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O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE1

Étienne Balibar

O texto aqui reeditado – incluindo o original inglês, a tradução francesa clássica, bem como uma nova
tradução, um dossiê de textos complementares e um Glossário dos principais termos teóricos empregados – é,
incontestavelmente, um dos mais decisivos da filosofia moderna. É também um dos que introduzem com muita
agudez não somente a questão das dificuldades da tradução, mas também a do papel que os problemas de
língua, que o transporte de questões especulativas de um idioma para um outro, exercem na própria invenção
teórica2.

Trata-se do capítulo xxvii do Livro II do Ensaio Filosófico acerca do entendimento humano –


acrescentado a partir da 2ª edição (1694) à obra que Locke havia publicado em 1690 e que iria se tornar a
referência, reconhecida ou não, de todas as grandes «teorias do conhecimento» e «ciências da experiência da
consciência» na filosofia ocidental, desde os Novos Ensaios sobre o entendimento humano de Leibniz (que se
apresentam como um «diálogo» com suas formulações) até o Ensaio sobre a origem dos conhecimentos
humanos de Condillac, a Crítica da Razão Pura de Kant, os Essays on the Intellectual Powers of Man de Reid,
a Fenomenologia do espírito de Hegel e, mesmo, o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência de Bergson
e as Idéias orientadoras para uma fenomenologia de Husserl.

O capítulo «On Identity and Diversity» se constitui praticamente em um ensaio dentro do ensaio 3.
Mais do que um acréscimo4 destinado a responder, por um lado, às objeções que a crítica à idéia de uma alma
substancial havia suscitado e, por outro, às dificuldades que, aos olhos do próprio autor, a argumentação do
Ensaio introduzia, ele se desenvolve segundo uma ordem própria e propõe um conjunto de argumentos
destinados a resolver o «problema da identidade pessoal» que podem ser isolados de seu contexto. Nesta
condição, eles determinaram, até o presente, uma longa sucessão de debates – sobretudo na filosofia anglo-
saxã, para cuja originalidade eles contribuíram fortemente 5.

No entanto, no que nos concerne, e ainda que tenhamos tirado proveito desta autonomia para
destacar o tratado «Identidade e diferença» de uma retradução do conjunto da obra de Locke, à qual sem
dúvida se deverá proceder algum dia 6, não nos interessa tanto isolar a questão do «critério da identidade»,
quanto ressituá-la em seu contexto. E, com efeito, ao fazer da consciência (consciousness) o critério de

1
Prefácio a Étienne Balibar (apresentação, tradução e comentários). Identidade e diferença - a invenção da consciência.
Paris: Seuil, 2000, p. 9-101.
2
Desejamos agradecer aqui a todos aqueles que, em um momento ou em outro, se dispuseram a enriquecer este trabalho
com suas críticas e sugestões: Paulette Carrive, Yves Duroux, Françoise Kerleroux, Marc Parmentier, Jean-Michel Vienne e,
particularmente, Geneviève Brykman, que releu e comentou o conjunto de nossa primeira versão.
3
Ou, como passaremos a nomeá-lo, um «tratado». O outro desenvolvimento comparável (esboço de um «Tratado das
paixões») está no capítulo xxi do Livro II, Of Power, no centro do qual figura o conceito de uneasiness («mal-estar»,
«inquietude», ou mesmo «aflição» [souci]).
4
Por sugestão de seu amigo William Molyneux.
5
Ver levantamentos propostos por H. E. Allison, «Locke’s Theory of Personal Identity: a Re-examination», in Locke on
Human Understanding, Selected Essays edited by I. C. Tipton, Oxford University Press, 1977, e por J. Baillie, «Recent Work
on Personal Identity», in Philosophical Books 34, 1993, 193-206.
6
Ao concluir este trabalho, soubemos que M. Jean-Michel Vienne publicará proximamente, pela Librarie Vrin, uma nova
tradução dos Livros I e II do Ensaio.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 2

identidade pessoal (identity of person), Locke foi conduzido a revolucionar a própria concepção da
subjetividade, tanto em relação à idéia aristotélica de alma individual como «forma substancial» quanto em
relação à reivindicação cartesiana do «eu» existente e pensante. Esta revolução teórica – da qual ainda somos
tributários até mesmo em nossas críticas ao psicologismo, ao primado da consciência e ao imperialismo do
sujeito – é o momento decisivo da invenção da consciência como conceito filosófico, que tem em Locke o
grande protagonista. Por um lado, ela cristaliza suas diferentes implicações (possibilidade de uma experiência
interior com acesso direto à realidade mental, unificação da concepção clássica do tempo e da relação entre
consciência e responsabilidade). Por outro, ela já prepara o lugar onde, a partir de Hume, Kant e Hegel, vão se
situar as críticas da consciência de si como efeito de uma «ficção» da imaginação, como «paralogismo» da
razão pura, ou como figura do eu «tornado estrangeiro a si mesmo». Neste sentido, no mesmo momento em
que Locke inaugura o que se tornou para nós a primeira modernidade filosófica, ele já prepara as condições de
abertura de uma segunda modernidade.

Nas páginas que se seguem, nos daremos três objetivos, para introduzir a (re)leitura do tratado de
Locke e do dossiê que o acompanha:

1. devolver à invenção da consciousness, do self e da self-consciousness sua força de novidade,


demonstrando inicialmente como, na língua filosófica francesa e apesar dos esforços de seu tradutor, ela foi
obscurecida pela atribuição a Descartes de uma paternidade fictícia 7.

2. reinserir o tratado lockiano «Identidade e diferença» na trajetória da invenção européia da


consciência, da qual assinalaremos alguns episódios 8;

3. indicar como a conjunção das questões da identidade pessoal e do conhecimento pela Mind de suas
próprias operações se situa neste Ensaio – que ela, em contrapartida, permite compreender melhor, em sua
economia geral e em sua articulação de todo (em particular, a dimensão moral e política).

i. um enigma de tradução: o «expediente» de pierre coste9

Acreditávamos que Descartes era o primeiro dos grandes «filósofos da consciência». A França –
mesmo expatriada na Holanda – tinha esta glória. E, disso, tínhamos a confirmação nas célebres controvérsias
que, até bem recentemente, opuseram intérpretes (Gueroult, Alquié) radicalmente discordantes no que se
refere ao sentido e às propriedades da «consciência» cartesiana, mas unânimes em ler, no coração da
«meditação», uma teoria da identidade da consciência e do sujeito. Acreditávamos, também, saber (como
repetem livremente os dicionários de filosofia) que ele foi o introdutor do próprio termo de consciência, nessa
acepção que se designa como metafísica, mas também como psicológica, transcendental, epistemológica (ao

7
A posição que defendemos sobre o assunto já foi esboçada por outros autores, em particular por Francis Jacques em seu
prefácio à tradução do livro de Ryle, A Noção de espírito: «Mas, porque o autor se preocupa tão pouco em estabelecer, por
uma identificação precisa do Cogito, uma imputação eqüitativa de responsabilidades? […] Pois, na realidade, se ele
pretendesse apresentar a verdadeira figura histórica de seu adversário ele o teria podido, na pessoa de John Locke. Foi ele, e
não Descartes, que prescreveu o exame minucioso dos estados e operações da consciência […] É o filósofo anglo-saxão […]
que sustenta que o espírito pode ver ou olhar suas próprias operações à luz que elas emitem […]».
8
Para mais precisões sobre este ponto, cf. nosso artigo «Conscience», a ser publicado no Vocabulaire Européen des
Philosophies, organizado por Barbara Cassin, Seuil-Robert.
9
As páginas que seguem foram objeto, em 1992, na Universidade de Paris I, de uma primeira exposição, nas jornadas de
estudo «Traduzir filósofos», dirigidas por Olivier Bloch. Elas foram, em seguida, enriquecidas pelas observações de Catherine
Glyn-Davies, cujo insubstituível estudo deve ser consultado: Conscience as consciousness: the idea of self awareness in
French philosophical writing from Descartes to Diderot, The Voltaire Foundation, Oxford, 1990.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 3

preço de controvérsias bem conhecidas, quanto à equivalência e a compatibilidade destes termos), para
distingui-la da acepção dita «moral»10.

O primeiro ponto é decerto independente do segundo: não se poderia excluir absolutamente que
Descartes tenha concebido e, mesmo, colocado no centro de sua filosofia uma «coisa» que, só mais tarde,
identificamos àquilo que chamamos de consciência – desde que examinemos cuidadosamente o que distingue
suas teses das de Locke, ou de Kant, de Husserl, de Freud ou de Bergson. No entanto, a idéia de um conceito
anônimo ou pseudônimo é difícil de ser admitida: se Descartes houvesse elaborado uma doutrina da
consciência e de seu caráter fundador, sem lhe dar um nome, ou fornecendo-lhe um outro nome, como o
saberíamos? Se ele houvesse enunciado sua doutrina da consciência por meio de uma terminologia múltipla,
comportando diversos equivalentes parciais, disjuntos ou não, onde estaria, então, a demonstração de sua
articulação sistemática? A menos que invocássemos esta tautologia: sendo a filosofia de Descartes
essencialmente a da consciência, o sistema completo dos conceitos cartesianos constitui-se em sua descrição…

Inversamente, a idéia de uma introdução, por parte de Descartes, do termo de consciência em filosofia
não implica que Descartes mereça a apelação de filósofo da consciência ou do primado da consciência11: é bem
possível, entretanto, que ela deva seu efeito de verossimilhança a uma leitura da filosofia cartesiana cuja
antiguidade e importância histórica seria fútil contestar, mas que seria útil verificar.

Descartes não é o «introdutor» ou o «inventor» da consciência. E duvidamos que se possa ver nele,
típica ou arquetipicamente, um «filósofo» (do primado) da consciência». Nem no sentido psicológico do termo
(mas onde começam e onde terminam a psicologia e o psicologismo?), nem no sentido metafísico ou
transcendental. Esta desilusão, nós não a devemos, primeiramente, a uma argumentação filosófica (mesmo que
alguns trabalhos contemporâneos, inspirados em Lacan, em Canguilhem e em Wittgenstein, pudessem nos
preparar para isto), mas a um encontro filológico: o de Pierre Coste, tradutor em 1700 do Ensaio acerca do
entendimento humano de Locke. A tradução de Coste é, hoje ainda, a única completa em francês. Felicitemo-
nos, ao menos desta vez, por esse arcaísmo, já que ele reserva a cada estudante, a qualquer leitor francês do
Ensaio, a possibilidade de descobrir estas duas notas do tradutor, na página 264, a respeito do § 9 do capítulo
xvii do livro II12:

«(1) O moi [eu/mim] de M. Pascal me autoriza, de alguma forma, a me servir da palavra soi [si], soi-
même [si mesmo], para exprimir o sentimento que cada um tem, em si, de que é o mesmo; ou, para dizê-
lo melhor, sou forçado a isto por uma necessidade indispensável; pois não poderia exprimir de outra
maneira o sentido do autor, que tomou a mesma liberdade em sua língua. As perífrases que poderia
empregar nessa ocasião confundiriam o discurso e o tornariam, talvez, inteiramente ininteligível.»

«(2) A palavra inglesa é consciousness, que se poderia exprimir em latim por conscientia, si sumatur
pro actu illo hominis quo sibi est conscius. […] E é nesse sentido que os latinos freqüentemente
empregaram a palavra, como testemunha esta passagem de Cícero (Epist. Ad Famil. Lib. VI. Epist. 4.):

10
Cf. art. Conscience (– réflexive) [philo. géné.], de F. Brémindy, in Les Notions philosophiques. Dictionnaire, volume
organizado por S. Auroux, PUF, 1990, tomo I, p. 432-433. Ligeira nuance no Historisches Wörterbuch der Philosophie (art.
Bewusstsein, por A. Diemer): «Der moderne Bewusstseinsbegriff ist nach allgemeiner Auffassung durch Descartes
konstituiert […] vom Gewissensbegriff losgelöst […] und umgekehrt zum zentralen anthropologischen Begriff <geworden>.»
Observa-se, de passagem, que a «confusão possível» das duas acepções é própria ao francês, já que os alemães têm Gewissen
e Bewusstsein, os ingleses conscience e consciousness.
11
No sentido em que, por razões diversas, considera-se que Spinoza, Hegel, Comte, Nietzsche, Frege, Wittgenstein,
Heidegger ou Cavaillès não o são.
12
Reproduzimos aqui a quinta edição revista e corrigida, MDCCLV, publicada em Amsterdã e Leipzig, por J. Schreuder e
Pierre Mortier le Jeune (reimpressão de E. Naert, Paris, 1972) do Ensaio filosófico acerca do entendimento humano,
«traduzido do inglês por M. Coste».
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 4

Conscientia rectae voluntatis maxima consolatio est rerum incommodarum. Em francês, não temos,
em minha opinião, senão as palavras sentimento e convicção, que respondem de alguma forma por essa
idéia. Mas, em muitos lugares desse Capítulo, elas não podem exprimir senão de forma bastante
imperfeita o pensamento de M. Locke, que faz depender de modo absoluto a identidade pessoal do ato
do Homem quo sibi est conscius. Percebi que todos os raciocínios que o autor desenvolve a respeito
dessa matéria se perderiam completamente, se eu me servisse, em certas passagens, da palavra
sentimento para exprimir o que ele entende por consciousness, e que acabo de explicar. Após ter
buscado, durante algum tempo, meios de remediar este inconveniente, não achei nada de melhor do que
me servir do termo conscience para exprimir este ato. Eis porque cuidarei de imprimi-lo em itálico, afim
de que o leitor se recorde de relacioná-lo sempre a esta idéia. E, para permitir que se distinga ainda
melhor esta significação daquela que ordinariamente se empresta a esta palavra, veio-me ao espírito um
expediente que pode inicialmente parecer ridículo a muitas pessoas, mas que estou certo de que
agradará a outras; é o de escrever consciência em duas palavras unidas por um hífen, desta maneira,
con-sciência. Mas, argumentar-se-á, esta é uma estranha licença, desviar uma palavra de sua
significação habitual para atribuir-lhe uma que jamais lhe foi dada em nossa língua. Quanto a isto, nada
posso responder. Choquei-me a mim mesmo com a liberdade assim tomada; eu talvez fosse um dos
primeiros a condenar um outro escritor que tivesse recorrido a esse expediente. Mas eu estaria errado,
parece-me, se, após ter-me colocado no lugar desse escritor, eu ainda pensasse ser possível proceder de
outra maneira. É ao que espero que se pense, antes de decidir se agi bem ou mal. Confesso que em uma
obra que não fosse, como esta, de puro raciocínio, tal liberdade seria completamente indesculpável. Mas,
em um discurso filosófico, não somente se pode, como se devem empregar palavras novas, ou fora de
uso, quando não se tem qualquer uma que exprima a idéia precisa do autor. Tomar-se de escrúpulos em
recorrer à liberdade em tais casos seria aceitar alegremente perder ou enfraquecer um raciocínio; o que
implicaria, em minha opinião, em uma delicadeza bastante imprópria. Isso quando se está reduzido, por
uma necessidade indispensável, como é, acredito, meu caso nesta oportunidade. Percebo, por fim, que
eu teria podido empregar sem tantos receios a palavra consciência no sentido em que M. Locke a
empregou neste capítulo e alhures, já que um de nossos melhores escritores, o famoso Padre
Malebranche, não hesitou em se servir deste mesmo sentido em diversas passagens da Recherche de la
Vérité. Após haver observado, no capítulo VII do livro III, que é preciso distinguir quatro maneiras de
conhecer as coisas, ele diz que a terceira é de conhecê-las por consciência ou por sentimento interior.
Sentimento interior e consciência são, pois, segundo ele, termos sinônimos. Conhece-se por consciência,
diz ele mais adiante, todas as coisas que não são distintas de si… Não conhecemos nossa Alma, diz
ainda, por sua idéia, só a conhecemos por consciência… A consciência que temos de nós mesmos nos
mostra a menor parte de nosso Ser. Eis o que é suficiente para fazer ver em que sentido empreguei a
palavra consciência, e para autorizar seu uso.»

Façamos aqui uma primeira pausa. O texto precedente é o que encontram os leitores atuais. Ora, ele
foi submetido a uma elaboração bastante instrutiva. Na primeira edição de sua tradução 13, a segunda nota de
Coste, idêntica até a frase «…por uma necessidade indispensável, como é, acredito, meu caso nesta
oportunidade», assim prosseguia:

«Acabo, de resto, de identificar uma Bíblia com a tradução de Genebra, em que se empregou a palavra
conscience no sentido que acabo de destacar. É na primeira Epístola aos Coríntios, cap. VIII, vers. 7.
Não há conhecimento em todos, pois alguns alimentam-se (dessas carnes de sacrifício) com consciência
do ídolo, isso é, independentemente do que sentem, se acreditam neles mesmos que o ídolo a quem essas
carnes são oferecidas é alguma coisa e lhes comunicou alguma virtude. Não relato este emprego para
confirmar o uso da palavra consciência nesse sentido, pois sei que a versão de Genebra não tem qualquer
autoridade em nossa língua, mas apenas para fazer ver a necessidade que é a nossa.»

13
Publicada no ano de 1700, em Amsterdã, por Henri Schelte, editor da Bibliotèque Universelle de J. Le Clerc, de quem
voltaremos a falar.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 5

O termo que os pastores de Genebra traduzem por consciência é o grego suneidêsis14, da que
voltaremos a falar (enquanto conhecimento traduz gnôsis). A partir da segunda edição de sua tradução 15, Coste
suprime essa referência bíblica, que traz, a uma só vez, problemas semânticos (pois nos encontramos aqui na
fronteira de usos «cognitivos» e de usos «morais» de consciência) e problemas de autoridade teológica (o livro
deve ser difundido em país católico, a França), e introduz a referência a Malebranche – que conhecemos
atualmente e que apresenta outros problemas. Deveremos analisar esta retificação.

Passado o primeiro instante de admiração pelo estilo, e por essa «consciência» de tradutor e de
filósofo, torna-se claro que o texto – em suas duas sucessivas versões – comporta numerosas dificuldades, que
seria útil tentar elucidar. Por sua vez, a identificação dos elementos dessa elucidação mostra que estamos
diante não só de um testemunho capital da formação do conceito de consciência na filosofia moderna,
apropriada para dissipar um certo número de confusões e mitos, mas também de um certo momento dessa
formação, cuja negligência ou esquecimento devem ser reparados, se queremos começar a construir uma exata
representação de uma invenção que não cessou de determinar nosso modo de pensar.

Esboçando a história dessa invenção, em contraponto ao Tratado de Locke, desejamos contribuir para
o reconhecimento do papel filosófico da tradução de filósofos: todo aquele que, nos últimos três séculos, fez
referência à consciência, foi tributário da decisão tomada por Pierre Coste, após a de Locke. Pretendemos
igualmente sublinhar – a partir de um exemplo privilegiado, mas que sem dúvida não é o único – a que ponto a
formação dos conceitos fundamentais de nossa tradição sempre resultou de um trabalho originariamente
transnacional sobre as línguas.

A primeira questão que se pode colocar na leitura da nota de Coste é a de saber porque ela intervém
tão tardiamente. E, ao mesmo tempo, saber porque Coste não traduziu «consciousness» por conscience ou por
con-science antes do capítulo xxvii do livro II. As indicações que ele nos fornece deixam entender que, até esse
ponto, equivalentes parciais (tais como conhecimento, sentimento e convicção) podiam bastar, mas que se
tornaram a partir daí incompatíveis com a exatidão teórica (em uma obra de «puro raciocínio»). Elas sugerem
que esse momento é aquele em que certas tensões advindas da história do latim e do francês devem ser
resolvidas. Mas elas não explicitam o elemento novo que teria intervindo. Ora, esse atraso é tão mais
surpreendente que a palavra «consciousness» figura no texto de Locke desde o capítulo I do livro II do
Ensaio16, não de maneira episódica ou vaga, mas de forma sistemática e conceitual. É precisamente no § 19
desse capítulo que figura a caracterização de consciousness geralmente citada pela tradição anglo-saxã como
definição da consciência segundo Locke: «Consciousness is the perception of what passes in a Man’s own
Mind». Isso é: a «consciência» é a percepção daquilo que (se) passa no espírito de um homem; mas, também: é
o fato, para um homem, de perceber aquilo que (se) passa em seu próprio espírito (em um espírito que é o seu,
que lhe pertence como próprio, que é sua propriedade).

14
Na versão moderna da escola francesa de Jerusalém, os tradutores empregaram aqui hábito, o que não deixa de criar uma
disparidade com outras traduções de suneidêsis no contexto. Em inglês clássico, a versão dita «de King James» (1611)
registrava em todas as passagens conscience (e não consciousness).
15
Publicada em 1729, por Pierre Mortier, em Amsterdã.
16
E, mesmo, se consideram-se os acréscimos da 2ª edição, desde o capítulo 3 (numerado como IV nas edições inglesas) do
livro I (§ 20). Uma prova suplementar dessa sistematicidade é o acoplamento do substantivo consciousness e do adjetivo
conscious, de tal forma que se, etimologicamente, o primeiro deriva do segundo, teoricamente o segundo remete sempre ao
primeiro. Até mesmo quando introduzir con-sciência, Coste jamais traduzirá «conscious» por «consciente»: cf. abaixo o
nosso Glossário, conscious, consciousness.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 6

Porque Coste, manifestadamente advertido das exigências de uma tradução teórica (àquilo que ele
próprio afirma, o que haveria ainda a acrescentar?) e não recuando diante das novidades, traduz em II.i.1
«conscious to himself that he thinks» por «convencido nele mesmo que ele pensa»; em II.i.11 «it being hard to
conceive, that anything should think, and not be conscious of it» por «não é fácil conceber que uma coisa
possa pensar e não sentir que pensa»; «without being conscious of it» por «sem ter uma percepção atual»; em
II.i.19 a definição citada acima por «essa convicção não é outra coisa além da percepção do que se passa na
alma do homem17»; etc., antes de chegar, de súbito, em II.xxvii.9 a «pois que a con-sciência sempre acompanha
o pensamento, e que é isto, que faz com que cada um seja, o que nomeia de si mesmo» por «since
consciousness always accompanies thinking, and ‘tis that, that makes everyone to be, what he calls self»?

O único elemento de resposta que possa fornecer essa localização precisa no contexto, entretanto
capital, é a conjunção, na mesma frase, dos dois termos teóricos fundamentais, que jamais se haviam
encontrado antes, mas que se tornam a partir daí correlativos: the self, the consciousness, o «si», a
«consciência». Antes desse § 9 do capítulo xvii, consagrado ao problema da identidade pessoal, de fato foi
questão de consciousness, mas não de self como substantivo. Coste «inventa», então, con-sciência no momento
preciso em que é forçado pela língua e pela matéria teórica a criar não apenas um, mas dois neologismos, um
de vocabulário, outro de sentido18. Pressentimos que essas duas criações extraordinárias estão estreitamente
ligadas em Coste, como elas estão em Locke, mas a significação completa desse indício só ficará visível mais
tarde.

Antes, porém, de nos engajarmos nessa via, é preciso buscar esclarecer os usos dos termos aqui
presentes, tanto em inglês quanto em francês e latim, isso é, nos diferentes ramos do colingüismo europeu 19.
Coloquemo-nos na posição do tradutor, e comecemos pelo inglês. «O termo inglês é consciousness, que se
poderia exprimir em latim pelo de conscientia…» escreve Coste, o que prova que lhe foi preciso voltar ao latim
para compreender do que se tratava. Com efeito, e isso é capital para nosso problema, consciousness não é
apenas um conceito definido por Locke, mas, como palavra inglesa, um quase-neologismo, como demonstram
as melhores lexicografias existentes20. O único precedente (veremos que é capital) encontra-se na obra de
Cudworth, The True Intellectual System of the Universe, publicado em 167821. Locke estava, ao que parece,

17
É surpreendente que Coste não perceba a incoerência que essa «tradução» produz: a partir da segunda edição, o Essay de
Locke comporta um Index final com uma rubrica consciousness que remete à «definição» de II.i.19 («consciousness, what»);
Coste traduziu o index tal e qual, empregando con-sciência, e portanto fazendo alusão a uma passagem em que, no seu texto,
a palavra não figura.
18
Havendo inventado o soi [si] para traduzir o self, e con-science para traduzir consciousness, Coste não foi, contudo, até o
ponto de forjar um neologismo para self-consciousness. Por isso, no § 16 do Tratado, ele se contentou em retomar seu termo
com-sciência, acrescentando, no entanto, uma nota: «Self-consciousness: expressiva palavra em inglês, que não se pode
traduzir, em toda sua força, para o francês. Eu o assinalo aqui em favor daqueles que compreendem a língua inglesa.»
19
Empregamos o conceito de R. Balibar, Le Colinguisme, PUF, Collection Que sais-je, 1993.
20
Consulte-se, notadamente, o Oxford English Dictionnary (2ª edição, 1989), que define:
– por conscious: 1625 BACON Ess., Praise (Arb) 353 Wherin a Man is Conscious [MS and ed. 1612 conscient] to
himself, that he is most defective. 1690 LOCKE Hum. II. I, If they say, That a Man is always conscious to himself of
thinking […]
– por consciousness: 1678 CUDWORTH Intell. Syst. (1837) I.93 Neither can life and cogitation, sense and
consciousness… ever result from magnitudes, figures, sites and motions. 1690 LOCKE Hum. Und. II.i § 19
Consciousness is the perception of what passes in a Man’s own Mind […]
21
Ver nosso Dossier. Ralph Cudworth, 1617-1688, cuja importância da obra se redescobre atualmente, foi Master do Christ’s
College e o principal expositor do «platonismo de Cambridge». Locke o havia reencontrado em Londres, em 1681. Ele
tornou-se amigo de sua filha Lady Masham (ela mesma autora de ensaios filosóficos e correspondente de Leibniz), em cuja
casa passou os últimos anos de sua vida. A vida e o elogio de Locke, escritos após sua morte por Lady Masham, encontram-se
em sua carta a Jean Le Clerc, de 12 de janeiro de 1705 (Jean Le Clerc, Epistolario, vol. II (1690-1705), a cura di M. G. E m.
Sina, Leo S. Olschki Editore, Florence 1991, p. 497-517). Sobre esta figura importante das letras européias, cf. Sarah Hutton,
«Damaris Cudworth, Lady Masham: between Platonism and Enlightenment», The British Journal for the History of
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 7

perfeitamente consciente de inovar, no plano do conceito (senão da língua). A fórmula sempre citada como
definição intervém no curso de uma argumentação fundadora, dirigida contra a doutrina das idéias inatas. É
um elenchos que culmina na identificação do «pensamento» à «consciência do pensamento», já que sua
separação se contradiria a ela própria: «thinking consists in being conscious that one think» (II.i.19). Mais
ainda, ele distinguiu rigorosamente esse neologismo do conceito moral de conscience, que também é objeto de
uma definição22. Que obstáculos, lingüísticos ou conceituais, puderam dissuadir Coste de recorrer aqui ao
«expediente» ao qual, em certo momento, ele pensou para dar a dimensão da invenção de Locke?

Prossigamos nossa investigação, voltando-nos, dessa vez, para o latim, como o faz o próprio Coste.
Não poderíamos entrar em toda a lexicografia do termo conscientia23. Parece claro que o termo é ainda
entendido a partir de scientia, isso é, como conhecimento ou saber no latim clássico. O prefixo cum designa
uma partilha ou comunidade que dá lugar seja à idéia de cumplicidade ou de conivência com outros, seja à
idéia de foro íntimo ou de segredo (o segredo sendo o saber que não se partilha senão consigo mesmo, pelo
qual não se responde senão a si mesmo). Daí a construção clássica sibi conscire, sibi conscius esse – traduzida
em inglês conscious to (with) itself (himself) – que não quer dizer «ser consciente de si», mas «estar
informado, alertado» de alguma coisa (alicujus rei) e que tem emprego sobretudo judiciário. Por outro lado,
desde a filosofia antiga, em particular sob a influência estóica, em Cícero e Sêneca, o domínio privilegiado de
aplicação desse saber que não se partilha senão consigo mesmo é a vida moral: os atos, as palavras, as
intenções cujo valor está em discussão. Conscientia ou conscientia animi é, pois, sinônimo de julgamento, de
estima de si e de instância dessa avaliação, que aprova ou condena, presta testemunho ou enche de remorsos
(conscientiae morsus). O jogo de desdobramento da pessoa (apoiado na metáfora da «voz» interior) é
desencadeado: na conscientia, sou eu que me conheço e me julgo, ou que sou desvelado e julgado? Esse jogo é
amplificado pela casuística moral do cristianismo: a questão, então, sendo de saber se a «voz da consciência» é
natural ou sobrenatural, se ela emana de uma capacidade humana, de uma moralidade inata, ou se ela exprime
uma intervenção divina, uma advertência e uma graça que recebemos do Alto.

Traduzindo por conscientia o grego suneidêsis, toda a tradição cristã glosa e varia a frase de São
Paulo, Rom., 2, 15-16:

«…esses homens, sem possuir leis, se tomam eles próprios pela lei (nomon mè ekhontes heautois eisin
nomos); eles mostram a realidade dessa lei inscrita em seu coração, como o provam o testemunho de sua
consciência (summarturousès autôn tès suneidèséôs) e os julgamentos interiores de condenação ou de
absolvição ao quais submetem suas próprias ações, [eles serão justificados] no dia em que Deus julgará
as ações secretas dos homens (krinei o tehos ta krupta tôn anthrôpôn) segundo meu Evangelho24…»
[trad. Bíblia de Jerusalém, 1956]

Agostinho havia identificado a conscientia com o homem interior (intus hominis, quod conscientia
vocatur, In Os., 45, 3), reduto secreto que o olhar de Deus atravessa, ou melhor: no qual já habita ( Noli foras
ire, in teipsum redi: in interiore homine habitat veritas, De vera Rel., 39, 72). Jerônimo dirá que a centelha da
consciência depositada em nós, scintilla conscientiae, brilha mesmo nos criminosos e pecadores. Mas a

Philosophy, vol. 1, nº 1, 1993.


22
Essay, I.iii.8: «nothing else, but our own Opinion or Judgment of the Moral Rectitude or Pravity of our own Action».
23
Remeta-se, quanto à questão, ao artigo «conscience», a ser publicado no Vocabulaire Européen des Philosophes, op. cit.
Ver também as reflexões de C. S. Lewis, «Conscience and conscious», Studies in Words, Cambridge University Press, 1967.
24
Estritamente aparentada às fórmulas de I Cor., 14,25 e 2 Cor., 5, 10, sobre a abertura dos segredos do coração no dia do
Julgamento, que Locke tornará a base de seu desenvolvimento nos § 22 e 26 de seu tratado (cf. abaixo, Glossário,
ressureição)
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 8

fórmula empregada por Coste (conscientia, si sumatur pro actu illo hominis quo sibi est conscius), que apela
logicamente por um complemento (alicujus rei), parece sobretudo de origem escolástica 25. Ela remete à
definição de São Tomás (Summ. Theol., Ia, Q. 79, art. 13) que estabelece que a conscientia não é, sem dúvida,
ela mesma uma «potência intelectual», mas o ato correspondente à synderesis, potência de conhecimento dos
princípios práticos (isso é, da lei moral), quando esta se aplica a casos particulares, concretos 26.
Reencontraremos constantemente os termos de ato e de atual nos tradutores de Descartes e de seus
interlocutores para qualificar o «conhecimento» correspondente à conscientia. O importante, aqui, é a
insistência sobre o aspecto intelectualista da consciência (contra as doutrinas do sentimento, da
espontaneidade, do entusiasmo e da inspiração). São Tomás preocupa-se em reaproximar conscientia de uma
etimologia cum alio scientia para insistir quanto a seu caráter de ato do intelecto. Estamos no interior de uma
problemática racionalista, nos antípodas da idéia de um «instinto divino» à la Rousseau.

Seria então necessário, para explicar o sentido de consciousness de Locke tal como o compreende
Coste, identificá-lo como transposição de uma concepção escolástica de julgamento moral? Ainda que, no
fundo, isso também esteja presente, muitas são as razões que vão de encontro de uma gênese desse tipo. Locke
e Coste são protestantes27: em sua linguagem e formação, a «consciência» é, por um lado, uma inspiração
pessoal e uma afirmação da liberdade (após Lutero, que associava estreitamente o Gewissen e a Gewissheit, a
consciência e a certeza, Calvino situa no centro de sua reivindicação da fé a adesão da consciência, enquanto os
anabatistas forjavam a objeção de consciência). Por outro lado, Coste traduz em um meio impregnado de
cartesianismo e de discussões sobre a doutrina cartesiana. Ele não pode, portanto, não levar em consideração
os textos franceses que está certo de que o próprio Locke leu. É neste aspecto que as explicações de sua nota
aparecem como mais confusas: porque se atribui ele um neologismo, se o termo «consciência», no sentido de
puro conhecimento de si, já existe? Porque acrescenta uma referência a Malebranche, aparentando só então
descobrir a autoridade dessa citação, se ela bastaria para resolver a questão 28? Porque não menciona
Descartes?

A solução para essas dificuldades reside, antes de tudo, ao que nos parece, nas seguintes constatações:

1. À exceção de duas passagens, uma das quais duvidosa e outra adventícia, Descartes jamais emprega
a palavra «consciência» em francês nem, a fortiori, o adjetivo «consciente» ou a expressão «estar
consciente29». Além disso, ele emprega muito raramente conscientia e conscius esse em latim, as duas maiores
25
O Thesaurus eruditionis scholasticae de B. Farber, publicado em 1571 e reeditado em 1696 (citado por Diemer, Hist. Wört.
Der Phil., art. Bewusstsein) dá como segunda acepção de conscientia: is animi status quo quis alicujus rei sibi conscius est.
26
Os desenvolvimentos da escolástica procedem de Jerônimo, mas por efeito de um surpreendente quiproquó: acreditando
ler em seu texto a palavra sunteresis, os copistas a interpretam, inicialmente, como um derivado de térésis («guarda»), em
seguida como derivado de hairèsis («escolha»). Assim se forja uma palavra grega fictícia, a «syndérèse», que desempenha a
função essencial de desdobrar a consciência em faculdade passiva (traço da criação divina) e faculdade ativa (operando após
a queda). Tomás de Aquino e Boaventura formam, então, o «silogismo prático» do processo pelo qual a revelação ilumina
nossas ações e as guia: 1. sunderesis, 2. conscientia, 3. conclusio. Trata-se de um esquema intelectualista fundamental, cuja
influência está longe de desaparecer com sua justificação teológica (cf. Hist. Wört. Der Philos., art gewissen, por H. Reiner).
27
Eles pertencem à ala liberal do protestantismo europeu: cf., abaixo, as observações sobre o círculo de Jean Le Clerc.
28
Pode-se, evidentemente, supor que Coste inicialmente não pensou em citar Malebranche e que somente em seguida o
descobriu, ou lhe foi sugerido que essa seria uma referência bem melhor do que a Bíblia de Genebra. Mas parec-nos pouco
provável que Coste tenha ignorado os textos de Malebranche, não só em razão de sua notoriedade, mas por um motivo muito
mais preciso: é que, em 1696, no momento em que ele se instala junto a Locke para trabalhar em sua tradução, Locke acaba
de redigir uma crítica à Recherche de la vérité, na qual, como veremos, a terminologia do conhecimento de si desempenha
um papel central. Assim, não restam dúvidas de que o confronto se produziu nos bastidores da tradução. A confirmação da
estreita associação de Coste e Locke, na confrontação de Malebranche, é confirmada em Jean Deprun, La Philosophie de
l’inquiétude em France du au XVIIIe siècle, Vrin, 1979, p. 193.
29
Cf. Carta a Gibieuf, 19-1-1642: «não o reputo senão á ameu próprio pensamento ou consciência». G. Rodis-Lewis (L’Œuvre
de Descartes, Vrin, 1971, p. 240) comenta, em nota: « segundo uma nota manuscrita, ao passo que a edição Clerselier, talvez
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 9

exceções constituindo-se nos textos – estreitamente aparentados – das Definitiones I e II (Cogitatio, Idea) na
Exposição Geométrica das Respostas às segundas objeções 30 e do artigo I, § 9 dos Princípios da filosofia (em
nenhum dos dois casos os tradutores, Clerselier e Abade Piccot, cujo texto foi revisto por Descartes,
empregaram «consciência» ou «estar consciente»). Conscientia não figura nas Meditações, que serão, em
seguida, consideradas como fundadoras de uma teoria do sujeito consciente de si, notadamente nas análises da
«coisa que pensa» das segunda e terceira Meditações, tanto quanto «consciência» não aparece no Discurso
sobre o método ou em As paixões da alma. Sem Descartes, não haveria em filosofia a invenção da consciência
(e, antes dela, da consciousness), mas isso não é tanto um feito seu, mas o resultado dos espinhosos problemas
que a interpretação de sua doutrina colocou.

2. «Consciência» foi, entretanto, introduzido em francês pelos discípulos imediatos de Descartes,


engajados nas controvérsias sobre o dualismo do corpo animal e do espírito, tanto quanto sobre os
fundamentos da metafísica: em primeiro lugar, ao que parece, por Louis de La Forge, editor em 1664 de
L’Homme e autor, em 1666, do Traité de l’esprit de l’homme 31. Mas o termo foi objeto de uma definição
nominal no Système de philosophie do cartesiano Pierre-Sylvain Régis, publicado em 1690, mesmo ano do
Essay de Locke:

«Asseguro-me, pois, de que existo todas as vezes que conheço ou que acredito conhecer alguma coisa; e
estou convencido da verdade desta proposição, não por um verdadeiro raciocínio, mas por um
conhecimento simples e interior, que precede a todos os conhecimentos adquiridos, e que denomino
consciência32».

Este duplo fato chama nossa atenção quanto a uma das direções em que se exerce a influência de
Descartes e quanto à forma pela qual ela influencia a língua francesa. Mas, ao menos até o meio do século
XVIII, em sentido outro do que o moral, o termo «consciência» será aí pouco corrente e necessitará de
esclarecimento suplementar.

3. A grande exceção é Malebranche, para quem a noção de consciência é, de fato, primordial, e sobre
quem voltaremos em detalhes. Mas sua definição como «sentimento interior» é, em seu fundo, anticartesiana:
ela situa os filósofos diante da necessidade de uma tomada de posição. A consciência de Malebranche é o
conhecimento imperfeito que temos da alma («não sabemos de nossa alma senão o que sentimos se passar em
nós»). Esse pseudo-conhecimento sem dúvida «não é falso», mas é essencialmente confuso e exposto a todo
tipo de ilusões. Malebranche bem sabe que, assim, ele destrói o próprio cerne do cartesianismo, para fins
teológicos e apologéticos (substituir o cogito por uma idéia do Verbo divino na posição de verdade primeira) 33.

Ora, sobre esse ponto, a escolha de Locke (que, desde seus anos de juventude, conhece perfeitamente
bem o pensamento do grande oratoriano) é bastante clara: criticar Descartes diferentemente do que o fez

por escrúpulo de purista, omitiu «ou consciência». Encontra-se o termo, com essa acepção metafísica, em francês, apenas
nas 3e Réponses, A.T. IX, 137, sobre os «atos intelectuais que não podem existir sem pensamento, ou percepção, ou
consciência e conhecimento» (as duas últimas palavras traduzindo o termo conscientiae de A.T. VII, 176, é possível que
Descartes tenha, ele próprio, acrescentado: «e consciência», na tradução de Clerselier).»
30
Cf. Dossier de textos em anexo.
31
La Forge (Louis de). Traité de l’esprit de l’homme (1666), in Oeuvres philosophiques, Edição apresentada por Pierre Clair,
PUF, 1974. Cf. Geneviève Lewis. Le problème de l’inconscient et le cartésianisme, PUF, 1950.
32
Pierre-Sylvain Regis. Système de philosophie contenant la Logique, la Métaphysique et la Morala, Tome Premier […] p.
63 e seg. Mme. Monette Martinet observa que a obra de Régis foi redigida muitos anos antes de sua publicação. Cf. Dossier.
33
Cf. Jean-Pierre Osier, Apresentação do Traité de morale de Malebranche (1684, reed. Garnier-Flammarion, 1995): ao
mesmo tempo em que transfere para o «sentimento interio» da alma as funções da alma e do corpo, Malebranche restitui a
Deus a clareza do cogito e a suficiência ontológica de que é signo.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 10

Malebranche. Sua consciousness não é uma idéia confusa, marcando um limite para o conhecimento e o
domínio de si. Ela é, ao contrário, um reconhecimento imediato, pela Mind, de suas operações sobre a «cena»
interior, campo indefinidamente aberto, de que é o autor e o espectador. A consciousness de Locke, diríamos,
hoje, não é «menos consciente» do que a cogitatio cartesiana, ela o é mais! Eis porque, sem dúvida, Coste não
pôde aceitar esse enorme precedente senão após uma longa hesitação, ao mesmo tempo em que não cessava de
buscar inscrever essa diferença no cerne da palavra, através de um «expediente» gráfico que figura como um
traço mudo do conflito latente.

4. A contra-prova dessa situação nos é fornecida pelo exame dos textos de Leibniz: Leibniz toma, em
relação à concepção cartesiana do conhecimento, o partido inverso daquele que assumiu Locke: pelas idéias
inatas e contra a idéia de que o espírito possa inspecionar-se a si mesmo, ou se conhecer inteiramente por meio
de sua própria reflexão. O Discours de la métaphysique (1686) não emprega o termo, mas a correspondência
com Arnauld comporta diferentes referências à consciência (associada à «experiência interior», ao
«pensamento», à «reminiscência») 34. Aí ela aparece, entretanto, constantemente associada a uma noção bem
mais construída, na economia do sistema, e mais decisiva para o futuro: a de apercepção, que torna-se,
finalmente, a noção fundamental. (cf. o § 14 da Monadologia, 1714). É bem possível que, nesta decantação, a
leitura de Locke tenha desempenhado seu papel: no capítulo II.xxvii.9 dos Novos Ensaios, Leibniz, que relê o
Essai na tradução de Coste, retraduz consciousness por conscienciosidade. Isto significa que ele recusa o
neologismo de Coste, para tentar situar a consciência no sistema das categorias da percepção 35. A oposição
conceitual de Leibniz e de Locke, a oposição terminológica de Leibniz e de Coste manifestam que os dois lados
da metafísica cartesiana da «coisa que pensa» são, a partir daí, incompatíveis.

5. Será preciso esperar Condillac para que o termo de «conscience», mais uma vez apresentado como
inovação, seja definitivamente naturalizado. Mas este uso procede de Locke e, por conseguinte, de Coste. No
Essai sur l’origine des connaissances humaines, de 1746, expondo a «análise e geração das operação da alma»
(I.ii sv.), Condillac começa por estudar (I.ii.1) «a percepção, a consciência, a atenção, a reminiscência». No § 4,
ele escreve:

«[…] como todos admitem, há na alma percepções sobre as quais ela não está desavisada [qui n’y sont
pas à son insu]. Ora, a este sentimento […] chamarei consciência. Se, como pretende Locke, a alma não
tem percepções das quais não tome conhecimento […] a percepção e a consciência devem ser tomadas
como uma só e mesma operação. Se, ao contrário, o sentimento oposto fosse o verdadeiro, elas seriam
duas operações distintas; e seria na consciência, e não na percepção, como supus, que começaria
propriamente nosso conhecimento36.

34
Cf. Leibniz, Discours de métaphysique et correspondance avec Arnauld, Introdução e Comentário de G. Le Roy, 5ª edição,
Vrin, 1988 (em particular, Lettre XXVI de 9 de outubro de 1687, p. 180 e seg.). Ver, também, as análises de Martine de
Gaudemar, Leibniz. De la puissance au sujet, Vrin, 1994.
35
Cf. Leibniz, Nouveaux Essais sur l’entendement humain, Introdução de J. Brunschwig, Garnier-Flammarion, 1966. A carta
de Jean Le Clerc a Locke em 9 de abril de 1697 (Epistolario, ed. Cit., vol. II, p. 232) mostra que Leibniz já havia lido o Essay
em inglês, redigindo algumas observações para os amigos do autor. Entretanto, o trabalho que o levou à redação do
«diálogo» (no qual o ponto de vista de Locke é representado por citações ou resumos colocados na boca de «Filaleto») foi
realizado em 1702-1703, a partir da tradução de Coste. Extremamente sensível às questões de idioma filosófico, Leibniz
discute as traduções confrontando as etimologias francesa, inglesa e, mesmo, alemã (por exemplo, no caso de uneasiness:
N.E., II, cap. 20, §6, onde Coste é denominado «o intérprete francês»). Os Nouveaux Essais mantiveram-se inéditos, durante
a vida de Leibniz (a morte de Locke, em 1704, o tendo dissuadido de dar prosseguimento à disputa) e só serão publicados em
1765. A sugestão de retraduzir consciousness por conscienciosité permaneceu, pois, letra morta e jamais teve chance de se
afirmar.
36
Condillac, Essai sur l’origine des connaissances humaines, in Oeuvres philosophiques de Condillac, texto estabelecido e
apresentado por Georges Le Roy, PUF, 1947, Volume 1, p. 11. Este parágrafo é copiado por Jacourt no artigo Conscience (Phil.
Log. Métaph.) da Enciclopédia, que fornece a seguinte «definição»: «A opinião ou o sentimento interior que temos, nós
próprios, daquilo que fazemos», e prossegue: «é o que os ingleses exprimem pela palavra consciousness, que só pode ser
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 11

Passando ao largo do conceito de consciência, Condillac – que não faz qualquer referência a Descartes
– vai introduzir a atenção (§5), que é um «plus de consciência» inerente a certas percepções, em relação a
outras. Ele se declarará contra a posição de Leibniz (mesmo que se utilize parcialmente de sua descrição das
«pequenas percepções»), alinhando-se com reservas à posição de Locke – retificando-a pelo estudo dos
fenômenos da vigília, da atenção mais ou menos viva, da memória e do esquecimento. Na continuação de Locke
e, por assim dizer, nas margens de seu texto, ele chega finalmente ao «sentimento de meu ser», ao
reconhecimento da permanência de um «ser que é constantemente o mesmo nós», à identidade do «eu de
hoje» e do «eu da véspera», que nada mais é do que a idéia do tempo derivada da sucessão de nossos
pensamentos. Oito anos mais tarde, no Traité des Sensations, ele ainda posterga a entrada em cena da
«consciência». Ela só intervém no capítulo vi do livro I («Do eu, ou da personalidade de um homem limitado
ao odor»), após toda a gênese das faculdades concebidas como transformações da sensação pura. Citando, em
nota, Pascal («Onde está, pois, o eu, se não está no corpo nem na alma?»), ele escreve (§3):

«Os odores, dos quais a estátua não se recorda, não entram, portanto, na idéia que ela tem de sua pessoa
[…] Seu eu não é mais do que a coleção de sensações que ela experimenta e daquelas de que sua memória
a recorda. Em resumo, é, ao mesmo tempo, a consciência do que ela é e a recordação daquilo que foi 37.»

A consciência torna-se então, e igualmente em francês, o conceito unitário que recobre a percepção
das coisas, a do eu como multiplicidade interna de representações e a continuidade temporal de sua existência.
As formulações de Condillac serão retomadas pelos Ideólogos, e criticadas, de um lado, por Maine de Biran e,
de outro, por Victor Cousin. A dialética das concepções da consciência, «materialistas» e «espiritualistas», ou,
de um outro ponto de vista, «psicologistas» e «transcendentais», pode começar a se desencadear. Ela chegará
até nossos dias.

Antes de nos voltarmos para o texto do Essai de Locke, para avaliar as operações teóricas que deram
origem a esta notável translação, é preciso tentar compreender mais largamente o que foi, sobre o duplo plano
das palavras e das idéias, essa invenção cujo ponto de chegada provisório acabamos de identificar.

ii. a invenção européia da consciência

A invenção da consciência mergulha suas raízes no encadeamento dos acontecimentos intelectuais


que inauguram a modernidade. Ela concerne todo o campo da teologia, da política, do pensamento moral e
filosófico, das letras38. Podemos concebê-la como um drama em múltiplos episódios, cujos protagonistas
pertencem ao mesmo tempo à cultura insular e à cultura continental, de lado e de outro do Canal. Eles se
exprimem em latim (lendo igualmente e, por vezes, reconstituindo o grego, mas não o árabe), em italiano, em
francês, língua da «República das Letras», em inglês e, a partir do século XVIII, em alemão.

traduzida em francês por meio de uma perífrase.». Cf. C. Glyn-Davies, op. cit.
37
Oeuvres philosophiques de Condillac, op. cit., vol. 1, p. 239.
38
A própria unidade destes planos poderá ser posteriormente analisada como campo de uma «consciência» coletiva, feita de
uma multiplicidade de «consciências» individuais preocupadas com seu lugar no mundo e na história. Vem daí o jogo de
palavras contido no título do livro de Paul Hazard, La crise de la conscience européenne (1680-1715), Paris, 1935, ao qual
tentamos, em cereto sentido, restituir parte de suas condições de possibilidade. Encontrar-se-ão úteis análises na obra
coordenada por R. Ellrodt, Genèse de la conscience moderne. Études sur le développement de la conscience de soi dans les
littératures du monde occidental, PUF, 1983.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 12

Um primeiro episódio, cuja herança é bem visível em Locke, em sua maneira de nomear a consciência
e de identificar sua continuidade com a autonomia do «eu», corresponde aos debates suscitados pela Reforma
em torno da liberdade de consciência. Sua aquisição mais marcante reside na possibilidade de empregar a
palavra «consciência», não para designar uma faculdade da alma, ou o testemunho interior de um duplo do
sujeito, mas como outro nome de um indivíduo singular. Esta personificação metonímica permite qualificar as
consciências em relação a suas ações e suas experiências: «uma nobre consciência», «uma consciência
esclarecida», «uma firme consciência», uma «consciência infeliz», etc. 39.

Um outro episódio decisivo, preparado na época das Luzes pela radicalização do sensualismo em
teoria da gênese das faculdades intelectuais (Condillac), pelas análises concorrentes do natural e do artifício em
Diderot e em Hume, pela redefinição rousseauniana das relações entre homem privado e homem público,
levará, na era das Revoluções e das guerras européias, às psicologias do sentido íntimo (Maine de Biran) e às
divisões dialéticas da consciência de si (Kant, Fichte e Hegel).

Mas, no intervalo, tem lugar um longo momento de construção especulativa. De forma essencial, ele
procede do modo paradoxal pelo qual Descartes resolveu a querela do ceticismo. A afirmação da certeza
inscreve a garantia de verdade no coração do pensamento individual, mas sob a forma de uma identificação
entre a imediatez e a reflexividade, ou da presença a si e do saber de si do pensamento, onde se encontram
enigmaticamente implicadas as distinções substanciais do finito e do infinito, da alma e do corpo, que não são
mais do que a outra face de uniões existencialmente indissolúveis. Esse paradoxo leva, rapidamente, ao
surgimento de um conflito, que faz da consciência ao mesmo tempo o conceito do «conhecimento de si» e do
«desconhecimento de si». A obra de Locke e a translação dos conceitos para o continente se situam no centro
desta tensão metafísica, que não encontrará solução antes da Dialética Transcendental kantiana. Se quisermos
entender toda a amplitude da questão, será preciso uma longa digressão.

Em vista da clareza de exposição, após a releitura dos textos essenciais de Descartes,


esquematizaremos o conflito da seguinte maneira: de um lado, os defensores de uma concepção afirmativa da
consciência, para quem esse conceito adquire um valor fundador, como reconhecimento de si pela alma; de
outro, os defensores de uma concepção negativa, para quem o conceito de consciência é igualmente
identificado, mas essencialmente como uma função de desconhecimento ou de equívoco. São essas as duas vias
fundamentais para a constituição de uma filosofia da subjetividade, que permanecerão durante muito tempo
distintas. No primeiro campo, situam-se os «agostino-cartesianos» franceses, na verdade tão pouco fiéis à
questão de Santo Agostinho (como Deus, «mais elevado do que o que é mais elevado em mim», se faz sentir no
mais interior da intimidade de minha alma?) quanto à de Descartes (quem sou eu, pois, eu que estou certo de
minha existência pensante?). Eles são, nesse sentido, antes de Locke, os inventores do que Wolff e Kant
denominarão a psicologia racional. No segundo campo, encontramos Malebranche, mas também, é claro,
Spinoza40, cujas filosofias, inteiramente opostas quanto às questões da criação e da natureza, têm, entretanto,
em comum o fato de fazer da «consciência» (ou da conscientia) um desconhecimento da alma em relação a si

39
A metonímia é já corrente em Calvino: «Eu digo que esses remédios e alívios são muito pobres e frívolos para consciências
confusas, e abatidas, afligidas e assustadas pelo horror de seu pecado» ( Inst. De la religion chrétienne, IV, 41). Entretanto, é
a luta política que inscreve o jogo da metonímia no coração dos usos da palavra consciência, fazendo do foro interior tanto
um «forte» quanto uma «força» (cujo conceito, ao longo da época clássica, entrará em concorrência com os de espírito e de
gênio para designar o princípio da individualidade).
40
Não consagraremos, aqui, um desenvolvimento específico a Spinoza, pois isto nos levaria muito longe de nosso objetivo:
elucidar o conteúdo e as condições de redação do tratado de Locke. Cf. nosso estiudo «A Note on Consciousness/conscience
in the Etics», Studia Spinoziana, nº 8, 1994.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 13

mesma. Afastada dessa antinomia, mas não menos determinante para os acontecimentos que se seguem (não
somente em razão das solicitações que lhes faz Locke, mas de suas idéias e termos, transmitidos a Leibniz)
encontraremos a posição do platonismo de Cambridge, que faz da consciência a forma «expressa» ou
«explícita» da percepção de si mesmo presente em variados graus em toda individualidade.

1. Cogito e cogitatio: ética e metafísica da certeza de si em Descartes

Os historiadores da filosofia nos dizem que o momento em que a consciência vai designar a essência
da subjetividade coincide com volta ao fundamento do pensamento, através da experiência metafísica da
dúvida. Eles identificam, portanto, fundamentalmente, a consciência ao cogito, ou fazem desse último o
protótipo filosófico da primeira 41. A realidade é mais complexa. A filosofia das Méditations não é a da
consciência (Bewsstsein), mas da certeza (Gewissheit) e das condições de sua obtenção. No texto original em
latim, encontra-se somente uma vez a palavra conscius, em uma importante passagem em que o tradutor
(revisto por Descartes) não a transpôs como «consciente»:

«…interrogo-me a mim mesmo, para saber se possuo algum poder e alguma virtude que sejam capazes
de fazer de sorte com que eu, que sou agora, seja ainda no futuro: pois, já que não sou senão uma coisa
que pensa […], se tal poder residisse em mim, eu decerto deveria ao menos pensá-lo e dele ter
consciência (si quae talis vis in me esset, ejus procul dubio conscius essem)…42».

Afirmando como evidência que «a alma sempre pensa», essa filosofia não conduz a um programa de
conhecimento em que a consciência seria o medium e o órgão, mas a um conflito metafísico que divide os pós-
cartesianos. Tomando partido nesse conflito, de modo original, Locke proporá uma filosofia do espírito ( Mind)
que, ao mesmo tempo que se substitui ao cartesianismo, prescrirá antecipadamente as vias de sua redescoberta
e, mesmo, de sua interpretação.

Sabe-se que o texto das Méditations não comporta a fórmula canônica cogito, ou cogito (ergo) sum.
Em revanche, encontraremos aí a versão mais sutil da argumentação que estabelece a verdade – «todas as
vezes que a pronuncio, ou que a concebo em meu espírito» – da proposição da existência «eu sou, eu existo»
(ego sum, ego existo). É esta formulação que a tradução registrou sob o nome de «cogito». Seria um outro
nome da consciência? Em que estaria ela aqui implicada?

A certeza de minha existência se explicita imediatamente como certeza da existência desta «coisa que
pensa» que eu sou:

«Mas o que então sou eu? Uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida,
que concebe, que afirma, que nega, que deseja, que não deseja, que imagina também, e que sente…»
(A.T., IX, 22).

Ela é, decerto, uma experiência do entendimento. Por outro lado, a proposição «Eu sou uma coisa que
pensa», apesar de sua complexidade sintática, exprime uma idéia bastante simples, apreendida naquilo que
Descartes chama, aliás, de uma intuição. Ao sair da dúvida, a certeza de que «eu sou» é equivalente àquela

41
Nisto eles são, é claro, grandemente ajudados pela maneira pela qual, na Crítica da razão pura, referindo-se a Descartes,
Kant havia identificado os problemas da «consciência de si» (Selbstbewusstsein) às interpretações do «eu penso» (das Ich
denke), «texto único do qual a psicologia racional deve retirar toda a sua ciência». Mas, isso é uma outra história.
42
IIIe Meditation, A.T., IX, 39 (trad. Luynes). A paginação do volume IX da edição de Adam-Tannery é reproduzida em
margem da edição de Oeuvres philosophiques de Descartes por F. Alquié, 3 vol., Garnier, 1967, onde as Meditations latinas e
francesas figuram no volume II.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 14

segundo a qual «eu penso», isso é, ela não implica em nada de exterior ao pensamento em vias de se efetuar e
de se enunciar (ou de se efetuar ao enunciar-se, ainda que tacitamente). Trata-se, pois, de uma pura auto-
referência. Mas, por sua vez, o «eu penso» se multiplica ao infinito, já que é uma idéia que envolve todas as
modalidades do pensamento, os pensamentos de todos os objetos possíveis e, finalmente, todas as minhas
ações, na medida em que as penso. Aos termos inicialmente enumerados (eu duvido, eu concebo, etc.)
Descartes acrescenta outras modalidades que concernem a ações corporais presentes ao pensamento: eu
caminho, eu respiro, etc. Pode-se representar tudo isto por um esquema:
Eu duvido
Eu concebo
Eu afirmo
Eu nego
Eu (não) desejo
Eu sou = Eu penso =
Eu imagino
Eu sinto
Eu caminho
Eu respiro
Etc.

Mas temos também o movimento recíproco, no qual todas as modalidades de meu pensamento estão
reunidas em uma única idéia simples:

Eu duvido
Eu concebo
Eu afirmo
Eu nego
Eu (não) desejo = Eu penso = Eu sou
Eu imagino
Eu sinto
Eu caminho
Eu respiro
Etc.

A expressão: «eu sou pensante», ou: «eu sou uma coisa que pensa» é, em suma, um equivalente geral
de todas as modalidades infinitamente diversas do pensamento, com seus objetos e suas referências próprias.
Observe-se que o termo «coisa» não é, de forma alguma, uma maneira de desnaturar a subjetividade, mas
antes, para Descartes, a forma de nos fazer entender que é do ponto de vista de um sujeito que «pensamento»
e «existência» podem ser imediatamente identificados 43. Nessa meditação, o sujeito (ego) se reconhece como o
autor de todos os seus pensamentos 44. Esta «coisa» que pensa em mim não é outra, senão eu. Assim, a certeza
é, ao mesmo tempo, certeza de que sou eu quem penso em mim (ninguém pensa «em meu lugar», nem mesmo

43
Antes de ser substituído pelo termo «substância», do qual Descartes faz, aliás, um uso profundamente desviante, no que se
refere à tradição, «coisa» é uma expressão oxímora, denotando, ao mesmo tempo, a questão que sua coincidência coloca para
o sujeito e o suplemento de singularidade que ego cogito ou ego sum cogitans comportam, em relação à essência da
cogitatio. Pode-se falar, neste sentido, de heceidade do pensamento, que é propriamente o sujeito cartesiano.
44
O que não quer dizer, necessariamente, como sua causa: na Meditação III, Descartes operará esta distinção, mostrando
que, entre todas as minhas idéias, há pelo menos uma (a idéia de Deus) de que não posso ser a causa, pois ela me supera
infinitamente em perfeição: mas eu não deixo de ser, «formalmente», seu autor, nesse sentido em que sou de fato eu que a
penso. Por isto, a acuidade da tensão entre Ego e Ille, Homem e Deus, primeira e terceira pessoa, que então se cria, e o risco a
que ela submete minha identidade. Cf. E. Balibar, «Ego sum, ego existo», Descartes au point d’hérésie, Bulletin de la Société
française de philosophie, nº 3, 1992.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 15

Deus – talvez, sobretudo não Deus ) e certeza de que «penso de fato aquilo que penso» (há uma verdade
intrínseca de meus pensamentos: mesmo que eles sejam falsos, fictícios, etc., eles são meus pensamentos, que
«me pertencem»).

Tal sendo o movimento das Méditations, poderia parecer que o acento se desloca, se passamos a
outros textos: em particular, aos de Réponses aux IIe Objetions e aos de Principes de la philosophie45. O
problema, como diz a tradução francesa dos Principes, I, § 9, é de saber «o que é pensar»: problema de
definição, e não de interpretação de uma experiência. Mas, de novo, temos aqui uma relação entre uma
«substância» e «modos», ou entre o atributo principal desta substância (que se confunde praticamente com
ela), o pensamento (cogitatio) e seus modos, que dependem todos do cogitare ou são cogitationes:

escutar
imaginar
sentir
ver = pensar (pensamentos)
caminhar
etc.

Note-se que não se trata de ser ou de existir. Estamos no atributo do pensamento, que descrevemos 46.
Em contrapartida, vemos intervir o termo conscientia (Cogitationis nomine intelligo illa omnia quae nobis
consciis in nobis fiunt, quatenus eorum in nobis conscientia est…), ocorrência quase única em Descartes. O que
significa ela, exatamente? Parece-nos que é preciso seguir o fio condutor fornecido pelas traduções revistas e
aprovadas por Descartes, que sem dúvida nos orientam para a língua em desuso, mas que têm a enorme
vantagem de dissipar a ilusão da transparência das palavras. Ora, o que dizem? Simplesmente que sabemos, ou
que temos, nós próprios, conhecimento do que é o pensamento: «Pela palavra pensar, entendo tudo o que se
faz em nós de tal sorte que nós o percebemos imediatamente por nós mesmos, etc.» 47 O que é esta apercepção
ou este conhecimento imediato? Algumas observações bastante simples podem ser formuladas:

– primeiramente, a conscientia é, ela própria, um «pensamento» entre outros. Em nenhum lugar


Descartes diz que o pensamento em geral é a consciência; mas ele diz que não há pensamento sem este outro
pensamento – ou esta «idéia da idéia», como, mais tarde, dirá Spinoza – que é a consciência;

– em segundo lugar, ele se serve dessa tese, que ele afirma como um axioma, para introduzir uma
cláusula de completude: podemos inventoriar exaustivamente os modos do pensamento, pois assim como não

45
Ver os textos em nosso Dossiê abaixo. Encontrar-se-á uma interpretação em parte diferente na obra de Vincent
Descombes, La Denrée mentale, Editions de Minuit, 1995, p. 26 e seg. Ainda que afirme a filosofia mental «pós-cartesiana,
mais do que cartesiana», Descombes se esforça, de toda maneira, para fazer remontar a Descartes o que não é articulado
senão por Locke.
46
Observar-se-á adiante como Locke modifica a função dessa enumeração, na perspectiva de sua própria articulação da
«reflexão» e da «consciência».
47
Comparar o texto do Exposé Géométrique das Réponses aux Secondes Objections: «Cogitationes nomine complector omne
id, quod sic in nobis est, ut ejus immediate conscii sumus […] Ideae nomine intelligo cujuslibet cogitationis formam illam,
per cujus immediatam perceptionem ipsius ejusdem cogitationis conscius sum…»; tradução de Clerselier: «Pelo nome de
pensamento, compreendo tudo o que é de tal modo em nós, que disso somos imediatamente conhecedores […] Pelo nome de
idéia entendo esta forma de cada um de nossos pensamentos, pela percepção imediata da qual temos conhecimento desses
mesmos pensamentos […] (A.T., IX, 124).
F. Alquié (ed. Cit. P. 586) acredita poder anotar: «Em vez de conhecimento, diríamos, mais acertadamente: conscientes.
Pois o latim é: ut ejus immediate conscii sumus. O pensamento (cogitatio) é, portanto, para Descartes, sinônimo de
consciência […] Cf. Principes, I, 9. Por sua vez, em descartes selon l’ordre des raisons (Aubier, 1953, vol. I, p. 63 seg., 94-
103), M. Gueroult não cessa de praticar a equação da essência do pensamento e da consciência, para mostrar, em particular,
que não há diferença real entre pensamento e pensamento do pensamento.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 16

há nada que pertença ao pensamento sem que o saibamos, a todas as nossas ações correspondem pensamentos.
Não há, portanto, nem pensamentos inconscientes nem ações impensadas;

– em terceiro lugar, isso quer dizer que a conscientia é um operador que, em permanência, relaciona
todos os pensamentos a um ego que pode pensá-los, e que, reciprocamente, inscreve o sujeito entre os
pensamentos (fazendo que haja, entre outras coisas, um pensamento de si mesmo). É-se tentado a dizer: «eu»
ou ego, esse eu que pensa, que caminha, que vê, etc., está inscrito, também ele, «objetivamente» (isso é, na
condição de idéia) no mundo dos pensamentos. Ele não lhe é exterior;

– enfim, esse conhecimento é imediato, isso é, não resulta de uma ligação ou de um raciocínio. Esse
ponto é decisivo: na história da filosofia, o que será denominado de «consciência» não será mais, todo o tempo,
um conhecimento claro ou racional, mas sempre imediato, ou originariamente fundado na imediatez.

O fato que Descartes dê esse conhecimento como imediato é justamente o que confundiu seus leitores,
pois isso conduz a uma mutação da noção de reflexão. Até então, a reflexão designava uma operação mediata:
em particular, quando os aristotélicos diziam que a alma e suas operações se conhecem pela reflexão, queriam
dizer que elas não se conheciam diretamente, mas somente por seus efeitos, suas diferenças. Ao contrário, em
Descartes, reflexão quer dizer que a alma ou pensamento se reconhece, ela própria, em cada uma de suas
modalidades, pois ela está a cada vez presente (e outros textos acrescentam que ela é identicamente presente,
isso é, que certos modos como a inteligência não têm, nesse sentido, nenhum privilégio, o que aliás se vê
claramente no § 9 dos Principes: ela está, igualmente, no sentir ou no querer) 48.

Poder-se-ia, no entanto, indagar do que, exatamente, tem-se aqui o conhecimento, qual é seu domínio
ou seu objeto. De uma certa forma, esse domínio é infinitamente extenso, já que todas as cogitationes estão aí,
de pleno direito, compreendidas. Mas ele é, por outro lado, extremamente pobre, pois refere-se, a cada vez, a
uma única e mesma coisa: ao fato de que pensamos sob tal ou tal modalidade, ou que conceber, querer, sentir,
etc, são pensamentos que ego pode trazer a si mesmo. Não se trata, portanto, de fixar, para esta «consciência»
um programa de investigação reflexiva, como o de descobrir faculdades da alma ou analisar operações lógicas,
etc., contrariamente ao que acreditarão alguns sucessores de Descartes. Contrariamente, sobretudo, ao que
Locke teorizará e praticará a respeito da mind. É também por isso que a famosa fórmula das Méditations, que
diz «que a alma conhece mais facilmente do que o corpo» não introduz qualquer psicologia racional ou
metafísica da alma. Se a alma «conhece mais facilmente…» é certamente porque ela se reconhece em toda parte
como ela mesma (até no menor «pedaço de cera»…), mas também porque, diferentemente do conhecimento do
corpo, que é complexo e árduo, o da alma é simples e sempre idêntico a ela mesma. Eis porque Descartes diz
que esse conhecimento não deve nos ocupar por muito tempo, mas que podemos lidar rapidamente com ele.
Basta apreender seu princípio. Em última análise, se há em Descartes uma metafísica da alma, esta metafísica é
uma ciência pontual.

A fórmula que nos diz que não podemos pensar sem saber o que pensamos e nos saber «pensantes»
tem uma importância igualmente crucial. É ela que, na discussão de Locke sobre as idéias inatas, conduzirá a
fazer da «consciência» o próprio objeto do pensamento, mas também a levantar o problema do inconsciente. É

48
Sobre os paradoxos da reflexão em Descartes, consultem-se os trabalhos de Jean-Marie Beyssade: La Philosophie
première de Descartes (Le temps et la cohérence de la métaphysique), Flammarion, 1979, e sua edição do Entretien de
Descartes avec Burman (PUF, 1981).
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 17

útil relembrar aqui algumas das fórmulas de que Descartes se serve 49. Nas Réponses aux IVe Objections (de
Arnauld), ele escreve:

«não pode haver em nós pensamento do qual, no exato momento em que ele está em nós, não tenhamos
uma consciência atual (nec ulla potest in nobis esse cogitatio, cujus eodem ello momento, quo in nobis
est, conscii non simus). Por isso, não duvido que o espírito, tão logo é infundido no corpo de uma
criança, comece a pensar, ainda que não se lembre, em seguida, daquilo que pensou, porque as espécies
de seus pensamentos não permanecem imprimidas em sua memória.»

E, nas Réponses aux VIe Objections:

«Não é possível que não experimentemos todos os dias em nós mesmos o que pensamos ( non potest non
esse sibi conscius); e, no entanto […] ninguém poderá razoavelmente inferir que não pensa, a não ser
aquele que […] pretender manter teimosamente esta proposição: o homem e a besta operam da mesma
maneira, que, quando se vier mostrar a ele que as bestas não pensam, preferirá se despojar de seu
próprio pensamento (o qual ele não poderá, entretanto, não conhecer em si por uma experiência
contínua e infalível) (Nam sane fieri non potest quin semper apud nosmet ipsos experiamur nos
cogitare) ao invés de mudar sua opinião…»

Por sua vez, nas Septièmes Objections, o Pde. Bourdin escrevia:

«Se aquele que se serve desse método diz que pensa […] e que pensa de tal forma que, por uma ação
refletida, ele vislumbra seu pensamento e o considera, o que faz com que pense, ou melhor, que saiba e
considere o que pensa (o que denominamos, na verdade, de aperceber, ou ter um conhecimento interior)
(et consideret se cogitare (quod vere est esse conscium, et actus alicujus habere conscientiam) e se diz
que isso é o próprio de uma faculdade […] que é espiritual e, portanto, que ele é um espírito, ele dirá
aquilo que ainda não disse, o que deveria dizer, o que esperava que dissesse, e que de fato
freqüentemente quis sugerir, quando o vi esforçando-se em vão para nos dizer o que era […] mas ele de
novo não o dirá…»

É esse contraditor de Descartes que introduz, como sinônimo de conscientia, o termo reflexão em seu
sentido escolástico: a alma não conhece diretamente, mas por reflexão. Descartes vai dar sua resposta:

«Quando nosso autor diz que não basta que uma coisa seja uma substância que pensa para ser [uma
substância] completamente espiritual e acima da matéria, que, somente ela, ele acredita poder ser
propriamente denominada de espírito; mas que, além disto, é necessário que, por um ato refletido de seu
pensamento, ela pense que ela pense, ou que ela tenha um conhecimento interior de seu pensamento (ut
actu reflexo cogitet se cogiatre, sive habeat cogitationis suae conscientiam), ele se engana […] Pois o
primeiro pensamento, qualquer que seja, pelo qual nos apercebemos de qualquer coisa, não difere mais
do segundo, pelo qual nos apercebemos que nós já a tínhamos anteriormente apercebido, do que este
último do terceiro, pelo qual nos apercebemos que nós já tínhamos anteriormente apercebido ter
apercebido essa coisa; e não se poderia achar a menor razão pela qual o segundo desses pensamentos
não venha de um sujeito corporal, se aceitamos que o primeiro pode daí pode vir.»

Parece-nos possível interpretar esses textos (que deram lugar a muitas discussões) sugerindo que
Descartes mantém, aí, quatro teses sucessivas, mas que, de seu ponto de vista, formam uma só doutrina:

1. A alma ou espírito (mens) não pode não pensar, porque esta é, precisamente, sua essência. Em
outras palavras (e esta formulação duplamente negativa confere a sua tese um valor de princípio), seria
contraditório afirmar, ao mesmo tempo, que a essência da alma é de pensar e que ela possa não pensar 50.

49
Ver no Dossiê de textos uma lista mais completa, com referências detalhadas.
50
Ver-se-á que essa tese conduzirá Locke a cessar de identificar a faculdade de pensar (e de se pensar), que ele chama de
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 18

2. A essa tese de essência, pode-se dar uma tradução sobre o plano da existência: a partir do momento
em que uma alma existe, ela não cessa de pensar, e isso por tanto tempo quanto ela exista. Em outras palavras,
a alma sempre pensa. Mas isso não significa em nada que ela se relembre, quando pensa, de haver,
anteriormente, pensado (e de ter existido quando ela existe!), quer seja em sonho, quando seu corpo estava em
gestação, na infância, ou simplesmente no instante anterior… A recíproca figura no Entretien avec Burman:
para que a alma seja «consciente» (tenha consciência) de seu pensamento, não é em nada necessário que este
pensamento já seja passado. Em outros termos, tese radical (e psicologicamente incômoda), o pensamento que
é a essência da alma nada tem de essencial a ver com a memória , ele existe e deve ser pensado fora de
qualquer consideração de tempo escoado, mas sempre «atualmente», isso é, no próprio ato de pensar (e em
sua duração própria).

3. Descartes sustenta, em um só movimento, que a alma não pode pensar sem saber que ela pensa, ou
sem se saber, com certeza, pensante. Mas é preciso fazer aqui algumas distinções sutis. Descartes quer dizer,
antes de mais nada, que todo pensamento se sabe pensamento (por exemplo, nós não podemos «querer uma
coisa que não apercebemos pelo mesmo meio que a queremos»). Trata-se da presença a si do pensamento, que
é identicamente em todas as suas modalidades e não depende do exercício de nenhuma faculdade particular.
De novo, a formulação negativa seria mais clara: a alma, na medida em que pensa de uma maneira ou de outra,
não pode se desconhecer (isso é, se tomar ela mesma por um outro gênero de «coisa»). Ela sempre tem, pois, a
possibilidade de se conhecer como «coisa pensante» em geral, sob uma ou outra de suas modalidades, ou de
apreender sua própria essência nas «ações» pelas quais se exprime.

É precisamente disso que se tratava no cogito, sobretudo se ele é exposto sob a forma como o fizemos
acima, como «equivalente geral» das diferentes modalidades do pensar, imanente à sua variação. Pois jamais é
de uma maneira impessoal que a alma ou o pensamento apreende sua própria essência genérica, presente em
cada uma de suas modalidades particulares, mas por uma experiência que só tem sentido na primeira pessoa
(como «minha experiência que aqui está»), hoc pronuntiatium, dizem as Meditações), mesmo se em cada um
de nós ela se efetua de maneira rigorosamente idêntica. Estamos bastante próximos daquilo que faz a
originalidade e a dificuldade do cartesianismo: o conhecimento do pensamento apreende, de fato, uma essência
racional, comunicável, mas a partir de uma experiência absolutamente singular. O cartesianismo é esse curto-
circuito, essa tensão quase insustentável entre a universalidade da essência e a imediatez da existência singular,
reunidas em um mesmo enunciado. Se o conceito de «consciência», tal como se formará logo em seguida,
segundo a modalidade de Malebranche ou de Locke, não tem verdadeiramente lugar aí, não é porque ele visa,
justamente, a distender essa unidade de contrários, introduzindo uma mediação (e, de mais a mais, como
veremos, toda uma série de mediações)? Deixemos de lado, por um instante, nossa resposta.

4. Chega-se, enfim, à quarta e última tese: a alma sabe ou conhece o que ela pensa, isso é, ela conhece
seus próprios pensamentos por aquilo que eles são. À primeira vista, trata-se apenas de aplicar em detalhe o
que acaba de ser afirmado para o pensamento em geral. Mas vê-se, rapidamente, que o detalhe pode trazer
problemas, na medida em que entra em jogo a questão da «união da alma e do corpo», nas sensações,
sentimentos, paixões e, mesmo, na imaginação 51. De uma certa maneira, existe toda uma série de pensamentos
cuja natureza desconhecemos, já que os atribuímos ao corpo, como se, na verdade, fosse o corpo que pensasse

mind, a uma alma substancial (para a qual ele reserva os termos soul e spirit).
51
Encontrar-se-á no livro de D. Kambouchner, L’homme des passions. Commentaires sur Descartes. Albin Michel, 1995,
uma discussão dessas dificuldades, conduzindo à idéia de um «cogito desenvolvido», distinto da «reflexão pura» (vol. III, p.
353 e seguintes.).
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 19

em nós (quando sentimos, etc.). Na VIe Méditation, Descartes explica que esse engano desempenha uma
função vital: se nós não localizássemos nossas sensações no corpo, as tomaríamos por conclusões da alma a
partir de informações recebidas pelo corpo, poderíamos colocá-las em questão, e não reagiríamos
espontaneamente às dores, perigos, aos etc., de acordo com as necessidades de nossa sobrevivência.
Argumentação finalista que nos obriga a questionar se é possível sustentar em geral que a alma se sabe ou se
conhece.

Novamente pode-se, ao que parece, distinguir duas etapas. Pode-se, inicialmente, dizer que, até no
engano, todos os pensamentos se apreendem de fato em sua verdade: precisamente como sensações, vontades,
imaginações, julgamentos… Eles não se confundem entre si. E aqueles que implicam a influência do corpo ou
uma influência sobre o corpo são verdadeiramente pensados como «unidos» ou «confundidos» com suas ações
e suas paixões. O contrário, disse-se, implicaria numa mistificação. Mas, em seguida, e isso é bem mais
delicado, pode-se dizer que nós sempre temos a possibilidade de dirigir nossa atenção exclusivamente para
aquilo que faz que uma idéia seja uma idéia, ou que um pensamento seja uma ação da alma. Descartes não
diz que essa possibilidade seja realizada em todas as circunstâncias, nem que ela seja facilmente exercida: mas
que ela sempre é em direito, possível, e que pode-se apreender seus meios por meditação. Acede-se, assim, a
uma prioridade ou «precedência» que é inerente à natureza da alma, e que a manifesta claramente para ela
mesma. O que nós pensamos, então, em todos os casos, não é a confusão, mas a distinção do pensamento, que
só depende dele para ser recuperada.

O que pretendia, portanto, dizer Descartes, repetindo que «a alma conhece mais facilmente do que o
corpo» e que nós temos dela um melhor conhecimento? Frase sem dúvida não destituída de intenções
apologéticas, mas que deve também poder se conciliar com sua prática teórica. Acreditamos que ele não tinha
qualquer intenção de fazer uma teoria das faculdades ou operações do pensamento 52. Em contrapartida, tratou-
se, para ele, de fazer, a cada vez, a mesma demonstração: o pensamento pode ser referido somente à «coisa que
pensa» do qual ele é a ação, mesmo se é sob o efeito de objetos exteriores e particularmente do corpo. No fim
das contas, o conhecimento que tenho de mim mesmo, como pensamento (esta «coisa qualquer» ou esta
«coisa» que eu sou) tem por objetivo refazer a experiência da certeza primeira e constatar, em todos os casos, a
distinção da alma. É por isso que ele pode ser, ao mesmo tempo, infinitamente rico (múltiplo) em objetos,
reencontrados em todas as ocasiões da vida, e infinitamente pobre (simples) em resultados ou conclusões: pois
a conclusão é sempre a mesma.

Avancemos que o que a alma conhece por ela mesma em sua relação com o mundo, não é senão sua
liberdade ou potência, que consiste em sua capacidade própria de pensar claramente e distintamente as coisas
(entre as quais ela mesma) – e, em caso contrário, de suspender o julgamento. Vê-se que, sobre esse ponto, o
objetivo do conhecimento de si nada tem de especulativo, mas que sua orientação metafísica é
fundamentalmente «prática» ou, se preferirmos, ética. Mas essa ética da autonomia intelectual é tão incômoda
quanto arriscada, pelo que comporta de precariedade e de suficiência53. Ela não assegura a ancoragem da
certeza de si mesmo na existência (fundamentum inconcussum) senão ao preço da maior insegurança quanto à
identidade ou à essência de seu «objeto», a cada instante reconquistada sobre sua alteridade interior: eu não
sou esse Deus cuja idéia perfeita está, no entanto, inscrita como seu modelo infinito ou sua causa «eminente»

52
Ele havia renunciado a isso após as Regulae ad directionem ingenii, que permaneceram inacabadas.
53
Em «Le cerveau et la pensée» (reed. In Geroges Canguilhem, Philosophe, historien des sciences, Albin Michel, 1993),
Canguilhem a caracteriza como «reivindicação» (e não como representação) de uma «vigilância do mundo das coisas e dos
homens» (p. 29-30).
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 20

no coração de minha razão, tanto quanto não sou esse corpo ao qual minhas percepções se encontram de tal
forma unidas que experimento nele minha própria existência, minhas ações e paixões, e assim eu sou «eu».

É esse conhecimento que os cartesianos, discípulos infiéis, vão em seguida tentar transportar para o
plano da ciência. Mas a ciência se chamará, igualmente, consciência: cum scientia.

2. A idéia de uma metafísica da alma entre os «cartesianos» franceses

Ainda que o substantivo «consciência» não figure em sua obra, nem em latim nem em francês, é
importante referirmo-nos, antes de mais nada, a Arnauld, pois ele contribui para a emergência do conceito por
suas poderosas sugestões54.

A primeira está contida na La logique ou l’art de penser, de 1662, obra conhecida sob o título de
«Lógica de Port-Royal», escrita em colaboração com P. Nicole, em que se vislumbra, algumas vezes, uma das
fontes do psicologismo que teria dominado a lógica até a entrada em cena do formalismo moderno. É uma
reorganização da teoria clássica dos julgamentos, dos raciocínios e do método sob as bases de uma análise dos
elementos do pensamento. Ora, esta é uma teoria das «idéias», no novo sentido que esse termo está
adquirindo: signos e imagens das coisas que têm sua origem no próprio espírito. Assim, as formas lógicas
devem ser concebidas como traduzindo, por meio da linguagem, «operações mentais» cuja natureza é, em
última análise, independente desse revestimento verbal. Reencontrar-se-á em Locke essa sugestão
consideravelmente desenvolvida55.

A segunda é explicitada na obra, muito mais tardia, dirigida contra Malebranche, Des vraies et des
fausses idées (1683). É aqui que Arnauld inaugura a consideração do «cogito» (futuro «eu penso»), tomado
nominalmente, como argumento-tipo e modelo do conhecimento de si sobre o qual deve repousar uma
metafísica racional. Essa insistência é associada a uma discussão concernindo a natureza das idéias como
«representações». A esse termo, que ele considera como perigosamente equívoco, Arnauld prefere o de
percepção, aplicável a toda situação na qual uma coisa «está objetivamente em meu espírito». Trata-se, em
suma, de encontrar uma via média entre dois opostos, igualmente inaceitáveis: que as idéias sejam «seres
representativos» autônomos (o que leva à tese malembranchiana segundo a qual a alma percebe, não os
objetos em si mesmos, mas suas idéias, isso é, suas representações ou modelos); ou, inversamente, que as
«coisas nelas mesmas» sejam, de alguma maneira, visadas pela alma (segundo a doutrina medieval da
intencionalidade, que será mais tarde reencontrada, à sua maneira, pela fenomenologia). As idéias, segundo
Arnauld, devem ser consideradas como o meio termo de uma «dupla relação»: com a alma que pensa, de que
elas são uma modificação, e com o objeto que elas representam, segundo um modo específico que não seria, em
geral, redutível à noção de retrato ou de imagem. No limite, elas não seriam nada além do nome fornecido a
essa relação56.
54
Antoine Arnauld, «o grande Arnauld», teólogo e filósofo, a quem a longevidade excepcional (1612-1694) permitiu ser, ao
mesmo tempo, o principal «intelectual» do jansenismo, o interlocutor de Descartes no momento do debate sobre as
Meditações, mais tarde adversário de Malebranche sobre as questões da graça e da visão em Deus e, enfim, correspondente
de Leibniz a propósito do Discours de Métaphysique (1686), é o promotor de uma tentativa de fusão entre o cartesianismo e
agostianismo que se pode considerar como a fonte maior do espiritualismo na filosofia francesa. É ele que busca fazer
reconhecer que o cogito ergo sum comporta «antecedentes» na obra de Santo Agostinho – que Descartes, em suma, não teria
feito senão redescobrir.
55
Locke tinha traduzido em inglês, em 1675-1676, os Essais de Morale de Pierre Nicole, em que esse último expunha, entre
outras coisas, que é preciso ir às próprias coisas, para além das palavras. Cf. Michaud, 1986, p. 111; Marshall, 1994, p. 131 e
seg.
56
Sobre a concepção da idéia em Arnauld e sua crítica da idéia de uma obscuridade da alma em relação a si mesmo, ver os
estudos de J.-M. Beyssade, «Sensation et idée: le patron rude» e de D. Kambouchner, «Des vraies et des fausses ténèbres. La
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 21

A presença da alma como um dos termos da dupla relação que constitui a idéia autoriza Arnauld a
propor uma definição do pensamento (que ele liga à autoridade de Descartes e à sua definição da cogitatio)
identificando-o, gradativamente, à reflexão e em seguida, implicitamente, à «consciência»:

«Nosso pensamento ou percepção é essencialmente reflexiva sobre ela própria: ou, o que se diz mais
auspiciosamente em latim, é sui conscia. Pois não penso sem que eu saiba que penso. Eu não conheço
um quadrado sem saber que o conheço […] além dessa reflexão que se pode denominar virtual,
encontrada em todas as nossas percepções, há uma outra mais expressa, pela qual examinamos nossa
percepção por meio de uma outra percepção, como qualquer um pode comprovar sem dificuldades […]
segue-se que toda percepção sendo essencialmente representativa de qualquer coisa, e assim chamando-
se idéia, ela não pode ser essencialmente reflexiva sobre ela mesma, sem que seu objeto imediato seja
essa idéia, isso é, a realidade objetiva da coisa que se diz que meu espírito percebe…»

Não nos esqueçamos que no século XVII «realidade objetiva» quer dizer representação do objeto, por
oposição à «realidade formal» da coisa, que é seu ser em si. Vê-se que a dupla relação constitutiva da idéia se
encontra, por sua vez, desdobrada, a partir de seu termo mental. Dessa reflexão que é sempre, ao menos,
virtual, Arnauld faz o princípio subjetivo de toda ciência, a começar pela própria ciência da alma e de Deus, de
quem temos as idéias mais claras de todas.

Encontramos concepções análogas entre os cartesianos «ortodoxos» nesse último terço do século
XVII. Desde 1666, Louis de La Forge, médico e filósofo, que acabava de editar, a título póstumo, o Traité de
l’Homme de Descartes, escreve uma «continuação», sob o título de Traité de l’esprit de l’homme, na qual
declara que «[seu] desejo […] não foi senão o de explicar, um pouco mais longamente do que ele [Descartes]
havia feito, as Faculdades da Alma». O duplo patrocínio do autor das Meditações e daquele das Confissões é
imediatamente reivindicado. Ele também entende por idéia «unicamente as formas dos pensamentos do
Espírito» que nos representam «dois tipos de Seres […] aquele que é extenso, que chamamos de Corpo, e
aquele que pensa, que nomeamos Espírito». O Espírito, «isso é, a coisa que pensa», se pensa, portanto, a ele
próprio. O conhecimento do pensamento por ele mesmo, para o qual convém a palavra cartesiana do cogitare é
essencialmente idêntico à intelligere de Santo Agostinho, que se dirige ao homem interior (homo interior,
enquanto o Corpo é homo exterior)57.

Mais adiante, La Forge vai descrever esse conhecimento de si como um recolhimento e uma ascese,
uma forma, para o Espírito, de «se retirar em si para se observar sem testemunhas» (p. 100) e, finalmente,
como uma consciência (para a qual ele emprega igualmente o nome de sentimento interior):

«Tomo aqui o Pensamento por essa percepção consciente, ou conhecimento interior que cada um de nós
ressente imediatamente por si mesmo quando se apercebe daquilo que faz ou do que se passa em si.» (p.
112).

E ainda:

«O que será, então, essa admirável função, cuja essência parece tão escondida? […] se todas as funções
do conhecimento são operações que nada devem à matéria e que não saem da alma, é um engano
grosseiro olhar para qualquer outra coisa que o próprio espírito, para descobrir sua origem [les ressorts]
[…] Provamos, precedentemente, que a natureza do espírito era de ser uma coisa que pensa, e dissemos

connaissance de l’âme d’après la controverse avec Malebranche», in Antoine Arnauld. Philosophie du langage et de la
connaissance, Études réunies par Jean-Claude Pariente, Vrin, 1995.
57
De la Forge, op. cit., PUF, 1974 (reed.), p. 82. Cf. Dossiê de textos.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 22

que a essência do pensamento consistia nessa consciência e nessa percepção que o espírito tem de tudo o
que nele se passa…» (p. 156).

Acompanhamos aqui a realização, por La Forge, de três operações fundamentais, a uma só vez: ele
introduz o neologismo consciência; ele a define como a própria essência do pensamento, a modalidade
segundo a qual «a alma sempre pensa»; e ele a identifica com a interioridade, ou com esse movimento pelo
qual «o homem interior» entra em si mesmo, isso é, se contempla como «puro espírito». Os desenvolvimentos
de La Forge, a esse respeito, são estreitamente ligados ao projeto de uma demonstração da imaterialidade e da
imortalidade da alma, que, por sua vez, precedem e orientam a análise de suas «faculdades» 58.

A preocupação apologética se exprime plenamente no tratamento da questão da união da alma e do


corpo, que assinala um novo afastamento em relação a Descartes. Não somente La Forge introduz, em sua
interpretação, o conceito fundamentalmente anti-cartesiano de uma Aliança ou um Tratado, fundado no
modelo do «governo do mundo» e, como ele, concluído sob a égide de Deus – cujas cláusulas ele vai enumerar,
mas deduz (não sem embaraços, pois, como conciliar essa tese com o monismo fundamental da concepção
cartesiana de pensamento?) a idéia de que a Alma ou Espírito do Homem comporta uma «parte superior» (a
única verdadeiramente imortal ou imaterial) e uma «parte inferior» (susceptível de união com o corpo e
submetida a sua influência), que se combateriam uma à outra, em particular nas paixões 59.

Mas, o que é talvez mais notável é a maneira pela qual o recurso à idéia de interioridade contribui,
finalmente, para o ocultamento da questão do «eu», ou da primeira pessoa, uma vez prestadas as homenagens
devidas ao cogito. Sobre esse ponto, La Forge, que se pretende, ao mesmo tempo, agostiniano e cartesiano, não
é, de fato, nem uma coisa nem outra: o conceito de consciência, ou de sentimento interior que ele introduz é
impessoal (é uma essência ou faculdade), tão afastado do ego das Confissões, tomado pelo combate interior
(ego eram, qui volebam, ego, qui nolebam…)60 quanto daquele das Meditações, ocupado com a questão «quem
sou eu?», e «(o que é, pois) que pensa em mim?».

O movimento se realiza e se codifica, dissemos, em um terceiro autor, Pierre-Sylvain Régis (1632-


1737), que, em seu Système de philosophie contenant la Logique, la Métaphysique et la Morale61 fornece duas
definições para a Consciência, no Glossário dos termos não usuais que figura no fim da obra: «Consciência é o
testemunho que prestamos a nós mesmos acerca de qualquer coisa»; a outra, especificamente ligada à
retomada do texto cartesiano:

«Asseguro-me, pois, de que existo todas as vezes que acredito conhecer alguma coisa; e estou convencido
da verdade desta proposição, não por um verdadeiro raciocínio, mas por um conhecimento simples e
interior, que precede todos os conhecimentos adquiridos, e que denomino consciência.»

58
Ainda que La Forge invoque Santo Agostinho, há uma diferença considerável entre a forma como trata a questão da
interioridade, ou intimidade da alma e a forma como ela aparecia nas Condissões ou em De Registro. É que, para Agostinho,
o que descobrimos «no mais profundo de nós mesmos» é, por um lado, um combate permanente entre a aspiraçao à salvação
e a inclinação para o pecado e, por outro, o apelo do próprio Deus, «mestre interior» que transcende nossa natureza e a põe,
de algum modo, «fora de si». Essa referência não tem qualquer peso em La Forge, muito mais naturalista.
59
Descartes, no artigo 47 das Paixões da Alma, se havia explicitamente afastado dessa «imaginação» de «combates entre a
parte inferior e a parte superior da alma». Para ele, a alma não tem partes, pois toda sua essência é somente pensar, sob uma
multiplicidade de modalidades.
60
Santo Agostinho, Confissões, VIII, x, 22: «eu era, eu mesmo, aquele que queria e que não queria» (trad. De Arnauld
d’Andilly).
61
Ver nosso Dossiê de textos.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 23

Mas, sobretudo, (enquanto a Física é a ciência dos corpos) ele identifica a Metafísica com a ciência das
verdades que concernem às almas, isso é, com o «conhecimento das substâncias inteligentes» consideradas,
seja «em si mesmas», ou na condição de Espíritos, seja «em relação ao corpo» ao qual o Espírito está unido, ou
que lhe «pertence mais do que os outros». O sistema de Régis converte, verdadeiramente, o «eu» cartesiano
em «eu consciente» e este último em sujeito-objeto de uma metafísica da alma, a uma só vez intelectualista e
espiritualista, ou de uma psicologia racional. Deveremos nos interrogar em que medida o «empirismo»
lockiano difere desse ponto de vista. Se esse é o caso, não é tanto, talvez, em razão de sua conversão às próprias
coisas, do que do cerrado confronto com outros discursos teóricos, profundamente (ainda que diferentemente)
impregnados de uma visão teológica: o de Malebranche, que nega à alma humana a capacidade de se conhecer
a ela própria claramente, e o do «platônico de Cambridge », Ralph Cudworth, que forja o neologismo
consciousness a partir de uma etimologia grega fictícia, e tenta, por esse meio, opor ao materialismo
ameaçador uma teologia da emergência progressiva do espírito na natureza. Examinemo-los.

3. Consciência como desconhecimento: Malebranche

Os cartesianos são os teóricos da consciência clara, como conhecimento de si; cada um à sua maneira,
Malebranche e Spinoza chamarão de «consciência» uma obscuridade ou desconhecimento necessário 62. Mas, à
diferença de Spinoza, que caracteriza a consciência como desconhecimento, no sentido em que ela é incapaz de
formar uma idéia adequada da individualidade corporal, cuja multiplicidade supera muito seu poder de
percepção (Ética, II Parte, prop. 21 e s.), Malebranche faz do desconhecimento uma característica da relação
que a alma entretém com ela mesma. De forma bastante surpreendente, ele descreve essa relação na própria
linguagem que havia servido a Descartes para caracterizar a «confusão» da união da alma e do corpo. É sem
dúvida por isso que ele utiliza-se indiferentemente dos termos consciência e sentimento interior, ou explica um
pelo outro. Por outro lado, ele explica que a representação confusa que a alma humana tem dela mesma está
ligada (não causalmente, mas simbolicamente) à influência que assume o corpo, ou melhor, à complacência
pelo corpo que, no homem, resulta de sua queda. Trata-se, portanto, de uma concepção estreitamente
comandada pelo dogma de uma perversão inicial da natureza humana. A consciência malebranchiana liga-se,
intrisecamente, ao amor de si, que deve se converter, para se transformar em amor de Deus.

É preciso, no entanto, cuidar para não deformar o pensamento de Melebranche, cujo finalismo radical
comporta também uma dimensão construtiva: ele explica, com efeito, que, sem essa complacência do corpo, se
a alma fosse capaz de se pensar e de se conhecer a ela mesma de uma forma pura, ela se desviaria das
necessidades e das tarefas da vida terrestre, e não aspiraria mais senão a conhecer Deus e a se unir
imediatamente com ele, o que iria contra o destino terrestre do homem. O desconhecimento é, pois, útil, ele
tem um fim prático. Ele inscreve a economia sobrenatural da salvação nas exigências naturais da saúde, e
reciprocamente.

Na Recherche de la Vérité, de 1674, Malebranche explicou claramente sua teoria da consciência como
conhecimento confuso da alma, e sua oposição, quanto a esse ponto, ao cartesianismo 63. Ele distingue quatro
«maneiras de conhecer» (às quais correspondem quatro tipos de objetos de conhecimento):

62
A comparação com Spinoza, praticada por seus adversários e, mesmo, por alguns de seus defensores, foi a cruz que
Malebranche carregou.
63
Livro III, 2ª Parte, cap. Vi E vii. Cf. Dossoiê de textos.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 24

1. Somente a Deus conhecemos «por ele mesmo», isso é, ele é conhecível em si, ou melhor ainda, ele
se faz conhecer em nós, como nosso «mestre interior», ou a «luz de nosso próprio espírito». Esse
conhecimento supremamente adequado, esclarecedor, mais do que esclarecido, começa com o que
Malebranche denomina a idéia geral do ser e culmina na de infinito, ou de ser perfeito64. Ela nos revela que
nossa essência está unida à essência de Deus, e não é separável do amor: mas trata-se de um amor intelectual, e
não de um sentimento65.

2. No que se refere ao conhecimento «pelas idéias», ele é o ponto característico da teoria de


Malebranche (e o mais contestado). As idéias são consideradas, a uma só vez, como arquétipos (retorno a uma
inspiração platônica) e como representantes das coisas, que elas substituem para o entendimento. E, segundo
Malebranche, o «lugar» desses arquétipos é o próprio Deus, o que quer dizer que nós vemos em Deus, como em
uma tela transcendental, as idéias geométricas dos corpos e, mais geralmente, as «verdades eternas» da razão e
da ciência. Notemos que as propriedades de que se trata aqui são qualidades geométricas e mecânicas dos
corpos, correspondendo a idéias claras e distintas (qualidades para as quais Locke forjará a expressão de
«qualidades primeiras»).

3. O conhecimento por consciência ou sentimento interior é aquele que temos de nosso próprio
espírito ou de nossa alma: ele é imediato, mas obscuro e confuso (como podemos experimentar e como se pode
explicar por meio da teologia da queda). O «eu» que ela nos apresenta é um eu alienado, ambivalente, que se
revela e se esconde, ao mesmo tempo66.

4. Enfim, a «conjectura» é o modo pelo qual conhecemos «as almas dos outros homens», portanto a
essência mesma do outro: seu pensamento semelhante ao nosso, seus sentimentos saídos, da mesma forma
que os nossos, de uma união da alma e do corpo, sua linguagem «instituída»… É, pois, esse conhecimento que
torna possível a comunicação, ou a sociedade.

A identificação entre a consciência e o sentimento interior dá lugar, em Malebranche, a uma belíssima


fenomenologia, que se prolonga em toda a sua doutrina moral. Como ele é o primeiro grande utilizador do
termo de consciência em um sentido metafísico e psicológico, essa equação terá fortes conseqüências na
tradição filosófica francesa (por exemplo, em Rousseau). Ela introduz, de certa forma, um terceiro termo entre
a idéia do conhecimento e a do julgamento. Em relação ao conhecimento verdadeiro, a consciência tem,
evidentemente, uma dimensão restritiva, o que vai contra a ilusão cartesiana de um conhecimento perfeito da
alma por si mesma (e, em conseqüência, contra a suficiência de si da alma que conhece, na qual Malebranche,
como todo o anti-humanismo do século, vê uma heresia e quase uma blasfêmia). Mas, por outro lado, pelo
sentimento confuso que temos de nós mesmos, nós apreendemos algo de essencial, que é o pressentimento de
nossa liberdade, inseparável de um destino sobrenatural67.
64
Que também é a idéia de ordem: nesse sentido, há poucos autores clássicos a quem convenha melhor o vocábulo de «onto-
teologia». Cf., em particular, os Entretiens sur la métaphysiqiue et la religion (1688) (Tomo XII das Oeuvres complètes de
Malebranche, organizadas por A. Robinet, CNRS/Livraria Vrin).
65
«Já que a Verdade e a Ordem são relações de grandeza e de perfeição reais, imutáveis, necessárias, relações que a
substância do verbo Divino mantém em si; aquele que vê essas relações, vê o que Deus vê: aquele que regula seu amor por
essas relações, segue uma lei que Deus ama invencivelmente. Há, pois, entre Deus e ele uma conformidade perfeita de
espírito e de vontade. Em uma palavra, já que ele conhece e ama o que Deus conhece e ama, ele é, tanto quanto é capaz,
semelhante a Deus» (Traité de Morale, I, 1, 14; ed. J.-P. Osier, p. 62.
66
«Eu não sou senão trevas, para mim mesmo» (Méditations chrétiennes et métaphysiques, IX, §15, citado por Michel
Henry, Généalogie de la psychanalyse, PUF, 1985, que apresenta uma interpretação de Malebranche como doutrina
contraditória: por um lado, uma «repetição» fenomenológica radical do cogito cartesiano, no elemento da afetividade, de
outro, uma desvalorização ontológica desse mesmo cogito, como privação ou alienação da luz).
67
Cf. Éclaircissements sur la Recherche de la Vérité, Ier. Èclaircissement (Ed. Rodis-Lewis, vol. III, p. 3-17). O esquema da
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 25

No fundo, no que concerne Descartes e em terminologia nele diretamente inspirada, as baterias são
inteiramente invertidas: não é de uma «união da alma e do corpo» que procede a confusão, mas de uma «união
da alma com Deus», vivida (em razão do pecado) sob o modo alienado da separação. E essa inversão leva a uma
proposição surpreendente, inaceitável para um cartesiano: se estamos em condições de distinguir claramente a
alma do corpo, não é positivamente, porque teríamos sempre uma idéia já clara da alma: é negativamente,
porque nós só temos uma idéia clara dos corpos!

«Não sabemos de nossa alma senão o que sentimos se passar em nós […] É bem verdade que
conhecemos, muito por nossa consciência ou pelo sentimento interior que temos de nós mesmos, que
nossa alma é alguma coisa de grande, mas não é possível que o que conhecemos não seja quase nada
daquilo que ela é nela mesma.»

Alguns anos mais tarde (1678), nos Éclaircissements à la Recherche de la vérité, Malebranche acusa o
golpe:

«Quando M. Descartes, ou os cartesianos a quem falo asseguram que se conhece melhor a alma do que o
corpo, eles só entendem por corpo a extensão. Como, pois, poderiam sustentar que se conhece mais
claramente a natureza da alma do que a do corpo, já que a idéia do corpo e da extensão é tão clara […] e
que a de alma é tão confusa que os próprios cartesianos discutem entre si todos os dias, para saber se as
modificações de cor lhe pertencem […] Pode-se dizer que se tem uma idéia clara de um ser e que se
conhece sua natureza quando se pode compará-lo com os outros, dos quais se tem também uma idéia
clara […] Mas não se pode comparar seu espírito com outros espíritos, para reconhecer aí claramente
qualquer relação; não se pode sequer comparar entre elas as maneiras de seu espírito, suas próprias
percepções.»68

A concepção da consciência exposta por Malebranche merece, por muitos aspectos, ser chamada de
existencial69. Sem dúvida, já em Descartes, a dificuldade do «cogito» consistia na certeza de uma existência
(ego sum, ego existo). Mas esta era tão mais forte quanto a experiência correspondente era mais intelectual. É
o inverso em Malebranche. Voltando à famosa análise do «pedaço de cera» da IIª Meditação, ele opõe, por sua
vez, as qualidades geométricas ou inteligíveis dos corpos às suas qualidade sensíveis (cores, sabores, odores,
etc.) que são indissociáveis dos sentimentos de prazer e dor. Ora, são essas últimas que nos revelam, de forma
precisamente «confusa», algo de nossa alma, de que elas são as «modificações». Inscrevendo a sensação, o
sentimento e a consciência em uma continuidade não somente semântica, mas ontológica, Malebranche abre o
caminho para uma descrição da subjetividade como conjunto de experiências qualitativas, inseparáveis de uma
particularidade individual que permanece incomunicável. E, mesmo, a rigor, inanalisável. Locke, para quem a
distinção das qualidades «primeiras» e «segundas» desempenha um papel fundamental, se esforçará, ao

alienação não cessa, entretanto, de se reproduzir infinitamente> «Nossos sentidos não são tão corrompidos quanto
imaginamos; mas é o mais íntimo de nossa alma, ié nossa liberdade que é corrompida» (De la Recherche…, Livro I, cap. V,
ed. cit., vol. I, p. 25). É impressionante observar que essa teorização anticartesiana da obscuridade da consciência tem por
contrapartida, não somente uma ontologia e uma moral teocêntricas, mas, sobre um outro plano, uma das primeiríssimas
ocorrências da idéia de «ciência do homem» (no sentido do genitivo objetivo), fazendo desse último o objeto de uma
disciplina antropológica (cf. Prefácio da recherche: «De todas as ciências humanas, a ciência do homem é a mais digna do
homem», ed. Cit., p. XX).
68
Ver a integralidade dos textos em nosso Dossiê.
69
Ela suscitará o maior interesse em Merleau-Ponty, que a ela consagrará um curso: L’Union de l’âme et du corps chez
Malebranche, Biran et Bergson, Notas recolhidas e redigidas por Jean Deprun, Vrin, 1978 (p. 29: «Vê-se que, em
Malebranche, os problemas atuais já estão presentes…»). Os temas malebranchianos não cessaram de retornar nas
problemáticas da consciência, entre os séculos XVIII e XX (notadamente entre os autores franceses), mas sobre a base de
uma posição prévia do sujeito humano como «consciência de si» que se pode dizer lockiana – para completá-la, retificá-la ou,
mesmo, subvertê-la pela afetividade e a «carne».
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 26

contrário, para mostrar sua compatibilidade com a tese de uma plena acessibilidade analítica das operações do
espírito (do Mind, que ele distingue, como veremos, da alma) 70.

A contra-prova dessa oposição nos é fornecida por um texto de Locke que é, por muitos aspectos,
notável, e que apresenta ainda a vantagem de nos reconduzir à intricação dos problemas teóricos e das
questões de língua: trata-se das notas críticas sobre a teoria das «idéias» de Malebranche, redigidas em 1696
(no momento mesmo em que Coste empreende a tradução do Essay) e publicadas, após sua morte, em 1706
nos Posthumous Works71. Locke recusa de forma absoluta a distinção operada na Recherche de la vérité entre
conhecimentos «por idéias», relativos às essências objetivas que vemos «em Deus» (isso é, exatamente tais
como existem no entendimento divino) e conhecimentos «por sentimento», relativos às qualidades sensíveis,
das quais só percebemos as «modificações do espírito» que elas produzem em nós (ou como nossas próprias
afecções). Para ele, todas as idéias ou percepções procedem da sensação, da reflexão, ou de sua combinação,
qualquer que seja seu grau de clareza ou de confusão (Ensaio, Livro II, cap. 1). O lado da objetividade (a
representação das coisas) e o da subjetividade (a modificação do espírito) não podem, portanto, ser repartidos
em múltiplos modos de conhecimento, mas estão presentes em todos os casos. Nesse momento, Locke assinala
o uso, por Malebranche, da palavra «sentiment» (em francês) e declara-se na impossibilidade de traduzi-la,
antes de mais nada por não conseguir compreendê-la (Examen, § 42). Essa dificuldade atinge seu ponto
máximo quando Malebranche declara que a «consciência ou sentimento interior» é o modo do conhecimento
da alma por si mesma:

«A idéia de uma alma humana», pergunta-se, então, Locke, «não seria, tanto quanto a idéia de um
triângulo, um ser real em Deus? Se assim o for, por que minha alma, estando intimamente unida a Deus,
não veria tão bem sua própria idéia, que nele está, quanto a do triângulo que também está aí? E como
justificar que Deus nos tenha dado a idéia de um triângulo, e não a da alma, senão dizendo que Deus nos
deu uma sensação externa para uma e nenhuma para perceber a outra, mas apenas uma sensação
interna para perceber a operação dessa última?» (ibid., § 46).

Locke não tem qualquer dificuldade para traduzir o francês «conscience» pelo inglês consciousness,
praticando, em suma, a operação inversa àquela que, no mesmo momento – talvez, inclusive, com sua ajuda –
Coste decide realizar em sua tradução do Essay. Em contrapartida, é-lhe totalmente impossível encontrar um
equivalente inglês para esse «sentimento interior» que, em Malebranche, é o outro nome da consciência, e
antes de tudo, para a própria idéia de «sentimento» (para a qual não convém nem a idéia lockiana de sensação
nem a de reflexão e que, por esta razão, não é uma percepção)72.

Só se pode estar surpreendido pela maneira como se encontra assim materializada, pela
intradutibilidade das palavras, a incompatibilidade das problemáticas da consciência, ou da relação do espírito
a si mesmo, no exato momento da maior proximidade de interesses. Duas vias se encontram prefiguradas, que
poderão de novo ser confrontadas, ou formar os termos de uma antítese (como na Dialética transcendental

70
Para uma exposição do problema das qualidades primeiras e segundas, ver a obra de Emmanuel Picavet, Approches du
concret. Une introduction à l’épistemologie, Ellipses, 1995. A terminologia não figura em Descartes e cartesianos. Considera-
se, freqüentemente, que Locke a elaborou a partir das formulações de Boyle.
71
Examination of P. Malebranches’s opinion of our «seeing all things in God», The Works of John Locke , New Edition,
London, 1823, vol. IX, pp. 211-255. Existe uma tradução francesa recente: John Locke, Examen de la «vision en Dieu» de
Malebranche, Introdução, tradução e notas por Jean Pucelle, Vrin, 1978. O principal comentário inglês é o de Charlote
Johnston, «Locke’s Examination of Malebranche and Norris», Journal of the History of Ideas, 1958, p. 551-558. Locke já
havia feito um estudo detalhado das teses de Malebranche na Recherche de la vérité e de sua crítica por Arnauld, logo após a
publicação do livro desse último Des vraies et des fausses idées (1683), como prova seu diário
72
Cf. abaixo nosso § III.3: «A origem das idéias e o sentido interior».
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 27

kantiana), mas jamais se conciliar. E essa incompatibilidade será comunicada, em uma medida mais ampla, às
tradições nacionais que interpretarão a consciência/consciousness seja como sentido interior, seja como
sentimento interior.

4. «Sunaisthêses, Con-senso e consciousness»: o neologismo de Cambridge

Ralph Cudworth (1617-1688), principal representante, juntamente com Henry More, da escola dos
«platônicos de Cambridge», pertencia ao protestantismo moderado («latitudinal»), partidário da liberdade de
consciência, tanto em relação à Igreja quanto em relação ao Estado, em virtude de uma concepção da moral
que dela fazia um sentimento natural do Bem e do Mal, mais do que um mandamento e uma obrigação 73. Sua
monumental obra, dirigida contra os materialistas (de Demócrito a Hobbes) 74, The True Intellectual System of
the Universe: The First Part; Wherein All the Reason and Philosophy of Atheism is Confuted; and Its
Impossibility Demonstrated, acabada em 1671, só foi publicada em 1678 75. Ela é inspirada pela leitura de
Plotino e das interpretações neo-platônicas de Aristóteles (citadas no grego). A tese que o autor defende é a de
que o atomismo, base de todos os ateísmos desde a Antigüidade, constitui-se, na verdade, uma interpretação
tardia, redutora e deformante de uma «verdadeira filosofia» desaparecida, que é preciso reencontrar 76: seu
fundamento seria a concepção do universo como um todo animado, constituído de mônadas ou átomos
espirituais.

A filosofia de Cudworth é, de fato, um vitalismo generalizado, ao mesmo tempo monista e hierárquico.


Monista, porque toda a natureza é inteligível a partir de um princípio único de formação dos indivíduos, que
ele denomina a «natureza plástica» (plastic nature), ao mesmo tempo forma e força. Hierárquica, porque, ao
longo da «escala dos seres» (scale or ladder of nature), desde os indivíduos materiais ou inanimados até os
espíritos e, finalmente, ao Intelecto divino ele próprio, passando pela vida vegetal e animal, esse princípio de
atividade e auto-transformação se dá ele mesmo formas cada vez mais puras e cada vez mais livres. O sistema
de Cudworth (cujas réplicas modernas e contemporâneas poderiam ser facilmente identificadas, desde Charles
Bonnet e Maupertuis, até Bergson e Teilhard Chardin) é, assim, uma vasta teologia, a uma só vez naturalista e
espiritualista, na qual a natureza progride para sua própria perfeição. Todas as formas, todos os graus do ser
são imanentes ao mesmo processo (o que não deixou de criar dificuldades teológicas a Cudworth, acusado de
panteísmo, ou de reintegrar Deus no Mundo). Mas toda essa progressão é aspirada em direção a seu fim, e a

73
Sobre Cudworth e o platonismo de Cambridge, além das obras clássicas de Cassirer e de R. Colie, leia-se a introdução de J.-
L. Breteau da edição francesa do Traité de la morale et Traité du livre arbitre, de Cudworth, PUF, 1995; e, do mesmo autor,
«La conscience de soi chez les platoniciens de Cambridge», in R. Ellrodt, Genèse de la conscience moderne, PUF, 1983. Ver,
igualmente, J. A. Passmore, Ralph Cudworth, Cambridge, 1951; Samuel S. Mintz, The Hunting of Leviathan. Seventeenth
Century Reactions to the Materialism and Moral Philosophy of Thomas Hobbes, Cambridge, 1969; C. A. Patrides, The
Cambridge Platonists, Cambridge, 1969; R. Popkin, «Cudworth», in The Third Force in Sventeenth-Century Thought,
Leiden, 1992.
74
Ele é um dos primeiros a empregar o termo: cf. O. Bloch, Le Matérialisme, PUF, Que sais-je?, 1985, p. 6. Cudworth propor
uma classificação de quatro formas clássicas de materialismo (atomismo democrítico, estratoniciano, estóico, hilozóico).
75
Anunciada, a segunda parte não foi acabada. O livro de Cudworth jamais foi traduzido em francês, embora tenha sido
objeto de um longo resumo, em diversas publicações da Bibliothèque choisie de Jean Le Clerc, publicada em Amsterdan entre
1703 e 1706 (ver os tomos I, II, V – este último contendo a resposta às críticas de Bayle contra a doutrina das naturezas
plásticas, VI, IX, X). Esta publicação terá um importante papel no renascimento das concepções vitalistas, em face do
mecanismo inspirado de Harvey e Descartes: cf. J. Roger, Les Sciences de la vie dans la pensée française au XVIIIe siècle,
red. Albin Michel, 1993, p. 418 e seg.
76
Idéia próxima do tema hermético da prisca philosophia: cf. a discussão, por Francis Yates, das posições de Cudworth sobre
este ponto, in Giordano Bruno et la tradition hermétique, tr. francesa de Dervy-Livres, 1988, p. 492 e seg. E, igualmente, M.
Bernal, Black Athena, vol. I, tr. francesa PUF, 1996, p. 234-237; A. Rupert-Hall, Henry More. Magic, Religion and
Experiment, Basil Blackwell, Oxford, 1990, p. 113 e seg.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 28

perfeição da alma divina representa a força organizadora do universo, tanto quanto o arquétipo do qual o
conjunto de individualidades que o constituem se aproxima mais ou menos completamente.

Esse é o âmbito em que Cudworth, dentre outros termos abstratos com idêntica fatura em – ness, criou
o de consciousness, a partir do adjetivo conscious (= concius), ele próprio de recente naturalização. Cudworth o
faz equivalente de «Con-senso», por ele referido aos termos gregos sunaisthêses e sunesis, reencontrados em
Aristóteles e Pltotino; desta forma, ele fabrica uma etimologia fictícia (pois os latinos jamais consideraram
conscientia como uma «tradução» de tais termos, que eles associavam, antes, aos termos estóicos e cristãos
seneidos e suneidêsis77. O neologismo intervém em um desenvolvimento que recapitula a doutrina das
«naturezas plásticas», quando Cudworth propõe-se a distinguir uma força vital ignorante de seus próprios fins
(a que forma os organismos) da força que dirige as ações animais. Nesse momento, Cudworth insere,
igualmente, uma referência crítica ao cartesianismo: o dualismo entre duas substâncias, extensa e pensada, é
tão incapaz de dar conta da produção da vida e, em geral, da finalidade na natureza, quanto o materialismo 78.

Dotado de uma significação a um só tempo ética, ontológica e cosmológica, em Cudworth o conceito


da consciousness cristaliza, pois, a conjunção de naturalismo e espiritualismo que já destacamos. Poder-se-ia
dizer, apenas, que a consciousness é a marca de um certo tipo de seres naturais, situados na parte mais elevada
da escala de seres. Mas o mais interessante é sublinhar que, neste sentido, a consciência não é um traço
propriamente humano, ainda que caracterize particularmente as ações humanas: ela «começa» com o
sentimento vital, ou o sentimento de si dos viventes inferiores ao homem, e se estende às inteligências
superiores, em particular a Deus, que é eminentemente «consciente». Nesse caso, ela não se limita a informar
as ações ou comportamentos, mas torna-se o próprio princípio da criação, pois a Inteligência superior (o noûs)
não se contenta em perseguir fins exteriores, por mais racionais que sejam, mas «pensa-se ela mesma», «quer-
se a ela mesma», e «goza de si mesma».

Desse uso extensivo resulta, imediatamente, que a consciência é susceptível de grau (o que é a
diferença essencial, em relação à definição reflexiva introduzida, na mesma época, pelos cartesianos franceses,
dos quais Cudworth pretende se distinguir: aqui a reflexão é um grau superior da consciência, mas entre tantos
outros). Mais interessante ainda, isso conduz o filósofo a usar o termo inconscious, geralmente empregado na
dupla: senseless and inconscious, que caracteriza a «matéria» 79. A inconsciência e a consciência são contrários;
entretanto, em virtude do princípio de continuidade hierárquica que organiza todo o sistema, essa
contrariedade não tem sentido senão relativo: no fundo, ela se reproduz em cada nível da escala, segundo a
comparação do indivíduo àquele, mais primitivo, que o precede, ou àquele, mais perfeito, que a ele se segue.
Somente Deus é perfeitamente «consciente», sua Inteligência se percebe perfeitamente ela mesma, seu Espírito
de move ele próprio (self-active Mind). Inversamente, Cudworth diz, de forma expressa, que o espírito
inconsciente é um «pensamento adormecido» (ou entorpecido, tomado de estupor: drowsy, unawakened or
astonished cogitation). Eis como ele torna possível explicar, tanto que a consciência emerge da vida, quanto

77
Encontram-se precisões sobre o uso dos termos gregos suneidos, suneidêsis, sunesis, sunaisthêsis no estudo de A.
Cancrini: SUNEIDESIS. Il tema semantico della «cons-scientia» della Grecia antica, Lessico Intellectuale Europeo, VI,
Edizioni dell’Ateneo Roma, 1970, e no artigo de H.-R. Schwyzer, «Bewusst» und «Unbewusst» bei Plotin, Entretiens de la
Fondation Hardt sur l’Antiquité classique, Tomo V, Les souces de Plotin, Vandoeuvres-Genève, 1957.
78
Cf. nosso Dossiê (texto extraído da «Digression» sobre as naturezas plásticas).
79
«The Hylozoists never able neither to produce Animal Sense, and Consciousness, out of what Senseless and Inconscious»,
R. Cudworth, The True…, 1678, reprint cit. 1964, The Contents, ad Chap. V, p. 666-667.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 29

que a vida, e mesmo a matéria mais simples, são «energias inconscientes», ou formas inconscientes de
inteligência, cega a seus próprios fins80.

Compreende-se, então, que a referência à consciência desempenhe um papel decisivo na economia do


sistema de Cudworth, e no combate que ele empreende contra o materialismo, indo enfrentá-lo em seu próprio
terreno naturalista. É a consciência que lhe permite evitar que a hierarquia seja reversível. Atribuir um
«pensamento» às formas mais elementares da natureza, na medida em que são dotadas da capacidade de
formação ou de individuação, é possível já que o pensamento pode ser, ou «consciente», ou «inconsciente» de
si próprio. A natureza é uma ascensão da matéria em direção ao pensamento, porque é uma ascensão da
energia inconsciente em direção à energia consciente (ou das formas latentes da consciência em direção a suas
formas atuais e refletidas). Tem-se aqui o ponto de partida da doutrina leibniziana da percepção e, de forma
mais geral, de todas as tentativas de associar a vida, o sentimento e a consciência através de uma progressão,
inscrevendo essa última em uma evolução que exprime a própria ordem da natureza, na medida em que esta
tem por fim o espírito.

Observe-se, enfim, que, nessa ampliação da idéia de consciência, abandonou-se totalmente uma
referência direta à fórmula e à questão do «eu». Em contrapartida, o tema da « sunaisthèsis, Con-sense and
consciousness» é estreitamente associado com o conjunto de termos que conotam a reflexão, a autonomia e a
auto-referência. Esse deslocamento é decisivo para a formação da noção de consciência de si, que deverá – por
uma conceitualização explícita do «si» – afastar-se da redundância. Ao que parece, Cudworth não forjou a self-
consciousness81, mas emprega self-conscious ao lado de numerosos outros termos de mesma fatura. Sua
insistência (como, em geral, a dos platônicos de Cambridge) pelo prefixo self, por meio do qual eles formam
numerosos compostos, a partir do modelo real ou fictício de termos gregos em auto-, não deixa de ter interesse
para quem pretende explicar a forma pela qual Locke isolará a idéia do «self»82. Pode-se imaginar, também,
que a tese segundo a qual a «consciência» e o «si» não são ligados a uma diferença substancial da alma e do
corpo, mas à sua integração «plástica» em uma forma única, explicitamente dirigida contra o dualismo
cartesiano, facilitou, em Locke, a neutralização da questão da substância e a autonomização das funções da
mind, em relação à «alma» e ao «corpo».

É impressionante verificar que os rascunhos (drafts) do Essay de Locke, datando de inícios de 1670,
não contêm nenhum uso da palavra consciousness, que ocupa, ao contrário, um lugar central na versão final,
desde a primeira edição (1690) e, evidentemente, na segunda (1694). Mas essa palavra aparece sob sua pluma
em uma nota de seu Diário, datada de 20 de fevereiro de 1682, onde, discutindo, precisamente, o livro de
Cudworth e suas posições acerca da imortalidade da alma das bestas, ele antecipa sua concepção sobre a
identidade pessoal, que só será desenvolvida após 1694. Em certo sentido, tudo já estava dito aí:

80
A diferença é, pois, total, em relação a Malebranche, como ela o é, em geral, entre as teorias do desconhecimento de si e as
teorias do insconciente, que só se encontrarão com os desenvolvimentos contemporâneos da psicanálise. Longe de o
desconhecimento, em Malebranche, caracterizar seres inferiores ao homem ou sua animalidade, ela representa a forma
alienada daquilo que nele há de mais elevado: a alma, imagem do criador de quem a queda o desviou. Inversamente, o
otimismo panteizante de Cudworth deixa pouco espaço para as conseqüências morais e teológicas do pecado original. Além
disso, ele é partidário declarado do «livre arbítrio», adversário da predestinação e, de forma geral, do agostinismo.
81
De que o Oxford English Dictionary fornece uma primeira referência, antes de Locke, em um outro platônico de
Cambridge, John Smith, em 1675, em um sentido próximo do egoísmo. Cf. nosso Glossário (self-consciousness).
82
Cf. J.-L. Breteau, art. cit. A predileção dos cambridgeanos pela idéia da reflexividade, assim como por neologismos
helenizantes ou latinizantes que podem exprimi-lo aparece claramente no livro de Henry More, The Imortality of the Soul
(1659, reed. Em 1662). Teremos a ocasião de sublinhar sua importância para a gênese das formulações lockianas sobre a
personalidade e o «si». (cf. abaixo, Glossário: personality, self).
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 30

«Identity of persons lies not in having the same numerical body made up of the same particles, nor, if
the mind consists of incorporeal spirits, in their being the same. But in the memory and knowledge of
one’s past self and actions continued on under the consciousness of being the same person, whereby
every man own’s himself83.»

iii. mind, consciousness, identity: o isolamento do «mental» no Essay


concerning Human Understanding.

A redação do Essay concerning Human Understanding se estendeu por um longo período, através
muitos lugares da Europa intelectual, religiosa e política. Os primeiros manuscritos datam de 1671, quando
Locke acabava de ser eleito membro da Royal Society, por recomendação de Boyle, e de entrar, como médico,
conselheiro e secretário, para o serviço do Conde de Shaftesbury, chefe do Partido dos Liberais (Whigs). Nos
anos seguintes, ele viaja longamente pela França (Montpellier, Paris), onde freqüenta tanto os cartesianos
(Arnauld e Nicole), quanto os epicúricos discípulos de Gassendi, lendo e traduzindo alguns de seus textos,
reagindo às idéias de Malebranche. Em 1683, sua liberdade, ou mesmo sua vida, é ameaçada por sua
participação na conspiração contra Charles II e ele deve se refugiar na Holanda, onde acaba a redação dos Dois
tratados sobre o Governo Civil e do Ensaio84. Ele estabelece estreitas relações com teólogos humanistas
(«arminianos» ou «admoestadores» [remontrants], como Philipp van Limborch, adversários da predestinação
calvinista e defensores de uma interpretação racional das Escrituras, e com os protestantes franceses do
«refúgio», fundadores da República das Letras85. Em 1688, após a «Gloriosa Revolução», ele retorna à

83
«A identidade das pessoas não reside no fato de ter numericamente o mesmo corpo, feito dos mesmos corpúsculos, nem,
se o espírito é constiutuído de espíritos incorpóreos, em sua conservação. Mas na memória e no conhecimento do “si”
passado e de suas próprias ações, continuamente submetidas à consciência de ser a mesma pessoa, pela qual cada homem se
possui a si mesmo e se afirma como tal.» Cf. Rogers, 1997; Ayers, 1991, vol. II, p. 254-255 e nota 45; e, sobretudo, Marshall,
1994, p. 153, que detalha o contexto.
84
Cf. Ashcraft 1986; Marshall, 1994.
85
Um dos amigos próximos de Locke, em Amsterdã, era John Le Clerc, nascido em Genebra, em 1657, morto em 1736,
filósofo e filólogo ligado à Igreja arminiana e muito ativo nos debates do tempo. Ele editou, a partir de 1686, a Bibliotèque
Universelle et Historique, continuada após 1703 pela Bibliotèque Choisie (cf. Barnes, Jean Le Clerc (1657-1736) et la
République des Lettres, Droz, 1938). Pode-se encontrar, no tomo VIII (1688) da Bibliotèque…, a tradução francesa – em
manuscrito – de um Breviário do Essai Philosophique concernant l’Entendement [Humain], redigido pelo próprio Locke, e
que se termina pelo seguinte desenvolvimento: «Este é o extrato de uma obra em inglês que o autor aceitou publicar apara
satisfazer alguns de seus amigos particulares e para oferecer-lhes um resumo de seus sentimentos. Se alguns daqueles que se
darão ao trabalho de examiná-lo acreditar haver encontrado algum lugar em que o autor se tenha enganado, ou qualquer
coisa obscura ou defeituosa nesse sistema, basta-lhe enviar suas dúvidas ou suas objeções a Amsterdã, aos mercadores
livreiros que imprimem a Bibliotèque Universelle. Ainda que o autor não tenha grande desejo de ver sua obra publicada [sic]
e que ele acredite que se deve ter mais respeito pelo público, do que oferecer-lhe primeiro o que se julga ser verdadeiro, antes
de saber se os outros concordarão, ou o julgarão útil; não obstante, ele não é tão reservado, que não se possa esperar que se
disporá a oferecer ao público a integralidade de seu tratado, assim que a maneira pela qual esse breviário foi recebido lhe der
ocasião de crer que sua publicação não será de todo inoportuna. O leitor poderá observar nessa versão alguns termos
empregados em um novo sentido, ou que talvez jamais tenham aparecido em qualquer livro francês. Mas teria sido muito
longo exprimi-los por perífrases, e acreditou-se que, em matéria de filosofia, era perfeitamente permitido tomar, em nossa
língua, a mesma liberdade que, nas outras, se toma neste tipo de ocasiões, formando palavras analógicas quando o uso
comum não fornece aquelas de que se tem necessidade. O autor o fez em seu inglês, e pode-se fazê-lo nessa língua, sem que
seja preciso pedir permissão ao leitor. Seria muito desejável que se pudesse fazê-lo igualmente em francês, e que pudéssemos
igualar na abundância de termos uma língua que a nossa não supera em exatidão de exposição». (op. cit., p. 140-142).
Vê-se, por este texto destinado a servir de isca para os sábios de toda a Europa, que a filosofia de Locke foi apresentada em
francês antes de sê-lo em língua original (não sem alguns quiprocós de pessoa: cf. Bibliotèque Choisie, Ano 1705, Tomo VI,
«Éloge de feu M. Locke»). É Le Clerc que proporá, em seguida, Pierre Coste (1668-1747), jovem protestante do Languedoc,
seu colaborador e protegido, como tradutor para o Ensaio. Em 1696, Coste se instala na Inglaterra, para poder trabalhar com
o autor e é empregado como preceptor do filho de Lady Masham, Francis Cudworth Masham (Cf. The Correspondence of
John Locke, Oxford, 1978, vol. III e seguintes, assim como Jean Le Clerc, Epistolario, cit. vol. II). Mais tarde, ele traduzirá,
notadamente (1720), a Ótica de Newton. Não parece, no entanto, que Locke tenha freqüentado Bayle, de quem suas
concepções são profundamente distantes, mesmo que a posteridade tenha aproximado suas duas defesas da tolerância.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 31

Inglaterra e publica simultaneamente três obras, que se tornaram seus mais célebres livros: o Essai (em inglês,
com seu nome), os Dois Tratados (em inglês, anonimamente) e a Carta sobre a Tolerância (em latim,
anonimamente).

Enquanto Locke viver, o Ensaio vai conhecer diversas reedições, acompanhadas de transformações: as
mais importantes são as modificações de formulação no capítulo xxi do Livro II ( On Power), sobre a questão da
liberdade e da vontade, o acréscimo do capítulo xxvii nesse mesmo Livro (Of Identity and Diversity) e o do
capítulo xxxiii (Of the Association of Ideas), como conclusão do Livro II e, enfim, o do capítulo xix do Livro IV
(Of Enthusiasm), dirigido contra as concepções iluministas e místicas da religião e em nome de um
«cristiniasmo razoável» que permitisse a cada um não «tiranizar» nem seu próprio espírito, nem os dos
outros86.

O Ensaio é o primeiro dos grandes tratados modernos de teoria do conhecimento. Seu objetivo,
exposto no Preâmbulo (numerado capítulo I do Livro I nas edições inglesas) é de proceder a um exame crítico
das diferentes faculdades do conhecimento que formam o entendimento humano, do duplo ponto de vista de
sua «concordância» (agreement) ou «proporção» a seus objetos (de maneira a identificar os critérios de
certeza e de verdade) e de seus limites de validade (de maneira a fixar as fronteiras de seu exercício, em
particular as da razão e da fé). As proposições essenciais concernindo a consciência ( consciousness) estão
contidas em quatro grupo de textos, que marcam a progressão:

1. A refutação da teoria das «idéias inatas», exposta no Livro Primeiro. Locke mostra a possibilidade
de dissociar o princípio «cartesiano» segundo o qual o espírito não pode pensar sem saber que pensa da
representação de uma «substância pensante» e, a fortiori, da tese de que «a alma sempre pensa».

2. A descrição da origem ou proveniência (original) das idéias na sensação e na reflexão, que são
como uma percepção do «sentido externo» e uma percepção do «sentido interior» (Livro Segundo, capítulo I).
Ao introduzir essa última noção, Locke abre a possibilidade de uma análise pelo espírito ( mind) de seu próprio
funcionamento. A consciousness é então definida como «a percepção, por um homem, daquilo que se passa em
seu próprio espírito» (Ensaio, II.i.19).

3. A definição de um critério de identidade pessoal, que não é outra senão a consciência ela mesma, no
capítulo xxvii do Livro II. Este capítulo foi acrescentado em 1694, sem dúvida tanto para completar sua
argumentação quanto para responder às objeções dos teólogos, inquietos com uma dissolução da
substancialidade da alma (base das provas de sua imortalidade) 87. Locke replicará mostrando que a pessoa,
com suas atribuições morais, jurídicas e religiosas (a responsabilidade de nossos atos, pelos quais teremos que
responder no dia do «julgamento»), é bem mais rigorosamente identificada por uma teoria da consciência do
que por uma metafísica da substância. Havendo assim refundado sua teoria, Locke aproveita da segunda edição
do Ensaio para introduzir em todas as suas análises precedentes referências à consciência – que,
anteriormente, não figuravam aí.

86
Sobre o qual ele publicará em 1695 uma obra inteira, ainda de forma anônima, mas cujas posições ele assumirá em sua
controvérsia com o bispo de Worcester, Edward Stillingfleet, que se termina por uma magnífica profissão de fé em favor da
liberdade de consciência: «… é, segundo me parece, a lei de meu Mestre [=Cristo] não chamar ninguém na terra, nem de ser
chamado por ninguém de Mestre. Nenhum homem, eis o que penso, tem direito de me prescrever minha fé, ou passar-se por
mestre para me impor suas interpretações ou suas opiniões; tanto quanto as minhas não devem importar a ninguém, para
além do que importam em razão de sua evidência…» (A Second Vindication of the Reasonableness of Chritistianity, in The
Works of John Locke, 1823, vol. VII, p. 359).
87
Ver M. Ayers, op. cit., vol. II, p. 254-259 : «Personal identity before the Essay».
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 32

4. Enfim, a análise da relação entre as «operações interiores do espírito» e sua «expressão», pelo meio
dos sinais da linguagem (Livro III, cap. I e II) que conduz à distinção entre as «verdades mentais» e as
«verdades verbais» (Livro I, cap. V). Esta é uma bifurcação fundamental para toda a história da filosofia,
marcando o triunfo do ponto de vista da concepção ou representação sobre o da enunciação. Locke a discute ao
término de sua obra, mas pode-se pensar que, desde o início, ela orienta toda a dinâmica de sua argumentação.
Procederemos, assim, da seguinte maneira: mostraremos, inicialmente, como Locke isolou o mental (Mind,
Thought) do verbal (Language, Words) e como essa separação lhe permitiu reformular o princípio de
identidade no elemento da consciência; em seguida, mostraremos que ela coincide com uma refundação da
noção tradicional de «sentido interior». Por fim, esboçaremos a unidade dos conceitos de consciência, de si e
de identidade em uma teoria da «Pessoa» que é a primeira grande doutrina moderna do sujeito individual, e
reuniremos as características da interioridade e da exterioridade do Mind em uma «tópica», antes de passar ao
autor.

1. O mental e o verbal

No capítulo I do Livro III, Locke toma partido contra a idéia de que as palavras da linguagem sejam
signos das coisas, em favor da idéia de que são signos das idéias das coisas. A idéia de fazer das palavras uma
simples nomenclatura das coisas é absurda, pois as palavras denotam também relações, logo, operações
intelectuais. É preciso que elas possam significar «uma multiplicidade de existências particulares» (ou sua
generalidade, o que é o caso de todos os substantivos comuns88), a presença e a ausência (ou a afirmação e a
negação), enfim, as noções de «coisas que não tocam os sentidos» (ainda que tenham sua origem na
experiência). Isso significa que somente as idéias presentes no espírito podem conferir um sentido à
linguagem.

Seria o caso de dizer que, segundo Locke, as palavras não se referem às coisas? Certamente que não,
mas é preciso admitir que essa relação é o resultado de uma «suposição» do espírito. A relação que se
estabelece entre as idéias e seus signos verbais ou escritos é, antes de tudo, estritamente individual: «em sua
significação primeira e imediata, as Palavras não significam outra coisa senão as idéias que estão no espírito
daquele que delas se serve» (III.ii.2), elas são para cada um os «signos de [suas] concepções interiores» e «as
marcas das idéias que temos no espírito» (marks for the Ideas within his own Mind) (III.ii.2) e, «por
conseguinte, é das idéias daquele que fala que as Palavras são signos, e ninguém pode aplicá-las imediatamente
como signos para qualquer outra coisa além das idéias que tem, ele próprio, em seu espírito.» (III.ii.2). Resulta
daí que cada indivíduo deve ter adquirido idéias para poder fazer uso das palavras correspondentes. E também
que os indivíduos atribuem às palavras uma relação unívoca com as coisas, em conseqüência da intenção que
têm de estabelecer uma «relação secreta» com outros homens: «supõem que as palavras de que se servem são
signos das idéias que se encontram também nos espíritos (in the Minds) dos outros homens com quem se
entretêm» (III.ii.4).

No capítulo IV.v («Da Verdade em geral»), Locke estende a correspondência entre as palavras e as
idéias àquela das proposições verbais e proposições mentais. Essa última, por sua vez, permite distinguir a
verdade mental e a verdade verbal («Truth of Thought» ou «Mental Truth» versus «Truth of Words» ou

88
As primeiras idéias (genética e logicamente) sendo mais sensíveis, somos reconduzidos, não às «coisas mesmas», mas às
suas impressões ou representações no espírito. A palavra ou substantivo por excelência é o termo geral que designa uma
classe de objetos de experiência sensível: cf. Geneviève Nrykman, «Philosophie des ressemblances contre philosophie des
universaux chez Locke», Revue de Métaphysique et de Morale, outubro-dezembro de 1995, p. 439-454.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 33

«Verbal Truth»: aqui a tradução francesa permite unificar imediatamente a terminologia, ressaltando a nova
concepção do pensamento como «atividade mental»). Falar de «proposições mentais» permite conservar
formalmente a tese clássica que diz que «a Verdade não pertence propriamente senão às Proposições» (IV.v.2),
já que essas não são outra coisa, além de operações do pensamento. É preciso remontar a essas operações para
estabelecer se os enunciados constituem «verdades reais» (sic), ou «verdades nominais», isso é, presunções de
verdades que podem se revelar enganosas. Tem-se aqui a certidão de nascimento do psicologismo, que não
resulta tanto de uma crítica da idéia de uma verdade necessária existindo em si quanto de desqualificação da
linguagem como elemento originário do pensamento (um anti-linguistic turn, de alguma forma)89. Vê-se
também que o psicologismo não é o efeito do nascimento de uma psicologia: ele seria, antes uma condição para
tal nascimento, o programa que ela se esforçará em cumprir.

«Mas, para voltar a consideração sobre em que consiste a Verdade, digo que é preciso distinguir duas
espécies de Proposições que somos capazes de formar. Primeiramente, as Mentais, em que as Idéias são
unidas ou separadas em nosso entendimento, sem a intervenção das palavras, pelo espírito que,
percebendo sua conveniência ou desconveniência, julga de forma atual (by the Mind, perceiving or
judging of their Agreement, or Disagreement.). Há, em segundo lugar, Proposições Verbais, que são
palavras, signos de nossas idéias, unidos ou separados em sentenças afirmativas ou negativas. E, por esta
maneira de afirmar ou de negar, esses signos formados por sons, são, por assim dizer, unidos junto ou
separados um do outro […]» (IV.v.5)

Locke demonstra, então, como as operações do espírito (isso é, da consciência) desdobram


«tacitamente» as da linguagem e se constituem em sua norma de verdade:

«Cada qual pode ser convencido por sua própria experiência de que o Espírito, vindo a perceber ou a
supor a conveniência ou a desconveniência de qualquer uma de suas idéias, as reduz tacitamente em si
mesmo a uma espécie de Proposições afirmativa ou negativa […] Mas essa ação do Espírito ( Action of
the Mind) que é tão familiar a cada homem que pensa e que raciocina é mais fácil de ser concebida
quando se reflete sobre o que se passa em nós (easier to be conceived by reflecting on what passes in
us), do que é simples explicá-la com palavras. Quando um homem tem em seu espírito a idéia de duas
linhas […] ele une ou separa, por assim dizer, essas duas idéias, quero dizer, a dessa linha e a dessa
espécie de divisibilidade e, assim, ele forma uma proposição mental que é verdadeira ou falsa, de acordo
com o fato de que uma tal espécie de divisibilidade ou uma divisibilidade em tais partes alíquotas
convém realmente ou não a essa linha. E quando as idéias são unidas ou separadas dessa forma no
espírito, de acordo com o fato de que essas idéias ou as coisas que elas significam convêm ou desconvêm,
eis aí, se ouso dizê-lo, uma Verdade mental. Mas a Verdade verbal é algo a mais. É uma Proposição em
que as palavras são afirmadas ou negadas uma da outra, de acordo com o fato de que as idéias que
significam convêm ou desconvêm […] (IV.v.6)

E, mais adiante, ele indica que a passagem das proposições mentais às proposições verbais comporta
um risco específico de perda da relação com a realidade:

89
É claro que essa desqualificação será imediatamente seguida de uma requalificação, como instrumento indispensável do
progresso do conhecimento. Mas o importante é a posição do fundamento semântico. Não se trata, pois, tanto de uma
anterioridade cronológica, mas de uma prioridade lógica, ainda que comporte uma dimensão genética. Locke não pretendeu
dizer que podíamos conhecer o mundo sem dispor de linguagem; ao contrário: o Livro III do Essay é inteiramente
consagrado ao desenvolvimento de sua função necessária, e assim do efeito de retorno da comunicação social sobre a
constituição do entendimento. Mas ele quis mostrar que o uso das palavras e sua relação com as idéias são sempre, em
última análise, fundados em uma norma de significação que pertence exclusivamente à interioridade da consciência, ou à
forma pela qual a consciência percebe suas próprias operações. É – para não recorrer a mais do que uma referência –
exatamente o que Frege buscará afastar, ao opor as questões subjetivas de «representação» (Vorstellung), que dependem, a
seus olhos, da psicologia, das questões objetivas de «sentido» (Sinn) e de «denotação» (Bedeutung) que dependem da lógica
(cf. Écrits logiques et philosophiques), tradução e introdução de Claude Imbert, 1971, p. 102 e seg.).
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 34

«Ainda que nossas palavras não signifiquem outra coisa além de nossas idéias, como elas são destinadas
a significar coisas, a verdade que elas contêm quando vêm a significar Proposições não poderia ser senão
verbal, ao designar no espírito idéias que não convêm com a realidade das coisas. Eis porque a Verdade,
tanto quanto o Conhecimento, pode ser facilmente distinguida em verbal e real (come under the
distinction of Verbal and Real); a primeira sendo somente verbal (being only verbal Truth), a cada vez
que os termos são unidos de acordo com a conveniência ou desconveniência das idéias que significam,
sem considerar se nossas idéias são tais que elas existam ou possam existir na Natureza. Mas, ao
contrário, as Proposições contêm uma verdade real, quando os signos de que são compostas são unidos
na medida em que nossas idéias convêm, e que essas idéias são tais que nós as conhecemos capazes de
existir na Natureza […] (IV.v.8) [tradução de Coste]

A linguagem é, pois, ao mesmo tempo mais (uma vestimenta) e menos (uma presunção) do que o
pensamento. A situação inicial (em que tínhamos necessidade das palavras para exprimir idéias complexas)
então é invertida. É ao pensamento puro que é preciso voltar, para estabelecer o que é «realmente» a verdade,
em seus dois aspectos: coerência interna e correspondência com as coisas. Mas isso supõe que o pensamento
comporte em si mesmo um critério de certeza, e que seja capaz de se comparar consigo mesmo e com seu
exterior.

2. O princípio de identidade

Antes mesmo de enunciar um critério de identidade para a pessoa humana, Locke inscreveu na
constituição da consciência um enunciado que faz dessa última uma «identidade a si». Sem essa preliminar,
não seria possível fundar absolutamente nada. A consciência não poderia garantir a identidade da pessoa se ela
não contivesse, em si mesma, o princípio da identidade. Observemos que, dessa forma, Locke vai reencontrar
as funções de certeza que caracterizavam o «cogito» cartesiano: distribuindo-as, no entanto, ao longo de uma
constituição teórica do sujeito, ao invés de concentrá-las no puro enunciado do «eu» – em outras palavras, no
paradoxo de uma auto-referência. Pelo mesmo movimento, ser-lhe-á possível conferir à sua análise um caráter
geral. A singularidade do sujeito (que ele denominará o si, the Self) pode ser descrita aí sem que lhe seja
necessário enunciar-se imediatamente ela própria na primeira pessoa, como na meditação cartesiana. Em
contrapartida – de acordo com um esquema dialético clássico – o enunciado da identidade a si, pelo qual
começa essa constituição, está unido à refutação de um erro, que é a «doutrina das idéias inatas». Assistimos,
assim, à produção de uma verdade necessária a partir de seu contrário, o que confirma que se trata, realmente,
de um fundamento90.

A refutação do inatismo ocupa o conjunto do Livro I. Deixaremos de lado a discussão, constantemente


reaberta, sobre quem, entre os filósofos antigos ou contemporâneos, está sendo visado pela argumentação de
Locke91. Basta-nos admitir que, ainda que não se possa reconhecer Descartes em todas as formulações
criticadas por Locke, a argumentação desenvolvida por este último conduz à dissociação de duas partes da
herança cartesiana. Por um lado, a idéia «falsa» de que certas noções possam dever sua universalidade a uma
inseminação divina no espírito do homem. Por outro lado, a idéia «verdadeira» segundo a qual o pensamento
está imediatamente presente a si, ou que ele é intrinsecamente reflexivo. Entre as duas, a proposição «a alma
sempre pensa», interpretada como idéia de permanência substancial, é posta em contradição com a

90
Não discutiremos o «empirismo» atribuído a Locke pela tradição filosófica. No que nos concerne aqui, é antes seu
racionalismo que é digno de destaque.
91
Sobre o assunto, cf. John W. Yolton, John Locke and the Way of Ideas, Oxford, 1968, cap. 2, e Jean-Michel Vienne,
Expérience et raison. Les fondements de la morale selon Locke, Vrin, 1991, cap. 1, p. 18 e seg.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 35

experiência. Mas sua refutação prepara uma outra tese, essencial para a teoria da consciência: o espírito
sempre se recorda de haver pensado.

O primeiro momento da crítica do inatismo consiste em mostrar que os princípios gerais da lógica e da
moral (o que a tradição denominava as «noções comuns») não são nem originários, nem universais:

«Não há, efetivamente, nenhum Princípio sobre o qual todos os homens se ponham geralmente de
acordo. E, para começar pelas noções especulativas, eis dois desses célebres Princípios aos quais se
atribui, antes do que a quaisquer outros, a qualidade de Princípios inatos: Tudo o que é, é; e É
impossível que uma coisa seja e não seja, ao mesmo tempo, […] longe de serem objeto de um
consentimento geral, para grande parte do Gênero Humano essas duas Proposições não são sequer
conhecidas. Pois, primeiramente, é certo que as Crianças e os Idiotas não têm a menor idéia desses
princípios, e que neles não pensam de nenhuma maneira.» (I.i.4-5)

O segundo momento surge como objeção a que as verdades inatas pudessem se achar imprimidas na
alma sem que ela o saiba, sem que ela tenha esse saber à sua disposição, «atualmente». É essa objeção – por
meio da qual Leibniz, por exemplo, realiza a operação de resgate dessa noção de inatismo – que Locke declara
absurda:

«Pois que dizer que há verdades que, impressas na Alma e que a Alma não percebe e não entende é, ao
que me parece, uma espécie de contradição, a ação de imprimir não podendo marcar outra coisa
(supondo que ela signifique algo de real nesse encontro) senão fazer perceber certas verdades. Pois
imprimir o que quer que seja na Alma sem que a Alma disso se aperceba (without the Mind’s perceiving
it) é, a meu ver, uma coisa simplesmente ininteligível […] Dizer que uma Noção está gravada na Alma
(imprinted on the Mind) e sustentar, ao mesmo tempo, que a Alma não a conhece absolutamente ( that
the Mind is ignorant of it) e que disso não teve ainda qualquer conhecimento (and never yet took notice
of it) é fazer dessa impressão um puro nada. Não se pode asseverar que uma certa proposição esteja no
Espírito, quando o Espírito ainda não a percebeu, nem dela descobriu qualquer idéia em si mesmo (wich
it never yet knew, wich it was never conscious of) […] Pois se essas palavras, estar no Entendimento,
carregam qualquer coisa de positivo, elas significam ser percebido e compreendido pelo Entendimento.
De forma que sustentar que uma tal coisa está no Entendimento e que não é concebida pelo
Entendimento (to be in the Understanding, and, not to be understood), que ela está no Espírito sem que
o espírito a perceba, é o mesmo que se disséssemos que uma coisa está e não está no espírito ou no
Entendimento. Se, portanto, essas duas Proposições: O que é, é e é impossível que uma coisa seja e não
seja ao mesmo tempo estivessem gravadas na Alma dos Homens pela Natureza […] todos aqueles que
têm uma alma deveriam possuí-las necessariamente em seu Espírito, reconhecer sua verdade e fornecer-
lhes seu consentimento» (I.i.5)92.

Locke não cessará de repetir essa formulação, não apenas no mesmo capítulo (§ 9), mas em toda a
obra, a cada vez que se tratar de voltar ao fundamento da teoria. Assim, no Livro II, capítulo I, § 10. E,
sobretudo, no § 19:

«Ora, poderia a Alma pensar, sem que o Homem pensasse? Ou bem o Homem pode pensar sem estar
convencido em si mesmo (a Man think, and not be conscious of it) […] eles podem igualmente dizer que
o Corpo é extenso, sem ter partes. Pois dizer que o Corpo é extenso sem ter partes e que uma Coisa pensa
sem conhecer e sem aperceber o que pensa (that a Body is extendend without parts, as that any thing
thinks without being conscious of it, por perceiving it, that it does so) são duas asserções igualmente
ininteligíveis. E aqueles que assim falam teriam as mesmas razões para sustentar […] que o Homem
sempre tem fome, mas que ele não tem sempre o sentimento de fome; já que a Fome não poderia existir

92
Notemos que Coste não tem qualquer rigor na tradução das palavras Soul e Mind, o que prova que essa distinção é nova ou
impraticável para ele. Cf. Glossário: mind.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 36

sem esse sentimento, da mesma forma o Pensamento sem uma convicção que nos assegure
interiormente que pensamos (as thinking consists in being conscious that one thinks). Se dizem que o
Homem sempre tem essa convicção (That a Man is always conscious to homself of thinking), eu
pergunto como eles o sabem, posto que essa convicção (Consciousness) nada mais é do que a percepção
daquilo que se possa na Alma (Mind) do Homem. Ora, poderia um outro Homem se assegurar que sinto
em mim o que sequer percebo, eu próprio? (Can another Man perceive that I am conscious of any
thing, when I perceive it not myself)? É aqui que o conhecimento do Homem não poderia se estender
para além de sua própria experiência…»

Avalie-se a amplitude da reviravolta operada por Locke. O princípio de identidade e o princípio de


contradição foram relativizados à condição de crenças ou conhecimentos adquiridos, isso é, constatou-se a sua
não-universalidade de fato (todos os homens, entre os quais as crianças, os selvagens, os idiotas não têm deles
conhecimento como enunciados). Mas, isto, para se reencontrarem inscritos na própria estrutura do espírito,
sob a forma da tese: é impossível que o homem não pense o que ele pensa, ou que ele pense sem pensar. E, por
um fulgurante contra-ataque, essa contradição é imputada àqueles (cartesianos ou supostos tais) que afirmam
que a alma sempre pensa, isso é, continuamente. O que há de universal não são tais enunciados, não são sequer
as «proposições mentais» correspondentes, mas a não-contradição do espírito e, conseqüentemente, a
identidade do espírito com ele próprio, na condição de atividade ou operação do pensamento. Enfim, Locke
remete essa afirmação à experiência de cada um, o que não quer dizer que ela seja relativizada, mas, ao
contrário, que, no seio de toda experiência se experimenta a mesma escora de impossibilidade e, assim, o
mesmo ponto de certeza universal. O nome dessa necessidade em que o pensamento se encontra de não pensar
sem pensar é precisamente consciousness.

Por ele mesmo, esse nome produz, evidentemente, um efeito. Pode-se resumi-lo reformulando da
seguinte maneira a dupla negação, inerente à articulação do lógico e do psicológico: o pensamento é a
consciência, porque um pensamento não consciente é uma contradição nos termos, um não-pensamento. Mas
essa nova formulação, equivalente, aos olhos de Locke, também coloca em relevo o postulado subjacente a toda
argumentação: que pensar e conhecer são duas noções fundamentalmente idênticas. Elas o são, de fato,
porque idênticas a uma terceira: a percepção. Eis porque é equivalente dizer: seria contraditório que o espírito
pensasse sem saber que pensa, ou: seria contraditório que o espírito pensasse sem pensar que pensa, ou
pensasse e não pensasse, ao mesmo tempo.

No que precede, teve-se a aplicação direta dessa equivalência; no que segue, ter-se-á a recíproca: já
que o pensamento sabe ou pensa (i.e., percebe) que pensa, por definição, ele pode conhecer, ele próprio, todos
os seus modos, todas as suas operações. Muito mais justificadamente do que os cartesianos, Locke será, assim,
o verdadeiro fundador da psicologia racional, nominalmente referida à experiência, mas feita de todas as
reflexões do espírito sobre ele próprio. E que, nesse sentido, precede, tanto de direito como de fato, a qualquer
constituição de «ciência»93.

3. A origem das idéias e o sentido interno

Quando Locke introduz o substantivo consciousness (II.i.19), ele já passou à construção positiva. Já
não é mais questão de alma (a despeito de algumas flutuações terminológicas), mas de estrutura do Mind ou

93
Sugerimos aqui simplesmente que o introdutor do termo em filosofia, Christian Wolff, como bom leibniziano que era,
denominou de psychologia empirica a «psicologia racional» de Locke, para poder reservar à sua escola a «verdadeira»
psychologia rationalis. Esse ponto de vista ainda é atuante no século XX, como demonstram os comentários de
Cassirer.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 37

«espírito»94. Trata-se de mostrar de onde provêm os materiais de todo pensamento, a saber, as idéias, mas
também porque é possível para o espírito analisar a lógica das operações mentais. Ora, essas duas explicações
são de fato uma só, o que quer dizer que a possibilidade do conhecimento de si é originariamente inscrita na
estrutura do espírito.

Sua tese é a de que as idéias têm uma dupla origem: elas provêm seja da sensação das qualidades dos
objetos do mundo exterior, seja da reflexão do espírito ou do entendimento sobre suas próprias operações.
Locke precisa bem (II.i.3-5) que essas duas fontes (Fountains) podem, uma e outra, serem consideradas como
espécies de «percepção», isso é, que se trata de receber idéias; mas, em um caso, elas são recebidas pelo canal
dos órgãos dos sentidos, enquanto que, no outro, elas se formam por uma faculdade análoga, «à qual bem
conviria o nome de sentido interior (might properly enough be call’d internal Sense)». Por outro lado, ele
chama nossa atenção para o fato de que as idéias de reflexão não são simplesmente idéias em segundo grau, ou
«idéias de idéias», como se o espírito observasse, de alguma forma, as idéias primeiras que lhe vêm da
sensação, mas são percepções de operações ou ações do espírito, ou da forma pela qual o espírito opera sobre
(e com) as idéias primeiras que lhe vêm da sensação.

A consciência seria, então, pura e simplesmente idêntica ao sentido interno ou ao sentido interior?
Ainda aqui, há nuances que se referem, em parte, à necessidade de levar em consideração os usos históricos
dos mesmos termos. O paradoxo é que a expressão «sentido interno», destinada a um futuro tão promissor 95,
não aparece, na verdade, senão uma só vez no texto de Locke. De nossa parte, nós o explicaríamos do seguinte
modo: a expressão «sentido interno» não foi inventada por Locke; ela tem uma origem aristotélica e medieval,
designando a percepção pela alma de fenômenos localizados no interior do organismo 96. Por outro lado,
Descartes havia mencionado «sentidos interiores» pelos quais se experimentam as sensações internas (fome e
sede) e os sentimentos de prazer, de dor, de alegria, de tristeza… 97 Locke nos diz, em suma: se há um sentido
interno, esse sentido nada pode ser senão a reflexão, pela qual o espírito percebe suas próprias operações. O
termo é, portanto, em certo sentido, inútil. Mas, por outro lado, ele tem a vantagem de sublinhar o paralelismo
da «percepção interior» e da «percepção exterior», isso é, de mostrar que a reflexão é tão imediata quanto
uma sensação, e que engendra idéias tão «simples» quanto ela, a começar pela idéia do pensamento, que
caracteriza originariamente a consciência. A partir daí, uma outra conseqüência se segue: permanecendo,
implicitamente, um «sentido interior», a reflexão não aparece somente como tomada de consciência pela
experiência, mas como sendo ela própria uma experiência, precisamente uma experiência dos fenômenos
«interiores», uma experiência de interioridade.

Mas se essa experiência é imediata, ela não é necessariamente simples. Isso se deve à estrutura do que
Locke denomina percepção. Na III Meditação, Descartes havia começado por distinguir os pensamentos em
dois gêneros: um, do lado das vontades, afecções e julgamentos, outro, do lado das idéias que são «como que
imagens das coisas». Em seguida, ele classificara as idéias, segundo sua origem, em três categorias: «inatas»,

94
Sobre a tradução, ou não-tradução, de Mind por espírito, cf. Glossário: mind.
95
Em particular, em Kant (via Tentens). Sobre a «dívida» de Kant em relação a Locke, cf. as apreciações de Béatrice
Longuenesse, Kant et le pouvoir de juger. Sensibilité et discursivité dans l’Analytique transcendentale de la Critique de la
raison pure, PUF, 1993, p. 263 e seg., e de Jocelyn Benoist, Kant et les limites de la synthèse. Le sujet sensible, PUF, 1996, p.
119 e seg.
96
Cf. E. Ruth Harvey, The Inward Wits. Psychological theory in the Middle Ages and the Renaissance, London, The
Warburg Institute, 1975; H. A. Wolfson, «The Internal Senses in Latin, Arabic, and Hebrew Philosophical Texts», Havard
Theological Review, XXVIII (1935), 69-133.
97
Principes, IV, § 190. Cf. D. Kambouchner, L’homme des passions, op. cit., vol. I, p. 269 e seg.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 38

ou contemporâneas à própria formação de meu espírito, «adventícias», ou recebidas do exterior (quer se


tratem de objetos sensíveis, de outros homens ou de Deus) e, enfim, «factícias», isso é, forjadas por meu
próprio espírito. Na medida em que, como o faz Locke, elimina-se a categoria das idéias inatas (o que significa
dizer que não há universalidade dada da razão, mas somente uma universalidade construída, na ciência como
na moral), restam as idéias adventícias e as idéias factícias: aquelas que recebo e aquelas que formo. Mas sua
correlação, precisamente, é bastante para reconstituir todo o campo do entendimento, tornando efetivamente
analisável tudo o que Descartes havia declarado inanalisável, inclusive a clareza e a distinção de certas
«naturezas simples». Mais ainda, ela permite reintegrar no campo das idéias as operações que Descartes havia
situado à parte (em particular, o julgamento, de novo analisado segundo suas modalidades de «reunião» e de
«separação»).

Sem dúvida, a concepção lockiana apresenta numerosos enigmas. Para começar, no que concerne à
relação entre sensação e reflexão. Releiam-se os parágrafos II.i.3 e seguintes. Há uma anterioridade das idéias
de sensação, o que quer dizer que a matéria primeira de todo conhecimento e de todo pensamento é fornecida
pelo mundo exterior ou, antes, por sua representação, cujos elementos são as idéias de «qualidades». Mas essa
matéria primeira necessária é claramente insuficiente: nenhum pensamento seria possível se não houvesse
também idéias de reflexão, se, pois, uma primeira reflexão não constituísse, junto com as idéias de origem
sensível, outras idéias igualmente elementares, de origem intelectual ou interior, que são, de fato, originárias, a
mesmo título que as outras. Essa primeira reflexão é, portanto, o protótipo de uma decalagem na própria
origem que será reencontrada ao longo da constituição do entendimento (ou, se assim se prefere, da
experiência)98.

Como se viu, Locke insiste sobre o fato de que as idéias de reflexão não são percepções de outras
idéias (a começar pelas idéias de sensação), mas percepções de operações mentais (Operations of our own
Minds) referentes a outras idéias. Isso quer dizer que não se está tratando com uma superposição de níveis de
representação formalmente idênticos, em que cada nível se constituiria no objeto dos precedentes, e que
poderia se estender até o infinito, como na concepção spinozista, de origem cartesiana, da idéia da idéia. Mas
também não se está tratando com um meio de remeter ou de reduzir, passo a passo, todas as idéias e
representações intelectuais a um protótipo sensível, de que elas só extrairiam as características gerais. Pois,
entre a percepção primeira (a sensação) e a percepção segunda (a reflexão), deve sempre se interpor já o meio
termo de uma «operação», mesmo que elementar. Por isso, o que o espírito percebe pela reflexão, não são
idéias que seriam simplesmente depositadas nele, mas suas próprias operações e, nesse sentido, é a ele
próprio, na medida em que ele é essencialmente uma atividade. Paradoxalmente, o que a «reflexão» lockiana
percebe é mais imediato, ou mais originário, ainda que mais diferenciado do que se estivéssemos tratando com
uma «idéia de idéia»99.

Locke propõe, igualmente, uma enumeração em muitos aspectos semelhante à de Descartes, quando
ele descreve os modos da cogitatio; mas, desta vez, tratam-se dos primeiros elementos do entendimento,
fornecidos pela reflexão:

98
Sobre a maneira pela qual essa decalagem é repensada por Condillac, de modo a que se possa ler aí a produção do próprio
entendimento (sempre pressuposto por Locke como um conjunto de «faculdades dadas»), cf. J. Mosconi, «Sur la théorie du
devenir de l’entendement», Cahiers pour l’Analyse, nº 4, set/out 1966.
99
Essa distinção é suficiente, nos parece, para invalidar a idéia de uma continuidade essencial entre Descartes e Locke na
invenção do mind, afirmada por R. Rorty no início de sua obra Philosophy and the Mirror of Nature (1979; tyrad. Franc.
1990).
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 39

«operações que, tornando-se o objeto das reflexões da alma (when the Soul comes to reflect on),
produzem no entendimento um outro tipo de idéias, que os objetos exteriores não teriam podido
fornecer: tais como são as idéias do que denominamos aperceber, pensar, duvidar, crer, raciocinar,
conhecer, querer, e todas as diferentes ações de nossa alma (the differents actings of our own Minds) de
cuja existência estamos plenamente convencidos, porque nós as encontramos em nós mesmos (which
we being conscious of, and observing in our selves) e por intermédio das quais recebemos idéias tão
distintas quanto aquelas que os corpos produzem em nós, quando vêm tocar nossos sentidos.» (II.i.4)

A dificuldade se concentra, finalmente, na noção de percepção, que é o eixo de todas as definições e


classificações de Locke. Não tanto pela significação extensiva que ele lhe confere, praticamente sinônima de
representação sensível, ou intelectual100, mas em razão da significação por vezes passiva, por vezes ativa de que
se reveste. Assim, a sensação é fundamentalmente passiva, já que ela nos transmite as qualidades dos objetos
exteriores, mas ela pode ser também designada como um primeiríssimo nível de atividade do espírito. Da
mesma forma, a reflexão é, a princípio, a simples percepção das operações internas do espírito, mas essa
percepção é, por sua vez, designada como uma «operação» (e Locke diz que a primeira das «idéias de reflexão»
é justamente a idéia de percepção, que é quase a idéia elementar do espírito – II.ix.2).

Tudo se passa, com efeito, como se a concepção lockiana fosse fundada sobre um dualismo
fundamental: o das representações e das operações, que são como duas faces da percepção, ou que se alternam
em sua gênese. Assim se explica que o espírito possa tanto ser descrito como uma tábula virgem (tabula rasa),
sem inscrição prévia, quanto como um dinamismo caracterizado por seus poderes ou faculdades (powers of
Mind), constantemente animado por um movimento que Locke denominará mais adiante de «inquietude»
(uneasiness)101. O Mind de que nos fala Locke é, nesse sentido, uma máquina lógico-psicológica que, em
permanência, engendra novas representações que «operam» sobre os materiais constituídos pelas idéias
simples de sensação e de reflexão (ou, se assim prefere-se: a partir da diferença inicial entre idéias de sensação
e idéias de reflexão). Trabalhando, desta forma, para estender sua percepção do mundo e para ampliar sua
diversidade.

O que funda as análises de Locke é, mesmo, um duplo dualismo, cujos termos não cessam de se
superpor: de um lado, temos a distinção da sensação e da reflexão, que remete à heterogeneidade do exterior e
do interior, dos elementos sensíveis e dos elementos que têm sua origem no próprio entendimento; de outro,
temos a distinção do lado passivo (a percepção propriamente dita) e do lado ativo (as operações que a tornam
possível e a tomam por objeto). Ora, essas duas distinções não são sinônimas. Pode-se perfeitamente conceber
um entendimento passivo, que toda uma tradição filosófica tomou por uma espécie de perfeição (por exemplo,
sob o nome de «intuição intelectual»). Inversamente, não é necessário considerar a sensação como puramente
passiva, como uma «recepção» das qualidades dos objetos sem intervenção do poder ou da energia do espírito:
ao contrário, uma parte da posteridade psicológica de Locke não cessará de majorar esse poder. O empirismo,
ou aquilo que assim se denomina, não seria, em permanência, influenciado por essa superposição? Ela é
patente, em todo caso, em Locke. Mas ela influencia diretamente, também, a definição de consciência: pois, no
100
O tradutor Coste buscou explicitar essa extensão traduzindo, freqüentemente, o inglês perception pelo francês
apperception ([apercepção], o que permite dizer que o espírito «se apercebe daquilo que se passa em si próprio».
101
No grande capítulo II.xxi: «Do Poder». Mas, a partir do § II.i.4 tínhamos a frase essencial: «The term Operations here, I
use in a large sense, as comprehending not barely the Actions of the Mind about its Ideas, but some sort of Passions arising
sometimes from them, such as is the satisfaction or uneasiness arising from the though.» Voltaremos adiante à questão das
relações entre o problema da consciousness e o da uneasiness (para o qual Coste teve, igualmente, que forjar um neologismo,
explicando-se: cf. Essai philosophique… Traduit de l’anglois par M. Coste, ed. Cit., p. 177). Sobre a formulação da noção e a
história de sua tradução, ver Jean Deprun, La Philosophie de l’inquiétude en France, op. cit., p. 192 e seg., que sublinha de
novo a importância da confrontação com Malebranche.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 40

fundo, ela é, a princípio, o próprio momento da diferença entre a sensação e a reflexão, ou entre a passividade
e a atividade do espírito.

A consciência seria então a reflexão no «sentido interno»? Vê-se que Locke se dirige para uma
concepção bem mais complexa: a consciência está presente desde a primeira reflexão, já que ela é «a
percepção do que se passa em nosso próprio espírito», isso é, das sensações que aí introduzem idéias, e das
operações a que elas dão lugar. Poder-se-ia dizer que o conceito de consciência «desdobra» o de reflexão,
englobando sob um nome único o que a torna possível (a diferença inicial entre a sensação e a operação
intelectual, entre a passividade e a atividade do espírito) e aquilo que ela torna possível: o trabalho, ou o
desenvolvimento do entendimento, ao longo do qual a reciprocidade do ponto de vista das «idéias» e do ponto
de vista das «operações» não cessará de se exercer. Assim, é preciso dizer também que a consciência está
sempre presente ao longo do progresso do entendimento: à medida que se desenvolve a experiência, a
consciência reflete [sobre] suas ações ou formas sucessivas. A consciência é, portanto, a instância de totalização
do saber, sob a forma de um conhecimento de si do espírito coextensivo à própria experiência. E assim
chegamos ao princípio de identidade: a consciência é uma identidade a si que se mantém, ou melhor, que se
reitera no seio das diferenças: diferença ou desigualdade da primeira reflexão, diferenciação progressiva da
experiência e do espírito que por ela se forma.

Uma tal identidade, ao mesmo tempo diferencial e totalizadora, deve ser sempre pensada como uma
interioridade. Já a partir do § 8 do livro II, cap. I, Locke escreve, de forma admirável:

«Vemos porque muito tempo se passa antes que a maioria das crianças tenham idéias das operações de
seu próprio espírito, e porque certas pessoas jamais conhecem a maior parte delas, nem muito
claramente, nem muito perfeitamente. A razão disso é que, apesar de essas operações serem
constantemente excitadas na alma (they pass there continually), elas só aparecem aí como visões
flutuantes e não produzem impressões suficientemente fortes para deixar na Alma ( Mind) idéias claras,
distintas e duráveis, até que o entendimento venha a se dobrar [replier], por assim dizer, sobre si mesmo
(till Understanding turns inwards upon itself), para refletir sobre suas próprias ações e para propor-se a
si mesmo como objeto de suas próprias contemplações102…»

Até então, a interioridade do espírito só era afirmada de forma negativa: por oposição à exterioridade
da sensação, ou melhor, à exterioridade que a sensação denota, já que ela «situa» espontaneamente as
qualidades por ela registradas no exterior de si (nos «objetos» ou «corpos») e, por diferença, se situa a si
própria no interior. Pode-se supor também que a interioridade das operações mentais se pensa por diferença
com sua expressão verbal, com a «saída» do foro interior que representam a tradução das idéias em palavras e
a comunicação dos pensamentos. Mas temos, agora, se é possível dizer assim, uma marca interior da
interioridade, a qual, de novo, faz-se uma com a consciência. Esta última é, a cada instante, a via de acesso a
essa interioridade que já a constitui. Ou ela pode sê-lo (como testemunham as crianças e os adultos
irrefletidos), pois que a dobra [pli] já está lá, podendo ser dobrada [repliée] à vontade.

Como a impressão sobre uma tábula, a reflexão é decerto, por si só, uma metáfora, tão antiga quanto
as comparações entre o pensamento e a visão (ou a idéia de um «olho do espírito», presente em Platão).
Reflexão e repli (dobradura) têm uma raiz semântica comum NdT, mas não são noções estritamente
equivalentes. Pode-se, inclusive, sugerir, que elas seguem em sentido contrário: enquanto o repli (dobra)
102
Vê-se que Coste achou a metáfora muito original, mas ele a traduziu bem.
NdT
Em português, a «prega» deriva-se da mesma raiz latina, de plica – de que se originou, também, «replicar», que toma em
nossa língua, no entanto, sentido diverso de «dobradura», de «dobrar-se sobre si», que se manteve no francês.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 41

interioriza uma exterioridade inicial, a reflexão permite desenvolver uma quase-exterioridade no seio da
interioridade. A representação metafórica do espírito como uma cena sobre a qual «passam» pensamentos (e
acontecimentos intelectuais ou afetivos «se passam») que o próprio espírito observa naturalmente também
está presente em Locke. Ela está tradicionalmente exposta a objeções contra o desdobramento do espírito em
observador e observado e contra o caráter fantasmático da cena interior. Locke reduz, ou contorna, essas
objeções pelo recurso à metáfora mais profunda do repli, que será freqüentemente encontrada na história dos
debates sobre a consciência e o sujeito.

iv. a consciência do sujeito: o si ou a responsabilidade

A expressão de self-consciousness, dissemos, não aparece antes do capítulo II.xxvii, acrescentado em


1864 (§16). Aliás, ela não figurará mais do que uma só vez, em todo o Ensaio. Mas está essencialmente ligada à
idéia de que a continuidade da consciência é o critério da identidade pessoal, para a qual Locke forja, ou
sistematiza, a expressão nominal the Self. O sujeito lockiano, ao qual estarão associadas tanto as funções de
vigilância intelectual quanto as de responsabilidade e de «posse de si mesmo», é pois essencialmente uma
consciência de si, ou melhor: uma consciência do «si»103. Locke não considera a noção de identidade como
unívoca: ela deve se diferenciar segundo os domínios aos quais se aplica 104. o primeiro é o das «substâncias»,
notadamente corpos, que são idênticos ou diferentes conforme conservem a mesma composição «material»,
isso é, corpuscular. O segundo é o dos organismos vivos, que conservam sua forma típica a despeito das
transformações por que passam, o que Locke denomina «identidade individual». É o que se passa, sobretudo,
com os indivíduos humanos, que podem ser nomeados (Adam, Sócrates, Pedro, Paulo). Mas Locke busca
distinguir essa identidade individual (que se poderia chamar, também, de invariância) da identidade de
pessoa, que repousa unicamente na continuidade da consciência no tempo. Ele não teme enfrentar os
paradoxos no mínimo aparentes que podem resultar de uma estrita aplicação desse critério, tal como as fusões
e os desdobramentos de personalidade: se dois indivíduos (Sócrates, Platão) têm ou tiveram os mesmo
pensamentos, as mesmas memórias, a mesma consciência, eles são ou seriam uma só pessoa; inversamente, se
um mesmo indivíduo tem ou teve duas consciências distintas, como o «homem diurno» e o «homem noturno»
– evocados de forma surpreendente no § 23 – eles seriam duas pessoas (e dois sujeitos de imputação distintos).

Trata-se, pois, do mesmo «princípio de identidade» lógico-psicológico que se esboçava na crítica das
idéias inatas:

«Para descobrir em que consiste a identidade pessoal, é preciso ver o que implica a palavra pessoa. É,
acredito, um ser pensante […] que pode consultar-se a si mesmo como o mesmo (consider it self as it
self), como uma mesma coisa que pensa em diferentes tempos e em diferentes lugares; o que faz
unicamente pelo sentimento que tem de suas próprias ações (consciousness), que é inseparável do
pensamento e lhe é, parece-me, inteiramente essencial, sendo impossível a qualquer Ser aperceber sem
aperceber-se que apercebe (to perceive, without perceiving, that he does perceive) […] Esse
conhecimento sempre acompanha nossas sensações e nossas percepções presentes; e é assim que cada
qual é, para si mesmo, o que chama si mesmo (everyone is to himself, that which he calls SELF). Não se
considera, nesse caso, se o mesmo Si é continuado na mesma Substância, ou em diversas Substâncias…»
(II.xxvii.9)

103
Sobre as questões de história das idéias trazidas pelo emprego de self-consciousness, cf. Glossário: self-consciousness.
104
Sobre a questão da analogia e da equivocidade na concepção lockiana de Identity, cf. Glossário: identity, sameness.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 42

Um tal critério é, no entanto, exposto à objeção de que nos esquecemos de uma boa parte de nossas
ações, sem, por tanto, acreditar que mudamos de identidade. Ao que Locke responde por uma articulação mais
profunda da consciência e da memória, que faz do esquecimento (forgetfulness) uma marca de imperfeição e
finitude, sobre o fundo da temporalidade interior, essencial à subjetividade do pensamento:

«A con-sciência, por tão longe quanto ela possa se estender, mesmo que fosse até séculos passados,
reúne em uma mesma pessoa as existências e as ações mais distanciadas no tempo, assim como ela une a
existência e as ações do momento imediatamente precedente; de sorte que qualquer um que tenha uma
con-sciência, um sentimento interior (consciousness) de algumas ações precedentes e passadas, é a
mesma pessoa a quem essas ações pertencem. Se, por exemplo, eu sentisse igualmente em mim (Had I
the same consciousness) que vi a Arca e o Dilúvio de Noé, tal como sinto que vi, no último inverno, a
inundação do Tamisa ou que escrevo presentemente, não poderia, também, duvidar de que o eu que
escreve nesse momento (that I, that write this now), que viu no inverno passado o Tamisa ser inundado
e que esteve presente ao Dilúvio Universal é o mesmo eu […] que estou certo que eu que escreve isso
sou, nesse momento em que escrevo, o mesmo eu que era ontem (that I that write this am the same MY
SELF now whilst I write… that I was Yesterday), quer eu seja inteiramente composto, ou não, da
mesma Substância material ou imaterial. Pois para ser o mesmo eu, é indiferente que esse mesmo si seja
composto da mesma Substância, ou de diferentes Substâncias; posto que sou tão interessado
(concerned) e, também, justamente responsável (accountable) por uma ação feita há mil anos e que me é
presentemente imputada (appropriated) por esta con-sciência que tenho (self-consciousness) de tê-la
feito por mim mesmo, quanto o sou por aquilo que acabo de fazer no momento precedente» (II.xxvii.16).

Tal é, no fundo, o verdadeiro «cogito» lockiano, ao mesmo tempo formalmente semelhante ao de


Descartes, naquilo em que combina em uma mesma certeza o fato da existência e a experiência do pensamento,
e fundamentalmente diferente, no que ele ressitua toda essa experiência no elemento «histórico» da memória.
Ego sum quis sum, sou o que sou, na medida em que tenho a certeza de ser sempre aquele que fui, porque
estou consciente de pensar o que pensei (e, sem dúvida, também: eu estou, a cada instante, consciente de que
terei pensado o que atualmente penso).

Assim, as objeções que Descartes havia afastado, notadamente a idéia de que é preciso tempo para a
reflexão, e de que não poderia haver uma «consciência», uma idéia da idéia ou um pensamento daquilo que
penso sem uma duração – sobre a qual pode-se perguntar se ela altera, ou não, a representação inicial –
tornam-se, em Locke, teses positivas, incorporadas ao próprio conceito da consciência, e o meio de uma
reformulação do cogito105.

Vê-se bem que essa memória está inteiramente situada na perspectiva da responsabilidade, o que quer
dizer que ela não se volta para o passado sem antecipar em permanência o futuro, ou melhor, sem que, de
alguma forma, «provenha» do futuro: o que é uma maneira fundamental de totalizar subjetivamente o tempo,
no presente da consciência. Desse modo, ela está intimamente ligada a uma noção de apropriação do
pensamento por ele mesmo.

Se somarmos essas indicações, poderemos acrescentar ainda que, em Locke, o pensamento como
consciência e a consciência de si como atividade de pensar – em outras palavras, o sujeito – são essencialmente
referidos à alternância de dois modos de ser das idéias: não o possível e o real, mas antes a existência virtual e

105
Note-se a persistência da estreita relação com a temática do ceticismo, que ressurgirá no cerne do problema da
consciência de si em Hume e em Hegel. Locke toma exatamente a posição contrária das formulações de Montaigne: « Moy à
cette heure et moy tantôt sommes bien deux» («Eu, nesse momento, e eu, ainda há pouco, somos de fato dois») (mas «Meu
livro é sempre um») (Ensaios, III, ix). Cf. o comentário de Jean Starobinski, Montaigne en mouvement, Folio Gallimard,
1993.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 43

a existência atual. Ou as idéias me estão presentes, como percepções, ou então elas estão ausentes – não no
sentido de uma aniilação, mas no sentido em que são colocadas sob reserva, em um «lugar» temporal que
religa o passado e o futuro pela própria possibilidade do presente 106. Cada um desses modos de existência é
pressuposto pelo outro, o que significa que a consciência está na memória, e a memória na consciência. Esta é,
precisamente, a significação completa da noção de mind – que está, inclusive, em conformidade com sua
etimologia. Mas isso significa, ainda, que reencontramos mais uma vez a figura da identidade na diferença, sob
a forma de uma identidade que «passa» da existência virtual à existência atual, ou da virtualidade à atualidade
do pensamento. Não estaria ela, no fundo, bastante próxima dos dualismos que já encontramos? Se
pudéssemos demonstrá-lo, teríamos uma visão decisiva da forma pela qual Locke entrelaçou a problemática da
consciência àquela do tempo interior e, portanto, de seu papel de fundador da filosofia moderna.

As diferenças que fornecem a própria estrutura da consciência (sensação e reflexão, passividade e


atividade, presença atual e presença virtual) devem sempre ser pensadas na modalidade da passagem e, por
conseguinte, de uma duração, ainda que evanescente, de um «momento do tempo» (o que estaríamos tentados
a denominar, como o contemporâneo de Locke, Isaac Newton, de uma fluxão). Reciprocamente, qualquer
passagem ou movimento do pensamento tem por essência um jogo de diferenças, que se escavam desde a
origem e se conservam ao longo da experiência da consciência. Não somente a consciousness sempre contém
um diferencial de tempo (o que se exprime admiravelmente na fórmula já citada: «the perception of what
passes in a Man’s own Mind» a consciência é a presença a si, como «percepção», de uma ação que se passa,
que está, portanto, em vias de se passar)107, mas ela contém um nexo das três instâncias temporais. Pois, por
essa «ação» já passageira de que presentemente me faço consciente, terei futuramente que responder (quer
seja em um futuro último, o do Julgamento Final, seja o futuro imediato que se desenha pela vigilância que
exerço sobre meus pensamentos). E o que, em suma, Locke nos mostra é que a retenção do passado se une à
consciência presente em razão do Julgamento por vir – no qual ela sempre já se inscreve. Poder-se-ia exprimi-
lo, ainda, dizendo que na constituição do Mind lockiano as três instâncias, passado, presente e futuro, são os
outros nomes para a memória, a consciência e o julgamento, cuja interdependência, cujo co-pertencimento em
interioridade se trata, justamente, de pensar, referindo-os ao termo comum que é a ação.

Mas isso significa também dizer que essa forma de identidade a si que nomeia a «consciência de si» (o
Eu sou ou Eu = Eu cujo formalismo Hegel, mais tarde, criticará, atribuindo-o a uma tradição que vai de
Descartes a Kant e Fichte) é, em realidade, uma equalização, mais do que uma igualdade dada: é um
movimento de volta a si que passa pela retenção (mais ou menos completa) do passado, em função de um
futuro que, sempre lá, o julga e o espera. E, em conseqüência, é o movimento mesmo de uma apropriação de si
que se efetua no campo da experiência da consciência:

«Entendo a palavra Pessoa como uma palavra que foi empregada para designar precisamente o que se
compreende por si mesmo (is the name for this self). Em toda parte em que o Homem encontra aquilo
que chama de si mesmo, penso que um outro pode dizer que reside a mesma pessoa. A palavra Pessoa é
um termo de Barreau que apropria ações, e o mérito ou demérito dessas ações (appropriating Actions
and their Merit) […] Assim, toda ação passada que ele não puder adotar ou apropriar (reconcile or

106
Poder-se-ia desenvolver essa indicação remetendo ao capítulo (II.x: Da retenção) no qual Locke esboçou sua
fenomenologia da memória. Cf. Glossário: memory.
107
Pode-se encontrar a recíproca dessa proposição no capítulo consagrado à duração como «modo do pensamento», que não
contém a palavra consciousness, mas que reproduz exatamente sua definição (II.xiv.3). Daí partirão, mais tarde, os teóricos,
para sustentar a idéia do «fluxo de consciência» sem a consciência, designada como uma hipóstase: cf. William James,
«Does consciousness really exist?» (1905), in Essays in Radical Empiricism, 1976. Essa “fuga em direção ao futuro” é
característica de toda a história filosófica do tema da subjetividade.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 44

appropriate) pela cons-ciência a esse presente si não pode tampouco interessar-lhe mais do que se ele
jamais a tivesse realizado, de sorte que se ele viesse a experimentar prazer ou dor, isso é, recompensas
ou penas em conseqüência de tal ação, seria o mesmo que se ele ficasse feliz, ou infeliz, no primeiro
momento de sua existência, sem tê-lo merecido de nenhuma forma […] Eis porque São Paulo nos diz
que, no Dia do Julgamento, quando Deus retribuirá cada um segundo suas obras, os segredos de todos
os corações serão manifestados. A sentença será justificada pela própria convicção em que terão todos os
Homens (by the all Persons shall have) de que, em qualquer Corpo que apareçam, ou em qualquer
Substância a que esse sentimento interior (consciousness) se encontre associado, eles terão eles próprios
cometido tais ou tais ações, merecendo o castigo que lhes infligido por tê-los praticado.» (II.xxvii.26) 108

E é sem dúvida em razão dessa unidade da reflexão, da memória, da responsabilidade e da


apropriação, reunidas em uma só fenomenologia da «percepção interior», que a consciousness lockiana é ainda
e sempre, ao menos por sua estrutura formal, uma consciência moral. Por isso, o fato de que ela se constitui no
critério da identidade pessoal, e esta última o próprio requisito da responsabilidade, não é mais o que o avesso
de sua constituição. A unidade que (a partir de Kant) denominamos de sujeito e a que Locke, em primeiro
lugar, chamou de consciência de si, é indissociavelmente lógica (identidade a si) moral e jurídica
(responsabilidade, apropriação) e psicológica (interioridade e temporalidade). Ela se chama a si própria, em
segredo, My self. E ainda que caiba a uma disciplina racional, quase experimental, a tarefa de retraçar a
«história»109, ela é sem dúvida constituição de uma Idéia da razão. Mas essa idéia, longe de repousar sobre um
substancialismo metafísico, resulta inteiramente de sua desconstrução. É bem verdade que tal desconstrução se
efetua em nome de uma outra concepção metafísica, talvez muito mais originária do que a de substância: a do
próprio e da apropriação.

Ao inscrever o tempo da memória e do julgamento na interioridade da consciência, Locke opera um


retorno à concepção agostiniana do «homem interior», incomparavelmente mais profunda do que aquela que
havíamos observado nos «cartesianos» (Arnauld, La Forge). Mas é, no fundo, para subvertê-la: pois a
memória, constitutiva do sujeito e de seu modo de acesso à verdade em Santo Agostinho, não era subjetiva,
nesse sentido. Ela representava, antes, a marca. no «mais profundo» de cada alma humana, de uma
transcendência e de uma eternidade ausentes. Eis porque ela estava ligada, não a uma experiência da
«propriedade de si mesmo» e de apropriação (mesmo que limitada pelas possibilidades empíricas do espírito),
mas, bem pelo contrário, a uma experiência de minha insuficiência ontológica e a meu desejo de unir-me a
Deus no além. A invenção lockiana da consciência – é o que lhe dará sua força, mas também não cessará de
atrair as críticas – não sacrifica nenhuma das significações simbólicas tradicionalmente associadas à
interrogação do indivíduo acerca de suas origens e dos fins de seus próprios pensamentos e, pois, acerca da
destinação do homem. Ela lhe fornece, entretanto, uma formulação que, segundo seus próprios termos,
historiciza integralmente as marcas da transcendência, ou as inscreve como representações reguladoras na

108
A passagem correspondente de São Paulo é I Coríntios, 14, 25: «Mas se, quando todos profetizam, entrar um infiel ou um
não-inciado, ei-lo repreendido por todos, julgado por todos; os segredos de seu coração são revelados (ta krupta tês kardias
autou phanera ginetai). Então, caindo de face contra a terra, ele adorará Deus, proclamando que Deus está realmente entre
vós.» É interessante observar que o contexto da carta de São Paulo evoca o desaparecimento do véu das palavras (das
«línguas») no momento em que a claridade se faz, no «face a face»: redescobre-se aqui, mas pela via teológica, a idéia de
que a «verdade do pensamento» e a essência do espírito se revelam pela abstração da linguagem. Cf. Glossário: ressureição.
109
O termo é empregado por Locke que, em seu capítulo introdutório (§ 2), fala do «simples método histórico» do Essay
(Historical, plain method). Ele será retomado por Voltaire, nas Lettres philosophiques de 1734, para opor o método empírico
de Locke ao «romance da alma» de Descartes e Malebranche (Voltaire, Mélanges, Bibliothèque de la Pléiade, 1961, p. 38).
Sobre a rara presença do termo «consciência», nessa acepção, em Voltaire, afora esta passagem – em que figura, em última
análise, como um anglicismo – cf. C. Glyn-Davies, op. cit., p. 68-69.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 45

relação a si e na imanência do espírito, como maneiras pelas quais o pensamento se percebe a ele próprio, em
atividade, se vendo «operar», «adquirir», «investigar», «progredir» e «passar».

v. interior/exterior: a «tópica» lockiana da consciência

Para concluir, busquemos localizar em uma «tópica» única as relações de interioridade e de


exterioridade que nos parecem como características das operações da consciousness lockiana e, nesse sentido,
como constitutivas da nova concepção da realidade «mental» para a qual ela se faz determinante. Isso nos
permitirá compreender tanto a grande amplitude dessa concepção, no entroncamento das problemáticas
«psicológica», «fisiológica» e «transcendental» relativas ao sujeito, quanto sua constante exposição aos
questionamentos críticos.

Vimos que Locke, no início do II livro do Essay, chama de «reflexão» uma percepção segunda (mas
originariamente possível, o que a expressão «sentido interno» serve para designar) pela qual o mind percebe
suas próprias operações, a começar pela sensação que é a fonte de todas as nossas informações sobre o mundo.
A estrutura do espaço interior é determinada de forma imanente por esse redobramento, ou essa dobradura
originária que é engendrada pela superposição das «idéias de sensação» e pelas «idéias de reflexão». Digamo-
lo melhor: a diferença ontológica entre o exterior (o mundo e seus objetos, feitos de qualidades, de modos, de
substâncias, de relações…) e o interior (as idéias, as operações sobre essas idéias, em seguida seu
encadeamento em pensamentos cada vez mais complexas) é reproduzida, ou projetada no seio do mind –
portanto, na interioridade, como redobramento da sensação e da reflexão, ou de uma idéia de exterioridade e
de uma idéia de interioridade. Assim, o interior contém, idealmente, a si mesmo e a seu outro. O que se poderá
interpretar – e essas interpretações de fato dominarão a posteridade de Locke – seja como traço ineliminável
da exterioridade (da matéria) no seio da interioridade (do espírito), seja como antecipação e condição de
possibilidade da relação com a exterioridade do mundo, na própria estrutura da interioridade. Condillac ou
Kant.

No entanto, esperamos ter demonstrado que uma tal estrutura de redobramento ou de emissão ao
exterior, no seio da interioridade, não se sustenta teoricamente, a menos que seja colocada em correspondência
com uma série de outras demarcações, que são, ao mesmo tempo, articulações bastante problemáticas. A
tópica das relações entre interior e exterior, no duplo sentido de disposição imaginária dos «espaços»teóricos e
de localização recíproca dos problemas, adquire assim uma complexidade que a tradição filosófica não cessará
de tentar deslindar, retomando os termos tais quais ou procedendo a inversões, subtrações ou adjunções. A
primeira e mais importante dessas articulações, recordemos, é a separação entre idéias e palavras, ou do
pensamento e da linguagem.

As palavras também se constituem, em relação às idéias e à sua interioridade própria, uma


exterioridade, ainda que certamente não no mesmo sentido em que os objetos da experiência, em geral: o fato
de que elas sejam perceptíveis como objetos, modos ou qualidades sensíveis é uma condição necessária à
função da linguagem, mas que não é suficiente para caracterizá-la. No mínimo, seria preciso acrescentar que as
palavras, na condição de signos, pertencem ao mundo da comunicação social (o que, em um outro contexto – o
do Second Treatise of Government – Locke denomina a civil society)110. É desde esse novo limite (ou, se assim

110
A articulação é explicitada – em termos finalistas – desde as primeiras linhas do livro III: «Tendo feito o homem para ser
uma criatura sociável (a sociable Creature), Deus não somente inspirou-lhe o desejo e levou-o à necessidade de viver com os
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 46

se preferir, sobre essa frente) do interior mental e do exterior social e verbal, que o sujeito lockiano (ou a
«pessoa») descobre a possibilidade de observar em si próprio as condições da verdade primeira de seus
conhecimentos (que residem na natureza de suas operações metais), assim como a possibilidade de trabalhar
para seu progresso (que reside na aquisição de novas idéias, no desenvolvimento da correspondência entre as
idéias e as coisas, por meio dos signos de linguagem comuns a todos, enfim, a passagem das proposições
mentais às proposições verbais, com as formas de verdade correspondente). A posição defendida por Locke,
quanto à natureza do signo funda-se em uma estrita hierarquização do pensamento e da linguagem, pois as
palavras não adquirem uma significação unívoca, em um espaço público de comunicação, senão à condição de
serem, antes de tudo, signos de idéias, para tornarem-se em seguida signos das coisas, num movimento que vai
do interior ao exterior, mas permanece ancorado na interioridade – condição mesma do sentido. Para que a
separação do mental e do verbal não se transforme em barreira solipsista (idéia nada lockiana), é preciso,
entretanto, que a passagem para a exterioridade – como a própria comunicação e, portanto, a sociedade civil –
seja, de uma certa maneira, antecipada no seio do espírito. Mesmo que sob a forma dessa «responsabilidade»,
ou capacidade de responder (e de responder por si) que, como vimos, é também uma dimensão originária da
consciência, inseparável de sua temporalidade própria.

Tem-se aqui o ponto de partida para os «quebra-cabeças» modernos concernindo à relação entre
linguagem e subjetividade, que se originam do enfrentamento recorrente entre as hipóteses de um pensamento
puro que precede a dimensão trans-individual da comunicação, e de uma estrutura lingüística, ou quase-
lingüística (semiótica) que rege as operações do pensamento. Ao dissociar o mental e o verbal, Locke decerto
forjou o meio de resolver questões que embaraçavam seu predecessor, Hobbes: como, se a linguagem é um
elemento da verdade e se o que a caracteriza é um poder infinito de metáfora ou de ficção, garantir um uso
verdadeiro, puramente «referencial», para as palavras111? No entanto, ainda é preciso que Locke demonstre
que a tradução dos pensamentos em palavras, que se constitui em uma antecipação da sociedade no seio do
pensamento individual (uma «relação secreta» do mind com os outros minds) tem suas condições na própria
consciência. Isso implica que cada indivíduo ou pessoa responsável imagine no espírito dos outros uma
consciência análoga à sua (Essay, III.ii.4); em outras palavras, isso implica que a consciência é já a forma de
uma relação virtual a outrem, ao mesmo tempo em que ela é, atualmente, a forma de relação consigo. Ora, essa
concepção pode facilmente conduzir a uma aporia. Quando se abandona o puro terreno de uma fenomenologia
da consciência para abordar a questão da verdade das proposições mentais como adequação a uma certa
realidade, Locke se vê tentado a afirmar que as idéias são, elas próprias, signos, em um sentido mais geral – e,
por conseguinte, as palavras são signos de signos. E ele vai até evocar, nas últimas linhas de seu livro, uma
semeiôtikè ou uma ciência (doutrina) geral dos signos que incluiria, a uma só vez, o conhecimento das idéias e
da linguagem (a lógica, propriamente dita)112.

de sua espécie, mas ainda concedeu-lhe a faculdade de falar (furnished him also with Language), para que ela se tornasse o
grande instrumento e o laço dessa sociedade (the great Instrument and common Tye of Society)» (III.i.1, trad. Coste).
111
Cf. E. Balibar, «L’institution de la vérité. Hobbes et Spinoza», in Lieux et noms de la vérité, Ed. de l’Aube, 1994.
112
Essai, IV.v.2: «De forma que a verdade não pertence propriamente senão às proposições; e essas são de dois tipos, uma
mental, e outra verbal, assim como os signos (signs) dos quais nos servimos comumente são de dois tipos, a saber as idéias e
as palavras» e IV.xxi.4: «Pois já que entre as coisas que o espírito considera não há nenhuma, exceto ele próprio, que esteja
presente ao entendimento, é necessário que alguma outra coisa se apresente a ele como signo ou representação da coisa que
ele considera, e essas são as idéias [its necessary that something else, as a Signs or Representation of the thing it considers,
should be present to it: and these are Ideas]». Leia-se a interessante interpretação de Michael Ayers, op. cit., I, cap. 7, p. 60
s.: «Ideas as natural signs».
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 47

A definição da linguagem pressuporia, assim, tendencialmente, uma representação do pensamento


como linguagem interior ou linguagem de idéias113. Por outro lado, o raciocínio pelo qual nos estabeleceríamos
secretamente a referência objetiva das palavras não pode antecipar o resultado da comunicação sem suscitar a
difícil questão de uma «linguagem privada» que é quase uma contradição nos termos. Language of thought et
Private language são, hoje, problemas para a filosofia analítica e para as ciências cognitivas. Wittgenstein
havia antecipadamente recusado a pertinência dessas questões, reunindo seus pressupostos em sua crítica do
«mito da interioridade»114. Mas essa crítica só faz ressaltar a importância do novo ponto de vista da
interioridade inaugurado por Locke em sua filosofia: sem o isolamento prévio da consciência em relação ao
momento trans-individual da comunicação, ainda que à condição de reinscrevê-lo, posteriormente, na
interioridade da pessoa, o sujeito não poderia ser identificado à consciência e não haveria psicologia.

De nosso ponto de vista, essa estrutura teórica merece ainda outra observação. É fácil perceber que a
interioridade lockiana (interioridade do mental, dobrado sobre si mesmo como consciência e encontrando
assim, por seus próprios meios, o critério de sua «identidade») é profundamente diferente de uma
interioridade espiritual (aberta, aliás, sobre o abismo da transcendência, como em Santo Agostinho), tanto
quanto de uma interioridade orgânica (fundada sobre a hierarquização e a integração das «almas» ou
princípios de vida, como em Aristóteles), para não mencionar as tentativas de conciliação dessas diferentes
tradições (como em Cudworth e os platônicos de Cambridge e, mais tarde, Leibniz). Menos fácil, ainda que
mais decisivo, talvez, é observar o elemento de equivocidade intrínseca que a interioridade lockiana comporta.
Essa equivocidade resulta da própria tópica que vimos de esboçar. Com efeito, a imanência do campo da
consciência é objeto de dois modos de exposição concorrentes, mas que não são jamais completamente isolados
nas passagens que analisamos. Por um lado, positivamente, ela é apresentada como identidade a si do espírito,
ou melhor, como experiência vivida que corresponde, para cada sujeito, ao fato de que «sou eu mesmo», ou de
que «eu sou meu próprio eu» (I am My self), ao longo do fluxo (train, succession, continuation) dos estados de
consciência (excluídos os problemas de memória e de personalidade) 115. A consciência é, pois, a percepção que
se percebe a ela mesma, ou que se torna, para si própria e de forma imediata, objeto de reflexão. Mas, por outro
lado, a imanência não cessa de ser exposta negativamente (e mesmo, como pudemos observar, apresentada
como negação da negação, segundo a forma clássica do elenchos): ela é, assim, o outro da exterioridade, ou seu
reverso. Acontece que essa exterioridade se diz em múltiplos sentidos e segundo múltiplas lógicas, que jamais
coincidem totalmente.

Ela é exterioridade do mundo sensível, objeto da percepção (que a leitura «empirista» clássica de
Locke privilegiou), mas também exterioridade do mundo dos signos e, através dele, do conjunto de laços ou
relações (ties, bonds) que constituem o «comum» ou a «comunidade» dos homens. É pela proximidade com
essas diferentes exterioridades, ou com as diversas fronteiras que elas, continuando a marcar uma abertura e
uma alteridade (e ainda que sob forma de um puro diferencial de passividade e atividade), transpõem até
interioridade, que essa última se define e se reconhece como tal. A interioridade é, pois, esse paradoxo (Kant

113
Hoje novamente defendida por certos filósofos do espírito – no sentido da Philosophy of Mind: cf. Jerry Fodor, The
Language of Thought. M.I.T. Press, 1975.
114
Cf. Jacques Bouveresse, Le mythe de l’intériorité. Expérience, signfication et langage privé chez Wittgenstein. Ed. de
Minuit, Paris, 1987 ; Geneviève Brykman : «Le mythe de l’intériorité chez Locke», Archives de Philosophie nº 55, 1992, p.
575-586. Igualmente V. Descombes, La denrée mentale, op. cit., p. 186 s. (Descombes sugere, com razão, que a anfibologia
do interior e do exterior somente pode ser ultrapassada pela intervenção de um conceito moderno de organismo, tal como ele
se formula definitivamente em Claude Bernard: precisamente o que expõe o ponto de vista lockiano a um curto-circuito. Mas
a auto-referência implicada em tal conceito não remete necessariamente, nem à consciência, nem ao eu.
115
Cf. Glossário: memory, personality.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 48

dirá, mais tarde: anfibologia) de uma imanência, ou de uma autonomia que só pode ser determinada como
negação, ou como um «lugar» que sempre já está, originariamente, subtraído à exterioridade. E ela é o
paradoxo de uma univocidade (referida ao princípio da identidade) que vem constantemente sobredeterminar
a equivocidade de seu outro – em outras palavras, a equivocidade do mundo 116. Talvez, inclusive, a
multiplicidade de nomes que ela se dá e que ela inscreve em uma série aberta (o mind, ou espírito, consciência,
eu, pessoa, antes que apareça o sujeito) tenha exatamente por função conjurar essa volta equívoca da
exterioridade sobre a própria idéia de interioridade. A partir daí, pode-se indagar o que sucede com a
sobredeterminação quando, ulteriormente, a interioridade e a identidade do sujeito são colocadas em questão
pela emergência de interrogações «críticas» tais como: existe consciência não-subjetiva, podendo ser fora da
presença do Eu? Existe subjetividade não consciente? Designaria o próprio «Eu» um Si, uma mesmice ou
ipseidade, ou seria ele apenas uma miragem da reflexão, o artifício da língua ou, inversamente, o efeito de
superfície de uma alteridade mais originária?

Ao invés de nos engajarmos nessas perspectivas – todas elas herdeiras, ainda que a título de antítese,
da referência lockiana à interioridade do si e da consciência e, por conseguinte, das equivocidades que ela
dissimula – será preciso que compliquemos, por uma última vez, nossa representação tópica. Pois a
exterioridade da percepção e a da nominação não são bastantes, ao que parece, para esgotar o campo daquilo
que, para a consciência, é seu exterior. Talvez exista ainda um terceiro tipo de exterioridade (e, assim, um grau
suplementar de equivocidade na relação interior/exterior) que está ligada à maneira como Locke formula o
problema do afeto.

A dificuldade decerto não é pequena, e provém do fato que, ao se engajar no que ele próprio denomina
o esboço de um «tratado das paixões» 117, cujo pivô é a análise da relação entre desejo e inquietude (Desire,
Uneasiness) Locke oscila entre uma referência implícita ao «corpo próprio» do indivíduo, cujas afecções
permitiriam explicar a associação das sensações com, por um lado, as idéias e, por outro, os sentimentos de
prazer e de dor, e uma neutralidade fenomenológica na qual os afetos são puramente descritos como modos da
experiência, ou «idéias» do espírito. É o segundo ponto de vista que domina incontestavelmente, e essa escolha
teórica deve ser relacionada à atitude cética que Locke pretender manter face a todas as outras suposições de
relações substanciais subjacentes às operações do espírito e às suas relações com o corpo em uma unidade
individual118. Deve-se, sobretudo, relacioná-lo à emergência, na análise do poder – no horizonte da crítica de
Locke às teorias do Bem como «causa final» do Desejo e da Vontade (II.xxi.38 etc.) – de um conceito de objeto
ou de causa do desejo que, por mais necessariamente exterior ao espírito que pareça, não deixa de ser
irredutível, tanto ao objeto da percepção quanto ao signo comunicativo, devendo englobar em sua generalidade
todos os bens (goods) de natureza corporal, espiritual ou social que podemos nos representar (de que temos a
idéia) e dos quais ressentimos a ausência como um «desejo inquieto» – bela descoberta de tradução de Coste
para the successive uneasiness of our desires (II.xxi.31-34).

Todos esses conceitos, que mereceriam, cada um deles, uma longa discussão própria, são de fato
conceitos-limite, e conceitos de um limite: entre o que se denominaria hoje o cognitivo (e que Locke chama de

116
Não exploramos aqui a hipótese recíproca: que a equivocidade do «mundo», tal como ele aparece na cosmologia lockiana
– mundo natural percebido, mundo social significante (enquanto Spinoza, ou Leibniz, por exemplo, se esforçam para pensá-
los com as mesma categorias, como momentos de uma mesma natureza, ou de um mesmo todo) – seja, ela própria, o
correlato do aparecimento do sujeito como «consciência de si».
117
Essai, livro II, cap. xx (Des modes du plaisir et de la douleurs) e xxi (De la puissahnce : Of power).
118
Sobre a possibilidade de considerar as correspondências, no texto de Locke, entre a problemática da consciência
(consciousness) e a da inquietude (uneasiness) como efeito do «recolhimento» da alma, cf. Glossário: concern.
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 49

«percepção», no sentido geral) e o afetivo (que ele deriva da «inquietude» ou «mal-estar»: outra tradução
possível para a uneasiness), mas, sobretudo, entre a passividade e a atividade, de que a dupla inquietude e
desejo representa, justamente, o princípio de inversão. A uneasiness é definida como expressão imediata do
desejo, ou a diferença entre o prazer e a pena, que põe em movimento («move») a vontade. Não há, pois, ação
isenta de inquietude, já que qualquer ação é também uma emoção do indivíduo, ou comporta uma dimensão
afetiva irredutível. Mas a uneasiness é mais geralmente relacionada à atividade mental, ou à sucessão das
operações da mind: o que faz com que o espírito seja, por vezes passivo (sensação), por vezes ativo (reflexão),
mas jamais permaneça em repouso, na contemplação de uma idéia, ou ainda flutuando de uma percepção a
outra, ao caso dos objetos encontrados119.

Aprovando a tradução francesa de «inquietude», Leibniz proporá, para o alemão, Unruhe, baseando-
se na analogia do balanço de um relógio em movimento «perpétuo» 120. Isso equivale a dizer que o
encadeamento das idéias está ligado à sua qualidade afetiva e aos efeitos de emoção, ou afetos, que elas não
podem deixar de produzir, ainda que, em si, elas não sejam senão representações ou perceptos. A uneasiness é
como o motor dinâmico do processo de que a consciousness é a forma cognitiva. Mas que lugar exterior à
consciência e, portanto, ao espírito (mind) propriamente dito (já que não há nenhuma operação do
pensamento que não se perceba como tal) e, ao mesmo tempo, imediatamente vizinho à sua unidade atribuir à
energia desse motor? Locke confronta-se aqui com sua própria crítica à idéia da substância e nos abandona
entre diversas suposições incompatíveis: que a uneasiness seja um traço, no sentido da mind, da relação latente
que o espírito mantém com o corpo próprio do indivíduo, ou que seja, como o «fundo da alma»
malebranchista, uma relação essencialmente secreta do espírito com ele mesmo, de onde procederia seu
movimento de perpétua fuga em direção ao futuro.

Como a de «signo», essas noções-limite da afetividade provavelmente conduzem a aporias: assim


como toda consciência é essencialmente inquieta, porque a uneasiness, que é doença da consciência, é a uma só
vez indissociável e teoricamente distinta dessa consciência, o limite entre o perceptivo e do afetivo –
representando ou simbolizando na mind, ao mesmo tempo, sua relação passiva com o corpo próprio e sua
relação ativa consigo mesma, jamais pode ser fixado em um ponto preciso. Esse limite regride indefinidamente
em direção a uma unidade de contrários enigmaticamente visada por Locke por meio do termo «poder»
(power). Mas pode-se igualmente dizer que a questão, sempre recolocada, dessa unidade não é mais do que a
sombra da distinção teórica inicial 121. Pode-se, ainda, ir mais longe, e sugerir que, ao separar teoricamente as
duas exposições fundamentais respectivamente consagradas à inquietude (e, portanto, à perpétua
diferenciação do espírito) e à consciência de si (portanto, à identidade pessoal), Locke simbolizou o enigma de
uma interioridade que induz, em seu próprio seio, à questão da exterioridade, já que o capítulo xxi do livro II

119
Cf. Essay, II.xiv.13, sobre a impossibilidade, para o espírito, de se manter indefinidamente e ao mesmo tempo em uma só
e mesma (self-same single) idéia. Ao mesmo tempo que nuança esse julgamento e aponta suas dificuldades, J. Deprun (La
philosophie de l’inquiétude em France, op. cit. p. 192-195) descreve a uneasiness lockiana como essencialmente passiva, o
que lhe permite identificar aí a inversão, termo a termo, da concepção de Malebranche. Parece-nos, ao contrário, que toda a
fenomenologia do «desejo inquieto» e da «inquietude do desejo», em Locke, onde abundam as unidades de contrários, vai ao
encontro de um pensamento da diferencial entre passividade e atividade, ou de uma transição contínua de uma a outra.
120
Nouveaux Essais sur l’entendement humain, ed. cit., p. 139-141.
121
Valeria a pena – mas isso seria tema para um outro estudo – indagar se tal não está mais do que nunca presente – à
exceção da «consciência» – na definição de Freud para as «pulsões» inconscientes, com seu duplo status de traços psíquicos
de uma excitação somática e da fixação de um nó recalcado entre as «representações» ( Vorstellungen) e «afetos» (Affekte).
Cf. S. Freud, Das Unbewusste. Schriften zur Psychoanalyse, S. Fischer Verlag, Frankfurt a. M. 1960 (o artigo de 1915
«L’inconscient» está traduzido na Méthapsychologie, Gallimard, 1952).
O TRATADO LOCKIANO DA IDENTIDADE 50

não contém a palavra consciousness, tanto quanto o capítulo xxvii não contém a palavra uneasiness, muito
embora as análises sejam rigorosamente correlativas 122.

Afinal, cada uma das características da interioridade que, em Locke, forma a essência da consciência
(ou do espírito, como sistema de operações conscientes) aparece, pois, como o avesso de uma exterioridade
específica, para a qual a designação de um lugar próprio é tão problemática quanto a unidade que ela deve
formar com as outras: quer se trate da articulação da sensação e da reflexão, da palavra e da idéia, ou do afeto e
do percepto. Pode-se assim explicar que, ao construir essa tópica, Locke prescreveu por antecipação os lugares
teóricos em que se apresentariam os problemas característicos da disciplina centrada no fenômeno da
consciência, quer ela se conceba como um exercício de introspecção, como uma análise crítica e transcendental,
ou como uma ciência experimental articulada à psicologia. A fenomenologia da consciência deverá sempre se
reconstituir, ou se reconquistar, pela designação e conceptualização de seus limites. Mas Locke também
prescreve por antecipação as modalidades segundo as quais poderá emergir, contra o «primado da
consciência» (e, mais fundamentalmente, contra a organização do campo da subjetividade a partir da noção de
consciência), a hipótese de um pensamento ou psiquismo «inconsciente». Em muitos desenvolvimentos
contemporâneos aos quais poderíamos fazer referência, é ainda e sempre a conceptualidade lockiana que
opera, mesmo quando se trata de operar sua inversão. É também aí que a invenção da consciência se mostra
interminável.

122
Esse «exterior inseparável» que o afeto representa, em relação à consciência essencialmente definida em termos de
percepção (de si) é tão mais embaraçoso e enigmático que também é possível representá-lo como um segundo grau de
interioridade, um «interior do interior», isso é, uma intimidade cuja fonte está escondida na própria interioridade (por
analogia com a fórmula agostiniana: interior intimo meo). Torna-se, então, inevitável – sempre a anfibologia – que a
interioridade da consciência, como «cena» sobre a qual «passam» as idéias e se desenrolam as operações da mind, partes
extra partes, apresente-se, por sua vez, como uma espécie de exterioridade, ou uma exterioridade metafórica. Assim, a
interioridade regride ao infinito, e os «lugares» contrários se convertem um no outro. Mas não poder-se-ia colocar uma
questão análoga, a respeito das outras «exterioridades» que situamos em relação ao mental? Interessa a uma tópica, ainda
que elementar, que a interrogação seja guiada nesse sentido. Na história da «ciência do espírito», o afeto, a sensação pura, o
signo (ou o significante) não cessarão de figurar os abismos da interioridade, que a transformam virtualmente em seu avesso.

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