2. A fé constitui um certo antegozo daquele conhecimento que nos fará felizes no futuro. Por isso diz o Apóstolo São Paulo na Epístola aos Hebreus (11, 1) que a fé constitui "a substância das coisas que se esperam", como que fazendo já viverem em nós as coisas esperadas, ou seja, a felicidade futura, à guisa de prelúdio. O Senhor ensinou que este conhecimento que nos tor- na felizes tem por objeto duas coisas: a divindade da Santíssima Trindade e a humanidade de Jesus Cristo. Eis por que, em se dirigindo ao Pai, Jesus exclamou (Jo, 17, 3): "A vida eterna con- siste no seguinte: que conheçam a Ti, Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste". Em conseqüência, é em torno destas duas verdades que gira todo o conhecimento da fé: a divindade da Santíssima Trin- dade e a humanidade de Jesus Cristo. Tal não é de admirar, visto que a humanidade de Cristo constitui o caminho pelo qual se chega à Divindade. Por isso é necessário, para os que peregrinam no mundo, conhecer a via pela qual se possa atingir a meta. Por outra parte, na pátria ceieste a ação de graças a Deus não seria suficiente, se os santos não conhecessem o ca- minho pelo qual alcançaram a salvação. Eis por que o Senhor Jesus Cristo disse aos seus discípulos (Jo, 14, 4): Conheceis para onde vou, conheceis também o caminho". No que concerne à Divindade, importa conhecer três coisas: primeiramente a unidade da essência divina, em segundo lugar a trindade das Pessoas, em terceiro lugar os efeitos, ou seja, a obra da criação produzida pela Divindade.
CAPÍTULO III — Deus existe
3. Quanto à unidade da essência divina, a primeira
coisa a crer é que Deus existe, o que aliás é óbvio à própria razão. Efetivamente, observamos que tudo quanto se move é movido por outros. Assim, os seres inferiores são movidos pelos superiores, da mesma forma como os elementos são movidos pelos corpos celestes. Nos elementos terrestres, por sua vez, o que é mais forte move o que é mais fraco. Também nos corpos celestes, os inferiores são movidos pelos superio- res. Ora, é impossível que este processo se prolongue até ao infinito. Com efeito, se tudo aquilo que é movido por outro é como que um instrumento da primeira causa movente, caso não existisse uma primeira causa movente, todas as causas motoras seriam instrumentos. Se procedermos até ao infinito na sucessão das causas motoras, não existe uma primeira cau- sa motora. Nesta hipótese, todos os infinitos que movem e que são movidos serão instrumentos. Ora, até mesmo os não- letrados percebem que seria irrisório afirmar que os instru- mentos não são movidos por algum agente principal. Equi- valería isto aproximadamente a afirmar a possibilidade de fazer uma caixa ou uma cama com a serra e o machado, porém sem a intervenção de um carpinteiro. Em conseqüência, é indispensável que haja uma primeira causa motora, superior a todas as outras. A esta causa motora denominamos Deus. STO. TOMÁS DE AQUINO
CAPÍTULO IV — Deus é imóvel
4. Daqui se infere ser necessário que o Deus que põe em
movimento todas as coisas é imóvel. Com efeito, por ser a pri- meira causa motora, se Ele mesmo fosse movido, sê-lo-ia ou por si mesmo ou por outro. Ora, Deus não pode ser posto em movimento por outra causa motora, pois neste caso haveria uma outra causa anterior a Ele, com o que já não seria Ele a primeira causa motora. Se fosse movido por si mesmo, teori- camente isto poderia ocorrer de duas maneiras: ou sendo Deus, sob o mesmo aspecto, causa e efeito ao mesmo tempo, ou sendo Ele, sob um aspecto, causa de si mesmo, e, sob outro, efeito. Ora, a primeira hipótese não pode ocorrer, pois tudo o que é movido está em potência, ao passo que o que move está em ato (na qualidade de causa motora). Se Deus fosse sob um e mesmo aspecto causa e efeito ao mesmo tempo, seria neces- sariamente potência e ato sob o mesmo aspecto é ao mesmo tempo, o que é impossível. Tampouco pode-se verificar a segunda hipótese acima apontada. Pois, se Deus fosse sob um aspecto causa motora, e sob outro efeito movido, já não seria a primeira causa em virtude de si mesmo. Ora, o que é por si mesmo, é anterior ao que não o é. Logo, é necessário que a primeira causa motora seja total- mente imóvel. 5. A mesma argumentação pode ser feita a partir das causas motoras e dos defeitos existentes no universo criado. Com efeito, parece que todo o movimento procede de uma causa imóvel, a qual não é movida segundo o mesmo tipo de movimento. Assim, observamos que os processos de alteração, de geração e de corrupção verificados no reino criado inferior se reduzem ao corpo celeste (o sol) como à sua primeira causa motora, a qual por sua vez não é movida por nenhuma outra situada dentro da mesma esfera, uma vez que não pode ser gerada, nem corrompida, nem alterada. Conclui-se, portanto, necessa- riamente que Aquele que constitui o princípio primário de todo movimento é totalmente imóvel. CAPÍTULO V — Deus é eterno
6. Do exposto se infere outrossim que Deus é eterno. Pois,
se algo começa a ser e deixa de ser, isto ocorre porque passa por movimentos ou alterações. Ora, já ficou demonstrado (cf. capítulo IV) que Deus é totalmente imóvel, conseqüentemente é também eterno.
CAPÍTULO VI — Deus existe necessariamente por si mesmo
7. Com isto se demonstra necessário que Deus exista. Pois
tudo aquilo que uma vez pode existir e outra vez não existir, é mutável. Já demonstramos, porém, que Deus é totalmente imutável. Portanto, não é possível que Deus uma vez exista e outra vez não exista. Ora, tudo aquilo que existe sem possibi- lidade de não existir, existe necessariamente, visto ser a mesma coisa o existir necessariamente e o ser impossível não existir. Portanto, a existência de Deus constitui uma necessidade. 8. Além disso, tudo o que pode existir e não existir, ne- cessita de uma outra causa que o faça passar da não-existência para a existência. Ora, tal causa lhe é necessariamente anterior. Nada há, porém, antes de Deus. Portanto, é impossível que Deus uma vez exista e outra vez não exista, senão que a sua existência constitui uma necessidade. Todavia, visto haver al- gumas coisas necessárias que têm a causa da sua necessidade, a qual necessariamente é anterior às mesmas, Deus, por ser o princípio anterior a tudo quanto existe, não tem, fora de si mes- mo, nenhuma causa da sua necessidade de existir. Daqui se infere a necessidade de que Deus exista por sí mesmo.
CAPÍTULO VII — Deus existe sempre
9. Disto se conclui que Deus existe sempre. Pois tudo
quanto existe necessariamente existe sempre, já que uma coisa cuja não-existência é impossível não pode existir, e por conse- quência nunca pode deixar de existir. Ora, Deus existe neces- sariamente, segundo já foi demonstrado (cf. capítulo VI). Por- tanto, Deus existe sempre. 10. Além disso, nada começa ou deixa de existir a não ser em virtude de algum movimento ou de alguma alteração. Já demonstramos, porém, que Deus é absolutamente imutável (cf. capítulo IV). Em conseqüência, é impossível que tenha uma vez começado a existir, ou que um dia deixe de existir. 11. Há mais. Tudo aquilo que não existiu sempre, se um dia começa a existir, carece de uma outra causa que o traga à existência, visto que nada pode passar por si mesmo da potência ao ato, do não-ser ao ser. Deus, porém, não pode ter nenhuma causa fora de si mesmo, por ser o primeiro ente, e a causa é anterior ao efeito. E portanto necessário que Deus tenha existido sempre. 12. Finalmente, alguém que não existe em virtude de al- guma causa extrínseca, existe por si mesmo. Ora, Deus não tem a causa do seu existir fora de si mesmo, pois se assim fosse esta causa lhe seria anterior. Logo, Deus tem o ser de si mesmo e por si mesmo. Ora, o que existe por si mesmo existe sempre e necessariamente. Conseqüentemente, Deus existe sempre.
CAPÍTULO VIII — Em Deus não há sucessão temporal
13. De quanto expusemos até aqui evidencia-se que não
há em Deus qualquer sucessão temporal, senão que Deus exis- te totalmente e simultaneamente, A sucessão temporal ocorre exclusivamente nas coisas que de um modo ou de outro estão sujeitas ao movimento, de vez que são o antes e o depois no movimento que constituem a sucessão temporal. Ora, Deus não está em absoluto sujeito ao movimento, conforme ficou demonstrado (cf. capítulo IV). Donde se infere que não há n'Ele qualquer sucessão de tempo. Deus existe em sua tota- lidade e simultaneamente. 14. Além disso, se o ser de alguma coisa não existir total e simultaneamente, necessariamente algo dela pode desapare- cer, e algo de novo lhe pode ocorrer. Desaparece o que nela é passageiro, ocorrendo-lhe de novo o que se espera no futuro. Deus, porém, nada pode perder, tampouco nada de novo pode ocorrer-lhe, por ser Ele imóvel. Por isso o seu ser existe na totalidade e simultaneamente. A partir desses dois argumentos depreende-se que Deus é eterno em toda a propriedade do termo. Eterno no sentido estrito da palavra é aquilo que existe sempre, e cujo ser existe totalmente e ao mesmo tempo. E o que ensina Boécio ao dizer que "a eternidade consiste na posse total, simultânea e perfeita da vida sem fim" (A Consolação da Filosofia, livro V, prosa 6a).
CAPÍTULO IX — Deus é simples
15. Do exposto segue também que a causa primeira motora
é necessariamente simples. Pois em tudo quanto é composto há dois elementos que estão um para o outro como a potência está para o ato. Ora, na primeira causa motora, se for totalmente imóvel, é impossível que haja potência e ato, pois tudo o que está em potência é passível de movimento. Conclui-se daqui a impossibilidade de a primeira causa motora ser composta. 16. Além disso, todo ser composto tem necessariamente um outro que o antecede, uma vez que os elementos de um composto são necessariamente anteriores ao próprio composto. Aliás, ao observarmos a ordem dos compostos, constatamos que os elementos mais simples vêm antes, uma vez que os ele- mentos mais simples precedem por natureza aos corpos mistos ou compostos. Entre os próprios elementos, aliás, o primeiro é o fogo, o mais simples de todos. A todos os elementos precede o corpo celeste (o sol), o qual reveste maior simplicidade, isento de qual- quer alteração. Também daqui se infere que o primeiro dentre os seres deve ser, por necessidade, totalmente simples.
CAPÍTULO X — Deus é a sua própria essência
17. Conclui-se outrossim que Deus é a sua própria
essência. Pois a essência de uma coisa consiste naquilo que significa a sua definição. Ora, isto é idêntico à coisa da qual constitui a definição, a não ser acidentalmente, isto é, enquanto à coisa definida ocorre algo que vai além da sua definição. Assim, ao homem pode acrescentar-se o ser branco, além da sua definição de animal racional e mortal. Daí que dizer animal racional e mortal equivale a dizer homem, porém nãoé a mesma coisa que dizer homem branco, considerando-se o seu ser branco. Por isso, em todas as coisas que não constam de dois ele- mentos, dos quais um é por si mesmo e o outro acidental- mente, a essência das mesmas coincide necessária e totalmente com elas mesmas. Em Deus, que é simples, conforme ficou demonstrado (cf. capítulo IX), não existem dois elementos, dos quais um seria por si mesmo e o outro acidentalmente. Em conseqüência, é necessário que a sua essência seja abso- lutamente idêntica a Ele mesmo. 18. Além do mais, em todas as coisas em que a essência não coincide totalmente com o ser, encontra-se algo de potência e algo de ato, pois a essência está formalmente para a coisa da qual é a essência da mesma forma que o ser-homem está para o homem. Sendo que em Deus não há potência e ato, mas ex- clusivamente ato, Ele mesmo constitui a sua essência.
CAPÍTULO XI — A essência de Deus coincide com o seu ser
19. É necessário outrossim que a essência de Deus
coincida com o seu ser. Com efeito, em todas aquelas coisas em que a essência difere do ser, necessariamente há uma diferença entre o seu ser e a sua essência, pois é em virtude do seu ser que se diz existir uma coisa, ao passo que é em virtude da sua essência que se diz o que tal coisa é. Daqui que a definição, ao manifestar a essência de uma coisa, demonstra o que ela é. Ora, em Deus não há diferença entre o seu ser e a sua existência, visto não ser Ele um ser composto, mas simples (cf. capítulo IX). N'Ele, portanto, coincidem totalmente a essência e o existir. 20. Além disso, ficou demonstrado (no capítulo X) que Deus é puro ato, sem qualquer vestígio de potencialidade. Con- sequentemente, é necessário que a sua essência seja o ato último, pois todo ato que se refere ao último está em potência para o ato último. Acontece que o ato último é o próprio ser. Uma vez que todo movimento consiste em passar da potência ao ato, neces- sariamente o ato último será aquele para o qual tende todo movimento. E uma vez que o movimento natural tende àquilo que é desejado naturalmente, é necessário que o ato último seja aquele que todos os seres desejam. Tal é o ser. Necessariamente, por conseguinte, a essência divina, por ser o ato puro e último, coincide com o próprio ser de Deus.
CAPÍTULO XII — Deus não constitui uma espécie
enquadrada em um gênero
21. Conclui-se que Deus não constitui uma espécie enqua-
drada em algum gênero. Com efeito, é a diferença somada ao gênero que constitui a espécie, donde segue que a essência de qualquer espécie contém algo a mais com respeito ao gênero. Entretanto, o próprio ser, que é a essência divina, nada contém em si que lhe possa ser acrescentado. Por conseguinte, Deus não constitui uma espécie englobada em algum gênero. 22. Analogamente, já que o gênero contém diferenças, em qualquer composto de gênero e diferenças existe ato mesclado à potencialidade. Já mostramos, entretanto, que Deus é puro ato, sem vestígio de potencialidade. Consequentemente, a sua essência não se constitui de gênero e diferenças, e logicamente não está englobada em nenhum gênero.
CAPÍTULO XIII — E impossível que Deus seja um
gênero de alguma coisa
23. Cumpre agora mostrar que tampouco é possível que
Deus seja um gênero. O gênero permite saber o que é uma determinada coisa, não, porém, que a mesma existe, uma vez que são as diferenças específicas que constituem as coisas em seu próprio ser. Ora, o que Deus é, é o próprio ser. Logo, é impossível que Ele seja um gênero. 24. Todo gênero é subdividido por uma série de diferenças específicas. Ao contrário, o próprio ser não comporta diferenças, pois estas não participam do gênero a não ser acidentalmente, enquanto as espécies constituídas pelas diferenças participam do gênero. Não pode haver qualquer diferença que não participe do ser, porquanto o não-ser não constitui diferença específica STO. TOMAS D£ AQUINO
de nada. Por conseqüência, é impossível que Deus seja o g êi
comum que se predica de várias espécies.
CAPÍTULO XIV — Deus não constitui uma espécie
predicável de uma pluralidade de indivíduos
25. Tampouco é possível que Deus seja como que uma
espécie predicável de uma pluralidade de indivíduos. Com efei- to, os diversos indivíduos que coincidem em uma essência de espécie distinguem-se por alguns elementos que vão além da essência da espécie, assim como os homens coincidem no "ser- homem" ("humanidade"), diferenciando-se, entretanto, um do outro por aquilo que vai além do conceito de homem. Tal não pode ocorrer em Deus, porquanto Deus é a sua própria essência, conforme ficou demonstrado (no capítulo X). Por conseguinte, é impossível que Deus seja uma espécie predicável de uma plu- ralidade de indivíduos. 26. Vários indivíduos compreendidos sob uma espécie di- ferem segundo o ser, e todavia coincidem em uma só essência. Por conseguinte, onde quer que haja vários indivíduos sob uma só espécie, necessariamente o ser difere da essência da espécie. Em Deus, contudo, o ser e a essência identificam-se (cf. capítulo X), sendo portanto impossível que Ele seja uma espécie predi- cável de uma pluralidade de indivíduos.
CAPÍTULO XV — Deus é necessariamente uno
27. Evidencia-se também que necessariamente só pode ha-
ver um Deus. Com efeito, na hipótese de haver vários deuses, estes se chamariam tais ou em sentido equívoco ou em sentido uní- voco. Se em sentido equívoco, a hipótese não vinga, porquan- to nada impede que outros chamem Deus ao que nós deno- minamos pedra. Se for em sentido unívoco, será necessário que esses pretensos deuses convenham ou no gênero ou na espécie. Ora, já ficou demonstrado (cf. capítulos XIII e XIV) que Deus não pode ser nem um gênero nem uma espécie a englobar uma pluralidade de indivíduos. Logo, é impossível a existência de mais de um Deus. 28. É impossível atribuir a mais de um aquilo que indivi- dualiza a essência comum. Por conseguinte, embora possa haver muitos homens, é impossível que deste homem concreto possa existir mais do que um exemplar. Se, porém, a essência é indi- vidualizada por si mesma e não por algo diferente, é impossível atribuí-la a mais de um indivíduo. Ora, é sabido que a essência divina se individualiza por si própria, visto que em Deus não há diferença entre a essência e o ser, uma vez que ficou de- monstrado (no capítulo X) que Deus é a sua própria essência. Logo, é impossível existir mais do que um Deus. 29. Há uma dupla maneira pela qual uma forma pode ser múltipla: uma é pelas diferenças, como a cor em diversas va- riantes da mesma; a outra é pelo sujeito, como a brancura. Por conseguinte, toda forma que não pode ser multiplicada através de diferenças, se não for uma forma existente no sujeito, não pode ser multiplicada. Assim, por exemplo, a brancura, se não se concretizar num sujeito, será necessariamente uma só. Acon- tece que a essência divina é o próprio ser, o qual não comporta diferenças, conforme demonstramos acima (cf. capítulo XI). Em conseqüência, já que o próprio ser divino é como que uma forma subsistente em si mesma, é impossível que a essência de Deus seja mais do que uma, sendo portanto impossível a existência de mais do que um Deus.
CAPITULO XVI — E impossível que Deus seja corpo
30. Partindo dessas premissas, toma-se também evidente
ser impossível que Deus seja corpo. Efetivamente, todo corpo é um conglomerado de partes múltiplas. Aquele que é total- mente simples não pode, por conseguinte, ser um corpo. 31. Como é óbvio, nenhum corpo é capaz de colocar outros em movimentos, a não ser movendo-se a si mesmo. Se a primeira causa motora, que é Deus, é absolutamente imóvel, conclui-se para a impossibilidade de ser Ele um corpo. CAPÍTULO XVII — É impossível que Deus seja uma forma do corpo ou uma força no corpo
32. Tampouco é possível que Deus seja uma forma do
corpo ou uma força no corpo. Com efeito, todo corpo é móvel, e, ao mover-se, move-se também, ao menos acidentalmente, o que nele está. Entretan- to, a primeira causa motora não pode mover-se, nem por si mesma nem acidentalmente, por ser ela necessariamente imó- vel, conforme ficou comprovado no capítulo IV. Conseqüen- temente, é impossível que Deus seja uma forma ou uma força no corpo. 33. Todo ser ou coisa que move outro, para poder fazê-lo, deve necessariamente ter domínio sobre a coisa movida. De fato, observa-se que, quanto mais a força motora superar a da coisa movida, tanto mais rápido é o movimento. Ora, a que é a primeira de todas as causas motoras deve necessariamente ter o máximo domínio sobre as coisas movidas. Tal não poderia acontecer se a causa motora primária estivesse de qualquer for- ma subordinada à coisa movida, o que necessariamente ocor- rería se fosse a sua forma ou a sua força. Deduz-se, por conseguinte, que a primeira causa motora não pode ser um corpo, nem uma força no corpo, nem uma forma do mesmo. Eis por que Anaxágoras postulou uma inte- ligência capaz de comandar e de pôr em movimento tudo quanto existe (cf. Aristóteles, Física, livro VIII, capítulo V).
CAPÍTULO XVIII — Deus é infinito na sua essência
34. Do exposto pode-se também inferir que Deus é
infinito. Não por via de privação, isto é, numa linha de quantidade, como quando se denomina infinito o que, em razão do seu gênero, deveria ter conaturalmente fim, mas na realidade não tem Deus é infinito por via de negação, isto é, no sentido de que não tem nenhum limite. Pois todo ato é finito em razão da potencialidade, a qual é uma força receptiva. Com efeito, cons- tatamos que as formas são limitadas, segundo a potência da mações contrárias aos dogmas da Igreja, Inicia-se assim a cris- tianização da filosofia aristótélica, o que só veio a se tornar possível graças ao espírito analítico, à capacidade de ordenação metódica e à habilidade dialética de Tomás de Aquino, que ele aliava a um profundo sentimento de fé cristã.
A PERFEIÇÃO DIVINA
O ponto de partida para a construção do tomismo — e a
conseqüente cristianização de Aristóteles — parece residir na hábil transformação que Santo Tomás operou na distinção aris- totélica entre essência e existência. Aristóteles, nos Segundos Ana- líticos, distingue entre as questões "o que é um ser?" e "esse ser existe?”. A resposta à primeira pergunta constitui a definição de uma essência; mas, para Aristóteles, uma definição não im- plica jamais a existência, lógica ou empírica, do definido. Assim, em Aristóteles, a distinção entre essência e existência é pura- mente conceituai, lógica. Tomás de Aquino, ao contrário, inter- preta aquela distinção como ontológica, real. Com isso, altera num ponto básico o conteúdo da filosofia aristótélica, embora mantenha seu arcabouço racional. Mas é o bastante para torná-la capaz de servir de fundamentação racional para os dogmas da revelação cristã, defender a ortodoxia da Igreja e dar combate às correntes consideradas heréticas. Fazendo apelo ao princípio do realismo ontológico (segundo o qual "tudo o que está contido na definição de uma coisa não pertence a essa coisa essencial- mente, mas acidentalmente por outra"), Tomás de Aquino con- clui que a definição da essência das criaturas não implica sua existência e, portanto, elas não existem por si mesmas, e sim devido a uma outra realidade (ab alio). A distinção real entre essência e existência torna-se, assim, o fundamento metafísico da contingência das criaturas humanas e permite introduzir no peripatetismo a idéia de criação. Apenas em Deus havería identidade entre essência e exis- tência. Deus existe por si e Ele mesmo teria se revelado a Moisés, afirmando: "Eu sou aquele que sou". Deus seria, assim, criador de todas as coisas e fundamento de suas existências contingen- tes. Deus seria o puro ato de existir, não sendo uma essência qualquer — como o uno, o bem ou o pensamento — à qual se atribuiría a existência. Ele não seria um modo eminente de existir — como a eternidade, a imutabilidade ou a necessidade, que Lhe podem ser atribuídas — mas o próprio existir, tomado em si mesmo e ao qual nada pode ser acrescentado, pois isso seria pressupor uma limitação que não Lhe cabe. {Desse modo, Deus não se identifica a seus atributos; estes é que, ao contrário, de- vem ser referidos a Ele, pois se é o existir puro, Ele é o ser pleno, nada podendo ser-Lhe atribuído e nada Lhe faltando. Deus é imóvel e eterno^ pois não é possível conceber Nele ne- nhuma transformação. Deus é a perfeição pura. ' ir As VIAS QUE LEVAM A DEUS
Segundo Santo Tomás a razão pode provar a existência
de Deus através de cinco vias, todas de índole realista: consi- dera-se algum aspecto da realidade dada pelos sentidos como o efeito do qual se procura a causa. A primeira fundamenta-se na constatação de que no uni- verso existe movimento. Baseado em Aristóteles, Santo Tomás considera que todo movimento tem uma causa, que deve ser exterior ao próprio ser que está em movimento, pois não se pode admitir que uma mesma coisa possa ser ela mesma a coisa movida e o princípio motor que a faz movimentar-se. Por outro lado, o próprio motor deve ser movido por um outro, este por um terceiro, e assim por diante. Nessas con- dições, é necessário admitir ou que a série de motores é in- finita e não existe um primeiro termo (não se conseguindo, assim, explicar o movimento), ou que a série é finita e seu primeiro termo é Deus. A segunda via diz respeito à idéia de causa em geral. Todas as coisas ou são causas ou são efeitos, não se podendo conceber que alguma coisa seja causa de si mesma. Nesse caso, ela seria causa e efeito ao mesmo tempo, sendo, assim, anterior e pos- terior, o que seria absurdo. Por outro lado, toda causa, por sua vez, deve ter sido causada por outra e esta por uma terceira, e assim sucessivamente. Impõe-se, portanto, admitir uma pri- meira causa não causada, Deus, ou aceitar uma série infinita e não explicar a causalidade. ( ' A terceira via refere-se aos conceitos de necessidade e pos- sibilidade. Todos os seres estão em permanente transformação, alguns sendo gerados, outros se corrompendo e deixando de existir.; Masfpoder ou não existir não é possuir uma existência necessária e sim contingente, já quelaquilo que é necessário não precisa de causa para existir. Assim, o possível não teria em si razão suficiente de existência e, se nas coisas houvesse apenas o possível, não havería nada. Para que o possível exista é ne- es s rio portanl que algo o faça existir. Ou seja: se alguma coisa existe é porque participa do necessário. Este, por sua vez, exige uma cadeia de causas, que culmina no necessário absoluto, ou seja, Deus. A quarta via tomista para provar a existência de Deus é de índole platônica e baseia-se nos graus hierárquicos de per- feição observados nas coisas. Há graus na bondade, na verdade, na nobreza e nas outras perfeições desse gênero. O mais e o menos, implicados na noção de grau, pressupõem um termo de comparação que seja absoluto. Deverá existir, portanto, uma verdade e um bem em si: Deus. A quinta via fundamenta-se na ordem das coisas. De acordo com o finalismo aristotélico adotado por Tomás de Aquino, todas as operações dos corpos materiais tenderíam a uni fim, mesmo quando desprovidos da consciência disso. A regularidade com que alcançam seu fim mostraria que eles não estão movidos pelo acaso; a regularidade seria intencional e desejada. Uma vez que aqueles corpos estão privados de conhecimento, pode-se concluir que há uma inteligência pri- meira, ordenadora da finalidade das coisas. Essa inteligência soberana seria Deus.