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Resumo
[a]
Graduação em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica
As práticas perversas sempre foram consideradas pela sociedade como desviantes e até cri-
do Paraná, Toledo, PR – Brasil, minosas. Muitos autores criaram obras relevantes a respeito, como Krafft-Ebing, que define os
e-mail: perversos como “filhos ilegítimos da natureza”, doentes que necessitavam de tratamento. No
camila.perachi@gmail.com
entanto, Sigmund Freud vem romper com a tradição médica e lançar um novo olhar sobre este
[b]
Graduação em Psicologia pela
fenômeno. Neste sentido, o presente artigo de revisão bibliográfica veicula o proposto tema
Pontifícia Universidade Católica – perversão sádica e masoquista no entendimento freudiano – no intuito de mostrar as con-
do Paraná, Toledo, PR – Brasil, tribuições da psicanálise e como Freud foi modificando no decorrer da prática sua teoria. Ao
e-mail: leka_royer@hotmail.com
discorrer sobre o tema, identificamos três momentos significativos na construção da teoria das
[c] pulsões, relativo à perversão. Assim, pode-se mostrar que aquilo que os homens horrorizam
Graduação em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica nos perversos, na verdade, faz parte de cada um, em maior ou menor grau. A fim de ilustrar
do Paraná, draduação em Filosofia sadismo e masoquismo, foram utilizados excertos das obras de Sade e Sacher-Masoch.[#]
pela Universidade Estadual do
Oeste do Paraná e mestranda
[#][#]
[P]
em Filosofia pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná,
Palavras-chave: Freud. Perversão. Sadismo. Masoquismo.
Toledo, PR – Brasil, e-mail:
tamarapasqualatto@hotmail.com [R]
[d]
Abstract
Especialista em Psicanálise pela
Universidade de Marília, mestre The perverse practices always were considered by society as deviants and even criminals. Many
em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, authors created relevant works about it, such as Krafft-Ebing, who defines the perverse people as
docente do curso de Psicologia e “stepchildren of nature”. However, Sigmund Freud comes to break up with the medical tradition
coordenadora da Pós Graduação
and to set up a new way of looking at this phenomenon. In this sense, this article of bibliographic
em Psicanálise Clínica – de Freud
a Lacan, Pontifícia Universidade revision conveys the proposed theme – sadism and masochism in perversion – with the intention
Católica do Paraná, Toledo, PR – of showing the contributions of psychoanalysis and the way that Freud had modified, through his
Brasil, e-mail:
practice, the theory about this theme. It was found that there are three significant moments in
michaella.laurindo@pucpr.br
the construction of the instinct theory, concerned to perversion. It was shown that those things
that horrify men about perverse people, in fact, are parts of each man, in higher or lower degree.
Recebido: 06/12/2012 Aiming to illustrate the sadism and the masochism, it had been used excerpts of productions of
Received: 12/06/2012
Sade and Sacher-Masoch.
Aprovado: 30/07/2013 [K]
A partir desse momento no discurso da medicina ideias e conceitos do psiquiatra alemão, por sua vez,
psiquiátrica do século XIX, é considerado perverso serviram de fundamento às classificações das per-
e, consequentemente, patológico, versões sexuais bem como influenciariam as noções
psicanalíticas sobre perversão.
aquele que escolhe como objeto o mesmo que ele A obra de Richard Von Krafft-Ebing constitui a
(homossexual), ou ainda a parte ou o desejo de um síntese mais rigorosa de todas as correntes da se-
corpo que remete ao seu próprio (o fetichista, o xologia e nela define os perversos como “filhos ile-
coprófilo). (...) aqueles que possuem ou penetram gítimos da natureza” (KRAFFT-EBING, 1965, p.9).
por efração o corpo do outro sem seu consenti- Para ele, os perversos eram mentalmente doentes,
mento (estuprador, o pedófilo), os que destroem tinham a vida sexual invertida e isso representava a
ou devoram ritualmente seus corpos ou o dos vitória da animalidade sobre a civilização. Todavia,
outros (o sádico, o masoquista, o antropófago, o acreditava que a ciência poderia um dia curar esses
autófago, o necrófago, o necrófilo, o escarificador, “desafortunados”. O psiquiatra alemão divide o que
o autor de mutilações), os que travestem seus cor- chamou de “anomalias do instinto sexual” em qua-
pos ou sua identidade (o travesti), os que exibem tro classes: anestesia do instinto sexual, hipereste-
ou apreendem o corpo como objeto de prazer (o sia do instinto sexual, paradoxia do instinto sexual
exibicionista, o voyeurista, o narcísico, o adepto e, por fim, parestesia do instinto sexual.
do autoerotismo). É perverso, enfim, aquele que Desta forma, em parte de sua obra, realiza a des-
desafia a barreira das espécies (o zoófilo) nega crição e a categorização exaustiva das perversões
as leis da filiação e da consanguinidade (o inces- sexuais, por ele denominadas “parestesias do ins-
tuoso) ou ainda contraria a lei da conservação da tinto sexual”, grupo no qual se encontram o sadismo
espécie (o onanista) (ROUDINESCO, 2008, p.82). e o masoquismo, que foram por ele consideradas as
perversões cardeais. Segundo Krafft-Ebing (1965,
A função dessa nova classificação, bem como da p. 53), “Com a oportunidade de satisfazer natural-
criação de novas terminologias para designar as mente o instinto sexual, cada expressão deste que
perversões, é dar um “fundamento antropológico” não corresponda ao propósito da natureza – propa-
ao sexo e ao crime sexual, que permita distinguir a gação – deve ser entendida como perversa”. Ainda
sexualidade dita normal da patológica. Para isso, a divide as parestesias em: sadismo, masoquismo, fe-
semiologia e a taxonomia, a serviço do desejo da eli- tichismo e sexualidade antipática (homossexualida-
te dominante da época, identificavam, rastreavam, de). Diante da importância dos dois primeiros para
mensuravam e controlavam todas as práticas sexu- este estudo, exclusiva ênfase será dada neles e afir-
ais. Mas mesmo os estudiosos, pioneiros da sexolo- ma que o sadismo seria uma associação de cruelda-
gia, tinham dificuldade em chegar a um consenso de e violência ativa com luxúria:
sobre os fundamentos, sobre as causas da perver-
são. Alguns acreditavam que era um fenômeno na- É a experiência de sensações sexuais prazerosas
tural no reino animal. Outros, ao contrário, pensa- (incluindo o orgasmo) produzidas por atos de
vam que as perversões eram adquiridas e exclusivas crueldade, punição corporal infligida a si mesmo
da espécie humana. Havia aqueles, ainda, que sus- ou testemunhada por outros, sejam eles animais
tentavam que era resultado de uma patologia here- ou seres humanos. Pode também consistir de um
ditária transmitida na infância por má educação. desejo inato de humilhar, machucar, ferir ou até
Em 1844, em Leipzig, é publicada a primeira mesmo destruir outros a fim de criar prazer sexual
obra que trata especificamente das psicopatologias para si mesmo (KRAFFT-EBING, 1965, p.53).
sexuais: Psychopathia Sexualis, do psiquiatra russo
Kaan. Quem ressalta a importância dessa obra como O autor ainda percebe que este fenômeno é mais
precursora da noção de perversão é Michel Foucault comum em homens devido à posição ativa que o su-
(2001), em Os anormais. Pelo fato de o estudo de jeito assume, em oposição à posição passiva, repre-
Kaan ter sido publicado em latim e nunca traduzido, sentada pela mulher. O que acontece nos sádicos é
Foucault é a porta de acesso a ela. Em 1886, Krafft- que as forças inibitórias que deveriam emergir e im-
Ebing publica sua Psychopathia Sexualis. Ambos au- pedir um ato de violência extremo e impulsivo são
tores nomeiam suas obras com o mesmo título. As muito fracas (KRAFFT-EBING, 1965).
Sadismo e Masoquismo na teoria freudiana No entanto, a pulsão é um conceito que evolui com
a teoria e a prática psicanalítica, por isso segue os
No século XIX, a psicanálise estruturou-se como diferentes momentos da teoria da pulsão em Freud.
uma forma distinta de compreender o psiquismo
humano. Com a sua metapsicologia2, Freud rompeu
com a tradição médica, com paradigmas e precon- O primeiro momento da teoria das pulsões
ceitos acerca da sexualidade humana – que ele fez (1905-1914)
questão de enfatizar: é uma psicossexualidade, ou
seja, ultrapassa o fisiológico e tem suas raízes e re- Com sua primeira tópica formulada, Freud colo-
lações com o psiquismo. A partir desse entendimen- ca em movimento os conceitos de consciente, pré-
to, a perversão então pôde ser vista como um fenô- -consciente e inconsciente e dedica-se demasiada-
meno psíquico e não puramente sexual orgânico. mente às neuroses, principalmente as histéricas,
Aquilo que na perversão constitui objeto de horror, dispensando pouca ou nenhuma atenção às perver-
Freud diz que, na verdade, faz parte de cada homem, sões. Valas (1990) esclarece que no começo de sua
em maior ou menor grau. teoria, o médico austríaco atribuía a perversão à
Como o recorte dessa pesquisa sobre a teoria bestialidade humana, inferindo sobre ela julgamen-
freudiana das perversões é o sadismo e o masoquis- to moral, inclusive localizando a essência das per-
mo, é necessário esclarecer alguns conceitos tais versões nas mulheres, cujos instintos sexuais não
como o de inconsciente, Édipo e também os diferen- teriam sido civilizados suficientemente. Sabendo
tes momentos da elaboração da teoria das pulsões. que Freud foi leitor de Krafft-Ebing, percebemos es-
Percebendo aspectos não conscientes do psiquismo treitas ligações entre essas concepções imaturas do
humano, Freud investiga as relações de fenômenos psicanalista (que vão sendo retificadas a partir de
orgânicos com possíveis causas e desdobramentos 1905) com aquelas do médico alemão.
psíquicos. Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade,
O inconsciente – considerado a maior e mais Freud (1905/1996c, v.7) dedica-se ao estudo das
original descoberta freudiana – pode ser entendido aberrações sexuais, da sexualidade infantil e das
como uma cadeia de conteúdos latentes: transformações da puberdade. No primeiro ensaio,
ele situa as perversões no campo das aberrações
O que Freud denominou “inconsciente” apresen- sexuais, considerando-as um desvio em relação ao
tou-se, desde o inicio – desde A interpretação alvo sexual (união dos genitais no coito), porém
dos sonhos –, como uma série de pensamentos também aproxima a sexualidade neurótica da per-
(Gedanken). Uma trama de ideias em estado de versa: “mesmo no processo sexual mais normal
latência, pendentes, sob a fachada do sonho com reconhecem-se os rudimentos daquilo que, se de-
a aparência de um conjunto esparso e contraditó- senvolvido, levaria às aberrações descritas como
rio. Entretanto, e contrariamente as aparências, perversões” (1905/1996c, v.7, p.141). Para o psica-
essa trama que a livre associação revela no curso nalista, as relações com o objeto sexual que antece-
da análise é a expressão material de uma cadeia dem o coito, tal como apalpá-lo, contemplá-lo, bei-
(GODINO-CABAS, 2010, p.32). já-lo, são fatores presentes na “vida sexual normal”
que se desenvolvidos, levaria à perversão. Assim,
Por pressupor uma dissociação da consciência e Freud (1905/1996c, v.7, p.142) conceitua: “as per-
perceber relações entre sintomas fisiológicos e con- versões são ou (a) transgressões anatômicas quan-
teúdos psíquicos, foi necessário encontrar um elo en- to às regiões do corpo destinadas à união sexual, ou
tre esses fenômenos, por isso Freud (1915/1996b, (b) demoras nas relações intermediárias com o ob-
v. 14, p. 127) elaborou a ideia de pulsão: “um concei- jeto sexual que normalmente seriam atravessadas
to situado na fronteira entre o mental e o somático”. com rapidez a caminho do alvo sexual final”.
Essa definição pode ser ilustrada pelo caso 28 de
Krafft-Ebing, em que o alívio da tensão sexual se dá
2 Conceito utilizado por Freud pela primeira vez em por vias consideradas transgressivas:
[1898]1996a, na carta 84, para designar seu modelo psi-
cológico que vai além do estudo da consciência. Por volta de 1860, os habitantes de Leipzig foram
ou seja, pelo contrário, surge regularmente do destinos: transformação no contrário (amor e ódio),
sadismo mediante uma transformação” (Freud, retorno contra a própria pessoa (obsessão ou ma-
1905/1996c, v. 7, p. 150). No entanto, em nota soquismo), o recalque e a sublimação. Diante da im-
acrescentada em 1924, ele retifica essa posição, portância dos dois primeiros destinos para o estudo
afirmando o reconhecimento de um masoquismo do sadismo e do masoquismo, eles serão estudados
primário (erógeno). exclusivamente.
Sobre a transformação de uma pulsão em seu
oposto original, Freud (1915/1996b) afirma que se
O segundo momento da teoria das pulsões transforma em dois processos diferentes: mudança
(1915-1919) de atividade para passividade e uma reversão de
seu conteúdo. A transformação da pulsão no seu
Com Pulsões e suas vicissitudes, Freud contrário afeta apenas as finalidades: a finalidade
(1915/1996b, v. 14) dá início a uma série de artigos ativa se torna passiva. É exemplo do primeiro pro-
sobre a metapsicologia com o intuito de definir con- cesso o par antitético sadismo-masoquismo, e do
ceitos fundamentais utilizados em sua teoria que segundo a transformação do amor em ódio.
até então permaneceram obscuros. A pulsão, como Freud (1915/1996b, p.133) faz um esquema de
citado anteriormente, é um dos conceitos mais im- três fases para melhor elucidar o retorno da pulsão
portantes de sua teoria e é nesta obra que ele a de- em direção ao ego no caso do masoquismo:
fine como sendo:
(a) O sadismo consiste no exercício de violência
um conceito situado na fronteira entre o mental ou poder sobre uma pessoa como objeto. (b) Esse
e o somático, como representante psíquico dos objeto é abandonado e substituído pelo eu do indi-
estímulos que se originam dentro do organismo víduo. Com o retorno em direção ao eu, efetua-se
e alcançam a mente, como uma medida da exi- também a mudança de uma finalidade pulsional
gência feita à mente no sentido de trabalhar em ativa para passiva. (c) Uma pessoa estranha é mais
consequência de sua ligação com o corpo. (Freud, uma vez procurada como objeto: essa pessoa, em
1915/1996b, v. 14, p. 127). consequência da alteração que ocorreu na finali-
dade pulsional, tem de assumir o papel de sujeito.
Um estímulo que provém de dentro do corpo e
atua no psiquismo – em 19153, as pulsões são divi- Aqui, a fase c corresponde ao masoquismo e a fase
didas em dois grupos: as pulsões do ego e as pulsões b corresponde à pulsão sádica na neurose obsessiva.
sexuais. São constituídas por quatro elementos, nas Assim, ele ainda não reconheceu a existência de um
palavras de Freud (1915/1996b, v. 14): pressão, masoquismo primário, uma vez que o masoquismo
objeto, fonte e finalidade. De todos os elementos da seria sempre derivado do sadismo. Nessa época,
pulsão, o único que se manifesta na vida psíquica é todo masoquista era, na origem, sádico: aconteceu
a finalidade (FREUD, 1915/1996b, v. 14, p. 127), ou que aquilo que era voltado para o exterior (causar
seja, a satisfação. dor) retornou para o ego do individuo (necessidade
O movimento pulsional pode ser descrito da se- de ser torturado, de sentir dor). Obviamente, “não é
guinte maneira: há uma excitação na fonte, no ór- a dor em si que é fruída, mas a excitação sexual con-
gão, de uma determinada força e por isso exige uma comitante” (FREUD, 1915/1996b, p.134). Então, no
ação. A pulsão elege um objeto. Uma ação deter- masoquismo, a pulsão sádica sofreria, ao mesmo
minada vai ao encontro desse objeto, que é o meio tempo, reversão ao seu oposto e retorno ao próprio
para atingir o fim do circuito pulsional, diminuindo eu. Freud comenta também que uma criança não
(nunca interrompendo) a excitação na fonte. Freud percebe sua tendência sádica, mas quando esta ten-
isolou essas metamorfoses pulsionais em quatro dência se transforma em masoquista, a dor causa
sensações concomitantes de prazer. A finalidade de
sentir dor pode facilmente transformar-se em cau-
3 Em 1920, com Além do Princípio do Prazer, Freud reformu- sar dor pela identificação masoquista do sujeito ao
la os conceitos de pulsões sexuais e pulsões do ego para objeto sofredor.
pulsões de vida e pulsões de morte.
No texto Uma criança é espancada, Freud como pulsões de vida, pois direcionam o sujeito à
(1919/1996d, v. 17) discute uma possível gêne- continuidade de si através da reprodução: “as pul-
se das perversões sexuais. Apresenta a fantasia de sões eróticas, que buscam combinar cada vez mais
espancamento que encontrou na análise de alguns substância viva em unidades cada vez maiores, e as
dos seus pacientes para ilustrar a polimorfia per- pulsões de morte, que se opõem a essa tendência e
versa encontrada na infância. A fantasia nas meni- levam o que está vivo de volta a um estado inorgâni-
nas parte de um posicionamento edipiano normal, co” (Freud, 1933/1996f, v. 22, p. 109)
enquanto que nos meninos, a fantasia parte de uma No segundo capitulo de Esboço de Psicanálise,
posição invertida em que os meninos tomam o pai Freud (1940/1996g, v. 23, p. 161) esclarece a fusão
como objeto de amor. Entretanto, é importante as- entre pulsão de vida e de morte, haja vista que as
sinalar que mesmo existindo diferenças entre o pulsões de preservação da espécie ou sexuais, tam-
menino e a menina, a fantasia de espancamento em bém estão ligadas à pulsão agressiva:
ambos remete à ideia de que ser espancado é ser
amado. Isso ratifica o modo como a psicanálise con- Decidimos presumir a existência de apenas duas
cebe a satisfação em ser dominado: trata-se de um pulsões básicas, Eros e a pulsão destrutiva. (O
corpo erogenizado e articulado às representações contraste entre as pulsões de autopreservação e
mentais inconscientes. a preservação da espécie, assim como o contraste
entre o amor do ego e o amor objetal, incide den-
tro de Eros) (Freud, 1940/1996g, v. 23, p. 161).
Terceiro momento da teoria das pulsões (1920 – 1940)
É observável no sadismo e no masoquismo que
Em 1920, Freud deu início a uma formulação de as pulsões de vida e de morte estão amalgamadas.
novos conceitos e mecanismos psíquicos ao ouvir Na obra do Marquês de Sade (2008, pp. 70-71),
na clínica relatos sobre fenômenos como o sadismo identificamos uma apologia aos prazeres do sexo,
e masoquismo. Essa escuta o levou a conceber que no entanto, uma aversão à reprodução: “observa
o homem não anseia apenas o próprio “bem”. Em este preceito, minha querida, pois, afirmo, tenho
Além do Princípio do Prazer (1920/1996e, v. 18), o um tal horror pela propagação que deixaria de ser
psicanalista desvenda o mecanismo de compulsão à tua amiga a partir do instante em que estivesses
repetição afirmando que no psiquismo há uma ten- grávida”.
dência a repetir que está para além do princípio do Freud (1923/1996h, v. 19, p. 59) afirma que “as
prazer. pulsões de morte são, por sua natureza, mudas, e
A título de ilustração, o autor cita os sonhos que que o clamor da vida procede, na maior parte, de
revivem momentos traumáticos, pois não há apa- Eros.” E acrescenta em nota de rodapé: “segundo
rentemente uma satisfação pulsional prazerosa em essa concepção, é mediante a intervenção de Eros
reviver uma situação dolorosa. Também observou que as pulsões destrutivas que são dirigidas para
a brincadeira que denominou de “fort-da”, em que o mundo externo foram desviadas do eu (self)”.
a criança joga um objeto para longe de sua visão e Também afirma que “Só a partir da ligação entre as
depois o recupera com intenso prazer, simulando a duas pulsões, amalgamadas, é que a pulsão de mor-
ausência e o retorno da mãe, entretanto, a ausência te se faz ver, a partir do momento em que direcio-
é simulada muito mais frequentemente do que o re- na a agressividade para o mundo externo”. Assim, é
torno, assim, também não haveria prazer em revi- constatável que, de alguma maneira, o princípio do
ver a ausência materna. prazer seria uma manifestação da pulsão de mor-
Nesse artigo, ele reformula os conceitos de pul- te, visto que o prazer seria a redução das tensões
são do ego (ou de autoconservação) e pulsão sexual, do organismo, ou ainda a inexistência de tensões,
visto haver pulsões ambíguas no ego e as pulsões levando a um estado praticamente inanimado, se-
sexuais também servirem à conservação do sujeito. melhante aos feitos da pulsão de morte.
Assim, as pulsões do ego são entendidas como pul- O conceito de pulsão de morte muda a compre-
sões de morte, uma vez que buscam levar o sujeito ensão do masoquismo, enunciada de maneira tími-
ao mesmo estado inicial inanimado das coisas: a da neste momento. Freud (1920/1996e, v. 18, p. 65)
morte, o inorgânico. As pulsões sexuais funcionam especula:
masoquismo feminino e masoquismo moral. O ma- de Nero em corpo de Prina, não o posso conce-
soquismo erógeno tem traços biológicos e constitu- ber sem uma pele (SACHER-MASOCH, 2008, p.
cionais e seria o pano de fundo para os outros dois 61).
tipos. No masoquismo erógeno primário, parte da
pulsão de morte, que é destruidora, não pôde ser Assim, é possível verificar que tanto o sádico
desviada para o exterior (sadismo) e permaneceu quanto o masoquista possuem um objeto fetiche: a
presa, ou seja, a pulsão retornou ao próprio eu, com dor. Torturar ou ser torturado têm valor de fetiche
o auxilio da excitação sexual, demonstrando que para eles. Freud (1927/1996j, v. 21) elucida que o
ocorre uma fusão entre as duas classes de pulsão. O fetiche é um objeto eleito pelo perverso para subs-
masoquismo feminino possui fantasias de ser amor- tituir o falo. O objeto fetiche garante a satisfação,
daçado, espancado, amarrado, etc. Essas fantasias atesta que o gozo pleno é possível, uma vez que ele é
demonstram que o masoquista deseja ser tratado a encarnação do objeto que preenche a falta consti-
como uma criança travessa, mas também como uma tucional do Sujeito. Com este artigo de 1927 acerca
mulher (ser castrado, ser copulado, dar à luz). do fetichismo, pode-se entender como concluídas as
Freud escreve mais um artigo importante para a principais ideias freudianas sobre as perversões.
compreensão das perversões em 1927, no qual re-
flete sobre o fetichismo e conclui que o fetiche é um
substituto para o pênis feminino, em especial o da Considerações finais
mãe:
A necessidade de dizer o que é a perversão mo-
é como se a última impressão antes da estranha e tivou muitos autores a pesquisarem e teorizarem
traumática fosse retida como fetiche. Assim, o pé sobre ela. Como vimos, a psiquiatria foi uma das en-
ou o sapato devem sua preferência como fetiche – carregadas de estudar, classificar, e até mesmo de
ou parte dela – à circunstância de o menino inqui- curar a perversão, embora sem êxito. Roudinesco
sitivo espiar os órgãos genitais da mulher a partir (2008) reflete que não há nada mais perverso do
de baixo, das pernas para cima; peles e veludo – que aquela moral que visa domesticar as paixões
como por longo tempo se suspeitou – constituem humanas, sugerindo que o discurso que pretendia
uma fixação da visão dos pelos púbicos, que deve- exterminar a perversão não era menos perverso do
ria ter sido seguida pela ansiada visão do membro que ela.
feminino; peças de roupa interior, que tão frequen- Tanto a psiquiatria clássica quanto a contem-
temente são escolhidas como fetiche cristalizam o porânea parecem não apresentar grandes avanços
momento de se despir, o último momento em que na compreensão e entendimento do fenômeno.
a mulher ainda podia ser encarada como fálica Percebe-se que, em relação ao Psychopathia Sexualis
(FREUD, 1927/1996j, v. 21, p. 157-158). de Krafft-Ebing, o DSM – IV, apresentam poucas
evoluções nos esclarecimentos sobre o sadismo e
Podem-se tomar como exemplo as peles usadas masoquismo.
pela personagem Wanda, na obra A Vênus das Peles, Assim, ao percorrer o estudo do sadismo e do
de Masoch, que causavam verdadeira excitação em masoquismo, foi possível compreender que quem
Severin: “é dessa forma que eu esclareço também o reabilitou a presença da perversão – enquanto face
significado simbólico da pele como atributo do po- humana do mal incontornável4 – à civilização foi
der e da beleza” Sigmund Freud. Para ele, a agressividade não deve-
Mais adiante, o personagem Severin fala de seu ria ser exterminada, e nem poderia5.
peculiar desejo:
Freud, S. (1996k). O mal estar na civilização (1930). In Roudinesco, E. (2008). A parte obscura de nós mesmos:
S. Freud, Sigmund. Edição standard brasileira das uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar.
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio
Sacher-Masoch, L. V. (2008). A Vênus das Peles. Trad.
de Janeiro: Imago.
Saulo Krieger. Introdução: Flávio Carvalho Ferraz.
Godino-Cabas, A. (2010). O sujeito na psicanálise de Freud São Paulo: Hedra.
a Lacan: da questão do sujeito ao sujeito em questão.
Sade, Marquês. (2006). Os 120 dias de Sodoma. São Paulo:
Rio de Janeiro: Zahar.
Iluminuras.
Krafft-Ebing, R. V. (1965). Psychopathia Sexualis: with es-
Sade, Marquês. (2008). Filosofia na alcova. São Paulo:
pecial reference to the antipathic sexual instinct. New
Iluminuras.
York: Bell Publishing Company.
Valas, P. (1990). Freud e a perversão. Rio de Janeiro: Jorge
Krafft-Ebing, R. V. (2000). Psychopathia Sexualis: as
Zahar Editor.
histórias de caso. São Paulo: Martins Fontes.