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3
Os
dados
de
Beattie
referem-‐se
aos
últimos
anos
do
Império
(cobrem
até
1882);
embora
houvesse
leve
tendência
à
diminuição
da
proporção
de
recrutas
do
Nordeste
em
relação
aos
de
outras
regiões
ao
longo
do
século
XIX,
a
cifra
se
manteve
em
torno
de
50%
do
total
entre
1850
e
1882.
É
provável
que
esse
quadro
pouco
tenha
sido
alterado
até
1906,
quando
o
pai
de
Sydnei
foi
recrutado
–
aos
13
anos
–
nas
cercanias
de
Aracaju,
Sergipe.
4
A
maioria
das
vagas
do
colégio
militar
era
destinada
aos
filhos
de
militares,
fossem
eles
órfãos
–
que
tinham
os
estudos
franqueados
–,
ou
não
–
que
pagavam
algo
como
a
metade
do
que
custava
o
colégio
para
os
filhos
de
civis.
As
vagas
disponíveis
para
estes
eram
reduzidas
e,
ao
que
indica
o
relato
de
Nelson
Werneck
Sodré,
um
desses
filhos
de
civis,
de
acesso
mediado
não
apenas
pelo
exame
de
admissão,
mas
também
por
recurso
à
influência
de
parentes
ou
conhecidos
militares
(SODRÉ,
1967,
p.
5).
Mesmo
as
vagas
para
filhos
de
militares,
mais
numerosas,
parecem
ter
sido
bastante
disputadas,
como
indica
o
fato
de
Sydnei
ter
precisado
cursar
um
preparatório
para
os
exames
admissionais
do
colégio.
Os
rapazes
que
se
formavam
no
Colégio
Militar
tinham
entrada
garantida
na
escola
de
oficiais
do
exército,
livre
de
exames,
o
que
fazia
desse
um
caminho
muito
natural.
(Especialmente
se
considerarmos
que
o
regime
disciplinar
das
duas
instituições
não
era
muito
diferente,
razão
pela
qual
os
jovens
nem
chegavam
a
sentir
a
transição
[idem,
p.
24]).
5
As
informações
desse
resumo
da
história
do
Coronel
provêm
de
várias
fontes,
como
entrevistas
e
documentos.
A
última
menção
à
Tuiuti
consta
em
reportagem
de
2008
do
jornal
Folha
de
São
Paulo
(CARVALHO,
2008).
3
vindo
de
famílias
de
alguma
riqueza.
Descontando
os
reitores
e
gestores
entrevistados
e
olhando
apenas
para
os
fundadores
ou
donos
de
universidades,
que
é
o
caso
do
Coronel
Sydnei,
a
sua
origem
social
destoa
ainda
mais
(TRAJETÓRIAS,
2002).6
O
conceito
de
trajetória
é
uma
boa
ferramenta
para
trazer
à
tona,
a
partir
dos
dados
de
uma
história
individual,
as
questões
que
aqui
interessam.
Uma
trajetória,
em
abstrato,
é
a
descrição
de
um
deslocamento
e
pode
ser
representada
como
a
linha
que
une
uma
sequência
de
pontos
distribuídos
em
um
espaço.
Empregar
a
trajetória
como
conceito
para
análise
sociológica
exige
sociologizar
os
elementos
básicos
da
definição
abstrata.
Assim,
o
“espaço”
em
que
se
desenvolve
a
trajetória
é
um
espaço
social
e
os
“pontos”
em
que
se
encontra
o
indivíduo
em
cada
momento,
posições
determinadas
no
seu
interior.
O
espaço
é
uma
representação
do
universo
social
como
“lugar”
em
que
ocorre
a
“competição
pela
apropriação
de
bens
escassos”
(BOURDIEU,
1989,
p.
17)
e
as
posições
sintetizam
os
atributos
relevantes
dos
indivíduos
e
dos
grupos
nessa
competição
(os
capitais
de
que
dispõem). 7
Portanto,
reconstruir
o
deslocamento
de
um
agente
no
espaço
social
exige
acompanhar
seu
reposicionamento
sucessivo,
ou
seja,
o
rearranjo
constante
de
sua
situação
competitiva.8
Dessa
perspectiva,
a
trajetória
de
Sydnei
revela-‐se
constituída
de
dois
grandes
movimentos
distintos.
Primeiro,
o
que
poderia
ser
chamado
movimento
linear
de
ascensão
social:
de
pai
marinheiro
de
baixa
patente,
o
jovem
Sydnei
tornou-‐se
oficial
do
exército.
Houve
deslocamento
no
espaço
social
devido
ao
maior
acúmulo
de
recursos,
mas
não
se
alterou
significativamente
a
sua
composição.
Afinal,
o
movimento
foi
praticamente
o
de
uma
escalada
na
própria
hierarquia
das
forças
armadas
(Figura
1,
adiante).
O
segundo
movimento
foi
o
de
oficial
do
exército
a
empresário.
Mais
complexa,
a
mudança
de
posição
implicada
compreendeu,
além
de
novamente
maior
acúmulo
de
capitais,
também
importantes
reconversões
–
transformou-‐se
a
composição
dos
recursos
sociais
de
Sydnei.
Para
colocar
da
forma
mais
simples
possível,
a
posição
de
oficial
do
Exército
–
mais
6
Trajetórias
da
universidade
privada
no
Brasil
traz
entrevistas
com
22
reitores,
gestores,
donos
ou
fundadores
de
instituições,
inclusive
com
Sydnei.
De
todos
os
entrevistados
pelas
autoras,
7
eram
formados
em
direito,
4
em
engenharia
e
4
em
medicina
(3
deles
dentistas).
Dos
engenheiros,
um
foi
oficial
do
exército,
mas
formado
no
Instituto
Militar
de
Engenharia,
ou
seja,
de
status
social
em
geral
superior
ao
do
oficial
combatente,
como
Sydnei.
Os
outros
6
eram
um
de
cada
profissão:
arquiteto,
economista,
administrador,
físico,
padre
jesuíta
e
pedagoga.
Antes
de
fundar
a
faculdade,
Sydnei
formou-‐se
em
matemática
(na
PUCPR)
e
em
psicologia
(na
Faculdade
São
Marcos,
de
São
Paulo).
Mesmo
a
formação
posterior
que
teve
difere
muito
da
formação
dos
demais.
Sydnei
era,
também,
o
único
negro,
segundo
breve
busca
que
realizei
no
Google
imagens
(curiosamente,
o
único
entrevistado
cuja
foto
não
foi
possível
encontrar
por
esse
meio
é
o
outro
oficial
do
Exército).
7
Os
indivíduos
em
posições
semelhantes
no
espaço
social
estão
em
uma
situação
competitiva
semelhante,
se
quisermos
recorrer
ao
conceito
weberiano
de
situação
de
classe
para
esclarecer
melhor
o
ponto;
são,
assim,
o
que
Bourdieu
denominou
“classes
no
papel”
(BOURDIEU,
1987,
p.
7).
8
Limito-‐me
aqui
a
operacionalizar
sumariamente
alguns
dos
conceitos
de
Bourdieu,
e
apenas
na
medida
em
que
eles
pareceram
imediatamente
úteis
para
analisar
o
“caso”
de
Sydnei.
Uma
boa
maneira
de
aprofundar
a
discussão
é
consultar
os
textos
do
autor
que
lidam
diretamente
com
a
conceituação
de
classes
sociais
(BOURDIEU,
1987;
idem,
1989).
4
especificamente,
o
conjunto
de
recursos
decorrente
dessa
posição
–
rendeu-‐lhe
oportunidades
políticas
e
econômicas.
Apenas
15
anos
passaram-‐se
desde
a
fundação
do
primeiro
negócio,
o
cursinho,
em
1958,
até
a
fundação
da
faculdade,
em
1973,
e
o
sucesso
deveu-‐se,
quanto
a
aspectos
importantes,
às
condições
proporcionadas
pela
posição
de
oficial.
Para
ilustrar
a
dinâmica
de
reconversão
dos
capitais,
basta
enumerar
que
da
posição
de
oficial
decorreram
diretamente:
a
primeira
oportunidade
de
abrir
um
negócio;
os
sócios
militares
que
Sydnei
teve;
o
cargo
de
vereador
de
Curitiba
que
chegou
a
ocupar
pela
ARENA
de
1969
a
1972,
sendo
líder
da
bancada
governista,
que
era
majoritária;9
algum
trânsito
nas
esferas
por
que
passavam
os
processos
de
permissão
para
abertura
de
novas
instituições
de
ensino
superior
(como
o
Conselho
Federal
de
Educação);
e,
ainda,
conhecidos
de
peso,
como
o
“ministro
de
tudo”
coronel
Jarbas
Passarinho
–
que
estava
à
frente
do
Ministério
da
Educação
em
1973,
quando
foi
fundada
a
Faculdade
Tuiuti.
A
posição
pode
ainda
ter
ajudado
no
recebimento
de
auxílios
financeiros
do
governo
na
forma
de
compra
de
vagas
na
Faculdade.10
Vê-‐se
que
o
processo
de
reconversão
consistiu
em
grande
medida,
esquematicamente
falando,
na
mobilização
de
capitais
sociais
e
simbólicos
em
proveito
de
um
empreendimento
econômico.11
Os
dois
movimentos
estiveram
ligados
intimamente
às
Forças
Armadas,
mas
cada
um
deles
relaciona-‐se
de
forma
específica
com
a
história
dessas
instituições.
Parece
possível
encontrar,
nesse
caso,
a
relação
precisa
entre
os
deslocamentos
individuais
no
espaço
social
e
os
fatores
históricos
determinantes
sobre
eles.
Se
cada
indivíduo
for
mesmo
um
“minúsculo
ponto
nas
intercessões
de
biografia
e
história”
(WRIGHT-‐MILLS,
2000,
p.
7),
deverá
ser
possível
encontrar
essas
relações
precisas
se
houver
como
entender
tais
pontos
de
cruzamento.
Nesse
sentido,
a
teoria
sociológica
de
Norbert
Elias
oferece
bons
instrumentos.
Elias
parte
do
conceito
de
ação
social
de
Max
Weber,
postulando
que
os
indivíduos,
sujeitos
a
agir
9
E
foi
em
função
de
ter
sido
eleito
vereador
que
pôde
se
aposentar
(obter
a
reforma)
do
exército.
10
Em
um
modelo
semelhante
ao
atual
ProUni,
embora
muito
menor
e
menos
institucionalizado:
“Quase
3
milhões
ao
ensino
particular
–
Dezessete
escolas
mantidas
por
instituições
particulares
de
ensino
,
no
Paraná,
foram
beneficiadas
com
uma
verba
no
valor
de
Cr$
2.774.818,64.
[...]
Os
recursos,
que
foram
liberados
pelo
Tesouro
estadual,
correspondem
a
convênios
de
ajuda
financeira
às
escolas
particulares.”
Diário
do
Paraná,
Curitiba,
29
de
setembro
de
1974,
p.
8.
No
ano
anterior,
a
Tuiuti
já
havia
recebido
200.000
cruzeiros
de
ajuda
do
estado
(Diário
do
Paraná,
13
de
dezembro
de
1973).
Várias
instituições
eram
beneficiadas
pelas
verbas.
11
Essas
condições
facilitaram
–
e
talvez
até
tenham
tornado
possível
–
a
entrada
no
mundo
dos
negócios.
Mas
é
preciso
lembrar
que
Sydnei
agia
na
onda
do
processo
de
expansão
do
ensino
privado
sob
os
militares.
Nos
primeiros
10
anos
do
regime,
novas
leis
estimularam
a
privatização
do
ensino
público
e
a
expansão
da
oferta
por
meio
de
incentivos
às
instituições
privadas.
A
oferta
de
vagas
no
ensino
superior
octuplicou,
apoiando-‐se
mormente
no
surgimento
de
instituições
privadas
antenadas
nas
demandas
do
mercado,
como
a
Tuiuti
(SAVIANI,
2008,
p.
299-‐300).
Cultivando
paralelamente
o
prazer
e
o
negócio
de
ensinar
desde
1958,
Sydnei
reunia,
no
início
dos
anos
1970,
a
vontade
e
as
condições
–
em
um
cenário
político-‐econômico
apropriado
–
para
decolar
no
ramo
da
educação
superior
privada.
5
sempre
levando
em
consideração
as
expectativas
sobre
as
ações
dos
outros,
encontram-‐se
inescapavelmente
em
situação
de
interdependência.
A
interdependência
constitui
o
escopo
limitado
das
possibilidades
individuais
de
acordo
com
os
diferenciais
de
poder
nas
relações
sociais
(ELIAS,
1978,
p.
78).
É
possível
analisar
o
escopo
das
possibilidades
no
nível
individual,
mas
também
no
nível
do
pertencimento
a
grupos
e
das
relações
entre
grupos.
Afinal,
para
Elias,
os
pontos
de
vista
do
indivíduo
e
do
grupo
social
miram
a
mesma
coisa,
apenas
de
ângulos
diferentes
(idem,
p.
176).
Se
a
interdependência
dos
indivíduos
se
materializa
em
figurações,
a
dos
grupos
o
faz
em
estruturas.
Situando
o
indivíduo
na
dinâmica
dos
grupos,
é
possível
compreender
o
significado
estrutural
das
suas
ações
(o
sentido
objetivo
weberiano);
ou,
tratando-‐se
de
estruturas
em
transformação
–
sempre
que
a
transformação
for
consistente
e
“em
uma
certa
direção”
(idem,
p.
147)
–,
é
possível
compreender
a
ação
em
relação
aos
processos
sociais.
Uma
maneira
de
operacionalizar
essa
compreensão
é
abordar
as
trajetórias,
tanto
dos
indivíduos
singulares
quanto
aquelas
tomadas
como
típicas,
que
podem
se
referir
a
grupos;
em
especial
porque
as
trajetórias
se
realizam
no
passar
do
tempo
e,
assim,
prendem-‐se
às
estruturas
nos
seus
aspectos
estáticos
ou,
então,
embarcam
nos
processos
de
transformação.12
No
sentido
de
Elias,
uma
característica
estrutural
das
Forças
Armadas
foi
determinante
para
o
primeiro
deslocamento
da
trajetória
de
Sydnei:
o
recrutamento.
Pelo
menos
até
meados
do
século
XX,
a
Marinha
tinha
dois
traços
fundamentais
quanto
ao
recrutamento:
havia
um
verdadeiro
abismo
social
a
separar
praças
de
oficiais
e
o
oficialato
compunha-‐se
exclusivamente
de
brancos
(indivíduos
socialmente
considerados
brancos,
evidentemente).13
Ao
decidir
sobre
seguir
os
passos
do
pai
e
ingressar
em
uma
corporação
militar,
Sydnei
parece
nem
ter
cogitado
a
Marinha.
Tentou
primeiro
a
academia
da
Aeronáutica,
mas
foi
reprovado
nos
exames
de
saúde.
Em
seguida
deu-‐se
conta
da
razão:
os
demais
rapazes
reprovados
nessa
etapa
altamente
discricionária
eram
negros,
como
ele.14
Desiludido
das
Forças
Armadas,
pode
ter
pensado
em
seguir
carreira
civil,
mas
foi
convencido
pela
mãe
a
entrar
para
a
escola
de
oficiais
do
Exército,
onde
foi
aceito.15
12
Uma
boa
mostra
desse
esquema
em
ação
é
a
obra
de
Elias
sobre
Mozart
(ELIAS,
1994).
13
São
muitas
as
evidências
dessas
proposições,
mas
indicarei
apenas
o
essencial
para
ilustrar.
O
pai
de
Sydnei,
Astolpho
Severo
Dias
dos
Santos,
ingressou
no
corpo
de
marinheiros
em
1909
(ingressara
em
1906
na
Escola
de
Aprendizes
Marinheiros),
um
ano
antes
da
Revolta
da
Chibata.
Segundo
Frank
McCann,
“a
maioria
dos
oficiais
era
branca,
e
dos
marinheiros,
negra”
(McCANN,
2007,
p
157-‐158).
Ao
longo
da
Primeira
República,
a
situação
não
se
modificou
quanto
à
composição
racial
(idem,
p.
311-‐312).
Sobre
a
oficialidade
da
marinha
naquela
época,
José
Murilo
de
Carvalho
reproduz
e
endossa
a
opinião
de
que
“sempre
foi,
ao
menos
uma
parte,
das
mais
escolhidas
da
alta
sociedade
do
Brasil”
(CARVALHO,
1977,
p.
189).
Há
vários
outros
relatos
na
mesma
direção,
embora
eu
não
conheça
quaisquer
dados
numéricos.
14
Essa
história
foi-‐nos
contada
em
entrevista
por
um
dos
filhos
do
Coronel.
15
Salvo
o
intervalo
do
Estado
Novo
(1937-‐1945),
em
que
havia
política
oficial
de
discriminação
para
o
ingresso
na
academia
de
oficias
do
Exército
(RODRIGUES,
2008,
p.
157
e
ss.),
o
oficialato
dessa
arma
já
na
Primeira
6
Embora
todas
as
forças
recrutassem
os
praças
entre
as
classes
mais
baixas,
o
acesso
ao
corpo
de
oficiais
da
Marinha
e
da
Aeronáutica
apresentava
verdadeiras
barreiras:
social
e,
o
que
foi
mais
determinante
para
o
caso
de
Sydnei,
racial.
O
oficialato
do
exército,
quanto
ao
acesso,
parece
ter
mantido,
entre
o
final
do
Estado
Novo
e
o
tempo
em
que
Sydnei
já
era
oficial,
uma
tendência
à
“popularização”.16
O
fato
de
Sydnei
ter
passado,
de
certa
forma,
por
todas
as
armas
–
de
pai
marinheiro,
tentou
o
oficialato
da
Aeronáutica
–,
sendo
aceito
no
Exército,
além
dos
convincentes
indícios
de
que
o
Exército
tinha
muito
mais
oficiais
não-‐
brancos
do
que
a
Marinha,
por
exemplo
(McCANN,
2007,
p
311-‐312),
sugerem
que
ele
se
tornou
oficial
passando
por
uma
espécie
de
brecha
na
estrutura
social
racializada
(Figura
2).17
República
era
recrutado
“dentro
da
própria
organização
e
entre
grupos
sociais
de
renda
mais
baixa
e
status
menos
que
nobre”
(CARVALHO,
1977,
p.
187).
A
heterogeneidade
social
do
oficialato
do
Exército,
em
comparação
com
as
demais
forças,
é
sugerida
pelo
fato
de
que
até
1930
o
corpo
não
agia
politicamente
como
um
todo:
as
revoltas
do
exército
sempre
eram
ou
de
oficiais
superiores
ou
de
inferiores,
podendo
ou
não
haver
associação
de
um
ou
outro
com
os
praças.
Na
marinha,
como
contraste,
o
oficialato,
muito
mais
homogêneo,
sempre
agiu
como
um
só
nas
várias
revoltas
do
período
(CARVALHO,
1977,
p.
185).
16
De
acordo
com
os
dados
recolhidos
por
Alfred
Stepan,
comparando
os
cadetes
da
escola
militar
do
exército
dos
períodos
1941-‐1943
e
1962-‐1966,
houve
significativa
redução
daqueles
oriundos
da
“classe
alta
tradicional”
e
aumento
dos
que
pertenciam
à
“classe
média”
e
à
“classe
baixa
não
qualificada”
(STEPAN,
1975,
p.
28).
A
profissão
de
marinheiro
(não
sei
se
incluindo
os
praças
da
marinha
de
guerra)
foi
incluída
nesta
última
categoria.
17
O
recrutamento
dos
oficiais
das
três
armas
diferenciava-‐se
estruturalmente
porque
era
produto
de
diferentes
estados
das
relações
de
poder
entre
as
elites
das
instituições
e
os
grupos
em
que
recrutava
ou
deixava
de
recrutar.
Uma
hipótese
a
respeito,
mesmo
que
servindo
para
não
mais
do
que
começar
a
discutir,
seria
que
a
enorme
expansão
do
exército
após
a
proclamação
da
República
exigia
crescente
afluxo
de
cadetes
à
sua
escola
de
oficiais,
o
que
obrigava
o
exército
a
se
manter
menos
seletivo.
Para
as
outras
armas,
isso
ocorreu
em
menor
medida.
É
preciso
lembrar
que
as
próprias
Forças
Armadas
tinham
que
arregimentar,
não
raro
capturar
à
força,
seus
recrutas
(eram
comuns
as
“canoas”
de
que
fala
McCann
[2007,
p.
111]).
O
efetivo
do
Exército
cresceu
rapidamente
em
dois
momentos:
após
a
proclamação
da
República,
dobrou
de
13
mil
para
28
mil;
após
1930,
dobrou
novamente
de
cerca
de
50
mil
para
93
mil.
Tomando
o
período
1850-‐1930,
ou
seja,
antes
de
o
efetivo
do
exército
dobrar
pela
segunda
vez,
temos
que
este
cresceu
de
15
mil
para
cerca
de
50
mil
homens;
a
Marinha,
por
sua
vez,
cresceu
de
3
mil
para
7
mil
homens
no
mesmo
período
(idem,
p.
201).
A
aeronáutica
apenas
foi
criada
como
força
separada
durante
a
Segunda
Guerra.
7
Figura
118
Figura
2
Primeiro
deslocamento
em
relação
ao
Primeiro
deslocamento
em
relação
ao
espaço
social
fechamento
ou
abertura
das
estruturas
O
segundo
deslocamento
da
trajetória
é
mais
complicado,
pois
não
se
tratou
de
simples
ascensão
no
interior
de
instituições
semelhantes;
ele
compreendeu
uma
verdadeira
transição.
Em
seu
aspecto
mais
puramente
individual,
o
movimento
consistiu
em
um
acúmulo
de
capitais
por
sucessivas
reconversões,
conforme
já
sugeri.
Mas
se
o
sentido
do
primeiro
deslocamento
foi
conquistar
uma
colocação
na
elite
do
exército,
por
que
o
segundo
apontou
para
fora
do
oficialato?
Uma
análise
das
trajetórias
possíveis
para
Sydnei,
uma
vez
feito
oficial,
oferece
algumas
pistas.
Quanto
às
razões
pessoais,
acho
importante
salientar
que
Sydnei
dificilmente
deixaria
de
“correr
por
fora”
no
seio
daquela
elite.
Nos
termos
de
Leo
Spitzer,
ele
era
um
“aspirante
inelegível”
à
completa
assimilação
(SPITZER,
1989,
p.
39),
isto
é,
dificilmente
poderia
esperar
desfrutar
completamente
dos
direitos
e
dos
privilégios
do
grupo
dominante
simplesmente
por
ter
conseguido
entrar
para
a
elite
do
exército.
Tenho
três
razões
para
acreditar
nisso.
A
primeira:
Sydnei
fez
o
curso
de
infantaria
na
escola
militar,
a
arma
menos
valorizada;
a
infantaria,
apesar
de
formar
mais
oficiais,
fazia
proporcionalmente
menos
generais
do
que
a
artilharia
e
a
cavalaria.
Segundo:
era
o
rapaz
mais
“escuro”
da
turma
de
infantaria
de
1946.19
Terceiro:
não
tinha
parentes
oficiais.20
Contando-‐se
todos
os
generais
desde
a
independência
18
Nas
figuras
1
e
3
(mais
à
frente),
o
plano
bidimensional
em
traço
mais
fino
é
uma
representação
do
espaço
social
inspirada
em
A
distinção
(BOURDIEU,
2007,
passim).
O
eixo
vertical
descreve
o
volume
de
capital
e
o
horizontal,
sua
estrutura.
A
seta,
é
claro,
representa
o
deslocamento
do
agente
no
espaço
social.
19
Em
1946,
ingressaram
na
escola
militar
do
exército
294
aspirantes
a
oficial,
que
se
formariam
em
1948;
197
deles
entraram
no
curso
de
infantaria.
Tive
acesso,
no
Arquivo
Histórico
do
Exército,
às
fichas
pessoais
dele
próprio
e
de
mais
35
colegas
de
infantaria.
Pelas
características
físicas
anotadas
nessas
fichas,
Sydnei
é
o
mais
escuro
da
amostra.
Ele
foi
o
único
classificado
como
“pardo”,
todos
os
demais
distribuindo-‐se
entre
“branco”
(a
maioria),
“moreno”
e
“pardo
claro”.
20
O
pai
Astolpho,
sargento
da
ativa,
foi
promovido
a
tenente
da
Marinha
quando
se
aposentou,
mas
isso
não
fazia
dele
verdadeiramente
um
oficial.
Tanto
é
que,
em
1954,
ele
foi
eleito
conselheiro
da
Caixa
Beneficente
dos
Sargentos
da
Marinha.
Ver
o
jornal
Correio
da
Manhã,
Rio
de
Janeiro,
11
de
agosto
de
1954.
8
do
Brasil
até
1930,
nada
menos
que
83%
eram
filhos
de
oficiais
do
exército
ou
da
marinha
(SEIDL,
2010,
p.
82)
–
embora
a
proporção
dos
cadetes
(alunos
da
Escola
Militar)
que
eram
filhos
de
oficiais
tenha
sido,
certamente,
muito
menor.
Assim,
a
difícil
assimilação
às
possibilidades
plenas
da
carreira
–
ele
entrou
para
elite
da
instituição,
mas
entrou
por
baixo
–
pode
ter
sido
um
dos
principais
fatores
que
o
levaram
a
buscar
outro
caminho
de
realização
pessoal,
não
pensando
em
almejar
o
generalato
(nem
tampouco
se
conformando
a
sua
posição
no
oficialato).
Quando
Sydnei
já
se
dedicava
a
outras
atividades,
tendo-‐se
tornado
professor
e
empresário
(em
1964,
já
era
do
quadro
do
magistério
militar,
sem
pretensões
de
generalato,
e
tinha
o
seu
cursinho,
aberto
em
1958),
a
ascensão
política
dos
militares
o
colocou,
enquanto
oficial,
em
posição
de
potencializar
alguns
dos
recursos
sociais
que
tinha
à
disposição,
tornando-‐se
um
empresário
de
sucesso
(Figura
3,
adiante).
Mas
apesar
de
a
história
de
Sydnei
ter
sido,
em
si,
excepcional,
esse
não
foi
um
movimento
incomum
para
os
oficiais
seus
contemporâneos.
Com
o
golpe,
culminou
um
longo
processo
de
ascensão
política
do
exército
do
qual
a
elite
da
instituição,
os
oficiais,
se
beneficiaram
especialmente.
Abriram-‐se
para
eles
várias
possibilidades
de
atuação
estranhas
às
suas
esferas
específicas
de
competência,
incluindo
a
iniciativa
privada
e,
aparentemente
em
menor
medida,
a
educação.
Esse
processo
ajuda
a
compreender
o
segundo
movimento
na
trajetória
do
Coronel
(Figura
4).
Figura
3
Figura
4
Segundo
deslocamento
em
relação
ao
Segundo
deslocamento
em
relação
ao
espaço
social
processo
Os
militares
tomam
o
poder
político
A
proclamação
da
República,
em
1889,
foi
a
primeira
de
um
ciclo
de
intervenções
militares
periódicas
que
culminou
com
o
golpe
de
1964.
Isso
porque
o
golpe,
de
uma
parte,
9
inaugurou
o
mais
longo
período
de
ingerência
militar
direta
na
política
e,
de
outra,
a
redemocratização
de
1985
fechou
o
ciclo
de
intervenções.
Desde
então,
vivemos
o
mais
longo
período
sem
intervenções
militares
da
nossa
história
republicana.
Para
José
Murilo
de
Carvalho,
o
modelo
de
intervenção
militar
que
atingiria
seu
ponto
máximo
no
golpe
de
1964
foi
gestado
durante
a
Primeira
República,
de
1889
a
1930.
Buscando
explicar
o
desenvolvimento
desse
modelo,
o
autor
levantou
um
conjunto
de
fatores
internos
ao
Exército,
com
destaque
para
as
“ideologias
de
intervenção”.
Até
os
anos
1920,
duas
ideologias
contrárias
animavam
os
oficiais
(mas
também
os
civis,
como
o
poeta
Olavo
Bilac):
a
do
“soldado-‐cidadão”
e
a
do
“soldado
profissional”.
Os
partidários
de
ambas
lutavam
por
objetivos
concretos:
os
primeiros
queriam,
antes
de
qualquer
outra
coisa,
o
recrutamento
militar
universal;
os
segundos,
a
modernização
do
Exército,
à
imagem
dos
seus
congêneres
europeus.
Mas
as
ideologias
também
se
opunham
quanto
à
definição
sobre
o
papel
político
e
social
do
Exército.
Para
os
aderentes
da
ideologia
do
soldado-‐cidadão,
os
quartéis
seriam
como
escolas:
de
civismo,
para
os
ricos,
e
de
hábitos
civilizados,
para
os
pobres;
e
os
oficiais
seriam
os
reformadores
da
nação.
Os
defensores
do
profissionalismo,
por
outro
lado,
preferiam
um
Exército
mais
fechado,
inclusive
para
a
política,
e
focado
em
sua
competência
específica:
a
guerra
(CARVALHO,
1977,
p.
209-‐213).
A
intervenção
militar
em
1930
correspondeu
ao
desenlace
dessa
situação.
Aspectos
das
duas
ideologias
se
fundiram
em
uma
nova:
a
do
o
“soldado-‐corporação”.
O
dilema
do
Exército
deixara
de
ser
ou
o
envolvimento
político
ou
a
modernização.
Embora
já
constituído
em
uma
força
modernizada,
mais
parecida
com
as
europeias,
ele,
ainda
assim,
não
se
fecharia
para
a
política.
Sua
forma
de
atuação
política
não
seria
trazer
o
povo
para
os
quartéis,
como
desejavam
os
ideólogos
do
civismo,21
e
sim
abrir
a
sociedade
à
influência
militar
e
intervir
diretamente,
quando
considerado
necessário.
Mas
não
só:
sob
o
fantasma
das
convulsões
intestinas
do
tenentismo
dos
anos
1920,
estabeleceu-‐se
como
condição
para
exercer
essa
influência
que
as
Forças
Armadas
interviessem
na
política
agindo
como
um
todo,
evitando
assim
os
embates
“fratricidas”.
Por
isso
é
que
a
nova
ideologia,
vitoriosa
em
1930,
também
foi
chamada
“intervenção
moderadora”:
as
forças
passariam
a
agir,
em
unidade,
como
um
quarto
poder
(idem,
p.
213-‐215).22
21
Ver
A
defesa
nacional,
compilação
dos
discursos
de
Olavo
Bilac
em
sua
campanha
cívica
nos
anos
1910.
22
Foi
esse
o
termo
empregado
por
Alfred
Stepan
para
designar
o
modelo
de
“relações
civil-‐militares”
do
Brasil
da
Segunda
República:
“padrão
moderador”.
Apesar
de
muito
pouco
ancorada
na
história,
a
análise
de
Stepan
não
deixa
de
ser
interessante,
pois
foca
o
“lado”,
nessas
relações,
que
Carvalho
deixa
intocado:
os
incentivos
dos
civis
à
ingerência
política
dos
fardados.
Mas
parece
que,
se
ambas
as
análises
pecam
por
unilateralismo,
a
de
Carvalho
acertou
melhor
o
alvo:
ainda
nos
anos
2010,
militares
dos
mais
graduados
não
se
livraram
da
disposição
a
ameaçar
com
a
invasão
da
política
pelas
armas,
e
invocando
precisamente
o
termo
“poder
moderador”.
Recentemente
essas
posições
e(s)coaram
em
torno
às
discussões
sobre
a
Lei
de
Anistia.
Em
2012,
o
10
No
período
republicano
e
até
o
final
da
ditadura
de
1964,
as
Forças
Armadas
brasileiras
nunca
chegaram
a
ser
“profissionais”
–
pelo
menos
no
sentido
que
o
conceito
assumiu
nos
debates
acadêmicos.
Para
Samuel
Huntington,
autor
que
abordou
conceitualmente
o
assunto,
o
militar
profissional
é
um
tipo
social
novo,
surgido
no
ocidente
no
século
XIX
(HUNTINGTON,
2000,
p.
19-‐20).
Sua
habilidade
exclusiva
é
a
“gestão
da
violência”
e
sua
função,
“obter
sucesso
no
combate
armado”.
O
papel
político
do
soldado
deve
ser
compreendido,
para
Huntington,
em
função
da
relação
estabelecida
entre
ele
e
o
Estado.
Relação
que,
no
caso
do
tipo
ideal
do
soldado
profissional,
é
passiva:
o
soldado
responde
ao
Estado
–
que
representa
a
sociedade
–
apenas
pela
sua
área
de
competência
específica,
a
gestão
da
violência,
e
não
se
pode
impor
em
outras
esferas
(tampouco
pode
impor
as
finalidades
legítimas
da
violência
ao
gerenciar
a
sua
aplicação)
(idem,
p.
16).
É,
portanto,
um
especialista
que
se
comporta
como
peça
de
uma
máquina;
à
maneira
do
burocrata
ideal
weberiano.23
O
“profissionalismo”
de
Huntington
tornou-‐se
o
conceito
central
de
todo
um
campo
de
estudos,
o
das
“relações
civil-‐militares”,
e
até
hoje
“a
maioria
do
que
se
escreveu
[no
campo]
foi
uma
resposta
explícita
ou
implícita
ao
seu
argumento”
(FEAVER,
1999,
p.
212).
É
que,
à
parte
ter
ancorado
o
conceito
em
uma
análise
de
casos
históricos,
sobretudo
o
dos
Estados
Unidos,
e,
portanto,
ter
colocado
o
profissionalismo
como
um
processo
histórico
em
desenvolvimento,
a
obra
O
soldado
profissional
se
tornou
especialmente
inquietante
por
levantar
uma
questão
normativa
inescapável
para
as
sociedades
democráticas:
os
soldados
do
Estado
têm
o
direito
de
intervir,
como
força
Armada,
na
política?
Se
sim,
em
quais
situações
e
sob
que
condições?
O
significado
que
se
atribui
ao
conceito
de
profissionalismo
demarca
as
respostas
possíveis.
Entretanto,
por
inescapável
que
seja
a
questão
de
fundo,
a
história
de
intervenções
Armadas
no
Brasil
republicano
–
para
não
falar
dos
países
sul-‐americanos
–
obriga
a
questionar
a
pertinência
do
aspecto
histórico
do
argumento
de
Huntington.
Foi
essa
dúvida
que
moveu
Alfred
Stepan,
nos
anos
1970,
a
tentar
rever
o
conceito
clássico
de
general
de
pantufas
Leônidas
Pires
Gonçalves
afirmou,
ao
Estado
de
São
Paulo:
“é
impossível
mexer
na
Lei
de
Anistia
[...]
se
quiserem
fazer
pressão
no
Supremo,
o
poder
moderador
tem
de
entrar
em
atuação
no
país.”
(grifo
meu)
Ver
“Comissão
da
verdade
é
moeda
falsa,
diz
general”,
O
Estado
de
São
Paulo,
18
de
maio
de
2012.
Recentemente
(2015),
vimos
também
e(s)coar
aquilo
a
que
se
referia
Stepan:
o
incentivo
civil
à
ingerência
militar
na
política.
Felizmente,
desta
vez
como
farsa.
23
Uma
discussão
mais
apurada
sobre
a
relação
entre
intervenção
política
e
profissionalismo
poderia
ser
feita
tendo
em
vista
o
golpe
de
1964
e
a
repressão.
Afinal,
em
que
medida
não
era
profissional
o
militar
que
apenas
cumpria
ordens
superiores,
mas
sob
o
“Estado
ilegal”
dos
ditadores
militares
(SAFATLE,
2010)?
Por
exemplo,
a
entrevista
concedida
aos
pesquisadores
do
CPDOC
pelo
coronel
Adyr
Fiúza
de
Castro,
apontado
como
torturador
em
listas
elaboradas
por
sobreviventes,
estimula
tais
questões
(OS
ANOS,
1994).
Não
obstante,
persistirei
no
uso
do
conceito
huntingtoniano
de
profissionalismo
para
contrastar
com
a
atuação
do
corpo
de
oficiais
enquanto
grupo
envolvido,
então,
senão
com
a
implantação
–
com
o
golpe,
propriamente
dito
–,
ao
menos
com
a
gestão
do
Estado.
11
profissionalismo.
O
golpismo
que
assolou
o
continente
seria,
para
Stepan,
consequência
não
do
desenvolvimento
tido
como
normal,
na
história
do
Ocidente,
do
profissionalismo
huntingtoniano,
mas
sim
de
um
“novo
profissionalismo”:
com
a
guerra
fria,
o
grande
inimigo
dos
Estados
sul-‐americanos
(o
“comunismo”)
passara
a
ameaçar
mais
de
dentro
do
que
do
exterior.
Transformou-‐se,
portanto,
a
função
das
Forças
Armadas
(passando
a
ser
a
defesa
interna),
e
a
especificidade
da
nova
função
exigiu
o
intervencionismo.24
Para
Frank
McCann,
a
emenda
conceitual
é
furada:
Stepan
ignorou
o
intenso
intervencionismo
do
Exército
brasileiro
desde
1889.
Indo
além,
McCann
afirma
que
a
força
nunca
teve
como
principal
função
a
defesa
externa,
mas
sempre
a
interna.
E
nem
por
isso,
apesar
das
sucessivas
intervenções,
tomou
antes
o
poder
segurando-‐o
por
mais
de
20
anos.
Por
um
lado,
nunca
houve
profissionalismo
no
sentido
de
Huntington;
por
outro,
o
“novo
profissionalismo”
tinha
características
muito
antigas
(McCANN,
1979,
p.
506-‐508).
Ou
seja,
no
Brasil,
o
profissionalismo
de
Huntington
não
se
verificou
como
processo
histórico.
McCann,
assim
como
Carvalho,
observou
que
o
processo,
na
verdade,
desenvolveu-‐se
na
direção
oposta.
Ele
defende
que
a
ideologia
da
intervenção
moderadora,
surgida
e
consolidada
por
volta
de
1930,
teve
vida
longa,
continuando
a
se
desenvolver.
Desse
ponto
de
vista,
a
ditadura
de
1964
aparece
como
“resultado
lógico
de
uma
evolução
de
longo
alcance”
(idem,
p.
507):
a
tomada
do
poder
político
pelos
militares
seria
a
culminação
do
processo
de
desenvolvimento
de
uma
ideologia
intervencionista
e
dos
meios
para
pô-‐la
em
prática.25
O
último
golpe
significou
a
perfeita
subversão
do
tipo
de
relação
entre
militares
e
Estado
que
Huntington
tinha
previsto
(não
apenas
como
tipo,
mas
também
como
tendência
no
Ocidente).
Por
um
lado,
a
tomada
e
a
manutenção
do
poder
representaram
a
culminação
do
processo.
Mas,
por
outro,
a
intimidade
da
elite
militar
com
o
poder
já
tinha
raízes
e
revelava-‐
se
em
uma
tendência
mais
antiga
na
relação
dos
militares
com
a
sociedade
–
e
aqui
a
trajetória
de
Sydnei
volta
à
cena.
José
Murilo
de
Carvalho
notou,
de
passagem,
que
na
sequência
da
proclamação
da
República,
em
1889,
havia
grande
número
de
oficiais
em
postos
administrativos
do
governo
(CARVALHO,
1977,
p.
228).
É
indício
de
que
o
poder
político,
naquela
situação,
multiplicou
as
oportunidades
de
atuação
(ou
mesmo,
mais
simplesmente,
de
poder)
para
os
membros
da
corporação
–
abriu-‐lhes
novas
portas.
Algo
semelhante
ocorreu
após
o
golpe
de
1964,
embora,
provavelmente,
em
proporções
maiores.
24
A
ideologia
do
“novo
profissionalismo”,
no
caso
brasileiro,
teria
sido
a
Doutrina
de
Segurança
Nacional,
engendrada
no
ambiente
civil-‐militar
da
Escola
Superior
de
Guerra
nos
anos
que
precederam
o
golpe
(STEPAN,
1973,
p.
59).
25
Um
dos
personagens
militares
mais
destacados
nesse
processo,
Juarez
Távora,
não
deixou
de
interpretar
o
processo
como
um
crescendo:
“todos
esses
acontecimentos
[as
intervenções
ou
tentativas
de
intervenção
militares]
desde
1922
até
1964
são
como
degraus
que
foram
sendo
sucessivamente
alcançados”
(JUAREZ
TÁVORA,
2000).
12
A
trajetória
de
Sydnei,
em
especial
seu
movimento
de
oficial
a
empresário,
relacionou-‐se
com
a
tomada
do
poder
político
pelos
militares.
À
tomada
do
poder
(que
foi
o
ponto
máximo
do
processo
de
ascensão
política
dos
militares)
seguiu-‐se
a
expansão
da
influência
da
instituição,
abarcando
várias
esferas
da
vida
social.
Oficiais
do
Exército
passaram
a
se
envolver
corriqueiramente
na
política,
mas
também
na
segurança
pública,
na
administração
das
empresas
estatais,
na
iniciativa
privada
e
na
educação.
Em
suma,
exerceram
oportunidades
de
poder
ligadas
à
ascensão
do
grupo,
nos
termos
de
Elias
(1978,
p.
172).
Talvez
o
processo
delineado
por
Carvalho
e
McCann
tenha
representado
mais
precisamente
uma
longa
abertura
da
sociedade
aos
militares
e
à
sua
influência,
em
sentido
geral,
do
que
simplesmente
a
transformação
e
o
crescimento
do
intervencionismo
político
dos
militares.26
A
distinção
é
mais
significativa
se
acompanharmos
a
leitura
de
Andreas
Anter
sobre
o
significado
do
desenvolvimento
do
Estado
moderno
na
sociologia
de
Max
Weber:
“ele
interpreta
e
aborda
a
emergência
do
Estado
moderno
como
um
processo
de
centralização,
monopolização
e
estatalização
das
funções
de
ordenação
que
até
então
eram
exercidas
por
instâncias
descentralizadas”
(ANTER,
2014,
p.
16).
O
que
é
o
mesmo
que
afirmar
que
o
Estado
“quer”
e
produz
ordens
(ibidem).
Retomando
a
definição
original,
existe
ordem
quando
há
“probabilidade”
de
que
os
indivíduos
orientem
suas
ações
pela
representação
de
uma
ordem
legítima
(WEBER,
2004,
v.
1,
p.
20).
A
ordem
é
mais
do
que
a
regularidade
dos
comportamentos.
A
mera
regularidade
pode
ser
produto
do
costume
ou
puramente
de
interesses
(e,
nesse
caso,
ela
é
muito
instável).
Para
haver
ordem,
é
preciso
que
as
regularidades
estejam
ancoradas
no
sentido
das
ações,
na
forma
de
“obrigações”
ou
“modelos
de
comportamento”
(ibidem).
Afirmar
que
o
Estado
produz
ordens
é
reconhecer
seu
poder
de
conformar
o
sentido
das
ações,
influenciando
sobre
a
definição
de
obrigações
ou
modelos
de
comportamento,
nas
mais
variadas
esferas:
política,
econômica
etc.27
26
A
expressão
“abertura
da
sociedade
ao
Exército”
foi
usada
por
Carvalho
para
se
referir
a
um
dos
aspectos
da
ideologia
do
soldado-‐cidadão:
na
França,
após
a
revolução
de
1789,
uma
modalidade
da
ideologia
do
soldado-‐
cidadão
teria
sido
encampada
pelos
reformadores
com
o
objetivo
de
abrir
o
Exército
à
sociedade.
No
Brasil,
nas
primeiras
décadas
do
século
XX,
a
ideologia
teria
servido
ao
propósito
oposto,
precisamente
abrir
a
sociedade
ao
Exército
(CARVALHO,
1977,
p.
234).
Na
medida
em
que
a
ideologia
intervencionista
do
soldado-‐corporação
resultou
de
uma
fusão
das
duas
ideologias
anteriores
(soldado-‐cidadão
e
soldado
profissional),
acho
razoável
presumir
que
esse
aspecto,
esse
propósito
muito
particular
de
“abertura”,
tenha
subsistido,
em
algum
grau,
e,
como
apontam
os
indícios
que
juntei
e
abordarei
logo
adiante,
frutificado,
subsidiando
moralmente
o
crescimento
da
influência
dos
militares
na
sociedade.
Fui
alertado
de
que
“abertura”
talvez
não
seja
o
melhor
termo
para
descrever
a
coisa.
Por
isso,
embora
meu
argumento
esteja
vinculado
ao
argumento
de
Carvalho
para
um
período
anterior,
evitarei
utilizar
a
expressão
do
autor,
preferindo
alternativas
como
“expansão
da
influência
dos
militares”,
ou
dos
oficiais
etc.
27
E
aqui
é
preciso
ter
em
mente
que,
para
Weber,
as
“formações
coletivas”
(como
o
Estado)
“em
parte
existem,
em
parte
pretendem
vigência”
(WEBER,
2004,
v.
1,
p.
9).
Isto
é,
existem
na
medida
em
que
os
indivíduos
agem
como
se
existissem.
As
ordens
se
verificam
em
grande
medida
em
virtude
da
existência
dessas
formações
e
seu
estatuto
ontológico
é
igualmente
imanente.
13
Tomar
o
poder
de
Estado,
instaurar
uma
ditadura
e
operar
quase
como
um
partido
acima
do
sistema
político
formal,
portanto,
representou
para
os
militares
controlar
a
instância
centralizadora
“das
funções
de
ordenação”.
Em
outras
palavras,
a
política
–
oficialmente
centralizada
no
Estado
–
é
a
esfera
das
esferas,
aquela
que
pode
determinar,
a
partir
de
vontades
e
decisões,
todas
as
demais.
Por
isso
acho
necessário
afirmar
que
o
golpe
de
1964
representou
mais
do
que
apenas
outra
ocorrência
vinculada
ao
intervencionismo
político.
Ele
abriu
as
portas
para
uma
influência
em
sentido
mais
geral.
Em
cada
um
dos
próximos
itens,
examinarei
de
um
ângulo
diferente
as
possibilidades
de
exercício
dessa
influência
em
conexão
com
o
poder
político.
Oficiais
na
iniciativa
privada
e
anéis
burocráticos
Uma
das
consequências
da
tomada
do
poder
político
pelos
militares
parece
ter
passado
em
branco,
até
agora,
na
literatura
sobre
a
ditadura
militar.
Trata-‐se
do
acesso
da
elite
do
Exército,
via
poder
de
Estado
(direta
ou
indiretamente,
como
por
meio
de
contatos
pessoais),
a
várias
posições
dominantes,
em
instituições
ou
empresas
(públicas
ou
privadas).
Pesquisei
as
trajetórias
dos
oficiais
que
se
formaram
com
Sydnei
em
1948.
De
acordo
com
as
funções
que
eles
exerceram
enquanto
oficiais
–
ou
que
me
pareceram
decorrentes
da
posição
de
oficial
–
estabeleci
alguns
tipos.
Destacou-‐se
a
frequência
de
oficiais
em
funções
alheias
às
da
competência
militar
específica,
no
sentido
do
conceito
de
profissionalismo
de
Huntington.28
O
resultado
oferece
imediatamente
sugestões
de
como
aquele
processo
social
moldou
as
trajetórias
possíveis
para
uma
coorte
de
oficiais.29
28
Embora
o
“profissionalismo”
de
Huntington
não
sirva,
para
o
nosso
caso,
como
processo
histórico,
o
conceito
tem
poder
analítico.
O
próprio
aumento
da
influência
dos
militares
na
sociedade
é
demarcado
com
referência
a
determinada
ideia
do
que
seria
uma
força
militar
idealmente
profissional,
ou
seja,
restrita
à
sua
competência
específica
(gestão
da
violência,
subordinada
às
finalidades
estabelecidas
pelo
Estado
nas
figuras
dos
seus
chefes).
Considerei
a
atuação
individual
dos
oficiais
como
“fora
do
escopo
profissional”
sempre
que
as
funções
ocupadas
por
eles
extrapolaram
o
rol
de
funções
que
considerei
como
necessárias
ao
funcionamento
“normal”
(apolítico)
de
uma
força
militar.
29
Busquei
reunir
informações
sobre
as
trajetórias
dos
formandos
de
1948
da
arma
de
infantaria
da
Escola
Militar
de
Resende
(a
turma
de
Sydnei).
Eram
197
oficiais,
no
total,
e
pude
encontrar
informações
relevantes
para
147
deles.
Considerei
relevantes
os
indícios
que
mostrassem
o
que
faziam
os
oficiais
enquanto
ainda
militares
ou
logo
depois
de
afastados
(aposentados
etc.),
se
fosse
o
caso.
As
principais
fontes
foram
as
edições
do
Diário
Oficial
da
União
e
os
jornais
antigos
do
portal
Hemeroteca
Digital
Brasileira,
mantido
pela
Biblioteca
Nacional
–
todas
disponíveis
online.
O
resultado
é
uma
ideia
geral
das
trajetórias
de
uma
coorte
de
oficiais
que
atingiu
o
alto
oficialato
(major,
tenente-‐coronel
e
coronel)
ou,
até
mesmo,
o
generalato,
durante
a
ditadura.
Mas
as
trajetórias
reunidas
sofrem
de
uma
importante
limitação:
as
informações
disponíveis
eram
totalmente
esparsas.
Buscando
cobrir
número
grande
de
casos,
não
pude
investigar
a
carreira
inteira
de
cada
oficial.
Não
obstante,
acredito
que
o
valor
desses
dados
não
está
tanto
na
precisão,
e
sim
nas
indicações
gerais
que
oferecem.
14
Tabela
1
Tipos
de
oficial
casos
porcentagem
militar
comum
76
51,6
escopo
engenheiro,
topógrafo
ou
cartógrafo
9
6,1
profissional
adido
militar
1
0,7
professor
12
8,2
chefe
de
instituição
pública
de
ensino
2
1,4
agente
de
repressão
7
4,8
fora
do
escopo
secretário
de
segurança
pública
11
7,5
profissional
político
ou
prefeito
nomeado
4
2,7
ministro
de
Estado
3
2,0
empresas
estatais
ou
inciativa
privada
16
10,9
outro
afastado
por
ato
institucional
6
4,1
total
147
100,0
ausente
50
total
197
Fonte:
informações
sobre
trajetórias
colhidas
pelo
autor
O
militar
comum
é
o
mais
estritamente
adequado
ao
conceito
huntingtoniano
de
profissionalismo.
Constitui-‐se
dos
oficiais
de
que
não
encontrei
qualquer
rastro
de
atividade
fora
do
exército
ou
em
funções
mais
específicas
no
interior
da
instituição.
Sua
atribuição
frequente
era
o
comando
de
tropas,
mas
eles
também
tinham
cargos
relacionados
com
os
procedimentos
internos
do
exército.
Os
demais
tipos
foram
definidos
em
contraste
com
esse,
pois
compreendem
os
oficiais
com
atuação
mais
específica.
Os
professores,
por
exemplo,
trabalhavam,
quase
todos,
nos
colégios
militares.
Todos
os
tipos
incluídos
na
grande
categoria
“escopo
profissional”
são
aqueles
cuja
existência
não
parece
ter
relação
com
a
tomada
do
poder
político
pelos
militares;
encaixam-‐se,
portanto,
em
uma
definição
mais
ampliada
do
profissionalismo.
Os
demais
são
tipos
extraordinários.
Sua
existência
parece
dever-‐se,
pelo
menos
em
grande
medida,
ao
golpe,
e
mostra
o
movimento
em
direção
à
profusão
das
atividades
dos
militares
na
sociedade
–
e,
consequentemente,
da
sua
influência.
É
preciso
notar,
porém,
que
os
políticos
ou
prefeitos
e
os
ministros
exemplificam
melhor
aquela
forma
de
ingerência
política
mais
comum,
que
Carvalho
e
McCann
não
deixavam
de
ter
em
mente
–
mesmo
que
o
foco
dos
autores
fossem
os
golpes
e
as
quarteladas.
De
fato,
na
Primeira
República,
sempre
houve
militares
na
Câmara,
no
Senado
e
nos
ministérios
(CARVALHO,
1977,
p.
276-‐277).
Não
obstante,
o
pós-‐1964
teve,
a
esse
respeito,
pelo
menos
duas
particularidades.
Primeiro,
os
militares
abocanharam
outros
ministérios
que
não
o
da
guerra:
ilustrativamente,
Rubem
Carlos
Ludwig,
colega
de
Sydnei,
foi
ministro
da
15
Educação
e
Cultura
entre
1980
e
1982;
pelo
menos
outros
dois
oficiais
do
exército
ocuparam
a
mesma
pasta
durante
a
ditadura,30
e
os
exemplos
poderiam
ser
multiplicados.
Segundo,
muitos
militares
foram
nomeados
prefeitos,
o
que
parece
ser
um
fato
novo
(ainda,
é
claro,
que
oficiais
possam
ter
sido
eleitos
antes
de
1964,
o
que
é
muito
diferente,
ou
nomeados
entre
1930
e
1945,
sob
outro
regime
ditatorial).
Apenas
dentre
os
colegas
de
Sydnei,
alguns
exemplos
seriam
Júlio
Werner
Hackradt,
prefeito
de
Foz
do
Iguaçu
no
final
dos
anos
1960,
Ary
Oliveira,
prefeito
de
Florianópolis
entre
1970
e
1973,
e
Américo
Gomes
de
Barros
Filho,
prefeito
de
Duque
de
Caxias/RJ
entre
1979
e
1982.
Os
demais
tipos,
chefe
de
instituição
pública
de
ensino
(nomeado,
assim
como
os
prefeitos),
secretário
de
segurança
pública,
agente
de
repressão
e
funcionário
de
empresa
estatal
ou
empresário
não
eram
ligados
à
política
institucional,
mas
tinham,
todos,
certo
significado
político.
Que
oficiais
ocupassem
cargos
desse
tipo
ampliava
o
poder
do
exército
de
gerir
não
apenas
o
emprego
da
violência,
conforme
a
definição
de
Huntington,
mas
variadas
esferas
da
vida
social
através
dos
seus
oficiais.
E
eles
o
faziam
porque
se
tinham
tornado,
além
de
elite
institucional,
uma
espécie
de
grupo
de
notáveis
gabaritado
para
essas
funções.
Quase
todos
os
companheiros
de
turma
de
Sydnei
tinham
a
patente
de
major
em
1964
e
chegaram
a
tenente-‐coronel
por
volta
de
1965
ou
1966.
Desses,
16
foram
para
os
negócios.
É
o
tipo
mais
numeroso,
no
qual
se
incluem
cerca
de
10%
dos
oficiais
daquela
turma.
Embora
as
trajetórias
sejam
heterogêneas,
a
maioria
desses
oficiais
realizou
uma
transição
para
o
mundo
dos
negócios
estreitamente
vinculada
com
as
suas
posições
no
exército.
Muitos
trabalharam
diretamente
em
empresas
estatais,
como
Amarylio
Penha
Lopes
Pereira,
que
foi
diretor
de
administração
da
Companhia
Hidrelétrica
do
São
Francisco,
Ary
Canguçu
de
Mesquita,
diretor
do
BRDE,
Décio
Alvares
da
Cunha,
que
trabalhou
na
SUDENE
(não
tenho
certeza
sobre
que
tipo
de
cargo
teve)
e
Eloy
Prado
Meinicke,
diretor
de
informações
e
segurança
da
Empresa
Nipo-‐Brasileira
de
Reflorestamento
(FLONIBRA),
criada
sob
o
governo
Geisel
e
de
propriedade
da
estatal
Vale
do
Rio
Doce.
Dois
oficiais
foram
diretores
do
fundo
de
pensão
militar
CAPEMI.
Joffre
Gil
da
Silva
tornou-‐se
funcionário
da
Companhia
de
Desenvolvimento
do
Vale
do
São
Francisco.
Outros
trabalharam
em
instituições
ligadas
ao
governo
ou
patronais:
Luiz
Frederico
de
Albuquerque
foi
do
Centro
de
Assistência
Gerencial
à
Pequena
e
Média
Empresa
do
Paraná
e
ocupou
cargos
no
governo
do
estado;
Caio
Augusto
do
Amaral
foi
consultor
de
relações
públicas
da
Associação
Comercial
do
Rio
de
Janeiro.
Todos
esses
casos
sugerem
reconversão
de
capitais
simbólico
e
social
em
novas
colocações
econômicas.
30
Os
ministros
militares
foram
Jarbas
Passarinho
(1969-‐74),
Ney
Braga
(1974-‐78)
e
Rubem
Carlos
Ludwig
(1980-‐82).
16
Na
inciativa
privada
propriamente,
Cid
Scarone
Vieira,
que
fora
nomeado
prefeito
de
Rio
Grande
em
1969,
começou
a
trabalhar,
após
o
fim
do
mandato,
no
grupo
empresarial
gaúcho
Habitasul
(com
empreendimentos
industriais
em
metalurgia
e
celulose);
o
fundador
do
grupo,
Péricles
de
Freitas
Druck,
recebeu
a
medalha
da
Ordem
do
Mérito
Militar,
o
que
indica
que
talvez
ele
mesmo
tenha
sido
militar.
Fernando
Ferreira
Vieira
da
Silva,
o
“Coronel
Fernando”
de
Uberaba,
tornou-‐se
pecuarista
e
presidiu,
por
cerca
de
20
anos,
a
Copervale,
empresa
produtora
de
leite
e
derivados
(nesse
caso,
não
há
evidência
alguma
de
conexões
entre
a
posição
de
oficial
e
a
transição
para
os
negócios,
embora
uma
pesquisa
acurada
as
pudesse
revelar,
sobretudo
porque,
mesmo
tendo
ido
para
a
vida
civil,
ele
se
manteve
conhecido
pela
alcunha
militar).
Esses
pedaços
de
trajetória
evidenciam
o
processo
no
interior
do
qual
se
compreende
melhor
o
deslocamento
de
oficial
a
empresário
na
trajetória
do
Coronel
Sydnei.
O
movimento
foi
bastante
comum
para
os
oficiais
daquela
coorte,
e
poderia
ser
considerado
típico.
Basta
destacar
que
houve
mais
deles
que
foram
para
os
negócios
do
que
os
que
entraram
para
o
magistério
militar,
também
um
movimento
comum.
A
posição
de
oficial
passara
a
abrir
portas
não
apenas
para
a
política,
mas
também
para
os
negócios.31
O
modelo
segundo
o
qual
a
elite
institucional
desfruta
de
proximidade
em
relação
às
decisões
importantes
e
tira
daí
a
possibilidade
de
converter
sua
posição
institucional
em
vantagens
em
outras
áreas
(como
sugere
a
ascensão
paralela
de
grupos
e
oportunidades
de
poder,
segundo
Elias)
pode
explicar,
em
um
nível
bastante
geral,
porque
os
oficiais,
sobretudo
depois
do
golpe
militar,
circulavam
com
alguma
fluidez
na
política
e
nos
negócios.
Mas
fica
longe
de
sugerir
como
funcionava
a
circulação.
Fernando
Henrique
Cardoso
descreveu
bem
o
arranjo
institucional
próprio
dessa
forma
de
“trânsito”
de
influências
entre,
de
um
lado,
poder
político,
representado
por
oficiais
militares
e
tecnocratas,
e
de
outro,
poder
econômico,
representado
por
empresas.
Para
o
autor,
o
Estado
estabelecido
em
1964
plasmava
uma
aliança
de
classes
“empresariado-‐classe
média”;
mas
que
empresariado,
e
que
setores
das
classes
médias?
Sinteticamente,
os
chamados
“setores
modernos”
de
ambas
as
classes.
Dito
sem
o
adjetivo:
o
setor
da
burguesia
industrial
que
se
organizou
na
Grande
Empresa
e
os
setores
da
classe
média
que
se
escudam
no
Estado
Empresarial
e
na
Grande
Empresa,
inclusive
e
principalmente
os
31
A
relação
entre
ditadura
e
empresariado
mereceu
alguma
atenção
recentemente.
A
Comissão
Nacional
da
Verdade
organizou
em
março
de
2014
o
seminário
“Como
as
empresas
se
beneficiaram
ou
apoiaram
a
ditadura
militar”
e
há
uma
dissertação
de
mestrado
em
História
de
2012
sobre
o
empresário
Henning
Boilesen,
notório
apoiador
da
repressão
(MELO,
2012).
Embora
o
argumento
deste
texto
tenha
ido
na
direção
oposta,
observar
o
trânsito
dos
oficiais
do
exército
para
os
negócios,
ele
mostra
um
aspecto
complementar
do
problema
das
relações
entre
interesses
econômicos
e
poder
político
na
ditadura.
17
militares
que
assumiram
como
missão
própria
alcançar
e
fortalecer
o
desenvolvimento
capitalista
(CARDOSO,
1975,
p.
178).
Tratando-‐se
de
uma
aliança
de
classes,
era
natural
que
tal
arranjo
operasse
em
benefício
mútuo
dos
grupos
que
estavam
dentro
do
“bloco
no
poder”.
É
claro
que
diferenças
ideológicas
separavam
os
componentes
da
aliança:
uns,
mais
ligados
ao
capital
privado,
defendiam
o
“capitalismo
de
empresa”;
outros,
mais
próximos
da
burocracia
estatal,
o
“capitalismo
de
Estado”.
Mas
os
unia
o
interesse
comum
no
“Estado
de
Desenvolvimento
Capitalista”
como
modelo
mais
geral.
O
“golpe
dentro
do
golpe”
de
1968
consolidou
essa
aliança
de
classes,
garantindo
autoritariamente
sua
continuidade
no
poder.
O
arranjo
institucional
próprio
de
negociação
das
políticas
no
interior
da
aliança,
que
já
se
insinuava
tendencialmente
desde
1964,
também
se
aprofundou
e
consolidou:
“a
capacidade
decisória
escorregou
mais
e
mais
para
o
automatismo
do
Sistema”,
surgiu
a
figura
do
“tecnocrata”
e
as
decisões
eram
tomadas
por
“funcionários
de
segunda
linha
e
de
limitada
responsabilidade
política
[...]
todos,
direta
ou
indiretamente,
dependentes
de
órgãos
internos
das
forças
armadas”
(idem,
p.
202-‐203).
Seria
a
era
dos
anéis
burocráticos,
uma
forma
particular
de
articulação
de
interesses
privados
e
públicos
e
de
tomada
de
decisões
no
âmbito
do
Estado:
os
anéis
eram
“círculos
de
informação
e
pressão
(portanto,
de
poder)
que
se
constituem
como
mecanismo
para
permitir
a
articulação
entre
setores
do
Estado
(inclusive
as
forças
armadas)
e
setores
das
classes
sociais”,
necessitando
“estar
centralizados
ao
redor
do
detentor
de
algum
cargo”
(idem,
p.
208).
É
bastante
claro
que
a
potencialização
das
oportunidades
de
poder
para
os
oficiais,
especialmente
depois
da
radicalização
do
regime,
passava
por
estruturas
como
os
anéis
burocráticos.
Era
assim
quando
se
sentavam
de
um
dos
lados
da
mesa
da
repartição,
como
no
caso
dos
tantos
oficiais
da
turma
de
Sydnei
que
se
tornaram
funcionários
de
empresas
ou
escritórios
estatais;
e
também
quando
estavam
do
lado
oposto,
no
papel
de
funcionários
de
empresas
privadas
ou
de
empresários
defendendo
seus
interesses
junto
ao
Estado.
Se
Sydnei
se
tornara
gradualmente
empresário,
nos
anos
1950
e
1960,
sem
deixar
de
auferir
recursos,
e
mesmo
facilidades,
decorrentes
de
sua
posição
de
oficial,
em
1973,
já
na
reserva
do
Exército,
ao
fundar
a
Faculdade
Tuiuti
e
se
tornar
o
que
poderíamos
chamar
um
grande
empresário,
mostrou
transitar
com
desenvoltura
nos
anéis
burocráticos
do
regime.
18
“Um
dos
baluartes
da
educação
particular
em
nosso
estado”
Houve
uma
segunda
consequência
importante
da
tomada
do
poder
político
pelos
militares,
consequência
mais
no
plano
ideal
do
que
diretamente
no
material
ou
político;
mas
não
por
isso
menos
efetiva
como
força
a
moldar
a
realidade.
A
ascendência
de
oficiais
sobre
diferentes
áreas,
assumindo
posições
dominantes
em
empresas
e
instituições,
viabilizou
uma
rotinização
da
dominação
dos
militares.32
Como
bem
mostrou
André
Botelho,
os
agentes
“menores”
(no
seu
caso,
um
“autor”,
o
intelectual
modernista
Ronald
de
Carvalho;
aqui,
o
Coronel
Sydnei)
são
fundamentais
para
fazer
com
que
as
ideias
circulem
rotineiramente
e
tenham
efetividade
(BOTELHO,
2005,
p.
20;
p.
66-‐77).
São
eles
que
as
atualizam,
seja
escrevendo
em
jornais
diários
para
um
público
mais
ou
menos
amplo,
seja
atuando
como
empresário.
Pode-‐se
ver
nesses
agentes
“menores”
a
encarnação
de
ideias
e
de
princípios
de
ação
em
tipos
relativamente
difundidos
de
agente
social
e,
portanto,
que
têm
o
seu
peso
na
conformação
da
realidade.33
Eleito
vereador
em
1967,
no
início
do
ano
seguinte
Sydnei
foi
reformado
como
tenente-‐
coronel
e
pôde
passar
a
investir
todo
o
seu
tempo
nos
negócios.
No
mesmo
ano
da
eleição,
o
Colégio
Tuiuti
passava
a
oferecer
todos
os
níveis
de
ensino
básico,
até
o
final
do
segundo
grau,
e,
apenas
seis
anos
mais
tarde,
seria
inaugurada
a
faculdade,
inicialmente
com
três
cursos.
O
Coronel,
como
já
era
conhecido
em
Curitiba
a
essa
altura,
havia
se
tornado
empresário,
mas
estava
longe
de
sê-‐lo
simplesmente.
Seus
negócios,
como
vimos
acima,
ligavam-‐se
pela
origem
à
posição
dele
como
oficial
do
Exército.
Mas
as
relações
entre
negócios
e
Exército
não
se
limitavam
às
possibilidades
de
empreender.
Como
sugere
o
tipo
caracterizado
há
pouco,
seria
melhor
considerá-‐lo
um
militar-‐empresário,
pois
efeitos
vinculados
à
posição
de
oficial
naquele
momento
também
se
manifestavam
como
consequência
da
atuação
na
iniciativa
privada.
Como
empresário,
o
Coronel
contribuiu
para
uma
dupla
rotinização:
de
projetos
e
políticas
do
governo
militar
na
área
da
educação
(o
agente
“menor”,
assim,
capilarizava
seus
efeitos);
e
de
concepções
e
símbolos
militaristas.
Quanto
ao
primeiro
dos
aspectos,
relacionado
à
capilarização
da
política,
destaco
o
perfeito
paralelismo
entre
a
atuação
do
Coronel
no
ramo
da
educação
particular
e
as
diretrizes
programáticas
do
governo
militar
para
a
expansão
da
oferta
de
ensino,
que
32
Não
no
sentido
original
weberiano
estrito,
de
rotinização
do
carisma
propriamente
dito
(WEBER,
2004,
v.
2,
p.
331-‐333),
mas,
em
uma
leitura
inspirada
nele,
no
sentido
de
que
ideias,
projetos
e
símbolos
particulares
vão
ganhando
adesão
e
se
plasmando
em
ações
correntes,
cotidianas;
e
até
mesmo
em
tipos
sociais,
como
o
militar-‐
empresário.
33
Assim,
se
Camila
Tribess
analisou
no
primeiro
volume
de
À
margem
do(s)
cânone(s)
a
reprodução
de
ideias
por
parte
de
figuras
“maiores”
(os
“presidentes”
militares
Geisel
e
Figueiredo)
(TRINDADE;
COSTA;
ROIZ,
2013),
volto-‐me,
com
relação
ao
mesmo
período,
para
uma
figura
“menor”.
19
passavam
pela
privatização
e
pela
expansão
da
rede
particular
–
em
especial
no
nível
superior.
O
seguinte
trecho
do
discurso
de
Castelo
Branco,
ao
abrir
a
sessão
legislativa
de
1967,
é
exemplar:
Reformas
básicas
imprescindíveis
foram
levadas
a
efeito
no
Governo
Revolucionário,
especialmente
no
ensino
superior:
quebrou-‐se
o
privilégio
da
gratuidade
indiscriminada
nos
estabelecimentos
federais
de
nível
superior,
injustificada
em
um
pais
no
qual
o
ensino
médio
é
ainda
predominantemente
privado,
pago
e
demasiado
oneroso
para
as
condições
médias
da
população
nacional
[...]
(MINISTÉRIO
DA
EDUCAÇÃO,
1987,
p.
388)
É
claro
que
é
possível
ver
aí
o
simples
ataque
à
educação
pública,
por
motivos
políticos
e
econômicos.
Mas
não
deixava
de
ser
uma
estratégia
de
ampliar
rapidamente
a
oferta
de
vagas
sem
ter
que
mexer
mais
profundamente
no
orçamento
do
governo,
sem
fortalecer
(expandindo-‐o)
o
celeiro
de
oposição
que
era
a
universidade
pública,
e
ainda
de
acordo
com
noções
de
justiça
não
apenas
cultivadas
pelos
militares,
mas
que
gozavam
de
bastante
respaldo
na
sociedade.
Pois
não
se
tratava
apenas
de
cobrar
anuidades
nos
estabelecimentos
públicos,
mas
também,
indo
na
mesma
direção,
de
incentivar
a
expansão
da
rede
privada.
Os
debates
em
torno
a
essa
questão
–
a
generalização
do
ensino
superior
pago
–
foram
longe
e
tiveram
como
testa-‐de-‐ferro,
no
final
dos
anos
1960
e
começo
dos
1970,
o
então
ministro
da
educação
coronel
Jarbas
Passarinho.34
O
próprio
Coronel
Sydnei
chegou
a
se
manifestar
abertamente
a
respeito,
quando
“aplaudiu
a
declaração”
do
reitor
da
Universidade
Estadual
de
Londrina
em
defesa
do
programa
e
propôs
a
implantação
de
um
sistema
de
bolsas
rotativas
para
subsidiar
a
criação
de
vagas
–
presume-‐se
que
tanto
nas
instituições
públicas
tornadas
pagas
quanto
nas
privadas,
já
que
ele
era
dono
de
uma
(Figura
5).
Alguns
anos
antes,
a
atuação
do
Coronel
rendera-‐lhe
uma
menção
eloquente
na
coluna
social
de
um
jornal
curitibano:
ele
se
tornara
(em
1975)
“um
dos
baluartes
da
educação
particular
em
nosso
estado”
(Figura
6).
34
Localizei,
apenas
em
pesquisa
no
jornal
Diário
do
Paraná,
a
emergência
recorrente
do
tema
–
o
jornal,
inclusive,
se
posicionou
diversas
vezes,
em
editorial,
pela
generalização
do
ensino
superior
pago.
Em
tais
editoriais,
eram
frequentemente
apresentados
argumentos
de
justiça
social,
ao
modo
do
argumento
do
ditador
Castelo
Branco,
e
comentados
os
esforços
do
coronel
Passarinho,
à
frente
do
ministério,
para
implementar
a
política.
Ver,
por
exemplo,
as
edições
do
Diário
do
Paraná
de
6
de
dezembro
de
1972
e
de
1º
de
fevereiro
de
1973.
É
intrigante
como
o
tema
ressurgiu
muito
recentemente,
e
na
mesmíssima
forma,
quando
se
tornou
evidente
a
crise
financeira
da
USP
em
2014
(ver
o
editorial
do
jornal
Folha
de
São
Paulo
do
dia
1º
de
maio).
Não
bastaram
as
convulsões
que
viraram
o
Chile
do
avesso
em
2011,
contra
o
sistema
idêntico
ao
que
os
militares
quiseram
implantar
aqui
–
e
que
conseguiram,
lá
–,
para
convencer
de
que
é
falacioso
o
argumento
segundo
o
qual
um
sistema
totalmente
pago
é
mais
igualitário.
20
Figura
5
Figura
6
Fonte:
Diário
do
Paraná,
8
de
março
de
1975
Fonte:
Diário
do
Paraná,
28
de
agosto
de
1973
Os
baluartes
são
as
fortificações
que
defendem
os
ângulos
das
muralhas
ou,
em
sentido
figurado,
os
defensores
de
uma
ideia
ou
de
um
partido.35
É
uma
ótima
imagem
para
pensar,
por
analogia,
as
atuações
dos
diversos
oficiais
que
fizeram
esse
tipo
de
conversão
na
suas
trajetórias
–
sem
deixarem
de
representar
o
Exército,
em
algum
sentido.
Ainda
quanto
à
capilarização,
um
oficial
gestor
do
ensino
particular
podia
auxiliar
no
controle
das
instituições
pelos
militares.
Em
1979,
por
exemplo,
representantes
da
UNE
foram
impedidos
de
instalar
as
urnas
de
votação
para
as
suas
eleições
nas
dependências
da
Tuiuti.36
Não
quero
dizer
que
dificultar
que
se
realizasse
a
eleição
foi
fruto
de
imposição
direta
da
rede
de
militares,
ou
de
algum
figurão
em
particular,
sobre
o
dono
a
faculdade;
provavelmente
não
foi.
A
questão
são
as
próprias
convicções
e
formas
de
pensar
formadas,
em
grande
medida,
ao
longo
da
vida
de
oficial
do
exército.
O
caso
ajuda
a
introduzir
o
segundo
aspecto
da
expansão
da
influência
dos
militares
sobre
a
vida
social:
a
rotinização
das
suas
concepções
e
símbolos.
Os
símbolos
da
Tuiuti
deixam
isso
muito
claro,
a
começar
pelo
nome.
“Tuiuti”
é
nome
da
principal
batalha
terrestre
travada
na
guerra
do
Paraguai,
e
na
sua
data,
24
de
maio,
o
exército
celebra
o
dia
do
soldado
de
infantaria.
Na
semana
do
24
de
maio
a
universidade
comemora
sua
fundação
abrindo-‐se
à
“comunidade”
e
oferecendo,
por
meio
de
seus
funcionários
e
alunos,
vários
serviços
gratuitos.
A
cor
principal
da
instituição
é
o
verde,
imagino
que
não
por
acaso.
A
logomarca,
em
si,
é
especialmente
interessante.
Constitui-‐se
de
uma
espada
cruzada
em
diagonal
sobre
um
livro.
A
espada
pode
representar
os
aspirantes
a
oficial,
que
a
recebem
quando
se
formam
na
Escola
35
A
definição
é
emprestada
do
Dicionário
Priberam
da
Língua
Portuguesa:
<www.priberam.pt/dlpo/>.
36
“[...]
na
Faculdade
Tuiuti,
onde
a
direção
do
estabelecimento
recusou-‐se
a
permitir
a
realização
do
pleito
nas
dependências
da
instituição,
a
votação
foi
realizada
nas
calçadas
do
estabelecimento
[...].”
Problema
dessa
ordem
ocorreu,
também,
na
Faculdade
de
Direito
de
Curitiba,
na
mesma
ocasião,
mas
representantes
da
OAB
ajudaram,
no
caso,
a
garantir
o
direito
à
instalação
das
urnas.
Ver
Diário
do
Paraná,
4
de
outubro
de
1979.
21
Militar,
em
possível
alusão
ao
cursinho,
aberto
em
1958,
que
preparava
para
o
ingresso
no
Colégio
Militar
(que,
como
demonstra
a
própria
trajetória
de
Sydnei,
é
uma
via
de
acesso
à
escola
de
formação
de
oficiais).
Mas
outro
símbolo
parece
ter
servido
como
inspiração
direta.
O
Coronel
formou-‐se
em
Matemática
na
Universidade
Católica
do
Paraná
em
1962
(e,
ainda
nos
anos
1960,
em
Psicologia
na
Faculdade
São
Marcos,
em
São
Paulo).
Entre
1966
e
1968,
antes
de
fundar
a
Tuiuti,
foi
professor
de
orientação
educacional
e
psicopedagogia
na
Universidade
Católica,
cujo
símbolo
de
então
(diferente
do
atual)
tem
semelhanças
com
o
da
Tuiuti
e
no
qual
este
deve
ter
sido
inspirado:
um
livro
sob
uma
cruz.
Assim
como
uma
instituição
católica
usa
a
cruz
e
seus
demais
símbolos
religiosos,
a
Tuiuti
usava
símbolos
militares
–
embora,
é
claro,
não
fosse
uma
instituição
militar.
Considerando
que
os
padres
católicos
comandaram
a
Universidade
do
Paraná
até
1950,
quando
ela
foi
federalizada
(e
parece
que
continuou
por
longo
tempo
como
um
bastião
do
pensamento
católico),
e
depois
(1959)
fundaram
a
sua
própria
universidade,
no
momento
em
que
a
Tuiuti
surgiu
(1973),
três
das
quatro
grandes
instituições
de
ensino
superior
de
Curitiba
eram
concebidas
sob
a
ascendência
da
Igreja
ou
do
Exército.37
Se
na
logo
da
Tuiuti
pode-‐se
ver
um
símbolo
religioso
metamorfoseado
em
militar,
com
o
lema
acontece
quase
o
contrário:
“Promoção
humana”
pode
ser
lido
como
uma
ideia
de
cunho
militar
aplicada
à
vida
social.
Por
um
lado,
trata-‐se
de
lema
relacionado
com
uma
filosofia
social
de
assistência
e
apoio.
Mas
“promoção”
representa,
também,
o
progresso,
a
ascensão
em
uma
hierarquia
–
embora
não
somente
das
forças
armadas.
Com
essa
metamorfose,
o
princípio
da
promoção
torna-‐se
uma
meta
“humana”,
e
eu
arriscaria
dizer:
como
se
a
sociedade
fosse
um
grande
quartel,
ou
uma
grande
empresa,
ou,
enfim,
uma
grande
organização
hierárquica.
Duas
facetas
da
concepção
precisam
ser
destacadas.
Por
um
lado,
o
princípio
é
meritocrático.
Como
se
associa
à
educação,
não
deixa
de
significar
que
todos
devem
ter
oportunidades
de
“promoção”.
A
Tuiuti,
por
iniciativa
de
Sydnei
e
de
sua
esposa,
também
fundadora
da
instituição,
destacou-‐se
pela
atenção
a
pessoas
com
necessidades
especiais.
Manteve,
desde
1980,
um
centro
de
apoio
a
deficientes
auditivos
e
aceitava,
ainda
no
Colégio
Tuiuti,
crianças
com
deficiência
que
não
eram
aceitas
em
outras
escolas
da
cidade.38
Além
disso,
o
aniversário
da
Tuiuti
é
comemorado
com
a
“Semana
da
Promoção
Humana”,
de
ampla
37
Refiro-‐me
à
Universidade
Federal
(antes
Universidade
do
Paraná),
à
Universidade
Católica,
à
Faculdade
Tuiuti
e
à
Faculdade
de
Direito
de
Curitiba.
Não
há
razões,
ainda,
para
crer
que
sobre
esta
última
tivessem
ascendência
valores
menos
conservadores.
38
Segundo
relatado
em
entrevista
ao
autor
por
uma
moça
que
passou
por
tal
situação
e
é
muito
grata
à
Tuiuti
e
ao
Coronel
pela
oportunidade
de
ter
estudado
regularmente.
É
interessante
que
a
Tuiuti
tinha
essa
política
muito
antes
de
a
integração
de
deficientes
tornar-‐se
obrigação
legal.
22
oferta
de
serviços
gratuitos
à
população.
E,
pelo
menos
no
Colégio,
parece
ter
sido
prática
comum
oferecer
bolsas
de
estudos
a
quem
não
podia
pagar.
Não
é
necessário
questionar
a
sinceridade,
à
sua
própria
maneira,
do
propósito
discutido
acima
de
criar
novas
oportunidades
de
educação
e
de
formação
por
meio
da
generalização
do
ensino
pago
e
da
expansão
da
rede
privada.
E
não
apenas
na
cabeça
do
Coronel,
mas
também
dos
militares
e
civis
que
encamparam
a
ideia.
Por
outro
lado,
a
ideia
de
promoção
implica
também
disciplina,
aquiescência
e,
em
suma,
que
se
reconheça
a
legitimidade
dos
princípios
hierarquizadores
em
ação.
E
assim
como
quem
recebe
oportunidades
deve
aquiescer
para
ser
promovido,
quem
não
as
recebe
–
ou
se
encontra
limitado
a
um
patamar
inferior
de
oportunidades
–
deve
se
conformar
com
o
que
tem.
As
forças
militares
oferecem
um
modelo
perfeito
dessa
ordem
de
coisas:
dividem-‐se
em
grupos
muito
bem
separados
pela
formação
e
pelo
tipo
de
oportunidades
percebidas:
os
praças
e
os
oficiais.
Apesar
de
o
Ministério
da
Educação
e
Cultura
ter
sido
chefiado
por
oficiais
do
exército
durante
cerca
de
10
dos
21
anos
que
durou
a
ditadura,
a
análise
da
ocupação
dos
cargos
desse
ministério
e
do
Conselho
Federal
de
Educação
parece
ter
mostrado
que
a
influência
dos
militares
na
área
se
deu
mais
de
forma
“subliminar”,
por
meio
de
civis
alinhados
com
o
regime,
do
que
de
forma
direta
(MATHIAS,
1999,
p.
231).
A
trajetória,
o
processo
e
as
concepções
que
foram
perseguidos
neste
artigo
evidenciam
ainda
outras
formas
de
influência
“indireta”
dos
militares
na
vida
social
durante
a
ditadura.
Indireta
porque
nem
sempre
foi
exercida
desde
as
posições
de
poder
propriamente
político,
mas
sim
desde
posições
de
comando
e
de
gestão
em
várias
áreas
mais
discretas
da
vida
social:
em
especial
a
segurança
pública,
os
negócios
e
a
educação.
Os
oficiais
nessas
posições
sentiam-‐se
muito
à
vontade
para
empregar
os
seus
valores,
as
suas
concepções
e,
até
mesmo,
os
seus
símbolos
trazidos
dos
quarteis.
Constituíram-‐se,
assim,
em
agentes
da
capilarização
do
controle
e
da
dominação
militar
e
em
polos
de
rotinização
das
concepções
e
dos
símbolos
militaristas.
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