuperar a intencionalidade
dos autores clássicos a partir da reconstituição minuciosa do contexto
original em que eles e seus textos estavam inscritos (GIDDENS, 1998).
Outra que se poderia denominar “analítica” afirma, por sua vez, a
validade em retomar aqueles textos a partir das questões próprias do
nosso presente (ALEXANDER, 1999).
Uma visão disjuntiva entre essas perspectivas “analítica” e “contextua-
lista”, no entanto, não é nem inevitável, nem desejável. Pois se supor
que a intenção de um autor possa ser plenamente recuperável implica
mesmo um tipo de “confiança empírica de transparência do mun-
do social” difícil de sustentar no contexto da sociologia pós-positivista
(ALEXANDER, 1999, p. 77); de outro lado, não deixa de ser pertinen-
te lembrar que a importância de procurar entender as intenções de
um autor em um contexto específico está justamente no fato de isso
fornecer uma “sólida proteção contra as excentricidades do relativis-
mo” (GIDDENS, 1998, p. 18). Assim, penso ser justamente na tensão
entre a intencionalidade do autor, isto é, levando em conta o que ten-
cionava fazer ao escrever no contexto das questões da sua época, e os
significados heurísticos daquilo que realizou para a sociologia contem-
porânea que se deve buscar um entendimento contemporâneo dos
clássicos. É dessa perspectiva que retomo resultados de pesquisa mais
ampla sobre a recepção e o significado teórico heurístico da sociologia
política de Oliveira Vianna (BOTELHO, 2007).

2 A AtuALiDADE DE umA iNtERPREtAÇÃo Do bRASiL

Na década de 1920, em contraste com o que viria a predominar na


seguinte, a preocupação com a questão da formação da sociedade
brasileira partia da constatação da diversidade e das especificidades de
cada uma das suas regiões e da impossibilidade de pensar a socieda-
de em termos homogêneos. Não é por outro motivo que o ensaio de
estreia de Oliveira Vianna já traz em seu título, como um dado, a he-
terogeneidade brasileira. Populações meridionais do Brasil era parte de

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um projeto maior, e apenas parcialmente realizado, voltado justamente
para o esclarecimento das diferenças entre as “instituições” e a “cultura
política” das populações rurais do país. O primeiro volume, de 1920,
é dedicado às populações rurais do centro-sul – paulistas, fluminenses e
mineiros – que para o autor teriam sido as mais influentes na evolução
política nacional. A ele se seguiu o volume publicado apenas em 1952,
um ano após a morte do autor, dedicado ao extremo-sul do Brasil. O
terceiro volume, que não chegou a ser escrito, teria como objeto as
populações setentrionais do Brasil, o sertanejo e sua expansão pela hi-
leia amazônica. Assim, Oliveira Vianna identifica ao menos três histórias
distintas na formação brasileira, fazendo corresponder a cada uma delas
diferentes tipos de organização social e política e de cultura política: a do
norte, do centro-sul e do extremo-sul, que geram, respectivamente, três
tipos sociais específicos, o sertanejo, o matuto e o gaúcho. Três grupos que
demonstram, segundo o autor, “diversidades consideráveis” na “estrutura
íntima” dos brasileiros, por assim dizer (VIANNA, F. J. O., 1973, p. 15).
Mais importante ainda, a diferenciação da sociedade em diversas
regiões inscreve-se no próprio plano metodológico forjado nos seus
ensaios. Inspirado ao que tudo indica (CARVALHO, 1993, p. 160) pela
leitura de Les Français D’Aujourd’Hui (1898), de Edmond Demolins,
Oliveira Vianna defende a ausência de uma unidade fundamental à
sociedade brasileira, diretamente relacionada, em termos cognitivos,
à sua recusa de uma explicação unilateral da vida social. Assim, são os
diversos fatores de ordem racial, climática, geográfica e também social
por ele mobilizados que concorreriam para a sua visão do Brasil como
uma sociedade profundamente diferenciada entre regiões e tipos so-
ciopolíticos. Em Evolução do povo brasileiro, publicado originalmente
em 1923, por exemplo, explicita sua convicção e afirma:

qualquer grupo humano é sempre consequência da colaboração de


todos eles [aqueles diferentes fatores]; nenhum há que não seja a
resultante da ação de infinitos fatores, vindos, a um tempo, da Ter-
ra, do Homem, da Sociedade e da História. Todas as teorias, que
faziam depender a evolução das sociedades da ação de uma causa
única, são hoje teorias abandonadas e peremptas: não há atualmente
monocausalistas em Ciências Sociais (VIANNA, F. J. O., 1956, p. 30,
grifos do autor).

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Em Populações meridionais do Brasil, Oliveira Vianna evidenciou pro-
blemas cruciais da vida política brasileira, decorrentes, segundo sua tese,
do papel da estrutura fundiária na configuração da vida social forma-
da desde a colonização. Propriedades imensas, autossuficientes e ainda
por cima centros de gravitação das decisões políticas locais, ligando uma
massa de homens livres pobres aos latifundiários, teriam dificultado o
desenvolvimento do comércio, da indústria, das cidades e de seus atores
sociais característicos. Isso é válido, especialmente, para uma classe mé-
dia independente, base social crucial para o vigor associativo das socie-
dades anglo-saxônicas tomadas como contraponto à formação brasileira.
No entanto, essa volta ao passado, no momento em que a moder-
nização/urbanização começava a se impor significava, sobretudo, bus-
car perspectiva para pensar os dilemas do presente e as possibilidades
de futuro da sociedade. Que Brasil moderno seria possível construir?
A sociedade forjada no molde rural desapareceria?
Para Oliveira Vianna, apesar das mudanças em curso em sua época,
algumas estruturas e atitudes sociais do nosso passado rural continua-
vam desempenhando papéis cruciais, em especial na vida política.
Um exemplo seria a problemática relação entre as esferas pública e
privada na sociedade brasileira. Não apenas a fragilidade do público
contrastava com a pujança do privado, mas tais esferas também se
baralhavam, criando toda sorte de dilemas. Esse baralhamento tra-
zia enormes dificuldades para a identificação e a associação, visando
interesses comuns, para além dos círculos domésticos originalmente
ligados aos latifúndios. Também tornava as instituições públicas ex-
tremamente suscetíveis a programas voltados para a promoção de
interesses particulares. Além disso, distorcia a vida política em uma
trama de relações de fidelidades pessoais e contraprestação de favo-
res envolvendo toda sorte de bens materiais, prestígio, controle de
cargos públicos, votos etc. Em face dessa situação, para Vianna, seria
urgente reorganizar, fortalecer e centralizar o Estado, único ator que,
dotado dessas características, seria capaz de enfraquecer as oligarquias
agrárias e sua ação corruptora das liberdades públicas e individuais e,
desse modo, corrigir os defeitos da nossa formação nacional.
Justamente essa dimensão normativa da interpretação de Oliveira
Vianna despertou maior interesse em seus analistas. Permanecem
abertas, no entanto, as controvérsias quanto ao “sentido” de sua defesa

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do princípio autoritário de ordenamento político da vida coletiva –
autoritário pelo privilégio que concede à unidade e à ordem em
detrimento do conflito e da transformação da própria estrutura social –,
como a reforma agrária, por exemplo. Assim, discute-se se aquela
defesa é “substantiva” (LAMOUNIER, 1977) ou apenas “instrumental”,
ou seja, se o formato político proposto seria transitório para a realiza-
ção de uma sociedade liberal fundada na noção de direitos universais
(SANTOS, 1978). O mesmo debate foi reposto mais recentemente em
relação a sua visão “iberista” da modernidade como uma alternati-
va ao liberalismo “anglo-saxão”: novamente a questão é se esta seria
“instrumental” (VIANNA, L. W., 1993) ou não (CARVALHO, 1993).
Contribuiu para essa polêmica, sem dúvida, a identificação pessoal
de Oliveira Vianna ao Estado Novo (a ditadura instaurada por Getúlio
Vargas entre 1937 e 1945), no qual atuou decisivamente, sobretudo
como consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comér-
cio, tendo sido antes um dos responsáveis pela elaboração do antepro-
jeto para a Constituição de 1934 (considerada autoritária e centralista).
Embora as relações entre obra e trajetória de um autor não possam
ser menosprezadas, é preciso cuidado para não assimilar uma pela
outra, como se existisse uma predeterminação ou continuidade linear
entre elas. Tal cuidado aplica-se no caso de Oliveira Vianna, a come-
çar pelo fato de que suas ideias não permaneceram as mesmas, nem
foram sempre vencedoras nos embates intelectuais e institucionais
que travou. Mesmo sua convicção “autoritária” da ação transformadora
do Estado, presente no primeiro volume de Populações meridionais do
Brasil (1920), seu ensaio de estreia, foi contingente, tensa e descontí-
nua ao longo do desenvolvimento da sua obra e da sua trajetória.
Por exemplo, a afirmação feita em Instituições políticas brasileiras
(1949) de que os “complexos culturais” tenderiam à estabilidade re-
vela não apenas uma maturação de ideias, mas uma nova percepção
sobre os próprios limites da ação do Estado. Pois, ao mobilizar a cul-
tura para enfatizar a inutilidade de reformas políticas e jurídicas feitas
em desacordo com os valores assentados na sociedade pela tradição
(o que chama de “direito costumeiro”), Oliveira Vianna problematiza
sua própria posição inicial sobre a capacidade de o Estado recriar a
velha sociedade corrompida por práticas privatistas. Essa questão é
aprofundada no livro póstumo Introdução à história social da econo-

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mia capitalista no Brasil (1958), no qual propõe justamente uma vol-
ta aos valores “patriarcais” e “pré-capitalistas” presentes nas origens
da formação social brasileira como possibilidade de reordenação não
conflituosa da vida social.
Quando passamos, porém, dos aspectos mais salientes – e mais data-
dos – da obra e da trajetória de Oliveira Vianna e da recepção de suas
ideias, entrando nos aspectos teóricos mais gerais, é possível identifi-
car um conjunto de proposições que confere a sua sociologia política
um interesse mais amplo que o sentido normativo ao qual geralmen-
te é associada. Tomo para tanto uma questão central da sociologia
política de Oliveira Vianna, questão que expressa de modo emble-
mático como uma interpretação fortemente interessada da realidade
social pode produzir conhecimento sociológico relevante. Como se
sabe, era lugar-comum da crítica conservadora da Primeira República
(1889-1930), e não só dela, conferir às instituições republicanas uma
legalidade sem correspondência na sociedade – como se existissem,
desencontrados, um país “legal” (o da Constituição liberal de 1891) e
outro “real” (o do dia a dia da sociedade). Esse lugar comum é con-
firmado por evidências cotidianas de que os direitos, como princípios
normativos universais associados à tradição liberal, não se efetivavam
naquele contexto corrompido por toda sorte de práticas oligárquicas.
Como a maioria dos seus contemporâneos, embora com diferenças
entre eles, Oliveira Vianna descartou qualquer encaminhamento tipi-
camente liberal para a efetivação dos direitos e da cidadania. Formu-
lou, antes, outra concepção de cidadania, que suprimia a noção de in-
divíduo como portador de direitos e subordinava-o, como membro de
um grupo profissional, de modo vertical e tutelar ao Estado. E se a con-
trovérsia quanto ao sentido do seu autoritarismo permanece aberta,
como já assinalado, não se pode negligenciar que, naquele momento,
o liberalismo conferia força às pressões pela democratização política
e social. Em todo caso, a diferença de Oliveira Vianna em relação
aos seus contemporâneos que importa assinalar aqui é que ele soube
traduzir a crítica comum à Primeira República liberal-oligárquica em
termos teórico-metodológicos relativamente consistentes; além de tê-
la formalizado na tese segundo a qual os fundamentos e a dinâmica
das instituições políticas se encontrariam nas relações sociais.

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Exemplar é a discussão de Populações meridionais sobre a parciali-
dade da Justiça como um efeito contrário ao pretendido pela adoção
de instituições liberais – no caso, as eleições para juízes – em uma
sociedade oligárquica como a brasileira. Tal parcialidade ocorreria, de
um lado, porque os “caudilhos rurais”, que dominavam as câmaras
municipais e o aparelho eleitoral, só escolheriam para os juizados ho-
mens da sua confiança, de outro, porque a necessidade do sufrágio
local forçaria o próprio juiz a se fazer “criatura da facção” que o elege.
Assim, o juiz tornar-se-ia instrumento da “impunidade” ou da “vingan-
ça” conforme tivesse diante de si um “amigo” ou um “adversário” –
estamos aqui diante da familiar máxima “aos amigos tudo, aos inimigos
a lei”. Nesse, como em outros exemplos que poderiam ser tomados
quase ao acaso em sua obra, Oliveira Vianna expressa sua preocupa-
ção quanto aos impasses sociais produzidos pela desarticulação entre
as instituições liberais “transplantadas” e a realidade singular brasileira.
Mas o que o exemplo sugere, em termos teóricos, é também que as
instituições não são virtuosas em si mesmas, não são exatamente locais
de ação autônoma em relação aos valores e às práticas vigentes na
sociedade como um todo. E por isso mesmo, não podem ser tomadas
como variáveis independentes de outras forças sociais. Ao contrário,
as instituições políticas seriam inevitavelmente forçadas a interagir
com estruturas, relações e recursos sócio-históricos – e de poder legal
e extralegal – mais amplos. Dessa interação resultaria a dinâmica pos-
sível que as instituições políticas assumiriam na sociedade.
Essa proposição teórico-metodológica foi crucial na definição de
uma agenda de pesquisas da sociologia política brasileira posterior
(BOTELHO, 2007). Abrangendo continuidades e descontinuidades,
integram essa agenda Coronelismo, enxada e voto (1949), do jurista e
cientista político Victor Nunes Leal (1914-1985), diferentes pesquisas
sobre política, messianismo e cultura rural da socióloga Maria Isaura
Pereira de Queiroz e ainda Homens livres na ordem escravocrata
(1964), da socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, por exemplo.
Muito resumidamente pode-se dizer que tais trabalhos levaram às
últimas consequências a tese dos fundamentos sociais das institui-
ções políticas de Oliveira Vianna, tomando para si justamente a tarefa
de investigar, com os recursos próprios da sociologia, os processos de

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aquisição, distribuição, organização e exercício de poder político e
suas complexas relações com a estrutura social brasileira.
Por isso eles voltaram ao passado da sociedade brasileira para tratar de
fenômenos já assinalados por Oliveira Vianna, como “mandonismo”,
“coronelismo”, “relações de favor”, “parentela”, “voto de cabresto” e
“exercício personalizado do poder”. As relações de dominação polí-
tica não se sustentam sem uma base social de legitimação, e por essa
razão esses fenômenos foram vistos – tal como por Oliveira Vianna –
integrando um “sistema de reciprocidades” assimétricas que envol-
veria relações diretas, pessoalizadas e violentas engendradas entre os
diferentes grupos sociais. Estas seriam as bases sociais da vida política
brasileira. Como as inovações institucionais não se realizariam em um
vazio de relações sociais, essas bases não poderiam ser menospreza-
das, mesmo consumada a passagem da sociedade rural à urbana.
Ao problematizar a interação entre instituições políticas e vida so-
cial, de um lado, e a capacidade de ação de indivíduos e grupos e o
condicionamento dessas ações pelas estruturas sociais, de outro, tam-
bém essa vertente da sociologia política apresenta ganhos cognitivos
importantes para a compreensão de certos desafios ainda abertos à
cidadania democrática no Brasil como, por exemplo, o do associati-
vismo, condição da democracia quando a consideramos também do
ponto de vista societário (e não exclusivamente institucional). Fenômeno
social que, apesar do seu crescimento em nossa história recente, con-
tinua não apenas frágil como ainda muito marcado por princípios de
identidade e de conduta pouco universalistas, o que acaba por forta-
lecer uma atitude cética em relação às próprias instituições políticas.
Esse reconhecimento é mais importante quando observamos que a
reflexão feita no Brasil nos últimos vinte anos levou, significativamen-
te, a que se privilegiasse o funcionamento das instituições e seu papel
na vida social de modo quase independente, como se os processos
políticos existissem exclusivamente no âmbito sistêmico e não man-
tivessem nenhuma espécie de vínculo com o “mundo da vida”. Essa
abordagem que, em larga medida, tem um débito com a economia
neoclássica (Habermas chega a falar em “colonização” das ciências
sociais pela economia para explicar essa operação intelectual), tem
por fundamento as escolhas e preferências de eleitores e políticos,
concebidos essencialmente como calculadores, maximizadores, utili-

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taristas, em suma, rational choice. Esse ângulo de análise, ainda que
tenha contribuído para a elaboração de pesquisas preocupadas com a
demonstração empírica e com a descrição dos fenômenos analisados,
teve também o inconveniente de abdicar excessivamente de outras
dimensões do fenômeno político que vão além do homus economicus
e da lógica estritamente institucional (BOTELHO; LAHUERTA, 2005).
Afinal, será mesmo que, apesar das mudanças sociais e institucio-
nais dos últimos tempos, aquilo que Oliveira Vianna identificou – o
baralhamento entre público e privado e suas consequências no modo
como lidamos cotidianamente com as instituições e a vida política –
simplesmente desapareceu? Creio que não faltarão elementos no ho-
rizonte pessoal do próprio leitor para que possa responder à pergunta.

CoNSiDERAÇÕES fiNAiS: iNtÉRPREtES Do


bRASiL, NoSSoS ANtEPASSADoS?

No prefácio que escreveu para seu livro Os nossos antepassados,


Ítalo Calvino confessa seu desejo pessoal de liberdade ao escrever ao
longo da década de 1950 as três histórias “inverossímeis” reunidas no
livro, com relação à classificação de “neorrealista” a que seus escritos
anteriores o haviam levado. Mas com sua trilogia procurou, sobretudo,
sugerir três níveis diferentes de aproximação da liberdade na experiên-
cia humana que “pudessem ser vistas como uma árvore genealógica
dos antepassados do homem contemporâneo, em que cada rosto ocul-
ta algum traço das pessoas que estão a nossa volta, de vocês, de mim
mesmo” (CALVINO, 1999, p. 20)4. Mais do que o caráter imaginário
da “genealogia” (certamente importante, mas não surpreendente, já
que toda pretensão genealógica traz sempre boa dose de bovarismo),
a confissão de Calvino esclarece, quando se leva em conta o contexto
desses seus escritos – “Estávamos no auge da guerra fria, havia uma
tensão no ar, um dilaceramento surdo, que não se manifestavam em
imagens visíveis mas dominavam os nossos ânimos” (CALVINO, 1990,
p. 9) – o quanto, sobretudo em momentos particularmente dramáticos
em termos sociais, a busca de uma perspectiva que permita ligar a ex-

4
A trilogia é composta por O visconde partido ao meio, O barão nas árvores
e O cavaleiro inexistente.

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periência presente ao passado pode representar “um impulso para sair
dele (do presente) e, então, divisar melhor as possibilidades de futuro.
Essa estranha reflexão de Calvino sobre a utopia, na qual a recons-
trução do passado tem papel crucial na construção do futuro, é boa
para pensar o tipo de trabalho intelectual envolvido na área de pes-
quisa do pensamento social brasileiro. Isso não apenas porque os en-
saios de interpretação do Brasil que formam a matéria-prima da área
inovaram nessa mesma direção ao ensinarem a pensar a dimensão de
processo social inscrita no presente vivido, como Antonio Candido
(2006, p. 235) se refere ao legado da geração de ensaístas da década
de 1930 para a sua própria geração. Mas, sobretudo, porque, as inter-
pretações do Brasil são elementos importantes para a compreensão da
articulação das forças sociais que operam no desenho da sociedade
e que contribuem para movê-la em determinadas direções. Ou seja,
não se pode negligenciar a vigência dessas formas de pensar o Brasil
na esfera da “cultura política”, como foi comum ao nosso ambiente
acadêmico entre as décadas de 1970 e 1990, porque muitas delas de-
ram vida a projetos, foram assumidas por determinados grupos sociais
e se institucionalizaram, informando ainda hoje valores, condutas e
práticas sociais.
Como espero ter sugerido com a discussão sobre Oliveira Vianna, a
aproximação das interpretações do passado às questões e perguntas
do presente é suscitada porque os desafios atuais de qualquer socie-
dade também estão associados à sequência do seu desenvolvimento
histórico.
Assim, como ocorre em relação aos antepassados inverossímeis de
Calvino, são as relações sociais e políticas em curso na sociedade bra-
sileira que nos interpelam constantemente a voltar às interpretações
de que foi objeto no passado, e não o contrário. Porque, afinal, po-
demos identificar nas interpretações do Brasil proposições cognitivas
e ideológicas que ainda nos dizem respeito, já que o processo social
por elas narrado – de modo realista ou não, mas em face das questões
e com os recursos intelectuais que o seu tempo tornou disponíveis –
permanece, ele mesmo, em vários sentidos em aberto. Se do ponto de
vista substantivo, esse processo encontra inteligibilidade sociológica na
modernização conservadora em que, feitas as contas dos últimos anos,
prosseguimos, e a partir da qual a mudança social tem se efetivado

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a despeito de deixar praticamente intactos ou redefinidos noutros
patamares problemas seculares; também do ponto de vista teórico-
metodológico, embora sejam inegáveis os ganhos epistemológicos das
Ciências Sociais institucionalizadas como disciplina acadêmica, não
existem razões suficientes para superestimá-los como se tivessem per-
mitido resolver de modo permanente os problemas que os ensaístas
ou os cientistas sociais das gerações anteriores levantaram.
Considero, assim, que a conexão entre pensamento social e teoria
sociológica, aproximando questões do presente a interpretações do pas-
sado, permite fazer uma crítica consistente à abstração da constituição
diacrônica e dinâmica da sociedade e, desse modo, questionar a ten-
dência de parte importante da sociologia contemporânea a se refugiar
no presente. É essa, aliás, uma das conquistas heurísticas da sociolo-
gia historicamente orientada em geral, ao permitir, na investigação das
interrelações de ações significativas e contextos estruturais, a compreen-
são das consequências inesperadas e também das pretendidas nas vidas
individuais e nas transformações sociais (SKOCPOL, 1984).
A abordagem analítica proposta justifica-se, então, fundamental-
mente, tendo em vista o próprio perfil cognitivo das Ciências Sociais,
em geral, e da sociologia, em particular. Em primeiro lugar, sendo o
sentido da construção do conhecimento sociológico cumulativo, ain-
da que cronicamente não consensual (GIDDENS, 1998; ALEXANDER,
1999), o reexame constante de suas realizações passadas inclusive
pela exegese de textos assume papel muito mais do que tangencial na
prática corrente da disciplina. Em segundo, porque, se “é verdade que
há impasses reais no presente, também é verdade que as controvérsias
sobre o seu objeto e método são mais ou menos permanentes” em
função da própria singularidade da sociologia “que sempre se pensa,
ao mesmo tempo em que se realiza, desenvolve, enfrenta impasses,
reorienta” (IANNI, 1990, p. 92). Assim, confrontada às sínteses so-
ciológicas do passado, a realização de pesquisas “concretas” sobre as
diferentes dimensões da vida social no presente imediato talvez possa
nos dar uma visão mais integrada e consistente da dimensão de pro-
cesso social que o nosso presente ainda oculta – um fio de Ariadne,
por assim dizer.
Essa tarefa se torna mais necessária na medida em que percebe-
mos que as interpretações do Brasil operam não apenas em termos

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cognitivos, mas também normativos. Elas são forças sociais que direta
ou indiretamente contribuem para delimitar posições, conferindo-lhes
inteligibilidade, em diferentes disputas de poder travadas na socieda-
de. Os ensaios, como outras formas de conhecimento social, não são
meras descrições externas da sociedade. Eles também operam reflexi-
vamente, desde dentro, como um tipo de metalinguagem da própria
sociedade brasileira, como uma semântica histórica que participa da
configuração de processos sociais mais amplos, como o da construção
do Estado-nação (BOTELHO, 2005). Com efeito, resultados recentes
de surveys sobre cultura política, por exemplo, indicam que categorias
centrais daquelas interpretações continuam informando a opinião dos
brasileiros e parecem em parte dar coesão ao próprio senso comum
(ALMEIDA, 2007, por exemplo).
O legado intelectual e político que Oliveira Vianna, Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque, Caio Prado e outros intérpretes nos deixaram ainda
nos diz respeito, quer seja para aceitá-lo ou rejeitá-lo, e tenhamos nós
consciência disso ou não. E quando lembramos que um traço marcan-
te da dinâmica social brasileira tem sido a impressão (quase sempre
interessada) de que a nossa vida intelectual está sempre recomeçando
do zero a cada nova geração (SCHWARZ, 1987, p. 30), maior a im-
portância desse tipo de pesquisa. Enfim, porque as interpretações do
Brasil não são apenas descrições externas, mas também operam como
um tipo de metalinguagem reflexiva da sociedade, elas representam,
em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea,
um espaço social de comunicação entre presente, passado e futuro
que, adaptando Calvino, poderá nos dar uma visão mais integrada e
consistente do processo histórico que o nosso presente ainda oculta –
e que está “a nossa volta, de vocês, de mim mesmo”.

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CotAS AumENtAm A
DivERSiDADE DoS
EStuDANtES SEm
ComPRomEtER o
DESEmPENHo?1
Fábio D. Waltenberg
Márcia de Carvalho

1
Os autores agradecem a um parecerista anônimo e à editoria da revista
pelas sugestões, comentários e críticas. Também foram importantes os comen-
tários recebidos na apresentação deste estudo no XVII Encontro da Sociedade
de Economia Política, bem como, previamente, em seminários internos do
Núcleo de Estudos em Educação (NEE) do Centro de Estudo sobre Desigual-
dade e Desenvolvimento (Cede).

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Políticas de ação afirmativa (cotas ou bônus; “raciais” ou “sociais”) têm sido
implementadas no Brasil nos últimos dez anos com o objetivo de reduzir a
desigualdade de oportunidades, por meio do aumento da probabilidade de
acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior. Neste estudo, a partir dos
dados mais recentes do Enade disponíveis, traça-se um perfil dos concluintes
dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos beneficiados por ações
afirmativas com os demais alunos, inclusive no que se refere ao desempenho
na prova de conhecimentos específicos. Nossos resultados sugerem que as di-
versas políticas de ações afirmativas foram bem-sucedidas no objetivo de pro-
porcionar maior diversidade – entendida como maior representação de grupos
desfavorecidos – nas universidades. Nas Instituições de Ensino Superior (IES)
privadas, não se registram fortes hiatos de desempenho entre alunos beneficiá-
rios das ações afirmativas e não beneficiários, a não ser em cursos com alto
prestígio social. Nas IES públicas o desempenho dos beneficiários é inferior ao
dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Interpreta-se esse hiato como
um preço pago pela sociedade em prol da diversidade e da equalização das
oportunidades.
Palavras-chave: ações afirmativas; ensino superior; desempenho; igualdade de
oportunidades

Different kinds of affirmative action policies have been implemented in Brazil


along the last decade, aiming at reducing the inequality of opportunities, through
an increase in the probability of access to higher education of disfavored
groups. In this study, employing the most recent available Enade datasets, we
portray the profile of the higher education graduates evaluated in 2008, com-
paring beneficiaries of affirmative action policies and non-beneficiaries in terms
of their performance in a (course-specific) standardized test administered to
all graduates. Our results suggest that the diversified affirmative action policies
have achieved the goal of increasing socioeconomic diversity in Brazil’s campu-
ses. In private institutions of higher education the performance of beneficiaries
and non-beneficiaries is similar, except for high status courses, where beneficia-
ries achieve a lower performance. In the public institutions, however, whatever
the social status of the course, the performance of beneficiaries is systematically
lower than that of non-beneficiaries. We interpret this finding as the price socie-
ty pays in order to increase diversity and equalize opportunities.
Keywords: affirmative action policies; higher education; performance; equality
of opportunities

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iNtRoDuÇÃo

A educação afeta diversas dimensões da vida social e econômica


de um país. Quanto mais se investe em educação, além dos efeitos
diretos positivos na economia do país, maior é o retorno à sociedade
em termos de bem-estar, redução das taxas de fecundidade e morta-
lidade, e possivelmente redução dos índices de violência. A educação
superior, em particular, tem impacto no mercado de trabalho e na
capacidade de absorção de inovação tecnológica e produtividade.
Em termos de benefícios privadamente apropriados pelos indivíduos,
no Brasil, a conclusão de um curso de graduação é acompanhada por
uma menor taxa de desemprego e por um retorno financeiro 2,6 ve-
zes maior, em média, comparado com os que pararam os estudos no
ensino médio (CARVALHO, 2011). Apesar deste prêmio à educação
superior, que no Brasil ainda é alto comparado com o observado em
países desenvolvidos, dados da Pnad de 2009 indicam que apenas
11% da população adulta brasileira tinham curso de graduação e que
havia um estoque de 29 milhões de pessoas de 16 a 40 anos com en-
sino médio completo que poderiam estar cursando o ensino superior.
Ainda mais preocupante do que a (baixa) proporção de diplomados
na população seria constatar pouca diversidade socioeconômica entre
os estudantes. E de fato, embora entre 2006 e 2008 85% dos con-
cluintes do ensino médio fossem oriundos do sistema público de ensi-
no, dos indivíduos que ingressaram nos cursos de graduação no Brasil
nesse período, apenas 57% provinham do ensino médio público. Na
mesma linha, em 2009, enquanto 45% das pessoas com ensino mé-
dio completo provinham de famílias relativamente pobres (com renda
familiar de até 3 salários mínimos), entre os ingressantes do ensino
superior essa proporção caía para 39%. Considerando apenas as pes-
soas com ensino médio completo, 50,3% se declararam não brancas
enquanto entre os ingressantes dos cursos de graduação a incidência
desse grupo era de 36,4%.
De acordo com a teoria de igualdade de oportunidades do econo-
mista John Roemer (1998), muito em voga atualmente (FLEURBAEY,
2008; FERREIRA; GIGNOUX, 2011), quando existe sub-representa-
ção por parte de um grupo socioeconômico, definido pela sociedade
como relevante e legítimo, no acesso a um serviço ou vantagem –

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como ocorre com o acesso de certos grupos ao ensino superior no
Brasil – estamos diante de um problema de desigualdade de oportuni-
dades, uma vez que, em tal caso, a dificuldade de obter acesso ao ser-
viço ou vantagem deve ter sido causada sobretudo por circunstâncias
desfavoráveis.
No caso do ensino superior, uma tentativa de mitigar o problema
de acesso limitado de certos grupos consiste na aplicação de políticas
de ação afirmativa. As ações afirmativas podem ser compreendidas
como programas que buscam prover oportunidades ou outros bene-
fícios para pessoas pertencentes a grupos específicos, alvo de discri-
minação ou com pouco acesso a recursos (IPEA, 2008) e têm sido
aplicadas em vários países e em diferentes etapas da educação, bem
como no mercado de trabalho. No Brasil, as ações afirmativas têm se
concentrado no acesso aos cursos de graduação, por meio de diferen-
tes instrumentos: cotas e bônus, ditos “raciais” ou “sociais”. As cotas
“raciais” utilizam como critério a cor da pele do aluno, de acordo com
autodeclaração. Os critérios “sociais” baseiam-se numa baixa renda
familiar ou no fato de o aluno ser oriundo do ensino médio público
(escolas municipais, estaduais ou federais ou de cursos supletivos pre-
senciais de educação de jovens e adultos). Há casos em que ambos os
critérios são considerados simultaneamente, quando vagas são reser-
vadas, por exemplo, a alunos negros pobres.
Em sociedades democráticas, políticas de ação afirmativa são (e
sempre serão) controvertidas, principalmente porque: a) envolvem re-
distribuição de um bem escasso – como são as vagas nas universidades
de melhor qualidade no Brasil –, gerando “ganhadores e perdedores”;
b) representam uma mudança das regras vigentes e, portanto, um de-
safio ao status quo prevalecente anteriormente, suscitando reação dos
grupos que, sem tais políticas, tinham ou teriam acesso à vantagem em
questão e veem-se agora ameaçados; c) proporcionam oportunidades
a grupos desfavorecidos, usualmente com menos voz no debate pú-
blico do que grupos favorecidos. Não é por acaso, portanto, que há (e
sempre haverá) disputa política em torno dos critérios definidores dos
potenciais beneficiários das ações afirmativas, bem como em torno de
sua própria legitimidade.
Em razão dessa disputa política, variadas críticas são levantadas con-
tra as ações afirmativas. Duas das mais comuns são: a) políticas de

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ação afirmativa beneficiariam somente os membros mais favorecidos
dos grupos desfavorecidos, sendo, portanto, injustas2; b) por garantirem
vagas a alunos que, em sua ausência, não entrariam na universidade,
tais políticas teriam como consequência uma queda na “qualidade” dos
ingressantes e, provavelmente, dos concluintes.
As políticas de ação afirmativa têm sido implementadas no Brasil
desde 2001 – já há mais de uma década, portanto – iniciando-se com
ações pioneiras nos estados do Rio de Janeiro e Bahia e no Distrito
Federal. O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade)
avalia o rendimento dos alunos ingressantes e concluintes dos cursos
de graduação, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos em
que estão matriculados, desde 2004. Contudo, perguntas sobre ações
afirmativas apareceram no questionário socioeconômico do Enade so-
mente a partir de 2008 – justamente os dados mais recentes disponi-
bilizados pelo Inep.
De posse desses dados, é possível traçar um perfil socioeconômico
dos concluintes dos cursos avaliados em 2008, comparando-se alunos
beneficiados por ações afirmativas com demais alunos, inclusive no
que se refere a seu desempenho na prova de conhecimentos específi-
cos. Assim, buscamos contribuir com o debate sobre as ações afirmati-
vas, trazendo elementos relacionados às duas críticas já mencionadas.
Somos capazes de investigar, de um lado, o quão desfavorecidos são os
beneficiários das ações afirmativas, e, de outro lado, se o seu desempe-
nho no Enade é significativamente inferior ao dos demais concluintes.

2
Com relação à questão normativa que permeia a primeira crítica, ressalte-se
que, segundo a definição de igualdade de oportunidades de Roemer, não há
nenhuma injustiça no fato de os beneficiados de uma política serem os mais
favorecidos dentro do seu grupo (ou “tipo” no jargão roemeriano). Contanto
que tenham sido corretamente definidos os tipos (isto é, devidamente con-
sideradas as circunstâncias limitantes do acesso à vantagem em questão), os
mais favorecidos dentro de cada tipo seriam justamente aqueles que, dadas as
suas circunstâncias, teriam se dedicado mais, feito mais esforços. Uma crítica
mais pertinente consistiria em se afirmar que critérios unidimensionais – com
base exclusivamente na cor da pele, por exemplo – inescapavelmente cons-
tituem definições incompletas de tipos. Para mais detalhes, veja-se Roemer
(1998), ou Waltenberg (2007) para uma interpretação da teoria daquele autor
aplicada ao caso das universidades brasileiras.

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Entendendo-se como “diversidade” uma maior representação de
grupos desfavorecidos, nossa análise dos dados sugere que as diversas
políticas de ações afirmativas foram de fato bem-sucedidas no objeti-
vo de proporcionar maior diversidade nas universidades. Nas Institui-
ções de Ensino Superior (IES) privadas, não se registram fortes hiatos
de desempenho entre alunos beneficiários das ações afirmativas e não
beneficiários, a não ser em cursos com alto prestígio social. Nas IES
públicas, contudo, o desempenho dos beneficiários é inferior ao dos
demais alunos, para todos os tipos de cursos. Interpretamos esse hiato
como um preço pago pela sociedade em prol da diversidade e da
equalização das oportunidades.
Este trabalho está dividido em cinco seções, além desta introdução.
A seção 1 contém um breve histórico das ações afirmativas. A seção
2 é metodológica e descreve a base de dados do Enade de 2008 e
as variáveis utilizadas no trabalho. A seção 3 traça o perfil dos alunos
que ingressaram por ações afirmativas nas instituições públicas e que
conseguiram concluir o curso de graduação, bem como o dos demais
concluintes. Na seção 4, apresentam-se resultados de uma tentativa
de se mensurar o efeito da forma de ingresso do aluno (por ação afir-
mativa ou não) na nota do aluno no teste de conhecimentos específi-
cos aplicado no ano da conclusão da graduação. A seção final traz as
conclusões do trabalho.

1 bREvE HiStÓRiCo DAS PoLÍtiCAS


DE AÇÃo AfiRmAtivA No bRASiL

Ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas e privadas


cujo objetivo é implantar certa diversidade e maior representatividade
de grupos minoritários nos diversos domínios de atividade pública e
privada, além de combater a discriminação (GOMES, 2001). Ações
afirmativas surgiram em caráter compulsório, facultativo ou voluntário
para combater a discriminação racial, de gênero, de origem nacional e
por deficiência física, visando a atingir o ideal de igualdade de acesso
a bens fundamentais como a educação e o emprego.
Os programas de ações afirmativas surgiram nos EUA após a Se-
gunda Guerra Mundial na contratação de empregados negros pelas
empreiteiras, mas ganharam força na década de 1960 com o movi-

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mento dos direitos civis. Aos poucos as políticas foram estendidas às
mulheres, aos indígenas e aos deficientes físicos e sua aplicação che-
gou também a instituições de ensino. A Universidade da Califórnia
foi pioneira no estabelecimento de programas em prol de minorias.
Segundo Oliven (2007), em julho de 1995 o programa de ação afir-
mativa com base na cor da pele foi suspenso, tendo como resultado
uma redução do percentual de alunos negros rumo aos níveis dos anos
1960. Esse percentual voltou a aumentar nos campi e cursos menos
seletivos a partir de 2001 com a admissão automática dos melhores
alunos das escolas públicas. Atualmente, várias universidades públicas
em estados como Califórnia, Washington e Flórida, que proibiram a
ação afirmativa com base na cor da pele, usam a situação econômica
como fator de decisão nas admissões.
A implementação de políticas de ação afirmativa no âmbito da edu-
cação superior no Brasil se iniciou em 2000 no estado do Rio de Janeiro,
com a Lei Estadual n° 3.524 que reservava 50% das vagas da Univer-
sidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Univeridade Estadual
do Norte Fluminense (UENF) para alunos oriundos da rede pública
estadual de ensino. Em 2001 foi promulgada a Lei Estadual n° 3.708
que reservava 40% das vagas da Uerj e UENF para negros e pardos.
Com essas duas leis, 90% das vagas das universidades estaduais do Rio
de Janeiro estariam reservadas, o que gerou muita polêmica e discus-
são, segundo Matta (2010). Em 2003 as duas leis foram revogadas e
determinou-se que 45% das vagas deveriam ser reservadas: 20% para
negros, 20% para concluintes do ensino médio público e 5% para de-
ficientes físicos e minorias étnicas.
Além das reservas de vagas (cotas), as ações afirmativas no ingresso
ao ensino superior têm utilizado o instrumento de bonificação. Nesse
sistema, os alunos recebem uma quantidade de pontos que são soma-
dos ao resultado de seu exame de seleção. A seguir, comentamos as
experiências pioneiras tanto de cotas como de bonificações.

1.1 A ExPERiêNCiA DAS CotAS NA uERJ,


uENf, uNb, ufPR E ufbA

As universidades pioneiras na adoção de políticas de ação afirma-


tiva no ingresso de seus cursos foram, então, a Uerj e a UENF por

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meio de cotas em 2001. Estima-se que atualmente a Uerj tenha
nove mil alunos cotistas e até agora não há estudo publicado sobre
seu desempenho; entretanto, Matta (2010) fez um estudo do perfil
socioeconômico dos cotistas da UENF, aplicando um questionário
a uma amostra de 40% dos ingressantes de 2003 distribuídos entre
cotistas negros ou pardos, cotistas de rede pública e não cotistas. Os
resultados indicam perfis socioeconômicos semelhantes de cotistas
e não cotistas.
Em 2004 a Universidade de Brasília (UNB) implementou o sistema
de cotas, reservando 20% das vagas de cada curso para alunos que se
autodeclararam negros e pardos. Com esse sistema, o percentual de
negros e pardos na universidade subiu de 2,0% em 2004 para 12,5%
em 2006. Diferentemente do observado por Matta (2010), o perfil
socioeconômico dos cotistas revelou-se muito diverso do de não cotis-
tas: enquanto 15% dos cotistas negros tinham pais analfabetos ou com
ensino fundamental incompleto, entre os não cotistas esse percentual
era de apenas 6% (IPEA, 2008). Com relação ao desempenho, não
foram observadas diferenças significativas entre cotistas e não cotis-
tas: 89% dos alunos cotistas negros foram aprovados nas disciplinas
cursadas enquanto 93% dos não cotistas foram aprovados; na média
geral do curso, que varia até 5, os cotistas ficaram com 3,75 e os não
cotistas com 3,79 (IPEA, 2008).
Também em 2004 a Universidade Federal do Paraná (UFPR) adotou
o sistema de cotas com o Programa de Inclusão Social e Racial que
reserva 20% das vagas dos cursos de graduação para alunos egressos
do ensino médio público e 20% para alunos afrodescendentes. Com
essa política, o percentual de afrodescendentes aprovados na univer-
sidade aumentou de 7% em 2003 para 21% em 2005. Segundo Souza
(2007), o problema encontrado pela universidade é o preenchimento
das vagas reservadas aos afrodescendentes: em 2005 foram disponibi-
lizadas 800 vagas nas cotas raciais mas apenas 489 fizeram matrícula
por esse sistema (61%) e em 2006 apenas 278 alunos foram matricu-
lados (35%).
Em 2005 foi a vez da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que
implementou o sistema de cotas raciais e sociais sobrepostas da se-
guinte forma: 45% das vagas do vestibular são reservadas sendo que
38% são para negros egressos do sistema público de ensino, 5% para

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egressos do sistema público e 2% para estudantes indígenas. Com essa
política, a participação dos negros na universidade passou de 43% em
1997 para 75% em 2005. Com relação ao perfil socioeconômico dos
cotistas, Reis (2007) observou que eles são mais velhos (23-33 anos de
idade) do que os não cotistas (17-19 anos). Os alunos cotistas apre-
sentam desempenho igual ou superior aos não cotistas. O principal
problema seria a permanência dos alunos cotistas na universidade,
mesmo com as bolsas de manutenção oferecidas aos alunos (de
R$ 200,00 a R$ 280,00).

1.2 A ExPERiêNCiA DE boNifiCAÇÃo


NA uNiCAmP E NA uff

Em 2004 a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) instituiu,


no acesso a seus cursos de graduação, um sistema de bonificação que
consiste na adição de 30 pontos à nota da segunda fase do vestibular
para os candidatos que cursaram integralmente o ensino médio na
rede pública de ensino ou que sejam egressos dos cursos supletivos
presenciais de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além dos 30 pon-
tos, os candidatos que se autodeclaram negros, pardos ou indígenas
recebem mais 10 pontos. Com relação ao desempenho, em 31 cursos
de graduação da Unicamp (do total de 55, ou seja, em 56% deles), os
alunos que receberam bônus obtiveram média de desempenho supe-
rior aos demais estudantes do curso.
Em 2009 a Universidade Federal Fluminense (UFF) começou a
adotar ações afirmativas para os alunos egressos do ensino médio
das redes municipal e estadual. Foi a primeira universidade federal
do Estado do Rio de Janeiro a adotar o sistema de bonificação. Esse
sistema é aplicado somente na segunda fase do concurso – o aluno
precisa fazer a primeira fase, acertar ao menos 50% das questões e
não zerar nenhuma prova – e consiste na adição de 10% à nota total
(que soma o desempenho da primeira e da segunda fases). Segundo
Ventura (2011), dez alunos provenientes de escolas públicas foram
aprovados para Medicina em 2011, algo raro nos anos anteriores. O
mesmo aconteceu com os cursos de Odontologia e Direito. Em 2012
o percentual da bonificação aumentou de 10% para 20%.

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1.3 o ComPoNENtE DE AÇÃo AfiRmAtivA
PRESENtE No PRouNi

Apesar dos exemplos da seção anterior, apenas 9% dos ingressan-


tes de instituições públicas em 2009, totalizando 36.294 alunos, são
oriundos de reserva de vagas (cotas) segundo o Inep (2010). É bom
lembrar também que 80% das matrículas dos cursos de graduação no
Brasil são oferecidos por Instituições de Ensino Superior (IES) privadas.
Em 2004, o governo federal criou o Programa Universidade para
Todos – ProUni que foi instituído pela Lei n° 11.096 em 13 de janeiro
de 2005. O ProUni é dirigido aos estudantes com melhores desem-
penhos no Enem que concluíram o ensino médio na rede pública ou
bolsistas integrais da rede particular que possuem renda familiar per
capita de até 3 salários mínimos. São três tipos de bolsa: integral, par-
cial com 50% de desconto e parcial com 25% de desconto. A bolsa
integral é oferecida a ingressantes com renda familiar per capita de
até 1,5 salário mínimo. A bolsa parcial de 50% beneficia estudantes
com uma renda familiar per capita de até 3 salários mínimos. A bolsa
parcial de 25% é aplicada somente em cursos cuja mensalidade seja
de até R$ 200,00. O ProuUni determina também que as IES privadas
reservem parte das bolsas aos alunos com deficiência e aos autodecla-
rados indígenas, negros ou pardos segundo o percentual da popula-
ção de negros ou pardos na unidade da federação da IES conforme o
censo do IBGE.
Segundo o Resumo Técnico do Censo da Educação Superior de
2009, três em cada dez matriculados nas instituições privadas pos-
suem bolsa de estudo, sendo que 82,5% (1.019.532 alunos) são do
Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), da própria IES ou do gover-
no estadual/municipal e apenas 17,5% delas (215.777 alunos) são do
ProUni.
O relatório disponível na página do ProUni com dados gerados
pelo Sisprouni em 17/6/2011 afirma que nesse ano foram oferecidas
254.598 bolsas, sendo que 51% integrais e 49% parciais. Esse relatório
também oferece a informação que 47,6% dos bolsistas se declararam
brancos, 47,9% pardos ou negros e 12,5% se declararam amarelos. O
restante não informou a raça/cor ou se declarou indígena.

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2 A bASE DE DADoS E A mEtoDoLoGiA
2.1 A bASE DE DADoS Do ENADE

O Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) ava-


lia o rendimento dos alunos dos cursos de graduação, ingressantes
e concluintes, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos
em que estão matriculados. O exame é obrigatório para os alunos
selecionados e é condição indispensável para a emissão do históri-
co escolar. Apesar de obrigatório, ter um resultado ruim no exame
não traz nenhuma consequência ao aluno – por exemplo, ele não é
prejudicado no mercado de trabalho – o que levanta dúvidas quan-
to à confiabilidade dos resultados como indicativo da “qualidade”
dos concluintes e nos conduz a ter muito cuidado ao tirar nossas
conclusões. Não há razões para crer que o comportamento de be-
neficiados por ações afirmativas difira do de não beneficiados neste
aspecto.
A primeira aplicação do Enade ocorreu em 2004 e a periodicidade
máxima com que cada área do conhecimento é avaliada é trienal. A
aplicação é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao
Ministério da Educação (MEC), que o faz periodicamente, sendo-lhe
permitida a utilização de amostragem, levando em conta para esse fim
estudantes em final do primeiro ano (ingressantes) e do último ano
(concluintes) dos cursos de graduação, selecionados por área, a cada
ano, para participarem do exame.
A participação no Enade é obrigatória, cabendo à instituição de edu-
cação superior a inscrição de todos os estudantes habilitados. Contudo
são admitidos estudantes não selecionados na amostra, desde que por
opção pessoal feita junto à instituição de ensino à qual está vinculado
o aluno. O registro de participação é condição indispensável para a
emissão do histórico escolar, independentemente de o estudante ter
sido selecionado ou não na amostragem. Neste caso, constará do seu
histórico escolar a dispensa do Enade pelo MEC.
O exame abrange a aprendizagem durante o curso (exame de co-
nhecimentos específicos, CE) além de competências profissionais e
formação geral (exame de formação geral, FG). Os alunos também
respondem questionário socioeconômico-educacional e outro de

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percepção sobre o teste. Coordenadores de curso também respondem
questionário que busca coletar informações sobre o projeto pedagógi-
co e as condições gerais de ensino oferecidas. Este artigo utiliza como
desempenho do aluno a nota do concluinte no exame de conheci-
mentos específicos do curso de graduação. Seria interessante utilizar
como contribuição do curso o conhecimento acumulado e não a nota
do concluinte, porém o Enade não disponibiliza a nota do exame do
concluinte quando este era ingressante.
Como dito na introdução, apesar de o Enade ser realizado desde
2004 e o Brasil incluir ações afirmativas no acesso ao ensino de gra-
duação desde 2001, perguntas sobre ações afirmativas apareceram no
questionário socioeconômico do Enade somente a partir de 20083.
Como os dados mais recentes disponíveis no site do Inep são os de
2008, são estes os que utilizamos em nosso estudo. Em 2008, a per-
gunta feita no questionário era: “Seu ingresso no curso de graduação
se deu por meio de políticas de ação afirmativa da IES?” As respostas
possíveis do questionário eram:
a) “Sim, por meio de reserva de vagas étnico-raciais”, isto é, por
meio das chamadas “cotas raciais”;
b) “Sim, por meio de reserva de vagas com recorte social”, isto é,
por meio de cotas que utilizam a renda familiar ou egressos de
escolas públicas;
c) “Sim, por meio de sistema distinto dos anteriores”, isto é, bonifi-
cação na nota ou, no caso das instituições privadas, pelo ProUni.
d) “Não”.
O Enade de 2008 avaliou uma amostra de 167.704 concluintes
dos seguintes cursos: arquitetura, ciências da computação, biologia,
ciências sociais, engenharia, filosofia, física, geografia, história, letras,
matemática, pedagogia e química. Considerando o peso amostral, os
dados são representativos de 269.046 concluintes, ou seja, 33,6% dos
concluintes do ano.
Por fim, cabe ressaltar que em alguns momentos apresentaremos
resultados separados segundo o prestígio social dos cursos – baixo,
médio ou alto –, categorias definidas de acordo com o cruzamento

3
As respostas foram alteradas em 2009 e 2010, o que dificultará a composi-
ção de uma série histórica sobre esse assunto.

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de informações acerca das proporções de não brancos, egressos de
ensino médio público e baixa escolaridade dos pais nos diferentes
cursos.

2.2 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo Do CoNCLuiNtE


E vARiÁvEiS SoCioECoNômiCAS

Para comparar o desempenho dos concluintes que ingressaram por


ação afirmativa com os outros concluintes, cotejamos algumas estatís-
ticas descritivas (média, mediana e desvio padrão) da nota da prova
de conhecimentos específicos dos dois tipos de concluintes das insti-
tuições federais, estaduais e privadas.
Como as estatísticas descritivas são números que descrevem e resu-
mem toda uma distribuição, também nos pareceu relevante comparar
visualmente distribuições de notas dos concluintes por meio de gráfi-
cos, alguns dos quais contendo controles para o nível educacional dos
pais dos concluintes.
Para aprofundar essa relação com a inclusão de novas variáveis de
controle, estima-se um modelo econométrico log-linear (ou semiloga-
rítmico), no qual a variável dependente é o logaritmo da nota bruta do
concluinte na prova de conhecimentos específicos (Yi).
As variáveis independentes utilizadas no modelo final são:
a) Gênero (x1): variável binária assumindo 1 se o concluinte for do
gênero feminino e 0 se masculino;
b) Cor (x2): variável binária assumindo 1 se o concluinte se autode-
clarar não branco (preto, pardo ou mulato) e 0 se branco;
c) Ensino médio (x3): variável binária assumindo 1 se todo (ou a
maior parte) do ensino médio do concluinte tiver sido cursado
em escola pública e 0 se todo (ou a maior parte) tiver sido cur-
sado em escola privada;
d) Educação dos pais como proxy de perfil socioeconômico do alu-
no (x4): variável contínua, que varia de 0 a 30, calculada pela
soma dos anos de estudos de pai e mãe do concluinte;
e) Ação afirmativa (x5): variável binária assumindo 1 se o concluinte
ingressou por intermédio de alguma política de ação afirmativa e
0 se o ingresso foi pelo método tradicional.

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O modelo especificado será então dado pela seguinte equação na
qual ε representa o termo aleatório que, por hipótese, segue a distri-
buição normal, com média zero e variância constante:
ln Yi = b 0 + b1 X 1 + b 2 X 2i + ... + b 5 X 5i + e i

O modelo acima é estimado pelo método dos Mínimos Quadrados


Ordinários (MQO) pelo software SPSS.
Como as Instituições de Ensino Superior (IES) possuem características
diferentes quanto a infraestrutura, qualificação e regime de trabalho
do docente, que afetam o desempenho do aluno ao longo do curso,
são estimadas regressões para cada categoria administrativa separada-
mente: federais, estaduais e privadas. As municipais são excluídas, em
função do pequeno número de concluintes.

3 ComPARAÇÃo ENtRE o PERfiL DE ALuNoS CoNCLuiNtES


Do ENSiNo SuPERioR PÚbLiCo bENEfiCiADoS PELAS
AÇÕES AfiRmAtivAS E o DoS DEmAiS CoNCLuiNtES

3.1 PERfiL DE ALuNoS CoNCLuiNtES bENEfiCiÁRioS


E NÃo bENEfiCiÁRioS DE AÇÕES AfiRmAtivAS

Dentre os cursos avaliados no Enade 2008, os mais populares


eram Pedagogia (corresponde a 26,7% da amostra), letras (14%) e
Engenharia (13%), conforme indicado na Tabela 1. Com relação à
categoria administrativa da Instituição de Ensino Superior (IES), mais
de 80% dos concluintes de Ciências Sociais e Física são de IES públi-
cas. O curso com menor incidência de concluintes em IES pública é
Ciência da Computação – somente cerca de 20% de seus concluin-
tes cursaram instituições federais, estaduais ou municipais. Entre os
cursos avaliados pelo Enade em 2008, aqueles com maior frequência
relativa de concluintes cujo ingresso se deu por meio de ações afir-
mativas são Pedagogia (25,4%) e Letras (21,3%), cursos pouco con-
corridos, como indica a baixa relação candidato/vaga na Tabela 1.
No outro extremo, encontram-se Arquitetura (8,0%), Engenharias
(8,2%) e Ciências Sociais (8,4%).

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Tabela 1
Dados gerais dos cursos avaliados pelo Enade 2008, brasil

Concluintes Categoria
% de
avaliados Relação administrativa
concluintes que
Curso de graduação candidato/
ingressaram por
vaga
N° % Pública Privada ação afirmativa

Pedagogia 69.983 26,7% 1,17 32% 68% 25,4%


Letras 36.973 14,1% 1,58 36% 64% 21,3%
Geografia 13.684 5,2% 3,52 62% 38% 20,5%
História 17.311 6,6% 4,09 45% 55% 20,3%
matemática 16.272 6,2% 2,48 44% 56% 19,6%
biologia 25.428 9,7% 2,05 33% 67% 18,0%
filosofia 4.217 1,6% 2,16 43% 57% 16,3%
Química 6.908 2,6% 2,96 57% 43% 13,3%
Ciência da
23.235 8,9% 1,78 20% 80% 12,1%
Computação
física 2.842 1,1% 3,24 83% 17% 9,2%
Ciências Sociais 3.394 1,3% 4,17 83% 17% 8,4%
Engenharias 34.029 13% 2,54 47% 53% 8,2%
Arquitetura 8.110 3,1% 2,18 29% 71% 8,0%
total 262.386 100% - 39% 61% 18,5%
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008 e Sinopse Estatística dos Cursos de Graduação 2008.
Nota: Tabela ordenada de acordo com a coluna da direita (proporção dos concluintes que ingressaram por
meio de políticas de ação afirmativa).

Com o auxílio da Tabela 2, observa-se que o ingresso de alunos por


meio de políticas de ação afirmativa declinou-se em: reserva de vagas
étnico-raciais, reserva de vagas com recorte social, ou outros sistemas
como ProUni ou bonificação, com variações curso a curso. Pedagogia,
que representa 26,7% dos concluintes avaliados em 2008 pelo Enade,
é também o curso com maior número absoluto (17.776 concluintes)
e relativo (25,4%) de concluintes que ingressaram por meio de ações
afirmativas.

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Tabela 2
Distribuição dos concluintes segundo o ingresso por meio
de políticas de ação afirmativa, brasil, 2008

Seu ingresso se deu por meio de


políticas de ação afirmativa da IES?

Sim N° de
concluintes que
Área avaliada Total
Reserva Reserva de ingressaram por
Sistema Não
de vagas vagas com ação afirmativa
Total distinto dos
étnico- recorte
anteriores
raciais social

Pedagogia 25,4% 2,3% 7,4% 15,8% 74,6% 100,0% 17.776

Letras 21,3% 3,0% 5,5% 12,8% 78,7% 100,0% 7.875

Geografia 20,5% 2,1% 6,6% 11,8% 79,5% 100,0% 2.805

História 20,3% 1,9% 6,0% 12,3% 79,7% 100,0% 3.514

matemática 19,6% 1,3% 5,6% 12,7% 80,4% 100,0% 3.189

biologia 18,0% 1,5% 4,7% 11,8% 82,0% 100,0% 4.577

filosofia 16,3% 1,1% 4,0% 11,2% 83,7% 100,0% 687

Química 13,3% 0,9% 3,5% 8,9% 86,7% 100,0% 919


Ciência da
12,1% 1,6% 3,2% 7,3% 87,9% 100,0% 2.811
Computação
física 9,2% 1,1% 2,2% 5,9% 90,8% 100,0% 261
Ciências
8,4% 1,2% 2,9% 4,3% 91,6% 100,0% 285
Sociais
Engenharias 8,2% 0,7% 1,3% 6,2% 91,8% 100,0% 2.790

Arquitetura 8,0% 0,5% 1,0% 6,5% 92,0% 100,0% 649

total 18,5% 1,8% 5,0% 11,7% 81,5% 100,0% 48.138


Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.
Nota: Tabela ordenada de acordo com a coluna esquerda (proporção dos concluintes que ingressaram por
meio de políticas de ação afirmativa).

Para melhor avaliar o perfil do concluinte, agrupamos os cursos de


graduação avaliados em 2008 segundo seu prestígio social, conforme
explicado anteriormente, resultando na seguinte divisão: Pedagogia
como baixo prestígio social (26,7% concluintes); Arquitetura, Enge-

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nharias e Ciência da Computação como alto prestígio social (24,6%
dos concluintes) e os cursos restantes como médio prestígio social
(49,1% dos concluintes). Na Tabela 3, podemos observar o perfil dos
concluintes agrupados segundo o prestígio social do curso e sua cate-
goria administrativa. Note-se que a proporção de alunos cujo ingresso
se deu por ações afirmativas diminui sensivelmente conforme aumen-
ta o prestígio social dos cursos, até mesmo nas instituições privadas.
Será um problema de oferta, isto é, poucas vagas são reservadas para
os alunos não brancos ou egressos de ensino médio público nestes
cursos de alto prestígio (Arquitetura, Engenharia, Ciências da Compu-
tação) nas instituições públicas? Ou será que a oferta é a mesma e
o nível de evasão ou repetência desses cursos é maior, conduzindo
a uma menor incidência de concluintes que ingressaram neles por
ação afirmativa? Com os dados disponíveis não temos como explicar
o porquê dessa situação.

Tabela 3
Perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008
segundo o prestígio social do curso

Perfil dos concluintes


Egressos
Categoria Prestígio Escolaridade
Sexo Cor do ensino Tipo de ingresso
administrativa social do do pai
médio
IES curso
Não Ensino Ensino Não ação Ação
Homem Mulher Branco Privado Público
branco básico superior afirmativa afirmativa

baixo 12% 88% 46% 54% 25% 75% 91% 9% 80% 20%

federal médio 45% 55% 54% 46% 38% 62% 81% 19% 91% 9%

Alto 71% 29% 72% 28% 66% 34% 55% 45% 95% 5%

baixo 10% 90% 42% 58% 13% 87% 96% 4% 66% 34%

Estadual médio 35% 65% 48% 52% 25% 75% 92% 8% 75% 25%

Alto 73% 27% 75% 25% 57% 43% 62% 38% 92% 8%

baixo 5% 95% 66% 34% 15% 85% 93% 7% 76% 24%

Privado médio 30% 70% 64% 36% 20% 80% 91% 9% 79% 21%

Alto 76% 24% 78% 22% 48% 52% 68% 32% 89% 11%

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

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Sinais_Sociais_20_V3.indd 52 12/13/12 11:12 AM


Se entendemos “mais diversidade” por maior representação de gru-
pos desfavorecidos, as ações afirmativas aumentaram-na. Observe-se
na Tabela 4 o perfil dos concluintes que ingressaram por ação afirma-
tiva segundo o prestígio social do curso e a categoria administrativa da
IES. O percentual de concluintes negros/pardos/mulatos nas federais
que ingressaram por ação afirmativa era de 41% nos cursos avaliados
em 2008 pelo Enade, comparado aos 28% do total de concluintes
(Tabela 3).

Tabela 4
Perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008 que ingressaram
por ação afirmativa, segundo o prestígio social do curso

Perfil dos concluintes que ingressaram por ação afirmativa


Categoria Prestígio
Sexo Cor Ensino médio Escolaridade do pai
administrativa social do
IES curso Não Ensino Ensino
Homem Mulher Branco Privado Público
branco básico superior

baixo 11% 89% 33% 67% 16% 84% 96% 4%

federal médio 39% 61% 45% 55% 27% 73% 90% 10%

Alto 69% 31% 59% 41% 61% 39% 66% 34%

baixo 10% 90% 32% 68% 9% 91% 99% 1%

Estadual médio 28% 72% 32% 68% 15% 85% 97% 3%

Alto 61% 39% 58% 42% 37% 63% 80% 20%

baixo 5% 95% 62% 38% 10% 90% 95% 5%


Privada médio 28% 72% 56% 44% 11% 89% 95% 5%
Alto 74% 26% 73% 27% 34% 66% 77% 23%
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

Entre os concluintes de 2008, a categoria administrativa que mais


concedeu diplomas às pessoas que se autodeclararam negros, pardos
ou mulatos (não brancos) foram as IES estaduais (51%), possivelmente
como reflexo de políticas de ação afirmativa, conforme se vê no Grá-
fico 1. É grande também a presença de não brancos nas IES federais
(42%), mais do que nas IES privadas (32%). No total, puxado pelas
privadas (predominantes), 1/3 dos concluintes avaliados em 2008 pelo
Enade são negros, pardos ou mulatos.

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Sinais_Sociais_20_V3.indd 53 12/13/12 11:12 AM


Gráfico 1
Distribuição dos concluintes por cor da pele autodeclarada segundo
dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008

Branco Não branco

70% 68%
64%
60% 58%
49% 51%
50%
42%
40% 36%
32%
30%
20%
10%
0%
Federal Estadual Privada Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

Dentre os concluintes negros/pardos/mulatos das IES federais, ape-


nas 13% ingressaram por meio de ações afirmativas (Gráfico 2), de
modo que 87% ingressaram sem o auxílio dessas políticas. Supondo
que, na ausência de políticas de ação afirmativa, os alunos que ingres-
saram beneficiados por elas não tivessem sido admitidos na universi-
dade, a proporção de negros/pardos/mulatos nas federais seria cerca
de 5 pontos percentuais mais baixa. Nas IES estaduais, nas quais mais
de metade dos concluintes eram negros/pardos/mulatos, cerca de 1/3
ingressou com o auxílio das ações afirmativas, número expressivo em
comparação com as federais e privadas. Com as mesmas hipóteses,
a ausência de ações afirmativas teria significado redução de 17 pon-
tos percentuais na proporção de não brancos nas IES estaduais. Nas
privadas, a redução seria de 8 pontos percentuais. No total, teríamos
em 2008 uma proporção de negros/pardos/mulatos nas universidades

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brasileiras 9 pontos percentuais inferior à efetivamente observada
(27% contra 36%).4

Gráfico 24
Distribuição dos concluintes negros/pardos/mulatos por
ingresso por meio de ações afirmativas segundo a dependência
administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008

Demais alunos Ação afirmativa

100% 87%

80% 76% 76%


66%

60%

40%
34%

20% 13% 24% 24%

0%
Federal Estadual Privada Total
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

4
A proporção de negros, pardos e mulatos nas IES federais seria de 37%, nú-
mero obtido ao se multiplicar 42% (proporção de negros, pardos e mulatos nas
IES federais) por 87% (proporção de negros, pardos e mulatos não beneficiários
de políticas de ação afirmativa). A proporção de negros, pardos e mulatos nas
IES estaduais seria de 34%, número obtido ao se multiplicar 51% (proporção de
negros, pardos e mulatos nas IES federais) por 66% (proporção de negros, par-
dos e mulatos não beneficiários de políticas de ação afirmativa). Nas privadas, a
proporção seria de 24% (32% x 76%), contra os 32% efetivamente observados.
No total, teríamos 27% (36% x 76%), contra os 36% observados. A ressalva feita
a esses cálculos é que se desconsidera a possibilidade de que negros, pardos
e mulatos admitidos por políticas de ação afirmativa pudessem ter ingressado
em IES da mesma categoria em que ingressaram, mesmo na ausência de tais
políticas. Também são desconsiderados movimentos entre categorias de IES. Em
suma, e usando o jargão microeconômico, poderíamos dizer que nossa análise
é de “equilíbrio parcial” e não de “equilíbrio geral”.

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As IES estaduais também se destacam pela maior incidência de con-
cluintes do ensino superior com ensino médio público (76%), o mesmo
patamar de incidência relativa das IES privadas (75%) – possivelmente,
naquelas em razão de cotas e bônus, enquanto nestas, em razão do
perfil socioeconômico mais desfavorecido dos que nelas costumam se
matricular (Gráfico 3). Entre as IES federais, 55% dos concluintes são
oriundos do ensino médio público, incidência que não reflete o perfil
dos concluintes do ensino médio, uma vez que 85% dos concluintes
do ensino médio são de instituições públicas.

Gráfico 3
Distribuição dos concluintes por tipo de ensino médio cursado segundo a
dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008

Ensino médio privado Ensino médio público

100%

80% 76% 75% 71%

60% 55%
45%

40%
25% 29%
24%
20%

0%
Federal Estadual Privada Total
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

Dos concluintes das federais egressos de escolas públicas, apenas


12% ingressaram por meio de políticas de ação afirmativa nos cursos
avaliados em 2008 (Gráfico 4). Com relação às estaduais, dos con-
cluintes egressos do ensino médio público, pouco menos de 1/3 (29%)
ingressou por meio de ações afirmativas. Nas privadas, o número gira
em torno de 1/5.

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Gráfico 4
Distribuição dos concluintes com ensino médio público por
ingresso por meio de ações afirmativas segundo a dependência
administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008

Demais alunos Ação afirmativa

100%
88%

80% 71% 78% 78%

60%

40%
29%
22% 22%
20%
12%

0%
Federal Estadual Privada Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

A mobilidade social5 via escolaridade é maior entre os concluintes


das instituições estaduais, uma vez que apenas 10% dos pais e 14%
das mães dos concluintes têm ensino superior. Entre os concluintes
das federais, esses percentuais são, respectivamente, 26% e 28%
(Gráfico 5).

5
Utilizamos o termo mobilidade social para indicar melhora ou piora da situa-
ção educacional dos alunos com relação à situação educacional de seus pais.

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Gráfico 5
Distribuição dos concluintes por escolaridade dos pais segundo a
dependência administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008

Escolaridade do pai do concluinte

Fundamental Médio Superior

80%
71%
70%
63% 61%
60%
50% 44%
40%
30%
30% 26%
20% 22% 23%
20% 14% 15%
10%
10%
0%
Federal Estadual Privada Total

Escolaridade da mãe do concluinte

Fundamental Médio Superior

80%
70% 63%
60% 57%
60%
50%
40%
40% 32%
30% 28% 25% 26%
24%
20% 14% 15% 18%
10%
0%
Federal Estadual Privada Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008. Nota: Nível fundamental ou menos.

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Sinais_Sociais_20_V3.indd 58 12/13/12 11:12 AM


O fato de as instituições estaduais se destacarem com relação à in-
cidência relativa de concluintes não brancos e de ensino médio, bem
como no que tange à mobilidade social, parece efetivamente se de-
ver à reserva de vagas das ações afirmativas. Entre os concluintes dos
cursos de graduação estaduais avaliados em 2008, 26% ingressaram
por meio de ações afirmativas, contra apenas 10% dos concluintes
das IES federais (Gráfico 6). As IES privadas, com 19%, encontram-se
em patamar intermediário. Dentre os concluintes das IES privadas dos
cursos avaliados pelo Inep em 2008 que ingressaram por intermédio
de ações afirmativas, 34,2% ingressaram por intermédio do ProUni,
31% por bolsa própria da IES, 27,33% por bolsa de entidades externas
e 7,5% ingressaram com o auxílio do Fies.

Gráfico 6
Distribuição dos concluintes por tipo de ingresso segundo a dependência
administrativa da iES, brasil, cursos avaliados em 2008

Demais alunos Ação afirmativa

100%
90%
90%
81% 81%
80% 74%
70%
60%
50%
40%
30% 26%
20% 19% 19%
10%
10%
0%
Federal Estadual Privada Total

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

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Diferentemente do observado para a UENF por Matta (2010), o
perfil socioeconômico dos concluintes que ingressaram por meio de
ações afirmativas é diferente do perfil daqueles que não ingressaram
por meio dessa política. A faixa de renda familiar entre os que in-
gressaram por meio de políticas de ação afirmativa se concentra em
até 3 salários mínimos enquanto os ingressantes sem as políticas se
concentram na faixa de mais de 3 até 5 salários mínimos (Tabela 5).
Uma crítica à política de ação afirmativa racial é que muitos be-
neficiários dessa política seriam estudantes das minorias de classe
média, que não passaram pelas dificuldades que afligem os jovens
das áreas mais pobres das cidades. Os dados do Inep nos levam
a matizar essa afirmativa, uma vez que, entre os concluintes que
ingressaram por meio de reserva étnico-racial de vagas, a grande
maioria cursou escola pública (88,3%), tem renda familiar de até 3
salários mínimos (65,3%) e pai com ensino fundamental ou menos
(55%). Uma minoria cursou o ensino médio todo ou a maior parte
em escola privada (11,7%) e tinha renda familiar de mais de 10 salá-
rios mínimos (6,2%). Nos cursos avaliados pelo Inep em 2008, 71%
dos concluintes cursaram o ensino médio todo ou a maior parte em
escola pública. Esse percentual aumenta para 85% entre os ingres-
santes por meio de ação afirmativa.
Outra questão a destacar é a mobilidade social promovida pelas
políticas de ação afirmativa uma vez que, entre os concluintes que
ingressaram por essa política, apenas 7% tinham pai com ensino su-
perior. Entre os concluintes que ingressaram pelo método tradicional,
esse percentual é de 18% (Tabela 5).

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Tabela 5
Perfil socioeconômico dos concluintes segundo o ingresso
por meio de políticas de ação afirmativa, brasil, 2008

Seu ingresso se deu por meio de


políticas de ação afirmativa da IES?

Sim
Variáveis Respostas Reserva Reserva Sistema Total
de de vagas distinto Não
Total vagas com dos
étnico- recorte ante-
raciais social riores

Raça/cor branco 53,2% 30,2% 51,6% 57,4% 65,9% 63,6%


Negro/pardo/
46,8% 69,8% 48,4% 42,6% 34,1% 36,4%
mulato
total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Ensino
Escola privada 15,3% 11,7% 6,8% 19,6% 32,0% 29,0%
médio
Escola pública 84,7% 88,3% 93,2% 80,4% 68,0% 71,0%

total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Renda Até 3 salários


60,3% 65,3% 70,1% 55,4% 39,2% 43,1%
familiar mínimos (S.m.)
mais de 3 até
33,5% 29,1% 27,1% 36,9% 44,1% 42,2%
10 S.m.
mais de 10
4,6% 4,5% 2,2% 5,6% 11,7% 10,4%
até 20 S.m.
mais de 20 S.m. 1,6% 1,2% 0,5% 2,1% 5,0% 4,4%

total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Escolaridade
Nenhuma 15,3% 21,4% 16,8% 13,7% 7,6% 9,0%
do pai
Ensino fundamental 61,5% 55,0% 64,4% 61,3% 49,5% 51,8%

Ensino médio 16,1% 16,6% 14,7% 16,7% 25,3% 23,6%

Ensino superior 7,0% 7,0% 4,0% 8,3% 17,6% 15,6%

total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

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Precisamos reconhecer que não é possível tirar conclusões definitivas
a respeito do impacto das políticas de ações afirmativas sobre o grau de
diversidade socioeconômica dos concluintes das universidades brasi-
leiras, sobretudo por duas razões. Primeiro, porque temos informações
apenas a respeito de características dos concluintes, mas não sobre as
de ingressantes que eventualmente tenham abandonado o curso ou
ainda o estejam cursando. Não temos como saber se o atraso ou a eva-
são atingem uniformemente beneficiários e não beneficiários das po-
líticas de ações afirmativas, e, portanto, quais seriam as proporções de
concluintes negros ou oriundos de escola pública na ausência de cotas.
Em segundo lugar, não temos como afirmar qual teria sido o compor-
tamento de beneficiários se não houvesse tais políticas. Teríamos, por
exemplo, menos negros nas IES públicas, porém, mais negros nas IES
privadas? De que forma isto afetaria a proporção total de negros?
Feitas essas ressalvas, como as proporções de concluintes que efeti-
vamente se beneficiaram de políticas de ações afirmativas são expressi-
vas, sobretudo nas IES estaduais, acreditamos haver indícios de que as
ações afirmativas contribuíram para aumentar a diversidade socioeco-
nômica nos campi brasileiros. Em sendo verdade, um objetivo funda-
mental das ações afirmativas teria sido alcançado. A questão seguinte é:
o preço pago para isso foi alto em termos de redução de desempenho?

4 umA ANÁLiSE Do DESEmPENHo DoS CoNCLuiNtES


4.1 EStAtÍStiCAS DESCRitivAS

Conforme indicado na Tabela 6, a nota média dos concluintes das es-


taduais e federais que ingressaram por meio de ações afirmativas no teste
de conhecimentos gerais é aproximadamente 4 pontos menor que a de
concluintes que ingressaram pelo método tradicional (a nota da prova
varia de 0 a 100 pontos). Embora de pequena magnitude, essa diferença
é significativa segundo o teste de diferença de médias. Esse resultado é
importante, pois difere daqueles apontados por pesquisadores citados na
seção 2 deste artigo. Entre as instituições privadas a diferença, de 0,28 a
favor dos beneficiários das ações afirmativas, não é significativa.6

6
As estatísticas Z dos testes citados nesse parágrafo são, respectivamente:
11,13; 14,71 e 1,73.

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Tabela 6
Estatísticas descritivas da nota segundo tipo de ingresso, brasil, 2008

Estatísticas da nota Concluintes


Dependência
Tipo de ingresso Desvio
administrativa Média Mediana N° %
padrão
federal método tradicional 47,2 47,2 17,4 30.991 90,5%

Ações afirmativas 42,8 41,7 16,8 3.261 9,5%

total 46,8 46,6 17,4 34.252 100,0%


Estadual método tradicional 42,9 42,0 17,0 23.656 74,1%

Ações afirmativas 38,6 36,7 16,3 8.266 25,9%

total 41,8 40,5 16,9 31.922 100,0%


Privada método tradicional 40,0 38,3 15,9 92.055 80,7%

Ações afirmativas 40,3 38,5 16,2 21.993 19,3%

total 40,0 38,3 15,9 114.048 100,0%


total método tradicional 41,8 40,3 16,6 151.490 81,5%

Ações afirmativas 40,0 38,2 16,3 34.416 18,5%

total 41,4 39,9 16,6 185.906 100,0%


Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

Com relação ao tipo de escola cursada no ensino médio, não há mui-


ta diferença entre a distribuição das notas dos concluintes das federais
e estaduais que cursaram o ensino médio em escolas privadas daqueles
que cursaram o ensino médio em escolas públicas e que não ingressa-
ram por meio de ação afirmativa. Observe-se que, embora pequena, a
diferença de 1,1 é significativa entre as notas médias desses dois grupos
nas federais (estatística do teste z=5,61). Nas instituições estaduais não
há diferença significativa entre as notas médias (Tabela 7).

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Tabela 7
Estatísticas descritivas da nota segundo tipo de ingresso, cor da
pele autodeclarada e tipo de ensino médio, brasil, 2008

Estatísticas descritivas Ensino Estatísticas descritivas


Categoria Cor e ação médio
Desvio Desvio
administrativa afirmativa Média Mediana e ação Média Mediana
padrão padrão
afirmativa
branco 47,8 47,6 17,1 Privado 47,7 47,5 17,2
Não branco_ Público_não
45,9 45,7 17,7 46,6 46,2 17,5
federal

não ação ação


Não branco_ Público_
42,4 41,0 16,9 43,4 42,3 16,8
ação ação
total 46,8 46,5 17,3 total 46,8 46,6 17,3
branco 43,3 42,5 17,0 Privado 42,7 41,8 17,4
Não branco_ Público_não
41,3 40,2 16,7 42,7 41,8 16,8
Estadual

não ação ação


Não branco_ Público_
38,9 37,0 16,4 39,4 37,5 16,3
ação ação
total 41,8 40,5 16,9 total 41,9 40,6 16,9
Fonte: Mec, Inep. Microdados do Enade 2008.

As estatísticas descritivas apresentadas na tabela anterior são nú-


meros que sintetizam toda a distribuição das notas dos concluintes.
O Gráfico 7 mostra que a distribuição das notas dos concluintes das
instituições federais e estaduais que ingressaram por ação afirmativa
se deslocam para a esquerda comparados com os alunos não benefi-
ciados por essa política. Já para os concluintes das instituições priva-
das, não há diferença significativa na distribuição das notas entre os
ingressantes por ação afirmativa e não ingressantes.

64 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012

Sinais_Sociais_20_V3.indd 64 12/13/12 11:12 AM


Gráfico 7
Distribuição das notas dos concluintes segundo o tipo de ingresso, brasil, 2008

IES Federal
12%
10%
% de concluintes

8%
6%
4%
2%
0%
10

18
22
26
30

38
42
46
50

58
62
66
70

78
82
86
90

98
0
2
6

14

34

54

74

94
Nota na prova de conhecimentos específicos
Demais alunos Ação afirmativa

IES Estadual
12%
10%
% de concluintes

8%
6%
4%
2%
0%
10

18
22
26
30

38
42
46
50

58
62
66
70

78
82
86
90

98
0
2
6

14

34

54

74

94
Nota na prova de conhecimentos específicos
Demais alunos Ação afirmativa

IES Privada
12%
10%
% de concluintes

8%
6%
4%
2%
0%
10

18
22
26
30

38
42
46
50

58
62
66
70

78
82
86
90

98
0
2
6

14

34

54

74

94

Nota na prova de conhecimentos específicos


Demais alunos Ação afirmativa

Combinando a distribuição das notas dos concluintes com o tipo de


ingresso e a cor da pele (Gráfico 8), observa-se que a curva que repre-
senta as notas dos concluintes não brancos e que ingressaram por ação
afirmativa é a mais deslocada para a esquerda, refletindo desempenho
pior do que os concluintes não brancos que não ingressaram por ação
afirmativa nas instituições federais e estaduais. Nas instituições privadas
esse deslocamento também ocorre, porém com intensidade menor.

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012 65

Sinais_Sociais_20_V3.indd 65 12/13/12 11:12 AM


IES Federal
Gráfi co 8
Distribuição das notas dos concluintes segundo a cor da pele
12%
10% autodeclarada e o tipo de ingresso, brasil, 2008

% de concluintes % de concluintes 8%
IES Federal
6%
12%
4%
10%
2%
8%
0%
0
2
6
10

18
22
26
30

38
42
46
50

58
62
66
70

78
82
86
90

98
14

34

54

74

94
6%
4% Nota na prova de conhecimentos específicos
2% Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos
0%
0
2
6
10

18
22
26
30

38
42
46
50

58
62
66
70

78
82
86
90

98
14

34

54

74

94
Nota na prova de conhecimentos específicos
Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos

IES Estadual

12%
10%
% de concluintes % de concluintes

8%
6% IES Estadual
4%
12%
2%
10%
0%
8%
0
2
6
10
14
18
22
26
30
34
38
42
46
50
54
58
62
66
70
74
78
82
86
90
94
98
6%
4% Nota na prova de conhecimentos específicos

2% Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos

0%
IES Privada
0
2
6
10
14
18
22
26
30
34
38
42
46
50
54
58
62
66
70
74
78
82
86
90
94
98

12% Nota na prova de conhecimentos específicos


10% Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos
% de concluintes

8%
6%
4%
2%
0%
0
2
6
10
14
18
22
26
30
34
38
42
46
50
54
58
62
66
70
74
78
82
86
90
94
98

Nota na prova de conhecimentos específicos


Brancos Não brancos - ação afirmativa Não brancos - demais alunos

Combinando o tipo de ingresso no ensino superior com o tipo de


escola cursada no ensino médio (Gráfico 9), observamos que as curvas
que representam a distribuição das notas dos concluintes dos egressos
do ensino médio público que não ingressaram no ensino superior por

66 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012

Sinais_Sociais_20_V3.indd 66 12/13/12 11:12 AM


meio de ações afirmativas são muito semelhantes àquelas de egressos
do ensino médio privado.

Gráfico 9
Distribuição das notas dos concluintes segundo o tipo
de ensino médio e o de ingresso, brasil, 2008

IES Federal
12%
10%
% de concluintes

8%
6%
4%
2%
0%
0
2
6
10
14
18
22
26
30
34
38
42
46
50
54
58
62
66
70
74
78
82
86
90
94
98
Nota na prova de conhecimentos específicos
Ensino médio privado
Ensino médio público - demais alunos
Ensino médio público - ação afirmativa

IES Estadual

12%
10%
% de concluintes

8%
6%
4%
2%
0%
0
2
6
10
14
18
22
26
30
34
38
42
46
50
54
58
62
66
70
74
78
82
86
90
94
98

Nota na prova de conhecimentos específicos


Ensino médio privado
Ensino médio público - demais alunos
Ensino médio público - ação afirmativa

IES Privada
12%
10%
% de concluintes

8%
6%
4%
2%
0%
0
2
6
10
14
18
22
26
30
34
38
42
46
50
54
58
62
66
70
74
78
82
86
90
94
98

Nota na prova de conhecimentos específicos


Ensino médio privado
Ensino médio público - demais alunos
Ensino médio público - ação afirmativa

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Sinais_Sociais_20_V3.indd 67 12/13/12 11:12 AM


4.2 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo E PERfiL
SoCioECoNômiCo: umA ANÁLiSE GRÁfiCA PRELimiNAR

Nesta seção compara-se o desempenho dos concluintes que ingres-


saram por meio de ações afirmativas com os demais, controlando-se
pelo perfil socioeconômico.
Poderíamos utilizar a renda familiar como proxy do perfil socioeco-
nômico. Mas a variável renda tem vários problemas de mensuração.
Por exemplo, os filhos podem não conhecer ao certo a renda dos pais,
a renda informada pode estar sub ou sobre-estimada, a renda familiar
pode incluir a do concluinte, que muitas vezes já está fazendo estágio
ou trabalhando no final do curso etc. Por esse motivo, a variável esco-
lhida é a escolaridade dos pais7, escolha de resto rotineira na literatura
de economia da educação (FERREIRA; GIGNOUX, 2011).
Para captar a escolaridade dos pais, criamos uma variável que con-
siste na soma dos anos de estudos do pai e da mãe. Esse indicador
varia de zero (ambos os pais sem instrução) até 30 (ambos com ensino
superior). Quando pelo menos um dos pais tem o ensino superior,
esse indicador é maior ou igual a 15.
Uma primeira ideia da relação entre o desempenho do concluinte
e o perfil socioeconômico do aluno é apresentada nos gráficos a se-
guir. Observe-se que, mesmo controlando pelo background familiar,
o desempenho dos concluintes que ingressaram por meio de ações
afirmativas é inferior ao desempenho dos concluintes que ingressa-
ram sem elas nas instituições federais e estaduais (Gráfico 10). Nas
instituições privadas, não há diferença significativa entre a nota média
dos concluintes que ingressaram ou não por ação afirmativa, mesmo
controlando pelo background familiar do aluno.

7
Ressalte-se que, por serem fortemente correlacionadas, não podemos in-
cluir educação dos pais e renda familiar juntas em uma mesma regressão. O
coeficiente de correlação de Spearman para variáveis ordinais de renda fami-
liar com instrução dos pais é 0,411, com p-valor de 0,000. O coeficiente de
renda familiar com instrução da mãe é 0,364 com p-valor de 0,000. O p-valor
próximo de zero indica que o coeficiente de correlação é significativo até ao
nível de significância 1%, isto é, rejeitamos a hipótese nula de que não existe
relação entre essas variáveis.

68 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012

Sinais_Sociais_20_V3.indd 68 12/13/12 11:12 AM


Gráfico 10
Nota média do concluinte segundo o indicador
socioeconômico por tipo de ingresso brasil, 2008
IES Federal
50
48
46
44
Nota média

42
40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Demais alunos Ação afirmativa

IES Estadual
50
48
46
44
Nota média

42
40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Demais alunos Ação afirmativa

IES Privada
50
48
46
44
Nota média

42
40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Demais alunos Ação afirmativa

O desempenho médio dos concluintes brancos na prova de conhe-


cimentos específicos é superior ao dos negros/pardos/mulatos que
ingressaram pelo método tradicional, que por sua vez é superior ao
desempenho dos negros/pardos/mulatos que ingressaram por ação
afirmativa nas instituições federais e estaduais (Gráfico 11).

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012 69

Sinais_Sociais_20_V3.indd 69 12/13/12 11:12 AM


Gráfico 11
Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico por
cor da pele autodeclarada e tipo de ingresso, brasil, 2008
IES Federal

50
48
46
44
Nota média

42
40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Branco Não branco - demais alunos Não branco - ação afirmativa

IES Estadual
50
48
46
44
Nota média

42
40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Branco Não branco - demais alunos Não branco - ação afirmativa

IES Privada

50
48
46
44
Nota média

42
40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Branco Negro/pardo/mulato

Quando combinados ingresso por ação afirmativa e tipo de ensino


médio, controlando-se por nível socioeconômico, observa-se que a
partir do indicador socioeconômico 15, que indica que pelo menos
um dos pais possui ensino superior completo, o desempenho médio

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Sinais_Sociais_20_V3.indd 70 12/13/12 11:12 AM


dos concluintes egressos do ensino médio privado é superior ao dos
egressos do ensino médio público sem ação afirmativa (Gráfico 12).

Gráfico 12
Nota média do concluinte segundo o indicador socioeconômico
por tipo de ensino médio e tipo de ingresso, brasil, 2008

IES Federal
50
48
46
44
Nota média

42
40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Ensino médio público - demais alunos Ensino médio privado
Ensino médio público - ação afirmativa

IES Estadual
50
48
46
44
42
Nota média

40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Ensino médio público - demais alunos Ensino médio privado
Ensino médio público - ação afirmativa

IES Privada
50
48
46
44
Nota média

42
40
38
36
34
32
30
0 5 10 15 20 25 30
Indicador do perfil socioeconômico
Ensino médio público Ensino médio privado

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012 71

Sinais_Sociais_20_V3.indd 71 12/13/12 11:12 AM


4.3 A RELAÇÃo ENtRE DESEmPENHo E PERfiL
SoCioECoNômiCo PELo mÉtoDo DA REGRESSÃo

Até aqui analisamos o desempenho do concluinte controlado apenas


pelo background familiar do aluno, agora, incluem-se novas variáveis ex-
plicativas8 e também análises segundo o prestígio social do curso.
Com relação à significância do modelo estimado para os concluintes
das federais (Tabela 8), o fato de o aluno ter cursado todo ou parte
do ensino médio em escolas públicas não é importante para o de-
sempenho do aluno ao final do curso. Mulheres têm notas em média
10% superiores às dos homens. Negros têm desempenho 5% inferior
aos concluintes brancos. Ingressantes por ação afirmativa têm nota em
média 8,2% inferior, mantendo todas as outras variáveis constantes.
Com relação aos concluintes das estaduais, ter cursado parte ou
todo o ensino médio em escolas públicas afeta o desempenho, porém
não da forma esperada, uma vez que seu desempenho é em média
2,7% superior ao dos concluintes que cursaram a maior parte ou todo
o ensino médio privado. Assim como nas federais, mulheres têm de-
sempenho cerca de 10% superior ao dos homens e os negros têm
desempenho, em média, 5% inferior ao dos brancos. Nas instituições
estaduais, os concluintes que ingressaram por meio de políticas afir-
mativas têm desempenho, em média, 8,8% inferior aos que ingressa-
ram pelo método tradicional.
Mais uma vez, as regressões das subamostras de prestígio social do cur-
so não revelam diferenças qualitativas importantes na principal variável
(ação afirmativa), que é sistematicamente negativa e significativa, com
variação somente de magnitude. Nos cursos de médio prestígio social
nas instituições federais (Letras, Física, Química, Biologia, História, Geo-
grafia, Filosofia e Ciências Sociais), o desempenho dos que ingressaram
por ação afirmativa é em média 13,7% inferior ao dos demais concluintes.
Com relação aos concluintes das instituições privadas de ensino su-
perior, o coeficiente da variável ação afirmativa é muito próximo de

8
Seguindo a sugestão do parecerista, procuramos incorporar dummies regio-
nais ou estaduais, porém não há informação sobre a região ou a unidade da
federação onde está localizada a IES no banco de dados disponibilizado pelo
Inep, possivelmente para dificultar a identificação da IES.

72 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012

Sinais_Sociais_20_V3.indd 72 12/13/12 11:12 AM


zero, e não significativo, indicando não haver diferença de desempe-
nho entre beneficiários e não beneficiários. Nas subamostras de cursos
de prestígio social médio e alto, porém, há diferenças significativas.

Tabela 8
Coeficientes estimados (b) e significância (p-valor)

Federais Estaduais Privadas


Tipo de
Variáveis
curso
B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹

(Constant) 3,696 0,000 - 3,569 0,000 - 3,444 0,000 -

Não branco -0,051 0,000 -5,0% -0,051 0,000 -5,0% -0,03 0,000 -3,0%

mulher 0,098 0,000 10,3% 0,094 0,000 9,9% 0,219 0,000 24,5%
todos
Ensino médio
-0,007 0,202 - 0,027 0,000 2,7% -0,007 0,034 -0,7%
público
Perfil
0,003 0,000 - 0,004 0,000 - 0,003 0,000 -
socioeconômico
Ação afirmativa -0,086 0,000 -8,2% -0,092 0,000 -8,8% -0,006 0,065 -

(Constant) 3,908 ,000 - 3,825 ,000 - 3,824 ,000

Não branco ,009 ,363 - -,025 ,002 -2,4% -,018 ,000 -1,7%

baixo mulher ,093 ,000 9,8% ,008 ,507 ,013 ,149 -


prestígio
Ensino médio
social -,025 ,030 -2,5% -,006 ,623 -,028 ,000 -2,7%
público
Perfil
,004 ,000 - ,011 ,000 ,004 ,000 -
socioeconômico
Ação afirmativa -,116 ,000 -10,9% -,099 ,000 -9,4% -,009 ,047 -0,8%

(Constant) 3,671 ,000 - 3,545 ,000 - 3,429 ,000 -

Não branco -,070 ,000 -6,8% -,074 ,000 -7,1% -,019 ,000 -1,9%

médio mulher ,030 ,000 3,1% -,015 ,057 ,031 ,000 3,1%
prestígio
Ensino médio
social -,038 ,000 -3,7% ,001 ,896 -,038 ,000 -3,7%
público
Perfil
,005 ,000 - ,006 ,000 ,008 ,000 0,8%
socioeconômico
Ação afirmativa -,148 ,000 -13,7% -,120 ,000 -11,3% -,020 ,000 -2,0%

(Constant) 3,631 ,000 - 3,568 ,000 3,406 ,000


- -
Não branco -,089 ,000 -8,5% -,090 ,000 -8,6% -,077 ,000 -7,4%

Alto mulher -,005 ,548 - -,027 ,116 ,058 ,000 6,0%


prestígio
Ensino médio
social ,008 ,350 - -,035 ,034 -3,5% -,048 ,000 -4,7%
público
Perfil
,006 ,000 - ,005 ,000 ,005 ,000 0,5%
socioeconômico
Ação afirmativa -,106 ,000 -10,1% -,099 ,001 -9,4% -,057 ,000 -5,6%

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 36-77 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012 73

Sinais_Sociais_20_V3.indd 73 12/13/12 11:12 AM


Continuação da tabela 8

Federais Estaduais Privadas


Tipo de
Variáveis
curso
B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹ B p-valor Correção¹

informações básicas sobre as regressões completas (“todos”)2

N° de observações 32.119 29.662 105.862

R² ajustado 0,421 0,423 0,452

Estatística f 142,113 142,664 1.155,786

Nota: ¹A correção é exp (B)-1 para as variáveis binárias significativas, isto é, com p-valor menor que 0,05.
A correção é utilizada na interpretação dos parâmetros estimados B. Os valores em negrito são maiores
que 0,05, logo essas variáveis não são significativas ao nível 5%. Isto quer dizer que essas variáveis não
são importantes para explicar a nota do concluinte.
2
A estatística F dos modelos ajustados é alta, com p-valor próximo de zero em todas as regressões, indicando
que até ao nível 1% rejeitamos a hipótese nula de que não há relação linear entre as variáveis X e Y. Logo o
modelo foi bem especificado. O R² ajustado é médio em todos os modelos. Resultado esperado: a) dado que
se usam dados em corte transversal e b) o modelo estimado é parcimonioso. Informações de qualidade de
ajuste das regressões segundo prestígio social não são relatadas aqui, mas podem ser obtidas dos autores.

CoNSiDERAÇÕES fiNAiS

Políticas de ação afirmativa (cotas ou bônus “raciais” ou “sociais”)


têm sido implementadas no Brasil nos últimos dez anos com o objetivo
de reduzir a desigualdade de oportunidades, por meio do aumento da
probabilidade de acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior.
Neste estudo, a partir dos dados mais recentes do Enade disponí-
veis, traça-se um perfil dos concluintes dos cursos avaliados em 2008,
comparando-se alunos beneficiados por ações afirmativas com os de-
mais alunos, inclusive no que se refere ao desempenho na prova de
conhecimentos específicos. Participam do exame os alunos ingressan-
tes e concluintes em 2008, portanto uma ressalva aos dados utilizados
no trabalho é a falta de informação sobre os que ingressaram em 2004
e evadiram ao longo do curso ou ainda não se formaram.
Entendendo-se como diversidade uma maior representação de gru-
pos desfavorecidos, nossa análise dos dados sugere que as diversas
políticas de ações afirmativas foram de fato bem-sucedidas no objeti-
vo de proporcionar maior diversidade nas universidades, embora tal
tendência seja menos clara em cursos mais prestigiosos.

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Com relação ao desempenho dos alunos, a nota média dos con-
cluintes das estaduais e federais que ingressaram por meio de ações
afirmativas é aproximadamente 4 pontos menor com relação aos
concluintes que ingressaram pelo método tradicional (a nota da
prova varia de 0 a 100 pontos). Embora de pequena magnitude,
essa diferença é significativa segundo o teste de diferença de mé-
dias. Entre as instituições privadas, a diferença a favor dos beneficiá-
rios das ações afirmativas, não é significativa.
Na tentativa de se mensurar o efeito da forma de ingresso do aluno
(por ação afirmativa ou não) na nota do aluno no teste de conheci-
mentos específicos aplicado no ano da conclusão do curso de gradua-
ção, controlando por características do aluno e do ambiente familiar,
foram estimados modelos do tipo log-linear. Os resultados mostraram
que nas IES privadas não se registram fortes hiatos de desempenho
entre alunos beneficiários das ações afirmativas, a não ser em cursos
com alto prestígio social, como engenharia e arquitetura.
Nas IES públicas, contudo, o desempenho dos beneficiários é in-
ferior ao dos demais alunos, para todos os tipos de cursos. Nas IES
federais, ter ingressado por ação afirmativa reduz, em média em
8,2% a nota na prova de conhecimentos específicos, comparada
à dos concluintes que ingressaram sem intermédio das políticas de
ação afirmativa, mantendo todas as outras variáveis constantes. Nos
cursos de baixo prestígio social, o desempenho é 10,9% menor e
entre os cursos de médio prestígio social, a queda no desempenho
é de 13,7%. Esse resultado pode estar subestimado, uma vez que
estamos considerando somente aqueles que ingressaram por ação
afirmativa e conseguiram concluir o curso, ou seja, não estamos ava-
liando o desempenho dos que evadiram ou ainda não se formaram.
Em suma, nossa análise sugere que as diversas políticas de ações
afirmativas têm sido bem-sucedidas no objetivo de proporcionar
maior diversidade nas universidades, isto é, uma maior presença de
grupos desfavorecidos no ensino superior brasileiro. Com base na teo-
ria de igualdade de oportunidade de John Roemer (1988), conforme
delineado em Waltenberg (2007), interpretamos o hiato de desempe-
nho entre concluintes beneficiados por ação afirmativa e não bene-
ficiados como um preço relativamente modesto pago pela sociedade
em prol da diversidade e da equalização das oportunidades.

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tRêS CRÍtiCoS: ANtoNio
CANDiDo, PAuLo EmÍLio
E mÁRio PEDRoSA
Francisco Alambert

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O ensaio a seguir busca estabelecer aproximações para uma história da crítica
de arte e da cultura no Brasil diante dos temas “formação”, “crise”, “cultura na-
cional e internacional”, “ruptura” e “vanguarda”. Nessa perspectiva, serão ana-
lisadas as obras do crítico literário Antonio Candido, do crítico de cinema Paulo
Emílio Salles Gomes e do crítico de artes plásticas Mário Pedrosa. Em comum,
a busca de uma especificidade da produção cultural no Brasil do século XX por
meio de conceitos que instrumentalizassem uma visão histórica do legado co-
lonial e de sua transformação como meio criativo e de conhecimento do país.
Em confronto e, acredito, em tensa complementaridade, veremos a elaboração
de três conceitos de análise crítica construídos diante da condição brasileira
pelo três críticos (cada qual por sua vez também diante de uma tradição crítica
que a bem da verdade eles reinventam): o princípio da formação (em Antonio
Candido), do deslocamento e cópia (em Paulo Emílio) e do exercício experi-
mental da liberdade (em Mário Pedrosa). O quanto esses conceitos nos ajudam
ainda a entender o mundo contemporâneo e sua cultura, no que ele carrega de
histórico e de contingente, é a questão que este ensaio pretende pôr em jogo.
Palavras-chave: formação; deslocamento e cópia; experimentalismo; crítica

The following essay seeks to establish a history of approaches to art criticism


and culture in Brazil on the themes of “training”, “crisis”, “national and inter-
national culture”, “rupture” and “avant garde”. In this perspective, we will be
analyzing works of literary critic Antonio Candido, the film critic Paulo Emilio
Salles Gomes and art critic Mario Pedrosa. In common, the search for a spe-
cific cultural production in Brazil of the twentieth century through concepts
that enable a historical view of the colonial legacy and its transformation as a
creative tool and knowledge of the country. In confrontation and, I believe, in
tense complementarity, we will see the development of three concepts built
on critical analysis of the condition by three Brazilian critics: the principle of
formation (Antonio Candido), displacement and copy (Paul Emilio) and the ex-
perimental exercise of freedom (in Mario Pedrosa). How much these concepts
help us further understand the contemporary world and its culture, as far as the
historical and contingent components that it carries, is the question this essay
attempts to suggest.
Keywords: formation; displacement and copy; experimentalism; criticism

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O ensaio tem que conseguir que a totalidade brilhe por um momento
em um traço escolhido ou encontrado, sem que se afirme que ela este-
ja presente. Ele corrige o que há de casual e isolado de suas intuições à
medida que, no seu próprio percurso ou em seu relacionamento de mo-
saico com outros ensaios, elas se multiplicam, conformam, limitam; não
por uma abstração que delas retira os marcos diferenciais (ADORNO,
in COHN, 1986, p. 180).

1 ANtoNio CANDiDo: foRmAÇÃo E HiStÓRiA

Para se compreender o contexto das ideias de nossos três críticos é


necessário visitar vários aspectos ligados à produção intelectual paulis-
tana por volta da metade do século XX. Entre os anos 1940 e meados
de 1950 formava-se em São Paulo um momento importante da his-
tória das consequências do movimento modernista. Se o ímpeto ico-
noclástico de 22 já há muito havia arrefecido, seus desdobramentos
foram tremendamente criativos.
Antes disso, porém, esses desdobramentos foram precedidos por
um sentimento doloroso de derrota e crise: “Fiz muito pouco, porque
todos os meus feitos derivam de uma ilusão vasta [...] faltou humani-
dade em mim. Meu aristocratismo me puniu. Minhas intenções me
enganaram.” Ou ainda mais trágico (e não menos lúcido): “Meu pas-
sado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado”
(ANDRADE, 1974, p. 252). Era assim que se sentia Mário de Andrade
perto do final de sua vida, em 1942, em meio ao Estado Novo, às
incertezas da Segunda Guerra Mundial, do futuro do nazifascismo e
diante da desconfortável posição de “líder” do vitorioso movimento
de modernização cultural e política que parecia chafurdar, impotente
diante desse quadro de regressão. Dedo em riste, falando de outros
tanto quanto de si mesmo, Mário de Andrade lamentava que com
poucas exceções (nas quais ele mesmo não se enquadrava) ele e os
modernistas vitoriosos tivessem sido “vítimas do nosso prazer da vida e
da festança em que nos desvirilizamos”. Já pouco viris, os modernistas
teriam virado as costas à revolta “contra a vida como está” em nome
de estéreis discussões sobre “valores eternos”. Incapazes de ler de fato
a história e a política, deixaram de lutar pelo “amilhoramento político-
social do homem”.

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Talvez nunca um intelectual brasileiro tenha lutado tão violentamente
contra si mesmo. Mas a lamentação era uma autocrítica e também
uma ação programática. Pois uma “traição”, já cometida antes, era
agora sorrateiramente indicada como uma estratégia de superação
da derrota: “Abandonei, traição consciente, a ficção, em favor de um
homem-de-estudo que fundamentalmente não sou. Mas é que eu de-
cidira impregnar tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor
prático de vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, pra-
zer estético, a beleza divina” (p. 254).
Mas nem tudo estava morto, e os vivos ainda poderiam caminhar
adiante. Como se sabe, nesse mesmo depoimento, Mário de Andrade
sintetizou os três princípios vivos saídos da aventura modernista dos
anos 1920: a) o direito permanente à pesquisa estética; b) a atualiza-
ção da inteligência artística brasileira; c) a estabilização de uma cons-
ciência criadora nacional (p. 242). Esse foi o resultado positivo de um
“individualismo que arriscou”, mas cuja continuidade agora, nas novas
condições em que se clama por uma nova politização da inteligência
(“Marchem com as multidões”), deve ser preferencialmente pensado
em sentido “coletivo”. Eis o conselho, verdadeiro programa para os
ventos democráticos que talvez viessem: para se manter o “direito à
pesquisa estética” (que eu entendo como “o direito à cultura moder-
na”), para se prosseguir à “atualização da inteligência artística” local
e para se estabilizar uma “consciência criadora nacional”, era preciso
pensar a cultura e a arte para além do ímpeto estético (e “aristocrá-
tico”) do primeiro modernismo. E tudo isso com a política – e com a
política para as “multidões”. Um peculiar chamado à passagem da
ficção à prática, uma prática que seria entendida, por alguns, como
uma nova prática intelectual.
Quando Mário de Andrade proferiu seu célebre discurso de ruptura
com seu passado, indicando um novo período de necessários ajustes
para que o movimento de superação modernista tomasse novo fôlego,
já se encontravam em evolução os estudos da geração de escrito-
res especuladores do caráter nacional brasileiro (Sérgio Buarque de
Holanda, Gilberto Freyre e o jovem Caio Prado Jr.), que marcaram os
anos 1930 como as primeiras consequências ensaísticas do Movimento
de 22. Uma nova geração de estudiosos e acadêmicos que o gênio desa-
busado de Oswald de Andrade não hesitou em apelidar de “chato boys”.

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Para o surgimento desse novo momento nos estudos sobre a cul-
tura brasileira foi de crucial importância a fundação da Faculdade de
Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), projeto acalentado por
modernistas, modernizadores e descendentes progressistas de oli-
garcas. Sua principal consequência foi a formação de um certo ra-
dicalismo intelectual, ou mais especificamente, como disse Antonio
Candido (1980, p. 103), um “modesto radicalismo que ficou sen-
do uma tradição e tem produzido efeitos positivos”. Sem entrar nos
detalhes desse processo, lembremos apenas que é desse debate de
superação de determinados pressupostos (ou (pré) conceitos) herda-
dos dos anos heroicos do modernismo, das inquietações trazidas por
algumas brilhantes generalizações historiográficas (que não deixam de
ser devedoras daquele ímpeto revolucionário do primeiro modernismo)
e das transformações trazidas pela implantação de um modelo
europeu de universidade (com professores devidamente importados
da matriz) que a geração de Antonio Candido e Paulo Emílio Salles
Gomes se formou.
Na história do pensamento brasileiro, esses intelectuais formaram
(podendo-se acrescentar a eles os críticos Lourival Gomes Machado e
Décio de Almeida Prado, o sociólogo Ruy Coelho e um mestre fran-
cês de todos eles, o filósofo Jean Maugüé1) o conjunto que ficou co-
nhecido como “Grupo Clima”, em referência ao periódico de mesmo
nome por eles editado. Os intelectuais ligados ao Clima, não apenas
faziam parte da primeira geração uspiana (tendo basicamente estu-
dado com professores europeus), mas, situados à esquerda e (cada
um a seu modo) inspirados pelo marxismo (que entre nós até então
só havia dado frutos promissores na obra isolada de Caio Prado Jr.)

1
Sobre Maugüé e sua influência entre os novos, diz Candido: “Provém dele
muito de nossa atitude intelectual e, portanto, uma parte da tonalidade de
Clima. Para ele a filosofia interessava sobretudo como reflexão sobre o quoti-
diano, os sentimentos, a política, a arte, a literatura. O nosso grupo incorporou
profundamente este ponto de vista...” (CANDIDO, 1980, p. 162). Reflexões
importantes sobre o Grupo Clima e a presença formadora e pedagógica de
Maugüé para o pensamento uspiano (especialmente filosófico) e para o mo-
delo crítico a que nos referimos, podem ser vistas em Arantes (1994), especial-
mente no Capítulo 2, e também no ótimo estudo de Heloísa Pontes Destinos
mistos. Os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1999).

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e pelas ciências sociais mais progressistas, iam introduzindo a crítica
cultural dialética – aquela crítica que busca explicar o funcionamento
mesmo da sociedade em que as artes são produzidas e não apenas
a esfera específica em que cada forma artística se encontra – entre
nós. Tomado por influxos criativos vindos indistintamente do abalo de
1930, da modernização europeizante da metrópole paulistana, dos
ventos socialistas, do debate crítico com os veteranos do Modernismo
e com o aprendizado criterioso dos professores europeus na nova Uni-
versidade, esse “grupo-geração” acabou por fazer da crítica de cultura
um espaço fundamental para o engajamento intelectual a partir da
Universidade.
Antonio Candido, em um dos seus mais interessantes escritos crí-
tico-biográficos, definiu o poeta e crítico modernista Sérgio Milliet
como “homem-ponte” entre a geração de 22 e aquela que ele mesmo
representava. Mais do que isso, Milliet seria sua maior afinidade e o
ponto inicial em que se baseou para definir seu próprio ideário crítico.
Candido salientava as qualidades do tipo de ensaísmo que Milliet in-
troduzira entre nós: sua capacidade de circundar problemas, evitan-
do dogmatismos, aguçando a reflexão, engajando sua personalidade
em uma forma crítica que tateia “com liberdade os fatos e as ideias
por meio do pensamento ‘que se ensaia’” (CANDIDO, 1987, p. 131).
Uma atitude que ensaiava ela mesma a possibilidade da crítica dialé-
tica que os anos posteriores viabilizariam entre nós2. Uma lição que
os participantes de Clima seguirão, especialmente o próprio Antonio
Candido.
Na “Maria Antônia”, dentro do contexto intelectual uspiano, com as
aulas e leituras de Candido, começa a se definir a possibilidade de se
refletir sobre as mediações extraliterárias e sua continuidade artística.
O autor da Formação da literatura brasileira se tornava o interlocutor
nacional privilegiado para debater o problema teórico da relação dia-
lética entre obra/história no contexto dependente ou “pós-colonial”.
O momento era favorável e em tudo parecia contraposto ao contexto

2
Paulo Arantes, em seu fundamental estudo sobre Antonio Candido e Ro-
berto Schwarz (no qual me baseio amplamente), reconhece essas afinidades
mas discorda da “honra” que o crítico oferta a seu antecessor, estranhamente
desautorizando a homenagem (ARANTES, 1992, p. 11).

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em que Mário de Andrade clamou pelas mudanças dos que haviam
mudado (quase) tudo. Eram anos de formação e não de desmanche,
tempos de otimismo. O Brasil parecia, mesmo aos olhos dos descon-
fiados, ter se tornado mais inteligente por volta desses anos de rede-
mocratização. A esquerda estava acertando passos e marcava posição
em setores diversos da cultura e da ação política, do Cinema Novo à
Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. O golpe militar ainda teria de
esperar uns anos para dar o ar de sua terrível graça3.
Roberto Schwarz costuma exaltar em Candido sua capacidade de
visão “estereoscópica”, criando uma analogia com o procedimento
semelhante utilizado por Walter Benjamin em seus estudos sobre
Baudelaire. Nestes são privilegiadas as correspondências sociais entre a
lírica e as figuras do submundo urbano ou os dramas do funcionamen-
to do mercado (em personagens como o colecionador ou o putschis-
ta), percebendo aí não apenas similitude de origem mas sobretudo o
fato de que tais figuras e formas literárias estão marcadas por formas
sociais que se correspondem (não que se “espelhem”). Não se trata,
entretanto, de reduzir uma dimensão a outra mas de entendê-las, em
linguagem benjaminiana, dentro de uma constelação, que exige do
ensaísta a capacidade de “sair” do texto para perceber e recolher as
correspondências soltas e fragmentadas no tecido social (SCHWARZ,
1992, p. 33-34). A comparação não é gratuita nem aleatória, como
veremos, e tem razão de ser. Antes de tudo porque, naqueles autores,
forma social e forma literária se ligam na medida em que a realidade é
ela mesma “forma”. Entender essa “formação” já é então o maior dos
problemas enfrentados por nossa nova tradição crítica.
Na virada da década de 1950 para 1960 o desenvolvimento do con-
ceito de formação era central para o novo pensamento crítico. Em
setores diversos, nos estudos de intelectuais como Caio Prado Jr. (For-
mação do Brasil contemporâneo), Celso Furtado (Formação econômica
do Brasil) e o próprio Candido (Formação da literatura brasileira), o
conceito anunciava uma radical mudança na maneira de conceber o
país e a história. Para nossos fins, anotemos que, na esfera da cultura,

3
O período, com seu otimismo e suas ilusões, foi analisado por Roberto
Schwarz em um de seus mais notáveis ensaios, escrito e publicado original-
mente em Paris durante seu exílio: “Cultura e Política, 1964-69” (1978).

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a ideia de formação baseava-se no princípio de que as formas culturais
nacionais são, por um lado, fundadas sob uma herança colonial que se
repõe a par com o progresso e com a modernização capitalista e, por
outro, sob o desejo histórico dos brasileiros de ter uma cultura – com
todas as contradições que esse princípio desejante possa provocar.
A síntese precisa de Paulo Emílio, cujos trabalhos sobre cinema lo-
calizam-se no núcleo dessa tradição teórica, daria o tom da discussão:
“Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de
cultura original, nada nos é estrangeiro pois tudo o é. A penosa cons-
trução de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não
ser e o ser outro” (GOMES, 1980, p. 77). Um dilema “hamletiano”
define a origem e os princípios do intelectual (o teórico ou o artista)
do mundo da economia dependente: “Um certo sentimento íntimo
de inadequação, esse o drama do intelectual brasileiro, situado en-
tre duas realidades, condenado a oscilar entre dois níveis de cultura”
(ARANTES, 1992, p. 16).
A superação do “desconforto intelectual” procede (ou não) no correr
de um trabalho de mão dupla, em que a trama civilizatória concorre
no sentido da incorporação do meio acanhado para a norma culta
metropolitana, do mesmo modo que assegura o arranjo e a adaptação
dessa norma à realidade local. “Dialética do local e do cosmopolita”,
“dupla fidelidade”, “incapacidade criativa em copiar” (como veremos
adiante) são algumas das definições que Candido e Paulo Emílio usa-
riam, em diferentes momentos, para figurar essa oscilação definidora
da trama das ideias e do drama dos intelectuais no contexto periférico.
Uma proposição dialética é a base do conceito de formação, descre-
vendo o processo em que as ideologias se moldam entre nós, como
uma escultura se molda, adaptando-se, chocando-se e (por vezes)
superando-se diante do novo contexto.
As linhas evolutivas dessa formação, tão penosa quanto a melancóli-
ca definição de Paulo Emílio sugere, constituem os diversos processos
formativos de nosso sistema de entendimento cultural, em que a dia-
lética joga as cartas decisivas, “porque se pode falar em dialética onde
há uma integração progressiva por meio de uma tensão renovada a
cada etapa cumprida” (ARANTES, 1992, p. 17). A noção de formação
dá a medida dessas integrações e ilumina o caminho das etapas cum-
pridas (ou não).

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Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que, notadamente a partir do
processo da Independência, os intelectuais se dividiram, esquematica-
mente, entre os defensores da originalidade e do “gênio” nacional e os
campeões da universalidade cosmopolita, que no caso significava uma
defesa dos valores da civilização liberal. A definição “dialética do local
e do cosmopolita”, que Candido formulou em mais de uma ocasião,
era a chave para compreender esse processo de formação cultural: “A
dialética do local e do universal dá o balanço desta oposição, situando
os termos inimigos no interior de um mesmo movimento de afirmação
da identidade nacional, em que eles se complementam harmoniosa-
mente” (SCHWARZ, 1987, p. 169). É esse o caráter da descrição de
Antonio Candido em Formação da literatura brasileira.
A compreensão dialética da formação dá um passo à frente no en-
saio talvez decisivo da maturidade de Antonio Candido, “Dialética da
malandragem”, publicado originalmente na Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, nº 8, um estudo sobre Memórias de um sargento
de milícias (1852), de Manuel Antonio de Almeida. Por aqui podemos
acompanhar como, em Antonio Candido, romance e sociedade se
encontram por meio da análise criteriosa da forma entendida como
condição prática mediadora.
A forma, entretanto, não se define exclusivamente na esfera literária.
A própria realidade histórica é também formada, na medida em que
é compreendida como formação social objetiva definida no jogo das
forças produtivas e não na esfera ideal das consciências individuais. O
fundamental nas Memórias, segundo a análise de Candido, é que em
seu entrecho formal vibra uma intuição, uma verdadeira figuração, do
movimento da sociedade brasileira (a tensão constante entre ordem
e desordem em uma sociedade de base escravista, mas ao mesmo
tempo desejando se urbanizar e modernizar). Para o crítico, tal intui-
ção define-se como uma espécie de redução estrutural do movimento
histórico que o romance apanha in locu. Não propriamente na qua-
lidade de “documento”, mas sim como uma formalização estética do
movimento formativo da sociedade brasileira (ou de suas condições
de existência: no caso, a dialética entre ordem e desordem, que o
crítico percebe na organização formal do romance, tanto quanto na
própria forma social do Brasil do século XIX).

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O princípio é dialético e nele podemos encontrar uma verdadeira
afinidade com os pressupostos da assim chamada escola frankfurtiana
(daí a comparação com os procedimentos de Benjamin não ser fortui-
ta). A separação das esferas é legada pela história, mas não constitui
meramente “ideologia” (no sentido de má consciência): é também real,
na medida em que representa a própria estrutura do “processo real”.
Também se formalizava uma proposição para a tarefa do novo tipo
de crítico moderno: transcender a análise especializada (sem dela
prescindir) visando a respeitar a relativa independência do objeto, co-
lhendo os saberes dispersos e fraturados nas esferas das humanidades,
na “cena contemporânea”. Uma análise que, dirá um crítico norte-
-americano, “pressupõe um movimento do intrínseco para o extrín-
seco na sua própria estrutura, do fato ou obra individual para alguma
realidade socioeconômica mais ampla por detrás dele” (JAMESON,
1985, p. 12). Nada a ver, portanto, com as regras do universalismo
estruturalista (e suas estruturas sem referência) ou com a ideia de que
forma estética e situação social corram em vias diferentes ou parale-
las. Como veremos adiante, esses princípios não seriam estranhos aos
outros dois críticos que, entretanto, iriam desdobrar e indicar outros
caminhos e possibilidades dentro dessa mesma trilha.

2 PAuLo EmÍLio: DESLoCAmENto E CÓPiA

As ideias de Paulo Emílio foram decisivas na formação intelectual


de sua geração. Marxista militante, exilado político, frequentador dos
círculos intelectuais radicais franceses, fundador dos cursos de cinema
da USP e da Universidade de Brasília (UNB), teórico dialético das vi-
cissitudes da cinematografia nacional e seus impasses, o antigo redator
de Clima tinha tudo para conquistar a atenção dos jovens intelectuais.
Mais do que isso, ele lhes deu quase um plano de trabalho, bem como
uma orientação política precisa, como se fora ele o responsável por
repensar o modernismo depois da despedida de Mário de Andrade.
Em 1943, o jornalista Mário Neme, provavelmente influenciado
pela conferência de Mário de Andrade sobre a crise do Modernismo e
as tarefas da nova geração, realizou um inquérito publicado nas pági-
nas do jornal O Estado de S. Paulo, que depois seria reunido em livro

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intitulado Plataforma da nova geração. Nele, jovens críticos e escritores
surgidos nos anos 1940 eram questionados sobre a herança recebida
das gerações anteriores e sobre seus novos valores, modelos, insatis-
fações, bem como sobre seus princípios em estética, ciência e ideo-
logia (além das relações disso tudo com a guerra mundial em pleno
andamento)4. Sinal de tempos de mudança, percebida aliás por Sérgio
Milliet, o “homem-ponte” entre a geração do primeiro Modernismo
e aquela que então (ele anota em seu Diário crítico, em 4 de julho de
1943) estaria “às vésperas da eclosão de uma nova estética” e, acres-
cento, de um novo pensamento sobre a estética nas novas condições
brasileiras5. Uma nova geração pronta para o engajamento e para unir
pesquisa cultural e atuação social: “A geração de 22 falou francês e leu
os poetas. A de 44 lê inglês e faz sociologia” (MILLIET, 1981, p. 109).
Dentre os depoimentos da plataforma dos jovens intelectuais, o de
Paulo Emílio se destacava pela admirável lucidez e pela capacidade
de organizar as questões decisivas do período e do que viria adiante.
Desde o início, ele deixa claro que fala do ponto de vista de um jovem
intelectual paulistano de esquerda (da “elite intelectual” da cidade),
mas que pertence a uma “nova geração” para a qual “não há unidade
ideológica”. Entretanto, lhe parece certo que naquele momento a direi-
ta está derrotada e sobrevivendo em um clima de delírio, refugiando-se
em elogios tresloucados a “militares argentinos” e se vendo “nos roman-
ces de Clarice Lispector”. Tudo sinal de um desvio da geração antece-
dente que, como Mário de Andrade disse em sua conferência, e Paulo
Emílio repete em outros termos, perdeu o rumo da história: “A estrada
do oportunismo é uma estrada real, e já foi trilhada por representantes
ilustres da facção” (GOMES in CALIL MACHADO, 1986, p. 82).
Paulo Emílio é cauteloso em relação ao futuro. O fascismo poderia
retornar por conta da “confusão” da época, inclusive entre a esquerda.
Ele vê que os católicos, perdendo suas referências, vão cada vez mais
para a direita, ao passo que o catolicismo da geração de 45 lhe parece

4
A esse inquérito seguiu-se outro, com os representantes da geração mais
velha (fundamentalmente os modernistas e antimodernistas), que foi também
publicado com o título tumular de Testamento de uma geração.
5
Sobre o mesmo assunto, mas sob outro ponto de vista, ver o ensaio de
Silviano Santiago: “Sobre Plataformas e Testamentos” (2006).

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um sucedâneo da desilusão política e atinge desde a direita até os
comunistas. O certo é que o liberalismo é o grande derrotado da épo-
ca. Sobre isso, faz um prognóstico surpreendente que os anos recentes
realizaram de maneira efetiva: “Não há na nova geração nenhum se-
tor intelectual propriamente liberal, no velho sentido da palavra. Liga-
dos às atividades intelectuais da Fiesp, alguns jovens economistas são
talvez o núcleo para uma futura corrente neoliberalista” (idem, p. 85).
Mas o que de fato lhe interessa é a confusão na esquerda, ou, mais
precisamente, entre “jovens intelectuais de classes médias e da bur-
guesia, que se exprimem ideologicamente pela esquerda”. Trata-se
daqueles jovens intelectuais que têm “pouco menos ou pouco mais
de 30 anos” e se politizaram por volta de 1935 (época da Intentona
Comunista e antes do Estado Novo), influenciados pelo marxismo, pela
psicanálise, pelo “pós-modernismo artístico” no contexto da extensão
da “superficial” revolução de 1930. Para muitos deles, a “Rússia” se
tornara uma “religião”. Isso era apenas o resultado do nível teórico
“muito baixo” dos comunistas. Apenas “meia dúzia” teria um nível teó-
rico avançado, porém alguns estavam “afastados”, enquanto que os
outros se refugiavam na oposição de esquerda (creio que ele se refere
a Caio Prado e Mário Pedrosa). Porém, essa nova esquerda capengava
em dois aspectos básicos: “Ninguém nunca leu O capital. Do Brasil não
se sabia nada.” Stalinistas e trotskistas, por motivos diversos, “amavam
a Rússia”, mas ninguém “sabia pensar dialeticamente” (p. 85-87).
Esse era o contexto em que a sua geração, a geração de Clima,
surgiu e no qual atuaria. Depois da crise do Estado Novo e dos comunis-
tas, inclusive de sua “religião”, a nova esquerda poderia surgir, gozando
“a gratuidade e a disponibilidade” que lhe permitia “sua condição de
classe”. Isso tudo propiciou um novo processo de crescimento e for-
mação: “Adquiriam uma seriedade e eficácia de pensamento que os
diferenciava logo em relação ao tom boêmio de Vinte-e-Dois” (p. 85).
Na medida em que viam a Rússia dos “processos de Moscou” como
um pesadelo, tomaram a França como paradigma. A geração se une na
ideia de acalentar a originalidade e a alternativa do modelo soviético,
mas também se interessa pela crítica desse modelo feita pelo trotskismo.
Nesse processo, o marxismo pode ser revisitado sob um prisma espe-
culativo, não dogmático (ou seja, sem a “religião” russa), e repensado
diante de uma nova situação (o Brasil e sua história). Além de começar

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a ler Marx e os marxistas clássicos, a geração se aproxima da rein-
terpretação do marxismo feita via pensadores (sobretudo sociólogos)
norte-americanos (por isso, como brincou Milliet, era preciso agora
“ler inglês”). Abre-se uma nova “época de estudos”, para a qual a
América (seja a sociedade norte-americana marcada pelas consequên-
cias da Depressão dos anos 1930, seja a sociedade periférica latino-
americana) e seus problemas específicos serão o foco central6.
Nesse verdadeiro programa de revisão do pensamento modernista,
e do próprio pensamento marxista diante de uma história que ele des-
conheceu (a história dos países periféricos e dependentes), o conceito
chave para ser posto sob o crivo da dialética seria a velha questão, mo-
dernista aliás, do nacionalismo. E para explicar isso, Paulo Emílio saca
um exemplo inusitado: o da “velha” Rússia. Antes da Revolução, ele diz,
a Rússia semifeudal não conhecia o nacionalismo. O internacionalismo
era importado do Ocidente. Mas no centro da Europa o clima era de re-
volução, sobretudo nos países derrotados na I Guerra Mundial. Parado-
xalmente, com o fracasso da revolução na Europa, surge o nacionalismo
russo. E aqui ele apresenta sua peculiar dialética da questão nacional:

Sem saber nada dos países capitalistas mais adiantados, o termo de


comparação para o presente era o passado da própria Rússia. Daí o
moral altíssimo que se notava em certos setores russos, sobretudo na
mocidade. O exemplo russo mostra como as ideias sobre nação e na-
cionalismo não foram abordadas com inteira correção pelo marxismo.
Nação e nacionalismo não estão necessariamente ligados à direção
burguesa da sociedade. Foi uma revolução operária de espírito inter-
nacionalista que permitiu o nascimento do nacionalismo russo. Agora
que o nacionalismo existe é que é possível contradizê-lo e superá-lo
pelo internacionalismo (p. 92).

Nesse ponto, ele está pronto para expressar a ideologia de sua gera-
ção: o nacionalismo precisa ser construído para ser superado não pelo

6
Paulo Emílio diz que nasceu aí uma abertura para se pensar a América La-
tina. Ele cita as ideias de Raul Victor Haya de la Torre, pensador peruano que
fundou o aprismo, seu interesse pelo México na época de Cárdenas e seu
desejo de recuperar o caráter inicial da revolução zapatista.

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simples internacionalismo, mas por um “pan-nacionalismo” (p. 93).
Depois de especular sobre a possibilidade de surgimento dessa pecu-
liar dialética entre nacionalismo e internacionalismo em vários países,
sobretudo naqueles que foram derrotados na I Guerra e também na
França, termina seu depoimento-plataforma pedindo abertura para
esse debate. Clama para que os novos intelectuais deixem a “torre de
marfim” e assumam as “questões de cultura” como sua responsabili-
dade. Sua tarefa maior deveria ser “participar do desaparecimento de
um Brasil formal e do nascimento de uma nação” (p. 95).
Saltemos algumas décadas e vejamos como Paulo Emílio, já então o
mais importante pensador do cinema no Brasil, aplicou e desenvolveu
muitas dessas ideias em sua prática crítica. Em seu ensaio já clássico
“Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, Paulo Emílio consagrou,
para certa tradição crítica, os princípios de análise que não apenas
estruturavam uma história do cinema brasileiro (e suas “mortes” e “res-
surreições”), a partir de seu contexto periférico, dependente e “subde-
senvolvido”, culminando no auge (e na crise) do Cinema Novo mas,
ao mesmo tempo, compilou as questões decisivas sobre a discussão
promovida desde a teoria da dependência sobre os princípios da críti-
ca histórica e materialista nas condições brasileiras. O tal princípio era
resumido assim: “Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa,
um estágio, mas um estado” (GOMES, 1980, p. 85).
Porém, e nisso reside o mais importante, nesse “estado” as coisas
não funcionavam sempre da mesma maneira. Com impressionante
fôlego sintético, o crítico passeia por diversos cinemas, e nações, “sub-
desenvolvidos” (em uma palavra: dependentes não apenas economica-
mente do centro capitalista hegemônico, mas sobretudo dependentes
de uma dialética constante entre “ocupado”, o local, e “ocupante”,
a força externa ou cosmopolita e também a classe dominante local
que a representa) mostrando sobretudo suas diferenças. No caso do
cinema indiano, ele nota que mesmo tendo sido formada uma in-
dústria francamente popular, seu resultado foi fazer com que o filme
indiano permanecesse fiel às “ideias, imagens e estilo já fabricados
pelos ocupantes para consumo dos ocupados” (idem). No caso do
Japão ocorreria o contrário: mesmo com a entrada massiva do cinema
estrangeiro, sobretudo norte-americano, desde o início do século XX e
principalmente a partir do pós-guerra, as imagens do ocupante teriam

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sido “devoradas” pela cultura local, permitindo inclusive que o cinema
japonês se fizesse com seus próprios capitais.
A questão brasileira era distinta. Aqui, nem a cópia (ou imitação)
prevaleceu sempre, nem a “devoração” (antropofágica?) vingou efeti-
vamente. Como já citado, estávamos em uma espécie de entre-lugar,
presos àquela “dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”. Nossa
síntese era precária, mas existia, mesmo que sob o signo do paradoxo.
Por exemplo, as imagens criadas pelo ocupante moderno, os Estados
Unidos e sua indústria das imagens para ocupação, curiosamente vi-
ravam “coisa nossa”:

não é que tenhamos nacionalizado o espetáculo importado como os


japoneses o fizeram, mas acontece que a impregnação do filme ame-
ricano foi tão geral, ocupou tanto espaço na imaginação coletiva de
ocupantes e ocupados, excluídos apenas os últimos estratos da pirâmi-
de social, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na linha de que
nada nos é estrangeiro pois tudo o é (p. 79).

A partir da década de 1940 – justamente a época em que surge a ge-


ração crítica que estamos comentando, representada aqui por Antonio
Candido, Paulo Emílio e Mário Pedrosa – o sucesso das chanchadas (os
filmes de “baixa cultura”, voltados à “plebe”) cativa o “ocupado” an-
tepondo-se ao gosto do “ocupante” (tanto externo, o “imperialismo”,
quanto interno, a “classe dominante” europeizada ou americanizada).
Uma identificação cultural de outra ordem passa a ser uma realidade
e uma potencialidade criativa:

a identificação provocada pelo cinema americano modelava formas


superficiais de comportamento em moças e rapazes vinculados aos
ocupantes; em contrapartida a adoção, pela plebe, do malandro, do
pilantra, do desocupado da chanchada, sugeria uma polêmica de ocu-
pado contra ocupante (p. 80).

Como na canção de Noel Rosa de 1933, Não tem tradução


(“O cinema falado/ é o grande culpado/ da transformação”), os modos
da plebe se antepõem aos modos “americanos” impostos mas, sem
negá-los propriamente, os coloca em situação de rearranjo.

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O sucesso comercial da chanchada, ou seja, da “avacalhação” pro-
gramática da cultura do ocupante e sua tradução nos termos da cultu-
ra (ou da falta dela) do ocupado foi, e aqui vai mais um paradoxo, o
estímulo para o surgimento de um projeto cinematográfico industrial
de um ponto de vista exclusivo do ocupante: o projeto da Companhia
Vera Cruz que, como Paulo Emílio explica detidamente, faliu rapida-
mente. Seu fracasso derivou de dois aspectos. O primeiro seria a in-
capacidade da cópia do sistema industrial. A Vera Cruz queria recriar
uma imagem calcada na cultura do ocupante, mas foi tragada pela
estrutura por ele criada (no caso, o domínio do sistema de distribuição
dos filmes). Por outro lado, o fracasso tinha um motivo “estético” e de-
rivaria também da inutilidade da cópia. Nem os ocupantes locais (os
ricos, devidamente europeizados e americanizados) nem os ocupados
(a plebe) se identificavam com aquelas tentativas, pautadas no bom-
-gosto e na imitação dos filmes internacionais. Preferindo o original à
cópia, nesse sentido percebida como um rebaixamento do original,
eles lhe viravam as costas.
Como se sabe, a resolução criativa desse estado, em um nível ex-
perimental e engajado, veio pela formação de uma autêntica “van-
guarda” cinematográfica brasileira: o Cinema Novo. Sua ética e sua
estética rompiam o tradicional jogo entre ocupado e ocupante pela
elaboração de uma forma nova, capaz de refletir e criar “uma imagem
visual e sonora, contínua e coerente, da maioria absoluta do povo
brasileiro” justamente ao se autonomizar e se “dessolidarizar de sua
origem ocupante” para enfim criar, em forma e conteúdo, uma repre-
sentação criativa “dos interesses do ocupado” (p. 83-84).
Como se sabe também, o golpe de 64 colocaria essa imagem em cri-
se, inviabilizando sua expansão e efetivação. Talvez por isso, e é ainda
Paulo Emílio quem diz, a vanguarda cinemanovista tenha se fechado
em si, experimentando uma forma única que, entretanto, não foi ca-
paz de se radicar como a imagem do ocupado para si mesmo. Ainda
assim, não deixa de ser significativo o sucesso internacional, com con-
sequências admiráveis e influentes, do Cinema Novo na história das
vanguardas cinematográficas do resto do mundo. Também é bastante
sintomático que tenha sido Mário Pedrosa, segundo o depoimento de
Glauber Rocha, um dos primeiros a reconhecer a inovação da van-
guarda cinemanovista, e o responsável por lançá-la definitivamente

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como um marco da arte contemporânea justamente na única bienal
que o crítico organizou, a VI Bienal de 1961 (ROCHA, 2003, p. 130)7.
O fracasso da forma copiada e seu destino medíocre, ideia desen-
volvida no ensaio dos anos 1970, já havia sido enunciada em um en-
saio escrito uma década antes, “Uma situação colonial?”, publicado
originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário,
em 19 de novembro de 1960 e depois em Gomes (1981). Nesse
primeiro texto, a dialética entre “colonizador e colonizado” (substi-
tuída pelo conceito mais complexo e sutil no ensaio dos anos 1970
por “ocupado e ocupante”) teria como resultado a “mediocridade”:
“O denominador comum de todas as atividades relacionadas com o
cinema é em nosso país a mediocridade” (p. 286). Mas então, o tom
negativo do termo provocaria uma viravolta surpreendente, quase que
um programa estético no qual a adversidade (penso aqui também em
Hélio Oiticica: “Da adversidade vivemos”) abre caminho para a inova-
ção, tendo por causa “nossa incompetência criativa em copiar”.
Um certo primarismo, calcado na ilusão de que em “situação colo-
nial” ou periférica se pode copiar, mimetizar completamente a fonte
ideal, é a base da “incompetência”. Esta, entretanto, na medida em
que se realiza (e não poderia ser de outro modo), pode ter seu resul-
tado invertido. A chave da ideia está na noção de criatividade. Uma
vez que somos incapazes de copiar (ainda que o desejemos), se sou-
bermos ser criativos diante da impossibilidade de efetivar plenamente
a fantasia, de fato somos capazes de criar algo novo, e, nesse sentido,
“original”. Nossa originalidade, nosso caráter de inovação e vanguar-
dismo, só pode residir em uma falha sistemática, em uma traição bem
pensada das fontes das quais nos alimentamos. Creio que aqui, a me-
táfora oswaldiana da antropofagia, do “primitivo” que faz a revolução
não por expulsar o poderoso colonizador, mas por degluti-lo e regur-
gitá-lo, ganha um sentido conceitual efetivo e dialético.
Resumindo: em nossos autores, Antonio Candido e Paulo Emílio,
romance, cinema e sociedade se informam por meio da análise cri-
teriosa da forma entendida como condição prática mediadora diante
de processos históricos concretos (a dialética entre ordem e desordem
dentro do mundo criado pela escravidão e o favor, no caso da litera-

7
Para uma análise geral da VI Bienal, ver Alambert in Abdala Jr. e Cara (2006).

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tura do século XIX, ou da condição subdesenvolvida do cinema den-
tro da dialética entre ocupado e ocupante, entre uma modernização
sempre dependente e abortada, e em suas consequências medíocres
e simultaneamente criativas, segundo Paulo Emílio). A forma artística,
portanto, define-se a partir da realidade histórica (a brasileira, enten-
dida não como “origem” e sim como condição histórica particular,
mas ainda assim parte de uma condição universal ou internacional),
que é também “forma”, na medida em que é compreendida como
formação social objetiva, definida no jogo das forças produtivas, do
movimento da sociedade global, e não na esfera ideal das consciên-
cias individuais.
Estamos pois, e uma vez mais, diante de uma noção de forma opos-
ta às regras do formalismo estruturalista, uma noção de forma e de
formação na qual o caráter social, o sinal social, é o elemento estrutu-
rante. Eis a lição que nos resta dessa tradição de críticos-pensadores
mesmo depois que as condições históricas específicas em que foram
elaboradas, o otimismo desenvolvimentista e a consequente formação
de uma cultura nacional em processo de superação de suas contradi-
ções originais, desapareceu do horizonte contemporâneo.

3 mÁRio PEDRoSA: o ExERCÍCio ExPERimENtAL DA LibERDADE


(Do iNÍCio Ao fim)

Até aqui, vimos uma história “paulista” da formação. Mas de onde


vinha Mário Pedrosa? No seu Rio de Janeiro adotivo, essa tradição se-
quer estava “formada”. A partir daqui, temos que passar a pensar uma
relação possível entre pressupostos da tradição paulista e uma outra,
que à época nem tradição era: a crítica de arte moderna entre nós,
que se formaria a partir também de Sérgio Milliet e chegaria a um pon-
to avançado e surpreendente justamente com Mário Pedrosa. Creio
que tanto a identidade quanto a “passagem” de um crítico ao outro
foram sentidas pelo próprio Milliet. Em 1949, ele anotou em seu Diá-
rio Crítico um encontro com Mário Pedrosa em Paris. Dizia o seguinte:

Mário Pedrosa, que encontro chegando do Brasil e já instalado em St.


Germain, afirma que aquele velhinho à frente de um copo de vinho
no café da esquina, ali se acha há dez anos. Viu-o em 1937, em 1946

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igualmente e o torna a ver agora. Pela praça passaram os tanques ale-
mães, diante da igreja um obus caiu. Houve frio e fome e metralha-
doras varreram as cercanias, mas o homem ali continua naturalmente,
sem nenhuma intenção de heroísmo. Só porque acredita na vida. E
há vida nesse lugar, nessa praça, nessa cidade. Não compreende se-
quer que possa existir outra coisa, não pensa em emigrar, em bater à
porta da aventura, em correr atrás da estrela matutina. Por entre suas
pálpebras enrugadas brilha uma nesga azul de admirável serenidade”
(MILLIET, 1881, p. 369).

Como se vê, Milliet tomou o olhar de Pedrosa e, junto, parte de sua


sensibilidade também. Na verdade, faz sua a observação do outro. Em
comum, vemos uma atenção para a história vista nas ruas. Histórias
de pessoas “comuns” diante da História incomum e bárbara do século
que ainda nem entrara em sua metade. Mas seria Mário Pedrosa quem
desdobraria esse olhar arguto e generoso para o futuro. Anos depois, no
“Depoimento sobre o MAM”, originalmente publicado em O Estado de
S. Paulo de 24/3/1963, homenageando Milliet, já falando no passado,
Pedrosa diria sobre seu contemporâneo:

Sérgio Milliet, o verdadeiro fundador da crítica de artes plásticas no Bra-


sil, o primeiro, entre seus pares, a introduzir uma crítica efetivamente
revolucionária nos processos de análise, na renovação terminológica, no
esforço da apreensão objetiva dos valores [...] (PEDROSA, 1995, p. 300).

Tudo isso é rigorosamente verdadeiro. Mas Mário Pedrosa daria um


sentido ainda mais radical à essa fortuna crítica do projeto moderno,
em arte e em política.
A trajetória das ideias estéticas de Mário Pedrosa – do realismo social
no início dos anos 1930, passando pela defesa do abstracionismo e da
arte contemporânea, até a pioneira detecção do pós-moderno (diante
do qual expressará dúvidas e reparos hoje atualíssimos) – é indissociável
de sua trajetória política8. Pedrosa inaugura no Brasil, sucessivamente, a
militância política trotskista e a crítica de arte moderna. Entre as idas e

8
Sobre a militância política de Pedrosa ver Marques Neto (1993); Loureiro,
(1984).

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vindas do militante, surgiu o crítico. Entre os exílios surgiu o agitador das
artes. No caso dele, como no de Paulo Emílio, o militante se fez crítico
e o crítico se fez agitador cultural. A radicalidade de uma postura é em-
prestada à outra, resultando uma personalidade e uma atuação original
na história da crítica de arte latino-americana (e não apenas nela).
Mário Pedrosa e Paulo Emílio, aliás, têm trajetórias significativamen-
te parecidas. Ambos nasceram em famílias ricas (Pedrosa no deca-
dente mundo dos engenhos nordestinos; Paulo Emílio no ascendente
mundo urbano e industrial paulistano), foram comunistas desde jo-
vens (presos, exilados etc.), mas se politizaram mais modernamente
no exterior, onde começaram a carreira de críticos (Pedrosa nos EUA,
depois de namoros literários na São Paulo do final dos anos 1920;
Paulo Emílio na França) com análises de ícones cosmopolitas: Käthe
Kolwittz e Alexander Calder para Mário Pedrosa, Jean Vigo para Paulo
Emílio. A rigor, o problema brasileiro lhes chega depois dessa expe-
riência cosmopolita, o que nunca ocorreu com Antonio Candido.
Mário Pedrosa militou diretamente no trotskismo internacional até
os anos 1940 e depois continuou ligado à esquerda independente
por toda a vida. Paulo Emílio namorou o trotskismo, como vimos, mas
foi mais independente. Ambos se encontraram quando da fundação
do Partido Socialista, também nos anos 1940, e em seu projeto de
construir uma versão brasileira do socialismo (igualmente afastada do
stalinismo e da social-democracia europeia). E aqui, se aproximam de
Antonio Candido, um dos mentores intelectuais dessa proposta (que
depois seria reativada quando da fundação do PT, partido que ambos,
Pedrosa e Candido, cofundariam).
Mas as diferenças são tão interessantes quanto as proximidades.
Mário Pedrosa foi um militante da esquerda revolucionária que se fez
crítico de arte por pensar o lugar da revolução nas condições que o
século XX foi criando em suas crises sucessivas. Foi internacionalista,
partindo do trotskismo, pensando o Brasil de dentro para fora (e de
fora para dentro), continuando o movimento do ponto em que estag-
nava o nacionalismo do primeiro modernismo brasileiro. O paradoxal
em sua trajetória é que ele também foi “desfazendo” a crítica (de seus
antecessores, de seus contemporâneos e, no final, a dele mesmo) e a
crença no papel revolucionário da arte para retomar, no final da vida, a
militância política revolucionária do princípio (inclusive pelo princípio

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da crença no papel transformador da arte “desalienante”, aquela
que se opunha à “consciência dilacerada” de nossa época, ideia cen-
tral em sua crítica). Como explicou Otília Arantes, “sem nunca deixar
a militância política, jamais dissociará revolução mundial e arte de
vanguarda” (ARANTES, 1991; 1995).
O exercício crítico de Mário Pedrosa desenhou de maneira transpa-
rente a utopia da arte moderna, seus impasses e suas perspectivas em
seu momento mais sólido. Do mesmo modo, sua atividade crítica é
um exercício constante de redefinições e proposições. De fato, ao lon-
go de sua vida, Pedrosa propôs várias formas de disciplina crítica, de
compreensão e pedagogia da arte revolucionária (desde a proposição
da arte proletária quando do seu primeiro ensaio dos anos 1930 sobre
Käthe Kolwittz, originalmente uma conferência apresentada no Clube
dos Artistas Modernos, o CAM de Flávio de Carvalho, passando pela
abstração construtiva e pelo racionalismo arquitetônico), até repensá-
-la no sentido de definir uma particular noção de “pós-moderno” –
que o encaminhou para pensar tanto uma arte “ambiental” quanto
uma arte de “retaguarda”, para manter vivo e possível um ideal de arte
de “vanguarda” revolucionária. Ao lado da tarefa crítica e pedagógica,
foi também um articulador de estruturas partidárias revolucionárias
e de estruturas institucionais no campo das artes, no “auge” de sua
militância artística.
Para Mário Pedrosa (e com Mário Pedrosa) não se pensa arte sem
política revolucionária – e vice-versa – ainda que a arte para ele deva
ser, por princípio, um terreno autônomo (e aqui surge uma grande
novidade em relação à elaboração estética do grupo uspiano). Sua
definição de arte mais recorrente ficou célebre (e hoje infinitamente
repetida, ao ponto de descaracterizar-se quase completamente): arte
emancipadora (e não qualquer forma ou exercício artístico) significa
o experimental da liberdade. Justamente por ser assim, a arte moder-
na (ou suas vertentes construtivas e críticas) foi até certo momento o
melhor laboratório da experiência possível de uma utópica situação
social emancipada. “Exercício” porque a arte é antes de tudo um fazer
atento sobre as coisas; “experimental” porque o exercício artístico, ao
organizar o mundo que a sociedade de classes faz confundir e alienar
diante do trabalho mecânico e repetitivo, permite aos indivíduos (ar-
tistas ou “fruidores”) uma relação mais aberta e livre com a matéria,

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reinventando o mundo para não perdê-lo; “liberdade” pois é justa-
mente essa a utopia que esse fazer promete e configura.
Desse modo, fica claro que para Pedrosa o potencial emancipatório
da obra de arte não deriva de qualquer “atitude” ou “intenção” de-
clarada, mas sim por exercitar a possibilidade de um fazer diferente
que se consubstancia na imagem libertária de um fazer livremente.
Um fazer que pode deslocar a reificação dos sujeitos e a subjetividade
alienada, fazendo com que esses sujeitos renovados tomem para si seu
“destino”. Mas fazer “livremente”, para a liberdade, não significa fazer
qualquer coisa, porque fazer qualquer coisa é fazer exatamente aquilo
que o mundo reificado ensina a fazer. Por isso nem toda forma de arte
“vale” como exercício de liberdade. Daí vem a certeza do autor de
que o crítico é aquele que expõe e discute critérios que não possam
ser apropriados pela linearidade alienada da cultura.
Aqui, creio que Pedrosa se aproxima de um princípio de Walter
Benjamin, desenvolvido em “A obra de arte na era de sua reprodu-
tibilidade técnica”, segundo o qual a tarefa do teórico da arte é criar
conceitos que não possam ser “de modo algum apropriáveis pelo fas-
cismo” (1986, p. 166)9. O crítico não é, portanto, nem o organiza-
dor do gosto burguês ou agente do “mercado” (o que essa figura de
fato foi em sua origem10) nem uma espécie de pedagogo ou juiz que
decide caminhos. Ele é politicamente criterioso (tendo o “exercício
experimental da liberdade” como horizonte): ao mesmo tempo que
antecipa ações e significados, discute o rumo dos movimentos.
A concepção geral da arte em Mário Pedrosa partia de uma “sábia
dosagem de improvisação e erudição” (ARANTES in PEDROSA, 2000,
p. 12), duas coisas que o diferenciam da geração uspiana (que, dentro
de uma tradição universitária, jamais ligaria uma coisa à outra). De
fato, à formação marxista básica e clássica ele foi adicionando um
contato cotidiano com a produção plástica de sua época, ao mesmo
tempo em que se apropriava e confrontava com desenvoltura autores
vindos da teoria da arte (Riegl, Hildebrand, Worringer, Venturi), da
filosofia (Hegel, Nietzsche, Husserl), da psicanálise (Freud, Charcot) ou
os teóricos da Gestalt, além de alguns críticos profissionais seus con-

9
Pedrosa foi certamente um dos primeiros leitores de Benjamin no Brasil.
10
Sobre o tema, ver Adorno (1986).

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temporâneos (Herbert Read, Romero Brest, Greenberg, entre muitos
outros). Ao lado deles aparecem escritores como Baudelaire (talvez
sua principal “inspiração”), Proust, Apollinaire ou os poetas e ensaístas
do modernismo brasileiro, especialmente Mário de Andrade (e neste
ponto ele se aproxima de seus colegas do Grupo Clima).
Como para Antonio Candido e Paulo Emílio, Mário de Andrade é
o vértice de um processo. Mas Mário Pedrosa acerta as pontas com o
mestre de maneira particular. Em 1952, dez anos depois de Mário de
Andrade fazer o seu necrológio do primeiro Modernismo e de si mes-
mo, Mário Pedrosa foi convidado a fazer também uma conferência
para lembrar a Semana de Arte Moderna. O contexto era sumamente
distinto, como se o Brasil fosse outro país (e de certa maneira era). No
início do surto desenvolvimentista, em pleno gozo da redemocratiza-
ção, após a fundação dos grandes museus de arte moderna (o MASP,
o MAM de São Paulo e do Rio) e da I Bienal de Arte de São Paulo, o
futuro parecia aberto. O Mário vivo propõe um diálogo com o Mário
morto e docemente reinventa o futuro e o passado modernos. Pessi-
mismo lá, otimismo aqui.
Concordando com Mário de Andrade quanto ao “espírito” em transe
nos anos 1920, Pedrosa localiza esse “espírito”: fala da experiência psí-
quica e “mágica” do contato com a pintura moderna propiciado pelas
experiências de Anita ou Brecheret: para ele, foi a pintura que antecipou
a revolução na literatura (e não o contrário, como nos acostumamos a
pensar). Eis a tese: “A iniciação modernista deles começou a se fazer não
através da literatura e da poesia mas através das artes especificamente
não verbais da pintura e da escultura” (PEDROSA, 1998, p. 127).
A representação plástica tradicional estaria mais arraigada na cultura
conservadora do que a verbal (por isso ele destaca a história de Mário
de Andrade sobre o escândalo causado em sua própria família quando
ele apareceu com a escultura representando a cabeça de Cristo, feita
por Brecheret). Porém, a linguagem plástica seria mais universal, daí ser
mais aberta e própria aos problemas da criação e da expressão. Por isso o
modernismo de 1922 não se restringiu a “uma escola literária confinada
em um pequeno grupo isolado, como os simbolistas e pós-simbolistas
do Rio”. A universalidade da arte propiciou inclusive que o melhor do
nacionalismo modernista não ficasse preso às armadilhas do nacionalis-
mo de “formas mais superficiais e estreitas”, sobretudo aquele em sua

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forma “mais imbecil – a forma política” (p. 139). Pedrosa cita como o
melhor exemplo do “bom” nacionalismo (quer dizer, de uma preocu-
pação crítica com o local, com sua capacidade heurística genuína) o
ensaio de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, influência deci-
siva no pensamento nacional crítico de Antonio Candido e Paulo Emílio.
Para Mário Pedrosa, os pensadores tocados pelas artes visuais foram os
mais abertos. Os “imbecis” nacionalistas eram justamente aqueles que
não tinham, e refutavam, a sensibilidade plástica.
Os modernistas brasileiros cumpriram rigorosamente o caminho
emancipador da arte moderna, que para Pedrosa foi “uma reação ao
ideal naturalista tradicional na cultura do ocidente e a proclamação da
autonomia do fenômeno artístico”, o caminho do “espírito” contra a
servidão “da religião, do Estado, das Igrejas, do rei, dos príncipes, dos
nobres e finalmente dos ricos”. Ao caminhar para a abstração, a arte se
dirige ao Mediterrâneo e, depois, graças ao imperialismo, às culturas
“primitivas” (p. 139-141). Essa foi a verdadeira função do bom nacio-
nalismo, cujo grande representante foi Mário de Andrade, que teria
nos apresentado um “Brasil direto – natural, anti-ideológico”. Dessa
lição saem Tarsila, Guignard, Pancetti ou Heitor dos Prazeres. Com
Mário, mas também com o Pau-Brasil de Oswald de Andrade, abriu-se
a porta para o primitivismo, a conquista anticultural do modernismo
europeu, agora devidamente adaptada às condições locais: “O primi-
tivismo foi a porta pela qual os modernistas penetraram no Brasil e a
sua carta de naturalização brasileira” (p. 144)11.
Assim, “pela primeira vez, jovens pintores brasileiros saem do Brasil
por conta própria e vão a Paris tomar contato direto com a pintura
viva, e não com o academismo morto”. Só depois, diz ele pensan-
do no contexto varguista, é que o modernismo se divide entre esse
primitivismo vitalista e universalista e o nacionalismo “de mera ex-
pressividade anedótica e pitoresca que degenera em modismos pre-

11
Notemos de passagem que na Europa o primitivismo funcionou de maneira
oposta. Em 1911, Franz Marc, profundamente tocado pelos seus estudos de
escultura africana e peruana, escreveu: “Devemos ser corajosos e virar as cos-
tas a quase tudo o que até agora consideramos precioso e indispensável do
nosso pensamento, se quisermos escapar do esgotamento e do nosso mau
gosto europeu” (COLDWATER, 1967, p. 127).

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conceituosos para terminar em estilo de tropos oratórios” (1998, p.
145-148). Então, assumindo de vez o tom engajado da nova época,
sob os ventos favoráveis do desenvolvimentismo e do novo tipo de
engajamento institucional que o próprio Pedrosa advogará para esse
momento, conclui:

Pela primeira vez nesse Brasil pachorrento, inerte que no entanto co-
meçava a esboroar-se sob a desintegração da velha economia feudal e
cafeeira, um punhado de jovens se levanta contra a modorra e clama
que não somente nos domínios interessados da política os homens
têm motivos de lutar, de brigar. A arte é cada vez mais, em nossos dias,
uma atividade digna de por ela os homens, os melhores dentre eles,
lutarem e se sacrificarem (p. 152)12.

Em resumo, “por paradoxal que possa parecer, foi pela consciência


do seu ‘internacionalismo modernista’, na expressão de Mário (de An-
drade), que o movimento chegou – outra expressão de Mário – ao seu
‘nacionalismo embrabecido’” (1998, p. 139). Aqui Pedrosa organizava
as coisas ao seu modo (um modo parecido com aquele usado por
Paulo Emílio para interpretar o nacionalismo russo). Nenhum naciona-
lismo é combativo (“embrabecido”) se não souber partir antes de um
“internacionalismo” moderno. Ora, foi esse o caminho do nosso críti-
co, tanto quanto foi de sua geração, como vimos antes com Antonio
Candido e Paulo Emílio. Seria também a partir de uma interpretação
peculiar, e muito radical, desse “internacionalismo modernista” e de
sua consequência como forma de agir dentro da tradição artística e
política do país que Mário Pedrosa encontraria seu caminho particular.
Sua atividade crítica partiria daí para compreender a História da Arte
em um grande processo no qual, pelo menos desde o século XIX, a

12
Cerca de vinte anos depois, em um de seus mais excepcionais textos, “A
Bienal de cá para lá”, Pedrosa mudará sensivelmente essa abordagem cin-
quentista dos feitos da Semana. Ali, em meio aos horrores do Golpe militar e
prestes a enfrentar mais um exílio (e mais uma derrota), ele explicará a semana
a partir da imagem de um grupo aristocratizante, que ignorou a arte e a cultu-
ra populares (ele pensa nos artistas proletários que criaram, nos anos 1930, o
Grupo Santa Helena) (PEDROSA, 1995).

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arte se encaminharia para a abstração (seu caminho para a liberdade),
privilegiando os momentos em que se apresenta o desmantelamento
progressivo do naturalismo, do “acabado dos detalhes”, da “ilusão da
matéria e do absoluto da cor dos objetos”. Uma crítica, enfim, que se
pautava por “uma vocação nitidamente antinaturalista, portanto tectô-
nica e abstrata” (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 13).
Em um de seus mais ambiciosos ensaios, “Panorama da pintura
moderna”, Pedrosa concluía, em uma criteriosa análise imanente da
história da arte desde o Renascimento, que o projeto moderno se rea-
lizaria com a arte abstrata: “Um programa de preparação indireta e
gigantesca para remodelar, através da visão em movimento, os modos
de percepção e de sentir, e para conduzir a novas maneiras de viver.”
Com sua liberação das estruturas da representação, no modernismo o
tempo deixa de ser a questão decisiva: “O ‘x’ da questão agora é o es-
paço” (PEDROSA, 2000, p. 161-164). Para o crítico, Mondrian era “o
jacobino da revolução modernista”, sua “depuração final”. Ou quase.
Isso porque um artista como Max Bill, que apresentou na I Bienal uma
escultura que causou entre os defensores do abstracionismo no Brasil
o mesmo furor que Guernica trouxe aos expressionistas neofigurativos
quando de sua aparição na II Bienal, em sua Unidade tripartida, mos-
trava uma nova dimensão da abstração capaz de conciliar “a dinâmica
e a estática, numa noção de espaço já inseparável do tempo” (p. 173).
Nesse ponto, poderíamos aproximar Pedrosa de um outro grande
crítico, seu contemporâneo (e o mais importante da época), Clement
Greenberg, ao qual foi bastante ligado por vínculos diversos, como
a militância trotskista e a formação crítica criada dentro da esquerda
norte-americana. Como se sabe, Greenberg também pautou sua crítica
por um prisma “abstracionista”, centrado no conceito de planaridade
que justamente se realizaria na arte abstrata norte-americana. Em um
de seus ensaios mais discutidos (e discutíveis), “Vanguarda e Kitsch”,
publicado originalmente em 1939, Greenberg defendeu a arte de van-
guarda como uma resistência ao rebaixamento da “cultura” promovi-
da pela lógica decadente da cultura burguesa. Nesse ensaio, ele segue
uma explicação histórica aparentemente parecida com a de Pedrosa:
“todas as verdades envolvidas pela religião, autoridade, tradição, esti-
lo, são postas em questão, e o escritor ou artista não pode mais prever
as respostas do seu público aos símbolos e referências com os quais

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ele trabalha”, diz, provavelmente parodiando o Manifesto Comunista.
Logo depois, se torna um pouco mais explícito, referindo-se a um
novo tipo de crítica, a “crítica histórica”, que apresentou a “nossa or-
dem social burguesa não como uma condição ‘natural’, nem eterna,
ad vida, mas simplesmente como o último termo em uma sucessão
de ordens sociais”. A vanguarda nasceria daí e coincidiria com o mais
“arrojado” tipo de “pensamento científico revolucionário na Europa”
(GREENBERG, 1996, p. 23-24).
A vanguarda política revolucionária deu a “coragem” para que o
modernismo agredisse a cultura burguesa. Greenberg agradece. Agra-
dece, mas deixa de lado. Uma vez constituída, a vanguarda abandona
o barco da revolução política tanto quanto o da cultura burguesa. Sua
função passaria a ser “manter a cultura em movimento”. Surge daí a
“arte pela arte”, a “poesia pura”, e o “conteúdo torna-se algo a ser
evitado como uma praga”. Essa é a busca do absoluto que leva à for-
mação da arte abstrata. Um “cordão umbilical de ouro” liga vanguarda
à classe dominante. Na medida em que esta estaria em via de desapa-
recer, ou “encolhendo”, a vanguarda também estaria em perigo. E ela
precisa ser defendida, na medida em que é o último bastião da elite
esclarecida que defende a “Cultura”.
Como se pode notar sem muito esforço, as diferenças com Pedrosa
são enormes e significativas. Em termos histórico-formais, para o críti-
co brasileiro a questão da bidimensionalidade modernista nunca che-
gou a ser a mais decisiva, ao mesmo tempo em que a presença de uma
concepção de totalidade social na produção (marca marxista da qual
o crítico brasileiro jamais se distanciou) não lhe permitia analisar a his-
tória da arte de um ângulo predominantemente “interno” ou “endó-
geno”, como o crítico norte-americano. Essas posições são suficientes
para distanciar significativamente Pedrosa das posições “formalistas”
(de que foi tanto e tão injustamente acusado) ou da euforia diante
dos arroubos subjetivistas das correntes expressionistas abstratas (que,
como se sabe, Greenberg tanto defendeu).
Mas não é só isso. No caso de Greenberg, como no de Pedrosa, a
origem trotskista de ambos (sobretudo no que tange à discussão da
independência da arte diante do contexto específico do engajamento
revolucionário) encaminhou duas leituras próximas, porém com resul-
tados completamente diferentes.

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Lembrando seus tempos de engajamento na Nova York dos anos
1930, Greenberg escreveu: “Algum dia será preciso contar como o
‘antistalinismo’, que começou mais ou menos como ‘trotskismo’, tor-
nou-se arte pela arte, e desta forma abriu caminho, heroicamente,
para o que viria depois” (1996, p. 235). Ora, para Mário Pedrosa, a
questão dessa peculiar regressão à “arte pela arte” jamais foi colocada.
Antes o contrário. Para ele o moderno era o resultado da anticultura
(quer dizer, da negação da cultura burguesa acomodada, institucio-
nalizada e rigorosamente antirrevolucionária), daí seu “primitivismo”,
fundamentalmente antielitista, e da aventura da liberação experimen-
tal das formas (a aventura da abstração), promovendo um reinventar
da experiência e das consciências. Isso ele chamou de autonomia,
nesse sentido desdobrando os princípios fundamentais do famoso
manifesto “Por uma arte revolucionária independente”, assinado por
Trotski e André Breton13.
Na crítica de Mário Pedrosa, a história (compreendida dialeticamen-
te) assumia a dimensão decisiva, na medida em que ele sempre levava
em “conta a mediação das relações de produção, de classe, as injun-
ções do mercado, tanto quanto a maior ou menor consciência social
de um povo ou de um artista na obra analisada”. Para ele, a arte antes
de ser mero produto ideológico, sobredeterminado por condicionan-
tes externos, acenava

para um mundo outro, reconciliado, a lembrar uma ‘ordem cósmi-


ca’, porém recriada pelo homem. Por isso mesmo, a grande utopia
de Mário Pedrosa (como ele mesmo repetiu à exaustão) era o advento de
uma grande ‘arte sintética’, cujos delineamentos preliminares buscava
permanente e obsessivamente desentranhar das manifestações mais
autênticas da arte moderna (ARANTES in PEDROSA, 2000, p. 14).

13
Diz o Manifesto: “A arte verdadeira, a que não se contenta com variações
sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades
interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucioná-
ria, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade.
(in FACIOLI, 1985, p. 37-38). Não deixa de ser sintomático desses caminhos
diversos que, nos anos 1970, enquanto Pedrosa amargava seu terceiro exílio
político, Greenberg usasse de sua autoridade de ex-marxista para defender a
invasão norte-americana no Vietnã.

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Essa busca da síntese, da utopia da arte “sintética” (que ora lhe apare-
ceu nos desdobramentos do concretismo, em sua vertente neoconcreta,
ora na síntese da arquitetura funcionalista, escultural e racional brasileira
no auge de nosso sonho desenvolvimentista) fundamenta ainda melhor
a máxima da arte como “exercício experimental da liberdade”. Sua mis-
são seria “extravasar no mundo vivido aquele conteúdo que precisou
de liberdade para decantar-se segundo leis próprias” (ARANTES, 1991,
p. XII-XVI ). Nada a ver, uma vez mais, com qualquer exercício forma-
lista, nem greenberguiano, nem pós-moderno. Em 1955, explicando o
significado do Grupo Frente e de seu “horror ao ecletismo”, ele definiu
perfeitamente a diferença entre a “arte pela arte” e a busca da arte au-
tônoma em seu exercício experimental de liberdade:

A arte para eles não é atividade de parasitas nem está a serviço de ociosos
ricos, ou de causas políticas ou do Estado paternalista. Atividade autôno-
ma e vital, ela visa a uma altíssima missão social, qual seja a de dar estilo à
época e transformar os homens, educando-os a exercer os sentidos com
plenitude e a modelar as próprias emoções”( PEDROSA, 1998, p. 248).

No plano brasileiro, essa concepção era bastante original, e tinha


consequências. Pois no Brasil, a noção de “vanguarda” foi vulgarmente
assimilada como sinônimo de “experimentação” destinada a ofuscar
“passadistas” e “atualizar” com as vogas e modas internacionais. E aqui
os pontos que ligam o militante marxista que se fez crítico de arte com os
jovens universitários paulistas se tornam mais visíveis. Com Mário
Pedrosa, o sentido da ideia de vanguarda na condição moderna se torna
peculiarmente mais radical: liberar uma sociabilidade reprimida e alie-
nada; ser negativa e antiburguesa, buscando passar do mundo vivido à
arte e dessa para o mundo, de volta. É nesse ponto que podemos en-
tender seu interesse pela arte produzida pelos loucos e pelas crianças,
bem como sua valorização constante da arte “primitiva”, sobretudo a
dos povos pré-colombianos. Isso não apenas porque aí poderíamos en-
contrar uma arte produzida por consciências ainda não alienadas pela
linearidade da concepção burguesa de mundo (e de arte), mas porque
militar por essas causas permitia resguardar a arte como necessidade e
direito de expressão “que está em todo ser vivo, em todo ser humano,
psicótico ou inocente” (PEDROSA, 1995, p. 256).

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Esse direito de expressão “que está em todo ser vivo”, ou seja, é
rigorosamente universal, ganha, no contexto de luta do terceiro mun-
do, da periferia dependente, um sentido nada “abstrato”, mas sim
politicamente concreto, localizado e operacional. Comentando a IV
Bienal, Pedrosa atacava duramente o elitismo “cosmopolita” incorpo-
rado pelo poderoso diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York,
Alfred Barr Jr., que ridicularizava o esforço dos latino-americanos para
incorporar (e transformar) a arte abstrata construtiva: “O intrigara até
a irritação o fato de jovens daqui e da Argentina se terem entregado
a experiências chamadas concretistas. Irrita-o ainda a influência que
Max Bill, por exemplo, chegou a exercer por nossas paragens”. E per-
gunta: “Que preferia o ilustre ex-diretor do MOMA de Nova York?
Que os jovens artistas brasileiros ou argentinos se deixassem influen-
ciar mais uma vez por Picasso, Rouault, Soutine ou mesmo por algu-
mas das glórias descobertas pelo mesmo museu, gênero Peter Blume?”
(PEDROSA, 1998, p. 280).
Pois nossa pintura estaria na contramão do “gosto eclético hoje
dominante em Paris ou em Nova York. E não encontrando nada que afa-
gasse seus hábitos, (Barr Jr.) desviou-se, como todo estrangeiro impor-
tante faz ao chegar às nossas plagas, na procura de tabas de índios e de
revoada de papagaios”. Os estrangeiros só querem “exotismo”, “não
gostam de permitir aos nossos artistas uma pesquisa, uma linguagem
moderna e não ao gosto do momento nos grandes centros europeus”.
Os ricos, os europeus e norte-americanos, desejam o irracional: “Têm
horror, como homens cansados de cultura e de experiências estéticas,
a tudo que lembre estrutura, ordem, disciplina, tensões, otimismo,
beleza plástica, em suma.” Nossos artistas resistem a isso, apropriam-
se da cultura “universal” e a reinventam para tomar para si seu desti-
no. Isso era a autonomia, na visão de Mário Pedrosa, “sentimento de
independência que vai se generalizando entre os melhores de nossos
artistas”. Um “embrião de escola, cujas características fundamentais é
cedo para tentar definir e cuja designação ainda, portanto, é difícil de
dar” (1998, p. 280). Creio que isso que ele antevê será o neoconcretis-
mo, mas é também, e ao mesmo tempo, um projeto de emancipação
nacional, terceiro-mundista e, aí sim, efetivamente internacional.
Em um ensaio chamado exatamente “Paradoxo da arte moderna
brasileira”, já quase eufórico com as novas possibilidades de união e

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síntese entre o local e o cosmopolita (o projeto de sua geração, como
vimos em Antonio Candido e Paulo Emílio também), Pedrosa diz:

Não estará saindo desse paradoxo, dessa ‘vontade profunda’ o em-


brião ainda precário, mas já existente, de uma arte brasileira moder-
na e autóctone, isto é, autenticamente regional, de saborosos e fortes
acentos dialetais, na grande linguagem abstrata universal? Como já é o
caso com a nossa arquitetura” (PEDROSA, 1998, p. 319).

Assim, para Mário Pedrosa (esse “socialista singular” como o definiu


Antonio Candido” (in MARQUES NETO, 2001, p. 14)) a crítica tinha
que ser sempre, como dizia Baudelaire, “parcial, apaixonada e políti-
ca” para contribuir para a utopia emancipatória da arte e da vida, ideia
que não era estranha ao princípio crítico de Paulo Emílio, como vimos.
Por isso Mário Pedrosa não pode ser visto apenas como um teórico
das vanguardas estéticas no Brasil, mas também (e ao mesmo tempo)
como seu crítico. Pois

a consciência dilacerada não é hoje apenas a consciência do povo, das


massas, das classes: é também das elites e das vanguardas. A arte é um
esforço perene de superação da consciência dilacerada. Ela é por isso
mesmo vencida sempre, substituída por outro esforço, e assim indefi-
nidamente até o ser da sociedade deixar de ser dilacerado (PEDROSA,
1995, p. 275).

Do mesmo modo, a atuação política socialista tem de ser ela mesma


experimental, uma vez que

o socialismo não consiste apenas na conquista do poder pelo proleta-


riado e na execução das reformas de estrutura com a socialização dos
meios de produção. O socialismo é a ação consciente, quotidiana e
constante das massas, mas por elas mesmas e não por meio de uma
“procuração” a um partido de vanguarda mais consciente (PEDROSA
apud MARQUES NETO, 1993, p. 252).

Trata-se, portanto, de uma concepção da revolução e do partido


como uma experiência radical em processo constante de transforma-

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ção e elaboração. Como se vê, o decisivo é defesa da utopia de uma
arte autônoma e de uma política de massas, progredindo por rupturas
em direção ao exercício da transformação da sociabilidade mais am-
pla. Essa concepção utópica, aprendida no Manifesto “Por uma arte
revolucionária independente”, foi perseguida por Pedrosa, que entre-
tanto soube ver, no percurso da história, a configuração de suas crises
e de seus impasses.
De fato, no final de sua vida, já diante do naufrágio das utopias cons-
trutivas na arte moderna, na vida social brasileira (após o Golpe Militar
de 1964 e o fim da etapa desenvolvimentista) e da virada liberal do
capitalismo internacional, ele percebeu a relativa falência da forma de
intervenção que a arte moderna representou: “A sociedade de consu-
mo de massas não é propícia às artes”, e especialmente “à arte moder-
na, com suas exigências de qualidade e não ambiguidade”. Por isso era
inevitável perceber que uma “arte pós-moderna” tinha início:

É que entre aquela e o povo, a sociedade de consumo de massa se inter-


pôs pela comunicação de massa que deu à imagem uma força atributiva
maior do que a palavra, e forneceu à indústria, ao poder da publicida-
de, suas invencíveis armas ofensivas. A chamada cultura de massa e arte
de massa já não tem, entretanto, forças para deter a debandada geral
(PEDROSA, 1998, p. 282-283).

Esse “esvaziamento” utópico levou Mário de volta ao desejo da in-


tervenção política, ao retorno ao partido socialista de modo a salvar
a utopia que a arte não podia mais reter em si e exercitar livre e ex-
perimentalmente. No final dos anos 1970 (perto de sua morte), de
novo mais crítico socialista da cultura política do que crítico da política
das artes, ele avaliava a conjuntura político-cultural atacando tanto o
flanco dos velhos vanguardistas da arte quanto das velhas políticas dos
comunistas da América Latina.
Desde as ditaduras militares na América Latina e a Guerra do Vietnã
até o final de sua vida, Pedrosa iria reunir em seu esforço de interven-
ção política uma série de textos e ações destinados a repensar a atuação
política em tempos de transformações da ordem capitalista mundial.
Nesse sentido é que elaborou dois alentados volumes e diversas re-
flexões sobre a nova face do imperialismo norte-americano, sobre o

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significado do fim de qualquer sonho utópico possível em relação ao
comunismo soviético e sobre a nova “cultura” da fase pós-industrial
do capitalismo (que acompanhava sua leitura da arte “pós-moderna”).
É o caso dos livros pioneiros A opção imperialista e A opção brasi-
leira. Como ele mesmo explicou no prefácio de A opção imperialista,
sua intenção nesse momento era “indicar a linha de forças que impõe
ao Brasil uma distorção que o desnatura, se não o faz definhar ou mesmo
perecer”, bem como “definir aos brasileiros a retificação que se impõe
para fazê-lo reencontrar seu próprio destino” (PEDROSA, 1966, p. 2).
No momento histórico daquilo que ele chamou de “internaciona-
lismo burguês multinacional”, ou de arte pós-moderna, era preciso
pensar além da arte e da política. E ele pensou o seguinte:

Estou pensando em escrever um livro sobre as multinacionais ou a


teoria da contrarrevolução mundial. Eles têm um projeto, fundado em
uma tecnologia cada vez mais desumana. Um domínio da civilização
do hotel Hilton. O que eles querem fazer é a civilização do hotel Hilton!
Baseada no plástico, nessa matéria-prima que nada tem a ver com
a organicidade da natureza e da terra, implantando uma civilização
falsa. Isso é a teoria da contrarrevolução mundial, internacionalmente.
É preciso um rearmamento ideológico fantástico para continuar a luta
ideológica, que não se encontra mais em lugar nenhum (PEDROSA in
MODERNO, 1984, p. 34).

Nesse ponto, ele parou e abandonou a crítica de arte. Nesse ponto, a


ideia da formação de uma crítica materialista da produção cultural nas
condições brasileiras, que também se fundasse na crítica da configu-
ração social do capitalismo contemporâneo, também parou, na medida
em que o desmanche trazido pelo fim da etapa desenvolvimentista
e do nosso ambíguo projeto de “civilização” estancou a veia crítica e
abriu caminho para o ecletismo e a despolitização contemporânea.
É desse ponto que nós devemos recomeçar, se de fato quisermos
continuar a luta contra “a civilização do Hotel Hilton”, sobretudo aqui
dentro do nosso Planeta Favela. Se não me enganei terrivelmente nas
páginas anteriores, creio que os três críticos que vimos são uma fonte
ainda fresca de possibilidades para se pensar para além do que nos
tornamos.

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GoNÇALo m. tAvARES:
o ENSAio, A DANÇA,
o ESPÍRito LivRE
Júlia Studart

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Este artigo propõe uma leitura crítica do trabalho do escritor contemporâneo
Gonçalo M. Tavares – concentrando-se no seu primeiro livro, Livro da Dança,
publicado em 2001 – a partir de três questões principais: o ensaio, como expe-
riência intelectual livre, método ou modelo literário e também como ato em si,
repetição, treino; a dança, uma saída da condição habitual e um desequilíbrio,
a invenção de um corpo-bailarino que toca a experiência do ensaio como palco
de uma experiência intelectual aberta e contaminada com questões que são re-
tiradas da filosofia e da dança; e, por fim, o espírito livre, conceito de Nietzsche,
que remete a um espírito leve e que ri, aquele que detém o alegre saber. A
literatura de Gonçalo M. Tavares como um livro-ensaio aberto que escolhe o
texto como um laboratório de sensações; uma situação sempre experimental
que se assemelha a um estado de dança, em um procedimento anacrônico,
livre e descontínuo.
Palavras-chave: ensaio; dança; espírito livre

This article proposes a critical reading of the work of Gonçalo M. Tavares – fo-
cusing on his first book, Book of Dance, published in 2001 – based on three
main issues: the rehearsal, as a free, intellectual experience, method or literary
model and as the act itself, repetition, practice; the dance, a leaving of the
usual condition and an imbalance, the invention of a body-dancer that uses the
rehearsal’s experience as a stage for an open intellectual experience, contami-
nated with questions drawn from the philosophy and dance; and, finally, the
free spirit, Nietzsche’s concept, which refers to a light spirit that laughs, one
who holds the joyful knowledge. The literature of Gonçalo M. Tavares as an
open book-of-rehearsal, that chooses the text as a laboratory of sensations; an
ever experimental situation that resembles a state of dance, a free, anachronis-
tic and discontinuous procedure.
Keywords: rehearsal; dance; free spirit

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1 o ENSAio, mÉtoDo É DESvio

Gonçalo M. Tavares publica seu primeiro livro em Portugal em 2001


(Assírio & Alvim), intitulado Livro da dança,1 um poema longo dividido
e numerado em 114 fragmentos, que também se aproxima muito do
ensaio, como uma primeira hipótese. O livro mantém uma relação
direta com questões da filosofia e com questões que parecem ter sido
retiradas de um pensamento da dança e para a dança, como será de-
monstrado mais adiante. Ele saiu no Brasil em 2008 (Editora da Casa),
com uma versão diferente da edição portuguesa, pois o texto parece
indicar para outro desdobramento da linha, do verso, como alguns
versos que descem e outros que ficam menores, com trechos inteiros
removidos, o que marca ainda mais a imprecisão do gesto da dança,
do movimento solto do corpo: a coreografia do corpo leve e do poe-
ma como um corpo que pode sempre ser outra coisa. No trabalho de
Gonçalo M. Tavares a dança e o corpo vêm como um acidente mútuo,
um gesto que pode e deve ser rearticulado de outra maneira e assim
sucessivamente, em um sem-número de combinações infinitas, como
um ensaio infinito. Na edição brasileira, os poemas, os fragmentos,
que parecem vir em menor número, perdem a numeração, ganham
títulos e são organizados em um sumário que aparece pela primeira
vez. Dessa forma, o ensaio, no trabalho de Gonçalo M. Tavares, pode
ser entendido de duas maneiras distintas e complementares.

1
Esse primeiro livro foi definido pelo próprio escritor como “investigação”, ter-
mo ou “etiqueta” que constitui uma espécie de “modo de uso” ou de “como
ler”, etiqueta que é também um nome de uso para identificar uma série de
livros que mantêm entre si uma linha ou uma fronteira de texto comum. Essas
etiquetas aparecem, principalmente, nas listagens dos livros que podem ser en-
contradas, por exemplo, no começo ou ao final de alguns de seus livros, quase
sempre acompanhadas da biografia do autor. O termo “etiqueta” aparece no
site oficial de Gonçalo M. Tavares (http://goncalomtavares.blogspot.com/). Elas
se dividem em “Livros pretos – O Reino”, “Livros pretos – Canções”, “O Bair-
ro”, “Estórias”, “Enciclopédia”, “Bloom Books”, “Poesia”, “Teatro”, “Arquivos”,
“Investigações”, “Epopeia” e “Short Movies”. Dessa forma, e até agora, já que
todos os projetos estão abertos e em processo, o Livro da dança faz parte de
um grupo de três livros que formam as suas investigações, juntamente com o
Investigações. Novalis (2002) e o Investigações geométricas (2004).

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A primeira, como método ou modelo literário, procedimento de re-
flexão crítica ou estudo sobre algo, que é o caso, por exemplo, desse
livro em que as reflexões acerca do movimento, do corpo e da dança
já aparecem para depois se expandir por todo o seu projeto. Theodor
Adorno, em seu conhecido texto “O ensaio como forma”, publicado
em 1958, no volume intitulado Notas de literatura, diz que o ensaio é
uma espécie de entusiasmo infantil, que faz com que alguém, como
uma criança, tenha imensa disposição para algo e não tenha “vergonha
de se entusiasmar com o que os outros já fizeram” (ADORNO, 2003,
p. 16), uma sorte de felicidade e de jogo que exige certa liberdade de
espírito, um corpo livre e disponível para tal tarefa. Assim, o ensaio
seria mais ou menos como um espírito livre, inacabado e aberto que,
ainda na proposição de Adorno, “diz o que a respeito lhe ocorre e
termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a
dizer” (ADORNO, 2003, p. 17). Dessa forma, ele ocuparia um lugar en-
tre os despropósitos, entre desatino e disparate, um excesso de desejo
e atenção sobre algo, um pensamento fragmentado e relativizado que
na maior parte das vezes é um pensamento sobre algo absolutamente
efêmero e mutável, que recua diante de dogmas e de interpretações
rígidas e universais. Gonçalo M. Tavares, por sua vez, procura transitar
nessa “experiência intelectual” livre, o “ensaio”, articulado como um
pensamento descontínuo, sempre um conflito em suspenso. Nas pala-
vras de Adorno: “A descontinuidade é essencial ao ensaio; seu assunto
é sempre um conflito em suspenso” (ADORNO, 2003, p. 35); assim, o
Livro da dança de Gonçalo M. Tavares toma o exercício do ensaio como
um pensamento para todos os lados, sem sentido único, ou seja, toma
o próprio corpo [corpo orgânico e corpo do texto: “De qualquer modo
a dança” e “De qualquer modo o corpo contém o dia” (TAVARES, 2001,
p. 22)] como “palco da experiência intelectual”. Adorno propõe que

o ensaio exige, ainda mais que o procedimento definidor, a interação


recíproca de seus conceitos no processo da experiência intelectual.
Nessa experiência, os conceitos não formam um continuum de ope-
rações, o pensamento não avança em um sentido único; em vez disso,
os vários momentos se entrelaçam como em um tapete. Da densidade
dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O pensador,
na verdade, nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da ex-

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periência intelectual, sem desemaranhá-la. Embora o pensamento tra-
dicional também se alimente dos impulsos dessa experiência, ele acaba
eliminando, em virtude de sua forma, a memória desse processo. O
ensaio, contudo, elege essa experiência como modelo, sem entretanto,
como forma refletida, simplesmente imitá-la; ele a submete à mediação
através de sua própria organização conceitual; o ensaio procede, por
assim dizer, metodicamente sem método (ADORNO, 2003, p. 29-30).

O livro-ensaio aberto, que Gonçalo M. Tavares apresenta em seu


projeto desde o Livro da dança, também elege essa “experiência
intelectual” como modelo, como laboratório de sensações,2 uma situa-
ção sempre experimental, como processo, em um trabalho que resul-
ta “metodicamente sem método” em liberdade de espírito, em um
procedimento anacrônico, livre e descontínuo, aberto e fechado ao
mesmo tempo. E nenhum outro procedimento estaria tão próximo de
um estado de dança como o ensaio, na “liberdade que dá ao objeto
a chance de ser mais ele mesmo do que se fosse inserido impiedosa-
mente na ordem das ideias” (ADORNO, 2003, p. 41).
A segunda maneira de ler o ensaio no trabalho de Gonçalo M. Tavares
é, principalmente, perceber o ensaio como ato em si, como ação,
movimento de algo que se repete inúmeras vezes, como uma coreo-
grafia, uma dança – o texto inteiro como um corpo que dança, que

2
Essa expressão é um desdobramento do estudo de José Gil sobre Fernando
Pessoa, o primeiro capítulo do livro intitulado Fernando Pessoa ou a metafísica
das sensações, que se chama “Laboratório Poético”. José Gil (1987, p. 13)
comenta que Bernardo Soares tem por característica essencial “o facto de não
viver nem escrever senão em situação experimental. O laboratório poético
de Pessoa está em plena actividade no Livro do Desassossego”. Não à toa
José Gil assinala que Bernardo Soares escreve apontando para um movimento
neutro e para um estado larvar de consciência, uma consciência vazada em
uma prosa nítida e com penetração; diz ele: “Não há nada para lá ou para cá
dos fragmentos, do que estes narram: estados larvares de consciência, e uma
consciência dessa consciência vazada nos moldes de uma prosa extremamente
nítida, impressionante de penetração e rigor” (1987, p. 15). Pode-se dizer, de
alguma maneira, que esse procedimento é um estado de dança, mesmo que
ainda embrionário, mas sempre tocado pela repetição do gesto: eis o ensaio
do qual Gonçalo M. Tavares parece tomar posse como despossessão.

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treina, que ensaia. O ensaio seria aquilo que tenta “Treinar a nudez”
e “Experimentar a roupa nua” (TAVARES, 2001, p. 40), diz ele. Ou
seja, uma série de movimentos e de suspensão de movimentos que
devem ser incorporados ao corpo do bailarino por meio de um hábito
nu, de uma rotina nua de trabalho, de treino (exercitar, acostumar, en-
saiar etc.), até que se saiba apenas o próprio corpo-movimento de cor,
incorporado, ou seja, com o coração; e até que o corpo seja pensa-
mento e resistência, corpo-pensamento-resistência, uma intensidade.
Como sugere Alain Badiou, a partir de Nietzsche, quando fundamenta
a dança como uma metáfora do pensamento, um corpo-pensamento.
Segundo Badiou, ela é exatamente uma intensificação, um pensamen-
to efetivo no lugar, e não exterior a ele, que se intensifica sobre si
mesmo ou que representa o movimento de sua própria intensidade
(BADIOU, 2002, p. 81). Porque a primeira maneira de ler-escrever
o ensaio e a segunda maneira de ler-escrever o ensaio, ambas, têm a
ver com corpo livre, desejo, estrato, afecção, modos de ser da escrita.
Gonçalo M. Tavares indica em um poema intitulado “O mapa”– ci-
tado a seguir, que pertence ao “livro sete (Autobiografia)”, do livro de
poemas 1,3 publicado em 2004 –, a sua perspectiva de erro e impos-
sibilidade de resposta à pergunta “Por que optei por escrever?” como
um motor para seu modo de escrita. A resposta convulsa e imediata à
pergunta é: “Não sei.” Com isso, no poema, ao advertir que a mate-
mática é uma presença física de método, ele invade a interrogação de

3
O livro de poemas 1 configura quase uma antologia de oito pequenos livros,
de oito projetos aparentemente distintos. Foi publicado em Portugal em 2004
(Relógio D’Água) e no Brasil, em 2005 (Bertrand Brasil). Os livros que com-
põem o projeto 1 estão divididos e nomeados como livro um, livro dois, livro
três e assim sucessivamente até o livro oito. Os títulos dos livros, pistas de sua
aparente distinção são, respectivamente, Observações, Livro dos ossos, Ate-
nas e a metafísica, Frio no Alaska, Homenagem, Explicações científicas e outros
poemas, Autobiografia e Livro das investigações claras. É de se notar que estes
títulos de livros, de alguma maneira, acompanham os títulos que Gonçalo M.
Tavares atribuiu a alguns poemas do Livro da dança na edição brasileira, porque
perseguem a sua ideia de uma poética do movimento que é, ao mesmo tempo,
uma poética de releitura da metafísica e uma tentativa de interferir nela: “Exi-
bição”, “Sobre o osso”, “A técnica”, “Definição de função”, “Aprendizagem”,
“Indicações quase gerais”, “Biografia e prestígio”, “Coração e cicatriz” etc.

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Bernardo Soares, comezinha e lançada ao chão do moderno, como
um “desassossego”, e procura incessantemente constituir uma corres-
pondência entre algumas imagens (pelas quais pede desculpas) e essa
pergunta de resposta taxativa e instantânea, mas que não diz nada:

Sempre senti a matemática como uma presença


Física; em relação a ela vejo-me
Como alguém que não consegue
Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado Apertada
nas mangas.
Perdoem-me a imagem: como
Num bar de putas onde se vai beber uma cerveja
E provocar com a nossa indiferença o desejo
Interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um
Mundo onde entro para me sentir excluído;
Para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação
Aos números e aos seus cálculos, é um sistema,
Ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever
Não é mais inteligente que resolver uma equação;
Por que optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba:
Entre a possibilidade de acertar muito, existente
Na matemática, e a possibilidade de errar muito,
Que existe na escrita (errar de errância, de caminhar
Mais ou menos sem meta) optei instintivamente
Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa
(TAVARES, 2005, p. 161, grifo do autor).

O poema é uma proliferação deliberada de palavras e faz uso de


uma circunstância da matemática como ponto de partida, porque a
matemática é uma ciência que estuda objetos abstratos (entre eles os
números, as figuras, as funções, as noções de ordem e tantos outros,
daí uma ideia em torno das fabulações da astrologia, dos destinos,
da imaginação de mundos e de universos, da constituição dos ma-
pas etc.) e as tantas relações existentes entre esses objetos, com um
procedimento sempre suspeito, o do método dedutivo. E um método
que utiliza a dedução não pode ser senão um método que provoca

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desejo no outro: um mundo onde se entra para a sensação do fora,
de exclusão, por isso pode tratar o “infinito”, por exemplo, como um
“objecto exacto”. No fragmento 67 do Livro da dança, intitulado na
edição brasileira como “Um objecto exacto”, ele inscreve:

Entreter o infinito.
Tratar o infinito como objecto, atirá-lo ao chão, partir-lhe a FACE,
curar-lhe as feridas, chamar pelo pai e pela mãe; dar-lhe pão à boca
no dia das doenças, contar-lhe os ossos e, por fim, desprezá-lo.
Entreter o infinito.
Tratar o infinito como objecto.
(TAVARES, 2001, p. 81).

Neste “Um objecto exacto”, note-se, há um convite para deslocar o


infinito de sua abstração numérica e jogá-lo ao chão para quebrá-lo ao
meio, partir a sua face e, principalmente, dar a ele fome, contar seus os-
sos e desprezá-lo. Ou seja, dar a ele um corpo, a doença, uma possibi-
lidade de morte, medo e, como paradoxo, alguma exatidão. O poema
“O mapa”, então, nos apresenta sensações que tocam, principalmente,
algo muito próximo de uma exterioridade, um não sentido da escrita.
Assim, a sua tentativa de resposta pelas possibilidades de acertar muito,
que vêm da matemática, e das de errar muito, que vêm da literatura.
Daí o gesto mais ou menos sem meta nos modos de sua escrita que o
poema já sugere: nada para lá, nada para cá do poema. A conclusão,
na última linha, é categórica, “Escrevo porque perdi o mapa”, mas tam-
bém não diz muita coisa, porque um mapa é sempre uma composição
ficcional de um lugar imaginário ou imaginado, construído a partir do
método dedutivo, como um ensaio, movido por uma errância sem mé-
todo para atingir uma suposta meta4. E, assim, se meta tem a ver com

4
Não por acaso, Gonçalo M. Tavares desenvolve um projeto intitulado “O
Bairro”, que parte de um mapa. Esse mapa é a ficção de um lugar imaginário
ou imaginado, também construída a partir do método dedutivo, sempre como
um ensaio e movida pela errância sem método. Nesse bairro moram escrito-
res, críticos, filósofos, uma bailarina e coreógrafa (Pina Bausch), que ele chama
de “Senhores”. Esse “O Bairro” é também uma recuperação de sua afirmação:
“Escrevo porque perdi o mapa.”

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limite, fim, termo, remate ou, quiçá, equação resolvida, o que se pode
espaçar depois disso – e a partir do movimento da escrita e seus modos
de operação crítica – é uma errância. E toda errância tem vínculo com
liberdade, com espírito livre e, principalmente, com erro.
Há dois fragmentos do Livro da dança que vêm da anotação do erro,
como título e sugestão, e demarcam a interdição de um pressuposto de
escrita. Na edição portuguesa são os fragmentos 42 e 43, na edição
brasileira se chamam, respectiva e propriamente, “Erro” e “Conselho
consequência da definição de erro”, mas não há alterações dentro dos
textos entre uma edição e outra. É interessante observar que o proce-
dimento desses fragmentos exemplifica, de algum modo, o princípio
de um plano para a escrita que é constituir um gesto circular e repeti-
tivo para movê-la, para fazê-la se mover inteiramente. A repetição está
como uma insistência de método e, no primeiro deles, é possível notar
o passeio iniciado entre o erro e o método através dela. No segundo,
um conselho a modo de Zenão de Cício, o estoico (334-262 a. C., que
pregava a remoção das paixões e uma aceitação resignada do destino),
ou como Sêneca em suas “Cartas”5, em um movimento circular entre
razão e paixão, mas ao mesmo tempo negando certa condição estoi-
ca ao colocar um corpo como um perseguidor de outros corpos, um
corpo perseguidor de outros sentidos, o que talvez não seja possível;

5
Gonçalo M. Tavares diz em uma entrevista (Entrelivros, n. 29, set. 2007) que
se considera “um filho de Sêneca”, que tem “uma parte estoica”, pois “guarda
alguma distância em relação ao que vai acontecendo”. Diz também que o livro
que mais marcou a sua vida é o das cartas de Sêneca a Lucílio, Cartas a Lucílio,
livro em que Sêneca avisa que só tem domínio de si aquele que não faz de seu
corpo um peregrinador por outros corpos. Ora, o estoicismo está ligado a uma
colocação do ser na razão para sobrepor-se às paixões, mesmo que, depois, se
ligue também a uma clivagem entre corpo e alma em uma tentativa de fazer
com que o homem suplante a dor e, principalmente, a dor da perda provocada
pela morte; dor que é uma inimiga da razão. Sabe-se que Sêneca (Corduba, 4
a.C. — Roma, 65 d.C.), diz Joaquim Brasil Fontes (1992, p. 15) na apresentação
a uma pequena edição brasileira de Consolationes (Cartas consolatórias), falava
para e contra uma sociedade aristocrática, culta e em perpétuo sobressalto,
em que Nero era o imperador e se autointitulava senhor da vida e da morte.
Joaquim Fontes chama atenção para o quanto Sêneca tensiona a língua latina e
a filosofia estoica, em uma dupla racionalidade, a da ordem das palavras e a da
ordem do mundo, com um discurso entre razão e paixão.

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sempre para tentar entender esta lacuna entre o erro e a correção do
erro, entre voltar atrás e seguir em frente e, ainda, voltar atrás se atrás
for seguir em frente:

Claro que podemos errar e não voltar atrás para corrigir o erro porque
o erro não é o ERRO o erro só começa no corrigir, errar e avançar não
é errar: é avançar; errar e corrigir não é corrigir: é errar (TAVARES,
2001, p. 53).
e
Só voltar atrás se atrás for à Frente.
(TAVARES, 2001, p. 54).

Ensaiar, no exemplo desses fragmentos, está no sentido daquilo que


a dança se distingue e, ao mesmo tempo, também se assemelha: erro
e correção e voltar atrás como se fosse voltar à frente. Esse movimen-
to que se dá entre uma coisa ou outra é estabelecido por uma espécie
de “primeira matemática” (expressão que Gonçalo M. Tavares indica
e usa no fragmento citado a seguir, intitulado “A 2ª Matemática”), por-
que ainda é feita e pensada a partir de ordem e regras, quando toda
oposição estabelece uma escolha entre uma coisa OU outra, como
a paixão ou a razão no plano estoico ou o erro e sua correção,
como está no trecho citado anteriormente. Desfazer isso é armar o
paradoxo, arma-se o paradoxo quando propõe-se que o começo de
algo, como o erro, está em sua correção, o que normalmente seria
o contrário: a correção seria o fim do erro, e não o seu começo. O
paradoxo, para Gonçalo Tavares, é o que abre o belo para sobreviver6
– “O paradoxo abre o belo. / A sobrevivência do belo: é urgente tor-
nar PARADOXO o belo: / A sobrevivência do belo” (TAVARES, 2001,
p. 46) –, seria, segundo ele, “mudar o corpo para melhor” (TAVARES,
2001, p. 46), ou seja, “Evitar Pitágoras. Evitar Pitágoras dos números.
/ Evitar Pitágoras dos números no centro do corpo” (TAVARES, 2001,
p. 45). Para depois, seguindo o gesto circular e de repetição, refazer

6
Na edição brasileira do Livro da dança esse fragmento, que é o de número
35 na edição portuguesa, aparece intitulado como “Sobreviver” (p. 49). Na se-
quência, o fragmento que se inicia com “Evitar Pitágoras” (p. 48) é o de núme-
ro 34 na edição portuguesa e se intitula, na edição brasileira, como “Evitar”.

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o trecho ao dizer: “Entender Pitágoras / Entender Pitágoras para além
dos números / Entender Pitágoras para além dos números no cen-
tro do coração no coração do corpo. / (...) / Evitar amar entender
Pitágoras. / O corpo deve ao mesmo tempo, no mesmo momento,
evitar amar e entender” (TAVARES, 2001, p. 45). Sobreviver e evitar
passam a ser as ações do ensaio, e se lido aqui também como ato e
ação, não teria a ver com método? Assim, é possível pensar que Gon-
çalo M. Tavares, ao passear entre o erro e o método, e ao tomar o erro
como método, dá origem a um modo de uso da escrita “metodica-
mente sem método”, ou seja, a presença de um e de outro em uma
mesma equação onde um não anula o outro porque é importante ter
várias hipóteses. Isto, do “é importante ter várias hipóteses” e do “im-
portante é o método”, está na peça de teatro intitulada “A colher de
Samuel Beckett”, publicada em Portugal em 2002, no livro A colher
de Samuel Beckett e outros textos:

Quatro acções. (conta pelos dedos) Beber, olhar, deitar, organizar. Qua-
tro acções possíveis. Podia ser pior. Há quem não tenha quatro acções.
Há quem tenha menos. 4. Quatro. Não é mau. (pausa) Aborrecido deve
ser quando se tem uma única acção. (pausa) É preciso organizarmo-nos
para ter sempre várias acções a fazer. Nunca deixar que fique só uma.
Nunca. (pausa) Sempre várias. Hipóteses, é a palavra. É importante ter
várias hipóteses. Uma, duas, 3, 4. Uma ou outra ou outra ou outra [...]
O importante é o método. Como utilizar o quê. (pausa, sorriso) [...] Não
interessam as acções, mas sim como. (pausa)
(TAVARES, 2002, p. 22-23).

Não custa, depois desse exemplo, lembrar que proponho pensar, pri-
meiro, o ensaio como ato, e que ele quando é ação e repetição para
uma apreensão ou aprendizado é método. Depois, segundo, proponho
pensar o ensaio como modo de uso da escrita, e que para a constituição
de uma “cultura filosófica” ele é “metodicamente sem método”.
Já no livro Breves notas sobre ciência, publicado em Portugal em
2006, o primeiro dos volumes da sua “Enciclopédia”, Gonçalo M.
Tavares escreve uma anotação intitulada “A 2ª matemática”, a partir
de Wittgenstein, para insistir dessa vez na ideia de uma equação não

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resolvida, quando a meta e o limite são feitos do erro da primeira
matemática, que se constitui, também, por sua vez, de proposições
incontestáveis da segunda matemática. Este ir e vir da equação, ago-
ra, leva a um pensamento constituído de opostos, a uma arquitetura
sinuosa de um pensamento construído para o paradoxo: mal e bem,
exatidão e falha, alto e baixo etc. Porque há também, aí, uma questão
de crença – “Se todos os homens acreditarem” – e não apenas de re-
sultado, há algo aí para além do mundo e completamente tocado pela
imaginação, pela fantasia:

A 2ª matemática
Questão de Wittgenstein:
“Se todos os homens acreditarem que 2 x 2 = 5,
2 x 2 será ainda igual a 4?”
Existe uma 2ª matemática atrás da primeira.
É feita daquilo que é Erro na primeira, e é ainda —
como a primeira matemática — feita de ordem e regras.
Os erros da 2ª Matemática são também proposições
incontestáveis na 1ª Matemática.
[Pensar nos opostos. No mal e no bem. Na
exactidão e na falha. No alto e no baixo].
(TAVARES, 2006, p. 65).

Assim, a escrita de Gonçalo M. Tavares não vai apenas de uma for-


ma a outra, como transformação, mas sim como metamorfose, como
aquilo que se move por dentro da forma ensaio, entre ato em si (trei-
no, repetição, método) e o seu como fazer, modo de operar livremen-
te a escrita para a construção de uma “cultura filosófica”, a construção
de um pensamento. Pois são os próprios livros de Gonçalo M. Tavares
que sugerem, ao mesmo tempo, tanto uma necessidade de desloca-
mento da perspectiva meramente literária, quanto uma tentativa de
contato mais direto e mais aberto com algumas outras questões que os
atravessam de uma maneira sistematicamente circular, coisas que vêm
da filosofia e da dança, por exemplo. E isso se faz necessário porque
é o próprio Gonçalo quem defende a ideia de que toda arte deve
ser feita a partir de uma resistência, e que a grande resistência do ser

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humano no mundo agora ainda é pensar, ainda é o pensamento7; e
que unir literatura e pensamento não é um ato de vanguarda, mas, ao
contrário, é apenas uma interessante volta às raízes. Ele lembra que na
antiguidade clássica, por exemplo, poesia e filosofia andavam juntas,
elas eram uma mesma coisa, depois é que se separaram, e uni-las em
uma só outra vez é voltar às raízes. Já aqui, de algum modo, estabele-
ce que lhe interessa uma concepção circular da história, anacrônica,
como modo de uso, leitura e escrita do ensaio.

2 A DANÇA, o ESPÍRito LivRE

Segundo Nietzsche, o que o falso “espírito livre” gostaria de perse-


guir com todas as forças é a “universal felicidade do rebanho em pasto
verde, com segurança, ausência de perigo, bem-estar e facilidade para
todos” (NIETZSCHE, 1992, p. 48), bem como todo o seu desejo e pro-
jeto para a arte e para a filosofia seria apenas o silêncio, a quietude, o
“mar liso” ou ainda o entorpecimento, a embriaguez como vingança
sobre a vida, como ausência de resistência, embotamento dos sentidos,
em oposição àqueles que “sofrem de superabundância de vida”8, de
7
Em entrevista para o jornal Rascunho (Curitiba, 5 de janeiro de 2010), pergun-
tado acerca do uso notório de um pensamento mais reflexivo em sua literatura,
algo muito próximo da filosofia, como uma armadilha contra o senso comum,
Gonçalo M. Tavares responde que: “Pensar é ainda um dos atos de resistência
do ser humano. Não concebo qualquer ato humano sem o pensamento, mas
é evidente que este pode se expressar de muitas formas. Na antiguidade clás-
sica, a filosofia e a poesia estiveram juntas, eram a mesma coisa, mais tarde se
separaram. Juntar as duas de novo é voltar às raízes, não é ser vanguardista.”
8
Em Nietzsche contra Wagner, Nietzsche faz uma distinção entre dois tipos de
“sofredores”, que resultam do movimento da arte e da filosofia como socorro e
remédio da vida em crescimento ou da vida em declínio. Ele diz que existem
dois tipos de sofredores, os que sofrem de superabundância de vida, que bus-
cam uma compreensão e perspectiva trágica da vida, tendo no conhecimento
trágico e na arte dionisíaca o mais belo luxo da cultura; e os que sofrem de
empobrecimento de vida, que necessitariam ao máximo de brandura e paz,
que se encerrariam em horizontes otimistas e seguros, pouco instáveis – são
os décadents (1999, p. 59-60). Ou ainda, pode-se intuir, este pode ser o falso
espírito livre, o corpo cativo, obediente e sem dança, “rapazes bonzinhos e
desajeitados, a quem não se pode negar coragem nem costumes respeitáveis,
mas que são cativos e ridiculamente superficiais” (NIETZSCHE, 1992, p. 48).

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profundidade no corpo e no pensamento; que sofrem de vontade livre,
desejam uma arte dionisíaca, uma compreensão trágica do corpo, um
corpo profundo, e uma compreensão trágica da vida. Não por acaso, o
ensaio (aqui compreendido sempre nos dois movimentos já indicados)
deseja certa “liberdade de espírito”, como sugeriu Adorno, o que se
assemelha muito ao espírito livre do qual também nos fala Nietzsche.
Em Ecce Homo, publicado em 1908, que por si só já é um livro-reação,
Nietzsche comenta acerca de Humano, demasiado humano (1878):

Humano, demasiado humano é o monumento de uma crise. Ele se


proclama um livro para espíritos livres: quase cada frase, ali, expressa
uma vitória – com ele me libertei do que não pertencia à minha
natureza. A ela não pertence o idealismo: o título diz “onde vocês
veem coisas ideais, eu vejo – coisas humanas, ah, somente coisas de-
masiado humanas!”... Eu conheço mais o homem... Em nenhum outro
sentido a expressão “espírito livre” quer ser entendida: um espírito
tornado livre, que de si mesmo de novo tomou posse (NIETZSCHE,
2008, p. 69, grifos do autor).

De alguma forma, esse “espírito tornado livre, que de si mesmo de


novo tomou posse”, agora também com a posse da sua vontade plena
e contra qualquer idealismo ou saída através de uma verdade espiri-
tual, seja ela qual for, pode ser pensado junto à ideia de um “corpo
soberano”, na acepção de Georges Bataille, leitor atento de Nietzsche.
Bataille afirma que nada pode ser mais necessário e mais forte em nós
do que a revolta, a desobediência do corpo, a suspensão da lei; que
sem esse sentimento não podemos amar e nem estimar nada, pois
tudo leva a marca da submissão. Dessa forma, Bataille propõe, com
Nietzsche, um princípio de rebeldia, um “riso insidioso” no lugar do
temor, da submissão, pois é próprio da revolta não se deixar submeter
facilmente (BATAILLE, 2008, p. 227-228).
Nietzsche define ainda o “espírito livre” – corpo desobediente e
soberano que procuro demonstrar também nos textos de Gonçalo M.
Tavares, bem como o texto inteiro como um corpo furioso e desobe-
diente, corpo de intensidades –, como um desvencilhar-se de toda
crença, de toda convicção profunda ou desejo de certeza, que pode
ser representado por uma escolha, pela arrogância do paradigma, pela

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entrada no conflito, ou seja, escolher um e rejeitar outro, fazer a esco-
lha certa e o erro etc. E crença entendida “quando uma pessoa chega à
convicção fundamental de que tem de ser comandada” (NIETZSCHE,
2001, p. 241), que é um estado de permanente obediência, de corpo
dócil e servil. Nietzsche vê no “espírito livre” a liberdade de vontade
por excelência e um corpo leve capaz de equilibrar-se sobre delicadas
cordas ou de dançar até mesmo à beira de abismos, mesmo que esse
“espírito livre” – como declara no prólogo para o volume I de Huma-
no, demasiado humano – Um livro para espíritos livres –, seja uma es-
pécie de invenção, de ficção sua, uma forma de “manter a alma alegre
em meio a muitos males” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Esses espíritos se-
riam como “valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e
rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno,
quando se tornam entediantes – uma compensação para os amigos
que faltam” (NIETZSCHE, 2005, p. 8). Porém Nietzsche define, em A
gaia ciência, o “espírito livre por excelência”:

Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de


ser comandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar
um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade,
em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de cer-
teza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibi-
lidades e em dançar até mesmo à beira de abismos. Um tal espírito
seria o espírito livre por excelência (NIETZSCHE, 2001, p. 241, grifos
do autor).

Da mesma forma, para Barthes, uma reflexão sobre o Neutro é um


modo de procurar livremente, de buscar (sempre de modo livre) o
próprio estilo de atuação ou de presença nas lutas do nosso tempo
(BARTHES, 2003, p. 20) – e nessa tarefa estão comprometidos todos
aqueles que se despedem de toda crença, porque toda crença pressu-
põe escolher um e rejeitar outro, pressupõe escolher uma intensidade
ou uma “atividade ardente” como um “prazer e força na autodetermi-
nação, uma liberdade de vontade”, como nas palavras de Nietzsche já
citadas. Por isso mesmo é que, de certa forma, o Neutro se aproxima-
ria do sentido da dança, um estado quase permanente de dança para
tocar o escuro do contemporâneo; de dança como desvio, embaço,

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como um terceiro termo posto em movimento – um acontecimento,
uma intensidade. Desta forma, outro fragmento de Gonçalo M. Tavares,
extraído do Livro da dança, que parece exemplar para pensar essa
questão é o fragmento 59:

O Zen. SIM.
dançar à beira dos abismos. SIM.
A absoluta Qualidade do que não tem qualidades. SIM.
Da cabeça utilizar a guilhotina para só arrancar o cérebro.
[SIM.
a lua? SIM.
anda lua andas? SIM.
Subir por 1 lado ao cavalo para descer logo a seguir do outro
[lado?
SIM.
INÚTIL. SIM. Muito inútil!
Quanto de inútil?
Muita quantidade de inútil.
Outros FILÓSOFOS?
Por exemplo o Zen que conta histórias:
uma: ele levantava o braço sempre, para tudo.
o que significa isso?
O OUTRO, o aprendiz, põe na explicação palavras. Muitas.
ele, o mestre, por fim, depois de ouvir, levanta o braço.
o outro: mas que significa isso?
e o mestre levanta o braço, o mesmo braço, o braço.
Como é a tua dança, a tua estética, a tua poética?
O braço. É o Braço.
Mas como, o quê?
O braço, levantar o braço!
(TAVARES, 2001, p. 71).

Gonçalo M. Tavares, nesse fragmento, recupera a mesma imagem


de Nietzsche com relação à dança e ao espírito livre, ou seja, “dançar
à beira dos abismos” seria o ato livre por excelência, mas que tam-
bém apresenta o desafio, o lance de dados entre a queda, a gravidade
e a leveza irrestrita, o corpo micro, ínfimo, corpo treinado a se equi-

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librar sobre tênues cordas e possibilidades, como uma espécie de fu-
nâmbulo. Note-se que Nietzsche faz uso do verbo treinar (üben) para
descrever essa habilidade do corpo em equilibrar-se sobre o próprio de-
sequilíbrio, corpo treinado, corpo ensaiado para dançar até mesmo
sobre abismos, um ato que pode ser simplesmente para nada, com
“muita quantidade de inútil” (TAVARES, 2001, p. 71), assim como
também pode ser inútil o ato de levantar o braço. Mas esse mesmo ato
de levantar o braço, no fragmento 59, também pode ser lido como
uma existência, o aceno que diz ‘aqui estou’ e isso é também uma
dança, uma estética, uma poética, sem mesmo precisar pôr na ex-
plicação palavras, como faz o aprendiz na pequena história narrada
por Gonçalo M. Tavares. E que ao mesmo tempo é um gesto para
tudo, como aparece no fragmento: “Ele levantava o braço sempre,
para tudo” (TAVARES, 2001, p. 71), ou seja, levantava o braço para
qualquer coisa, sempre, e levantava o braço como afirmação da vida,
da existência – para tudo. Mas esse mesmo gesto repetido e para tudo
também comparece como interrupção, confronto, ou seja, novamente
o ato de hesitar, nem um nem outro, um e outro ao mesmo tempo, que
é muito próximo da proposição ZEN asseverada com um imenso “SIM”
que parece sair como exclamação para todos os lados logo no come-
ço do fragmento, como se indicasse qual é o seu projeto estético e
político, como resistência, como Neutro.
Não se pode perder de vista que o “silêncio” é uma das 30 figuras
do Neutro que Barthes analisa e que comparecem em alguns frag-
mentos de texto ou “no qual, mais vagamente, há Neutro” (BARTHES,
2003, p. 24), sob a forma de pequenas cintilações, para criar um es-
paço projetivo de leitura. O fragmento de Gonçalo M. Tavares tam-
bém faz uso dessa mesma figura quando o mestre, apenas depois de
ouvir com atenção “O OUTRO”, o aprendiz, levanta o braço. E é bom
lembrar que o Neutro, para Barthes, não corresponde a um silêncio
permanente (vê-se que o mestre fala), mas por um gasto mínimo
de uma operação de fala, nesse caso apenas seguido pelo ato repetido de
levantar o braço. Assim, o “silêncio” corresponde a uma postulação
do direito de calar-se, sem que com isto se tenha perdido o poder,
o ato livre e soberano de não dizer nada. Assim, o ato de levantar o
braço como uma dança ou logro, um silêncio que burla, um desvio,
um gesto para tudo e para nada ao mesmo tempo, que marca uma

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liberdade da vontade, um despedir-se de toda crença para afirmar
uma condição livre, uma espécie de “absoluta Qualidade do que não
tem qualidades” (TAVARES, 2001, p. 71).
Alain Badiou, por sua vez, no texto “A dança como metáfora do
pensamento”, publicado no Pequeno manual de inestética, recupera,
a partir de Nietzsche, esta mesma proposição – entre peso, o falso “es-
pírito livre” como negação da vida, e corpo livre, desobediente, como
desejo e afirmação da vida –, para pensar a dança como metáfora do
pensamento subtraído de qualquer ideia de gravidade. Ele se pergun-
ta: “Por que a dança ocorre a Nietzsche como metáfora obrigatória do
pensamento?” E logo em seguida afirma que “a dança é o que se opõe
ao grande inimigo de Zaratustra-Nietzsche, inimigo que ele designa
como ‘o espírito de peso’. A dança é, antes de tudo, a imagem de
um pensamento subtraído de qualquer espírito de peso” (BADIOU,
2002, p. 79). O crítico português José Gil também diz que a finalidade
de qualquer bailarino é vencer o peso do corpo, e que a ausência
do peso, a facilidade são de tal forma vividos pelo bailarino que ao
mesmo tempo em que ele parece ter a propriedade de “um móbil
no espaço”, parece também experimentar essa ausência de peso no
interior do próprio corpo, “como se a sua textura se tivesse tornado
espaço” (GIL, 2004, p. 18). Assim, José Gil faz referência a uma leve-
za que é própria do movimento dançado e que o bailarino, espécie
de móbil, na sua sequência de movimentos, abre no espaço infinitas
possibilidades de ausência de peso ou de gravidade, infinitas nuances
de leveza. O fato é que o bailarino nunca vive o peso objetivo do seu
corpo, do corpo inerte e vulgar, o peso do seu “cadáver”, mas a mo-
dulação de intensidades diferentes de leveza, energias de fluxo que
deixam o corpo mais ou menos leve e que são vividas pelo bailarino
como virtualidades. Desse modo, “vencer o peso, tal é o fim primeiro
do bailarino” (GIL, 2004, p. 19). José Gil diz que

Há uma leveza própria do movimento dançado; [...] O bailarino não


vive nunca o seu peso objetivo, científico, o peso do seu corpo-objeto,
o seu cadáver. Avalia a sua leveza atual por comparação com outras
levezas que acaba de atravessar no quadro específico de certa sequên-
cia de movimentos: cada sequência abre múltiplas possibilidades de
ausência de peso, diferentes das oferecidas por outras sequências. São

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a modulação, as transformações da energia de fluxo que tornam o
corpo mais ou menos leve no interior de uma leveza adquirida (a da
posição de pé e a do movimento dançado).

As duas barreiras que limitam de fora a esfera do movimento – o peso


real do corpo inerte; a leveza máxima nunca atingida – nunca são
vividas pelo bailarino como dados atuais; mas apenas como virtuali-
dades que, se se atualizassem, destruiriam o seu movimento dançado.
O peso específico virtual é a resultante da soma destes dois vetores
contrários (GIL, 2004, p. 21).

Esse esforço do bailarino para vencer o peso do seu corpo objetivo,


corpo-objeto, demonstra ainda uma espécie de saída, um desloca-
mento da posição comum do corpo, de uma atitude comum, para
um desequilíbrio do corpo, a dança como um Neutro, um desvio,
uma abertura de sentido (levantar o braço, ato em si, ato incorporado,
quando o braço é o próprio inteiro do corpo e, ao mesmo tempo, ato
para nada). José Gil diz ainda que o bailarino “sai deliberadamente
da postura do homem comum para se deslocar desde o início na di-
ficuldade: desequilibra-se” (GIL, 2004, p. 21). Gonçalo M. Tavares,
por sua vez, pergunta no fragmento 74 do Livro da dança, intitulado
“Definição de função”, acerca do movimento dançado de sua escrita
inserida no espaço contemporâneo da história e, também, ao mesmo
tempo, fora da história: “O que é a dança que já não se deve dançar?
/ [...] / O que é o corpo que dança bem? / O que é o dançarino?” E
responde, como se gritasse a si mesmo e de si mesmo, o escritor, que
traz a si o milagre para fugir do seu peso de corpo-objeto e do seu ca-
dáver: “É o COVEIRO! É o COVEIRO!” (TAVARES, 2001, p. 90). Ou-
tro exemplo, que pode prosseguir acerca dessa inserção, é o poema
“Dansa”, com “s”, do livro 19. A inserção agora aparece de maneira
formal na língua do poema, é a grafia da palavra que erra e se move,
“metodicamente sem método”:

9
O poema “Dansa” faz parte do conjunto de poemas que formam o livro
cinco, intitulado Homenagem, do livro 1 (2004).

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Dansa
Tem S a palavra, pois certas curvaturas do mundo
exigem alterações de grafia.
O traço imprevisto obriga a parar a meio;
E à paragem insólita chamarás insólito movimento.
E ficarás contente.
(TAVARES, 2005, p. 109).

Esse “erro” de grafia, essa célula que salta da origem, levanta a ques-
tão acerca de um problema de legitimação do termo: dançar é com
“s”, para oscilar na curvatura do mundo, ou é com “ç”, para insistir na
repetição do comum? A palavra grafada assim, com “s”, clama a sua
revolução, a sua recusa, a sua emancipação. Ela demonstra por fora o
que acontece por dentro, a sua animalidade: sair do comum, provocar
um desequilíbrio: dançar.
Dessa maneira, a partir do primeiro livro de Gonçalo M. Tavares,
pode-se pensar a invenção do corpo no seu trabalho e o seu trabalho
como um corpo-bailarino, o que sai do comum para provocar o dese-
quilíbrio entre ficção e imaginação. A ideia é propor ler o corpo mais
como esse desvio, como desequilíbrio, e menos simplesmente como
ausência de peso e de gravidade. Uma tarefa da literatura e para a
literatura, um modo de uso político e crítico da literatura construída
com um arsenal de corpos misturados e moventes, é o que parece
propor Gonçalo M. Tavares. Isso nos leva ainda a José Gil, quando ele
diz que “este pequeno deslocamento marca o nascimento da arte ou,
pelo menos, da sua possibilidade” (GIL, 2004, p. 22) e que o baila-
rino não se limita a conservar o equilíbrio comum, mas procura uma
espécie de equilíbrio no desequilíbrio, quase que em um estado de
desobediência do corpo, uma resistência, uma intensidade. Mas a luta
para vencer o próprio peso do corpo, essa leveza que deve ser incor-
porada ao corpo do bailarino como uma ausência de peso no interior
do corpo – o corpo tornado espaço –, não deve ser compreendida
apenas como simples ausência de peso. Bem como a dança, o voo e
a leveza não são apenas gestos que se opõem ao espírito de peso ou
de gravidade, mesmo que possam ser também uma espécie de mar-
co fundador, capaz de deslocar todos os marcos de fronteiras já que,
segundo Nietzsche “quem, um dia, ensinar os homens a voar, terá

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deslocado todos os marcos de fronteira; as próprias fronteiras terão
ido pelos ares para ele, que batizará de novo a terra – como ‘a leve’”
(NIETZSCHE, 2006, p. 230).
Para Nietzsche, além da dança apresentar a oposição mais radical
ao espírito de gravidade e de ser capaz de dar à terra o seu novo
nome, “a leve”, ela apresenta, especialmente, o corpo não forçado,
livre e desconfiado, um corpo em estado de desobediência ou ain-
da, se pensarmos com José Gil, em desequilíbrio (levantar o braço
como política, dizer que a literatura existe, apontar para uma resis-
tência, parece propor Gonçalo M. Tavares). Badiou diz que esse cor-
po não forçado está em um estado de desobediência que se estende
até mesmo às suas próprias impulsões, que a dança é “a mostração
corporal da desobediência a uma impulsão” (BADIOU, 2002, p. 83,
grifo do autor). Ele concebe a dança também como pensamento, um
“pensamento como refinamento” e diz que essa reflexão está longe
de qualquer princípio da dança como “êxtase primitivo ou agitações
repetidas e descuidadas do corpo”, mas que “a dança metaforiza o
pensamento leve e sutil, precisamente porque mostra a retenção ima-
nente ao movimento e assim se opõe à vulgaridade espontânea do
corpo” (BADIOU, 2002, p. 83). A vulgaridade seria toda impulsão
que não é retenção, mas apenas um apelo corporal que é imedia-
tamente obedecido e manifesto, um corpo obediente e incapaz de
resistir a uma solicitação. Dessa forma, a dança seria um corpo sub-
traído não apenas de peso, mas também de qualquer vulgaridade.
Esse é o corpo desenhado por Gonçalo M. Tavares em todo o seu
projeto de escrita, um corpo de pensamento leve e sutil, corpo de-
sobediente, não forçado e desconfiado, corpo subtraído de toda e
qualquer vulgaridade, e que dança. E, seguindo as palavras de Badiou,
“na dança concebida dessa maneira, a essência do movimento está
no que não teve lugar, no que permaneceu não efetivo ou retido
dentro do próprio movimento” (BADIOU, 2002, p. 82, grifo do au-
tor). Assim, a dança apresenta-se como manifestação do que “não
teve lugar”, da força do movimento retido no corpo, como um devir
permanente – um pensamento como devir, como poder ativo e vio-
lento, na sugestão de Nietzsche –, muito mais do que a prontidão e
exatidão dos movimentos em seus diversos desenhos exteriores. Nas
palavras de Badiou: “Certamente, só se mostrará essa força no pró-

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prio movimento, mas o que conta é a legibilidade poderosa da reten-
ção” (BADIOU, 2002, p. 82). Tanto é que, em uma passagem, Badiou
recupera de Nietzsche o sentido de corpo não forçado e desconfiado
como atribuição do corpo leve que dança:

Podemos pensar então, adequadamente, o que se diz no tema da


dança como leveza. Sim, a dança opõe-se ao espírito de peso, sim,
é o que dá à terra seu novo nome, “a leve”, mas, definitivamente, o
que é a leveza? Dizer que é a ausência de peso não leva longe. Deve-
-se compreender por leveza a capacidade do corpo de manifestar-se
como corpo não forçado, não forçado até mesmo por si próprio, ou
seja, em estado de desobediência a suas próprias impulsões. [...] A
leveza tem sua essência, daí ser a dança a sua melhor imagem, na
capacidade de manifestar a lentidão secreta do que é rápido. [...]
Nietzsche proclama que “o que a vontade deve aprender é a ser lenta
e desconfiada”. Digamos que a dança pode-se definir como a expan-
são da lentidão e da desconfiança do corpo-pensamento (BADIOU,
2002, p. 83, grifo do autor).

Badiou recupera ainda algumas imagens que aparecem em Nietzsche


como fulguração desse corpo que dança, esse espírito “antes de mais
nada”, que é o pensamento subtraído de qualquer espírito de peso e
de qualquer vulgaridade como, por exemplo, a ave, que habitaria o
interior do corpo, a fonte – porque o corpo dançante seria o corpo
que jorra em estado permanente, um “fora do solo” e um “fora de si
mesmo” (BADIOU, 2002, p. 80) –, ou ainda a criança, o corpo leve e
inocente, “o corpo antes do corpo”. Para Badiou a dança é um estado
de inocência porque é um corpo de antes do corpo e que também é
esquecimento, porque é um corpo que esquece o seu próprio peso,
a sua prisão. O corpo é ainda um novo começo, “porque o gesto
da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo”
(BADIOU, 2002, p. 79-80), a sua permanente fundação. Dentro dessa
mesma ideia do corpo como esquecimento e ao mesmo tempo como
eterno começar de si mesmo, como se constantemente inventasse seu
próprio começo, Gonçalo M. Tavares, no fragmento 86 do Livro da
dança, propõe uma espécie de interdição da memória e de retorno ao
corpo sem início nem fim, arremessado no instante:

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86.
interditar a memória.
Tornar a inteligência bela é voltar à não inteligência.
Só é belo o que não é inteligente; porque o inteligente é o não
imediato: um passo atrás ou à frente, enquanto o belo é o instante,
a superfície tão fina que frente igual a COSTAS, o início é o mesmo
que o FIM.
interditar a memória
a memória é ocupação do espaço
a memória é o não imediato,
a memória é o inteligente.
interditar pois a memória.
O Corpo inteligente é inteligente mas não é corpo porque corpo é es-
tar presente, agora, por completo, e o inteligente, repito o inteligente
é o não-imediato, um passo atrás ou à Frente.
a dança não tem Memória.
A criatividade não tem Memória.
O Corpo começa agora no momento que acaba.
O Corpo começa no mesmo sítio que acaba.
O corpo é 1 sítio e 1 tempo e depois 1 outro sítio e 1 outro tempo que
não se recordam o sítio e o tempo anteriores.
CORPO AMNÉSICO
Esqueceu porquê aqui e agora.
Aqui e agora e antes nada.
Aqui e agora e depois nada.
CORPO AMNÉSICO e sem projetos.
Cortar-lhe a cadeira dos velhos e o nome donde se vê o FUTURO dos
NOVOS.
Um CORPO sem cadeira (não há cansaço porque antes não existiu)
e UM CORPO sem VISÃO (o FUTURO é 1 espaço onde antes não se
chegou).
Sem visão não há nenhum lado onde se chegar, e sem cadeira não há
sítio onde descansar, portanto só resta ao corpo ser todo aqui e agora
e só resta ao corpo dançar.
(Corpo a quem cortaram a cadeira e os olhos)
(TAVARES, 2001, p. 104-105).

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“Interditar a memória”, diz o fragmento, interditar a memória de um
corpo preso e que pesa, para que ele seja apenas superfície fina, instan-
te, nem início nem fim, início e fim ao mesmo tempo, o gesto da dança
que deve ser sempre como se inventasse um novo começo a partir do
que não teve lugar, da força do movimento retido no próprio corpo.
Gonçalo diz ainda que toda memória é ocupação do espaço, começo
de espaço, uma memória inteligente que está sempre um passo atrás
ou à frente e que, por isso mesmo, é um corpo não imediato. O cor-
po da dança, para Gonçalo M. Tavares, também é essencialmente sem
memória – “a dança não tem Memória”, ele diz –, é um corpo circular
e paradoxal – “O corpo começa agora no momento em que acaba” –,
um corpo antes do corpo, sem inteligência, sem saber, sem ciência;
corpo como acontecimento aqui e agora, no sítio de sua eclosão,
um corpo-pensamento livre e que jorra, jamais alguém, mas carne,
osso, corpo anterior ao sexo, corpo em sua nudez absoluta, a nudez de
antes da exibição de qualquer ornamento, “nudez que não resulta de
se despojar dos ornamentos, mas, ao contrário, da nudez tal como se
dá ‘antes’ do nome” (BADIOU, 2002, p. 91). É a dança como metáfo-
ra do pensamento e como outra inserção da escrita no espaço-tempo
contemporâneo, como um pensamento em relação, pensamento leve,
que “apresenta-se sem relação com outra coisa senão consigo mesma,
na própria nudez de seu surgimento” (BADIOU, 2002, p. 90, grifo do
autor), no anonimato dos corpos, no apagamento dos sexos, como apa-
rece no fragmento 29, que na edição brasileira é intitulado “Treinar”:

29.
Treinar a nudez.
Pintar de céu a nudez.
Pintar de sexo a nudez.
Desenhar na nudez a inocência.
Desenhar a Fornicação na nudez.
a nudez clássica igual à nudez actual.
experimentar roupas nuas.
confirmar que a nudez é mais nua que a roupa nua.
Treinar a nudez.
Ser melhor NU que ontem se foi nu, ser melhor nu que ontem
se foi nu.
(TAVARES, 2001, p. 40).

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Mais uma vez Gonçalo M. Tavares faz uso do verbo treinar (exer-
citar, acostumar, adestrar, versar, educar, ensaiar), agora para propor
um ensaio da nudez, a repetição da nudez, bem como “experimen-
tar roupas nuas”, desnudar-se de todo e qualquer ornamento para
sentir no corpo profundo a nudez. Interessante também é que no
fragmento de Gonçalo pode-se ser melhor ou pior NU, por isso a
importância de treinar a nudez, de colocar nudez na dança, até que
o corpo saiba-se NU de vez, e uma nudez sem julgamento ou valor,
que tanto pode ser “céu”, como pode ser “sexo”, “inocência” ou
“fornicação”. É uma nudez expandida, pois ele sugere experimentar
roupas nuas; assim, se pode pensar em uma escrita que seja vestir a
nudez com a própria nudez, o sentido com o não sentido do sentido.
É como se a dança, como afirmou Badiou, fosse sempre uma nova
invenção de começo, nem antes e nem depois, antes nada e depois
nada, um corpo “amnésico”, subtraído de todo saber, de toda me-
mória. Badiou lembra a conhecida proposição de Mallarmé10 nas suas
observações críticas de 1886, intituladas “Ballets”, quando este diz
que a bailarina não é uma mulher que dança, visto que não é uma
mulher, mas um corpo anônimo; e que não dança, pois não é a reali-
zação de um saber, mas um “corpo como eclosão”, um “esquecimen-
to milagroso”. Mallarmé diz ainda que o corpo anônimo que dança é
uma espécie de poema liberto de todo aparelho do escriba, ou seja,
um poema não inscrito, livre e que dança sem deixar vestígio, uma
espécie de corpo desobediente, subtraído de qualquer vulgaridade,
em uma relação direta entre ser e desaparecer – um “hieróglifo” que
dança, uma “aparição como acontecimento”, uma invenção do corpo
de intensidade, do corpo profundo e paradoxal, como parece ser o
projeto de Gonçalo M. Tavares com a sua literatura. Sobre essa propo-
sição de Mallarmé, Badiou diz:

O que se pronuncia aqui é a dimensão subtrativa do pensamento.


Todo pensamento verdadeiro é subtraído ao saber onde se constitui.

10
Mallarmé deixou alguns breves escritos sobre a dança, algumas observações
críticas – as prosas de circunstâncias –, que foram destinadas a revistas de
pouca circulação na época, mas que mais tarde foram incluídas nos capítulos
Crayonné au théâtre e Ballets do livro Divagations, publicado em 1897.

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A dança é metáfora do pensamento precisamente porque indica por
meio do corpo que um pensamento, na forma de sua aparição como
acontecimento, é subtraído a toda preexistência do saber.
[...]
“A dançarina não dança” quer dizer que o que se vê não é em momen-
to algum a realização de um saber, embora de parte esse saber seja
sua matéria, ou seu apoio. A dançarina é esquecimento milagroso de
todo seu saber de dançarina, ela não executa qualquer dança, é essa
intensidade retida que manifesta o indecidido do gesto. Na verdade, a
dançarina suprime toda dança que sabe porque dispõe de seu corpo
como se ele fosse inventado. De modo que o espetáculo da dança é
o corpo subtraído a todo saber de um corpo, o corpo como eclosão
(BADIOU, 2002, p. 90, grifos do autor).

Também Valéry, em Degas Danse Dessin, publicado em 1935, faz re-


ferência a essa mesma proposição de Mallarmé. Ele diz que seu encan-
tamento com a dança pode partir de outro lugar, muito além da cena
comum, fora do palco e fora do solo como, por exemplo, diante de
uma tela onde se encontram grandes Medusas aparentemente fixas e
intocáveis. Valéry abre a perspectiva da dança para além do corpo que
dança, efetivamente, da mulher que dança e põe em cena todo o seu
saber de bailarina, quando diz que uma das mais livres, flexíveis e volup-
tuosas das danças possíveis apareceu-lhe em uma tela, em que não se
encontravam mulheres e não se dançava, mas em que se viam Medusas
tão fluidas que pareciam representar todo ideal de mobilidade, em seus
“corpos de cristal elástico” que parecem se mover em “espasmos on-
dulatórios”, como se estivessem no dia da grande exibição – “vira-se ao
avesso e se expõe, furiosamente aberta” (VALÉRY, 2003, p. 39). O que
pode nos levar ao fragmento 95 do Livro da dança, “SER PROFUNDO
no dia da EXIBIÇÃO Profunda” (TAVARES, 2001, p. 115). Diz Valéry:

Mallarmé disse que a bailarina não é uma mulher que dança, pois ela
não é uma mulher, e não dança.
[...]
A mais livre, a mais flexível, a mais voluptuosa das danças possíveis
apareceu-me numa tela onde se mostravam grandes Medusas: não
eram mulheres e não dançavam.

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Não são mulheres, mas seres de uma substância incomparável, trans-
lúcida e sensível, carnes de vidro alucinadamente irritáveis, cúpulas de
seda flutuante, coroas hialinas, longas correias vivas percorridas por
ondas rápidas, franjas e pregas que dobram, desdobram; ao mesmo
tempo em que se viram, se deformam, desaparecem, tão fluidas quan-
to o fluido maciço que as comprime, esposa, sustenta por todos os
lados, dá-lhes lugar a menos inflexão e as substitui em sua forma. Lá,
na plenitude incompressível da água que não parece opor nenhuma
resistência, essas criaturas dispõem do ideal da mobilidade, lá se dis-
tendem, lá recolhem sua radiante simetria. Não há solo, não há sólidos
para essas bailarinas absolutas; não há palcos; mas um meio onde é
possível apoiar-se por todos os pontos que cedem na direção em que
se quiser. Não há sólidos, tampouco, em seus corpos de cristal elástico,
não há ossos, não há articulações, ligações invariáveis, segmentos que
se possam contar...
Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada de movimen-
to, do veneno de suas forças excedidas, da presença ardente de olha-
res carregados de desejo, expressou a oferenda imperiosa do sexo,
o apelo mímico da necessidade de prostituição, como aquela gran-
de Medusa, que, por espasmos ondulatórios de sua torrente de saias
engrinaldadas, que ela arregaça repetidas vezes com uma estranha e
impudica insistência, transforma-se em sonho de Eros; e, subitamente,
rejeitando todos seus folhos vibráteis, seus vestidos de lábios recorta-
dos, vira-se ao avesso e se expõe, furiosamente aberta.
Mas imediatamente se recompõe, freme e se propaga em seu espaço,
e sobe como balão à região luminosa proibida onde reinam o astro e
o ar mortal (VALÉRY, 2003, p. 38-39).

Interessante pensar o quanto Gonçalo M. Tavares também compõe


a sua imagem da dança para além da ideia de um corpo feminino
que dança e expõe todo o seu saber, para além do palco e do solo,
seguindo essa sugestão de Valéry. Mas a figura que Gonçalo formula
ou o seu corpo inventado no texto, que é também o texto como um
corpo, se afasta da descrição feita por Valéry – ainda que se trate,
como propõe Valéry, de um corpo leve de “estranha e impudica in-
sistência” (VALÉRY, 2003, p. 39), que é afirmação da vida, e que se

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expõe, furiosamente aberto, talvez no instante da “EXIBIÇÃO Profun-
da”, porque é nesse momento que entendemos que, para Gonçalo
M. Tavares, não há nenhum corpo completo, que ao corpo que fal-
tam movimentos chamamos de corpo “INcompleto” (TAVARES, 2001,
p. 91) e ao outro chamamos de deus. Mas que, principalmente, esse
deus não se exibe. Gonçalo retoma a ideia de que o corpo que dança
– no seu “projeto para uma poética do movimento” – é um corpo de
osso e de articulação, um corpo que morre, um corpo sem metafísica,
mais perto do chão, um corpo furioso e sólido, mas também gaso-
so e possível de evaporar, enquanto ensaia uma espécie de “dança
desenfreada.” (NIETZSCHE, 2006, p. 268). Logo, o projeto literário
de Gonçalo M. Tavares é também osso, carne, articulação, travessia
violenta, paradoxo e oposição de termos, mas para desfazê-los por
dentro, em contato, em uma armadilha para o sentido. Uma poética
do osso imprevisto que sobrevive como movimento. Ele retoma essa
questão no fragmento 50:

Quando o Movimento acabar o osso sobrevive.


O movimento da dança, o poético no oxigênio, deve MOSTRAR que
o osso SOBREVIVE, o osso permanece quando acabar o Movimento.
(TAVARES, 2001, p. 62).

O fragmento trata da sobrevivência do osso, ele “SOBREVIVE” e


permanece quando se retira a pele e o movimento termina. O osso
nu agora é pele, o que volta a se exibir é de novo a pele. O osso nu
é o que nada tem de flexível, ele é o único sólido que pode se impor
às bailarinas absolutas de Valéry. Tanto que no fragmento 21 a carne
que aparece como possibilidade para a dança, sobrevive e permanece
quando se retira a pele. A carne nua é pele, o que volta a se exibir é
de novo a pele. “A pele é cá fora e mostra-se” (TAVARES, 2001, p. 92).
Diz ele no fragmento 76, que tem um título que indica evidência:
“Isso é claro”. A dança, na escrita de Gonçalo M. Tavares, é a indica-
ção de uma “poética dos ossos e dos Mortos”, porque ela é o osso nu
que sobrevive quando o movimento acaba; é a carne nua que sobrevi-
ve quando o movimento acaba; osso e carne nus que se exibem como
pele, o milagre. Segue o fragmento 21:

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21.
Meter na dança carne.
a carne é igual no Feminino e no Masculino.
Descobrir o corpo anterior ao feminino e descobrir o corpo
anterior ao Masculino.
A carne é o corpo anterior ao sexo.
Meter carne na dança.
Deixar a dança ser primeiro que o corpo.
Ao corpo anterior ao Feminino e ao corpo anterior ao
Masculino
é impossível acrescentar algo novo.
Não abrir o exterior do corpo para a carne entrar; Não abrir o
exterior do corpo para deixar sair a CARNE.
Não meter CARNE na Dança. Não tirar CARNE da dança.
Deixar a dança ser Naturalmente Carne.
CARNE: a poética dos ossos e dos Mortos é igual: CARNE.
a Matéria da Poética obedece aos instrumentos de Medida.
Exibir as Medidas da Alma.
A carne quando aparece aparição antes do corpo exibe as
Medidas da alma.
A carne quando aparece aparição antes do corpo exibe as
Medidas da alma.
(TAVARES, 2001, p. 32).

É possível verificar, porém, a partir do fragmento 21 intitulado “Me-


didas do corpo”, como Gonçalo M. Tavares elabora mais uma medida
para sua escrita entre o corpo e a dança. A escrita como um ponto de
mesura, de eclosão, de abertura, o seu acontecimento antes do corpo,
como aquele estado de inocência ou de jorro permanente do qual nos
fala Nietzsche e Badiou: como o gesto do bailarino ao dispor do corpo
como se ele fosse inventado, quando a dança é o corpo subtraído de
todo saber de um corpo, de toda ciência. É o corpo eclodido a partir
do esquecimento de todo o seu saber, eis o milagre. E assim, o corpo
como acontecimento paradoxal, ao retirar a pele, termina por “Exibir
as medidas da alma” e passa a ser o osso nu e a carne nua, eis de novo
o milagre. A escrita vem como a força de um movimento retido e sem
lugar, resultado de um “Ser Profundo nos ENSAIOS” (TAVARES, 2001,

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p. 115); a escrita segue a ideia de um corpo não inteligente, AMNÉSICO
e sem projetos, porque é aqui e agora, nem antes e nem depois.
Não por acaso Gonçalo M. Tavares escreve no breve fragmento
de número 82 – que na edição brasileira ganha o significativo título de
“Exclamação” 11, ou seja, algo que se diz com ênfase ou em voz alta e
que exprime admiração ou alegria –, uma espécie de acontecimento do
corpo aqui e agora, como se a força do não ter lugar do movimento
retido, em estado de desobediência, eclodisse em movimento violen-
to e espantoso, em dança, em exclamação para todos os lados, como
se também perdesse de vista a sua condição de sujeito do enunciado,
para montar o paradoxo em direção a um sujeito da enunciação:

Alguém me aconteço!
Alguém
me
aconteço.
(TAVARES, 2001, p. 99).

O verso-exclamação “Alguém me aconteço!”, tal qual o gesto de


levantar o braço (verso e gesto para nada, como talvez seja o lugar
da literatura agora: para nada, logo para tudo), também parece con-
servar o segredo no corpo, a ausência de sexo e de ornamento na
indeterminação do pronome “alguém” que produz um acontecimento
no corpo; assim como levantar o braço é também um gesto inde-
terminado. Tudo não passa de uma tentativa de incorporação, um
exercício de releitura da imagem do escritor como um corpo que se
lança no mundo a partir do que escreve e a partir, principalmente, do
que publica daquilo que escreve. Onde o acontecimento da escrita?
Badiou diz justamente que o movimento desse corpo em eclosão, em
exclamação e que jorra sugere o seguinte: “A dança seria a metáfora
de que todo pensamento verdadeiro depende de um acontecimento.
Pois um acontecimento é precisamente o que permanece indecidido
entre o ter-lugar e o não-lugar, um surgir que é indiscernível de seu

11
Na versão para a edição brasileira de o Livro da Dança (Editora da Casa,
2008) Gonçalo M. Tavares desloca a exclamação para o final do poema: “Al-
guém me aconteço./ Alguém/ me/ aconteço!” (TAVARES, 2008, p. 99).

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desaparecer” (BADIOU, 2002, p. 84). E é aqui onde parece residir o
milagre da escrita pensada como um corpo que dança, entre planejar
o milagre e ensaiar, pois o corpo que dança e tão logo desaparece é
também o corpo que dura, o corpo infinito. José Gil, por sua vez, diz
que “não havia repouso porque não havia paragem do movimento. O
repouso era apenas uma imagem demasiado vasta daquilo que se mo-
via, uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o movimento”
(GIL, 2004, p. 13). Por isso o corpo leve, desobediente e soberano,
esse corpo de escrita inventado por Gonçalo M. Tavares, “um bailari-
no subtil”, atravessa furiosamente todos os seus livros, sem repouso,
em uma dança desenfreada, por dentro do seu permanente começar,
como uma aparição sutil, um fantasma ou um esquecimento mila-
groso. Ou na sugestão de Valéry, como uma espécie de movimento
ondulatório de saias engrinaldadas, que o bailarino levanta repetidas
vezes com uma estranha e impudica insistência, em um jogo entre
deixar o corpo à mostra e exposto, e esconder o corpo, fazer o corpo
desaparecer.
Badiou afirma que o corpo dançante tal como ele advém no sítio,
tal como se espaça na iminência, “é um corpo-pensamento, jamais é
alguém” (BADIOU, 2002, p. 87, grifo do autor). É bom lembrar que
para Gonçalo M. Tavares o pensamento, o ato de pensar, é – ainda – o
nosso gesto de resistência agora, como se um pensamento fosse – com
o que afirma Nietzsche – leve e sutil, mas igualmente desconfiado
e desobediente. E vejamos que, acerca desses corpos sugeridos por
Badiou, Mallarmé já declarara que eles são sempre símbolo, apenas,
não alguém. Por isso Gonçalo escreve tão incisivamente que “Alguém
me aconteço!”.

CoNSiDERAÇÕES fiNAiS

O que parece é que Gonçalo M. Tavares apresenta, a partir desse


primeiro livro, o Livro da dança, que ele define como “projeto para
uma poética do movimento”, e em todos os livros posteriores a este,
um texto que seria, antes, um corpo que cai e que também se eleva,
como um corpo-móbil flexível e que dança, um corpo monstruoso,
soberano, anônimo, desobediente, impossível, como uma criança tra-
vessa, sem gravidade e sem memória, que parece negar toda a ideia

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de corpo orgânico, vulgar, dócil, obediente – o falso espírito livre, es-
pírito cativo e “ridiculamente superficial” do qual fala Nietzsche. De
outra maneira, pensando com José Gil, o projeto de Gonçalo M.
Tavares aponta para um gesto dançado que abre no espaço a dimensão
do infinito, pois “seja qual for o lugar onde se encontra o bailarino,
o arabesco que descreve transporta o seu braço para o infinito” (GIL,
2004, p. 14), pois, como já foi visto, o corpo do bailarino é sempre
transportado pelo movimento em um gesto que começa antes dele,
do próprio movimento, e que se prolonga depois dele. José Gil diz que
“tudo se passa no espaço do corpo do bailarino” (GIL, 2004, p. 14)
que abre buracos no espaço comum, que faz furos no espaço comum,
vulgar, para abrir nele um campo de ventilação, de ar, uma espécie
de estado de desobediência, de queda, de desequilíbrio, de quebra do
movimento que provocará sempre outros movimentos, pois o gesto
da dança inventa sempre novos começos, como um corpo que jorra
para fora de si mesmo.
Por esses e outros tantos desdobramentos podemos pensar que
Gonçalo M. Tavares faz uso de um procedimento singular, como tare-
fa, da e na sua escrita, que é o de abrir o corpo da palavra, da frase,
como um bailarino enraivecido em uma travessia violenta (a expres-
são é de Nietzsche), até projetá-las para fora, EXIBI-LAS, e armar um
espaço em cada uma delas como um corpo que busca alcançar as
intensidades mais altas, um corpo que é um círculo de desejos. José
Gil chama a esse procedimento, na dança, de “plano de imanência da
dança”, que se dá quando as ações do corpo já não se distinguem dos
movimentos do pensamento, e isso pode ser tomado como uma cons-
ciência do corpo; corpo que passa a ser um corpo-pensamento, que
se abre e se fecha, que pode ser atravessado por diferentes fluxos de
vida; corpo que é uma pura afirmação da vida. Para José Gil, “dançar
é criar a imanência graças aos movimentos” (2004, p. 44).

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REfERêNCiAS
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida.
São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2003. (Coleção Espírito crítico).
BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller.
São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
BARTHES, Roland. O neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: M.
Fontes, 2003.
BATAILLE, Georges. La felicidad, el erotismo y la literatura: ensayos 1944-
1961. Trad. Silvio Mattoni. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Ed., 2008.
GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. Lisboa: Relógio
D’Água, 1987.
GIL, José. Movimento total, o corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma
filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. O caso Wagner. Trad., notas e posfácio
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro
para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005. v. 1.
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos
e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2006.
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é.
Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SÉNECA. Cartas consolatórias. Trad. Cleonice Furtado de Mendonça.
Campinas: Pontes, 1992.

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TAVARES, Gonçalo M. Breves notas sobre ciência. Lisboa: Relógio d’Água,
2006.
TAVARES, Gonçalo M. A colher de Samuel Beckett e outros textos. Porto:
Campo das Letras, 2002.
TAVARES, Gonçalo M. O humor e ironia com rigorosa habilidade e disciplina:
entrevista. Jornal Rascunho, Curitiba, 5 jan. 2010.
TAVARES, Gonçalo M. Ler para ter lucidez: entrevista. Entrelivros, São Paulo,
n. 29, set. 2007. Entrevista concedida a Joca Terron.
TAVARES, Gonçalo M. Livro da dança. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.
TAVARES, Gonçalo M. Livro da dança. Florianópolis: Ed. da Casa, 2008.
TAVARES, Gonçalo M. 1. Lisboa: Relógio D’Água, 2004.
TAVARES, Gonçalo M. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. Trad. Christina Murachco, Célia
Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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CAio PRADo JR.
E o iNtELECtuAL
mARxiStA HoJE
Marco Aurélio Nogueira

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O presente artigo propõe-se a dialogar com a obra e a trajetória de Caio Prado
Júnior, um dos mais importantes intelectuais marxistas do Brasil. A intenção
não é proceder a uma avaliação em detalhe de sua produção, nem analisar as
relações que essa produção teve com a época e com as opções políticas do
historiador, trabalho que já foi realizado por diversos pesquisadores. Pretende-
se, em vez disso, “usar” seu percurso e seu estilo para refletir livremente sobre
alguns traços do marxismo no Brasil e especialmente sobre certos dilemas ine-
rentes à atuação da intelectualidade marxista. Caio Prado Jr. será, portanto, tra-
tado aqui como parâmetro para uma reflexão mais ampla sobre os intelectuais.
Palavras-chave: Caio Prado Jr.; intérpretes do Brasil; Marxismo

This article proposes to engage in dialogue with the work and the trajectory of
Caio Prado Júnior, one of the most influential historians and Marxist intellectuals
of Brazil. The intention is not to evaluate his production in detail, nor follow
the relationships she had with the Brazilian society and the historian’s political
options, something already conducted by several researchers. Instead, its inten-
tion is to “use” his trajectory and style to freely reflect on some traces of Mar-
xism in Brazil and especially on certain dilemmas inherent in the performance
of the Marxist intellectuality. Caio Prado Jr. will, therefore, be treated here as a
parameter for a broader reflection on the intellectuals.
Keywords: Caio Prado Jr.; Brazilian studies; Marxism

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iNtRoDuÇAo

Na atual época histórica, a melhoria da capacidade de compreen-


são do mundo tornou-se uma exigência. Não podemos nos contentar
em ser meros consumidores de informações. Também não é suficien-
te atuar de modo excessivamente especializado, como se o domínio
verticalizado de um único campo de saber bastasse para agir sobre
o mundo. Devemos nos empenhar para ir além de informações e
conhecimentos especializados, organizando-os em um quadro mais
abrangente e aberto para a totalidade da experiência social. De certo
modo, estamos sendo obrigados a viver como intelectuais, ou seja,
como pessoas que fazem da relação com as ideias e os pensamentos
uma espécie de pão cotidiano.
Dentre os “clássicos” do pensamento social brasileiro, Caio da Silva
Prado Júnior (1907-1990) ajusta-se como uma luva nessa conside-
ração inicial. Ele não foi somente um historiador, e certamente não
foi um historiador acadêmico, ainda que sua obra tenha sido funda-
mental para que uma historiografia acadêmica se consolidasse entre
nós. Foi seguramente um historiador no melhor sentido da palavra:
ajudou-nos a descobrir o Brasil, quer dizer, desvendou-nos o modo
como nos tornamos brasileiros, o legado que recebemos da experiên-
cia histórica e os problemas que o século XX teria pela frente. Mas
não se limitou a isso. Foi também geógrafo, escritor, político e editor,
para nos lembrarmos das atividades profissionais a que se dedicou. E
em cada uma dessas áreas, atuou de forma singular, sem reproduzir
mecanicamente os padrões associados à sua classe social, às suas ori-
gens sociais, e acima de tudo sem perder de vista a sociedade como
um todo. Foi, em suma, um intelectual na melhor acepção da palavra.
No texto que se segue, não se pretende avaliar o teor da obra de
Caio Prado Jr., nem acompanhar as relações que ela manteve com
a sociedade brasileira ou analisar as opções políticas do intelectual,
trabalho já realizado por diversos pesquisadores. Pretende-se, em vez
disso, “usar” sua trajetória para refletir livremente sobre alguns traços
do marxismo no Brasil e especialmente sobre certos dilemas inerentes
à atuação da intelectualidade marxista. Caio Prado Jr. será, portanto,
tratado aqui como parâmetro para uma reflexão mais ampla sobre os
intelectuais.

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1 À PRoCuRA DA REvoLuÇÃo buRGuESA

Caio Prado não foi um intelectual que se manteve recluso em al-


guma esfera superior, sem contato vivo com a sociedade ou alheio à
agenda da época. Bem ao contrário, foi um intelectual público, que
viveu em contato corporal com seu tempo, integrado às lutas sociais
e às questões que se debateram ao longo de um importante trecho
do século XX. Foi também um intelectual marxista. E como marxista,
envolveu-se intelectualmente com a política e com o Partido Comu-
nista Brasileiro (PCB). Nessa condição, atuou como um organizador
de cultura, seja como homem de partido, escritor e historiador, seja
como editor.
Tudo isso em uma fase decisiva da vida nacional, entre 1930 e 1980,
anos que assistiram à consolidação do capitalismo no Brasil mas que
não se caracterizaram pela estabilização de uma relação política e
social com a democracia, nem pela sedimentação no país de uma
cultura democrática. Foram anos de desenvolvimento econômico, de
urbanização, de redefinição das relações entre o campo e a socieda-
de, de afirmação das modernas classes sociais no Brasil – ou seja, anos
em que a vida moderna se disseminou pela sociedade. Mas não foram
anos de democratização política: não houve consolidação de um sis-
tema democrático de governo, de práticas democráticas, de modos
democráticos de pensar e fazer política, nem mesmo de ampliação
categórica do sufrágio. Duas décadas de democracia representativa
(1946-1964) terminaram por simbolizar uma espécie de espasmo em
uma longa noite de desenvolvimento econômico combinado com au-
toritarismo político, de capitalismo induzido e sem democracia.
Esse contraste entre desenvolvimento econômico-social e desenvol-
vimento político tingiu toda a história brasileira. Não foi um acaso,
portanto, que tenha aparecido em posição de destaque na elaboração
teórica de Caio Prado, ainda que nem sempre de forma explícita ou
adequada. O historiador fez dele, devidamente adaptado, uma espé-
cie de chave para compreender a história brasileira, que ele via como
envolvida por um processo em que o desenvolvimento se fazia sem
rupturas radicais, reiterando o passado e com isso travando o futuro.
Ao longo do tempo, teriam sido dois os efeitos principais desse “mo-
delo” de desenvolvimento.

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Em primeiro lugar, o processo conservador de desenvolvimento difi-
cultava que o passado terminasse de passar, ou seja, ficasse para trás.
Como ele escreveu em um de seus livros, vivemos a “assistir pessoal-
mente às cenas mais vivas de nosso passado”, frase com que, segundo
ele, um professor francês havia definido os brasileiros como um povo
a ser invejado pelos historiadores, que podiam trabalhar com o passa-
do como se ele estivesse presente o tempo todo. Caio Prado sempre
reiterou sua hipótese de trabalho: entre nós, é enorme a capacidade
de resistência e reprodução da velha estrutura colonial, fonte de tan-
tos problemas e de tantos desafios teóricos e práticos. Na “Introdu-
ção” redigida para Formação do Brasil contemporâneo, cuja primeira
edição é de 1942, ele assim se expressou:

Observando-se o Brasil de hoje, o que salta à vista é um organismo


em franca e ativa transformação e que não se sedimentou ainda em
linhas definidas; que não “tomou forma”. É verdade que em alguns
setores aquela transformação já é profunda e é diante de elementos
própria e positivamente novos que nos encontramos. Mas isto, apesar
de tudo, é excepcional. Na maior parte dos exemplos, e no conjunto,
em todo caso, atrás daquelas transformações que às vezes nos podem
iludir, sente-se a presença de uma realidade já muito antiga que até
nos admira de aí achar e que não é senão [o nosso] passado colonial
(PRADO JR., 1970, p. 11).

Em segundo lugar, o mencionado contraste iria se traduzir em déficit


de subjetividade política, problematizando o protagonismo das classes
sociais. A sociedade ficava como que sem energia para produzir, tan-
to entre as classes dominantes quanto entre as camadas subalternas
(escravos, brancos marginalizados, agregados, desocupados, trabalha-
dores subalternos, operários), sujeitos políticos com competência para
desenvolver ação consequente e eficaz, defendendo seus interesses
mas também contribuindo para plasmar o país. O historiador se voltava
para o Brasil do século XIX, mas a frase parecia escrita para toda uma
época: na análise dos movimentos insurrecionais da primeira metade
do século XIX, e mesmo depois, na luta abolicionista, por exemplo, ele
registra “a ineficiência política das camadas inferiores da população
brasileira”, ou mesmo sua “atitude revolucionária inconsequente”.

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Nem os negros nem a população livre das camadas médias e inferio-
res estavam em contato com fatores capazes de lhes dar organicidade
e consciência política. Tais setores,

sem coesão, sem ideologia claramente definida, mesmo quando al-


cançam o poder, tornam-se nele completamente estéreis. Em todos
os movimentos populares [do período imediatamente posterior à In-
dependência], o que mais choca é sua completa desagregação logo
que passa o primeiro ímpeto da refrega (PRADO JR., 1977, p. 60-61).

O mesmo raciocínio poderia ser estendido para as classes domi-


nantes, que nunca souberam elaborar politicamente seus interesses e
por isso nunca apresentaram um projeto, uma ideia de país, com que
convocar (e subordinar) os demais grupos e setores sociais.
Tal modo de pensar foi importante para que se aperfeiçoasse o en-
tendimento da revolução burguesa no Brasil e da trajetória seguida
pelo país rumo à modernidade. Tornou-se uma das decisivas influên-
cias da historiografia e do modo brasileiro de pensar o Brasil.
Caio Prado Jr. tratou em um registro forte, absolutizado, a ideia de
que o passado não termina nunca de terminar, o que o levou, por
exemplo, a dar pouca atenção às transformações ocorridas na socie-
dade brasileira a partir de 1930. Foi bastante criticado por ter em-
preendido análises que insistiram exageradamente no prolongamento
do capitalismo mercantil, de base colonial, no país. Não há em seus
escritos a consideração da afirmação industrial na economia brasileira,
como se o capital tivesse parado no tempo. Sequer trabalharia a hi-
pótese da industrialização retardatária, com a qual teria podido equa-
cionar o tema. O Brasil, para ele, mesmo depois de 1964, permanece
ancorado no passado, capitalista com certeza, desde sempre, mas sem
pujança industrial e sem capitalização radical do mundo agrário. Com
isso, não faltariam críticas e registros ao que se chamou de seu “mar-
xismo estranho” (SANTOS, 2001).
Há, de fato, uma limitação em seu modo de conceber o desen-
volvimento capitalista no Brasil. Vista em grande angular, porém, sua
concepção teve a vantagem de acentuar (de forma unilateral, digamos
assim) o peso do passado na história brasileira. Ofereceu um retrato
do Brasil que desautorizava qualquer tipo de ilusão ufanista, qualquer

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idealização ou simplificação analítica, funcionando como um alerta
para algumas de nossas dificuldades.
Não estaria Caio Prado, com ela, querendo enfatizar que, no Brasil,
dada a falta de uma subjetividade política consistente, o político não
poderia funcionar como fator de estruturação social e desfecho his-
tórico? Que o país integra uma história feita mais por “fatos” que por
escolhas e construções políticas deliberadas, mais por “processos” que
por “projetos”? Sua ênfase no peso do passado indicaria, assim, que
no Brasil moderno a condição periférica, de base colonial, entranhou-
se em todas as práticas e instituições, condicionando a marcha mesma
da modernização e tingindo de incoerência e imperfeição a lógica
da acumulação capitalista, ao menos até certo trecho do caminho. O
passado pesado entrelaçou-se com ela e deu origem a formas inusi-
tadas de vida moderna, potencializando os efeitos da “desagregação
política” dos movimentos populares e da precária subjetividade polí-
tica das classes sociais.
O fato de Caio Prado Jr. ter sido um intelectual marxista certamente
facilita o entendimento dessas suas hipóteses de trabalho e de seu estilo
como historiador. O estudo do capitalismo como modo de produção,
como sistema social e como Estado distingue o marxismo como teoria. Ao
adotá-lo como ferramenta de trabalho, o intelectual foi inevitavelmente
projetado para esse campo de observação, com o que ficou incentivado
a buscar na história brasileira os elos e as contradições que a ativavam e
a revelavam como um todo complexo, explicando seus padrões de de-
senvolvimento, seus atores, suas estruturas de funcionamento.
Mas Caio Prado foi um marxista singular, e não somente “estranho”.
Antes de tudo porque não se deixou modelar pelo marxismo realmen-
te existente, pelo modo como a época dizia que se devia ser marxista.
Especialmente entre os anos 1930 e 1940, e mesmo depois, o mar-
xismo ainda não havia construído para si uma prática intelectual pro-
priamente dita. Os marxistas eram, em sua maioria, revolucionários e
políticos profissionais que também produziam teoria. Suas referências
estavam na revolução, no partido político, na classe operária, no mo-
vimento comunista internacional, tudo o mais deveria ser um desdo-
bramento disso. Faziam ciência, com certeza, mas também seguiam as
orientações políticas e partidárias, concedendo algo a elas, ainda que
fosse de forma protocolar.

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Quando Caio Prado publicou seu ensaio de interpretação materia-
lista do Brasil (Evolução política do Brasil, que é de 1933), o ambiente
intelectual não sugeria nem referendava a visão que ele começaria a
adotar: a do desenvolvimento capitalista conservador e a do déficit de
subjetividade política das classes subalternas. Muito ao contrário. Com
a exceção do comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), todos
afirmavam a aproximação inevitável do socialismo como decorrência
do desenvolvimento e da crise do capitalismo. Os subalternos, partido
revolucionário e classe operária à frente, pareciam prontos para tomar
o poder e reformar o mundo.
Havia, portanto, no movimento comunista da época, mais confian-
ça e empolgação do que realismo, rigor e distanciamento crítico, mais
“otimismo da vontade” que “pessimismo da inteligência”, usando a
bela expressão de Romain Rolland insistentemente empregada por
Gramsci. É verdade que, com a ascensão triunfante do nazifascismo
na Europa e no Japão, o clima de confiança cedeu. No Brasil, a derrota
rápida da insurreição de 1935 ajudou a que se percebesse o quanto
havia de ingenuidade nos marxistas. Mesmo assim, porém, o distan-
ciamento crítico não chegou propriamente a preponderar, até porque
também foi prejudicado por outros dois traços comuns do marxismo
da época: o “obreirismo”, que supervalorizava a cultura e os proce-
dimentos intelectuais de uma classe operária vista em abstrato, e o
apego ritual e quase religioso às orientações recebidas dos centros ofi-
ciais do movimento comunista internacional. Tudo somado, entre as
décadas de 1920 e 1940 irá se manifestar aquela característica que
Leandro Konder brilhantemente chamou de “derrota da dialética”.
Mais preocupado em “preparar os militantes políticos para a aceitação
disciplinada das palavras de ordem emanadas da direção” (p. 44), o
marxismo predominante perderia sua dimensão dialética e terminaria
por ser praticado de modo tosco, sem vigor teórico (KONDER, 1988,
p. 44-45).
Seguindo à margem desse processo, Caio Prado Jr. adotaria um
marxismo muito pessoal, que de algum modo o imunizou contra as
tendências gerais. Foi sempre inimigo declarado do uso mecânico e
doutrinarista de esquemas revolucionários para “enquadrar” os fatos
brasileiros, como se fosse possível transpor para os trópicos, sem mais
nem menos, elaborações válidas para outros contextos históricos ou

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como se fosse procedimento metodológico válido construir e manu-
sear conceitos a priori, sem raiz na observação criteriosa dos fatos.
Em sua obra, aliás, não há discussão doutrinária ou embates em torno
dos textos clássicos do marxismo. A história – a realidade social em
seu vir-a-ser – sempre foi para ele mais importante. Uma conhecida
passagem de A revolução brasileira (publicado em 1966) é exemplar
de seu modo de pensar:

No Brasil, talvez mais que em outro lugar, a teoria da revolução, na


qual direta ou indiretamente, deliberada ou inadvertidamente, se ins-
pira todo pensamento brasileiro de esquerda, e que forneceu mesmo
os lineamentos gerais de todas as reformas econômicas fundamentais
propostas no Brasil, a teoria marxista da revolução se elaborou sob o
signo de abstrações, isso é, de conceitos formulados a priori e sem
consideração adequada dos fatos; procurando-se posteriormente, e
somente assim – o que é o mais grave – encaixar nesses conceitos a
realidade concreta. Ou melhor, adaptando-se aos conceitos aprioristi-
camente estabelecidos, e de maneira mais ou menos forçada, os fatos
reais (PRADO JR., 1978, p. 33).

Não há confiança e empolgação em suas análises, por mais que ele


também tenha sido seduzido pela revolução que ocorria na União
Soviética e por mais que tenha estabelecido relações regulares e bas-
tante disciplinadas com o Partido Comunista Brasileiro. Ao contrário,
há nele muita prudência prospectiva e muito realismo político. A “teo-
rização às avessas que vai dos conceitos aos fatos e não inversamen-
te” pesaria como uma bola de chumbo sobre as esquerdas do país,
impedindo-as de alcançar formulações que estivessem efetivamente
sintonizadas com as situações concretas:

A política revolucionária ficou exposta ao sabor das circunstâncias


imediatas, oscilando continuamente entre os extremos do sectarismo
e do oportunismo, e sem uma linha precisa capaz de orientar segura-
mente, em cada momento ou situação, a ação revolucionária (PRADO
JR., 1978, p. 34).

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Também por isso, seu relacionamento com o partido seria quase
sempre polêmico, repleto de divergências e discrepâncias teóricas
substantivas, como já foi assinalado por diversos estudiosos do tema
(SANTOS, 2001; RICUPERO, 2000; REGO, 2000; SECCO, 2008).

2 SER iNtELECtuAL E mARxiStA

A postura de Caio Prado Jr. como marxista e como comunista escla-


rece importantes traços de sua biografia e de sua obra historiográfica.
Oferece-nos uma ótima oportunidade para dar destaque a alguns dile-
mas do intelectual e particularmente do intelectual marxista no Brasil,
do homem de ideias que se projeta para o campo da atuação política.
Mas o que é o intelectual marxista, que traços o particularizam no
universo cultural?
1. Antes de tudo, o intelectual marxista vale-se de um método de in-
vestigação, de uma perspectiva metodológica: a totalidade concreta, a
historicidade dialética, perspectiva que Marx assimilou da filosofia de
Hegel e desenvolveu em sentido materialista. O marxismo é uma teo-
ria que persegue o alcance de “sínteses” por meio de um trabalho de
unificação das múltiplas determinações que organizam os processos
sociais. O tratamento do real como um todo complexo e articulado faz
com que o marxista rejeite a unilateralidade, o esquematismo e a sim-
plificação. Para ele, o ser social é um produto humano, historicamente
determinado, complexo e contraditório, que precisa ser interpelado
como um todo. Causalidades simples tornam-se assim tão precárias
quanto o determinismo mecânico, quer dizer, a tentativa de fazer com
que tudo derive de uma única determinação, seja ela a economia, a
política, as ideias ou a tecnologia, por exemplo. As causalidades, na
verdade, traduzem-se no marxismo como interações dialéticas, que
devem ser apreendidas historicamente. O modo de produção (a eco-
nomia) é um decisivo fator de determinação, mas não é o único fator
com potência explicativa. Nem o único, nem necessariamente o mais
importante. Forças não econômicas jogam um peso igualmente de-
cisivo na história, a começar da política, seja como ação política seja
como superestrutura e institucionalidade política.
Para o marxismo, o pensamento se afirma enquanto movimento,
sendo, portanto, sempre incompleto: não está vazio de verdade, mas

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não detém toda a verdade. A razão procede por sucessivas aproxima-
ções e alcança verdades que são sempre parciais e provisórias. Por
isso, o marxista valoriza a dúvida, a incerteza, a necessidade de rever
sempre o que se considera descoberto ou conhecido. Ao mesmo tem-
po, recusa a ideia de que a ciência pode tudo, que é a única forma de
saber, tão perfeita que dispensaria até mesmo a arte, a sensibilidade, o
conhecimento espontâneo, a criatividade, a imaginação, a religiosida-
de e especialmente a observação criteriosa dos fatos.
2. Ser um intelectual marxista é portanto, em segundo lugar, empre-
gar a perspectiva da totalidade concreta para investigar a realidade com
o máximo rigor e objetividade, valorizando o conhecimento em si.
O pensamento crítico dialoga permanentemente com a realidade:
busca compreendê-la, alcançá-la por inteiro, reunificá-la. É desafiado
por ela. Por isso mesmo, pode ser mais ou menos favorecido pelos ar-
ranjos sociais e pela cultura prevalecente em cada época histórica. Isto
significa recusar os determinismos sedutores, com suas causalidades
rígidas, e dar atenção dedicada ao incessante jogo de determinações
recíprocas entre forças desiguais e contraditórias. A realidade somente
pode ser compreendida se for pensada como processo, movimento,
contradição, unidade do diverso. No fundo, tudo está ligado a tudo
o tempo todo, e a astúcia do pensamento é perseguir o movimento
que articula, aproxima e afasta as partes: os fluxos, as determinações
(NOGUEIRA, 2005).
3. O intelectual marxista persegue o conhecimento e a verdade do
real, mas faz isso associado a uma proposta de intervenção e a um ideal
de transformação social. Assimila o marxismo como uma teoria política
em um duplo sentido: está sempre em busca da tradução política da-
quilo que é obtido pelo conhecimento crítico e vê a ação política como
eixo estruturador da vida em sociedade.
Ao longo do século XX, a exacerbação mecanicista do determinismo
econômico tendeu, durante décadas, a congelar a política na esfera
“determinada” das superestruturas, com o correspondente cancela-
mento da dimensão do sujeito e da vontade. Houve bastante menos-
prezo pela teorização sistemática da política e do Estado. O marxismo
ficou assim em dificuldades para acompanhar as mudanças imponen-
tes que apareceram na esfera mesma do político (generalização do
sufrágio, socialização da política, democracia de massa, novos sujeitos

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políticos). Ao invés de buscarem uma reconstrução teórica que supe-
rasse o caráter incompleto do pensamento de Marx, muitos de seus
intérpretes procuraram simplesmente usar os fundamentos teóricos
de Marx para ativar estratégias políticas. O dogmatismo paralisou a
dialética marxista e fez com que o marxismo – bem como todos os
seus produtos tópicos (teoria da revolução, teoria do Estado, teoria do
partido) – parasse no tempo, deixasse de acompanhar e assimilar as
transformações que se foram processando na realidade social do capi-
talismo. Como escreveu Caio Prado, “a longa fase de acentuado dog-
matismo que imperou em todo pensamento marxista, como fruto dos
graves erros do estalinismo”, somada às características culturais brasi-
leiras, pesaram negativamente, “embaraçando qualquer tentativa de
verdadeiro e fecundo trabalho de elaboração científica”. Os prejuízos
consolidaram-se “em concepções rígidas, verdadeiros dogmas que se
tornaram altamente respeitáveis” (PRADO JR., 1978, p. 34).
4. O ideal de transformação social projeta o marxismo para o ter-
reno da revolução social. O intelectual marxista, porém, não pensa
a revolução como um momento mágico, localizado no tempo, com
data certa para começar e ser concluído. Trata-se essencialmente de
um processo de lutas, tensões, conflitos e negociações, no decor-
rer do qual se acumulam forças que projetam reformas estruturais e
se empenham para sua implementação. Há uma mola processual
e “consciente” nas revoluções imaginadas pelo marxismo. Ainda que
possam conhecer momentos de explosão popular ou de aceleração
das mudanças, o que conta é o longo prazo, aquilo que pode haver
de transformação estrutural e sustentável da vida social. E ainda que
o “acaso” e a espontaneidade social possam jogar algum peso na di-
nâmica reformadora das revoluções, o que conta é a capacidade que
os sujeitos sociais têm de produzir organização política e projetos de
transformação social. A revolução concebida pelos marxistas, assim,
não é a passagem abrupta de um sistema social a outro, mas sim uma
sucessão de reformas de variada intensidade e no decorrer das quais
se encadeiam rupturas nas estruturas sociais, nas relações econômicas,
no Estado e no equilíbrio recíproco das diferentes classes e catego-
rias sociais. Ela se distingue claramente de uma “insurreição”, que se
vale do emprego da força para derrubar um governo ou um regime.
Seu sentido real e profundo aponta bem mais para a transformação

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abrangente, processo que pode ser estimulado por insurreições mas
que necessariamente não o é: “O significado próprio se concentra na
transformação, e não no processo imediato através de que se realiza”,
na formulação precisa de Caio Prado (1978, p. 2).
Precisamente por isso, revolução e reforma são termos que se apro-
ximam e se completam.
5. Isso significa que o intelectual marxista atua com os olhos nos
processos de democratização social e na democracia política como
princípio de governo e deliberação. Seu foco não é exclusivamente a
revelação do que há de autoritarismo, opressão e miséria social nos
sistemas capitalistas e o combate ao caráter classista do poder do Es-
tado. Maior relevância é depositada na compreensão do processo por
meio do qual se possam atingir a recomposição e o alargamento do
sistema político, a incorporação e a integração social, a expansão e a
consolidação da democracia em sentido amplo. Sua agenda inclui,
por isso, tanto uma reflexão sobre a sociedade em que se vive e so-
bre seus sujeitos quanto uma reflexão sobre o sistema de regras que
devem ser adotadas para que se possa disputar democraticamente o
poder. O marxismo assimila o tema da representação política. Faz isso
por meio da crítica da ideia liberal de representação, problematizan-
do-a por seu caráter restrito e limitado, mas também pela rejeição de
qualquer ideia imperativa ou vinculada de representação, que veja o
representante político como uma extensão mecânica e passiva dos in-
teresses de classe. Sua teoria da representação democrática incorpora
a participação social e vê nela um decisivo fator de revigoramento e
ampliação do sistema representativo.
Para o intelectual marxista, a democracia é também democratização,
processo de disseminação progressiva de valores, práticas, institui-
ções e espaços de deliberação democrática. Sua ideia de democracia,
portanto, aceita a perspectiva do avanço processual por meio de
acúmulos e consolidações, que não eliminam lutas e antagonismos e
pretendem ser obtidos de forma legal, conforme leis e constituições.
Trata-se de uma ideia de democracia como recurso reformador, como
critério de convivência e como valor universal, um bem a ser defen-
dido e protegido.
Caio Prado Júnior foi um intelectual marxista em todos esses sen-
tidos. Ressalto aqui, para com ela concordar, a principal hipótese da

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pesquisa desenvolvida por Bernardo Ricupero: “Boa parte do interes-
se da obra de Caio Prado Jr. provém precisamente de sua associação
com o marxismo”. Ele “não é qualquer marxista do Brasil, mas verda-
deiramente um marxista brasileiro, isto é, alguém que abre caminho
para uma aproximação da teoria marxista com a realidade brasileira”
(RICUPERO, 2000, p. 24). Sua obra representa a “nacionalização” do
marxismo, a elaboração dessa teoria em interação com as condições
específicas de nossa experiência histórico-social. Nele, as ideias se
transformaram em “sentimento de uma realidade”, sentimento esse
revelado “na paixão com que se voltou para dentro de seu país, não
se encantando com a prática da imitação, tão comum na reflexão in-
telectual brasileira” (REGO, 2000, p. 23-24).

Caio Prado relacionou-se com o marxismo como método da totali-


dade concreta, como teoria social e como teoria da ação, buscando
atuar em prol de uma revolução que reestruturasse e democratizasse
a sociedade brasileira. Travou conhecimento com a literatura marxista
quase ao mesmo tempo em que se aproximou e aderiu ao Partido
Comunista, em 1931. Ao final da juventude, ainda que sem alarde ou
exacerbação verbal, rompeu com os limites políticos e ideológicos de
sua classe de origem, interessou-se pelo socialismo e saiu em busca
do Brasil e do mundo. Descobriu a pobreza, a miséria, as diferenças
regionais, fatores que o impulsionaram para a militância comunista.
“Eu era na realidade um burguês rico, de educação e visão europeia,
acostumado ao conforto material. Ignorava até então a nossa realida-
de”, observou certa vez a Maria Cecília Naclério Homem. A partir de
então, despertaria para os problemas brasileiros e para as soluções:

Começou seu engajamento e o estudo sistemático do Brasil, adotando


uma postura receptiva constante. Passou a trabalhar com o presente
e o passado, em vista do futuro. Sua dimensão de história será muito
mais ampla porque pretende transformá-la tanto pela produção escrita
quanto pela própria participação dos acontecimentos políticos e cultu-
rais (apud D’INCAO, 1989, p. 47).

Depois de aderir ao Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado foi pre-


so (em 1935, permanecendo na cadeia até 1937), viajou e fez contatos

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com outros partidos, conheceu militantes de vários tipos e foi eleito
deputado estadual em São Paulo (1947), cargo que abandonou quando
o PCB teve o registro cassado, em 1948. Em 1943, juntamente com
Monteiro Lobato e Arthur Neves, fundou a Editora Brasiliense e, nos
anos 1950, a Revista Brasiliense, publicação que teria extraordinária im-
portância na história política do Brasil. Nela, Caio publicou numerosos
artigos históricos e políticos, muitos dos quais voltados para a estrutura
agrária brasileira. A revista contribuiu para a formação de inúmeros inte-
lectuais durante os anos em que circulou (de 1955 a 1964).
Caio Prado foi um militante, mas jamais se deixou constranger inte-
lectualmente pelo PCB. Não permitiu que o partido exigisse dele algo
mais que lealdade, nem aceitou que o partido postulasse a função
de “administrar” o impulso criativo e crítico do intelectual, fosse uma
espécie de dono e gestor do conhecimento. Levou a sério a perspec-
tiva de que atitude crítica e autonomia são requisitos essenciais para
que o intelectual possa funcionar como usina de ideias, como agente
cultural, e possa, desse modo, colaborar para que um partido atue
adequadamente, isto é, fazendo escolhas e apostas corretas, dese-
nhando programas factíveis, aprimorando seus cálculos. Terminou por
ser, talvez sem plena consciência disso, um fator de contestação no
interior do movimento comunista, contestação que só não repercutiu
mais intensamente devido ao desinteresse que Caio Prado teve pelas
disputas internas e pela luta ideológica que se processava no partido.
Em nenhum momento chegou a integrar a direção partidária e nunca
chegou a ser propriamente valorizado pelos comunistas.
Seu relacionamento com o PCB sempre pressupôs que o partido não
conseguia fazer escolhas políticas adequadas porque teorizava a partir
de modelos e esquemas preconcebidos (fragilmente universalizados)
e não de elaborações que fossem capazes de interagir com o processo
real, traduzi-lo corretamente, compreendendo suas determinações e
empregando-as para fazer análise política e projetar a revolução. Seu
convívio com o PCB foi sempre eminentemente polêmico: vieram
dele algumas das mais contundentes críticas à teoria e à prática que
prevaleciam no partido. A revolução brasileira (1966) foi o ápice disso.
Caio Prado Jr. não rompeu com o partido, nem dele se afastou.
Foi uma situação atípica, especialmente se se levar em conta que as
direções do PCB não costumavam ser tolerantes com aqueles que

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atuavam com autonomia e espírito crítico aguçado. O fato reforça a
tese de que o intelectual e o partido chegaram a uma “solução de
acomodação” (RICUPERO, 2000, p. 128). Ao partido certamente in-
teressava o vínculo de Caio Prado e o intelectual optou por aceitar
certas restrições e críticas para não ser um “independente diletante”.
No fundo, é provável que não tenha vislumbrado a possibilidade de
ser um marxista tout-court fora desse ambiente, no qual seria possível
pensar e agir como parte de um movimento potencialmente capaz de
levar à prática certas soluções cogitadas teoricamente. Tratou o PCB
como um partido que “historicamente sempre defendeu certa catego-
ria social, o proletariado, além de ser um partido em que não entra o
interesse pessoal” (apud SECCO, 2008, p. 50).
Afinal, também o intelectual que não deseje ser diletante necessi-
ta de uma referência coletiva para poder ser produtivo. Isso significa
encontrar um difícil equilíbrio entre pensamento e ação, autonomia e
compartilhamento, conhecimento e pedagogia. O PCB foi essa refe-
rência, do mesmo modo que a Revista Brasiliense funcionou como um
“segundo” partido, a plataforma a partir da qual Caio Prado operou
como intelectual. Ação e pensamento puderam assim conviver.

3 iNtELECtuAiS E mARxiSmo HoJE

A época é de crise e perda de prestígio do marxismo. Há quase um


consenso a decretar a “morte de Marx”, que flutua paradoxalmente
sobre uma realidade, o capitalismo globalizado, que repõe sem cessar
a validade de muitas teses de Marx, sua capacidade de permanecer
interpelando os termos da dinâmica social. O marxismo que se repõe
hoje, porém, não é de modo algum a doutrina onisciente e fecha-
da, autossuficiente e dogmática, que vicejou em outras épocas, mas
sim uma teoria carregada de potência explicativa, plural e dialética. O
marxismo não está morto, mas há algo morto no marxismo.
É equivocada a afirmação de que o marxismo como teoria política
foi somente insuficiência e dogma. Em seu interior, entre outras coi-
sas, produziu-se também uma proposição teórica como a do italiano
Antonio Gramsci, categoricamente voltada para a reconstrução da
abordagem marxista do Estado e da política, para o estabelecimento
dos fundamentos de uma “teoria ampliada do Estado”, assentada em

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uma inovadora teoria da hegemonia e da sociedade civil. Gramsci,
além disso, caminhou ao largo da versão reducionista de Marx, com a
qual se fixara uma quase absoluta dependência da construção social
em relação à estrutura econômica. Superou tal versão, insistindo no
reconhecimento de que o marxismo se singulariza por ser uma teoria que
afirma, ao mesmo tempo, a autonomia relativa dos âmbitos da eco-
nomia, da política, da ética e da cultura e a recíproca influência entre
eles. Seu marxismo é uma teoria política que exclui o voluntarismo e
o arbítrio (derivados da desconsideração dos condicionamentos eco-
nômicos) assim como o fatalismo e a subalternidade (resultantes da
conversão da “determinação econômica” em “economicismo”).
É preciso considerar também que as falhas e dificuldades teóricas
do marxismo – suas insuficiências enquanto proposta científica – não
decorreram de defeitos congênitos, epistemológicos ou ontológicos,
inerentes à própria teoria, mas derivaram, ao menos em parte, dos
condicionamentos, impactos e desdobramentos do movimento comu-
nista. São problemas políticos que têm a ver com os nexos entre teoria
e movimento político e que, portanto, só podem ser resolvidos com a
redefinição destes mesmos nexos: ou com sua superação, quer dizer,
com sua reposição em bases completamente novas, ou com seu can-
celamento em nome da plena autonomização da teoria.
Pressionado pela própria história da teoria, pela crise do marxismo
e pela desagregação dos partidos comunistas em praticamente todos
os países, o intelectual marxista tornou-se um personagem em busca
de reinserção e contagiado por uma espécie de crise de confiança. Ele
ainda encontra impulso para se reproduzir em nossos dias? Ele ainda
faz sentido, ainda é necessário? Que obstáculos encontra para se afir-
mar e se expandir?
O intelectual marxista não tem mais como ser um homem de par-
tido no sentido de estar formalmente integrado a uma organização
política concreta. Ele certamente precisa ser partidário: tomar partido
e pôr-se em defesa de uma parte da sociedade, a dos subalternos, a
dos excluídos, explorados e humilhados. Mas não precisa ser neces-
sariamente um militante partidário em sentido estrito, muito menos
um dirigente ou um funcionário de partido. E isso por dois motivos.
Primeiro, porque a nossa não parece ser mais uma época de partidos
entendidos como veículos de transformação social. Os partidos atuais

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são figuras burocráticas, dedicadas à disputa eleitoral e ao controle
do poder. Não são entidades voltadas para a produção de cultura, de
valores, de formas de identidade. Deixaram de ser canais de paixões
políticas, dedicam-se somente a interesses. Segundo, porque o inte-
lectual que opera nas condições do capitalismo globalizado precisa ser
livre de injunções para poder ser intelectual. Dado o empobrecimento
cultural dos partidos, o casamento entre eles e os intelectuais parece
ser problemático, mais propenso a produzir dor que prazer.
Mas os intelectuais, a rigor, só têm como se realizar na política e a
partir da perspectiva da política. Afinal, política não é sinônimo de
poder, nem de mundo dos profissionais da política, mas um campo
em que se disputam ideias a respeito do viver coletivo e em que se
aposta nas possibilidades de construir o social, planejar o futuro, tor-
nar mais justa a convivência entre grupos e pessoas. O intelectual que
não se coloca nessa perspectiva e se recusa a pensar o todo – que se
fecha em sua especialização, em seu corporativismo – mantém-se em
função subalterna.
Os diferentes tipos de intelectuais críticos e democráticos, e entre
eles os marxistas, enfrentam outro problema. É que a vida pública está
hoje em crise. O Estado, a ideia de Estado, a dimensão ética e edu-
cativa do Estado, tudo isso está envolto em um profundo mal-estar.
Assiste-se à intensificação do mercado e à valorização da sociedade
civil contra o Estado. É uma época com pouca política, na qual os
cidadãos não encontram respostas para seus problemas no sistema polí-
tico, não confiam nele e preferem não olhar para ele. A própria política
é vista com desconfiança, especialmente se for identificada com Estado e
vida coletiva.
Os ambientes em que vivemos parecem “despolitizados”, vazios de
perspectiva cívica, com reduzida noção do que é público. Nada dá
muito sentido e expressão às comunidades em que nos inserimos e
que nos orientam. Das organizações profissionais à comunidade políti-
ca “nacional”, o clima é de desconforto e melancolia. Assistimos a uma
complicada alteração nas formas mesmas com que cada um pensa a
sua relação com o todo: com os demais, com o Estado, com a história,
com o futuro. O trabalho intelectual ficou com seu eixo deslocado.
Uma constatação pode nos ajudar a entender isso. Presenciamos a
radicalização daquele “desencantamento do mundo” de que falava

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Max Weber no início do século XX. Protagonizamos uma era de espe-
cialização, racionalização e profissionalização intensas, em que estão
sendo roubadas as bases que fomentavam a reprodução do intelectual
rebelde, que não se submete a rotinas institucionais, não aceita as
divisões rígidas do trabalho e está sempre mergulhado em embates
doutrinários. É uma era que reduziu dramaticamente a possibilida-
de objetiva de que se empreendam esforços teóricos totalizantes. No
lugar do romantismo revolucionário, dos conflitos éticos e da paixão
cívica, entraram em cena o cálculo criterioso, as carreiras bem plane-
jadas, o pragmatismo institucional, o respeito aos cânones e ritos buro-
cráticos. O saber especializado parece frear o impulso intelectual para
alçar-se ao “universal”, à crítica abrangente dos sistemas, à proposição
de novos desenhos de vida.
A época é individualista e individualizadora. Fragmenta e diferencia
sempre mais, exacerba direitos e interesses, faz com que as obriga-
ções, os deveres, sejam vistos como fardo e ônus. Nela, as pessoas lu-
tam por interesses e por identidade, e essas lutas não produzem mais
vida coletiva, ainda que sejam justíssimas. São lutas que produzem
tensão e efervescência, mas não conseguem se traduzir em formas
mais avançadas de convivência.
Paradoxalmente, a nossa também se tornou uma era de instituições
e organizações, situação que reflete o estágio de complexidade social
em que nos encontramos. Em boa medida, as instituições chamam
para si as tarefas “pedagógicas” que antes cabiam aos intelectuais. As
atividades intelectuais estão cada vez mais condicionadas por orien-
tações políticas que se confundem com iniciativas organizacionais,
com seus invólucros administrativos, seus arranjos e suas restrições. A
sombra da burocracia agigantou-se. Cresceu o atrito entre a liberdade
intelectual e a rotina institucionalizada.
É uma época de muita informação e pouco conhecimento. Há mui-
tas ideias no ar, mas não temos certeza se elas são mesmo ideias (for-
mas novas e sistematizadas de reflexão sobre o mundo) ou somente
informações um pouco mais articuladas. Mesmo no terreno das infor-
mações, travestidas ou não de ideias, a dispersão, o detalhe, o supérfluo
e o imediatismo parecem ser a regra. Os efeitos da informatização re-
percutem aqui de forma intensa. À nossa frente, ergue-se um comple-
xo e fragmentado sistema de comunicação, com suas inúmeras redes

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de contatos, suas imagens e informações que explodem sem cessar,
suas sempre novas tecnologias da inteligência, que no mínimo sub-
vertem os modos “normais” de produzir e transmitir conhecimentos.
Os intelectuais sempre foram peças-chave dos processos de constru-
ção e reprodução de hegemonias. Hoje, nos contextos globalizados,
com suas redes sociais conectadas em tempo real por dispositivos co-
municacionais que operam como artífices de imaginários, fantasias e
“vontades coletivas”, a hegemonia já não flui como antes. Do mesmo
modo, o intelectual sempre deteve o monopólio de trabalhar com
a palavra, e hoje, nas sociedades da informação, todos trabalham com a
palavra e exercem “funções intelectuais”. Estreita-se a especificidade
do intelectual e muda seu papel social.
Tudo isso faz com que o intelectual passe a encontrar enorme difi-
culdade de agir publicamente, de se afirmar e com isso de escapar do
cerco que suas próprias instituições o submetem. Todos ficam como
que magnetizados pela indústria cultural, que é sempre mais indústria
do entretenimento.
Expandiu-se o campo de atuação dos intelectuais, seja porque cres-
ceram as oportunidades de obter audiência, seja porque se expandiu
a produção de conhecimentos, seja porque aumentaram os meios de
difusão de ideias. Os intelectuais certamente não ficaram mais podero-
sos, nem estão mais influentes, mas sem eles os sistemas não funcionam.
Quanto mais se expandem os meios de informação e comunicação,
aliás, mais necessários e visíveis ficam os intelectuais. Tendo de respon-
der a tantas demandas tópicas e especializadas, os intelectuais já não
têm mais como se ocupar daquilo que os tipifica como intelectuais:
o esforço de totalização.
O intelectual público não morreu. Bem ao contrário, sua existência é
uma exigência histórica e não tem como ser sumariamente descartada.
O momento hoje é de certo refluxo, de certa dificuldade, mas ainda
fornece bastante espaço para que nos dediquemos a pensar com au-
tonomia, a rever nossos procedimentos e nossas apostas. Fazendo isso,
abrimos caminho, mais uma vez, para a reiteração da figura do inte-
lectual público.

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CoNSiDERAÇoES fiNAiS

O modo marxista de pensar e de proceder intelectualmente conti-


nua a ser indispensável. O mundo globalizado é radicalmente diferen-
ciado e fragmentado. Não pode ser explicado e compreendido por
abordagens que tenham pretensões esquemáticas, excessivamente ca-
tegóricas ou dogmáticas. O predomínio unilateral da autoridade dos
especialistas empurra o cidadão para os bastidores da decisão política.
Corrói e enfraquece a democracia. O pensar em termos complexos e
dialéticos, portanto, funciona como uma poderosa alavanca de com-
preensão: sua capacidade de totalização devolve sentido ao mundo e
ao viver coletivo.
A assimilação desse modo de pensar está na base tanto de um
melhor entendimento da política, do Estado e da ação de governar
quanto de uma reflexão a respeito dos recursos e caminhos de que
dispomos para que se viabilize algum tipo de recuperação democrá-
tica da política. Isto quer dizer que pensaremos melhor a política se
conseguirmos entendê-la como uma atividade e um espaço que se
inserem em totalidades concretas que precisam ser analisadas e com-
preendidas. Veremos, assim, que a política não se rende nem se sub-
mete ao econômico, ao cálculo ou ao imediato, e só se realiza efetiva-
mente por meio de sujeitos e em contato aberto com a democracia, a
história e a vida comunitária. Para falar com os termos de Caio Prado,
qualquer teoria da revolução ou qualquer projeto de reforma demo-
crática, “para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos,
será simplesmente – mas não simplisticamente – a interpretação da
conjuntura presente e do processo histórico de que resulta” (PRADO
JR., 1978, p. 15).
Clássicos como Caio Prado Jr., ao serem revisitados, nos ajudam
mais uma vez, agora não a iluminar e explicar nosso passado, mas a
nos sugerir pistas com que avançar rumo ao futuro.

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Mauad: FAPERJ, 2001.
SECCO, L. Caio Prado Júnior: o sentido da revolução. São Paulo: Boitempo,
2008.

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 148-169 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012 169

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NÚmERoS ANtERioRES
EDiÇÃo 15

A DESoRDEm Do muNDo
André bueno

ESCutA, ARtE E SoCiEDADE A PARtiR Do mÚSiCo ENfuRECiDo


Daniel belquer

EDuCAÇÃo SuPERioR No bRASiL: o REtoRNo PRivADo E AS REStRiÇÕES


Ao iNGRESSo
márcia marques de Carvalho

APRENDizAGEm PoR PRobLEmAtizAÇÃo


Pedro Demo

A CiDADANiA AtRAvÉS Do ESPELHo:


Do EStADo Do bEm-EStAR ÀS PoLÍtiCAS DE ExCEÇÃo
Sylvia moretzsohn

EDiÇÃo 16

REPERCuSSÕES Do iCmS ECoLÓGiCo NA GEStÃo AmbiENtAL


Em mAto GRoSSo, bRASiL
Cristina Cuiabália Rodrigues Pimentel
Sueli Ângelo furlan

A HoRA DE iR PARA A ESCoLA


Daniel Santos

CRiAtiviDADE
marsyl bulkool mettrau

ENtRE o DRAmA E A tRAGÉDiA: PENSANDo oS PRoJEtoS SoCiAiS DE


DANÇA Do Rio DE JANEiRo
monique Assis
Nilda teves

170 SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012

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GiNÁStiCA ESCoLAR Como DiSPoSitivo bioPoLÍtiCo-PEDAGÓGiCo:
umA ANÁLiSE DA RELAÇÃo ENtRE EDuCAÇÃo, SAÚDE E moRALiDADE
Em fERNANDo DE AzEvEDo
murilo mariano vilaça

EDiÇÃo 17

CiDADE mARAviLHoSA: ENCoNtRoS E DESENCoNtRoS NoS PRoJEtoS


DE REmoDELAÇÃo uRbANA DA CAPitAL ENtRE 1902 E 1927
José Cláudio Sooma Silva

A CAPtuRA Do GoSto Como iNCLuSÃo SoCiAL NEGAtivA: PoR umA


AtuALizAÇÃo CRÍtiCA DA ÉtiCA utiLitARiStA
marco Schneider

iNovAÇÃo, tECNoLoGiAS SoCiAiS E A PoLÍtiCA DE CiêNCiA E tECNoLoGiA


Do bRASiL: DESAfio CoNtEmPoRÂNEo
marcos Cavalcanti
André Pereira Neto

RECENtES DiLEmAS DA DEmoCRACiA E Do DESENvoLvimENto No bRASiL:


PoR QuE PRECiSAmoS DE mAiS muLHERES NA PoLÍtiCA?
marlise matos

tRAbALHo iNfANtiL No bRASiL: Rumo À ERRADiCAÇÃo


Ricardo Paes de barros
Rosane da Silva Pinto de mendonça

EDiÇÃo 18

o DEbAtE PARLAmENtAR SobRE o PRoGRAmA boLSA fAmÍLiA No


GovERNo LuLA
Anete b. L. ivo
José Carlos Exaltação

EDuCAÇÃo PARA A SuStENtAbiLiDADE: EStRAtÉGiA PARA EmPRESAS Do


SÉCuLo xxi
Deborah munhoz

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fAGuLHAS Do AutoRitARiSmo No futEboL: EmbAtES SobRE o EStiLo
DE JoGo bRASiLEiRo Em tEmPoS DE DitADuRA miLitAR (1966-1970)
Euclides de freitas Couto

JuvENtuDES, vioLêNCiA E PoLÍtiCAS


PÚbLiCAS No bRASiL: tENSÕES ENtRE o
iNStituÍDo E o iNStituiNtE
Glória Diógenes

A mÁQuiNA moDERNA DE JoAQuim CARDozo


manoel Ricardo de Lima

EDiÇÃo 19

UM CONVITE À LEITURA
Gabriel Cohn

CAio PRADo JR. Como iNtÉRPREtE Do bRASiL


bernardo Ricupero

AS RAÍzES Do bRASiL E A DEmoCRACiA


brasilio Sallum Jr.

GiLbERto fREYRE E SEu tEmPo: CoNtExto iNtELECtuAL


E QuEStÕES DE ÉPoCA
Elide Rugai bastos

ENtRE A ECoNomiA E A PoLÍtiCA – oS CoNCEitoS DE PERifERiA


E DEmoCRACiA No DESENvoLvimENto DE CELSo fuRtADo
vera Alves Cepêda

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Caso tenha interesse em receber a revista
Sinais Sociais, entre em contato conosco:
Assessoria de Divulgação e Promoção
Departamento Nacional do Sesc
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NoRmAS PARA PubLiCAÇÃo

1 - A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do


Serviço Social do Comércio – Sesc e tem por objetivo contribuir para
a difusão da produção acadêmica, proporcionando diálogo amplo so-
bre a agenda pública brasileira. A publicação oferece a pesquisadores,
universidades, instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais
um canal plural para a disseminação do conhecimento e o debate
sobre grandes questões da realidade social. Tem periodicidade qua-
drimestral e distribuição de 5.000 exemplares entre universidades,
institutos de pesquisa, órgãos governamentais de interesse, principais
bibliotecas no Brasil e em todas as bibliotecas do Sesc e Senac.

2 - A publicação dos artigos e ensaios está condicionada à emissão de


parecer de especialistas e dos membros do conselho editorial, garanti-
do o anonimato dos pareceristas no processo de avaliação. Eventuais
sugestões de modificação na estrutura ou conteúdo, por parte da Edi-
toria, são previamente acordadas com os autores. São vedados acrés-
cimos ou modificações após a entrega dos trabalhos para composição.

3 - Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail


sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD (ao endereço a seguir), digitado
em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm, fonte Times
New Roman, tamanho 12, espaçamento entre linhas 1,5. As páginas
devem ser numeradas no canto direito superior da folha.
Departamento Nacional do Sesc
Divisão de Planejamento e Desenvolvimento/Gerência de Estudos e
Pesquisas
Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004, Rio de Janeiro/RJ

4 - O trabalho deve ser apresentado por carta ou e-mail do(s) autor(es),


que se responsabilizam pelo seu conteúdo e ineditismo. A carta deve

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informar qual ou quais áreas editoriais estão relacionadas ao trabalho,
para que este possa ser encaminhado para análise editorial específica.
A mensagem deve incluir ainda endereço, telefone e, em caso de
mais de um autor, informar o responsável pelos contatos.
5 - O texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 carac-
teres (sem contar o resumo e as referências bibliográficas). Os resumos
em português e em inglês (Abstract) que acompanham o texto devem
ter entre 10 e 15 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10.

6 - O texto deverá conter:


a) título do trabalho em português (no máximo uma linha);
b) título abreviado;
c) nome do(s) autor(es);
d) resumo em português e em inglês;
e) palavras-chave – máximo seis;
f) referências bibliográficas apresentadas conforme as normas da
ABNT, NBR 6023/2002 e NBR 14724/2002;
g) citações no artigo conforme NBR 10520/2001.
7 - Anexos, tabelas, gráficos, fotos, desenhos com suas respectivas
legendas etc. devem indicar as unidades em que se expressam seus
valores, assim como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acom-
panhados das planilhas de origem. Todos esses elementos devem ser
apresentados no interior do texto, no local adequado ou em anexos
separados do texto com indicação dos locais nos quais devem ser inse-
ridos. Sempre que possível, deverão ser elaborados para sua reprodu-
ção direta. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi,
formato TIF).

8 - Um currículo (incluindo dados pessoais: nome completo, endere-


ço, telefone para contato e documentação própria) e um minicurrículo
deverão ser entregues com o artigo. O minicurrículo deverá conter os
principais dados sobre o autor: titulação acadêmica, cargo ocupado,

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.7 nº 20 | p. 1-180 | SEtEmbRo > DEzEmbRo 2012 175

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áreas de interesse, últimas publicações, e-mail (se assim o desejar) etc. As
siglas de instituições ou projetos devem vir por extenso. Ex.: Pontifícia
Universidade Católica (PUC). O minicurrículo deverá ter entre 5 e 10
linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10.

9 - As referências bibliográficas devem ser dispostas no final do artigo,


em ordem alfabética e cronológica, de acordo com o sobrenome do(s)
autor(es) que, em caso de repetição, deve(m) ser sempre citado(s).
REfERêNCiAS bibLioGRÁfiCAS – ExEmPLoS

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LivRoS

BAUDRILLARD, J. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1976.

BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos


extremos. Campinas: Papirus, 1990.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 4v.

CAPÍtuLoS DE LivRoS

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra.


In: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São
Paulo: Ed. 34, 1980. v. 5. p.14-110.

LYOTARD, J.F. Capitalismo energúmeno. In: CARRILHO, Manuel Maria (Org.).


Capitalismo e esquizofrenia: dossier Anti-Édipo. Lisboa: Assírio & Alvim,
1976. p. 83-134.

ENSAioS Em REviStAS

DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível


manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n.
84, p. 817-838, set. 2003.

DoCumENtoS E PESQuiSAS

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): 1982 a 2006.


Rio de Janeiro.

Brasil. Ministério da Educação e Cultura. Sistema Nacional de Avaliação da


Educação Básica (SAEB): 1995, 1999, 2001, 2005. Brasília, DF.

iNtERNEt

INEP. Sinopses estatísticas da educação básica: 1994 a 2005. Disponível


em: <http://www.edudatabrasil.inep.gov.br>. Pesquisado em jan. 2012.

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Esta revista foi composta nas tipologias zapf Humanist 601 bt, em
corpo 10/9/8,5, e itC officina Sans, em corpo 26/16/9/8
e impressa em papel off-set 90g/m2

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