Vous êtes sur la page 1sur 512

10888_A figura do filosofo.p65 1 28.03.

07, 16:00
10888_A figura do filosofo.p65 2 28.03.07, 16:00
Luiz Eva
A figura do filósofo
Ceticismo e subjetividade em Montaigne

10888_A figura do filosofo.p65 3 28.03.07, 16:00


PREPARAÇÃO: Maurício B. Leal
DIAGRAMAÇÃO: So Wai Tam
REVISÃO: Denise Ceron

Edições Loyola
Rua 1822 nº 347 — Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
Caixa Postal 42.335 — 04218-970 — São Paulo, SP
(11) 6914-1922
(11) 6163-4275
Home page e vendas: www.loyola.com.br
Editorial: loyola@loyola.com.br
Vendas: vendas@loyola.com.br
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode
ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia
e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de
dados sem permissão escrita da Editora.
ISBN: 978-85-15-03265-5
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007

10888_A figura do filosofo.p65 4 28.03.07, 16:00


A meus pais

10888_A figura do filosofo.p65 5 28.03.07, 16:00


10888_A figura do filosofo.p65 6 28.03.07, 16:00
Sumário

Apresentação ................................................................................ 11

Nota sobre as referências ao texto de Montaigne ........................ 17

Capítulo I – Filósofo de nova figura? ........................................... 21


1.1. A razão cética ..................................................................... 29
1.2. A epokhé posta em prática ................................................ 39
1.3. Um novo cético? ................................................................ 52

Capítulo II – A esgrima cética ..................................................... 69


2.1. Um fideísmo paradoxal...................................................... 75
2.2. A querela da fé e a auto-refutação cética ........................... 87
2.3. O ceticismo e o valor social da piedade ............................ 101
2.4. Doença racional e terapia cética ....................................... 107
2.5. Um problema vexatório ..................................................... 120

10888_A figura do filosofo.p65 7 28.03.07, 16:00


Capítulo III – O império do costume .......................................... 127
3.1. Um traiçoeiro mestre ......................................................... 130
3.2. Costume e dogmatismo ..................................................... 139
3.3. “Nós todos somos do vulgo” .............................................. 150
3.4. A opacidade dos fenômenos .............................................. 165

Capítulo IV – Filosofia, literatura e paradoxo ............................. 179


4.1. Retórica do paradoxo ......................................................... 184
4.2. Um pirronismo lúdico? ...................................................... 194

Capítulo V – Filosofia como ensaio do juízo .............................. 207


5.1. O ceticismo como gênero filosófico .................................. 209
5.2. O ensaio como investigação cética.................................... 227
5.3. O filósofo e as abelhas ....................................................... 244
5.4. Exemplaridade, subjetividade e filosofia moderna ........... 258

Capítulo VI – Ceticismo em movimento .................................... 281


6.1. A extremidade da dúvida sob exame ................................. 287
6.2. Um retrato mais fiel do juízo humano .............................. 311
6.2.1. Uma outra face da individualidade ......................... 314
6.2.2. A balança das crenças .............................................. 322
6.2.3. Uma doença natural do juízo? ................................ 328
6.2.4. O movimento natural das opiniões ......................... 348
6.3. Os cães de Esopo ............................................................... 361
6.4. A epokhé em movimento .................................................. 379
6.5. Uma atitude cética ............................................................ 391

Capítulo VII – O ensaio como fantasia ....................................... 403


7.1. Quimeras e monstros fantásticos ....................................... 407
7.2. Da fantasia dogmática à fantasia cética ............................. 427
7.3. Uma quimera que não cabe na imaginação ..................... 439

10888_A figura do filosofo.p65 8 28.03.07, 16:00


7.4. Uma imagem menos fantasiosa do homem ...................... 454
7.5. Imaginação, experiência e impremeditação ..................... 474

Conclusão – Ceticismo e subjetividade ....................................... 489

Bibliografia ................................................................................... 501


1. Edições das obras de Montaigne e
instrumentos de análise utilizados .................................... 501
2. Outras fontes primárias ...................................................... 502
3. Fontes secundárias ............................................................. 503

10888_A figura do filosofo.p65 9 28.03.07, 16:00


10888_A figura do filosofo.p65 10 28.03.07, 16:00
Apresentação

O texto que aqui segue é a culminação de uma pesquisa sobre as


implicações do ceticismo antigo nos Ensaios de Montaigne, iniciada
há mais de quinze anos. Fui movido, no início, pela sedução de deci-
frar o significado filosófico das incontáveis alusões aos textos céticos de
Sexto Empírico e Cícero ao longo da impressionante “Apologia de
Raymond Sebond” (décimo segundo capítulo do segundo livro dos
Ensaios). Tal foi o objeto da minha dissertação de mestrado, defendida
em 1994, da qual resultou o livro Montaigne contra a vaidade (ver
Bibliografia). Confirmaram-se e esclareceram-se então, a meu ver, di-
versos aspectos em que essa filosofia recém-redescoberta se faz presen-
te nesse texto com rigor e profundidade normalmente despercebidos, o
que sobretudo me conduziu a novas questões, que realimentaram meu
interesse inicial. Dediquei meu doutoramento a examinar em que
medida tais conclusões podem ser estendidas para o conjunto dos
Ensaios. Cabe interpretá-los, de modo geral, como decorrentes do
mesmo engajamento filosófico cético detectável naquele ensaio, em-
bora seja ele o que melhor exibe um teor propriamente filosófico? E

11

10888_A figura do filosofo.p65 11 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

em que sentido? Uma eventual resposta afirmativa acenava de modo


promissor com uma perspectiva renovada acerca desse momento apa-
rentemente tão decisivo, no limiar do que veio a se chamar filosofia
moderna, e tão carente de investigação, ao menos por esse vértice par-
ticular. Sendo assim, ademais, dada a proeminência que ganha, nos
Ensaios, o projeto de um exame da condição humana e da produção
de um retrato de si mesmo, não estaríamos diante de uma figura pri-
mordial ou embrionária, talvez, do vínculo teórico entre crítica episte-
mológica (cética) e tematização da subjetividade (temas freqüentes na
posteridade filosófica e mesmo diretamente associados em diversos fi-
lósofos, como Descartes)? Não se ofereceria aqui um ponto de partida
relevante para examinar criticamente aspectos da maneira com que
esses temas eventualmente se vincularam?
Ainda que restrita ao exame dos Ensaios, a tarefa se afigurou de-
masiado ampla para ser perseguida com o devido rigor no âmbito da
pesquisa de doutoramento, de modo que fui obrigado a convertê-lo
(Ceticismo e paradoxo nos Ensaios de Montaigne, defendido no início
de 2000) em uma etapa desse trajeto. A ele correspondem, aproxima-
damente, em versão muito remanejada (tratando-se aqui não de uma
tese, mas de um texto que se pretende destinar a um público mais
amplo), os cinco primeiros capítulos deste livro. Posteriormente, a opor-
tunidade de realizar, ao longo de 2003, um estágio de pós-doutora-
mento, no Departamento de Filosofia da Universidade de Nantes,
permitiu-me desenvolver boa parte dos capítulos finais, concluídos
após reelaborações.
Embora o trajeto não culmine com uma análise do conteúdo par-
ticular do auto-retrato de Montaigne, penso que ele é bem-sucedido,
ao menos, em exibir detalhadamente a continuidade existente entre o
engajamento cético da Apologia, o viés subjetivista de que ele é solidá-
rio (em um sentido que será precisado ao longo da investigação) e os
fundamentos filosóficos do projeto de se auto-retratar. O trajeto me
parece delinear uma nova imagem do próprio ceticismo montaignia-
no: um ceticismo de linhagem “radical”, como se verá, embora possui-
dor de uma configuração conceitual própria; ao mesmo tempo, uma
filosofia articulada com o pleno uso e desenvolvimento de todas as

12

10888_A figura do filosofo.p65 12 28.03.07, 16:00


Apresentação

faculdades humanas, corporais e espirituais, na medida em que isso se


faz ao nosso alcance; uma filosofia voltada ao mundo da vida e da
ação, e ao contato do homem com sua efetiva condição. Torna-se as-
sim possível recuperar os contornos próprios de um gênero filosófico
que, em boa medida, foram apagados pela maneira como a posterida-
de acolheu o “ceticismo” em sua versão cartesiana. Concomitantemen-
te, a compreensão dessa filosofia segundo sua coerência própria me
permitiu reavaliar, em boa medida, o sentido de reações filosóficas ao
ceticismo que pertenceram ao mesmo contexto histórico — em espe-
cial, a filosofia cartesiana. Dediquei-me a explorar, ao longo do trajeto,
um contraponto com aspectos desta que contribui para mostrar, ao
que nos parece, que sua dúvida filosófica (metodicamente desenvolvi-
da na Primeira Meditação e normalmente tida como um modelo do
“ceticismo” moderno) não apenas representa uma transformação da
postura autenticamente cética que se pode reconhecer nos Ensaios,
mas sobretudo parece voltada — de um modo mais profundo e minu-
cioso do que até aqui se tem percebido — a responder aos desafios
conceitualmente postos por essa versão particular de ceticismo, em sua
tentativa de superá-lo.
Serviu-me como fio condutor mais geral do percurso o exame da
nova figura de filósofo que Montaigne alegou oferecer (no texto que
situei, adiante, como epígrafe deste trabalho). Além de uma função
decorativa, o texto da epígrafe possui uma importância decisiva para a
totalidade do percurso. E um primeiro passo consiste em tentar situar
adequadamente a problemática em vista da qual essa importância se
revela — a saber, o conflito que parece haver entre a alegação de no-
vidade expressa por essa passagem e as evidências que poderiam ser
arroladas em favor de um engajamento filosófico de Montaigne a uma
filosofia dada, o ceticismo.
Esse engajamento possui uma precisão e uma complexidade que
costumam ser subestimadas, em parte graças à leitura demasiado rá-
pida de passagens como a que servirá de epígrafe, pois tais evidências
se apresentam, como mostrarei, também no interior dessa passagem,
de tal modo que lhe conferem um caráter paradoxal. Esse paradoxo
não constitui um caso isolado: a busca de uma solução ao problema

13

10888_A figura do filosofo.p65 13 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

que ele instaura nos conduz à descoberta de uma estratégia recorrente,


de uma peculiaridade argumentativa intimamente ligada à concepção
filosófica do ceticismo que podemos encontrar nos Ensaios. E, ao ser
aprofundado seu exame, descortinam-se, a bem dizer, sentidos diversos
em que se articula a reflexão cética nos Ensaios. A observação do para-
doxo em seu emprego retórico, num primeiro momento, ajuda a elu-
cidar a dimensão cética da reflexão sobre a religião (examinada no
capítulo II), bem como, mais amplamente, sobre os costumes, em suas
dimensões epistemológica e política (tema do terceiro capítulo). Tal
emprego retórico, contudo, apenas se elucida no capítulo IV, quando
consideramos o texto de Montaigne à luz da tradição literária renas-
centista da declamatio: ele corresponde, ao menos em parte, a uma
estratégia de adaptar a expressão de sua reflexão, por uma estratégia de
ocultamento, em vista das restrições impostas pelos costumes. Ao mesmo
tempo, criam-se assim condições para compreender de modo preciso
um segundo sentido de seu emprego — este mais propriamente filosó-
fico — como instrumento voltado a instaurar o “ensaio” do juízo e
superar as deficiências que Montaigne encontra naquilo que se chama
“filosofia” em seu tempo. Assim, a busca de sua novidade filosófica nos
conduzirá a repetidamente reconhecer a fidelidade e o rigor interpre-
tativo com que, retomando o ceticismo antigo, ele adentra em ambien-
tes conceituais originalmente estranhos à problemática cética, valen-
do-se do paradoxo como instrumento de sua reflexão.
Contudo, o fato de que a “formação do juízo” assuma um papel
central no interior de sua filosofia conduz ao que parece ser um novo
paradoxo — na medida, ao menos, em que estivermos diante de um
filósofo cético, cuja prática necessariamente há de focalizar, de modo
privilegiado, a “suspensão do juízo” (epokhé). Esse aparente paradoxo
me conduziu, no sexto capítulo, a investigar detalhadamente como
esses pontos se conciliam, na forma de uma interpretação original do
ceticismo por parte de Montaigne. Emergirá, então, no centro de tal
interpretação, um terceiro sentido em que a noção de paradoxo parece
relevante em sua reflexão e pelo qual ele se converte numa forma de
representação da epokhé, como signo da finitude dos poderes cogniti-
vos de nosso juízo ou entendimento que é incompreensível com base

14

10888_A figura do filosofo.p65 14 28.03.07, 16:00


Apresentação

neles próprios. Esse terceiro emprego do paradoxo revela, por sua vez,
uma outra “novidade” com que se manifesta o ceticismo montaignia-
no, talvez não de todo consciente por parte do filósofo, embora nos
pareça decisiva de um ponto de vista histórico — a saber, a articulação
do diagnóstico cético de nossa incapacidade de conhecer a verdade em
torno dos limites naturais de nossas faculdades cognitivas.
A mesma constatação permitirá transitar, no capítulo VII, pelo exa-
me das considerações de Montaigne sobre imaginação ou fantasia. O
leitor verá que elas oferecem por si mesmas um derradeiro fio condutor
capaz de abarcar a trajetória filosófica de Montaigne em sua inteireza,
segundo seus contornos mais peculiares. Mais ainda, como se verá, a
noção de fantasia é precisamente aquela que nos permite melhor com-
preender não apenas o significado biográfico de seu contato filosófico
com o ceticismo, mas também a maneira como seu engajamento céti-
co se articula coerentemente com um projeto de se auto-retratar e
autoconhecer, no sentido maduro que ele adquire.
O esforço de compreender a singularidade filosófica dos Ensaios
acaba, assim, por imprimir ao percurso uma feição bastante sinuosa.
Mas não se trata aqui de mimetizar o modo próprio com que avança
em seu texto, aos “saltos e piruetas”, o filósofo de nova figura. Devo
confessar — talvez sem poder contornar inteiramente um paradoxo —
que esse me parece ter sido, involuntariamente, um preço a pagar pela
busca de exibir com clareza uma figura filosófica que opera de modo
mais rigoroso do que aquele que costuma transparecer na vagueza do
ensaísmo: “É o leitor indiligente que perde meu objeto, não eu”.

***
Seria impossível mencionar aqui o nome de todos que deram sua
colaboração para o livro que o leitor tem agora em mãos. Limitar-me-ei
a registrar minha gratidão a Franklin Leopoldo e Silva, orientador de
minha pesquisa de doutoramento; a Bento Prado Jr., Danilo Marcon-
des, Paulo Faria e Sérgio Cardoso, pelas argüições ao texto do doutora-
mento, que contribuíram para sua revisão; e aos demais professores,
colegas e amigos com quem pude debater algumas das idéias aqui

15

10888_A figura do filosofo.p65 15 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

presentes, em especial Oswaldo Porchat Pereira, Roberto Bolzani Filho


e Plínio Junqueira Smith. Desejo agradecer, por sua acolhida, a Pierre
Magnard, orientador do estágio que realizei na Universidade de Paris IV
(Paris-Sorbonne) durante meu doutoramento, em 1996, bem como aos
demais pesquisadores franceses com que tive contato durante esse pe-
ríodo, especialmente os participantes do grupo Montaigne (Cerphi-ENS),
em particular a Sylvia Giocanti, Frédéric Brahami, e a Mitchiko Ishigami-
Iagolnitzer (CNRS-IHRT). Gostaria também de agradecer aos colegas
do Departamento de Filosofia da Universidade de Nantes — particular-
mente aos professores Jean-Michel Vienne, Michel Malherbe e Nelly
Bruyère-Robinet — pela proveitosa experiência de trabalho durante
minha estada. Agradeço também a Fernanda Magalhães pelo apoio na
fase final do trabalho e pela revisão de uma versão prévia deste texto.
Agradeço, finalmente, ao auxílio financeiro da Capes, na forma de
uma bolsa de pós-doutoramento, e do CNPq, na forma de uma bol-
sa de doutoramento e um auxílio recém-doutor, determinantes para a
boa consecução da pesquisa da qual este livro é um resultado.

Curitiba, 6 de dezembro de 2005

16

10888_A figura do filosofo.p65 16 28.03.07, 16:00


Nota sobre as referências
ao texto de Montaigne

Malgrado os méritos diversos das traduções dos Ensaios disponíveis


em português, a especificidade deste estudo filosófico exigiu que nos
ativéssemos ao texto original francês, com base no qual se fizeram di-
retamente as citações nas versões anteriores desta pesquisa. A preocu-
pação com a clareza ilustrativa das citações nos forçou a empreender
uma tradução pessoal das passagens citadas, guiada pelo esforço em
preservar a literalidade, tanto quanto possível. Procuramos sempre des-
tacar o termo próprio empregado por Montaigne em francês quando
isso nos pareceu relevante e mesmo reproduzir em seu todo, por vezes,
algum período ou frase do texto original. Citamos os Ensaios com base
naquela que ainda hoje é a edição de referência, de Pierre Villey (ver
Bibliografia). As mudanças aportadas pelas novas edições disponíveis
em francês (de André Tournon e de Jean Céard), a despeito de seu
interesse, não nos pareceram relevantes, até onde pudemos constatar,
no que tange aos resultados de nossa leitura.
As citações dos Ensaios devem ser lidas da seguinte forma: o pri-
meiro número (em algarismos romanos) indica o livro, o segundo in-

17

10888_A figura do filosofo.p65 17 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

dica o capítulo e o terceiro indica o número da página. Assim, II, 10,


418 indica, por exemplo, que o texto situa-se na página 418 do décimo
capítulo do segundo livro, segundo a edição Villey-Saulnier. Convém
alertar o leitor não-especialista para uma peculiaridade importante do
processo de redação dos Ensaios. Como diz Montaigne, ninguém ne-
garia que ele adotou uma via que o levaria tão longe quanto houvesse
de papel e tinta no mundo (II, 9, 945B): a partir da edição inicial, de
1580, eles cresceram não apenas no número (posto que o terceiro livro
aparece apenas em 1588), mas sobretudo pelas revisões do texto origi-
nal. Contudo, respondendo ao seu propósito de não “corrigir” suas
reflexões anteriores (III, 9, 963B), tais acréscimos limitam-se a “ajustá-
las”: eles vão se dando por meio dos célebres “alongamentos” — isto é,
de notas marginais por ele mesmo acrescidas às suas reflexões anterio-
res, que são incorporadas, por sua própria decisão, ao corpo do texto
original nas edições seguintes. Assim, não apenas o texto cresce nas
edições sucessivas (conservando, de modo geral, o que estava presente
anteriormente, e fundindo-o com esses novos desenvolvimentos), como
possui um sentido cronologicamente dinâmico, se assim podemos di-
zer, uma vez que esses alongamentos são de teores muito diversos (po-
dendo tanto confirmar como inverter o sentido da reflexão prévia).
Assim, nas citações, as letras que as precedem entre colchetes indicam
a edição original da qual elas provêm (A = 1580; B = 1588; C = acrés-
cimos posteriores a 1588). Usaremos tanto “capítulos” como “ensaios”
para designar as divisões da obra de Montaigne, embora a primeira
opção corresponda atualmente à tendência mais difundida. As razões
para tanto não nos parecem todavia suficientemente sólidas: o próprio
Montaigne, é bem verdade, as denomina “capítulos” (ver II, 8, 386A),
mas também parece empregar o termo “ensaio” no mesmo sentido (ver
III, 5, 875B).
Por sua freqüência, as referências ao capítulo intitulado “Apologia
de Raymond Sebond” (II, 12) indicam apenas o número da página dos
Ensaios.

18

10888_A figura do filosofo.p65 18 28.03.07, 16:00


“[B] Eu aconselhei, na Itália, a alguém que estava com dificul-
dade de falar o italiano, e que não buscava mais do que se fazer
entender, sem querer dominar o idioma, que apenas empregasse
as primeiras palavras que lhe viessem à boca — latinas, france-
sas, espanholas ou gascãs — nelas adicionando uma terminação
italiana. Desse modo, jamais deixaria de encontrar algum idio-
ma do país, ou toscano, ou romano, ou piemontês, ou napolitano
— e de se achar nalguma dentre tantas formas. Digo o mesmo
da filosofia: ela tem tantas faces e variedades, e disse tanto, que
todos os nossos sonhos e devaneios aí se encontram. A fantasia
humana nada pode conceber, de bem ou de mal, que aí não
esteja. [C] ‘Nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo
philosophorum’ [‘Nada se pode dizer de tão absurdo que não te-
nha sido dito por algum filósofo’: Cícero, De divinatione, II, lviii)]
[B] Deixo, assim, meus caprichos irem mais livremente a públi-
co, posto que, mesmo que tenham nascido em mim, sem patrão
[sans patron], eu sei que eles encontraram sua relação com al-
gum humor antigo, e não faltará quem diga:
— Eis de onde ele os toma!
[C] Meus modos [moeurs] são naturais, não invoquei para formá-
los o socorro de nenhuma disciplina. Mas, por mais irrefletidos
que sejam, quando vontade me deu de recitá-los, e me vi no
dever, para lhes fazer sair em público um pouco mais decente-
mente, de assisti-los de discursos e de exemplos, maravilhei-me
de encontrá-los, de modo casual, conformes a tantos exemplos
e discursos filosóficos. De qual regime era minha vida só o aprendi
depois de a ter vivido e posto em prática. Nova figura: um filó-
sofo impremeditado e fortuito!”

Ensaios, II, 12, 546

10888_A figura do filosofo.p65 19 28.03.07, 16:00


10888_A figura do filosofo.p65 20 28.03.07, 16:00
CAPÍTULO I

Filósofo de nova figura?

Desde sua publicação, os Ensaios e sua crítica têm transitado, com


maior ou menor hesitação, entre as estantes de filosofia e de literatura,
a despeito (ou talvez por causa) de Montaigne se apresentar como um
“filósofo de nova figura”. A despeito ou por causa, pois nem o relato
citado na epígrafe, em que ele reconhece, com aparente ironia, sua
novidade como filósofo, nem, de modo geral, os textos em que alude à
sua relação com a filosofia parecem contribuir, à primeira vista, para
elucidar o caráter filosofante de sua obra. Que tipo de filósofo é esse,
impremeditado e fortuito perante a dispersão das filosofias com as quais
seus modos de agir (moeurs) se mostraram conformes? O presente es-
tudo poderia ser visto em seu conjunto como um comentário dessa sua
epígrafe — extraída do capítulo geralmente tido como o mais filosófi-
co, votado ao exame do saber humano, a “Apologia de Raimond Se-
bond”1 — segundo a problemática precisada nas linhas seguintes.

1. Cf. 438-604; v. esp. 438a, em que se formula o objetivo do capítulo: avaliar se são
verdadeiras as posições que atribuem à filosofia o poder de ser a mãe de toda a vir-

21

10888_A figura do filosofo.p65 21 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Antes de mais, algumas precauções metodológicas. Ainda que nem


todas as asserções dos Ensaios possam assim ser compreendidas, freqüen-
tes são, como veremos, as passagens dessa obra que se apresentam sob
formas paradoxais. Mas é particularmente importante evitar o enquadra-
mento prematuro daquilo que se apresenta, à primeira vista, em forma
de paradoxo como se fora uma pura e simples contradição. Não fizeram
coisa diversa aqueles que descobriram a particularidade filosófica de
Montaigne não apenas na desordem com que se sucederiam os temas,
mas na suposta incongruência das opiniões que o autor não se furta em
emitir livremente acerca dos mais diversos temas2. É certo que um traço
importante da reflexão nos Ensaios reside em seu caráter assumidamen-
te provisório, decorrente da liberdade que o autor encontra para voltar
atrás em relação ao que dissera, mesmo ao preço de se contradizer. Afir-
ma ele, por exemplo, que sua obra consiste do “registro de diversos e
mutáveis acidentes e de imaginações irresolutas e, quando assim se dá,
contrárias: seja que sou outro eu mesmo, seja que tomo os objetos por
outras circunstâncias e considerações. Tanto disso ocorre que por vezes
eu bem me contradigo, mas a verdade, como dizia Demades, não a con-
tradigo jamais…” (III, 2, 805B, itálicos nossos). Contudo, enquanto Mon-
taigne cuidadosamente diz “por vezes”, a precipitação em generalizar tal
diagnóstico colabora para uma condenação inapelável, posto que a con-
seqüência natural de tal liberdade de ir e vir seria o caráter contraditório
de suas opiniões filosóficas. Mas até que ponto é lícito esse julgamento?

tude e de nos tornar sábios e contentes. Analisaremos a “Apologia” em seu conjunto


mais cuidadosamente no próximo capítulo.
2. “[B] Nos meus próprios escritos eu nem sempre encontro o ar de minha primeira
imaginação: não sei o que havia querido dizer e me exaspero freqüentemente em corri-
gir e dar-lhe um novo sentido por ter perdido o primeiro, que valia mais. Não faço senão
ir e vir: meu juízo não avança sempre em frente, ele flutua e vaga…” (556). Diante de
passagens como esta, J-Y Pouilloux entende que Montaigne é responsável por uma ino-
vação filosófica “que lhe torna todos os assuntos possíveis, toda opinião sustentável, toda
beleza reconhecível, porque ele se dá um objeto radicalmente diferente, porque os En-
saios acabam por deslocar toda questão, aí incluída a de seu fim…” (POUILLOUX, 1995,
p. 55-56). Sem prejuízo de nossas afinidades com a leitura de Pouilloux, caberia indagar
não apenas onde Montaigne reconhece expressamente uma novidade tal como essa,
mas como ela poderia corroborar a idéia de que “toda opinião é sustentável”.

22

10888_A figura do filosofo.p65 22 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

Tomemos isoladamente a passagem de que partimos. Vemos ali


que as razões dos antigos surgem, de saída, como paradigma da desco-
berta de sua identidade filosófica, pois é apenas graças ao apoio propi-
ciado pela diversidade das filosofias que ele relata publicamente seus
“modos” naturais. Mas ele se torna um filósofo de nova espécie apenas
quando, afirmando-se em sua impremeditação, deixa de seguir, nalgu-
ma medida, preconizações filosóficas de seus predecessores (negando-
se a fundamentar sua atividade nalguma “doutrina”). Assim, tal refle-
xão exemplificaria essa atividade filosófica impremeditada e nova, que
comportaria, até a liberdade de ser contraditório. Mas é de se pergun-
tar quão longe se pode ir aí sem esmagar de saída toda a consistência
possível de sua reflexão de filósofo. Como seria possível, com efeito,
ler, ao lado de nossa epígrafe, esta outra passagem: “[C] … Eu não sou
filósofo: os males me perturbam o quanto pesam, e pesam segundo a
forma como segundo a matéria, e freqüentemente mais…” (III, 9, 950)?
Não nos interessa aqui o sentido do não-filosofar alegado por Montaig-
ne, mas o sentido da contradição que se cria entre essas duas passagens,
em vista das quais seria preciso aceitar, como caso particular de sua
contradição filosófica, que ele é e não é filósofo.
Assim, o recurso a uma suposta falta de sistematicidade talvez não
nos leve muito longe no esclarecimento da natureza de sua eventual
filosofia, pois o caráter supostamente assistemático e fluido da filosofia
montaigniana não pode ser dilatado a ponto de permitir, sem inconsis-
tência, que ele seja e não seja filósofo graças à adoção dessa própria
filosofia. De nada vale aqui o recurso à evolução cronológica, por mais
que ele seja importante, como veremos, para compreender o percurso
filosófico da obra em seu todo, uma vez que ambas as passagens citadas
são posteriores a 1595, possivelmente contemporâneas. Nem mesmo
podemos pensar que o problema se resolve se estamos diante de uma
“oscilação de perspectivas”, segundo o sabor dos interesses momentâ-
neos3. Não pretendemos, por certo, sugerir que Montaigne nunca se

3. HOLYOAKE (1989, p. 2, 13) propôs a hipótese de que a “inconsistência” do texto


de Montaigne seria resultado de um processo inconsciente pelo qual ele é levado a
desenvolver o tema segundo as contingências do momento.

23

10888_A figura do filosofo.p65 23 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

contradiga, nem mesmo que a aceitação de suas contradições não pos-


sa, para ele próprio, se articular com a aceitação de uma postura filosó-
fica (e certamente há várias formas de assumir a própria incoerência…).
Mas que filosofia, por mais impremeditada e fortuita que seja, pode
acolher em si os predicados de ser e não ser filosofia, ao mesmo tempo
e no mesmo sentido? Quão longe se pode ir nessa direção sem trivia-
lizar aquela que efetivamente se apresentaria nos Ensaios, caso filosofia
efetivamente haja?
Talvez não seja efetivamente possível, em última instância, conci-
liar essas afirmações aparentemente contraditórias a respeito de sua fi-
losofia; talvez não o devêssemos levar a sério quando se refere contra-
ditoriamente à sua filosofia. Mas essa atitude traz consigo uma conse-
qüência metodológica importante: identificar a particularidade de sua
filosofia, mediante uma generalização descuidada, com a contradição
pode nos cegar de saída para a eventual coerência filosófica que, caso
exista, está a movimentar esse pensamento, mesmo (e talvez particular-
mente) em suas contradições, aparentes ou efetivas. E é essa decisão
prévia que transforma freqüentemente, em nosso entender, a imagem
da filosofia fluida num reflexo de nossa incapacidade de observar a pos-
sibilidade de as eventuais oscilações opinativas corresponderem, a des-
peito das aparências mais imediatas, a uma filosofia mais consistente.
Eis por que vamos nos dirigir numa direção diversa e apostar que
essa aparente incongruência, cuidadosamente examinada, pode nos
revelar algum fio condutor que a explique, sem dissolver a sinuosidade
própria com que os textos se oferecem, eventualmente harmonizada
com a admissão de alguma identidade filosófica que os mesmos textos
perfilem de maneira mais clara. E partindo daí talvez possamos, inver-
samente, compreender melhor os conflitos análogos que emergem
noutros conjuntos de passagens (como aquelas em que ele alterna, por
exemplo, o elogio e o escárnio da “filosofia”)4. Talvez possamos, igual-
mente, encontrar uma forma de interpretar as passagens em que Mon-

4. Em certos momentos, a “philosophie” é enaltecida, por exemplo, por seu poder de


tornar a alma e o corpo igualmente sadios (v. I, 26, 161A). Noutros, ela é condenada como
palco de um conflito de razões, merecedor de desconfiança, como veremos a seguir.

24

10888_A figura do filosofo.p65 24 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

taigne se refere à maneira casual com que trata dos mais diversos temas
sem abortar a possibilidade de lê-lo como um filósofo mais coerente —
e mais interessante aos olhos dos filósofos que o lêem, nem sempre
com a devida paciência diante do percurso singularmente sinuoso de
seus textos. Não se trata, contudo, de aplicar um “princípio de carida-
de” hermenêutico como norma interpretativa exterior e auto-evidente.
Trata-se apenas de tentar ler um filósofo seguindo mais fielmente suas
preconizações — valorizando o alerta desta passagem de “Da vaidade”:
“É o leitor indiligente que perde o meu objeto, não eu…” (III, 9, 994C).
Um segundo problema metodológico relevante diz respeito não
tanto à coerência filosófica de sua “nova espécie” de filósofo, mas ao
sentido em que sua filosofia se diria “nova”. Sem dúvida, a novidade
deve forçosamente se dizer “nova” em face de algum panorama da
“tradição” (continuamente mobilizada nos Ensaios, por inúmeras alu-
sões, especialmente aos “antigos”, mas também aos filósofos tal como
os encontra existentes). Não é todavia incomum a adoção precipitada
de um axioma interpretativo tácito pelo qual se exige de Montaigne
(inimigo declarado de tantas nouvelletez) a exibição de alguma “novi-
dade filosófica”, e que acaba por desencorajar uma apreciação mais
cuidadosa do rigor filosófico próprio com que a “tradição” é eventual-
mente retratada em seu texto5. Quão mais impaciente o comentador
nessa investigação prévia, tanto maior a chance de que a “novidade”
encontrada não seja mais do que a projeção de um panorama que, de
certo modo, ele já tem diante dos olhos — como fazem aqueles que

5. A crítica literária tem debatido sobre o modelo estilístico do qual se originaram os


Ensaios: a glosa jurídica (v. TOURNON, 1983), as leçons ou florilégios morais (v. VILLEY,
1933; BEAUJOUR, 1980), ou as hypomnemata antigas (v. GARAVINI, 1993, esp. cap. I).
Freqüentemente, essa via conduz o intérprete a situar o papel do “discurso filosófico”
como gênero particular no interior de um gênero mais amplo, ao qual ele se subordi-
naria. Entretanto, na crítica filosófica é também comum encontrarmos interpretações
que a situam segundo balizas supostamente “inevitáveis” para o filósofo do século XVI.
Tais críticas, enfatizando certas passagens fora de seu contexto, ou mesmo limitando-se
a apontar a presença de certas expressões na obra, acabam por desfocar a relação de
Montaigne com a tradição filosófica, tal como se projeta na escolha explícita das fontes
que ele direta e deliberadamente discute. Um exemplo parece-nos ser a obra de
COMPAGNON (1980), que busca compreender os Ensaios no contexto dos debates me-

25

10888_A figura do filosofo.p65 25 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Montaigne critica em seu capítulo “Dos canibais” (I, 31), incapazes de


considerar os povos recém-descobertos à luz da razão. E talvez a rota
dessa França Antártida não nos deva afinal conduzir, ao menos de saí-
da, tão longe das mais tradicionais, se considerarmos o peso das evidên-
cias com que algumas filosofias comprovadamente estudadas por Mon-
taigne se apresentam nos Ensaios.
Cabe nos precavermos aqui contra alguns preconceitos. Conside-
remos, por exemplo, a maneira pela qual se interpreta a questão de seu
“ceticismo” — um “operador costumeiro da crítica”, para mencionar
uma expressão de sabor igualmente costumeiro. A partir de Villey, tor-
nou-se usual o reconhecimento de que, por volta de 1576, Montaigne
leu uma recente tradução latina das Hipotiposes de Sexto Empírico6
(fonte fundamental da Apologia), bem como, a partir dessa época, di-
versas obras atinentes ao ceticismo, fossem antigas (como as Vidas dos
filósofos ilustres, de Diógenes Laércio, o opúsculo de Plutarco “Contra
Colotes”, ou ainda os diálogos Acadêmicos e Da natureza dos deuses,
de Cícero, cuja data de leitura é relativamente incerta), fossem con-
temporâneas (como o Da incerteza e vaidade das ciências, de Henri-
Corneille Agrippa, de 1537, e possivelmente o Que nada se sabe, de
Francisco Sanches, publicado, primeiramente, em Lyon, no ano de
1581). No entender de Villey, tais leituras — das quais a que deixa
traços mais numerosos e mais evidentes no texto é a de Sexto, mesmo
que Montaigne jamais cite seu nome — marcam uma “crise cética”7,
que outros dados extratextuais viriam corroborar. À mesma época,
Montaigne faz forjar uma medalha de bronze com a efígie da balança

dievais lógicos e metafísicos que opõem realistas e nominalistas, a despeito das insisten-
tes críticas de Montaigne aos “ergotismos” da filosofia de seu tempo.
6. Trata-se ou bem da edição de Henri ESTIENNE, publicada em 1562: Sexti Philosophi
Pyrrhoniarum hypotyposeon libri III… Interprete Henricus Stephano (cf VILLEY, Les
Essais, p. lix.), ou bem da edição de Gentian HERVET, de 1569, que inclui também os
Adversus Mathematicos. Restringiremos nossas análises às aproximações possíveis com
o texto das Hipotiposes, valendo-nos eventualmente das edições renascentistas, embora
tenhamos em vista para as nossas análises principalmente as edições modernas de Bury
e de Annas e Barnes.
7. Cf. VILLEY, 1933, I, p. 243.

26

10888_A figura do filosofo.p65 26 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

equilibrada, símbolo da suspensão de juízo dos pirrônicos (à qual alude


pela mesma metáfora nos Ensaios), inscrevendo, nas vigas de sua bi-
blioteca, dentre outras, algumas frases extraídas de Sexto — como esta,
que exprime a mesma idéia representada metaforicamente na meda-
lha: “a todo argumento se opõe outro de igual força”8.
Eis um Montaigne escolar. Mas, diante dessas evidências, as esco-
las se portaram de muitos modos: situando o “ceticismo” como um
traço permanente, e um tanto idiossincrático, do “temperamento” de
Montaigne9; ou buscando decifrar, na linguagem dos Ensaios, uma
forma literária de “ceticismo”, do qual os paradoxos e contradições
seriam o instrumento10; ou ainda, modalidade mais popular, reconhe-
cendo a presença filosófica do veio cético como um entre outros que
alimentam a obra, para buscar noutra parte o essencial11. Pomos aqui
lado a lado essas várias leituras — bastante diversas, a nosso ver, quanto
a suas teses, sua pertinência e mesmo quanto ao que denominam “ce-
ticismo” — porquanto nos parecem convergir em alguns pontos. Ad-

8. “pánti lógo lógos ísos antíkeitai”. V. Les Essais 436 e lxvii; Hipotiposes Pirronianas
(HP I-12).
9. Parece-nos possível demarcar aqui uma certa tradição interpretativa na crítica
anglo-americana, que remontaria, eventualmente, a R. W. Emerson. Craig Brush, por
exemplo, põe-se de acordo com Donald Frame ao afirmar que há um componente
cético permanente na personalidade de Montaigne, por vezes resumido na expressão
“open mind” (cf. BRUSH, 1966, p. 37). Segue-se daí uma tendência a negar a idéia de
uma “crise cética”, bem como, igualmente, a logo perder de vista o problema de esta-
belecer mais precisamente a relação conceitual desse “ceticismo” com aquele historica-
mente constituído como doutrina filosófica.
10. É o caso de André Tournon, para quem o paradoxo é o instrumento pelo qual
Montaigne isenta suas afirmações de poder assertivo (v. TOURNON, 1983, p. 227, 246)
Pouilloux julga que a novidade do “ceticismo” de Montaigne revela-se na maneira como
sempre as teses são apresentadas de modo provisório, para serem seguidamente destruí-
das, num movimento pelo qual a sua “nova ciência … estabelece os limites nos quais
nós devemos regular nossa prática intelectual” (POUILLOUX, 1995, p. 104-105). Ver
também DEMURE, 1990. Retomaremos essas leituras no capítulo IV.
11. Para M. Merleau-Ponty, as considerações sobre um Montaigne cético “não vão
longe” (1960, p. 302). Jean Starobinski, igualmente, entende que a identificação de
ceticismo em Montaigne significa sempre reduzir a filosofia dos Ensaios a um esque-
matismo falseador (v. STAROBINSKI, 1993, p. 8). Ver, no mesmo sentido, COMTE-
SPONVILLE, 1993.

27

10888_A figura do filosofo.p65 27 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mitem, em geral, que o ceticismo dos Ensaios é recoberto de alguma


novidade, mas não o fazem por meio de uma confrontação conceitual
e argumentativa mais desenvolvida com o ceticismo antigo (por vezes
denominado com expressões como “pirronismo escolar”, por oposição
à exuberância ensaística12). No verso dessa admissão, sela-se a crença
na inutilidade da aproximação. “Montaigne não é exatamente um pir-
rônico porque…” é o mote habitual de exposições em dois ou três pas-
sos, que jamais se estendem na direção de um projeto de investigação
mais amplo. O “pirronismo”, já suficientemente trabalhado na “esco-
la”, quase nunca é retomado, na literatura crítica sobre a filosofia dos
Ensaios, com base nos problemas interpretativos postos pela exegese
mais recente. Ensina-se um Montaigne que, cético ou não, é sempre
possuidor de uma compreensão igualmente clara do ceticismo que
aceita ou rejeita, apesar do que ele diz em meio a sua exposição dos
conceitos principais dessa filosofia: “[C] Eu exprimo essa concepção
[fantasie] o tanto que posso, porquanto vários a acham difícil de conce-
ber, e os autores mesmos a representam um pouco diversamente e obs-
curamente…” (505).
Deixemos provisoriamente à parte o problema de saber se o modo
como Montaigne interpreta suas fontes céticas tem especial relevância
à luz das questões interpretativas próprias do ceticismo. É preciso antes
considerar que, de modo geral, a leitura do “que sais-je?” como prova
de ceticismo não é, historicamente falando, a tendência mais difundi-
da. Mais comumente, a crítica dos Ensaios optou por negar, restringir
ou qualificar a possibilidade de lê-los como autenticamente céticos,
sem examinar devidamente a viabilidade desse juízo categórico de um
de seus patronos, Pascal, que, como outros contemporâneos, conside-
rou Montaigne um “puro pirrônico”: “É sobre esse princípio que se
desenvolvem todos os seus raciocínios e ensaios…”13. Devemos, por-
tanto, retomar o problema daqui: quão longe, afinal, deve a exegese
comparativa dos textos de Montaigne e Sexto Empírico nos levar desse
juízo pascaliano? É o ceticismo, para Montaigne, uma filosofia “a ser

12. Ver FARQUHAR, 1991, p. 25.


13. PASCAL, Entretien avec M. de Sacy, I, 160.

28

10888_A figura do filosofo.p65 28 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

rejeitada como as outras”? Uma prática argumentativa e filosófica guia-


da por conceitos diversos daqueles que pautam o andamento dos En-
saios, ou incompatíveis com eles, sejam quais forem? Uma postura
doutrinal que não pode corresponder adequadamente à sua “liberdade
e [seu] ecletismo”?14 Importa, assim, tentarmos levar às últimas conse-
qüências a possibilidade de descortinar a coerência de um engajamen-
to filosófico ad mentem auctoris, observando como ele opera com suas
fontes céticas nos capítulos em que elas são mais evidentes (como em
“Apologia”). Já seria bastante se o único resultado fosse o de vislum-
brarmos com mais clareza sua distância do ceticismo para melhor lastrear
nosso juízo sobre a novidade e o interesse de seu propósito. Veremos
porém que, ao contrário, as fontes céticas permitem conferir um sen-
tido filosófico preciso a diversos elementos de suas reflexões que, delas
apartados, poderiam ganhar a vaga aparência de uma novidade filosó-
fica tão impremeditada quanto inconsistente15.

1.1. A razão cética


Há uma única passagem nos Ensaios, salvo engano, em que Mon-
taigne se detém em definir e discutir uma tipologia das filosofias exis-
tentes, separando-as em três gêneros, correspondentes às diferentes
posturas em que elas necessariamente se situam relativamente à posse
da verdade (v. 502). Os dogmáticos (Montaigne menciona explicita-
mente os estóicos, os epicuristas e os peripatéticos) julgam, cada qual
à sua moda, conhecer a verdade. Os acadêmicos (entre os quais Clitô-
maco e Carnéades), por oposição, compreendem que os meios huma-
nos não podem obtê-la. Os pirrônicos ou “Skeptiques” permanecem na
busca, pois, embora não a possam reconhecer, dizem eles, em nenhu-
ma das diversas formulações, entre si conflitantes, que as filosofias dog-
máticas apresentam, julgam ainda temerária a dúvida acadêmica: “[A]
Pois isso de estabelecer a medida do nosso poder de conhecer e julgar

14. Cf., por exemplo, VILLEY, 1933, II, p. 142, 201.


15. Para um exame mais sistemático da argumentação cética nesse capítulo, ver
EVA, 2003. Retomaremos alguns pontos desse texto em perspectiva diversa.

29

10888_A figura do filosofo.p65 29 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

a dificuldade das coisas é uma grande e extrema ciência [science], da


qual duvidam que o homem seja capaz…” (ibid.; cf. HP I, 226).
Como já se notou amplamente, Montaigne não faz mais do que
reproduzir, de modo quase literal, o início das Hipotiposes, de Sexto.
Mais exatamente, ele assume, em seu próprio nome (posto que ele não
a refere diretamente a uma filosofia particular), uma distinção acerca
dos gêneros filosóficos que é proveniente de um texto pirrônico e tem
grande relevância, como veremos, para a caracterização dessa filosofia.
Mas, se a mera adoção desse esquema (que norteará, na verdade, o
exame das filosofias em geral que ali se inicia) nada diz, por si só, acer-
ca do posicionamento de Montaigne quanto ao conteúdo dessa distin-
ção, a ela corresponderão indícios mais explícitos de um juízo favorá-
vel a uma orientação filosófica cética, em mais de um texto contempo-
râneo da primeira versão da “Apologia”. Por exemplo, na introdução de
“Que nosso desejo cresce pela dificuldade”, Montaigne traduz o lema
cético inscrito nas vigas de sua biblioteca, supracitado, e a ele acrescen-
ta este eloqüente comentário pessoal: “[A] Não há razão que não tenha
uma razão contrária dela, diz o mais sábio partido dos filósofos…” (II,
15, 612; itálicos nossos). Se o cético (usemos provisoriamente esse ter-
mo sem distinguir pirrônicos de acadêmicos) não reconhece a verdade
nas filosofias (que ele denominará dogmáticas, em vista da pretensão
de oferecerem verdades), é por ter constatado que cada uma delas pode
individualmente se mostrar sustentável por uma demonstração racio-
nal, à primeira vista persuasiva e bem fundamentada, muito embora
esteja, ao mesmo tempo, em oposição às demais. Essa constatação
norteia o princípio pirrônico fundamental, segundo Sexto: criar anti-
nomias, opondo razões contrárias, para renovar o estado de epokhé ou
suspensão do juízo decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a
verdade nas filosofias conflitantes (cf. HP I, 12). É a tal princípio cético
— inscrito, como vimos, nas vigas de sua biblioteca — que Montaigne
claramente alude na afirmação citada.
Na “Apologia”, o mesmo juízo sobre a superioridade da posição
dos céticos se apresenta com mais detalhes, ainda que de forma indi-
reta. A exposição dos conceitos principais do ceticismo, que ocupa as
páginas centrais desse capítulo, é delimitada por dois juízos relaciona-

30

10888_A figura do filosofo.p65 30 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

dos ao exame da busca humana da verdade ora ensejado. Ao introduzi-


la, Montaigne avisa que vai se restringir, a partir daquele ponto, a con-
siderar o desempenho das faculdades intelectuais humanas no que
considera ser o seu “mais alto assento” (v. 501A). Poder-se-ia supor que
se tratasse apenas de uma alusão genérica ao exame da filosofia que se
seguiria daí, ou mesmo de um elogio à perspicácia dos “filósofos” (ape-
sar de os ter, há pouco, escarnecido por meio de uma irônica compa-
ração com o vulgo e de um elogio da simplicidade humana). Porém, o
segundo juízo, que encerra essa exposição, mostra indiretamente que
as filosofias não se encontram, para Montaigne, todas situadas num
mesmo plano. Percebemos que qualquer ambigüidade relativa à pri-
meira indicação, isoladamente considerada, dissolve-se quando nos de-
paramos, ao final da exposição do ceticismo (aí incluídos, sem uma
delimitação clara entre ambos, o pirronismo e a filosofia acadêmica),
com o seguinte comentário sobre o desenvolvimento precedente: “[A]
Não há nada na invenção humana em que haja tanto de verossimi-
lhança e de utilidade…” (506). Ora, essa exposição e o comentário que
a encerra se situam, por sua vez, antes da exposição e da análise das
filosofias dogmáticas, que vêm a seguir. Eis como a ambigüidade se
resolve, indiretamente: a porção de texto compreendida entre o exame
que se anuncia, acerca do entendimento humano em seu mais alto
assento, e o elogio daquilo que se examinou, como a invenção humana
mais útil e verossímil, é precisamente aquela em que se expõe o ceticis-
mo, “o mais sábio partido dos filósofos”. Mas se essa invenção, em sua
superioridade, é apenas a mais verossimilhante, não se projeta implici-
tamente sobre o restante da produção filosófica humana o mesmo juí-
zo cético sobre a incapacidade de reconhecer a verdade?
Dissemos há pouco que nos valemos do termo “cético” sem nos
ocupar, por ora, do problema da distinção entre pirrônicos e acadêmi-
cos. Mas os textos que acabamos de mencionar já suscitariam indaga-
ções a esse respeito. Montaigne segue uma divisão tripartite da filoso-
fia que é de origem pirrônica, mas a porção de texto que compreende
a exposição do ceticismo se vale igualmente de passagens pirrônicas e
acadêmicas, e o juízo conclusivo mobiliza um conceito (o “verossí-
mil”) que poderia nos remeter à Nova Academia. A qual filosofia exa-

31

10888_A figura do filosofo.p65 31 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

tamente ele alude quando se refere ao mais sábio “partido”? Adiante,


teremos melhores condições de examinar o significado filosófico do
uso dessas fontes, que ele mesmo reconhece como distintas, e de mais
essa aparente ambigüidade. Importa, antes disso, sublinhar que sua
preocupação central nessa discussão é expor o ceticismo filosófico em
suas articulações conceituais principais do modo mais coerente de que
se julga capaz: “eu exprimo essa concepção o tanto que posso, pois
muitos a acham difícil de conceber e os próprios autores a represen-
tam um pouco obscuramente, e diversamente” (505). A despeito da
eventual obscuridade que os textos lhe pareçam ter, trata-se de obser-
var a discrepância das fontes disponíveis, discernindo as que a apresen-
tam de modo caricatural, com base nas críticas clássicas que lhe são
historicamente dirigidas pelos filósofos rivais, naquelas que se ocupam
em harmonizar conceitualmente uma dimensão teórica dubitativa e
uma dimensão prática, conjugando à suspensão do juízo a adesão ao
phainómenon, no caso dos pirrônicos (ou, alternativamente, ao proba-
bilis ou veri similis, no caso dos acadêmicos), como critério para a
condução das ações da vida (cf. 505A). Nesse esforço exegético, embo-
ra os textos pirrônicos sejam o principal fio condutor, Montaigne se
vale também de fontes acadêmicas desde a primeira versão da “Apolo-
gia”. Diríamos, desde já, que a tendência mais geral de suas conside-
rações nos parece ser tratá-las antes como versões diversas de uma
mesma orientação filosófica básica do que como filosofias radicalmen-
te opostas (sem prejuízo das comparações mais pontuais que examina-
remos adiante)16.
Se considerarmos a “Apologia” em sua versão de 1580, sabemos
que a apresentação do ceticismo se faz quase exclusivamente com base
em elementos pirrônicos. Ausentes os textos citados dos Acadêmicos de
Cícero, as demais referências a essa filosofia provêm sobretudo de Plu-
tarco e Diógenes Laércio. Nessa apresentação são expostas e comenta-
das as principais noções do ceticismo, como a suspensão do juízo

16. Diz Montaigne, ao concluir sua exposição dos conceitos principais do ceticismo:
“Eis como, das três seitas gerais da filosofia, duas fazem expressa profissão de dúvida e
de ignorância…” (506A).

32

10888_A figura do filosofo.p65 32 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

(epokhé), a que nos referimos; a adesão ao phainómenon, ao aparecer


das coisas tal como naturalmente se manifestam como critério para a
ação; a precipitação (propéteia) dos filósofos dogmáticos em asseverar
a verdade; e a imperturbabilidade (ataraxía) à qual é conduzido o cé-
tico em suspensão17.
Detenhamo-nos um momento no exame da epokhé. Segundo Sex-
to, a experiência da impossibilidade de assentir a algum dos diversos
discursos filosóficos dogmáticos conduziu o cético a um estado de sus-
pensão do juízo (epokhé) acerca da verdade ou da falsidade dos objetos
dessas filosofias em que ele buscará reiterar, como vimos, pela oposição
de argumentos de igual força (v. HP I, 8-12, 26). Montaigne assim nos
apresenta essa noção:
[A] Quando eles dizem que o pesado vai para cima, ficarão bem
descontentes se a eles se der crédito; eles buscam ser contraditados,
para poderem engendrar a dúvida e a suspensão do juízo, que é seu
fim. Eles não avançam suas proposições senão para combater aque-
las que pensam que temos em nossa crença… (502-503).
Adiante, reconhecendo ser essa a noção fundamental do ceticismo
e frisando que os pirrônicos sustentam uma epokhé extrema (v. 505A),
ele busca, no entanto, precisar seu sentido com auxílio de outra fonte
não-pirrônica, já nos textos da edição de 1580. Trata-se do opúsculo
“Contra Colotes”, de Plutarco18. Prestemos atenção ao modo como ele
permite a Montaigne oferecer uma precisão relativamente aos limites
da suspensão, para descartar uma leitura errônea, porém freqüente, da
filosofia cética que a ele se atribui.

17. Ver p. 502-506. Todos esses, salvo o último, são conceitos pirrônicos dos quais
se poderá encontrar análogos no ceticismo acadêmico, como devidamente o ilustrará
Montaigne nos alongamentos do texto, a partir de 1588. Quanto à ataraxía como noção
exclusiva do pirronismo, ver ANNAS, 1988, p. 107.
18. Montaigne travou contato com Plutarco por meio da tradução francesa de Jacques
Amyot que, segundo Villey, ele passou a ler por volta de 1573-1574 — período próximo
ao da leitura das obras de Sexto. Os juízos de Montaigne acerca das moralia de Plutar-
co, fonte de numerosas citações em várias épocas da composição dos Ensaios, são normal-
mente elogiosos (v. VILLEY, 1933, t. I, p. 219-221). No opúsculo “Contra Colotes” en-
contra-se uma apresentação e defesa da filosofia acadêmica contra a interpretação do
epicurista Colotes (v. OM, 597E).

33

10888_A figura do filosofo.p65 33 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Aludindo à filosofia acadêmica de Arcésilas, Plutarco esclarece que


a suspensão (retention) cética obsta apenas a ação do assentimento
(consentante, expressão empregada na tradução de Amyot e preservada
por Montaigne), nada obstando quanto à ação das demais faculdades
da alma e especialmente quanto à capacidade de pensar e raciocinar19.
Embora a suspensão deva resultar da constatação de uma incapacida-
de racional em estabelecer a verdade (isto é, em estabelecer uma con-
clusão em favor da veracidade de algum dos discursos filosóficos que
podem ser opostos uns aos outros), isso não significa, segundo os pró-
prios céticos, como bem percebe Montaigne, a impossibilidade de uma
investigação racional: “[A] Eles se servem de sua razão para investigar
e para debater, mas não para sentenciar [arrester] e escolher…” (505).
O ceticismo, portanto, não é sinônimo de irracionalismo. Tal emprego
da razão, ademais, é tido por Montaigne como totalmente conforme à
fruição adequada daquilo que a natureza pode oferecer para a vida
humana em sua prática normal, por oposição ao modo pelo qual os
dogmáticos pretenderiam imaginariamente produzir suas verdades ra-
cionais. Depois de apresentar os quatro aspectos do “phainómenon”
que, segundo Sexto, o cético observa como critério de ação20, Montaig-
ne frisa que o cético conduz sua vida prática “da maneira comum”,

19. Ver ibid.; a mesma idéia é desenvolvida por Sexto em HP II, 10. Em OM, 596
D-E, Plutarco identifica três movimentos na alma: o imaginativo, o apetitivo e o assen-
timento, ressaltando que “aqueles que se retêm e duvidam de todas as coisas não o
suprimem, mas se servem da apetência ou do instinto, naturalmente conduzindo cada
um ao que lhe é próprio…” (OM, 596 D-E). Essa parece ser a fonte de Montaigne,
quando afirma: “[A] Das três ações da alma, a imaginativa, a apetitiva e a do assentimen-
to [consentante], eles acolhem as duas primeiras; a última, eles a suspendem e a man-
têm ambígua, sem inclinação nem aprovação de uma parte ou de outra, por mais ligeira
que seja…” (503).
20. Cf. 505; HP I, 24: “Aderindo, assim, ao aparecer das coisas [phainómena], nós
vivemos de acordo com as regras normais da vida, de modo não dogmático, vendo que
não podemos permanecer inativos. E parece-nos que essa regulação da vida possui quatro
aspectos… O guia da natureza é aquele pelo qual somos naturalmente capazes de sen-
sação e pensamento; a exigência das paixões é aquela pela qual a fome nos leva a comer
e a sede, a beber; a tradição dos costumes e das leis, aquela pela qual nós consideramos
a piedade nas ações da vida um bem, e a impiedade um mal; e a instrução das artes
aquela pela qual não somos inativos nas artes [téchnai] que empreendemos…”.

34

10888_A figura do filosofo.p65 34 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

segundo esses aspectos, e descarta as interpretações opostas, segundo as


quais esse filósofo seria coerentemente levado à inação ou, pelo menos,
a uma conduta estranha e anti-social:
[A] … [O cético] não quis se fazer pedra nem tronco. Ele quis se
fazer homem vivo, pensante e raciocinante [discourant et raisonnant],
fruindo de todos os seus prazeres corporais e espirituais [C] em or-
dem e com retidão [en regle et droicture] [A] Os privilégios fantásti-
cos, imaginários e falsos que o homem se usurpou, de reger, ordenar
e estabelecer a verdade, ele os há de boa-fé abandonado, deles há
renunciado… (ibid.).
Essa importante passagem, que retomaremos adiante, oferece uma
interpretação precisa acerca do modo de ação do cético na vida prática.
Nas Hipotiposes, apesar do laconismo com que a adesão do cético ao
phainómenon é tratada, Sexto esclarece que o cético em suspensão segue
o “guia da Natureza”, em virtude do qual “nós somos naturalmente
capazes de sensação e pensamento” (HP I, 12) Tenha ou não Montaig-
ne, nesse texto particular, ainda em vista Plutarco, ele claramente en-
fatiza — como exemplo das ações lícitas ao cético, como homem vivo
que frui livremente suas capacidades naturais, corporais ou espirituais
— a ação “pensante e raciocinante”21. Como o faz com freqüência nos
Ensaios, Montaigne emprega aqui dois sinônimos para enfatizar uma
só idéia: a posição cética é inteiramente conforme ao emprego da ra-
zão22. Assim, à precisão efetuada relativamente à suspensão correspon-
de uma interpretação particular do critério cético para a vida prática

21. Plutarco afirma, em OM, 596 D-E: “O que é, então, que [os céticos] evitam? É
o ‘opinar’, o aplicar e prestar seu assentimento, no qual, apenas, reside a mentira e o
engano, que é um ceder pela fraqueza às aparências, sem nenhuma verdadeira utilida-
de. Pois a ação tem necessidade de duas coisas, da apreensão ou da imaginação das
coisas que lhes são próprias e do instinto e apetência das coisas que lhes são próprias,
nenhum dos quais se opõem à suspensão. Pois tal raciocínio nos subtrai o ‘opinar’, e não
a apetência nem a imaginação…”.
22. Como bem sublinha DEMURE, 1988, p. 992, 1002. Quanto ao termo discours,
notemos que ele é freqüentemente empregado nos Ensaios como sinônimo de razão,
seja designando o que denominaríamos a faculdade discursiva de raciocínio (v., p. ex.,
439A), seja designando as razões que são a expressão lingüística dessa faculdade (v., p.
ex., I, 26, 161-163A).

35

10888_A figura do filosofo.p65 35 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

que com ela se harmoniza: a posição cética seria não apenas a mais
racional ao reconhecer, nos esforços empreendidos pela filosofia dog-
mática, a incapacidade da razão em matéria demonstrativa, mas tam-
bém uma filosofia de cuja prática resultaria um uso pleno e livre de
nossas faculdades racionais, tal como nos são naturalmente dadas.
Levando o uso da razão às últimas conseqüências, os filósofos mais
sábios, segundo Montaigne, constataram a ausência de fundamentos da
razão, isto é, sua incapacidade para obter verdades (v. 526). Embora essa
formulação beire o paradoxo, afirmar que a razão é uma faculdade de
produzir argumentos de igual força, em favor e contra as mais diversas
teses que a ela se ofereçam, não significa declarar que podemos ou de-
sejamos aboli-la ou negá-la como faculdade humana que naturalmente
nos é dada. Pelo que vimos, a constatação da fraqueza da razão conduz
à suspeita acerca da ação de arrester em uma acepção precisa, isto é, de
sentenciar acerca do que é verdadeiro ou falso. Em que consiste exata-
mente essa ação e como é exatamente posta em prática a suspensão
cética? A que corresponderia, além dessa suspensão, o uso cético da
razão? Por ora, o que importa sublinhar é que essa precisão, embora
sutil, é essencial para que não tomemos precipitadamente tal posição
filosófica — pela qual se afirma a incapacidade de reconhecer racional-
mente a verdade como a postura mais racional e inteiramente conforme
ao uso adequado da razão — como uma postura contraditória.
Ademais, importa salientar o cuidado exegético de Montaigne no
exame das diversas interpretações disponíveis, normalmente desperce-
bido pelos comentadores. Graças ao modo como acompanha os textos
de Sexto e Plutarco, ele recusa a crítica tradicional sobre a impratica-
bilidade da posição cética, tal como a encontra nas obras de Diógenes
Laércio, Luciano e Aulo-Gélio, ou na posição expressa pelo epicurista
Colotes, tal como apresentada por Plutarco. Tais descrições caricaturais
do cético se resumem, segundo Montaigne, a um “desdenhar de sua
filosofia” (v. 505A). Mesmo se aceitarmos que Montaigne freqüente-
mente adapta os argumentos que toma, de toda parte, aos interesses de
sua discussão23, nesse caso ele está visivelmente interessado em rea-

23. Cf. POUILLOUX, 1995, p. 21; FARQUHAR, 1991, p. 20 ss.

36

10888_A figura do filosofo.p65 36 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

presentar, tão fielmente quanto possível, tal filosofia segundo a coerên-


cia própria com que se constituiu como uma doutrina posta em prática
pelos antigos.
Outro aspecto pelo qual se deixaria notar o privilégio do ceticismo
aos olhos de Montaigne se apresenta na relação que ele estabelece
entre o ceticismo e as demais filosofias, que ele enfeixa, segundo a
mesma classificação cética, na categoria do “dogmatismo”. Para o exa-
me dessas filosofias (v. 506A ss.) ele permanece se apoiando no mesmo
juízo sobre a superioridade das filosofias da dúvida. Se os dogmáticos
tripudiam do cético, Montaigne, por sua vez, indaga por que, sábios
como eram, teriam incorrido em suas “cadências dogmáticas” diante
do evidente poder dos argumentos céticos em revelar a precariedade
com que nos arrogamos possuidores da verdade (v. 506-513). A essa
questão geral ele sugere diversas respostas particulares em vista de pos-
sibilidades diversas de interpretação dos filósofos considerados. A filo-
sofia de Aristóteles, por exemplo, seria “um Pirronismo sob forma re-
solutiva”, porque freqüentemente a inextricável obscuridade de seus
textos não nos permite saber nem mesmo qual é sua opinião24 . Se,
nesse caso, a interpretação conduz inapelavelmente à ironia, Mon-
taigne parece acenar com a possibilidade de compreender seriamente
outros filósofos dogmáticos, como Platão e Sócrates, por um prisma
cético25. São variantes, como dissemos, de um mesmo mote interpre-
tativo: em vez de dogmáticos, cabe ver, na medida em que são sábios

24. Ver 507A, 511A.


25. No caso de Platão, pode-se observar como a ironia, ao lado da menção às con-
trovérsias interpretativas quanto à natureza de sua filosofia, vai dando gradativamente
lugar, nas edições posteriores, a um juízo mais favorável à leitura ceticizante: “[C] Na
minha opinião, nunca uma instrução foi titubeante e não-asseverante se a sua não o
é…” (509). O caso da leitura de Sócrates mostra exemplarmente que muito do que se
poderia encontrar nos Ensaios, posteriormente a 1580, como aparente sinal da presença
de uma filosofia não-cética é, na verdade, resultado de uma apropriação cética: “[C] O
condutor de seus diálogos, Sócrates, vai sempre inquirindo e movendo a disputa, nunca
sentenciando, nunca satisfazendo, e diz não ter outra ciência [science] do que aquela de
opor…” (ibid.). Sobre a interpretação montaigniana de Sócrates, ver MACGOWAN, 1974,
cap. 8. Para uma análise da presença de elementos céticos na filosofia platônica e das
interpretações ceticizantes de Platão e Sócrates, ver ANNAS, 1988 e 1992.

37

10888_A figura do filosofo.p65 37 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

filósofos, se não são, na verdade, céticos “disfarçados” que, embora não


tenham seriamente admitido que poderiam dispor de uma verdade
filosófica, avançaram seus dogmas por algum outro motivo. As filoso-
fias são, de modo geral, examinadas, seriamente ou com ironia, pelo
valor de suas eventuais justificativas à luz do diagnóstico cético da fra-
queza da razão.
Se assim é, cabe indagar que sentido poderia haver, afinal, nas
interpretações segundo as quais, rejeitando todas as filosofias, Montaig-
ne rejeita também o ceticismo26. Ainda que fizesse sentido aceitar, por
parte de Montaigne, algum afastamento do ceticismo, como admitir
que se trataria da mesma atitude para com essa filosofia e para com os
dogmatismos, se o próprio ceticismo é a caução filosófica da crítica de
Montaigne a todas as demais filosofias? E a mesma questão certamente
se põe diante de comentadores que, apesar de afirmarem que Montaig-
ne assume uma postura “cética”, julgam que o texto dos Ensaios nunca
deixe transparecer nenhuma marca de “coerência ideológica”27. Que
ceticismo afinal seria esse, que não pode se assumir como um posicio-
namento consistente? Não parece ser o que corresponde aos esforços
filosóficos de Montaigne.

26. Como, por exemplo, COMTE-SPONVILLE, 1993, p. 22; STEVENS, 1965, p. 151;
e FRIEDRICH, 1968, p. 69. Em oposição, sobre esse ponto, ver CONCHE, 1987, p. 27.
27. Cf. POUILLOUX, 1995, p. 54, 57 ss., 97. Para esse intérprete, de fato, a novidade
filosófica de Montaigne residiria na estrutura deliberadamente contraditória do ensaio,
admissão essa que parece dispensá-lo ou impedi-lo de examinar como o discurso dos
Ensaios poderia ser conseqüência de uma rearticulação do ceticismo considerado como
doutrina filosófica. TOURNON (1989) entende, por sua vez, que o caráter “fragmentário
e inacabado” do filosofar montaigniano deixa entrever “uma filosofia em fragmentos
[une philosophie en miettes]…” (p. 68). DEMURE, embora enfatize corretamente, a
nosso ver, a necessidade de observar reconstituir a coerência filosófica de Montaigne
com base em suas aparentes contradições, bem como que a única doutrina compatível
com a prática filosófica de Montaigne é o ceticismo (1988, p. 992-993, 1003; 1990, p.
98 passim), toma a questão da coerência filosófica desse autor como resolvida pelas
leituras de Tournon e Pouilloux. Não escapa, assim, de algumas simplificações exces-
sivas (cf., p. ex., 1990, p. 99), em vez de se dirigir a uma exegese do ceticismo com base
em suas fontes.

38

10888_A figura do filosofo.p65 38 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

1.2. A epokhé posta em prática


Nem o interesse de Montaigne em restaurar a coerência interna da
filosofia cética em sua relação entre teoria e prática, nem seu elogio ao
ceticismo, contudo, excluiriam a possibilidade de que ele próprio pen-
sasse filosoficamente de outro modo. Mas é possível dar um passo além
relativamente ao que vimos no item anterior. Pois não se trata apenas,
no caso de Montaigne, de retomar distanciadamente a posição dos “mais
sábios” entre os antigos acerca da verdade filosófica, mas sim de refor-
mulá-la e reapresentá-la várias vezes28, empregando conceitos céticos e
adaptando as argumentações dubitativas ao contexto das questões que
ele próprio discute. Em harmonia com seu juízo sobre o ceticismo,
trata-se não só de procurar examinar a lógica própria dessa filosofia, tal
como disponível nos textos, mas também de procurar desenvolver uma
prática filosófica dela conseqüente.
Alguns intérpretes sustentaram, porém, que a prova de seu distan-
ciamento do pirronismo proviria do fato de que ele sempre se refere à
seita dos céticos em terceira pessoa, nunca se apresentando explicita-
mente como um cético (em vez disso, como vimos, ele se diz um “fi-
lósofo de novo tipo”). Parece-nos, contudo, que um exame do modo
como Montaigne retoma inúmeros desenvolvimentos argumentativos
das Hipotiposes em seu texto — ainda que, curiosamente, jamais indi-
que a fonte da qual os toma29 — permite ver por que esse não é um
bom argumento. Nesse caso, ao menos, a retomada de passagens pro-
venientes dos antigos não é meramente fragmentária, apenas pretexto
casual para considerações diversas (ainda que isso efetivamente ocorra
noutras ocasiões). Embora o ceticismo surja na Apologia como uma
secte, em terceira pessoa, o fato é que os textos céticos são clandestina-
mente retomados nesse capítulo, de uma forma sistemática e organiza-
da, mediante longos desenvolvimentos argumentativos — coisa bastan-
te rara, aliás, nos Ensaios, o que nos parece tornar esse fato ainda mais

28. Ver, por exemplo, 441, 510, 535, 541, 557, 569-570.
29. Muitos deles foram identificados por VILLEY (v. Les Essais, p. 1282 ss.), que
contudo opina que Montaigne, ao transcrever Sexto, não se julga plenamente pirrônico
(cf. 1933, II, p. 196). Ver também, na mesma direção, MICHA, 1964, p. 30.

39

10888_A figura do filosofo.p65 39 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

relevante filosoficamente. Se há aqui uma excepcionalidade, não pode,


por certo, ser alegada, sem falácia, como uma razão que por si só des-
qualificaria o sentido do que é dito nessas páginas. Talvez ela seja o
indício, em vez disso, de que a relação de Montaigne com essa filosofia
particular, o ceticismo, ao menos a partir de 1576, é também bastante
excepcional30.
Tal como ocorre com a divisão pirrônica dos gêneros filosóficos, as
argumentações provenientes dos antigos céticos são normalmente inte-
gradas nos desenvolvimentos próprios de Montaigne e, embora com-
plementadas por ilustrações e considerações pessoais, guardam bastan-
te fidelidade ao sentido que possuem em sua fonte. Comecemos com
exemplos das argumentações que seguem mais evidentemente as pres-
crições de Sexto, segundo os exemplos particulares que ele próprio
emprega. É o que ocorre na crítica dos sentidos como instrumento de
conhecimento, a partir de 585A. Essa discussão é introduzida por meio
de um exemplo do desacordo (diaphonía) entre os filósofos acerca do
poder que os sentidos teriam de nos representar as coisas tais como são.
Não se trata apenas de um esquema argumentativo central da argu-
mentação cética antiga31, mas também de um tema que é abordado, no
mesmo sentido e com os mesmos exemplos, por Sexto32. Devidamente
considerada, tal discussão é por si só um importante obstáculo à co-

30. Um fenômeno análogo parece ocorrer na retomada dos textos estóicos de Sêne-
ca em ensaios formulados anteriormente a 1576, segundo a cronologia de VILLEY (v., p.
ex., Les Essais, p. 1232).
31. Um dos cinco Tropos de Agripa, pelos quais o cético suspende o juízo, corres-
ponde a um tópico a que já aludimos: a diaphonía entre as opiniões diversas que os
diferentes filósofos, com igual poder de persuasão, sustentam acerca dos diversos temas
de suas doutrinas (v. HP I, 165, 172, 175-177). Em muitas passagens das Hipotiposes,
Sexto alude ao conflito em geral das filosofias (p. ex., I, 26, 88, 185 etc.) ou se vale do
tropo argumentativo apontando a controvérsia dos filósofos acerca de pontos precisos
(sobre a verdade, II, 85; sobre a alma, II, 31-2; sobre a natureza I, 98 etc.).
32. Ver 585A, 587A; cf. HP I, 210-211, 218: Montaigne contrapõe, de uma parte,
Pitágoras e Heráclito (para quem a contrariedade das percepções sensíveis residiria nas
próprias coisas) e, de outra, Demócrito (segundo quem essa diversidade se restringiria
às percepções), valendo-se das passagens em que Sexto apresenta e critica tais doutrinas
com base em sua diferença relativamente à posição cética. Em seguida, ele expõe a
posição dos pirrônicos como a de permanecer em suspensão acerca de ser ou não o mel

40

10888_A figura do filosofo.p65 40 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

mum identificação de Montaigne como uma espécie de filósofo hera-


clitiano, por vincular seus ensaios a uma representação do devir33. Tra-
ta-se aqui, porém, apenas do primeiro entre os muitos argumentos céticos
utilizados neste exame, que Montaigne efetua a título de “prova maior”
da ignorância humana da verdade, concluindo o crescendo de sua crí-
tica do saber (science) desenvolvida na “Apologia”34.
Ao longo desse exame, Montaigne assume, em seu discurso, os
quatro primeiros Tropos (ou Modos) argumentativos de Enesidemo,
conferindo-lhes um sentido argumentativo muito difícil de distinguir
daquele que possuem em sua fonte (mesmo se Montaigne os ilustra
com exemplos pessoais). Por intermédio deles, Montaigne busca mos-
trar que aquilo que supostamente apreendemos como as coisas é ape-
nas o seu aparecer, relativo aos horizontes limitados de nossa experiên-

em si mesmo doce e amargo (segundo a diversidade da percepção dos sãos ou dos


doentes), pelo que eles se situam sempre no “mais alto ponto da dúvida”.
33. “[B] Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem. Não a passagem de uma época a
outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia a dia, de minuto a mi-
nuto…” (III, 2, 805). A partir de textos como esse, difundiu-se tal interpretação, especial-
mente usada para explicar o engajamento filosófico de Montaigne nos capítulos tardios,
como o faz, por exemplo, SCREECH, quando o opõe a uma suposta concepção platônica
sobre a verdade (cf. 1992, p. 109). Mas pretenderia aí Montaigne simplesmente descre-
ver o modo como as coisas nos aparecem diversamente (no caso, temporalmente) ou
afirmar uma tese sobre a identificação entre as coisas e o devir? Essa última opção nos
parece inaceitável, posto que o próprio Montaigne opõe “o ser” e “a passagem”, e que
é apenas esta que ele pretende “pintar”. Ora, já Enesidemo, segundo Sexto, observava
que o ceticismo era vulgarmente tido como uma via para a filosofia de Heráclito, uma
vez que a idéia segundo a qual os contrários parecem pertencer a uma mesma coisa
conduz à idéia de que os contrários pertencem efetivamente a essa coisa (v. HP I, 210).
Mas Sexto, seguindo Enesidemo, recusa essa alegação de afinidade, pois não apenas os
céticos se abstêm de fazer asserções acerca das coisas em si, mas também a percepção da
contradição das coisas constitui uma experiência comum aos demais filósofos, bem como
ao homem comum. Trata-se aí não de uma tese heraclitiana, mas de um “material
comum” da experiência (ibid., 211). Montaigne, de sua parte, condena como contradi-
tória a posição segundo a qual se pretenderia dizer que o ser é sujeito de predicados
contraditórios, por meio de uma reductio ad absurdum: “[A] … tudo está em todas as
coisas, e por conseguinte nada em nenhuma, pois nada está onde tudo está…” (585).
34. Ver 587 ss. Cf. VILLEY, 1933, p. 158; Les Essais, p. 1294-1296; e especialmente
POPKIN, 1979, p. 50-54. Analisamos essa argumentação em detalhe em EVA, 2003,
capítulo segundo.

41

10888_A figura do filosofo.p65 41 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

cia. Tal aparecer, em vez de plenamente coerente nas diversas ocasiões


em que se dá a percepção das coisas, é potencialmente conflitante se-
gundo as diferenças entre os animais, entre os homens, entre os diver-
sos órgãos sensíveis e entre as diversas circunstâncias perceptivas. Se
levarmos em conta essas diferenças, segundo a argumentação cética,
poderemos apenas dizer como se dá o aparecer das coisas, a cada vez,
relativamente à condição em que ele se manifesta, mas deveremos sus-
pender o assentimento a toda interpretação dogmática desse aparecer
das coisas — que pretende fazer dele um índice de como elas seriam
(ou deixariam de ser) de fato35.
Percebendo uma maçã, por exemplo, segundo a limitação de nos-
sos cinco sentidos, não podemos dizer, argumenta Montaigne (reto-
mando um exemplo que Sexto emprega no Terceiro Tropo de Enesi-
demo, concernente à diversidade dos sentidos), se isso corresponde a
uma apreensão exata do objeto tal como ele é, posto que eventualmen-
te estariam nela presentes outras qualidades, que apenas seriam ocultas
para nós e apreensíveis por outros sentidos que não possuímos (v. 590A,
cf. HP I, 95 ss.). Para sustentar a mesma conclusão, Sexto compara a
situação humana e a do cego de nascença, que não conhece os objetos
segundo seu aspecto visível (v. ibid.); Montaigne, por sua vez, oferece
uma anedota a respeito de um cego dele conhecido, que empregava
correntemente o vocabulário da visão pensando saber plenamente o
que dizia, para interrogar: “[C]… Quem sabe se o gênero humano não
faz uma tolice semelhante, à falta de algum sentido, e que por essa

35. No que tange à consideração da discrepância perceptiva entre o homem e os


outros animais como indício de que nossa percepção não corresponda às coisas, ver 596-
598AB, cf. HP I, 44-59; quanto à diferença entre as percepções humanas, considerada
no mesmo sentido, ver 598-599A, cf. HP I, 79 ss., esp. 87-88; quanto aos conflitos das
percepções entre os diversos sentidos humanos e as diversas circunstâncias pelas quais
apreendemos os objetos de modos conflitantes (saúde/doença, sonho/vigília etc.), ver
599-600ABC; cf. HP I, 99 ss., esp. 112-113. Muitos comentadores que reconheceram a
natureza cética da reflexão de Montaigne não parecem ter considerado devidamente a
fidelidade e a precisão com que sua argumentação segue textualmente suas fontes.
CONCHE, por exemplo, aventura-se a julgar que Montaigne seria mais fiel do que o
próprio Sexto ao ceticismo autêntico de Pirro, filósofo do qual, contudo, não nos restou
nenhum escrito (v. 1987, p. 29 ss.)

42

10888_A figura do filosofo.p65 42 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

falta a maior parte do aspecto das coisas nos seja oculta?” (589). Esse
mesmo episódio oferece a Montaigne a oportunidade de considerar
que o próprio homem poderia ser a causa da diversidade que ele per-
cebe — possibilidade adiante desenvolvida argumentativamente, pela
consideração de que o múltiplo sensível poderia ser um produto dos
sentidos humanos e não um efeito de qualidades do próprio objeto, tal
como ocorre com o ar na trombeta que, sendo sempre o mesmo ar,
produz uma variedade de sons —, usando assim mais um exemplo
proveniente de Sexto (v. 599AB; cf. HP I, 95). Em seu conjunto, afinal,
os argumentos aí propostos por Montaigne parecem retomar a dúvida
pirrônica de Sexto em seu sentido preciso: não sabemos se o múltiplo
sensível percebido é causado pelo recorte de nossos sentidos ou pela
natureza do objeto; não sabemos, portanto, se este é em si mesmo idên-
tico ou dessemelhante ao modo como o percebemos (possuindo qua-
lidades diversas ou iguais às percebidas). Não podemos, portanto, de
modo mais geral, tomar nossas percepções como índices de como são
os objetos tais como seriam neles mesmos, mas apenas como percep-
ções relativas a uma situação determinada, segundo as diversas dimen-
sões em que se apresenta uma potencial incongruência com outras
percepções do mesmo objeto, e que todavia teriam, não obstante, a
mesma prerrogativa epistêmica para representar as coisas.
Mas por que não podemos determinar qual dessas representações
conflitantes seria correta? Montaigne permanece seguindo Sexto quan-
do argumenta para mostrar a dificuldade radical de encontrarmos um
critério que permita escolher alguma instância perceptiva como a re-
presentação mais adequada dos objetos em si mesmos. O julgamento
dessa diversidade conduziria necessariamente a uma petição de princí-
pio, uma vez que o juiz estará sempre situado numa circunstância par-
ticular, que, como as demais, está sub judice36. Além disso, a tentativa
de resolver o conflito conduz sempre a uma falácia formal: ou bem a
uma circularidade (pois o julgamento da diversidade exige um critério,
que não pode ser aceito sem prova, a qual exige, por sua vez, um cri-
tério para ser julgada aceitável), ou bem a uma regressão ao infinito

36. Cf. HP I, 112-113, 600A.

43

10888_A figura do filosofo.p65 43 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

(pois o julgamento da veracidade da percepção exige uma razão, que,


de sua parte, invoca outra razão que prove sua adequação, e assim
sucessivamente)37.
No entanto, se essas passagens, entre várias outras que poderíamos
aqui lembrar, decalcam a argumentação sextiana em seus próprios ter-
mos, há também outras discussões que parecem revelar maior liberda-
de na prática da argumentação visando a epokhé, sem com isso perder
de vista o rigor filosófico e a fidelidade interpretativa, nem o modo
como essa noção central se articula com outras igualmente importan-
tes do ceticismo antigo. Pensamos aqui, especialmente, no emprego de
argumentos dialéticos — que constituem uma categoria de argumentos
particularmente decisivos quando se trata de focalizar corretamente o
sentido da eventual originalidade filosófica de Montaigne. Em face
deles, com efeito, é fácil nos enganarmos com uma aparência de “no-
vidade” em ocasiões que podem, ao contrário, atestar o rigor com que
ele argumenta segundo as preconizações céticas.
Como sabemos, pirrônicos e acadêmicos argumentaram dialetica-
mente, no sentido clássico do termo — isto é, partindo daquilo que o
interlocutor pretenderia aceitar como verdadeiro para mostrar como
ele acaba por se enredar em contradição38. Ainda que sua argumenta-
ção não se restrinja ao emprego dessa estratégia, nos revela que, quan-
do o cético alveja o filosofar dogmático, posto que esse filosofar é repre-
sentado pelas figuras particulares que se apresentam historicamente a

37. Ver 600-601A, cf. HP I, 117, 169-170 ss., II, 74-75.


38. Para uma definição de argumento dialético, ver, por exemplo, ARISTÓTELES,
Dos argumentos sofísticos, II, 165b. Tal procedimento é empregado por Sexto contra as
filosofias dogmáticas na assim chamada “parte específica” do ceticismo (cf. HP I, 5-6),
tal como posta em prática nos livros segundo e terceiro das Hipotiposes (cf. HP II, 12-
13). Na introdução do livro II, por exemplo, Sexto menciona a objeção estóica ao ce-
ticismo segundo a qual os céticos deveriam admitir que “apreendem” alguma verdade,
na medida em que apreendem o sentido das teorias que pretendem objetar. Responden-
do aos estóicos, ele afirma que, se “apreender” possui o sentido estóico de “representa-
ção apreensiva”, os próprios estóicos não poderiam argumentar contra seus oponentes
epicuristas, pois, para tanto, deveriam reconhecer que apreendem as teses epicuristas
como verdadeiras, o que os refutaria (HP II, 2 ss.). Para uma referência explícita ao
modo dialético de argumentar no ceticismo acadêmico, ver, por exemplo, CÍCERO,
Dnd, iii, IX, 21.

44

10888_A figura do filosofo.p65 44 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

ele como candidatas ao assentimento, não apenas podem, mas devem


mesmo ocorrer “inovações” no plano argumentativo, em vista de sua
eficácia diante das particularidades dessas novas filosofias dogmáticas.
Ora, é fácil ver que essas “inovações”, como tais, não pretendem, por-
tanto, inovar, reformar ou rejeitar a própria filosofia que lhes serve de
base; muito pelo contrário, elas “inovam” exatamente para permitir
uma observância rigorosa dessa filosofia tal como ela se conceberia em
sua prática, posto que ela própria convida a essa argumentação ad ho-
minem. Tais mutações trazem potencialmente consigo, portanto, um
risco considerável de equívoco no que tange à avaliação do caráter
propriamente filosófico da inovação que constituiriam, posto que po-
dem abarcar eventuais traduções terminológicas, transformações de de-
terminadas temáticas argumentativas ou adaptações de tropos presen-
tes nos textos antigos, em vista de uma atualização do próprio trabalho
filosófico em sua ação segundo as preconizações originais dos antigos.
Lembremos aqui, em especial, a maneira pela qual Montaigne
concebe sua argumentação contra a science, na “Apologia”, introduzi-
da segundo o pretexto de refutar os objetores de Sebond: “[A] … estes
querem ser chibatados às sua própria custa e não querem sofrer o com-
bate de sua razão senão por ela mesma…” (449). Ao longo desse en-
saio, não faltam exemplos de argumentações capazes de ilustrar essa
prática dialética, pela qual as “razões” particulares dos dogmatismos
em tela evocam outras razões que possam ser adequadamente a elas
contrapostas39. É nesse sentido que Montaigne ataca a “vaidade” de
diversas modalidades dos saberes humanos: a astrologia, a “ridícula busca
da pedra filosofal” (que, no francês da época, é por vezes simplesmente
designada pelo termo philosophie), as diversas cosmologias antropo-
mórficas que examina (aludindo explicitamente a Platão, com vistas a
vertentes do platonismo renascentista), os axiomas da física aristotélica,
as figuras renascentistas da dignitas hominis e da miseria hominis me-
dievais, que situam o homem essencialmente acima ou abaixo das
demais criaturas, ou ainda as teorias sobre o homem que, valendo-se da

39. Para uma análise mais detalhada desse modo de argumentar cético na “Apolo-
gia”, ver ainda EVA, 1994.

45

10888_A figura do filosofo.p65 45 28.03.07, 16:00


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

comparação entre o macrocosmo e o microcosmo, inventam engrena-


gens igualmente fantasiosas para explicá-lo40.
Nesse ataque, Montaigne abarca também algumas das sciences que,
em breve, viriam a fazer jus ao uso moderno da expressão, como a
astronomia e a medicina. Sem a pretensão de resolvermos aqui o pro-
blema da relação entre o pensamento de Montaigne e os pressupostos
dos métodos da ciência experimental moderna, é preciso tomar o cui-
dado, ao menos, de observar que o termo science é objeto de um trata-
mento filosófico particular em seu discurso. Comentando a introdução
das Hipotiposes, acerca dos diversos gêneros da filosofia, a que nos re-
ferimos no início desta análise, Montaigne assim se refere aos dog-
matistes: “[A] Estes estabeleceram os saberes [sciences] que nós possuí-
mos e os trataram como considerações certas [notices certaines]…” (502).
Embora science também possa ocorrer, nos Ensaios, como sinônimo
de “saber” num sentido mais corriqueiro41, essa passagem oferece uma
definição relevante para o sentido do termo no contexto dessa discus-
são: os dogmáticos são aqueles que tratam suas teorias como certezas,
pretendendo que elas constituam não apenas conjecturas, mas verda-
des objetivas. Tal precisão confirma a natureza cética da crítica aos
saberes contemporâneos e nos oferece, ao menos, uma oportunidade
de rever algumas das razões comumente apresentadas para apartar
Montaigne da Nova Ciência.
De fato, o sentido moderno do termo “ciência” parece estar fora do
horizonte semântico em que ele emprega o termo42. Montaigne não se
encaminha à formulação de um projeto científico que almeje um con-
trole experimental do mundo físico, tal como o encontraremos for-

40. Ver 449-486, 536 ss., 560A, 585A; II, 14, 611. Quanto ao sentido de “philosophie”
atribuído a essa pesquisa, ver GREIMAS-KEANE, 1992, p. 474. Sobre as temáticas medie-
vais da dignitas e da miseria hominis, ver FRIEDRICH, 1968, p. 131-134.
41. Ver, por exemplo, II, 10, 418A.
42. Nicolau Tartaglia parece ter sido o primeiro autor a utilizar a expressão “scienza
nuova”, no século XVI, para designar sua aplicação do raciocínio matemático ao desen-
volvimento dos projéteis (num contexto do qual as reflexões de Montaigne são bem
distantes). Os Diálogos acerca dos dois sistemas de mundo, de Galileu, seriam publica-
dos, por sua vez, apenas em 1632. Sobre a posição de Montaigne relativamente à ciên-
cia experimental, ver ainda FRIEDRICH, 1968, p. 153 ss.

46

10888_A figura do filosofo.p65 46 28.03.07, 16:00


Filósofo de nova figura?

mulado por Bacon43, e menos ainda ao modelo de uma ciência da


natureza escrita em caracteres matemáticos, tal como se apresenta nos
escritos de Galileu. Todavia, Montaigne defende a idéia de uma uni-
formidade da natureza contra a vaidade daqueles que pretenderiam
situar o homem essencialmente acima das demais criaturas, que inclui
afirmações bastante incisivas quanto à admissão de um princípio de
causalidade abarcando o conjunto dos fenômenos naturais (ainda que
disso não se siga a admissão de uma capacidade humana de compreen-
der plenamente suas leis próprias): “[C] É uma mesma natureza que
segue o seu curso. Quem tivesse suficientemente julgado acerca do
estado presente, poderia com segurança concluir acerca de todo o fu-
turo e de todo o passado…” (467)44.
Na mesma discussão, Montaigne opõe a astronomia copernicana à
ptolomaica para mostrar a instabilidade de nosso pretenso conheci-
mento do mundo (v. 570-571) e, em seguida, desenvolvendo o tema do
conflito entre a razão e a experiência sensível, relaciona explicitamente
essa reflexão ao pirronismo:
[A] … e os Pirrônicos não se servem de seus argumentos e de sua
razão senão para arruinar a aparência de experiência, e é uma mara-
vilha [ver] até onde a maleabilidade da nossa razão os acompanhou
nesse desígnio de combater a evidência dos fatos [effects], pois eles
provam [verifient] que não nos movemos, que não falamos, que não
há pesado nem quente, com uma força de argumentação semelhan-
te àquela com que provamos as coisas mais verossimilhantes. Ptolo-
meu, que foi um grande personagem, tinha estabelecido os limites
de nosso mundo; todos os filósofos passados pensavam possuir sua
dimensão, salvo algumas ilhas afastadas que podiam escapar de seu
conhecimento: teria sido pirronizar, há mil anos, pôr em dúvida a
ciência [science] da Cosmografia e as opiniões que eram por todos
aceitas… (571-572).

43. Cf., por exemplo, F. BACON, Novum Organum, p. 15, 29.


44. PHOLIEN (1990), para quem Montaigne, possuidor de uma imagem da natureza
na qual se enfatiza o caráter único dos eventos, não disporia do conceito de “lei natu-
ral”, não considera passagens como a que citamos.

47

10888_A figura do filosofo.p65 47 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Tais considerações são diretamente apoiadas em reflexões de Sex-


to sobre o sentido em que o cético argumenta, por vezes, contra os
fenômenos, não com o intuito de aboli-los, mas apenas de exibir a
precipitação dos filósofos dogmáticos45. Assim, ao alvejar aqui exem-
plares da “ciência” que acabarão por ganhar um estatuto epistemoló-
gico privilegiado entre os modernos (como a astronomia de Copérnico),
ele os toma como ocasiões de exibir a maleabilidade da razão: tal
como ela pode se opor à evidência dos fatos mais elementares (e a
uma “aparência de experiência”)46, pode igualmente se apropriar des-
sas evidências para a construção de teorias que, embora portadoras de
poder de persuasão, revelam, em sua revisibilidade, que não oferecem
propriamente conhecimento das coisas, como se poderia supor.
Noutro momento do mesmo ensaio, Montaigne retoma, nestes
termos, a epokhé cética, buscando desaprumar as armas da science:
[A] Contra aqueles que combatem por pressuposições, é preciso pres-
supor, ao contrário, o mesmo axioma que se debate. Pois toda pres-
suposição humana e toda enunciação têm tanta autoridade quanto a
outra, se a razão não faz sua diferença. Assim, é preciso pô-las todas
na balança, e primeiramente as mais gerais e aquelas que nos tirani-
zam. [C] A impressão de certeza é um testemunho certo de loucura
e de incerteza extrema… (540).
O alvo principal da crítica é o modo como as opiniões filosóficas
— especialmente as provenientes de Aristóteles — são aceitas com base
na autoridade e sem reflexão (539A). Aqui, o fundamento cético da

45. Cf. HP I, 19-20: “Se propomos argumentos diretamente contra o fenômeno,


fazemo-lo não para rejeitá-lo, mas para expor a precipitação dos dogmáticos; pois, se a
razão é de tal modo enganadora que nos pode roubar o que nos aparece ante nossos
próprios olhos, não deveremos tanto mais resguardarmo-nos quanto aos assuntos não
evidentes, para evitarmos a precipitação ao segui-la?”.
46. Ver 570-572A. GREIMAS e KEANE (1992) dão para effect o sentido de “ação, ato,
feito”, remontando a cartulários de 1272 (p. 220). Para o emprego de effectuel, no sécu-
lo XV, os autores dão como sinônimos “efetivo” e “real”. Notemos, porém, que Descar-
tes e Pascal, leitores de Montaigne, empregarão effects, como vocabulário da física, para
designar “fenômenos”. Cf. CARRAUD, 1992, p. 255. Parece-nos que, de modo geral, o
termo effects pode, no texto de Montaigne, ser traduzido por “fatos” ou “fenômenos”,
por oposição às ficções criadas dogmaticamente.

48

10888_A figura do filosofo.p65 48 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

crítica é o “Tropo da Hipótese”, pelo qual Sexto denuncia o procedi-


mento falacioso das filosofias dogmáticas, construídas sobre pressupos-
tos assumidos como verdadeiros sem justificativa e, por isso, racional-
mente criticáveis47. Pressupor o axioma debatido significa partir da hi-
pótese contrária àquela em que o interlocutor, em algum momento, se
apóia injustificadamente, para mostrar como seria igualmente possível
construir uma explicação verossímil com base noutro ponto de partida
igualmente injustificado, e mostrar indiretamente, assim, que o axio-
ma aceito também não produz conhecimento. Assim, se a science ado-
ta axiomas e pressupostos injustificados, e os desenvolve “à moda dos
Geômetras”, conferindo-lhes a aparência de um saber sólido sobre as
coisas48, acaba por falsear os fatos, incorporando-os em suas constru-
ções fantasiosas. E a argumentação antinômica dos céticos revelaria
que as demonstrações praticadas pelas filosofias dogmáticas, quando
observadas de um modo estritamente racional, não merecem crédito;
tal argumentação poderia assim mediar a desobstrução do emprego da
razão, dogmaticamente comprometida pela força da autoridade.
Qual é, portanto, o alvo dessa argumentação? Para Montaigne, as
explicações dessa science sobre a natureza humana estão em xeque,
não por reconhecerem “movimentos”, “funções” e “faculdades” que
sentimos em nós, mas sim na medida em que pretendem ir além disso,
incorporando essas descrições comuns no contexto de explicações ra-
cionalmente construídas sobre “a natureza das ligações e costuras”, por
exemplo, entre uma determinada impressão espiritual e o riso ou a

47. Cf. HP I, 168. Trata-se de criticar o procedimento dogmático de assumir um


axioma demonstrativo para evitar a regressão ao infinito a que seria conduzido quando
solicitado a justificar os pontos de partida de que necessariamente parte para estabele-
cer sua filosofia. Como diz Sexto, tal hipótese é injustificável, seja porque se poderia
assumir, pelo mesmo procedimento, o próprio objeto da prova, o que tornaria a de-
monstração inútil e mostraria o absurdo da suposição, seja porque a hipótese assumida
como verdadeira e não demonstrada é tão convincente quanto uma hipótese oposta que
se pretenda assumir (v. tb. HP I, 173, 174, cf. 540-541AC).
48. Ver ibid. e 544-545A, em que, desenvolvendo a mesma crítica, Montaigne ataca,
entre outros, Platão, o epicurismo (por meio de argumentos estóicos tomados do De
Finibus, de Cícero, livro I) e o estoicismo (por meio de argumentos tomados do inter-
locutor acadêmico do De natura Deorum; cf. II, xxxvii, 93-94; III, ix, 22-24).

49

10888_A figura do filosofo.p65 49 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

palidez da face, por meio das quais pretendem afirmar o que as coisas
são efetivamente, em sua estrutura interna (v. 538-539). É graças a esse
sentido preciso de sua crítica que Montaigne, seguindo Sexto, prosse-
gue afirmando, contra os peripatéticos, que os philosophes que evocam
os fenômenos sensíveis como resposta àquele que os põe em dúvida são
“mui indignos da profissão filosófica”:
[A] Eles não precisam me dizer: é verdadeiro, pois vês e sentes assim;
é preciso que me digam se o que eu penso sentir eu o sinto, portanto,
de fato [en effect]; e, se eu o sinto, que eles me digam depois por que
eu o sinto, e como, e o quê; que eles me digam o nome, a origem, os
componentes e os produtos do calor, do frio, das qualidades daquele
que age e daquele que padece; ou então que eles abandonem sua
profissão, que é a de não receber nem aprovar nada senão pela via da
razão: é a sua pedra de toque em toda a espécie de investigações
[d’essais], mas certamente é uma pedra de toque plena de falsidade,
de erro, de fraqueza e de falha… (541).
Os filósofos indignos da filosofia são, como se vê, os dogmáticos,
que filosofam segundo um uso indevido da razão. Fazendo dela uma
pedra de toque para a obtenção de verdades demonstrativas, com base
em evidências supostamente seguras, não nos deixam ir segundo “nos-
sos apetites simples e regrados pela condição de nosso nascimento…”
(ibid.). É, portanto, apenas esse contexto justificacionista, erigido pela
pretensão de encontrar, na manifestação sensível das coisas, alguma
science acerca do que elas são nelas mesmas (“de fato”), que acaba por
exigir uma argumentação contra os effects segundo as prescrições de
Sexto, já consideradas. Trata-se não de abolir nossa experiência percep-
tiva tal como se oferece naturalmente a nós, mas de mostrar a fraqueza
da razão, em resposta aos dogmáticos que presumem que a razão seja
capaz de oferecer conhecimento sobre as coisas (e mesmo capaz de
garantir que nossos sentidos possam, eventualmente, ser aceitos como
um critério para dizer o que as coisas sejam de fato).
Como dissemos, Montaigne frisa, ao apresentar o ceticismo, que
a suspensão “extrema” dos pirrônicos é compatível com um pleno
engajamento nas ações comuns da vida, seguindo textualmente as
Hipotiposes:

50

10888_A figura do filosofo.p65 50 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

[A] Quanto às ações da vida, eles estão nelas da maneira comum.


Eles se apresentam e se acomodam às inclinações naturais, ao im-
pulso e constrangimento das paixões, às constituições das leis e dos
costumes e à tradição das artes… (505; cf. HP I, 21-24).
Ora, se a suspensão do juízo ante a science dogmática, na argumen-
tação particular que acabamos de considerar, deve ser compreendida
como a instanciação de uma argumentação cética, não será o caso de
compreender os effects a que se refere constantemente Montaigne como
uma expressão do mesmo conceito em seu vocabulário próprio? Em
resposta ao físico que argumentava para demonstrar o desconhecimen-
to dos antigos do movimento dos ventos, ele afirma, efetivamente, que
“preferiria seguir os fatos [effects] à razão…” (571). Dizendo de outro
modo, uma argumentação racionalmente persuasiva pode surgir como
um exemplo da fraqueza da razão, em nome do qual não se deve abolir
o phainómenon como um critério para a dimensão prática da vida. Não
se trata de nenhum irracionalismo, mas de alegar que é razoável sus-
peitar do modo como racionalmente as filosofias constroem suas expli-
cações com base nos fatos, especialmente se a experiência pode even-
tualmente desmenti-las. Mas, se assim fosse, uma construção racional
que, em vez de pretender oferecer conhecimento, se apresentasse como
mera conjectura provável acerca das regularidades naturais, em vista
de sua utilidade prática, não poderia ser posta sob o alvo da crítica à
science que aqui consideramos49.
Seja como for, não devemos reconhecer, afinal, que uma inspeção
mais cuidadosa do texto deve reverter o argumento referente à apresen-
tação do ceticismo “em terceira pessoa” em favor da tese oposta que ele
pretendia sustentar? Pois, se a prova do engajamento filosófico deve ser
colhida naquilo que se manifesta “em primeira pessoa”, como não
admitir que tais desenvolvimentos argumentativos, assumidos como opi-
niões pessoais do autor, possam atestar a existência, ao menos, de uma

49. Em 505-506C Montaigne emprega os textos acadêmicos relativos ao “prová-


vel” para justificar uma adesão conjectural, por parte dos céticos, à “ordem do mun-
do”, em vista da utilidade desse procedimento — tal como se observa, segundo ele,
em diversas “artes”.

51

10888_A figura do filosofo.p65 51 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

prática cética — a despeito do fato (que, por si mesmo, nada prova a


esse respeito) de se referir aos antigos céticos em terceira pessoa?

1.3. Um novo cético?


Permanece em aberto o problema de compreender as passagens
em que Montaigne se refere à sua identidade filosófica — como a que
citamos na epígrafe — sem fazer nenhuma referência explícita ao ce-
ticismo e sugerindo, ao contrário, ao menos à primeira vista, a idéia de
uma inovação filosófica. Tais passagens também merecem uma aten-
ção maior que a usual.
Comecemos considerando a declaração abaixo, em que Montaig-
ne descreve o modo como procede ao discutir uma opinião: “[B] Nós
outros, que privamos nosso juízo do direito de sentenciar [faire arrests],
observamos brandamente [mollement] as opiniões diversas…” (III, 8,
923; itálicos nossos). Tendo em vista os termos precisos das discussões
sobre a noção de epokhé, na “Apologia”, quem deveremos entender
que designa essa primeira pessoa do plural — “nous autres”? Como
vimos, ali também a suspensão é descrita como uma postura segundo
a qual a razão é desautorizada a sentenciar e asseverar — mais literal-
mente, a estabelecer “arrests” para o juízo (cf. 505). Nessa mesma dis-
cussão, os céticos (em terceira pessoa) são apresentados como os que
debatem “de uma forma bem branda [molle]”, por não se preocuparem
em estabelecer a verdade (503A). Montaigne emprega, nos dois casos,
as mesmas expressões para caracterizar o modo de argumentar dos
céticos e o seu próprio.
O que designa esse último adjetivo no contexto em que se empre-
ga? Noutra passagem do terceiro livro dos Ensaios, Montaigne o reto-
ma para explicar o modo como procura despir suas afirmações de peso
assertivo:
[B] Nós falamos de todas as coisas por preceito e resolução… Fazem-
me odiar as coisas verossimilhantes quando as plantam para mim
como infalíveis. Eu aprecio essas palavras que abrandam [amolissent]
e moderam a temeridade de nossas proposições: eventualmente, de
algum modo, diz-se, eu penso e [outras palavras] semelhantes. E se

52

10888_A figura do filosofo.p65 52 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

eu tivesse tido que educar crianças, ter-lhes-ia posto na boca esta


maneira de responder, [C] investigativa, não resolutiva: [B] O que
isso quer dizer? Eu não entendo. Poderia ser. É verdade? Guardas-
sem eles antes a forma de aprendizes aos sessenta anos do que repre-
sentar doutores aos dez, como fazem. Quem quer curar da ignorân-
cia, deve confessá-la. [C] Íris é filha de Thaumatis. A admiração é o
fundamento de toda filosofia, a inquisição o progresso, a ignorância
o fim. [B] É claro que há uma certa ignorância forte e generosa, que
nada deve em honra e coragem à ciência, [C] ignorância que para se
conceber não se requer menos ciência do que para conceber a ciên-
cia… (III, 11, 1030).
Tal procedimento, novamente relacionado a uma filosofia dubita-
tiva, aqui representada pela expressão “science de l’ignorance”, pode ser
também mais estreitamente aproximado do que preconizam textos
pirrônicos. Sexto explica, nas Hipotiposes, como o cético emprega ex-
pressões dessa mesma natureza para despir o seu próprio discurso de
peso assertivo (v., p. ex., HP I, 194-195). São passagens que, como ve-
remos, Montaigne discute diretamente na “Apologia”. O uso do verbo
“amollir”, tendo em vista que os céticos debatem de uma “molle façon”,
não parece ser, portanto, casual. Por seu intermédio, Montaigne de-
marca o sentido filosófico cético dessas outras expressões que emprega-
rá constantemente. Não se trata, por seu intermédio, de apenas moda-
lizar as afirmações, mas sim de procurar isentá-las de assertividade50.
Essa “science de l’ignorance” fornece a chave interpretativa para
esse conceito no que se refere tanto à intenção de abrandar o teor as-
sertivo das declarações como à prática argumentativa. Ciente das di-
ficuldades interpostas para o reconhecimento da verdade, o cético busca
se precaver das conseqüências assertivas indesejáveis que decorrem do
uso da linguagem (tal como o mostram as diversas precisões de Sexto
sobre as expressões céticas). Igualmente, ele pretende fruir de uma li-
berdade privilegiada do uso da razão, no nível de sua prática argumen-
tativa, pois em vez de subordiná-la à demonstração das verdades que,
de saída, seriam presumidas, ele a observa como uma faculdade dotada

50. Cf. ANNAS, 1988, p. 105; 1992, p. 66, 69; POUILLOUX, 1995, p. 134.

53

10888_A figura do filosofo.p65 53 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

de uma plasticidade maior do que se costuma reconhecer, ao conferir,


em diferentes níveis e graus, sustentação às mais diversas opiniões, es-
pecialmente a opiniões contraditórias entre si (que não se tornam, por-
tanto, necessariamente verdadeiras em virtude de sua sustentação ra-
cional). Não cabe aqui examinar mais detalhadamente essa concepção
cética da argumentação, tal como Montaigne a tematiza e desenvol-
ve51. Pretendemos apenas, por ora, sublinhar que tal noção de “abran-
damento” discursivo estabelece um vínculo conceitual preciso entre a
prática ensaística de Montaigne e o ceticismo antigo, tal como ele mes-
mo o descreve, no que tange a aspectos centrais dessa filosofia.
Os dois textos mencionados distariam em talvez mais de dez anos
na cronologia da composição da obra, o que nos oferece uma ocasião
para introduzir o problema da perenidade da reflexão cética ao longo
da obra. Uma vez que Montaigne pretende que os Ensaios sejam o
registro do desenvolvimento de seus “humeurs” — aí compreendidas
suas opiniões —, as passagens que correspondem a períodos diversos de
composição reportam juízos diversos acerca de questões variadas — até
mesmo no âmbito da filosofia, como teremos a oportunidade, adiante,
de observar mais detalhadamente. Isso não impede, porém, que o modo
preciso com que a terminologia empregada por Montaigne evoca suas
fontes filosóficas ofereça mais um indício de que sua adesão ao ceticis-
mo, em vez de ser uma espécie de “crise” passageira, corresponde à
adesão refletida e consistente a uma doutrina filosófica (ainda que a
especificidade dessa adesão careça ainda de esclarecimentos). Mais uma
vez, a relação com o ceticismo exibe aqui uma singularidade: o próprio
Montaigne afirmará que não compreende como seja possível aderir a
qualquer filosofia que se pretenda capaz de formular a verdade tendo
uma vez considerado as razões apresentadas pelo cético para descon-
fiar das filosofias dogmáticas52.

51. Ver “Da arte de conversar” (III, 8).


52. Cf. III, 9, 964. De modo geral, o desenvolvimento posterior de uma argumenta-
ção filosófica mais antiga, por meio de alongamentos ao texto original, não permite
avaliar conclusivamente o juízo de Montaigne sobre o problema de seu engajamento
filosófico atual (posto que isso também se verifica nos chamados ensaios estóicos). Mas

54

10888_A figura do filosofo.p65 54 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

Passemos a outro texto, redigido possivelmente à época da “Apolo-


gia”, e que parece deixar ainda menos dúvida sobre o sentido de um
pronome igualmente lacônico:
[A] Se filosofar é duvidar, como eles dizem, com mais razão ocupar-
se de ninharias e fantasiar [niaiser et fantastiquer], como eu faço,
deve ser duvidar. Pois cabe aos aprendizes investigar e debater e ao
catedrático resolver… (II, 3, 350).
Pondo entre parênteses, por um momento, a distância entre philo-
sopher e niaiser et fantastiquer, não exprime Montaigne aí, ao mesmo
tempo, a proximidade entre o que “eles dizem” (os céticos, seguramen-
te) e o que ele próprio faz?
A despeito, porém, da intenção de identificar sua identidade dubi-
tativa ao ceticismo, parece preciso reconhecer, não sem surpresa, que
Montaigne o faz de um modo deliberadamente ambíguo. À primeira
vista, o niaiser et fantastiquer e o philosopher são apresentados como
coisas distintas, mas aproximados por uma curiosa dúvida escolar. Tal
dúvida parece conferir, ao mesmo tempo, um conteúdo para essa dis-
tinção: a distância do “fantasiar” ao “filosofar” é inscrita no desnível
que haveria do aprendiz ao mestre. A nota paradoxal soa quando nos
voltamos para o modo como esse texto qualifica a atividade do apren-
diz (que, justamente por isso, não faz parte da classe dos “catedráti-
cos”): “investigar e debater”. O que os caracteriza, portanto, é exata-
mente o mesmo que caracteriza, como vimos, o uso cético da razão
(posto que, segundo Montaigne, tais filósofos apenas se abstêm de “sen-
tenciar” e “escolher”, mas não de “investigar” e “debater”). Assim, a
linha divisória entre o philosopher cético e o fantastiquer montaigniano
torna-se difusa, graças, exatamente, aos supostos indícios da diferença
desse fantastiquer relativamente à prática dos “filósofos” que duvidam.
Essa diferença determinaria a eventual natureza não-filosófica e não-
cética de sua atitude de “aprendiz” num aspecto no qual, a bem obser-
var, não parece possível encontrá-la, uma vez que ela residiria no cará-

o conjunto desses indícios mostra que esse não parece ser o caso, em particular, da
relação de Montaigne com o ceticismo.

55

10888_A figura do filosofo.p65 55 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ter “investigador” do suposto aprendiz que ainda não é filósofo, e que,


na verdade, caracteriza a mesma postura filosófica cética.
O leitor poderia aqui talvez reagir propondo uma leitura diversa: em
vez de identificar o filosofar como a atividade do catedrático, Montaigne
estaria simplesmente identificando a atividade do aluno e do mestre (e,
por conseguinte, nalguma medida, o “filosofar” e o “fantasiar”) e opon-
do-as conjuntamente às “resoluções” do catedrático. Mas essa segunda
leitura não apenas não explica a distinção entre o “filosofar” e o “fanta-
siar”, como se opõe ao movimento do texto, que introduz a segunda
afirmação como uma suposta explicação da primeira (“pois cabe aos
aprendizes…”). É apenas quando evocamos um outro elemento que não
está aqui explícito — o reconhecimento de que a atividade filosófica dos
que duvidam é exatamente a de investigar e debater, aparentemente oposto
do que essa passagem sugere — que o texto revela, paradoxalmente, que
a distinção entre o “filosofar” e o “fantasiar” não pode corresponder à
distinção entre o “aprendiz” e o “catedrático”, ao mesmo tempo em que
se enriquece de sentido. Percebemos, porém, no mesmo passo, que o
texto não contém, como poderia parecer, um esclarecimento sobre a
particularidade da filosofia de Montaigne por oposição ao ceticismo, mas
bem o contrário, uma afirmação elíptica dessa identidade cética.
Tratar-se-ia de uma ambigüidade fortuita? Ou haveria algum propó-
sito deliberado de Montaigne em apresentar sua identidade cética de
viés, a fim de despistar o leitor? Essa possibilidade interpretativa, a des-
peito de suas conseqüências incômodas, pareceria mais fantasiosa e arti-
ficial se não estivéssemos diante de um fenômeno recorrente — especial-
mente nas ocasiões em que, explicitamente tratando de seu engajamen-
to filosófico pessoal, seria de esperar, ao contrário, algum indício mais
substancial acerca de sua novidade filosófica relativamente ao ceticismo.
Consideremos a passagem em que Montaigne formula o célebre
mote “que sei eu?”, por vezes lida como estéril manifestação de um
“ceticismo” que, mesmo existindo, nada significa quando se trata de
compreender a peculiaridade filosófica dos Ensaios53. É tal leitura, ao
contrário, que perde aí a oportunidade de perceber a peculiaridade mon-

53. Cf. MERLEAU-PONTY, 1960, p. 302.

56

10888_A figura do filosofo.p65 56 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

taigniana: seja porque, quando toma essa passagem como manifestação


de ceticismo, ignora o modo como o autor aí parece se recusar, à pri-
meira vista, a reconhecer-se cético; seja porque, se atinasse para esse
ponto, talvez não visse que, num nível mais profundo, ao ser reaproxi-
mado das fontes que lhe servem de base, o texto de Montaigne revela
uma expressão ainda mais forte de concordância com o ceticismo.
Novamente, Montaigne não se restringe, nessa passagem, a apoiar-
se em fontes pirrônicas, mas se vale também de textos acadêmicos (aqui,
mais uma vez, acomodados de modo aparentemente coeso). Para
mostrar que a linguagem humana não apenas se equivoca inteiramen-
te quando se volta à dimensão divina, mas dá mostras de sua precarie-
dade já no âmbito do conhecimento das coisas naturais, Montaigne
retoma, dos Academica, o “paradoxo do mentiroso” (v. 526-528). Em-
prega-o, seguindo Cícero, para minar a identificação entre a clareza do
sentido e a veracidade das proposições (uma vez que “eu minto” possui
um sentido tão claro quanto “chove”, mas gera um paradoxo) e pôr sob
suspeita, de modo geral, o poder assertivo da linguagem54. Passando
imediatamente, porém, à discussão dos textos pirrônicos sobre o em-
prego cético da linguagem (a que nos referíamos há pouco), Montaig-
ne alega que o fato de a linguagem humana ser inteiramente constituí-
da de proposições afirmativas impede que eles formulem de modo in-
teiramente adequado sua “concepção geral”: “[A] … ser-lhes-ia preciso
uma nova linguagem…” (527). Na falta disso, eles se valem de um
subterfúgio, sem o qual “sua disposição filosófica [humeur] seria inex-
plicável…”: quando eles declaram “eu duvido” ou “eu ignoro”, afir-
mam que essa proposição aplica-se a si mesma, deixando-se levar pela
dúvida que ela própria instaura, como o ruibarbo é expelido juntamen-
te com os humores nocivos55. Por sua vez, ele complementa essa expli-
cação com este comentário pessoal, que alude claramente à represen-

54. Cf. 527B; Acad., II, 92-95.


55. Cf. HP I, 14-15, 187 ss. Sexto não parece entender que haja uma incompatibi-
lidade entre a linguagem e a formulação da postura pirrônica, pois, na medida em que
o cético admite os assim chamados “signos comemorativos”, a linguagem pode ser con-
cebida como parte do phainómenon que, como vimos, o pirrônico adota como critério
para a vida prática, e ser empregada como a expressão de uma perspectiva apenas pes-

57

10888_A figura do filosofo.p65 57 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

tação iconográfica de sua atitude suspensiva: “[B] Essa fantasia é mais


seguramente concebida por interrogação — Que sei eu? — tal como
a porto na divisa de uma balança…” (ibid).
O leitor poderia ser levado a crer que a segurança dessa fórmula
interrogativa expressasse antes um sinal de reserva ante o ceticismo56 ou
mesmo que o caráter tardio desse acréscimo final revelasse alguma
guinada teórica, talvez em favor da filosofia acadêmica57. No entanto, o
fato é que Montaigne não inventou essa solução que adota pessoalmen-
te. Ela corresponde a uma das possibilidades de expressão das concep-
ções céticas, tal como didaticamente apresentadas por Sexto na mesma
passagem que é fonte dessa discussão (v. HP I, 189). Portanto, a despei-
to de ser alegada como aquela que ele pessoalmente prefere (fazendo-
a mesmo figurar na divisa de seu emblema pessoal), essa solução não
pode constituir um indício de afastamento do ceticismo em geral, ou
do pirronismo em particular; ela mostra apenas que, mesmo quando,
tardiamente, Montaigne se interessa mais pelos Academica, permanece
atento à similaridade entre essa versão do ceticismo e o pirronismo, ora
retomado. Mas não se trata aqui, enfim, de uma explicitação igualmen-
te enviesada do ceticismo, que passa por uma recusa aparente da posi-
ção pirrônica, tal como vimos ocorrer no texto em que ele se declara
um “aprendiz” cético? Qual é a peculiaridade desse filosofar cético? À
falta de outra mais visível, a que emerge aqui diz respeito ao sentido
paradoxal que tais passagens adquirem à luz das fontes céticas, das quais,
à primeira vista, elas parecem anunciar uma distância.
Retomemos agora o texto da epígrafe, no qual Montaigne se decla-
ra de uma “nova figura, um filósofo impremeditado e fortuito”, que
descobriu casualmente a semelhança entre suas opiniões e aquelas

soal, despida da pretensão de conhecimento acerca dos “objetos externos” (v. HP I, 15).
56. Ver, por exemplo, TOURNON, 1989, p. 87; 1991, p. 35.
57. Ver LIMBRICK, 1977, p. 68-69. No que tange à passagem em tela, Limbrick
reconhece a presença, lado a lado, de elementos pirrônicos e acadêmicos e a toma
como ilustração da similaridade entre pirronismo e filosofia acadêmica do ponto de
vista epistemológico (ibid., p. 76), embora não a discuta mais diretamente e não leve
em consideração o fato de que Montaigne alega, aparentemente, recusar a solução
cética (pirrônica) ora apresentada para lidar com a precariedade da linguagem.

58

10888_A figura do filosofo.p65 58 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

sustentadas pelos filósofos que o antecederam. Como compreender o


sentido dessa declaração de novidade? Poderíamos considerar, de saí-
da, ao menos duas possibilidades. A primeira consistiria em supor que
a novidade da “impremeditação” caracterizasse apenas o próprio modo
imprevisto com que ele descobriu, diante das filosofias já existentes, a
conformidade daquilo que pensava com aquilo que outros já teriam
pensado (o que não excluiria, portanto, a possibilidade de adesão a
uma dessas filosofias). Outra leitura encontraria no caráter impremedi-
tado, em alguma medida, a natureza do próprio filosofar montaignia-
no, naquilo que ele possuiria de novo em relação ao filosofar tradicio-
nal (conferindo, assim, um significado positivo à própria declaração de
novidade e de exterioridade relativamente às filosofias existentes, na
qual se veria um reflexo de sua atividade de composição dos Ensaios).
Antes de respondermos, levando em conta o que já observamos, procu-
remos aqui com mais cuidado pelos eventuais elementos céticos que,
como nas outras passagens similares, poderiam estar ocultos.
De fato, eles são vários. Antes de mais, notemos o contexto alta-
mente irônico em que se insere a passagem: trata-se de justificar e dis-
tinguir o modo impremeditado e fortuito como filosofa daquele con-
signado aos philosophes dogmáticos, atacados, na página anterior, por
filosofarem “fortuitamente”, mas num sentido bem diverso. Referindo-
se à sua “impremeditação”, Montaigne narra como seus “modos” ou
costumes, em vez de se constituírem com base no engajamento nalgu-
ma “disciplina” filosófica, conservaram sua naturalidade mesmo poste-
riormente ao exame das diversas argumentações com que pareceram
acomodáveis. No caso desses outros philosophes, trata-se de denunciar
o modo irrefletido como imergem na mesma diversidade opinativa que
ele recusa — a tal ponto que se inclina a admitir:
[A] … que eles trataram da “science” casualmente, assim como um
brinquedo que passa em qualquer mão, e se bateram [uns aos outros]
com a razão como se fora um instrumento vão e frívolo, avançando
toda sorte de invenções e de fantasias, por vezes mais rigorosas, por
vezes mais frouxas… Por essa variedade e instabilidade de opiniões,
eles nos conduzem, como pela mão, tacitamente, a esta [nossa] re-
solução de sua irresolução… (545).

59

10888_A figura do filosofo.p65 59 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Aqui a casualidade do filosofar significa displicência ou cegueira


perante o modo como todas as filosofias almejam racionalmente a ver-
dade por meio de similares “fantasias”, todas virtualmente equivalentes
em seu poder demonstrativo. Eis mais uma variante do recorrente tro-
po cético da diaphonía, segundo o qual o conflito entre as filosofias
dogmáticas surge como ocasião de duvidar de sua pretensão de verda-
de58. Montaigne pretende filosofar externamente a tal conflito de opi-
niões dogmáticas, e segue de perto, como vemos, as prescrições dos
antigos céticos, que aludem a esse tema para mostrar como a filosofia
é capaz, não apenas por sua simples diversidade, mas também pelas
críticas que os filósofos dirigem uns aos outros, de nos ensinar acerca
da precariedade da razão. Tal é, segundo ele mesmo, a utilidade do
mostruário de opiniões filosóficas que constitui seu livro:
[A] Vêem-se infinitos exemplos parecidos, não apenas de argumentos
falsos, mas ineptos, que não se sustentam, e que acusam seus autores
não tanto de ignorância quanto de imprudência, nas réplicas que os
filósofos se fazem uns aos outros acerca dos dissensos em suas opiniões
e seitas. [C] Quem arrumasse com capacidade [suffisance] um con-
junto de asneiras da prudência humana, diria maravilhas… Eu algu-
mas delas reúno, de bom grado, como uma mostra, por algum viés não
menos útil de considerar. [A] Julguemos por aí o que não devemos
estimar do homem, de seu senso e de sua razão, posto que nesses gran-
des personagens, que levaram tão alto a capacidade [suffisance] huma-
na, encontram-se defeitos tão aparentes e tão grosseiros…” (ibid.).
Desconhecedores do caráter instrutivo dessa contradição filosófica,
ignorando o peso dessa evidência, os philosophes levianamente se pre-
cipitam em julgar que foram capazes de reconhecer a verdade — como
diz Montaigne, “o favo no bolo” (v. 516). Não é outro o diagnóstico
que os céticos antigos ofereceram do filosofar dogmático, um filosofar
de homens acometidos pela precipitação (propéteia) no juízo da verda-
de, sem terem avaliado o problema de um modo plenamente racional,
diante das inúmeras restrições que se pode oferecer a cada uma de suas
tentativas (a começar pela constatação de que há inúmeras tematiza-

58. Ver nota 31; cf. 507-512.

60

10888_A figura do filosofo.p65 60 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

ções filosóficas igualmente defensáveis e, na mesma medida, inaceitá-


veis, acerca dos mesmos pontos)59.
Diversamente do dogmático que, obstinado em defender a auten-
ticidade da verdade presumida, perde a oportunidade de reconhecer o
que, em sua própria posição, há de racionalmente injustificado, o cé-
tico pretende ser, segundo Montaigne, aquele que emprega com mais
liberdade suas faculdades intelectuais na investigação filosófica, posto
que não está comprometido com a defesa de uma posição que tome
por verdadeira (v. 503B). Nestes termos, com auxílio dos Academica de
Cícero, faz ele a defesa do direito cético de duvidar:
[B] Por que não lhes será permitido, dizem eles, como o é aos dogmá-
ticos a um dizer verde, a outro amarelo, a eles também duvidar? Exis-
te alguma coisa que se possa propor, para ser advogada ou recusada,
que não seja legítimo considerar como ambígua? E onde os outros são
conduzidos, seja pelo costume do país, seja pela educação dos pais,
seja pelo acaso, como por uma tempestade, sem juízo e sem escolha,
e no mais das vezes antes da idade do discernimento, a tal ou tal
opinião, à seita estóica ou epicurista, à qual se acham assim hipotecados,
servilizados e colados como se fosse uma ponta no penhasco da qual
não conseguem largar [C] — ad quamcunque disciplinam velut tem-
pestate delati, ad eam tanquam ad saxum adhaerescunt — [B] por que
a estes não será igualmente concedido manter sua liberdade e consi-
derar as coisas sem obrigação e sem servilismo? — [C] Hoc liberiores
et solutiores quod integra illis est judicandi potestas. [B] Não é melhor
permanecer em suspensão do que se enfronhar em tantos erros que a
fantasia humana produziu? Não vale mais suspender sua persuasão
do que se imiscuir nessas divisões querelantes e sediciosas? [C] Que
irei eu escolher? O que nos agradar, posto que escolheis. Eis uma tola
resposta, à qual entretanto parece que todo o dogmatismo chega, posto
que não nos permite ignorar o que ignoramos… (503-504)60.

59. Ver especialmente HP III, 280-1, mas também HP I, 20, 177, 186, 205, 212 e
237. Os filósofos da Nova Academia fazem, como veremos, objeções bastante similares
à filosofia dogmática.
60. As citações latinas provêm dos Academica: “Eles se agarram a qualquer doutrina
como o fariam a uma rocha, extenuados pela tempestade…” (II, iii, 8); “Esses são mais

61

10888_A figura do filosofo.p65 61 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Não será essa situação de liberdade igualmente oposta ao modo


pelo qual os dogmáticos se aprisionam a suas doutrinas e próxima da-
quela pela qual Montaigne permanece numa situação de exterioridade
com relação às diversas filosofias examinadas?
O “instrutivo espetáculo” da contradição filosófica que, segundo
Montaigne, seu livro comporta parece retomar uma lição oriunda de
sua experiência pessoal: depois de tentar acomodar seu agir natural aos
diversos discursos filosóficos, reconheceu a plausibilidade com que vários
deles pareciam a ele acomodar, em meio a uma diversidade que pode
abarcar toda e qualquer loucura, para finalmente descobrir, mantendo-
se numa situação de exterioridade a todos, o “regime filosófico de sua
vida”: “… eu não o descobri senão depois que ela foi explorada e posta
em prática…”. Essa descrição convida a uma nova aproximação com o
pirronismo. Sexto apresenta o cético como aquele que, inicialmente
movido pela intenção de encontrar a verdade ante a diversidade das
filosofias em conflito, para obter a tranqüilidade, teve a experiência de
constatar, caso a caso, serem elas igualmente inaceitáveis (v. HP I, 26).
Sua experiência acabou por conduzi-lo a abandonar a expectativa ini-
cial de encontrar a verdade, não por ter ele concluído pela impossibi-
lidade absoluta de encontrá-la, mas pelo modo como sua experiência
intelectual o foi convencendo sobre a maior plausibilidade de que se
deveria repetir, indefinidamente, o mesmo espetáculo da falibilidade
da razão em seu uso demonstrativo. Não será, assim, cabível admitir
que, a partir do momento em que se constitui como uma “doutrina”
filosófica, a perspectiva cética se reconheça como um resultado “im-
premeditado” da investigação, ao menos se confrontada com a expec-
tativa inicial do candidato a filósofo, em busca de sanar sua perturba-
ção intelectual? Trata-se de um aspecto explicitamente mencionado
por Sexto, ao explicar que ao cético pirrônico, suspendendo o juízo nos
assuntos opinativos, adveio “fortuitamente” (tukikós) a ataraxía, antes
buscada na posse da verdade (cf. HP I, 27). Para explicar como isso
ocorreu, ele se vale de uma anedota acerca do pintor Apeles, segundo
a qual, desesperado de representar adequadamente a espuma na boca
do cavalo que ele pintava, tal pintor lançou uma esponja sobre o qua-
dro e acabou por obter, casualmente, o efeito desejado (ibid., 27-28).

62

10888_A figura do filosofo.p65 62 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

Eis como ganha uma dimensão filosófica relevante para o cético a


natureza fortuita e impremeditada da experiência intelectual efetiva-
mente vivida na busca da verdade, por oposição ao papel secundário
que tende a assumir nas filosofias para as quais o essencial reside na
verdade supostamente descoberta, que se trata de explicitar. Pois o cético
não oferece — nem poderia pretendê-lo, sob pena de se contradizer —
uma demonstração da impossibilidade de reconhecer a verdade, e tam-
pouco de que a suspensão conduza à tranqüilidade: trata-se apenas de
relatar o encadeamento das etapas do itinerário biográfico como meio
de exibir o modo como seu engajamento lhe pareceu coerente. Na
mesma medida, o panorama intelectual que sua experiência lhe revela
é intrinsecamente provisório. Como diz Sexto, o cético é aquele que
permanece na investigação (zétesis): se esta o conduziu a tal resultado,
não seria impossível que conduzisse a resultado diverso (apesar de não
se oferecer ao cético, mediante sua experiência intelectual, nenhuma
evidência satisfatória em favor dessa possibilidade, que o leve a abolir
a investigação).
Na passagem citada como epígrafe, Montaigne informa que seu
filosofar “impremeditado” é diretamente dependente de sua experiên-
cia biográfica ante as filosofias que examinou e culmina com a desco-
berta de sua identidade filosófica. Para além da semelhança que acaba-
mos de apontar, notemos que o momento em que ele “impremeditada-
mente” tomou consciência do regime filosófico de sua vida pode bem
corresponder, no plano da cronologia biográfica, ao período em que
teve contato com a filosofia cética de Sexto. Pois, embora essa adição
seja tardia, descreve a posteriori o reconhecimento dessa identidade fi-
losófica (da qual ela se pretende uma continuidade); de outra parte, é
seguro que tal reconhecimento se deu posteriormente ao início da reda-
ção dos Ensaios (que pode corresponder à sua decisão de recitar seus
moeurs, à luz de seu eventual acordo com as filosofias antigas). Não
deveria a culminação desse processo — isto é, a “descoberta” do re-
gimento filosófico de sua vida — corresponder ao contato com a obra
de Sexto, a partir do qual ele adotaria uma posição cética, afastando-se
da orientação estóica que preside capítulos do livro primeiro como 19,
20, 39 e 40? Assim, a instância fundadora do regime propriamente fi-

63

10888_A figura do filosofo.p65 63 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

losófico dessa impremeditação, pela qual os modos naturais se conser-


vam, seria a mesma pela qual Montaigne teria abandonado o lema es-
tóico de I, 20 — “filosofar é aprender a morrer” — para aderir à concep-
ção segundo a qual “filosofar é duvidar”: a saber, o contato com os tex-
tos céticos. Talvez devêssemos aqui ver confirmada, ao menos em parte,
a interpretação de Z. Schiffman sobre o contato de Montaigne com o
ceticismo: ele teria conferido cidadania filosófica a uma postura pessoal
dubitativa, resultante da educação humanista que recebera no College
de Guyenne (inspirada no método argumentativo cético “in utramque
partem”), mas até então vista como mera idiossincrasia, a ser superada61.
Uma aproximação final com o ceticismo deixa-se ainda entrever na
afirmação de que, seja qual for, essa identidade filosófica se harmoniza
com a reintegração dos “modos naturais”, como previamente já se apre-
sentavam. Que “naturalidade” é essa? Como vimos, Sexto explica que,
a despeito de suspender o juízo, o cético adere ao phainómenon, proce-
dendo, nas ações da vida, “da maneira comum”, acomodando-se às suas
inclinações naturais. Além da adoção do “guia da Natureza” — a natu-
ralis instructio, nos termos da tradução latina lida por Montaigne —, a
adesão ao phainómenon abarca os valores e regras de conduta pelos
quais nós habitualmente nos conduzimos e que nos fazem, por exem-
plo, julgar que a piedade é um bem e a impiedade um mal, como
vimos62. Por mais que o relato de Montaigne acentue a naturalidade de
suas disposições pessoais, o resíduo da experiência filosófica do cético,
impossibilitado de escolher entre as diversas filosofias à disposição, é
igualmente, segundo Sexto, a admissão daquilo que naturalmente se
oferece a nós, em nossa experiência pré-filosófica. Noutros textos em
que aparentemente descreve o mesmo percurso pessoal, Montaigne
explicita que a autoridade dos antigos “com os quais seu juízo se en-

livres e desembaraçados, porque sua capacidade de julgar permanece intacta…” (ibid.)


— mais precisamente, da defesa ciceroniana da ratio academica contra os ataques dos
dogmáticos, em conformidade ao sentido do texto montaigniano. Considerações análo-
gas às que Montaigne desenvolve nessa passagem sobre as razões que conduzem os
dogmáticos a aderir às suas doutrinas encontram-se em ibid., 7-8.
61. Ver SCHIFFMAN, 1984.
62. Ver HP I, 24; nota 20.

64

10888_A figura do filosofo.p65 64 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

controu em conformidade” lhe permitiu não apenas reconhecer a di-


mensão filosófica de sua experiência natural, mas também estabelecê-
la e fortificá-la63.
O reconhecimento da diaphonía filosófica como uma amostra da
precipitação com que os diversos filósofos nela se engajam dogmatica-
mente (isto é, pretendendo formular a verdade contra os demais); por
oposição, um engajamento filosófico mediado pela experiência pessoal
concretamente vivida, externamente às filosofias existentes, cujo resulta-
do é a impossibilidade de adesão a essas filosofias e a aceitação, alterna-
tivamente, como critério, daquilo que naturalmente se oferece a nós, a
despeito das filosofias: é todo um conjunto de elementos pirrônicos que
parece ecoar nessa alusão montaigniana à sua identidade intelectual, na
forma de uma narrativa biográfica que parece ademais exemplificar o
próprio itinerário descrito pelo pirrônico na formulação de sua filosofia.
O que isso nos permite afirmar relativamente à alternativa de inter-
pretação para a impremeditação filosófica de Montaigne que conside-
ramos anteriormente? Trata-se da descrição da descoberta impremedi-
tada de sua identidade filosófica ou de uma descrição da natureza desse
filosofar? Pondo esse texto ao lado dos demais indícios de filiação de
Montaigne ao ceticismo, bem como dos demais textos céticos que aca-
bamos de mencionar, podemos ver que se trata de uma falsa alternati-
va. Montaigne narra um episódio pelo qual casualmente reconheceu a
natureza filosófica de sua experiência segundo um conjunto de ele-
mentos que caracteriza, de modo claro e exaustivo, uma filosofia exis-
tente, que similarmente se instaura, segundo sua ordem de razões, de
forma essencialmente biográfica: o ceticismo pirrônico, nos termos pre-
cisos que o expõe Sexto. Mas isso não exclui que a própria “impreme-
ditação”, retratada nessa descoberta, possa qualificar a própria ativida-
de filosófica que se pretende levar a cabo, na medida em que se filoso-
fa, como os céticos, sem a obrigação de sustentar verdades predetermi-
nadas, e no plano da experiência biográfica que, de direito, preserva o
mesmo caráter fortuito que presidiu a instauração dessa filosofia. De
fato, são os próprios textos pirrônicos que propõem uma articulação

63. Ver II, 17, 658; III, 2, 812.

65

10888_A figura do filosofo.p65 65 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

entre a descrição biográfica do modo como o cético se engaja impre-


meditadamente em sua postura filosófica e a afirmação da mesma con-
dição investigativa que conduziu a esse resultado como marca distinti-
va desse filosofar, desde que ele se assume como tal. É a mesma articu-
lação que se deixa entrever, como tentamos mostrar, no caráter “impre-
meditado e fortuito” da nova figura filosófica de Montaigne.
Contudo, os termos em que a passagem circunscreve, de modo
geral, a relação do autor com as filosofias passadas parecem nos condu-
zir, mais uma vez, a uma situação paradoxal. Não apenas porque a
proximidade com o ceticismo, a despeito de todos esses indícios, é in-
teiramente invisível de saída, mas, sobretudo, porque a passagem pare-
ce explicitamente repelir o leitor que, como nós, sonda tais evidências
como ocasião para descobrir um episódio de engajamento doutrinal.
Montaigne o diz com todas as letras, opondo-se de antemão ao sentido
das evidências que estivemos aqui coletando e relativamente às quais
não nos parece plausível afirmar que ele as desconheceria, em face dos
demais indícios apresentados: “[B] Deixo, assim, meus caprichos irem
mais livremente a público, posto que, mesmo que tenham nascido em
mim e sem patrão [sans patron], eu sei que eles encontraram sua rela-
ção com algum humor antigo, e não faltará quem diga: — eis de onde
ele os toma!”.
Ora, ainda que a sua “impremeditação” corresponda precisamente
aos diversos aspectos examinados da postura cética, não é o ceticismo
um posicionamento filosófico antigo dentre outros? Não estaríamos
assim falseando sua declaração de impremeditação exatamente como
ele prevê que farão os que ele abertamente ironiza e repudia por dize-
rem: “eis de onde ele os toma”? Entretanto, é claro que isso não basta
para dissolver a ampla evidência das fontes que examinamos ao longo
de todo este capítulo; muito ao contrário, parece mesmo nos oferecer
um atestado de que estamos aqui também reconhecendo adequada-
mente um mesmo fenômeno paradoxal e recorrente nas demais passa-
gens em que Montaigne trata de seu engajamento filosófico pessoal.
Agora o paradoxo consiste no modo como a admissão de que esse relato
descreveria, segundo as evidências arroladas, uma espécie de engaja-
mento numa filosofia dada — o ceticismo — entra em conflito com o

66

10888_A figura do filosofo.p65 66 28.03.07, 16:01


Filósofo de nova figura?

modo como ele afirma, ao menos aparentemente, uma posição de ex-


terioridade a toda e qualquer filosofia.
Não nos precipitemos, porém, diante dos paradoxos. Por ora, limi-
temo-nos a constatar que, em resposta à nossa interrogação sobre o
sentido do engajamento cético de Montaigne, o texto nos devolve a
transformação do problema de que partirmos. Em lugar da perplexida-
de diante dos textos que vagamente se opunham acerca da identidade
filosófica de Montaigne (nos quais a “nova figura” de filósofo podia se
confundir com a de um filósofo contraditório ou incompreensível), temos
a oportunidade de tentar elucidar o sentido dessa estratégia aparente-
mente deliberada, por meio da qual ele sistematicamente se recusa, nas
declarações em que trata de sua filosofia, a consolidar sua identidade
cética, a despeito de todos os indícios nessa direção que oferece nas
entrelinhas das passagens nas quais ela parece ser recusada.
E talvez dessa transformação do problema, para além de um escla-
recimento do ceticismo de Montaigne ou de seus eventuais limites,
possa advir uma melhor compreensão de aspectos conceituais próprios
da reflexão cética, que se põem em evidência sob um ângulo inusitado
por meio desse paradoxo. Pensamos aqui, em particular, na retórica
própria do pirronismo, em sua versão sextiana; mais precisamente, no
papel da exemplaridade do discurso sobre a impossibilidade de reco-
nhecimento da verdade que o cético narra, por força da lógica interna
de sua filosofia, em primeira pessoa. Onde Sexto Empírico narra, em
nome do ceticismo, o modo como o cético descobre, em seu percurso
biográfico, a descoberta impremeditada de uma filosofia que ali se
constitui originalmente como doutrina, por seu intermédio, Montaig-
ne parece narrar a descoberta, igualmente impremeditada, de uma fi-
losofia já existente, o ceticismo antigo, capaz de iluminar intelectual-
mente o sentido de sua experiência passada, bem como da natureza
filosófica de sua postura de exterioridade relativamente a toda a filoso-
fia dogmática. Mas em que sentido exatamente a adesão ao ceticismo
que estaria virtualmente compreendida nesse segundo relato difere
daquela apresentada pelo primeiro? Perderia esse segundo episódio de
engajamento algo de sua “impremeditação”, uma vez que é um enga-
jamento filosófico a uma doutrina preexistente? Inversamente, perde-

67

10888_A figura do filosofo.p65 67 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ria algo de seu eventual poder de persuasão o relato em que Sexto narra
a experiência original dos primeiros “homens de talento, perturbados
pelas anomalias das coisas e desconcertados quanto a saber quais delas
deveriam escolher” (HP I, 12), se ele correspondesse a um relato me-
ramente ficcional, jamais efetivamente vivido por um filósofo existen-
te, mas destinado a reorganizar idealmente as etapas lógicas do engaja-
mento do cético em sua perspectiva filosófica?64
Não faltam razões, portanto, para instruir nossa desconfiança das
aparências de novidade filosófica, ainda que disponhamos agora, um tanto
inesperadamente, de uma nova pista. Para aprofundar a discussão desse
ponto, parece-nos porém conveniente examinar, antes de mais, o sentido
em que Montaigne poderia se pensar historicamente um novo filósofo,
relativamente aos antigos, num terreno mais recentemente explorado
pelos intérpretes de seu ceticismo. Trataremos agora de seu fideísmo.

64. Discutimos em detalhe esse tema, ao qual retornaremos ainda adiante, em EVA, 2005.

68

10888_A figura do filosofo.p65 68 28.03.07, 16:01


CAPÍTULO II

A esgrima cética

Seja qual for a razão dos paradoxos observados no capítulo ante-


rior, bem como suas eventuais conseqüências para a compreensão da
“figura” de filósofo que Montaigne entenderia constituir, articula-se
nos Ensaios, como vimos, um ceticismo portador de um rigor filosófico
maior do que usualmente é reconhecido. Vimos, mais ainda, que a
essa reconstrução do ceticismo antigo parece corresponder uma forma
de engajamento pessoal, da qual emergiria um Montaigne cético. Mas
talvez haja outros motivos para suspeitar dessa conclusão, formulada
assim cruamente. O leitor pode bem se perguntar em que medida seria
possível compreender precisamente uma caracterização como essa, se
se trata de pretender reviver nesse autor uma filosofia antiga cerca de
quinze séculos mais tarde. Não seria evidente, por exemplo, que tal
filosofia devesse sofrer uma transformação conceitual, uma vez trans-
plantada para a França cristã em guerras de religião?
Vimos também, em contrapartida, ao considerar o emprego de
estratégias argumentativas dialéticas pelos céticos, que a pressa em des-
cobrir a “novidade histórica” dessa filosofia facilmente pode conduzir

69

10888_A figura do filosofo.p65 69 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

a equívocos. Convém agora nos precavermos contra outros preconcei-


tos metodológicos que, em nosso entender, podem igualmente criar
abusos interpretativos. É o que ocorre, por exemplo, quando a consta-
tação de que os conceitos possuem historicidade se converte numa re-
gra de interpretação pela qual se decide que todos os conceitos filosó-
ficos devem ter seu sentido possível delimitado a priori pelo fato de
pertencerem a determinado momento histórico. Não há dúvida de que
seja importante prestar atenção aos significados próprios que determi-
nados termos possuem em dado período. Mas com freqüência não se
percebe que esses termos, ao pertencerem a um texto filosófico, parti-
cipam de uma rede semântica que lhes confere autonomamente um
sentido próprio — em conformidade ou à revelia de qual sentido seja
usual ou se pretenda alegar como usual naquele período (com base,
afinal, nos próprios textos filosóficos desse período). Corre-se assim o
risco de projetar, sobre a minúcia própria do texto, uma filosofia fictí-
cia, resultante de uma generalização indevida ou mesmo de um proce-
dimento circular (pelo qual os próprios problemas interpretativos gera-
dos por essa postulação acabam por se tornar, nos casos extremos, uma
razão para concluir que tal autor é testemunha de uma forma de pen-
sar que está inevitavelmente perdida para nós). Imaginemos, por exem-
plo, que um filósofo entenda ter formulado uma constatação da inca-
pacidade humana de conhecer a verdade no domínio da metafísica.
Por mais que o sentido da metafísica seja historicamente mutável, como
seria possível salvaguardar o significado propriamente filosófico desse
diagnóstico se supomos que ele está formulando uma tese que só faz
sentido em seu contexto histórico? O resultado é que essa tese se torna-
ria incompreensível para os seus contemporâneos. Sem considerarmos
aqui sua veracidade intrínseca, essa tese interpretativa possui o incon-
veniente de distorcer ou mesmo destruir o sentido possível da filosofia
que ela pretenderia interpretar. Isso porque, sem que se perceba, se
assume implicitamente, como tese interpretativa, uma tese que já é
filosoficamente determinada (no caso, sobre a filosofia da história) e
incompatível com a própria filosofia sustentada pelo autor que se pre-
tenderia, antes de mais, compreender. Diríamos que se trataria aqui de
uma variante dos mesmos defeitos interpretativos ordinários denuncia-

70

10888_A figura do filosofo.p65 70 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

dos por Goldschmidt1 relativamente à pretensão do intérprete em ser


melhor conhecedor da filosofia interpretada do que o próprio filósofo.
Pois tanto erra o intérprete quando, ao pretender interpretar, acaba lhe
imputando uma filosofia diversa (e normalmente menos coerente do
que a original, uma vez que sua lógica própria é fragilizada pela admis-
são tácita de uma tese incompatível com sua filosofia) como quando,
em nome de uma suposta cautela interpretativa, empresta ao filósofo
uma incompreensibilidade que igualmente deriva de uma tese filosó-
fica que é apenas sua e que acaba projetando no texto do filósofo uma
impossibilidade de leitura que reflete apenas a sua incapacidade parti-
cular de compreensão.
Retomamos aqui esses caminhos bem batidos para alertar acerca
de problemas importantes que entram em jogo quando se quer delimi-
tar um âmbito próprio da novidade filosófica no transcurso da história.
É bem verdade que se corre o risco de cometer igualmente o erro oposto,
de projetar no texto uma coerência fictícia. Mas tendo em vista que os
problemas a que aludimos no capítulo anterior, relativos à possibilida-
de de ler os Ensaios como texto filosófico, normalmente se aprofundam
ao se pretender situá-los historicamente, parece-nos importante privile-
giar o próprio texto, não apenas segundo sua possível coerência, mas
também segundo o modo particular pelo qual ele inscreve a história de
sua problemática filosófica.
Feitas essas considerações, examinemos aquela que recentemente
tem surgido como a pista mais evidente para a determinação da parti-
cularidade do ceticismo de Montaigne, segundo as implicações de sua
situação histórica particular. Richard Popkin, investigando o modo como
o pirronismo antigo foi retomado no Renascimento, no contexto parti-
cular dos debates entre católicos e protestantes sobre os critérios de
interpretação da Verdade Revelada, é um dos principais responsáveis
pelo ressurgimento de um interesse pelo exame do ceticismo de Mon-
taigne. Não obstante a brevidade da interpretação que nos oferece em
sua História do ceticismo, ele considera a “Apologia” um texto histori-

1. Ver GOLDSCHMIDT, 1970.

71

10888_A figura do filosofo.p65 71 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

camente decisivo, pelo modo como ali o pirronismo (até então subor-
dinado à teologia, como antídoto católico às teologias protestantes que
procuraram fazer da razão individual o critério da “lei da fé”, em lugar
do critério tradicional, que conferia à antiguidade da Igreja autoridade
interpretativa) adquiriu uma dimensão autônoma, graças à qual se for-
mulam primeiramente as questões fundamentais da epistemologia mo-
derna. Montaigne pôde assim ser redescoberto como referência cética
importante para uma tradição filosófica posterior que esteve às voltas
com os mesmos problemas, na qual se incluem, entre outros, Charron,
La Mothe le Vayer, Gassendi, Bayle, Descartes e Pascal. Eis uma inter-
pretação inovadora e instigante acerca do papel histórico decisivo da
filosofia de Montaigne, cujo alcance ainda não foi, a nosso ver, intei-
ramente reconhecido e explorado2.
Igualmente, Popkin observa que o pirronismo ressurge em Mon-
taigne com “vestes fideístas”, sob a forma do “fideísmo cético” do Re-
nascimento (no qual, em linhas gerais, a postura teológica que elege a
fé como um fundamento não-racional da religião alia-se a uma postura
filosófica cética acerca dos poderes da razão de conhecer verdades)3.
De fato, não apenas os argumentos céticos de Montaigne são ladeados
por afirmações sobre a dependência da Revelação cristã a um abraço
sobrenatural da fé, mas também, como noutras versões da defesa fideís-
ta cética do catolicismo, parecem conduzir, em conformidade com as
preconizações sextianas, a uma espécie de aceitação filosófica da tradi-
ção e dos costumes — na forma, por exemplo, do reconhecimento da
“majestade plena de autoridade e comando” da crença tradicional contra
os “ateístas”, que ousam desafiá-la com as armas da razão, cuja preca-
riedade desconhecem (v. 440-448A). Parece-nos, contudo, que aqui é

2. Ver POPKIN, 1979, cap. 1 a 3, esp. p. 54. Diversas leituras recentes do ceticismo de
Montaigne não observam devidamente o modo como ele constitui uma reconstrução
filosófica consistente e argumentada do ceticismo antigo, por contraposição a outros
“céticos” renascentistas pré-montaignianos (como, p. ex., VINCENT, 1998, p. 7).
3. Ver, além de Popkin, especialmente PENELHUM, 1983, que discute a viabilidade
de um fideísmo cético como forma autêntica de pensamento religioso; ver também
FRIEDRICH, 1968, p. 117 ss., e BRAHAMI, 1996, p. 29 ss., para uma confrontação entre
os fideísmos de Pomponazzi e de Huet.

72

10888_A figura do filosofo.p65 72 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

especialmente importante não perder de vista este aviso de Montaigne:


“… todos os julgamentos genéricos [en gros] são frouxos e imperfei-
tos…” (III, 8, 943B).
Popkin, é bem verdade, ressalva, ante o teor dos debates sobre a
religião de Montaigne4, que esse esquema fideísta parece compatível
com interpretações antagônicas de seu sentido propriamente religioso.
No que tange ao problema que viemos até aqui discutindo, afirmar ou
não a existência de um autêntico fideísmo pode conduzir ao reconhe-
cimento de uma resposta determinada sobre a “novidade” filosófica em
questão. Se o ceticismo pode se acomodar ao assentimento a verdades
por meio da fé, torna-se eventualmente admissível que essa fé, com-
preendida como uma instância extranatural e extra-racional, constitua
uma determinação histórica graças à qual a postura de Montaigne ante
o problema do conhecimento da verdade deva se reconhecer forçosa-
mente nova relativamente ao ceticismo antigo — seja em vista do ad-
vento histórico da Revelação, seja em vista de uma natureza epistemo-
lógica própria da fé, tal como adentra no esquema conceitual desse
ceticismo. Tentaremos contudo mostrar que, mais uma vez aqui, a si-
tuação não parece ser diversa do que vimos ocorrer com a crítica cética
de Montaigne à science. Ressalvado o próprio advento de uma Revela-
ção, as diversas possibilidades consideradas de interpretar o sentido da
Verdade Revelada parecem ser, de modo geral, tratadas como novas
versões de dogmatismos e, portanto, como objeto de suspensão cética.
Assim, a argumentação filosófica (cética) de Montaigne parece neutra-
lizar qualquer dimensão propriamente teológica em sua reflexão, con-
vertendo a admissão de um eventual “abraço sobrenatural da fé” (única
instância que, em princípio, seria capaz, segundo ele, de nos propiciar
o acesso à Verdade) não em uma mera “possibilidade teórica” que nunca
se atualiza5, mas em algo radicalmente incompreensível e irreconhecí-
vel de um ponto de vista humano. Os mesmos elementos argumenta-

4. Para um sumário das principais posições, que abrangem, num amplo e diversifi-
cado leque, desde os que o viram como um fiel ardoroso até os que o tomaram por ateu
e destruidor dissimulado da religião, ver AULOTTE, 1979, p. 110 ss.
5. É o que opina FRIEDRICH, 1968, p. 118.

73

10888_A figura do filosofo.p65 73 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

tivos céticos proíbem o leitor, como veremos, de extrair do texto qual-


quer conhecimento efetivo de uma verdade extrafilosófica dependente
da intervenção privilegiada da Revelação6. Ademais a argumentação
de Montaigne parece não oferecer elementos suficientes para que pos-
samos responder claramente à questão sobre a sua religiosidade, aspec-
to este pelo qual o leitor poderá mais uma vez descobrir a inesperada
proximidade desse autor a clássicos textos céticos. Parece-nos possível
mostrar que essa questão, que foi objeto de acalorados debates, consti-
tui uma espécie de armadilha interpretativa. A situação é diversa, em
nosso entender, se nos atemos ao propósito de esclarecer as relações
entre argumentação cética, conhecimento teológico e defesa da reli-
gião tradicional na “Apologia”.
Para tanto, examinaremos diversos aspectos pelos quais, no âmbito
dessa temática, sua posição cética se manifesta: na neutralização argu-
mentativa da possibilidade de reconhecimento de uma verdade (ainda
que de natureza religiosa); na recusa em adentrar no debate sobre o
critério de interpretação da verdade revelada, ante o qual seus Ensaios
historicamente se situam (debate que será visto como portador de um
cunho dogmático, a despeito das aparências em contrário); no modo
como responde retoricamente, por meio de sua “Apologia” de Sebond,
a dois representantes paradigmáticos dessa disputa religiosa (mediante
um curioso golpe de esgrima cético pelo qual é preciso alvejar-se com
as próprias armas para suplantar o adversário); e, ainda, no modo pelo
qual, diante das limitações da razão humana, Montaigne valoriza a
observação do poder com que o costume, especialmente no que con-
cerne às instituições religiosas, cimenta a ordem pública tal como es-
tabelecida na França do século XVI. Todo esse percurso se enfeixa
segundo a coerência de uma única perspectiva filosófica precisa, a do
reconhecimento cético da incapacidade da razão humana de estabele-
cer demonstrativamente a verdade e da necessidade de aceitar, em
decorrência disso, os effects como critério para ação.

6. Retomamos, para esclarecer esse ponto, alguns argumentos que já apresentamos


noutra parte em defesa de leitura substancialmente análoga, em nosso artigo de 1992.

74

10888_A figura do filosofo.p65 74 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

2.1. Um fideísmo paradoxal


Se há grande controvérsia entre os comentadores acerca do sentido
da defesa da religião proposta por Montaigne, isso se deve, ao menos
em parte, ao tratamento tortuoso que ele dá ao problema da concilia-
ção entre fé e razão em sua “Apologia”. Suas considerações acerca desse
tema são pontuadas pelo emprego de conceitos-chave que são objeto
de definição e ressurgem permanentemente ao longo da discussão —
como os conceitos de “pura fé” e de “razão”. Não é, todavia, de modo
algum facilmente compreensível sua posição sobre como esses termos
se conciliariam. Isso não decorre da inexistência de posicionamentos
pessoais de Montaigne sobre esse tema — seja mais diretamente, seja
por meio dos comentários sobre a obra de Sebond e sobre as objeções
que lhe são dirigidas. O problema resulta da trama intricada e parado-
xal que esses julgamentos, devidamente considerados, adquirem. As-
sim, talvez não seja impertinente dizer que a própria posição de Mon-
taigne sobre a conciliação entre fé e razão oferece-se ao leitor na forma
de um problema a ser resolvido, seja isso feito ou não de modo delibe-
rado. Pensamos, contudo, que o modo como a apresentação de novos
elementos no texto, em vez de aportar esclarecimentos, contribui para
aprofundar a perplexidade (tal como veremos a seguir) pode servir de
argumento em favor da primeira possibilidade — tanto mais se leva-
mos em conta que também aqui nos deparamos com procedimentos
paradoxais, como os observados no capítulo anterior. Quiçá teremos
aqui, assim, uma pista para o esclarecimento de tais paradoxos.
Quais seriam os elementos disponíveis para reconhecermos, nos
Ensaios, a presença de uma harmonização fideísta entre a filosofia cética
(isto é, a constatação filosófica cética da precariedade da razão em obter
a verdade) e a fé cristã (como instância autônoma para fundamentação
de sua Revelação)? Antes de considerarmos a enigmática introdução
da Apologia, detenhamo-nos no modo pelo qual Montaigne apresenta
os termos dessa conciliação por meio da própria figura do filosofo cé-
tico. Depois de expor e examinar o ceticismo, ele nos oferece o seguin-
te juízo acerca da “verossimilhança e utilidade” dessa filosofia. Salvo
engano, esta é também a passagem mais explícita da obra sobre a con-
ciliação entre essas duas instâncias:

75

10888_A figura do filosofo.p65 75 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

[A] Não há, na invenção humana, nada que possua tanta verossimi-
lhança e utilidade. Este [o cético] apresenta o homem nu e vazio,
reconhecendo sua fraqueza natural, próprio para receber do alto
alguma força estrangeira, desguarnecido do humano saber [science],
e tanto mais apto para alojar em si o divino, reduzindo a nada o seu
juízo para dar mais lugar à fé; [C] nem descrente, [A] nem estabe-
lecendo nenhum dogma contra as observâncias comuns; humilde,
obediente, disciplinável, estudioso; inimigo jurado da heresia, e se
isentando, por conseguinte, das vãs e irreligiosas opiniões introdu-
zidas pelas falsas seitas. [B] É uma folha em branco preparada para
receber do dedo de Deus as formas tais que lhe aprouver aí grafar…
(506).
Inegavelmente essa passagem responde ao intuito de mostrar que a
“utilidade” da filosofia cética se vincula ao fato de que tal filósofo não
é um inimigo da Igreja tradicional, e o faz explicando quais seriam, a
seu ver, as linhas gerais da acomodação conceitual entre religião e ce-
ticismo. Se os céticos adotam os “costumes” como critério para a ação
na vida comum (v. 505A), esse aspecto, por si só, pareceria conduzir a
uma espécie de adesão à religião costumeira (tal como propuseram
outros “fideístas céticos” no Renascimento). Mas isso é ainda insatisfa-
tório para caracterizar, por assim dizer, a conversão cética. Nas palavras
de Montaigne, mediante sua recusa em estabelecer dogmas, esses filó-
sofos se tornam uma “página em branco” sobre a qual pode haver uma
intervenção sobrenatural (em deferência, talvez, ao menos num pri-
meiro momento, à aceitação dos elementos próprios dessa tradição
religiosa). Como compreender esse passo? A suspensão parece surgir
como uma circunstância propícia para que, admitida a nossa “fraqueza
natural” em reconhecer a verdade e aceitar a religião costumeira, possa
a verdade se instalar em nós por uma instância sobrenatural. Tal cir-
cunstância abriria um espaço a ser ocupado pela fé e pela intervenção
sobrenatural de Deus (aqui figurada pela ação especial da mão divina,
gravando, na alma do cético, a compreensão das verdades que lhe aprou-
verem). A verdade revela-se ao cético, por meio da fé, como um adven-
to que se sobrepõe à situação natural de incapacidade de reconhecer a
verdade, por meios humanos, por intermédio dessa intervenção suple-

76

10888_A figura do filosofo.p65 76 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

mentar e extraordinária, impondo-se como um acréscimo histórico pro-


videncial da religião cristã, para além daquilo que exige a lógica inter-
na de seu ceticismo pirrônico (pois essa filosofia poderia igualmente
conduzir, como sabemos e como historicamente o fez, à aceitação de
costumes e práticas religiosas diversas, num sentido meramente relati-
vo). Importa sublinhar que o advento da fé pura surgiria aqui necessa-
riamente como o intermediário para o reconhecimento da verdade,
para além daquilo que, de um ponto de vista meramente filosófico, o
cético se veria conduzido a aceitar, do ponto de vista do emprego na-
tural de sua razão. Se eventualmente “somos cristãos como somos pe-
rigordianos ou alemães” (445A), como diz Montaigne na célebre pas-
sagem da “Apologia” (em que critica, a propósito, o vínculo usual dos
cristãos com sua religião), essa relativização seria superável por tal abraço
da fé revelador do sentido da verdade contida nos ensinamentos reli-
giosos cristãos, capaz de tornar o cético um cristão em sentido próprio,
conhecedor da verdadeira religião, que só a fé verdadeira pode aportar.
No entanto, esse esquema parece aludir apenas a uma possibilida-
de da intervenção providencial sobre-humana, exclusivamente depen-
dente da Graça divina, e apenas posterior à aceitação da religião costu-
meira (que, de saída, se faria no mesmo sentido meramente relativo
com que qualquer outro costume poderia ser ceticamente aceito como
critério para a ação). Para além dessa aceitação “fenomênica” do cato-
licismo, quais seriam as conseqüências conceituais da atualização des-
sa possibilidade sobrenatural diante da filosofia cética, caso ela ocorres-
se, segundo Montaigne? Deveria o cético, em seu entender, abrir mão
de sua suspensão do juízo, ao reconhecer essa verdade? Ou a epokhé
poderia vigorar ainda plenamente, uma vez admitida a revelação pro-
videncial da verdade pela fé, tratando-se aí de alguma verdade de na-
tureza especial, diversa daquela diante da qual se poderia instaurar a
suspensão? Sobre isso, nada se diz no texto citado. Em vez disso, a
postura religiosa de tal cético é descrita em termos eminentemente
negativos, enfatizados pelo acréscimo posterior a 1588. Montaigne li-
mita-se a dizer que o pirrônico não é herético, porque, não aceitando
nenhuma opinião, não aceita nenhuma heresia. Ele é um “não-des-
crente” (“ny mescroyant”). Significa isso que o cético necessariamente

77

10888_A figura do filosofo.p65 77 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

crê nalgum dogma? Assim como o termo “atheíste”, para um autor


francês do século XVI, não significa imediatamente “ateu”, mas sim,
literalmente, o “inimigo da religião cristã”, o termo “mescreant” signi-
fica, similarmente, “[aquele] que não crê na religião cristã”7. O não-
“mescreant”, desse modo, pode simplesmente ser aquele que não se
opõe às crenças da religião cristã, assim como o não-“atheíste” é apenas
aquele que não é inimigo do cristianismo (sem que com isso o esteja-
mos caracterizando positivamente, com base naquilo em que crê). Em-
bora a relevância dessa precisão vá se tornar mais clara adiante, pode-
mos aqui assinalar que ela contribui para que essa passagem, como se
vê por outros indícios, mantenha-se neutra quanto ao conteúdo das
eventuais crenças que tal cético admitiria. Suspendendo seu juízo, ele
deixa mais lugar para a fé. Mas em que consiste exatamente a natureza
da fé que ele pode aceitar e o espaço por ela ocupado? No caso em que
essa fé se diferencie das demais crenças humanas, graças ao modo como
formula a verdade, quais os critérios para seu reconhecimento e sua
aceitação que aqui se anunciam? Essa passagem não faz mais do que
recusar os dogmas eventualmente opostos às observâncias comuns (que
podem bem ser admitidas num sentido apenas relativo, em vista da
adoção de um critério prático) e harmonizar a defesa da religião com
a idéia da suspensão do juízo, ao menos na medida em que se pode
atacar o dogmatismo dos que a combatem, sem se posicionar sobre o
modo pelo qual positivamente um eventual aspecto proveniente da fé —
que, não fosse ela, seria recusado pelo cético como uma impostura
dogmática acerca da verdade (como será o caso na crítica das religiões
antigas) — se sobreporia, a posteriori, à suspensão. O cético é aqui
caracterizado como um advogado da religião cristã, graças à circuns-
tância pela qual sua suspensão o predispõe para a fé, mas sem que se
ofereça qualquer detalhe sobre como seu ceticismo se articulará com
a admissão de crenças, e a metáfora de que Montaigne se vale (a mão

7. Ver GREIMAS, KEANE, 1992, p. 42, 411. A referência para “atheíste” provém de
DU BELLAY, Défense et illustration de la langue française (1549), obra citada por Mon-
taigne. Veremos, porém, que o próprio texto dos Ensaios parece acomodar-se bem à
compreensão do termo nesse sentido.

78

10888_A figura do filosofo.p65 78 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

de Deus desenhando na página em branco), em vez de contribuir para


elucidar o ponto, apenas traz novos problemas, como veremos melhor
adiante8. Assim, a simples afirmação de uma postura “cristã”, não-ateís-
ta, do cético, a despeito de ser oferecida por um esquema geral sobre
o modo como esse cristianismo se sobreporia ao ceticismo, não con-
duz, à primeira vista, à compreensão da natureza filosófico-teológica
dessa acomodação entre ceticismo e religião.
Mas como pode esse esquema conceitual contribuir para a com-
preensão da posição do próprio Montaigne sobre a relação entre a fra-
queza da razão e o poder da fé em propiciar verdades? O fato é que,
para além das semelhanças que as posições que Montaigne enuncia
em seu nome efetivamente guardam, como veremos, relativamente a
esse esquema por ele atribuído aos céticos, o problema de compreen-
der a atualização da fé, em seu caso, vai adquirir uma feição particular-
mente sinuosa e paradoxal.

***
Em certa medida, tal sinuosidade parece decorrer da maneira como,
na introdução do ensaio, Montaigne enuncia dois propósitos distintos
de que se ocupará e que, ao menos à primeira vista, não parecem ter
maior relação entre si. O primeiro se apresenta em suas linhas iniciais:
[A] É, na verdade, partido bem útil e grande, a “science”. Aqueles
que a desprezam testemunham bastante de sua burrice. Nem por
isso eu estimo seu valor nessa medida extrema que alguns lhe atri-
buem, como o filósofo Herilus, que situava nela o soberano bem e
sustentava que ela nos podia fazer sábios e contentes, coisa em que
não creio, e nem no que outros disseram, que a ciência é a mãe de
toda virtude e todo vício é produzido pela ignorância. Se isso é ver-
dade, eis o objeto de uma longa investigação [interpretation]… (438).
Porém, em vez de se dirigir diretamente ao exame do valor da
science, Montaigne passa a narrar as circunstâncias particulares em

8. Ver item 2.2, a seguir.

79

10888_A figura do filosofo.p65 79 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

que seu pai tomou contato com os homens de letras que freqüenta-
vam seu castelo e, por seu intermédio, com a Teologia Natural do
teólogo catalão Raymond Sebond, que ele traduzira a seu pedido. Jus-
tificando a importância dessa obra por meio de razões diversas — sua
utilidade como meio de defesa da religião tradicional ante as novida-
des de Lutero e a popularidade pelo livro auferida, notadamente entre
as damas — ele descreve o objetivo dessa obra e passa a defendê-la de
duas espécies de objeções. São essas respostas que ele oferece a tais
objeções (articuladas à intenção de oferecer uma defesa da religião
tradicional) que, formalmente, definirão a estrutura argumentativa do
ensaio — sobrepondo-se, desse modo, sem maiores explicações, ao
objetivo de saída apresentado (objetivo que, embora não seja mais
retomado de modo explícito, voltará indiretamente à discussão e se
tornará o tema principal, enquanto Sebond, por sua vez, acabará por
ser aparentemente relegado ao esquecimento à medida que o texto
progride). Trata-se apenas da primeira curiosidade desse paradoxal
labirinto que é a “Apologia”.
Segundo Montaigne, Sebond, em sua obra, “[A] … empenhou-se
em estabelecer e verificar, por razões humanas e naturais, contra os
ateístas, todos os artigos da religião cristã…” (440). A primeira objeção
de que pretende defendê-la é a de que os cristãos se enganam ao que-
rer apoiar sua religião em razões humanas, posto que ela só se concebe
pela intervenção da fé e pela graça divina (v. ibid.) Essa objeção é
respondida ao longo das oito páginas seguintes, de modo relativamen-
te rápido, portanto, em comparação com as cento e sessenta páginas
restantes do capítulo em que Montaigne formalmente se ocupa em
oferecer uma resposta à segunda objeção. Esta, por sua vez, consiste
em alegar que os argumentos de Sebond são “fracos e ineptos para
verificar o que ele quer”, razão pela qual seus objetores se põem pron-
tamente a atacá-lo (v. 448A). E o que justifica o longo ataque à vaidade
do homem, da science e da razão que será desenvolvido no ensaio,
como parte dessa resposta, parece depender das exigências impostas
pela natureza desse segundo grupo de objetores: na medida em que
apenas aceitam, segundo Montaigne, digladiar na arena da razão hu-
mana, Montaigne se propõe mostrar, contra eles, que a razão humana

80

10888_A figura do filosofo.p65 80 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

é inteiramente cega, para minar a presunção racionalista com que pre-


tendem encontrar razões melhores que as de Sebond (v. ibid., 447-
450A). É desse modo, portanto, que Montaigne se reconduz ao obje-
tivo inicialmente formulado, aparentemente perdendo de vista o pro-
pósito explícito de dialogar com tais objetores, que não serão, de todo
modo, referidos por meio de outras caracterizações além das apresen-
tadas no início.
Em princípio, os dois objetivos enunciados não parecem ser por si
mesmos incompatíveis, e essa é uma das razões (entre outras que se
oferecerão ao longo desta análise) pela qual essa duplicidade nos pare-
ce instaurar, de modo implícito e eventualmente deliberado, o proble-
ma interpretativo central que o ensaio oferece ao seu leitor: o de saber
exatamente como se conciliam esses dois propósitos — avaliar a science
e defender Sebond. Resolvê-lo é, a um só tempo, esclarecer o julga-
mento de Montaigne acerca do valor apenas relativo da science e o
sentido em que propriamente a “Apologia de Raymond Sebond” deve
ser vista como uma apologia. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer
que a abordagem desse problema tem conexão direta com o problema
de saber como o próprio Montaigne pretenderia relacionar sua avalia-
ção do alcance de nossas faculdades cognitivas e de sua eventual con-
ciliação com a aceitação das verdades da fé.
Mas por que, antes disso, cabe esclarecer qual o sentido dessa
apologia — se é que estamos diante de uma verdadeira apologia? As
razões que o exigem começam a se apresentar quando consideramos o
juízo que Montaigne oferece, em seu nome, sobre a relação entre fé e
razão, quando introduz sua resposta à primeira objeção que acabamos
de expor:
[A] … Nesta [primeira] objeção parece que há algum zelo de pieda-
de, e por causa disso precisamos tanto mais tentar proceder com
respeito e suavidade para satisfazer àqueles que a avançam. Isso seria
antes tarefa para um homem versado em Teologia, do que para mim,
que nada sei desse assunto. Todavia, assim julgo eu: que, para uma
coisa tão divina e alta, e ultrapassando tanto a inteligência humana,
como é o caso dessa verdade que aprouve a Deus nos esclarecer, é
ainda necessário que ele nos empreste seu socorro de um favor ex-

81

10888_A figura do filosofo.p65 81 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

traordinário e privilegiado para que a possamos conceber e alojar em


nós. Não creio que os meios humanos o sejam de modo algum capa-
zes. Se o fossem, tantas almas raras e tão abundantemente guarneci-
das de forças naturais nos séculos antigos não teriam falhado, com
sua razão [discours], em chegar a esse conhecimento. É exclusiva-
mente a fé que abraça vivamente e certeiramente os altos mistérios
de nossa Religião… (440-441).
É claramente visível nessa passagem que o posicionamento de Mon-
taigne sobre o tema, como dissemos, evoca o mesmo esquema geral
fideísta apresentado em nome dos céticos. Por meio desse juízo, reto-
mado ao final da “Apologia”9, Montaigne não apenas assevera a inca-
pacidade das faculdades humanas de sustentadas por si mesmas as ver-
dades da fé, mas também argumenta em favor dessa tese ao afirmar
que, se os meios humanos fossem capazes de encontrar tal verdade, os
antigos a teriam alcançado. A bem dizer, antecipa-se aqui um primeiro
juízo de concordância com a posição dos céticos, que será posterior-
mente explicitada ao longo do ensaio, como vimos no capítulo ante-
rior. Mais ainda, se assim for, ele contribui para conferir um significa-
do histórico mais preciso ao diagnóstico sobre a precariedade da razão
no âmbito de nossa condição natural, tal como se apresenta no esque-
ma pelo qual Montaigne concebe a cristianização do pirrônico: sua
validade é situada na Antiguidade em que se formulou, e só se suprime
ou se limita (ainda que o faça de modo apenas condicional e hipotéti-
co) ante a possibilidade de um “favor extraordinário e privilegiado”
pelo qual a verdade se revela, não por meios puramente humanos (cujo
emprego pelos antigos Montaigne normalmente vê como excelente e
incomparável), mas pela fé cristã. Essa pura fé milagrosa, única media-
dora da obtenção e da compreensão humana da verdade, em confron-
tação com a conclusão cética, depende, por sua vez, exclusivamente da
intervenção especial divina para que se consume tal acesso à verdade.

9. Cf. 603-604AC. Montaigne enfatizará que essa mesma instância da fé, almejando
uma “divina e milagrosa metamorfose”, inteiramente dependente de um abraço ex-
traordinário de Deus, é a condição exclusiva de transcendermos a situação humana de
“impossibilidade de comunicação com o ser”, dado o fato de estarmos inteiramente
submetidos ao devir.

82

10888_A figura do filosofo.p65 82 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

Embora Montaigne tenha apresentado tal juízo por meio de uma


preterição — afirmando precisamente que nada sabe de teologia, a
despeito de estar emitindo tal opinião — poder-se-ia ter a impressão de
que o esquema cético-fideísta, apresentado de modo abstrato e genéri-
co em nome dos céticos, ganharia aqui algum conteúdo teológico mais
substantivo, na medida em que se acompanha de juízos sobre o “zelo
de piedade” que ele enxerga dos primeiros objetores e sobre o “desígnio
pleno de piedade” de Sebond que justifica sua defesa, por objeção ao
“ateísmo” dos segundos objetores (v. 440A). Porém, quando tentamos
aprofundar essa consideração, adentramos num outro nível de proble-
mas. Pois, se é essa a posição de Montaigne, ela parece não apenas se
confrontar diretamente com a posição do teólogo que ele alega estar
defendendo (o qual, lembremos, pretende provar todos os artigos da
religião cristã por meio de razões humanas e naturais), mas também se
identificar antes com a posição dos objetores que ele alega refutar. Não
é sem surpresa que o leitor há de constatar, com efeito, que a posição
dos primeiros objetores com relação aos papéis da fé e da razão parece
ser inteiramente análoga ao juízo que o próprio Montaigne apresenta
sobre esse tema: a razão por si só nunca pode aceder às verdades da fé.
Se essa concordância por si só já justifica uma certa surpresa — por que
objetar uma posição com a qual se está de acordo? —, convém subli-
nhar suas eventuais conseqüências. Se a crítica de Montaigne freqüen-
temente se ocupa de examinar seu suposto fideísmo, normalmente não
tem o cuidado de observar que, se Montaigne for um fideísta, se iden-
tificará à mesma posição teológica que pretende objetar e que, segundo
os traços sucintos com que é resumida, não há por que não ser consi-
derada como fideísta (na medida em que é explicitamente assumida
como uma posição religiosa sobre esse problema) (cf. 440-441).
Como proceder diante desse impasse? Devemos entender que
Montaigne, na verdade, não pretende recusar a objeção e que se trata,
por conseguinte, de uma falsa apologia? Ou devemos compreender
que, a despeito dessa aparente semelhança, cumpre demarcar alguma
diferença entre a posição de Montaigne e a dos objetores? Também
essa peripécia, em vez de criar uma inconsistência lógica no texto, pode
ser vista como mais um desdobramento do mesmo expediente: não

83

10888_A figura do filosofo.p65 83 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

somos, por seu intermédio, forçosamente conduzidos a uma questão


interpretativa intimamente ligada à discussão dos problemas teóricos já
considerados? Ela se desdobra em outras: devemos entender que Mon-
taigne e esses objetores admitem no mesmo sentido a tese de que nos-
sas faculdades são incapazes de sustentar os artigos de religião? Se as-
sim for, como compreender a distância que a relação de objeção esta-
belece entre ele e tais objetores? Qual é, alternativamente, o sentido
exato em que Montaigne a compreende, por oposição àquele que atri-
bui a tais objetores?
Talvez a elucidação do posicionamento de Montaigne dependa de
sermos capazes, alternativamente, de minimizar ou reinterpretar essa
oposição de Montaigne e de Sebond acerca do poder da razão e assu-
mirmos que há uma concordância entre ambos, com base no fato de
que Montaigne não apenas lhe dedica uma apologia, mas alega expres-
samente que a fé, vindo “tingir e ilustrar” seus argumentos, torna-os
“firmes e sólidos…” (447A). Contudo, aqui a primeira impressão descon-
certante apenas se agrava e evoca agora uma estranheza análoga à que
constatamos nas passagens nas quais Montaigne apresenta sua identi-
dade filosófica. Mais uma vez seu texto passa a exibir uma torção de
seu sentido superficial quando considerado à luz das fontes a que se
refere (não, nesse caso, os textos céticos de Sexto, mas a própria Teolo-
gia de Sebond). Não se trata, a bem dizer, de uma novidade, pois já foi
amplamente observado que, embora Montaigne ataque, de modo ex-
plícito e veemente (a partir de 448A e ao longo de todo o seu ataque à
“vaidade do homem” em julgar-se centro do universo e superior dos
animais), as “razões” que atribui aos segundos objetores, ele também
ataca, no mesmo passo, ainda que o faça de um modo clandestino e
sistemático, as próprias razões de Sebond10.

10. Ver especialmente TOURNON, 1983, p. 230 ss.; VILLEY, Les Essais, p. 436, 1277,
1278, 1281; BRAHAMI, 1996, p. 29 ss. Seria ocioso retomar os diversos e eloqüentes
exemplos com que tais comentadores recusam a hipótese de que haveria uma oposição
meramente casual ou fortuita entre Montaigne e Sebond (v., p. ex., AULOTTE, 1979).
Outro argumento decisivo contra essa hipótese é oferecidos por GRAY, 1964: Montaigne
possivelmente reviu sua própria tradução no momento em que escreveu a “Apologia”,
da qual publicou uma reedição corrigida em 1581.

84

10888_A figura do filosofo.p65 84 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

Somos assim reconduzidos à descoberta de uma aparente concor-


dância de Montaigne com os objetores de Sebond (ainda que, no caso
desses segundos objetores, se trate de uma concordância velada): jul-
gando as razões do teólogo “tão sólidas e tão firmes quanto quaisquer
outras da mesma condição que se lhes possa opor” (448A; itálicos nos-
sos), Montaigne, na verdade, parece implicitamente julgá-las, do mes-
mo modo que tais objetores, incapazes de demonstrar o que preten-
dem11. Se é assim, que sentido pode ter, nesse caso, o reconhecimento
da fé que solidifica essas razões (tal como ele alega, como vimos, no
âmbito da resposta aos primeiros objetores), se agora ele mesmo, ale-
gando responder aos segundos objetores, destrói as mesmas razões de
Sebond com as próprias mãos? Qual é aqui exatamente a distância que
o aparta desses outros objetores, caso devamos reconhecer essa concor-
dância? O que permanece justificando essa apologia, pela qual Mon-
taigne sucessivamente alega rebater objeções com as quais parece nal-
guma medida se pôr de acordo?
Segundo Tournon, tais manobras desconcertantes nos poriam diante
de um “paradoxo cético”: Montaigne, simultaneamente pró-Sebond,
ao alegar defendê-lo, e contra Sebond, destruindo seus argumentos,
pretenderia engendrar uma “suspensão” acerca do sentido do título de
seu capítulo12. Assim procedendo, agrupando as razões a favor e as ra-
zões contrárias em bloco, para opô-las, a leitura de Tournon tende a
fazer do paradoxo um meio de conduzir o entendimento ao colapso e
a convertê-lo aqui numa espécie de contradição. Mas, assim proceden-
do, essa leitura também condena a priori, talvez precipitadamente, a
possibilidade de achar uma saída do labirinto — isto é, de compreen-
der como, apesar dessas manobras, ou mesmo por seu intermédio, Mon-
taigne eventualmente empreenderia uma refutação dos objetores e uma
defesa de Sebond e da religião, em conformidade com o que afirma o
título de seu capítulo. Caminharemos na direção de uma possibilidade
de interpretação diversa, que admite, ao menos como condição para

11. Ver TOURNON, 1983, p. 243-244.


12. Ver TOURNON, 1983, p. 238 ss.; TOURNON, 1989, p. 87. Para uma discussão
mais detida de sua tese, ver EVA, 2004, cap. I.

85

10888_A figura do filosofo.p65 85 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

restabelecer a eventual coerência do texto, que o paradoxo criado no


conjunto dessas objeções e respostas seja visto, antes de mais, como a
explicitação dos problemas interpretativos rigorosos para os quais o
próprio autor exige resposta em troca de ser compreendido. Nossa hi-
pótese de leitura é a de que tais paradoxos podem ser vistos como o
meio pelo qual Montaigne precisa, de modo indireto, o sentido em que
efetivamente empreende uma apologia, ainda que esta possua um sen-
tido diverso do que parece possuir à primeira vista. Talvez tenhamos
aqui condições de compreender mais claramente aquilo que o próprio
filósofo afirma sobre o modo como os títulos dos capítulos de sua obra
acompanham o que neles ocorre13. Igualmente, talvez estejamos em
maior conformidade com o modo pelo qual ele explica desenvolver os
temas que aborda:
[B] … Eu me extravio, mas é antes por licença que por descuido.
Minhas fantasias se seguem, mas por vezes é de longe, e se obser-
vam, mas de uma vista oblíqua… [C] É o indiligente leitor que per-
de meu assunto, não eu; encontrar-se-á sempre num canto alguma
palavra que não deixará de ser bastante, ainda que seja concisa
[serré]… (III, 9, 994).
Teríamos, em suma, tão pouco direito de escamotear, em benefício
da coerência, qualquer elemento desse conjunto enigmático e parado-
xal (aí compreendido não apenas o título, mas também as passagens de
cunho “metodológico” como essa) quanto de desconfiar da própria
coerência que o autor pretendeu imprimir à obra (como quiseram al-
guns, que a consideraram o resultado de uma tentativa malfadada do
autor de harmonizar textos fragmentários produzidos com propósitos
diversos)14. Seriam, contudo, as opções a que ficaríamos reduzidos, se
não nos restasse modo mais satisfatório de compreender esse conjunto.

13. “[B] Os nomes dos meus capítulos nem sempre abraçam a matéria; freqüente-
mente eles a denotam apenas por alguma marca, como estes outros [C] títulos: o Ândrio,
o Eunuco, ou esses outros [B] nomes: Sila, Cícero, Torquato. Eu amo a progressão
poética, em saltos e cambalhotas. [C] É uma arte, como dizia Platão, leve, volúvel,
demoníaca…” (III, 9, 994).
14. Ver FRAME, 1947.

86

10888_A figura do filosofo.p65 86 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

2.2. A querela da fé e a auto-refutação cética


Passemos agora a um exame mais detalhado da posição de Mon-
taigne relativamente à relação entre fé e razão. Como vimos, respon-
dendo aos primeiros objetores, ele formula em seu nome uma posição
de aparência cético-fideísta, em modo hipotético: se pudermos conhe-
cer a verdade, inalcançável de um ponto de vista meramente humano,
em conformidade ao diagnóstico filosófico dos céticos, isso não se dará
pela nossa razão, mas apenas por uma eventual intervenção milagrosa
e extraordinária da Revelação. Mas qual o sentido preciso que essa
posição adquire em seu próprio caso? Deveria ser ela vista como a
expressão de uma plena concordância com os céticos? Ou ainda com
os objetores de Sebond (e, nesse caso, especialmente com os primeiros
objetores)? Nesse caso, por que lhes dirige uma objeção e alega defen-
der o teólogo?
Para esclarecer esse ponto, importa prestarmos atenção ao trata-
mento a que Montaigne submete — de modo implícito, por meio do
desenvolvimento da “Apologia”, na resposta aos segundos objetores —
essa hipótese de intervenção divina destinada a atualizar o conheci-
mento da verdade a que o cético se predisporia. Qual o sentido em que
se poderia compreender, segundo Montaigne, essa possibilidade? Em-
bora alguns comentadores entendam que o contexto religioso em que
ele se encontra atesta por si só uma tomada de posição fideísta efetiva,
parece-nos possível assinalar que sua posição particular é tanto menos
assimilável a um fideísmo efetivo, segundo as exigências que ele mes-
mo estipula, quanto mais estreitamente nos atemos ao panorama da
religiosidade que é descrito em seu texto.
Ainda que Montaigne alegue reconhecer a presença solidificadora
da fé nos argumentos de Sebond (num sentido até aqui enigmático,
posto que ele mesmo argumenta contra as razões desse teólogo), tal
ocorrência deveria, de todo modo, ser vista como bastante excepcional:
não apenas em vista do sentido preciso que ele parece reservar para a
noção de fé, naquilo que ela seria filosoficamente relevante (um abra-
ço sobrenatural responsável pela revelação da verdade), mas sobretudo
em face do que demonstra a situação empírica da cristandade de seu

87

10888_A figura do filosofo.p65 87 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

tempo, tal como ele a vê. A resposta à primeira objeção é repleta de


fórmulas condicionais enfáticas — como: “… se o raio da divindade
nos tocasse de algum modo, ele apareceria por toda parte…” ou “… se
tivéssemos uma única gota de fé…” (442A) —, fórmulas que, de modo
geral, anunciam hipóteses que são abertamente negadas pelo compor-
tamento dos cristãos, ligados à sua “verdade” por um vínculo menos
sólido do que aquele pelo qual muitos outros não-cristãos se ligariam às
suas crenças meramente humanas. A mesma ausência do vínculo (e,
por conseguinte, da posse da verdade no sentido próprio que fora filo-
soficamente estipulado de saída) se deixaria ver no espetáculo da pro-
funda divergência entre os cristãos franceses acerca da interpretação do
sentido da verdade revelada: “[A] … que tiram, como da cera, tantas
figuras contrárias de uma regra tão reta e tão firme…” (443), Seu único
acordo, nas palavras de Montaigne, é o de conduzir a religião segundo
mãos humanas — segundo mãos que tornam relativo tudo em que
tocam, na falta do “abraço sobrenatural” da fé.
Assim, a querela sobre o sentido da verdade revelada — fulcro dessa
divergência cristã, nesse panorama histórico particular, da qual as obje-
ções a Sebond consideradas ofereceriam dois casos exemplares — sur-
ge no texto como um signo da ausência da “fé pura” capaz de nos pôr
efetivamente diante da verdade. Pois a essência da verdade revelada
pela fé, segundo Montaigne, consiste em ser ela “uniforme e constan-
te”, manifestando-se na forma de uma clareza consensual — situação
essa que será diversas vezes, ao longo do capítulo, contraposta ao desa-
cordo que a desmente15. Em particular, os próprios textos bíblicos, base
inevitável da discussão sobre a Revelação, surgirão como um exemplo
especialmente eloqüente de como o espírito humano encontra os sen-
tidos mais controversos nos textos que se põe a folhear16. É significativo

15. Ver 553A; 562-563AB.


16. Ver 585-586A; em III, 13, 1065, Montaigne menciona os debates religiosos sobre
os textos bíblicos como exemplo da irredutível diversidade das opiniões humanas, e
observa que a citação desses textos em tais debates constitui uma tentativa inútil para
minorá-los ou estancá-los. Isso atesta, ademais, que o emprego de passagens das Escri-
turas por Montaigne não é feito segundo essa mesma pretensão de estabelecer a verda-
de. Elas são principalmente mencionadas no contexto dialético erigido pela polêmica

88

10888_A figura do filosofo.p65 88 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

que, seguindo o quarto tropo argumentativo cético de Enesidemo, ao


argumentar pela impossibilidade de reconhecer a verdade, ante a im-
possibilidade de encontrar uma posição isenta para julgar o conflito
entre as apreensões que temos das coisas segundo a diversidade das
circunstâncias, Montaigne ofereça o seguinte exemplo: “[A] … Assim
como dizemos, nos debates da religião, que precisamos de um juiz que
não esteja engajado nem num nem noutro partido, isento de escolha e
de afeição, coisa que não pode haver entre os cristãos, ocorre o mesmo
aqui…” (600; itálicos nossos).
Tal constatação, por certo, não exclui, pura e simplesmente, a
possibilidade da ocorrência da “pura fé” que condiciona a posse da
verdade. Mas essa passagem indica, ao menos, que nenhuma das po-
sições teológicas em conflito sobre o critério de interpretação da ver-
dade revelada a suplantar a diaphonía cética está autorizada a vindi-
car uma prerrogativa sobre as demais (possuindo, por força da ocor-
rência desse abraço sobrenatural, a interpretação adequada que só a
“pura fé” pode propiciar). Ao contrário, Montaigne observa o próprio
debate contemporâneo sobre o sentido da verdade revelada — ao
menos, nos termos em que concretamente se apresenta — como um
exemplo, entre outros, da disputa dogmática sobre a verdade (e, por-
tanto, como testemunho de que a verdade não se reconheça em ne-
nhuma das partes litigantes) (v. 527A). É mesmo verossímil que as
objeções a Sebond consideradas representem, nalguma medida, posi-
ções teológicas realmente sustentadas nessas controvérsias: de uma
parte, uma objeção fideísta, que se aproxima bastante de uma defesa
da religião de tipo erasmiano; de outra, uma objeção “ateísta”, em
cujo perfil se deixam ver os traços característicos das posições dos
calvinistas — que só aceitam ser refutados “pelas armas da razão” (uma
vez que elegem a razão individual como critério para a interpretação
da verdade revelada) e que, por meio dessas armas humanas, cuja
precariedade desconhecem, se dão a liberdade de se confrontar com

com objetores que, combatendo na arena da pura razão humana, não admitiriam a
alegação da pura fé como um pressuposto que “solidificaria” a veracidade dessas passa-
gens (cf. 447-449A).

89

10888_A figura do filosofo.p65 89 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

o que afirma “nossa religião”, isto é, com aquilo que aceitamos por
sua “majestade plena de autoridade”17.
Mas se esse embate acerca da interpretação da verdade, em que se
opõem os diversos “partidos” interpretativos considerados, surge, aos
olhos de Montaigne, como exemplo de uma controvérsia dogmática
(que comporta uma tentativa de estabelecer não apenas uma verdade
interpretativa, mas um critério de verdade), não deveríamos também
esperar que, de um ponto de vista cético, fosse essa uma ocasião propí-
cia para a suspensão do juízo? Eis, justamente, o que preconiza Mon-
taigne: “[C] … Na opinião de Sócrates, e também na minha, o juízo
mais sensato acerca do céu é não julgar…” (535; itálicos nossos). Mas
se cabe suspender o juízo ante as alternativas em conflito, e se a primei-
ra objeção a Sebond formula uma posição fideísta (Montaigne oferece,
efetivamente, argumentos contra essa objeção, mesmo que se detenha
especialmente em rebater a segunda), como atribuir ao próprio Mon-
taigne uma posição “fideísta”? Não seria isso inseri-lo no próprio deba-
te do qual ele pretenderia manter exterioridade mediante sua posição
suspensiva (analogamente, talvez, ao modo como seu filosofar fortuito
se pretenderia das diversas “seitas” filosóficas por ele inspecionadas, como
vimos no capítulo anterior)? Assim, a despeito do que sua alegação
poderia sugerir, quanto à semelhança com a posição dos primeiros
objetores, Montaigne, não pretendendo tomar parte nesse debate, não
pretenderia tampouco, portanto, defender uma posição fideísta. É plau-
sível reconhecer como fideísta uma posição que se abstém explicita-
mente de representar um “partido” determinado no embate teológico

17. Seria eventualmente possível encontrar uma imagem histórica real dessa oposi-
ção entre dois tipos de objetores na controvérsia entre os seguidores de Lutero e o fideís-
mo de Erasmo, analisada em POPKIN, 1979, esp. cap. 1. Segundo GRAY (1964), quando
Montaigne alega defender a princesa católica Marguerite do veneno insidioso dos
“nouveaux docteurs” que pretenderiam brilhar “a expensas de sua salvação”, refere-se
precisamente aos protestantes da corte do rei de Navarra (que tal comentador identifica
erroneamente, em nosso entender, com “céticos”). Não nos parece seguro, porém, que
Montaigne esteja aludindo, por meio dessas objeções “principais”, a personagens preci-
sos que ele se recuse a nomear, nem que isso seja necessário para compreender o sen-
tido geral de sua estratégia argumentativa.

90

10888_A figura do filosofo.p65 90 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

a que Montaigne se refere (e que seria, ademais, figurado pelas po-


sições dos adversários de Sebond, que ele alega recusar)?
Talvez se pudesse objetar que, ainda que nenhuma das versões
atualmente disponíveis da alegação da fé como manifestação da verda-
de pudesse ser aceita como tal, isso não excluiria a aceitação, por parte
de Montaigne, de uma possibilidade futura dessa manifestação — tal
como alegada na resposta à primeira objeção e que se faria suposta-
mente presente, por exemplo, nas razões de Sebond ou nos textos bí-
blicos. Na admissão dessa possibilidade estaria o contorno preciso do
fideísmo montaigniano: uma espécie de “fideísmo em potência”, por
assim dizer, de acordo com o qual se creria com a crença meramente
humana, esperando humanamente que ela mesma viesse a se transfor-
mar na pura fé graças ao insondável favor divino.
Contudo, parece-nos que as reflexões céticas que seu texto desenvol-
ve posteriormente impõem sérias dificuldades para a compreensão do
sentido em que se poderia admitir essa possibilidade. Retomemos aqui
suas críticas céticas à dimensão assertiva de nossa linguagem (v. 527A),
que constituem um momento culminante de sua condenação do antro-
pomorfismo em assuntos religiosos, desenvolvida em termos particular-
mente severos e irrestritos (mesmo que explicitamente aludindo apenas
a pagãos e maometanos)18. A solução pirrônica de que, como vimos,
Montaigne se vale para a expressão da impossibilidade de formulação da
verdade, já no uso natural da linguagem (“que sei eu?”), é parte de uma
crítica às tentativas de apreender Deus segundo esse mesmo instrumento
de conhecimento meramente humano; tentativas de transpor um abis-
mo que se revela, portanto, infinitamente mais profundo quando a ob-
tenção dessa verdade compreenderia a ultrapassagem da esfera humana.
Montaigne se vale de argumentos céticos para concluir que, quando se
refere a assuntos divinos, a linguagem se torna inteiramente ininteligível
para nós, pelo simples fato de ser vazada em termos humanos (v. 528A).

18. Tal crítica se desenvolve em grande medida na esteira dos argumentos estóicos
contra o epicurismo ventilados por Cícero no De Natura Deorum e se detém particu-
larmente no emprego de termos que tomam de empréstimo descrições relativas ao
homem para se referir à dimensão divina. Ver especialmente 514 a 523.

91

10888_A figura do filosofo.p65 91 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

No capítulo anterior, observamos que a solução de Montaigne, à


primeira vista, poderia sugerir uma espécie de ressalva ante a posição dos
pirrônicos, ao admitir que o caráter afirmativo da linguagem lhes seria
problemático e, graças a isso, eles seriam forçados a buscar subterfúgios
para poder contornar esse problema e exprimir sua concepção suspensi-
va. Porém, como vimos, aquela aparente recusa não apenas dá lugar a
uma fórmula igualmente pirrônica sustentada pelo próprio Montaigne
(o próprio “que sei eu?”), mas também surge como uma etapa da apre-
sentação de um problema cético ainda mais radical: dizer que a dimen-
são afirmativa da linguagem é problemática já no âmbito humano e na-
tural destina-se a sublinhar, comparativamente, que essa dimensão afir-
mativa é infinitamente mais problemática quando a linguagem humana
pretende dizer algo sobre aquilo que transcende nossa dimensão. Seriam
essas considerações irrelevantes para o uso que o próprio Montaigne faz
da linguagem quando formula sua hipótese fideísta? De que verdade
poder-se-ia tratar, segundo um eventual fideísmo hipotético, se o simples
caráter afirmativo da linguagem em que essa própria hipótese fideísta se
formula (isto é, o caráter afirmativo da linguagem empregada pelo pró-
prio Montaigne) seria, segundo ele mesmo, ainda menos aceitável para
a formulação de uma verdade do que ele o seria para os céticos (caso para
eles fosse efetivamente inaceitável)? Ou devemos, também aqui, admitir
que Montaigne argumenta, distraidamente, contra as próprias posições
que apresenta, tal como alvejaria casualmente as posições de Sebond?
Talvez se pudesse novamente objetar, alegando agora que estamos
desprezando as ressalvas de Montaigne, ao final do capítulo, sobre a
possibilidade de uma “divina e miraculosa metamorfose” — de tal ordem
que, embora inteiramente inconcebível diante das dificuldades lógico-
lingüísticas ora consideradas, viesse justamente revogá-las e garantir a
compreensão dos textos em que essa verdade poderia de algum modo
se manifestar. E, vistos em detalhe, os termos nos quais ele formula seu
critério “fideísta”, na resposta à primeira objeção, parecem se adequar
a essa possibilidade interpretativa19. Tal critério comportaria, assim, dois

19. “[A] … assim julgo eu: que, para uma coisa tão divina e alta, e ultrapassando
tanto a inteligência humana, como é o caso desta verdade que aprouve a Deus nos

92

10888_A figura do filosofo.p65 92 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

momentos distintos: (i) a revelação como ação da Graça divina, propi-


ciadora da verdade inalcançável pelo homem (por intermédio do texto
bíblico, por exemplo, embora numa linguagem pela qual não a pode-
mos atualmente compreender); e (ii) uma ação suplementar da Graça
que criaria as condições para podermos ter acesso a essa verdade. Pode-
mos tentar ainda, para levar às últimas conseqüências essa hipótese,
supor que, embora Montaigne não o afirme, essa ação suplementar da
Graça se manifeste para a compreensão do próprio sentido do critério
de acesso à verdade revelada, ainda que seja ele formulado na lingua-
gem humana dos Ensaios, tornando compreensível o sentido da pró-
pria “hipótese fideísta”, em sua formulação condicional, por meio des-
ta sentença: “se a pura fé se manifestar, então veremos a verdade”.
Ascendemos aqui, porém, apenas a um novo degrau das dificulda-
des céticas: tal suposição mostra que as conseqüências da argumenta-
ção de Montaigne contra o critério de verdade, nesse caso particular,
são ainda mais drásticas e, ao mesmo tempo, permitem aproximá-las
mais, de modo mais preciso, dos argumentos do ceticismo antigo, mesmo
que por um viés novamente inesperado. Consideremos os argumentos
de Montaigne contra as interpretações da Providência Divina, pelos
quais ele ataca concepções estóicas e epicuristas que julga comparti-
lhadas por “alguns cristãos” (v. 528A), e que complementam a mesma
discussão sobre a distância intransponível entre o homem e Deus. Em
síntese, não temos, ante a mesma limitação de nossas medidas huma-
nas, como discernir a presença de uma ação direta da Providência (ou
um “abraço extraordinário” de Deus) do idêntico acaso com que todos
os eventos parecem se apresentar de um ponto de vista humano:
[C] Como se fosse a ele menos ou mais remover um império ou a
folha de uma árvore, e a sua providência se exercesse de modo outro
inclinando os eventos de uma batalha e o salto de uma pulga! A mão
de seu governo se presta a todas as coisas com igual firmeza, mesma
força e mesma ordem. Nosso interesse aí nada conta, nossos movi-
mentos e nossa medida não o tocam… (529).

esclarecer, é ainda necessário que ele nos empreste seu socorro de um favor extraordinário
e privilegiado para que a possamos conceber e alojar em nós…” (441; itálicos nossos).

93

10888_A figura do filosofo.p65 93 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Não estaria aqui igualmente comprometida a possibilidade de re-


conhecer um segundo abraço sobrenatural, que garantiria, segundo a
hipótese interpretativa considerada, o acesso à verdade supostamente
oferecido pelo primeiro?
Alguns comentadores opinaram que o fideísmo de Montaigne deve
ser compreendido como uma postura teológica próxima da que encon-
tramos em Agostinho20, que distingue a Graça no sentido próprio, como
dom sobrenatural de Deus, e a Graça compreendida como concurso
divino para a totalidade das coisas na sua existência21. Enquanto a Gra-
ça ordinária é admitida num sentido trans-histórico, em conformidade
com a admissão de que o ser de todas as coisas existentes provém da
onipotência e da bondade do Ser supremo que é sua causa, a Graça no
sentido próprio concerniria especialmente à história pós-lapsária, em
que o homem, devido ao pecado original, teria deixado de gozar do
contato imediato com Deus que caracterizaria sua situação primeira.
Nesse sentido, a Graça seria entendida como uma intervenção divina
particular que, sem interferir no livre-arbítrio humano, ofereceria aos
eleitos uma espécie de chamado para a fé, encaminhando-os a uma
superação da condição pecaminosa do homem como seu destino
supraterreno. Não poderia Montaigne, ao formular sua hipótese acerca
de um segundo abraço sobrenatural, aludir à Graça nesse segundo
sentido, ao passo que se valeria da Graça ordinária para aludir ao modo
como a mão divina se prestaria igualmente a todas as coisas?
Parece-nos que não. No âmbito da teologia agostiniana, o sentido
que ganha essa distinção entre a Graça ordinária e a Graça especial
depende inteiramente de outros aspectos doutrinais, ausentes dos En-
saios: em parte alguma, nesse ou noutro capítulo, Montaigne faz qual-
quer referência a uma duplicidade da natureza humana de índole re-
ligiosa, nem à doutrina cristã da queda, nem mesmo à figura do Cristo
como redentora da condição de pecado. Ao contrário, quando comen-
ta, por exemplo, os temas relativos à tradição cristã da miseria e da
dignitas hominis, discutindo a posição dos homens relativamente às

20. Ver LIMBRICK, 1995, p. 81.


21. Seguimos aqui GILSON, 1987, esp. p. 197-198.

94

10888_A figura do filosofo.p65 94 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

demais criaturas, temas que são usuais na literatura teológica do perío-


do, ele recusa a hierarquia tão essencial à perspectiva agostiniana do
reconhecimento de uma ordenação divina no mundo, afirmando, em
seu lugar, a uniformidade da natureza:
[A] Eu disse tudo isso [sobre os animais] para sustentar a semelhança
que aí há com as coisas humanas, e para nos reconduzir e juntar ao
seu número. Nós não estamos nem acima nem abaixo do resto: tudo
o que está sob o Céu, diz o sábio, corre sob uma lei e fortuna seme-
lhante… Há alguma diferença, há ordens e graus, mas é sempre sob
a face de uma mesma natureza… É preciso constranger o homem e
situá-lo nas barreiras dessa ordem [police]. O miserável não cuidou
de não pular, de fato, além daí; [mas] ele está submetido e engajado,
ele está sujeito à mesma obrigação que as outras criaturas de sua
ordem, e é de uma condição bem mediana, sem nenhuma prerroga-
tiva e precedência verdadeira e essencial… (459)22.
A própria citação bíblica (situada no regime da resposta à segunda
objeção e, portanto, no mesmo nível “meramente humano” de todas as
demais razões) é aqui empregada para corroborar a idéia de que nossa
situação não nos confere nenhuma prerrogativa ou privilégio excepcio-
nal — ou, nos termos da discussão sobre a providência, não nos revela
a presença de nenhuma ação especial da Providência que nos elevaria
para além desse âmbito geral em que se encadeiam naturalmente os
fatos. Assim, a exigência, explicitamente formulada, de uma ação espe-
cial da Graça como condição de acesso à verdade, em vez de resolver
o problema, apenas contribui para impedir que a primeira suposição
(de uma intervenção geral de Deus no mundo que estaria além de
nossa compreensão) possa ter, ela mesma, qualquer conteúdo preciso
— que conduza, por exemplo, a tomar a gradação dos seres naturais

22. Nessa passagem, Montaigne pretende apresentar um critério para considerar o


estatuto humano na criação alternativo ao determinado pelo embate tradicional entre
as defesas da miseria e da dignitas hominis. Só é possível, assim, tomar Montaigne e seu
ceticismo como representantes da miseria hominis, como o faz Pascal, contra sua inten-
ção explícita (v. Pensées, § 109, 131, 430, 577; cf. CARRAUD, 1992, p. 81 ss.) Ver ainda,
a esse respeito, a crítica de Montaigne acerca do modo pelo qual a religião pode induzir
o homem a ignorar sua própria natureza, em III, 13, 1115.

95

10888_A figura do filosofo.p65 95 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

como sinal de uma intervenção particular de Deus na criação. Se a


Graça especial é condição de acesso e compreensão da verdade, e se,
em sua ausência, não temos acesso atual a essa verdade (pois tal é a
condição natural com base na qual nos situamos para considerar essa
possibilidade), isso significa que não podemos conferir à Graça ordiná-
ria qualquer sentido pelo qual ela se distinga, seja em que sentido for,
da mera manifestação do phainómenon — pela qual o cético reconhe-
ce a diversidade da ordem e os graus com que a natureza se oferece
relativamente à experiência humana, bem como o modo aparentemente
casual com que os eventos se sucedem (mesmo sem poder identificar
essa percepção do “acaso” percebido como uma explicação última da
natureza das coisas).
A essa dificuldade somam-se outras que já anunciamos: se os sen-
tidos contidos na linguagem humana a tornam radicalmente incapaz
de dizer compreensivelmente algo sobre os assuntos divinos, como
poderemos conferir um sentido humanamente compreensível à sua
própria descrição dessa intervenção constante da “mão de Deus”, que
se prestaria ao salto da pulga e ao resultado da batalha com igual firme-
za, ou ainda à hipótese de um “abraço” sobrenatural da fé, bem como
à caligrafia da mesma “mão divina” na página em branco das crenças
céticas não-ateístas? Se Montaigne afirma ser necessário ir além de
Agostinho e, para refutar os “ateístas”, mostrar a completa cegueira da
razão, tal desenvolvimento acaba finalmente por se incompatibilizar,
ao que parece, com um esquema teológico de natureza agostiniana.
Assim, os argumentos que precisam as condições de acesso do
homem à dimensão divina, no âmbito da resposta à segunda objeção,
em nada auxiliam para que o suposto fideísmo de Montaigne possa ter
seu sentido teológico delineado. Muito ao contrário, eles parecem
comprometer radicalmente a própria compreensibilidade de sua hipó-
tese fideísta e a tentativa de determinar sua perspectiva teológica pró-
pria, e que poderia eventualmente ser distinta daquela que ele atribui
aos primeiros objetores de Sebond. E o problema se torna ainda maior
se lembramos que a doutrina agostiniana da Graça serviu como fonte
de inspiração teológica às diversas versões reformistas do critério de
interpretação das Escrituras. Depois de ter afirmado que é igualmente

96

10888_A figura do filosofo.p65 96 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

impossível, ante os debates teológicos dos cristãos e ante as circunstân-


cias de apreensão conflitantes, encontrar um “juiz isento” que pudesse
abolir a suspensão do juízo cética, Montaigne conclui sua apresenta-
ção dos tropos de Enesidemo desenvolvendo-os, na pista de Sexto, se-
gundo os problemas lógicos que evocam:
[A] … Para julgar as aparências que recebemos dos objetos, precisa-
ríamos de um instrumento judicatório; para verificar esse instrumen-
to, precisamos de uma demonstração; para verificar a demonstração,
um instrumento: andamos em círculo. Posto que os sentidos não po-
dem decidir essa disputa, estando eles mesmos plenos de incerteza,
é preciso que seja a razão; nenhuma razão se estabelecerá, porém,
sem outra razão: eis que recuamos até o infinito… (600-601)23.
Como determinar a ocorrência de um segundo “abraço sobrenatu-
ral”, condição de compreensão adequada da verdade que apenas o
primeiro ato da revelação poderia ter mostrado, se observamos o pro-
blema por essas lentes céticas? Não recaímos igualmente no dilema aí
exposto? Ou bem precisaríamos de um terceiro “abraço” sobrenatural,
como garantia de que o segundo que pretendêssemos alegar fosse ver-
dadeiramente divino e efetivamente garantisse a compreensão da ver-
dade oferecida pelo primeiro, e assim por diante, numa regressão ao
infinito. Ou então se tratar de circularidade, pois afirmar que ocorre
um segundo “abraço sobrenatural”, necessariamente distinto do pri-
meiro (posto que seria uma garantia de que compreendemos a veraci-
dade deste), é pressupor exatamente o que necessita de prova, isto é,
que ocorre alguma determinada ação particular e privilegiada de Deus
para com o homem. Afirmar que a verdade já se encontra revelada no
texto das Escrituras, como vimos, não resolve o problema, que é o de
decidir qual de suas diversas interpretações possíveis representa a ver-
dade. Nossa incapacidade de reconhecê-la é testemunhada pela pró-
pria existência do conflito interpretativo (ressalvando-se, é claro, uma
intervenção privilegiada de Deus como critério de verdade que fosse
capaz de suprimir as causas dessa divergência).

23. Ver HP I, 169. Montaigne emprega aí os tropos da regressão ao infinito e da


circularidade, que Sexto atribui a Agripa.

97

10888_A figura do filosofo.p65 97 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Assim, quando atinamos com os problemas implicitamente instau-


rados por essa argumentação cética, pomo-nos diante de uma perplexi-
dade culminante, se assim podemos dizer, das demais reviravoltas ar-
gumentativas que já observamos nessa tortuosa “Apologia”. Em vez de
uma acomodação entre ceticismo e fideísmo, o que observamos é que
Montaigne efetivamente parece argumentar, de forma indireta porém
sistemática, não apenas contra Sebond, mas também contra as próprias
posições teológicas que aparenta assumir (em aparente acordo com os
objetores de Sebond que alega refutar). Seria tão inverossímil admitir
que isso se faz de modo casual, quanto o seria admitir que ele se opõe
despercebidamente às posições desse teólogo. Ainda mais porque esse
estranho procedimento parece ser confirmado por esta outra passagem
intrigante, que versa, precisamente, sobre os perigos do método ora
empregado na defesa de Sebond:
[A] … pois este último golpe de esgrima aqui [usado] não deve ser
empregado senão como um remédio extremo. É um golpe desespera-
do, este pelo qual é preciso abandonar as próprias armas para fazer com
que vosso adversário perca as dele, e um golpe secreto, do qual é preciso
se servir raramente e reservadamente. É uma grande temeridade de per-
der-vos a vós mesmos para derrotar um outros… (558; itálicos nossos)
Não é, portanto, apenas contra os objetores que se argumenta ex-
plicitamente, ou contra Sebond, implicitamente, mas o próprio Mon-
taigne é trespassado pela mesma espada cética que emprega. Tratar-se-
ia de um ferimento acidental? A solução proposta pelos calvinistas para
garantir a razão individual como critério de interpretação da verdade é,
precisamente, a suposição de que Deus elege particularmente alguns
fiéis como aqueles cuja persuasão racional acerca da verdade, dentre
outras possíveis, é a verdadeira. Tal critério, de inspiração agostiniana,
que igualmente pressupõe uma dupla intervenção divina, foi cetica-
mente criticado, pela circularidade que instaura, nos próprios debates
religiosos contemporâneos da “Apologia”24. Seria inverossímil supor,
igualmente por razões históricas e filosóficas, que Montaigne não tives-

24. Ver CURLEY, 1975, p. 11; POPKIN, 1979, p. 10.

98

10888_A figura do filosofo.p65 98 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

se ciência dessa crítica ao calvinismo. Mais fácil, ante tal panorama, é


admitir que ele não se vale explicitamente desse mote comum quando
alveja os segundos objetores de Sebond — a despeito de mobilizar,
como vimos, vasta argumentação cética — porque reservou para ele
um fim mais “secreto e raro”, como diz: o de empregá-lo para destruir
indiretamente a própria posição “fideísta” que implicitamente parecia
ter esposado (levando indiretamente, de roldão, a posição efetivamente
fideísta dos primeiros objetores), assim como destrói, de vários modos
e segundo graus diversos de explicitação, a posição dos reformistas e os
argumentos de Sebond. Teríamos aqui não apenas uma argumentação
cética generalizada contra as diversas posições apresentadas, mas tam-
bém um exemplo prático da argumentação cética em sua dimensão
auto-refutatória, tal como o próprio Montaigne a caracterizaria em en-
saios mais tardios25.
A que viria essa surpreendente e, de certo modo, confessada “au-
todestruição” cética, no contexto preciso da “Apologia”? Pensamos que
ela pode ser compreendida como um expediente para diferenciar indi-
retamente sua posição (cética) daquela que ele mesmo apresenta como
a posição (teológica) dos primeiros objetores criticados. Havíamos visto
que o fato de ele alvejar (embora clandestinamente) razões análogas às
de Sebond, ao longo da resposta à segunda objeção, mostra que seu
juízo sobre seu poder probatório não parece ser tão diverso do juízo que
fazem, acerca de sua solidez, esses objetores, que as refutam abertamen-
te. Isso não significa que Montaigne não veja motivos para refutar esses
mesmos objetores — em vista da arrogância, por exemplo, com que
pretendem ser capazes de conhecer racionalmente a verdade acerca dos
assuntos celestes — e para defender Sebond contra essa atitude refuta-
tória, ainda que não seja pela solidez demonstrativa de sua teologia. Mas
se, ao responder aos primeiros objetores, ele assume, em aparente con-
cordância com eles, uma tese ambígua — “se tivermos acesso à verdade,
isso não se dará por nossos meios humanos” —, que pode tanto ser to-
mada como uma posição teológica quanto corresponder às suas posi-

25. Ver, por exemplo, III, 8, 929.

99

10888_A figura do filosofo.p65 99 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ções céticas sobre o alcance da razão, o que Montaigne estaria destruin-


do indiretamente, por meio de seu ceticismo, é justamente a possibili-
dade de interpretarmos sua hipótese, segundo seu próprio texto, como
uma adesão a alguma versão da “lei de fé” e como inserção no debate
dogmático que ele pretende recusar. Sua estratégia seria, por assim di-
zer, a de inocular um critério de verdade reconhecidamente precário (o
“duplo abraço”, que poderia passar, à primeira vista, como sua posição
nesse debate, mas foi proposto, como sabemos, por reformistas que esta-
riam antes alinhados com os objetores a ser refutados) em sua defesa de
Sebond, cujas razões seriam igualmente destruídas de modo indireto.
Feito o saldo da batalha, nenhum dos contendores, nem Montaigne,
poderia ter qualquer das razões propostas aceitas como critério de verda-
de ante a dúvida cética26. Tenha o sentido que tiver, assim, a fórmula de
Montaigne sobre a possibilidade de acesso à verdade, podemos ver que
ela não pode se confundir com um testemunho pessoal de adesão a um
fideísmo que conduzisse a uma verdade limitadora das conclusões céti-
cas (nem mesmo a compreensibilidade de sua simples hipótese).
Levando adiante a mesma metáfora médica, pode-se dizer que se
trata, por meio do paradoxo, de vacinar o próprio texto contra a “doen-
ça” que, a seu ver, assola a cristandade, degenerando-se em “ateísmo”,
isto é, em destruição da ordem institucional político-religiosa vigente,
por meio das guerras civis (v. 439). Que doença é essa? Os mesmos
textos céticos nos permitem aqui diagnosticá-la como a própria contro-
vérsia sobre o sentido da verdade revelada, resultante da “doença natu-
ral do homem” em julgar-se capaz de conhecer a verdade. Segundo
Montaigne, como veremos melhor adiante, há um vínculo entre essa
pretensão de redefinir os critérios de interpretação da Verdade Revela-
da — a “caixa de Pandora” aberta, segundo Popkin, pelos reformistas
— e tais conseqüências políticas e sociais especialmente indesejáveis.

26. Torna-se assim igualmente compreensível por que Montaigne enfatiza de modo
hiperbólico (e mesmo caricatural) a maneira como os filósofos céticos estariam total-
mente desincumbidos de defender qualquer tese, nestes termos precisos: “[A] Eles se
propiciaram uma maravilhosa vantagem no combate, estando desincumbidos do cuida-
do de se manter em guarda. Não lhes importa ser atingidos, desde que também atinjam;
e valem-se de tudo para suas necessidades…” (504).

100

10888_A figura do filosofo.p65 100 28.03.07, 16:01


A esgrima cética

Notemos, finalmente, que essa postura argumentativa é coerente


com a recusa de um determinado uso da razão, diretamente ligado à
pretensão de estabelecer a verdade, mas não conduz a nenhum irracio-
nalismo. Desse uso dogmático, as posições de Sebond, dos reformistas
e mesmo a própria posição fideísta seriam apenas versões diferentes,
nenhuma das quais capaz de suplantar o diagnóstico dos céticos acerca
do desconhecimento humano da verdade. Para nos valermos ainda de
outra metáfora pirrônica que o próprio Montaigne emprega, temos aqui
um exemplo peculiar da purgação pela qual esses filósofos caracteri-
zam o sentido de sua argumentação, dizendo que suas proposições se
expelem juntamente com as proposições dogmáticas a que se contra-
põem, assim como os laxantes se expelem com os humores nocivos27.
Mas, se algo é tragado por esse paradoxo cético, trata-se da possibilida-
de de ler Montaigne como um fideísta, identificando-o com a posição
dos primeiros objetores, e não, como pensou Tournon, do sentido de
sua “Apologia” — que permanece, portanto, potencialmente compreen-
sível como uma verdadeira apologia, ainda que seu sentido seja carente
de esclarecimento, uma vez que não pode residir numa defesa da obra
em vista de seu poder de demonstrar as verdades da fé por meios pura-
mente humanos e naturais.

2.3. O ceticismo e o valor social da piedade


Examinemos agora se o ceticismo antigo não permite igualmente
iluminar o eventual aspecto apologético do texto de Montaigne. Os
mesmos textos céticos que viemos examinando parecem oferecer pelo
menos duas pistas para a compreensão das motivações e da natureza da
defesa de Sebond, que iremos considerar, respectivamente, nos dois
próximos itens deste capítulo.
De início, é preciso destacar o comentário de Montaigne ao diag-
nóstico da “doença” reformista, que atribui a Pierre Buñel (embora o
endosse pessoalmente), por meio do qual ele nos oferece importantes

27. Ver 527A, em que o próprio Montaigne explica a metáfora pirrônica, tomada de
Sexto (HP I, 46), que retomaremos adiante.

101

10888_A figura do filosofo.p65 101 28.03.07, 16:01


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

elementos para a compreensão da utilidade particular que enxerga na


Teologia Natural de Sebond. Tendo presenteado o pai de Montaigne
com um exemplar dessa obra,
[A] … [Buñel] recomendou-o a ele como livro muito útil e apropria-
do aos tempos em que lho dava: era quando as novidades de Lutero
começavam a ganhar crédito e abalar, em muitos lugares, a nossa
antiga crença. Nisso ele teve grande clarividência, prevendo bem,
pelo discurso da razão, que esse começo de doença facilmente se
agravaria num execrável ateísmo, pois o vulgo é desprovido da facul-
dade de julgar as coisas por si mesmas, deixando-se levar pelo acaso
e pelas aparências: bastou deixar ao seu alcance a ousadia de despre-
zar e administrar as opiniões que recebera até então em extrema re-
verência, como são aquelas que tocam sua salvação, e pôr alguns
artigos de sua religião em dúvida e na balança, para que tão logo ele
facilmente jogasse na mesma incerteza todas as outras partes de sua
crença, que não tinham para ele mais autoridade ou fundamento
que aquelas que foram abaladas. E ele sacode, como um jugo tirâni-
co, todas as idéias que admitia pela autoridade das leis ou por reve-
rência do antigo costume, [B] Nam cupide concultatur nimis ante
metutum; [A] dispondo-se doravante a não admitir nada a que não
interpôs seu veredicto e deu particular consentimento (439).
Eis aqui um cético que não se furta a admitir que alguns raciocí-
nios podem ser melhores do que outros para avaliar o encadeamento
dos eventos históricos. Ainda num outro sentido, porém, tais conside-
rações de Montaigne não são inteiramente originais. Situando-se numa
espécie de prólogo do ensaio, elas possuem analogias com o que se
encontra no preâmbulo do diálogo Da natureza dos deuses, de Cícero,
no qual as argumentações céticas desse ensaio freqüentemente se mo-
delam. Ali, Cícero explica que irá examinar o controvertido problema
da providência divina, segundo as diversas posições defendidas pelas
filosofias dogmáticas (v. Dnd, I, 1-4). Embora se detenha, ao longo de
todo o diálogo, num minucioso exame dos principais discursos filosófi-
cos disponíveis sobre o tema (as teologias dos epicuristas e dos estói-
cos), à espera de que a verdade possa se impor com evidência, ele an-
tecipa sua concordância com a suspensão do cético acadêmico Car-

102

10888_A figura do filosofo.p65 102 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

néades ante a questão e afirma crer que tal exposição deixará antes
claro para o leitor que se deva constatar a impossibilidade de reconhe-
cer a verdade (Dnd, I, 13-16). Isso não o impede, contudo, de oferecer
a seguinte ponderação acerca dos problemas atinentes a esse tema:
Mas se, ao contrário, os deuses não possuem nem o poder nem a
vontade de nos ajudar, se eles não velam por nós nem se apercebem
de nossas ações, se eles não podem exercer nenhuma influência
possível na vida dos homens, que fundamento nós temos para prestar
qualquer espécie de culto, honra ou prece aos deuses imortais? A
piedade, como todas as demais virtudes, não pode existir como mera
simulação; sem a piedade, a reverência e a religião necessariamente
desaparecem. Estas, quando se vão, deixam a vida em desordem e
confusão; com toda a probabilidade, o desaparecimento da piedade
para com os deuses irá gerar o desaparecimento da lealdade e da união
social entre os homens, bem como da própria justiça, a rainha das
virtudes (Dnd, I, 5; itálicos nossos).
Essa passagem mostra que, aos olhos de um cético acadêmico, a
idéia de uma adesão sincera a valores, religiosos ou não, não deve se
opor à suspensão do juízo. Embora admita que tais crenças não corres-
pondem ao conhecimento de verdades, ele pode, ainda assim, reco-
nhecer que são indispensáveis para a manutenção da sociedade e para
a boa consecução da vida prática, havendo assim uma razão de ordem
pragmática que torna justificada ou mesmo necessária a adoção de tais
crenças. A despeito das diferentes interpretações a que pode se prestar
esta reflexão, desejamos chamar a atenção para o fato de que, tanto em
Cícero como em Montaigne (como também se pode verificar noutros
textos de proveniência neo-acadêmica28), o valor da crença na interven-
ção dos deuses no mundo é diretamente vinculado à regulação das
relações sociais entre os homens — mais precisamente, à manutenção
da própria sociedade. Há conveniência em preservar a crença na inter-
venção dos deuses no mundo porque a dúvida acerca desse ponto é
potencialmente problemática para a maneira como a religião contribui
para a coesão social. Parece-nos igualmente possível, contudo, assina-

28. Ver PLUTARCO, “Contre Colotes”, in Oeuvres Morales, 598 C-D.

103

10888_A figura do filosofo.p65 103 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

lar uma diferença no modo como essa mesma consideração é desen-


volvida nos dois autores, e que, embora discreta, não nos parece des-
provida de conseqüências. Cícero se detém numa reflexão de caráter
mais geral e conceitual sobre a inconsistência que haveria numa pieda-
de não dissimulada, como nas demais virtudes. Montaigne, de sua parte,
focaliza um caso particular: para o vulgo cristão a reverência à autori-
dade civil é diretamente identificada à crença na autoridade religiosa
tradicional. Não é possível, por ora, saber como se generalizaria tal
juízo, nem mesmo saber como isso poderia eventualmente justificar
uma adesão pessoal a crenças cuja veracidade não pode ser atestada.
De todo modo, essa aproximação ajuda a compreender por que, já na
“Apologia”, as metáforas militares ganham um papel de destaque para
aludir à argumentação cética, que ainda se deixará ver em textos tar-
dios. Por seu intermédio, Montaigne efetivamente alude àquela que,
segundo esse texto, seria a motivação central de sua defesa de Sebond
e da religião: a Reforma é um “princípio de doença”, não apenas na
medida em que traz consigo a presunção dogmática, mas sobretudo
na medida em que conduz à destruição da religião — uma vez que é
movida pela presunção de abalar as antigas crenças em nome da pre-
tensão de dispor de outras racionalmente mais sólidas — e, por exten-
são, à desagregação social.
Eis, assim, como o ceticismo provê Montaigne de um esquema
conceitual para refletir sobre as guerras de religião. Se a presunção
dogmática, de um ponto de vista cético, é de modo geral nociva, agra-
va-se perante a incapacidade de “julgar as coisas por si mesmas” do
vulgo, incapaz de discernir a autoridade religiosa da autoridade políti-
ca. A Reforma torna-se, assim, um objeto de preocupação central nos
Ensaios (em contraposição ao problema estrito da capacidade da pura
fé de propiciar uma verdade, que apenas é diretamente considerado na
“Apologia”), em vista, sobretudo, do modo como a atitude reformista
constitui um motor das guerras de religião que, uma vez em marcha,
leva além da dimensão propriamente teológica do problema29. Isso nos

29. Isso não significa que os argumentos montaignianos relativos ao problema do


conhecimento de Deus, ainda que formulados com base nas religiões antigas e na dos

104

10888_A figura do filosofo.p65 104 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

permite compreender melhor as motivações do assim denominado “con-


servadorismo” montaigniano (termo que, em vista disso, só caberia
empregar num sentido qualificado), pelo qual se exige que a religião
seja considerada “em bloco”30. Se, mesmo mediante um exame mais
refinado, o vínculo “teórico” entre os elementos que integram o conjunto
de crenças constituintes da religião pode se revelar incompreensível,
não se tornam essas mesmas dificuldades tanto mais graves quando
consideradas do ponto de vista daqueles que são simplesmente incapa-
zes de bem julgar, e aceitam indistintamente a autoridade política e
religiosa? Compreende-se por que Montaigne alude freqüentemente
ao party católico ou protestante para designar a própria religião, sem
dissociá-lo de suas dimensões políticas31.
Veremos adiante por que a adesão cética de Montaigne ao catolicis-
mo “em bloco” não equivale — nem poderia equivaler — a uma ade-
são irrestrita, de sua parte, a toda e qualquer forma de autoridade da
religião tradicional. Por ora, importa destacar que suas reflexões se pau-
tam pela consideração, nas questões atinentes aos critérios de ação
política, da maneira pela qual os homens empiricamente assentem à
autoridade. Trata-se de um aspecto essencial que deve nortear o juízo
sobre a utilidade ou risco de questionar as opiniões em voga, bem como
sobre o valor dos argumentos disponíveis. Como diz ele, em vista de sua
própria experiência: “[A] Eu sei de um homem de autoridade, educado
nas letras, que me confessou ter se recuperado dos erros da descrença

maometanos, não sejam desprovidos de implicações filosófico-religiosas. Segundo Curley,


eles contribuíram, possivelmente, para Descartes abandonar a Teoria das Verdades Eter-
nas, tal como formuladas nas Regulae, em virtude de uma “crise cética” que teria tido
lugar por volta de 1628, bem como da necessidade cartesiana de questionamento das
“certezas naturais”, tal como formuladas nas Meditações por meio do argumento do
gênio maligno. Ver CURLEY, 1978, cap. 2, p. 35 ss., esp. p. 38.
30. Ver I, 27, 181-182A ss.
31. Esse termo, no moyen français, possui um leque semântico amplo e fluido, po-
dendo significar “parte” (de um todo), “partido” (tomada de posição numa disputa,
política ou não), “partida” (de um jogo) ou simplesmente “qualidade”. (v. GREIMAS,
KEANE, 1992, p. 460). Sobre o vínculo indissociável entre autoridade política e religiosa
nas guerras de religião francesas, ver FRIEDRICH, 1968, p. 125-129. Sobre o conservado-
rismo montaigneano, ver, além da referência anterior, STAROBINSKI, 1993, p. 246;
FARQUHAR, 1991, p. 27; CARDOSO, 1996, p. 190; SMITH, 1996.

105

10888_A figura do filosofo.p65 105 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

por intermédio dos argumentos de Sebond…” (448). Se tal é seu poder


mesmo em face de um homem letrado, seria o vulgaire, diante de uma
obra particularmente popular, menos predisposto à aceitação dos argu-
mentos que Sebond oferece em defesa da religião tradicional?32
Embora nossa referência aqui seja a uma fonte acadêmica, esta
parece ser vista por Montaigne, mais uma vez, como harmônica com
o pirronismo, no que tange a seu tratamento filosófico da religião. Pir-
ronicamente, a adesão aos costumes como critério para a vida prática
pode se articular a um “fideísmo” genérico, que, apresentado de modo
distanciado e neutro quando se refere ao cético em terceira pessoa, lhe
serve também para uma primeira exposição de sua posição (para ser
submetido ao tratamento suspensivo analisado no item anterior). Aca-
demicamente, a suspensão, ao se conciliar com a aceitação da autori-
dade religiosa, permite sublinhar a importância das crenças costumeiras
para a organização da vida comum. Esse segundo vetor cético conduz
a discussão montaigniana dos problemas político-religiosos a uma di-
versificação do critério para a apreciação das razões em pauta: não se
trata apenas de observá-las do ponto de vista da “verdade” teológica que
permitiriam formular (posto que todas as razões em conflito acerca desse
ponto se situariam no mesmo nível quanto a seu poder de estabelecê-
la), mas também segundo sua “utilidade” (v. 512C)33. A crítica à Refor-

32. Desse ponto de vista, tornam-se relevantes as circunstâncias em que Montaigne


apresenta a Teologia de Sebond ao leitor: a obra provém, segundo sua descrição, de um
“passado” algo nebuloso, o que favorece sua leitura como uma espécie de quintessência
proveniente das versões teológicas mais ortodoxas, oriundas de Santo Tomás (juízo este
que o próprio Montaigne apresenta como uma conjectura duvidosa, ainda que funda-
mentada na autoridade erudita de Turnèbe). Importa-lhe igualmente justificar a defesa
de Sebond pelo fato de que sua tradução tenha, segundo ele mesmo, se alçado a certa
popularidade (especialmente entre as damas) (v. 440A). Por certo há alguma dimensão
retórica nessa menção, como também ocorre no modo como ele associa, por sua cre-
dulidade, o vulgo, as crianças e as damas (v. I, 27, 178A).
33. Entre outros textos que poderíamos mencionar aqui, lembremos este comentá-
rio, na “Apologia”, sobre a proibição da poesia nas Leis de Platão: “[C] Ele diz aberta-
mente na sua República que, para o proveito dos homens, é por vezes necessário enganá-
los. É fácil distinguir as seitas que seguiram mais a verdade daquelas que seguiram a
utilidade, pelo que ganharam crédito. É a miséria de nossa condição: freqüentemente
o que se apresenta à nossa imaginação como mais verdadeiro não se apresenta como

106

10888_A figura do filosofo.p65 106 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

ma e o elogio da religião tradicional não se situam, portanto, apenas no


plano de uma avaliação abstrata de sua coerência teológica — ainda
que nunca se dissocie inteiramente desse ponto. O party das novidades
luteranas não preocupa Montaigne apenas por seu dogmatismo consi-
derado numa dimensão teórica, mas também pela maneira como in-
duz a uma terapia inadequada dos males político-religiosos, tal como
o filósofo os diagnostica:
[B] Ocorre com ela o mesmo que com as outras medicações fracas e
mal empregadas: os humores que ela queria purgar em nós, ela apenas
os inflamou, exasperou e agravou pelo conflito, e assim permanece-
ram no corpo. Ela não soube nos purgar pela sua fraqueza, e no entan-
to nos enfraqueceu, de modo que não mais a podemos esvaziar, rece-
bendo de sua operação apenas dores prolongadas e intestinas…” (ibid.).
Segundo Montaigne, as guerras civis revelam uma espécie de crise
da autoridade política no Estado francês, e a saúde da disciplina de um
Estado “[B] pressupõe um corpo que se apóia nos seus principais mem-
bros e funções, e um consentimento comum à sua observância e obe-
diência…” (I, 23, 122). Por conseguinte, uma terapia que pretenda
impor as razões que entende (equivocadamente) ser as melhores, por
julgá-las capazes de formular a verdade, sem atinar, ademais, com o
modo como as poderão julgar aqueles a quem se dirigem (e, portanto,
com suas conseqüências relativas à sustentação da autoridade pública),
não haverá de chegar a bom termo.

2.4. Doença racional e terapia cética


Prossigamos examinando a defesa montaigniana de Sebond mediante
uma segunda aproximação possível com textos céticos, pela qual pirrô-
nicos e acadêmicos permaneceriam aparentemente solidários aos olhos
de Montaigne. Se a “doença” reformista que assola o Estado decorre,
segundo ele, da presunção de abalar a solidez das crenças tradicionais
em nome das instáveis e conflitantes razões de cada um, não deixemos

mais útil para a nossa vida. As seitas mais ousadas, a Epicurista, a Pirrônica e a da Nova
Academia são, ainda elas, constrangidas a se dobrar à lei civil, no fim das contas…” (512).

107

10888_A figura do filosofo.p65 107 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

de notar que essa metáfora médica é a mesma pela qual Sexto caracte-
riza a prática argumentativa pirrônica. Na conclusão das Hipotiposes,
ele assim explica como os céticos escolhem argumentos adequados para
terapeuticamente se contrapor à arrogância dos filósofos dogmáticos:
O cético é um amigo da humanidade [philántropos] que deseja curar
pelo discurso [lógos], na medida em que puder, a precipitação [pro-
péteia] e a presunção [oíesis] dos dogmáticos. Assim como os médi-
cos que curam doenças do corpo têm remédios que diferem em força
e aplicam os mais fortes aos pacientes mais severamente adoecidos e
os mais brandos aos mais brandamente afetados, o cético propõe razões
[lógoi] que diferem em força: empregam argumentos pesados, capa-
zes de vigorosamente purgar o mal do dogmático da presunção, con-
tra aqueles que se encontram atingidos por uma forte precipitação,
enquanto emprega argumentos mais brandos contra aqueles atingi-
dos por uma presunção mais superficial e de mais fácil cura, dos
quais é possível restituir a saúde por meios mais brandos de persua-
são. Por isso, aqueles que argumentam ceticamente não hesitam em
propor, às vezes, argumentos que são de maior persuasividade e, outras
vezes, argumentos que parecem menos persuasivos; eles o fazem
deliberadamente, posto que freqüentemente um argumento mais
fraco é suficiente para que ele atinja seu propósito (HP III, 280).
Já vimos, no capítulo anterior, como Montaigne contrapõe à propé-
teia dogmática sua impremeditação filosófica. Se os céticos pirrônicos
se vêem como philántropoi, por meio de sua prática argumentativa, é
no mesmo passo que vêem os dogmáticos como philautói, amantes de
si mesmos, apegados a seus pré-julgamentos, cuja veracidade não se
sustentaria se pudessem avaliá-los mais cuidadosamente de um ponto
de vista racional, com a ajuda dos argumentos suspensivos (v. ibid., I,
90). Esse tema cético encontra-se em circulação durante o Renasci-
mento ao menos a partir de Erasmo, que igualmente critica a philautía
dos filósofos (dogmáticos) e dos teólogos reformistas, aludindo direta-
mente aos filósofos Acadêmicos34. Na “Apologia”, não apenas algumas

34. Para o tema da philautía, ver, por exemplo, Elogio da Loucura, LI, 114-115;
prefácio, 4-7. Para a referência aos Acadêmicos, “os menos insolentes dentre os filóso-

108

10888_A figura do filosofo.p65 108 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

argumentações modelam-se no Elogio da Loucura, mas a própria crí-


tica à “vaidade” dos objetores de Sebond (que se desdobra, como dis-
semos, numa ampla crítica à vaidade do homem, da science e da razão)
parece mirar-se nesse conceito da vaidade dogmática35. Por ora, lem-
bremos apenas que Montaigne caracteriza os céticos como aqueles que
argumentam totalmente desprovidos da “vaidade [jalousie] pela sua
disciplina” (v. 503A).
Essa temática cética parece ser especialmente valorizada por Mon-
taigne. A passagem de Sexto que acabamos de citar confirma, de um
ponto de vista diverso, a idéia de que o ceticismo não abole o uso da
razão, mas confere-lhe um sentido particular. Embora não julgue ser
possível atingir demonstrativamente a verdade, o cético não apenas é
capaz de reconhecer que as razões filosóficas têm forças diversas, como
as emprega seletivamente, em vista de seu interlocutor. Nesse sentido,
poderíamos dizer que a prática filosófica cética se pensa também numa
dimensão retórica36. O que compreende Sexto, nessa passagem, como
a “força” diversa das razões a que alude, se nenhuma delas pode ser
tomada como capaz de oferecer conhecimento verdadeiro? Parece ser
preciso compreender essa diversidade não no plano de seu poder de-
monstrativo em sentido estrito, mas no que tange ao modo como pode
ser persuasiva segundo a diversidade dos interlocutores, em virtude de
uma estimativa, por parte do cético, acerca do que lhe parece ser o
poder persuasivo desses argumentos e a eventual receptividade dos in-
terlocutores a eles37. Porém, ao mesmo tempo, é preciso notar que essa

fos”, segundo Erasmo, em virtude de sua exibição da obscuridade e diversidade das


coisas humanas, ver ibid., XLV, 94-95.
35. Para uma aproximação mais detalhada entre a Apologia e o Elogio da Loucura,
ver EVA, 2003, cap. 3, item 6. Para um exame do modo como Montaigne recupera o
ceticismo em sua crítica à vaidade, ver EVA, 1994a; 1994b.
36. “Retórica” se compreende aqui em sentido próximo ao proposto por Perelman, isto
é, designando toda a dimensão persuasiva de uma argumentação que não é estritamente
redutível a um raciocínio demonstrativo dedutivamente válido. Perelman, contudo, res-
tringe o termo “racional”, diversamente do que pretendemos fazer aqui, àquilo que cor-
responderia ao uso de argumentos demonstrativos (cf. PERELMAN, 1997, p. 57, 59-61).
37. Como diz Oswaldo Porchat sobre a consciência que o cético possui do poder
apenas relativo da argumentação filosófica: “A argumentação dogmática se atribui uma

109

10888_A figura do filosofo.p65 109 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

avaliação diz respeito à capacidade que tais interlocutores teriam de


racionalmente avaliar os argumentos propostos, uma vez que a diferen-
ça estabelecida entre eles diz unicamente respeito, segundo essa pas-
sagem, ao modo como o “mal dogmático” neles se mostra enraizado.
O que esse texto assim denomina parece corresponder a um distúrbio
de tal ordem que torna certos interlocutores apenas capazes de ser per-
suadidos por argumentos tais que a maioria das pessoas não tenderia a
julgar persuasivos — ou, pelo menos, por argumentos que o próprio
cético não julgaria de modo algum persuasivos — graças ao modo ir-
racional como se agarram às teses que admitem como racionalmente
irrefutáveis. Seria em vista do fato de que a doença dogmática poderia
se converter, em graus diversos, numa doença da própria razão filosó-
fica, por assim dizer, que o cético pretenderia conscientemente se valer
de sua argumentação com o propósito de obter o fim desejado (a des-
peito do juízo acerca da força própria dessas razões segundo a estima-
tiva do próprio cético).
Mas, se a suspensão não inviabiliza o emprego de razões considera-
das quanto ao seu poder diverso de persuasão, não seria justamente algo
dessa ordem a que Montaigne alude quando define o termo “razão”?
[A] Eu chamo sempre de razão essa aparência de discurso que cada
um forja em si: essa razão, de cuja condição pode haver cem con-
trários acerca de um mesmo tema, é um instrumento de chumbo e
cera, alongável, dobrável e acomodável a todos os vieses e todas as
medidas; não nos sobra senão a capacidade de saber torneá-la [sçavoir
contourner]… (565).
Ademais, num texto bastante posterior à primeira redação da “Apo-
logia”, Montaigne esclarece que ele mesmo empregou nos Ensaios

força de persuasão absoluta, o dogmático deveria reconhecer o caráter eminentemente


relativo de seus argumentos, que persuadem tão-somente alguns auditórios particula-
res…” (1993, p. 226). Para uma análise da compatibilidade entre a admissão de que as
razões possuem uma “força” persuasiva diversa e a noção de “isosthéneia” (da admissão
de uma eqüipolência das razões), ver VOELKE (op. cit.). Segundo esse comentador, o
emprego pirrônico do “lógos” corresponde a uma “monstração” relativa ao que lhe apa-
rece, cuja “justificação” poderia ser inteiramente atrelada à sua dimensão propriamente
terapêutica (isto é, ao fato de que a opinião é reconhecida como fonte de sofrimento).

110

10888_A figura do filosofo.p65 110 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

argumentos de força diversa, preservando alguns que julga refutáveis


apenas por causa de sua “utilidade”:
[C] Vede como os autores, mesmo os mais concisos e sábios, semei-
am, em torno de um bom argumento, outros mais leves e, para quem
observa de perto, desprovidos de consistência. São apenas argúcias
verbais, que nos enganam. Mas desde que isso se faça utilmente, não
os quero despelar. Há, aqui dentro [nos Ensaios], diversos dessa con-
dição em vários lugares, ou por empréstimo, ou por imitação… (III,
12, 1040).
Diante desses elementos, cabe talvez esperar que o ceticismo te-
nha conduzido Montaigne a um especial cuidado de argumentar se-
gundo aquilo que possa presumir como adequado segundo a diversida-
de de seus interlocutores, especialmente se eles puderem ser identifi-
cados de um modo mais preciso com base em suas crenças particula-
res. Não se deixaria entrever tal uso da razão, atinente a uma capacida-
de da ordem do “sçavoir contourner”, segundo a maleabilidade com
que ela se pode adaptar a diversos vieses e medidas, no modo como
Montaigne avia seus argumentos também para os objetores de Sebond
a que trata de responder, segundo a eventual “utilidade” das razões a
ser consideradas em cada caso38?
É fácil ver como Montaigne adapta seu discurso às razões que ele
mesmo alega que os segundos objetores se disporiam a aceitar. Atacan-
do diretamente a vaidade com que estes, confiantes no poder da razão,
desafiam a religião tradicional, Montaigne calibra sua refutação pela
exigência de que a razão só seja combatida pela própria razão39. Ao

38. REGOSIN (1977, p. 51) reconhece que a argumentação de Montaigne é mode-


lada em vista das demandas do interlocutor, mas, não tendo compreendido a fonte
cética desse procedimento, reduziu suas referências ao ceticismo a um efeito meramen-
te retórico. TOURNON (1989, p. 71), além disso, associa esse uso retórico do argumento
a uma “farmacopéia” destinada a produzir efeitos particulares segundo os leitores, mas
não desenvolve essa metáfora num sentido mais preciso — que permita compreender
o procedimento argumentativo de Montaigne referente a Sebond.
39. Ver 448-449ABC. Quanto à arrogância dogmática, Popkin descreve o modo como
Calvino e seus seguidores, seguros de que apenas suas opiniões religiosas estavam cor-
retas, condenaram à morte Servet, que propunha sua doutrina antitrinitarista com base
num critério muito semelhante ao dos calvinistas, a convicção racional interna. Contra

111

10888_A figura do filosofo.p65 111 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mesmo tempo, essa consideração instaura no ensaio o espaço argumen-


tativo em que será possível fazer o exame propriamente racional de
todos os temas considerados (mostrando a inteira cegueira da razão no
reconhecimento de verdades). Mas isso não impede Montaigne, nessa
extensa crítica à vaidade que lhes é nominalmente endereçada, de em-
pregar diversas vezes argumentações de natureza dialética40. O orgulho
com que se julgam capazes de encontrar razões mais sólidas que as de
Sebond, a despeito de serem elas, segundo Montaigne, “tão sólidas e
tão firmes quanto quaisquer outras que se lhes queiram opor…” (448A),
é o mesmo pelo qual ousam desafiar a religião tradicional com as armas
de sua razão. Há, assim, uma clara identificação entre a “doença” dog-
mática desses objetores (uma espécie de racionalismo imaturo que, por
não ir às últimas conseqüências, confia demasiadamente em seu po-
der) e a “doença” institucional para a qual colaboram, pois a atitude
precipitada com que buscam abertamente refutar Sebond revela-se
exemplar da mesma atitude geral com que se põem a questionar in-
consideradamente os diversos aspectos teológicos da religião. À razão
individual conferem o poder de deliberar sobre tal ponto, sem atinar
com suas conseqüências politicamente desastrosas (ao menos, na me-
dida em que fomentam a desagregação social e a guerra civil). Como
diz Montaigne, mais abertamente, no ensaio sobre os Costumes, acer-
ca da atitude dos reformistas:
[B] … parece-me, para dizer francamente, que há grande amor de si
e presunção em estimar as suas próprias opiniões a tal ponto que,
para estabelecê-las, seja preciso reverter uma paz pública e introdu-

a condenação de Servet, a estratégia de seu defensor reformista Sebastian Castellio foi


precisamente procurar criticar a crença calvinista na segurança da verdade de suas po-
sições religiosas (v. POPKIN, 1979, p. 10).
40. Especialmente no percurso que vai de 449 até 501A, em que ele sugere retros-
pectivamente que, até aquele momento, considerara os argumentos segundo o número
dos que os aceitavam, e não segundo o seu peso próprio. Para uma análise detalhada da
dimensão dialética dessa argumentação, ver EVA, 2003, cap. 1, e 1994a. Limitemo-nos
aqui a notar que Montaigne informa que os argumentos selecionados nessa discussão
(sobretudo composta de exemplos provenientes de Plutarco e Plínio) buscam, ao me-
nos em parte, atender ao modo como seus leitores os apreciarão, em virtude de seu
caráter aparentemente incomum (v. 467A).

112

10888_A figura do filosofo.p65 112 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

zir tantos males inevitáveis e uma tão horrível corrupção dos costu-
mes que as guerras civis e as mutações do estado aportam, em coisa
de tal peso e no seu próprio país… (I, 23, 120).
Eis por que eles oferecem a Montaigne a ocasião de um ataque
frontal e direto, que condena, num só golpe, as pretensões gerais da
razão em obter uma verdade qualquer e as daqueles que, desconhecen-
do esse fato, se tornam, mesmo sem ter plena consciência disso, “inimi-
gos da religião” que, por isso, podem ser tratados um pouco mais rude-
mente: “… eles são mais perigosos e mais maliciosos do que os primei-
ros…” (448A). Não se trata, contudo, de uma avaliação moral, e sim de
uma crítica à terapia a que pretenderiam submeter a religião e as ins-
tituições políticas (v. I, 31, 121).
Diversamente destes, os primeiros objetores merecem um tratamento
mais brando, na medida em que sua objeção é movida por “zelo de
piedade”. Não deveria essa duplicidade dos vieses argumentativos, cuja
diferença respeita a rudeza ou a suavidade, ser vista como ilustração da
natureza cética dessa terapia? Tal diferenciação pode ser igualmente
aproximada das preconizações ciceronianas no preâmbulo do De natu-
ra Deorum. Em sua defesa da posição suspensiva de Carnéades, que
ele julga ser inteiramente compatível com a ratio moral, cabe conside-
rar, diz Cícero, seus adversários dogmáticos segundo a particularidade
com que argumentam: “… a hesitação amigável deverá ser respondida
pela explicação e os ataques hostis pela refutação” (Dnd, I, 6). É pos-
sível que, no caso de Montaigne, a diferenciação das atitudes argumen-
tativas diante dos objetores de Sebond obedeça ainda a outras particu-
laridades. Mas por que deixaria a resposta à primeira objeção de obe-
decer ao mesmo princípio retórico cético que vale para a segunda?
Como vimos, os primeiros objetores tomam parte num debate dogmá-
tico sobre o critério de interpretação da verdade revelada ao alegar que
apenas a fé, e não a razão, pode fazê-lo (por oposição ao modo como
os céticos argumentariam inteiramente desprovidos de vaidade, estan-
do desobrigados da defesa de qualquer posição). Assim, embora Mon-
taigne apenas formule o objetivo de destruir a vaidade ao anunciar a
resposta à segunda objeção, esse paralelo nos convida a admitir que,
também aqui, por maior que seja seu “zelo de piedade” ou sua “bran-

113

10888_A figura do filosofo.p65 113 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

dura”, o motor da objeção não é de natureza moral, mas atinente à


terapia de uma “vaidade dogmática” que, também aqui, nalguma me-
dida já se faz presente.
Em que poderia consistir a “vaidade” dos primeiros objetores? Essa
questão nos conduz àquele que talvez seja o laço mais interessante das
peripécias dessa apologia, eventual fonte de outras reviravoltas aqui
observadas. Analogamente ao que se passa no caso dos segundos obje-
tores, tal “vaidade” haveria aqui de residir naquilo em nome de que tais
objetores recusam a obra de Sebond — a saber, suas posições teológi-
cas. Nessa medida, cabe ver que eles necessariamente se apóiam numa
“razão” para condenar a empreitada de Sebond, sintetizada na tese
segundo a qual apenas a fé, e não a razão, abraça os altos mistérios da
religião. A despeito, portanto, da própria opinião que possuem acerca
da fraqueza da razão, eles próprios não deixam de oferecer implicita-
mente razões teológicas contra o projeto de Sebond, passíveis de ser
opostas a outras num debate que, como vimos, exemplifica, para Mon-
taigne, uma controvérsia dogmática. Mas, se a situação é essa, a crítica
que ele dirige a esses objetores parece ser constrangida, em virtude do
conflito entre o conteúdo da tese que eles sustentam e seu significado
efetivo no debate em que se inserem, a beirar o paradoxo: trata-se afinal
de argumentar ceticamente contra uma razão que afirma, ao menos
nos assuntos concernentes aos “altos mistérios”, a total fraqueza da razão.
Levando em conta que a atitude refutatória dos primeiros objeto-
res deve ser igualmente compreendida como uma atividade argumen-
tativa, alicerçada nas razões teológicas que a motivam, parece-nos ca-
bível indagar sobre o sentido em que eles próprios deveriam compreen-
der o significado da tese que sustentam acerca do poder da razão. Como
vimos, quanto ao seu conteúdo, a tese sustentada pelos objetores pare-
ce ser, à primeira vista, idêntica ao que afirma o filósofo cético e o
próprio Montaigne. Mas, se nossa sugestão de leitura está correta, essa
identidade não pode ser senão aparente: num caso, a “fraqueza da ra-
zão” é apenas mais uma das diversas razões humanas que demandam,
a despeito de seu conteúdo, uma objeção cética, na medida em que
veiculam uma posição dogmática; noutro caso, ela é a descrição da
atividade argumentativa destinada a examinar como cada razão que

114

10888_A figura do filosofo.p65 114 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

pretende sustentar alguma verdade pode se mostrar insatisfatória. As-


sim, na mesma medida em que o cético tem uma compreensão diversa
acerca da racionalidade de sua postura, por oposição à do filósofo dog-
mático, por sob uma mesma alegação da “fraqueza da razão” ocultam-
se duas concepções diversas do que seja a própria razão e sua fraqueza.
Isso parece confirmar-se quando observamos o sentido geral da res-
posta de Montaigne aos primeiros objetores. Em linhas gerais, ela con-
siste em alegar que, a despeito da postura teológica que adotam (e com
a qual ele exprime, num primeiro momento, uma ambígua concor-
dância), é preciso especial cuidado quando se pretende transformá-la
num crivo para o julgamento de Sebond. A despeito, assim, de louvar
a humildade desses primeiros objetores na avaliação dos poderes da
razão, ele insiste na possibilidade de haver outros meios pelos quais
cabe aos instrumentos humanos socorrer a religião, sem perder de vista
seu alcance próprio: [A] “É preciso … acompanhar nossa fé com toda
a razão que está em nós, mas sempre com essa reserva, de não estimar
que seja de nós que ela depende…” (441). É preciso considerar, sugere
ele, a despeito do posicionamento teológico adotado, que razões como
as de Sebond podem, ainda que seja a razão inteiramente cega, ter
valor para a defesa da religião. O próprio Montaigne oferece implicita-
mente uma dupla valoração dessas razões, dirigindo-se a esses objeto-
res. Primeiramente, um valor claramente retórico, evidenciado pelo
modo como homens instruídos nelas reencontraram o caminho da Igreja
Católica tradicional (como vimos, Montaigne menciona o exemplo de
um homem letrado que se persuadiu com tais argumentos). Em segun-
do lugar, um valor derivado do modo como, indo tão longe quanto a
razão humana pode alcançar, tais razões se tornam “firmes e sólidas”
ao ser “ilustradas e tingidas” pela fé — ainda que, em poucas páginas,
a partir de 448A, não apenas passem a ser tratadas como “fantasias
puramente humanas”, mas também sejam indiretamente refutadas pelo
próprio Montaigne. Essa alegação de uma fé solidificadora, como já
vimos, não pode ter o efeito, para Montaigne, de transformá-las pro-
priamente em verdades. Qual é, então, o sentido dessa alegação da
intervenção da fé (tanto mais estranha na medida em que corresponde
a uma proposição de natureza teológica, que destoa claramente das

115

10888_A figura do filosofo.p65 115 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

demais restrições céticas que Montaigne aplica ao alcance de seu dis-


curso, no que tange à avaliação das coisas divinas)? O efeito mais claro
que ela agora parece possuir, bem considerados os elementos aqui dis-
postos, é o de voltar contra os primeiros objetores o próprio critério de
aceitação de verdades em nome do qual pretenderiam refutar Sebond.
Isso porque o critério teológico admitido por esses objetores é, justa-
mente, a pura fé, independente da razão, como meio de aceder à ver-
dade revelada. Mas esse critério assim formulado — e, como vimos,
Montaigne parece ter plena consciência desse ponto, recorrente nas
discussões céticas do Renascimento — reinstaura o problema cético.
Qual é o critério, afinal, para alegar a presença da verdadeira fé? Basta
alegar que as razões de Sebond são iluminadas pela fé para que esse
mesmo critério sirva, em princípio, para a validação da obra de Sebond
e todo o seu otimismo racionalista. Noutras palavras, essa alegação mos-
tra implicitamente que, pelo mesmo critério, se pode “demonstrar”
quase qualquer coisa, e particularmente o contrário do que eles preten-
deriam. É justamente a precariedade desse critério, uma vez entendido
como critério teológico, que explica por que, finalmente, esses objeto-
res menos maliciosos podem ser respondidos em poucas páginas, en-
quanto a resposta aos segundos objetores suscitará um longo exame da
science e da razão.
Mas Montaigne certamente não pretende incorrer no mesmo erro
que enxerga na posição desses objetores, que se valem de sua tese como
razão para objetar a Sebond, especialmente se o que está em causa é o
virtual agravamento da diaphonía interpretativa das verdades da fé, que
ganha corpo na forma de uma crise institucional. Assim como ele não
refuta abertamente as razões de Sebond (embora concorde com o juí-
zo dos objetores, de modo geral, acerca de sua fraqueza demonstrati-
va), não procederá diversamente com os primeiros objetores, se não
por outro motivo, decerto por uma análoga preocupação com a “utili-
dade” das razões em jogo. Diríamos, em suma, que sua resposta con-
tém a delicadeza de ser apenas perceptível, em seu teor lógico, àqueles
entre os primeiros objetores que são detentores de suficiente “malícia”
no uso da razão para perceber, por si mesmos, a fraqueza da objeção
que pretendem avançar. Mas o cristão empírico não se confunde com

116

10888_A figura do filosofo.p65 116 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

o filósofo ideal, e certamente Montaigne não se imagina detentor do


poder de transformar, por meio da simples resposta que lhes dirige, a
ingenuidade argumentativa desses objetores (e dos leitores que eles
eventualmente representam) numa compreensão da falibilidade da
razão compatível com a que foi desenvolvida pelos filósofos que mais
amplamente estenderam, a seu ver, a investigação sobre o alcance das
faculdades humanas de conhecimento. Essa não é, contudo, uma ra-
zão para que Montaigne abdique de sua perspectiva terapêutica cética.
Ela é apenas adaptada aos pressupostos desses objetores nos quais con-
vém se apoiar. Torna-se igualmente compreensível a relevância, para
Montaigne, de apresentar inicialmente sua concordância “potencial”
com a tese teológica “fideísta” desses primeiros objetores, para depois
conduzi-los, com base em seus pressupostos, a aceitar a “utilidade” das
razões de Sebond, com a qual não atinam, em vista do modo como se
aferram à própria posição.
Assim, o emprego da mesma terapêutica argumentativa cética deve
agora, posto que são objetores movidos por um “zelo de piedade”, par-
tir da admissão da superioridade da fé cristã, como instância capaz de
revelar a verdade e, nessa medida, distinta das crenças meramente hu-
manas. Que conseqüências extrai Montaigne desse pressuposto? Afora
o que vimos sobre seu tratamento implícito da “possibilidade” fideísta
ao longo da resposta à segunda objeção, notemos que aqui se opera
uma nova manobra argumentativa, pela qual a aparente superioridade
conferida por esse pressuposto é convertida num problema: a situação
real da cristandade (que, como vimos, antes testemunharia, segundo o
mesmo pressuposto, da ausência da verdadeira fé) acaba por se revelar
uma desvantagem e uma vergonha em face das seitas pagãs ou dos
maometanos, que aderem a suas crenças meramente humanas de modo
mais efetivo do que aqueles que supostamente possuem a fé verdadeira
(v. 442A), encaminhando Montaigne a este diagnóstico da situação atual
da cristandade, ao qual já aludimos: “[B] Nós somos Cristãos pelo
mesmo título com que somos Perigordianos ou Alemães…” (445).
Notemos que, curiosamente, essa única formulação também pode ser
observada de dois modos diversos, em vista dos pressupostos de quem
a lê, e que nos parecem ambos esclarecedores: ou bem como a cons-

117

10888_A figura do filosofo.p65 117 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

tatação pelo autor da relatividade das crenças religiosas diversas (que


apenas poderia ser revogada por uma possibilidade estritamente incon-
cebível, tal como deixará clara a resposta à segunda objeção, que mar-
ca sobretudo a relatividade dessa apreensão do phainómenon cultural);
ou bem, à luz dos pressupostos dos objetores particulares a que essa
resposta se dirige, como a descrição de uma situação cuja precariedade
haveria de ser tanto mais angustiante quanto mais tais objetores se afer-
rassem a uma compreensão estrita de seu critério teológico e deixas-
sem exclusivamente ao encargo de uma fé sobrenatural o poder de
transformar esse panorama.
Mas o que fazer se a cristandade, de modo geral, desconhecendo
os sinais dessa pura fé, deixa-se, em vez disso, abalar “à mercê de um
novo argumento e pela persuasão…” (441A)? Não será o caso de reco-
nhecer, nesse estado de coisas, algum mérito, mesmo que provisório,
dos recursos persuasivos à disposição para, do ponto de vista da crença
exclusivamente humana, reconduzir os cristãos à religião tradicional?
[A] A fé, vindo tingir e ilustrar os argumentos de Sebond, torna-os
firmes e sólidos: eles são capazes de servir de encaminhamento e
primeiro guia a um aprendiz para pô-lo na via desse conhecimento;
eles o conformam de algum modo e o tornam capaz da graça de
Deus, por meio da qual ele se forma e se aperfeiçoa segundo a nossa
crença… (447; itálicos nossos).
Diante disso, talvez tais cristãos piedosos possam reconhecer que
os argumentos de Sebond sejam aceitáveis segundo o poder sobre a
simples crença humana, se também lhes for aceitável que, em confor-
midade com outro pressuposto teológico agostiniano igualmente em
voga, a admissão voluntária do cristão à religião é um primeiro passo da
conversão que favorece a possibilidade de sua consumação posterior,
pela intervenção da Graça em sentido especial. É importante subli-
nhar, todavia, que tanto a admissão do poder dos argumentos de Se-
bond como a admissão do poder da fé em aperfeiçoar esse primeiro
engajamento na religião são enfeixadas na argumentação apenas “se-
gundo a nossa crença”, isto é, segundo os pressupostos do objetor cris-
tão, que o próprio Montaigne descreve empregando a terminologia
que ele mesmo reservou para o vínculo puramente humano com a

118

10888_A figura do filosofo.p65 118 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

religião: trata-se de crença puramente humana, e não de fé, no sentido


preciso que essa oposição vai ganhar segundo os mesmos pressupostos
e os termos de sua hipótese fideísta. Se assim não fosse, nem mesmo a
diatribe montaigniana, conclamando os objetores a empregar os “meios
humanos” a nosso serviço, poderia fazer sentido, uma vez que vigora
um acordo entre Montaigne e os objetores a que se dirige sobre o fato
de que o abraço da pura fé dependeria estritamente de uma delibera-
ção divina, imponderável ao homem.
Qual é, portanto, o valor das razões de Sebond? Como diz ele aos
segundos objetores, elas são “tão sólidas e tão firmes” quanto quaisquer
outras que se lhes possam opor: não apenas são tão incapazes de susten-
tar demonstrativamente qualquer verdade (como quaisquer outras ra-
zões que versem especulativamente sobre o mesmo assunto), como
podem ser virtualmente tão persuasivas quanto outras da mesma espé-
cie. Seu valor é, além disso, exemplar: elas permitem a Montaigne
explicitar o sentido de sua desconfiança cética ante os poderes demons-
trativos da razão e, igualmente, segundo o que ele mesmo afirma, mostrar
como se pode “tornear” [contourner] a razão respeitando sua maleabi-
lidade própria e tendo em vista as exigências circunstancialmente im-
postas, relativas à ordem da “utilidade”. Se não convém “despelar”
abertamente argumentos inválidos embora úteis, especialmente quan-
do está em jogo a paz pública41, isso parece se reportar, em última
instância, àquilo que Montaigne vai denominar o “fundamento místi-
co” das leis: a vida em sociedade se rege por uma diversidade de “pres-
supostos” aceitos por força do costume e, a rigor, racionalmente injus-
tificados (ao menos, não demonstrados como verdades absolutas) num
grau muito maior do que os homens estão comumente dispostos a re-
conhecer, como veremos em seguida.
Por fim, o tratamento que Montaigne dá a Sebond é revelador de
um sentido peculiar em que a Apologia se torna uma ilustração do
lema cético segundo o qual é sempre possível argumentar pelos dois
lados — contra Sebond, em vista do valor demonstrativo de suas ra-
zões, mas pró-Sebond, em vista do valor retórico de suas razões e do

41. Cf., por exemplo, 511-512A.

119

10888_A figura do filosofo.p65 119 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

contexto mais amplo em que elas são publicamente refutadas. Pode


parecer estranho que esse filósofo cético faça a Apologia de um autor
que sustenta teses evidentemente dogmáticas e incompatíveis com uma
postura cética. Mas, para além da adoção doutrinal às fórmulas céticas
sobre nossa incapacidade de reconhecer a verdade, o ceticismo parece
converter-se aqui numa condição privilegiada de observação da expe-
riência concreta segundo a qual os homens empregam sua razão. Ele
faz de seu ceticismo, a um só tempo, uma postura argumentativa anti-
dogmática e suspensiva, mas também um instrumento para examinar
criticamente o cotidiano da França em guerra. Embora deixe indireta-
mente claro qual é seu juízo sobre a efetiva solidez demonstrativa de
todas as razões consideradas nesse debate, ele também compreende
que incorreria na mesma presunção irrefletida que sua filosofia conde-
na se supusesse que basta expor claramente todos os aspectos de seus
juízos para mostrar a seus interlocutores que, bem compreendida, a
suspensão cética deveria nos conduzir a uma forma não-dogmática de
religiosidade. A reflexão cética, portanto, não apenas exibe a precarie-
dade dos possíveis critérios de verdade alegados, mas se volta para o
modo como os diversos interlocutores considerados são capazes de em-
pregar a razão. O cético é aquele que, ao argumentar, pretende medir
o alcance de suas razões em vista da situação e não admite, sem mais,
que seus argumentos sejam dotados de um poder mágico de produzir
no vulgo ou nos objetores diversos de Sebond a compreensão imediata
de todas conseqüências que o próprio filósofo entende decorrerem de
sua reflexão cética. Por oposição ao modo como os dogmáticos argu-
mentam sob o encantamento da verdade que pretendem possuir, o
cético pretende ser aquele que considera mais judiciosamente os limi-
tes da razão mediante seu exercício prático.

2.5. Um problema vexatório


Não precisaremos nos estender sobre as interpretações que usam a
resposta da primeira objeção para sustentar que Montaigne é efetiva-
mente um autor fideísta. Mas o que decorreria dessa análise, de modo
mais geral, relativamente ao vexatório problema, como diz Popkin, das

120

10888_A figura do filosofo.p65 120 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

intenções propriamente religiosas desse autor? Talvez, para além da-


quilo que Guiton havia muito já concluíra — que estamos diante de
um debate fadado a jamais terminar42 — possamos dizer que isso ocor-
re porque tal debate se pauta por uma questão insolúvel em vista dos
elementos oferecidos pelo texto montaigniano. Naturalmente, é a ques-
tão que espontaneamente a curiosidade de seus leitores insiste em re-
propor, ainda que, assim formulada, o autor pareça recusar-se a respon-
dê-la com a devida clareza, antes denunciando e ironizando a tendên-
cia pela qual “[C] acomoda-se de bom grado o sentido dos escritos de
outrem em favor das opiniões que se tem preconcebidas por si…” (448)43.
Importa contudo distinguir a questão sobre sua religiosidade pessoal
daquela de saber se seu ceticismo o conduz ou não a uma defesa autên-
tica da religião.
Quanto a esse segundo ponto, uma vez qualificados seu sentido e
sua motivação, não deve haver dúvida de que há efetivamente uma
defesa da religião, tal como aceita tradicional e popularmente, mesmo
que seu valor seja relativo e contingente. Mas as causas dessa defesa
não parecem ter nenhuma relação identificável com motivações estrita-
mente dependentes da sua religiosidade pessoal, e o próprio sentido
das críticas à vaidade aponta na direção oposta, da necessidade de com-
preender que uma coisa deve ser desvinculada de outra quando estão
em jogo os problemas que são centrais aqui para Montaigne. Certa-
mente seu juízo sobre a religião que defende não corresponde àquela
que seria sua religiosidade (que, repitamos, tampouco há de se traduzir
necessariamente numa forma de fideísmo, com base na passagem que
o define na “Apologia”). Não nos parece, quanto a esse segundo pro-
blema, que seu texto ofereça qualquer elemento decisivo. As diversas
tentativas de encontrar projetadas em seu texto formas especificamente

42. Ver GUITON, 1944.


43. Embora Montaigne aplique diretamente essa afirmação aos “ateístas”, que “infectam
de seu próprio veneno a matéria inocente“ (ibid.), não há por que supor que tal crítica se
restrinja a eles. Não consideraria ele que os primeiros objetores fariam o mesmo com as
razões de Sebond? Essa passagem talvez deva ser lida como uma ironia antecipada para
com os leitores que pretenderão encontrar nos expedientes tortuosos dos Ensaios seja
uma opinião anti-religiosa, seja uma manifestação autêntica de fé pessoal.

121

10888_A figura do filosofo.p65 121 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

religiosas de cristianismo nos parecem sempre dar um passo interpre-


tativo, maior ou menor, além do que o texto rigorosamente permite44.
O recurso às fontes talvez ajude aqui, mais uma vez, a situar a
impertinência dessa questão, pois tais comentadores parecem assumir
diante do texto de Montaigne a atitude que Cícero desaconselha aos
leitores de um autor cético (em especial, aos que busca desvelar seu
juízo pessoal sobre a providência divina) — numa passagem, aliás, ci-
tada por Montaigne em sua irônica discussão das filosofias dogmáticas:
Aqueles que desejam saber o que nós pensamos pessoalmente sobre
cada matéria levam longe demais sua curiosidade. Esse princípio
filosófico de discutir sobre tudo sem nada decidir, estabelecido por
Sócrates, retomado por Arcesilau, fortalecido por Carnéades, flores-
ce ainda em nossa época. Nós somos da escola que diz que o falso
está em toda parte mesclado ao verdadeiro e tanto se assemelha a ele
que nenhum critério permite julgar e discernir com certeza…45.
Enquanto Cícero se faz representar no diálogo por um porta-voz
cético (Cotta), Montaigne, por sua vez, emprega essa passagem para
explicar como os dogmáticos, escondendo suas supostas opiniões pirrô-

44. E isso mesmo no caso de intérpretes cuidadosos como Hugo FRIEDRICH: embora
ele nos ofereça uma análise da relação de Montaigne com a religião, a nosso ver, bastan-
te adequada, em seu sentido mais geral, ele identifica a religiosidade pessoal de Mon-
taigne a uma “vaga forma de piedade filosófica”, sem objeto preciso (por vezes Deus, por
vezes la Nature), como uma modalidade religiosa compatível com o ceticismo filosófico
em sua versão pirrônica (1968; cf. p. 118-125). Na “Apologia”, Montaigne apresenta
como a mais verossimilhante opinião dos antigos sobre a religião aquela que concebe
Deus “ [A] como uma potência incompreensível, geradora e conservadora de todas as
coisas, toda bondade, toda perfeição, recebendo e tomando em boa parte a honra e a
referência que os humanos lhe rendem sob qualquer face, sob qualquer nome e matéria
que possa ter…” (513). Nada nos autoriza, porém, a tomar essa opinião — que será,
posteriormente, considerada ímpia por A. de Laval (1623) e Boucher (1628); cf. Essais,
p. 1163 — como representante da crença pessoal do autor, pelo simples fato de que ele
declara, como vimos, sua adesão em bloco ao party catholique, segundo toda a sua tra-
dição. Em seu comentário a Des Prières, em que encontramos declarações de Montaig-
ne sobre suas rezas, Villey entende exprimir-se aí uma forma de religiosidade segundo
a concepção de Pirro, conciliando crítica da razão e adesão à tradição, de um modo que
o alinha imediatamente aos católicos, ainda que em conformidade a certas tendências
“agnósticas” que foram provisoriamente aceitas em Roma (Les Essais, p. 317).
45. CÍCERO, Dnd, I, v, citado por Montaigne em 507C.

122

10888_A figura do filosofo.p65 122 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

nicas sob a obscuridade com que se exprimem, podem eventualmente


se valer de formulações mais assertivas, devido à utilidade que certos
dogmas possuem para a manutenção da ordem pública46. Seria possí-
vel, porém, acomodar uma postura estritamente católica aos elemen-
tos céticos que constituem a visão pessoal de Montaigne, tendo em
vista o fato de que ele neutraliza aquela que pareceria, como vimos, ser
a via teológica que oferecera em seu nome para uma eventual com-
preensão dessa acomodação?
Salvo engano, não nos parece possível encontrar, nos textos de Mon-
taigne, uma resposta para essa questão que não seja, em última análise,
simples especulação. Tudo o que podemos dizer é que, seja qual for a
forma pela qual se daria essa eventual acomodação, não estaríamos
diante de um problema substancialmente diverso daquele que se poria
quanto à religiosidade do cético antigo, no que tange à aceitação pir-
rônica, não-dogmática, da existência dos deuses e de sua ação provi-
dencial no mundo47; ou à aceitação, por parte do filósofo acadêmico,
da autoridade dos demais pontífices religiosos, em contraposição aos
estóicos e epicuristas48. Mesmo que a religião cristã, diversamente da
religião grega, pareça exigir do fiel uma espécie de engajamento dog-
mático e interior (além de uma adesão centrada no culto que talvez lhe

46. Ver 511-512.


47. Em HP III, 2 ss., Sexto Empírico investiga ceticamente as concepções dogmá-
ticas acerca de Deus como causa eficiente, ressalvando inicialmente: “… seguindo a
vida comum sem sustentar opiniões, afirmamos que os Deuses existem, reverenciamos
os Deuses e dizemos que eles são providentes, muito embora, contra a presunção dos
dogmáticos, argumentemos como se segue…”. Acerca desse tema ver, por exemplo,
BARNES, 1982, p. 14-15.
48. Cotta afirma, introduzindo sua réplica a Balbo, interlocutor estóico do De natu-
ra Deorum: “… Antes que nós tratemos do que está em questão, falarei um pouco de
mim. Sou consideravelmente influenciado por sua autoridade, Balbo, e, pela conclusão
do seu discurso, você exortou-me a lembrar que sou tanto um Cotta e um pontífice. Isso
significa, sem dúvida, que devo sustentar as crenças sobre os deuses imortais que pro-
vêm de nossos ancestrais, bem como os ritos, cerimônias e deveres da religião. Da mi-
nha parte, sempre o farei e sempre o fiz, e nenhuma eloqüência, seja do douto ou do
inculto, irá me dissuadir da crença ou do culto dos deuses imortais que herdamos de
nossos predecessores. Mas, quando se trata de religião, sou guiado pelos altos pontífices,
Titus Coruncanius, Publius Scipio e Publius Scaevola, e não por Zenão, Cleantes ou

123

10888_A figura do filosofo.p65 123 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

facultasse abdicar desse aspecto), não há, salvo engano, quaisquer ele-
mentos no texto de Montaigne que possam ser arrolados como decisi-
vos acerca de sua compreensão pessoal sobre a distância que haveria
entre a adesão ao culto e a dimensão interior da religião: tudo se passa
como se estivéssemos diante de uma questão privada que o autor se
recusa a responder abertamente49. Por mais que os Ensaios se conver-
tam num auto-retrato, como veremos adiante, Montaigne não parece
considerar que a questão sobre sua religiosidade, mesmo que inevitá-
vel, possa vir à tona sem comprometer o aspecto da religião que, por
razões de ordem pública, lhe interessa enfatizar.
Destaquemos, finalmente, que o fato de Montaigne filosofar num
ambiente cristão e fideísta não basta para que encontremos uma dife-
rença filosófica relevante na posição de Montaigne relativamente ao
ceticismo antigo, por força de sua situação histórica. Em vez de o ceti-
cismo ser submetido a uma transformação conceitual, é a religião que
invariavelmente recebe, em seu texto, um tratamento cético segundo
as exigências conceituais e argumentativas dessa filosofia, tal como por
ele retomada, seja quanto à recusa dos poderes da razão em encontrar

Crisipo, e por Gaius Laelius, que é tanto áugure quanto é filósofo, cujo famoso discurso
sobre a religião prefiro ouvir do que a qualquer líder dos estóicos…” (Dnd, III, ii, 5). O
final dessa passagem é citado por Montaigne em I, 23, 121C, e acompanhado pelo
elogio “Cotta protesta bem oportunamente”: naquele contexto preciso, trata-se igual-
mente de defender a religião tradicional para se contrapor à desordem política causada
pela Reforma.
49. Há, com efeito, passagens bastante comentadas em que Montaigne oferece des-
crições substanciais de uma prática religiosa, como suas narrativas sobre as missas assis-
tidas na Itália, em seu Journal de Voyage, ou suas descrições sobre suas práticas de
oração, em “Das rezas” (I, 56; v. esp. 319-320A). Mas elas versam sobre uma adesão
ritualística: nada aí desmente a natureza cética na adesão; nada se esclarece sobre a
natureza da crença “interior” de Montaigne. Ainda que se referindo a um autor antigo,
e num contexto não-religioso, os termos com que Montaigne o apresenta parecem mos-
trar que, a seu ver, são coisas em princípio distintas a adoção de condutas e opiniões
piedosas: “[C] E Epicuro, do qual os dogmas são irreligiosos e delicados, porta-se em
sua vida de modo mui devoto e laborioso…” (II, 11, 428). Tal acréscimo comenta, por
sua vez, uma passagem auto-retratista anterior: “[B] … Direi uma monstruosidade, mas
direi assim mesmo: encontro … em muitas ocasiões, muito mais de decisão e regra em
meus costumes [moeurs] do que em minha opinião, e minha concupiscência mais li-
cenciosa que minha razão…” (ibid.).

124

10888_A figura do filosofo.p65 124 28.03.07, 16:02


A esgrima cética

a verdade, seja quanto ao reconhecimento de seu poder em defesa dos


costumes religiosos. Não nos parece, assim, possível admitir que haja
alguma transformação conceitual no ceticismo de Montaigne mera-
mente em virtude de o conceito de crença ter supostamente adquiri-
do, ao longo dos séculos medievais, um “valor epistemológico” diverso
do que possuía entre os antigos50. Não nos parece seguro que isso tenha
de fato ocorrido, nem que se possa alegá-lo sem submeter o texto a
pressupostos que lhe são estranhos. O próprio Montaigne, de todo
modo, ao recusar a identificação imediata das “crenças meramente
humanas” com a fé — crenças às quais se vinculam os pagãos e mao-
metanos mais intensamente que os cristãos —, nos desautoriza a com-
preendê-las com base em um referencial filosófico exclusivamente
cristão. Em vez disso, suas considerações sobre o “poder” dos argu-
mentos de Sebond (no sentido examinado) convidam antes a admitir
que a crença, sobre a qual tais argumentos agiriam, não seria essencial-
mente diversa daquela que estaria implicitamente contemplada em
suas reflexões sobre a maneira cética de propor argumentos. Ademais,
o modo como Montaigne distingue crença de fé nos impede de con-
ferir ao primeiro conceito, sem mais, qualquer determinante religioso
capaz de explicar a especificidade de sua filosofia (que seria, tanto
mais, desconhecida pelo próprio filósofo que a propõe). Seria igual-
mente um abuso supor que o mero uso dos termos que trazem a par-
ticularidade histórica ou religiosa para a filosofia — fé, crença, milagre
ou vaidade — revelaria a impossibilidade de permanecermos no regis-
tro conceitual próprio do ceticismo antigo, se Montaigne emprega,
como elemento de sua estratégia, o mesmo argumento preciso com
que os céticos antigos neutralizam o poder da linguagem para caracte-
rizar seu texto51.

50. Como propõe BRAHAMI, 1996; ver p. 29 ss., 36, 55, 71.
51. Afora o que já vimos no capítulo I, é importante observar que a terminologia
religiosa é geralmente empregada por Montaigne de modo bastante fluido e em contex-
tos inteiramente laicos. O termo “miracle”, por exemplo, sofre uma “naturalização”, na
medida em que tem seu significado atrelado ao modo como as coisas nos surgem em
vista de nos referirmos ao natural de forma sempre relativa (cf. III, 13, 1081B; II, 37,
763A e, especialmente, 526AC).

125

10888_A figura do filosofo.p65 125 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Seja, porém, qual for a resposta a dar sobre a questão da religiosi-


dade pessoal de Montaigne, seus Ensaios são deliberadamente situados
num registro estritamente humano e relativo, sem que neles interfira
qualquer alegação de uma verdade capaz de limitar uma perspectiva
genuinamente cética. É particularmente relevante aqui esta advertên-
cia com que Montaigne inicia o capítulo no qual narra sua adesão ao
cristianismo, esclarecendo o bastante acerca não apenas do estatuto
geral das considerações presentes nos Ensaios, mas também do teor
filosófico dessa adesão:
[A] Eu proponho considerações [fantasies] disformes e irresolutas,
como fazem aqueles que publicam questões duvidosas, para debater
nas escolas: não para estabelecer a verdade, mas para procurá-la…
[C] … Eu as proponho [como] considerações humanas e minhas,
simplesmente como humanas considerações, não como decididas e
regradas pelas ordenações celestes, isentas de dúvidas e altercações:
matéria de opinião, não matéria de fé, o que eu discorro [discours]
segundo eu mesmo, não o que creio segundo Deus, [mas o faço] as-
sim como as crianças fazem suas lições [essais]: instruíveis, não ins-
trutoras, de matéria leiga, não clerical, mas sempre mui-religiosa…
(I, 56, 317, 323; itálicos nossos).
Se a distância que Montaigne vê entre seu filosofar dubitativo e
aquele praticado pelos céticos cabe na distância entre o philosopher dos
mestres e o fantastiquer do aprendiz, vemos que todas as suas fantasias
são por ele expressamente inscritas num registro puramente humano,
inteiramente dissociadas de quaisquer “ordenações celestes”. E consta-
tamos, no mesmo passo, que a resposta da investigação em que nos
engajamos neste capítulo é puramente negativa. Seja qual for a expli-
cação a dar acerca da originalidade filosófica de Montaigne, não pode-
mos dizer que ela deriva de um engajamento de natureza religiosa numa
forma de crer incompatível ou diversa do que preconizam os textos
céticos antigos que ele tem em vista (a menos que cometamos o con-
tra-senso de atribuir ao filósofo uma crença derivada de uma análise
filosófica externa e incompatível com o que ele próprio diz acerca do
significado de suas crenças), nem mesmo da adoção pessoal de um
fideísmo filosófico ou religioso.

126

10888_A figura do filosofo.p65 126 28.03.07, 16:02


CAPÍTULO III

O império do costume

Vimos, no capítulo anterior, que a defesa cética da religião tradi-


cional empreendida por Montaigne envolve o uso de uma perigosa
estratégia pela qual é preciso, ao atacar os objetores de Sebond, tres-
passar-se também a si mesmo — neutralizando o dogmatismo com
que ele provisoriamente se compromete. Tal estratégia desvela igual-
mente as justificativas mais urgentes da “Apologia” de Sebond e da
religião tradicional, decorrentes da desagregação do Estado em meio
às guerras de religião. Por oposição à terapia política dos reformistas,
que apenas agrava os males, trata-se de proceder a uma terapia cética,
que compreende tanto o engajamento explícito em uma argumenta-
ção destruidora de índole cética, contra o orgulho desenfreado daque-
les que se contrapõem à autoridade religiosa estabelecida sem medir
as conseqüências dessa atitude, como um uso mais reservado e indire-
to da mesma argumentação nos casos em que as condições particula-
res dos crentes tornariam imprópria e temerária uma denúncia de seu
dogmatismo. Pois o vulgo, como diz Montaigne, é incapaz de julgar
as coisas, confundindo a autoridade civil e a autoridade religiosa. Tra-

127

10888_A figura do filosofo.p65 127 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ta-se, assim, de uma argumentação forjada segundo a medida da cren-


ça contingente e costumeira dos homens (pela qual indiretamente se
evidencia a necessidade de considerar tal dimensão contingente das
crenças quando se trata não apenas de conhecer a verdade, mas sobre-
tudo de agir).
Se esse ceticismo pode parecer paradoxal, na medida em que con-
duz a uma espécie de defesa de uma forma de crença assumidamente
dogmática, vimos, ainda, que tal defesa, bem compreendida, não cor-
responde, em absoluto, a uma tomada de posição dogmática por parte
de Montaigne. Porém, essa hipótese não deixa de suscitar algumas in-
dagações acerca da natureza desse ceticismo. Se a defesa da religião
não parece impor nenhuma limitação conceitual ao ceticismo de Mon-
taigne pelas razões observadas, caberia indagar até que ponto poderia
ela ser efetivamente compreendida segundo o que os antigos céticos
preconizaram como critério para a condução na vida prática. A expli-
cação sucinta de Sexto acerca da adesão cética ao phainómenon, em
vista da qual o cético não permanece inativo em sua vida, nas suas
Hipotiposes, pode por certo dar lugar a questões sobre o estatuto não-
dogmático com que leis e costumes (mesmo os religiosos) são adota-
dos. Montaigne, como vimos, interpreta tal adesão como algo que con-
duz tal filósofo não apenas a se portar da “maneira comum”, mas tam-
bém a agir plenamente como um homem vivo, que frui de todas as
suas faculdades intelectuais e corporais. Porém, ao mesmo tempo, há
outras passagens de Montaigne que parecem sugerir que o ceticismo
conduziria a um modo específico de adesão às formas de agir do ho-
mem comum, diverso daquele pelo qual esse mesmo homem comum
se deixaria levar por suas próprias crenças:
Essas considerações [sobre o poder do costume] não desviam, entre-
tanto, um homem de entendimento de seguir o estilo comum; antes,
pelo contrário, parece-me que todas as maneiras [façons] dele afasta-
das e particulares antes partem de loucura ou de afetação ambiciosa
que de verdadeira razão; e que o sábio deve interiormente retirar sua
alma da massa, e mantê-la em liberdade e poder de julgar livremente
as coisas; mas, quanto ao exterior, que ele deve seguir inteiramente as
maneiras e formas recebidas… (I, 23, 118; itálicos nossos).

128

10888_A figura do filosofo.p65 128 28.03.07, 16:02


O império do costume

Esta passagem parece evocar o critério cético para a ação. Refletin-


do sobre a multiplicidade contraditória dos costumes, o cético suspende
seu juízo e adere não-dogmaticamente aos costumes. Não é disso que se
trata quando Montaigne alega, após uma longa enumeração da diversi-
dade dos costumes, como a que precede a esse texto, que o sábio, em
face de sua relatividade, deve adotar “inteiramente as maneiras e formas
recebidas”, ainda que de um modo puramente “exterior”? Mas o que
significa essa integralidade dos costumes se ela é apenas externa? Se esse
texto, assim, corresponde a uma instanciação do critério cético, tal como
Montaigne o compreendeu, torna-se importante saber o que significa
exatamente essa oposição entre “interioridade” e “exterioridade” para
avançar na compreensão desse ceticismo. Entretanto, se tal critério
conduz a uma forma de admissão de crenças dogmáticas, pode ser ele
efetivamente visto como compatível com a epokhé pela qual os céticos,
segundo Sexto, crêem “cessar plenamente de dogmatizar” (HP I, 12)?
Para enfrentar essas questões, procederemos a uma análise da no-
ção montaigniana de costume, orientando-nos sobretudo pelo ensaio
“Do costume e de não mudar à toa uma lei em vigor” (I, 23), ao qual
pertence a passagem citada. Num primeiro momento (3.1), analisare-
mos as reflexões epistemológicas sobre o poder do costume, que corres-
pondem à primeira parte do ensaio e se orientam em boa medida pelo
Décimo Tropo de Enesidemo. Procuraremos mostrar como o papel
atribuído ao costume na reflexão de Montaigne — uma instância
dogmatizante que nos oculta os próprios critérios de percepção de sua
intervenção — parece conferir a seu ceticismo um perfil peculiar, pelo
qual, em particular, todo e qualquer juízo acerca do que é natural ou
conforme a razão se tornaria um candidato potencial à suspensão.
Contudo, o aprofundamento do exame desse ponto permitirá ver (3.2)
que, mesmo no que possui de aparentemente inovador, o ceticismo de
Montaigne é inteiramente compatível com os textos antigos que o ali-
mentam. Em seguida, essas considerações epistemológicas preparam e
dão lugar, no próprio ensaio, a ponderações sobre como agir diante da
fragilidade da ordem legal. Acompanhando esse movimento, examina-
remos (3.3) como essa discussão se articula com as oposições interiori-
dade/exterioridade e privado/público, na forma de uma interpretação

129

10888_A figura do filosofo.p65 129 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

do critério cético de ação. Confirmando os resultados do capítulo an-


terior, essa análise permite ver como o critério cético de ação transfor-
ma-se, no âmbito das discussões políticas, no embrião de uma espécie
de “razão prática”, em vista da qual o ceticismo deságua numa política
de tolerância. Isso nos permitirá finalmente observar (3.4) que a inter-
pretação do critério cético subjacente a essas reflexões articula-se com
uma interpretação particular da noção de phainómenon, que acentua
a distinção entre a pretensão de obter conhecimento das coisas, em
sentido estrito, e uma adesão meramente concernente ao uso das coisas
tal como se apresentam a nós — graças à qual se pode, ao mesmo
tempo, constatar a dimensão que tal noção implicitamente assume nos
Ensaios, por meio de conceitos próprios que a ela correspondem.

3.1. Um traiçoeiro mestre


Se um dos aspectos do phainómenon é, segundo Sexto, a “tradição
das leis e dos costumes”, em vista da qual o cético considera, por exem-
plo, “uma conduta piedosa na vida um bem, e uma conduta impiedo-
sa, um mal” (HP I, 24), ele assim procede, segundo o julgamento de
Montaigne, de modo distanciado, não-dogmático: “[A] … Eles deixam
suas ações comuns guiarem-se por essas coisas, sem ser opinativos e
sem julgamento…” (505). Tal adesão conjuga-se a um estado de epokhé
que abrange, entre as diversas facetas com que o dogmatismo pode se
manifestar, também aquelas atinentes ao âmbito da moral. O Décimo
Tropo de Enesidemo, tal como Sexto o apresenta, parte da evidencia-
ção da diversidade contraditória, entre os diversos homens e povos, de
regras de conduta, hábitos, leis, crenças míticas e demais crenças dog-
máticas concernentes a esse tema (cf. HP I, 145 ss.) Após uma exem-
plificação de como todos esses aspectos da moral podem ser, de várias
maneiras, opostos entre si, segundo as opções particulares de cada povo,
filósofo etc., Sexto explica que o cético não pode, tampouco aqui,
encontrar um critério racionalmente aceitável para julgar esse conflito.
O cético também aqui suspende seu juízo sobre a essência real daquilo
que se representa segundo tal diversidade, posto que não pode estabe-
lecer, entre os valores que implicitamente regem essas formas de agir

130

10888_A figura do filosofo.p65 130 28.03.07, 16:02


O império do costume

em conflito, e que estipulam diversamente o que é bom ou mal, o que


é verdadeiro (e intrinsecamente superior aos demais) (cf. HP I, 63).
Em vez disso, ele apenas reconhece que cada forma de agir é relativa
a um valor determinado e, sem pretender demonstrar racionalmente
sua superioridade aos demais, segue, de modo “não-dogmático”, como
parte do phainómenon, os costumes e leis em vigência no ambiente
cultural, segundo suas características próprias, em que o filósofo se insere
ou segundo os quais foi formado. Segue os valores que lhe parecem
corretos, sem presumir que eles possam ser provados intrinsecamente
verdadeiros, mediante uma demonstração racional definitiva, por opo-
sição aos seus rivais.
Os Ensaios oferecem inúmeros exemplos de enumerações de cos-
tumes, comportamentos e concepções dogmáticas morais em conflito
que claramente correspondem a instanciações desse tropo cético. Na
“Apologia”, particularmente, não são poucas as vezes que Montaigne
se ocupa de listar exemplos provenientes de Plínio e Plutarco sobre os
comportamentos dos povos diversos, ou de relatos dos viajantes sobre
os habitantes do Novo Mundo recém-descoberto, para exibir não ape-
nas a diversidade dos valores, mas também sua relatividade, no sentido
exato proposto pela argumentação sextiana1. O mesmo ocorre no capí-
tulo “Dos costumes”, que tem por um de seus eixos principais uma
argumentação moldada pelo mesmo tropo cético. Assim introduz ele
uma das recorrentes enumerações a que nos referimos:
[B] Estimo que não apareça na imaginação humana nenhuma fanta-
sia tão delirante que não encontre um exemplo nalguma usança pú-
blica e, por conseguinte, que nossa razão [discours] não sustente e fun-
damente. Há povos onde se voltam as costas para quem o cumprimen-
ta e não se olha nunca para aquele a quem se quer honrar. Há lugar
onde, quando o rei cospe, a mais favorita das damas da corte estende
a mão. E noutras nações os mais fenomenais em torno dele se abaixam
ao solo para colher num lenço a sua sujeira (etc.) (I, 23, 111 ss.).

1. Ver também II, 12, 573, 576-584, em que Montaigne expõe e comenta as contro-
vérsias filosóficas acerca da noção de bem e a impossibilidade de obtermos uma lei
natural.

131

10888_A figura do filosofo.p65 131 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Enfatizando a variedade potencial dos costumes, Montaigne a


equipara ao conjunto das fantasias humanas, aí compreendidas mes-
mo as mais “delirantes”, para, em seguida, observar que a razão pode
“sustentar e fundamentar” cada um desses comportamentos. Em que
sentido isso seria possível? Consideremos, por exemplo, o costume de
comer o cadáver dos pais mortos, mencionado por Montaigne na “Apo-
logia”. Se tal costume é para nós completamente abominável, ele pode
contudo ser justificado, pelos que o praticam, como um testemunho
de piedade, posto que não concebem para eles nenhuma sepultura
mais honrada que o seu corpo2. Mas isso não significa, é claro, que a
razão “fundamente” tal costume a fim de provar que ele seja verdadei-
ro, em detrimento dos demais. Isso parece significar, ao contrário, que
só podemos confundir essa razoabilidade com uma demonstração de
sua verdade enquanto não levamos ainda além o exercício da razão e
percebemos que também os costumes opostos podem ser objeto de
uma justificação racional de força comparável. Percebê-lo conduziria
a compreender que, no mesmo passo que a razão pode sustentar essa
diversidade inabarcável de comportamentos, acaba por se identificar à
diversidade das “fantasias” potencialmente produzidas pela imagina-
ção humana.
Mas, assim como ocorre no tropo pirrônico, essa experiência racio-
nal deve levar a uma reavaliação não apenas do efetivo poder demons-
trativo da razão nessa esfera temática, mas também do estatuto dos
costumes que permanecem orientando nossa prática. De saída, iden-
tificando o costumeiro como o que é conforme à razão (isto é, obser-
vando aquilo que é costumeiramente aceito segundo o viés pelo qual
a razão o pode justificar, um dentre os múltiplos vieses, potencialmen-
te contrários entre si, que a razão poderia adotar acerca do mesmo
tema), pensamos dispor de uma imagem das coisas como são por si
mesmas, em sua natureza, por oposição ao que nos parece desnatura-
do ou bárbaro. Uma observação adequada, porém, da diversidade dos
costumes, segundo sua razoabilidade própria, deve nos mostrar que

2. Ver 581A; III, 9, 985B.

132

10888_A figura do filosofo.p65 132 28.03.07, 16:02


O império do costume

essa primeira identificação entre o costumeiro e o razoável produz uma


imagem muito simplista das coisas: “As coisas possuem diversos lumes
e [possibilidades de] consideração: é daí que se engendra principal-
mente a diversidade de opiniões. Uma nação observa uma coisa por
um aspecto, e se detém nele; outra, por um outro…” (581A). Isso não
significa que devamos simplesmente abandonar nossa forma habitual
de agir; devemos, todavia, compreender que ela corresponde a apenas
um viés relativo e parcial de um aspecto entre os múltiplos a que a
razão pode contraditoriamente sustentar sobre as mesmas coisas e que
não se pode, portanto, confundir com uma apreensão verdadeira de
como elas são.
No argumento que acabamos de considerar, Montaigne se apóia
em valores que aceitamos implicitamente como base de nossos juízos
(por exemplo, a admissão de que um ente querido deva ter uma sepul-
tura digna), para deles extrair conseqüências inesperadas e contrárias
aos comportamentos deles inferidos. Tal oposição parece enquadrar-se
bem nas combinatórias previstas pelo tropo cético, segundo Sexto (em
particular, a oposição de um costume a outro que lhe é contrário).
Mas, se a conclusão visa mostrar que a razão pode sustentar costumes
contraditórios, não seria o caso de admitir que os valores implicitamen-
te aceitos representem alguma verdade, em detrimento dos demais?
Outros textos indicam a dificuldade que, segundo Montaigne, se ofere-
ce para obtermos um critério isento, que possibilite bem julgar a diver-
sidade cultural, dada a maneira pela qual os critérios normalmente se
produzem no interior de cada cultura. Avaliando os relatos acerca dos
povos tupinambás que reexpõe ao leitor, ele assim se pronuncia:
[A] Ora, eu acho … que não há nada de bárbaro e selvagem nessa
nação, pelo que me reportaram, senão que cada um chama de bár-
baro o que não é de seu uso — como, em verdade, não parece que
tenhamos outra mira da verdade e da razão que o exemplo e a idéia
das opiniões e usanças do país de onde somos… (I, 31, 205).
Essa passagem mostra bem que está em jogo, mais amplamente, a
percepção da situação relativa na qual inevitavelmente nos situamos
para julgar uma cultura diversa (em decorrência, por certo, da incapa-
cidade de reconhecer um critério isento que possa dirimir as oposi-

133

10888_A figura do filosofo.p65 133 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ções). Foi sobretudo graças a seu fundamento cético que o ensaio “Dos
canibais” (I, 31) — no qual Montaigne pretende pôr em questão a
maneira pela qual os leitores (tacitamente os europeus) se outorgam
uma superioridade injustificada com relação aos tupinambás — se tor-
nou um marco do relativismo antropológico moderno.
Opondo-se, ademais, à tendência de desqualificarmos como “bár-
baros” os costumes diversos dos que praticamos, Montaigne afirma que
assim proceder é pôr-se numa situação “própria do vulgo”, isto é, da-
quele que considera as coisas pela voz comum, e não pela via da razão
(v. I, 31, 202A). Como dissemos, Montaigne soube ver que o ceticismo
não é um irracionalismo, ainda que o reconhecimento desse fato con-
duza a afirmações que beiram o paradoxo. Na citação anterior, a supe-
ração racional da atitude do vulgo (que condena como bárbaro o que
é contrário ao seu costume) parece levar ao reconhecimento de que
nosso critério de “razão e verdade” situa-se apenas no próprio costume,
isto é, no “exemplo e na idéia das opiniões e usanças do país de onde
somos”. Porém, prestemos atenção ao modo como o juízo de Montaig-
ne que introduz esse ponto é modalizado: “não parece que tenhamos
outra mira de razão e verdade”. O que significa isso? Por mais que
nossos valores possam limitar nosso acesso ao que nos é inabitual, tal-
vez essa formulação procure capturar a perspectiva daquele que se si-
tua segundo aquilo que lhe parece verdadeiro e razoável (por oposição
ao “bárbaro”), antes de ter devidamente avaliado o modo como a razão
pode igualmente secundar costumes diversos e, assim, reconhecer que
tal mira originária “da razão e da verdade” precisa ser corrigida. Não
fosse assim, como compreender o sentido da crítica que o próprio en-
saio desenvolve, em busca de relativizar o juízo de seu leitor acerca do
que é natural (e do que é, por oposição, bárbaro), no que tange aos
povos do Novo Mundo? Essa crítica cética destina-se, afinal, a neutra-
lizar a primeira avaliação que tendemos a fazer, quando imersos em
nossos costumes, do que poderia parecer, a um só tempo, racional e
verdadeiro, desse ponto de vista.
Contudo, o modo como razão e costume tendem a se relacionar
paradoxalmente — ora a razão podendo se confundir com o costume,
ora podendo, graças a um aprofundamento de sua ação, dele recuar e

134

10888_A figura do filosofo.p65 134 28.03.07, 16:02


O império do costume

perceber-se distinta — é portador de um significado relevante para a


compreensão do ceticismo de Montaigne. Esse significado torna-se mais
claro quando se considera mais de perto suas reflexões epistemológicas
sobre o costume no ensaio I, 23. A primeira parte desse ensaio, como
antecipamos, constitui-se de uma ampla e diversificada exposição do
“império do costume”, isto é, do poder enorme porém normalmente
despercebido com que ele age, intervindo mesmo em nossas percep-
ções, fazendo-nos aceitar como naturais as coisas que são por ele pro-
duzidas3. Tal exame o conduz à seguinte conclusão: “[A] … na minha
opinião [fantasie], não há nada que [o costume] não faça ou não pos-
sa…” (I, 23, 115). Esse violento e traiçoeiro mestre, diz ele, dobra, de
todos os modos, as “regras da natureza” e nos impede de reconhecer a
dimensão em que o próprio costume se apresenta naquilo que pensa-
mos reconhecer como natural:
[A] Parece-me ter muito bem concebido a força do costume aquele
que primeiro forjou este conto: que uma camponesa, tendo aprendi-
do a acariciar e carregar entre seus braços um novilho desde seu
nascimento, e sempre continuando a fazê-lo, ganhou isto do costu-
me: boi grande ele já era e ela o carregava ainda. Pois, na verdade, o
costume é um violento e traiçoeiro professor. Ele estabelece em nós,
pouco a pouco, às ocultas, o pé de sua autoridade; mas por esse suave
e humilde começo, tendo-o assentado e firmado com a ajuda do
tempo, ele nos mostra tão logo uma face furiosa e tirânica, contra a
qual não temos mais a liberdade de levantar sequer os olhos. Vemo-
lo forçar de todo modo as regras da natureza: “Usus efficacissimus
rerum omnium magister” (O costume é o mais poderoso mestre de
todas as coisas) (I, 23, 109).
A essa particularidade soma-se outra. O costume age tanto sobre
nosso corpo — modelando nossas capacidades físicas, nossa alimenta-
ção e mesmo nossa percepção sensível — como sobre nossa alma, que
se deixa arrastar em suas crenças, seus juízos e mesmo no que Mon-
taigne diz serem nossas “leis de consciência”, que também admitimos,

3. Referimo-nos aqui a uma primeira parte do texto, que corresponderia às p. 108-


116 da edição Villey.

135

10888_A figura do filosofo.p65 135 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

equivocadamente, serem leis supostamente naturais4. Agindo sobre nossa


alma, na qual encontraria “menos resistência”, segundo Montaigne,
ele teria um poder irrestrito sobre nossos juízos e crenças, podendo
corroborar toda e qualquer opinião, por mais bizarra que fosse, ao con-
vertê-la em lei nalguma determinada região (v. I, 23, 111) — e, mais do
que isso, intercedendo para admitirmos como “natural” ou “racional”
aquilo que assim se afigurasse a nós graças à sua ação:
[A] Posto que nós o sorvemos com o leite de nosso nascimento, e
que o mundo se apresenta nesse estado em nosso primeiro olhar,
parece que nascemos sob a condição de seguir sempre esse anda-
mento. E as opiniões [imaginations] comuns, que encontramos em
crédito em torno de nós, e infundidas em nossa alma pela semente
de nossos pais, parecem-nos ser gerais e naturais. [C] Donde advém
que aquilo que está fora do costume, crê-se fora da razão: Deus sabe
o quanto isso se faz de modo desarrazoado, no mais das vezes… (I,
23, 115-116).
Assim, costume e natureza constituiriam, ao menos em princípio,
instâncias distintas, se não opostas. Porém, uma vez em ação, o costu-
me dobra as leis da natureza e se sobrepõe a elas, apresentando-nos
como “natural” ou “racional” o que ele produz como uma simples
aparência de natureza, e como portador de uma racionalidade que, à
luz da crítica cética, se revela insuficiente. Além disso, o costume, as-
sim agindo, de modo gradual e por vezes imperceptível, possui essa
curiosa mas fundamental peculiaridade de nos impedir de “levantar os
olhos”, como diz Montaigne, para observar exatamente a medida em
que ele age. Ao travestir-se de “natureza” ou “razão”, o costume, nessa
mesma medida, esconde-se. Não devemos minimizar aquele que, nas
palavras de Montaigne, é o principal efeito do costume:
[A] Mas o principal efeito de sua potência é o de nos tomar e nos
dobrar de tal forma que quase não está em nós o poder de nos reaver-
mos de suas presas e de voltarmos a nós, para refletir e raciocinar
acerca de suas ordens. Em verdade, posto que nós o sorvemos com o

4. Ver I, 23, 115C. Com “leis de consciência” Montaigne parece aludir aos valores
que pautam nossa conduta moral.

136

10888_A figura do filosofo.p65 136 28.03.07, 16:02


O império do costume

leite de nosso nascimento, e que o mundo se apresenta nesse estado


em nosso primeiro olhar, parece que nascemos sob a condição de
seguir sempre esse andamento… (I, 23, 115).
Noutros termos, o próprio costume, através de sua ação, priva-nos
dos critérios pelos quais ele poderia ser reconhecido enquanto tal; sua
presença tende, assim, a ser sempre maior ou mais efetiva do que esta-
mos aptos a perceber. Eis por que Montaigne ocupa-se não apenas de
mostrar como ele nos oculta a verdadeira face das coisas, mas também
como ele intervém em diversos aspectos de nossa vida.
Mas demarcar as linhas gerais desta sua forma traiçoeira de agir
não é ainda apontar, em cada caso particular, onde e como ele age: a
reflexão aqui se limita a alertar para o fato de que, quando, em geral,
julgamos algo como razoável, podemos estar apenas equivocadamente
identificando razão e costume. Se a ação do costume priva-nos do cri-
tério que nos permitiria reconhecer o modo pelo qual ele se disfarça de
“natureza” ou de “razão”, a cada vez que julgamos ser algo conforme
à natureza e à razão parece haver, ao menos em princípio, uma possi-
bilidade de estarmos nos equivocando nessa identificação. Tal reflexão
cética sobre o costume tem, portanto, esta conseqüência capital: nosso
juízo acerca do que é natural ou racional pode ser sempre presa de
algum adormecimento produzido por essa forma de agir do costume.
[C] Os milagres ocorrem segundo a ignorância em que nos encontra-
mos da natureza, não segundo o verdadeiro ser da natureza. O habi-
tuar-se [l’assuefaction] adormece a vista de nosso juízo. Os bárbaros
não são em nada mais maravilhosos para nós do que nós o somos para
eles, nem com mais ocasião, como cada um confessaria se soubesse,
depois de ter passeado por esses novos exemplos, considerar os seus
próprios e compará-los sensatamente [sainement]. A razão humana é
uma tintura infusa com aproximadamente a mesma carga em todas
as nossas opiniões e costumes [moeurs], tenham a forma que tiverem:
infinita em matéria, infinita em diversidade… (I, 23, 112).
Sendo a reflexão cética o meio pelo qual a “vista de nosso juízo”
pode nalguma medida despertar, cabe bem aqui a expressão “sono dog-
mático”, que Kant tornou célebre, para designar a ação do costume.
Por seu intermédio se produz uma imagem determinada da natureza,

137

10888_A figura do filosofo.p65 137 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ocultando, seja qual for ele, o “ser da natureza”, que sob esse viés não
pode ser apontado senão como diverso e oposto do que percebemos
como natural, isto é, como “milagre”; sua causa é uma paralisia, nal-
gum grau, de nossa capacidade de refletir e raciocinar, de julgar ade-
quadamente as coisas e de reconhecer enfim que nosso juízo não age
de modo plenamente racional.
Mas até onde pode a reflexão avançar nessa tarefa reanimadora? A
julgar por algumas passagens, ela pode conduzir a paisagens bastante
imprevistas:
[A] Ir segundo a natureza, para nós, não é senão ir segundo nossa
inteligência, à medida que ela avança e o tanto que aí vemos. O que
fica além é monstruoso e desordenado. Ora, a essa conta, para os
mais sábios e capazes tudo será, portanto, monstruoso, pois a esses a
razão humana bem persuadiu que não possui nenhum pé ou funda-
mento… (II, 12, 526).
Deveríamos tomar ao pé da letra essa última afirmação? É possível
que, nas duas últimas passagens citadas, opere algum exagero retórico,
pois é certo que não se trata de proceder a uma crítica do sábio cético
como alguém que seria conduzido a uma doutrina impraticável: tais
passagens se harmonizam com o sentido geral da análise cética do cos-
tume. Elas parecem, contudo, orientar o ceticismo aí implícito num
sentido particularmente radical, ao identificar estreitamente aquilo que
nos surge como natural ou compreensível — de modo bastante amplo:
“ir segundo nossa inteligência” — e um possível falseamento dogmáti-
co, eventualmente relacionado à ação do costume, cuja descoberta de-
riva da compreensão de que a “razão humana … não possui nenhum
pé ou fundamento”. A julgar por esse texto, tudo se passa como se, a
cada vez que nos deparamos com alguma impressão de certeza, propi-
ciada por nosso entendimento particular das coisas, pomo-nos ipso fac-
to diante de um potencial candidato à suspensão, que convidaria a re-
flexão cética a prosseguir ainda além. Nunca poderíamos dispor de
uma garantia absoluta de que, ao julgarmos acerca do que seria natural
ou racional, não seríamos enganados pelo costume. Por onde se deve
concluir que tais juízos são sempre relativos — em especial, à nossa
capacidade individual de empreender tal reflexão cética, que, por si

138

10888_A figura do filosofo.p65 138 28.03.07, 16:02


O império do costume

mesma, não tem o poder de produzir uma versão última e absoluta do


que devemos racionalmente aceitar.

3.2. Costume e dogmatismo


A concepção montaigniana do poder do costume e de suas conse-
qüências dogmáticas, tal como aqui considerada, articula-se a uma
compreensão particular da idéia da adesão cética ao phainómenon como
critério prático, como veremos neste capítulo, bem como a uma inter-
pretação própria da relação entre essa adesão e a epokhé, como vere-
mos mais adiante, no capítulo VI. Antes, porém, importa examinar-
mos em que medida essa discussão sobre o costume poderia ser apro-
ximada das fontes do ceticismo antigo. Graças ao tratamento que dá a
essa temática, Montaigne se candidata a ser o primeiro autor de orien-
tação cética no qual, a exemplo do que ocorrerá posteriormente com
Hume, a reflexão epistemológica sobre o poder do costume como ele-
mento organizador da experiência ganha um papel central. Mas em
que medida a noção montaigniana de costume corresponderia àquela
que se faria presente em Sexto ou Cícero? À primeira vista, tem-se a
impressão de que há uma amplificação no escopo desse conceito, pois
tanto os costumes abarcados pelo escopo do Décimo Tropo de Enesi-
demo, em sua ação relativizadora, como aqueles a que Sexto se refere
como constituintes de um aspecto do phainómenon, que o cético ado-
ta como critério de ação, parecem dizer respeito, nos textos antigos,
apenas à esfera da moral, da admissão de valores e regras de conduta.
Não é o que observamos nas passagens de Montaigne que acabamos
de analisar: seu ceticismo questiona, mais amplamente, o modo pelo
qual o costume encobre a natureza, mesmo na esfera de nossa percep-
ção sensível, comprometendo nosso entendimento das coisas. Em vir-
tude desse aporte epistemológico, afinal, é que ele passa a ser encarado
como causa potencial de uma apreensão dogmática de como as coisas
são em sua natureza. Podemos encontrar algo de análogo no pirronis-
mo antigo?
Embora não seja diretamente concernente ao éthos, termo usado
para Sexto para designar uma maneira comum de agir, respaldada ou

139

10888_A figura do filosofo.p65 139 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

não por uma lei5, o Nono Tropo de Enesidemo, tal como o apresenta
esse autor, destina-se a estabelecer a suspensão com base no modo di-
verso com que as coisas nos impressionam, relativamente à sua rarida-
de ou à freqüência com que ocorrem (cf. HP I, 141-144). Em geral, diz
Sexto, aquilo que é raro, único, ou que vemos pela primeira vez, sur-
preende-nos mais que aquilo a que estamos habituados. Embora o sol
seja mais impressionante (ekpléktikos) que um cometa, o segundo nos
impressiona mais devido à sua raridade; muito mais impressionante
ainda seria o sol, argumenta ele, se apenas raramente iluminasse as
coisas com seu brilho costumeiro (HP I, 141). Por conseguinte, não
podemos dizer como é o objeto externo em si mesmo — impressionan-
te, valioso, ou o oposto disso —, mas apenas relatar o modo como ele
nos aparece em virtude dessa circunstância.
Como compreender o sentido da suspensão aí proposta? Trata-se
de mostrar que as coisas nos parecem “impressionantes” (expressão esta
que ganha, portanto, um sentido bastante difuso, posto que os exem-
plos abarcam o valor que atribuímos ao ouro por sua raridade6, a sur-
presa que temos diante da primeira visão do mar ou ainda a impressão
sensível causada pela luminosidade do sol) de um modo sempre rela-
tivo à nossa experiência, embora tendamos a atribuir esses valores e
impressões integralmente às próprias coisas. Mas isso não significa, tam-
pouco, que se possa determinar que tal impressão seja meramente
ocasionada por nossa reação subjetiva, como mostra o experimento
mental proposto pela comparação entre o sol e o cometa (segundo o
qual se infere que o sol pareceria mais “surpreendente” que o cometa
se a freqüência de aparição daquele pudesse à deste ser equiparada).
Sobrepõem-se aqui uma eventual diferença objetiva das coisas e uma
diferença ligada ao modo como subjetivamente as coisas nos aparecem
submetidas a alguma freqüência ou raridade particular segundo nossa
experiência; não podemos, porém, observar as coisas de modo inteira-
mente isento, sem estarmos situados nalguma experiência particular

5. Ver, por exemplo, HP I, 146.


6. Ver HP I, 143.

140

10888_A figura do filosofo.p65 140 28.03.07, 16:02


O império do costume

que relativize, desse ponto de vista, o modo como as apreendemos7.


Cabe concluir que, desde que algo seja objeto de alguma experiência,
as impressões que nos causa serão relativas a esse seu modo de aparecer
(mais ou menos freqüente), sem que possamos exatamente dizer como
ele seria em si mesmo, independentemente dessa situação, no que tan-
ge à sua “natureza impressionante”, isto é, seu valor intrínseco ou sua
capacidade de nos causar a impressão que nos causa.
Montaigne considerou esse tropo cético em suas reflexões sobre o
tema em pauta. No ensaio 27 do livro primeiro ele retoma os exemplos
com que Sexto o ilustra — “[A] Aquele que jamais tinha visto um rio,
ao encontrar o primeiro pensou que fosse o oceano…” (I, 27, 179) —
para criticar os que confundem o verossímil com o verdadeiro, incapa-
zes de reconhecer que a própria natureza está sempre além de nossa
apreensão, meramente relativa, do que é natural:
[A] Se chamamos de monstros ou milagres aquilo aonde nossa razão
não chega, quantos deles não se apresentam continuamente aos nos-
sos olhos? Consideremos através de quantas névoas, e o modo tateante
pelo qual nos encaminhamos ao conhecimento das coisas que temos
entre as mãos: certamente reconheceremos que é antes o costume
que o saber [science] que nos tira sua estranheza … e que tais coisas,
se nos fossem apresentadas pela primeira vez, nós as tomaríamos como
tão ou mais incríveis que quaisquer outras… (I, 27, 179).
Tal como preconiza o Nono Tropo, Montaigne alude aqui ao modo
como a familiaridade ou falta de familiaridade com as coisas interfere
em como as julgamos. Tal como faz Sexto, trata-se aqui de sublinhar
que a apreensão dos objetos é relativa à nossa experiência particular,
embora a confundamos com um conhecimento da própria natureza
das coisas. Mas é sobretudo relevante assinalar que, nesse ensaio, o
mesmo termo “costume” que noutras passagens serve para designar os
modos de agir aos quais somos habituados é usado para designar o efei-
to pelo qual a familiaridade de nossa experiência interfere em nossa

7. Sexto inclui esse Tropo na classe daqueles que se referem à relação entre sujeito
e objeto (enquanto, diversamente, o Décimo Modo corresponderia apenas à relação
objetiva entre as coisas); cf. HP I, 38-39.

141

10888_A figura do filosofo.p65 141 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

apreensão das coisas. Montaigne parece assim se valer de um único


termo que, por sua capacidade semântica, pode designar instâncias que
no ceticismo pirrônico são abordadas separadamente — aquilo a que
implicitamente o Nono Tropo se refere como uma circunstância geral
relativa à freqüência de nossas percepções e aquilo que, apenas no âm-
bito de nossos comportamentos, o Décimo Tropo focaliza como o re-
sultado consolidado do habituar-se. Diríamos que tudo se passa como
se o texto de Montaigne refletisse o esforço de considerar coerente-
mente os diversos aspectos em que uma mesma noção seria implicita-
mente tematizada em momentos diferentes da argumentação suspen-
siva pirrônica original. O mesmo costume que, de modo geral, atuasse
sobre nossa experiência perceptiva seria aquele que se faria presente de
modo particular nos comportamentos morais; num caso como noutro,
estaríamos à mercê de seu poder distorcedor diante da efetiva relativi-
dade com que nossa experiência se ofereceria, confundindo, em algum
grau, aquilo que será seu produto com uma apreensão de como as
coisas seriam em si mesmas.
Em que medida, porém, isso constituiria uma inovação filosófica?
Até que ponto essa liberdade reflexiva em face dos elementos céticos
produziria um resultado conceitualmente fiel à reflexão dos antigos
céticos? A partir de que ponto transcenderia as possibilidades teóricas
do pirronismo antigo? Parece haver ocasião de apontar uma diferença
pertinente ao ponto em questão. No Nono Tropo pirrônico, a freqüên-
cia e a raridade são opostas como circunstâncias perceptivas distintas
que, por suscitarem avaliações diversas das coisas, não nos permitem
dizer o que sejam em si mesmas; na reflexão de Montaigne, porém, é
o próprio costume que parece adquirir, positivamente, o papel de
distorcer a apreensão da natureza. Se há distorção, se deve aqui ao modo
como ele nalgum grau se faz presente (de modo tal que, suprimida a
máscara projetada pelo costume, as coisas poderiam talvez se mostrar
como são em sua natureza própria). Não representaria isso uma trans-
formação conceitual relevante?
A concepção de que o costume é portador de um efeito falseador
de nossa apreensão da natureza parece remeter às fontes acadêmicas
que, também no âmbito dessa temática, são igualmente mobilizadas

142

10888_A figura do filosofo.p65 142 28.03.07, 16:02


O império do costume

por Montaigne. Em I, 27, ele cita uma passagem do De natura Deorum


para corroborar a mesma idéia de que a ação do costume tem por efeito
adormecer nossa busca de conhecer as coisas: “[C] Pelo acostumar-se
dos olhos familiarizam-se os espíritos; eles não mais se surpreendem
com o que vêem sem cessar e não buscam mais as causas daquelas que
sempre vêem” (I, 27, 180)8. E, no ensaio “Do costume…”, as reflexões
céticas são ilustradas com outra passagem da mesma obra: “[C] E é
muito justa esta antiga exclamação: É vergonhoso para um naturalista,
isto é, para alguém que é observador e especulador da natureza, buscar
nas almas imbuídas pelo costume o testemunho da verdade”9. Signifi-
caria isso, contudo, que a reflexão de Montaigne tomaria claramente
partido dos acadêmicos, por oposição aos pirrônicos? Para evitar con-
clusões precipitadas, examinemos melhor como o costume pode de-
sempenhar, segundo Montaigne, o papel de instituir dogmatismos.
Consideremos esta outra alusão ao tema do Nono Tropo de Ene-
sidemo, em que os efeitos da freqüência ou da raridade surgem como
justificativa do método de argumentar empregado ao longo da discus-
são sobre a semelhança entre os homens e animais, na crítica à “vai-
dade do homem” presente na “Apologia”:
[A] Nós admiramos e valorizamos mais as coisas incomuns [estran-
geres] do que as ordinárias; e, não fosse isso, eu não teria me ocupado
deste longo registro: pois, segundo minha opinião, quem vasculhar
de perto aquilo que vemos ordinariamente nos animais que vivem

8. Dnd, II, xxxviii, 96. A citação provém da crítica estóica ao epicurismo e é empre-
gada por Montaigne como premissa da defesa da adesão integral aos artigos de fé da
religião cristã (contra aqueles que, confundindo o verossímil com o verdadeiro, preten-
dem eleger por si mesmos os artigos de fé aceitáveis).
9. Dnd, I, XXX, 81, citado em I, 23, 111C. No contexto original do qual é extraída,
essa passagem constitui uma réplica que o cético Cotta, representante da Nova Acade-
mia, endereça ao antropomorfismo da teologia epicurista. Particularmente, trata-se de
observar que, a despeito de todos os absurdos e incongruências gerados pela pressupo-
sição de deuses de forma humana, se os epicuristas os aceitam, isso se deve ao fato de
que os romanos, desde sua infância, foram postos em contato com deuses representados
por essa forma. No ensaio de Montaigne, ela se insinua como “desculpa” das fantasias
humanas que as religiões elaboraram sobre aquilo que desconhecemos, à falta da cla-
reza da verdade revelada.

143

10888_A figura do filosofo.p65 143 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

entre nós encontrará fatos [effects] tão admiráveis quanto aqueles que
se podem recolher nos países e séculos estrangeiros … Eu vi outrora
entre nós homens trazidos pelo mar de país longínquo, dos quais não
entendíamos nada de sua língua, cuja feição, em suma, e a postura,
e as roupas eram totalmente distantes das nossas; quem de nós não os
acharia selvagens e brutos? … Tudo o que nos parece estranho nós
o condenamos, e também o que não entendemos, como ocorre no
juízo que fazemos dos animais. Eles têm diversas condições que se
reportam às nossas; dessas, por comparação, podemos tirar alguma
conjectura; mas acerca do que eles têm de particular, o que nós sa-
bemos?… (467).
Nesse trecho parecem articular-se as temáticas de pelo menos três
Modos pirrônicos: o Nono, o Décimo e o Primeiro (em vista do qual
devemos admitir o testemunho perceptivo dos animais, potencialmen-
te diverso do nosso, como ocasião de constatar a relatividade da percep-
ção humana). Exatamente como Sexto, ao apresentar o Nono Modo,
Montaigne assinala que as coisas incomuns nos parecem mais valiosas
e admiráveis, e tampouco se pretenderia aqui suprimir a própria expe-
riência pela qual tais coisas são imediatamente percebidas como pos-
suidoras desses valores. Se Montaigne explora retoricamente a admira-
ção causada pelo inusitado, cuida também de assinalar que o valor que
atribuímos às coisas raras é relativo — uma vez que os objetos da nossa
experiência comum, por si mesmos, não lhes são intrinsecamente infe-
riores. O dogmatismo aqui alvejado parece residir, justamente, na crença
de que os fatos (effects) com os quais estamos habituados possuam em
si um valor diverso daqueles que nos causam admiração por serem de
países e séculos longínquos. A despeito dessas similaridades, a argu-
mentação de Montaigne ganha um viés inesperado. Montaigne pros-
segue afirmando que os mesmos exemplos inusitados (que pareçam,
nessa medida, valiosos) são objeto de uma desvalorização, derivada,
precisamente, do fato de escaparem de nosso hábito: “Tudo o que nos
parece estranho nós condenamos, e também o que não entendemos,
como ocorre no juízo que fazemos dos animais”. Assim, a estupidez
que atribuímos aos animais é aqui associada à estranheza dos bárbaros:
o inusitado e não-habitual, se suscita admiração, suscita igualmente

144

10888_A figura do filosofo.p65 144 28.03.07, 16:02


O império do costume

condenação. Como compreender essa aparente reviravolta a que seria


submetido o tropo cético aqui reinterpretado?
Notemos primeiramente que essas duas valorações estão relacio-
nadas a duas formas diversas pelas quais o costume se apresenta. No
primeiro caso, o caráter “impressionante” está diretamente ligado à
falta de regularidade com que o evento é percebido e, nessa medida,
pode ser reconhecido, de alguma maneira, como relacionado ao cos-
tume (ou à sua ausência). O mesmo não parece ocorrer, à primeira
vista, com a segunda valoração: na medida em que nos são estranhos,
os animais e os outros povos nos surgem não mais como meramente
incomuns ou inabituais, mas como racionalmente ou naturalmente
inferiores. Essa segunda valoração, porém, corresponderia à esfera de
valoração sobre a qual incidiria o Décimo Tropo de Enesidemo: se
outros povos agem de um modo que, segundo nossos costumes, pode
nos parecer estranho, cabe evocar a forma como a razão pode secun-
dar esse modo de agir e suspender o juízo diante dessa diversidade,
reconhecendo, por conseguinte, que nossa avaliação prévia sobre sua
inferioridade é injustificada. Graças a essa atividade suspensiva a valo-
ração inicial pode, nesse caso, revelar-se como mero efeito do costu-
me, disfarçado pelo fato de termos antes conferido um poder desmesu-
rado ao apoio racional que supúnhamos poder oferecer privilegiada-
mente ao que nos era familiar.
Considerar que essas duas valorações podem ser diversamente rela-
cionadas ao reconhecimento da presença do costume como causa nos
permite ver que, embora pudéssemos supor que se trataria de extrair
efeitos contraditórios da própria ação do costume, não é disso que se
trata, pois, no segundo caso, o simples reconhecimento de que o cos-
tume é uma causa contribuiria para uma reavaliação. Isso significa que
não se trata de pretender contradizer o sentido original do tropo pirrô-
nico, uma vez que não se trata de se opor à constatação de que tende-
mos a emprestar ao inusitado uma valoração positiva (eventualmente
injustificada, posto que, para aquele que vasculhar de perto, nossa ex-
periência próxima oferece fatos igualmente surpreendentes). É, contu-
do, gratuita, essa aparente reversão de perspectivas, pela qual um tema
cético é paradoxalmente desenvolvido no sentido oposto daquele que

145

10888_A figura do filosofo.p65 145 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

parece ser o seu originalmente, que emerge uma vez que trazemos o
texto para perto de suas fontes pirrônicas (de modo análogo ao que
vimos ocorrer noutras ocasiões)? Talvez essa peripécia nos dê ocasião
de assinalar, em vez disso, que Montaigne pretende, a despeito da se-
melhança conceitual das discussões, assinalar a dificuldade da tarefa
do efetivo reconhecimento da dimensão com que a ação do costume se
apresenta. Pois afirmar que a segunda valoração (segundo a qual o ina-
bitual é visto como estranho e inferior) não é diretamente relacionada
à presença do costume não significa, como vimos, dizer que ela não
seja causada por ele: ela é, com efeito, produto de um costume que se
escondeu a si mesmo e não pode mais ser visto como mero costume por
aquele que avalia desse modo (e pensa, afinal, estar simplesmente jul-
gando conforme a razão). Assim, essa curiosa solda argumentativa en-
tre as reflexões céticas que parecem ser tomadas dos Tropos Nono e
Décimo, pelo elo conceitual do reconhecimento da ação do costume
em ambos os casos, não apenas oferece uma exemplificação do movi-
mento pelo qual o costume se esconde a si mesmo (e que pareceria, à
primeira vista, ser inteiramente avulso em vista dos elementos céticos
da reflexão), mas o faz coincidir com uma aparente inversão do sentido
de sua ação.
Em que medida, afinal, essa espécie de “dialética” montaigniana se
afasta de um registro cético? Independentemente do sentido que ganha
em face de fontes que Montaigne presumivelmente tem em vista, a
passagem parece conter um comentário paradoxal sobre o costume: sua
ação parece produzir ora uma espécie de desvalorização, ora uma espé-
cie de valorização. Nos dois casos, porém, a avaliação é objeto de críti-
ca: ela corresponderia a juízos dogmáticos, que falseiam nossa apreen-
são. Se assim é, esse expediente pelo qual Montaigne argumenta de
ambos os lados (mostrando que dois efeitos opostos podem ser igual-
mente extraídos do modo como um único exemplo se subordina à nossa
apreciação costumeira) assinala também o duplo sentido em que se
manifesta seu efeito dogmatizante. Ao menos negativamente, seria pre-
ciso concluir que a identificação de sua presença não poderia se tradu-
zir na identificação de uma espécie de lei pela qual o costume invaria-
velmente agiria (a que seríamos conduzidos, por exemplo, se nos ativés-

146

10888_A figura do filosofo.p65 146 28.03.07, 16:02


O império do costume

semos apenas ao sentido de seu efeito tal como apontado pelo Nono
Tropo). Mais precisamente, mesmo que seja possível, em determinado
sentido preciso, reconhecer efeitos regulares da ação do costume (ao
acostumarmo-nos com as coisas, passamos a julgá-las menos dignas de
atenção e de curiosidade), isso não diz respeito exatamente às razões
pelas quais ele poderia, segundo Montaigne, ocasionar uma apreensão
dogmática das coisas. Alegar que ele pode ser causa tanto de uma valo-
rização como de uma desvalorização da mesma coisa (ainda que sob
vieses diferentes) talvez seja apenas uma forma diversa de sublinhar o
caráter ardiloso e imprevisível de sua ação. Essa ilustração da ambigüi-
dade do costume, assim, esclarece por que o costume se torna causa de
dogmatismo na justa medida em que, como diz Montaigne, ele se “es-
conde a si mesmo”. E isso, a bem dizer, parece ser visível nos casos dos
problemas considerados pelos dois Tropos (e refletidos na duplicidade
dos efeitos), ainda que em graus e sentidos diferentes. Num primeiro
momento, embora se trate de um efeito cuja relação com o costume é
ainda imediatamente visível, o juízo dogmático decorre de não sermos
capazes de ver que aquilo que tomamos como um valor da própria coisa
é determinado nalgum grau pela ingerência de nos acostumarmos. Con-
fundimos aquilo que é relativo ao costume com o que a coisa é, mesmo
sendo capazes de reconhecer que o costume age no sentido de produzir
uma valorização determinada das coisas. Trata-se, contudo, apenas de
um primeiro grau de adormecimento de nosso juízo, que se aprofunda
no momento em que nem mesmo a ação do costume pode mais ser
percebida, como ocorre nos casos em que deixamos de reconhecer sua
presença como algo que contribui para o juízo sobre a naturalidade ou
a racionalidade do que percebemos. Assim, em suma, o costume se
esconde a si mesmo, fomentando uma apreensão dogmática das coisas,
sem ser o fundamento positivo desse dogmatismo. Seus efeitos dogmá-
ticos decorrem não do fato de distorcer nossas percepções sempre num
mesmo sentido, mas do modo como ele nos impede de julgar adequa-
damente as coisas, tanto as que valorizamos como as que desvaloriza-
mos. Importa aqui lembrar que, embora a ação do costume possa ter
essa conseqüência negativa do ponto de vista da pretensão de conhecer
as coisas, sua ação não é tida por Montaigne como intrinsecamente má

147

10888_A figura do filosofo.p65 147 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

(pois a banalização da experiência trazida pelo costume pode também


tornar suportáveis as experiências dos males, na falta de outros meios
de enfrentá-las)10.
Confrontada com as fontes céticas que implicitamente são aqui o
pano de fundo, essa discussão teria talvez ainda o efeito indireto de
refinar a interpretação do ceticismo que subjaz à discussão (o que fica-
rá mais claro à luz do exame de outras passagens, que consideraremos
no capítulo VI). Sugerimos que extrair do exemplo pirrônico, por meio
da ambigüidade do costume, um efeito contrário (a valorização devida
ao hábito) não é pretender refutar o pirronismo (como poderia parecer
se não prestássemos atenção ao sentido preciso de sua argumentação),
mas oferecer uma ilustração da possibilidade de “argumentar dos dois
lados” (e exibir implicitamente a própria natureza ambígua do costu-
me). É, ao mesmo tempo, sublinhar que as regularidades eventual-
mente observadas na forma como o costume positivamente se manifes-
ta não tocam no que é relevante para o efeito relativizador da argumen-
tação cética, com o qual os diversos aspectos dessa passagem montaig-
niana parecem estar perfeitamente em sintonia. Ao identificar a falta
de costume como causa de uma valorização especial, ou de um rebai-
xamento que é fruto da vaidade dogmática alvejada na “Apologia”, em
ambos os casos o dogmatismo está associado com a crença de que nossa
avaliação das coisas — aquilo que nos parece verdadeiro (o que é veros-
símil para nós) — corresponderia a um conhecimento das próprias
coisas. Não é outro o sentido da reflexão de Montaigne no ensaio I, 27,
supraconsiderado.
Por certo esse amálgama argumentativo — pelo qual Montaigne
pretenderia coligir tais Tropos pirrônicos como elementos distintos e
complementares de uma única reflexão coerente sobre a ação do cos-
tume — constitui uma apropriação surpreendente e inventiva de ele-
mentos céticos. O modo como ele focaliza a noção de costume não
apenas lhe permite harmonizar e integrar, em sua reflexão, as diversas

10. Trata-se de um aspecto da reflexão moral tardia sobre o poder do costume nos
Ensaios, cuja raiz pode aqui ser reconhecida. Ver, a esse respeito, II, 37, 759B; III, 13,
1092BC.

148

10888_A figura do filosofo.p65 148 28.03.07, 16:02


O império do costume

fontes céticas consideradas (pirrônicas e acadêmicas), mas também


identificar um ingrediente potencialmente onipresente em nossa expe-
riência que, em virtude de nossa incapacidade de reconhecê-lo plena-
mente, possui um poder ilimitado de instaurar uma apreensão dogmá-
tica das coisas. Porém, parece-nos que, para sermos precisos, devemos
reconhecer que, em vez de inovar filosoficamente relativamente às suas
fontes céticas, também aqui se trata sobretudo de pretender reorgani-
zar coerentemente os materiais antigos e deles extrair uma conclusão
relativista análoga àquela que lhe parece legada nesses materiais — por
mais que a idéia de costume adquira o papel expressivo e central que
adquire em sua reflexão cética. Em vez de oferecer motivos para iden-
tificarmos seus desenvolvimentos como inovadores relativamente às suas
fontes, o que vemos, ao contrário, é apenas o elogio de Montaigne à
justeza da crítica dos antigos no âmbito dessa temática.
Saber se tais conseqüências são exatamente idênticas às que os
antigos pirrônicos extraíram de sua reflexão demanda uma exegese do
ceticismo antigo que vai além de nosso propósito aqui; possivelmente
o próprio Montaigne não presumiria que pudessem ser (por razões outras
que serão adiante consideradas). Porém, mesmo sendo o resultado de
um esforço de rearticular elementos céticos fielmente à coerência pró-
pria de suas versões antigas, isso não impede que se produza, desse
modo, uma interpretação particularmente radical do sentido relativiza-
dor dessa reflexão. Tudo aquilo que nos surge como “natural” ou “ra-
cional” passa a ser, por força dos argumentos aqui examinados, poten-
cial suspeito de ser produto da ação dogmatizante do costume, incóg-
nita graças ao modo como este nos priva dos critérios pelos quais o
reconhecemos. O fato de não podermos descartar a ação do costume
quando nosso juízo se inclina em favor de algo que nos aparece como
verossimilhante parece surgir como uma razão importante para que tal
juízo, se não pode ser abandonado, não se possa tomar como conheci-
mento objetivo, isento de uma possível revisão posterior em face de um
novo conjunto de fatos. À falta de podermos levar mais longe a refle-
xão, resta-nos apenas concluir que cada juízo é relativo à nossa incapa-
cidade individual de determinar em que medida pode ele ser produto
de uma intervenção do costume.

149

10888_A figura do filosofo.p65 149 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Na medida em que a ação dogmática do costume limita nossa


capacidade de reflexão, examinar seu poder consiste tanto em reco-
nhecer o modo como ele institui coletivamente formas de agir quanto
em reconhecer que a própria reflexão sobre sua ação pode estar com-
prometida por tal dogmatismo. O modo como o costume surge como
um limite à capacidade de reflexão parece constituir um elemento
crucial para compreendermos a articulação entre a crítica cética e as
reflexões políticas de Montaigne no mesmo ensaio I, 23. É o que exa-
minaremos a seguir.

3.3. “Nós todos somos do vulgo”


Vimos no capítulo anterior que, no cerne da discussão sobre os
temas religiosos, está sempre implícita a consideração do modo pelo
qual os homens em geral, e o “vulgo” em particular, se atêm à autori-
dade religiosa. Seja na crítica à Reforma, seja na crítica velada a Se-
bond e aos primeiros objetores, seja ainda na defesa da religião tradicio-
nal, Montaigne mede retoricamente o alcance de suas razões, buscan-
do levar em conta tal dimensão. As análises precedentes sobre o poder
do costume não apenas confirmam, mas permitem aprofundar essa aná-
lise. Como dissemos, as considerações epistemológicas de Montaigne
sobre o poder do costume se particularizam, no capítulo 23 do livro
primeiro, em um exame de suas conseqüências relativas à ordem pú-
blica. Esse exame recebe um substancial acréscimo tardio, no qual se
retomam considerações políticas já presentes na “Apologia”, atacando
agora, mais abertamente, a presunção do partido protestante (sem con-
tudo se restringir, como veremos, a ele)11. Tais considerações consti-
tuem o objeto principal das discussões sobre o “conservadorismo” po-
lítico de Montaigne, mas estas nem sempre se detêm no exame de

11. Referimo-nos agora a uma segunda parte do texto, que corresponderia às p. 116-
122, e poderia ser subdividida em dois momentos: uma consideração geral sobre a crí-
tica precedente acerca do poder do costume em vista de suas conseqüências práticas
(116-118), que em sua maior parte já está presente na edição de 1580, e uma análise de
um caso particular (isto é, das novidades reformistas, 118-122), inteiramente composta,
salvo pelo parágrafo final, de alongamentos posteriores a 1580.

150

10888_A figura do filosofo.p65 150 28.03.07, 16:02


O império do costume

como essas reflexões se ligam às discussões epistemológicas que as pre-


param, e menos ainda no exame das raízes céticas que as sustentam.
Sem pretender aqui propriamente retomar esse debate12, restringire-
mo-nos a tentar mostrar que a consideração desse ponto — e especial-
mente do movimento dogmático pelo qual o costume se esconde a si
mesmo — não é irrelevante para o esclarecimento do sentido desse
suposto “conservadorismo”.
A tendência de leitura usual encontra aqui uma ocasião de alinhar
Montaigne a um locus clássico da teoria política, pelo qual o costume
surge como uma espécie de fundamento positivo não apenas dos mo-
dos de agir, mas também das leis aceitas. Por conseguinte, tratar-se-ia,
na defesa montaigniana dos costumes, de uma espécie de posiciona-
mento teórico acerca do fundamento último da ordem legal. Mas, a
despeito de o costume efetivamente surgir, nessas reflexões, como por-
tador de uma dimensão positiva, dispomos agora de elementos para ver
que essa é apenas uma face da moeda — que pode, por isso mesmo, ser
mal avaliada. A despeito das fórmulas excepcionalmente enfáticas que
Montaigne emprega contra as inovações poderem sugerir algo diverso,
parece-nos que ele não pretende estabelecer aí nenhuma teoria geral
do Estado (semelhante às que encontraríamos em contemporâneos seus,
como Bodin). A primeira lição que o ensaio pretende extrair sobre o
modo como o costume se esconde a si mesmo, adormecendo nossa
percepção das coisas, é a de que estamos, reféns de sua ação, menos
aptos do que supomos para teorizar sobre os fundamentos da ordem
pública — e, por conseguinte, ainda menos para intervir na ordem pú-
blica com base naquilo que nos parecem ser seus fundamentos (espe-
cialmente em face da circunstância peculiar que Montaigne visualiza).
É uma lição de cunho claramente cético e seus efeitos se refletem na
afirmação de que o costume seria um fundamento da ordem pública.
Em vista do tratamento a que se submete esse conceito no ensaio, essa
afirmação pode ser compreendida em pelo menos dois sentidos, que
nos parecem, afinal, complementares. Primeiramente, ela significa que

12. Ver, por exemplo, FRIEDRICH, 1968, e STAROBINSKI, 1989. Da literatura em


língua portuguesa sobre o tema, destacamos CARDOSO, 1996, e SMITH, 1996.

151

10888_A figura do filosofo.p65 151 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

a adesão costumeira ao ordenamento existente de valores ou leis é a


razão que podemos identificar, pela experiência, da manutenção desse
ordenamento. Mas dizer que o costume é o fundamento significa igual-
mente dizer que, quando pretendemos ir além e descobrir razões que
o justifiquem, de um modo mais sólido e objetivo, somos incapazes de
encontrá-las.
É o que Montaigne exprime com clareza, por exemplo, em III, 9,
959 — “[B] A conservação dos Estados é coisa que verdadeiramente
ultrapassa nossa inteligência…” —, fazendo eco a esta imagem, que
comanda as considerações do presente ensaio:
[B] Há grande dúvida se se pode encontrar um proveito tão evidente
na mudança de uma lei aceita, seja qual for ela, quanto há de mal
em removê-la; de tal modo que uma ordenação pública [police] é
como uma construção de diversas peças ajuntadas por uma tal liga-
ção que é impossível abalar uma sem que o corpo todo se ressinta…
(I, 23, 119)13.
O alerta para a importância do costume é, assim, prioritariamente
uma recomendação de prudência derivada da constatação de nossa
ignorância. Para sabermos como intervir com segurança na ordem es-
tabelecida seria importante que dispuséssemos de um conhecimento
que nos informasse qual o efeito particular da intervenção em cada
uma das “peças” de observância pública, que se apresentassem, para
nós, juntas de tal modo que não pudéssemos intervir numa sem abalar
o todo. Por que isso ocorre? Porque tal ordenação, tal como a pensamos
conhecer, é na verdade a lição de um “traiçoeiro mestre” que impõe
paulatinamente sua autoridade, impedindo-nos, por fim, de observá-lo
diretamente: o modo como ele costura tal ordem se escondendo a si
mesmo pode nos conduzir erradamente a supor que podemos extirpar
o mal sem afetar a saúde geral do doente, como diz ele no mesmo
ensaio. Eis por que as tentativas radicais de remediar os males do Esta-
do apenas contribuíram, segundo Montaigne, para agravá-los, tal como
mostrava, em seu entender, a experiência recente dos franceses.

13. Cf. III, 9, 956-962.

152

10888_A figura do filosofo.p65 152 28.03.07, 16:02


O império do costume

Ademais, se prestarmos atenção ao modo como Montaigne restrin-


ge suas considerações à “experiência recente” da França (ainda que ele
se exprima, talvez em virtude da urgência do problema, de uma forma
particularmente taxativa, incomum nos Ensaios14), veremos que a expe-
riência não surge, nesse contexto, como fundamento teórico capaz de
produzir alguma teoria geral sobre o poder do costume na constituição
dos Estados. Mesmo que a experiência possa fornecer um critério de
ação mais confiável do que a mera especulação e que as observações
válidas em vista dessa experiência particular possam, com plausibilida-
de, ser estendidas para outros casos, a experiência não constitui, para
Montaigne, uma instância imediatamente universalizável na forma de
uma “ciência”15. Seria, aliás, uma conclusão igualmente “traiçoeira”
aquela segundo a qual seguir o costume surgisse como algo intrinseca-
mente bom, em vista da fraqueza da razão: pois, se ele confere alguma
coesão à ordem estabelecida, também parece agir alastrando as doen-
ças que teriam se originado de seu questionamento, criando um hábito
de convivência com a degradação social16. Eis aqui mais um aspecto
em que se revela o sentido principal do alerta cético de Montaigne: os
fundamentos da ordem dada são mais pantanosos do que nos presumi-
mos capazes de conhecer.

14. Em III, 9, 957-958, Montaigne escreve: “Não por opinião, mas em verdade, a
política excelente e melhor para cada nação é aquela sob a qual é mantida. Sua forma
e comodidade essencial depende do uso… Nada pressiona mais um estado que a ino-
vação; a mudança por si mesma dá forma à injustiça e à tirania…”. Em seguida, porém,
essa afirmação geral é circunstanciada; trata-se de alvejar a precipitação daqueles que
procuram extirpar os males sem refletir o suficiente sobre o que é melhor para o pacien-
te: “[C] O fim do cirurgião não é o de fazer morrer a carne má, mas sim o de encami-
nhar a sua cura…” (v. ibid.). Sobre o caráter de urgência com que os problemas atinen-
tes à guerra civil se afiguram para Montaigne, ver FRIEDRICH, 1985, p. 128-129.
15. Ver, por exemplo, III, 13, 1065: “[B] A razão tem tantas formas, que não sabemos
a qual nos ater; a experiência não as tem menos. A conseqüência que nós pretendemos
extrair da semelhança dos eventos é incerta, porquanto eles são sempre dessemelhantes:
não existe nenhuma qualidade tão universal nesta imagem das coisas quanto a diversi-
dade e a variedade…”. Ver também 1070B.
16. Ver os comentários de Montaigne sobre sua experiência do recrudescimento da
guerra civil no Périgord, ao longo de 1585, em III, 12, 1041-1042.

153

10888_A figura do filosofo.p65 153 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Mas qual será, então, o estatuto de suas reflexões? Se tal leitura é


adequada, o posicionamento de Montaigne parece estar exposto à se-
guinte objeção: se a ação do costume compromete nossas pretensões de
teorizar sobre o fundamento da ordem pública, em que medida não
seria a própria reflexão montaigniana ainda um produto da mesma “pre-
cipitação teórica” que denuncia no caso dos protestantes? Para com-
preender melhor o que se passa, convém reexaminar como ele interpre-
ta o esquema conceitual cético em que se apóiam essas considerações.
Em primeiro lugar, notemos que ressoam, ao longo de toda a discus-
são, elogios à preconização filosófica — a precisão é de Montaigne — de
“seguir as leis e os costumes aceitos”. Mas, pelo que vimos, podemos
dizer que ele compreende serem coisas diversas, de uma parte, a maneira
pela qual individualmente cada um adota as leis vigentes e pensa justifi-
car sua validade e, de outra, o modo como o costume, por meio de sua
ação, cria coletivamente um “fundamento” para tais leis (sem que com
isso elas se revistam de alguma superioridade intrínseca em relação a
outras, aceitas por povos diversos). Retomando uma metáfora já empre-
gada na “Apologia”, Montaigne contrasta a fraqueza do fundamento das
leis à força da autoridade costumeira17, numa oposição que exibe por si
mesma a silhueta da ação do costume: o fato de que as leis aceitas pos-
sam parecer respeitáveis e dignas de ser obedecidas, em vez de fracas e
equivalentes a quaisquer outras, corresponde, a bem dizer, a um oculta-
mento desses fundamentos para aqueles que a elas aderem. Sem o saber,
aqueles que lhes obedecem, admitindo-as como racionalmente superio-
res ou como verdades naturais, conferem-lhes sua autoridade pela pró-
pria obediência num grau maior do que poderiam presumir.

17. Ver II, 12, 583: “[A] As leis ganham sua autoridade da posse e do uso; é perigoso
remontar à sua nascente: elas crescem e se enobrecem correndo, como os nossos rios.
Segui-os contra seu curso até sua origem: não é senão um pequeno fio d’água dificil-
mente reconhecível, que assim se torna mais imponente e se fortifica ao envelhecer.
Vede as antigas considerações que deram o primeiro impulso a essa famosa torrente,
plena de dignidade, de honra e de reverência: vós as achareis tão superficiais e tão
delicadas, que essas gentes que pesam tudo e o remetem à razão, e nada recebem por
autoridade e a crédito, não é de surpreender que tenham seus juízos tão afastados do
uso comum…”. Cf. I, 23, 116-117.

154

10888_A figura do filosofo.p65 154 28.03.07, 16:02


O império do costume

As guerras de religião certamente representam, para Montaigne,


uma crise de estabilidade do ordenamento legal. A alternância com
que o partido protestante fora acolhido primeiramente na ordem legal
para depois ser banido seria um dos aspectos dessa crise, pela qual a
autoridade anteriormente conferida às leis pelos próprios agentes so-
ciais, especialmente pelo vulgo, tenderia a se abalar18. Em vista disso,
parece criar-se a necessidade de que o conselho filosófico de “seguir as
leis do país onde nos encontramos”, que conta, como vimos, com a
simpatia de Montaigne, dê lugar a uma interpretação mais ampla, sen-
sível à percepção de como a autoridade do costume confere um funda-
mento relativo à ordem social que resiste aos dissabores da “fortuna
guerreira” — numa medida que, por força da natureza dessa própria
autoridade, não pode ser plenamente conhecida19. Para Montaigne, ela
se encontra claramente presente na “solidez da santa palavra” propicia-
da pela religião, especialmente na medida em que ela poderia contri-
buir para corroborar o fundamento “místico” da autoridade das leis
aceitas20. Certamente Montaigne não está se referindo ao fato de que a
ordem legal se sustente pela intervenção direta de Deus, mas aludindo
ao modo como aqueles que aceitam tais leis conferem, graças à autori-
dade dos dogmas da fé por eles aceitos, uma interpretação aos funda-
mentos que efetivamente desconhecem. Por oposição à mutabilidade
das leis, que conduz o vulgo a ter sua crença oscilando como um cata-
vento, a Igreja tradicional conduz o fiel por caminhos “comuns” e “bem

18. Para um exame das mudanças radicais de postura quanto à legalidade do


calvinismo ao longo do século, ver CARDOSO, 1996, p. 173-179.
19. “[A] Não há nada sujeito a agitação mais contínua que as leis. Desde que eu
nasci, eu vi três e quatro vezes mudarem as leis dos ingleses, nossos vizinhos, não apenas
em matéria política, que é aquela que se pode dispensar de constância, mas acerca do
mais importante assunto que possa haver, a saber, a religião… O que nos dirá dessa
necessidade a filosofia? Que sigamos as leis do nosso país? Quer dizer, esse mar ondu-
lante de opiniões de um povo ou de um príncipe, que me pintarão a justiça com tantas
cores e a reformarão com tantas faces quantas forem neles as mudanças de suas paixões?
Não posso ter o julgamento tão flexível…” (579).
20. Ver III, 13, 1072: “[B] Ora, as leis se mantêm em crédito não porque são justas,
mas porque são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, e elas não têm outro…”
(itálico nosso).

155

10888_A figura do filosofo.p65 155 28.03.07, 16:02


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

batidos” impedindo-o de se perder — caminhos que Montaigne dissocia


(embora sutilmente) da fé em sua dimensão de verdade revelada21.
Em contrapartida, de um modo mais direto do que o faz na “Apo-
logia”, Montaigne contesta os reformistas por serem portadores de
“afecções ambiciosas” cujo ímpeto se enraíza na vaidade e na presun-
ção de querer impor suas opiniões, em detrimento da paz pública. Eis
uma nova instância do tema cético da propéteia — a precipitação vai-
dosa pela qual o dogmático se agarra cegamente às próprias razões, sem
medir suas eventuais fraquezas:
[B] Para dizer francamente, parece-me haver grande amor de si e
presunção de estimar as próprias opiniões a esse ponto que, para
estabelecê-las, seja preciso reverter uma paz pública e introduzir tantos
males inevitáveis e uma tão horrível corrupção de costumes como a
que a guerra civil aporta, e as mutações de estado, em coisa de tal
peso; e introduzi-las em seu próprio país… (I, 23, 120).
Nessa recuperação do tema cético reflete-se, contudo, a maneira
particular com que Montaigne focaliza os efeitos dogmáticos do costu-
me. Em primeiro lugar, critica-se o modo como os reformistas, avalian-
do mal o poder demonstrativo da razão, supõem-se capazes de inter-
pretar a verdade revelada e reformar a religião tradicional. Mas essa
mesma cegueira teórica impede-os ainda mais de ver quais podem ser
as conseqüências particulares de sua conduta diante da opacidade com
que o costume ordena a sociedade. E a situação torna-se tanto mais
delicada quanto menos capaz se é de avaliar a fragilidade do ordena-
mento costumeiro das coisas:

21. Ver 520A: “[A] … [A razão humana] não faz senão se extraviar por toda parte,
mas especialmente quando se mete em assuntos divinos. Quem o sente mais evidente-
mente que nós? Pois, ainda que nós lhes tenhamos dado princípios certos e infalíveis,
ainda que nós esclareçamos seus passos com a santa lâmpada da verdade que aprouve a
Deus nos comunicar, nós vemos contudo diariamente como, por pouco que ela se equi-
voque no caminho ordinário, e que ela se desvie ou se afaste da via traçada e batida pela
Igreja, ela imediatamente se perde, se atrapalha e se entrava, volteando e flutuando
neste vasto mar das opiniões humanas, sem rédeas e sem destino. Tão logo ela se perde
desse grande e comum caminho, ela vai se dividindo e dissipando em mil rotas diver-
sas…” (520; itálicos nossos). Cf., no mesmo sentido, 579C.

156

10888_A figura do filosofo.p65 156 28.03.07, 16:02


O império do costume

[B] Deus bem sabe: quantos, na nossa presente disputa entre protes-
tantes e católicos, onde há centenas de artigos a suprimir e restaurar,
grandes e profundos artigos, serão os que possam se vangloriar de
conhecer exatamente as razões e fundamentos de um e de outro
partido? É um número, se for, que não tem muito com o que nos
perturbar. Mas toda essa massa vai em que direção? (I, 23, 122).
O otimismo racionalista que se espelha na conduta dos reformistas
corresponderia, assim, a um aprofundamento do mesmo sono dogmá-
tico que o ceticismo, num primeiro momento, denunciaria num senti-
do apenas teórico. Se conhecessem melhor a maleabilidade da razão,
poderiam não apenas desconfiar do poder demonstrativo que ilusoria-
mente atribuem às suas, mas sobretudo compreender que, a despeito
disso, seus efeitos práticos dependem sobretudo da forma pela qual seus
interlocutores as avaliam. Eis por que, nesse caso, a cegueira dogmáti-
ca reclama uma posição de cautela radical:
[B] Eu desgosto da novidade, tenha ela a face que tiver, e tenho
razão de fazê-lo, tendo visto seus efeitos mui-desastrosos. Aquela que
nos oprime há tantos anos não realizou tudo, mas pode-se dizer, com
plausibilidade [apparence], que, casualmente [par accident], ela tudo
produziu e engendrou — a saber, os males e ruínas que se fazem a
partir de então sem ela e contra ela … (I, 23, 119).
Mas em que medida essas considerações permitem elucidar o pro-
blema de seu próprio estatuto? Isso fica mais claro se se observar como
elas são retomadas noutra chave conceitual. Explicando por que ade-
riu, a despeito de seus defeitos, ao partido católico, Montaigne afirma:
O outro partido [calvinista] é bem mais rude, pois se põe a escolher
e mudar, usurpa a autoridade de julgar e se deve julgar muito capaz
de julgar o erro que elimina e o bem que produz. [C] Esta vulgar
consideração me afirmou em meu lugar … [e me conduziu] a não
carregar em meu ombro esse tão pesado fardo, de responder por um
conhecimento de tal importância e ousar nisso aquilo que em são
juízo eu não ousaria … nas coisas em que a temeridade de julgar não
traz nenhum prejuízo: pareceu-me muito iníquo querer submeter as
constituições e observâncias públicas à instabilidade da fantasia pri-
vada — a razão privada só tem jurisdição privada — e submeter às

157

10888_A figura do filosofo.p65 157 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

leis divinas aquilo que nenhuma política poderia fazer com as leis
civis, ainda que a razão humana tenha aqui muito mais comércio …
A capacidade extrema serve para explicar e estender os usos recebi-
dos, não para desviá-los e inová-los … (I, 23, 121; itálicos nossos).
Essa passagem mostra que a cegueira dogmática dos reformistas,
em seus desdobramentos teóricos e práticos, é uma incapacidade de
ver que a “razão privada” tem uma jurisdição apenas “privada”. O que
significa isso? Que as razões dos calvinistas valem apenas para eles
mesmos, assim como a crítica cética de Montaigne só vale para ele
próprio? Não se trata de nenhum relativismo dessa natureza. A limita-
ção da jurisdição dessa razão não é aqui uma limitação teórica, apenas
relativa à sua incapacidade de provar demonstrativamente as verdades
que pretenderiam provar. Sua incapacidade é a de compreender que
suas razões, a despeito de seu mérito teórico particular (desnecessário
repetir que, contudo, esse erro filosófico de avaliação está na raiz de
sua atitude), podem conduzir, uma vez disseminadas publicamente, a
conseqüências que ultrapassam essa esfera de considerações (como lhes
teria mostrado, à saciedade, a experiência das guerras civis). Trata-se de
uma incapacidade de perceber que, no espaço público, as razões ga-
nham uma dimensão retórica (isto é, um valor determinado pela cir-
cunstância relativa em que poderão ser compreendidas) que ultrapassa
o valor que possuiriam segundo seu peso demonstrativo. Se, contudo,
isso não passa despercebido ao cético, é em decorrência de sua prática
de opor razões permitir salientar essa dimensão que permanece em
segundo plano, se não oculta, àqueles que pensam dispor de um crité-
rio capaz de estabelecer a verdade. Eis por que, ao mesmo tempo em
que preconiza esse exercício antinômico da razão como meio de se
desfazer do “violento prejuízo do costume” e situar o juízo numa po-
sição mais segura (v. I, 23, 117), Montaigne interpreta o critério prático
do ceticismo como um convite à adesão “exterior” aos costumes rece-
bidos, por oposição ao espaço “interior” que se reserva para a livre ação
do juízo:
Essas considerações não desviam, entretanto, um homem de enten-
dimento de seguir o estilo comum; antes, pelo contrário, parece-me
que todas as maneiras [façons] dele afastadas e particulares antes

158

10888_A figura do filosofo.p65 158 28.03.07, 16:03


O império do costume

partem de loucura ou de afetação ambiciosa que de verdadeira ra-


zão; e que o sábio deve interiormente retirar sua alma da massa, e
mantê-la em liberdade e poder de julgar livremente as coisas; mas
quanto ao exterior, que ele deve seguir inteiramente as maneiras e
formas recebidas. A sociedade pública não tem o que fazer com nossos
pensamentos; mas quanto ao resto, nossas ações, nosso trabalho, nossas
fortunas e nossa própria vida, é preciso emprestar-lhe, dispondo-os a
seu serviço, ao das opiniões comuns, como esse bom e grande Sócra-
tes, que desistiu de salvar a sua vida desobedecendo ao magistrado,
mesmo sendo um magistrado muito injusto e iníquo. Pois é a regra
das regras e a lei geral das leis que cada um observe aquelas que
vigem onde ele se encontra … (I, 23, 118; itálicos nossos).
De um ponto de vista “privado”, o cético Montaigne pode bem
admitir que sua adesão aos costumes não corresponde a uma crença
dogmática. Mas supor que uma adesão cética, meramente “exterior”,
pudesse oferecer um critério universal de adesão religiosa seria agir
segundo o mesmo otimismo cego dos reformistas. Enquanto eles se
aferram à necessidade de provar as verdades que julgam ter encontra-
do, o cético pode manter plenamente sua liberdade de julgar (cf. II, 12,
503-504), ainda que num nível meramente interno, e deve fazê-lo des-
se modo, especialmente se tal liberdade o permite ver que suas refle-
xões produzem conclusões diversas daquelas instauradas pelo costume
coletivo, e que a desagregação do Estado em guerra civil deriva, como
mostra a experiência imediata, do esfacelamento da autoridade preca-
riamente instituída. O bom cético aqui, em suma, é aquele que com-
preende a necessidade de discernir, especialmente nessa circunstância,
entre o âmbito em que as razões podem ser livremente discutidas e
consideradas segundo seu “peso”, do ponto de vista da “verdade”, ou
“interiormente” (mesmo que a interioridade não seja apenas a de um
foro íntimo individual, em sentido estrito, mas, de modo geral, a de um
registro discursivo em que a crítica do costume só encontra limites de
ordem teórica), e o âmbito em que os costumes aceitos determinam
uma situação de fato, atinente à ordem da “utilidade”, segundo a con-
figuração “pública” que ganham as crenças que ele forja e o sentido
que ganham as razões que o sustentam por parte daqueles que as exami-

159

10888_A figura do filosofo.p65 159 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

nam. Dizendo que o “sábio” deve proceder ao questionamento do cos-


tume, Montaigne não está preconizando um questionamento público
universal do costume, nem presumindo que todos os homens possam
fazê-lo adequadamente; ele pode estar, muito ao contrário, sugerindo
que apenas alguns serão capazes de fazê-lo. Cabe, afinal, ao “sábio”
cético compreender que, em vista do efeito coletivo do costume numa
sociedade em que a autoridade política e a religiosa, como vimos, não
diferem, ele deve ser o primeiro a respeitar os limites impostos por essa
situação de fato. Eis o significado da adesão “exterior” do sábio aos
costumes: trata-se de aderir às formas recebidas de um modo conscien-
te, segundo uma autolimitação das razões privadas, que o próprio filó-
sofo não pretende que possam constituir um paradigma universal para
os cristãos existentes. Mas a distinção entre a adesão “exterior” e a liber-
dade “interior” significa que não se trata, para o cético, de abrir mão do
juízo pelo qual seu critério de adesão aos costumes seja teoricamente o
mais coerente. Trata-se, ao contrário, de projetar a crítica cética ao valor
irreal que os dogmáticos conferem à razão no panorama das contingên-
cias históricas peculiares que Montaigne tem em vista e de reconhecer
que os costumes, nessas circunstâncias, instauram um denominador
comum para a ordenação da sociedade que se situa, num sentido prá-
tico, além do poder individual de questionamento.
Aparentemente adaptando um argumento especial que Sexto apre-
senta como recurso extremo de defesa da posição cética, Montaigne
escreve:
[A] Quando me apresentam um novo argumento, cabe a mim esti-
mar que, se não puder satisfatoriamente rebatê-lo, um outro a ele
responderá: pois crer em todas as aparências das quais não sabemos
como nos desembaraçar é mostra de grande simplismo. Ocorreria,
desse modo, que o vulgo — [C] e nós todos somos do vulgo — teria
sua crença girando como um cata-vento: pois sua alma, sendo mole
e sem resistência, seria obrigada sem cessar a aceitar as novas im-
pressões, a última sempre desfazendo o traço da anterior … (II, 12,
570-571)22.

22. Cf. HP I, 34.

160

10888_A figura do filosofo.p65 160 28.03.07, 16:03


O império do costume

O que significa esta afirmação tardia — e aparentemente oposta ao


que assinalamos: “nós todos somos do vulgo”? Por certo, ela não deve
ser compreendida literalmente, uma vez que indiretamente Montaig-
ne alude aqui àquelas mesmas que noutro texto se refere como almas
“moles e sem resistência”:
[A] Não é, eventualmente, sem razão que nós atribuímos à simpli-
cidade e à ignorância a facilidade de crer e de se deixar persuadir:
pois penso ter outrora apreendido que a crença é como uma impres-
são que se faz em nossa alma; e, na medida em que ela se encontra-
ria mais tenra e sem resistência, seria mais fácil imprimir-lhe algo.
[C] Ut necesse est lancem in libra ponderibus impositis deprimi, sic
animum perspicuis cedere. [A] Eis por que as crianças, o vulgo, a
mulher e os doentes são mais sujeitos a ser conduzidos pela orelha
… (I, 27, 178)23.
Diríamos que essa passagem pretende mostrar, em tom de brinca-
deira, que a relação entre o vulgo e o filósofo cético, no que tange ao
uso da razão, seria, ao menos idealmente, a de uma franca oposição:
a credulidade do vulgo, incapaz de julgar as coisas de modo criterioso
e apto a se deixar levar ingenuamente pelas aparências de verdade, é
antípoda da prudência cética diante da maleabilidade da razão e da
aparente persuasividade de cada novo argumento. Mais ainda, pode-
mos novamente ver que a consideração do poder do costume conduz
Montaigne a uma elaboração da noção de dogmatismo: uma vez que
ao uso da razão pode corresponder uma prática habitual mais ou me-
nos freqüente, o dogmatismo não se limita aqui à idéia de que a admis-
são de dogmas é uma limitação particular do emprego da razão, mas
identifica-se a uma incapacidade, que se poderia manifestar em diver-
sos graus, de empregar plenamente as faculdades racionais. Se o céti-
co pode se opor, nalguma medida, ao jugo do costume, e surpreender-
se ante o aparentemente razoável24, também compreende que o vulgo

23. A citação provém de Academica, II, xii: “Tal como o peso necessariamente faz
pender o prato da balança, a evidência faz o espírito ceder”.
24. Seja ante o que aceitamos ordinariamente, como quando os pirrônicos, segundo
Montaigne, se valem dos argumentos da razão para arruinar a “aparência de experiên-

161

10888_A figura do filosofo.p65 161 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

dorme um sono dogmático de tal modo profundo que as tentativas de


acordá-lo podem ter o efeito inverso de levá-lo a desacreditar inteira-
mente da autoridade pública25. É justamente essa experiência que o
leva a compreender que, como não é possível ter a crença girando
como um cata-vento, especialmente quando estão em jogo crenças
que correspondem à dimensão “pública” pelas quais o costume conso-
lida, à sua maneira, a ordem vigente, é preciso tomar uma decisão
prática de aderir “externamente” às observâncias religiosas e leis vi-
gentes, tal como se oferecem articuladas pelo costume — isto é, de
um modo tal que, graças à sua ação, essa articulação mesma escapa de
nossa capacidade de compreensão, no que tange aos seus possíveis
desdobramentos:
[A] Ora, do conhecimento desta minha volubilidade eu engendrei,
por acidente, uma certa constância de opiniões, e quase não alterei
as minhas primeiras e naturais. Pois, tenha a aparência [de verdade]
que tiver a novidade, eu não mudo facilmente, de medo que tenho
de perder na troca. E, posto que não sou capaz de escolher, faço a
escolha de outrem e mantenho-me no lugar em que Deus me pôs.
Se não o fizesse, não saberia me abster de rolar sem cessar. Assim,
com a graça de Deus, eu me conservei inteiro, sem agitação nem
crise de consciência, nas antigas crenças da nossa religião, através de
tantas seitas e divisões que nosso século produziu … (569).
Eis, afinal, o sentido em que “somos todos do vulgo”: por maior
que seja a diferença com que o homem do vulgo e o sábio podem
exercer suas faculdades racionais e, conseqüentemente, lidar com as
supostas certezas que se apresentam, a superioridade do sábio não o
torna imune aos ardis do costume e ele se defronta com situações que
escapam de uma justa avaliação dos limites de seu próprio juízo. Tal
narrativa tem um efetivo aporte biográfico, uma vez que Montaigne

cia” (cf. 571A), seja ante aquilo que, em vista do que admitimos ordinariamente, nos
surge como espantoso, como ocorre com nossa surpresa diante dos bárbaros “[que] não
são em nada mais maravilhosos para nós do que nós o somos para eles, nem com mais
ocasião…” (I, 23, 112A).
25. Ver novamente 439AB.

162

10888_A figura do filosofo.p65 162 28.03.07, 16:03


O império do costume

teria outrora simpatizado com o partido reformista26. Sua argumenta-


ção revela a avaliação de que tal debate poderia arrastar seus partici-
pantes em direções diversas, conduzindo cada qual a uma crescente
liberdade para julgar cada item de observância religiosa, desconhe-
cendo o modo como se articulam aos demais. Se ele mesmo testemu-
nhou de sua incapacidade de fiar-se no próprio juízo para atravessar
o vendaval das razões contrárias das guerras de religião — “eu não
saberia me abster de rolar sem cessar” —, o que não pensar da situa-
ção do vulgo?
É nessa medida que a cegueira gerada pelo costume, considerada
em sua devida extensão, convida a uma adesão “inteira”, ou em bloco,
à religião tradicional (ainda que ela se faça por razões radicalmente
diversas no caso do vulgo e no do sábio)27. Contudo, Montaigne diz
explicitamente que sua adesão ao partido que lhe parece o “menos
doente” não é apaixonada28. Ele não se furtará a criticar os inconve-
nientes desse partido, mesmo que veladamente, no que tange à cruel-
dade e à violência de que os defensores da religião tradicional deram
testemunho em massacres como o da Noite de São Bartolomeu29, e
tampouco os católicos que, segundo ele, compartilham com os protes-
tantes a presunção de submeter as “observâncias públicas e imóveis” à
“instabilidade da razão privada”30. Sua adesão ao partido tradicional —

26. Ver, entre outros, FRIEDRICH, 1968, p. 25.


27. Ver I, 27, 182A.
28. Ver III, 9, 993B, III, 1, 792B.
29. Em I, 19, 668, por exemplo, Montaigne estende sua crítica à presunção dos
reformistas à maneira como os católicos por vezes são conduzidos a excessos por suas
paixões.
30. No ensaio sobre o costume, a despeito de criticar a rudeza com que os protestan-
tes usurpam a autoridade de julgar, faz uma rara alusão ao sacrifício de Cristo no con-
texto de uma crítica ao modo como a cegueira dos costumes aceitos pode fazer correr
o sangue dos inocentes (v. 120-121AB). Sobre esse mesmo ponto, ver outros argumentos
em SMITH, 1996. Parecem-nos justas, de modo geral, suas qualificações ao modo como
se pretende atribuir um conservadorismo a Montaigne e situá-lo como um aliado da
Contra-Reforma, ainda que não nos pareça correto afirmar que ele se oporia à Liga
Católica ainda mais enfaticamente que o faz relativamente aos protestantes (cf. III, 9,
993-995).

163

10888_A figura do filosofo.p65 163 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

por ele descrita como “certa constância de opiniões” que engendrou


“casualmente” — é o claro resultado da adoção do costume como cri-
tério prático, no sentido preciso que ele adquire nessa reflexão. Não se
trata, com efeito, de um critério teórico do qual se pretenda inferir
uma norma de ação, mas do resultado de uma reflexão autocrítica acerca
dos limites de cada avaliação teórica ante a situação engendrada pelo
costume, do exame das alternativas empiricamente disponíveis e, a partir
daí, de uma ponderação diversa acerca dos elementos em jogo. Por
oposição ao “racionalismo” precipitado e imaturo dos que permane-
cem presos a uma perspectiva exclusivamente teórica, solidária da pro-
jeção de um poder mágico à razão, essa ponderação corresponderia
antes a um “realismo” cético, se assim podemos nos expressar, que
decorre de um desencantamento diante dessa imagem da razão, e dá
lugar a uma observação mais cuidadosa dos critérios de racionalidade
vigentes nos diversos homens, particularmente nos diversos agentes pu-
blicamente relevantes. Essa distinção cética entre as dimensões “priva-
da” e “pública” da razão conduz a compreender que a esfera determi-
nada por essa última, na medida em que é impregnada pela ação do
costume, é forçosamente ambígua e imprecisa, o que contribui para
conferir particular importância no horizonte determinado pelos fatos
— pelos homens e pelo modo como compreendem diversamente o
que seja a razão — como um ponto de partida e um eventual denomi-
nador comum da esfera pública com base no qual se pode agir. Disso
não se segue um abandono dos valores aceitos (mesmo que seja o caso
de rever os fundamentos daqueles que se adotam) ou das perspectivas
intelectuais que o cético se vê levado a adotar por sua reflexão (estando
sempre apto a avaliar os novos argumentos que lhe sejam oferecidos,
no nível de sua reflexão “privada”), mas sim o reconhecimento de que,
embora o espaço público constituído por tais crenças costumeiras e
dogmáticas não seja o ideal de um ponto de vista cético mais estrito, é
o espaço público possível, que cabe razoavelmente defender ante o
modo pelo qual o dogmatismo em suas versões mais agudas se institui
como uma ameaça de desagregação do Estado. Esse reconhecimento,
em vez de conduzir o cético à inação (como freqüentemente se ima-
gina), conduz à compreensão de que a ação envolve, por vezes, a ad-

164

10888_A figura do filosofo.p65 164 28.03.07, 16:03


O império do costume

missão “exterior” do dogmatismo de certas crenças como um elemento


da esfera pública (da qual é possível recuar no espaço de reflexão pri-
vado). Compreende-se assim como o ceticismo filosófico pode se har-
monizar com a prática política de diplomacia e de tolerância que efe-
tivamente o homem público Michel de Montaigne desempenhou jun-
to ao príncipe de Navarra para a costura dos acordos que iriam pôr fim
às guerras de religião e selar uma paz mais duradoura31. Tolerância,
afinal, visível na mesma atitude autolimitadora que Montaigne impõe
a seu ceticismo mediante a distinção entre os registros interno e exter-
no: os céticos, como vimos, são aqueles que, mesmo valorizando a prática
do debate, buscam sempre debater brandamente, sem a pretensão de
impor a todo transe seu ponto de vista, mesmo quando constatam a
precariedade das opiniões alheias32.

3.4. A opacidade dos fenômenos


A discussão epistemológica e a reflexão sobre a ação política são,
assim, ligadas por um único fio condutor cético, no qual a considera-
ção do papel do costume é central. É importante, porém, com base no
que esse percurso nos oferece, tentar esclarecer o sentido em que a
noção cética de adesão ao phainómenon como critério de ação aqui se
apresenta. Segundo Sexto, a suspensão pirrônica não afeta o modo como
somos passivamente movidos por nossas representações ou phantasíai
— que o cético toma como virtualmente idênticas ao modo como na-
turalmente as coisas nos aparecem, àquilo que nos é phainómenon —,
mas apenas os juízos concernentes à natureza essencial das coisas, in-
dependentemente de como as percebemos33. Mas, se a esfera do phainó-

31. CARDOSO (1996) destaca o episódio da conversão de Henrique III (hóspede e


correspondente de Montaigne, que lhe fazia as vezes de conselheiro político) como gesto
que, exemplificando a distinção entre as esferas pública e privada no âmbito das crenças
religiosas, veio “selar as condições da pacificação final do país” e marcou a gênese do que
denomina a “razão política moderna” (p. 193). Sobre a tolerância de Montaigne, ver
FRIEDRICH, 1985, p. 127. Para uma leitura diversa, ver ainda CARDOSO, 1996, p. 191.
32. Cf. III, 8, 922-925BC.
33. Ver HP I, 17, 19 ss., 21 ss.

165

10888_A figura do filosofo.p65 165 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

menon é suficientemente vaga para abarcar tanto nossas afecções sen-


síveis, os objetos tal como nos surgem em nossa experiência, como
nossas variadas ações mentais, aí compreendidos o uso da razão e da
linguagem, dele também não se exclui a própria manifestação do cos-
tume, que, como vimos, o cético pirrônico entende seguir como um de
seus aspectos, de modo não-dogmático.
O que vimos aqui nos parece amplamente confirmar algo que já
no primeiro capítulo anunciáramos: que a noção cética de phainómenon
é objeto de uma interpretação filosófica particularmente rica nos En-
saios, e que vários de seus desenvolvimentos podem ser situados com
base nela. Aceitar o phainómenon como critério de ação, em lugar das
sciences dogmáticas, é sobretudo aderir aos fatos, que a razão pode fa-
cilmente encobrir e adulterar nas explicações fantasiosas pelas quais os
tematiza, pretendendo oferecer conhecimento absoluto das coisas34.
Num ensaio mais tardio, “Dos coxos” (III, 11), as mesmas idéias são
retomadas: por oposição ao modo como os homens passam por cima
dos fatos e, sem se certificar de sua ocorrência, empregam a razão,
instrumento capaz de “montar cem outros mundos e achar seus prin-
cípios e estruturas”, para especular sobre as causas e conseqüências do
que presumem ter ocorrido, cabe reconhecer que está perfeitamente
ao nosso alcance a fruição dos fatos:
[C] O conhecimento das coisas pertence somente àquele que tem a
condução das coisas, não a nós, que apenas as recebemos passiva-
mente [qui n’en avons qui la souffrance] e das quais temos um uso
perfeitamente pleno, segundo nossa natureza. O vinho não é mais
agradável àquele que conhece suas faculdades principais. Ao contrá-
rio, o corpo e a alma interrompem e alteram o direito que temos de
uso do mundo, aí imiscuindo sua pretensão de ciência. Determiná-
la e sabê-la, como provê-la, pertence à regência e à mestria; à infe-
rioridade, sujeição e aprendizagem pertencem o fruir e o aceitar …
(III, 11, 1026).
De modo geral, a reflexão cética, nos Ensaios, mostra-se inteira-
mente compatível com a idéia, freqüentemente evocada, de que o ho-

34. Cf. 571A, 541A.

166

10888_A figura do filosofo.p65 166 28.03.07, 16:03


O império do costume

mem deve se reinserir na natureza segundo sua dimensão humana, e


da qual se extravia por obra das ficções de seu espírito:
[A] Eu não desmereço o uso que nós tiramos do mundo, nem duvi-
do da potência e da uberdade da natureza, nem de sua aplicação à
nossa necessidade. Vejo bem que os lúcios e as andorinhas acham
nela o bastante. Eu desconfio das invenções de nosso espírito, de
nossa ciência e da arte, em favor da qual nós abandonamos suas
regras, e do qual não sabemos manter moderação nem limite … (II,
37, 766)35.
A reflexão cética, em suma, converte-se numa defesa filosófica da
busca dos fatos naturais, contra a alienação dogmática propiciada por
aquilo a que freqüentemente alude pelo simples termo “filosofia”36. É
através da suspensão, como vimos, que o cético se faria homem vivo,
raciocinante, fruindo de todos os prazeres e comodidades naturais, em-
pregando e servindo-se de todas as peças corporais e espirituais, “em
regra e de direito” (cf. 505A). Se Montaigne, de sua parte, disser que o
seu “metier é viver”, do qual o registro de experiências e usos pessoais
de que se compõe seu livro se pretende expressão37, não deveremos ver
aí ainda um resultado do mesmo movimento reflexivo, de um produto

35. Este ensaio, em que Montaigne trata de como o hábito lhe ensinou a conviver
com a doença e empreende uma irônica crítica aos médicos, inspirada em Corneille
Agrippa, oferece-se a diversas outras aproximações com o tema cético da adesão ao
phainómenon como critério prático. Em HP I, 29-30, por exemplo, Sexto apresenta e
explica a noção pirrônica da metriopátheia (moderação das afecções), em sua relação
com a imperturbabilidade (ataraxía), reconhecendo que o cético não é totalmente isen-
to de perturbações, pois é afetado pelo que se impõe involuntariamente, como o frio e
a sede. Contudo, diz Sexto, os céticos procedem de modo mais moderado diante dessas
afecções do que as pessoas comuns, na medida em que não acrescenta a essa experiência
a crença de que aquilo que o aflige seja um mal “por natureza”. Montaigne, igualmente,
no início de II, 37, narrando o modo como aprendeu a lidar com sua “pedra” nos rins,
opõe as regras “supérfluas” que diversas filosofias propõem para o enfrentamento do mal
ao modo como ele próprio, por força do costume, convive com seu mal procurando não
o amplificar pela sua razão (v. II, 37, 763). Sobre o mesmo tema, ver II, 6, 372.
36. Ver, por exemplo, III, 13, 1073C, em que Montaigne critica o modo como os
filósofos falsificam a natureza, apresentando-a sob uma face “… demasiado colorida e
sofisticada, donde nascem tantos retratos diversos de um tema tão uniforme…”.
37. Ver II, 6, 378-379C.

167

10888_A figura do filosofo.p65 167 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

do mesmo “naturalismo cético” que se faz presente em Montaigne


como resultado dessa temática?
Não obstante, o ceticismo é a filosofia mais útil e verossimilhante
por apresentar o homem “nu e vazio, reconhecendo sua fraqueza natu-
ral” (505-506A). Essa afirmação cética da natureza é, nessa medida, in-
teiramente vinculada ao reconhecimento de nossos limites em conhe-
cê-la, de que a apreendemos de modo sempre precário, e relativo aos
limites humanos e individuais que se impõem a nós. Por isso, o modo
como a vida comum seria determinada pela ação do costume, sempre
presente num grau maior do que o poderíamos reconhecer, deveria
oferecer uma precaução a mais no que tangesse à caracterização desse
retorno filosoficamente esclarecido (a despeito do que as alusões à filo-
sofia poderiam sugerir) como algo que se distinguisse da pretensão de
dispor de um efetivo conhecimento da natureza. Dela teríamos apenas
um certo uso — no qual estaria incluído certamente o de nossas facul-
dades cognitivas, segundo seus limites naturais, e a posse de crenças e
opiniões (que deveriam, portanto, ser vistas como parte desse uso que só
poderíamos chamar de conhecimento de modo sempre impreciso e,
nalgum grau, injustificado). Tal oposição é um aspecto particularmente
sublinhado por Montaigne, na “Apologia”, em sua explicação do crité-
rio cético de ação. Ali, uma vez mais, ele articula elementos pirrônicos
e acadêmicos, o phainómenon que permite ao cético pirrônico se portar
nas ações da vida da maneira comum e a adesão ao probabilis proposta
pelos acadêmicos, como partes de uma única concepção coerente:
[C] Assim, não há seita que não seja obrigada a permitir ao seu sábio
que admita muitas coisas não compreendidas, nem percebidas, nem
assentidas, se ele quer viver. E, quando ele parte ao mar, segue essa
decisão, ignorando se ela lhe será útil, e se fia no fato de o barco ser
bom, o piloto experimentado, o tempo favorável. Circunstâncias
somente prováveis, segundo as quais ele é obrigado a seguir e se deixar
conduzir pelas aparências, desde que elas não lhe oponham expressa
contrariedade. Ele tem um corpo, ele tem uma alma, os sentidos o
impelem, o espírito o agita. Ainda que ele não encontre em si essa
própria e singular marca para julgar, e que ele perceba que não deve
engajar seu assentimento, uma vez que possa se tratar de um falso

168

10888_A figura do filosofo.p65 168 28.03.07, 16:03


O império do costume

semelhante ao verdadeiro, ele não deixa de conduzir os afazeres de


sua vida plenamente e comodamente. Quantas artes não há que fa-
zem profissão de consistir mais na conjectura do que na ciência, que
não decidem acerca do verdadeiro e do falso e seguem somente o
que parece [ser o caso]? Há, dizem eles, o verdadeiro e o falso, e
temos com o que buscá-los, mas não há uma pedra de toque para
decidir. Vale bem mais para nós deixarmo-nos conduzir sem inquirir,
segundo a ordem do mundo … (505-506)38.
Em suma, esse conjunto de textos deixa entrever um ceticismo no
qual se conciliariam harmoniosamente a suspensão do juízo e a plena
adesão à esfera da vida prática. Todavia, a natureza dogmática com que
o costume se impõe pode sugerir que, se não na esfera pública, ao
menos no âmbito da reflexão privada, essa adesão ao que nos aparece
jamais se isenta inteiramente de uma natureza problemática. Não é o
costume, segundo Montaigne, uma instância responsável pelo
engendramento de uma concepção dogmática das coisas, exatamente
na medida em que nos conduz a aceitá-las como se fossem meramente
naturais, e normalmente presente nos juízos que fazemos sobre o que
é a natureza num grau maior do que podemos perceber? Poderia, nessa
medida, tal ceticismo corresponder plenamente à formulação sextiana
segundo a qual o cético, por meio de sua suspensão, crê “cessar plena-
mente de dogmatizar” (HP I, 12)? Embora nos pareça que a resposta
aqui deva ser afirmativa, a tensão conceitual criada pela presença das
tendências dogmatizantes do costume, tal como Montaigne as detecta,
convida-nos a observar que a adesão “não-dogmática” ao phainómenon
por ele implicitamente proposta possui traços peculiares.
Sexto expõe o phainómenon como critério prático dos pirrônicos de
modo deliberadamente vago, aludindo a aspectos variados com que
podemos nos referir a um aparecer involuntário das coisas, aquém de
toda tematização filosófica. O reconhecimento inevitável de sentirmos
sede quando a sentimos e o modo como somos movidos à piedade pe-
rante determinado fato (graças, eventualmente, a nos situarmos em de-

38. Tal descrição baseia-se na exposição de Cícero acerca da doutrina de Carnéades


das probabilia como guia para a conduta na vida, apresentada em Acad. II, 99 ss.

169

10888_A figura do filosofo.p65 169 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

terminada cultura e termos determinada formação) são apenas aspectos


diversos de um mesmo aparecer involuntário de certas coisas ao longo
de nossa experiência. Tal exposição não sugere, em momento algum,
que possa haver uma desarmonia intransponível no modo como even-
tos “costumeiros” e eventos “naturais” possam lado a lado se alojar na
esfera do phainómenon (embora tampouco exclua essa possibilidade).
Os textos de Montaigne que citamos indicam claramente que sua
reflexão se apropria desse critério prático dos pirrônicos; porém, se o
costume se mistura com o primeiro leite que sorvemos na infância, é
preciso reconhecer que a tarefa cética de “reavermo-nos de suas presas
e voltarmos a nós mesmos para refletir acerca de suas ordenações” (cf.
I, 23, 115) não haveria de ser uma tarefa fácil, nem mesmo, ao que
parece, humanamente factível de modo cabal e completo. As reflexões
tardias que reconhecem no costume uma “segunda natureza”, não menos
poderosa que a primeira, parecem estar preparadas, no seu essencial,
pelas reflexões prévias sobre o império do costume em I, 2339. Mais do
que isso, não apenas uma depuração absoluta do costume não parece
passível de ser humanamente realizada (ainda que teoricamente sua
possibilidade não gere contradição), mas o modo como o costume se
converte numa segunda natureza faz dele, em certa medida, ainda um
produto da natureza40. A concepção montaigniana de natureza, com
efeito, parece-nos possuidora de uma riqueza e de uma complexidade
que até o momento não foram objeto de um exame satisfatório. Se há,
por certo, um aspecto otimista de seu naturalismo, que reconhece nessa
entidade da qual dependemos inteiramente — a “Mãe Natureza”, tal

39. Ver III, 10, 1009-1010. Segundo Jean Céard, dever-se-ia, ao contrário, constatar
uma “mudança profunda” no pensamento de Montaigne sobre o costume ao longo da
evolução dos Ensaios: ele passaria de uma oposição resoluta entre o costume e a razão
(ou, igualmente, a natureza) à idéia posterior de uma conveniência em guiar-se pelos
costumes, que, por sua vez, são submetidos às leis naturais (1992, p. 26 ss.) Pensamos
que, em vez disso, seria melhor nos referirmos, na melhor das hipóteses, a uma mudan-
ça de ênfase: ainda que a idéia de uma regularidade da natureza seja cada vez mais
destacada a partir de 1588, ela já se faz plenamente presente na edição de 1580 (cf., p.
ex., II, 12, 459A), bem como o reconhecimento do modo ambíguo como tendemos a
tomar o meramente costumeiro igualmente como natural ou como razoável.
40. Ver ibid.

170

10888_A figura do filosofo.p65 170 28.03.07, 16:03


O império do costume

como a ela por vezes se refere — uma transcendência que talvez ocupe,
nalguma medida, o lugar do Deus cristão, trata-se, ao mesmo tempo, de
uma instância que possui leis e regularidades próprias que escapam a
nossas tentativas de abarcá-la por meio de nossas faculdades cognitivas.
Aquilo que, segundo Montaigne, nos surge como natural não é mais do
que uma imagem de nossa limitação relativa em apreender mais profun-
damente o que nos aparece: “[C] Nós dizemos que é contra a natureza
o que surge contra o costume: tudo é sempre segundo a natureza, seja
o que for. Que essa razão universal e natural nos livre do erro e do espan-
to que a novidade nos aporta” (II, 30, 713). Tal erro, portanto, é produto
de nossa inserção singular e limitada numa natureza que nos abarca e
nos transcende, na qual tudo tem o seu lugar, mesmo o que nos parece
inútil41; uma natureza indefinidamente capaz de frustrar as imagens que
dela humanamente produzimos. Essas reflexões tardias, no mais, se
harmonizam perfeitamente com as considerações do ensaio “É loucura
reportar o verdadeiro e o falso à nossa capacidade” (I, 27), em que, como
vimos, a crítica ao modo como confundimos o verossímil e o verdadeiro
vem de mãos dadas com o reconhecimento do poder infinito da mãe
natureza, ao qual pretendemos insensatamente prescrever limites42.
É difícil, em face do laconismo e da vagueza já mencionada dos
textos sextianos, avaliar a exata medida em que essa noção de natureza
seria diversa ou incompatível com aquela que ali subjaz. De todo modo,
o domínio do aparecer natural das coisas parece emergir na reflexão de
Montaigne como portador de uma opacidade e uma espessura próprias
(que não parecem, à primeira vista, discerníveis na transparência que
aparentam ter os conceitos pirrônicos que o descrevem, mesmo que
não haja incompatibilidade conceitual, a propriamente dizer, entre esses
dois autores). Tal opacidade corrobora, todavia, nossa impossibilidade
de admitir que teríamos acesso às coisas tal como elas são naturalmen-
te43, posto que só as conhecemos, ademais, segundo o modo como delas

41. Ver III, 1, 970B.


42. Ver I, 27, 179A.
43. Ver, por exemplo, II, 20, 673: “[A] A fraqueza de nossa condição faz com que as
coisas, em sua simplicidade e pureza natural, não possam cair em nosso uso…”.

171

10888_A figura do filosofo.p65 171 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

se apropriam nossas faculdades de conhecer44. Não percamos de vista


que isso não se opõe, contudo, ao modo como Montaigne entende que
a reflexão cética possui uma dimensão naturalizante, possibilitando-
nos recuperar o mundo dos fatos, do qual nos alienam as fantasias pro-
duzidas pelos filósofos dogmáticos para explicar as coisas. Se nossas
percepções da natureza estão impregnadas pelo costume de modo tal
que a pretensão de ter acesso a ela independentemente desse aporte
tende a se mostrar ilusória, apontar a presença do costume conjuga-se
com a denúncia de nossas tendências a atribuir um poder irreal a nossa
capacidade de conhecer a verdade e, assim, de pretendermos ilusoria-
mente nos evadir de nossa condição natural — tal como Montaigne
enfaticamente sublinha em várias passagens da “Apologia”45. Nesse sen-
tido, talvez se possa dizer que a tarefa mesma de uma identificação
exaustiva do poder do costume não seria senão outro aspecto da mesma
presunção exacerbada de alegar um conhecimento de que não somos
capazes — posto que sua conseqüência não seria outra que determinar
a medida em que a natureza se apresentaria de modo absoluto. Assim,
se o costume nos embala num sono dogmático, dele despertamos sem-
pre num sentido provisório e correspondente aos poderes limitados de
nossas faculdades; mas esse despertar não é senão o modo como nos
tornaríamos mais conscientes da inescapável relatividade de nossa
apreensão do que denominamos “natural”.
Por conseguinte, caberia admitir que, segundo essa perspectiva, o
assentimento prático do cético se faz de modo intrinsecamente provi-
sório, seja qual for o conteúdo desse assentimento; tal assentimento
não poderia abolir jamais a possibilidade de que, ao menos em princí-
pio, uma reflexão mais aguda fosse capaz de detectar alguma ação do
costume onde ela não é momentaneamente reconhecível. Fossem as
faculdades perceptivas mais atiladas e libertas do sono dogmático, tudo,

44. Ver, por exemplo, I, 14, 51A, II, 12, 562A, 598A, 599A; I, 50, 302: “[C] As coisas,
elas mesmas à parte, têm talvez seu peso, medida e condição, mas interiormente, em
nós, [a alma] lhes talha como bem entende…”. Aprofundaremos esse exame adiante,
no capítulo VI.
45. Ver, por exemplo, 452A.

172

10888_A figura do filosofo.p65 172 28.03.07, 16:03


O império do costume

no limite, lhes pareceria “milagre”, mesmo que não fosse possível agir
num mundo que permanentemente frustrasse nossas expectativas acer-
ca de suas regularidades. Esse caso imaginário, que Montaigne figura
com um sábio ideal, aponta a distinção entre um plano de certezas
práticas e um plano da “ciência”, ao qual não temos legitimamente
acesso; estamos humanamente fadados a aceitar, como critério para a
ação, um número indefinido de certezas que, independentemente do
que possam vir a representar acerca das coisas em si mesmas, são re-
queridas pela fruição plena da vida.
Eis por que não vemos contradição quando Montaigne, de uma
parte, reconhece um efeito dogmático do costume e, de outra, admite
a importância de assentir a ele, segundo a forma como ele se manifesta
a cada um de nós, como uma via importante para a obtenção da tran-
qüilidade46. Do mesmo modo que, em certas passagens, ele afirma que
permaneceu seguindo seus moeurs ou suas tendências naturais47, diz
em outras que somos incapazes de nos contrapor às paixões e aos vícios
que se enraizaram em nós por um longo hábito, e que foi ele próprio
incapaz de corrigir sua natureza (num contexto em que a relação entre
esta e o costume era particularmente difusa)48. Ao fazê-lo, Montaigne
não está abandonando seu ceticismo; está apenas pondo em ação o
critério cético para a inserção na vida prática, tal como o compreende
no nível da reelaboração pessoal dos conceitos céticos. Sua reflexão
cética observa a aceitação dos costumes e da natureza como casos de
aplicação de um mesmo critério, em vista do qual o reconhecimento
de limites impõe a aceitação daquilo que se nos oferece. Não há, ao
menos desse ponto de vista, uma diferença essencial entre o modo como
se trata de assentir “externamente” aos costumes aceitos (em vista da
impossibilidade prática de subvertê-los, tal como observamos, e ainda
que a razão que conduz a essa aceitação dependa justamente do modo

46. Ver II, 37, 759A, III, 13, 1080B ss. Em III, 3, 818B, entretanto, Montaigne pre-
coniza como uma importante capacidade a de não nos atarmos muito fortemente à
nossa compleição, mas termos a maleabilidade de nos adaptar a diversos usos, sem ser
obrigados a proceder segundo um único modo de vida.
47. Além da passagem que citamos em epígrafe ao início (546A), ver II, 17, 638.
48. Ver III, 2, 908; III, 12, 1058-9.

173

10888_A figura do filosofo.p65 173 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

dogmático com que são coletivamente aceitos) e o de assentir àquilo


que nos aparece, num plano individual, não como uma tese dogmáti-
ca, mas simplesmente como “irrecusável” (em vista de nossa incapaci-
dade de superar determinado hábito ou mesmo de reconhecer que o
hábito esteja mais uma vez se impondo sobre o que nos parece simples-
mente uma percepção natural). É claro que a adesão prática aos costu-
mes dogmáticos, com os quais o cético não comunga nem passa por
isso a comungar, em vista dos limites impostos pela “razão prática”, é
diversa, ao menos em seu conteúdo, daquela que privadamente o mesmo
filósofo cético dá a um hábito seu que se impõe, a uma paixão que se
manifesta, a uma percepção que se apresenta involuntariamente ou
mesmo a uma opinião que se impõe como mais verossímil que outra.
Em todos esses casos, o estatuto do assentimento é o mesmo: ele é,
nalgum grau, justificado pela necessidade de agir, em vista de limites
que, maiores ou menores, correspondem ao modo relativo com que
nossas faculdades cognitivas se podem exercer.
Se esta leitura é correta, ao mesmo tempo em que tal concepção
oferece mais um aspecto do esforço sistemático de Montaigne em pro-
ceder a uma reconstrução coerente e de posição em prática do ceticis-
mo antigo, ela nos permite discutir sua eventual proximidade da filoso-
fia cartesiana. Além das evidências factuais que estabelecem o contato
de Descartes com textos pirrônicos, e notadamente com as obras de
Montaigne e de Charron — filósofo este que escreveu sua obra De la
sagesse (1601-1604) sob reconhecida inspiração do ceticismo que en-
contra em Montaigne —, tem-se buscado recentemente examinar a
presença de elementos provenientes das obras desses dois últimos na
formação do pensamento cartesiano49. Mesmo que a relação mais geral
entre as filosofias de Montaigne e Descartes seja de oposição — na
exata medida em que se opõem um filósofo que pretende sustentar um
posicionamento cético e outro que pretende demonstrar verdades me-

49. Sobre o contato de Descartes com o ceticismo e sua intenção de oferecer uma
solução à dúvida cética, ver particularmente POPKIN, 1979, esp. cap. 9 e 10. Segundo
Popkin, Descartes exprimiu grande interesse pelo ceticismo da época, tendo lido
Cornelius Agrippa na juventude e demonstrado familiaridade com os escritos de Mon-
taigne e Charron à época da redação do Discurso do método.

174

10888_A figura do filosofo.p65 174 28.03.07, 16:03


O império do costume

tafísicas, embora levando em consideração os problemas propostos pelos


céticos —, é possível, ainda assim, traçar vários pontos de aproximação
(que muitas vezes contribuirão sobretudo para melhor visualizarmos a
oposição entre essas filosofias)50.
Se, quanto à moral provisória cartesiana, existem evidências de que
foi concebida diretamente com base na leitura do texto de Charron51,
parece-nos oportuno aproximar o modo como Montaigne interpreta a
adesão cética ao phainómenon (em face do problema constituído pela
ingerência do costume no que julgamos natural) daquilo que Descartes
qualifica como o domínio das certezas práticas ou morais — certezas
cujo assentimento se justifica pelas exigências da vida prática, sem dis-
por da garantia de que possuirão apenas as verdades claras e distintas da
ciência, depois de submetidas ao crivo da dúvida metódica. Há dois as-
pectos particulares que nos parecem justificar essa aproximação. Primei-
ramente, em ambos os casos, o fato de admitir alguma crença segundo
esse regime “prático” implicaria isentá-la, ao menos provisoriamente, de
valor epistêmico, e recusar a pretensão de que ela poderia ser tomada
como critério para dizermos o que as coisas efetivamente são em si mesmas

50. RODIS-LEWIS (1999) acrescenta aos comentários de Popkin outras evidências da


leitura de Montaigne por Descartes, que a conduzem a sustentar que a filosofia desse
último, em mais de um aspecto, se apresenta como resposta à dúvida cética de Mon-
taigne (v. p. 80).
51. Parece possível, contudo, constatar que diversos elementos provenientes da refle-
xão moral cética se deixam constantemente entrever, em formas e graus diferentes, nos
diversos escritos filosóficos de Descartes. Segundo RODIS-LEWIS (1999), a moral provi-
sória, proposta com base na leitura de Charron (por volta de 1620), atende a uma
exigência de separar o domínio das exigências concretas da vida e da ação da radicali-
dade com que, por influência da discussão com os céticos, se põe, para ele, a crítica
contra os erros na busca da verdade. Isso parece se confirmar no Discurso do método,
particularmente na primeira parte, ao descrever, em termos bastante afeitos à dúvida
acadêmica, sua experiência de contato com a filosofia tradicional, na qual nada encon-
trou que não fosse duvidoso (cf. Oeuvres, DM, Primeira parte, p. 96). E, ainda que
posteriormente sua filosofia represente para ele, obviamente, uma superação desse diag-
nóstico, é curioso que, no âmbito em que a razão não pode operar plenamente segundo
os critérios de clareza e distinção (por exemplo, ante a necessidade de agir diante de
circunstâncias que não conhecemos plenamente), perdurem, ainda que num regime
provisório, os traços da mesma “verossimilhança” que outrora ele aceitara como critério
(v., p. ex., ibid., Tratado das paixões da alma, art. 146, p. 626).

175

10888_A figura do filosofo.p65 175 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

(quer o possamos fazer de outro modo ou não). Em segundo lugar, mais


especificamente, também para ambos a certeza prática é comprometida
em seu poder epistêmico, ao menos em parte, por causa da ingerência
do costume. Nas Meditações, é visível a oposição entre, de um lado, o
exercício da dúvida como meio de se contrapor ao modo como os pre-
juízos do costume se impõem com aparência de certeza e, de outro,
quando se impõe a necessidade de suspender a marcha reflexiva da in-
vestigação metafísica (tal como ocorre ao final da Primeira Meditação),
e a aquiescência às mesmas opiniões costumeiras e irrefletidas em vista
das quais é preciso seguir o transcurso da vida comum52. Isso não faz,
insistamos, de Descartes um cético nem de Montaigne um cartesiano
avant la lettre, mas, como dissemos, trata-se de filósofos cuja oposição
pode ser mais bem compreendida se se prestar atenção ao modo como
seu vocabulário conceitual se afina em uma confrontação filosófica em
torno do ceticismo. Segundo Descartes, o entendimento, diante da dú-
vida hiperbólica, prontamente encontra verdades inabaláveis que não
apenas estão além daquilo que o costume nos impõe, mas também per-
mitem suplantar a dúvida cética. Em contrapartida, poderíamos antever
que o projeto cartesiano de transcender a esfera das certezas práticas
ofereceria, em princípio, para Montaigne, um exemplo das armadilhas
da razão, iludindo-nos sobre sua pretensão de reconhecer verdades.
Uma última precisão se faz importante acerca da relatividade com
que o cético assume crenças e opiniões, segundo esse critério, em vista
de sua prática suspensiva. Dizer que, de um ponto de vista prático, o
cético assente a crenças de um modo “relativo” a suas capacidades
cognitivas finitas não significa dizer que ele não lhes dê um assenti-
mento integral, nem que todas as crenças a que assente se situem num
mesmo plano a despeito de seu conteúdo. Dado que “os olhos huma-
nos não podem perceber as coisas senão segundo as formas do seu
conhecimento”, Montaigne pode facilmente alegar que a pretensão de
conhecimento acerca dos deuses e dos mecanismos internos da natu-
reza forja apenas “sonhos e fantásticas loucuras” (cf. 535-536). Porém,

52. Cf. Descartes, Oeuvres, p. 156, 164, 171.

176

10888_A figura do filosofo.p65 176 28.03.07, 16:03


O império do costume

mesmo aquilo que, em vista dessa crítica, poderia nos aparecer, em


oposição, como verossímil deve ser visto com desconfiança. Nesse ní-
vel, o ceticismo conduz Montaigne, de modo geral, a uma recomenda-
ção de prudência e moderação, não apenas em vista das novidades que
nos pareçam eventualmente persuasivas, mas também em relação às
crenças e opiniões a que aderimos (v. 563-564A). Nesse sentido, o ce-
ticismo de Montaigne aponta na direção de um exercício autocrítico
constante, pelo qual suas opiniões se submetem à prova diante das que
lhes são contrárias. Retomando a mesma crítica do verossímil que ob-
servamos no ensaio I, 27, ele escreverá, mais tardiamente:
[B] Eu entro em conversação e discussão com grande liberdade e
facilidade, posto que a opinião encontra em mim um terreno pouco
propício para penetrar e lançar longas raízes. Nenhuma proposição
me surpreende, nenhuma crença me ofende, seja qual for a contra-
riedade que houver com a minha. Não há fantasia que seja tão frívola
nem tão extravagante que não a ache compatível com a produção do
espírito humano. Nós, que privamos nosso juízo do direito de senten-
ciar [faire des arrests], observamos brandamente as opiniões diversas
… As contradições portanto dos julgamentos não me ofendem nem
me alteram, elas apenas me despertam e me exercitam… Quando
me contrariam despertam minha atenção, não minha cólera; eu avanço
para aquele que me contradiz, posto que me instrui … (III, 8, 923-4).
Estamos diante de uma filosofia que, como veremos melhor, con-
cebe-se essencialmente como uma prática relativa à capacidade daque-
le que filosofa de estabelecer a suspensão; uma prática que deve, por-
tanto, fazer face, aceitando-os ou repondo-os em questão, tanto aos
limites privados com que se defronta como aos limites públicos impos-
tos pelo modo como o costume os constitui coletivamente. Discutire-
mos no capítulo VI alguns aspectos dessa primeira ordem privada de
limitações e especialmente suas conseqüências com relação à com-
preensão da noção de epokhé nos Ensaios. Por ora, ater-nos-emos às
limitações de cunho coletivo, que conduzem Montaigne a recusar cer-
tos interlocutores como inadequados para uma verdadeira discussão
filosófica. Importa ver como essa ordem de limitações se articula ao
uso de expedientes paradoxais por Montaigne em seus textos.

177

10888_A figura do filosofo.p65 177 28.03.07, 16:03


10888_A figura do filosofo.p65 178 28.03.07, 16:03
CAPÍTULO IV

Filosofia, literatura e paradoxo

No capítulo anterior, observamos como as reflexões de Montaigne


sobre o costume se articulam ao critério cético de ação: sua ingerência
naquilo que nos aparece como verossímil ou natural nos impede de
admitir que estejamos diante de conhecimento das coisas, sem que, com
isso, esteja vedada a plena adesão às crenças e aos costumes na medida
em que nos facultam um pleno uso das coisas tal como relativamente
nos aparecem. Vimos também, contudo, que o costume pode se impor
diversamente a cada um (em vista de como cada qual se mostra capaz
de se evadir de suas presas e descobrir a máscara que ele projeta nas
coisas), o que conduz a uma importante distinção entre o assentimento
“exterior” ou “interior” àquilo que o costume impõe. Adotando-o como
critério de ação, o cético compreende a necessidade de assentir —
externamente — a crenças costumeiras que ele mesmo julgaria inve-
rossímeis, em vista de sua utilidade para a manutenção da ordem pú-
blica. Isso não significa, porém, que as crenças e os valores que ele
adota interiormente representem mais do que o resultado provisório, e
indefinidamente revisável, do exame autocrítico acerca daquilo que o

179

10888_A figura do filosofo.p65 179 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

costume lhe conduz a aceitar segundo seu próprio juízo — exame esse
que, a rigor, parece não poder ser levado a cabo de forma definitiva,
sempre refletindo o limite relativo das capacidades daquele que o em-
preende, como veremos melhor adiante. Por ora, importa examinar a
maneira como a distinção entre esses dois sentidos diferentes em que a
reflexão de Montaigne preconiza a adesão ao costume é importante
pode ter conseqüências para o modo como se explicita seu ceticismo e,
por conseguinte, para a investigação sobre sua “novidade” filosófica.
Vimos ainda que a aceitação “externa” das crenças costumeiras pelo
“sábio” não significa uma limitação teórica do ceticismo; ao contrário,
ela corresponde à delimitação de um âmbito privado e “interior” do
juízo no qual ele disporia, em princípio, das melhores condições de
liberdade para considerar as coisas segundo sua “verdade”. Tal é o âmbito
em que seria lícito julgar as opiniões segundo seu peso próprio, como
diz Montaigne, sem levar em conta o valor que ganham em vista dos
que as adotam; é também o âmbito em que a reflexão cética poderia
plenamente vigorar, e ser explicitada segundo o sentido filosófico pre-
ciso de suas conseqüências. Essa oposição corresponde, assim, precisa-
mente ao modo pelo qual a reflexão cética de Montaigne define, para
si mesma, um âmbito de rigor, por oposição à esfera na qual o proble-
ma da aceitação de crenças sofre interferência da ordem da “utilida-
de”, e, nessa medida, dos valores coletivamente estabelecidos, segundo
as determinações dogmáticas que comportam. O mesmo espaço públi-
co em que os reformistas equivocadamente pretendem rebater os dog-
mas costumeiramente aceitos seria aquele em que, de modo mais ge-
ral, inviabiliza-se a interlocução filosófica, tal como concebida por Mon-
taigne, segundo seus próprios critérios, e, quão mais imperiosa fosse a
vigência das razões da ordem da utilidade, tanto mais essa discussão
deveria levar em conta, no modo como se explicita, a força particular
com que as opiniões costumeiras se impõem, ao menos no que tange
aos costumes associados à ordem pública.
Porém, ser capaz de distinguir teoricamente as dimensões do “ex-
terno” e do “interno” — como faz Montaigne, de passagem, no ensaio
sobre o costume — não é o mesmo que dispor de uma linha demarca-
tória plenamente clara entre elas ou admitir que seria possível estabele-

180

10888_A figura do filosofo.p65 180 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

cê-la. Assim, mesmo que tal esquema teórico ofereça uma chave geral
para determinar diretrizes para a ação (especialmente na medida em
que se pretende atravessar tal linha demarcatória), é importante, para
compreendermos melhor a maneira como esse critério se materializa,
segundo a compreensão de Montaigne, observar a forma pela qual seu
juízo se explicita em vista de obstáculos “externos” da natureza aqui
vislumbrada, indicados por seu próprio texto. O campo da defesa da
religião revela-se particularmente digno de atenção, segundo esse novo
enfoque.
Embora essa diretriz cética de ação se traduza, como vimos, numa
defesa em bloco da religião costumeira, esse simples fato certamente
não garante que a autoridade do costume, tal como externamente ele se
impõe, e a de seu próprio juízo possam ser sempre acolhidas de modo
harmônico, a despeito da clareza com que se distinguem os sentidos
diferentes da adesão. Mesmo que sua defesa “exterior” da religião se
traduza numa declaração de submissão ao conjunto completo dos arti-
gos de fé da Igreja tradicional, Montaigne igualmente explicita, ainda
que com a devida cautela, noutras passagens sua recusa em se submeter
integral ou incondicionalmente à autoridade dos tribunais eclesiásti-
cos, entre as quais a mais eloqüente seja talvez a passagem em que ele
se contrapõe às ameaças que a Inquisição lhe teria dirigido, graças à
dúvida que professa relativamente aos testemunhos fantásticos que, uma
vez aceitos como verdadeiros, serviriam de base para a condenação das
feiticeiras: “[B] Eu bem vejo que se remoem, e que me proíbem de
duvidar, sob pena de injúrias execráveis. Pelo amor de Deus, minha
crença não se maneja a socos…” (III, 11, 1031). Nos desenvolvimentos
mais tardios, Montaigne assume, cada vez mais abertamente, a liber-
dade de manifestar seus julgamentos nos casos em que a prudência
talvez lhe teria antes recomendado o silêncio: Servet, entre outros pro-
testantes, foi condenado ao fogo em 1553 por suas interpretações heré-
ticas, em meio a um ambiente de perseguições e intolerância crescente
de ambas as partes em conflito1, e Galileu, como sabemos, seria poste-

1. Sobre esse ponto, ver TOURNON, 1989, p. 14-18. Friedrich, de sua parte (1985, p.
40), considera que as críticas eventuais de Montaigne à Igreja, embora inegáveis, são,

181

10888_A figura do filosofo.p65 181 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

riormente forçado a se retratar (em 1663) de sua recusa de idéias orto-


doxas não muito diversas do antropocentrismo cosmológico de Sebond
que Montaigne ataca frontalmente na “Apologia”2. Ademais, tal confli-
to entre “externo” e “interno” parece ser potencializado pelo mesmo
perigo que ele teria talvez antevisto em abertamente propagar sua posi-
ção pirrônica (posto que, a despeito de seu conteúdo filosófico ser intei-
ramente outro do que o das teses sustentadas pelos calvinistas, esse mero
posicionamento poderia representar, por essa ótica, a mesma vaidade
que ele critica nos objetores de Sebond)3. Como vimos, ele apresenta o
cético em terceira pessoa, e sublinha que esse filósofo, porquanto ofere-
ça armas para combater a vaidade dos que se aventuram a interpretar o
sentido da verdade revelada, não é herético nem ateu, mas uma “pági-
na em branco” na qual se poderiam, talvez, inscrever várias formas e
versões diversas de sua aceitação da religião. Não seria essa caracteriza-
ção indiretamente reveladora da dimensão “perigosa” que poderia assu-
mir essa filosofia, freqüentemente tomada, ao longo do século XVI, como
uma forma de ateísmo e contraposta à religião4? Se ao sábio correspon-

devidas a seu ceticismo, menos ousadas que as de Rabelais, Bodin e Dolet (este igual-
mente condenado à fogueira).
2. Convém lembrar, seguindo Villey (v. Les Essais, p. 317), que, embora as “tendên-
cias agnósticas” da defesa da religião montaigniana tenham então sido vistas como acei-
táveis pelo Maestro del Sacro Palazzio, em Roma, em 1581, uma das idéias centrais do
ensaio I, 56 (em que narra suas opiniões sobre as preces), foi censurada e, nem por isso,
Montaigne a tirou de seu texto (ressalvando antes que ali a introduzira por desconhecer
que se tratava de um “erro”). Igualmente, vimos que ele elogia, na Apologia, concep-
ções pitagóricas sobre um Deus incompreensível que seriam igualmente objeto de con-
denação. Seu elogio de Juliano Apóstata, imperador romano anticristão, num capítulo
sugestivamente nomeado “Da liberdade de consciência”, foi igualmente criticada por
Roma (ibid., p. 668).
3. Ver 565A, em que Montaigne descreve a vaidade que encontra em si mesmo,
paradoxalmente aludindo à relatividade de suas apreensões segundo as circunstâncias (v.
568-569), que é um motivo cético da suspensão e da crítica da vaidade ou “propéteia”
dogmática (que corresponde ao sentido desse termo na grande maioria das ocorrências).
Não obstante, tal vaidade “cética” (que Montaigne afirma ser perceptível em cada um
que se observe mais de perto, v. 566B) será ela mesma contraposta, algumas páginas
adiante, à adesão pessoal ao catolicismo narrada por Montaigne em 569A, nos termos em
que a examinamos. Retomaremos esse tema no capítulo seguinte.
4. Guy DE BRUÈS, no prefácio de seus Dialogues contre les Nouveaux Academiciens
(1557) — tidos como a primeira obra de língua francesa a tratar exclusivamente de fi-

182

10888_A figura do filosofo.p65 182 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

de eventualmente uma conciliação ideal e harmônica entre a adesão


exterior às formas aceitas e a manutenção interior da plena liberdade de
julgar, diríamos que tal problema se impõe vivamente a Montaigne —
como um problema que demanda não apenas particular destreza, mas
recursos estilísticos adequados para o seu enfrentamento.
Montaigne apresenta os Ensaios como um “livro de boa-fé”, no
qual almeja retratar o mais fielmente possível seus próprios juízos5. Mas,
para que o juízo não recue, por vezes a expressão parece se ver obriga-
da a tanto. Em “Da vaidade” (III, 9), ele afirma ser tão leviano escrever
abertamente quanto o seria atacar o partido católico por ser o menos
doente (v. III, 9, 993B), e, logo adiante, comentando o estilo aparente-
mente fragmentário de seus ensaios, ele precisa: “Além disso, eu even-
tualmente tenho alguma obrigação particular de não dizer pela meta-

losofia —, alude aos acadêmicos como “infelizes inimigos de si mesmos e de Deus…”,


ao mesmo tempo reconhecendo que “há vários deles que estimam que tudo consiste
tão-somente em opinião…” (v. Dial., p. 90). É bem verdade que esse autor, citado
diversas vezes por Montaigne, alude à filosofia da Nova Academia e não ao ceticismo
pirrônico. A obra de Bruès foi escrita e publicada num momento em que as obras de
Sexto ainda não haviam sido divulgadas nas traduções latinas de Estienne (1562) e
Hervet (1569). Mas seria evidente, para o leitor familiarizado com essa associação entre
a dúvida cética dos acadêmicos e o ateísmo, que o pirronismo fosse uma posição com-
patível com a religião? Parece atestar o contrário, por exemplo, o discours do matemá-
tico e literato Jacques Peletier du Mans, no qual os pirrônicos não apenas são criticados
com virulência por serem propositores de posições absurdas, mas também são identifi-
cados aos acadêmicos. (v. Paul LAMOUNIER, Un discours inconnu de Peletier du Mans,
Revue de la Renaissance, V (1904) 286-287, apud GRAY, 1964, p. 33, nota 9). Na Apo-
logia, há uma alusão, aparentemente irônica, a Peletier (que se teria hospedado no
castelo de Montaigne durante o período da redação desse capítulo) como propositor de
razões matemáticas que exibem a fraqueza da razão. Não deveríamos também ver aqui
um indício de que o próprio Montaigne, por intermédio de quem talvez Peletier tenha
tomado contato com essas filosofias, visse-as como próximas ou semelhantes (além dos
diversos aspectos filosóficos em que já constatamos seu juízo implícito sobre tal paren-
tesco)? É possível que a existência de uma margem interpretativa ampla acerca da re-
lação entre ambas as filosofias “céticas” e a religião seja um motivo da insistência em
sublinhar a compatibilidade entre o pirronismo e a religião em diversos textos do perío-
do que fazem referência a essa modalidade de ceticismo (além da “Apologia”, por exem-
plo, os prefácios dessas traduções latinas de Sexto), bem como haja uma explicação da
utilidade dessa filosofia contra os inimigos da religião (no caso de Hervet, identificados
igualmente como calvinistas e como “novos acadêmicos”).
5. Cf. “Ao leitor”, p. 3; II, 17, 653.

183

10888_A figura do filosofo.p65 183 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

de, de dizer confusamente, de dizer de modo discordante…” (III, 9,


994-995C). Esse não é um testemunho isolado: em várias passagens
Montaigne alude à impossibilidade de se manifestar abertamente e aos
recursos alternativos de que se vale. Interessa aqui retomá-las para ob-
servar como podem esclarecer essa zona de penumbra do texto mon-
taigniano, ao qual confluem a expressão do juízo, segundo a sua liber-
dade própria, e as exigências da ordem costumeira, que o limitam. Pen-
samos que tal exame nos revela que o emprego de expedientes parado-
xais no texto de Montaigne constitui, ao menos em parte, uma estraté-
gia de prudência para permitir que o juízo se manifeste, tão plenamen-
te quanto possível, sem incorrer na mesma temeridade denunciada.

4.1. Retórica do paradoxo


Comecemos por um exemplo atinente a uma temática central dos
Ensaios, a intenção de se auto-retratar em sua obra, anunciada já no
prefácio, no qual Montaigne avisa ao leitor que sua intenção é se apre-
sentar em sua “feição simples, natural e ordinária, sem contensão e
artifício”. O mesmo prefácio informa que sua liberdade se limita segun-
do a “reverência pública”6, limitação retomada e esclarecida noutras
passagens, como esta, do capítulo “Do arrependimento”: “Eu digo a
verdade, não à saciedade, mas o tanto que ouso dizer; e ouso um pouco
mais ao envelhecer, pois me parece que o costume concede a essa ida-
de mais liberdade de tagarelar e de indiscrição em falar de si…” (III, 2,
806). Alguns lerão essa referência à indiscrição como uma alusão ao
pudor de se expor intimamente, ou ao simples fato de expor-se num
livro em primeira pessoa7. Porém, uma parte essencial desse auto-retra-

6. Ver “Ao leitor”, p. 3.


7. Sobre o tema retórico da pertinência de falar de si mesmo sem incorrer em pre-
sunção, ver, por exemplo, MACGOWAN, 1974, p. 2 ss. Montaigne aborda o tema em
várias ocasiões (v. esp. II, 17 e II, 18), especialmente com base em Plutarco e em Cas-
tiglione (v. I, p. 36). O que importa aqui destacar, contudo, é o fato de que, em confor-
midade com essas fontes, Montaigne diz explicitamente que não considera que o falar
de si signifique necessariamente incorrer em presunção e que, em particular, não en-
tende que seu auto-retrato incorra nesse problema (v. II, 6, 378).

184

10888_A figura do filosofo.p65 184 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

to consiste na exposição de seu juízo pessoal acerca dos variados temas


que aborda8. Diante do que vimos até aqui, não caberia compreender
essa alusão ao costume como uma irônica maneira de expressar a ten-
são existente na fronteira em que se opõem, de um lado, o projeto auto-
retratista (como exposição do “interior”, no sentido já examinado) e, de
outro, os critérios costumeiros segundo os quais essa exposição, uma
vez exteriorizada, será colhida, em vista dos problemas já considerados?
A despeito de qual seja exatamente o risco envolvido nesse con-
fronto com o costume, importa destacar a estratégia empregada por
Montaigne diante dessa restrição, para compreender melhor o sentido
paradoxal dessa última passagem considerada. Se considerada a defa-
sagem entre a interioridade e a exterioridade a que nos referíamos,
talvez o ensaio auto-retratista de Montaigne deva ser visto não apenas
como tentativa de enfrentar os problemas relativos à exposição das
dimensões intangíveis de sua interioridade9, mas também como esfor-
ço de estabelecer uma mediação entre espaços que, segundo o seu
próprio juízo, são descontínuos (na medida mesma em que sua plena
exposição se reconhece como inconveniente). Observar os Ensaios desse
ângulo leva-nos a pôr em evidência que seu texto se converte no meio
pelo qual a interioridade ganha forma ao se exteriorizar, valendo-se dos
sinais públicos e compartilhados que a linguagem oferece. Em cir-
cunstâncias particulares, que não são definidas de antemão, ele se con-
verte num instrumento pelo qual a interioridade, situada no exílio que
se desenha no verso das ponderações sobre o poder do costume, preci-
sará buscar caminhos para se exteriorizar tão fielmente quanto possí-
vel, sem desrespeitar as restrições devidas ao fato de que tal texto “pu-
blica” algo que será recolhido pelo juízo de outrem segundo seus cri-
térios próprios e eventualmente diversos. Eis, sobre esse último ponto,
o que ele mesmo afirma:
[B] Eu não temo absolutamente inserir aqui [nos Ensaios] diversos
artigos privados, que consumarão seu uso entre os homens que vi-
vem hoje, e que tocam a ciência particular de alguns, que aí verão

8. Ver, por exemplo, II, 17, 653.


9. Ver, por exemplo, II, 6, 379.

185

10888_A figura do filosofo.p65 185 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mais longe do que os da inteligência comum. Eu não quero que,


depois de tudo, tal como vejo freqüentemente agitarem a memória
dos trespassados, sigam debatendo: ele julgava e vivia assim, ele que-
ria isso; se ele tivesse falado sobre seu fim, teria dito, teria dado; eu o
conheço melhor do que todos os outros… (III, 9, 982-3).
Essa passagem afirma abertamente que alguns dos “artigos priva-
dos” — que refletem o juízo pessoal de Montaigne — fazem-no de um
modo tal que certamente escaparão da compreensão de um conjunto
de leitores. Já tivemos a oportunidade de examinar discussões que pare-
cem se acomodar bem a essa descrição: os leitores que desprezarem a
possibilidade de aproximar a defesa de Sebond das fontes diversas a que
ele alude de modo direto ou indireto (Sebond, Cícero ou Sexto Empí-
rico) abdicarão de elementos decisivos para compreender o sentido
preciso em que se opera em seu texto uma defesa filosófica da religião,
ou mesmo para interpretar suas fórmulas de adesão religiosa num sen-
tido diverso do que aquele que isoladamente poderiam parecer possuir.
Tal aproximação nos oferece, ademais, um novo elemento para escla-
recer por que Montaigne considera sua estratégia apologética não ape-
nas autodestrutiva (como vimos no capítulo II), mas também “temerá-
ria”. Na conclusão do ensaio intitulado “Das vãs sutilezas” (I, 54), ele
se situa numa incômoda posição intermediária entre a ignorância “abe-
cedária”, dos cristãos que simplesmente crêem, e a ignorância “douto-
ral”, que abrange os “filósofos” antigos, as naturezas fortes, claras e ins-
truídas de seu tempo, bem como os espíritos capazes de compreender
o segredo divino e misterioso da “política eclesiástica”:
[C] Os mestiços [mestis], que desdenharam o primeiro assento de
ignorância das letras, e não podem chegar à outra (sentados entre
duas selas, dentre os quais estou eu, e tantos outros), são perigosos,
ineptos e incômodos. Entretanto, de minha parte, eu recuo o tanto
que posso ao meu assento primeiro e natural, do qual eu tentei, por
um nada, partir…” (I, 54, 312-313BC; itálicos nossos).
Poder-se-ia pensar, à primeira vista, que Montaigne contradiz aqui
a passagem da “Apologia” em que afirma sermos “todos do vulgo”. Con-
tudo, como vimos, aquela passagem sublinha a necessidade de descon-
fiarmos de nossa capacidade de atravessar em segurança o mar de opi-

186

10888_A figura do filosofo.p65 186 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

niões e argumentos das querelas religiosas. Mas em que medida ele se


distinguiria dos que possuem uma “ignorância doutoral” suficientemente
clara? A despeito de retornar para sua posição originária, buscando
manter intactas as antigas crenças da religião, Montaigne não o pôde
fazer plenamente (no mesmo sentido em que a elas assentia ingenua-
mente, antes de ter atinado com seu fundamento “costumeiro”). Ao
menos nesse sentido, ele se aproxima dos reformistas: não por confun-
dir, como estes fazem, a razão pública e a razão privada, mas porque
também sua estratégia de conciliação entre seu juízo pessoal e a preser-
vação do costume, como ele mesmo reconhece, comporta riscos, e
depende de uma avaliação permanente acerca das possibilidades de
dar livre curso às opiniões.
As duas últimas passagens que citamos possuem muito em comum,
no que tange ao seu aspecto paradoxal. Na última, graças ao modo
enigmático pelo qual, situando-se entre o vulgo e os doutos, nos convi-
da indiretamente a compreendê-la como uma alusão aos mesmos limi-
tes do costume que permanentemente são desafiados na relação tensa
que mantêm com a exposição do julgamento pessoal. Na passagem
anterior, ainda mais claramente, oferece seu texto como critério para
que o conheçamos, por meio de seus juízos, mas condena de antemão
o modo como os leitores futuros (e diversos outros de seu próprio tem-
po) presumirão saber o sentido “privado” desse juízo, e lhes transfere o
ônus da presunção de “ver além dos demais”. Porém, esse paradoxo
parece ser um retrato da manifestação da interioridade ante os proble-
mas considerados: o texto, na medida exata do que afirma, é um exem-
plo da fidelidade pela qual aquilo que comunica é sempre conforme ao
que pensa, mas ele não comunica muito mais, nessa passagem, do que
o simples fato de que a comunicação não pode ser inteiramente clara.
Contudo, a despeito das restrições que nos endereça, Montaigne não
nos deixa inteiramente desamparados: ele também informa que tanto
menos o leitor será capaz de reconhecer essas instâncias quanto menos
for capaz de considerar as contingências “temporais” que as determi-
nam (aquelas mesmas que, como vimos, concernem à ordem da exte-
rioridade e do costume). Não deveremos ver aí um exemplo de que,
embora não possa apresentar abertamente o que justifica essa ambigüi-

187

10888_A figura do filosofo.p65 187 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

dade (sem destruir sua estratégia, na medida em que ela deve justamen-
te ocultar o que a motiva), ele pode, ao menos, “apontá-la com o dedo”?
[B] … à medida que minha comodidade [bienséance] mo permite,
faço aqui sentir minhas inclinações e afecções, mas o faço mais livre-
mente e de melhor grado de boca a quem quer que deseje ser infor-
mado. Tanto há aqui que nestas memórias, se nelas olharem, desco-
brirão que eu tudo disse, ou tudo designei. O que eu não posso expri-
mir, eu o mostro com o dedo: Verum animo satis hæc vestigia parva
sagaci sunt, per quæ possis cognoscere cætera tute. Eu nada deixo a
desejar e a adivinhar de mim… (III, 9, 983)10.
Montaigne não está, nessa nova versão do mesmo paradoxo, contra-
ditoriamente afirmando e negando, no mesmo sentido, a completude
das informações que oferece, mas novamente conciliando, pelo ângulo
possível, as exigências postas pela fidelidade ao juízo “interno” e pelo
respeito ao costume na sua dimensão “externa”. Dizer que não se pode
dizer, de todo modo, é dizer claramente algo, que não precisa ser adi-
vinhado. Mas o que deixa ele de dizer? Só pode apontá-lo com o dedo,
e transferir ao leitor a responsabilidade de ver além dos demais. Ainda
esta vez, a própria passagem não deixa de convidar o intérprete a julgar,
ao apontar os limites de sua clareza — “à medida que minha comodi-
dade mo permite” —, por mais que o gesto de apontar possa aqui pe-
rigosamente contrariar certos costumes.
Essas passagens mostram que, segundo Montaigne, dizer fielmen-
te segundo o seu juízo não significa dizer tudo o que se pensa, como
ele mesmo declara claramente, após criticar o vício da dissimulação:
“[A] Não é preciso sempre dizer tudo, pois isso seria tolice, mas o que
se diz, é preciso que seja tal como se pensa, de outro modo é malda-
de…” (II, 17, 648). Essa nova informação paradoxal, por sua vez, exem-
plifica a maneira como o texto, em plena conformidade com a decla-
ração de boa-fé do prefácio, apresenta-se, todavia, como critério de sua
própria incompletude e como o espelho autorizado da interioridade
que não pode ser inteiramente refletida. Mais uma vez, tal estratégia

10. A citação é de Lucrécio (De rerum natura, I, 403): “Em verdade, estas breves indi-
cações bastam a um espírito penetrante, pelas quais poderias descobrir todo o resto”.

188

10888_A figura do filosofo.p65 188 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

serve para indiretamente precisar o sentido dessa declaração de boa-fé,


desautorizando por antecipação os que pretendessem dela inferir a exi-
gência de que os Ensaios, por se assumirem como um auto-retrato,
fossem uma espécie de confessionário, no qual tudo que se pensasse
devesse ser dito abertamente11, exigência incompatível com aquela que
o próprio Montaigne estipula para tal fim:
[B] Quando me disseram, ou que eu mesmo me tenha dito: tu és
demasiado espesso de figuras… Eis um discurso paradoxal [discours
paradoxe]. Eis um demasiado louco. [C] Tu brincas com freqüên-
cia; julgar-se-á que tu dizes efetivamente o que tu finges dizer. [B]
— Sim, digo eu; mas eu corrijo os erros de inadvertência, não aque-
les do costume. Não é assim que eu falo sempre? Não me represen-
to assim vivamente? Basta. Fiz o que eu queria: todo mundo me
reconhece no meu livro, e meu livro em mim… (III, 5, 875; itáli-
cos nossos).
Ainda que por um viés inesperado e paradoxal, o “discours paradoxe”,
embora oculte as opiniões do autor, dele oferece uma boa imagem,
posto que ele costumeiramente se valeria do mesmo expediente fora de
seu livro. Todavia, essa é mais uma passagem que nos permite avançar
sem perder de vista o princípio interpretativo que elege o texto como
critério exclusivo para conhecer os pensamentos do filósofo. É o pró-
prio texto que demarca seus limites e envolve o leitor num exercício
interpretativo que, seja mais ou menos rigoroso, é de saída consignado
como incapaz de suprimir totalmente a franja de ambigüidade que o
texto deliberadamente cria (na medida em que se refere a um conjunto
de circunstâncias, como condição de compreensão dessas lacunas, que
não pode ser plenamente circunscrito).
Ademais, a expressão “discours paradoxe” (acusação de um interlo-
cutor fictício a que Montaigne reage com ironia, sem desautorizá-lo) é

11. Ver “Ao leitor”, p. 3: “Eu próprio sou a matéria de meu livro”. A mesma crítica
foi feita por MARCU (v. 1964, p. 240). Outros comentadores observaram que já nesse
prefácio, inserido na obra em março de 1580, a mesma estratégia paradoxal parece
operar desde sua declaração inicial, acerca da boa-fé dessa obra originalmente dirigida
apenas aos parentes e aos amigos (v., p. ex., DRESDEN, 1963, p. 269-270).

189

10888_A figura do filosofo.p65 189 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

particularmente relevante, não apenas pelo que confirma sobre a leitu-


ra das demais passagens aqui invocadas, mas também pelo significado
preciso que possui na literatura do século XVI. Ela se refere a uma
ampla tradição literária, que se modela principalmente pelo Elogio da
Loucura, de Erasmo. Publicada em Paris em 1511, e rapidamente ga-
nhando grande popularidade12, essa obra se anuncia como uma decla-
matio — um exercício de estilo, em tom de brincadeira — pelo qual a
Loucura, narradora da obra, destila suas críticas aos homens sãos (so-
bretudo aos teólogos), paradoxalmente desautorizando o leitor a levá-
las a sério (por serem, justamente, falas da Loucura). O expediente se
popularizou na literatura do período, freqüentemente empregado com
o mesmo propósito de dissimular aspectos eventualmente perigosos das
posições apresentadas (e, por conseguinte, como um meio de garantir
ironicamente, em certa medida, a liberdade de expressão)13. Tal jogo,
enfim, estimulou uma prática literária na qual é freqüente a mesma
retórica da dissimulação, bem como as inversões de perspectivas e a
intervenção de personagens destinados a produzir sentidos inesperados
nas afirmações que lhes são atribuídas. Os Paradossi, de Ortensio Landi,
são um exemplo particularmente importante, mas os mesmos expe-
dientes se apresentam em diversos autores franceses do período, como
Rabelais, Guy de Bruès, Tahureau, Boaystuau, Bonaventura des Periers,

12. Sobre esse ponto, ver a introdução de Claude BLUM (Bouquins, p. 3).
13. É o que ocorre, segundo FRIEDRICH (1965), não apenas nos procedimentos
autodepreciativos de Montaigne, mas igualmente no caso de antecessores como Erasmo,
More e Corneille Agrippa (v. p. 24-28). MACGOWAN, igualmente, relaciona os expe-
dientes paradoxais dessa e de outras obras de Erasmo à “autoproteção” (v. p. 43). Inspi-
rados por preceitos retóricos relacionados com o “método de prudência”, tal como pre-
sente em Ramus, e remontando a fontes antigas, como Quintiliano (a comentadora
cita, em particular, Institutio Oratoria, IX, 2: “o expediente mais artístico é aquele pelo
qual uma coisa é indicada por meio de outra”), os Colóquios de Erasmo, por exemplo,
se constroem de modo que deixam o ônus da interpretação a cargo do leitor — que é,
de modo aparentemente contraditório, convidado a se identificar com um, nenhum ou
ambos os interlocutores (ibid.). O mesmo expediente inconclusivo, segundo BOWEN,
se poderia observar já em autores medievais, como Guilherme de Ockham, mediante
o uso deliberado da ambigüidade e da ficção. Igualmente aqui, Bowen sublinha, entre
outras de suas possíveis motivações práticas, a necessidade eventual de esconder posi-
ções perigosas ante a situação de intranqüilidade política e religiosa (v. 1972, p. 13-14).

190

10888_A figura do filosofo.p65 190 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

Du Plessis Mornay, De la Primaudaye, Pasquier, Margueritte de Navarre


— todos esses lidos e citados por Montaigne14.
Esses elementos parecem nos oferecer uma chave indispensável
para o exame de várias passagens dos Ensaios. Deveríamos, por exem-
plo, compreender literalmente a alusão de Montaigne à sua velhice
como circunstância pela qual ele se autoriza, segundo o costume, uma
licença eventualmente maior que a normalmente aceitável? Não seria
essa mais uma ocasião em que, desautorizando formalmente suas opi-
niões na forma de “excrementos de um velho espírito”, ele poderia
mais livremente dar-lhes um conteúdo adequado ao seu próprio juízo,
filiando-se a essa mesma tradição?
Importa, ademais, sublinhar que grande parte desses autores, a co-
meçar por Erasmo, não apenas tomou contato com o ceticismo, mas
aludiu explicitamente a essa filosofia, quando não empregou argumen-
tos céticos em suas obras. É o que ocorre, por exemplo, no Tiers Livre
(1546), de Rabelais, um personagem filosofante, Trouillogan, intervin-
do com evasivas paradoxais para resolver as perplexidades de Panurge,
é qualificado de “pyrrhonien” por Gargântua15. O mesmo ocorre no
caso de Cornelius Agrippa, cujo De vanitate scientiarum, também fon-
te dos Ensaios, ataca sistematicamente os mais diversos representantes
do saber humano — teólogos, dialéticos, sofistas, filósofos, médicos,

14. Não cabe aqui um exame da aplicação individual do paradoxo por esses autores,
dos quais, segundo Villey, Montaigne dá testemunhos certos da leitura (salvo Du Plessis
Mornay e Pasquier, que constam apenas como “muito provavelmente”, no “Catalogue
des Livres de Montaigne” da edição de referência dos Ensaios). Segundo MacGowan,
a estratégia de disfarce é um meio que Du Plessis e Pasquier, por exemplo, justificam
como particularmente adequada para a apresentação de verdades no contexto das guer-
ras civis (ibid.). Para uma análise geral do desenvolvimento da literatura paradoxal na
França do século XVI, ver BOWEN, 1972: trata-se de um recurso estilístico o emprego
do paradoxo, da antítese, do enigma e da ambigüidade, a fim de conduzir deliberada-
mente o leitor a um jogo de decifração das opiniões do autor e do verdadeiro peso a ser
atribuído às suas afirmações.
15. Ver RABELAIS, Tiers livre du Pantagruel, cap. 36, apud. TOURNON, 1991, p. 32.
Montaigne, de sua parte, inclui o livro de Rabelais entre os que considera “apenas
divertidos” (plaisans) (v. II, 10, 410A). Noutra passagem ele se refere a Pirro, porém,
como o filósofo “que fez da ignorância uma tão agradável ciência” (plaisante science)
(II, 29, 705A; itálico nosso).

191

10888_A figura do filosofo.p65 191 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

retóricos — de um modo bastante afeito ao Elogio da Loucura, com


argumentos variados que por vezes claramente se aproximam daqueles
empregados pelo ceticismo antigo16. É certo, porém, que esse parado-
xal exame erudito se volta contra a vaidade dessas sciences com um
propósito satírico, que o transforma numa espécie de paródia bufa do
Adversus mathematicos, obra em que Sexto examina em detalhe os
diversos ramos dos saberes humanos, buscando sistematicamente mos-
trar o desconhecimento da verdade17. Estaríamos aqui, para empregar
a expressão de Tournon, diante de uma espécie de “pirronismo lúdico”
— uma “filosofia para rir”, ante a qual caberia hesitar em reconhecer
uma atitude propriamente filosófica18.
A filosofia cética, portanto, não apenas é redescoberta por tais au-
tores, mas também se populariza exibindo a imagem lúdica que eles

16. Das passagens dessa obra que se avizinham de argumentos montaignianos, dois
exemplos merecem destaque: o ataque à circularidade da argumentação pelas causas
dos “dialéticos” e ao modo como Aristóteles preconiza os sentidos como base do conhe-
cimento, sem levar em conta que eles são enganosos, em 41ff, e a crítica ao que ele
denomina a “cosmimetrie, ou consideration des mesures du Monde” (76ff-78vf) — na
verdade, a junção da cosmologia e da geografia —, ele ressalta que os autores são tão
discordantes entre si dos limites, longitudes, latitudes, magnitudes, medidas, distâncias,
climas e temperaturas que não sabemos a qual deles devemos nos ater. Como Montaig-
ne, ele constrói um argumento cético com base na opinião de que não havia outra terra
habitável além de Europa, Ásia e África, revelada falsa pelos navegadores portugueses e
espanhóis, contra as “resveries” dos antigos poetas e a falsa opinião de Aristóteles. A
presença desse autor como fonte dos Ensaios é particularmente visível no irônico exa-
me da medicina empreendido por Montaigne no capítulo II, 37 (“Da semelhança dos
filhos aos pais”).
17. Esse é o propósito do uso do paradoxo nessa obra, segundo Barbara BOWEN (C.
Agrippa’s De Vanitate: Polemic or Paradox?, B. H. R. [1972] 249-256, apud TOURNON,
1991, p. 30). Na Apologie contre les teologues de Louvain, o mesmo Agrippa defende sua
obra “cética”, o De Vanitate, das censuras dirigidas por esses teólogos esclarecendo o
sentido em que ela é uma declamatio: um trabalho feito à moda de exercício, subtraído
das regras que determinariam a verdade e que, nessa medida, não pretende produzir
nenhuma asserção e engajar o assentimento (apud TOURNON, 1991). Digamos que a
definição de declamatio parece fazer parte do mesmo dispositivo retórico pelo qual o
autor se desengaja publicamente da responsabilidade pelo que afirma, sem que isso
cancele, por certo, o sentido das críticas feitas quando tomadas pelo que valem. Isso
parece ser confirmado pelo fato de que Agrippa dispõe-se, ainda assim, a prosseguir com
a encenação refutando ponto por ponto os seus censores teólogos (v. ibid.).
18. Cf. TOURNON, 1991, p. 29-31.

192

10888_A figura do filosofo.p65 192 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

lhe conferem; autores que não parecem partilhar a mesma compreen-


são nem desenvolvem uma prática argumentativa comparável àquela
que encontramos em Montaigne, na medida em que Montaigne busca
restaurar com mais rigor a coerência filosófica do ceticismo tal como
o encontra nas fontes antigas, como vimos. Por essa razão, eles são re-
legados a um plano secundário pela História do ceticismo de Popkin19.
Pensamos, todavia, que os aspectos estilísticos aqui exibidos justificam
uma reconsideração da importância relativa desses autores para a com-
preensão do ceticismo de Montaigne, sobretudo se temos em mente a
paradoxal declaração de novidade com que ele apresenta sua filosofia.
Que sentido devemos exatamente atribuir ao texto que citamos na
epígrafe em face dessa imagem costumeira do ceticismo, à qual ele
parece, nalguma medida, se filiar ao argumentar paradoxalmente, à
moda dessa tradição literária “cética”? Como compreender a singula-
ridade de sua atividade filosófica, que os elementos aqui considerados
parecem demarcar, a um só tempo em face da tradição filosófica cética
e da tradição literária do paradoxo? Quão longe se poderia ir, por exem-
plo, na trilha de Tournon, para quem os Ensaios, ao se situarem nessa
confluência intelectual, inventariam uma “nova linguagem”, logica-
mente transmudada e imune aos inconvenientes que fariam do ceticis-
mo antigo uma filosofia contraditória20?

19. Sobre o contato de Agrippa com os textos de Sexto, ver POPKIN, 1979, p. 23 ss.,
que lê a obra de Agrippa sem considerar nem mesmo a possível dimensão lúdica de seu
texto. Segundo Popkin, trata-se apenas de um “antiintelectualismo fundamentalista”,
que dificilmente pode representar um argumento genuinamente filosófico para o ceti-
cismo sobre o conhecimento humano, ressaltando, igualmente, a inexistência de qual-
quer “análise epistemológica séria”.
20. TOURNON identifica a confusão entre textos e comentários nos Ensaios como
um traço genuinamente cético dessa obra, que conferiria um novo alcance ao “pirronis-
mo lúdico”, pelo qual haveria um jogo na construção do discurso destinado a minar as
“instâncias reguladoras da comunicação” e a “armação lógica da linguagem” (1991, p.
36-37). Se assim fosse, teríamos dificuldade em compreender em que medida tal “ce-
ticismo” seria diverso daquele que o mesmo comentador reconhece em Agrippa, cujo
discurso se situaria num lugar intermediário entre o verdadeiro e o falso (ibid., p. 29).
Parece-nos que a descoberta desse “novo ceticismo” só se faz possível ao preço de con-
ferir ao pirronismo um sentido mais vago do que ele possuiu aos olhos do próprio Mon-
taigne. Uma premissa da identificação entre epokhé e paradoxo no sentido em que o faz

193

10888_A figura do filosofo.p65 193 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

4.2. Um pirronismo lúdico?


Embora Montaigne certamente possua uma compreensão filosó-
fica mais refinada do ceticismo do que seus colegas paradoxais, é
preciso aqui, novamente, um especial cuidado para não o confinar
numa filosofia fictícia, ou numa postura intelectual que não é a sua.
Mesmo que diversas particularidades de sua interpretação permane-
çam incógnitas, é possível, retomar aspectos da discussão em torno
da noção de costume, bem como as exigências de rigor impostas por
outros aspectos de sua compreensão do ceticismo, para avaliar em
que medida poderia esse procedimento paradoxal ser assimilado, se-
gundo Montaigne, à epokhé cética. Deixaremos por ora de lado o
delicado e interessante problema da relação entre sua retórica para-
doxal e o projeto do auto-retrato21, cuja abordagem pressupõe um

Tournon reside na admissão de que Montaigne deve ser inteiramente levado a sério
quando alega se afastar dos pirrônicos em virtude dos defeitos que a linguagem natural
possuiria, impedindo os céticos de filosofar. Tournon parece não ter percebido que
estamos, como já vimos no capítulo I, também nessa discussão sobre a linguagem cé-
tica, diante de um paradoxo da mesma natureza desses outros, e que a proximidade de
Montaigne ao ceticismo antigo, como vimos, é maior, nesse aspecto, do que ele perce-
beu. De um modo mais precavido, Hugo FRIEDRICH (1968, p. 376), examinando a
vagueza estudada da terminologia de Montaigne, no âmbito de uma análise estilística
de sua “consciência literária”, identifica-o como um “filósofo da ambigüidade”, por se
aproveitar da incerteza semântica do vocabulário do Moyen Français no qual escreve na
fluidez de seu discurso.
21. Embora o auto-retrato de Montaigne não se reduza, como veremos adiante, a
um exercício da arte do paradoxo, há aspectos importantes a recuperar nas análises de
BOWEN (1972) e MACGOWAN (1974) caso se queira avaliar com justeza a dimensão na
qual o auto-retrato ultrapassa essa dimensão. MacGowan, como dissemos, procura mostrar
como se desenvolvem, nos Ensaios, estratégias de dissimulação (“deceits”) segundo as
preconizações estilísticas de Castiglione e Petrus Ramus (lidos e citados por Montaig-
ne). Bowen, por sua vez, aproxima Montaigne de Rabelais ao julgar que o livro (e o
auto-retraro nele presente) é uma composição artística deliberadamente constituída de
inverdade, ambigüidade, ironia, paradoxo e contradição, exemplificando o que ela deno-
mina de arte do “Bluff” (“blefe”) (v. 1974, p. 103). Embora os Ensaios, em nosso enten-
der, não se resumam nisso, pensamos que essas análises permitem problematizar passa-
gens que poderiam ser lidas, à primeira vista, como afirmações que parecem ir no senti-
do oposto: “Se fosse para procurar o favor do mundo, eu teria me enfeitado mais e me
apresentaria numa marcha estudada. Eu quero que me vejam na minha feição simples,
natural e ordinária, sem contensão e artifício: pois eu me pinto a mim mesmo…” (“Ao

194

10888_A figura do filosofo.p65 194 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

esclarecimento sobre o modo como sua filosofia cética se harmoniza


com tais procedimentos22.
A idéia básica a ser levada em conta aqui seria a seguinte: se o
assentimento ao costume, segundo Montaigne, não representa um li-
mite teórico da dúvida cética, mas o simples reconhecimento de um
limite “externo”, cabe também reconhecer que tais expedientes para-
doxais — na medida em que representam uma forma prudente de lidar
com os problemas decorrentes da exteriorização do juízo — não pode-
riam, a rigor, identificar-se com uma inovação filosófica propriamente
dita (segundo os critérios “internos” que vigem para a consideração
dessas razões segundo seu valor filosófico intrínseco). Especialmente,
não poderiam corresponder à inovação que ele anuncia ao se apresen-
tar como um filósofo de nova espécie. Não se trata aqui de negar que
essa distinção conceitual mesma (entre externo e interno) e os expedi-
entes estilísticos que a ela se articulam correspondam a uma particula-
ridade histórica do pensamento de Montaigne: o problema diz respeito
apenas ao seu estatuto filosófico. Parece-nos pertinente aplicar, tam-

Leitor”). Já se observou que Montaigne aqui alude aos preceitos do decoro que o Livro
do cortesão, de Castiglione, endereça à nobreza. Mas em que sentido se deveria com-
preender essa sua “naturalidade não-estudada” se a sprezzatura (segundo Castiglione, a
virtude fundamental do nobre) consiste justamente em “esconder a arte, e que mostra
o que se fez e disse veio sem esforço e quase sem pensar…”? (v. Castiglione, p. 54).
Deveríamos julgar que a erudição oculta nas linhas dos Ensaios foge desses moldes?
Ademais, a despeito do que afirma o prefácio, como compreender a afirmação com que
Montaigne alude a seu auto-retrato, no qual reconhece que se trai pelo simples fato de
se descrever? Cf. II, 6, 378C: “Ora, eu me enfeito sem cessar, pois me descrevo sem
cessar…”. Consideraremos uma interpretação alternativa dessa mesma passagem no
capítulo VII.
22. Além de Tournon, BELLENGER (1982) entende que o emprego montaigniano do
paradoxo não constitui mero ornamento, mas corresponde a uma preocupação profun-
da, relacionada com seu ceticismo (p. 15). DEMURE (1988) opõe ceticismo e paradoxo,
considerando que as eventuais contradições dos Ensaios são antes o resultado não da
arte do bluff, mas de uma zétesis cética pela qual Montaigne volta atrás relativamente
a suas opiniões anteriores (p. 1000); considera, assim, inaceitável o viés de leitura pro-
posto por Bowen, por ser incompatível com a coerência filosófica das contradições de
Montaigne (p. 1002). Contudo, parece-nos que também a resposta de Demure exclui
precipitadamente a possibilidade de uma conciliação entre o ceticismo de Montaigne
e o emprego deliberado de expedientes paradoxais.

195

10888_A figura do filosofo.p65 195 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

bém a esse caso, as considerações sobre o emprego cético de argumen-


tos dialéticos feitas no primeiro capítulo. Vimos que a produção dialé-
tica de argumentos especificamente fabricados contra a versão particu-
lar da filosofia dogmática alvejada não pode, senão contraditoriamen-
te, significar uma inovação filosófica, posto que esse expediente se destina
justamente a atualizar a mesma filosofia segundo suas diretrizes origi-
nais. Analogamente, se a ação do costume é vista como causa de dog-
matismo, não deveríamos ver essas estratégias como mais uma forma
de atualização ou adaptação destinada a garantir, na medida do possí-
vel, o rigor com que se pode pensar de acordo com essa mesma filoso-
fia? Assim compreendida, a partilha entre a exterioridade e interiorida-
de permite, por assim dizer, isolar um núcleo filosófico de seu pensa-
mento, no qual o mesmo diagnóstico antigo sobre a precariedade da
razão permanece, a seu ver, plenamente aceitável, e que preside em
grande medida a forma de abordar as contingências “externas”, que o
ultrapassam e que dele permanecem distintas por meio dessa própria
partilha. Não se trata de desconhecer que os homens vivem segundo
dimensões históricas, sociais e políticas — segundo hábitos particula-
res, em suma, cujo significado próprio e contingente podem mesmo
desconhecer. Muito ao contrário, trata-se de reconhecer que tais as-
pectos podem ser objeto da reflexão filosófica, mas nenhum deles
impede Montaigne de situar adequadamente, nesse amplo panorama,
um lugar próprio e preciso para a filosofia que lhe permite nele se
orientar. Aliás, é essa precisão que nos permite compreender que algu-
mas “inovações” em sentido amplo (a distinção entre interior e exte-
rior, por exemplo) — às quais ele mesmo não alude como “inovações”
e tampouco como “filosóficas” — só podem ser tomadas como filosó-
ficas num sentido alheio ao uso que o próprio filósofo faz de seus ter-
mos. Quão mais eficientes forem essas “inovações” em se adaptar às
práticas argumentativas do interlocutor, tão mais fielmente permitirão
a inserção desse filósofo numa tradição cética (que, de certo modo,
permanece filosoficamente a mesma graças a essas inovações).
A julgar pelos textos que examinamos, o paradoxo é retomado por
Montaigne com um intuito bastante preciso: encontrar uma forma de
conciliar a comunicação, na medida em que se faz possível, de seus

196

10888_A figura do filosofo.p65 196 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

próprios juízos (aí compreendidos aqueles relativos à exposição de


conseqüências de seu posicionamento cético) ao assentimento ao cos-
tume, na medida em que uma forma mais direta de apresentá-los po-
deria confrontar perigosamente a autoridade, quando esta cumpre um
papel organizador da vida comum. Ao menos nesse sentido, o paradoxo
certamente não pode ser identificado com a epokhé cética, como pre-
tende Tournon, ou tomado como seu substituto. Mesmo sem levar em
conta que a interpretação da epokhé por Montaigne é, de fato, incom-
patível com aquela que emerge dessa leitura, o paradoxo surge, por essa
ótica, sobretudo como um expediente retórico destinado à exposição
de sua filosofia cética (como poderia sê-lo de qualquer outro aspecto
não-cético de seu pensamento que demandasse tal recurso), destinado
a “revelar e ocultar”, segundo a diversidade com que julgam seus pre-
sumidos leitores. Em vez de se confundir com a suspensão, o paradoxo
corresponde a uma estratégia literária pela qual Montaigne elabora seu
texto tentando não perder de vista os critérios pelos quais certos leitores
poderiam julgar adequadamente sua postura filosófica diante da reli-
gião23. Identificá-lo com a epokhé, em suma, seria perder a oportunida-

23. São eventualmente relevantes aqui as considerações de BOWEN (1972, p. 7 ss.)


sobre o modo como, no século XVI, os textos exigiriam do leitor uma atividade diferen-
te daquela com que espontaneamente os consideramos hoje (favorecendo o desenvol-
vimento da técnica literária do paradoxo). Primeiramente, pelo fato de inexistir pontua-
ção, obrigando o leitor a se defrontar constantemente com ambigüidades, no curso da
leitura, eventualmente intransponíveis (vale lembrar que a pontuação do texto de Mon-
taigne, tal como hoje a lemos, em sua divisão em parágrafos são criadas pelas edições
modernas). Em segundo lugar, em vista do hábito, derivado da interpretação bíblica,
de aceitar que um mesmo texto possa possuir diversos níveis de sentido. “Não esqueça-
mos que a exegese bíblica medieval [se faz] em pelo menos quatro diferentes níveis.
Durante séculos, todo texto bíblico fora interpretado literalmente, e tropologicamente,
e alegoricamente, e anagogicamente. Os autores do Renascimento ainda estavam
‘alegorizando’ Virgílio e Ovídio. Esse procedimento era claramente o oposto do com-
plexo ‘e’ ou ‘ou’; um leitor assim treinado irá esperar que um texto seja válido em diver-
sos níveis diferentes e terá necessidade de isolar uma interpretação em relação a ou-
tras…” (p. 10). Não pensamos que se possa admitir essa constatação como um pressu-
posto interpretativo automaticamente válido para os Ensaios, mas é relevante, de todo
modo, registrar um aspecto de certas práticas interpretativas historicamente vigentes
que pode oferecer plausibilidade a uma leitura que o texto de Montaigne parece sugerir
em seus próprios termos.

197

10888_A figura do filosofo.p65 197 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

de de compreender o que ocorre: o paradoxo é um instrumento para


manifestar uma verdade que não pode ser apresentada abertamente,
como diz John Donne24 — ainda que essa “verdade” possa correspon-
der a uma postura filosófica que alega a impossibilidade humana de
detectar racionalmente a verdade.
Ademais, a compreensão filosófica que Montaigne tem do ceticis-
mo em geral, e particularmente da epokhé, não corresponde ao modo
pelo qual Tournon os compreende. Diversamente de Tournon, Mon-
taigne não toma o ceticismo como um irracionalismo (nem mesmo
como uma estratégia de solapar radicalmente a “armação lógica” do
discurso, num sentido em que os antigos céticos teriam falhado). Pen-
samos dispor de elementos suficientes para compreender que são coi-
sas bem diversas, para Montaigne, o uso de estratégias para transformar
ou negar seu sentido aparente (estratégias articuladas a problemas que,
embora não possam ser claramente exibidos, são ainda assim implici-
tamente circunscritos) e o exame argumentativo do assentimento a pro-
posições filosóficas determinadas, que merecem ser individualmente
consideradas. O fato de existirem caracterizações clássicas que asso-
ciam o ceticismo a aspectos dessa prática paradoxal, como no caso de
Agostinho25, não é suficiente para iluminar o sentido preciso em que o
próprio Montaigne compreende o que seja a epokhé, ou se observa
como um “filósofo de nova figura”. Por fim, a mesma interpretação

24. Em uma carta de 1600, enviada a um amigo, acompanhada de alguns parado-


xos, Donne os apresenta como um meio de conduzir o leitor à verdade por meio do
esforço de lutar contra o que aparentemente afirmam — “… eles foram feitos antes para
enganar (passar) o tempo do que a sua irmã, a verdade, embora tenham sido escritos em
uma época na qual qualquer coisa é forte o suficiente para suplantá-la; se eles o fazem
encontrar melhores razões contra eles mesmos, fazem seu ofício; pois são meras brava-
tas e basta que você a elas resista… são antes asas para armar a verdade do que seus
inimigos…” (apud MALLOCH, 1956, p. 192, tradução do autor).
25. Em Contra academicos, Agostinho caracteriza a filosofia cética acadêmica, por
intermédio de Alípio, como possuidora de uma estratégia destinada a “esconder sua
doutrina dos espíritos medíocres e para revelá-la aos espíritos penetrantes…” (II, X, 24).
Contudo, precisa ele adiante, a doutrina verdadeiramente oculta pelos acadêmicos se-
ria um platonismo esotérico, que pretenderiam resguardar diante do avanço do mate-
rialismo estóico (III, XVII, 38). Não há, de todo modo, nenhum indício de que Mon-
taigne tenha se apoiado em tal fonte nos Ensaios.

198

10888_A figura do filosofo.p65 198 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

que confunde os registros filosóficos e literários, ao reduzir seu ceticis-


mo a uma simples estratégia textual e literária, sob a alegação de que
há um espelhamento entre o autor e sua obra, acaba por confinar Mon-
taigne a uma existência meramente literária, incompatível não apenas
com a recusa por ele da atitude livresca do saber contemporâneo, mas
também com outros aspectos de sua postura propriamente filosófica
(em particular, a afirmação cética da plena capacidade de todas as fa-
culdades espirituais e corporais).
Não se trata aqui de negar que o paradoxo eventualmente possua
outros significados na reflexão de Montaigne. Os exemplos considera-
dos, mesmo que demarquem um sentido definido de seu uso, não são
exaustivos. Noutras passagens, ele se vale eventualmente do oximoro
para figurar sua suspensão filosófica, mas esta sempre se apóia em ar-
gumentos particulares e precisos26. Nos dois capítulos seguintes, exami-
naremos as relações entre o emprego do paradoxo e a ação (ou suspen-
são) do juízo nos Ensaios. Mas pomos tudo a perder se não distingui-
mos cuidadosamente os diferentes sentidos que o emprego do parado-
xo pode possuir em vista das exigências conceituais do autor. Incorrer
numa generalização apressada nos conduziria facilmente a perder de
vista o rigor próprio da compreensão montaigniana do ceticismo.
Quanto à novidade vista por Montaigne em sua prática filosófica,
contudo, há passagens que poderiam talvez ser invocadas em defesa de
uma identificação, de sua parte, entre suas estratégias paradoxais e a
novidade de seu ceticismo. Assim, por exemplo, ele valoriza a conside-
ração das dimensões formais das idéias legadas por outros autores:
[B] O assunto, segundo o que ele é, pode fazer com que um homem
seja tido por sábio e memorioso, mas para julgar nele as partes mais
suas e mais dignas, a força e a beleza de sua alma, é preciso saber o
que é seu e o que não é, e, no que não é seu, saber o quanto lhe é
devido na consideração da escolha, da disposição, do ornamento e

26. Ver 518AC, em que Montaigne afirma, com relação às promessas divinas, como
a da imortalidade da alma, ser preciso “imaginá-las inimagináveis”. Considerar, por
exemplo, que a estrutura paradoxal destina-se a engendrar a epokhé referida por essas
palavras seria ou bem redundante, ou bem incompreensível.

199

10888_A figura do filosofo.p65 199 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

da linguagem que ele fornece. E se ele toma de empréstimo a maté-


ria e piora a forma, como freqüentemente ocorre? (III, 8, 940)27.
Mas se, acompanhando essa nova distinção, o que Montaigne con-
fere à matéria cética é a novidade da forma paradoxal, a primeira con-
seqüência a extrair é a de que sua novidade filosófica não concerne
propriamente à “matéria” (isto é, ao conteúdo do que se afirma sobre
o alcance da busca humana da verdade)28. Além disso, se nisso residisse
o que ele mesmo veria como sua novidade filosófica, ela residiria, jus-
tamente, no que o aproxima da prática literária paradoxal de seus con-
temporâneos, e não no que o diferencia desses autores segundo as aná-
lises precedentes — a saber, o rigor filosófico com que ele pôde, diver-
samente desses autores, recuperar a dimensão argumentativa e, mais
do que isso, a coerência filosófica dos antigos céticos. Mas não era esse,
justamente, o sentido dos próprios paradoxos examinados no primeiro
capítulo (a saber, apresentar de um modo detalhado a fidelidade con-
ceitual de sua postura filosófica àquela dos antigos céticos)? Noutras
palavras, se sua novidade no campo da filosofia resultasse do emprego
que faz dessas estratégias literárias, se esvaziaria de um sentido filosófi-
co mais rigoroso (pelo qual Montaigne se oporia não apenas aos “filó-
sofos”, como na passagem da epígrafe, mas também aos literatos que
disporiam de uma compreensão mais fluida e menos precisa da filoso-
fia cética). Mais do que isso, os paradoxos precisos que a apresentam
não poderiam ser adequadamente explicados por essa hipótese (ao
menos na medida em que eles incluíssem a exibição de aspectos con-
ceituais precisos pelos quais sua filosofia se aproximaria da postura filo-
sófica dos antigos céticos).

27. Ver também III, 8, 925B.


28. O próprio Montaigne se apóia nessa distinção entre “forma” e “matéria” para
comentar sua tradução de Sebond, admitindo que a empresa se facilitou pelo fato de
não haver, nesse autor, “quase senão a matéria para representar” (v. 439-440A). Não
pretendemos aqui sustentar que a leitura montaigniana do ceticismo não envolva o
oferecimento de uma “forma” particular aos materiais céticos. O ponto é que nada nos
autoriza, ao menos por ora, a identificar essa dimensão formal com a “nouvelle figure”
filosófica pela qual Montaigne se apresenta e, por conseguinte, a identificar essa novi-
dade filosófica na dimensão literária do paradoxo.

200

10888_A figura do filosofo.p65 200 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

Para esclarecer a inviabilidade dessa interpretação meramente “es-


tilística” de sua particularidade filosófica, retomemos o paradoxo resul-
tante da passagem precisa em que Montaigne se apresenta como um
“filósofo de nova figura”. Lembremos que ali o paradoxo decorria do
modo como sua trajetória filosófica cética, embora decalcada na manei-
ra pela qual Sexto descreve a conversão do cético à sua postura filosófica,
culmina na admissão de que ele seria um filósofo de nova espécie, por
filosofar de modo “impremeditado e fortuito”, sem se ater a qualquer
seita. Montaigne seria cético (por realizar um percurso investigativo
estritamente individual, tal como preconizado pelos antigos céticos, que
culmina na constatação da impossibilidade de escolha entre as doutri-
nas filosóficas e na manutenção de seus costumes e de sua forma natural
de agir) e não seria cético (por alegar que tal percurso lhe mantém numa
posição de exterioridade a todas as “seitas” preexistentes). Mas, se admi-
timos que a novidade filosófica que ele reconhece em si corresponde à
estratégia paradoxal com que ele expõe suas credenciais céticas ao leitor,
veremos que a conseqüência é a de que o próprio paradoxo é dissolvido
no interior da passagem precisa em que ele trata de sua novidade filosó-
fica, e que ofereceria um exemplo dessa mesma novidade. Pois, se a
novidade reside no uso do próprio paradoxo, não reside no fato de ele
retomar uma seita antiga enquanto se afirma de uma nova espécie, fato
esse que era uma das premissas da leitura dessa passagem como um
paradoxo. Assim, ao esvaziarmos sua novidade de um sentido filosófico
distinto do próprio emprego do paradoxo, esvaziamos também, nessa
passagem crucial, a dimensão paradoxal que corresponderia à suposta
novidade. Tal desenlace do paradoxo, em vez de solucionar o problema,
dissolvê-lo-ia sem esclarecer em que consistiria ali a própria novidade.
Insistamos que nada parece obstar, em contrapartida, que o empre-
go do paradoxo seja compreendido como um aspecto das diversas estra-
tégias montaignianas para fazer face ao dogmatismo e, nessa medida,
como parte da tentativa de pôr em prática uma filosofia rigorosamente
moldada pelos pressupostos filosóficos originais do ceticismo (que não
estariam, portanto, sendo deliberadamente transformados por essa ino-
vação, ao menos na medida em que ela os atende). Assim como ocorre
com a própria distinção exterior/interior, o paradoxo converte-se aqui

201

10888_A figura do filosofo.p65 201 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

na armadura ocasional que se oferece ao filósofo cético, sem mais, como


instrumento para enfrentar as perturbações circunstanciais das guerras
de religião e da intolerância religiosa. Não se trata aqui de zelar pela
disputa terminológica ou de defender um purismo idiossincrático rela-
tivamente à natureza da filosofia, mas sim de pretender focalizar de
modo mais preciso o sentido em que o próprio filósofo compreende
particularmente sua filosofia, especialmente no que nela enxerga de
inovador — relativamente às filosofias diversas com que se defronta ou
mesmo ao diagnóstico dos antigos céticos acerca dos limites da razão
humana. E não estamos diante de um problema interpretativo raro ou
periférico no texto de Montaigne, bem ao contrário.
Para concluir este percurso com um derradeiro exemplo, conside-
remos o ataque de Montaigne, na “Apologia”, à pretensão da “filosofia”
de propiciar a felicidade humana, em detrimento da “simplicidade
religiosa”, única via que, naquele contexto, ele reconhece como defen-
sável para a obtenção desse fim29. Não caberia aqui concluir que, para
Montaigne, na mesma medida em que as exigências externas impõem
a conveniência da preservação de certos dogmas, também o ideal pir-
rônico da ataraxía deve ceder o passo a outro conceito de tranqüilida-
de, não mais de ordem estritamente pessoal e filosófica, mas direta-
mente dependente da paz pública (contraposta ao estado de guerra)?
Não é desprezível considerar o local estratégico em que essa discussão
se situa no conjunto da “Apologia”. Ao seu final, e imediatamente antes
de passar ao exame da science humaine, que será introduzido pela apre-
sentação do ceticismo, Montaigne nos oferece esta importante baliza:
[A] Eu teria um trabalho muito fácil se quisesse considerar o homem
apenas na sua forma comum e de modo geral [en gros] e o poderia
fazer, no entanto, por sua regra própria, que julga a verdade não pelo
peso das vozes, mas pelo número. Deixemos lá o povo, qui vigilans
stertit, mortua cui vita est prope jam vivo atque videnti30, que não se

29. Trata-se da divisão do ensaio que vai de 487 a 500.


30. Segundo Villey, a passagem provém do De natura rerum, de Lucrécio: “… que
dorme acordado, cuja vida não é senão uma espécie de morte, ainda que ele esteja vivo
e de olhos abertos” (III, 1059-1061).

202

10888_A figura do filosofo.p65 202 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

percebe [qui ne se sent point], que não se julga, que deixa a maior
parte de suas faculdades naturais ociosas. Eu quero tomar o homem
no seu mais alto assento. Consideremo-lo nesse pequeno número de
homens excelentes e escolhidos que, dotados de uma bela e particu-
lar força natural, fortificaram-na ainda e afinaram-na, pelo estudo e
pela arte, e ascenderam ao ponto mais alto que a sabedoria pode atin-
gir… é neles que se situa a altura máxima da natureza humana… Não
vou considerar senão tais pessoas, seu testemunho e sua experiência.
Vejamos até onde eles foram e onde se detiveram… (501-502).
Se esse aviso dará imediatamente lugar ao exame do ceticismo an-
tigo, devemos logo concluir que a porção de texto que se situa anterior-
mente a ele — precisamente, a discussão sobre a fraqueza da filosofia
em propiciar a felicidade humana — é ainda determinada, nalguma
medida, pela necessidade de considerar as vozes não apenas por seu
peso, mas por seu número; pelos critérios, afinal, que atendem o teste-
munho e a experiência do homem en gros, não dos filósofos como tais.
Tal como a loucura erasmiana, que assume a palavra para ironizar
a pretensão do saber filosófico, aqui é a ignorance, identificada à rusti-
cidade do vulgo, que tripudia sobre a infelicidade do sábio. Por trás da
oposição grosseira que aí se encena entre filosofia e religião, encontra-
mos, porém, modelos filosóficos particulares, que dão sentido especial
a essa ironia: Montaigne ataca, sob a pele dos “filósofos”, a vaidade de
estóicos como Sêneca, segundo quem o sábio rivaliza em felicidade
com os deuses, e grande parte dos exemplos dos subterfúgios a que,
segundo ele, a filosofia recorreria inutilmente, dada sua incapacidade
de alcançar a felicidade, são diretamente dirigidos contra o estoicis-
mo31. Em contrapartida, é visível que a descrição do homem do vulgo

31. Para atermo-nos aqui a alguns poucos exemplos: quanto à afirmação montaignia-
na sobre a incapacidade da filosofia de oferecer armas contra a “fortune”, cf. 489-490AC,
Epist., I, xvi, xxxvii, lii e liii. Quanto à posição estóica em relação às dores, ironizada por
Montaigne em 490A, cf. Epist., I, xxiv, ix. Elogiando a loucura como meio de acesso à
felicidade, em 495C, ele parece se contrapor a Epist., I, vii, x, xviii, ix, xvi, xx, xxxi.
Enfim, no que se refere ao tema da morte, criticado como paliativo filosófico na impos-
sibilidade da obtenção de felicidade, cf. Epist., I, iv, xii, xxiv, xxvi, liv. Essa crítica de
Montaigne, especialmente se confrontada aos ensaios anteriores de orientação estóica,

203

10888_A figura do filosofo.p65 203 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

(vulgaire), protagonista dos elogios retoricamente contrapostos ao filó-


sofo perturbado pelos males imaginários inventados pela science, com-
põe-se de elementos da moral pirrônica — em especial, da temática da
moderação das afecções (metriopátheia):
[A] Comparai a vida de um homem escravizado a essas imaginações
à de um trabalhador braçal [laboureur], que se deixa ir segundo seu
apetite natural, medindo as coisas apenas pelo sentimento presente,
sem ciência [science] e sem prognóstico, e que não tem dores senão
na hora que as têm, enquanto o outro tem com freqüência a pedra na
alma antes de tê-la nos rins: como se não houvesse tempo bastante
para sofrer o mal na hora que ele o tiver, ele o antecipa por fantasia
[fantasie], e corre na sua frente… (491)32.
Como compreender o fato de que, nessa crítica genérica à filoso-
fia, haja, em vez de ironia para com a filosofia (cética), emprego do
conceito cético de ataraxía, retoricamente projetado na figura do tra-
balhador braçal? Embora seja possível reconhecer aí uma espécie de
deslocamento temático relativamente ao pirronismo antigo (no qual
não se discute diretamente um problema similar àquele que motiva a
estratégia montaigniana de defesa da religião), importa ressaltar que
não parece haver nenhuma incompatibilidade entre o tema da ataraxía
— considerada estritamente do ponto de vista da tranqüilidade intelec-
tual — e esse reconhecimento de um fator mais urgente de perturba-
ção nas guerras civis, em vista do qual a defesa da simplicidade cristã é
amparada pelo mesmo esquema filosófico já considerado. Não poderia
essa pintura do vulgo com tintas da ataraxía cética ser lida como alusão
indireta ao mesmo fio condutor cético que permanece amparando a

como I, 20, exemplifica bastante bem sua mudança de postura filosófica. Retomaremos
esse ponto adiante, no capítulo VII.
32. Sobre o tema pirrônico da metriopátheia, ver HP I, 29-30, III, 236. Por certo, o
procedimento do “homem comum”, imerso em seu dogmatismo habitual, não há de
ser, a despeito do que aí Montaigne afirma, absolutamente idêntico à postura cética de
aceitar apenas externamente as formas de comportamento recebidas. Se Montaigne
afirma, quanto aos céticos, que “eles deixam guiar por essas coisas suas ações comuns,
sem nenhuma opinação ou julgamento…” (505), trata-se bem, como vimos, de uma
suspensão do julgamento diversa da daquele que simplesmente adere aos costumes,
sem julgá-los.

204

10888_A figura do filosofo.p65 204 28.03.07, 16:03


Filosofia, literatura e paradoxo

defesa da simplicidade cristã contra a presunção dos objetores de Se-


bond, em vista de uma ordem mais urgente de razões relativa ao pro-
blema da “obtenção da tranqüilidade”33? Considerando esse problema
de um ponto de vista mais amplo, diríamos que o sentido privado em
que a reflexão cética pode contribuir para a ataraxía articula-se aqui ao
sentido público em que a mesma reflexão preconiza mais atenção ao
modo como os cristãos costumeiramente crêem, diante da ameaça ur-
gente da deterioração das relações sociais que a guerra traz. Mais uma
vez, aquilo que aqui poderia passar por novidade filosófica é conse-
qüência da mesma estratégia de adaptação do ceticismo às circunstân-
cias particulares da reflexão, e de uma compreensão mais aprofundada,
portanto, das preconizações argumentativas originais dessa filosofia.
Assim, a filosofia de Montaigne não se torna menos lúdica quando
a consideramos em sua particularidade filosófica, ainda que isso de-
penda sobretudo de não confundir o que o vincula filosoficamente ao
ceticismo dos instrumentos retóricos de que ela se vale. Esse resultado,
por sua vez, convida-nos a aprofundar nossa investigação. Nos dois
capítulos seguintes, consideraremos dois sentidos diversos em que o
paradoxo pode se articular à reflexão cética de Montaigne. No capítulo
V, examinaremos o uso do paradoxo nas passagens em que ele se refere
à sua identidade filosófica à luz das deficiências que ele identifica na
filosofia de seu tempo, e observaremos em que medida ele pode estar
destinado — especialmente nas passagens que não sofrem interferên-
cia temática dos problemas ligados à preservação da ordem pública e às
guerras de religião — não a esconder, mas a exercitar o juízo, faculda-
de da qual depende a qualidade da reflexão filosófica, como veremos.
A dimensão retórica do paradoxo se destinará, nesse passo, também a
pôr em marcha tal reflexão em vista de exigências de rigor próprias. Já
no capítulo VI, consideraremos o modo pelo qual o paradoxo pode
aparecer precisamente como imagem dos limites do entendimento hu-
mano e ser assim empregado como ilustração da epokhé.

33. Sobre a defesa da simplicidade religiosa, ver especialmente 467 ss. Outras trans-
formações retóricas dessa temática que podem ser compreendidas com base no mesmo
esquema interpretativo cético estão, por exemplo, em 488A, 491C.

205

10888_A figura do filosofo.p65 205 28.03.07, 16:03


10888_A figura do filosofo.p65 206 28.03.07, 16:03
CAPÍTULO V

Filosofia como ensaio do juízo

A filosofia cética elabora-se em torno de um conceito fundamen-


tal — o de epokhé, ou suspensão do juízo. Esse conceito também se
oferece freqüentemente, pelo que vimos desde o primeiro capítulo,
como um norte da prática argumentativa dos Ensaios com que Mon-
taigne busca se contrapor às ficções dogmáticas que assumem a razão
como instrumento de conhecimento do real. Antes, contudo, de exa-
minar em maior detalhe a interpretação montaigniana desse concei-
to, consideraremos, neste capítulo, o modo como a filosofia, em ge-
ral, e o ceticismo, em particular, são vinculados a uma exigência que,
em vista do que acabamos de dizer, certamente soará como algo
paradoxal: trata-se da exigência de que a filosofia corresponda a um
exercício do juízo. Saber como se conciliam exercício e suspensão do
juízo nos ensaios de Montaigne, como veremos, é compreender um
elemento importante de sua interpretação do ceticismo, do qual nos
ocuparemos, como dissemos, no capítulo seguinte. Agora nos ocupa-
remos de um passo prévio e indispensável, que nos porá diante daqui-

207

10888_A figura do filosofo.p65 207 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

lo que, de modo mais geral, parece definir a singularidade do filoso-


far de Montaigne — na forma de um exercício, ou ensaio do juízo.
Para tanto, consideraremos aqui um uso do paradoxo diverso da-
quele que observamos no capítulo anterior, e que nos permitirá, afinal,
propor um esclarecimento sobre o sentido em que Montaigne com-
preende a novidade de seu filosofar “impremeditado e fortuito” —
apresentada, como vimos, num texto biográfico paradoxal que nos proí-
be de identificar sua filosofia como cética (dada sua impremeditação
ante o conjunto de todas as “seitas” preexistentes), mas parece ser deta-
lhadamente moldado pelo relato biográfico que o cético pirrônico em-
prega para descrever seu engajamento filosófico no ceticismo (por uma
análoga posição de exterioridade relativamente ao universo definido
pelas opções filosóficas dogmáticas). Procuraremos mostrar que esse
paradoxo não apenas se destina a manifestar a interioridade sem colidir
com os obstáculos publicamente impostos pelo costume, mas se cons-
titui como um recurso pelo qual Montaigne busca inscrever no texto as
exigências de rigor que, a seu ver, determinam igualmente as condições
necessárias do uso adequado de nossas faculdades e da boa filosofia.
Veremos como Montaigne retoma os textos em que Sexto Empíri-
co expõe o sentido especial em que a filosofia cética corresponde a
uma doutrina (haíresis). Eles ajudam a compreender como ele mesmo
qualifica sua adesão filosófica cética: não como adesão a uma “seita”,
definida pelo assentimento a teses, mas sobretudo como engajamento
em um gênero de filosofia, caracterizado pela prática argumentativa
destinada à discussão das diversas teses de que se acerca, ciente da im-
possibilidade de estabelecê-las como verdadeiras. É desse gênero cé-
tico que seu filosofar, em suma, se veria como um espécime particular
na medida em que se compreende como um “ensaio” do juízo1. Assim,
do mesmo modo que nos permitem descobrir o paradoxo presente na
novidade montaigniana, os textos pirrônicos nos oferecem os elemen-
tos para a sua decifração. Mas a importância desse ponto não reside na
explicação que ele permite oferecer dessa passagem isolada: a dissolu-

1. Tal como ele o descreve, por exemplo, em II, 17, 653.

208

10888_A figura do filosofo.p65 208 28.03.07, 16:03


Filosofia como ensaio do juízo

ção desse paradoxo nos põe diante de uma espécie de instrumento


metodológico do ceticismo montaigniano, justificado pelas contingên-
cias históricas que, em seu entender, determinam as condições de sua
atividade filosófica. Isso nos permitirá tentar situar mais adequadamen-
te a particularidade do ceticismo montaigniano não apenas relativa-
mente à tradição cética — em vista do papel que a noção de formação
do juízo nele desempenha —, mas também em seu contexto histórico.
Mais exatamente, poderemos ver como o ceticismo de Montaigne
parece figurar, de modo particular, uma transição entre a filosofia do
Renascimento e a Modernidade. De uma parte, a reconstituição filosó-
fica do ceticismo antigo na forma do “ensaio” parece oferecer um bom
exemplo da experiência que, segundo Erwin Panofsky, constitui a “pró-
pria essência do Renascimento”, pela qual se irmanam a consciência
da distância e o sentido da afinidade com a Antiguidade2. De outra
parte, parece-nos também possível reconhecer, na forma pela qual a
filosofia, segundo ele, passa a se caracterizar essencialmente não ape-
nas pelo conjunto de teses que advoga, mas pela ação concreta me-
diante a qual o juízo lhes confere significado, um traço também pre-
sente na empresa cartesiana de inovar relativamente à filosofia que o
precede, eventualmente inaugural de um hábito recorrente em filóso-
fos posteriores.

5.1. O ceticismo como gênero filosófico


Na introdução das Hipotiposes, o ceticismo é apresentado e situa-
do no universo das filosofias com auxílio de uma distinção entre três
possibilidades de conceber a relação entre uma investigação qualquer
e o objeto pesquisado: por oposição aos dogmáticos, que admitem dis-
por de alguma verdade (objeto da busca filosófica), e aos acadêmicos,
para os quais ela não é reconhecível, os céticos são aqueles que, não a
tendo encontrado nas filosofias disponíveis, permanecem investigando
(HP I, 1-4). É possível reconhecer, na mesma obra, outras discussões

2. Ver PANOFSKY, 1960, p. 282.

209

10888_A figura do filosofo.p65 209 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

que fazem eco a essa qualificação preliminar da atividade filosófica


cética. Sexto explica, por exemplo, que a natureza do ceticismo deter-
mina um sentido próprio em que se poderia falar de uma “doutrina”
ou “orientação” (haíresis) cética: o filósofo pirrônico, diz ele, não per-
tence a uma escola filosófica no sentido de assentir um sistema coeren-
te de dogmas que explique o phainómenon, mas somente no sentido
em que adota uma “prática [agoghé]3 que, em concordância com o
aparecer das coisas [to phainómenon], segue uma linha de raciocínio
que lhe indica como é possível viver corretamente (o termo sendo aqui
tomado num sentido amplo, e não apenas referindo-se à virtude) e tende
a capacitá-lo a suspender seu juízo…” (HP I, 16); o cético, igualmente,
segundo Sexto, segue um discurso conforme ao aparecer das coisas,
que lhe permite viver em conformidade com os costumes de seu povo,
com suas convicções e com seus sentimentos (v. HP I, 17). Em diversos
momentos da exposição, Sexto cuida de precisar o sentido das diversas
expressões empregadas pelo cético para descrever sua atitude suspensi-
va de modo consistente4. E a mesma precaução se aplica à descrição do
engajamento filosófico cético. Se, no empreendimento filosófico tradi-
cional, a adesão a uma doutrina identifica-se à aceitação de um con-
junto de proposições como verdadeiras, o ceticismo se caracteriza como
o abandono da pretensão de oferecer algum conhecimento absoluto do
real (num sentido equivalente ao que se poderia reconhecer em qual-
quer uma dessas doutrinas), que se faz acompanhar de um uso não-
dogmático (adoxástos) da linguagem5. Assim, Sexto caracteriza o ceti-
cismo não como uma teoria sobre as coisas, mas sobretudo como uma
prática; mais exatamente, uma capacidade (dynamis) de argumentar,
opondo phainómena e juízos de vários modos, que engendra, em vista
do igual peso dessas oposições, a suspensão e a imperturbabilidade;
uma prática orientada, assim, por uma perspectiva que permanece ima-

3. Tal é a tradução de Bury para agoghé, que Barnes, por sua vez, traduz por “per-
suasão”. Se se preferir esse termo, ele deverá, naturalmente, ser dissociado de suas im-
plicações dogmáticas.
4. Ver, especialmente, HP I, 187 ss.
5. Ver ibid.; cf. HP I, 24: “Dizemos tudo isso [sobre o critério cético e ação] sem
sustentar quaisquer opiniões…”.

210

10888_A figura do filosofo.p65 210 28.03.07, 16:03


Filosofia como ensaio do juízo

nente à experiência pessoal e relativa que a justifica6. Eis por que, aos
olhos do cético (isto é, daquele que “investiga”), sua investigação (zé-
tesis), comparada ao sentido usual do termo “filosofia”, situar-se-ia numa
posição de exterioridade ao espaço discursivo que a ele corresponde, e
no qual as diferentes filosofias se engendram, por meio de suas teses,
que ora tematizam o aparecer das coisas com o propósito de corroborar
a persuasividade de sua descrição do mundo, ora versam sobre objetos
que Sexto entende ser inapreensíveis (o que não o impede de investigá-
las criticamente, segundo o modo como esses discursos podem ser con-
siderados de um ponto de vista extrafilosófico)7.
Embora pouco salientado pelos comentadores, esse é um ponto ao
qual a interpretação de Montaigne dá atenção especial em sua inter-
pretação do ceticismo. Mais do que isso, parece-nos que se trata de um
ponto importante para elucidar o sentido de sua filosofia, no que tange
não apenas à maneira como ele compreende sua prática intelectual,
mas também como a situa exteriormente às diversas “seitas” disponí-
veis. Dessa apropriação talvez um primeiro sinal possa ser reconhecido
no fato de que ele não apenas retoma a divisão tripartite entre as filo-
sofias proposta por Sexto, mas o faz apresentando-a em seu próprio
nome, sem indicar a fonte (502A). Ao fazê-lo, não está ele, antes de
mais, imediatamente assumindo a distinção que os pirrônicos empre-

6. Ver HP I, 8, para a definição do ceticismo. Em HP I, 11, Sexto define o filósofo


pirrônico, simplesmente, como o homem que possui tal habilidade. Noutra passagem,
ele explica que essa prática se constitui por meio da experiência pela qual os primeiros
céticos, em busca de quietude, procuravam uma solução para a experiência de contra-
dição nas coisas por meio da posse de uma verdade (HP I, 12); descobrindo, porém, ser
sempre possível constatar a fraqueza das filosofias disponíveis, uma vez que se pode
sempre opor uma razão a outra razão contrária de igual peso, o cético abandona a
pretensão de fazer asserções sobre a realidade e se restringe a apenas narrar, “como um
cronista”, aquilo que lhe aparece segundo sua experiência pessoal (da qual o engaja-
mento nessa filosofia faz parte) (v. HP I, 4).
7. Ver HP II, 1 ss., especialmente II, 10, em que Sexto esclarece que a suspensão
limita-se à realidade dos objetos não-evidentes propostos pela filosofia dogmática (como
a “apreensão” do verdadeiro no sentido estóico), não obstando a apreensão no sentido
do “mero pensamento”, que necessariamente precede a investigação. O cético, subli-
nha Sexto, não está impedido de pensar, desde que se observe o pensamento como uma
representação que se impõe passivamente e não implica a realidade do que é pensado.

211

10888_A figura do filosofo.p65 211 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

garão para situar a peculiaridade de seu filosofar como coincidente


com seu ponto de vista? Examinemos, contudo, mais de perto o modo
como ele caracteriza a posição de exterioridade do filosofar cético re-
lativamente ao filosofar dogmático.
Os textos mais importantes de Montaigne relativamente a esse as-
pecto da interpretação do ceticismo encontram-se na apresentação dessa
filosofia, que se segue imediatamente na “Apologia”8. Num sentido óbvio,
cada filosofia se distingue das demais ao admitir posições diversas ou
sustentar um ponto de vista particular sobre as coisas. Estes textos, po-
rém, mostram claramente que, para ele, há algo além disso que distin-
gue o ceticismo das diferentes formas de filosofar em geral. Montaigne
recupera a reflexão dos céticos sobre a diaphonía para concluir que,
embora tais filósofos argumentem contra as mais diversas filosofias, sua
opção faz com que eles se situem fora do universo determinado pelo
conflito que a diversidade das posições dogmáticas instaura:
[C] Não é uma vantagem achar-se desengajado da necessidade que
brida os outros? [B] Não vale mais permanecer em suspensão do que
se emaranhar em tantos erros que a fantasia humana produziu? Não
vale mais suspender sua persuasão do que se imiscuir nessas divisões
sediciosas e querelantes? [C] Que irei escolher? O que preferir, desde
que escolhas! Eis uma tola resposta, à qual, entretanto, parece que
todo dogmatismo chega, ao não permitir que ignoremos o que igno-
ramos. [B] Adotai o mais famoso partido, ele não será jamais tão se-
guro que não vos seja preciso, para defendê-lo, atacar e combater
cem e cem partidos contrários. Não é melhor ficar fora dessa confu-
são? Vós podeis esposar, como vossa honra e vossa vida, a crença
aristotélica sobre a eternidade da alma e, a esse respeito, desdizer e
desmentir Platão; e a eles, não será lícito duvidar disso? (504).
Essa mesma passagem apresenta um conceito fundamental de que
se vale Montaigne para qualificar tal exterioridade: a saber, a liberdade
intelectual pela qual o filosofar cético se distingue, de modo geral, re-
lativamente ao filosofar de tipo dogmático. Seja qual for o grau de
dogmatismo com que o dogmático adota sua filosofia, tal adesão repre-

8. Ver especialmente 500-506ABC.

212

10888_A figura do filosofo.p65 212 28.03.07, 16:03


Filosofia como ensaio do juízo

senta sempre, à luz dessa consideração, algum nível de “aprisionamen-


to” intelectual, porquanto corresponde a uma posição insuficientemente
fundamentada do ponto de vista da razão: é uma adesão “sem juízo e
sem escolha”, por força da autoridade dos mestres ou do costume9.
Montaigne opõe hiperbolicamente a natureza do vínculo dos dogmáti-
cos às opiniões que adotam — “escravizados e como que atados a um
aprisionamento de que não podem se desvencilhar” (503B), por moti-
vações estéticas, políticas ou de qualquer natureza outra que transcen-
da o efetivo valor demonstrativo das razões apresentadas — ao modo
como os filósofos céticos, destruindo a pretensão de verdade de cada
uma das explicações dogmáticas do mundo, acabam por “manter sua
liberdade e considerar as coisas sem obrigação e servidão…” (ibid.).
Parece-nos importante sublinhar que essa liberdade significa o oposto
do que pareceria significar segundo uma abordagem mais superficial
do problema (à qual se pode ser facilmente conduzido em vista do
estilo montaigniano). Não se trata de uma licença para adotar filosofi-
camente esta ou aquela opinião, como bem lhe aprouver; muito pelo
contrário: Montaigne afasta explicitamente essa conseqüência como a
caricatura de um mau filosofar que corresponderia melhor não ao ce-
ticismo, mas às justificativas arbitrárias pela qual o dogmático pensa
justificar — ou dispensar-se de justificar — sua atividade intelectual. A
tal exercício cético da liberdade filosófica deve corresponder, em vez
disso, o uso pleno da razão e do juízo, em conformidade ao que tais
faculdades nos oferecem (uso do qual os dogmáticos abdicariam ao se
arvorar nos dogmas que escolhem como verdadeiros sem ter funda-
mentos suficientes para tanto). Trata-se de uma liberdade que, embora
pudesse conduzir à adesão a qualquer filosofia disponível, não o faz em
razão de reconhecer e preservar a liberdade própria da razão, indefini-
damente capaz de argumentar pelos dois lados ou identificar insufi-
ciências nos procedimentos demonstrativos com que os dogmáticos a
pretendem usar. Devem ser igualmente vistos como fruto do exercício
dessa mesma liberdade do uso da razão, ainda que o sejam num senti-

9. Ver 503-504BC.

213

10888_A figura do filosofo.p65 213 28.03.07, 16:03


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

do estritamente pessoal e provisório, os diversos passos filosóficos pelos


quais, segundo a narrativa oferecida por Sexto, o cético se engaja em
sua postura filosófica — entre eles, a permanência na investigação, pela
qual se trata de pôr permanentemente à prova a própria posição cética
diante das presumidas verdades propaladas pelas diversas filosofias.
Tal liberdade pode, desse modo, prestar-se à caracterização da po-
sição de exterioridade em que o cético permanece relativamente ao
empreendimento filosófico dogmático. Se engajamento filosófico há
do cético à sua doutrina, ele poderia ser igualmente compreendido como
adesão a essa situação de liberdade filosófica em face de toda e qualquer
descrição filosófica das coisas que se pretenda verdadeira; trata-se, as-
sim, ao menos nessa medida, de um engajamento que se pretende, em
sua natureza, distinto daquele que caracteriza o engajamento de toda e
qualquer filosofia de tipo dogmático. Montaigne vincula expressamen-
te a forma particular pela qual o cético se despe de um sentimento de
“vaidade por sua própria doutrina” ao exercício de uma atividade argu-
mentativa que não encontra nenhuma espécie de cerceamento:
[A] Eles se isentam [por meio da suspensão e da ataraxía] de vaidade
por sua própria doutrina [jalousie de leur discipline]. Pois eles deba-
tem bem brandamente [d’une bien molle façon]. Eles não temem a
revanche na disputa. Quando dizem que o pesado vai para cima,
serão bem descontentes que creiam neles: querem antes ser contra-
ditos, para engendrar a dúvida e a suspensão do juízo, que é seu fim.
Eles só avançam suas proposições para combater aquelas que pensa-
mos ter em nossas crenças. Se assumirdes a posição deles, eles irão
de bom grado sustentar a posição contrária: tudo é para eles do mesmo
modo, eles se abstêm de qualquer opção. Se estabelecerdes que a
neve é negra, eles argumentarão para mostrar que ela é branca. Se
dizeis que ela não é uma coisa nem outra, cabe-lhes manter que ela
é as duas coisas. E se, por um juízo certo, sustentais que não sabeis
nada, eles vão manter que sabeis. Sim, e se, por um axioma afirma-
tivo, assegurais que duvidais disso, eles irão debatendo para mostrar
que não duvidais, ou que não podeis julgar e estabelecer que duvi-
dais… (503).
Essa passagem exibe claramente a compreensão montaigniana do
ceticismo como uma prática argumentativa inteiramente livre da ne-

214

10888_A figura do filosofo.p65 214 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

cessidade de sustentar quaisquer verdades10; livre de tal modo que, por


meio dessa prática, o cético poderia argumentar contra as teses que
parecem caracterizar a posição cética, como “eu duvido”. Essa conse-
qüência certamente soa como paradoxal, e foi, com efeito, diversas vezes,
através da história, assumida como argumento contra a coerência do
ceticismo. Montaigne, ao contrário, parece incorporar esse elemento à
prática usual do cético — o que se conjugaria, notemos de passagem,
com a idéia de que tal engajamento filosófico, por sua natureza dife-
renciada, não corresponde à pretensão de defender nenhuma tese filo-
sófica (tampouco aquela que corresponderia à proposição “eu duvi-
do”). E, seja ou não fiel à que fora prática dos pirrônicos, não deixa de
haver textos antigos que podem ser empregados para corroborar essa
descrição montaigniana. Tratando das “expressões céticas”, por exem-
plo, Sexto observa que esses filósofos não pretendem asseverar positiva-
mente a verdade absoluta das proposições que empregam, “uma vez
que elas podem ser eventualmente confutadas por estarem elas pró-
prias incluídas entre as coisas sobre as quais a dúvida se aplica, tal como
as drogas purgativas não apenas eliminam os humores do corpo, mas
também se expelem a si mesmas juntamente com eles…” (HP I, 206).
Isso significa que a dúvida também se aplica, nalguma medida, sobre as
próprias proposições por meio das quais o cético pretenderia caracteri-
zar sua posição — como “eu duvido”. Podemos ir mais longe e destacar
naquela mesma passagem outros elementos que permitem precisar a
interpretação de Montaigne. A seu ver, o cético não está impedido de
empregar as expressões que entende bem descreverem sua posição filo-
sófica — “nada sabeis”, “duvidais” etc. O problema parece surgir quan-
do essas expressões são usadas de um modo determinado, ou num sen-
tido particular. A partir do momento em que o interlocutor do ceticis-
mo pretenda sustentar demonstrativamente — “julgar e estabelecer”,

10. Sobre o papel central da atividade argumentativa no ceticismo antigo, ver


PORCHAT, 1993, especialmente p. 211, 227 ss., 243, 251. Embora Porchat não chegue
a afirmar que o abandono cético da pretensão de sustentar demonstrativamente a ver-
dade conduza a uma maior liberdade argumentativa, propõe que o cético, valendo-se
da linguagem num sentido plenamente não-tético ou simplesmente fenomênico, con-
fere à argumentação um lugar privilegiado (p. 240-241).

215

10888_A figura do filosofo.p65 215 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

“por um juízo certo” ou “por um axioma afirmativo” — que ele duvida


ou nada sabe, assim o cético, por intermédio de sua prática filosófica,
pode uma vez mais encontrar argumentos capazes de pôr em dúvida
essa tentativa dogmática de estabelecer tal proposição como verdadei-
ra. A distinção entre o gênero cético de fazer filosofia e os demais é de
tal ordem que as proposições de que o cético se vale para descrever sua
filosofia são sujeitas a compreensões inteiramente diversas caso sejam
ou não relacionadas à prática filosófica do ceticismo.
Uma dificuldade, contudo, em que essa leitura parece esbarrar é a
seguinte: na primeira edição dos Ensaios, caracterizando a diferença
entre os pirrônicos e acadêmicos, Montaigne sublinha que, segundo os
pirrônicos, os céticos acadêmicos seriam ainda portadores de alguma
“vaidade muito temerária” ao sustentar que a verdade não pode ser
encontrada. Fazer isso seria ainda sustentar uma tese sobre a capacidade
de nossos poderes cognitivos, parte de uma “grande e extrema ciência”
que poderia, portanto, ainda ser posta em dúvida11. A passagem de que
Montaigne parte para apontar uma diferença entre os gêneros de filoso-
fia é, igualmente, como vimos, de proveniência pirrônica. Noutros tex-
tos da mesma versão inicial da “Apologia”, ele parece igualmente ates-
tar sua concordância com críticas dos pirrônicos aos acadêmicos, como
quando discute a noção do “verossímil”, critério de ação dos filósofos da
Nova Academia12. Esse conjunto de indícios nos levaria a admitir uma

11. “[A] Eles [os pirrônicos] julgam que aqueles que pensam tê-la encontrado [a
verdade] enganam-se infinitamente, e que há ainda uma vaidade muito temerária nesse
segundo grau que assegura que as forças humanas não são capazes de encontrá-la. Pois
isso, de estabelecer a medida de nosso poder, de conhecer e julgar a dificuldade das
coisas, é uma grande e extrema ciência, da qual duvidam que o homem seja capaz…”
(502). Trataremos a seguir, mais detidamente, do problema das diferenças entre ceticis-
mo pirrônico e acadêmico segundo Montaigne.
12. Comentando sua própria argumentação para mostrar que a alma humana, des-
conhecendo-se, não possui meios adequados para discriminar a verdade, Montaigne
discute as divergências entre as concepções de suspensão de pirrônicos e acadêmicos.
Seguindo as Hipotiposes, ele afirma que os acadêmicos admitem alguma inclinação de
julgamento, por acharem muito rude a afirmação de que a brancura da neve é tão
pouco segura quanto o movimento da oitava esfera celeste. Para evitar essa “dificuldade
e estranheza”, que a seu ver dificilmente se aloja em nossa “imaginação” (561A), eles
admitem o verossimilhante (vray-semblable) como critério de diferenciação entre as re-

216

10888_A figura do filosofo.p65 216 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

identificação precisa, por parte de Montaigne, entre o gênero particu-


lar de filosofia, que se estenderia à sua própria prática, e o pirronismo.
Todavia, a caracterização da liberdade cética que ele oferece é apoiada
em citações diretamente extraídas dos Acadêmicos de Cícero. Como
compreender essa situação? Vê Montaigne, de fato, o pirronismo como
um gênero de filosofia distinto do ceticismo acadêmico?
Somos aqui remetidos a uma questão usual da interpretação do
ceticismo nos Ensaios — determinar a natureza do engajamento cético
de Montaigne em vista das diferentes figuras do ceticismo antigo refe-
ridas em seu texto —, e a interpretação usualmente mais aceita poderia
talvez aqui oferecer uma solução: o acréscimo tardio de citações prove-
nientes dos Acadêmicos corresponderia a uma mudança de posiciona-
mento filosófico de Montaigne, que passaria de uma “crise cética” pir-
rônica a um posterior “ecletismo”, no qual teriam lugar esses elementos
acadêmicos13. Embora, no primeiro capítulo, tenhamos examinado a
fragilidade da caracterização do período filosófico final de Montaigne
como um “ecletismo”, seria possível abordar o presente problema se-
gundo as linhas gerais desse modelo cronológico: ele teria primeira-
mente apreendido a idéia de que o ceticismo, em sua versão pirrônica,
corresponderia a um gênero filosófico especial; mais tarde, detendo-se
em textos acadêmicos, ele reveria seu juízo acerca da distinção que os
pirrônicos entenderiam haver entre sua filosofia e a dos acadêmicos. De
fato, as citações de textos acadêmicos incluídas posteriormente ao texto

presentações (apparences) e, por essa razão, admitem uma “propensão” do julgamento


sem admitir sua “resolução” na afirmação de verdades. Mesmo assim, ele argumenta
em favor da recusa pirrônica do critério acadêmico, alegando que a admissão do veros-
símil, por mínima que seja, implica o reconhecimento de uma “verdade mais aparente”
e conseqüentemente a inclinação do julgamento. Em tal argumento ele apóia o juízo
de que a opinião dos pirrônicos é, ela própria, “mais ousada e, no mesmo passo, mais
verossímil” (561-562A). Sexto recusa o critério acadêmico de probabilidade das repre-
sentações segundo seus graus, que critica nos mesmos termos, sem deixar de observar
a semelhança entre o pirronismo e a filosofia acadêmica no que tange à recusa das
asserções em sentido absoluto (v. HP I, 226 ss.).
13. Para a interpretação clássica que identifica uma crise cética em Montaigne, a
referência é VILLEY, 1933. Uma leitura que minimiza a idéia de crise cética, e pretende
ver no “ecletismo” antes uma forma de engajamento no ceticismo acadêmico é a de
LIMBRICK, 1977.

217

10888_A figura do filosofo.p65 217 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

original, a partir de 1588, feitas na forma de esclarecimento das explica-


ções anteriormente oferecidas, de modo geral, acerca da filosofia cética,
têm o sentido de se contrapor à diferenciação entre pirrônicos e acadê-
micos tal como sugerida em 158014. Mas, se admitíssemos que essa re-
visão não se aplica à consideração do ceticismo como um gênero filo-
sófico próprio, acadêmicos e pirrônicos passariam assim a coabitar esse
gênero, tal como anteriormente descrito, como espécimes diferentes.
Esse modelo, porém, também apresenta problemas — antes de
mais, de ordem cronológica: as descrições da liberdade cética baseadas
em passagens dos Acadêmicos encontram-se já na primeira versão da
Apologia, tal como publicada em 1580. Além disso, embora Montaig-
ne se valha de uma divisão pirrônica dos gêneros de filosofia, já na
primeira edição dos Ensaios apresenta o ceticismo em bloco, como um
amálgama de textos pirrônicos e acadêmicos, sem diferenciá-los clara-
mente, para depois concluir: “[A] Eis como, das três seitas gerais da
Filosofia, [estas] duas fazem expressa profissão de dúvida e ignorân-
cia…” (506). O problema, portanto, apenas se ramifica, pois consiste
agora em compreender também o sentido desse tratamento conjunto
de pirronismo e filosofia acadêmica, produzido na mesma edição em
que ele parece se inclinar, como vimos, em favor de um engajamento
no pirronismo, por oposição ao ceticismo da Nova Academia.
Tivemos, ao longo deste percurso, diversas ocasiões de constatar
que, desde o primeiro momento da redação dos Ensaios, Montaigne se
vale solidariamente de textos acadêmicos e pirrônicos para construir
sua visão pessoal do ceticismo e sua discussão particular dos pontos
ceticamente examinados. Isso não o impede, certamente, de exprimir

14. O exemplo mais eloqüente nos parece ser a citação latina dos Academica que é
inserida, posteriormente a 1588, como comentário da crítica dos pirrônicos aos acadê-
micos citada nas páginas anteriores: “Entre o verdadeiro e o falso não há diferença para
o assentimento da alma” (Acad., II, xxviii). Embora introduzida como comentário a
uma passagem pirrônica, tal citação se opõe frontalmente ao que o texto de 1580 afir-
mava acerca do sentido do verossimilhante segundo os acadêmicos: a passagem de Cícero
sugere justamente que o veri similis não deve ser tomado como critério de conhecimen-
to, mas antes, possivelmente, como um critério de ação que se pretende neutro ante a
suspensão filosófica, tal como a adesão pirrônica ao phainómenon. Considerar, no mesmo
sentido, as citações acadêmicas inseridas em 503-504BC e 505C.

218

10888_A figura do filosofo.p65 218 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

seu juízo sobre a discordância aparente dessas doutrinas acerca de pontos


precisos e em momentos particulares. Contudo, o problema em tela
nos ajuda a ver que esse modelo parece encontrar limitações quando se
trata de indagar acerca de seu engajamento filosófico no ceticismo.
Assim, pensamos que levar em conta ambos os elementos — tanto sua
ênfase em uma diferença de gênero entre o ceticismo e a filosofia dog-
mática como sua tendência a operar, de modo geral, com as diferentes
fontes céticas, a fim de encontrar nelas, de modo geral, uma forma de
concordância e de continuidade — pode nos conduzir a observar as
coisas de outro modo. Talvez, desde o primeiro momento de seu enga-
jamento cético, Montaigne visse o pirronismo e a filosofia acadêmica
como duas modalidades diversas de um mesmo gênero cético de filo-
sofar que, a despeito das diferenças que se possam eventualmente apontar
nessas filosofias, se oporia às filosofias dogmáticas, em geral, como re-
presentantes de um modo diverso e tradicional de filosofar. Se assim
for, não haverá lugar para considerarmos que seus próprios Ensaios, à
luz dessa mesma geografia conceitual, representariam, a seu ver, ape-
nas mais um espécime filosófico singular desse mesmo gênero? Um
espécime, portanto, conscientemente diverso dos representados nas
fontes antigas de que dispõe, e portador de particularidades que preci-
sam ser elucidadas e relacionadas ao sentido de seu próprio engaja-
mento filosófico, por mais que fielmente se espelhe nas fontes antigas
e com elas pretenda expressar sua concordância.
Primeiramente, prestemos atenção ao fato de que o problema da
determinação das diferenças entre pirrônicos e acadêmicos foi sempre
visto com bastante cautela por parte de Montaigne — mesmo se pro-
visoriamente ele as reconhece e toma partido, em pontos importantes,
favoravelmente ao pirronismo. Nem mesmo na primeira versão dos
Ensaios, na qual tal afinidade seria mais patente, contudo, ele se reco-
nhece abertamente como “pirrônico” ou “acadêmico”, a despeito dos
diversos indícios de seu posicionamento cético. Outras passagens indi-
cam com clareza que tal prudência é derivada de sua consciência do
distanciamento histórico. Ele se queixa, por exemplo, do eventual laco-
nismo das fontes céticas de que dispõe e da falta de melhores elucida-
ções sobre como os antigos puseram em prática suas doutrinas, frisan-

219

10888_A figura do filosofo.p65 219 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

do os limites da própria interpretação que oferece15. A vetus quaestio da


diferença entre pirrônicos e acadêmicos é debatida por diversos de seus
contemporâneos, muito provavelmente lidos por ele16. Mas não se trata
aqui de um problema puramente filológico. Se ele é posto em discus-
são, importa compreender que tende a ganhar um significado filosófi-
co particular mediante a compreensão geral que Montaigne tem do
ceticismo: uma filosofia que se constitui, além do sentido das teses que
a descrevem, essencialmente como uma prática filosófica argumenta-
tiva (em meio à qual essas mesmas teses podem ser postas em questão);
trata-se, mais do que isso, de uma filosofia que se compreende como
imanente à experiência filosófica individual de incapacidade de assen-
tir à verdade que pretendem impor as diversas filosofias. Assim, dessa
experiência e dessa prática depende a compreensão do sentido da ex-
pressão “eu duvido”, em si mesma desprovida de um sentido absoluto
que contenha a “verdade” do ceticismo — uma vez que poderia igual-
mente se recobrir de um sentido dogmático, que justificaria a epokhé
a seu respeito. Se o ceticismo se pensaria sobretudo como uma prática,
não tenderia isso a relativizar, nalgum sentido, o modo como ela pode
ser representada pelos textos? Não haveria, assim, uma motivação de
prudência na recusa de Montaigne em engajar-se doutrinalmente em
alguma versão filosófica do ceticismo antigo?
Em segundo lugar, porém, a forma como tal concepção do gênero
cético de filosofar ganha corpo nos Ensaios nos conduz a observar que
a própria questão acerca daquilo que particulariza sua prática filosófica

15. Ver, por exemplo, os comentários acerca desse ponto que se seguem a uma
discussão sobre a ataraxía pirrônica, em 578A. Vimos igualmente que, em 505A, ele
frisa que exprime a noção cética de epokhé apenas “na medida em que é capaz”, o que
não o impede de tomar partido pela interpretação segundo a qual seria plenamente
possível conciliá-la com a vida prática.
16. Já Aulo-Gélio assim se referia à questão sobre as diferenças entre pirrônicos e
acadêmicos (v. Noites áticas, XI, 5, 6, obra que Montaigne cita diversas vezes nos En-
saios), que a bem dizer permanece ainda, em certa medida, atual. Popkin nos oferece
testemunhos de sua discussão, especialmente a partir da publicação das traduções lati-
nas renascentistas de Sexto, por parte de outros contemporâneos de Montaigne, como
Giordano Bruno, Justus Lipsius (autor a quem Montaigne se refere elogiosamente) e
Petrus Valentia (v. POPKIN, 1979, p. 35).

220

10888_A figura do filosofo.p65 220 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

relativamente aos demais ceticismos — bem como a questão mais ge-


ral acerca das possíveis divergências filosóficas entre os céticos — se
põe externamente ao âmbito dos conflitos existentes entre os filósofos
dogmáticos. Observemos, por exemplo, esta passagem em que ele co-
menta diretamente o modo como se engendra a diversidade das formu-
lações da dúvida cética: “[A] … por esta extremidade de dúvida que se
atinge a si mesma, eles [os pirrônicos] se separam e se dividem de di-
versas opiniões, daquelas mesmas que mantiveram de diversas formas a
dúvida e a ignorância…” (503). Esse texto da primeira edição da “Apo-
logia” parece indicar que a consideração de teses não é adequada para
caracterizar a diferença entre as filosofias céticas — afinal, elas não
sustentam teses —, mas sobretudo a diferença da própria dúvida que
praticaram. Seja qual for o significado exato desse deslocamento, ele
deve ter conseqüências para o próprio sentido em que se poderiam
distinguir diferentes posicionamentos céticos.
Tanto pirrônicos como acadêmicos parecem ser igualmente inter-
pretados por Montaigne como filósofos cuja prática argumentativa,
distinguida do engajamento dogmático, é articulada à suspensão do
juízo e a uma postura dubitativa ante as diversas formulações da verda-
de oferecidas pelas filosofias dogmáticas:
[C] Enquanto [Cícero] tratava das Letras, era sem a obrigação de
nenhum partido, seguindo o que lhe parecia aprovável, seja numa
seita, seja em outra, mantendo-se assim sempre sob a dúvida da Aca-
demia. Dicendum est, sed ita ut nihil affirmem, quaeram omnia,
dubitans plerumque et mihi diffidens… (501)17.
Montaigne comenta sua exegese da filosofia de Cícero — cuja
pertinência histórica não pretendemos aqui discutir18 — por meio de
uma passagem acadêmica que justifica a associação da dúvida filosófi-
ca a uma atividade de “investigar todas as coisas”, contrariamente ao

17. O texto latino está em De diuinatione, II, iii: “Eu direi, sem nada afirmar; eu
investigarei todas as coisas, freqüentemente duvidando e desconfiando de mim mesmo…”.
18. Parece-nos, de todo modo, que a interpretação montaigniana seria aceitável a
alguns intérpretes contemporâneos de Cícero, como John Glucker, segundo quem a
aceitação de aspectos de doutrinas filosóficas “dogmáticas” como probabile por Cícero
seria, no mais, conforme à prática de Carnéades (v. GLUCKER, 1988, esp. p. 62 ss.)

221

10888_A figura do filosofo.p65 221 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

que se poderia depreender da condenação pirrônica dessa filosofia. Aqui,


a mesma liberdade extrema da zétesis pirrônica deixa-se entrever na
quaestio acadêmica: duas traduções de um mesmo gênero de investiga-
ção que, no caso específico dos acadêmicos, pode abarcar, segundo
Montaigne, uma espécie de emprego diversificado das razões dos filó-
sofos dogmáticos (transformadas, por certo, quanto a seu sentido de-
monstrativo original): sem obrigação doutrinária, conforme ao que lhe
parece provável.
E como situar, com base nesse viés interpretativo do ceticismo, o
próprio modo “impremeditado e fortuito” pelo qual Montaigne se pre-
tende um “filósofo de nova figura”? Por ora, prestemos atenção ao pa-
ralelismo entre o que Montaigne afirma sobre Cícero na passagem que
acabamos de citar e o que ele afirma nesta importante página sobre o
sentido de sua investigação filosófica — os “ensaios” de seu juízo:
[A] O juízo é uma ferramenta para todos os fins, e se mete em toda
parte. Por essa causa, nos ensaios que dele faço aqui, emprego todo
tipo de ocasião. Se for um assunto que eu não entendo, por isso
mesmo eu o ensaio [je l’essaye], sondando de longe o leito; se o acho
demasiado fundo para meu tamanho, fico na margem. E esse reco-
nhecimento de não poder atravessar é um traço de seu efeito, e mesmo
daqueles dos quais ele mais se orgulha. Por vezes, num assunto vão
e desimportante, eu tento [j’essaye] ver se ele achará de que lhe dar
corpo, e de que lhe apoiar e sustentar. Por vezes, levo-o a passear por
um assunto nobre e já muito trabalhado, no qual ele nada tem a
encontrar por si, estando já o caminho tão desbravado que ele não
pode senão marchar sobre os passos de outrem. Lá ele faz sua tarefa
ao escolher a estrada que lhe parece a melhor e, de mil trilhas, ele
diz que esta ou que aquela foi mais bem escolhida. Eu tomo ao acaso
a primeira razão. Elas me são igualmente boas. E nunca pretendo
pô-las em evidência por inteiro. [C] Pois de nada eu vejo o todo, e
não o fazem aqueles que nos prometem fazê-lo. De cem membros e
faces que tem cada coisa, pego apenas um, por vezes apenas a lam-
ber, por outras a saborear a superfície, e por outras a examinar até o
osso. E prefiro o mais freqüentemente tomá-los por um lume inusi-
tado. Eu me aventuraria em tratar a fundo alguma matéria se me
conhecesse menos. Semeando aqui um dizer, ali outro, fragmentos

222

10888_A figura do filosofo.p65 222 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

desprendidos do seu lugar, afastados, sem desígnio e sem promessa,


eu não me comprometi em fazer melhor, nem de neles me apoiar eu
mesmo, sem variar quando assim me aprouver; assim [posso eu]
entregar-me à dúvida e à incerteza, à minha forma mestra [forme
maitresse], que é a ignorância… (I, 50, 301-302).
Não pretendemos alegar que o modo como Montaigne compreen-
de esse “ensaio” ou exercício filosófico diante das razões alheias seja
semelhante ao que ele encontra em Cícero. Num nível meramente
formal, seria já possível distinguir o modo como este constrói seus diá-
logos filosóficos, em torno da exposição e do exame de escolas diversas
sobre determinado tema, e o estilo rapsódico, como diz Hugo Friedrich,
dos Ensaios. Mas o que importa destacar aqui é o modo como a inves-
tigação de Montaigne, tal como aqui descrita, subordina o tratamento
dos mais diversos temas — considerados freqüentemente à luz de ra-
zões e exemplos diversos e opostos, tomados das fontes antigas ou produ-
zidos pelo próprio autor — a uma “forma mestra” que determina sua
identidade filosófica. Assim, a própria interpretação montaigniana da-
quilo que fundamentalmente caracteriza o gênero cético de filosofar —
rigorosamente desenvolvida a partir das fontes antigas — é por ele mesmo
empregada como forma de se introduzir na mesma família. É, contudo,
necessário supor que haja uma única e boa maneira de conciliar ade-
quadamente uma dynamis argumentativa, destinada a engendrar a sus-
pensão do juízo, e a aceitação dos fatos na dimensão em que eles
irrecusavelmente se impõem? Ou não é em princípio compatível, com
a largueza pela qual essa definição discrimina o ceticismo, a possibili-
dade de se desenvolverem consistentemente várias filosofias céticas?
Parece-nos, assim, que a questão sobre a natureza pirrônica ou aca-
dêmica do ceticismo de Montaigne é insuficiente para alcançarmos o
fundo do problema. Não se trata de negar, contudo, a importância
dessa questão, à qual em boa medida os próprios textos de Montaigne
nos conduzem. Como vimos, ora ele caracteriza seu engajamento filo-
sófico com base no modelo de narrativa biográfica pirrônica, ora ele
descreve sua prática ensaísta com textos que muito se aproximam da
caracterização do ceticismo acadêmico de Cícero. Porém, devidamen-
te aprofundada, com base nos elementos que Montaigne oferece e em

223

10888_A figura do filosofo.p65 223 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

seu cotejo com as fontes céticas, essa busca acaba por nos levar a cami-
nhos inesperados19.
O leitor poderia objetar que a solução aqui apresentada não parece
satisfazer plenamente as dificuldades que apontamos: se Montaigne
compreende o ceticismo como um gênero filosófico próprio que abar-
ca tanto pirrônicos como acadêmicos, como se apóia ele, afinal, numa
divisão pirrônica das filosofias segundo a qual essa doutrina se distingue
da filosofia acadêmica pela extremidade da dúvida com que se aparta
da vaidade ainda presente nessa modalidade cética? Seja qual for a
resposta, não pode desconsiderar a feição paradoxal que esse texto assu-
me ao ser cotejado com as fontes céticas explicitamente discutidas por
essa passagem — a exemplo do que ocorre, implicitamente, no texto
em que Montaigne trata de seu filosofar impremeditado e fortuito. A
discussão geral da filosofia cética assume inicialmente uma divisão tri-
partite dos gêneros de filosofia de origem pirrônica, pela qual esses
filósofos se distinguem dos céticos acadêmicos, e prossegue ilustrando
a liberdade correspondente à prática dessa mesma dúvida extrema com
passagens certamente extraídas dos Academica, novamente sem que o
leitor seja informado dessa particularidade, concluindo pela afirmação
de que se tratou ali das duas seitas que professam a ignorância, sem
claramente delinear sua diferença. Não é desprezível que esse fenôme-
no paradoxal seja recorrente nos textos de Montaigne que gravitam em
torno da mesma problemática da diferença entre as vertentes céticas.
Como mostramos, ele retoma literalmente a crítica que os pirrônicos
dirigem ao vray-semblable acadêmico; mas notemos que, formulando

19. Essa crítica se aplica, nalguma medida, à própria leitura que fizemos do ceticis-
mo de Montaigne em textos como EVA, 1993 e 2004, posto que ali permanecemos
orientados pela questão de saber se estávamos diante de um autor pirrônico ou acadê-
mico. Insistamos, porém, que esse é, em boa medida, um resultado natural do reconhe-
cimento dos indícios textuais legados pelo próprio Montaigne. Se entendemos ser aqui
possível aprofundar o tratamento do mesmo problema, dizemos que, até certo ponto, o
seu tratamento à luz das fontes pirrônicas e acadêmicas é um pressuposto indispensável.
Isso não revoga o reconhecimento dos aspectos pirrônicos e acadêmicos presentes na
reflexão de Montaigne, tal como lá os indicamos, mas apenas nos conduz a observá-los
de um novo ponto de vista que permite melhor compreender as conseqüências desse
ceticismo no âmbito mais geral dos Ensaios.

224

10888_A figura do filosofo.p65 224 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

sua concordância com essa objeção, ele se exprime por meio do pró-
prio critério recusado: “[A] A opinião dos pirrônicos é mais ousada e,
no mesmo passo, mais verossímil…” (562; itálico nosso).
Desses paradoxos, o efeito mais imediato, por certo, é o de descon-
certarem o leitor, e especialmente aquele que busca saber qual é exata-
mente a posição de Montaigne diante da velha questão sobre as diver-
gências das seitas céticas. E o próprio Montaigne, em vez de elidir o
aspecto desconcertante da conclusão pela qual o cético pode se opor às
próprias teses que definem sua filosofia, apenas acentua a nota paradoxal
que aí ressoa, demonstrando que essa liberdade acaba por conduzir o
cético a reconhecer sua vitória mesmo nas disputas em que é derrotado:
[B] Eles reservaram para si uma maravilhosa vantagem no combate,
uma vez que se desincumbiram do cuidado de se defender. Não lhes
importa que se lhes atinja, desde que atinjam; e de tudo acabam por
se aproveitar. Se eles vencem, vossa proposição falha, se vós, a deles.
Se provarem que nada se sabe, tudo bem, se não o souberem provar,
é igualmente bom. [C] Ut, quum in eadem re paria contrariis inpartibus
momenta inveniuntur, facilius ab utraque parte assertio sustineatur. E
contam com o fato de se achar bem mais facilmente com que mostrar
que uma coisa seja falsa, do que verdadeira, e o que não é, do que é;
e o que não crêem, do que o que crêem… (504-505)20.
Seria essa uma ironia para com os céticos, afeita às descrições in-
sólitas de Diógenes Laércio? Mas essa discussão culminará, justamen-
te, numa recusa explícita da leitura laerciana que conduz o cético ao
precipício.
Todos os paradoxos que acabamos de mencionar parecem possuir
importantes elementos em comum. Primeiramente, eles se relacionam
tematicamente à discussão de aspectos conceituais do ceticismo e, de
modo mais ou menos direto, à posição filosófica pessoal de Montaigne
em face deles. Além disso, tais paradoxos — sejam ou não dependentes
do confronto com as fontes céticas originais — tendem a se transformar
significativamente ou mesmo a se dissolver quando considerados à luz

20. A citação latina provém de Acad., I, xii: “Para, descobrindo acerca de cada coisa
razões contrárias, ser mais fácil suspender o julgamento por ambos os lados”.

225

10888_A figura do filosofo.p65 225 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

das precisões conceituais que o próprio Montaigne oferece acerca da


filosofia cética. É tanto mais fácil, por exemplo, compreender a última
passagem citada como uma eventual crítica ao ceticismo, quanto mais
se atém à exigência de que uma doutrina filosófica se defina pela posse
de um conjunto de teses cuja veracidade se pretenda estabelecer. Mas a
passagem pretende alegar que estamos diante de um gênero de filosofia
radicalmente outro, que focaliza diversamente a atividade opinativa e
argumentativa dos homens, situando-nos externamente à atividade filo-
sófica considerada como meio de obter verdades — o que nos conduz,
nas palavras de Montaigne, a observar “brandamente” as opiniões diver-
sas21. Seja qual for o sentido de que se reveste essa atividade, com ele
passa a ser compatível a possibilidade de considerarmos seriamente a
alegação de que o cético pode indefinidamente extrair a “prova da igno-
rância humana” das críticas que são dirigidas à sua filosofia. E o mesmo
estilo paradoxal de exposição apresenta-se na análise que, em seguida,
Montaigne efetua dos filósofos dogmáticos — todos eles apresentados
como céticos que, por alguma razão, teriam disfarçado seu ceticismo sob
uma aparência resolutiva. Aristóteles é o príncipe dos pirrônicos devido
à obscuridade que nos impede de compreender seus escritos, Platão fi-
losofa de modo irresoluto ao nos apresentar diálogos aporéticos etc. Não
é o leitor igualmente convocado a concluir se esse julgamento pode
possuir alguma verossimilhança ou se está diante de simples ironia?22
Algo de semelhante parece ocorrer no caso dos paradoxos relativos
à crítica ao critério acadêmico de ação e às diferenças entre as espécies
céticas. Não deveremos reconhecer que também nesses casos o impas-
se depende, nalguma medida, de um pressuposto que, embora sugeri-
do pela própria discussão, pode ser revisto (se tal elemento é provenien-
te de Sexto, então ele é pirrônico, portanto não é acadêmico)? Se refor-
mulamos o problema segundo as precisões oferecidas por Montaigne
acerca do gênero cético de filosofia, o enigmático quebra-cabeça das
passagens com que os diferentes céticos qualificam a especificidade da

21. Ver III, 8, 923.


22. Cf. 506-512. Para uma análise mais detalhada dessa discussão, ver EVA, 2004,
p. 106 ss.

226

10888_A figura do filosofo.p65 226 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

sua filosofia por oposição a um filosofar dogmático acaba sobretudo


nos impedindo de situar adequadamente o ceticismo de Montaigne
com base na oposição pirrônico/acadêmico. Montaigne, como vimos,
não se declara pirrônico nem acadêmico, mas “filósofo de nova figura”,
impremeditado e fortuito, que filosofa exteriormente a todas as “seitas”.
Mais um paradoxo que, para nós, só é paradoxal enquanto nos atemos
a um sentido determinado de “engajamento filosófico”, e que desapa-
rece à medida que o relato de sua decisão de conservar sua liberdade
natural (descrita em tintas nitidamente céticas) pode ser assimilado à
liberdade que os céticos preservam, desengajados da necessidade de
defender quaisquer dogmas. Não é, afinal, essa exterioridade a toda e
qualquer seita característica da própria postura cética em geral? Não
depende o paradoxo justamente da compreensão da adesão a uma seita
(cética ou não), segundo a acepção tradicional pela qual se define uma
“seita”? Não seria justamente a compreensão do que caracteriza distin-
tamente o gênero cético de filosofar aquilo que impediria tal equívoco?
Em suma, é claramente insuficiente, para explicar tais paradoxos,
a hipótese de que Montaigne estaria apenas buscando ocultar aspectos
de seu posicionamento vistos como perigosos relativamente à ordem
pública. Diríamos que, além desse efeito de ocultamento, esses exem-
plos parecem anunciar um sentido mais positivo de seu emprego (que
não seria, afinal, de todo ausente nos exemplos que analisamos no
capítulo anterior). O paradoxo parece ser aqui empregado como um
instrumento destinado a conduzir o leitor a julgar por si mesmo, ante
o efeito desconcertante dos elementos dispostos, e a ponderar as preci-
sões conceituais que o próprio Montaigne assinala noutras passagens.
Para tornar contudo isso mais claro, cabe examinar melhor as motiva-
ções filosóficas que estão aqui em jogo.

5.2. O ensaio como investigação cética


Consideremos aqui outra passagem que serve de exemplo ao modo
paradoxal pelo qual Montaigne nos apresenta sua identidade cética:
“[A] Se filosofar é duvidar, como eles dizem, com mais forte razão
ocupar-se de ninharias e fantasiar [niaiser et phantastiquer], como eu

227

10888_A figura do filosofo.p65 227 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

faço, deve ser duvidar. Pois cabe aos aprendizes investigar e debater
[enquerir et debattre], e ao catedrático resolver…” (II, 3, 350). “Eles”,
os mestres para os quais filosofar é duvidar, são certamente os céticos,
apontados laconicamente. Montaigne declara sua proximidade desses
filósofos ao dizer que possui razões ainda mais fortes de duvidar, por se
ocupar de ninharias e fantasia. Tal atividade é igualmente caracteriza-
da como um modo de “investigar e debater” transposto no nível dos
aprendizes. Contudo, no mesmo passo, há um afastamento implícito
relativamente aos filósofos céticos, pois, uma vez caracterizada como
atividade de aprendizes, e não dos mestres, não corresponde exatamen-
te à dúvida dos “filósofos”, nalguma medida equiparados, segundo a
mesma assimetria, aos “catedráticos”. Mas qual seria a natureza filosó-
fica desse “fantasiar”, igualmente identificado e diferenciado da ativi-
dade dos filósofos que duvidam.
Talvez se possa pensar que esse paradoxo seja desfeito pela seqüên-
cia desta passagem: “[A] O meu catedrático é a vontade divina, que nos
rege sem oposição e tem seu lugar acima dessas vãs e humanas contes-
tações” (ibid.). Não é preciso, porém, retomar aqui as considerações de
Montaigne sobre a nossa impossibilidade de sondar a vontade divina.
Não seria esse desenlace antes um indício dos inconvenientes de exibir
uma identidade cética de índole puramente filosófica, e da conveniên-
cia em ocultá-la por meio de um alter ego filosofante que se subordinas-
se à autoridade da religião? Ainda assim, essa hipótese não explicaria
exatamente por que Montaigne identifica, nessa passagem, sua atitude
dubitativa com a de um “aprendiz” que “investiga”, por oposição aos
“catedráticos” — da filosofia ou da fé.
Um elemento adicional torna essa questão, a nosso ver, mais inte-
ressante. Segundo a cronologia estabelecida por Villey, Montaigne
decidiu batizar sua obra como “Os ensaios de Michel de Montaigne”
às vésperas da publicação da primeira edição, em 1580 — posterior-
mente, portanto, à redação da “Apologia”. Sem pretender aqui aden-
trar na discussão dos comentadores sobre o sentido do termo “ensaio”23,

23. Cf., por exemplo: BLINKENBERG, 1964; NACAS, 1980; e principalmente FRIE-
DRICH, 1968, cap. VII, especialmente 353 ss.

228

10888_A figura do filosofo.p65 228 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

importa destacar duas acepções filosoficamente importantes que ele


adquire para Montaigne, não suficientemente consideradas nesse de-
bate. Primeiramente, entre outros significados que esse termo possui
no moyen français, está o de “lição ou trabalho escolar”, acepção na
qual o termo é empregado nos Ensaios24. Em “Da amizade”, num tre-
cho provavelmente composto antes de 1574, Montaigne se refere ao
“Discurso da servidão voluntária”, de La Boétie, como tendo sido escri-
to “à maneira de ensaio, na sua primeira juventude, à honra da liber-
dade contra os tiranos” (I, 28, 183-184A). O contexto enfatiza que, a
despeito da boa acolhida que o texto teve por parte das “pessoas de
entendimento”, se tratou apenas de um exercício filosófico, de que tal
autor foi capaz antes da idade de dezoito anos e que, caso ele tivesse
sobrevivido e adotado, mais amadurecido, um desígnio semelhante ao
dele, de “deixar por escrito suas fantasias”, teria superado outros ainda
mais próximos da altura dos antigos: “… pois, notadamente nesta parte
dos dons da natureza, eu não conheci ninguém que lhe seja compará-
vel…” (ibid.).
Montaigne emprega o mesmo termo “ensaio” para qualificar seus
exercícios filosóficos de natureza estóica, ao se referir à experiência da
morte como ocasião de avaliação da capacidade de pôr em prática tal
filosofia: “[A] Eu remeto à morte o ensaio do fruto de meus estudos. Lá
veremos se minhas razões [discours] partem da boca ou da coragem…”
(I, 19, 80; itálico nosso). Não adentraremos, por ora, numa discussão
mais detalhada desse ponto. Mas é seguro, de todo modo, que o termo
se revestirá de um significado filosófico particular e nalguma medida
diverso quando, identificando sua postura filosófica dubitativa à inves-
tigação cética e abandonando tal orientação estóica, ele o escolher como
título de seu livro. Embora geralmente se faça remontar a etimologia
do termo ao latim exagium25, parece-nos bastante relevante que Jacques

24. Ver, por exemplo, I, 26, 174A.


25. “Peso”, donde “ensaiar” seria “pesar”; cf. GREIMAS, KEANE, 1992, p. 263. Obser-
vemos porém que, mesmo nesse sentido que, de um ponto de vista filosófico, é bastante
amplo e vago, o termo poderia se prestar a uma aproximação com o ceticismo. Se os
ensaios são um exame de razões filosóficas diversas, não esqueçamos que Montaigne
grava uma medalha com a efígie da balança equilibrada para simbolizar a suspensão

229

10888_A figura do filosofo.p65 229 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Amyot, na tradução de Plutarco amplamente elogiada e freqüentada


por Montaigne, escolha exatamente o termo essay para traduzir a inves-
tigação dubitativa acadêmica26. Assim, não parece gratuita a escolha de
Montaigne, para batizar sua atividade filosófica, de um termo que pode
igualmente significar a sképsis — o mesmo termo que os pirrônicos ou
“Skeptiques”, na expressão do próprio Montaigne, escolheram para
denominar sua filosofia — ou a quaestio pela qual Cícero se refere,
como vimos, à dúvida acadêmica. Esses três termos pertencem, afinal,
a uma mesma família filosófica, ao batizar uma filosofia que se define
puramente pela atividade de investigação que realiza, por oposição
àquelas que se presumem capazes da formulação de alguma verdade.
Mas, se fosse assim, o ensaio, em particular, seria, a um só tempo,
uma investigação cética e um exercício pensado como uma espécie de
aprendizado, cujo modelo seria a dúvida propriamente filosófica. O
que significa exatamente essa caracterização? Por que, ademais, isso se
manifesta na forma de um paradoxo?
Para responder a essas questões, retomemos alguns aspectos das
análises feitas anteriormente. Vimos no item anterior que, segundo Mon-
taigne, ao pormo-nos diante do ceticismo não estamos diante de uma
filosofia que caiba na maneira usual de compreender a adesão doutri-
nal a uma filosofia. Assim como o epicurismo, por exemplo, define-se,
quanto à sua física, por defender um atomismo materialista, o ceticis-
mo se definiria pela tese de que nada conhecemos. Essa seria uma
maneira de facilmente se equivocar em relação ao que efetivamente
caracterizaria essa filosofia. Mas, seja qual for a boa maneira de com-
preender o ceticismo, decorre dessa precisão que as fórmulas que Sexto
emprega e Montaigne retoma para descrever a filosofia cética repre-
sentam essas mesmas filosofias de maneira distinta, em alguma me-
dida, do que ocorre na forma tradicional de conceber o que sejam as

cética. Ademais, ele se vale da mesma metáfora para aludir diretamente à sua prática
antinômica, em III, 8, 923-924.
26. Em “Contre l’epicurien Colotes” (569D), Plutarco afirma que a “seita” dos aca-
dêmicos se teria constituído por meio de uma investigação (essay) de todas as coisas, no
intuito de engendrar uma ampla dúvida destinada a uma “legítima e justa” disputa
contra os estóicos.

230

10888_A figura do filosofo.p65 230 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

filosofias. Tratando-se de uma filosofia que não se caracteriza pela posse


de “dogmas”, que colhem e sintetizam em si mesmos, por assim dizer,
o sentido do esforço filosófico, os lemas gerais que caracterizam a filo-
sofia cética não desempenham o mesmo papel que possuiriam no caso
de uma filosofia dogmática. Como diz Sexto, o cético não emprega as
expressões que definem sua filosofia como se possuíssem um significa-
do absoluto e autoritariamente definissem as coisas que por elas são
explicadas, mas utiliza-as de um modo deliberadamente impreciso e
vago, posto que o cético não irá brigar pelas palavras (cf. HP I, 207).
Embora essas expressões céticas possam descrever adequadamente o
pirronismo, não seriam por si mesmas portadoras de um poder inequí-
voco de dar a compreender o que seja a experiência filosófica própria
do ceticismo. Isso porque sua boa compreensão se pretende solidária
de uma prática, isto é, de uma experiência do uso da razão, no exame
da precariedade das diversas tentativas de formulação da verdade, bem
como da experiência de reagir à constatação dos limites naturalmente
experimentados de nossa pretensão cognitiva, tentando equacioná-la
do modo mais coerente possível.
Essa conclusão se harmoniza com outras análises feitas anterior-
mente. No capítulo II, vimos que a admissão da fraqueza da razão em
sustentar verdades (mesmo a Verdade Revelada) pode possuir um sen-
tido tal — como ocorre no caso dos primeiros objetores de Sebond —
que sua semelhança com a compreensão cética acerca desse ponto é
apenas superficial (uma vez que esses objetores não compreenderiam
adequadamente a fraqueza demonstrativa do próprio critério interpre-
tativo que propõem). No mesmo sentido, o que julgamos “natural”,
assim o julgamos relativamente à capacidade individual de ação de
nosso juízo ou, mutatis mutandis, à nossa ignorância daquilo em que a
natureza nos poderia surpreender, dada a maneira como o costume
adormece nosso juízo. Digamos agora que esses diversos aspectos da
compreensão do ceticismo podem ser vistos como rendimentos da in-
terpretação dessa filosofia como um exercício da razão e do juízo leva-
do às últimas conseqüências, libertado da pretensão de estabelecer a
verdade, consciente de que são relativos a essa prática tanto a com-
preensão dos próprios conceitos céticos como o modo pelo qual po-

231

10888_A figura do filosofo.p65 231 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

dem ganhar sentido, mais amplamente, os conceitos que povoam o


discurso filosófico.
É interessante notar que essa mesma visão da filosofia cética se ma-
nifesta indiretamente na passagem em que Montaigne descreve sua
atividade ensaística, citada no item anterior27. Já observamos como, nessa
passagem, ele subordina a uma “forma mestra” da filosofia dubitativa
todos os diversos matizes em que aborda as razões e os exemplos que
considera, deslocados de sua pretensão original de estabelecer uma
verdade. Mas todos os aspectos dessa sua experiência filosófica são tam-
bém subordinados a outro objetivo comum. Seja ao se ver obrigado a
seguir as mesmas trilhas dos antigos, seja descobrindo um viés inusitado
para abordar um tópico tradicional, seja ainda reconhecendo-se inca-
paz de ir além e constatando os limites de seu próprio entendimento,
Montaigne alega estar fundamentalmente, em todas essas ocasiões,
exercitando e avaliando o seu próprio juízo em diversos ângulos. Assim,
a atividade argumentativa cética de Montaigne relaciona-se prioritaria-
mente a uma tarefa de auto-exame, reconhecimento e eventualmente
desenvolvimento do alcance natural daquilo a que ele se refere como o
seu “juízo”; tarefa que, por si mesma, projeta, como pano de fundo, o
reconhecimento de que a estatura natural do juízo é não apenas diversa
entre os diferentes homens, mas intrinsecamente finita e limitada.
Importa examinar com mais cuidado essa motivação de sua filosofia.
Reconhecendo a diversidade com que o juízo se apresenta entre os
homens e conferindo-lhe um papel prioritário em suas deliberações,
Montaigne não descuida de tentar se observar comparativamente, em
sua relação não apenas com seus contemporâneos, mas sobretudo com
os homens do passado:
Casualmente, o comércio contínuo que tenho com os humores an-
tigos, e a idéia dessas ricas almas do tempo passado me desgosta de
outrem e de mim mesmo; ou ainda [me leva a pensar] que, na ver-
dade, vivemos num século que não produziu senão coisas bem me-
díocres. Tanto é assim que não conheço nada digno de grande admi-
ração. Também quase não conheço homens com a familiaridade

27. Ver I, 50, 301-302.

232

10888_A figura do filosofo.p65 232 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

[privauté] que é preciso ter para poder julgá-los, e aqueles a que minha
condição me põe em contato mais comumente, na sua maior parte,
pessoas com pouco cuidado da cultura da alma, aos quais se propõe
apenas a honra como toda a sua beatitude, e como toda perfeição
apenas a coragem… (II, 17, 658A)28.
Essa passagem é uma dentre muitas nas quais uma mesma nota
ressoa ao fundo das comparações que Montaigne traça entre seu mun-
do e a Antiguidade: a inferioridade do primeiro em relação à segunda29.
Todavia, por mais que se possa aqui reconhecer uma aura de idealida-
de projetada nos antigos, aquilo que torna, a seu ver, os homens antigos
dignos de consideração, até de um ponto de vista filosófico, é justa-
mente o mesmo que, faltando na atividade intelectual de seus contem-
porâneos, os impede de apreciar adequadamente essa grandeza. Inte-
ressam-lhe os antigos não por sua antiguidade, mas como exemplos de
um exercício superior e particularmente livre das faculdades intelec-
tuais, por oposição a um culto servil à memória e à autoridade daqueles
que teriam encontrado verdades cujo valor — relativo ou absoluto —
não pode mais ser adequadamente reconhecido pelas práticas intelec-
tuais em que normalmente os textos dos antigos são retomados. Tal
nota é particularmente audível quando Montaigne examina as formas
institucionais adquiridas pela filosofia contemporânea, formas que ini-
bem a ação do juízo e comprometem o próprio sentido em que ela
pode, de modo geral, ser compreendida.
[A] Não é pouco que as coisas estejam assim em nosso século, que a
filosofia seja, mesmo para as pessoas de entendimento, um nome vão
e fantástico, sem nenhum uso e nenhum valor, [C] por opinião e de
fato [par effect]. [A] Eu creio que esses ergotismos, que se apodera-
ram de seus caminhos, são a causa… (I, 26, 160).
O problema diz respeito às condições gerais da atividade filosófica:
o sentido que ganha o próprio termo “filosofia” é aqui, mais uma vez,

28. Ver, também, I, 26, 146-147.


29. Ver III, 2, 812-813BC; III, 8, 932; III, 9, 946, 993B, II, 17, 658-659A. Sobre esse
ponto, ver CAVE, 1984, p. 6-8, bem como, sobre a ambigüidade da relação entre Mon-
taigne e a cultura clássica, as excelentes páginas de FRIEDRICH, 1968, p. 42 ss.

233

10888_A figura do filosofo.p65 233 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

determinado pela prática intelectual que a ela corresponde. Mas, mes-


mo que as críticas dos antigos céticos aos dogmáticos sirvam a Montaig-
ne como modelo da sua atividade filosófica, ambos os pólos desse em-
bate intelectual parecem ser aqui transformados por esse deslocamento
histórico, que acaba por lhes conferir uma feição particular. A crítica
de Montaigne ao dogmatismo estende-se à própria forma disciplinar do
estudo da filosofia, posto que se condenam, num amplo mostruário,
desde as sutilezas da gramática e os ergotismos da lógica (v. ibid., 169-
171) até a “ridícula pesquisa da pedra filosofal” e os demais exemplos
das ficções que a filosofia de seu tempo elabora sobre o macrocosmo e
o microcosmo30. Tais exemplos da vaidade da science são alvejados não
apenas por proporem teorias falsas ou incorretas, mas também por se-
rem inúteis e incompatíveis com a espécie de formação que caberia à
“verdadeira filosofia”. Podemos, ainda aqui, retomar a pista da reflexão
pirrônica de Sexto Empírico, que, qualificando o sentido próprio em
que os céticos concebem a atividade filosófica, se confessa por vezes
incapaz de reconhecer o sentido das expressões de que se valem os
dogmáticos, ou mesmo a existência dos objetos sobre os quais suposta-
mente versam suas doutrinas31. Mas essa consideração de algum modo
se amplifica pelas lentes com que Montaigne a examina em seu univer-
so contemporâneo: inferiores aos verdadeiros “philosophes” antigos
(mesmo os dogmáticos), os do seu tempo filosofam segundo as formas

30. STEVENS (1965) opina que o leque semântico do termo “philosophie” nos en-
saios é mais amplo do que o usual nos autores do século XVI (v. p. 147), mas equivoca-
se na leitura que faz da definição tripartite dos gêneros de filosofia, desconhecendo sua
proveniência cética (v. p. 148; tal desconhecimento é aliás corrente entre os comenta-
dores que se põem a analisar a noção montaigniana de filosofia, como COMTE-SPON-
VILLE, 1993, p. 30). Segundo Stevens, Montaigne não emprega o termo “philosophie”
designando a “pesquisa da pedra filosofal”, que ele identifica em Pasquier e é relativa-
mente comum na época (v. p. 153; v. tb., p. ex., GREIMAS, KEANE, 1992, p. 474). Pare-
ce-nos difícil, porém, negar que as críticas de Montaigne à alquimia se enquadrem no
mesmo modelo geral da crítica ao dogmatismo.
31. Em HP I, 18, Sexto responde à questão “O cético lida com a Física?” explicando
que o cético não a aborda com o intuito dogmático de fazer asserções, mas sim ao opor
proposições com o objetivo de obter a quietude. “É com o mesmo espírito que nós
abordamos as partes lógicas e éticas do que eles chamam de filosofia” (itálicos nossos).
Ver também HP II, 11.

234

10888_A figura do filosofo.p65 234 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

decadentes adquiridas por essa atividade, que acabaram por compro-


meter drasticamente a própria maneira de concebê-la. Assim, o dogma-
tismo estende-se e degrada-se num modo de filosofar que, só reconhe-
cendo como verdadeiro o que está em Aristóteles, se dispensa com mais
liberdade do emprego do juízo naquilo que sustenta, e acaba por se
enredar ainda mais cegamente nas mesmas teias que já teriam imobi-
lizado, nalgum grau por certo mais sutil, o juízo dos antigos32.
Tal é o pano de fundo da apresentação que Montaigne oferece de
sua própria filosofia. Ao justificar a escrita e a publicação de seus En-
saios, ele alega que não pretendeu haurir fama (a despeito da popula-
ridade que alcançaram), nem esperou, mesmo daqueles que o aprecia-
ram, uma particular capacidade de apreender adequadamente o sen-
tido do exercício do juízo neles contido:
[A] Assim, é uma espécie de exercício do qual espero muito pouco
de recomendação e louvor, e um modo de compor de pouco reno-
me. [C] E, pois, para quem escreveis? Os sçavans, a quem concerne
a erudição livresca, não conhecem outro valor que a doutrina e não
reconhecem outro procedimento em nossos espíritos que a erudição
e a arte… Quem ignora Aristóteles, segundo eles, ignora-se a si mesmo.
As almas comuns e populares não vêem a graça e o preço de um
discurso alto e livre. Ora, são as duas espécies que ocupam o mundo.
A terceira… das almas regradas e fortes por si mesmas é tão rara que
não possui nome nem destaque entre nós: esforçar-se por agradá-la é
quase perder de todo seu tempo… (II, 17, 656-657).
Reaparece aqui uma mesma classe de pseudo-sábios repetidamen-
te ridicularizados nos Ensaios, em retomada de um mote erasmiano e
agripano: philosophes cujas prescrições são de menor acordo com a
verdadeira filosofia do que o modo pelo qual o vulgo vive costumeira-
mente33. São presumidos filósofos que não se apercebem de quão pre-
cariamente empregam as próprias faculdades intelectuais e merecem
por isso ser ridicularizados — como Tales o foi por sua camareira, que
ria de sua cegueira para os fatos mais óbvios à sua volta, perdido em suas

32. Cf., por exemplo, I, 25, 134-135AC.


33. Ver II, 17, 660A.

235

10888_A figura do filosofo.p65 235 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

elucubrações sobre as causas34. Esse mesmo mote — a crítica à filosofia


tradicional, compreendida como elogio da memória e erudição livresca,
em detrimento do exercício natural das faculdades de conhecer — surge
com freqüência em textos do período e ecoa em conhecidas páginas do
Discurso do método35 . Mas ele provém, como vemos, do escárnio para-
doxal cético, tal como se apresenta nos textos menos freqüentados de
Corneille Agrippa, que também ironiza genericamente o que denomi-
na a “filosofia” segundo as formas institucionais que a teriam mumifi-
cado numa obediência irrefletida à autoridade dos antigos36.
Com Montaigne, a crítica da filosofia em voga parece projetar-se,
em certa medida, numa zona de indeterminação de seu estatuto filosó-
fico, em vista do modo como ele mesmo mapeia a história de filosofia:
ela é um escárnio da filosofia institucional, que se situa exteriormente
a ela, mas imantada pela intenção de alcançar um sentido da atividade
filosófica modelado no mundo antigo (tal como ele o observa) e vir-
tualmente desconhecido de seu tempo. A isso corresponde o modo
como o jogo literário dos autores paradoxais é investido de um novo
sentido: não apenas a condenação da fraqueza dos saberes instituídos
ganha a dimensão de uma crítica epistemológica, mas se associa ao
projeto de rearticulação coerente de uma postura filosófica que se pen-
sa indissociável de sua prática. A metáfora do exílio do filósofo cético
diante dos costumes (que usamos para caracterizar a interioridade como
o espaço reservado de sua reflexão, no capítulo III) pode aqui ser reto-
mada e mesmo radicalizada: Montaigne tende a situar sua reflexão cética
num horizonte conceitual em que a oposição antiga entre dogmatismo
e ceticismo se converteu, segundo ele mesmo, numa oposição entre
uma pseudofilosofia marcada por ergotismos e ausência de julgamento
e um gênero de atividade intelectual produzido por uma categoria de
almas que não têm mais nome nem lugar, sejam os dogmáticos (num
sentido mais nobre desse termo), sejam, num degrau acima de liberda-
de filosófica, os acadêmicos e pirrônicos.

34. Ver 538AC.


35. Ver Discurso do método, partes primeira e sexta, especialmente p. 70-71.
36. Ver De Vanitate Scientiarum, Preface au Lecteur, vi vof, vii fof e, adiante, 40fof.

236

10888_A figura do filosofo.p65 236 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

Essa situação parece não ser desprovida de conseqüências para o


modo como esse cético constata a relatividade de sua própria compreen-
são das coisas. De modo geral, o resultado da reflexão sobre o ceticismo
como um gênero filosófico é o de conduzi-lo à compreensão de que o
sentido que podem possuir as teses filosóficas é sempre dependente da
ação do juízo de cada filósofo. Julga ele que sua reflexão se isenta ple-
namente dos mesmos determinantes culturais que empobrecem o pen-
samento de seu tempo?37 Se assim fosse, talvez sua reflexão não deman-
dasse, como uma tarefa básica e prioritária, medir o alcance de seu
próprio juízo natural, como vimos no item anterior, continuamente
levada a cabo pelo cotejo de suas opiniões pessoais com os exemplos
antigos com os quais as pode comparar. Eis como os Ensaios conver-
tem-se, a um só tempo, no exame que seu autor realiza das razões lega-
das pelos filósofos mais diversos e de seu próprio juízo, e no aprendiza-
do de uma “nova” filosofia, que se trata, na verdade, de recriar à luz do
ceticismo antigo — segundo a liberdade do emprego das faculdades
intelectuais a que tal ceticismo potencialmente conduz. Esse aprendi-
zado da dúvida há de se fazer, segundo Montaigne, por meio da
freqüentação dos espíritos mais altos, que tanto podem fortificar o espí-
rito quanto pode enfraquecê-lo a freqüentação com os mais baixos e
doentios38. Ele não consiste, porém, numa mera retomada das “teses”
que teriam definido a postura de tais filósofos, pois seu sentido filosófi-
co reside, como vimos, no exercício intelectual efetivamente realizado
com base nas razões e nos exemplos legados, sejam eles quais forem.
Ganham aqui especial relevo as preconizações pedagógicas que
Montaigne nos oferece em “Da educação das crianças” (I, 26) e que,
a bem observar, refletem vários aspectos de sua atividade filosófica. É

37. Em I, 25, depois de examinar uma primeira explicação sobre a causa pela qual
os homens com mais saberes podem se tornar menos sábios (segundo a qual a ação do
espírito demasiado atarefado acaba se curvando pelo peso, explicação que ele imedia-
tamente rejeita; v. 134A), Montaigne avalia, detendo-se especialmente em seus con-
temporâneos, que isso depende da “má forma” como eles se ligam à ciência e da forma
de instrução vigente, voltada apenas “a nos mobiliar a cabeça de science”, sem se ocupar
da virtude e do juízo.
38. III, 8, 923B.

237

10888_A figura do filosofo.p65 237 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

fácil ouvir o eco dessas preconizações na pedagogia moderna, e por isso


mesmo importa evitar uma possível confusão entre seus elogios à supe-
rioridade do juízo, por oposição a um saber calcado na memória, e a
vulgarização posterior dessas reflexões, que as transformou nos chavões
que conhecemos39. Eis o que ele preconiza ao futuro preceptor do filho
de Mme. de Foix:
[A] Que ele lhe faça passar pelo crivo do juízo [estamine] e não aloje
nada na cabeça por simples autoridade e crédito: que os princípios
de Aristóteles não lhe sejam princípios mais do que os dos estóicos e
dos epicuristas. Que lhe seja proposta a diversidade dos juízos: ele
escolherá se puder, se não, que permaneça em dúvida… (I, 26, 160).
O principal benefício desse exercício do juízo parece ser, segundo
Montaigne, o de possibilitar a apreensão da precariedade e da fraqueza
do juízo humano ante o modo como a diversidade de leis e costumes
dos diversos povos e a diversidade de julgamentos a que as filosofias
podem submetê-los:
[A] Tanto de humores, de seitas, de julgamentos, de leis e de costu-
mes nos ensinam a julgar sadiamente os nossos, e ensinam o julga-
mento a reconhecer sua imperfeição e sua fraqueza natural, o que
não é um ligeiro aprendizado… (I, 26, 158).
Como compreender a diferença entre o “ensaio” desse aluno e o
seu próprio, uma vez que também ele pretende se pôr diante do hori-
zonte demarcado pela altura dos antigos filósofos (e, entre os muitos
outros que ele freqüenta, especial e privilegiadamente os céticos), em
busca de reinstaurar a liberdade do juízo por seu próprio exercício? A
passagem que acabamos de citar é mais uma que, tematizando indire-
tamente o problema do engajamento filosófico cético, pode bem pro-
vocar um estranhamento. Sabemos que a dúvida é o resultado a que,
segundo seu próprio juízo, esse exercício, quão melhor e mais rigorosa-

39. Embora, em meio a uma crítica às formas que assume a educação de seu tempo,
Montaigne afirme que “nós não trabalhamos senão para abastecer a memória, e deixa-
mos o entendimento e a consciência vazios…” (I, 25, 136AC), ele também explica,
noutra parte, que a memória é uma ferramenta fundamental para o bom uso do julga-
mento (II, 17, 649A). Trata-se de uma concepção de filosofia identificada com a plena
capacidade de exercitar as diversas faculdades espirituais humanas, em seu conjunto.

238

10888_A figura do filosofo.p65 238 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

mente se execute, deverá retornar. Porém aqui o resultado dubitativo,


em vez de ser apontado como uma meta da filosofia, surge como uma
espécie de prêmio de consolação: “se não [puder escolher], que perma-
neça em dúvida”. Se, de acordo com o juízo filosófico do próprio
Montaigne, a impossibilidade de escolher (entre as filosofias dogmáti-
cas disponíveis) não demonstra por si falta de capacidade intelectual,
mas antes o contrário, o modo como ele sugere que essa impossibilida-
de demonstre tal falta de capacidade parece ocultar aquela que, ao
menos segundo o juízo de Montaigne, seria a meta dessa atividade
(suspender o juízo). Por que, afinal, a meta cética está oculta?
A resposta nos parece ser esta: porque o essencial, a um só tempo,
do aprendizado filosófico que ele tem em vista e da prática filosófica
constitutiva do ceticismo é, justamente, o exercício do juízo. Conside-
rando as exigências filosóficas que o movem, tal como antes expostas,
podemos ver que não faria sentido pretender impingir a epokhé como
uma máxima a ser aceita por tal aluno meramente com base na auto-
ridade, se não fosse ele capaz de reconhecer por si mesmo a cogência
da reflexão que a tanto deveria conduzir. Fazê-lo seria suprimir aquilo
que sua reflexão sobre o ceticismo mostra-lhe ser mais relevante nessa
filosofia: a liberdade do uso do juízo (ainda que seu juízo lhe apresente
por antecipação os resultados a que tal liberdade deva conduzir, e que,
considerados isoladamente, dissociados do exercício intelectual que os
justifica, perdem sentido). De que valeria apresentar essa identidade
por meio de uma etiqueta mais óbvia (a despeito de tudo o que vimos)
se o próprio fato de se dizer “cético” — ou bem, se preferisse, “estóico”
ou “epicurista” — poderia surgir ao leitor como um primeiro convite
para a aceitação daquilo mesmo que o ceticismo, devidamente com-
preendido, lhe ensina ser um resultado, em grau maior ou menor, de
uma deficiência na capacidade de julgar (a saber, a aceitação de opi-
niões meramente com base na autoridade alheia)? Apresentar esse juí-
zo seria, portanto, ocultar ao leitor e ao aluno o aspecto principal da
atividade filosófica do gênero preconizado.
Mas esse ocultamento, como sabemos, não constitui um caso iso-
lado; ele se manifesta sistematicamente nas passagens em que Mon-
taigne alude à sua identidade filosófica. Essa passagem apenas aponta

239

10888_A figura do filosofo.p65 239 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

de modo mais claro suas causas, que certamente não se limitam aqui
aos perigos da plena exposição do juízo pessoal. Assim como o parado-
xo permite dissimular as dimensões inconvenientes das opiniões a ser
apresentadas, ele também exige do leitor que empregue por si mesmo
(para enfrentar os enigmas e decifrações que propõe) a capacidade de
julgar que, segundo essa concepção de filosofia, é a própria condição
de compreensão de seu sentido. Trata-se aqui de um aspecto peculiar
da estruturação argumentativa dos Ensaios, para o qual chamaram a
atenção alguns dos comentadores que os aproximaram da literatura do
paradoxo (mesmo que o tenham feito sem explorar suficientemente a
articulação entre essa estratégia argumentativa e o posicionamento fi-
losófico cético do qual ela se converte em instrumento)40. Podemos
agora ver que o paradoxo serve a Montaigne como instrumento para
conduzir o leitor à “boa” atividade filosófica, tal como a preconiza e
busca pôr em prática. Tal como vimos em outros exemplos, percebe-
mos que também aqui o paradoxo tende a se dissolver no momento em
que compreendemos que o engajamento cético sugerido por tais pre-
conizações não corresponde ao sentido usual, não-qualificado ou “dog-
mático”, do engajamento filosófico. Além das “teses” que o poderão
descrever, esse engajamento consiste prioritariamente na liberdade com
que o filósofo se dispõe a empregar seu juízo externamente a toda e
qualquer doutrina: no ensaio do juízo que Montaigne preconiza a seu
aluno ideal, e ao qual indiretamente convida seus leitores reais, à falta
de poderem reconhecer qual seria exatamente o seu juízo sobre a ques-

40. Trata-se de uma visão corrente acerca do papel do paradoxo na literatura do


Renascimento. Segundo BOWEN (1972), os escritores do século XVI se valem do para-
doxo, da ambigüidade, da antítese e do enigma porque buscam antes estimular o leitor,
estética e intelectualmente, do que “satisfazê-lo” (p. 4-5). MACGOWAN, por sua vez,
considera-o um meio de envolver o leitor na obra, conduzindo as pessoas a pensar por
meio do uso deliberado da obscuridade e pela variedade de estilo e conteúdo. “Aborda-
gens oblíquas, argumentos irresolvidos, discussões inconclusivas, e uma maneira hesi-
tante de escrever e pensar, tudo isso serve para envolver o leitor na obra…” (1974, p. 17,
v. tb. p. 68, 76). Ver igualmente MALLOCH, 1956, p. 192. No mais, mesmo outros
intérpretes que não se preocuparam diretamente com o tema do paradoxo parecem-nos
todavia bastante sensíveis a esse aspecto dos Ensaios, como, por exemplo, POUILLOUX,
1995, passim, especialmente p. 131 ss.

240

10888_A figura do filosofo.p65 240 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

tão examinada. Tal parece ser, afinal, o intuito do tratamento descon-


certante e inconclusivo de diversos temas examinados por Montaig-
ne41. Tampouco o auto-retrato que seus juízos compõem, ainda que
não se resumam a isso, deixa de assumir um sorriso irônico por meio
dessa estratégia retórica: talvez a imagem algo difusa de suas posições
pessoais não se deva exclusivamente à dificuldade da empresa autodes-
critiva, mas também ao propósito deliberado de fazer com que o leitor
julgue por si mesmo ante a perplexidade a que é freqüentemente con-
duzido quando busca, no detalhe, saber o que pensa Montaigne. Ao
examinar, por exemplo, o acidente da queda do cavalo, que quase lhe
tirara a vida, em “Da exercitação”, Montaigne conclui que “para se
familiarizar com a morte, basta dela se avizinhar”, mas não deixa de
sublinhar, concordando com Plínio, que “cada um é para si mesmo
uma boa escola [discipline] desde que tenha a capacidade de se obser-
var de perto. Esta não é a minha doutrina, é o meu estudo; e não é a
lição de outrem, mas a minha…” (II, 6, 377). Noutra passagem, ele
assim estende, implicitamente, sua desconfiança sobre os testemunhos
alheios àqueles que apresenta em sua obra:
[B] Eu, que sou um rei na matéria de que trato, e que não devo nada
a ninguém, nem por isso creio inteiramente em mim mesmo. Eu
lanço com freqüência alguns repentes de meu espírito, dos quais

41. Naturalmente isso não diz respeito a todas as opiniões que Montaigne emite em
seu texto. Todavia, diversos capítulos se apresentam como um conjunto de julgamen-
tos acerca de determinado problema sem que se possa, ao que nos parece, obter uma
resposta conclusiva acerca da posição exata do autor sobre o problema. Limitemo-nos
aqui a dois exemplos. O leitor poderia consultar o capítulo I, 31 (“Dos canibais”), em
busca de determinar exatamente o critério por ele aceito para a confiabilidade dos
relatos sobre os costumes diversos (se os testemunhos dos mais capazes tendem a ser
maquiados por sua intenção de conferir verossimilhança ao que contam, v. 205A, e, ao
mesmo tempo, os menos capazes, se permitem melhor que observemos onde emen-
dam a estória, nem sempre compreendem bem o que relatam, v. 214A); ou o capítulo
III, 12, em busca de saber exatamente qual seria a posição do autor sobre o que signi-
fica exatamente agir “conforme a natureza” (tal como ali interpreta o modo de proce-
der socrático), ante as diversas dimensões que se podem contrapor (o conhecimento, a
arte, o costume, a dissimulação) às várias interpretações que esse próprio termo adquire
ao longo do capítulo. Para uma análise da estrutura paradoxal desse capítulo, ver
O’BRIEN, 1989.

241

10888_A figura do filosofo.p65 241 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

desconfio, [C] e certas sutilezas verbais, das quais sacudo as orelhas,


[B] mas deixo-as correr ao acaso… (III, 8, 943).
Se assim for, isso também nos mostra que, embora afirme não es-
perar grande compreensão do exercício do juízo que pratica, nem por
isso Montaigne se encastela em sua filosofia, desprezando o que venham
a pensar os demais; ao contrário, ele busca, a um só tempo, transformar
seu livro, segundo as ferramentas de que dispõe, num meio de encami-
nhar o leitor à atividade do juízo que preconiza, e contornar os proble-
mas que poderiam decorrer de um questionamento inconseqüente de
aspectos dos costumes aceitos42. Igualmente, parece lícito dizer que, se
a perspectiva em que o ceticismo é retomado, na forma do “ensaio”
montaigniano, é a da busca da instauração da filosofia em um grau
superior àquele disponível segundo a prática contemporânea, embora
não o deforme filosoficamente, parece deslocar seu centro de gravida-
de, se assim podemos dizer, ao momento que precede e prepara a epokhé.
Mesmo que a suspensão seja o horizonte de tal exercício cético, como
veremos no próximo capítulo, a última passagem que analisamos mos-
tra que ela tende a se tornar secundária caso seja dissociada da ação do
juízo que a ela conduz — do ensaio, a bem dizer, que corresponderia
assim, mais precisamente, ao momento da zétesis, ou da quaestio. Di-
zer que o aluno “escolherá se puder, se não, que permaneça em dúvi-
da” ou que ele obterá a clareza acerca do seu próprio filosofar de modo
“impremeditado e fortuito” são apenas dois modos de destacar a impor-
tância central desse mesmo exercício, para o qual o filósofo desperta ao
compreender o que se oculta sob a idéia de que o valor da filosofia é
determinado pela verdade que aporta.
Como dissemos, a condenação da esterilidade da filosofia tradicio-
nal é uma espécie de lugar-comum da literatura do período sob in-

42. Noutra passagem já considerada, em que se põe igualmente a distinguir diversas


categorias de espíritos (a “ignorância abecedária” oposta à “ignorância doutoral”, entre
as quais ele se situa), Montaigne conjectura, porém, que os que apreciarão sua obra
serão exatamente os medianos. Mas isso, segundo Montaigne, não se deverá à capaci-
dade de compreendê-lo, mas sim, ao contrário, ao fato de que o entendimento do leitor
não há de se satisfazer plenamente com o que encontrar: “[A]… aqueles não entende-
riam o suficiente, estes entenderiam demais…” (I, 54, 313).

242

10888_A figura do filosofo.p65 242 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

fluência cética, e reaparecerá em Descartes43. Pensamos, porém, que


esta análise nos permite aprofundar a compreensão desse parentesco.
Indo além do paralelo que propusemos no final do terceiro capítulo
(quanto ao estatuto “prático” da aceitação das crenças que se pode obter,
em face da impossibilidade de reconhecer a verdade ou de seu desco-
nhecimento apenas provisório), diríamos agora que o modo como Mon-
taigne vincula a compreensão da filosofia a uma ação concreta do juí-
zo, capaz de conferir sentido preciso às fórmulas que a representam e
traduzem, anuncia uma preocupação que será igualmente central para
Descartes, a despeito da divergência de resultados (posto que Descartes
pretende formular uma metafísica). Para ambos, será de grande impor-
tância que o texto se valha de estratégias para conduzir o pensamento
a se pôr adequadamente em marcha e reconhecer em seu movimento
o sentido particular que se pode conferir aos conceitos (também no
caso de Descartes, trata-se de uma estratégia dubitativa). O exemplo
mais claro desse procedimento na filosofia cartesiana se apresenta nas
Meditações. Ao longo do exame da primeira certeza, confrontando as
crenças que anteriormente possuía acerca de sua natureza às razões de
duvidar ainda vigentes, da qual extraiu a certeza de sua existência, o
sujeito da investigação acaba por conferir sentido filosoficamente pre-
ciso ao conhecimento de sua existência como uma coisa pensante44.
Descartes emprega uma dúvida filosófica metodologicamente, para
direcionar o pensamento na via de uma reflexão criteriosa, de tal modo
que sua supressão vem de par com a compreensão rigorosa de como as
verdades descobertas segundo a ordem das razões podem revogá-la.
Montaigne, por sua vez, também se serve metodologicamente do para-
doxo, para conduzir não exatamente à verdade, mas à dúvida cética em
seu sentido filosófico próprio, encaminhando o juízo numa investiga-

43. Segundo Rodis LEWIS (1999), é com Montaigne que Descartes aprende a se
opor às pretensões filosóficas da lógica silogística e da retórica (v. p. 82-83).
44. Ver Méditations, II, ed. Beyssade, p. 77; Abregé de six méditations suivantes, p. 49
da mesma edição. Importa igualmente notar que Descartes é sensível ao fato de que o
espírito deve ser exercitado a buscar aquilo que já foi encontrado por outros para apren-
der a reconhecer filosoficamente as evidências filosóficas, tal como afirma no comen-
tário da décima das Regras para a direção do espírito.

243

10888_A figura do filosofo.p65 243 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ção em cujo horizonte se projeta a perspectiva do reconhecimento da


incapacidade de escolher entre as filosofias que prometem a verdade.
Trata-se, em ambos os casos, de pretender pôr adequadamente em ação
as faculdades humanas de conhecer, no sentido de uma investigação
filosoficamente “nova”, seja em sentido absoluto, seja relativamente ao
modo como a verdadeira “filosofia” não mais tem nome, em lugar da-
quilo que se chama, impropriamente, de filosofia.
Eis, em suma, como a noção de juízo passa a constituir uma espé-
cie de eixo da investigação cética de Montaigne: sua ação determina
não apenas a oposição entre ceticismo e dogmatismo, mas a própria
oposição entre o filosofar, em sentido próprio, e um simulacro dessa
atividade intelectual pela qual os sçavans crêem filosofar. Importa, as-
sim, proceder a uma investigação dessa faculdade, que Montaigne con-
cebe de modo diverso daquele pelo qual Descartes a subordina a uma
razão naturalmente dotada do poder de conhecer a verdade, mas tam-
bém diverso, talvez, daquele como o conceberam os antigos pirrônicos.

5.3. O filósofo e as abelhas


O juízo não é pensado por Montaigne como o simples ato de negar
ou afirmar uma proposição, mas como uma faculdade mais complexa,
na qual se refletem as mesmas exigências filosóficas céticas, deixando
entrever, contudo, uma imagem própria da subjetividade. Um capítulo
fundamental para a compreensão do sentido que essa noção adquire nos
Ensaios é ainda “Da educação das crianças” — no qual, a despeito das
críticas que o vimos fazer à filosofia de seu tempo, ele sublinha o papel
central dessa disciplina na formação dos juízos e dos comportamentos:
[A] Na nossa [escola], um escritório, um jardim, a mesa e a cama, a
solidão e a companhia, a manhã e a tarde, todas as horas serão para
ele uma, todos os lugares lhe serão de estudo: pois a filosofia que,
como formadora de juízos e de costumes, será a sua principal lição,
tem esse privilégio de se imiscuir em toda parte… (I, 26, 164).
Já vimos que a atividade cética de Montaigne volta-se à investigação
do alcance de seu próprio juízo. Mas o que significa, para ele, a “forma-
ção do juízo”? Observemos, nessa passagem, como a filosofia é associada

244

10888_A figura do filosofo.p65 244 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

igualmente ao juízo e às ações. Por certo, a moral possui um privilégio


temático no conjunto de estudos que a filosofia, a seu ver, deve compor.
Contudo, trata-se aqui de algo mais amplo, a saber, da exigência de uma
articulação entre pensamento e ação. Tal idéia relaciona-se, mais uma
vez, à concepção geral de filosofia que Montaigne apresenta desde os
capítulos filosóficos mais antigos, escritos sob o estímulo das cartas de
Sêneca. Quando, em I, 26, afirma que a filosofia deve ser posta em prá-
tica, testada, assimilada e traduzida pelo candidato a admiti-la, nos ter-
mos de sua experiência pessoal concreta, ele retoma exigências formula-
das por Sêneca, segundo quem não se deve filosofar apenas nas palavras,
mas também nas ações. Tampouco aqui se trata apenas de privilegiar os
conteúdos da filosofia moral, mas de sustentar que a presença da filosofia
(seja qual for ela) deverá ser averiguada mediante seu efeito ao transfor-
mar a ação daquele que a pratica45. Igualmente podemos encontrar, nas
Epístolas, outra idéia central que ressoa nos Ensaios, a saber, a afirmação
da liberdade de aderir àquilo que a razão individualmente mostra ser
aceitável, por contraposição ao que é ditado pela autoridade de outrem
(ou pela força do costume, segundo a voz da maioria)46.
Pensamos que seria um exagero e uma imprecisão dizer que isso
representa uma “influência estóica” permanente nos Ensaios, mesmo
após o contato com o ceticismo. Tais reflexões desenvolvem antes uma
tendência antidogmática, já perceptível no próprio Sêneca, numa dire-
ção diversa, posto que no caso de Montaigne, uma vez articulada à refle-
xão cética, ela culminará na plena dissolução, por assim dizer, de seu
substrato “dogmático”47. Sêneca se apresenta como um “estóico in-
teiramente livre”, disposto a submeter todo e qualquer ponto da sabedo-
ria antiga ao crivo de seu juízo pessoal, valendo-se continuamente de
máximas de Epicuro ao se endereçar a Lucílio. Porém, a partir de seu
contato com o ceticismo, Montaigne passa a se opor frontalmente aos

45. Cf. Sêneca, Epist. I, xx, 132 et. ss.; Ensaios, I, 26, 158-159A, 168AC; I, 25, 137A.
46. Ver ibid., I, xxix, 163; xxxiii, 183; e, especialmente, I, xxi, 115: “… deve-se filo-
sofar como se age no senado: quando não partilho de um ponto do senador, peço a
divisão e só voto no que aprovo”.
47. Para uma análise mais detalhada desse ponto, ver EVA, 1995. Retomaremos esse
tema no capítulo VII.

245

10888_A figura do filosofo.p65 245 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

conteúdos filosóficos da moral estóica, pelos quais as reflexões de Sêne-


ca freqüentemente se pautam, e que, nos capítulos mais antigos dos
Ensaios, como I, 20, ainda articulam sua concepção de filosofia48. A partir
da época da redação da “Apologia”, trata-se sobretudo de recusar a pre-
tensão filosófica (igualmente central de uma perspectiva estóica) de obter,
por meio da razão, um conjunto definido de preceitos que, por sua ver-
dade, devem servir como diretriz para a vida filosófica. Posteriormente
ao contato com o ceticismo, essa liberdade antidogmática transforma-se,
portanto, numa desconfiança cética que abarca tanto a science acerca do
que nos é longínquo e desconhecido, como os epiciclos planetários,
quanto, ainda mais enfaticamente, as ficções filosóficas sobre a alma
humana ou as preconizações impraticáveis de suas morais dogmáticas,
meros jogos de palavras que dão as costas para o mundo49. De fato, o
interesse de Montaigne pela reflexão de Sêneca pode bem ter contribuí-
do para posteriormente realçar o tema cético da liberdade argumentati-
va, tal como se rearticulará em sua prática de um filosofar livre da pre-
tensão de afirmar alguma verdade. Mas esse tema, a despeito de sua
origem, ganha uma identidade filosófica precisa quando passa a ser re-
conhecido como definidor, em particular, do filosofar cético. No mes-
mo passo em que o dogmatismo se revela uma forma de cerceamento
do juízo (posto que sempre se baseia num intuito de defender a veraci-
dade de teses a rigor insustentáveis), a idéia de que o “conhecimento”
propiciado pela filosofia, seja qual for, deve sempre ser submetido à expe-
riência do juízo individual tende a se identificar à própria concepção do
ensaio cético, concebido como a realização dessa prática liberada da

48. Um motivo recorrente da crítica de Montaigne ao estoicismo, de uma perspec-


tiva cética, é o de observar que suas preconizações morais contra a dor, por exemplo, são
artificiais ou simplesmente “cerimoniosas” (v. II, 37, 760-761A); segue-se daí uma crí-
tica aos conselhos da “filosofia” (estóica, em particular) como superficiais e inadequa-
dos à vida e aos fatos em questão (no caso, os males físicos), contrapostos a uma descri-
ção pessoal de Montaigne sobre o modo como pessoalmente experimentou o sofrimen-
to ocasionado pela pedra em seus rins. Por vezes, Montaigne critica de modo geral a
impossibilidade de pôr em prática as “idéias elevadas” da filosofia (v., p. ex., II, 20, 675)
e afirma que o costume tem um poder maior de conformar a vida das pessoas do que
as idéias filosóficas o têm de conformar a alma dos sábios (v. I, 23, 114).
49. Ver 537A; 541A ss.; III, 13, 1073B.

246

10888_A figura do filosofo.p65 246 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

pretensão de “reger, ordenar e estabelecer” a verdade, que acaba sempre


por falsear o livre emprego de nossas faculdades cognitivas.
Um aspecto decisivo dessa transformação filosófica reside no sen-
tido que adquire a própria noção de juízo mediante sua articulação
com o filosofar cético. Montaigne afirma, no mesmo ensaio, “Da edu-
cação das crianças”, que a experiência individual do contato com os
diversos discursos morais deverá sobretudo ser aferida no modo como a
filosofia for apreendida, segundo a versatilidade com que o aluno for
capaz de empregar uma mesma idéia filosófica em circunstâncias e
sentidos inusitados. O seu exercício filosófico diante das razões está
intrinsecamente associado ao sentido em que uma determinada idéia
pode ser assimilada pelo juízo:
[A] Que ele [o seu preceptor] não o interrogue apenas acerca das
palavras de sua lição, mas do sentido e da substância, e que ele jul-
gue o proveito que ele terá feito, não pelo testemunho de sua memó-
ria, mas de sua vida. Que ele o faça dispor aquilo que acaba de apren-
der em cem faces, e acomodar a tantos quantos assuntos diferentes,
para ver se ele ainda o tem bem com ele, e o fez bem seu… É teste-
munho de má digestão regurgitar a carne como ela foi engolida. O
estômago não fez a sua operação se ele não alterou a forma e a feição
daquilo que lhe deram para digerir… (I, 26, 151).
Como vimos, a reconstrução do ceticismo por Montaigne não ape-
nas enfatiza a zétesis, mas conduz a discernir um papel central na di-
mensão ativa do juízo ante as razões com que se depara50. Nisso nos
parece destacável uma particularidade de sua compreensão do ceticis-
mo, pela qual reencontramos, por um ângulo diverso, a mesma distin-
ção já considerada entre os domínios da “verdade” e da “utilidade”. Pois
tal exercício compreende o posicionamento do juízo diante das diversas
razões que podem a ele se apresentar, e que, no entanto, não mais inte-
ressam como formulações de uma verdade definitivamente descoberta.
Porém, dada a maneira nítida com que Montaigne opõe “a ciência e a
verdade”, que se poderiam talvez alojar em nós sem o uso do juízo, e a
ação dessa faculdade que, por sua vez, tem no reconhecimento da igno-

50. Como observou WALTON, 1988, p. 93.

247

10888_A figura do filosofo.p65 247 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

rância um de seus mais belos testemunhos51, tais razões importarão, ain-


da que difiram em seu peso individual, como um meio de “formar o
juízo” do aluno de filosofia que se dispuser a tentar “incorporá-las”, numa
atividade que Montaigne entende ser de todo diversa do modo como
usualmente eles são conduzidos a assimilar “discursos universais”52. Tais
razões podem ser objeto de um esforço do entendimento ou colaborar
para o desenvolvimento, por meio da visitação segundo perspectivas fi-
losóficas potencialmente conflitantes, de uma maleabilidade pela qual a
alma se torna capaz de adaptar-se a circunstâncias diversas53. Esse, em
particular, é um dos aspectos pelos quais essa espécie de visitação às
razões das almas mais elevadas torna-se importante. Eis como Montaig-
ne desenvolve a mesma metáfora digestiva que acabamos de considerar:
[C] Quem segue um outro, não segue nada. Ele nada encontra, pois
nada busca… [A] É preciso que ele se embeba de seus humores, não
que ele aprenda seus preceitos. E que ele esqueça de onde os toma,
ousadamente, se assim o quiser, mas que ele saiba deles se apropriar.
A verdade e a razão são comuns a todos, tanto aos que dizem primei-
ro quanto aos que dizem depois. [C] Não é mais segundo Platão do
que segundo eu mesmo, posto que ele e eu entendemos e vemos
igualmente. [A] As abelhas pinçam aqui e ali as flores, mas delas
fazem depois o mel, que é inteiramente delas, não é mais tomilho
nem manjerona; assim, ele transformará e fundirá as peças que to-
mar de empréstimo de outrem, para delas fazer uma obra inteira-
mente sua, a saber, seu juízo. Sua educação, seu trabalho e seu estu-
do não visam senão formá-lo… (I, 26, 151-152).
O tratamento dessa metáfora, corrente na literatura renascentista54,
converte-se aqui num exemplo daquilo mesmo que, por seu intermé-
dio, Montaigne está propondo (pois também ele dela pretenderia ex-
trair aqui um “mel” particular). Ele reside, precisamente, em sua con-

51. Ver II, 10, 409A.


52. I, 26, 146C.
53. Ver ibid., 166-167AC; III, 3, 821B.
54. Villey ressalta esse ponto, identificando como possíveis fontes da metáfora da
abelha, em I, 26, Plutarco, Horácio ou Castiglione (v. Les Essais, 1243). GLUCKER
(1988, p. 63), tal como nos alertou Roberto Bolzani Filho, vale-se dessa metáfora para

248

10888_A figura do filosofo.p65 248 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

cepção de que o processo pelo qual o juízo se apropria de uma idéia


como sua é freqüentemente um processo de transformação, tanto da
idéia apropriada quanto do próprio juízo. Eis aqui mais um desdobra-
mento de como, nesse exercício cético do juízo, enfatiza-se sua dimen-
são radicalmente individual e subjetiva.
Como vimos, o juízo é a faculdade ou capacidade pela qual o su-
jeito pode se apropriar das opiniões de outrem, tornando-as suas. Nesse
sentido — diversamente do que ocorrerá na filosofia cartesiana, por
exemplo — ele tende a se identificar com o que Montaigne denomina
o entendimento (l’entendement), o filtro (l’estamine) pelo qual se pode
aceitar determinada idéia, fazendo-a sua: “Não é mais segundo Platão
do que segundo eu mesmo, posto que ele e eu entendemos [entendons]
e vemos igualmente…”. Em certas passagens, tal ação do juízo é iden-
tificada à experiência concreta pela qual temos contato direto com uma
idéia que pensamos (razão pela qual Montaigne se recusa, mais uma
vez, a identificar sua filosofia ao conjunto de razões que pode compilar
em seu livro)55. Mas o papel delegado ao juízo é ainda mais amplo:
além do ato particular pelo qual se emite um julgamento, ele com-
preende igualmente uma capacidade subjetiva de compreensão, uma
potência que é posta em ação a cada vez que se julga, um discernimen-
to que resulta da própria experiência em julgar (sendo a “experiência”
um outro conceito-chave dos Ensaios com o qual o juízo é freqüente-
mente relacionado). Por vezes, sua ação designa uma capacidade de
discernir as causas dos eventos, a fim de obter um conhecimento capaz
de se refletir no aperfeiçoamento de determinada prática:
[B]… [O] fruto da experiência de um cirurgião não é a história de
suas práticas, e a lembrança de ter curado quatro pestilentos e três
gotosos, se ele não sabe desse uso tirar de que formar seu juízo, e não
nos sabe fazer perceber que ele tenha se tornado mais sábio no
emprego de sua arte… (III, 8, 931; itálicos nossos).

ilustrar o modo como, segundo Cícero, a postura cética acadêmica se associaria à ad-
missão “eclética” de opiniões filosóficas diversas como probabile. Infelizmente, Glucker
não indica a fonte de sua metáfora.
55. Ver I, 25, 136C.

249

10888_A figura do filosofo.p65 249 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

A experiência, associada ao desenvolvimento de uma capacidade de


bem julgar, é igualmente apresentada por Montaigne como o critério
pelo qual ele busca formar suas opiniões56. Não é num sentido intei-
ramente diverso que cabe ao juízo, além da aprendizagem dos meros
preceitos, imbuir-se, como diz ele, dos humeurs dos autores que freqüen-
ta: por seu intermédio se podem considerar os modos particulares pelo
quais tais autores refletem sobre razões e exemplos diversos como mode-
los que o podem capacitar a pesar aqueles que se apresentarem a ele57.
Mas, para Montaigne, tal contato se converte num meio de submeter
esse órgão de nosso conhecimento a um determinado exercício: ou bem,
sob o alento dos espíritos de maior estatura, ele pode ser emulado e se
desenvolver, ou bem pode também involuir ou definhar, tornando-se
“servil e covarde”, escravizando-se aos costumes. Por certo, em todos os
homens o emprego de tal faculdade encontra alguma aptidão, assim
como algum limite natural. Observada por seu olhar cético, porém, ela
não corresponde a um poder tacitamente dado, no mesmo sentido e da
mesma forma, a todos os homens, mas sim a algo que, para se manifestar
e se desenvolver, carece sobretudo de exercício e de emprego — como
se se tratasse de uma habilidade específica, ou mesmo da atividade de
um órgão físico, tal como Montaigne a ela metaforicamente alude58.

56. A despeito de suas muitas críticas e ironias para com os médicos (em sua maior
parte tomadas de Agrippa), Montaigne oferece-nos a seguinte analogia entre os médicos
e sua maneira de ver: “[A] A medicina se forma por exemplos e experiências, [assim]
também se faz minha opinião…” (II, 37, 764). LA CHARITÉ observa ainda que um dos
sentidos freqüentes do termo “jugement” nos autores do século XVI é o de designar uma
qualidade pessoal, por meio de uma demonstração de gosto ou de astúcia em apreciar
o valor de algo que ainda não está devidamente demonstrado (ibid., p. 5-6).
57. Ver, por exemplo, a comparação entre Sêneca e Plutarco, em III, 12, 1040BC,
segundo o modo como agem sobre o juízo: o primeiro, mais vivo, o arrebata; o segundo,
mais assentado e informativo, o ganha. Não parece estar em jogo, nessa confrontação,
saber qual das opiniões desses filósofos corresponde à verdade. Ademais — e mesmo
que Montaigne confessadamente o prefira, a essa altura —, o modo como o estilo de
Plutarco é remetido à ação do entendimento não obsta o interesse pela forma senecana
de julgar e por seu efeito em nosso juízo.
58. Ver I, 26, 152 AC: Montaigne compara o emprego do julgamento à prática de
um instrumento musical, que não se pode bem tocar sem exercício. Para tanto, segundo
Montaigne, qualquer objeto pode ser adequado: a malícia de um pajem, a tolice de um

250

10888_A figura do filosofo.p65 250 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

Assim, essa concepção de juízo parece emergir como um resultado


da mesma imagem naturalizada do homem produzida pela perspectiva
cética, vista aqui de outro ângulo. Com efeito, a mesma metáfora apiá-
ria da formação do juízo descreve o imbuir-se dos “humores” como
uma espécie de “transformação” e “fusão das peças” emprestadas de
outrem, produzindo algo diverso. De modo talvez análogo àquele pelo
qual fisicamente os homens manifestam suas diferenças, também a ação
do juízo tem a propriedade de produzir um “mel próprio”, isto é, de
manifestar um aspecto particular daquele que julga. De tal modo que
as opiniões que poderiam passar por idênticas, vistas com mais cuidado
à luz da particularidade do juízo pelo qual emergem, acabam por ma-
nifestar sua “mais universal qualidade” — tal como ele a descreve nes-
ta passagem do ensaio “Da semelhança dos filhos aos pais” (II, 37),
concluindo sua crítica aos médicos:
[A] Aqueles que amam a nossa medicina podem também ter suas
próprias considerações boas, grandes e fortes. Eu não odeio as fan-
tasias contrárias às minhas. Falta tanto para que eu me irrite ao ver
a discordância de meus julgamentos com relação àqueles de ou-
trem, ou que eu me torne incompatível com a sociedade dos ho-
mens por serem de outro sentimento e partido que o meu, quanto,
sendo a variedade a mais geral forma que a natureza seguiu, [C] e
ainda mais nos espíritos que nos corpos, posto que são de substân-
cia mais maleável e suscetível de mais formas, [A] eu acho muito
mais raro ver concordarem nossos humores e desígnios. E não houve
nunca no mundo duas opiniões semelhantes, não mais do que dois
pêlos ou dois grãos. Sua qualidade mais universal é a diversidade
(II, 37, 786)59.
Não se trata, nessa passagem, de propor nenhuma tese ontológica
sobre a diversidade intrínseca do mundo da experiência humana, mas
sim de uma fórmula estreitamente ligada à sua concepção de ceticis-

criado ou uma conversação de mesa. Alguns comentários interessantes desses aspectos


encontram-se em LA CHARITÉ, 1968, p. 15-17, 27.
59. Entre outras várias ocasiões em que a mesma idéia é retomada, ver, por exemplo,
III, 8, 943: “[B] Os espíritos, mesmo [quando] semelhantes em força, não são sempre
semelhantes no seu emprego [application] e no gosto…”.

251

10888_A figura do filosofo.p65 251 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mo como exercício do juízo60. Tampouco se trata de qualquer elogio


da idiossincrasia. A particularidade manifesta não é por si mesma cri-
tério para aferir a presença do juízo; ela é sobretudo uma conseqüên-
cia problemática, como veremos, da forma como cada juízo mira a
verdade. O reconhecimento de que sua ação acaba sempre por aflorar
uma perspectiva singular pode, por sua vez, ser relacionado ao sentido
autocrítico do exercício filosófico realizado pelos ensaios de Montaig-
ne, prioritariamente voltados à avaliação do alcance de seu juízo pes-
soal. Tal relação ajuda, por exemplo, a compreender as motivações da
tolerância montaigniana que se manifesta na passagem citada na pági-
na anterior. Se Montaigne não se irrita com as fantasias alheias, sem
com isso admitir que elas sejam mais aceitáveis que as dele, isso de-
pende não apenas do reconhecimento de que também as suas fanta-
sias não pretendem representar um parâmetro absoluto de conheci-
mento das coisas, mas também da importância filosófica que a idéia
de formação do juízo adquire (por oposição à pretensão de possuir a
verdade). Não é, como diz ele, o reconhecimento das limitações de
seu juízo uma prova singular e especial da presença de juízo? Assim,
a diversidade opinativa pode ser aceita como uma conseqüência mais
“realista”, conforme aos fatos, da forma sempre limitada como nossas
faculdades cognitivas pretendem se acercar da verdade, uma conse-
qüência que oferece ocasião privilegiada para esse exercício autocríti-
co e para a aferição de seu próprio juízo. Tudo se passa como se cou-
besse ao cético montaigniano reconhecer que está inserido na diversi-
dade opinativa que por si mesma a ação do juízo produz, ainda que ele
tome consciência desse fato num sentido muito diverso daquele pelo
qual o observam os dogmáticos. Ao modo como a despreocupação dos
céticos em asseverar a verdade pode conferir à sua discordância, aos

60. Em III, 13, 1070B, por exemplo, por meio de considerações análogas, Montaig-
ne contrapõe a inteira dessemelhança dos eventos e das formas ao fato de que nenhum
difere inteiramente do outro, para concluir que também a relação que se extrai da
experiência é sempre falha e imperfeita. Extrair daí uma tese ontológica é apoiar-se
numa afirmação parcial, que força o leitor a assumir pressupostos filosóficos que não são
seus: tal afirmação é, ao contrário, parte de uma reflexão epistemológica destinada a
estender o âmbito do reconhecimento da incapacidade de obtenção da verdade.

252

10888_A figura do filosofo.p65 252 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

olhos de Montaigne, um caráter próprio parece corresponder uma com-


preensão diversa do modo como a diversidade de nossos juízos natu-
ralmente se manifesta (por oposição à pretensão de obter um conhe-
cimento absoluto, mesmo no que tange à formulação de nossa incapa-
cidade de obtê-lo).
Essas considerações nos convidam novamente a observar que as
relações entre esse ceticismo e a filosofia cartesiana são mais estreitas e
complexas do que poderiam parecer à primeira vista. Parece possível
reconhecer, em Descartes, alguns ecos dessa mesma concepção de fi-
losofia associada à formação do juízo61. Aproxima-se do sentido que
Montaigne confere ao juízo o modo como, no Discurso do método,
Descartes inclui o juízo entre as diversas faculdades do espírito — por-
quanto correspondem a uma instância naturalmente diversa entre os
homens, capaz de se desenvolver ou involuir como se fora uma capa-
cidade física. Porém, Descartes opõe tais faculdades à razão que, iden-
tificada ao “bom senso”, se apresentaria inteira e igualmente em cada
um dos homens62. Nas Meditações, posteriormente, ele se refere ao eu
pensante, cujo conhecimento deriva do cogito, igualmente como uma
“razão” ou um “entendimento”63. Montaigne, como vimos, não apenas
tende a identificar entendimento e juízo (por oposição à razão), mas
também a identificar o próprio jugement com a consciência que a alma
tem de si mesma — nessa medida, com o próprio “eu”. Após estabele-

61. A idéia de que a experiência de contato com outros povos, a freqüentação do


“grande livro do mundo”, que Descartes encontra em Montaigne, é deliberadamente
posta em prática pelo primeiro, como ele mesmo indica no Discurso do método (cf.
DM, primeira parte, e I, 26, 158). Ver, sobre esse ponto, RODIS-LEWIS, 1999, p. 79.
Numa carta a Martin Schoock, Descartes afirma desejar que sua filosofia fosse assimi-
lada mediante uma leitura atenta e reiterada, a fim de se converter na própria seiva (AT
VIII-2, 41, apud FAYE, 1999, p. 16) Faye, por sua vez, busca aproximar os dois autores
mostrando como Descartes recusa-se a atribuir ao homem a prerrogativa, corrente na
cosmologia dogmática renascentista, de ser a mais perfeita das criaturas da natureza
(Carta a Elizabeth, 15 sept. 1645, apud ibid., p. 20).
62. Ver DM, p. 1-2.
63. Ver Meditações II, ed. Beyssade, 76-77, AT VII 27: “Eu não admito nada agora
que não seja necessariamente verdadeiro: eu não sou, portanto, senão uma coisa que
pensa, a saber, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja sig-
nificação me era anteriormente desconhecida…”.

253

10888_A figura do filosofo.p65 253 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

cer a analogia entre o mel das abelhas e a formação do julgamento


como fruto dos estudos, Montaigne prossegue:
[A] É o entendimento, dizia Epicarmo, que vê e que ouve, é o enten-
dimento que tudo aproveita e tudo dispõe, que age, que domina e
que reina: todas as outras coisas são cegas, surdas e sem alma. É cer-
to, porém, que nós o tornamos servil e covarde por não lhe deixarmos
a liberdade de nada fazer por si. Quem alguma vez pergunta ao seu
discípulo o que lhe parece [B] a retórica ou a gramática [A], esta ou
aquela sentença de Cícero? Nos pregam-nas todas emplumadas na
memória, como oráculos onde as letras e as sílabas são da substância
da coisa… (I, 26, 152)64.
Assim, à adoção de uma postura cética ou à sua rejeição, nessas
filosofias, parece espelhar-se em formas diversas de conceitualizar e
compreender a relação entre as faculdades da alma (cuja diversidade
tem certamente como fulcro a admissão cartesiana da razão como fa-
culdade de conhecimento objetivo). Mais ainda, em decorrência disso,
em ambas as filosofias parecem projetar-se, na mesma medida, concep-
ções bastante diversas da “subjetividade” — se por esse termo for lícito
nos referirmos genericamente ao “eu” considerado como agente da
cognição, no sentido em que isso se faz possível para cada um desses
filósofos. Na antropologia cartesiana, tanto o que corresponde às di-
mensões perfectíveis do homem quanto o que se relaciona ao modo
como cada qual se apresenta diversamente (seja no nível de sua cons-
tituição corporal, seja no que tange àquilo a que ele se refere como o
espírito) parecem ser remetidos a um plano secundário, por oposição
à instância que, a um só tempo, garante a possibilidade de conheci-
mento objetivo do mundo e a existência de um sentido no qual se pode
absolutamente reconhecer uma identidade humana para todo e qual-
quer homem. Na filosofia de Montaigne, a consciência de si, pela qual
cada um se reconhece como “eu”, e a capacidade de compreensão e

64. Embora atribua a opinião a Epicarmo, Montaigne parece apresentá-la para ates-
tar concordância pessoal. Montaigne reserva à palavra “conscience” sobretudo o sentido
moral (tema central, aliás, do ensaio II, 5), mas “jugement” também surge igualmente
com essa conotação (v. LA CHARITÉ, 1968, p. 24).

254

10888_A figura do filosofo.p65 254 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

assimilação das razões e opiniões alheias, capaz de ser mais ou menos


desenvolvida segundo os homens, apresentam-se solidariamente na
mesma faculdade, sem remeter a uma instância racional anterior ca-
paz de garantir a verdade65. Por isso, em vez de fundar-se sobre a idéia
prévia de uma identidade essencial de cada sujeito do conhecimento
humano, a reflexão montaigniana modela, com base no diagnóstico
cético de nossa incapacidade de reconhecer a verdade, uma concep-
ção de homem que enfatiza o modo como a singularidade de cada
indivíduo se manifesta, de maneira aparentemente irredutível, naquilo
que opõe suas ações cognitivas às dos demais. O homem aparece assim
como um ser multiforme e transformável, capaz de abarcar, segundo
sua natureza, uma variedade mais ampla do que aquela que tende a ser
imediatamente capaz de reconhecer:
[A] Plutarco diz em algum lugar que não encontra distância tão
grande de um animal a outro como de um homem a outro. Ele fala
da capacidade da alma e das qualidades internas. Na verdade, eu
acho tão distante Epaminondas, tal como o imagino, deste outro
tal que conheço como capaz, por assim dizer, do senso comum,
que eu replicaria de bom grado a Plutarco e diria que há mais dis-
tância de um homem a tal outro do que há de distância de um tal
homem a tal animal [C] hem vir viro quid praestat. E que há tantos
graus de espíritos e tão inumeráveis quanto há de braças daqui ao
céu (I, 42, 258-259).
Se identidade entre os homens há, ela tende a se projetar numa
espécie de fundo natural situado aquém de nossas capacidades cogni-
tivas, e incapaz de ser abarcado, por meio destas, senão de modo sem-
pre limitado e imperfeito.

65. FAYE sustenta que a filosofia cartesiana é a culminação da transformação renas-


centista da idéia de perfectio hominis, presente na filosofia de Montaigne, de que o
aperfeiçoamento humano reside no bom uso das faculdades cognitivas (v. 1999, p. 19).
RODIS-LEWIS, por sua vez, reconhece que a mesma idéia da racionalidade humana
possui incidências bastante diversas em Montaigne, que acentua sua particularidade, e
Descartes, que confere à razão um instrumento de discriminação da verdade por meio
do método, por meio de um reconhecimento prévio universal da capacidade de reco-
nhecê-la por tal faculdade (1999, p. 83).

255

10888_A figura do filosofo.p65 255 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Compreende-se assim, ao mesmo tempo, que à adoção de uma pers-


pectiva filosófica cética corresponde uma redefinição, bem como uma
crescente importância da noção de juízo nos Ensaios. Quando Mon-
taigne filosofa à luz do otimismo racionalista estóico, nos ensaios mais
antigos, não parece haver especial ocasião de distinguir juízo e razão.
Embora mencionada discretamente, a expressão “jugement” já ocupa
um papel relevante em capítulos como I, 14. No entanto, a essa altura
parece imperar a crença de que à diversidade dos juízos humanos cor-
respondem meras interferências na atividade de um juízo que seria na-
turalmente capaz de propiciar uma science certaine. No mesmo passo
em que o juízo passa posteriormente a ocupar um “lugar magistral” para
o próprio autor (ainda que pelo reconhecimento de seus limites para
agir sobre seus desejos e afetos, bem como de sua relativa independên-
cia diante deles)66, cresce a tendência a observar a razão sob desconfian-
ça, como um instrumento cognitivo imperfeito e ilusionista. Isso não
torna, como veremos, a atividade do juízo “irracional” nem o dota do
poder autônomo de reconhecer verdades; antes, isso tende a transformá-
lo na faculdade pela qual se torna possível um posicionamento crítico
diante da atividade demonstrativa da razão. Pondo-a em perspectiva, ele
observa seu limite cognitivo e pode aprender algo dessa experiência.
Em suma, essa distinção entre juízo e razão, tal como se opera na
reflexão de Montaigne, tem relação direta com o significado particular
que ganha o “ensaio” quando passa a traduzir a zétesis e que não se
apresenta nas preconizações estóicas de Sêneca, nem tampouco, ao que
nos parece, nas considerações um tanto lacônicas de Sexto. O sentido
dessa investigação, embora corresponda em parte à repetição de um
mesmo trajeto investigativo sabidamente paradoxal em busca da verda-
de — posto que reconhecidamente seu advento não se torna mais pal-
pável pelo avanço dessa investigação —, deixa de constituir, nessa mes-
ma medida, uma tarefa filosófica estéril. Pois o ensaio, em sua particu-
laridade, ganha sentido como meio de desenvolvimento, manifestação,
exame e mesmo constituição da singularidade própria com que cada
juízo desempenha sua atividade cognitiva ante os materiais com que se

66. Ver III, 13, 1074B.

256

10888_A figura do filosofo.p65 256 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

depara ao acaso, ainda que para culminar no reconhecimento da pró-


pria incapacidade de reconhecer a verdade. Emerge dessa investigação
um olhar diferenciado sobre as razões filosóficas alheias, que não mais
busca nelas a verdade que formulam pelo valor intrínseco e absoluto
que elas possuiriam, mas sobretudo o benefício eventual do contato
com a feição (façon) pela qual, mediante o modo diverso como temati-
zam um mesmo problema, exibem a singularidade do juízo de cada
filósofo e permitem ao juízo do “aprendiz” um exercício particular por
meio do conhecimento dessa diversidade67. Igualmente, Montaigne es-
pera que, no modo como sonda as diversas matérias de que trata, seja
especialmente visível, em seu auto-retrato, a forma pela qual as julga68:
[A] Não tenho dúvida de que freqüentemente me ocorre de falar de
coisas que são mais bem conhecidas pelos mestres desses assuntos, e
mais verdadeiramente. Aqui está apenas o ensaio de minhas faculda-
des naturais, e não das adquiridas, e quem acusar minha ignorância
nada fará contra mim, pois dificilmente eu responderia a outrem por
minhas considerações [discours], eu que não respondo nem a mim
mesmo, nem estou com elas satisfeito. Quem estiver em busca do
saber [science] que o pesque onde ele está. Não há nada de que eu
faça menos profissão. Aqui estão minhas fantasias, pelas quais eu não
viso conhecer as coisas, mas a mim mesmo. Elas [as coisas] me serão
casualmente conhecidas um dia, ou outrora o foram, segundo o modo
pelo qual a fortuna me tenha podido levar aos lugares onde elas es-
tejam esclarecidas… Que não se atente às matérias, mas à feição
[façon] que dou… (II, 10, 407-408).
Ainda que os ensaios de seu juízo tenham a constatação da “igno-
rância” como horizonte, lhe permitem igualmente julgar acerca de seu
acordo com os antigos, ou reconhecer sua particularidade, no viés

67. Ver III, 8, 923BC ss., especialmente 928C: “E todos os dias eu me divirto em ler
os autores, sem cuidar de sua ciência, mas buscando sua feição [façon], e não sua matéria
[subject]…”.
68. Caberia frisar que o próprio esforço de conhecer o alcance de suas “faculdades
naturais”, por sua explicitação verbal nos ensaios, poderia ser visto como um aspecto
desse exercício: o reconhecimento dos limites do juízo, como vimos, são, segundo Mon-
taigne, demonstração importante da ação do próprio juízo.

257

10888_A figura do filosofo.p65 257 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

inusitado pelo qual eventualmente os retoma69. Eles constituem um


exercício que lhe permite o conhecimento de suas limitações e parti-
cularidades, pela observação do seu juízo em ação ante os diversos ma-
teriais que examina. Se tal é o fruto da busca filosófica de restaurar, do
modo mais coerente possível, o gênero de filosofia que mais longe leva,
em seu entender, a liberdade do juízo humano, é difícil não ler nas
entrelinhas dessa descoberta (da singularidade daquele que julga mi-
rando a epokhé) uma espécie de manifesto implícito de independência
e liberdade filosófica (nos sentidos próprios em que tais conceitos de-
vem ser aqui compreendidos), contra o servilismo denunciado nas filo-
sofias oficiais, redigido sob a égide do ceticismo antigo. Não se exem-
plifica aqui a ambigüidade renascentista, a que nos referimos de saída,
entre a nostalgia e o sentimento de afinidade com a Antiguidade?
Mas igualmente o ensaio cético de Montaigne se converte num
autocomentário permanente, pelo qual, além de julgar as razões que
pinça de autores diversos, Montaigne julga, nas edições posteriores,
seus juízos prévios, num trajeto pelo qual o exercício do juízo inclui a
observação de sua particularidade. Graças a isso, caberia talvez dizer
que, no pólo oposto da aceitação irrefletida da autoridade alheia, o
ensaio também se torna um exercício da capacidade de ser autor de sua
individualidade, pelo qual se poderia, afinal, compreender num senti-
do quase literal sua pretensão de ser consubstancial ao auto-retrato de
seu juízo: “Não são meus gestos que eu escrevo, é a mim mesmo, é
minha essência…” (II, 6, 379C). Eis, afinal, como a forma filosófica
desenvolvida por Montaigne é, a um só tempo, perfeitamente cética,
mas focalizada num objetivo diverso daqueles que se encontram nos
textos representantes do ceticismo antigo, que é o estudo do “eu”.

5.4. Exemplaridade, subjetividade e filosofia moderna


Esboçaremos agora dois breves comentários sobre a significação
histórica e filosófica desse ceticismo. Primeiramente, apoiando-nos em

69. Ver, além de I, 50, 302-303, seu comentário sobre a maneira como considera o
julgamento de Tácito em seus relatos históricos, em III, 8, 940-941BC.

258

10888_A figura do filosofo.p65 258 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

algumas considerações gerais sobre a natureza do engajamento filosó-


fico no ceticismo, tentaremos desenvolver a aproximação entre Mon-
taigne e Descartes que desenvolvemos no item anterior, focalizando
um aspecto fundamental em que a articulação entre ceticismo e sub-
jetividade nos parece relevante para pensar tal contraponto — a saber,
o recurso à exemplaridade do discurso em primeira pessoa. Em segui-
da, apresentaremos uma conjectura (cujo risco, digamos desde já, será
proporcional à sua generalidade) sobre eventuais implicações da com-
preensão montaigniana de ceticismo como um gênero filosófico na
tematização moderna da própria noção de filosofia.
No final do capítulo I, ante o paradoxo originado pelo engajamento
filosófico de Montaigne, indagamos em que sentido podemos estar dian-
te de um relato estritamente biográfico e individual, caso aceitemos
que se trata de uma descrição moldada na forma como Sexto descreve
os passos conceituais pelos quais os primeiros pirrônicos teriam casual-
mente descoberto a ataraxía na reiteração da suspensão do juízo e, por
conseguinte, a possibilidade de conferir uma identidade filosófica à
experiência intelectual da impossibilidade de reconhecer a verdade.
Tal paradoxo nos conduziu a formular uma questão teórica mais geral,
sobre o valor argumentativo desse relato biográfico no que tange ao
engajamento do cético em sua filosofia. A análise do gênero filosófico
cético que realizamos nos ofereceu, por sua vez, outros elementos para
reconsiderar esse aparente paradoxo e notar que sua formulação parece
depender de falsos pressupostos. Declarar que Montaigne se engaja
numa filosofia cética não é contraditório com dizer que ele não se enga-
ja em nenhuma “seita” preexistente, desde que se considere o sentido
próprio em que a filosofia cética pretenderia se diferenciar das demais.
Mais precisamente, embora o texto montaigniano, ao ser aproximado
das fontes, revista-se de um sentido paradoxal, o destino desse paradoxo
parece ser o de dirigir o leitor a uma compreensão mais precisa da
filosofia que se põe em prática nos Ensaios, capaz de dissolvê-lo.
Contudo, essa solução não resolve plenamente um problema teó-
rico mais amplo implicitamente levantado pelo paradoxo. Ainda que o
engajamento do cético à sua filosofia não corresponda a um assenti-
mento à veracidade de “teses”, precisamos admitir que, se estamos, em

259

10888_A figura do filosofo.p65 259 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

alguma medida, nos referindo a uma filosofia preexistente (defina-se


ela como se definir), tal filosofia parece almejar necessariamente al-
gum grau de generalidade, além de um relato que se limita a narrar
uma experiência estritamente biográfica. Em que sentido deve ser
compreendida a natureza pessoal desse relato, se ele se pretende possui-
dor de um poder persuasivo pelo qual está em questão, nalguma medi-
da, o convencimento de outrem no engajamento em uma mesma
postura filosófica? Se ele repete um movimento feito por um filósofo
anterior, até onde podemos admitir que a experiência cética de uma
inteira liberdade do uso de suas faculdades intelectuais, diante do que
sua experiência individual lhe oferece, seja plenamente “impremedita-
da e fortuita”? Desse modo, o paradoxo montaigniano acaba por nos
conduzir a julgar não apenas a natureza de seu filosofar, mas também
a natureza, de modo mais geral, do engajamento filosófico cético se-
gundo esta dimensão que nos parece ser central a essa filosofia: em que
pode exatamente consistir a exemplaridade dessa narrativa biográfica
pela qual o cético descreve a ordem de razões de instauração de sua
postura pirrônica? Tal narrativa tem a curiosa peculiaridade de ser, a
um só tempo, a descrição válida da experiência intelectual individual
do filósofo, como parte constitutiva desse filosofar à qual ele é imanen-
te e não pode, de direito, transcender (na medida em que esse filósofo
não pretende asseverar nenhuma verdade e, nessa medida, nada além
do que lhe aparece segundo o seu páthos individual), mas também o
engajamento em uma filosofia cuja constituição precede tal experiên-
cia e a ilumina (sem o que não se pode falar de uma tradição filosófica
cética que, nalguma medida, se perpetua além de uma experiência
filosófica individual e isolada).
Por que o diagnóstico pirrônico acerca da impossibilidade de reco-
nhecer filosoficamente a verdade apresenta-se na forma de um simples
relato de sua experiência pessoal? Já vimos que, uma vez admitindo
filosoficamente a impossibilidade de reconhecer a verdade nos diver-
sos sistemas em conflito, o filósofo pirrônico é conduzido a se referir à
sua filosofia, por força da própria constatação que a determina, num
sentido precário e intrinsecamente provisório. Numa importante pas-
sagem, na qual explica o modo como os céticos admitem crenças, Sexto

260

10888_A figura do filosofo.p65 260 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

afirma que o “principal ponto” referente ao sentido com que se expri-


mem os pirrônicos é o seguinte: “… ao proferir [as expressões céticas],
eles dizem apenas o que lhes aparece e narram suas próprias afecções
[pathé], sem sustentar opiniões, nada afirmando acerca dos objetos ex-
ternos…” (HP I, 15). É uma consideração muito semelhante às que se
delineiam em passagens nas quais Montaigne explicita o sentido de
seu discurso. Por exemplo:
[B] Desculpemo-nos aqui do que digo freqüentemente, que raramente
me arrependo … adicionando sempre esse refrão, não um refrão de
cerimônia, mas de ingênua [naifve] e essencial submissão: que eu
falo investigando e ignorando, reportando-me à resolução, pura e
simplesmente, das crenças comuns e legítimas. Eu não ensino, eu
narro… (III, 2, 806)70.
Ao menos a partir do momento em que se reconhecem sob esse
título, os Ensaios tornam-se permanentemente sensíveis ao fato de se-
rem relativos à experiência pessoal e possuidores do mesmo estatuto
que o cético pirrônico atribui à formulação de sua filosofia. No entan-
to, esse subjetivismo carece de melhor qualificação: formulando-se como
postura filosófica, tal relato da experiência individual e própria parece
almejar inevitavelmente algum grau de generalidade. Tal pretensão
não se confundiria, a nosso ver, com a adoção de uma intenção explí-
cita, por parte do cético, de persuadir alguém daquilo que ele é condu-
zido a aceitar por sua experiência. Parece-nos que ela está implícita nas
condições de coerência interna desse posicionamento, isto é, nas con-
dições pelas quais ele poderia estar justificado em adotar o ceticismo
como uma postura filosófica. Sem isso, tal postura se converteria numa
mera idiossincrasia e perderia as credenciais que a diferenciaram, por-
tanto, das posições filosóficas dogmáticas, tal como as compreende.
Estaria o cético justificado em aceitar sua filosofia se, embora não a
presumisse “verdadeira” no mesmo sentido que o fazem os dogmáticos,
ele julgasse que seu diagnóstico sobre a verdade das filosofias pudesse

70. Ver ainda os textos nos quais Montaigne contrapõe sua postura “investigativa” e
irresoluta ao estilo professoral e taxativo dos eruditos livrescos, como, entre outros, II,
17, 657; I, 26, 145-146A; III, 8, 943BC.

261

10888_A figura do filosofo.p65 261 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ser inválido para os outros homens que se dispusessem a avaliar de


modo igualmente racional o mesmo estado de coisas? Sua perspectiva
cética deveria perder muito de sua persuasividade para ele mesmo, se
não se tornasse inteiramente sem sentido, caso ele pudesse coerente-
mente admitir que um outro filósofo, posicionando-se ante a contradi-
ção entre as filosofias, estivesse individualmente apto a escolher algu-
ma delas como verdadeira, se as examinasse de um modo tão judicioso
como as examina e procedesse de modo conseqüente em vista do que
esse exame lhe oferece. E esse é um problema diverso de saber se empi-
ricamente seus interlocutores irão se persuadir ou não com seu discur-
so: isso é algo que depende, além da cogência que o interlocutor reco-
nhece nas razões que emprega, de outros fatores, como sua capacidade
retórica, ou a capacidade de compreensão de seu interlocutor (e o “re-
alismo” do filósofo cético, a que já aludimos, diante da situação efetiva
das crenças humanas e de suas capacidades individuais de lidar com
essa situação apontaria antes, ao contrário, na direção de um abandono
da pretensão de persuadir de modo geral os homens). Parece-nos ainda
que o cético não pretende tampouco ser inconseqüente em sua deci-
são filosófica pessoal, diante de um certo conjunto de dados que em
princípio se apresentam à disposição para o juízo comum, ainda que
tal decisão seja em certa medida “arbitrária” e subjetiva: ela o é apenas
no sentido estrito em que a racionalidade que o conduz à sua conclu-
são não pode conduzir a uma demonstração irreversível da veracidade
de sua constatação (sobre a incapacidade de adotar uma filosofia como
verdadeira), e não no sentido em que o conduz a essa posição como
poderia conduzi-lo a outra qualquer. Se ele supusesse, porém, que outro
filósofo qualquer pudesse ser conduzido a uma posição diversa avalian-
do as mesmas coisas de modo tão racional quanto ele, não seria isso
minar a razoabilidade de sua própria decisão (e a pretensão de que sua
filosofia reflita sua tentativa de levar pessoalmente o uso da razão às
últimas conseqüências, por oposição ao modo precipitado pelo qual o
dogmático se arvora em seus dogmas)?
Além disso, se o cético se julgasse incapaz de reconhecer a verdade
e pudesse admitir que outro filósofo fosse ou tivesse sido capaz de o
fazer, acabaria por transformar o sentido em que sua dúvida seria “subje-

262

10888_A figura do filosofo.p65 262 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

tiva”. O cético deveria, se assim fosse, ser coerentemente conduzido


não a duvidar de que os filósofos sejam capazes de nos oferecer uma
verdade, mas a desconfiar de sua eventual compreensão da verdade
que eles ofereceram. Mas é claro que o cético não pretende afirmar
algo como: “os dogmáticos realmente encontraram uma verdade, mas
eu não a compreendo”. O cético pode, sim, eventualmente, recusar-se
a reconhecer sentido no discurso do filósofo dogmático71, mas dizer
que a verdade não pode ser reconhecida nas diversas filosofias que a
pretenderam formular (ainda que tal juízo deva ser relativizado à expe-
riência individual) é ir bem mais longe — e finalmente afirmar algo
inteiramente diverso — do que apenas confessar que sua incapacidade
de compreender as verdades que uma filosofia dogmática alega ter
descoberto é individual, embora outros filósofos possam eventualmen-
te compreendê-la. O cético pretende sustentar que as filosofias não
encontraram a verdade, ainda que o critério que oferece para tanto seja
sua experiência pessoal, e não apenas propor que o dogmático deva
indefinidamente tentar se fazer mais claro, para que a verdade que ele
afirma ter alcançado possa se fazer compreendida. Se o problema fosse
esse, as mesmas exigências que moveram sua investigação rigorosa e
intransigente das filosofias que injustificadamente alegaram a verdade
deveriam coerentemente movê-lo agora, com o mesmo afinco, a supe-
rar sua limitação meramente pessoal que, assim compreendida, o teria
conduzido à suspensão por força de uma incapacidade apenas pessoal,
e a tentar apreender o sentido da verdade que, embora eventualmente
esteja presente na formulação do filósofo dogmático que diz compreen-
dê-la, está para o cético provisoriamente indecifrada.
Por isso, parece-nos que a persuasão (háiresis) cética, apoiada nos
diversos tropos que a corroboram e sistematizam, deva ser vista pelo
próprio cético como geralmente válida para todo e qualquer filósofo
que se empenhe em refazer concretamente o mesmo trajeto reflexivo
(mesmo que os vários argumentos que a ela podem conduzir não se-
jam igualmente aceitáveis para todos). Disso não se segue que, para ser

71. Ver, por exemplo, HP II, 22.

263

10888_A figura do filosofo.p65 263 28.03.07, 16:04


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

coerente, ele deve impor a todo custo sua filosofia aos demais; ele pode
reconhecer, de modo tolerante, a diversidade de juízos, sem abrir mão
de seu próprio juízo sobre a maior aceitabilidade de suas posições filo-
sóficas, tendo como horizonte a idéia de uma terapia da vaidade e da
precipitação dogmática, a ser buscada segundo sua viabilidade prática
e, sobretudo, seu interesse pessoal em submeter permanentemente a
teste seu próprio juízo sobre sua filosofia. Mas não nos parece que o
cético possa abrir mão, sem incorrer numa incoerência, de aceitar sua
conclusão como potencialmente válida para todo e qualquer filósofo
que se situar de modo igualmente judicioso ante os elementos que ele
considera segundo sua experiência. Em contrapartida, todo interlocu-
tor que recusa sua cogência de um modo consistente e argumentado
sempre propõe potencialmente, ao menos em princípio, um problema
para o cético que concerne ao seu próprio engajamento filosófico (ain-
da que, em virtude da natureza desse problema, ele possa imediata-
mente recusá-lo ou ignorá-lo, equivocadamente ou não). A discordância
desperta, como diz Montaigne, não sua cólera, mas sua atenção (III, 8,
924B). Se o ceticismo não se pretende um irracionalismo, ao descon-
fiar da razão como instrumento humano de conhecimento da verdade,
o empreendimento filosófico cético parece pressupor e projetar um
espaço comum de racionalidade na avaliação da busca humana da
verdade, no centro da qual se sustenta sua própria perspectiva. Nos
termos conceituais da filosofia montaigniana, esse espaço parece ser
aquele que corresponde à ação adequada do juízo: embora tal conse-
qüência não seja rigorosamente demonstrável (no sentido em que um
filósofo dogmático pretende demonstrar a verdade), cabe esperar que o
juízo suficientemente desenvolvido e atilado siga os passos dos demais
filósofos que o precederam, e reconheça que sua incapacidade de esco-
lher a verdade entre os sistemas filosóficos conflitantes é uma demons-
tração notável de sua ação.
A ordem de razões pelas quais o cético descreve biograficamente os
passos de seu engajamento filosófico parece ser, como vimos, um as-
pecto fundamental para a boa compreensão da posição pirrônica. Mas
tampouco esse aspecto é secundário nos Ensaios, seja na medida em
que a obra pretende ser um registro fiel das idéias do autor em sua

264

10888_A figura do filosofo.p65 264 28.03.07, 16:04


Filosofia como ensaio do juízo

mutabilidade própria, seja sobretudo na própria descrição em que ele


descreve biograficamente seu engajamento numa filosofia de “nova
figura”. As considerações anteriores, contudo, parecem indicar que tanto
a ordem de razões de instauração do pirronismo como sua retomada
montaigniana descrevem não apenas um episódio biográfico em seu
sentido estritamente individual, mas também um episódio exemplar,
válido para o filósofo qualquer. Mais exatamente, ainda que tal relato
descreva uma experiência biográfica real, seu valor persuasivo reside
no modo como ele pretende não apenas representar uma experiência
acessível a todo e qualquer filósofo, mas dela extrair as conseqüências
que seriam, segundo o cético, as mais plausíveis e pertinentes. Nessa
medida, parece igualmente possível afirmar que, uma vez aceito se-
gundo sua pretensão de persuasividade, esse relato biográfico não per-
deria sua relevância filosófica mesmo que a descrição da experiência
dos “primeiros céticos”, que descobriram a filosofia da suspensão ante
a experiência de repetidamente falhar na pretensão de encontrar um
sistema a salvo de críticas, fosse apenas um mito, uma narrativa ficcio-
nal que não descrevesse o trajeto biográfico real de nenhum filósofo,
mas apenas um percurso ideal de engajamento filosófico.
Diríamos assim que a natureza exemplar desse relato parece desem-
penhar um papel importante (e insuficientemente explorado) para a
compreensão não apenas da coerência interna da posição cética, mas
também de seus reflexos históricos. A adesão do cético à filosofia da
suspensão está, é claro, afiançada pelo poder dos argumentos ofereci-
dos contra as filosofias que se pretendem verdadeiras. Convém notar,
porém, que esse critério não é oferecido pelo cético como portador de
uma plena objetividade. Não apenas Sexto explica, ao final das Hipo-
tiposes, que o cético se vale dos argumentos que podem persuadir se-
gundo o que é aceitável para o interlocutor, mas afirma explicitamen-
te, noutras passagens, que ele não pretende se comprometer com ne-
nhum juízo sobre a persuasividade ou falta de persuasividade intrínse-
ca dos argumentos que considera72. Assim, se a posição filosófica do

72. Ver, por exemplo, HP I, 222, 226-227.

265

10888_A figura do filosofo.p65 265 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

cético lhe aparece como mais persuasiva do que a posição dos filósofos
dogmáticos, tal aparecer não pode corresponder a uma avaliação da
persuasividade intrínseca dessa posição; ele se limita a ser a expressão
subjetiva e provisória de um páthos, eventualmente revogável por uma
argumentação virtualmente irrefutável em favor de alguma posição fi-
losófica dogmática (possibilidade essa que o cético, por força da lógica
interna de sua posição, não pode plenamente abolir). A adoção de uma
postura suspensiva se assenta, como dissemos, numa decisão filosófica
pessoal, imanente à avaliação individual do que a experiência filosófica
oferece. Como compreender esse engajamento, porém, em vista das
considerações aqui esboçadas? Parece-nos que tal decisão pessoal de
assentir à persuasividade das motivações biograficamente alegadas pelo
cético para suspender o juízo equivale a conferir, ainda que momenta-
neamente, à experiência singular descrita pelo “primeiro cético” uma
espécie de universalização. Dizendo de outro modo: o filósofo que adere
ao ceticismo reconhece, por meio dessa adesão, em sua experiência
intelectual pessoal, considerada em seu sentido estritamente individual
e singular, uma espécie de imagem, nalguma medida, da mesma des-
crição autobiográfica individual que o cético previamente oferece de
sua experiência filosófica. Quando isso ocorre, a descrição prévia, legada
pelo cético que o antecede, parece ser investida de um sentido argu-
mentativo pelo qual transcende, mesmo que momentaneamente, sua
particularidade, adquirindo um valor exemplar.
Isso permitiria explicar em que medida o ceticismo, ao se constituir
como uma doutrina filosófica, não transgride a autolimitação subjetiva
que impõe à validade de seu discurso: a despeito de cada cético natu-
ralmente presumir, quando adere à sua perspectiva filosófica, que ela
corresponda (ainda que de modo provisório) àquela que ele julga ser a
mais razoável em face dos elementos de que dispõe para julgar a ques-
tão, o ato filosófico pelo qual ele universaliza a experiência de outro
filósofo é plenamente individual. É a ele próprio que cabem inteira-
mente o poder e a responsabilidade filosófica de assentir à exemplari-
dade e reconhecer um papel argumentativo à descrição autobiográfica
do cético que lhe antecede. Assim, o fato de o cético almejar universa-
lidade para o seu diagnóstico filosófico não aboliria a subjetividade da

266

10888_A figura do filosofo.p65 266 28.03.07, 16:05


Filosofia como ensaio do juízo

experiência pessoal que ele descreve, nem a subjetividade da decisão


de seguir o exemplo por aquele que se persuade por sua experiência; ao
contrário, o sentido mesmo dessa “persuasão” filosófica é o de rejeitar
as tentativas filosóficas de transcender, em nome da verdade que pro-
põem, a dimensão estritamente pessoal em que aquele que as investiga
se situa exteriormente a elas. A despeito disso, parece possível também
dizer que, embora esse fenômeno possa ser descrito como inteiramente
imanente à experiência vivida, em sua relatividade própria, quando a
enunciação do páthos subjetivo pelo discurso cético é momentanea-
mente imantada por sua exemplaridade, parece engendrar-se uma es-
pécie de ambigüidade — à falta de melhor termo — entre o aspecto
estritamente particular e singular com que o cético narra sua experiên-
cia biográfica e uma dimensão potencialmente exemplar e universali-
zável, na forma de uma persuasão capaz de se impor como válida além
dessa experiência particular. Seria tal ambigüidade inerente ao discur-
so filosófico cético? Ela nos parece igualmente, salvo melhor juízo, um
elemento importante na determinação da coerência própria com que
esse posicionamento pode se instituir como filosofia.
O problema teórico aqui descortinado mereceria certamente maior
aprofundamento73. Aqui nos limitaremos a assinalar que essa particula-
ridade retórica do ceticismo, tal como descortinada pela reflexão de
Montaigne, parece possuir igualmente conseqüências relevantes para
a configuração adquirida pela discussão filosófica em torno do ceticis-
mo e da possibilidade de obter conhecimento objetivo. Já tivemos mais
de uma ocasião de indicar que as relações entre o ceticismo de Mon-
taigne e a resposta que Descartes pretenderia oferecer a essa filosofia
são mais complexas do que se tende a admitir. Cabe agora indagar se
deveríamos ver como casual e gratuito o fato de Descartes construir
uma estratégia de refutação do ceticismo que parece operar por meio
da mesma ambigüidade retórica que acabamos de assinalar.
Em Montaigne e Descartes podemos igualmente encontrar uma
denúncia do costume e da imaginação como empecilhos ao entendi-

73. Abordamo-lo de forma mais detalhada e documentada em EVA, 2005.

267

10888_A figura do filosofo.p65 267 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mento, que pode permanecer ocioso à falta de ser empregado. Porém,


se o espírito aprende a sabedoria ao se exercitar naquilo que foi desco-
berto por outrem, a importância desse exercício recai especialmente,
para Descartes, em capacitar o entendimento individual em reconhe-
cer por si próprio as mesmas verdades já encontradas74. É nas Medita-
ções, contudo, obra em que Descartes enfrenta as razões para duvidar
do reconhecimento das verdades que o entendimento pode encontrar
em seu uso natural, que talvez possamos ver mais claramente como sua
tentativa de refutação do ceticismo procura explorar uma ambigüidade
análoga à que acabamos de considerar. Se o sujeito que, na Primeira
Meditação, realiza a experiência da dúvida é, de saída, o sujeito empí-
rico René Descartes, próximo ao fogo, diante do papel, o resultado do
trajeto da dúvida terá (diversamente do que vimos ocorrer no caso de
Montaigne) o efeito de depurar esse sujeito de tais marcas de sua parti-
cularidade empírica. Por certo, ao menos à altura da Segunda Medita-
ção, tudo o que o sujeito que se descobre existente por meio do cogito
pode reconhecer é sua existência estritamente individual, posto que a
dúvida o encerra, ao menos provisoriamente, num ambiente solipsista
(no qual a existência de outros indivíduos é, ao menos por ora, tão
duvidosa quanto a existência dos demais elementos do mundo exte-
rior). Tomemos, porém, a liberdade de considerar essa prova de um
ponto de vista externo ao trajeto daquele que realiza tal percurso me-
ditativo: embora ela só possa ser válida para o eu que realiza tal percur-
so reflexivo, cabe reconhecer que poderia ser indefinidamente refeita
por cada candidato que, situado numa posição “pré-filosófica”, se dis-
pusesse a considerar esse trajeto. Mas as considerações que acabamos
de apresentar chamam a atenção para um sentido adicional que tal
prova parece possuir, pois a “descoberta” da existência do “eu” — pri-
meira verdade que Descartes pretende poder oferecer contra uma dú-
vida levada aos seus limites mais extremos — pode também ser vista,
por esse ângulo, como a descoberta de que todo e qualquer sujeito
individual que empreenda essa reflexão conhecer-se-á exatamente no

74. Ver, por exemplo, Recherche de la Verité par la Lumière Naturelle, in Oeuvres,
p. 669.

268

10888_A figura do filosofo.p65 268 28.03.07, 16:05


Filosofia como ensaio do juízo

mesmo sentido — a saber, como um “puro entendimento”, dado pela


evidência inteligível da impossibilidade de sua inexistência no momento
em que se reconhece como pensamento de algo, além das diversas
representações dos sentidos ou da imaginação com que esse “eu” se
poderia confundir75. Tais aspectos do eu pensante cartesiano são expli-
citamente evidenciados por Descartes em sua prova; o que, à primeira
vista, não é tão evidente é que tal “descoberta” emerge do mesmo prin-
cípio argumentativo ora apontado. Pois o que essa prova cartesiana so-
licita é que cada leitor das Meditações reconheça, por sua experiência
individual e empírica, a validade de um relato exemplar no qual Des-
cartes, igualmente partindo da inspeção de sua experiência empírica
particular, realiza o mesmo percurso que convida cada qual de seus
leitores a realizar por intermédio dessa leitura. Formulando em primei-
ra pessoa, em seu próprio texto, não apenas os argumentos da dúvida
hiperbólica, mas aqueles com que a pretende limitar, Descartes exem-
plifica o leitor singular qualquer, que deverá descobrir, ao fim do traje-
to, um eu pensante que é a essência mesma dessa exemplaridade.
O que representaria o uso de tal estratégia por Descartes? Ela con-
sistiria em mais uma evidência de que sua estratégia de resposta ao
ceticismo se elabora com base na observação precisa de elementos con-
ceituais e argumentativos próprios do ceticismo tal como o encontrou
disponível nos autores céticos com que se defrontou, como é o caso de
Montaigne, sem perder de vista os rendimentos filosóficos precisos que
este extrai de sua postura dubitativa. Mesmo que a sua estratégia retó-
rica não se limite a isso, o fato de que o trajeto cartesiano se instale de
saída no solo da experiência individual possui uma relevância própria
em vista da intenção de superar uma filosofia que, negando a possibi-
lidade de conhecermos a verdade, se instala num discurso circunscrito
à manifestação do que aparece ao filósofo, de modo pessoal e subjetivo.
Ademais, a conseqüência que Montaigne pretende extrair de seu ceti-
cismo é a de que o emprego de nossas faculdades é não apenas cingido
por essas limitações, mas de certo modo contribui para aprofundá-las.

75. Na mesma direção, ver FRANKFURT, 1970, p. 4; GUEROULT, 1968, p. 54-59.

269

10888_A figura do filosofo.p65 269 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Para Montaigne, a ação do juízo acaba por exibir, como vimos, um viés
único e individual, que espelha, ao mesmo tempo, a distância em que
cada qual se encontra do conhecimento de uma verdade que, se fosse
conhecida como tal, deveria poder se apresentar exatamente no mes-
mo sentido a cada juízo individual. Mais ainda, o fato de que não haja
proposição humana, segundo Montaigne, que não possa se mostrar
controvertida o levará a concluir que “[A] nosso juízo natural não apreen-
de claramente o que apreende … [e] que eu obtive [tal opinião] por
um meio diverso do que o seria um poder natural de julgar presente
em mim e em todos os homens…” (562)76.
É bastante curioso que Descartes não apenas pretenda, com sua
prova, oferecer uma verdade acerca da própria subjetividade humana
que se oporia diretamente, no nível mesmo dos conceitos empregados,
às conclusões dessa argumentação, mas que também empregue para
tanto um expediente retórico análogo àquele de que o próprio ceticis-
mo (segundo a análise que realizamos aqui) se vale para se compreen-
der como uma filosofia coerente. Não pretendemos aqui avaliar a res-
posta cartesiana, mas apenas mostrar que se pode reconhecer, nessa
reflexão, um solo comum, de origens céticas, determinantes para sua
tematização posterior ao longo da filosofia moderna. Se é possível apro-
ximar Descartes e Montaigne sob o viés de suas diferentes reações a
essa ambigüidade cética, entre a singularidade da experiência intelec-
tual subjetiva e a generalidade das concepções filosóficas que formula,
abre-se aqui, ao menos, uma oportunidade inusitada de observar as
raízes históricas daquilo que Merleau-Ponty, à sua moda, descreveu
como a ambigüidade intrínseca da concepção de sujeito moderna, que,
em suas diversas formulações, “não é coisa nem substância, mas extre-
midade do particular e do universal”77. Se Descartes se vale da genera-
lização da experiência singular para pretender limitar a dúvida meto-
dológica, Montaigne, inversamente, ao assumir a dúvida cética, recu-

76. Dedicamos o item 6.2.1 do próximo capítulo ao exame detido desse argumento
montaigniano.
77. Ver MERLEAU-PONTY, 1980, Em toda e nenhuma parte, “5. A descoberta da
subjetividade”, especialmente p. 232.

270

10888_A figura do filosofo.p65 270 28.03.07, 16:05


Filosofia como ensaio do juízo

sa-se a tomar sua experiência — que os Ensaios pretendem, a partir de


um certo momento de sua composição, retratar naquilo que a parti-
culariza — como critério para um juízo universal:
[A] Seja como for, quero dizê-las, e mesmo que sejam estas inépcias
[os Ensaios], eu não as decidi esconder, não mais do que um retrato
meu, calvo e grisalho, onde o pintor teria posto, não um rosto perfei-
to, mas o meu. Pois também estão aqui meus humores e opiniões, eu
os dou pelo que está na minha crença, não pelo que se deve crer. Eu
não viso aqui senão mostrar-me a mim mesmo, e seria um outro
amanhã, se um novo aprendizado me mudasse. Eu não tenho auto-
ridade para que me creiam, nem o desejo, sentindo-me mui mal
instruído para instruir a outrem… (I, 26, 148).
Isso não significa que Descartes pretendesse suprimir a individua-
lidade do sujeito que empreende a reflexão filosófica: a despeito da
função desempenhada pela depuração filosófica da subjetividade que
servirá de fundamento à sua metafísica, pode-se dizer que o sujeito
filosófico, em sua universalidade, permanece ancorado no sujeito em-
pírico do qual emerge. Isso parece atender, pelo que vemos, a exigên-
cias próprias dessa filosofia. Diversas passagens parecem indicar a per-
manência de uma tensão, no pensamento cartesiano, entre as verdades
universais e irrecusáveis a que a filosofia poderia conduzir o intelecto
humano — em particular, acerca de si mesmo — e a vinculação da
empresa filosófica ao alcance particular da capacidade do intelecto
individual que a formula78. Em contrapartida, podemos encontrar
Montaigne trilhando, por vezes, as estradas filosóficas assentadas pelo
juízo dos antigos (como ocorre, em especial, na admissão de posições

78. Essa tensão parece ser especialmente notável no Discurso do método. Embora o
método seja, de saída, assumido como via para a obtenção de verdades pelo uso adequa-
do da razão, que se situa em cada um de nós como a forma da espécie humana (DM,
primeira parte, p. 2-3), Descartes anuncia que o abordará, em vista da possibilidade do
erro, na forma de um discurso biográfico privado, a ser considerado como uma “fábula”
(ibid., p. 4). Contudo, diversas vezes, adiante, ele aludirá à dimensão meramente pes-
soal com que a empresa de produzir tais verdades é levada a cabo: seja no que tange à
perfeição das obras conduzidas por um só (v. ibid., p. 12-14), seja ainda ao reservar para
si mesmo uma maior capacidade de levar adiante a busca metódica de outras verdades
(v. ibid., p. 69-72).

271

10888_A figura do filosofo.p65 271 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

céticas) sem que nelas seu juízo se veja sempre em posição de reconhe-
cer claramente algo que produz de modo particular, a partir de si. Mes-
mo no âmbito de sua experiência, Montaigne reconhece uma perma-
nente “forma dominante” (forme maistresse), oposta à educação e “à
tempestade das paixões que lhe são opostas” e reconhecível por todo
aquele que se escutar devidamente (v. III, 2, 811)79, bem como a pos-
sibilidade de uma generalização da “vida simples e sem brilho” que
seus ensaios retratam, sugerindo que “cada homem porta a forma intei-
ra da condição humana”. Tal afirmação, porém, pela qual Montaigne
parece justificar ao leitor a eventual utilidade do auto-retrato como
objeto de seu livro, é acompanhada por outras que sublinham o aspec-
to oscilante da imagem obtida, bem como o caráter estritamente par-
ticular com que é retratado esse suposto “ser universal” humano:
[B] É um registro de diversos e mutáveis acidentes; e de imaginações
irresolutas e, de vez em quando, contrárias. Seja porque eu mesmo
sou outro, seja porque eu apanho os assuntos noutras circunstâncias e
considerações… Se minha alma pudesse firmar pé, eu não me ensaia-
ria, eu me resolveria: ela está sempre em aprendizagem e posta à pro-
va… [C] Os autores comunicam-se ao povo por alguma marca parti-
cular e estrangeira; eu sou o primeiro que o faço pelo meu ser univer-
sal, como Michel de Montaigne, não como gramático, poeta ou
jurisconsulto. Se o mundo se queixa de que falo demasiado de mim
mesmo, eu me queixo de que ele não pensa apenas em si… (ibid.).
Em suma, os dois filósofos parecem operar de modos diversos com
base na mesma ambigüidade argumentativa entre a natureza estrita-
mente pessoal do discurso e a possibilidade de generalização do que é
dito. Enquanto a “substância pensante” cartesiana se oferece como a
formulação metafísica da forma racional universalmente presente nos
homens, acessível por uma meditação metódica que necessariamente

79. Cf. I, 50, 302, em que Montaigne afirma, numa passagem de evidente inspiração
cética, ser a “ignorância” sua forma mestra. Por mais que seja tentador encontrar nessa
instância uma espécie de núcleo estável da subjetividade em Montaigne, não parece
haver mais elementos que abonem esse passo. Ademais, não se poderia admitir, em vista
do que já examinamos, que tal instância possa ser perfeitamente separável da dimensão
do costume (“l’institution”) à qual se opõe.

272

10888_A figura do filosofo.p65 272 28.03.07, 16:05


Filosofia como ensaio do juízo

parte do terreno particular biográfico, Montaigne, ao assumir uma po-


sição cética, observa os julgamentos gerais como inevitavelmente “va-
gos e imperfeitos” (III, 8, 943B), e projeta essa desconfiança no âmago
de seu projeto de auto-exame: “[B] Eu nada digo de mim inteiramente,
simplesmente e solidamente, sem confusão e sem mistura, nem numa
só palavra…” (II, 1, 335)80. Assim, por oposição ao modo como o “eu
penso” reporta com precisão a essência da subjetividade, segundo
Descartes, o esforço montaigniano em captá-la exige uma dispersão
discursiva indefinida que, em lugar de oferecer uma imagem definitiva
e acabada, a expõe pelos diversos vieses contraditórios e incongruentes
que propriamente a constituem: “[A] Se eu falo diversamente de mim,
é que me observo diversamente. Todas as contrariedades aí se encon-
tram, cada uma de sua vez e à sua feição … e quem quer que se estude
bem atentamente encontra em si, a saber, no seu próprio julgamento,
essa volubilidade e discordância” (II, 1, 335). Mas, sobretudo, por mais
que a natureza peculiar do retrato possa induzir à universalização de
qualquer um dos aspectos que o constituem, Montaigne cinge rigoro-
samente o alcance da descrição à sua experiência pessoal e emprega a
mesma ambigüidade a que nos referimos para persuadir ou convidar os
leitores a empregar o próprio juízo, aos quais é expressamente transferida
a responsabilidade de aplicar a si mesmos aquilo que Montaigne apre-
senta como seu retrato:
[A] Esta não é a minha doutrina, é o meu estudo; e não é a lição de
outrem, mas a minha. [C] E não me tenham em má conta se eu o
comunico. O que me serve pode também por acidente servir a um
outro. Eu suma, eu não gasto nada, pois só uso o que é meu. E, se faço
o louco, é à minha custa e sem prejuízo de ninguém. Pois se trata de
loucura que morre em mim e não tem conseqüências… (II, 6, 377).
Não deixaremos, ademais, de encontrar, noutros níveis da interpre-
tação montaigniana do ceticismo, sinais mais ou menos explícitos da
mesma ênfase na particularidade — seja no sentido próprio com que

80. RODIS-LEWIS sinteticamente observou que no contraponto entre as concepções


de “eu” em Descartes e Montaigne está em jogo uma resposta do primeiro ao ceticismo
do segundo (1999, p. 84).

273

10888_A figura do filosofo.p65 273 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

se interpreta determinado conceito cético, seja mesmo na interpreta-


ção do ceticismo como a possibilidade de admissão de soluções filosó-
ficas individualizadas ante os problemas que se apresentam —, como
Montaigne parece sugerir que se faça no âmbito da busca da “ataraxía”,
por exemplo81.
Seja como for, coube a Descartes historicamente produzir a tema-
tização filosófica da subjetividade que protagonizou o debate posterior,
reintegrando, quer os materiais diversos provenientes da metafísica me-
dieval, como mostraram comentadores como Gilson, quer questões e
conceitos próprios de tradições filosóficas rivais à escolástica ao longo do
Renascimento82. Igualmente, coube a ele o papel de reintegrar o ce-
ticismo, tal como o compreendeu, à mesma dimensão institucional da
filosofia (ainda que, paradoxalmente, ele buscasse produzir uma refuta-
ção dessa postura filosófica). A despeito de alguns de seus contemporâ-
neos terem tido consciência da importância da redescoberta dos textos

81. Não poderemos aqui dar suficiente atenção a esse importante ponto. Mas note-
mos que, a partir da interpretação ora proposta, seja talvez possível reconhecer uma
inspiração moral cética, nesse sentido preciso, numa afirmação como esta (que, à pri-
meira vista, parece mais uma vez enfatizar a simples exterioridade relativamente às
soluções particulares encontradas por uma filosofia): “[C] Toda a glória que eu preten-
do de minha vida é a de ter vivido tranqüilo: tranqüilo não segundo Metrodoro, ou
Arcésilas, ou Aristipo, mas tranqüilo segundo eu mesmo. Posto que a filosofia não soube
encontrar nenhuma via para a tranqüilidade que seja boa em comum, que cada um a
busque particularmente…” (II, 16, 622C). Também nesse aspecto, o ceticismo mon-
taigniano poderia ser visto como o desenvolvimento da ênfase na individualidade do
sujeito da moral, já presente em Sêneca, no sentido de uma adaptação da moral a cada
indivíduo que a concerne (v., p. ex., III, 2, 807: “[B]… Nós outros, principalmente, que
vivemos uma vida privada que apenas importa para nós, devemos ter estabelecido um
padrão interno pelo qual medir nossas ações e, segundo ele, por vezes nos agradar, por
vezes nos castigar. Eu tenho minhas leis e minha corte para me julgar, e me dirijo a eles
mais do que a outra coisa. Eu restrinjo bem minhas ações a partir de outrem, mas eu só
as estendo a partir de mim mesmo…”). Talvez devamos compreender nesse mesmo
contexto a passagem que citamos no início de nosso trajeto: “[C] Eu não sou filósofo:
os males me assolam segundo o que pesam; e pesam segundo a forma como segundo
a matéria, e por vezes ainda mais…” (III, 9, 950). Talvez Montaigne se refira aqui ao
fato de que, em sua prática filosófica pessoal do ceticismo, não encontra um modo
suficientemente eficiente para se valer da argumentação antinômica a fim de obter a
metriopátheia cética.
82. A esse respeito, ver FAYE, 1999.

274

10888_A figura do filosofo.p65 274 28.03.07, 16:05


Filosofia como ensaio do juízo

de Sexto Empírico83, é à Primeira Meditação de Descartes que devemos


a versão dessa problemática que se tornou clássica (seja ele ou não um
bom intérprete do efetivo alcance filosófico do ceticismo antigo).
Todavia, não seria justo dizer que Montaigne, ao eleger a “boa filo-
sofia” como aquela que se define radicalmente pelo exercício do juízo
individual como critério, o antecede na invenção de uma certa suspen-
são metodológica da tradição filosófica que contribuiu, talvez, para de-
finir um modus operandi típico daquilo que denominamos hoje a filo-
sofia moderna? Além de ser, de modo por vezes trivial ou impreciso, a
filosofia da subjetividade ou a filosofia das idéias, a filosofia que se de-
nominou “moderna” parece estar marcada por esta peculiaridade: muito
freqüentemente os filósofos insistiram na importância de rever não ape-
nas as teses eventualmente sustentadas pelas filosofias passadas, mas prin-
cipalmente as concepções de filosofia imperfeitas ou limitadas por meio
das quais pensaram seus predecessores, geralmente invocadas nos diag-
nósticos que produzem acerca das razões pelas quais aqueles não teriam
podido ultrapassar o terreno do pensamento em que se viram inseridos.
Não estaríamos aqui diante de um possível ponto de partida desse há-
bito intelectual moderno pelo qual freqüentemente se assume, de saí-
da, uma posição de dúvida, ainda que metodológica, concernente à
própria maneira “tradicional” de compreender a atividade filosófica (tra-
dição que é compreendida, a cada vez, de modo particular), para que se
possa estabelecer a “boa” maneira de filosofar? Pensamos que assinalar
esse movimento histórico vale o risco das imprecisões e das teses dema-
siado gerais ou triviais em que forçosamente incorreremos neste espaço
limitado: nossa hipótese é a de que ele marca, de forma particular, o
ressurgimento moderno de um fenômeno que, embora visível na forma
pela qual a filosofia platônica demarcou para si o uso próprio desse
termo, em contraposição a outras tradições intelectuais84, não se apre-

83. Segundo Popkin, além de Montaigne, pensadores como Mersenne e Gassendi


tomaram materiais argumentativos diretamente de Sexto, e Pierre Bayle viu a reintro-
dução desses argumentos no debate filosófico como o início da filosofia moderna: cf.
POPKIN, 1979, xvii.
84. Ver, por exemplo, o livro VII da República, e o comentário de HADOT (1995)
sobre a filosofia platônica. Talvez não seja o caso de pretender, portanto, que o fenôme

275

10888_A figura do filosofo.p65 275 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

sentava de igual modo ao longo dos séculos que precederam o advento


da filosofia moderna — ou, ao menos, com igual radicalidade.
É assim que, nas Regras para a direção do espírito, Descartes enten-
de que a “filosofia habitual”, incapaz de se ater apenas ao conhecimen-
to do que a intuição e a dedução podem evidenciar, não fez mais do
que reunir conjecturas fadadas a imergir numa controvérsia insanável,
à falta de um método adequado. Sem método trabalha a maioria dos
filósofos, segundo Descartes, numa atividade de busca da verdade da
qual seria melhor desistir do que nela perseverar85. Ainda que a noção
de método seja eventualmente herdada de uma ampla tradição renas-
centista que a discute, Descartes parece ser o primeiro filósofo a vincu-
lar o uso do método a uma compreensão do sentido do que seja auten-
ticamente a filosofia. Posteriormente — para nos restringirmos aqui a
apenas dois outros exemplos entre os que poderiam ser lembrados —,
David Hume, mesmo abdicando da presunção de encontrar a verdade
onde tantos gênios do passado tenham falhado, propõe o seu estudo
experimental da natureza humana, na qual se ancora a possibilidade
de sucesso das diversas ciências à disposição do homem, diante de um
panorama no qual duas espécies de filosofia, a “abstrusa” e a “fácil”,
colaboraram diversamente para um ceticismo que pareceria desenco-
rajar a própria atividade filosófica como tal86. Renovar as pretensões da
filosofia não é, portanto, rumar na direção de um novo gênero de filo-

no em questão seja uma novidade histórica em sentido estrito, apesar do sentido particu-
lar que ganha e da intensidade com que se manifesta. Myles Burnyeat, por exemplo,
assinala que, no caso de Aristóteles, a distinção entre filosofia primeira e os demais ramos
do conhecimento não deve ser vista como uma distinção entre gêneros de saber, mas
atende, em vez disso, a uma departamentalização do conhecimento (v. 1984, p. 246).
85. Ver regras III a V (Oeuvres, esp. p. 11, 14). O tema, na verdade, é recorrente e
ganha relevância crescente nas obras posteriores, como o Discurso do método (v. primei-
ra parte).
86. Cf. as introduções de A Treatise of Human Nature e Enquiries concerning Human
Understanding. O que pretendemos sugerir é que, para Hume, a própria atividade fi-
losófica apenas parece fazer sentido se associada à esperança não apenas da produção
de um novo sistema filosófico, mas de uma nova maneira de filosofar que reúna as
virtudes desses dois tipos de filosofia (um deles, grosso modo, preocupado com o homem
como um ser voltado para a ação; outro com os problemas relativos ao conhecimento
racional da verdade). Ver especialmente EHU, p. 16.

276

10888_A figura do filosofo.p65 276 28.03.07, 16:05


Filosofia como ensaio do juízo

sofia? Outro exemplo claro nos parece ser o oferecido por Kant, na
medida em que a própria idéia de uma crítica das faculdades está dire-
tamente ligada à determinação de uma dimensão própria da atividade
filosófica, pela qual a razão possa livremente desempenhar o papel ao
qual seria naturalmente apta. Isso impõe tanto o discernimento desse
papel em contraposição ao “uso dogmático” da razão (que Kant exami-
na precisando as condições do conhecimento filosófico por oposição
ao conhecimento matemático, ao qual a razão tende, segundo ele, a ser
dogmaticamente assimilada por alguns filósofos)87 como o reconheci-
mento da justeza apenas parcial da postura dos céticos ante os dogmá-
ticos (que ele define como uma mera “censura” às pretensões da razão
de ultrapassar o domínio da experiência), insuficiente para o estabele-
cimento de uma filosofia efetivamente “crítica”, graças à qual, exclusi-
vamente, a razão seria investida da autonomia que lhe cabe para co-
nhecer a priori seus limites88.
Em suma, assistimos na filosofia pós-cartesiana (ou pós-montaig-
niana) o que parece corresponder a uma transformação e radicalização
do conflito das filosofias dogmáticas, que agora abrange não apenas as
diversas pretensões de formular a verdade e explicar o que seja o real,
mas também “a natureza e o escopo da filosofia, o sentido e o alcance
do discurso filosófico e do discurso em geral”89. Mas isso não é também
pôr em questão, de um modo radicalmente novo, o próprio sentido em
que se pode dizer filosofia? Por essa razão, talvez seja insuficiente a

87. Ver o corolário que Kant extrai relativamente à “natureza da filosofia” com base
na diferença entre demonstração matemática e prova discursiva, na Crítica da Razão
pura, III, 482, B763.
88. Ver ibid., III, 495, A757/B785 ss., e especialmente III, 496, A760-761/ B788-789.
Sobre a especificidade do projeto da filosofia crítica, entre outros textos kantianos, ver a
primeira introdução da Crítica do Juízo e o segundo prefácio da Crítica da Razão pura.
89. A formulação é de Oswaldo PORCHAT (1993, p. 219) e se aplica, em seu contex-
to, às nuances que ganham certas posturas dogmáticas no discurso filosófico contempo-
râneo. Diversos discursos filosóficos que se pretendem liberados de uma postura dogmá-
tica não percebem que, nessa medida, a preservam; ainda que abandonem a pretensão
de revelar a realidade das coisas ou professar uma verdade absoluta, não percebem que
permanecem. Porchat considera a hipótese de que tal dogmatismo dissimulado seja em
parte decorrente de uma “infeliz e generalizada ignorância do pirronismo histórico”,
cujas críticas se aplicariam igualmente a essa forma não-confessada de dogmatismo.

277

10888_A figura do filosofo.p65 277 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

simples constatação de que, entre as filosofias modernas, há uma dia-


phonía insolúvel não apenas relativamente a suas teses, mas também
aos métodos de que se valem. Tal formulação poderia talvez sugerir
uma dissociação possível entre o método efetivamente posto em prática
e a filosofia que o pratica. Mas talvez se ofereça aqui uma ocasião para
melhor compreendermos por que, na filosofia moderna, essa dissocia-
ção se tornou particularmente problemática (mesmo que esse proble-
ma não seja privativo dos modernos). O modo como implicitamente a
filosofia moderna institucionalizou o questionamento cético que está
em sua origem pode, nessa medida, ter contribuído para convertê-la
numa atividade essencialmente voltada para a reflexão do que a define
e justifica, determinando sua natureza, seus limites, seus interesses, seus
problemas próprios, sua relação com o passado. Talvez isso possua, por
conseguinte, alguma relação com a incomensurabilidade radical que
hoje parece patente entre as diversas linhagens de empreendimentos
filosóficos existentes: não apenas um filósofo se revela freqüentemente
incapaz de compreender o que afirma outro, pertencente a uma tradi-
ção diversa, mas se torna por vezes mesmo incapaz de reconhecê-lo
como filósofo (a menos de empregar tal tradição num sentido frouxo e,
afinal, pouco filosófico). Se pudermos ver isso como mais um subpro-
duto da Caixa de Pandora cética reaberta em meio aos debates entre
Reforma e Contra-Reforma, talvez possamos também lançar um olhar
renovado sobre a mesma história e, nalguma medida, contrapor ao modo
como a filosofia moderna mimetiza o projeto fundacionista da filosofia
cartesiana uma questão filosófica mais montaigniana. Não representa-
ria esse progresso histórico antes uma espécie de atualização incons-
ciente da mesma singularidade irredutível dos juízos em diaphonía
diagnosticada pelo ceticismo de Montaigne?90

90. Se cabe falar de uma exacerbação, talvez crescente, da controvérsia filosófica a


partir da modernidade, caberia igualmente, contudo, uma questão sobre a natureza do
problema cético implícito: caso aceitemos que a reação ao ceticismo renascentista de-
termina uma tematização explícita e uma transformação do sentido que ganha, a cada
vez, a empresa filosófica, deveremos efetivamente aceitar que o problema da escolha
entre filosofias, ainda que se ponha, permaneça sendo posto no mesmo sentido? Não
seria eventualmente o caso de reconhecer que, pela maneira como reagem ao desafio

278

10888_A figura do filosofo.p65 278 28.03.07, 16:05


Filosofia como ensaio do juízo

Eis como nos pareceria possível observar o ceticismo montaignia-


no por um viés pelo qual ele se torna filosoficamente mais interessante
do que costumeiramente se pensa. Contrariamente ao que alegam as
interpretações que condenam a leitura cética de Montaigne como uma
redução de seu “andar muito peculiar”, é a recusa a observar o modo
peculiar pelo qual a tradição cética se reinstaura nos Ensaios a princi-
pal responsável por reduzi-los a um mero “efeito” de seu tempo, de
decifração impossível ou relevância dúbia, e cegar-se à verdadeira di-
mensão histórica de sua filosofia.

cético, ao menos algumas filosofias posteriores apresentam argumentos diversificados, e


não necessariamente equivalentes, para justificar o engajamento em empresas filosófi-
cas que, embora preservem elementos importantes do ceticismo que as precede (diver-
samente, por certo, quanto ao modo como compreendem esse ceticismo), não mais,
todavia, se pretendem céticas? Seriam afinal tais filosofias comensuráveis pelo mesmo
argumento cético que recusa a possibilidade de uma escolha filosófica entre os dogma-
tismos antigos?

279

10888_A figura do filosofo.p65 279 28.03.07, 16:05


10888_A figura do filosofo.p65 280 28.03.07, 16:05
CAPÍTULO VI

Ceticismo em movimento

No capítulo anterior, observamos que o engajamento cético de


Montaigne, no mesmo passo em que busca retomar aspectos concei-
tuais peculiares dessa filosofia, com base em uma leitura atenta e deta-
lhada dos textos pirrônicos e acadêmicos, deixa também entrever as-
pectos peculiares — especialmente na medida em que tal prática filo-
sófica é articulada à manifestação da singularidade do juízo daquele
que a retoma. O ceticismo, na forma do ensaio do juízo, norteia-se por
certas diretrizes fundamentais quanto à impossibilidade humana de
reconhecer verdades, ao uso de nossas faculdades intelectuais e corpo-
rais, à adesão ao costume e à natureza — que se oferecem como um
relato não-dogmático, provisório e pessoal da experiência intelectual
do cético, iluminada pelos testemunhos precedentes, atualizados e rein-
terpretados. Concebe-se, porém, como um gênero próprio de filosofia
que, em vez de buscar estabelecer um conjunto de teses verdadeiras
sobre o mundo, consiste numa prática argumentativa e num exercício
intelectual voltado ao desenvolvimento dessas faculdades.

281

10888_A figura do filosofo.p65 281 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

E o mesmo viés particular, por certo, se deixa entrever na forma


pela qual Montaigne retoma a própria noção cética da epokhé — e é
desse tema que nos ocuparemos neste capítulo. Mas, se tal conseqüên-
cia poderia parecer, à primeira vista, natural em virtude da ênfase na
individualidade do julgamento compreendida na interpretação proposta,
importa situar, de saída, nossa discussão em um problema que parece
imediatamente dela decorrer. Em que medida, exatamente, devemos
ver como cética uma filosofia que se articula em torno da idéia de ação
do juízo, se o conceito central do ceticismo é a epokhé — isto é, a
suspensão do juízo? Como conciliar esses elementos aparentemente
antagônicos? Essa questão epistemológica — que, como se vê, parece
ganhar uma importância central no conjunto da interpretação — po-
deria soar talvez artificial ou secundária em vista das predominantes
preocupações de Montaigne com temas morais, mas há diversas passa-
gens, como veremos, atestando não apenas que se trata de uma questão
interpretativa sobre a qual ele mesmo diversas vezes se debruça, mas
ainda que ele nos oferece uma compreensão própria acerca da suspen-
são cética. Procuraremos, num primeiro momento, abordar o proble-
ma com base em um debate contemporâneo — normalmente descon-
siderado pela crítica dos Ensaios — acerca do pirronismo, protagoniza-
do nos meios filosóficos de língua inglesa durante os anos 19801. A
questão central desse debate é determinar o escopo da noção de epokhé
tal como presente nos textos de Sexto. Basicamente, opuseram-se duas
interpretações principais, definindo implicitamente, segundo Jonathan
Barnes, dois tipos de pirronismo: um “urbano” e outro “rústico”2. O
pirronismo “urbano” seria o que resulta de uma interpretação da sus-
pensão cética segundo a qual esta possuiria um objeto restrito e razoa-
velmente bem delimitado — a saber, os ádela, os objetos “não-eviden-
tes” da filosofia dogmática. Assim compreendida, a suspensão do juízo
diria respeito apenas às teorias filosóficas, em nada afetando, portanto,

1. O único artigo em língua francesa, em nosso conhecimento, que procura discutir


o ceticismo de Montaigne à luz desse debate é WILD, 2000. Discutiremos oportuna-
mente aspectos de sua leitura.
2. Ver BARNES, 1982, p. 2-3.

282

10888_A figura do filosofo.p65 282 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

a possibilidade de assentimento às evidências próprias do phainómenon,


aí compreendidas em grande número as crenças variadas que os ho-
mens, em geral, normalmente aceitam. Michael Frede, em particular,
procurou distinguir duas espécies de assentimento: o cético recusaria
apenas aquele dado às teorias filosóficas, mas em nada se comprome-
teria a dimensão epistêmica (isto é, a capacidade cognitiva) das crenças
e evidências relativas ao domínio do aparecer3. Opondo-se a essa in-
terpretação, Myles Burnyeat sustentou que os pirrônicos propuseram,
na verdade, um ceticismo “rústico”, isto é, uma dúvida que abarcaria
toda e qualquer evidência transcendente à dimensão meramente sub-
jetiva do aparecer, que tais filósofos teriam pretendido descrever por
relatos desprovidos de valor epistêmico4. Segundo Burnyeat, a interpre-
tação urbana desfiguraria a inspiração original do pirronismo antigo,
porque os argumentos dos antigos céticos alvejam freqüentemente os
conhecimentos sobre os objetos mundanos num sentido que apenas de
modo anacrônico pode ser considerado meramente “filosófico” ou teo-
rético5. Contudo, sua reconstituição da virulência própria da dúvida
pirrônica o conduz a vê-la como uma filosofia, em última análise, in-
consistente, posto que a recusa em se pronunciar além da esfera das

3. Ver FREDE, 1979; 1984. Ao menos em suas linhas mais gerais assim descritas, essa
visão do pirronismo antigo parece-nos próxima daquela que se apresenta na reconstru-
ção pessoal do pirronismo antigo por Oswaldo PORCHAT, na forma de um “neopirronis-
mo” (v., p. ex., 1992).
4. Ver BURNYEAT, 1980. Sua posição é posteriormente aprimorada (v. 1984) em
virtude das críticas à identificação entre “dogma” (como objeto de suspensão) e crença
feita no primeiro artigo. O próprio Burnyeat sintetiza a controvérsia (1984, p. 230-232).
5. BURNYEAT sustenta (v. 1984, p. 230-231) que a dúvida dos antigos pirrônicos é
incompatível com o “insulamento” — isto é, a restrição de um domínio próprio de
validade das questões filosóficas acerca de objetos cuja existência é normalmente admi-
tida. O filósofo, por exemplo, que nega a realidade do tempo não vê nenhuma relação
entre essa discussão e o fato de ter que ser pontual em seus compromissos. Segundo
esse comentador, trata-se de um fenômeno desconhecido dos antigos, historicamente
produzido pelo modo como o ceticismo foi retomado por Descartes e respondido pelos
modernos, que acabaram por confinar a discussão filosófica num registro não-empíri-
co. Kant é, a seu ver, a figura decisiva, por imunizar o realismo empírico da dúvida
cética com seu idealismo transcendental. Sobre isso, ver também STROUD, 1984, cap.
IV, p. 128-169.

283

10888_A figura do filosofo.p65 283 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

representações subjetivas seria incompatível com a admissão de cren-


ças. Seria, assim, preciso responder negativamente à questão sobre se o
cético pode viver coerentemente seu ceticismo e reservar à filosofia de
Hume o mérito de abordar adequadamente o problema, na medida em
que delega à natureza o poder de simplesmente impor crenças ao cé-
tico perplexo e incapaz de compreender racionalmente os fundamen-
tos dessas crenças.
Sem pretender aqui tomar partido no debate relativo ao ceticismo
antigo, notemos, contudo, que Burnyeat não deixou de fazer uma bre-
ve homenagem a Montaigne e Gassendi como patronos do que ele
denomina a interpretação “country gentlemen”, outra maneira de se
referir à leitura “urbana” do pirronismo, uma vez que, nesses filósofos,
a adoção de uma postura cética “em nada interfere na próxima colhei-
ta”6. Melhor dizendo, o ceticismo “urbano” seria apenas uma “tendên-
cia” mais claramente discernível nos Ensaios de Montaigne, ainda que
a obra “frustre a tentativa de encontrar uma interpretação do pirronis-
mo única e consistente…”7. Seria essa, porém, uma leitura adequada?
Pelo que vimos, temos já suficientes razões para considerar que tal ve-
redicto parece não prestar a devida atenção aos conceitos próprios dos
Ensaios, ao cuidado e ao aprofundamento com que ele procede a uma
exegese do ceticismo antigo, e tampouco à significação histórica de sua
reconstrução filosófica do ceticismo. Ao considerar as diferenças entre
as várias escolas céticas antigas, Montaigne discute explicitamente um
problema aparentado a esse, o de saber como deve ser compreendida
a “suspensão extrema” dos pirrônicos, tendo em vista a forma de agir
desses filósofos na vida prática (cf. 505A). Ademais, ele preconiza um
exercício do juízo que deve se medir por sua capacidade de transformar

6. Ver BURNYEAT, 1984, p. 231.


7. BURNYEAT, 1984, p. 228, nota 9. Para a interpretação de Montaigne, Burnyeat
remete a CAVE (1997; 1979), que, contudo, não se detém numa análise filosófica mais
precisa do ceticismo presente nos Ensaios. A despeito do interesse de suas análises
pelos procedimentos retóricos dessa obra, suas alusões passageiras ao ceticismo mos-
tram que ele não escapa inteiramente do preconceito já assinalado que conduz os
leitores a desconsiderar a possibilidade de um engajamento de Montaigne a uma filo-
sofia (v. 1997, p. 285).

284

10888_A figura do filosofo.p65 284 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

as ações e de devolver os homens ao mundo comum do qual a filosofia


dogmática tende a aliená-los. Não se apresenta aqui uma imagem da
filosofia de todo oposta ao “insulamento” das questões filosóficas que
Burnyeat pensa haver no ceticismo “urbano”?8 Ainda que nosso exame
nos tenha conduzido a relativizar o problema de saber qual seria a
versão do ceticismo antigo a que melhor ele corresponderia, isso não
significa abdicar do esforço de buscar, em sua reflexão, uma resposta
ao problema da interpretação do sentido e do alcance da epokhé con-
sistente com esses elementos.
Seria possível, talvez, contornar tal esforço alegando haver uma
contradição, em última instância, entre o tipo de suspensão do assen-
timento propugnado pelo ceticismo de Montaigne (caso não se trate
de um ceticismo urbano) e outros aspectos de sua reflexão. Pretende-
mos, contudo, considerar esta ocasião para situar melhor nossa in-
vestigação, em busca de esclarecer como se articulam a concepção de
filosofia como exercício do juízo e a idéia cética de suspensão do juízo,
o que, assim nos parece, permitirá compreender melhor o sentido da
resposta que Montaigne teria a oferecer a tal problema interpretativo.
Num primeiro momento (6.1), tentaremos mostrar como a alternativa
posta por essa discussão, embora útil para situarmos o problema, ofere-
ce uma chave interpretativa inadequada, para explicar não apenas o
modo como, segundo Montaigne, o ceticismo constitui um gênero fi-
losófico especial, mas também o modo como ele se explicita na forma
de uma crítica das capacidades de nossas faculdades cognitivas, que
visa denunciar que elas fomentam uma crença ilusória relativamente a

8. Ver nota 5 deste capítulo. Parece-nos que a reflexão de Montaigne se adaptaria


melhor, por exemplo, à imagem de sua filosofia que nos oferecem, ainda que de modo
igualmente rápido, as análises de Pierre HADOT sobre a transformação histórica da di-
mensão teorética da reflexão filosófica. Ainda que por meio da análise de uma referên-
cia de Nietzsche a Montaigne (Humano, demasiado humano. O filósofo e sua sombra,
§ 86), Hadot o inclui entre aqueles que conceberam, como os antigos, a filosofia como
algo intrinsecamente associado a uma “forma de vida”, por contraposição aos autores
que a verão, modernamente, como uma atividade estritamente teórica (v. 1995, esp.
cap. I e IX). Ver como Hadot apresenta sua interpretação do ceticismo antigo como
modo de vida (1995, cap. VII, esp. p. 174-177, 207-208, 222-226).

285

10888_A figura do filosofo.p65 285 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

nossa forma de conhecer as coisas, oferecendo uma imagem mais ade-


quada de como naturalmente agem. Assim, para considerar o proble-
ma segundo sua lógica própria, examinaremos a crítica que Montaigne
desenvolve acerca da incapacidade de nosso juízo de reconhecer a
verdade, no início da assim chamada “crítica à vaidade da razão”, que
constitui o terceiro momento argumentativo geral da “Apologia”9. Tal
discussão, como veremos (6.2), parece constituir um caso privilegiado
em que Montaigne, indo além de uma retomada dos argumentos
dubitativos do ceticismo antigo (como ocorre, por exemplo, na crítica
que ele dirige, em seguida, aos sentidos), nos ofereceria uma argumen-
tação dubitativa original, na forma de uma tentativa pessoal de enfren-
tar o problema da formulação positiva dos limites de nosso conheci-
mento. Dessa discussão (que nos permitirá aprofundar o contraponto
que elaboramos entre Montaigne e Descartes) talvez o aspecto mais
curioso seja o modo como a análise dos limites do juízo humano se
desdobra em dois aspectos diversos e potencialmente antagônicos: o de
sua incapacidade de obter uma verdade em sentido estrito (que possa
ser assumida como conhecimento absoluto) e o de sua incapacidade
de compreender plenamente suas limitações, diante do fato de que
incessantemente se produzem, em vista de seu exercício natural, múl-
tiplas “impressões de verdade” (nenhuma das quais capaz, contudo, de
constituir uma imagem definitiva das coisas). Poderemos assim reco-
nhecer (6.3) um novo papel desempenhado pelo paradoxo na filosofia
de Montaigne, de ordem propriamente epistemológica: não apenas ele
se oferecerá como imagem dos limites de nosso conhecimento (e, na
medida em que isso representa uma imobilização do entendimento,
como uma representação da epokhé), mas se apresentará na estrutura
da própria atividade do juízo, projetando-se sobre a atividade investiga-
tiva potencialmente infinita a que o entendimento humano se vê con-
denado. Confirmaremos aqui nossas observações sobre o modo como
o ceticismo, retomado na forma do ensaio, confere um valor destacado
à própria zétesis — uma atividade potencialmente permanente pela

9. Especialmente das páginas 559 a 577, como veremos adiante.

286

10888_A figura do filosofo.p65 286 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

qual as diversas impressões de verdade que se apresentam são sempre


candidatas a um olhar capaz de relativizá-las. Isso nos conduzirá (6.4)
a extrair novas conseqüências relativamente ao estatuto das formula-
ções positivas que a própria filosofia cética poderia oferecer acerca do
desconhecimento humano da verdade — intrinsecamente singulares,
imperfeitas e provisórias, ainda que isso não resulte propriamente numa
crítica ao ceticismo, mas num meio de situá-lo segundo a constatação
da natureza paradoxal do juízo humano. Por fim, procuraremos preci-
sar (6.5) alguns aspectos da atitude filosófica que, segundo essa leitura,
passa a ser um elemento determinante para a compreensão de como o
ceticismo se diferencia das demais formas de filosofia: no que tange
não apenas à observação mais realista dos verdadeiros limites de nossas
capacidades cognitivas, mas também à nossa inexorável tendência a
ignorá-los, que compõem a feição paradoxal de nossa natureza.

6.1. A extremidade da dúvida sob exame


No capítulo I, ao abordar preliminarmente a interpretação mon-
taigniana de epokhé10, consideramos algumas passagens que parecem
convidar a uma leitura “urbana” do ceticismo de Montaigne — em
especial, a crítica à science das coisas naturais (v. 536-558). Vimos, então,
como Montaigne se ocupa de refutar as diversas teorias inventadas para
explicar o universo e a alma humana, atacando particularmente o
justificacionismo racionalista com que os filósofos se apropriam da evi-
dência dos fenômenos, como parte de uma estratégia de legitimação de
suas doutrinas. Ali, as críticas céticas não compreendem o mero apare-
cer dos fenômenos, nem mesmo a constatação de certa regularidade
com que eles nos aparecem (a constatação de que a face se ruborize ou
empalideça em determinada situação), eventualmente corresponden-
tes a leis naturais, mas sim o modo como eles são empregados pelos
filósofos para sustentar teorias inventadas acerca daquilo que escapa de
nossa experiência (como a relação entre o corpo e a alma) (v. 538-539).

10. Ver item 1.2 — “A epokhé posta em prática”.

287

10888_A figura do filosofo.p65 287 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Montaigne parece aí assentir à evidência dos fenômenos de um modo


compatível com a admissão das “crenças comuns e legítimas” em que
ele alega se fiar, no mesmo passo em que abre mão de estar alegando
verdades por meio de sua narrativa — “eu não ensino, eu narro”11.
O cenário parece, à primeira vista, propício à manifestação de um
ceticismo “urbano”. Contudo, inspecionemos essa discussão. Montaig-
ne acabara de desenvolver uma crítica dos supostos saberes humanos
acerca das coisas divinas, e particularmente do antropomorfismo, alve-
jado como “espantosa embriaguez do entendimento humano” (516A).
O homem é limitado pelas formas finitas e precárias de conhecimento
propiciadas por suas faculdades, incapazes de conhecer a dimensão
divina, em que se alojaria a verdade, e que transcende radicalmente a
experiência cognitiva humana. Mas, incapaz de forjar um verme, ele
forja deuses às dúzias (530A), e julga-se capaz, por seu raciocínio, de
algo abarcar acerca da dimensão que transcende a experiência huma-
na. Tal pretensão, correspondente a uma figura delirante de nossas
tendências dogmáticas, exige uma atitude suspensiva radical, que se
expressa na forma de um oximoro: quanto às coisas celestes, é preciso
“imaginá-las inimagináveis” (518AC) e reconhecer que, quando nos
referimos a Deus, pretendemos nos referir a algo que ultrapassa intei-
ramente nosso entendimento: nossa palavra o diz, mas nossa inteligên-
cia não entende (528). Poder-se-ia supor, porém, que no âmbito das
coisas que se oferecem à nossa experiência estivesse a nosso alcance o
conhecimento de alguma verdade. Mas Montaigne estende a mesma
crítica — alvejando, antes de mais, o modo como os filósofos dogmá-
ticos produzem, acerca dos objetos naturais, explicações igualmente
fantasiosas que pretenderiam oferecer como conhecimento: a atitude
de Montaigne é a de considerá-los ainda mais criticáveis, tal como o
seria um pintor naturalista que produzisse uma pintura infiel à paisa-
gem (cf. 536-538). E uma razão observada aqui contra tal pretensão de
conhecimento reside na forma pela qual geralmente confundimos a
natureza e o costume (como vimos no capítulo III)12. Tudo aquilo que
tomamos por natural, tomamo-lo não com base no que seria a natureza

11. Ver III, 2, 806B.

288

10888_A figura do filosofo.p65 288 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

das próprias coisas, mas relativamente à nossa própria experiência. Por


isso, diz Montaigne: “[A]… aos mais sábios, tudo será, portanto, mons-
truoso: pois a esses a razão humana persuadiu de que ela não tem pé
nem fundamento qualquer, seja para assegurar que a neve é branca…
se há qualquer coisa ou se não há nada… ou se nós vivemos…” (526).
Mas não poderíamos assumir aquilo que nos surge segundo nossa
experiência como correspondente a alguma forma de conhecimento
acerca da natureza? Ainda que, segundo Montaigne, a experiência possa
nos oferecer um critério para a vida prática mais confiável que as ilu-
sões que a razão forja, tão mais livremente quanto mais dela se afasta,
tampouco ela é compreendida por ele como instância capaz de pro-
priamente oferecer conhecimento. Eis como se introduz o último ca-
pítulo dos Ensaios, “Da experiência” (III, 13):
[B] Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento. Nós
tentamos todos os meios que aí podem conduzir. Quando a razão
nos falta, nós empregamos a experiência… que é um meio mais fra-
co e menos digno; mas a verdade é coisa tão grande que nós não
devemos desdenhar nenhum intermediário que a ela conduza. A razão
tem tantas formas que não sabemos a qual nos ater; a experiência
não as tem menos. A conseqüência que nós queremos extrair da se-
melhança dos eventos é muito insegura, uma vez que eles são sem-
pre dessemelhantes: não há nenhuma qualidade tão universal nessa
imagem das coisas que a diversidade e variedade… (III, 13, 1065).
Notemos que Montaigne não se restringe aqui a condenar conhe-
cimentos de determinada espécie (relativos ao não-evidente); trata-se,
de modo mais geral, de considerar a capacidade de nossos recursos
cognitivos de propiciar conhecimento da verdade. E conquanto a expe-
riência possa mostrar-se um recurso mais seguro do que a razão, a des-
peito de se tratar de um meio “mais fraco e menos digno”, também
aqui nos defrontamos com o mesmo limite. Mais exatamente, a im-
possibilidade de perfazermos de modo seguro generalizações com base
em cada experiência isolada nos impede de alegar conhecimento de
verdade (na medida, ao menos, em que disso depende a alegação da

12. Ver item 3.4 — “A ogacidade dos fenômenos”.

289

10888_A figura do filosofo.p65 289 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

semelhança entre eventos). O mesmo verifica-se nas discussões nas quais


o contexto é estritamente o da recusa das interpretações dos fenôme-
nos pelos dogmáticos. Montaigne retoma a argumentação cética por
meio de fórmulas que não parecem restringir a dúvida a um conjunto
de proposições teóricas, como nesta instanciação do tropo cético da
Hipótese (cf. HP I, 164 ss.):
[A] Contra aqueles que combatem por pressuposições, é preciso pres-
supor, ao contrário, o mesmo axioma que se debate. Pois toda pres-
suposição humana e toda enunciação têm tanta autoridade quanto a
outra, se a razão não faz sua diferença. Assim, é preciso pô-las todas
na balança, e primeiramente as mais gerais e aquelas que nos tirani-
zam. [C] A impressão de certeza é um testemunho certo de loucura
e de incerteza extrema… (540).
Talvez pudéssemos pensar que “pressuposição” e “enunciação” fos-
sem sinônimos, de modo que o texto se restringisse a condenar propo-
sições que, mesmo sem exibir em seu conteúdo os conceitos forjados
pelas filosofias dogmáticas, fossem empregadas num contexto de justi-
ficação teórica. No entanto, o sentido do texto não é o de restringir,
mas o de estender: se é preciso “primeiramente” pôr em suspensão “as
mais gerais e aquelas que nos tiranizam”, estas se apresentam como
parte de um conjunto em que todos os enunciados podem ser postos
em dúvida, ainda que alguns deles só o possam ser posteriormente. E
se a razão pode “fazer a diferença”, segundo esse texto, é no sentido de
prover determinada proposição de alguma prerrogativa que a distinga
desse conjunto (que abarca, portanto, todas aquelas que se pretenda
alegar como princípio demonstrativo, bem como as que delas venham
a ser inferidas). Porém, analogamente ao que vimos no exemplo ante-
rior, Montaigne parece pretender conciliar aqui, de uma parte, uma
dúvida geral sobre a possibilidade de reconhecermos quaisquer propo-
sições como capazes de oferecer conhecimento e, de outra, alguma
diferenciação entre o grau de confiabilidade de proposições de tipo
diverso. O caráter geralmente dubitável das proposições humanas não
exclui a possibilidade de que algumas delas possam ser privilegiada-
mente objetos de suspensão — tal como ocorre noutras discussões em
que Montaigne pretende divisar algum alvo prioritário da suspensão:

290

10888_A figura do filosofo.p65 290 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

[B] … cada nação tem diversos costumes e usanças que são, não
apenas desconhecidas, mas selvagens e miraculosas para uma outra
nação… Eu digo com freqüência que é pura tolice o que nos faz
correr atrás de exemplos remotos e escolásticos… Pois, se dizemos
que nos falta autoridade para dar fé a nossos próprios testemunhos,
nós o dizemos fora de propósito… De tal modo que, na minha opi-
nião, das coisas mais ordinárias e comuns e conhecidas, se soubermos
encontrar o lume, podem se formar os maiores milagres da natureza
e os mais maravilhosos exemplos, notadamente nas ações humanas…
(III, 13, 1081; itálicos nossos).
Notadamente as ações humanas se deixam apreender sob múlti-
plos vieses, proibindo-nos de identificar nossas impressões relativas com
aquilo que as coisas são. Notadamente, mas não exclusivamente: trata-
se apenas de um caso particular do que se poderia verificar nas demais
“coisas”. Do mesmo modo, o texto anterior é bastante claro quanto ao
escopo legítimo da dúvida, o que se confirma pelo modo como a crí-
tica desenvolvida à autoridade dos princípios é finalmente traduzida
na terminologia da certeza e da evidência: “a impressão de certeza é
um testemunho certo de loucura e de extrema incerteza”. Não se trata,
ao que parece, de reservar nenhuma forma de “certeza” que poderia
ser distinta da mera “impressão de certeza”; Montaigne não convoca os
“fatos” como um critério de conhecimento, por oposição ao modo como
estariam vedados no plano teórico, mesmo que afirme serem eles “pre-
feríveis à razão”.
Noutra passagem dessa mesma discussão sobre a science dogmáti-
ca, Montaigne questiona concepções cosmológicas e geográficas vi-
gentes e se refere à argumentação dos pirrônicos nos seguintes termos:
[A] … e os Pirrônicos não se servem de seus argumentos e de sua
razão senão para arruinar a aparência de experiência, e é uma mara-
vilha [ver] até onde a maleabilidade da nossa razão os acompanhou
nesse desígnio de combater a evidência dos fatos [effects], pois eles
provam [verifient] que não nos movemos, que não falamos, que não
há pesado nem quente, com uma força de argumentação semelhan-
te àquela com que provamos as coisas mais verossimilhantes… (571).
À evidência aparentemente inquestionável dos “fatos”, a argumen-
tação pirrônica se contrapõe para mostrar que a razão não é um instru-

291

10888_A figura do filosofo.p65 291 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mento de conhecimento confiável, uma vez que pode igualmente sus-


tentar teses opostas, e para arruinar, assim, a “aparência de experiên-
cia”. Seja qual for o sentido da aceitação pirrônica da experiência factual,
não o é, aos olhos de Montaigne, admitindo-a como um solo em que
se possa seguramente enraizar alguma espécie de conhecimento: seja
porque não dispomos de meios para determinar o aporte da razão e do
costume naquilo que nos surge como natural, seja porque a razão,
pretendendo tudo dominar, nos priva da capacidade de identificar ine-
quivocamente a presença da natureza além daquilo que nos aparece
como natural13, seja ainda em virtude do modo como a própria expe-
riência pode frustrar nossa crença acerca das coisas.
Contudo, a mera exibição desse e de outros exemplos talvez não
baste para recusar a interpretação de Burnyeat: poder-se-ia alegar que
estamos diante de um conjunto de exemplos que, em última instância,
são disparatados ou contraditórios, uma vez considerados da perspectiva
de saber se o ceticismo de Montaigne é “rural” ou “urbano”. Mas cabe
indagar, antes de mais, quão longe pode avançar um diagnóstico que se
limita a contrapor passagens que, isoladamente, invocariam interpreta-
ções supostamente incompatíveis, sem se ocupar de um exame mais
preciso do encadeamento lógico dos textos em que se apresentam14.
Mesmo admitindo que a discussão sobre a precariedade dos saberes
sobre a natureza constitua um exemplo de uma interpretação urbana,
convém não esquecermos que a argumentação da Apologia, da qual
essa crítica é uma etapa, progride no sentido de uma radicalização das

13. Ver 580B, III, 12, 1049B.


14. Embora WILD tenha corretamente reconhecido, em nosso entender, que a aná-
lise de Burnyeat é incorreta ao confinar Montaigne num ceticismo urbano, parece-nos
que sua leitura peca por permanecer presa ao problema de enquadrá-lo nessa mesma
grade conceitual. Ele admite sem mais que, como não se trata de um ceticismo urbano,
Montaigne adota um ceticismo rústico (v. p. 48), sem devidamente considerar que,
segundo Burnyeat, isso conduziria a uma condenação crítica da filosofia dos céticos,
que Hume teria sido o primeiro a formular, compreendendo a inconsistência dessa
filosofia. Eis por que, parece-nos, ele é conduzido a encontrar uma oscilação da reflexão
de Montaigne entre duas formas de ceticismo (v. p. 50): ater-se à formulação do proble-
ma herdada de Burnyeat conduz à impossibilidade de recuperar a coerência própria
com que esse ceticismo é pensado.

292

10888_A figura do filosofo.p65 292 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

razões de duvidar. Nessa discussão, em particular, Montaigne se ocupa


de examinar os resultados insatisfatórios da busca humana da verdade
— que Villey denomina crítica da “vaidade do saber”. Mas ele reserva
para expor apenas posteriormente, de um modo sistemático, na crítica
à “vaidade da razão” (ainda segundo a nomenclatura desse mesmo
comentador), os argumentos propriamente epistemológicos do pirro-
nismo (em especial, os quatro primeiros tropos de Enesidemo), que
retoma na qualidade de provas da insuficiência dos meios pelos quais
obteríamos a verdade: a razão, o juízo e os sentidos, que são por fim
atacados como “prova maior da ignorância humana”15.
Detenhamo-nos um instante em examinar a passagem que faz a
transição a esses dois grandes momentos da “Apologia”, a enigmática e
controvertida “dedicatória” da “Apologia” e a subseqüente discussão
sobre a impossibilidade de oferecer limites ao espírito humano. Fina-
lizando uma ampla argumentação destinada a revelar a fraqueza de
nosso conhecimento acerca da natureza de nossa alma e de nosso cor-
po, Montaigne conclui a crítica à vaidade dos saberes afirmando: “Nós
tocamos aqui os limites e as últimas fronteiras dos saberes, dos quais a
extremidade é viciosa, como [ocorre com] a virtude…” (558A). O que
significa exatamente afirmar que a “extremidade” do saber é viciosa?
Em eco a essa observação, Montaigne alerta àquela a quem dedica o
ensaio (a princesa Margarida de Navarra, supostamente) para os peri-
gos do método argumentativo ora empregado, no qual é preciso ser
alvejado para poder alvejar seu oponente (uma eventual alusão à sua
defesa de Sebond, na qual acaba por destruir as teses do teólogo cata-
lão), em vista da natureza perigosa do espírito humano (557-559). Re-
comendando a ela que se atenha à “trilha habitual” e ao modo comum
de argumentar (ainda que o método cético, ora apresentado, possa ser,
diz ele, nalguma situação extrema, útil contra o contágio do veneno de
algum dos “novos doutores” protestantes), Montaigne justifica tais re-

15. A crítica da “vaidade do saber” se estende, segundo Villey (v. ibid., 438), de 486
a 559, enquanto a crítica à “vaidade da razão” e das demais faculdades cognitivas vai de
559 a 600. Oferecemos um mapa argumentativo mais detalhado, sem divergências sig-
nificativas com a divisão proposta por Villey, em EVA, 2003.

293

10888_A figura do filosofo.p65 293 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

comendações alertando para a necessidade de oferecer limites ao espí-


rito, em face de sua tendência a extraviar-se, e para a dificuldade de
fazê-lo. Mas a natureza ilimitada do espírito é descrita de modo bastan-
te vago, compreendendo alusões indiretas tanto às guerras de religião
como à necessidade de contê-lo em seus estudos, posto que haveria
poucas almas capazes de, “com moderação e sem temeridade, vogar na
liberdade de seus pensamentos para além das opiniões comuns…”16.
As páginas que imediatamente daí se seguem podem, com efeito,
ser lidas como uma discussão indireta desse tema, pois se concentram
no problema do oferecimento de limites ao saber humano. Elas nos
oferecem, porém, um dos exemplos mais expressivos e curiosos das
reviravoltas argumentativas que temos observado (e às quais Montaig-
ne acaba de aludir indiretamente). O desenvolvimento da discussão
oferece uma preterição relativa aos conselhos que Montaigne acaba de
dar: embora seja conveniente se deter diante dos limites perigosos ofe-
recidos pelas ciências, ele próprio passa a criticar, em consonância com
a crítica da vaidade dos saberes, o modo como seus contemporâneos
põem-se de acordo sobre as coisas que examinam, graças ao modo como
se escravizaram ao costume e à autoridade de outrem, muito embora a
filosofia antiga tenha produzido uma infinda multiplicidade de opi-
niões sobre os mais diversos temas17. Noutros termos: se limite é preciso
impor ao espírito, não se confunde com a admissão do servilismo inte-
lectual pelo qual freqüentemente a aceitação de verdades é a mera
contrapartida da ausência de espírito crítico. Isso posto, Montaigne passa
a examinar exemplos de posicionamentos filosóficos que, de diversas
maneiras, procuraram equacionar o tema do limite dos conhecimentos
acessíveis ao homem (ou, inversamente, da dúvida a respeito dos co-
nhecimentos disponíveis). Trata-se, em particular, de discutir duas teo-
rias epistemológicas que põem em cena, cada uma à sua maneira, um
problema análogo àquele que perseguimos relativamente ao modelo
conceitual do ceticismo. E a discussão que Montaigne nos oferece,

16. Ver 559AB.


17. Ver 559-560AC. Para uma discussão do mesmo tema, ver item 5.2 — “O ensaio
como investigação cética”.

294

10888_A figura do filosofo.p65 294 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

como veremos agora, é bastante elucidativa para a compreensão de


aspectos de sua posição.
A primeira dessas teorias é atribuída ao aristotélico Teofrasto, e
consiste em admitir que o conhecimento humano teria um alcance
limitado: partindo daquilo que os sentidos oferecem, poderia em certa
medida julgar acerca das causas, mas não poderia apreender aquelas
“extremas e primeiras, em razão, ou de sua fraqueza, ou da dificuldade
das coisas” (560). Não representaria ela uma interpretação possível,
entre outras, da afirmação de Montaigne sobre a “extremidade viciosa”
do saber? O que importa sublinhar é que, muito embora não se possa
aqui reconhecer uma epistemologia cética, essa teoria de Teofrasto
parece guardar algumas analogias com uma interpretação urbana do
ceticismo. Pois o que essa teoria propõe é que admitamos que o conhe-
cimento humano abarca as certezas oferecidas pelos sentidos e pode
mesmo ser veiculado por um discurso sobre as causas que permaneces-
se rente à superfície dos fenômenos, mas recusasse a especulação sobre
as entidades abstrusas que se ocultam nas fossas abissais que essa fonte
sensível não ilumina. Não poderia isso se aproximar de uma teoria
disposta a reconhecer valor epistêmico a nossas descrições do phainó-
menon, ao lado de uma suspensão do juízo sobre as proposições de
natureza filosófica, acerca do não-evidente?
A resposta de Montaigne, de todo modo, exibe as dificuldades
que teria ele para assentir a uma epistemologia como essa. Ele elogia
a opinião de Teofrasto, na medida em que é “plausível e proposta por
pessoas conciliadoras”, bem como “moderada e persuasiva”, por reco-
nhecer a temeridade de avançar além das “medidas do poder” de nossa
capacidade de conhecer. Mas o veredicto é claro: isso não a torna
uma posição coerente. Segundo Montaigne, ela constitui antes um
exemplo de tentativa malfadada de pretender impor limites ao espíri-
to humano: “… ele é curioso e ávido e não tem mais ocasião de se
deter em mil do que em cinqüenta…” (560). Mostra a sua experiên-
cia, diz ele, que:
… aquilo em que um falhou, o outro conseguiu, e que o que era
desconhecido num século, o século seguinte esclareceu, e que as
ciências e as artes não se jogam numa forma, mas antes se formam

295

10888_A figura do filosofo.p65 295 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

e figuram pouco a pouco, manejando-as e polindo-as diversas ve-


zes, como os ursos conformam seus filhotes lambendo-os à vonta-
de… (ibid.).
Significa isso que o problema de Teofrasto foi o de ter minimizado
o poder do progresso científico e a eventualidade de um conhecimento
não só dos objetos sensíveis, mas das causas primeiras? O problema
aqui não é o da possibilidade de que uma teoria que pretendesse alegar
conhecimento viesse a ser suplantada por outra mais capaz de fazê-lo,
mas sim a pretensão de afirmar conhecimento mediante um conheci-
mento parcial das causas. Confessar que as primeiras causas são desco-
nhecidas nos conduzirá a confessar que também o são seus efeitos,
posto que o “discutir e investigar” não tem outro limite que os princí-
pios: “se esse fim não detém sua marcha, ele se lança a uma incerteza
infinita” (561). Não apenas a tentativa de impor um limite à curiosida-
de é malfadada (porque é natural estender o suposto conhecimento dos
efeitos à sua causa, ainda que remota), mas a própria teoria que preten-
de estabelecer essa limitação, ao confessar que as causas são incognos-
cíveis, comprometerá o conhecimento do restante. Uma citação tardia
dos Academica atesta a referência cética dessa crítica18. Embora o com-
prometimento da pretensão de conhecimento aqui pareça decorrer da
admissão de que ele se dá sempre segundo uma relação causal, no
parágrafo seguinte Montaigne retoma as conclusões da crítica à vaida-
de do saber, articulando-as a uma dúvida de outra natureza: sendo a
alma incapaz de se conhecer e ao corpo onde se situa (como mostram
os intermináveis debates a respeito), e sendo nosso corpo e nossa alma
o que deveríamos primeiro conhecer (por serem aquilo que mais ime-
diatamente se oferece a nós), segue-se que, de fato, nada conhecemos.

18. “[C] Uma coisa não pode ser mais ou menos compreendida que outra, posto que
para todas as coisas há uma só definição de compreender…” (561; cf. Acad., II, xli, 128).
Embora essa afirmação possua em seu contexto original um propósito dialético (desti-
nado a criticar a maneira como os estóicos operam com uma única definição de “per-
ceber” em situações que se aplicam tanto à percepção dos fenômenos quanto à inves-
tigação de suas causas), aqui tal citação parece aludir apenas ao modo como nossas
tentativas de demarcar uma região onde seria possível o conhecimento tendem a ser
fadadas ao insucesso, caso examinemos mais a fundo as condições dessa demarcação.

296

10888_A figura do filosofo.p65 296 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

Ao que parece, trata-se de estender a crítica anterior a um caso em que


poderíamos pretender alegar um conhecimento que não dependeria
de qualquer causa remota para obter uma conclusão mais geral: basta
dar rédeas livres ao nosso poder de julgar para que se revele a inadequa-
ção de uma teoria epistemológica que pretenda delimitar, por meio de
alguma linha divisória nítida, aquilo que, em princípio, pode ser co-
nhecido e aquilo que não o pode ser.
Poder-se-ia alegar, porém, que a teoria de Teofrasto é dogmática,
preocupada em estabelecer verdades (e, para tanto, em traçar os limi-
tes em que essa atividade pode ser levada a cabo), enquanto a filosofia
cética pretenderia apenas lançar dúvidas sobre os nossos conhecimen-
tos (embora limitando-as a um conjunto de proposições para se tornar
viável). Porém, essa discussão conduz explicitamente ao problema de
saber como poderia o cético viver seu ceticismo, segundo a radicalida-
de que, de direito, sua dúvida poderia atingir para ser coerente com
nossa incapacidade de reconhecer a verdade.
A segunda “opinião” discutida por Montaigne é a posição relativa
à impossibilidade de conhecer que ele apresenta como a dos céticos
acadêmicos, caracterizada por meio dos textos pirrônicos que a criti-
cam. Tendo concluído a discussão da proposta de Teofrasto pela cons-
tatação cética de que a alma não tem como separar a verdade do falso,
uma vez que é pela mesma via que ambos adentram em nossa alma,
ele passa a examinar o modo pelo qual os pirrônicos teriam lidado com
a radicalidade de sua dúvida, segundo a qual não seria mais verossímil
dizer que a neve seja branca do que negra, nem dizer que não seríamos
mais seguros do movimento de uma pedra que parte de nossa mão do
que do movimento da oitava esfera (v. 561A). As palavras com que
Montaigne qualifica esse resultado filosófico são estas: trata-se de uma
“dificuldade e estranheza, que não pode se alojar em nossa imaginação
senão dificilmente” (ibid.). E como os acadêmicos responderiam, se-
gundo ele, a tal dificuldade? “[A] Eles se rendem ao reconhecimento
de que algumas coisas são mais verossímeis do que outras e recebem
em seu juízo a faculdade de poder se inclinar antes a uma aparência do
que a outra: eles lhe facultam a propensão, proibindo-lhe a resolução…”
(561). A interpretação de Montaigne dessa resposta acadêmica (que

297

10888_A figura do filosofo.p65 297 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

seria revista, ao que parece, posteriormente a 1580)19, parece admitir,


de um lado, a admissão da impossibilidade radical de conhecer e, de
outro, a necessidade de limitar essa conclusão em vista dos problemas
que ela acarreta, por meio da admissão de uma inclinação de nosso
juízo às proposições que se apresentem com aparência inquestionável
de verdade.
Há, com efeito, um fio condutor único para a discussão das posi-
ções cética e dogmática — a impossibilidade de oferecer limites ao
espírito humano — pelo qual podemos precisar a interpretação do ce-
ticismo aqui implicada. Qual seria exatamente a impossibilidade de
reconhecer limites que agora, em versão negativa, se oferece na discus-
são do exemplo acadêmico? Montaigne faz seu aqui o argumento ofere-
cido por Sexto, nas Hipotiposes, segundo o qual a concessão feita à
inclinação do juízo ao verossímil não difere daquela que se faria ao
reconhecimento da verdade, pois aquele que pensa ver uma aparência

19. Há pelo menos dois indícios de uma possível mudança na interpretação acerca
desse aspecto do ceticismo acadêmico por parte de Montaigne após 1588. Adicionando
tardiamente uma passagem de Cícero para ilustrar a exposição do critério cético de
ação (que passa, portanto, a ser comentado por passagens oriundas dessas duas orienta-
ções céticas indistintamente), Montaigne afirma que a necessidade de viver obriga o
sábio a admitir coisas “não compreendidas, não percebidas e não consentidas” (505-506;
itálicos nossos). Como o termo consentement é empregado por Montaigne como sinô-
nimo de “assentimento”, talvez não mais se trate, a essa altura, de compreender a ade-
são ao “provável” como uma forma de assentimento a uma inclinação do julgamento.
De modo geral, Montaigne tenderá a interpretá-la, como dissemos no capítulo III, co-
mo um critério puramente prático. A mesma idéia é exposta nesta citação latina dos
Academica, também tardia, que Montaigne justapõe à crítica dos pirrônicos aos acadê-
micos: “Nenhuma diferença há entre as aparências verdadeiras e as falsas que mova a
alma ao assentimento” (562; cf. Acad. II, 28). Qual pode ser o sentido desse acréscimo
se não o de levantar uma suspeita acerca da justeza da interpretação dessa filosofia
proposta pelos pirrônicos, então aceita por Montaigne? Tal passagem parece oposta à
hipótese de que eles teriam deliberadamente conferido algum peso epistêmico ao “pro-
vável”, pressuposta por aquela interpretação. Assim, Montaigne poderia preservar a coe-
rência da crítica, mas discutir sua eventual pertinência interpretativa. De todo modo,
sublinhemos que já em 1580 Montaigne aproxima, duas páginas depois, pirrônicos —
aqueles que duvidam de tudo, mesmo de que “o céu está sobre a nossa cabeça” — de
acadêmicos — aqueles que dizem que nada pode ser compreendido, nem mesmo que
“o céu está sobre a nossa cabeça” — como as “duas opiniões que são…, sem compara-
ção, as mais fortes” entre as diversas sustentadas pelos filósofos (v. 563A).

298

10888_A figura do filosofo.p65 298 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

de verdade deveria admitir que pode afinal conhecê-la inteiramente,


uma vez que deve conhecer a própria coisa para poder dizer o que lhe
é semelhante20. O problema é similar ao que fora detectado na posição
de Teofrasto, mas de sinais trocados: se ali a admissão de uma impos-
sibilidade parcial de reconhecer a verdade acaba por destruir o empreen-
dimento dogmático, aqui é a admissão implícita de seu reconhecimen-
to que mostra ser problemática essa versão do ceticismo. Porém, tal
inconsistência parece aqui se tornar objeto de crítica na medida em
que reflete alguma forma de teoria sobre as coisas — mais exatamente,
sobre aquilo que podemos ou não conhecer. É nesse sentido que
Montaigne compreende, na mesma época, a diferença estabelecida
pelos pirrônicos entre o gênero de filosofia que praticam e a dúvida
acadêmica, como atesta esta passagem:
[A] Os pirrônicos pensam que os que pensam tê-la encontrado [a
verdade] enganam-se infinitamente, e que há ainda grande ousadia
de vaidade neste segundo grau [na filosofia acadêmica] que assegura
serem as forças humanas incapazes de atingi-la. Pois isso de estabe-
lecer a medida do nosso poder de conhecer e julgar a dificuldade das
coisas é uma grande e extrema ciência [science], da qual duvidam que
o homem seja capaz… (502; itálicos nossos; cf. HP I, 226).
Eis o que a crítica pirrônica elucidaria acerca da situação humana
de ignorância da verdade, aos olhos de Montaigne: não se trata de re-
cusar ou restringir a tese segundo a qual nada conhecemos, igualmen-
te formulada pelos acadêmicos, mas, ao contrário, de ir além e apontar
as dificuldades de obter uma formulação clara acerca dos limites do
desconhecimento humano da verdade. Isso porque a compreensão do
ceticismo como pura prática argumentativa comportaria a possibilida-
de de duvidar não apenas da “tese” cética de que seríamos totalmente
incapazes de conhecer (mesmo que fosse para constatar que a capa-
cidade de entendimento humano seria ainda menor do que aquela
implicitamente reconhecida pelos acadêmicos), mas também das ex-
plicações que o cético produziria para pretender explicar como ele vive
coerentemente sua filosofia — desde que elas constituíssem elabora-

20. Ver. 562, cf. HP II, 74-75.

299

10888_A figura do filosofo.p65 299 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ções teóricas. Da pretensão de restringir a esfera de nossas pretensões


cognitivas ao assentimento à nossa incapacidade de conhecer a verda-
de em todos os níveis, e daí à constatação de que tampouco essa inca-
pacidade poderia ser objeto de uma formulação inteiramente satisfató-
ria, tratar-se-ia apenas de um aprofundamento contínuo da mesma pre-
tensão de extrair as conseqüências mais coerentes da necessidade de
reconhecer os limites do espírito humano e descobrir, entre essas limi-
tações, a permanente impossibilidade de fazê-lo.
Há textos, porém, em que Montaigne parece adotar uma posição,
relativamente à viabilidade prática de uma dúvida extrema como a que
seria proposta pelo pirronismo, oposta àquela que consideramos. Po-
rém, graças aos elementos metodológicos sobre o paradoxo montaig-
niano já considerados, tais textos, em vez de nos conduzirem a conde-
nar a eventual incoerência de Montaigne, parecem nos convidar à
consideração de aspectos que parecem escapar à alternativa “rústico”
versus “urbano” de interpretação (no sentido em que ela se apresenta
formulada). Na mesma discussão sobre o verossímil acadêmico, a extre-
midade da epokhé dos pirrônicos, a despeito da sua coerência também
extrema, é apresentada em termos condicionais: “a mais segura posição
de nosso entendimento, e a mais feliz, seria aquela em que ele se
manteria calmo, reto, inflexível, sem movimento e sem agitação…”
(562). E na introdução de um ensaio aparentemente contemporâneo
da “Apologia”, intitulado “Da virtude”21, assim Montaigne se refere à
dúvida de Pirro:
[A] Eu acho, por experiência, que há bastante diferença entre os
impulsos e repentes da alma e um hábito constante e resoluto…
Pirro, aquele que construiu da ignorância um saber [science] tão
agradável, tentou, como todos os outros verdadeiramente filósofos,
fazer sua vida responder à sua doutrina. E por sustentar ser a fraque-
za do juízo humano tão extrema, a ponto de não poder tomar partido

21. Diante da impossibilidade de uma datação precisa, VILLEY conjectura que esse
ensaio tenha sido composto posteriormente a 1576 (v. Les Essais, p. 705, 676, 668). Seja
como for, é evidente o interesse pronunciado de Montaigne pelo ceticismo — aí discu-
tido, em particular, a partir das Vidas de Diógenes Laércio.

300

10888_A figura do filosofo.p65 300 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

ou inclinação, e de querê-lo perpetuamente equilibrado, observando


e acolhendo todas as coisas como indiferentes, diz-se que ele se
mantinha sempre de mesma feição e aspecto: se começava uma
conversa, não a interrompia quando aquele a quem falava já se tinha
ido… Uma vez ele sofria, ao ser incisado e cauterizado, com uma
constância tal que não se o via sequer piscar os olhos. Não é pouco
conduzir a alma a essas imaginações, é ainda mais aí juntar as ações
[les effects], todavia não é impossível; mas, juntá-las com tal perseve-
rança e constância a ponto de estabelecer delas o seu curso de vida
ordinário, certamente, nessas empresas tão afastadas do uso comum,
é quase incrível que se possa… (II, 29, 705-706).
O ponto central pelo qual essa interpretação da prática da epokhé
se opõe àquela sustentada por Montaigne na apresentação da filosofia
cética da “Apologia” concerne à sua relação com a vida comum: lá, a
adesão ao phainómenon, como vimos, é entendida como algo que cor-
responderia a uma vivência segundo “a forma comum” (505A), em
detrimento da interpretação proveniente de Diógenes Laércio — que
aqui, sem maiores explicações, é apresentada como conseqüência coe-
rente da conclusão pirrônica sobre a fraqueza extrema do juízo. Entre-
tanto, se esse comentário se aproxima das qualificações da dúvida extre-
ma presentes na discussão sobre a verossimilhança acadêmica — uma
“dificuldade e estranheza, que não pode se alojar em nossa imaginação
senão dificilmente” (561) —, trata-se aqui de oferecer uma versão mais
branda da mesma posição extrema: seria possível não apenas imaginar,
mas praticar tal dúvida, ainda que apenas temporariamente. Qual é,
afinal, a dedução coerente a extrair da conclusão extrema sobre a fra-
queza do juízo? Eis a questão que esse conjunto de textos nos parece
implicitamente propor.
E talvez a primeira lição que contenham seja a de nos convidar a
desconfiar das aparências. Pelo que vimos até aqui, uma situação para-
doxal tão flagrante como a que se apresenta nesses textos pode bem
oferecer não uma mera contradição inexplicável, mas um convite de-
liberado ao julgamento do leitor (seja acerca da interpretação de Mon-
taigne a respeito do problema, seja, por esse meio, acerca do problema,
ele mesmo). Com efeito, parece haver ao menos uma diferença entre

301

10888_A figura do filosofo.p65 301 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

essas discussões que, embora sutil, é bastante significativa. Na “Apolo-


gia”, Montaigne compara as duas interpretações e oferece seu juízo,
em primeira pessoa, sobre o ponto22, ao passo que aqui ele retoma a
interpretação laerciana do ceticismo tomando o devido cuidado de não
a endossar pessoalmente: “diz-se que ele se mantinha sempre de mes-
ma feição e aspecto” (II, 29, 705; itálicos nossos). Mas o fato de se tratar
de uma descrição eventualmente infiel ou fantasiosa da filosofia pirrô-
nica torná-la-ia inútil como objeto de reflexão? Isso parece estar, aliás,
em conformidade com o que Montaigne reconhece ser a utilidade, de
modo geral, das diversas narrativas que considera no âmbito de seu
exercício reflexivo, como diz ele no ensaio “Da força da imaginação”:
[C] Também no estudo que faço de nossos modos de agir [mœurs] e
movimentos, os testemunhos fabulosos, posto que sejam possíveis,
servem como os verdadeiros. Ocorrido ou não, em Paris ou Roma, a
João ou a Pedro, é sempre um lance [tour] da capacidade humana,
do qual sou utilmente informado por esse conto… (I, 21, 105).
E a que se prestaria aquele relato, considerado de tal ponto de
vista? Montaigne parece sugerir que, se essa fosse a conseqüência ne-
cessária do reconhecimento da fraqueza do juízo humano, precisaría-
mos concluir pela impossibilidade de pôr em prática uma dúvida dessa
ordem, ainda que o pudéssemos fazer temporariamente. Isso não signi-
fica necessariamente que o ceticismo devesse ser praticado desse modo.
Mas pode significar que, embora uma dúvida com tal abrangência
pudesse mesmo ser justificada por nossas efetivas capacidades de co-
nhecer a verdade, embora, ademais, tal dúvida não seja, de fato, con-
ciliável com o que nos mostra nossa experiência acerca das ações hu-
manas, ela seria, ainda assim, praticável de modo mais restrito (apenas
momentaneamente, por exemplo, num espaço próprio da reflexão filo-
sófica, em que poderíamos nos afastar da aceitação das certezas exigi-

22. “[A] Eles [os pirrônicos] deixam por essas coisas [os quatro aspectos do phainóme-
non] suas ações comuns, sem nenhuma opinação ou julgamento. O que faz com que
eu não possa conciliar com esse discurso o que se diz de Pirro…” (505; itálicos nossos).
Villey informa que, nas edições publicadas antes da morte de Montaigne o texto assim
precisava: “… o que Laércio diz da vida de Pirro, e a que Luciano, Aulo Gélio e outros
parecem se inclinar: …”.

302

10888_A figura do filosofo.p65 302 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

das pela ação no mundo — tal como a dúvida articulada pela Primeira
Meditação cartesiana ou atribuída por Hume ao cético pirrônico).
Essa mesma espécie de exercício reflexivo, com base em conside-
rações hipotéticas, parece se apresentar noutras passagens em que se
discute o mesmo ponto. Quando Montaigne sugere que aos mais sá-
bios, capazes de examinar às ultimas conseqüências o poder com que
a razão pode igualmente sustentar teses opostas, “tudo pareceria desor-
denado ou monstruoso” (v. 526AC), não se trata de admitir que seja
realmente possível pôr em prática tal relativização, mas tampouco se
trata de criticar a extremidade da dúvida pirrônica. Isso nos mostra ser
importante cuidar de não confundir dois aspectos diversos dessa refle-
xão, para não sermos conduzidos à incapacidade de compreender como
eles se conciliam: de uma parte, o juízo de Montaigne sobre a coerên-
cia com que os pirrônicos denunciariam nossa incapacidade extrema
de conhecer; de outra, seu juízo sobre a possibilidade de praticar um
exercício dubitativo que faça plenamente justiça ao reconhecimento
dessa incapacidade. O fato de que o pirronismo, segundo Montaigne,
ofereça o posicionamento filosófico mais coerente acerca de nossa si-
tuação natural no que tange ao conhecimento de verdades não signifi-
ca necessariamente que a dúvida que a ela corresponderia de modo per-
feito deva ser passível de ser posta em prática. Isso parece depender de
um esforço interpretativo independente, e o modo como se responde
a esse problema não tem necessariamente implicações sobre o primei-
ro. Importa distinguir, assim, de uma parte, o fato de que as mais diver-
sas proposições que podem ser oferecidas como conhecimento de algo
(os exemplos oferecidos abarcam enunciados como “a neve é branca”
ou “existe algo”) possam revelar-se ilimitadamente como objeto de
dúvida e, de outra, a possibilidade de praticar integralmente uma dú-
vida que a elas corresponda e que nos permita abandoná-las conjunta-
mente. Noutros termos, Montaigne parece considerar implicitamente
como coisas diversas o problema de saber se são igualmente passíveis
de dúvida as proposições “a neve é branca” e “a oitava esfera celeste se
move” (problema cuja resposta seria, a seu ver, afirmativa) e o proble-
ma de saber como isso pode se acomodar em nossa “imaginação” ou
mesmo em nossa prática. O primeiro parece dizer respeito à dubitabi-

303

10888_A figura do filosofo.p65 303 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

lidade das diversas proposições que se ofereçam como candidatas a


representar uma verdade. O segundo, à atualização dessa dubitabilida-
de numa dúvida atual e efetiva.
O breve capítulo sobre “Como nosso espírito se enreda a si mes-
mo” (II, 14) se constitui de uma página na qual se desenvolve um novo
exercício imaginativo que guarda algumas analogias com os que acaba-
mos de examinar. Assim se inicia ele:
[A] É uma interessante imaginação conceber um espírito justamen-
te equilibrado entre duas vontades iguais. Pois é indubitável que ele
não tomará nunca partido, posto que o emprego [l’application] e a
escolha envolvem desigualdade de apreciação; e quem nos colocasse
entre a garrafa e o presunto, com igual apetite de beber e de comer,
não nos daria, sem dúvida, outro remédio que morrer de fome e de
sede… (II, 14, 611A).
Assim como o pirrônico em suspensão de juízo, segundo a interpre-
tação de Diógenes, estaria condenado à impossibilidade de viver de
maneira prática, porquanto sua filosofia o conduziria a encontrar ra-
zões contra todas as espécies de evidência, um espírito que permane-
cesse em suspensão entre duas vontades pereceria sem poder agir. Em
ambos os casos, trata-se do mesmo problema da apraxía. Poder-se-ia
objetar que uma igualdade de vontades não é uma igualdade de ra-
zões, e o próprio Montaigne, como dissemos no primeiro capítulo,
circunscreve a epokhé, em sua exposição da filosofia pirrônica, ao as-
sentimento (consentante), nada obstando ao “imaginar” e ao “querer”
(v. 503A). Mas o tratamento desse exemplo sobrepõe um caso a outro,
posto que Montaigne passa imediatamente a considerar a explicação
dos estóicos acerca de como a alma escolhe entre “duas coisas indife-
rentes… entre as quais nenhuma razão nos incline à preferência…”.
E em que consistiria a explicação estóica para essa escolha não-racio-
nal? Em sustentar que tal eleição é resultado de um movimento “ex-
traordinário e desregrado, que nos advém de um impulso estrangeiro,
acidental e fortuito…”. De sua parte, porém, Montaigne prefere esta
outra explicação:
[A] Poder-se-ia dizer, parece-me, antes, que nenhuma outra coisa se
apresenta a nós em que não haja alguma diferença, por ligeira que

304

10888_A figura do filosofo.p65 304 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

seja; e que, ou à vista ou ao toque, há sempre alguma coisa que nos


atrai, ainda que seja imperceptivelmente… (ibid.).
Como compreender o sentido da alternativa oferecida por Mon-
taigne? Pretenderia ele efetivamente propor uma teoria alternativa? No-
vamente, antes de precipitadamente extrairmos dessa passagem alguma
teoria ontológica, gratuitamente formulada, sobre a diversidade radical
dos objetos naturais, importa prestar atenção às ilustrações que Mon-
taigne oferece desta sua opinião: a corda igualmente forte em todos os
pontos que não se romperia jamais, ou as demonstrações geométricas
que conduzem a proposições paradoxais como a que afirma que duas
linhas se aproximam sem jamais se tocar; exemplos nos quais “a razão
e os fatos [effects] são tão opostos” que nos autorizam a aceitar esta
conclusão “extrema” (hardy) de Plínio: “Nada é tão certo quanto a
incerteza, e nada mais miserável e orgulhoso do que o homem”23.
Seria de esperar que a própria explicação montaigniana — espe-
cialmente ao alegar que qualquer escolha é implicitamente feita por
razões, mesmo que sejam imperceptíveis — viesse apoiada, ela própria,
de razões para ser admitida como uma alternativa melhor que a expli-
cação estóica. Contudo, as ilustrações a que nos referimos dificilmente
parecem poder oferecer uma corroboração de tal explicação. Se a alter-
nativa montaigniana for vista como o oferecimento de uma explicação
positiva, não será razoável reagir, sobretudo na medida em que falta
um apoio argumentativo mais claro, a fim de suspender o juízo diante
de ambas? A partir do momento em que o leitor adota uma postura
mais ativa e busca se posicionar diante da alternativa oferecida, acaba
por perceber que as razões oferecidas tematizam indiretamente essa
questão e acabam por problematizar os próprios critérios relativos à
escolha de uma delas. Como escolher diante de duas explicações que,
do ponto de vista da razão, parecem ter o mesmo peso? O único ele-
mento que Montaigne acaba por oferecer em favor de sua explicação
é o fato de que ela lhe aparece como preferível relativamente à outra.
Porém, essa justificativa nos conduz à conclusão de que a explicação

23. Cf. PLÍNIO, História natural, II, 7.

305

10888_A figura do filosofo.p65 305 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

de Montaigne é equivalente à explicação estóica (pois os estóicos afir-


mam, exatamente, que à falta de razões nós escolhemos por um movi-
mento fortuito, não-racional). Ao mesmo tempo, isso não basta para
conferir razão aos estóicos, pois as duas explicações são diversas quanto
ao seu conteúdo: uma alega que essa escolha residiria num impulso
fortuito da alma; outra alega que a diferença que nos move a escolher
reside nas próprias coisas. Somos, afinal, reduzidos a um impasse e
acabamos por descobrir um panorama, nessa discussão, que parece
melhor justificar as ilustrações paradoxais oferecidas por Montaigne24.
Se essa leitura for aceitável, acabaremos por constatar uma curiosa
transformação do papel retórico dos próprios paradoxos apresentados
como ilustração por Montaigne. À primeira vista, eles pareceriam re-
presentar exemplos ou justificativas da explicação proposta por ele, mas
agora é a própria explicação proposta que passa a constituir, ao lado da
explicação estóica, uma ilustração, ao lado dos outros paradoxos, da
dúvida extrema afirmada pela citação de Plínio que conclui esse capí-
tulo. Ao mesmo tempo, o impasse a que somos conduzidos nos convi-
da a reconsiderar o texto e indagar se a explicação oferecida por Mon-
taigne não poderia atender a um propósito outro que o de oferecer uma
explicação positiva sobre a razão que nos leva a escolher entre alterna-
tivas iguais. Não estaria Montaigne, em vez disso, apenas elaborando
um argumento dubitativo?
A oposição entre “razões e fatos” que se segue à explicação ofere-
cida por Montaigne parece claramente aludir à prática pirrônica de
argumentar de vários modos para engendrar a suspensão sobre todas as
coisas, opondo o que é pensado ao que é pensado, ou o que aparece ao
que aparece, ou alternativamente25. Todos esses relatos são oferecidos

24. Na “Apologia”, o mesmo problema é objeto de uma explicação que se aproxima


antes da que é aqui considerada como proposta pelos estóicos, posto que Montaigne
alude ao modo como um “instinto fortuito” poderia inclinar nosso julgamento em favor
de uma causa diante de dois objetos semelhantes (v. 569A). Tal oscilação talvez seja um
motivo para suspeitarmos de que a descrição da causa objetiva importa menos do que
o reconhecimento de que interfere na ação do julgamento um elemento que lhe escapa.
25. Cf. HP I, 31. Como exemplo da oposição entre o que é pensado e o que aparece,
o cético afirma proceder como Anaxágoras, opondo à visão de que a neve é branca o

306

10888_A figura do filosofo.p65 306 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

como exemplos de elucubrações cujos resultados, embora se sigam


racionalmente dos pressupostos, chocam-se com os “fatos” (as duas li-
nhas que, segundo a razão, poderiam se aproximar infinitamente sem
se cruzar acabariam por se encontrar no mundo da experiência factual).
Ora, a alegação de que existem diferenças “imperceptíveis” nas coisas
que nos levam sempre a escolher poderia talvez, nessa medida, ganhar
outro significado: não aludia ela, novamente, ao modo como as pró-
prias teorias sobre o que se deveria seguir da prática de uma dúvida
extrema se chocam com a forma com que os fatos efetivamente se im-
põem? Se assim fosse, esse conflito entre as razões e os fatos, em vez de
representar alguma espécie de limitação do ceticismo (na linha do
argumento da apraxía, como poderia parecer à primeira vista), poderia
se converter, ao contrário, em uma ilustração de um ceticismo mais
radical, que conduz sua dúvida ainda além (em conformidade com o
que se afirma no final do ensaio). Tais fatos só significariam um limite
a uma “dúvida extrema” num contexto em que o ceticismo fosse com-
preendido como a produção de uma teoria coerente sobre como o caráter
dubitável de todas as proposições humanas se concilia ou mesmo pos-
sibilita a inserção plena e integral na vida comum. Mas, se o ceticismo
pirrônico é essencialmente compreendido como uma prática argumen-
tativa, destinada a exibir a natureza duvidosa de tudo aquilo que se
pretenda oferecer como uma verdade incontestável, esses mesmos fa-
tos podem representar mais uma instanciação da prática cética, ilus-
trando a impossibilidade de oferecer limites ao espírito.
Essa explicação nos permitiria, todavia, observar melhor a coerên-
cia própria desse breve ensaio, permitindo-nos constatar que seu trajeto
aprofunda e transforma o sentido em que se poderia compreender seu
tema central: “como nosso espírito se enreda a si mesmo”. Ao fazê-lo,
Montaigne nos conduz de uma concepção inicial sobre o que seja a
dúvida extrema — “entre vontades iguais o espírito perece” — a outra
que corresponde não a uma simples formulação oposta (posto que, por
seu simples conteúdo, a conclusão, proveniente de Plínio, nada escla-

pensamento de que a neve é água congelada e a água é negra; portanto, a neve é negra
(v. HP I, 33, cf. HP II, 244).

307

10888_A figura do filosofo.p65 307 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

rece acerca de como Montaigne a compreende), mas se identifica com


a própria atividade reflexiva pela qual a primeira imagem é submetida
a uma investigação crítica. Igualmente, podemos dizer que essa estra-
tégia paradoxal atende a um propósito similar àquele que já observa-
mos em exemplos anteriores: trata-se de exigir, por seu intermédio, o
próprio aprofundamento da reflexão, sob pena de permanecer no im-
passe ou na superficialidade. O leitor é, desse modo, conduzido a ob-
servar que a própria formulação do problema sobre a relação entre dúvida
cética e vida prática deve ser reconsiderada e reposta no âmbito de
uma prática filosófica dubitativa mais extrema e menos ingênua. Se,
por fim, o “espírito se imobiliza”, a isso corresponde uma transforma-
ção do próprio sentido da epokhé: o espírito não se torna inapto a agir
ante o reconhecimento da capacidade de opor toda razão a uma razão
oposta, mas apenas reconhece a impossibilidade de conciliar o que a
razão lhe apresenta (a impossibilidade de agir como conseqüência ra-
cional da constatação da possibilidade de indefinidamente opor razões
opostas) e os fatos (pois, de todo modo, necessariamente o espírito age).
No mesmo passo, é uma visão mais tosca do ceticismo, presa à perspec-
tiva de oferecer ainda alguma espécie de teoria que não estaria inteira-
mente isenta de alguma forma de vaidade dogmática (visão que se faria
ainda presente quando, alternativamente, se negasse ao cético a possi-
bilidade de praticar seu ceticismo), que cede o passo a outra, segundo
a qual a compreensão da impossibilidade de oferecer limites à ativida-
de dubitativa do espírito se traduz numa prática permanente, que con-
sidera cada nova proposição que se alcança mais uma candidata poten-
cial à suspensão.
Façamos uma rápida síntese dos principais pontos até aqui levanta-
dos. Em primeiro lugar, a compreensão que tem Montaigne do ceticis-
mo antigo, tal como o interpreta (e tal interpretação tem reflexos no
nível de sua prática argumentativa cética), aparenta ser incompatível
não apenas com uma interpretação “urbana”, mas, de modo mais ge-
ral, com qualquer leitura que pretenda estabelecer alguma forma de
teoria sobre o âmbito de aplicação da dúvida ou sobre a possibilidade
de articulá-la de modo plenamente coerente com a esfera da ação. É
nesse sentido que ele advoga uma dúvida “extrema”: ele não julga

308

10888_A figura do filosofo.p65 308 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

possível impor, ao que parece, qualquer restrição teórica à possibilida-


de de que, de direito, toda e qualquer proposição seja sujeita à dúvida
filosófica quanto a sua pretensão de formular uma verdade. Se isso o
aproximaria de um ceticismo de tipo “rústico”, ele considera, contudo,
que a impossibilidade de impor limites à atividade dubitativa abarca
não apenas os pressupostos de uma leitura de tipo urbano, mas tam-
bém a exigência tácita que obrigaria o cético, ou bem a recusar sua
vida prática, se isso fosse possível, ou bem a abandonar sua filosofia. O
filósofo cético pirrônico (ao qual o filósofo da Nova Academia acaba
por ser assimilado, com o progresso da redação da obra) parece ser,
segundo Montaigne, aquele que teria conduzido ao seu limite mais
extremo de coerência nosso esforço de reconhecer nossa impossibilida-
de de reconhecer a verdade, e tal reconhecimento converte sua filoso-
fia essencialmente numa prática capaz de abarcar até as diferentes for-
mas de compreensão teórica de sua coerência particular. Disso não se
segue que o cético esteja proibido de aceitar as diversas percepções e
crenças que a ele se impõem no contexto de sua inserção prática no
mundo — desde que não sejam compreendidas como conhecimento
das coisas, mas como elementos que facultam o seu uso.
Em segundo lugar, como vimos, Montaigne discute o problema da
possibilidade de pôr em prática uma dúvida extrema: se as diversas
teorizações acerca dos limites da dúvida podem ser alvo de uma argu-
mentação suspensiva, isso não significa que se pretenda simplesmente
abdicar de compreender como tal dúvida pode ser efetivada em vista
das exigências impostas pela própria esfera da vida prática. E como
compreenderia o próprio Montaigne a efetivação da dúvida cética em
vista desse âmbito de restrições? Deixando aqui de lado aquelas de ordem
“externa” (relativas ao assentimento estratégico e voluntário do que im-
põe o costume), notemos, primeiramente, que parece ser decisiva a
distinção entre dois níveis pelos quais se trata de considerar o diagnós-
tico cético: de uma parte, o ceticismo extremo corresponde à admissão
de que toda e qualquer proposição seja, em princípio, passível de dú-
vida; de outra, isso não significa que seja efetivamente pôr em prática
uma dúvida que atualize integralmente tal possibilidade. E, sobretudo,
os limites encontrados quanto ao segundo ponto não devem ser vistos

309

10888_A figura do filosofo.p65 309 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

como algo que interfira necessariamente na validade do primeiro.


Ademais, Montaigne recusa a possibilidade da prática de uma dúvida
extrema constante, mas não da uma prática pontual de uma dúvida
dessa espécie mais radical; bem como recusa a possibilidade de uma
dúvida que se atualize simultaneamente sobre tudo o que seria passível
de dúvida, mas não de uma dúvida que se atenha antes a um conjunto
privilegiado de proposições (antes as mais gerais do que aquelas que
descrevem fatos particulares, ou antes aquelas concernentes aos even-
tos humanos do que aos de outra natureza), sem que isso signifique que
as proposições que não foram postas em dúvida sejam por isso portado-
ras de alguma garantia de veracidade.
Por fim, parece-nos que os textos aqui examinados, devidamente
compreendidos, não se opõem à interpretação do ceticismo a que Mon-
taigne expressamente adere na “Apologia”, e não fazem dos Ensaios,
como poderia parecer à primeira vista, uma colcha de retalhos incon-
gruentes: o ceticismo surge-lhe como uma filosofia não apenas compa-
tível com a prática, mas capaz de favorecer a plena inserção do homem
no mundo, segundo o uso de todas as suas faculdades naturais e espi-
rituais. Mesmo sem ver claramente, por ora, como exatamente isso se
articula com a admissão de que toda e qualquer proposição pode ser
objeto de dúvida, podemos antever que, em linhas gerais, Montaigne
se afigura, ao menos nesse aspecto, como um filósofo menos distante
de Hume do que a literatura de comentário tem tendência a reconhe-
cer (salvo pelo fato de que não compreende a impossibilidade prática
da atualização de uma dúvida compatível com a precariedade efetiva
das demonstrações racionais como algo que se oponha a um ceticismo
extremo). Seja qual for a melhor forma de compreender essa articula-
ção, ela implica uma forma de aceitação do phainómenon que preten-
de despi-lo de qualquer aporte epistêmico, sem com isso esvaziar a
vivência no mundo de qualquer dos aspectos em que ela se oferece a
nós segundo as capacidades humanas.
Se esse ceticismo não cabe exatamente nas chaves interpretativas
impostas pelo debate entre Burnyeat e Frede, os elementos aqui levan-
tados são úteis para prosseguirmos nosso esforço de reconstituí-lo se-
gundo sua lógica própria. Um primeiro ponto a ser investigado diz res-

310

10888_A figura do filosofo.p65 310 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

peito às razões que tal ceticismo encontra para formular uma dúvida,
ao menos potencialmente, tão extrema como a que propõe, e para tan-
to examinaremos os argumentos destinados a exibir a precariedade do
juízo, na “Apologia”. De todo modo, a despeito da validade do modelo
interpretativo que passamos a esboçar, importa ressaltar que o proble-
ma parece-nos justificar o esforço em vista de seu interesse histórico.
Estamos aqui diante da possibilidade de observar como Montaigne re-
constrói uma certa forma de ceticismo “extremo”, cuja prática ele não
entende ser incompatível com nossa plena inserção no mundo natural,
segundo a dimensão das possibilidades humanas. Um ceticismo, por-
tanto, que, embora se aproxime da dúvida cartesiana, eleita pela poste-
ridade como marco fundador de uma forma “moderna” e radical de
ceticismo26, faz isso num sentido diverso daquele pelo qual Descartes
conciliará tal dúvida com nossa inserção natural no mundo.

6.2. Um retrato mais fiel do juízo humano


Montaigne alude numerosas vezes à incapacidade da razão de sus-
tentar verdades. As múltiplas metáforas que emprega para caracterizá-
la sublinham com insistência sua ambivalência, sugerindo que ele
considere a razão uma faculdade que, em sua atividade de encadear
evidências demonstrativamente, é capaz de sustentar com igual força
conclusões contraditórias entre si. Assim, argumentar ceticamente in
utramque partem, “em favor de ambas as partes”, pró e contra determi-
nada tese, é mostrar que a crença na capacidade da razão de nos enca-
minhar diretamente à verdade é precipitada e corresponde a uma visão
imatura acerca do poder natural dessa faculdade. Em certo sentido,
seu poder “demonstrativo” é maior do que imaginamos (uma vez que
podemos empregá-la para sustentar, com mais sucesso do que poderia
parecer à primeira vista, evidências contraditórias); por isso mesmo, ela
se mostra menos apta do que supomos a produzir verdades. Isso não
significa que Montaigne advogue, simplesmente, a suspensão do em-
prego da razão; o ceticismo é o resultado, a seu ver, do uso pleno e livre

26. Sobre isso, ver BURNYEAT, 1984, p. 247; WILLIAMS, 1986, p. 118.

311

10888_A figura do filosofo.p65 311 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

da razão, e pode nos conduzir a substituir a imagem fantasiosa dessa


faculdade que, explícita ou implicitamente, subtende toda empresa filo-
sófica de cunho dogmático por outra mais consciente de suas limita-
ções no que tange às verdades que aparenta produzir.
Como vimos no capítulo anterior, a compreensão de Montaigne
acerca dos limites da razão se reflete no recurso a um outro conceito
capaz de designar a capacidade da alma de posicionar-se diante das
evidências racionais, pesá-las, compará-las e delas, eventualmente, se
apropriar. Trata-se do juízo, que Montaigne identifica, de modo geral,
ao entendimento e, eventualmente, ao próprio “eu”. Assim, não ape-
nas o exercício filosófico pelo qual o juízo sonda as diversas matérias de
que se acerca é visto por Montaigne como um produto de sua “forma
mestra” filosófica dubitativa, mas o próprio movimento que o conduz
a focalizar prioritariamente essa faculdade é produzido, ou ao menos
alimentado, por um recuo reflexivo, igualmente cético, diante do cará-
ter sorrateiro da razão. É graças a isso que o juízo passa a designar uma
espécie de mediador — se não de sujeito (termo que não é por ele
empregado) — dos conhecimentos ou opiniões que a alma adota ou
produz ao operar diante do material que se lhe apresenta. Na “Apolo-
gia”, é nestes termos que se formula a relação entre o conhecimento e
a faculdade de conhecer, circunscrita, como podemos ver, a uma di-
mensão subjetiva, sobretudo à falta de dispormos de um critério que
nos assegure o acesso às coisas em si mesmas:
[A] Tudo o que se conhece, conhece-se, sem nenhuma dúvida, pela
faculdade daquele que conhece: pois, uma vez que o juízo resulta da
operação daquele que julga, há razão [para admitir] que ele a perfaça
por seus meios e vontade, não pela imposição do que lhe é externo,
como ocorreria se nós conhecêssemos as coisas pela força e lei de sua
essência… (587).
Segundo essa passagem, toda a possibilidade de conhecimento pa-
rece ser tratada como imanente à operação dessa faculdade natural,
humana e subjetivamente dada (descartando-se assim, por exemplo, o
recurso a alguma forma de conhecimento não-proposicional ou algu-
ma espécie de conhecimento de tipo meramente sensível, como ocor-
re no caso de diferentes versões da metafísica do conhecimento sus-

312

10888_A figura do filosofo.p65 312 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

tentada pelos escolásticos ao longo do século XVI). Essa passagem se


situa, com efeito, na introdução de uma análise da precariedade dos
sentidos — “começo e fim da ciência humana” — como prova da igno-
rância humana da verdade, certamente destinada, ao menos em parte,
ao ataque da epistemologia de Aristóteles, que sucederá esse exame
como ponto culminante da argumentação dubitativa na “Apologia”27.
Na ordem de razões da “Apologia”, essa passagem é precedida por uma
crítica epistemológica destinada a revelar como as diversas “peças” de
nossa alma contribuem para nosso desconhecimento da verdade, por
meio da qual Montaigne procura evidenciar a fraqueza não apenas da
razão, mas também do próprio juízo humano na busca desse fim28.
Não pretendemos oferecer um exame exaustivo dessa crítica, que se
segue imediatamente à discussão sobre a impossibilidade de oferecer
limites ao espírito humano, examinada no item anterior29. Destacare-
mos apenas quatro argumentações que pontuam esse desenvolvimen-
to, exibindo aspectos que nos parecem importantes para o propósito de
esclarecer os fundamentos da “dúvida extrema” advogada por Mon-
taigne. Primeiramente, consideraremos um argumento inicial pelo qual
ele extrai da constatação do desacordo entre os juízos individuais uma
conclusão sobre a precariedade natural de nosso entendimento (562A).

27. Cf. 587-588. Ainda que não se constitua como alvo central do ataque cético de
Montaigne, como ocorrerá no caso de autores como Sanchez, o modo como ele igual-
mente alveja a epistemologia aristotélica (pelo recurso à mediação problemática das
nossas faculdades sensíveis) faz com que não possamos concordar com T. Gontier, se-
gundo quem a separação entre sensível e inteligível abriria caminho, em Montaigne, a
um “conhecimento do sensível” (v. GONTIER, 1999, p. 106).
28. Acompanhamos a divisão proposta por Villey, em seu sentido mais amplo. Ver II,
12, 438; 560-604. A discussão sobre a fraqueza do julgamento humano vai de 560 a 576.
29. Grosso modo, esse trajeto poderia ser dividido em três etapas (que nem sempre
corresponderão às etapas de nossa análise a seguir): (1) Análise de nossa incapacidade
de atingir a verdade, que corresponde, em linhas gerais, ao percurso descrito no pará-
grafo anterior, que se encerra com as ponderações sobre a necessidade de nos conduzir-
mos com moderação diante das impressões de verdade (560-564). (2) Análise de inter-
ferência das paixões em nosso juízo, sejam paixões de natureza corporal (564-566),
sejam paixões produzidas pela própria alma (567-569). (3) Constatação sobre a impos-
sibilidade de obtenção de conhecimento atual da natureza pela razão, posto que a pró-
pria natureza determina nossas crenças de um modo que nos escapa (569-576).

313

10888_A figura do filosofo.p65 313 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Um segundo argumento, oferecido por meio de um comentário sobre


a oscilação de suas crenças pessoais, nos dará ocasião de examinar a
relação entre a suspensão do juízo e a adoção de crenças (563-564).
Esses dois primeiros exemplos nos oferecerão igualmente ocasião de
comparar as argumentações dubitativas de Montaigne e de Descartes,
mas será o terceiro exemplo que nos permitirá precisar as divergências
essenciais que separam as dúvidas filosóficas formuladas por ambos: ele
constitui uma espécie de reinterpretação do Quarto Tropo de Eneside-
mo — um locus clássico do qual historicamente emergiram as diversas
versões céticas do argumento do sonho (também presente, como vere-
mos, na “Apologia”) — exposta em 564-569. Por fim, consideraremos
os argumentos destinados a mostrar como o juízo compromete sua isen-
ção por desconhecer o conjunto das causas que interferem em sua ação
(especialmente em 575-576).

6.2.1. Uma outra face da individualidade


Tendo ilustrado a impossibilidade de oferecer limites ao espírito
humano por meio de uma progressão crítica, que vai das pretensões de
Teofrasto em limitar o conhecimento causal à crítica dos pirrônicos ao
verossimilhante acadêmico, Montaigne dá continuidade à sua exposi-
ção oferecendo um argumento cético que não atribui explicitamente
a nenhum de seus predecessores (e, salvo engano, não parece provir
de nenhuma das fontes antigas a que ele recorre). Deveríamos vê-lo
como uma mostra pessoal dessa mesma incapacidade de oferecer limi-
tes ao espírito30? Assentindo ao modo como os pirrônicos desenvolvem
as conseqüências extremas de nossa incapacidade de reconhecer a ver-
dade (destituindo de fundamento mesmo nossa pretensão de reconhe-
cer maior verossimilhança em algumas proposições do que em ou-
tras), Montaigne agora nos oferece uma argumentação capaz de figu-

30. O fato de serem precedidos por uma discussão em que Montaigne se situa pes-
soalmente no fio histórico de um debate sobre a possibilidade de encontrar a verdade
parece-nos apoiar a presunção de que se trata aqui de desenvolvimentos argumentativos
assumidamente originais. De todo modo, isso não é essencial para o nosso exame.

314

10888_A figura do filosofo.p65 314 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

rar sua própria compreensão (e, como tal, reconhecidamente precária,


eventualmente provisória) acerca dessa mesma impossibilidade radi-
cal denunciada por tais céticos. Embora aparentemente inspirado em
argumentações céticas antigas, como o argumento da diaphonía (que
é novamente retomado, ainda mais explicitamente, nas linhas seguin-
tes)31 ou o Segundo Tropo de Enesidemo (acerca da diferença entre os
homens), tal argumento não deixa, contudo, de exibir um viés pessoal
pelo qual Montaigne invoca a diversidade das percepções e das opi-
niões humanas como testemunho de nosso desconhecimento da ver-
dade. Para ele, essa discrepância atesta, mais do que isso, a impossibili-
dade de reconhecermos a presença do juízo, num mesmo sentido, em
todos os homens:
[A] Que as coisas não se alojam em nós em sua forma e sua essência,
e não adentrem segundo sua força própria e autoridade, vemos o
bastante. Não fosse assim, recebê-las-íamos da mesma forma: o vi-
nho seria idêntico na boca do doente e na boca do são… Os objetos
externos [estrangers] se rendem à nossa mercê, eles se alojam em nós
como nos agrada. Ora, se de nossa parte nós recebêssemos alguma
coisa sem alteração, se as presas humanas fossem suficientemente
firmes e capazes para agarrarmos a verdade por nossos próprios meios,
sendo esses meios comuns a todos os homens, a verdade seria passada
de mão em mão, de um a outro. E encontraríamos ao menos uma
única coisa no mundo, de tantas que há, que seria acreditada pelos
homens por um assentimento [consentement] universal. Mas [o fato
de] não se ver nenhuma proposição que não seja debatida e contro-
versa entre nós, ou que não possa ser, mostra bem que nosso juízo
natural não apreende claramente o que apreende, pois meu juízo
não a pode fazer receber pelo juízo de meu companheiro, o que é o
signo de que eu a obtive de um meio diverso do que o seria um poder
natural de julgar presente em mim e em todos os homens… (562).
Se a filosofia cética, como a interpreta Montaigne, situa-nos de
modo mais realista ante nossa condição natural, trata-se aqui de exibir
o poder relativo das “presas” de que o homem é naturalmente provido

31. Ver 562-3A.

315

10888_A figura do filosofo.p65 315 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

para extrair conhecimento das coisas que o cercam. Seria aparente-


mente possível discernir, nessa intricada argumentação, três passos, salvo
melhor análise, em certa medida distintos. No primeiro (desenvolvido
em duas versões ligeiramente diversas), a constatação da inexistência
de uma percepção ou proposição que possa ser salva da controvérsia
insanável entre os homens conduz à conclusão de que não as conhe-
cemos. Isso porque, caso possuíssemos a faculdade de efetivamente
conhecer as coisas tais como elas são, disporíamos de algum conheci-
mento indubitável. Porém, num segundo momento (possuidor de duas
inferências), se não as conhecemos, quando pensamos dizer o que as
coisas são, dizemos apenas aquilo que pensamos que elas sejam, segun-
do o modo como nossa alma individualmente delas se apropria. Assim,
a constatação de que não conhecemos revela algo, igualmente, acerca
de nossas faculdades cognitivas: as coisas são apreendidas pela alma
“como lhe apraz” e não por um meio que corresponda a um poder de
julgar que esteja igualmente presente entre os homens. Por conseguin-
te, terceiro passo, embora nosso juízo pense obter verdades, ele “não
apreende claramente o que apreende”.
Antes de mais, prestemos atenção em como Montaigne formula
sua constatação da controvérsia opinativa (em que toda a argumenta-
ção se apóia), afirmando não ver “nenhuma proposição que não seja
debatida e controversa entre nós, ou que não possa ser” (itálicos nossos).
Isso nos parece confirmar não apenas o caráter “extremo” do escopo da
suspensão aqui almejada, mas também que ele se limita a alegar que as
proposições humanas são, de modo geral, passíveis de dúvida (o que é
diverso de alegar que se possa desenvolver, na prática, uma dúvida capaz
de abarcar a todas). Por certo, a existência de um eventual consenso
não garante a certeza de nenhuma proposição (e a seqüência do texto
confirma que ele pode ser simplesmente resultado de uma adesão dog-
mática a uma opinião coletivamente imposta pelo costume). Em vez
disso, seria a natureza indubitável de determinado conhecimento que,
caso existisse, garantiria um assentimento universal. Mas por que Mon-
taigne alega essa natureza dubitável universal como um “fato”, se as
controvérsias existentes se limitam a minar, na melhor das hipóteses, as
proposições particulares que consideram? Se nossa análise está correta,

316

10888_A figura do filosofo.p65 316 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

isso não pode derivar da conclusão da fraqueza do juízo como meio de


conhecimento. Por certo, uma vez aceita essa conclusão, temos um
meio de transportar essa mesma reflexão para todas as proposições a
que acedemos por seu intermédio. Porém, essa conclusão apenas refle-
te algo que é assumido na premissa que estamos discutindo, de modo
que a precariedade do juízo não pode ser aqui alegada sem gerar uma
circularidade. Talvez uma alternativa seja a de corroborar a base argu-
mentativa oferecida pelo argumento da diaphonía pelo contexto em
que esse argumento se insere: os diversos modos argumentativos céti-
cos, retomados por Montaigne, são uma sistematização dos diversos
modos de argumentar dubitativamente contra, de modo geral, as mais
diversas tentativas filosóficas de alegar conhecimento das coisas (mes-
mo no âmbito das proposições que naturalmente nos aparecem como
as mais evidentes e indiscutíveis). Se levarmos em conta o conjunto de
argumentos apresentados, talvez a generalização contida na premissa
de Montaigne deva ser lida como uma tentativa de transferir o ônus da
prova ao interlocutor que pretenda restringir essa possibilidade. Se os
céticos oferecem razões que permitam pôr em dúvida mesmo as propo-
sições mais evidentes, aquele que pretende afiançar a existência de
alguma proposição indubitável não estaria na posição de justificar por
que essa sua proposição efetivamente restringiria a alegação do caráter
universalmente duvidoso das proposições?
Isso parece apontar na direção da resposta cartesiana ao ceticismo.
No final do capítulo anterior, sugerimos que o cogito cartesiano pode-
ria ser visto como uma tentativa de resposta adaptada à configuração
própria que a dúvida cética ganha em Montaigne (no que tange à sua
admissão de uma diversidade aparentemente irredutível nos julgamen-
tos humanos). Essa sugestão pode ser aqui desenvolvida, em mais de
um sentido: não apenas o método da dúvida hiperbólica, posto em
prática na Primeira Meditação, pode ser visto como uma tentativa de
atualizar uma dúvida universal sobre o conjunto de todas as proposi-
ções, mas o recurso a tal método se justifica pelo modo como Descar-
tes assume, no início desse texto, o caráter potencialmente duvidoso de
todas as suas opiniões, por não dispor de uma garantia de que aquilo
que lhe aparece como certo não venha a se mostrar duvidoso, como

317

10888_A figura do filosofo.p65 317 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

diversas vezes lhe ocorrera no passado32. Para limitar essa dúvida, por
sua vez, Descartes oferecerá, precisamente, um exemplar de uma pro-
posição supostamente capaz de se revelar indubitável ante o exercício
de uma dúvida levada às últimas conseqüências.
Ademais, o conflito das percepções acerca de um mesmo objeto,
segundo Montaigne, mostra que a alma deles se apropria sem garantia
de que preserva a sua “essência”, e a natureza controvertível de todas as
proposições, que não existe “um poder natural de julgar presente em
mim e em todos os homens”. Tal “poder natural de julgar”, faculdade
da alma potencialmente responsável pela eventual apreensão da verda-
de, caso esta esteja a nosso alcance, é comparada a presas que precisa-
riam, para tanto, ser possuidoras de força que lhes permitisse colher os
objetos percebidos “sem alteração”. Mas a inexistência de uma evidên-
cia que se imponha universalmente leva à conclusão não apenas de
que o juízo não apreende a verdade, mas de que sua própria identidade
como faculdade responsável pelo conhecimento se encontra ameaça-
da. Equivocarmo-nos quanto àquilo que julgamos ser objetivamente
verdadeiro é equivocarmo-nos igualmente, ao menos nesse caso parti-
cular, quanto àquilo que supomos ser nossa faculdade de conhecer as
coisas. A suposta “faculdade” ou capacidade de conhecer, ao não cum-
prir adequadamente as exigências que ela própria reconheceria, não é,
portanto, essa presumida capacidade. É a própria faculdade de conhe-
cer — o entendimento ou juízo — que não se encontra, assim, plena-
mente presente, em sentido absoluto, para todos os homens, como um
poder naturalmente dado, em vista da diversidade irredutível com que
ela (ou aquilo que almejaria ser tal faculdade) se manifesta nos ho-
mens. É o que parece confirmar um texto do ensaio “Da presunção”,
no qual o modo com que cada um se julga portador de bom senso (a
despeito da controvérsia universal de opiniões) surge antes como razão
de desconfiança tanto em relação às verdades que ele produz como
relativamente à posse da faculdade que seria designada por essa expres-
são33. Muito mais célebre tornou-se, contudo, a introdução do Discurso

32. Primeira Meditação, ed. Beyssade, p. 56-59, AT VII, 17-18.


33. Ver II, 17, 656-657.

318

10888_A figura do filosofo.p65 318 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

do método, na qual Descartes parece inverter o argumento montaignia-


no para extrair uma conclusão oposta àquela que Montaigne preten-
deu extrair da mesma constatação. Descartes declara que o bom senso
deve estar, de fato, igualmente presente entre os homens, desde que
ele designe a razão — que nas Meditações será identificada ao enten-
dimento, mas já aqui aparece como uma faculdade naturalmente pre-
sente de modo absolutamente igual nos homens, como aquilo que define
a “forma” da natureza humana e como a condição de possibilidade do
conhecimento da verdade — por oposição ao juízo — que parece ser
implicitamente associado ao “espírito” e, de modo geral, às demais
faculdades naturais que são passíveis de comparação qualitativa ou
mesmo quantitativa (uma vez que o bom juízo envolve o uso correto
da razão)34. Para Montaigne, ao contrário, mesmo as opiniões humanas
que poderiam, à primeira vista, parecer semelhantes entre dois homens
não tardarão a mostrar, cada qual, sua singularidade, desde que devida-
mente observadas e consideradas segundo o nosso entendimento:
[B] Nunca dois homens julgaram de modo idêntico a mesma coisa,
e é impossível ver duas opiniões exatamente semelhantes, não ape-
nas em homens diversos, mas no mesmo homem em diversas ho-
ras… Quem não diria que as glosas aumentam a dúvida e a ignorân-
cia, posto que não se vê nenhum livro, seja humano, seja divino, do
qual o mundo se ocupe, do qual a interpretação tenha estancado a
dificuldade? O centésimo comentário envia-o ao seu seguinte mais
espinhoso e mais escabroso que o primeiro o tinha achado. Quando
entre nós nos pomos de acordo: deste livro já temos o bastante, não
há mais o que dizer?… (III, 13, 1067).

34. Ver DM, p. 1-3. Segundo Descartes, o bom senso, desde que devidamente com-
preendido como o que ele denomina a razão, pode propiciar um critério seguro para
a superação da controvérsia opinativa entre os homens desde que devidamente condu-
zido pelo método (do qual, portanto, o conhecimento adequado da própria razão se
torna solidário). Assim, se os “ensaios do método” que a esse discurso se seguirão po-
deriam ser invocados como uma espécie de argumentação indireta em favor dessa tese
sobre o papel da razão em reconhecer a verdade, eles igualmente teriam a função
tácita de exibir, uma vez aceitos pelos leitores de Descartes, sua igual distribuição entre
os homens como condição de compreensão das verdades que por seu intermédio se
formulariam.

319

10888_A figura do filosofo.p65 319 28.03.07, 16:05


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Seria gratuito que Descartes oferecesse, como primeira verdade pela


qual pretendia suplantar o ceticismo, uma proposição, exatamente, a
respeito do conhecimento que a alma teria de sua existência, que deve-
ria ser, por definição, retomada absolutamente no mesmo sentido por
cada eu pensante, ao refazer a mesma reflexão35?
Quanto a Montaigne, essa argumentação dubitativa oferece uma
complementação importante às suas considerações sobre como o exer-
cício do juízo acaba por produzir um “mel próprio” pelo qual se mani-
festa sua singularidade. Aqui se oferece uma outra perspectiva da mes-
ma situação. Ou bem, como vimos no capítulo anterior, tal manifesta-
ção pode ser vista como sinal de uma ultrapassagem da pretensa unifor-
midade das idéias impostas pela autoridade alheia e pela uniformiza-
ção costumeira, ou bem ela pode revelar a distância relativamente à
verdade que o juízo, se fosse suficientemente penetrante, poderia qui-
çá extrair das coisas. As duas perspectivas refletem o intuito de exami-
nar a faculdade humana de conhecer, segundo sua força e sua fraque-
za, suas capacidades e seus limites naturais. E, se assim é, parece tam-
bém possível admitir que Montaigne considera por uma ótica bastante
peculiar a relação entre a filosofia cética e o conflito dogmático que ele
denuncia. A empresa do auto-retrato, expressão de sua individualidade,
na qual culminam os Ensaios, mostra que não estamos absolutamente
diante de um ceticismo que pretenda abolir, anular ou suprimir o uso
do juízo, como faculdade natural humana. Mas essa manifestação, no
mesmo passo em que é um retrato do que é individual e particular, é
também a expressão daquilo que nosso juízo produz quando procura
se acercar da verdade sem poder encontrá-la. Não aponta isso uma
inesperada afinidade que esse cético seria obrigado a reconhecer, em
certa medida, a um dogmatismo latente no próprio exercício de juízo
que ele preconiza? Se a faculdade humana de conhecer, uma vez posta
em ação, produzirá sempre, nalguma medida, perspectivas singulares
das coisas (que, nessa singularidade mesma, atestam a ausência de uma
verdade objetiva), não deverá o próprio cético reconhecer que, pelo
emprego natural de seu juízo, insere-se, nalguma medida, no mesmo

35. Ver, por exemplo, Meditação Segunda, ed. Beyssade, p. 76-77, AT VII, 27.

320

10888_A figura do filosofo.p65 320 28.03.07, 16:05


Ceticismo em movimento

terreno opinativo em que se dá o conflito das teses dogmáticas que ele


pretende denunciar? Se assim for, isso permitirá igualmente destacar
um aspecto preciso da diferença que haveria, à luz do ceticismo mon-
taigniano, entre as perspectivas cética e dogmática desse mesmo fato (a
atividade do julgamento): o cético adentrar no mar da diversidade dos
juízos humanos reconhecendo que não pode se furtar inteiramente a
isso, mas não alimenta uma esperança cega e ingênua de que possa
alcançar o “favo no bolo”, como diz Montaigne; ele o faz, ao contrário,
consciente da dificuldade radical em que se encontra para superá-la e,
sobretudo, das conseqüências cognitivas dessa situação.
Esse ponto é decisivo para compreendermos por que, a despeito de
o juízo não poder deixar de produzir “impressões de verdade” que, se-
gundo Montaigne, serão sempre potenciais objetos, nalguma medida,
de uma investigação cética, o cético montaigniano se isentaria de tomar
parte no mesmo debate dos dogmáticos. Consciente dos limites que lhe
são tacitamente impostos pelas faculdades cognitivas, tal cético se volta
a uma atividade eminentemente autocrítica e reflexiva, pela qual cabe
retomar as impressões de verdade produzidas por seu juízo e cotejá-las
com juízos diversos. Trata-se de um ceticismo cujo corolário é não ape-
nas, como vimos, a moderação opinativa e a tolerância, mas também a
compreensão de que os dogmáticos, enredados na pretensão de susten-
tar cada qual sua própria verdade, embrenham-se num falso debate, e
acabam por se tornar impermeáveis a um verdadeiro diálogo filosófico.
Eis por que o reconhecimento de um limite pairando sobre o conjunto
da atividade comunicativa dos homens, curiosamente, não veda para o
cético a comunicação com outrem, mas a torna mesmo indispensável,
como parte desse movimento autocrítico (por oposição ao modo como
a filosofia dogmática, por mais que pretenda alegar o oposto, acaba nal-
guma medida sendo conduzida a um certo solipsismo)36.
Outra peculiaridade dessa interpretação cética se faz aqui em certa
medida visível (embora não possamos discuti-la adequadamente sem
levar em conta outros argumentos que veremos adiante). A argumenta-

36. Quanto a isso, ver, de modo geral, o ensaio “Da arte de conversar” (III, 8), e em
particular 922B ss.

321

10888_A figura do filosofo.p65 321 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ção cética se destinaria aqui não apenas a mostrar nossa incapacidade


de reconhecer a verdade, mas também a indicar que a ela se soma a
dificuldade de compreender nossos limites cognitivos, uma vez efetiva-
mente postas em ação nossas faculdades. Pois não apenas nosso juízo
não apreende a verdade que imagina apreender, mas também não
apreende claramente a maneira pela qual, em vez de ser igualmente
dado como “um poder natural de julgar presente em mim e em todos
os homens”, ele constitui apenas um modo particular de apreensão do
que nos aparece, a cada qual, como aparentemente verdadeiro. Assim,
essa argumentação parece sugerir que a constatação do desconheci-
mento da verdade surge como um resultado a posteriori da confronta-
ção entre as aparentes verdades que eu pensara obter com outras que se
produziriam pelo juízo de outrem, ou pelo meu próprio noutra oca-
sião; analogamente, aquilo que, num primeiro momento, me pareceria
ser simplesmente o entendimento das coisas que a mim se apresentam
(segundo um “juízo natural” em mim presente como nos outros ho-
mens) pode vir a se revelar como apenas o resultado de minha aprecia-
ção particular das coisas, por um “meio diverso” daquele de que eu
julgava dispor, graças ao qual minha alma se apropria das coisas como
lhe apraz. Trata-se, afinal, de um meio de acesso às coisas que não é tão
cristalino como parecia à primeira vista, mas possui uma opacidade
que só pode ser reconhecida por uma avaliação crítica posterior de seu
uso. Porém, sendo essa uma opacidade invisível do ponto de vista pelo
qual nosso juízo, ao julgar, pensa imediatamente conhecer as coisas,
ela conduz Montaigne a exprimir sua conclusão por esta fórmula que
beira o paradoxo — “nosso juízo natural não apreende claramente o
que apreende” — e que consideraremos melhor adiante.

6.2.2. A balança das crenças


“[B] Nunca dois homens julgaram de modo idêntico a mesma coisa,
e é impossível ver duas opiniões exatamente semelhantes, não apenas
em homens diversos, mas no mesmo homem em diversas horas…” (III,
13, 1067). Em conformidade com essa afirmação presente em “Da
experiência”, Montaigne, na discussão que examinamos, depois de

322

10888_A figura do filosofo.p65 322 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

considerar a controvérsia existente entre o juízo dos diferentes homens,


evoca a oscilação das crenças do juízo de cada indivíduo como uma
nova razão para dele desconfiarmos:
[A] Além dessa diversidade e divisão infinita, pelo turvamento que
nosso juízo nos causa a nós mesmos, e pela incerteza que cada um
sente em si, é fácil ver que ele possui uma posição bastante insegura.
Quão diversamente julgamos as coisas? Quantas vezes mudamos de
opinião [fantasies]? O que sustento hoje e o que creio, creio de toda
minha crença. Todos os meus meios e recursos empunham essa opi-
nião e por ela respondem com tudo o que podem. Eu não saberia
abraçar nenhuma verdade nem conservá-la com mais força do que
faço com esta. Aí estou inteiro, aí estou verdadeiramente. Mas não
me ocorreu, não uma vez, mas cem, mas mil, e todos os dias, de ter
abraçado alguma outra coisa com todos esses mesmos instrumentos e
nessa mesma condição, que depois a tenha julgado falsa? Ao menos
é preciso ser sábio à própria custa. Se me encontrei freqüentemente
traído por essa cor, se minha pedra de toque se encontra comumente
falseada, e minha balança desigual e injusta, qual segurança posso
dela ter nesta vez mais do que em outras? Não é tolice deixar-me
tantas vezes enganar por um guia? Todavia, que a fortuna nos mova
cinco vezes de lugar, que ela não faça senão carregar e esvaziar sem
cessar, como num barco, na nossa crença, novas e novas opiniões,
sempre a presente e a última é a certa e a infalível… Ao menos de-
veria nossa condição errática nos fazer portar de modo mais modera-
do e contido em nossas mudanças. Seria preciso lembrarmo-nos que,
ainda que recebamos [tal coisa] no entendimento, nós aí recebemos
freqüentemente coisas falsas, e por essas mesmas ferramentas [outils]
que se desmentem e se enganam freqüentemente… (563-564).
Podemos ver que não estamos diante de um ceticismo que preco-
nize uma suspensão geral das crenças ou uma interdição genérica do
emprego de nossas “ferramentas” cognitivas. Em vez disso, a mobilidade
das opiniões produzidas por seu intermédio é pressuposta e observada
como ocasião de desconfiarmos de nossa tendência a emprestar àque-
las que hoje nos parecem admissíveis um valor artificial e indevido em
contraposição ao modo como tendemos a assumir aquilo que agora nos
aparece como evidente como uma forma de aperfeiçoamento cogniti-

323

10888_A figura do filosofo.p65 323 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

vo ante o que outrora nos aparecia como tal, como a conquista de um


conhecimento objetivo acerca das coisas. Daí se pretende extrair, por
certo, uma desconfiança acerca da evidência com que nossas faculda-
des se acercam das coisas e sugerir que isso não pode constituir um
critério de verdade. Mas não se trata de exigir, ao que parece, em vista
disso, que nosso juízo se imobilize (o que não pareceria, aliás, possí-
vel), mas sim de refletir sobre o modo como nos engajamos em nossas
crenças e sobre seu real valor cognitivo. O fato de possuirmos crenças
que se modificam e que, no momento em que as adotamos, são nor-
malmente acompanhadas de uma presunção de verdade desproporcio-
nal à sua fragilidade conduz à conclusão de que o juízo, instrumento
que responde por essa impressão de verdade, não pode ser, sem mais,
admitido como perfeitamente confiável; trata de um instrumento, como
diz ele, cuja “posição” é insegura. O termo “assiette”, no moyen français,
significa “posição” ou “equilíbrio”, mas pode significar também “esta-
do de espírito, disposição”, ou ainda “situação, firmeza, equilíbrio”37.
Trata-se antes de indicar que a posição assumida pelo juízo humano
nunca é plenamente confiável, isto é, que o modo como ele produz
um veredicto, tendo pesado as evidências que a ele se apresentam, não
nos autoriza a assumir tal veredicto como imagem de como absoluta-
mente as coisas são; ele é sempre o reflexo parcial e momentâneo de
um movimento que, devidamente observado, tenderia a se revelar per-
petuamente fluido e oscilante. Não apenas o tema será recorrentemen-
te retomado nos Ensaios, a partir do contato com o ceticismo, mas
também este mesmo argumento: “[B] Quem se lembra de ter tantas e
tantas vezes sido enganado pelo seu próprio julgamento, não é um tolo
de nunca estar dele em desconfiança?…” (III, 13, 1074).
Dessa imagem de nosso juízo, Montaigne extrai, porém, não uma
perfeita suspensão, mas uma recomendação de moderação em nossas
“mudanças”. Por ora, cabe assinalar que a mesma moderação se refle-
tirá no âmbito do assentimento às crenças, em vista do modo como elas
deixam de ser vistas como portadoras de conhecimento seguro. Por
esse viés, o argumento se harmoniza com as passagens supradiscutidas

37. Cf. GREYMAS, KEANE, 1992, p. 39.

324

10888_A figura do filosofo.p65 324 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

em que Montaigne discorre sobre a importância de não tratar o veros-


símil como verdadeiro, bem como sobre o fato de que as opiniões não
encontram em seu espírito um ambiente próprio para desenvolver “lon-
gas raízes” (III, 8, 923B). Ademais, Montaigne parece nalguma medida
se aproximar, por meio dessa reflexão, daquilo que os textos de Sexto
Empírico enunciam relativamente ao modo de crer do cético:
Acreditar [peitestaí = seguir, dar assentimento ao que se impõe] é
usado em diversos sentidos. Significa não resistir, mas simplesmente
seguir sem forte inclinação ou adesão, como se diz da criança que
segue o tutor, e algumas vezes significa dar assentimento por escolha
e simpatia (como os homens dissolutos seguem alguém que propõe
um modo de vida extravagante). Assim, uma vez que Carnéades e
Clitômaco dizem que aceitam as coisas e que algumas dessas coisas
são plausíveis no sentido de evocarem um grande desejo e uma forte
inclinação, diferimos deles a esse respeito, posto que dizemos aceitá-
las simplesmente assentindo, sem adesão… (HP I, 230-231).
Quando trata da suspensão de crenças, Sexto esclarece que não
está interditado ao cético possuir crenças no sentido mais geral em que
isso significa “aceitar algo”, posto que o cético não nega, explica ele,
que está com frio se sente frio, uma vez que assente “às experiências
inevitáveis em virtude desta ou daquela impressão” (v. HP I, 13). O que
ele recusa é admitir crenças acerca dos objetos não-evidentes da inves-
tigação dogmática (ibid.). O argumento de Montaigne viria sublinhar
a importância de levar em consideração, quando se crê, a mesma expe-
riência, cara à perspectiva cética, de frustração em relação àquilo que
parecera antes indubitável.
Contudo, Montaigne assim se refere, como vimos, à sua maneira
de crer: “Eu não saberia abraçar nenhuma verdade nem conservá-la
com mais força do que faço com esta”. Seria isso compatível com a
descrição sextiana das crenças do cético — “sem forte inclinação ou
adesão, como se diz da criança que segue o tutor”? Não se aproximaria
ele aqui antes da descrição que Sexto oferece dos filósofos da Nova
Academia, uma vez que “Carnéades e Clitômaco dizem que aceitam
as coisas e que algumas dessas coisas são plausíveis no sentido de evo-
carem um grande desejo e uma forte inclinação…”? Essa discussão

325

10888_A figura do filosofo.p65 325 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

envolve, porém, outros elementos que nos convidam a desconfiar dessa


hipótese. Se o oferecimento da experiência pessoal de crença como
um caso exemplar é um procedimento recorrente nos Ensaios, como
dissemos, nessa discussão isso é feito de forma explícita. Descrevendo
a “vaidade que encontra em si mesmo” por meio das oscilações cons-
tantes de seu próprio julgamento (565-566A), ele não deixa de assina-
lar: “[A] Cada um poderia dizer mais ou menos o mesmo de si, se se
observasse tanto quanto eu [me observo]” (566). Mas, se o valor argu-
mentativo dessa premissa é o de convidar cada qual a consultar a sua
própria experiência para aferir o valor dessa descrição, a ênfase no con-
traste entre a crença e a mudança de opinião pode ganhar uma tona-
lidade retórica: quanto mais intensa a experiência de crer num deter-
minado momento, tanto mais é relevante o fato de o juízo voltar atrás.
Além disso, assim como a conclusão do argumento anteriormente exa-
minado envolvia uma reflexão a posteriori sobre o modo como o juízo
de cada homem diverso se faz acompanhar de uma impressão de ver-
dade, aqui também a reflexão a respeito do valor cognitivo das crenças,
por meio de uma observação de mais longo prazo, constituiria, por
assim dizer, um momento diverso daquele em que as avaliamos pelo
modo como imediatamente se apresentam. Num primeiro momento,
o argumento considera como o ato de crer envolve, por si mesmo, uma
presunção de conhecimento; em seguida, ele nos convida a observar
que essa mesma presunção se faz presente a despeito de nosso juízo
oscilar entre opiniões contraditórias a que, a cada vez, nos agarramos
como se possuíssem, de modo geral, uma solidez maior do que elas
podem revelar se consideradas no decorrer do tempo. Disso se extrai
uma razão para suspeitar de que estamos diante de uma “pedra de
toque” pouco confiável, de uma “balança desigual e injusta”, e para
pôr em questão o valor epistêmico das crenças em razão do caráter
inseguro da faculdade intelectual “sem pé nem fundamento” que a
produz. Montaigne extrai dessa conclusão uma reflexão sobre a neces-
sidade de moderá-las, em coerência com a mesma constatação: “ Se-
ria preciso lembrarmo-nos que, ainda que recebamos [tal coisa] no en-
tendimento, nós aí recebemos freqüentemente coisas falsas, e por essas
mesmas ferramentas que se desmentem e se enganam freqüentemen-

326

10888_A figura do filosofo.p65 326 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

te…”. Uma coisa, portanto, é a alegação do caráter universalmente


duvidoso das opiniões que podem surgir como objeto de nossa crença;
outra, a possibilidade de “lembrarmos” de sua conclusão — isto é, de
refletirmos criticamente sobre cada uma das crenças que atualmente
aceitamos, segundo nossas capacidades individuais e distintas, e duvi-
darmos do modo como elas eventualmente pretendam se passar por
representações da verdade. E o fato de sermos eventualmente incapa-
zes de pôr em prática (em virtude de nossas limitações naturais) uma
revisão das crenças inteiramente compatível com sua precariedade não
parece interferir diretamente na validade da conclusão extraída acerca
do primeiro ponto; se as crenças exibem tal precariedade, cabe seguir
a regra prudencial que dessa constatação é extraída na medida em que
cada qual possa fazê-lo; mas a relatividade dessa prática não determina
a validade do diagnóstico.
Aqui, a mesma idéia “rústica” de que todas as nossas crenças po-
dem ser postas em dúvida se apóia, portanto, num novo argumento: se
esse mesmo instrumento de conhecimento pode aceitar, em momen-
tos diversos, crenças contraditórias com a mesma evidência, o que se
põe em xeque é a validade do próprio instrumento que responde pela
aceitação de tais crenças. Mas seria compatível, afinal, com a suspen-
são do juízo pirrônica essa reflexão que se limita a propor uma mode-
ração do juízo em vista do reconhecimento de seu caráter perpetua-
mente oscilante? Para negar essa compatibilidade, seria preciso assu-
mir a idéia de que a suspensão pirrônica seria relativa a todo e qualquer
juízo; vimos, porém, que, ao menos no nível da interpretação do pirro-
nismo adotada por Montaigne, não é isso que ocorre: se o pirronismo
é uma filosofia compatível com o pleno uso de nossas faculdades cor-
porais e espirituais, como admitir, ao mesmo tempo, que ela proponha
uma impraticável suspensão total das ações do juízo? Se Montaigne
considera que os pirrônicos reconhecem as diversas ações da alma, mas
não admitem o “assentimento” (consentement), talvez esse termo deva
se aplicar a uma ação diversa daquela pela qual nosso juízo se posicio-
na, natural e espontaneamente, em favor desta ou daquela opinião como
mais ou menos plausível; o “assentimento” que se trataria de suspender
ceticamente, assim, diria respeito, mais do que isso, à eleição de uma

327

10888_A figura do filosofo.p65 327 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

determinada opinião como capaz de propriamente oferecer das coisas


o conhecimento com que acena. É o que sugere o modo como a osci-
lação do juízo se compatibiliza, por meio desse argumento, com uma
posição cética.
Além do mais, essa argumentação de Montaigne parece novamen-
te confirmar que nos movemos num território conceitual vizinho da
epistemologia cartesiana. Não é o argumento do “erro dos sentidos”, no
percurso da Primeira Meditação de Descartes, um primeiro convite a
desconfiar do poder intrínseco às nossas faculdades cognitivas (em par-
ticular, os sentidos), com base no fato de já nos terem elas anteriormen-
te enganado? Se Descartes desenvolve uma dúvida hiperbólica sobre o
conhecimento eventualmente propiciado pelos “sentidos” (que serão
igualmente questionados por Montaigne no momento culminante da
“Apologia”), com base no fato de eles já terem se mostrado enganado-
res, e de que “é de prudência não se fiar nunca inteiramente naqueles
que uma vez nos enganaram…”, parece ecoar nessa afirmação a mes-
ma questão que, como vimos, Montaigne formula com base na oscila-
ção do juízo: “Não é tolice deixar-me tantas vezes enganar por um
guia?”38. Ademais, se o assim chamado “argumento da loucura” — mais
exatamente, um contra-argumento destinado a mostrar que essa con-
clusão extrema, que extrai do fato de os sentidos terem por vezes enga-
nado uma desconfiança total, é igual às que extraem os loucos ante as
certezas mais evidentes39 — suspende provisoriamente o assentimento a
essa conclusão, não deveríamos admitir que a dúvida proposta pelo “ar-
gumento do sonho”, dando continuidade à argumentação dubitativa,
constitui uma espécie de retomada do argumento contra os sentidos?
Consideraremos mais detidamente esse argumento no próximo item.

6.2.3. Uma doença natural do juízo?


Prosseguindo com sua análise do juízo, Montaigne retoma, de 564
a 569, aspectos do Quarto Tropo de Enesidemo, um modo argumen-

38. Cf. Meditação Primeira, p. 58, ed. Beyssade, AT VII, 18.


39. Cf. ibid., AT VII, 18-19.

328

10888_A figura do filosofo.p65 328 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

tativo pirrônico no bojo do qual se apresenta a primeira formulação


que conhecemos de um argumento cético “do sonho”, relacionado à
oposição entre o sonho e a vigília. Esse modo argumentativo, tal como
exposto por Sexto, considera o conflito entre nossas percepções segun-
do a diversidade das circunstâncias de percepção — a saúde e a doen-
ça, a sanidade e a loucura, a sobriedade e a embriaguez, a vigília e o
sonho etc. — observando-as como uma ocasião para a suspensão do
juízo. Isso porque, a cada vez que pretendemos julgar o conflito e dizer
qual dessas percepções representa adequadamente as coisas, apoiamo-
nos em critérios de julgamento para a controvérsia que são evidentes
ou persuasivos apenas no contexto relativo à própria circunstância em
que nos situamos. A cada vez que julgamos segundo a evidência que
imediatamente experimentamos (em oposição àquilo que potencial-
mente apareceria como evidente numa circunstância diversa) estamos
condenados, de modo radical, a uma petição de princípio, posto que
não podemos nos situar absolutamente fora de alguma circunstância
perceptiva determinada para examinar independentemente, de um lado,
as próprias coisas e, de outro, a maneira como se representam em cada
uma dessas circunstâncias40. Teríamos tão pouco direito de julgar que
nossa impressão de conhecer a realidade, tal como ela se oferece na
vigília, corresponde, de fato, à realidade, quanto o homem que sonha
teria de julgar, enquanto sonha, que aquilo que lhe aparece em sonho
corresponda ao que são realmente as coisas. Podemos, portanto, apenas
dizer o que são as coisas segundo a maneira com que nos aparecem,
relativamente à circunstância perceptiva em que nos encontramos,
tomando a precaução de não acreditar que isso seja equivalente a um
conhecimento das coisas como tais.
Um aspecto importante a ser destacado nessa argumentação é o de
que, diversamente do que ocorre, como veremos, no argumento carte-
siano do sonho, ele não pretende contestar a evidência de estarmos
despertos quando assim nos parece que estamos. Trata-se apenas, para

40. Cf. HP I, 100 ss. Em 562A, Montaigne ilustra a divergência dos julgamentos
humanos por meio do exemplo sextiano da diferença de percepção de sabor nos estados
de saúde e de doença, como faz Sexto em HP I, 101.

329

10888_A figura do filosofo.p65 329 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

os pirrônicos, de confrontar as evidências potencialmente conflitantes,


tal como elas se oferecem em cada circunstância, para mostrar que nos
equivocamos quando pretendemos desqualificar umas com base em ou-
tras para asseverar o que são as coisas, desconsiderando que as evidên-
cias são internas e relativas a cada uma delas41. Tal conclusão não pre-
tende, em particular, sustentar que devamos nos desfazer das impres-
sões que nos aparecerem como naturalmente evidentes em cada cir-
cunstância — o que seria, aliás, impossível. Ela pretende mostrar ape-
nas, aparentemente, que não podemos tomar aquilo que espontanea-
mente nos surge como evidente na condição de homens despertos (por
oposição à evidência com que as coisas se apresentam em sonho) como
um critério para dizer que conhecemos as coisas como elas são em si
mesmas — o que não nos impede de assumir o que nos surge como
evidente para a adoção de ações em conformidade a tal circunstância.
Não parece haver diferenças significativas entre essa conclusão e
aquela que é proposta por outra versão antiga desse argumento, a dos
céticos acadêmicos, a despeito do cunho claramente dialético com que
eles a formulam. Tal como o encontramos em Cícero, trata-se de de-
fender a idéia de que, sendo as representações do sonho tão evidentes
para aquele que sonha quanto são as da vigília para o homem desperto,
não se sustenta a pretensão do filósofo estóico de alegar a evidência
(perspicuitas) das representações de vigília, por oposição ao sonho, como
uma característica a elas intrínseca, pela qual seriam apreensivas do
real. Aqui, ainda mais claramente do que no caso pirrônico, podemos
constatar que não se trata, em absoluto, de sugerir que poderíamos
estar sonhando. Cícero responde a Lúculo, interlocutor estóico do diá-
logo, declarando que a conclusão que ele extrai do argumento cético,
na forma de uma crítica irônica, segundo a qual seríamos incapazes de
distinguir o sonho da vigília, não passa de uma incompreensão daquilo
que os céticos efetivamente propõem. O cético, diz Cícero, nunca
pretendeu negar que aquele que está acordado saiba isso, mas apenas
que a impressão perceptiva que ele tem, no momento em que está
acordado, seja critério para o conhecimento das coisas:

41. Ver HP I, 104, 112-113.

330

10888_A figura do filosofo.p65 330 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

Como se alguém pretendesse negar que um homem que acordou


saiba perfeitamente que não está mais sonhando, ou que aquele cujo
furor se abranda não saiba que as coisas vistas durante o delírio não
são verdadeiras! Esse não é o ponto em questão: o que perguntamos
é como as coisas pareciam no momento em que foram vistas…42.
O primeiro filósofo a extrair dessa forma de aproximação entre o
sonho e a vigília um argumento “cético” — isto é, um argumento que
propusesse como dúvida filosófica aquilo que os estóicos apontavam
como ironia — parece ter sido Descartes (curiosamente, um filósofo
que, em vez de cético, pretendeu se valer de sua dúvida hiperbólica
como propedêutica para a fundamentação da metafísica e, indireta-
mente, para rebater os céticos). Na Primeira Meditação, depois de con-
trapor, como vimos, uma primeira razão de duvidar, o argumento do
erro dos sentidos, à alegação de que tal dúvida generalizada acerca dos
sentidos equivale à veiculação de um critério para o exame do conhe-
cimento que nos iguala à condição antinatural dos loucos, Descartes
evoca outros fenômenos naturais para reformular uma dúvida tão ou
mais radical que aquela:
Quantas vezes me ocorreu de sonhar, à noite, que eu estava neste
lugar, que eu estava vestido, que eu estava perto do fogo, ainda que
eu estivesse inteiramente nu em meu leito? Parece-me bem agora
que não é com olhos adormecidos que eu observo este papel, que
esta cabeça que eu movo não está dormente, e que é com desígnio
e propósito deliberado que eu estendo esta mão, e que a sinto. O que
me ocorre no sonho não me parece absolutamente tão claro nem tão
distinto quanto isso. Mas, pensando nisso cuidadosamente, eu me
relembro de ter sido enganado, quando dormia, por semelhantes ilu-
sões. E, detendo-me neste pensamento, eu vejo tão manifestamente
que não há quaisquer indícios conclusivos, nem marcas suficiente-
mente certas pelas quais eu possa distinguir nitidamente a vigília do

42. Acad., II, 88-89. A crítica dos estóicos ao argumento acadêmico, segundo a qual
ele nos impossibilitaria de distinguir a vigília do sonho, encontra-se formulada em Acad.
II, 51-53. A resposta de Cícero a essa crítica, por sua vez, da qual essa citação faz parte,
em Acad. II, 88-90.

331

10888_A figura do filosofo.p65 331 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

sonho, que fico inteiramente pasmo; e minha estupefação é tanta


que sou quase capaz de me persuadir que durmo…43.
Considerando a impossibilidade de dispormos agora, no interior
dessa circunstância, de um critério pelo qual possamos distinguir o que
nos aparece como evidente daquilo que nos aparecia como evidente
quando estávamos sonhando, Descartes põe em xeque não apenas nossa
pretensão de afirmar que o que nos aparece como evidente agora não
ofereça conhecimento da realidade, mas, muito mais do que isso, a
própria evidência de que agora estamos despertos, e não sonhando.
Diversamente do que ocorre com a argumentação cética tradicional,
portanto, a radicalidade aparentemente maior da dúvida cartesiana
parece transformar a dúvida cética numa posição incompatível mesmo
com as certezas da vida prática.
Veremos adiante que, embora diversa da versão cartesiana, a formu-
lação de Montaigne possui relevantes afinidades com ela. Contudo,
para uma melhor compreensão de seu argumento e do contraponto que
ele permite estabelecer com a dúvida cartesiana, convém determo-nos
um instante no modo como ele retoma o mesmo tropo cético em que
aparece o argumento pirrônico do sonho segundo o fio da argumentação
que estamos acompanhando — discutindo não a oposição entre sonho
e vigília, mas a oposição entre a saúde e a doença. Ela é evocada, em
continuidade com as considerações do item anterior, como um argu-
mento destinado a exibir a precariedade de nosso juízo. Em linhas ge-
rais, trata-se de sustentar que a oscilação do juízo segundo a diversidade
de circunstâncias — da qual a oposição entre a saúde e a doença ofere-
ce um primeiro paradigma — deve nos conduzir a perceber que ele não
constitui uma pedra de toque confiável para o conhecimento das coisas.
Mas para sustentar essa conclusão Montaigne argumenta que, embora
reconheçamos que nosso juízo atue melhor quando estamos saudáveis
do que quando estamos doentes, há razões para admitir que sua ação é
permanentemente comprometida. E assim comentará ele, conclusiva-
mente, a oposição entre os efeitos de uma paixão amorosa juvenil em
sua percepção das coisas e o estado desapaixonado: “[A] Qual dos dois

43. Meditação Primeira, ed. Beyssade, p. 58-60, AT VII, 19.

332

10888_A figura do filosofo.p65 332 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

mais verdadeiramente, Pirro não o sabe. Nunca estamos sem doença. As


febres têm seu calor e seu frio, dos efeitos de uma paixão ardente nós
recaímos nos efeitos de uma paixão gélida…” (569). O argumento aqui
depende, assim, de esclarecermos o significado dessa generalização —
“nunca estamos sem doença” — na qual se apóia. Mas notemos desde
já que, nesse aspecto particular, a despeito da evidente intenção de Mon-
taigne de produzir uma dúvida afeita àquela proposta pelos pirrônicos,
seu argumento possui uma curiosa vizinhança ao argumento cartesiano
do sonho: tal como ali se sugere que poderíamos estar permanentemen-
te numa condição de incapacidade de atestar que não estamos sonhan-
do, e que poderíamos nos equivocar, portanto, ao determinar a própria
circunstância em que nos situamos, o argumento de Montaigne parece
problematizar, igualmente, nossa pretensão de nos situarmos numa cir-
cunstância determinada que é de princípio pressuposta como uma con-
dição propícia para o conhecimento das coisas (a saúde, por oposição à
doença). Seria Montaigne uma espécie de “elo perdido” entre o ceticis-
mo antigo e o assim chamado ceticismo moderno (cartesiano)?
A despeito do tratamento original a que Montaigne submete sua
dúvida alegadamente pirrônica, é preciso avançar aqui com cuidado
— especialmente no que tange às conclusões sobre o fundo filosófico
dessas inovações. Um ponto central para a compreensão do argumento
montaigniano reside em determinar o sentido em que se trata, no caso
de Montaigne, de alegar que “nunca estamos sem doença”, bem como
de assumir um desnível epistêmico entre as situações de saúde e de
doença. Enquanto Sexto nos oferece um esquema argumentativo geral
para desautorizar, como vimos, a admissão de uma circunstância em
detrimento de outra como critério para determinar o que são realmen-
te as coisas, Montaigne situa seu argumento na primeira pessoa do plural,
elegendo a saúde como uma situação cognitiva supostamente privile-
giada, por oposição à doença:
[A] É certo que nossa percepção [aprehension], nosso juízo e as fa-
culdades de nossa alma em geral sofrem segundo os movimentos e a
operação do corpo, alterações estas que são contínuas. Não temos o
espírito mais desperto, a memória mais pronta e o discurso mais vivo
na saúde do que na doença? (564).

333

10888_A figura do filosofo.p65 333 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Notemos, porém, que ele caracteriza a doença como uma circuns-


tância determinada pela interferência de instâncias externas, capazes
de comprometer sua ação (no caso, as paixões corporais). Esse reco-
nhecimento servirá como pedra de toque de sua argumentação: em
vez de se ater diretamente à nossa crença de que a saúde oferece uma
circunstância propícia para o conhecimento das coisas, Montaigne nos
convida a considerar que as mesmas instâncias externas, que claramen-
te reconhecemos como problemáticas na situação de doença, também
se manifestam, em algum grau, na situação que denominamos ser a de
saúde. A argumentação evolui no sentido de multiplicar as evidências
de que estamos permanentemente expostos a tais interferências, que
não são de natureza diversa daquelas que claramente, quando estamos
doentes, reconhecemos como problemáticas:
[A] Não são apenas as febres, as bebidas e os grandes acidentes que
invertem o juízo; as menores coisas do mundo o reviram. E não se
deve duvidar de que, ainda que não o sintamos, se a febre contínua
pode deter nossa alma, a terçã não aporte aí alguma alteração segun-
do sua medida e proporção. Se a apoplexia adormece e apaga intei-
ramente a visão de nosso entendimento, não se duvide que um res-
friado não a ofusque. E, por conseguinte, dificilmente se pode en-
contrar uma só hora em nossa vida na qual o nosso juízo esteja na sua
devida posição, sendo nosso corpo sujeito a tantas mutações contí-
nuas e provido de tantas espécies de molas que (nisso creio nos
médicos) é muito difícil que não haja sempre alguma que funcione
mal… (564-565).
O argumento nos convida a inspecionar nossa experiência percep-
tiva e sugere que ela nos oferece elementos que nos convidariam a
generalizar as interferências comprometedoras do juízo, além das ins-
tâncias de doença em que claramente as poderíamos detectar (ainda
que apenas a posteriori). O fato de a interferência nas situações em que
não nos reconhecemos doentes ser mais discreta não atenua seu cará-
ter problemático — desde que consideremos precisamente o problema
que se põe, que é o de detectar uma instância ideal em que o entendi-
mento ou juízo opere de modo inteiramente isento e, portanto, apto a
oferecer uma imagem incontestavelmente verdadeira das coisas. Nessa

334

10888_A figura do filosofo.p65 334 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

medida, sua pequenez as torna apenas, talvez, mais insidiosas. Mesmo


sendo alterações causadas pelas “menores coisas do mundo”, ou por
paixões que não consideramos normalmente doentias no sentido pró-
prio do termo, seriam o suficiente para minar a crença espontânea, de
que se parte, segundo a qual o juízo nos disporia de um instrumento
naturalmente confiável de conhecimento. Ademais, se a incapacidade
de perceber essas interferências menores pode resultar (como veremos
melhor adiante) da limitação dos mesmos instrumentos cognitivos, o
fato de não as percebermos claramente por meio de sua ação não pode
ser alegado para descartar a hipótese. Em suma, esta é a conclusão
geral em que tal argumentação culmina:
[A] Quais diferenças de sentido e de razão, qual contrariedade de
imaginações nos apresenta a diversidade de nossas paixões! Que se-
gurança podemos ter de coisa tão instável e tão móvel, sujeito por sua
condição ao domínio da turbulência, [C] não indo nunca senão num
passo forçado e emprestado? [A] Se nosso juízo está nas mãos da
própria doença e da perturbação, se é da loucura e da temeridade
que se tem que ele receba as impressões das coisas, que segurança
podemos esperar dele? (568).
É curioso notar que, uma vez aceita, a conclusão, parece ter um
efeito retroativo sobre a compreensão do significado de suas premissas.
Pois, embora o argumento se baseie numa oposição e numa dissimila-
ridade entre as circunstâncias cognitivas da saúde e da doença, para
concluir que “nunca estamos sem doença”, acaba por transformar, bem
considerado, o significado desse par de conceitos. Não se trata de supri-
mir nossa constatação de que ora estamos doentes, ora não estamos;
não se trata de alegar que sempre estaríamos doentes num sentido que
dissolveria, sem mais, as distinções que reconhecemos nas circunstân-
cias em que nos encontramos. Tal fórmula, em vez disso, significa que,
por oposição ao significado idealizado que tendemos espontaneamen-
te a emprestar à oposição entre as circunstâncias de saúde e doença,
quanto ao seu poder epistêmico (ou bem nos encontramos numa con-
dição que nos capacita a conhecer as coisas, ou bem não nos encon-
tramos), não há diferença de natureza, mas apenas de grau, na maneira
como operam nossas faculdades cognitivas em ambas as circunstân-

335

10888_A figura do filosofo.p65 335 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

cias. E isso basta para minar a idéia de que disporíamos de um critério


de conhecimento, supostamente dado pela circunstância perceptiva.
Esse ponto nos parece importante para estabelecer uma compara-
ção mais precisa entre esse argumento e outro que, como dissemos,
parece a ele bastante similar, o argumento cartesiano do sonho. Pois
não poderíamos identificar, em ambos os argumentos, uma estratégia
de apontar o reconhecimento inicial de um desnível epistêmico entre
duas circunstâncias — a saúde e a doença, a vigília e o sono — para
posteriormente, num segundo momento, projetar a situação reconhe-
cidamente problemática sobre aquela que ofereceria um critério de
conhecimento (quando se alega que nunca estamos sem doença, ou
que não podemos nos assegurar de que não estaríamos sonhando)? Em
ambos os casos não partimos de uma presumida distinção entre instân-
cias perceptivas que não pode, ao cabo da argumentação, ser mantida?
Apesar das aparências, as coisas se passam diversamente em ambas
as argumentações. E a diferença essencial reside, parece-nos, no modo
como a conclusão de cada argumento projeta a circunstância epistemi-
camente tida como problemática sobre a circunstância oposta. No caso
de Montaigne, a alegação de que “nunca estaríamos sem doença” não
significa que não possamos determinar em que estado nos encontra-
mos: o que o argumento pretende alegar é que a própria circunstância
da saúde possui, bem observada, uma natureza diversa, mais próxima
da situação oposta do que julgaríamos à primeira vista. É sobre essa
primeira avaliação sobre o significado epistêmico dessa oposição que
pretende incidir o argumento. O problema cartesiano, em contraparti-
da, só é gerado na medida em que não podemos determinar se não
estamos sonhando, mantida a avaliação inicial de que partimos, pela
qual opomos a vigília, como território de conhecimento da realidade,
ao sonho, como território da ilusão. Responder ao argumento cartesia-
no é restabelecer a vigência dessa distinção epistêmica básica, que fora
temporariamente perturbada pela impossibilidade de oferecer um cri-
tério de distinção dessas circunstâncias; no caso de Montaigne, o tipo
de resposta envolveria a determinação de que esse estado de “saúde”
em que nos encontramos pode efetivamente ser compreendido como
uma instância cognitiva capaz de gerar, por si, conhecimento absoluto

336

10888_A figura do filosofo.p65 336 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

das coisas (em oposição às distorções cognitivas que podemos mais cla-
ramente detectar nas situações de doença). O que precisa ser restabe-
lecido é o juízo de senso comum sobre a diferença entre a saúde e a
doença, que tal argumento pretende ter revelado ser grosseiro — e não
a crença elementar de que estamos acordados, sem a qual se compro-
meteria, por certo, a própria possibilidade da vida prática.
Essa oposição entre os argumentos se reflete no nível da análise de
sua estrutura lógica. Mais precisamente, podemos observar que o argu-
mento cartesiano opera uma sutil inversão, porém decisiva, na ordem
argumentativa com que Montaigne extrai uma conclusão dubitativa
de suas premissas. No caso do argumento cartesiano, a razão que temos
para desconfiar de nosso conhecimento decorre da hipótese de estar-
mos sonhando: se estamos sonhando, não conhecemos o mundo exte-
rior. Antes de aceitarmos essa conclusão, a que seríamos conduzidos
por evidências da vida comum que nada teriam de problemáticas, ne-
nhum problema cognitivo é detectável; eles são inteiramente derivados
da admissão da conclusão sobre a impossibilidade de reconhecermos
em que circunstância estamos. Não é exatamente o mesmo que nos
propõe em consideração o argumento montaigniano, pois a razão para
suspeitarmos de nosso juízo não decorre da possibilidade de estarmos
sempre doentes. Ao contrário, são as razões que encontramos para as-
semelhar a situação da saúde à situação de doença que geram, de
modo autônomo, o problema cético — e a conclusão rigorosa desse
problema (isto é, de que não podemos, seja na saúde, seja na doença,
nos assegurar de que nosso juízo nos oferece uma imagem adequada
do real) é que poderão ser traduzidas na fórmula “nunca estamos sem
doença”. Como vimos, essa fórmula pode se prestar a mal-entendidos:
ela não significa que nós não dispomos de critério para determinar se
estamos doentes ou não no sentido literal desse termo — ou, pelo menos,
no sentido em que permanece vigente essa oposição quando nos reco-
nhecemos doentes ou saudáveis (tal como reconhecemos que estamos
despertos e não dormindo), mesmo que pudéssemos estar, num caso
ou noutro, enganados a esse respeito. Ela significa, sim, que bem obser-
vada a relação entre a saúde e a doença, além dessa avaliação prática (a
que sempre nos prendemos, em certa medida), teríamos razão para

337

10888_A figura do filosofo.p65 337 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

admitir que, diante das razões que temos para desconfiar do juízo,
poderíamos, em certo sentido, admitir que “nunca estamos sem doen-
ça”. Montaigne não pretente alegar que somos incapazes agora de dis-
cernir a saúde da doença segundo o uso habitual dessas palavras. Como
vimos, ele principia seu argumento reconhecendo que, na doença,
percebemos que o juízo é comprometido. Em seguida, porém, ele não
irá sustentar que estamos também doentes quando não pensamos es-
tar, mas sim que, também quando não estamos propriamente doentes
podemos considerar a presença de interferências diversas, ainda que
com igual efeito problemático — sejam as paixões da própria alma
(além das paixões do corpo, às quais ele implicitamente associa a doen-
ça), sejam certos desarranjos normais e naturais das peças diversas de
que nos compomos, sejam mesmo “paixões imperceptíveis” cuja natu-
reza não podemos devidamente reconhecer.
Assim, se tanto Descartes como Montaigne assumem, de saída, uma
avaliação de senso comum sobre a oposição de circunstâncias para em
seguida subvertê-la, isso é feito de modo muito diferente nos dois casos.
Descartes preserva, até o final da argumentação, o significado epistêmi-
co da distinção de senso comum entre “vigília” e “sonho”, da qual partiu.
Mas seu argumento, identificando-as, cria uma espécie de curto-circui-
to nas pretensões cognitivas do senso comum, ainda vigentes, que des-
trói a distinção mais elementar que seríamos capazes de estabelecer
entre essas circunstâncias (para restabelecê-la filosoficamente, seis
meditações mais tarde, como veremos adiante) e faz do senso comum
refém de sua incapacidade de comprovar que se encontra situado na
posição que permanece aceitando como condição básica de conheci-
mento. Montaigne, por sua vez, preserva a distinção de senso comum,
em certo sentido, além do que o faz o argumento cartesiano: a conclu-
são de seu argumento não nos impede de permanecer aceitando que
por vezes nos aparece estar doentes, em outras que estamos saudáveis
(no mesmo nível, talvez, em que Descartes, quando interrompe sua
Meditação, retoma suas certezas práticas). Contudo, o próprio argu-
mento cético montaigniano pretende, diversamente do que ocorre em
Descartes, criticar a interpretação que o senso comum confere a essa
oposição, assimilando-a a um esquema perceptivo simplista e fantasio-

338

10888_A figura do filosofo.p65 338 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

so, em seu conjunto (segundo o qual, à oposição entre saúde e doença


se poderia fazer corresponder uma oposição entre capacidade ou inca-
pacidade de conhecer as coisas tais como elas são), e substituí-lo por
outro, que melhor corresponderia àquela que seria, de fato, nossa situa-
ção perceptiva natural. Para fazê-lo, Montaigne expõe sua experiência
pessoal diante das paixões que o acometem, e convida o leitor a fazer o
mesmo: não apenas podemos observar como nosso juízo se dobra evi-
dentemente às paixões quando estamos doentes, mas, caso agucemos
nosso olhar, podemos constatar elementos mais diminutos e impercep-
tíveis — e por isso mesmo mais problemáticos — permanentemente
agindo sobre ele, num sentido que pode igualmente comprometer seu
poder cognitivo. Por conseguinte, se nos enganamos no modo como
usualmente opomos saúde e doença, isso se restringe a um aspecto
preciso: em ambos os casos, nosso instável juízo se encontra igualmen-
te refém de circunstâncias que nos impedem de tomar seu produto
como conhecimento absoluto e objetivo. E se isso nos mostra que, como
dissemos, a diferença entre a operação do juízo na saúde e na doença
deveria ser mais bem descrita, não como uma diferença de natureza,
mas talvez como uma diferença de grau, essa analogia, de todo modo,
não nos permite concluir que a diferença entre saúde e doença seja de
grau (e muito menos que se trata de estados indiscerníveis).
Talvez a fórmula “nunca estamos sem doença” possa ser lida como
o desenvolvimento retórico de um pressuposto do senso comum desti-
nado a levá-lo ao absurdo: mas aqui não se trata de questionar nossa
crença elementar de situarmo-nos em determinado estado perceptivo
(a vigília, por oposição ao sonho), mas apenas de um modelo percepti-
vo ao qual usualmente os fatos (ou melhor, um certo conjunto de fatos)
são subordinados: se sustentarmos que a saúde é por definição a situa-
ção em que conhecemos as coisas como são em si mesmas, por oposi-
ção à doença, caberá concluir que nunca estamos sem doença. Não é
necessário, contudo, compreender, de modo geral, a oposição entre
saúde e doença segundo o mesmo esquema. Temos, é verdade, uma
tendência espontânea a assumir uma superioridade epistêmica da saú-
de com relação à doença: em face dessa tendência, o absurdo da con-
clusão talvez possa soar como um sinal de nossa incapacidade de com-

339

10888_A figura do filosofo.p65 339 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

preender plenamente os limites de nossas faculdades cognitivas. Seja


como for, tal conclusão não pode ser aqui senão uma metáfora (que,
em sua natureza metafórica, alude talvez a esse mesmo limite cognitivo,
como veremos melhor adiante). Se “doença” há, estamos aqui diante
de uma espécie de doença natural de nosso juízo, cuja oscilação abarca
tanto a saúde como a doença em sentido próprio. Não se trata de supri-
mir nossa percepção da oscilação entre os estados de saúde e doença,
tal como a percebemos; muito menos de negar o sentido prático dessa
percepção e nossas reações naturais a ela. Em vez disso, o propósito do
argumento é apenas o de procurar oferecer uma imagem menos fanta-
siosa do efetivo funcionamento natural de nossas faculdades cognitivas,
segundo seus alcances e limites próprios. Se há algum diagnóstico, na
filosofia de Montaigne, de alguma “doença natural” do homem que se
trate, nalguma medida, de pretender curar, não é aquele produzido
pela dúvida (que apenas o cartesianismo irá tingir de tonalidades mór-
bidas), mas a presunção do reconhecimento de alguma verdade, da
qual participam as ficções sobre a possibilidade de reconhecê-la em
certas condições privilegiadas de percepção: “[A] A presunção é nossa
doença natural e original…” (540). Não deveríamos, afinal, reconhe-
cer que, a despeito do uso retórico que faz do modelo perceptivo do
senso comum, o argumento de Montaigne acaba produzindo, a despei-
to do aparente parentesco com o argumento cartesiano, um resultado
muito mais próximo da argumentação cética dos pirrônicos?
Costuma-se dizer, em contrapartida, que o argumento cartesiano
produz uma versão mais radical de ceticismo do que aquele presente
nas versões anteriores. Mas, em vista do que dissemos, esse juízo preci-
saria ser, no mínimo, qualificado. Por certo, a dúvida produzida por
Descartes é mais devastadora do que aquela produzida pelo argumento
de Montaigne no que tange às conseqüências da conclusão quanto às
nossas certezas práticas. Contudo, devemos observar tal apreciação da
“radicalidade” como satisfatória se levamos em conta que Descartes só
estabelece sua conclusão ao preço de manter inquestionado o modelo
perceptivo pelo qual o senso comum opõe, de um lado, a vigília como
condição de certeza e o sonho como condição de ilusão? Neste mo-
mento, talvez o leitor proteste e nos acuse de não estar levando devi-

340

10888_A figura do filosofo.p65 340 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

damente em conta a diferença de conteúdo das argumentações. Pedir


para abandonar o “modelo do senso comum” aqui não seria abdicar do
modo como espontaneamente assumimos, no interior da própria con-
dição de vigília, que caso estivéssemos sonhando estaríamos radical-
mente impedidos de alegar os conhecimentos mais elementares que
pensamos dispor do mundo exterior, tal como nos parece existente?
Porém, como antecipamos, Montaigne desenvolve uma versão própria
do argumento do sonho, que conserva as mesmas linhas gerais de sua
argumentação relativa à oposição entre a saúde e a doença:
[B] Aqueles que compararam nossa vida a um sonho tiveram even-
tualmente mais razão do que supunham ter. Quando sonhamos, nossa
alma vive, age, exerce todas as suas faculdades, nem mais nem me-
nos do que o faz quando estamos despertos; mas sim apenas mais
molemente e obscuramente, não de modo que a diferença seja como
a da noite a uma claridade viva, mas sim como a da noite à sombra.
Lá ela dorme, aqui ela cochila, mais e menos. São sempre trevas, e
trevas cimerianas. [C] Nós velamos dormentes, e vigilantes dormi-
mos. Eu não vejo tão claro no sonho; mas, quanto ao velar, nunca o
encontro suficientemente puro e sem nuvem. Mesmo o sono em sua
profundeza adormece também os sonhos. Mas a nossa vigília não é
nunca tão desperta que purgue e dissipe inteiramente os devaneios,
que são os sonhos da vigília, e piores que sonhos. Nossa razão e nossa
alma, recebendo as fantasias e opiniões que nela nascem quando
dorme, e autorizando as ações de nosso sonho com semelhante apro-
vação àquela que dá às do dia, por que não pomos em dúvida que
nosso pensamento e nosso agir não são um outro sonhar, e nossa
vigília uma espécie de dormir? (596).
Em seu final, especialmente, tal argumentação se aproxima bas-
tante do argumento do sonho proposto por Descartes, mas isso apenas
confirma o quão decisivas as diferenças de detalhe podem ser aqui. Em
vez de oferecer uma razão para supor que podemos efetivamente estar
sonhando, essa argumentação pretende nos mover à desconfiança de
nossa crença segundo a qual a situação de vigília seria apta, por si, para
o conhecimento da verdade, por oposição aos sonhos, alegando que o
parentesco entre o sonho e a vigília talvez seja maior do que tendemos
a presumir. Mas, em vez de sustentar que poderíamos estar literalmen-

341

10888_A figura do filosofo.p65 341 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

te sonhando, o argumento se limita a indagar se a vigília não seria


“uma outra espécie de sonhar” (itálicos nossos). Em vez de reclamar
sua refutação por seu caráter absurdo, essa conclusão, aproximando
vigília e sonho, pretende ser um retrato fidedigno do modo como efe-
tivamente nos inserimos, natural e cotidianamente, no mundo em que
vivemos. E aqui ele acompanha toda a tradição cética que o precede:
o que se questiona não é a certeza que temos de estar acordados quan-
do julgamos estar (por mais que possamos, eventualmente, vir a nos
enganar, vez ou outra, a esse respeito); questiona-se, em vez disso, o
juízo que tendemos a produzir, quando estamos acordados, sobre a
diferença essencial entre essa situação e os sonhos.
Essa argumentação, como dissemos, não faz senão transportar a
outra clave o mesmo esquema argumentativo destinado a criticar o
simplismo do modelo perceptivo que assume ser a vigília uma circuns-
tância espontaneamente capaz de propiciar a verdade, por oposição ao
sonho. Para abandonar tal esquema, mais uma vez o leitor é convidado
a confrontá-lo com uma consideração mais atenta de sua efetiva expe-
riência perceptiva; e mesmo que aqui algumas expressões sugiram mais
incisivamente que a distância entre o sonho e a vigília, à luz de tal
exame, consista numa simples gradação, a força do argumento não é
simplesmente haurida dessa alegação. O problema principal reside no
modo como aquilo que se torna para nós um objeto de conhecimento
é sempre mediado por nossas faculdades cognitivas, dado que o paren-
tesco entre a ação de nosso juízo na vigília e no sonho revela-se maior
do que pretenderia aquele que admite a circunstância em que ocorre
a percepção (no caso, a vigília) como uma garantia de conhecimento
das coisas. Estejamos dormindo ou acordados, os objetos que conhece-
mos nos são apresentados por nossas faculdades cognitivas que, por si
mesmas, como diz Montaigne noutras passagens, livremente os trans-
formam. Mais exatamente, o argumento se apóia na admissão de que,
no sonho, nossa mente exerce naturalmente uma atividade capaz de
produzir uma impressão de conhecimento dos objetos externos, ativi-
dade essa que permanece se exercendo durante a vigília, sob a forma
dos devaneios. Quando nos atemos à impressão de conhecimento das
coisas, tal como se produz nos sonhos, no momento em que os viven-

342

10888_A figura do filosofo.p65 342 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

ciamos, e nos damos conta de que, na vigília, nossa impressão de co-


nhecimento é semelhante àquela que temos durante os sonhos, o
mesmo parentesco antes observado se revela uma razão para descon-
fiarmos não exatamente de que possamos estar sonhando, mas sim de
que o assentimento dado aos objetos durante a vigília não seja tampou-
co capaz de purgar plenamente as sombras dos sonhos — isto é, não
nos ofereça conhecimento pleno das coisas, mesmo que não saibamos
determinar, exatamente, em que sentido nossas faculdades intercedem
naquilo que apreendemos. Em particular, notemos que, no momento
final da argumentação, Montaigne focaliza exatamente o mesmo pon-
to sobre o qual incide o argumento do sonho em sua versão ciceronia-
na: o assentimento às “ações de nosso sonho com semelhante aprova-
ção àquela que dá às do dia…” — razão pela qual deveríamos despir
nossas faculdades perceptivas do poder que espontaneamente lhes ou-
torgamos, solidariamente ao esquema perceptivo simplificado pelo qual
opomos sonho e vigília. A conclusão suspensiva haure sua força do
modo como nossa experiência se deixaria avaliar de modo diverso, des-
cortinando a ondulação e variação de nosso juízo, que os Ensaios re-
correntemente retomam.
Porém, diversamente do argumento cético proposto pelos pirrôni-
cos, que se limita a opor as evidências dos que sonham às evidências
dos que estão despertos, o argumento de Montaigne é, mais uma vez,
construído com base em um aparente pressuposto de senso comum —
o de que, quando despertos, temos alguma forma de acesso privilegiada
aos assim chamados objetos externos (ainda que ela não constitua pro-
priamente conhecimento). Ele contrabalança o fato de que o sono não
adormece plenamente nossa alma ao fato de que ela não está inteira-
mente desperta na vigília. Significa isso, porém, conceder algum privi-
légio epistêmico à vigília por oposição ao sonho, diversamente do que
propõe Sexto? Como dissemos, a despeito da diferença de estratégias e
da formulação metafórica, a conclusão do argumento parece ser a mes-
ma que foi proposta pela versão acadêmica. Uma vez mais nos parece
aqui ser levada a cabo, de modo consistente com o sentido do ceticis-
mo antigo, uma relativização geral das evidências próprias de cada uma
das variáveis circunstâncias perceptivas pelas quais o oscilante juízo

343

10888_A figura do filosofo.p65 343 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

humano revela sua incapacidade de nos prover de um critério de co-


nhecimento. Novamente, a diferença nos parece ser sobretudo retóri-
ca, mesmo que nessa chave devamos incluir a admissão de um pressu-
posto que, enquanto estivermos no estado de vigília, tenderemos a com-
partilhar com os demais que assim se encontram. Somos inclinados,
em suma, a situar o argumento montaigniano do sonho, quanto a suas
conseqüências propriamente epistemológicas, ao lado de suas demais
versões antigas, por mais que as semelhanças com o argumento carte-
siano sejam notáveis e talvez historicamente relevantes para a recons-
tituição das discussões em torno da problemática cética nas origens do
pensamento moderno.
Decerto a argumentação dubitativa cartesiana guarda importantes
semelhanças, quanto ao seu conteúdo filosófico, com a argumentação
cética que lhe inspira. Igualmente Descartes pretende questionar a ad-
missão de que a vigília possa oferecer, por si, um critério de conheci-
mento das coisas, e seu argumento pode ser lido como um questiona-
mento de um esquema epistêmico imperfeito44, que se trata de substi-
tuir por outro. Porém, sua argumentação estende a identificação do
sonho e da vigília de um modo tal que, em vez de dar espaço à reava-
liação cética que se oferece no argumento de Montaigne, a substitui-
ção desse esquema perceptivo dá lugar a outro, que se apóia na admis-
são da possibilidade de haurir verdades inteiramente distintas daquilo
que se ofereceria em nossa experiência sensível. Dando o passo que
seus antecessores céticos se recusam a dar e extraindo de suas premissas
uma razão para suspeitar de que poderíamos estar efetivamente sonhan-
do, ele inventou um ceticismo “moderno”, especialmente catastrófico,
que se apóia, como vimos, na ambigüidade das evidências que movem
nosso juízo ao assentimento para sustentar a hipótese de que podería-

44. Parece-nos relevante, por exemplo, que Descartes, na formulação do seu argu-
mento, afirme que “o que ocorre no sonho não lhe parece tão claro nem tão distinto
quanto tudo isso” (que seus sentidos lhe oferecem quanto aos objetos que o cercam na
situação de vigília). Ele se vale de seus próprios termos técnicos, que apenas com a
evolução argumentativa poderão ser investidos de sentido pleno, para designar a apa-
rência de critério oferecida pela evidência de vigília, e que o argumento do sonho acaba
justamente por dissolver.

344

10888_A figura do filosofo.p65 344 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

mos agora estar situados na circunstância que, segundo os critérios vi-


gentes (de vigília), nos aparece necessariamente como problemática
(isto é, o sonho). A rigor, cabe dizer que seu argumento “cético” não
leva em consideração as conclusões propriamente céticas, segundo as
versões antigas do argumento — que nos proíbem, exatamente, de
assumir a presunção de conhecimento de dada circunstância num sen-
tido absoluto. Ele apenas abala provisoriamente nossa crença ingênua
de que a vigília ofereceria um conhecimento adequado do mundo
exterior para, posteriormente, ao final da Sexta Meditação, restabelecê-
la sobre as bases que, a seu ver, seriam filosoficamente adequadas: a
bondade de um Deus veraz e onipotente e a harmonia e a regularidade
de nossas percepções de vigília, por oposição às que ocorrem no so-
nho45. Contudo, se efetivamente Descartes desconsidera em seu argu-
mento o cerne da problematização própria do ceticismo antigo, não
lhe basta deter o mérito de ter descoberto um problema novo que ul-
trapassa as próprias razões de duvidar dos céticos antigos46?
Limitar-nos-emos aqui, para concluir provisoriamente a discussão
desse ponto, a algumas considerações sobre a interpretação do argu-
mento cartesiano que lhe é subjacente. Pensamos que a forma corrente
de interpretar esse argumento confere abusivamente um poder à infe-
rência proposta por tal argumento que não é aquele de que ele dispo-
ria, segundo o próprio Descartes. Ele estaria sugerindo, segundo essa
leitura, que a devida consideração dos elementos perceptivos elenca-
dos por suas premissas — a saber, minha memória acerca da evidência
com que as coisas me apareceram durante um sonho; minha consciên-
cia de saber, agora, que se tratava apenas de um sonho; minha incapa-
cidade de encontrar um indício conclusivo pelo qual eu pudesse agora
distinguir minha certeza de conhecer as coisas daquela que tive en-
quanto sonhava — seria uma razão suficiente para sustentar a conclu-
são de que poderíamos estar sonhando. Porém, como pensamos ter

45. Cf. Meditações, VI, 206-211, ed. Beyssade, AT VII, 89-90.


46. Cf. novamente BURNYEAT, 1984, p. 247, segundo quem Descartes detém o mérito
de ter compreendido que os materiais céticos possuem maior virulência do que aquela
que foi percebida pelos antigos céticos, ao pôr em dúvida a própria existência do mundo
exterior.

345

10888_A figura do filosofo.p65 345 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mostrado noutra ocasião47, Descartes teria compreendido seu argumento


de outro modo. Pois, sem oferecer qualquer contra-argumento especí-
fico a essa razão de duvidar que dependa das verdades metafísicas de-
monstradas ao longo das Meditações, ele simplesmente descarta a hi-
pótese de estarmos sonhando como “hiperbólica e ridícula”, ao final
de seu percurso, por ser incompatível com a crença de estarmos acor-
dados. Tal crença, por sua vez, é espontaneamente produzida em nós
pela harmonia de nossas percepções, independentemente de como
possamos justificá-la metafisicamente, por meio da prova do Deus ve-
raz (de modo que essa prova apenas diz respeito ao valor cognitivo da
crença de estarmos acordados e das demais que dela se seguem, mas
não interferere no simples fato de crermos que estamos acordados).
Pensamos que assim ele procede porque tal hipótese, rigorosamente,
não se segue apenas do conjunto das premissas descritas; ela exige,
além delas, que se admita tratar o simplesmente duvidoso como sabi-
damente falso. Ela depende, noutros termos, de darmos um passo que
Montaigne expressamente, pelo que vimos, se recusaria a dar — ao
distinguir as razões que nos conduzem a admitir a dubitabilidade geral
das proposições da exigência da posição em prática de uma dúvida de
tal ordem — exatamente na medida em que ele transformaria o ceticis-
mo numa doutrina contraditória, confundindo uma questão de direito
com uma questão de fato. Descartes, assim o entendemos, só julgaria
seu argumento do sonho como cogente no contexto de sua dúvida
hiperbólica e admitidas as premissas que determinam o regime epistê-
mico próprio de sua investigação, sabidamente diverso daquele que
vige segundo nossos parâmetros cognitivos usuais (segundo os quais
não decretamos que aquilo que nos parece duvidoso seja sabidamente
falso). Tal passo é que nos autorizaria logicamente a admitir a hipótese
de que poderíamos estar sonhando — mesmo que ele não seja imedia-
tamente identificado48. Porém, é justamente na medida em que esse

47. Cf. EVA, 2001, para uma exposição mais detalhada das razões que, em nosso
entender, apóiam esse julgamento. Apoiamo-nos nesse trabalho para a justificativa su-
cinta que se segue daqui.
48. Efetivamente, o passo é explicitamente dado no parágrafo seguinte àquele em
que se toma o argumento do sonho por formulado. Se a conclusão do parágrafo quinto

346

10888_A figura do filosofo.p65 346 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

passo pode parecer avulso e que as demais premissas podem parecer


suficientes para gerar a conclusão que (apenas parcialmente) susten-
tam que reside o poder retórico do argumento, pois ele pode parecer
isoladamente um recurso corroborador do próprio empreendimento
cartesiano (que não é oferecido dogmaticamente, mas vai sendo justi-
ficado, ao longo do trajeto da Primeira Meditação, através do recurso a
contra-argumentos que parecem pô-lo em xeque, como o contra-argu-
mento da loucura). Todavia, embora o argumento não exija tal justifi-
cação retórica por parte daquele que compreende e admite o contexto
metódico da investigação — e, por conseguinte, o efetivo sentido lógi-
co do argumento —, a leitura usual, que não considera adequadamen-
te seu regime metódico, corresponde, aos olhos Descartes, a um sim-
ples produto da imaginação49. Para os propósitos de Descartes, isto
bastaria: ele não pretende provar que efetivamente estejamos sonhan-
do, mas conduzir o leitor, ainda incapaz de compreender exatamente
a distinção que há, a seu ver, entre a razão e a imaginação (e, portanto,
os efetivos fundamentos das verdades que se trata de provar), a enredar-
se em seus preconceitos filosóficos que, neutralizados, possibilitarão
que ele volte sua atenção àquilo que Descartes considera fundamental
para o conhecimento de verdades necessárias. Em síntese, no lugar da
dúvida extrema dos pirrônicos, que, segundo a descrição oferecida por
Diógenes Laércio, só poderia, como notou Montaigne, ser posta em
prática por alguns instantes (e não se tornar uma prática habitual e
constante), Descartes ter-se-ia valido de um argumento capaz de sedu-
zir a imaginação do leitor, para bloquear metodicamente a admissão de
um modelo perceptivo apoiado nas conseqüências contraditórias que

da Meditação Primeira afirma apenas que “minha estupefação é tanta que sou quase
capaz de me persuadir que durmo…” (itálico nosso), o parágrafo sexto se inicia com
esta afirmação: “Suponhamos, portanto, que sonhamos…” (ed. Beyssade, p. 58-59, AT
VII, 19). Nossa sugestão é, assim, a de que a inferência significada por esse “portanto”
compreende a instanciação do princípio da dúvida hiperbólica — tratar o duvidoso
como falso — como premissa.
49. Ver, por exemplo, a referência ao sonho no Discurso do método (cf. DM, Quarta
Parte, p. 32), descrito como uma “decisão de fingir” que todas as coisas que lhe advieram
ao espírito seriam como as ilusões dos sonhos.

347

10888_A figura do filosofo.p65 347 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

geraria e criaria um ambiente propício à apresentação das verdades


claras e distintas.
Por certo, porém, que essa interpretação não esgota o problema.
Mas, se ela é aceitável, a relação entre a reflexão de Descartes e o
ceticismo pode ganhar uma feição diversa da que usualmente se ad-
mite. Pois, em vez de produzir um “novo ceticismo”, sua dúvida me-
tódica seria resultante do reconhecimento de que o ceticismo, a seu
ver, poderia ser compatível com a vida prática (desde que nos abstivés-
semos de traduzir a hipótese de que tudo é passível de dúvida num
projeto de efetivamente pôr em dúvida todos os nossos conhecimen-
tos). Como sugerimos, o ponto de partida das Meditações — no qual
Descartes está situado numa esfera de certezas práticas, sem dispor de
um critério pelo qual qualquer uma das opiniões que ele aceita não
venha a se revelar “muito duvidosa e incerta” — seria eventualmente
compatível com aquela que o ceticismo de Montaigne propõe ser efe-
tivamente nossa situação natural de inserção no mundo. Porém, ao
mesmo tempo, tal postura filosófica lhe pareceria insatisfatória por
não ter esgotado todas as possibilidades de examinar a possibilidade
de obtenção de algo além da certeza prática, isto é, uma verdade “fir-
me e constante”, como a que tal método lhe permitiria supostamente
alcançar. Mas não nos cabe aqui estender esse contraponto no sentido
de uma avaliação filosófica da felicidade dessa aposta; limitemo-nos a
observar como a admissão demasiado rápida de um veredicto em fa-
vor da assimilação da dúvida metódica à dúvida cética pode encobrir
a coerência própria com que o ceticismo montaigniano se oferece
como interlocutor potencial na reflexão acerca dos limites de nossa
experiência cognitiva.

6.2.4. O movimento natural das opiniões


Consideremos ainda uma derradeira forma de argumentação pre-
sente nessa crítica da vaidade do juízo humano, que já se deixou en-
trever nos exemplos anteriores. Vimos que o fato de toda proposição
ser passível de controvérsia mostra, segundo Montaigne, que nossa alma
se apropria das coisas por um meio diverso de um “poder natural de

348

10888_A figura do filosofo.p65 348 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

julgar presente em mim e em todos os homens” (562). Mas se o juízo


(ou entendimento) é, nessa medida, aquilo que nos põe em posição de
propriamente reconhecer a presença da verdade, caso esse poder esti-
vesse à nossa disposição, é a própria designação de poder cognitivo que
limitadamente possuímos como “juízo” ou “entendimento” que tende
a se tornar inadequada ou ilusória. Quando pensamos estar conhecen-
do as coisas, apreendemo-las, sem nos dar plenamente conta disso,
filtradas por um elemento externo ao que seria uma pura capacidade
de conhecer a verdade (que, para tanto, deveria ser naturalmente dada
a todos os homens). Pensamos conhecer as coisas por meio de nosso
entendimento, mas, de fato, apenas imaginamos conhecer as coisas;
confundimos, portanto, o juízo ou entendimento com uma faculdade
diversa. O mesmo processo parece estar em consideração quando se
observa que o costume se sobrepõe à natureza (ainda que ali Montaig-
ne se valha preferencialmente do termo “razão” para designar a facul-
dade cognitiva eclipsada), e ainda mais claramente intervêm elementos
externos ao juízo, como vimos, no caso das paixões e de outras instân-
cias corporais que comprometem sua atuação: “[A] É certo que nossa
apreensão, nosso juízo, e as faculdades de nossa alma em geral sofrem
segundo os movimentos e a operação do corpo, cujas alterações são
contínuas. Não temos o espírito mais desperto, a memória mais pron-
ta, o discurso mais vivo na saúde que na doença?” (564). Contudo,
essa ingerência de elementos externos não é problemática apenas quan-
do nossa alma ou nosso corpo intervém nas impressões de conheci-
mento que se produzem em nós, mas também em vista de problemas
decorrentes do modo como a natureza externa, de modo geral, inter-
fere no processo cognitivo.
No início da “Apologia”, ao atacar a “vaidade do homem” — que pre-
tenderia se situar, graças à posse da razão, no centro do cosmo —, Mon-
taigne oferece o seguinte argumento contra as explicações astrológicas:
[A] Mas, pobrezinho, que tem ele em si digno de tal vantagem? A
considerar essa vida incorruptível dos corpos celestes, sua beleza, sua
grandeza, sua agitação co ntínua [seguindo] uma tão justa regra… a
considerar a dominação e o poder que esses corpos têm, não somen-
te sobre nossa vida e sobre as condições de nossa fortuna… mas mesmo

349

10888_A figura do filosofo.p65 349 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

sobre nossas inclinações, nossos raciocínios [discours], nossas vonta-


des, que eles regem, conduzem e movem à mercê de suas influên-
cias, segundo nossa razão nos ensina e descobre… de modo que não
apenas um homem, nem um rei, mas as monarquias, os impérios e
todo este mundo inferior se movem pelo balanço dos menores mo-
vimentos celestes… se nossa virtude, nossos vícios, nossa capacidade
e conhecimento [science], e esse mesmo raciocínio que fazemos sobre
a força dos astros, e essa comparação deles conosco, vem ela, como
julga nossa razão, por seu intermédio e seu favor… se nós recebemos
da distribuição do céu esta parte de razão que nós possuímos, como
poderá ela se igualar a ele? Como submeter à nossa ciência sua es-
sência e [suas] condições? (450-451; itálicos nossos).
O leitor não precisaria aguardar os momentos posteriores da argu-
mentação cética desse ensaio para constatar que Montaigne não com-
partilha da crença na astrologia, nem nas demais teses da cosmologia
antropocêntrica que formam o quadro dessa argumentação. Já aqui
podemos perceber que estamos diante de um argumento dialético, que
assume determinadas teses com o intuito de mostrar o caráter contra-
ditório da argumentação que as advoga: Montaigne assume a tese de
que os astros influem nos assuntos terrestres para condenar nossa pre-
tensão de abarcar a “essência e [as] condições” das coisas celestes. Ora,
à medida que as próprias explicações astrológicas passam a ser vistas
como um efeito da influência dos astros, a tese de que os astros inter-
ferem em tudo o que se produz no mundo sublunar (de uma forma
que não é, pelo menos, imediatamente detectável no andamento das
coisas) acaba por conduzir a um paradoxo, pois justamente o fato de
que tal influência exista compromete a aparente verdade que pensa-
mos poder extrair, com as evidências que reconhecemos conduzir a
tanto, acerca desses assuntos celestes por meio dos supostos conheci-
mentos astrológicos. Noutros termos, o que tal teoria astrológica afir-
ma sobre a intervenção dos astros é implicitamente posto em xeque
caso o que ela afirma seja verdade, pois, se assim for, deveremos tam-
bém aceitar que, oculta sob os supostos conhecimentos astrológicos
que essa teoria nos propõe, está a mesma intervenção dos astros, ainda
incógnita, que influencia o fato de que essas teses sejam essas e não

350

10888_A figura do filosofo.p65 350 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

outras, além dos próprios argumentos e explicações oferecidos por esse


saber astrológico50.
Não é preciso, contudo, partilhar de tais pressupostos astrológicos
para ser conduzido a problemas similares. Ao final da discussão sobre
a precariedade do juízo, assim Montaigne se refere ao modo como a
“natureza” interfere no andamento de nossas faculdades cognitivas, com-
prometendo nossa pretensão de conhecer as coisas:
[A] Se a natureza encerra nos termos do seu progresso ordinário,
como todas as demais coisas, também as crenças, os juízos e as
opiniões dos homens; se eles têm sua revolução, seu nascimento,
sua morte, como as couves; se o céu os move e rola a partir de seu
lugar, que magistral e permanente autoridade vamos nós a eles atri-
buindo? (575).
Esse argumento corrobora o propósito geral dessa discussão, como
o anunciamos: o de promover uma espécie de “naturalização” de nos-
sas faculdades cognitivas e de nossas crenças (neutralizando, na medi-
da do possível, o modo como nossas opiniões tenderiam a mascará-las).
Ele se faz acompanhar de uma variedade de testemunhos destinados a
sustentar que há uma interferência dos lugares e climas em que se vive,
não apenas na diversidade de nossas compleições físicas, mas também
nas “compleições” ou “faculdades da alma” (v. ibid.). Nesse caso, po-
rém, não se trata apenas de mostrar que alguma teoria pressuposta nos
enredaria num paradoxo. O problema aqui se segue de uma ordem
mais geral de constatações, a saber, do fato de nos inserirmos numa
natureza que ultrapassa necessariamente o alcance de nossas faculda-
des de conhecimento. Não se trata, ao que parece, de pretender con-
denar essa premissa, posto que ela está na base da própria tentativa de
oferecer uma imagem mais realista de nossa inserção na natureza, por
oposição às teorias que nos acordam uma falsa prerrogativa. Alegar essa
suposta dimensão natural do desenvolvimento de nossas opiniões, que
se pretende contrapor ao valor eterno e objetivo que tendemos a lhes

50. Para uma explanação mais ampla acerca do emprego cético de argumentações
dialéticas na “Apologia”, em especial na crítica à “vaidade do homem”, ver EVA, 1994a,
e 2003, especialmente cap. 1.

351

10888_A figura do filosofo.p65 351 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

atribuir quando as julgamos verdadeiras, é parte dessa tentativa. Seja


qual for o significado exato da alegação de que nossas opiniões pos-
suem uma vida própria, como as “couves”, tampouco se pretende aí,
ao que nos parece, uma asserção a ser entendida literalmente. E não
precisamos aqui examinar as opiniões correntes na Renascença para
avaliar a plausibilidade dessa hipótese, pois o contexto é suficientemente
claro. Pretenderia Montaigne incorrer numa afirmação tão temerária
se está criticando justamente o modo como nossas faculdades cogniti-
vas produzem explicações fantasiosas sobre sua própria natureza? Tal-
vez essa metáfora pretenda, ao contrário, assinalar a estranheza que
decorre da percepção de que nossas opiniões e crenças são determina-
das pelas leis próprias do “progresso ordinário” da natureza, de um modo
alheio à nossa percepção. O efeito desse alheamento não seria outro
que o de produzir em nós a falsa crença de que elas nos oferecem
imagens exatas e objetivas das coisas, além da forma como refletem tais
“causas naturais” que nelas interferem. A metáfora seria, eventualmen-
te, a maneira possível de aludir a algo que escapa de nosso co-
nhecimento, em vista do que alega o próprio argumento.
Não nos parece, tampouco aqui, que seja o caso de imputar a Mon-
taigne a defesa de uma tese sobre o determinismo natural (por oposi-
ção ao modo como nossa idéia de liberdade, por exemplo, poderia mas-
cará-lo). Embora o argumento questione a crença na autonomia que
pensamos ter sobre nossas opiniões, Montaigne aponta, por meio de
suas metáforas, um problema mais radical, relativo às operações de nossas
faculdades cognitivas. O problema diz respeito à “autoridade magistral
e permanente do juízo”, resultante da invisibilidade do “progresso or-
dinário” da natureza como algo que determinaria nossos juízos e opi-
niões. Ao julgarmos ou entendermos, nossas faculdades cognitivas se
verão tanto mais imbuídas de autoridade para julgar o que julgam quanto
maior isenção puderem auferir no ato de julgar ou entender, segundo
as evidências disponíveis. Contudo, na medida em que o alcance de
nosso entendimento é limitado e finito (posto que ele é parte de uma
natureza perpetuamente em movimento, que o transcende e que ele é
incapaz de abarcar plenamente), ele próprio não pode se julgar possui-
dor de um critério satisfatório para discriminar se há ou não algo que

352

10888_A figura do filosofo.p65 352 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

esteja interferindo em seu funcionamento. Mais exatamente, com a


devida consideração dos dados do problema — a inserção de nossas
faculdades numa natureza que as determina de um modo que ela pró-
pria não é capaz de conhecer perfeitamente —, somos conduzidos a
constatar que o valor cognitivo acordado às nossas opiniões deve ser
posto em xeque num sentido que não estamos normalmente dispostos
a reconhecer.
Montaigne não está, portanto, apenas assinalando os limites de
nossas faculdades em conhecer a natureza em geral, mas particular-
mente suas implicações no conhecimento do modo como a natureza
determina, entre outras coisas, seu funcionamento quando conhecemos
algo, de um modo tal que comprometa suas pretensões cognitivas. Pois,
quando pensamos saber algo, reconhecemos apenas como “causa” de
nossos conhecimentos os próprios fatos que determinam, ou que pen-
samos determinar, a veracidade ou a falsidade de nossas opiniões. Po-
rém, nosso processo cognitivo é também determinado, nalguma medi-
da, por causas que não somos capazes de reconhecer como determi-
nantes do fato de pensarmos conhecer algo ou de ter esta ou aquela
opinião. E se trata de um problema constitutivo de nosso juízo: como
nele nos fiarmos se ele não pode abarcar o conjunto de causas que
interferem no modo como é levado a considerar isto verdadeiro e aqui-
lo falso e, a despeito disso, ele nos apresenta seus supostos conhecimen-
tos como independentes dessas causas ocultas que determinam sua ação?
Mais uma vez aqui haveria um convite implícito ao aprimoramento da
imagem que normalmente produzimos acerca de nossas faculdades;
nesse caso, porém, somos particularmente convidados a ver que, por
mais que possamos aguçá-las para a percepção dessas instâncias que
nela interferem, isso nunca poderá ser feito de modo completo; por
conseguinte, deveríamos rever nossa crença sobre nossa capacidade de
obter conhecimento objetivo.
Porém, o juízo, a despeito disso, produz de modo espontâneo e
natural uma impressão de conhecimento, aderindo inevitavelmente a
certas opiniões e recusando outras, diante das infinitas ocasiões de jul-
gar que se lhe vão sucedendo. Ele não é apenas incapaz de perceber
claramente suas limitações, mas acaba por necessariamente mascará-

353

10888_A figura do filosofo.p65 353 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

las, em vista de sua forma natural de agir (forma essa que não oferece,
nessa medida, nenhuma garantia de objetividade). O ceticismo de
Montaigne, nessa medida, parece nos conduzir a um corolário singu-
lar: não apenas ele se ocupa de observar os limites cognitivos de nosso
entendimento, mas acaba por assinalar que tais limites são sempre, em
alguma medida, para nós invisíveis através dele mesmo, e por causa do
seu modo natural de conhecer — o que não impede que ele nos possa
indicar a existência de tais limites de um modo suficiente para compro-
meter nossa pretensão de conhecimento. No mesmo sentido, Montaig-
ne nos convida a observar, noutra passagem, o “instinto fortuito” que
insensivelmente agiria de modo permanente sobre nosso juízo: caso
nos detivamos, com especial atenção, em inspecionar nossa experiên-
cia, poderemos não apenas senti-lo continuamente imantado por fato-
res “tão importantes” como o favoritismo aos amigos, a beleza ou a
vingança, mas também por uma “sombra de vaidade qualquer” que nos
leva a preferir uma a outra numa alternativa de coisas equivalentes do
ponto de vista da razão (v. 565). Em conformidade com o que observa-
mos ao examinar a discussão de Montaigne em “Como nosso espírito
se enreda a si mesmo” (II, 14)51, trata-se aqui de aludir a um “instinto
fortuito” (que lá ele recusara para a explicação do mesmo fenômeno)
como parte de um conjunto de causas que nos movem a julgar “sem a
licença da razão”. O que importa não é apenas o fato de serem justas
as causas pelas quais se julga, mas sobretudo saber se elas podem ser
reconhecíveis como causas (a beleza, a vingança etc.), uma vez que,
embora de menor monta, elas são igualmente problemáticas em face
da pretensão de julgar de modo objetivo e isento, uma vez que fazem
igualmente a balança pender. A capacidade do juízo humano revela-se
finalmente relativa à sua capacidade de considerar esse conjunto de
fatores potencialmente indeterminados e inabarcáveis: um juiz incom-
petente talvez seja incapaz de reconhecer as inclinações em favor dos
parentes e dos amigos que interferem em seu juízo como problemáti-
cas, que outros (a despeito de qual seja o veredicto) poderão ao menos
detectar; um olhar mais penetrante, porém, poderia ainda distinguir,

51. Ver item 6.1 — “A extremidade da dúvida sob exame”.

354

10888_A figura do filosofo.p65 354 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

além daquelas que são mais comumente reconhecíveis, outras causas


que, mal podendo ser denominadas — uma “sombra de vaidade” qual-
quer —, fazem imperceptivelmente pender a balança. Se a agudeza
dessa capacidade nos encaminha no sentido de uma província cada vez
mais remota das exigências da esfera prática, é sempre, de todo modo,
limitada e incapaz de detectar todas as causas que assim podem agir, o
que permite a Montaigne generalizar, para o conjunto das ações do
juízo (como vimos ocorrer no caso da oposição entre as percepções do
homem doente e do homem são) um problema percebido de forma
pontual, em maior escala, em circunstâncias determinadas.
Ademais, se nosso entendimento é naturalmente finito, há outras
particularidades de nossas faculdades cognitivas que naturalmente agra-
vam sua imprecisão. Por exemplo, o modo como nossa razão é por si
mesma capaz de produzir cem explicações opostas acerca de um mes-
mo tema:
[A] Em suma, essa doença [do juízo] não se descobre tão facilmente,
se ela não é totalmente extrema e irremediável, uma vez que a razão
vai sempre torta, e manca, e caída, com a mentira como com a ver-
dade. Por isso é difícil descobrir seu engano e [seu] desregramento.
Eu chamo de razão [raison] sempre essa aparência de raciocínio
[discours] que cada um forja em si; essa razão, cuja condição permite
haver cem contrários acerca de um mesmo assunto, é um instru-
mento de chumbo e cera, alongável, dobrável e acomodável a todos
os vieses e a todas as medidas; não resta senão a capacidade de saber
torneá-lo [contourner]… (565).
Não apenas por seu caráter remoto ou diminuto escapam à visão de
nosso juízo as causas que nele intervêm, mas ele normalmente desvia
seu olhar e deixa que a razão encubra seus limites, forjando justificati-
vas. É uma idéia que Montaigne retomará noutras ocasiões, como ao
notar que nosso espírito, em vista de sua necessidade de compreender
ou de convencer, tende a produzir espontaneamente uma interpreta-
ção daquilo que percebe, em maior ou menor grau, distorcida52. Assim,

52. Ver sobre esse “fenômeno” natural, por exemplo, I, 31, 205A, ou as interessantes
análises de III, 11, 1027BC ss. sobre como as narrativas fantásticas vão naturalmente se

355

10888_A figura do filosofo.p65 355 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

a precariedade cognitiva de nosso juízo acaba por se manifestar não


apenas nos paradoxos em que se enreda ao se acercar de seus limites,
mas também no modo como sua ação se faz sempre acompanhar de
alguma impressão de verdade — de um bom senso permanente que,
como vimos, oferece em verdade, segundo Montaigne, uma prova da
falta intrínseca que nos faz um senso efetivamente bom.
Desse exame podemos extrair um esclarecimento sobre por que,
nas digressões que Montaigne oferece acerca da vaidade que encontra
em si mesmo, não se trata, ao contrário do que pode parecer, de apre-
sentar uma limitação da reflexão cética:
[A] Eu, que me espio mais de perto… com dificuldade ousaria dizer
a vaidade e [a] fraqueza que eu encontro em mim. Eu tenho o pé tão
instável e mal apoiado, eu o acho tão fácil de vacilar e tão pronto a
se abalar, e minha vista tão desregrada, que no jejum me sinto outro
que depois da refeição; se minha saúde me ri, bem como a claridade
de um belo dia, eis-me um homem amável; se uma ponta me aperta
o dedo do pé, eis-me desencorajado, desagradável e inacessível… [B]
Muitas vezes (tal como me ocorre de fazer de bom grado) tendo me
posto, por exercício e por prazer, a sustentar uma opinião contrária
à minha, meu espírito, aplicando-se e virando-se para esse lado, aí
me amarra tão bem que eu não encontro mais a razão de minha
primeira opinião, e a abandono. Eu me deixo arrastar quase aonde
me debruço, seja como for, e me lanço com meu peso. Cada um
poderia dizer o mesmo de si, se se observasse como eu… (565-566).
Nesse valioso testemunho que ele nos oferece de ter freqüente-
mente praticado — “por exercício e por prazer” — uma argumentação
cética in utramque partem, poderíamos ser tentados a descobrir uma
confissão de incapacidade de praticar a epokhé (posto que, em vez de
permanecer em suspenso entre as duas alternativas, ele se deixa arras-
tar pela segunda). Tanto mais que a “vaidade”, que ele reconhece em
si, é igualmente o termo, como vimos, empregado para demarcar o

constituindo ao passar de mão em mão, acalentadas pelo amor que os homens têm de
se tornar persuasivos, com base nessa observação cética. Examinaremos essa discussão
no capítulo seguinte.

356

10888_A figura do filosofo.p65 356 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

resultado da precipitação dogmática. Contudo, podemos agora ver que


tal leitura seria precipitada. A “vaidade” a que Montaigne se refere
quando descreve suas oscilações faz parte do mesmo diagnóstico sobre
a fraqueza do juízo, pelo qual se trata, aqui como nos exemplos ante-
riores, de pretender superar uma imagem mais rudimentar da suspen-
são cética, como uma dúvida impraticável. Pois, embora nosso juízo,
por seu funcionamento natural, faça-se sempre acompanhar de uma
“impressão de verdade”, a conclusão cética decorre do reconhecimen-
to de que sua capacidade de oscilar entre as razões é maior do que a que
cremos ser quando pensamos dispor de uma boa razão (“Eu me deixo
arrastar quase aonde me debruço… Cada um poderia dizer o mesmo
de si, se se observasse como eu…”). A isosthéneia relativa ao valor cog-
nitivo das opiniões que inevitavelmente devemos, em grande número,
aceitar, graças à nossa inserção na vida comum, segue-se, por assim
dizer, a posteriori, como conseqüência de uma observação crítica do
instrumento pelo qual as aceitamos. Não deixa de ser notável, porém,
o modo paradoxal como Montaigne instaura aqui uma argumentação
cética, fazendo da própria impossibilidade de permanecer em suspen-
são entre duas teses opostas um argumento em favor do ceticismo.
Seja qual for, porém, a razão motivadora desse paradoxo (eventual-
mente, a preocupação de não incorrer na mesma vaidade opinativa
pela qual os reformistas advogam posições contrárias aos costumes re-
lativos à crença religiosa53), ele oferece uma ilustração adicional do
problema central que a análise realizada neste item descortinou. Se,
como diz Montaigne, a compreensão dos limites do juízo é uma espe-
cial prova de sua presença, quanto mais agudo e penetrante for ele,
tanto melhor se acercará de um paradoxo imanente à sua própria con-
dição, na medida em que se acercar de seus limites, que não pode
compreender e que comprometem a objetividade do conhecimento
que pensa obter. Mas, sendo a possibilidade de avançar nessa direção
sempre limitada, o juízo deixa entrever um segundo aspecto de sua
precariedade, na medida em que, por força de sua atividade natural,

53. Sobre essa possibilidade, ver o início do capítulo IV.

357

10888_A figura do filosofo.p65 357 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

produz incessantemente impressões de verdade, abraçando as razões


que lhe parecem mais aceitáveis com o poder que relativamente possui
para se voltar na direção da verdade (mesmo que negativamente, ex-
cluindo aquilo que pode reconhecer como falso); razões que são, con-
tudo, sempre intrinsecamente dubitáveis.

***
É tempo de sintetizar, nalguns traços principais, a imagem natura-
lizada do juízo humano projetada por essa argumentação. A despeito
de ser identificado à eventual capacidade humana de reconhecer a
verdade — mesmo que negativamente, correspondendo à instância pela
qual é possível recuar para observar a plasticidade contraditória exibida
pela razão —, o juízo revela-se igualmente inapto a esse propósito. No
mesmo passo em que a razão se revela uma faca de dois gumes, pela
qual se pode argumentar in utramque partem, o juízo (identificado ao
entendimento) se apresenta, ao ser distinguido da razão, como um órgão
destinado à observação da verdade e ao assentimento, instância pela
qual individualmente colhemos as crenças que nos parecem pertinen-
tes em face do que nos é oferecido pela razão. Contudo, a observação
naturalizada do modo como humanamente age o juízo, como a razão,
também nos mostra dele uma imagem bastante diversa daquela que
presumíamos ter. A despeito da semelhança geral que o juízo dos diver-
sos homens parece possuir, ele é apenas, em cada um, a faculdade
singular e individual de se acercar da verdade, tal como se projeta em
sua diversidade, que testemunha da incapacidade geral do homem de
efetivamente obtê-la; ele é portador de uma oscilação permanente entre
as diversas opiniões que se apresentam; nunca está, ademais, inteira-
mente livre dos sonhos e da ingerência das paixões, as quais, quando se
apresentam de modo especialmente pronunciado, ele confessa com-
prometerem sua capacidade de conhecer. Seus próprios produtos pos-
suem uma natureza similar à dos demais objetos naturais que ele tende
a desconhecer mediante a imagem que faz de seu próprio poder cog-
nitivo. Ademais, em conformidade com o exame acerca de sua capaci-
dade de desenvolver-se ou de embotar, vista no capítulo anterior, ele

358

10888_A figura do filosofo.p65 358 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

pode tanto se deixar arrastar por esquemas cognitivos ilusórios que ofe-
recem um quadro para sua ação quanto se aprofundar no exame mais
cuidadoso de sua própria experiência, a fim de desvelar uma imagem
de suas limitações, que não pode ser senão sempre limitada. Tal diag-
nóstico autoriza a conclusão de que toda e qualquer imagem de verda-
de produzida por tal instrumento está ipso facto posta sob suspeita;
tudo o que é objeto de nossa faculdade de conhecer é duvidoso: “nosso
juízo natural não apreende claramente o que apreende”. Isso porque a
tendência permanente de nosso juízo a se mascarar e a se tomar como
possuidor de um poder diverso decorre de sua forma natural de agir:
embora seja um juízo singular, toma-se por universal; embora seja os-
cilante, toma-se, a cada vez, por definitivo; embora nunca se dissipem
as trevas dos sonhos inteiramente, inventa para si uma situação ideal na
qual pensa estar conhecendo a realidade; embora possa compreender
que causas externas nele intervêm permanentemente, toma-se sempre
por representante do “bom senso”. É em virtude desse segundo aspecto
que cabe afirmar que o juízo porta uma dupla fraqueza: ele é não in-
capaz apenas de reconhecer uma verdade que seria compatível com as
exigências que ele mesmo admite (e o pode perceber, desde que foca-
lize melhor aquela que pensa ter encontrado), mas também de reco-
nhecer adequadamente sua fraqueza e seus limites, sendo permanen-
temente imantado por alguma imagem da verdade que acaba por ocul-
tá-los. Diríamos agora que a particular atenção a esse aspecto natural
parece ser uma razão das estratégias retóricas que, como vimos, Mon-
taigne imprime a seus argumentos céticos.
Eis o diagnóstico cético que Montaigne nos oferece da faculdade
de que naturalmente disporíamos para conhecer a verdade e que não
resulta numa preconização a que abandonemos seu uso. É por seu
intermédio que assentimos às crenças e podemos eventualmente apri-
morá-las, aprimorando nossa capacidade de pesá-las; é por tal exercício
que ele manifesta, como dissemos, sua diversidade singular, que, em-
bora represente um grau de afastamento da verdade objetivamente
inalcançável, cabe melhor conhecer, diante do modo como tendemos
a mascará-la; é por seu intermédio, afinal, que podemos desenvolver
um olhar cético para aquilo que mascara nossa experiência, desemba-

359

10888_A figura do filosofo.p65 359 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

raçando, na medida do possível, a percepção dos eventos naturais das


ilusões em que os envolvemos (aí compreendida a imagem que nosso
juízo pode fazer de nossas faculdades cognitivas e de si mesmo). Mais
ainda, tal diagnóstico da situação natural de nosso juízo pode favorecer
a adoção de posturas compatíveis: a moderação do assentimento, seja
às opiniões que possuímos, seja às que nos atraem por sua mera novi-
dade; a postura de constante autocrítica e de tolerância em relação aos
juízos alheios. Mas é preciso sublinhar que, se isso pode minimizar as
conseqüências que se seguem das limitações e deficiências do juízo,
elas são, em certa medida, radicais e intransponíveis. Poder-se-ia dizer
que a desilusão produzida pela reflexão cética, nesse caso, é ainda mais
radical e problemática do que aquela que se produz relativamente à
imagem dogmática da razão. No capítulo III, vimos como a impossibi-
lidade de detectar a presença do costume, que se esconde, ante aquilo
que nos aparece como natural nos impede de conferir valor de conhe-
cimento àquilo que se impõe a nosso assentimento como tal; seria ao
menos possível, porém, de acordo com tal argumentação, empreender
um exercício imaginativo capaz de nos mostrar que, em face da relati-
vidade da noção de natureza, “tudo pareceria milagre”. Ainda que
impraticável, tratava-se de uma possibilidade ao menos imaginável. Aqui,
contudo, embora as mesmas observações sobre a impossibilidade de
conferir valor de conhecimento aos objetos do nosso assentimento se
confirmem, o último argumento examinado mostra que, no caso do
juízo, estamos diante de um problema estrutural que parece impedir
que essa atividade crítica seja levada às suas últimas conseqüências.
Pois estamos diante da situação paradoxal segundo a qual nosso juízo
está votado a uma incessante produção de crenças que nos parecerão
sempre, nalguma medida, irrecusáveis, ainda que elas de fato não se
eximam da mesma precariedade geral que compromete sua ação. Em
suma, o entendimento humano parece ser essencialmente comprome-
tido por sua própria finitude cognitiva num sentido que o impede de
conhecer adequadamente essa própria finitude e suas eventuais conse-
qüências relativamente aos seus diversos atos.
Isso nos põe diante de uma situação radicalmente paradoxal. Por
mais que nosso juízo avance na compreensão das causas que o movem

360

10888_A figura do filosofo.p65 360 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

e lhe são anteriormente desconhecidas, não deixará de produzir “juí-


zos” que, em sua própria positividade, eclipsam o conhecimento da-
quilo que lhe escapa. Mais do que isso, essa argumentação sugere que,
sempre que levarmos essa investigação suficientemente adiante, sere-
mos efetivamente conduzidos a um paradoxo, na medida em que nos
defrontaremos com a imagem do limite de nosso entendimento (isto é,
a uma situação que representa um reconhecimento da incapacidade
do nosso entendimento de ir além). Assim, se o exame da precariedade
do juízo humano nos aporta algum esclarecimento sobre o modo como
se conciliam “dúvida extrema” (mais precisamente, o reconhecimento
do caráter universalmente dubitável de nossas impressões de conhecer)
e aceitação de crenças no ceticismo montaigniano, ele também nos
conduz a um território novo, que merece ser mais bem explorado em
suas conseqüências ao longo dos Ensaios.

6.3. Os cães de Esopo


Embora as análises anteriores se concentrem num breve desenvol-
vimento argumentativo da “Apologia”, nossas conclusões relativas à no-
ção de juízo poderiam se estender ao que se observa noutros ensaios e
mesmo noutras esferas temáticas — como é o caso das discussões sobre
a linguagem. Mas tais temas estão vinculados conceitualmente. Mon-
taigne se refere por vezes ao juízo de um modo que poderia tanto
designar a ação de julgar ou compreender algo como os juízos ou
opiniões que seriam seu produto lingüístico. Diz ele, por exemplo, que
as pessoas finas “nunca representam as coisas puras… e, para dar cré-
dito a seu julgamento e atrair a ele, apresentam de bom grado a maté-
ria por determinado lado, alongam-na e a amplificam…”54. Assim, a
linguagem não deixa de manifestar, pelo mesmo olhar cético, algumas

54. I, 31, 205A. Ver também I, 37, 230C; II, 17, 634A; III, 9, 980B. Isso nos parece
confirmar (cf. nota 27 deste capítulo) que não faria sentido considerar, segundo Mon-
taigne, uma forma humana de conhecimento que ultrapassasse a esfera da abrangência
do juízo ou entendimento, tal como o considera: o que está em jogo é, numa palavra,
a forma pela qual conhecemos, e pensamos poder descrever adequadamente as coisas
em geral ao empregar a linguagem.

361

10888_A figura do filosofo.p65 361 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

vicissitudes similares às que se descortinaram aqui relativamente ao juízo.


“Nosso falar tem suas fraquezas e seus defeitos, como todo o resto…”
(527). Em particular, porém, as discussões acerca desse tema nos inte-
ressam pelo modo como explicitam ainda mais claramente a mesma
situação paradoxal do juízo humano anteriormente apontada.
No capítulo II, vimos que Montaigne discute as considerações de
Sexto Empírico acerca do uso cético da linguagem tematizando, a um
só tempo, suas imperfeições naturais e nossas limitações cognitivas: se
é para nós impossível compreender o que concerne às “coisas divinas”,
dada a maneira como nossa linguagem se forja pela experiência mera-
mente humana, trata-se da mesma impossibilidade que se revela quan-
do a consideramos no nível dos objetos a que temos acesso em nossa
experiência natural55. O primeiro problema apontado é o de que a lin-
guagem é intrinsecamente portadora de ambigüidade, fonte de inúme-
ras guerras e querelas (v. 527A). Tal problema, rapidamente menciona-
do nessa discussão, é diversas vezes retomado por ele. Comentando a
opinião pitagórica de que as experiências perceptivas contrárias que
possuímos seriam causadas pelas próprias coisas, Montaigne escreve:
[A] Essa opinião me recorda a experiência que nós temos, de que
não há nenhum sentido nem aspecto, nem reto, nem amargo, nem
doce, nem curvo, que o espírito humano não encontre nos escritos
que se mete a folhear. Na palavra mais nítida, pura e perfeita que
possa ser, quanta falsidade e mentira não se fez nascer? Qual heresia
não achou aí fundamentos e testemunhos suficientes, para se estabe-
lecer e se manter?… (585)56.
Seria indefinidamente possível distorcer o sentido mesmo das afir-
mações mais claras, o que conduz à constatação de que é freqüente-
mente ilusória a clareza que normalmente pretendemos haurir por seu

55. Ver 2.2, em que esse problema é abordado relativamente ao sentido das supostas
teses fideístas formuladas por Montaigne.
56. Embora Montaigne se refira aqui imediatamente, e com ironia, ao problema da
interpretação das Escrituras, parece-nos que as análises anteriores confirmam que ele
estende além desse âmbito a mesma crítica cética que Erasmo assim dirige ao modo
como os “teólogos” esticam o texto sagrado como uma “pele”, do modo como lhes
convém (v. Elogio da Loucura, lxiii-lxiv).

362

10888_A figura do filosofo.p65 362 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

intermédio. E a vinculação de tal problemática com o ceticismo é cla-


ra. Ao expor, por exemplo, a dúvida “extrema” dos céticos pirrônicos,
ele indaga: “[B] Existe alguma coisa, das que vos possam ser propostas
para defender ou para recusar, que não seja legítimo considerar como
ambígua?” (503; itálico nosso). No capítulo “Da experiência”, Montaig-
ne argumenta (possivelmente retomando discussões do cético portu-
guês Francisco Sanches, em sua obra Quod Nihil Scitur, como notou
Villey57) para mostrar que a atividade de definição e de comentário não
faz mais, normalmente, que trocar expressões por outras mais obscuras,
a fim de apenas ampliar a dúvida que já se possuía:
“[B] Nunca dois homens julgaram de modo idêntico a mesma coisa,
e é impossível ver duas opiniões exatamente semelhantes, não ape-
nas em homens diversos, mas no mesmo homem em diversas ho-
ras… Quem não diria que as glosas aumentam a dúvida e a ignorân-
cia, posto que não se vê nenhum livro, seja humano, seja divino, do
qual o mundo se ocupe, do qual a interpretação tenha estancado a
dificuldade? O centésimo comentário o remete [leitor] ao seguinte
mais espinhoso e mais escabroso que o primeiro o tinha achado. Quan-
do entre nós nos pomos de acordo: deste livro já temos o bastante,
não há mais o que dizer?… (III, 13, 1067).
Projeta-se nesse âmbito a mesma diversidade dos juízos humanos
que, como vimos, surge, na “Apologia”, como testemunho de nossa
incapacidade de reconhecer a verdade (v. 6.2.1). Isso não significa, por
certo, que os homens não se ponham de acordo em vista da crença de
terem compreendido algo do mesmo modo, mas sim que tal acordo
espelharia uma visão parcial e limitada dos fatos. Bastaria conduzir o
juízo a se explicitar mais amplamente, indagando em que sentido exa-
tamente se compreendeu tal coisa, para que a dúvida logo se instalasse.
Depois de considerar o modo como os comentários sobre os autores
amplificam as dificuldades originais de compreensão do que eles ha-
viam dito, ele afirmará, aludindo à Reforma:
[B] Nossa contestação é verbal. Eu pergunto o que é natureza, volú-
pia, círculo e substituição. A questão é de palavras e se paga do mesmo

57. Cf. Les Essais, vol. III, p. 69; Quod Nihil Scitur (QNS), p. 5, 178; 8, 182 ss.

363

10888_A figura do filosofo.p65 363 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

modo. Mas quem insistiria: e corpo, o que é? — Substância… Troca-


se um termo por outro termo, e freqüentemente mais desconhecido.
Sei melhor o que é homem que o que seja animal, ou mortal, ou
razoável. Para satisfazer uma dúvida, eles me dão três: é a cabeça da
Hidra… (III, 13, 1069)58.
Em lugar de uma uniformidade de compreensão, capaz de atestar
a posse de uma verdade, caso tentássemos aprofundar aquilo que nos
oferece o nosso entendimento constataríamos finalmente alguma diver-
gência, reveladora da singularidade com que julgamos e desmentindo
nossa crença de que possuíamos a verdade que pensávamos possuir.
Montaigne parece sugerir que a clareza que encontramos na lingua-
gem é sempre provisória, relativa a determinado uso, que mascara os
defeitos potenciais desse instrumento que, contudo, se evidenciam quan-
do buscamos dele extrair — legitimamente, segundo as próprias exigên-
cias práticas que a isso nos conduzem — um grau maior de precisão:
“[B] Por que nossa linguagem comum, tão simples em todo outro
uso, torna-se obscura e ininteligível em contrato e testamento, e aquele
que se exprime tão claramente, seja o que disser e o que escrever, não
acha nisso nenhuma maneira de declarar que não recaia em dúvida
e contradição? (III, 13, 1066).
Seria lícito dizer que, assim como nosso juízo natural nunca apreen-
de claramente o que apreende, a linguagem humana nunca diz clara-
mente o que diz sobre as coisas? Em suma, tudo se passa, à luz desse
argumento, como se cada proposição potencialmente contivesse, nal-
gum grau, uma ambigüidade intrínseca pela qual o juízo de outrem,

58. Observemos de passagem que Descartes retomará a mesma crítica à pretensão


de conhecimento filosófica, negando que se possa conhecer o que é o homem mediante
sua definição como “animal racional”. Contudo, em seu lugar, ele assume como crité-
rio de conhecimento a evidência oferecida pelas idéias claras e distintas: é notável que
ele condene, como causa de erro, a tentativa de explicar uma idéia clara e distinta por
outras que, em vista dela, não poderão ser senão menos claras. Diríamos, porém, que no
mesmo passo em que os produtos desse critério, aos olhos de Montaigne, permanece-
riam correspondendo a ficções filosóficas (pensemos na concepção de que o homem
pode se conhecer verdadeiramente como um puro eu pensante), ele não estaria apto a
reconhecê-lo como capaz de satisfazer as exigências consideradas. Retomaremos esse
ponto adiante.

364

10888_A figura do filosofo.p65 364 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

em vez de ser transportado, de modo absoluto, às mesmas evidências,


acabaria sempre por exibir, sob a roupagem da mesma fórmula (e even-
tualmente pela maneira como ele a relaciona a outras), o traço da sin-
gularidade com que ele mesmo se distanciaria de um conhecimento
propriamente objetivo.
Uma segunda marca da precariedade da linguagem humana, aos
olhos de Montaigne, que parece confirmar esse ponto, encontra-se em
sua dimensão assertiva. Quando discute as estratégias de que o cético se
vale para exprimir sua posição, Montaigne diz que esta não poderia ser
plenamente exprimida pela linguagem: “Eu vejo os filósofos pirrôni-
cos, que não podem exprimir sua concepção geral em nenhuma forma
de falar: pois lhes seria preciso uma nova linguagem. A nossa é toda
formada de proposições afirmativas, que lhes são inteiramente inimi-
gas…” (527A). Devem aqui ser afastadas, em nosso entender, duas hi-
póteses de leitura. Primeiramente, a de que Montaigne pretenderia
encontrar um limite do pirronismo, pelo modo como essa filosofia se
contradiz ao empregar a linguagem (hipótese que, não fossem as de-
mais evidências arroladas, o próprio contexto da discussão, em que se
trata de argumentar ceticamente, mostra ser absurda). Em segundo
lugar, a de que se trataria literalmente de propor a invenção de uma
nova linguagem (o que não se revelaria, à luz da própria filosofia de
Montaigne, um exemplo a mais da mesma arrogância dogmática pre-
sente nas tentativas ilusórias de suplantar os limites da compreensão
humana, que é o alvo principal dessa crítica). Resta a hipótese de que
ele esteja apenas reconhecendo, novamente, uma espécie de conflito
latente entre o caráter potencialmente dubitável das mais diversas pro-
posições e a pretensão de verdade que, a despeito de seus defeitos, a
linguagem inevitavelmente manifesta; pretensão sempre capaz de ser
submetida a uma crítica posterior.
Essa leitura não apenas nos parece corroborar as análises do item
anterior, mas também ser conforme ao sentido preciso em que se desen-
volve a própria argumentação. Montaigne insere tardiamente, no rol
dos argumentos destinados a mostrar o caráter problemático da lingua-
gem, o célebre Paradoxo do Mentiroso, que ele toma, muito provavel-
mente, dos Academica. Pondo lado a lado duas proposições igualmente

365

10888_A figura do filosofo.p65 365 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

bem construídas e portadoras de um sentido claro, diante das quais, à


primeira vista, nos sentimos inteiramente capazes de precisar as circuns-
tâncias em que as empregamos significativamente — “chove” e “eu
minto” —, trata-se de mostrar que tais qualidades não bastam para que
sejamos capazes de determinar a veracidade de uma proposição. Pois
embora a proposição “chove” não gere, aparentemente, nenhum para-
doxo, a proposição “eu minto”, que à primeira vista parece igualmente
passível, por sua clareza e sua compreensibilidade, de ser acolhida como
verdadeira ou falsa, gera, como sabemos, um célebre paradoxo de auto-
referência, pelo qual a presunção de verdade ou falsidade da proposição
é reciprocamente contradita pelo conteúdo diverso que se afirma, quan-
do esse conteúdo é aplicado à própria sentença. (Se a sentença “eu
minto” é verdadeira relativamente ao proferimento dessa sentença, eu
minto ao proferir essa sentença, por conseguinte ela é falsa, e vice-ver-
sa.) O que interessa aqui a Montaigne parece ser sobretudo a semelhan-
ça aparente que essa sentença; à primeira vista clara e compreensível,
pode guardar com toda e qualquer sentença portadora das mesmas ca-
racterísticas. Embora a proposição “chove” não gere um paradoxo,
Montaigne pretende extrair dessa semelhança uma suspeita geral acer-
ca das demais proposições. Talvez elas simplesmente não tenham tido,
até o momento, ocasião de exibir um aspecto igualmente problemático:
assim como eu poderia tomar a proposição “eu minto”, antes de com-
preender sua dimensão paradoxal, como provisoriamente satisfatória,
em virtude da clareza com que se refere àquilo a que se refere, eu não
posso, inversamente, tomar a clareza similar com que uma proposição
aparentemente aponta para as condições que satisfariam sua veracidade
ou falsidade, como “chove”, como uma garantia de conhecimento ob-
jetivo, posto que essa avaliação, também aqui, pode ser limitada e ape-
nas provisória. Tal avaliação pode mesmo ser, eventualmente, apenas
relativa à nossa incapacidade de compreender as condições pelas quais
a aparente transparência da linguagem diante das coisas revele-se enga-
nosa; maior fosse nossa capacidade, melhor poderíamos quiçá compreen-
der a pertinência da cláusula segundo a qual toda e qualquer proposi-
ção é passível de ser controvertida. Assim, embora seja o veículo exclu-
sivo do conhecimento humano, a linguagem se revelaria, em sua asser-

366

10888_A figura do filosofo.p65 366 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

tividade, como um meio inseguro e imperfeito de acesso às coisas, rela-


tivamente ao qual não podemos ter uma garantia absoluta no que tange
à presunção de verdade com que o empregamos.
Isto parece se harmonizar com o que vimos a propósito de nossa
incapacidade de detectar as causas externas que agiriam sobre o juízo:
cada proposição que nosso entendimento acolhe como verdadeira seria
potencialmente objeto de um paradoxo (relativo, por exemplo, às causas
que nos conduzem a conhecê-las desse modo, mas não nos são conhe-
cidas, embora determinem nosso suposto conhecimento de forma rele-
vante). Bastaria nosso conhecimento dessas causas se alargar para que se
abrisse um horizonte diverso, em vista do qual o que anteriormente nos
parecia conhecimento verdadeiro passaria a se mostrar algo falso ou in-
determinável. Mas a presente discussão nos permite ver melhor as im-
plicações paradoxais que daí decorrem relativamente à estrutura do juí-
zo humano e suas conseqüências relativas ao modelo de investigação
cética adotado por Montaigne. À luz dessas reflexões, o modo como
assumimos determinada proposição como verdadeira não é, de maneira
geral, senão relativo à nossa incapacidade de julgar mais agudamente e
considerar um conjunto mais amplo de fatores relevantes. A satisfação
com as evidências disponíveis seria sempre solidária de uma fraqueza
relativa de nossa capacidade de conhecer. Na verdade mais transparen-
te, haveria sempre um grau de opacidade, exibido por outras evidências
com que ela aparentemente se concatenassem, que poderia ser detecta-
da por uma ação mais aguda do espírito. Eis o que afirma Montaigne,
desenvolvendo a mesma discussão de III, 13, a que nos referimos há
pouco, sobre como as glosas são incapazes de produzir uma verdade:
[B] Não é nada além da nossa fraqueza particular o que nos faz
contentarmo-nos com o que outros ou com o que nós mesmos en-
contramos nessa caça de conhecimento; um mais hábil não se con-
tentará. Há sempre lugar para um seguinte, [C] sim, e para nós
mesmos, [B] e caminho para seguir além… Não há fim em nossas
inquisições, nosso fim é noutro mundo. [C] É um sinal de estreita-
mento do espírito quando ele se contenta, ou de lassidão. Nenhum
espírito generoso se detém em si mesmo; ele pretende sempre ir e vai
além de suas forças; ele tem elãs [eslans] para além dos seus poderes

367

10888_A figura do filosofo.p65 367 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

efetivos [effects]; se ele não avança, e não se lança, e não se impõe,


e não ataca, ele só é vivo pela metade; [B] suas buscas são sem termo
e sem forma; seu alimento é [C] admiração, caça, [B] ambigüida-
de… (III, 13, 1068).
Essa passagem mostra que o assentimento àquilo que “encontra-
mos nessa caça de conhecimento” corresponde à entronização indevi-
da de um mero instante, na progressão de nosso entendimento, como
uma suposta verdade sobre as coisas, estancando, por assim dizer, um
movimento possível pelo qual ele poderia sempre ir além. É certo que
ela parece possuir um alcance mais amplo do que o referente a uma
investigação filosófica cética, referindo-se ao sentido de uma investiga-
ção em geral. Porém, estaria Montaigne entrevendo, nesse progresso, a
idéia de uma aproximação da verdade? Declarar que o bom uso do
juízo ou entendimento é capaz de indefinidamente conduzir à supera-
ção daquilo que se adotou provisoriamente como verdadeiro não é as-
sumir, ao mesmo tempo, a conclusão cética de que nossas faculdades
têm permanentemente entre as mãos objetos precários no seu poder de
representar a verdade? Vimos, no item anterior, que os argumentos
propostos contra o juízo (como a configurar uma espécie de tropo argu-
mentativo montaigniano) consistem, de modo geral, num convite a seu
aprofundamento, que permite suplantar algo do caráter simplista e
impreciso de uma determinada imagem prévia acerca de nossos pró-
prios processos de conhecimento, da qual se parte. Os argumentos cé-
ticos de Montaigne parecem, assim, aludir a essa mesma “caça” — e,
mais do que isso, dela oferecer um esclarecimento decisivo: por mais
que o espírito humano possa avançar, os resultados eventualmente
obtidos não equivalem a nenhuma espécie de conhecimento; ao me-
nos, num sentido tal que outra investigação posterior não pudesse mostrar
as imperfeições daquilo que tomávamos como conhecimento, como
uma imagem clara e verdadeira das coisas. Tal conseqüência se harmo-
niza bem com a metáfora exposta a seguir, da qual ele se vale para
ilustrar, na mesma página do texto que acabamos de citar, a situação
humana ante as diversas opiniões que se podem sustentar como verda-
deiras sobre as coisas. Comentando o modo como se confere “autorida-
de de lei” a inúmeros doutores, sentenças e interpretações, ele indaga:

368

10888_A figura do filosofo.p65 368 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

[B] Encontramos nós, em razão disso, algum fim à necessidade de


interpretar?… Os homens desconhecem a doença natural de seu
espírito: ele não faz senão vasculhar e buscar, e vai sem cessar
volteando, construindo e se aprisionando em seu trabalho, como os
nossos bichos-da-seda, e aí se sufoca. Mus in pice. Ele pensa perceber
de longe alguma aparência de clareza e de verdade imaginária, mas,
enquanto ele corre, tantas dificuldades lhe atravessam o caminho,
tantos impedimentos e novas buscas, que elas o desviam e o inebriam.
Quase do mesmo modo como ocorreu com os cães de Esopo, os
quais, descobrindo o que parecia ser um corpo morto flutuando no
mar, e não podendo dele se aproximar, resolveram beber a água e
secar o caminho, e aí se afogaram… (III, 13, 1068B).
Aqui a “doença natural” do espírito — que, por vezes, se exprime
como presunção (de conhecer); por vezes designa, como vimos, meta-
foricamente, as perturbações que marcam, em sentido oposto, a inca-
pacidade humana de conhecer — é retratada pela alegoria dos cães de
Esopo, como aquela que o move incessantemente em direção às “apa-
rências de clareza e verdade” que, posteriormente, acabam por se reve-
lar uma simples miragem. Por certo se trata de um diagnóstico cético,
que aqui não se limita, contudo, a focalizar os “dogmáticos” em senti-
do estrito. É da própria condição humana que o texto pretende tratar
— ao menos na medida em que tal “doença” pode ser referida às im-
perfeições naturais de nossas faculdades cognitivas; mais exatamente,
ao modo paradoxal com que se relacionam dois aspectos fundamentais
de seu bom funcionamento natural. De uma parte, o fato de guiar-se
necessariamente pela busca da verdade e, de outra, o fato de se reco-
nhecer radicalmente incapaz de encontrá-la, desde que vá ainda além
no esforço do exame racional daquilo que possa se oferecer como “ver-
dade”. Importa sublinhar, assim, que não estamos aqui diante de uma
leitura do ceticismo que pretenda simplesmente suprimir nossa preten-
são de conhecimento e de encontrar a verdade, mesmo se isso viesse a
ser de algum modo desejável59. Ainda que uma suspensão do assenti-

59. É a interpretação proposta por D. SEDLEY (1983) relativamente ao pirronismo


antigo. Analogamente, Montaigne não poderia subscrever a leitura de Pascal acerca do

369

10888_A figura do filosofo.p65 369 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mento pudesse, como vimos, ser praticada por um curto instante, Mon-
taigne reconhece que seria impossível, caso fosse desejável, pôr em
prática tal suspensão de modo constante. Simplesmente, nosso juízo
não cessa de naturalmente produzir, por força de sua situação no mundo,
impressões acerca do que é verdadeiro ou falso (que são sempre, em
princípio, num maior ou menor grau, objeto potencial de uma crítica
cética). E a própria constatação da fraqueza do juízo não é obtida se-
não pelo juízo. Ora, não pretendemos suprimir aquilo que somos, se-
gundo o que involuntariamente se manifesta em nossa natureza; é
preciso, ao contrário, levar mais longe nossa constatação do que somos,
conferindo a nossas faculdades cognitivas um sentido autocrítico e auto-
reflexivo que lhes permita compreender melhor sua natureza, seja para
apreender o modo como necessariamente se orientam pela busca da
verdade, seja para confessar sua incapacidade de reconhecê-la. Com-
preende-se assim por que não são poucas as passagens em que esse
cético Montaigne insiste na importância de buscar a verdade (sem pre-
tender, ele mesmo, que seu juízo deixe de estar continuamente movi-
do na direção de seu reconhecimento) e nos males que, em seu enten-
der, decorrem da deturpação dessa busca, como nesta passagem do
ensaio “Do desmentir”:
[A] O primeiro traço da corrupção dos costumes e o banimento da
verdade: pois, como dizia Píndaro, o ser verdadeiro é o princípio de
uma grande virtude… Nossa verdade de agora é, não o que é, mas o
que se persuade a outrem: como nós chamamos de moeda não ape-
nas aquela que é legal, mas também a falsa assim como a circulan-
te… Nossa inteligência conduzindo-se unicamente pela via da pala-
vra, aquele que a falsifica trai a sociedade pública. É o único utensí-

ceticismo implícita na alegação de que possuímos “uma idéia de verdade invencível


para todo o pirronismo” (Pensées, § 406-395). Para Montaigne, compreender que pos-
suímos uma idéia de verdade em vista da qual nosso julgamento necessariamente age
não é algo que se opõe ao pirronismo, mas parte da naturalização cética que resulta do
exame crítico de nossas faculdades. Ainda que se trate aqui de uma interpretação par-
ticular do ceticismo, eventualmente diversa de como os pirrônicos antigos tenham com-
preendido sua filosofia, isso não atenua o contraponto com a leitura pascaliana que
reconhece no autor dos Ensaios o representante por excelência do pirronismo.

370

10888_A figura do filosofo.p65 370 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

lio por meio do qual se comunicam nossas vontades e nossos pensa-


mentos, é o intérprete de nossa alma: se ele nos falta, nós não nos
mantemos mais, nós não nos conhecemos mais uns aos outros. Se
ele nos engana, ele rompe todo nosso comércio e dissolve todas as
ligações de nossa cidadania [police]… (II, 18, 666-667)60.
Pode-se mesmo dizer que, se o homem fosse considerado segundo
o optimum de suas forças naturais na busca de entender, segundo o
pleno uso de suas faculdades, constatar-se-ia, segundo tal ceticismo,
que o entendimento haure seus próprios critérios, mesmo que para
reconhecer a incapacidade de detectar a verdade, com base no modo
como se volta para a verdade e se põe em seu encalço:
[B] A agitação e a caça são propriamente de nossa alçada: nós não
somos desculpáveis de conduzi-la mal e de modo impertinente; quan-
to a pegar a presa, é outra coisa. Pois nós nascemos para buscar a
verdade; cabe possuí-la a um poder maior. Ela não é senão, como
dizia Demócrito, no conhecimento divino. [C] O mundo é apenas
uma escola de inquisição… (III, 8, 928)61.
Assim, esse ceticismo, não vendo ser possível satisfazer-se com uma
solução que cinda a idéia de verdade em duas versões — uma verdade
aceitável, meramente fenomênica, e outra condenada de saída, por pre-
tender estabelecer a science —, acaba por reaproximar-se criticamente
de certos aspectos que poderiam caracterizar a situação do filósofo
dogmático. Cético ou dogmático, o filósofo, como homem que é, deve
se haver com a satisfação de necessidades de suas faculdades de conhe-
cer, segundo o modo pelo qual naturalmente operam. Torna-se assim
decisivo, para caracterizar sua diferença, o fato de que ambos possuem,
contudo, consciência diversa da situação que compartilham, e particu-
larmente de seus limites cognitivos: enquanto o dogmático, não se dando

60. Note-se porém que, nesse contexto moral, a verdade não é oposta a falsidade,
mas à mentira: trata-se especialmente de condenar a traição ao propósito de dizer a
verdade, e não a eventual incapacidade de dizê-la em virtude de limitações gerais do
entendimento humano. Ver, também, III, 13, 1065B; II, 17, 647-648; II, 5, 885; III, 8,
924B, III, 2, 805B.
61. Para a distinção entre o reconhecimento da fraqueza cognitiva do juízo e o seu
uso “regrado”, ver ainda II, 10, 410A.

371

10888_A figura do filosofo.p65 371 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

conta da dimensão paradoxal dessa busca, crê cegamente em seu po-


der de reconhecer a verdade, o cético reconhece que, em vez de dispor
de verdades capazes de sanar essa deriva, encontra-se definitivamente
nela mergulhado, como um resultado da condição paradoxal que sua
finitude lhe oferece. São, afinal, as mesmas exigências de “ir além” que
nos movem em direção à verdade aquelas que irão eventualmente nos
conduzir, se efetivamente formos capazes de ir além, a constatar que
aquilo que ora nos pareceu ser verdade não atende às exigências que
deveria atender para tanto.
Essa constatação cética de nossa situação paradoxal poderia con-
duzir a conseqüências diversas; limitamo-nos aqui a apontar duas de-
las, intimamente relacionadas, relativas ao estatuto do assentimento e
da própria atividade investigativa. Primeiramente, o fato de nos vermos
condenados a tal paradoxo faz com que aquilo que nos pareça proviso-
riamente digno de assentimento seja apenas o avesso de nossa incapa-
cidade de “ir além”. A consciência dessa situação pareceria ser, por si
mesma, um convite a nos precavermos da precariedade intrínseca de
nossos diversos juízos — a despeito de sua diferença relativa e do modo
como tendem a aparecer a nós. É assim, ao menos, que Montaigne
projeta sobre sua atividade intelectual aquilo que o vimos há pouco
preconizar aos “espíritos generosos”:
[A] Quanto às faculdades naturais que se acham em mim, das quais
está aqui o exame [l’essay], sinto-as dobrar sob a carga. Minhas con-
cepções e meu juízo não avançam senão tateando, vacilando, trope-
çando, esfolando-se; e quando eu cheguei o mais longe que eu pude
ir, não me encontro de modo algum satisfeito: vejo ainda um territó-
rio além, mas com uma vista turva e embaçada, que não posso bem
discernir… (I, 26, 146)62.
Essa nova versão da mesma imagem a exibe em outro aspecto. Se,
aludindo aos cães de Esopo, ele apontou o modo como os homens em
geral se enganam com as verdades que pensam possuir, aqui ele extrai
uma conseqüência acerca do estatuto do assentimento, sublinhando a
precariedade e a provisoriedade dos resultados: se, ao atingir um limite,

62. Ver, no mesmo sentido, I, 50, 302-303.

372

10888_A figura do filosofo.p65 372 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

o juízo sempre entrevê um território além, em vez de ignorá-lo, cabe


integrá-lo à paisagem, e compreender que as nebulosidades de nosso
quadro intelectual, embora sempre relativas, são parte essencial de um
retrato que se pretende singular, acerca dos limites próprios de seu autor,
caso queira obter verossimilhança (por oposição ao procedimento do
dogmático que, focalizando apenas as verdades que pensa ter encontra-
do, pensa que elas lhe oferecem os meios de dissipar plenamente essa
nebulosidade provisória, e se satisfaz com os resultados ali alcançados).
Menos metaforicamente, embora não seja possível nem desejável sus-
pendermos plenamente o nosso assentimento e deixarmos de operar
segundo aquilo que se apresenta a nós como aparentemente verdadei-
ro, importa recuarmos diante do panorama opinativo que se oferece a
nós e voltarmos nossa atenção, na medida de nossas possibilidades, aos
elementos capazes de nos mostrar a precariedade daquilo que inadver-
tidamente aceitamos como verdadeiro. Noutros termos, trata-se de pre-
conizar uma atitude intelectual própria diante daquilo que nos surge
como objeto de entendimento (o que vem se harmonizar com a mode-
ração pela qual Montaigne, a um só tempo, desconfia do modo como
as novidades nos aparecem portadoras de um ilusório poder de persua-
são e impede que as opiniões que ele mesmo aceita “criem raízes”).
É o que nos mostra igualmente outro elemento central das duas
metáforas: a imagem do movimento. Não seria a mesma imagem que
surge nesta sentença lapidar em que Montaigne sintetiza o sentido de
sua atividade cética? “[B] Nós outros, que privamos nosso juízo do direi-
to de sentenciar [faire arrests], observamos brandamente [mollement] as
opiniões diversas…” (III, 8, 923; itálicos nossos). O termo “arrester” —
designando no vocabulário jurídico o ato de proferir uma sentença,
que detém o processo de exame dos materiais relevantes — pode signi-
ficar, no moyen français do século XVI, tanto “decidir, determinar,
resolver” como “fixar, amarrar; parar, deter-se”63. Montaigne está recu-
sando ao seu juízo o direito de “sentenciar”, no sentido de decretar e
estabelecer preceito, mas a compreensão dessa afirmação pode talvez

63. Ver GREIMAS, KEANE, 1992, p. 36; os autores encontram igualmente um exem-
plo em Montaigne, em que o termo arrest é empregado como sinônimo de “limite”.

373

10888_A figura do filosofo.p65 373 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

ser enriquecida por essas metáforas, que aludem ao esforço intelectual


no sentido de impedir que tais opiniões se entronizem como “senten-
ças”, e de contribuir, em vez disso, para repô-las no interior de um
movimento do juízo e mostrar que a aparência de verdade nela contida
pode sempre se dissolver. Trata-se, assim, não de pretender deter o
movimento pelo qual o espírito humano assente necessariamente a
opiniões, mas, ao contrário, de afirmá-lo mais radicalmente e de poder
observá-lo diversamente, enquadrando-o por um prisma autocrítico que
permite, por vezes, a simples rejeição de determinada opinião como
produto evidente da fantasia humana (caso em que se pode falar de
uma suspensão do assentimento), ou, por vezes, quando isso não é
possível, a observação das opiniões a que se assente por um viés inusi-
tado, segundo a comparação crítica com opiniões diversas e com as
razões que as podem sustentar.
A constatação da natureza paradoxal do entendimento em sua busca
da verdade tem o efeito de descortinar, como dissemos, uma ambiva-
lência intrínseca das opiniões a que se assente, pela qual elas são, a um
só tempo, a imagem que se pode obter da verdade segundo o alcance
relativo do próprio entendimento e a marca singular da distância em
que de fato se permanece da verdade (tal como se poderia ver mais
claramente se fosse possível ir ainda mais longe). Assim, tal ceticismo
propicia ao filósofo, se não a observação de como as coisas são objeti-
vamente, uma consciência dos limites de seu próprio juízo, naquilo
que exibe como particular. É essa, ao menos, a utilidade que Montaig-
ne — discorrendo sobre seu comércio intelectual com diferentes auto-
res — afirma expressamente descobrir no registro de opiniões que cons-
titui seu livro:
[A] Eu digo livremente minha opinião sobre todas as coisas, e mes-
mo sobre aquelas que casualmente ultrapassam a minha capacidade,
e que não tenho de modo nenhum como pertencentes à minha ju-
risdição. Aquilo que opino sobre isso, faço-o para declarar a medida
da minha visão, não a medida das coisas… (II, 10, 410)64.

64. Em I, 26, 147, Montaigne assinala que desenvolve seu exercício do juízo “indi-
ferentemente”, a partir de tudo com o que se depara sua fantasia, freqüentemente para

374

10888_A figura do filosofo.p65 374 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

Isso explica, portanto, não apenas como o ensaio pode se tornar


uma atividade essencialmente autocrítica, mas também como o regis-
tro das opiniões de Montaigne pode se articular a um processo de co-
nhecimento de sua individualidade, nas dobras pelas quais ela se ocul-
ta dele quando se volta imediatamente a essa tarefa.
Aprofundaremos esse ponto no capítulo seguinte. Por ora, volte-
mo-nos a um segundo aspecto das conseqüências dessa mesma ima-
gem paradoxal do juízo humano, agora relativas ao estatuto da investi-
gação. Aceitamos certas opiniões que trazem, ainda que não sejamos
capazes de vê-lo, a medida relativa de nosso desconhecimento, e que se
revelariam precárias à luz de um entendimento mais vigoroso; se fôsse-
mos capazes de atualizar plenamente essa possibilidade, todo o con-
junto das opiniões que ora aceitamos como claras e inquestionáveis nos
apareceria de súbito como paradoxal e insustentável. A situação provi-
sória de nosso entendimento é, em certo sentido, a de um adiamento
da visão possível de um paradoxo de que participa aquilo que foi enten-
dido — o que pode, por certo, parecer bastante desalentador. Com
efeito, trata-se de pretender nos pôr em contato com nossa situação
paradoxal, tal como ilustrada pela fábula dos cães de Esopo: estamos
condenados a uma busca potencialmente infinita (posto que à maior
capacidade de se pôr no encalço da verdade corresponde uma maior ca-
pacidade de compreender a impossibilidade de encontrá-la e de conhe-
cer o caráter imaginário das supostas verdades que se pensa obter), sem,
contudo, podermos nos livrar dela (ainda que possamos reconhecer
nossa impossibilidade de ir além).
Todavia, essa reflexão pode não apenas produzir um esclarecimen-
to inesperado sobre o uso efetivo de nossas faculdades naturais, mas
também, em corroboração da leitura apresentada no capítulo anterior,

reconhecer apenas sua situação cativa, em comparação a autores como Plutarco. Ao


menos, porém, ele se contenta com o reconhecimento da “extrema diferença” entre
eles e da natureza “fraca e baixa” de suas opiniões, resultante de defeitos que ele não
pretende “repintar e recosturar”, mas apenas exibir. Também a imagem de Sócrates, tal
como retomada pelos ensaios, parece por vezes estabelecer, nos Ensaios, uma ponte
entre o reconhecimento dos limites do julgamento e o autoconhecimento. Ver II, 6,
378C; III, 3, 820B.

375

10888_A figura do filosofo.p65 375 28.03.07, 16:06


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

produzir uma reavaliação do sentido da investigação (em vez de con-


duzir a uma desistência). Em síntese, pensamos que o ensaio, concebi-
do como uma investigação autocrítica, destinada a indefinidamente
repor em movimento os resultados obtidos, possa corresponder a uma
forma cética na qual, em face dos limites determinados por nossa con-
dição paradoxal, a pura zétesis — a busca propriamente dita — adquire
um valor central, digamos, como signo da saúde da alma e de uma
maximização do uso “de regra e de direito” de nossas faculdades natu-
rais (cf. 505). Tal como verificamos no capítulo anterior, quanto ao
movimento reflexivo precedente à epokhé, também no que tange a esse
exame do sentido da epokhé diríamos que a zétesis revela-se como o
essencial da atividade do entendimento, que se move das certezas que
pensa possuir à constatação de que elas não se sustentam como se
supunha, ganhando um papel prioritário relativamente aos resultados
produzidos pelo juízo, segundo o seu valor propriamente cognitivo.
Essa afirmação da zétesis tornar-se-ia assim, ao mesmo tempo, um dife-
rencial decisivo desse ceticismo relativamente ao modo “dogmático”
de encarar a pesquisa pela verdade, tendendo a ser assimilada, em
passagens mais tardias, à investigação socrática65. É desse modo que
Montaigne entende que o ceticismo lhe permite usar mais livre e ple-
namente sua razão, numa prática argumentativa permanente, e tam-
bém seu juízo, na medida em que permanece numa investigação con-
tínua, enquanto o dogmático investiga almejando filosoficamente su-
perar e abolir, nalguma medida, o estado investigativo por meio da
posse de uma pretensa verdade — que marca apenas sua impossibilida-
de de ir além, ainda que seja na mera observação isenta dos diagnósti-
cos rivais acerca das mesmas questões que ele pensa resolver. E ainda
que o filósofo se encontre individualmente incapaz de ou inapto a
enfrentar as dificuldades que encontra, o registro do movimento pelo
qual se produzem suas opiniões e o esforço crítico a que seu próprio
juízo as submete propiciam-lhe uma ocasião de autoconhecimento:
[A] Eu desejaria bem possuir um entendimento mais perfeito das
coisas, mas eu não quero adquiri-lo a todo preço. Meu desígnio é o

65. Ver 509C; III, 8, 927C; III, 13, 1069-1070B.

376

10888_A figura do filosofo.p65 376 28.03.07, 16:06


Ceticismo em movimento

de passar docemente, e não laboriosamente, o que me resta de vida…


Eu busco nos livros apenas uma ocasião de prazer por uma conve-
niente [honneste] diversão, ou, se os estudo, não busco aí senão a
ciência que trata do conhecimento de mim mesmo, e que me instrua
a bem viver e a bem morrer: [B] Hac meus ad metas sudet oportet
equus… (II, 10, 409).
Por fim, um comentário anacrônico, mas inevitável. Se assim cons-
tatamos novamente como o ceticismo de Montaigne converge na dire-
ção do exame e do reconhecimento da singularidade empírica de seu
“eu”, essa filosofia parece dispor, ao menos potencialmente, de razões
pelas quais estaria pouco disposta a reconhecer algum cogito capaz de
deter a marcha dessa zétesis infinita (a não ser como marca de uma
impossibilidade meramente relativa de ir além, e de todo modo distin-
ta do reconhecimento de alguma verdade). Pois não bastaria alegar,
por exemplo, que o “eu existo” pode representar uma proposição clara
e aparentemente irrecusável ao entendimento que dela toma consciên-
cia. À luz das considerações anteriores, deixa de ser imediatamente
aceitável que isso nos conduza a uma verdade, uma vez que toda e
qualquer evidência do entendimento está embargada por essa argumen-
tação, mesmo aquela com que o entendimento acolhe as proposições
cuja evidência é de tal ordem que ele não pode delas se desfazer. Es-
capariam daí as proposições cuja evidência fosse absolutamente neces-
sária, mesmo que sua refutação nos conduzisse a um paradoxo? A evi-
dência, de todo modo, deixa de ser admitida como passaporte para uma
verdade inconteste e, se isso decorre de uma possível deficiência natu-
ral do entendimento, ela atinge nossa capacidade de examinar adequa-
damente as possibilidades de estar enganados com relação a tal evidên-
cia. Não poderíamos, porém, refutar essa possibilidade pela própria
clareza com que esse entendimento conhece sua existência ou por meio
de algum outro argumento capaz de corroborar essa clareza (como
aquele que provaria nossa necessidade de admitir a existência de um
Deus onipotente, cuja bondade nos impede de nos enganar)? Como,
nos dois casos, a clareza da prova oferecida é evidente apenas para o
próprio entendimento, e como aquilo que depende de prova aqui é
justamente o fato de que a clareza do entendimento, mesmo quando

377

10888_A figura do filosofo.p65 377 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

nos parece irrefutável, seja uma garantia de que conhecemos uma ver-
dade capaz de excluir a possibilidade de engano, tal solução parece
conduzir a um círculo (efetivamente explicitado nas Quartas Obje-
ções, por Arnaud, no que tange à prova cartesiana da existência de Deus,
e fartamente discutido pelos comentadores). É preciso, de modo mais
geral, provar que a clareza do entendimento humano exclui a possibi-
lidade de que ela se comprometa em seus resultados em vista de fatores
que ultrapassam o seu alcance, mas a prova oferecida só pode ser evi-
dente para o entendimento humano, cuja clareza está de modo geral
embargada pela constatação dos problemas decorrentes de sua finitude
cognitiva. Como nos assegurar de que essa possibilidade inexiste, ainda
nesse caso privilegiado, se sua eventual existência ser-nos-ia radical-
mente invisível em virtude da natureza de nosso entendimento?
Ademais, ainda que o cogito pretenda oferecer uma verdade a ser
compreendida no mesmo sentido por todo e qualquer espírito que per-
faça a mesma reflexão, a história das interpretações não mostra que
essa evidência aparentemente inquestionável pôde se tornar fonte de
disputas acirradas e intermináveis entre os comentadores dessa filosofia
da clareza e da distinção? Pode-se alegar que, a despeito dessa disputa,
existe a boa compreensão da prova, tal como a pensou o próprio filó-
sofo. De todo modo, a disputa permanece em si mesma significativa se
passamos, de uma filosofia voltada para a observação de como a certeza
imediata do entendimento poderia instituir uma verdade, para outra
voltada para o modo como aquilo que nos aparece instantaneamente
como evidente deixa de assim nos aparecer se repomos essa evidência
num percurso ao longo do qual o movimento paradoxal realizado pelo
espírito humano em busca da verdade pode exibir suas fraquezas. Tal-
vez se possa dizer que o recorte dos momentos isolados em que o en-
tendimento conhece a certeza de sua existência surgiria, sob um olhar
cético-montaigniano, como um expediente pelo qual se constrói uma
imagem fantasiosa da natureza humana, recusando, afinal, precisamente
aquilo que seria essencial para o aprofundamento de sua compreensão.
Supor que uma determinada proposição (“eu sou, eu existo”) entende-
se exatamente no mesmo sentido por meio do ato de julgar em que ela
se formula seria talvez, para Montaigne, contentar-se com uma apreen-

378

10888_A figura do filosofo.p65 378 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

são míope, que se sustentaria apenas se tal evidência se observasse a


determinada distância. À medida, porém, que nos aproximarmos e con-
vidarmos aquele que a compreende a expor o sentido exato em que o
faz, não tardará a se manifestar a singularidade com que a cada vez ela
é compreendida, de modo que a ação pela qual o juízo se explicita ao
longo do tempo deverá incluir o reconhecimento da dissolução da evi-
dência. De que vale deter esse movimento, alegando que as evidências
mais claras não são passíveis de definições que não as obscureçam, se
o que se questiona é a pretensão, por parte do filósofo dogmático, de
conferir a essas evidências um poder cognitivo? Não significaria isso,
em última instância, uma recusa em justificar essa alegação? Não faria
ele o que Sexto condena no procedimento dogmático de oferecer hipó-
teses para deter a regressão infinita da justificação à qual ele se veria
condenado66? O cogito não seria, nessa medida, capaz de abolir a natu-
reza paradoxal com que o espírito se acerca de todos os seus conheci-
mentos: quão mais poderoso for ele, na busca de esclarecer o sentido
exato da verdade que pretende ter encontrado, mais prontamente des-
cobrirá que tal verdade não é tão clara e distinta quanto poderia pare-
cer de saída. E, mesmo se aqui ele estivesse reduzido, para nós, a uma
invisibilidade total, isso não excluiria a possibilidade de que um enten-
dimento mais poderoso compreendesse onde ele se engana quando
pensa ser absoluta a clareza da proposição, mesmo daquela pela qual
ele compreende a necessidade de sua existência enquanto existe.

6.4. A epokhé em movimento


Uma conseqüência dessa leitura que cabe considerar à parte é a
que se refere à posição de Montaigne sobre a epokhé e ao estatuto da
própria discussão sobre o escopo da epokhé. Não seríamos aqui condu-
zidos a uma situação autocontraditória, na medida em que essa inter-
pretação poderia ser objeto da mesma crítica que postula (uma vez que
um exame mais agudo de sua consistência poderia, por definição, refu-
tá-la)? Retomemos brevemente a exposição de Montaigne sobre a impos-

66. Ver HP I, 173; o mesmo tropo é retomado por Montaigne em 540-541.

379

10888_A figura do filosofo.p65 379 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

sibilidade de deter o progresso do espírito humano em sua busca da


verdade, pela qual se revelam insustentáveis a posição de Teofrasto, ao
pretender assinalar um limite para o cognoscível, e a posição dos filó-
sofos da Nova Academia, em sua tentativa de oferecer, segundo Mon-
taigne, um limite para a dúvida extrema dos pirrônicos67. É importante
retomar agora os termos com que, depois de refutar o primeiro, mas
antes de passar ao segundo, Montaigne inscreve sua contribuição pes-
soal no interior dessa progressão:
[A] Tendo experienciado [essayé par experience] que aquilo em que
um falhou, outro obteve, e que o que era desconhecido num século,
o século seguinte esclareceu, e que as ciências e as artes não saem
prontas da forma, mas se formam e se configuram pouco a pouco ao
serem manejadas e polidas diversas vezes, como fazem os ursos ao
lamberem seus filhotes. O que minha força não pode descobrir não
deixo de sondar e de ensaiar e, ao novamente degustar e amassar essa
nova matéria, mexendo-a e esquentando-a, eu disponho para aquele
que me segue alguma facilidade, para dela fruir mais à vontade,
entregando-a mais flexível e mais manejável… O tanto fará o segun-
do ao terceiro, o que é causa de que não deva desesperar, nem mes-
mo de minha impotência, que é só minha… (560-561).
Vimos há pouco como a reflexão de Montaigne projeta uma espé-
cie de ambivalência na atividade opinativa humana (particularmente
no modo como nossas opiniões exibem sua diversidade), pela qual se
pode considerá-las, ou bem segundo o entendimento que positivamen-
te oferecem, ou bem segundo a verdade da qual, negativamente, se
apartam. O texto acima também se presta a uma espécie de dupla lei-
tura (que a própria ambigüidade dessa progressão apenas favorece, ao
enfeixar numa única busca céticos e dogmáticos, e localizar, na passa-
gem de um a outro, a contribuição mais pessoal do autor). De uma
parte, Montaigne observa essa sucessão histórica como progressão rumo
a uma “verdade” — que ele próprio, ao menos, não se pretende em
condições de alcançar. Mas o mesmo relato, curiosamente, trata de um
progresso de dimensão histórica e institucional, e o observa por um

67. Ver item 6.1 — “A extremidade da dúvida sob exame”.

380

10888_A figura do filosofo.p65 380 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

ângulo que o aproxima de posições epistemológicas advogadas no sécu-


lo XX (cuja origem é usualmente referida, de modo geral, a um autor
quase contemporâneo de Montaigne, que é Francis Bacon): as ciências
e as artes não se constituem com base em um “molde”, mas gradativa-
mente, pelas mãos de vários que as manejam e lapidam, podendo ser
indefinidamente substituídas, à medida que se tornam obsoletas em
vista de alternativas descobertas ou coletivamente elaboradas, de um
modo potencialmente infinito68. O ceticismo de Montaigne, a despeito
de seu caráter extremo, não se pretende assim incompatível com o re-
conhecimento de um progresso, lastreado na “experiência” (domínio
que, se não possibilita obtenção de verdades absolutas, surge, como
vimos, na forma de uma alternativa de conhecimento mais viável que
a razão). Isso depende do reconhecimento de um assentimento provi-
sório a posições que, justamente por não representarem a posse da
verdade, poderão ser sempre superadas por uma nova investida mais
vigorosa de nossas faculdades cognitivas. Nesse sentido, o sentido do
ensaio das matérias que escapam ao seu alcance não é meramente
individual, mas possui uma contrapartida no âmbito dessa progressão
mesma: o resultado provisório de seu trabalho pretende representar um
passo a mais pelo qual ele julga avançar, em sua coerência, relativa-
mente aos seus predecessores, sem contudo oferecer a última palavra.
Ora, quando nos damos conta de que esse texto se refere, de certo
modo, a si mesmo — uma vez que a “matéria” aqui amassada pelo juízo
de Montaigne não é senão a própria interpretação do ceticismo, ou me-
lhor, sua compreensão do resultado a que teria conduzido o progresso
do espírito humano ao tentar formular coerentemente seu ceticismo —
, torna-se visível uma segunda leitura. Além de designar o sentido da

68. Diversamente de Montaigne, porém, Bacon constitui seu método em vista da


obtenção de um conhecimento verdadeiro das “formas” das coisas naturais. Contudo,
como observa VILLEY (1973, p. 108-109), Montaigne parece se encontrar mais próximo
desse último do que da filosofia cartesiana. Se aquilo que, para Montaigne, confere
aceitabilidade a esse progresso, seja em que sentido for, é a colaboração dos vários jul-
gamentos na sua própria constituição, trata-se justamente do que Descartes tende a
recusar como causa da imperfeição na construção das ciências em geral (cf. Discurso do
método, segunda parte, p. 11).

381

10888_A figura do filosofo.p65 381 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

investigação específica realizada pelos Ensaios (no contexto mais geral


da investigação humana da verdade), essa passagem oferece-nos tam-
bém algo acerca da contribuição que Montaigne pretenderia dar, segun-
do seu entendimento pessoal, para o esclarecimento da possibilidade de
oferecer limites ao espírito humano, não apenas no que tange ao pro-
gresso rumo à verdade (que afinal não se encontra), mas no reflexo inver-
tido dessa mesma discussão, que é o progresso da coerência na formula-
ção de um diagnóstico cético sobre a ignorância da verdade. E qual seria
essa contribuição? Ela não nos parece ser outra que a de sustentar que
toda e qualquer resposta positivamente dada ao problema de formular
coerentemente o posicionamento cético (por mais que se situe numa
posição superior, de modo geral, ao filosofar dogmático) deve também
ser tida como apenas mais uma estação provisória num progresso concei-
tual potencialmente ilimitado que, se for levado ainda além, não deixará
de mostrar os limites do que fora anteriormente aceito. Isso não significa
que não haja, eventualmente, razão para aceitar essa resposta — mesmo
que se trate de uma razão negativa, dependente de uma avaliação com-
parativa com a coerência interna de outras formas de compreender o
mesmo problema —, mas sim que tal aceitação é forçosamente provisó-
ria e não exclui sequer a possibilidade de que ela simplesmente deva
coexistir com respostas providas do mesmo grau de plausibilidade.
Se assim for, que sentido poderá haver na questão sobre o escopo
da epokhé — ao menos no que tange à interpretação montaigniana do
ceticismo? Parece-nos que tal ceticismo justificaria, em certa medida,
considerações como as de Jonathan Barnes acerca desse ponto, ainda
que por razões diversas da que ele oferece. Esse comentador assinala
que a própria questão sobre o escopo da epokhé não faz sentido, na
medida em que o ceticismo se pretende fundamentalmente uma tera-
pia antidogmática e produz argumentos cujo poder de persuasão é
variável e se adapta à precipitação do filósofo a que se dirige69. Diría-

69. Ver BARNES, 1982, p. 19: “Quanta epokhé precisa alguém para sua ataraxía ou
saúde mental?… Claramente, isso depende da doença…”. Consideraremos no capítulo
seguinte alguns aspectos de como a dimensão terapêutica do ceticismo se reflete nos
Ensaios.

382

10888_A figura do filosofo.p65 382 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

mos, de nossa parte, que Montaigne não parece pretender simples-


mente “negar sentido” à questão — pois não parece ser tampouco o
caso de impor limites ao espírito humano aqui, quando se busca com-
preender o limite em que pode reconhecer a incapacidade de conhe-
cer a verdade. Do ponto de vista da alternativa corrente, teríamos antes
razão, como vimos, para considerar que Montaigne esposa um ceticismo
“rústico” potencial, cercando-o de cuidados que evitariam a espécie de
crítica que Burnyeat dirige ao ceticismo antigo (como a distinção entre
o escopo da dubitabilidade das proposições disponíveis e o da viabilida-
de prática de uma dúvida extrema). De todo modo, parece-nos que
esse esquema interpretativo tem alcance limitado para a compreensão
do que ocorre. O fundamental, aqui, é assinalar que tal questão sobre
o escopo da epokhé poderia nos induzir a uma resposta que, do ponto
de vista do ceticismo em questão, caberia avaliar, em alguma medida,
como dogmática70. Em suma, o problema fundamental a ser contorna-
do residiria na pretensão de oferecer a “boa resposta”, a compreensão
definitiva e acabada dos limites de nosso conhecimento. É importante
frisar que isso não significa, contudo, nenhum relativismo, pois não se
trata de negar que o juízo possa comparar qualitativamente diferentes
interpretações e levar em consideração os problemas que geram quan-
do pretendem descrever tais limites, mas sim que cada uma delas será
o produto da ação de um entendimento particular, segundo seu alcan-
ce limitado e relativo, de antemão sob suspeita pelo modo como eclip-
sa, nalgum grau, por meio da própria “aparência de clareza e de verda-
de” que oferece, a possibilidade de sua revogação por outra resultante
de uma inspeção mais aguda71.

70. Ver item 5.1 — “O ceticismo como gênero filosófico”. Procuramos ali sustentar
que Montaigne lê o ceticismo como um gênero filosófico compatível, ao menos em
princípio, com um número indefinido de interpretações acerca de como conciliar coe-
rentemente, pela prática efetiva, a epokhé e a inserção na vida comum.
71. Concluindo o ensaio “Dos coxos” (III, 11), Montaigne escreve: “[B] Ogni medaglia
a suo riverso. Eis por que Clitômaco dizia antigamente que Carnéades tinha superado
os trabalhos de Hércules, por ter arrancado o consentimento dos homens, isto é, a
opinião e a temeridade de julgar. Esta fantasia de Carnéades, tão vigorosa, nasceu, na
minha opinião, do despudor daqueles que professam saber, e da sua arrogância desme-

383

10888_A figura do filosofo.p65 383 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

No que tange a esse ponto particular, a compreensão montaignia-


na do ceticismo pode ser favorecida por elementos a um só tempo his-
tóricos e filosóficos. Os textos de Sexto Empírico referem-se à epokhé
como uma noção bastante clara e precisa, que poderia ser formulada
adequadamente de várias maneiras, a despeito dos equívocos interpre-
tativos por parte dos dogmáticos que, muitas vezes, propuseram obje-
ções meramente verbais, em torno das palavras empregadas pelo céti-
co. Em resposta, Sexto tece diversas considerações sobre o sentido que
pretende imprimir às diversas frases que emprega para apresentar a
suspensão, de um modo deliberadamente vago e indiferente. Diz ele,
por exemplo, sobre a “não-asserção”: “Aqui também nós não brigamos
meramente em torno das palavras, nem investigamos se as frases tor-
nam, elas mesmas, as coisas claras por natureza, mas, como disse, as
usamos indiferentemente…” (HP I, 195). E, algumas linhas acima, ele
esclarece o sentido dessa vagueza: “Nossa intenção é a de deixar claro
o que nos aparece e somos indiferentes quanto a qual frase usar para
deixar isso claro…” (HP I, 195). Montaigne, contudo, a despeito do
modo cuidadoso como procura fazer justiça aos textos pirrônicos, não
deixa de assinalar que, ainda assim, eles lhe parecem eventualmente
portadores de alguma dificuldade: “[C] Eu exprimo essa concepção [a
saber, a filosofia cética] o tanto que posso, porquanto vários a acham

dida… Assim ocorreu na escola da filosofia: o orgulho daqueles que atribuíam ao espí-
rito humano a capacidade de todas as coisas causou, noutros, por despeito e emulação,
a de que ele não é capaz de nada. Uns têm a ignorância na mesma extremidade que
outros têm o saber [science], a fim de que não se possa negar que o homem seja sempre
imoderado, e que ele não tem parada [arrest] senão diante da necessidade e da impos-
sibilidade de ir além” (III, 11, 1035). Como bem observou TOURNON (1986, p. 80), não
se trata aqui de uma recusa tardia do pirronismo, como supuseram Villey, Armangaud
e Limbrick, uma vez que a condenação é dirigida não a um pirrônico, mas a Carnéades
(interpretado aqui segundo a visão sextiana da filosofia acadêmica, isto é, defendendo
a tese de que a verdade é incognoscível). Mas a suposta crítica a Carnéades não é
desprovida de ambigüidade, pois a “imoderação” desse filósofo justifica-se pela desme-
dida da opinião contrária (à qual se faz corresponder, aliás, a dimensão dialética de seu
ceticismo). Porém, o modo como o comentário de Montaigne exibe sua tentativa de
equacionar a pretensão humana de encontrar verdades e a compreensão da fraqueza da
razão pode significar, paradoxalmente, que é ela que se pretende afirmar como intrin-
secamente provisória, resultante de uma impossibilidade de ir além.

384

10888_A figura do filosofo.p65 384 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

difícil de conceber, e os autores mesmos a representam um pouco di-


versamente e obscuramente…” (505).
Como compreender essa ressalva? Talvez ela pretenda ressaltar o
caráter relativo de sua compreensão do problema — e mostrar o quan-
to sua visão porta de “turvo e embaçado” diante desse panorama, a
despeito da coerência que nele encontra. Uma razão particular para tal
precaução seria derivada, como vimos, de sua consciência de lidar com
uma filosofia que se pretende pura prática intelectual, da qual a lingua-
gem se emprega sobretudo como um instrumento; são, porém, apenas
os textos que restam como os vestígios sabidamente pálidos dessa prá-
tica, que o seu próprio século só pode reconstituir pela estatura do
juízo dos homens que nele habitam. Outra possível razão residiria em
como a reflexão cética de Montaigne lança uma desconfiança particu-
lar sobre a capacidade da linguagem humana de transmitir univoca-
mente verdades, pelas razões vistas há pouco. Se ele não pretende que
os conceitos pirrônicos estejam colados numa formulação definitiva e
intocável, isso não o exime de um trabalho interpretativo quando se
trata de reconstruir essa filosofia no nível de sua experiência e sua re-
flexão pessoal. Assim, embora o pirronismo seja, para ele, a filosofia
que levou ao limite a constatação da ignorância humana, sua interpre-
tação é especialmente atenta às suas relatividade e particularidade.
Isso nos chama a atenção para o modo como são estreitamente
aproximados, pelo ceticismo de Montaigne, o problema de explicar
nossa situação de impossibilidade de reconhecer a verdade e o proble-
ma de interpretar as respostas oferecidas para resolver o problema.
Parece-nos significativo que o termo “interpretação”, nos Ensaios, pos-
sa tanto designar o trabalho de elucidação do sentido original de um
texto72 como a simples investigação de determinado problema teórico
(envolvendo a inspeção daquilo que os diversos autores escreveram sobre
o tema). Nesse segundo sentido, por exemplo, ele afirma, no início da
“Apologia”, acerca do problema de saber se é verdade que toda a virtu-
de se origina do saber, e o vício da ignorância: “… [Saber] se isso é
verdade é assunto de uma longa investigação [interpretation]…” (438A).

72. Ver, por exemplo, várias ocorrências em III, 13, 1067-1069.

385

10888_A figura do filosofo.p65 385 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Parece-nos igualmente significativo que Montaigne empregue o recur-


so da alegoria para descrever a situação paradoxal do homem e, ao
mesmo tempo, assim se refira (em continuação à passagem extraída do
ensaio “Dos livros”, que citamos no item anterior) à multiplicidade de
sentidos que intrinsecamente as alegorias, de modo geral, contêm:
[A] Quando me decepciono com o Axíoco, de Platão, [que me pare-
ce] uma obra sem força, tendo em vista um tal autor, meu juízo não
se crê em si mesmo: ele não é tão tolo de se opor à autoridade de
tantos juízos famosos [C] e antigos, que ele toma como seus regentes
e seus mestres, e com os quais ele é antes contente de faltar. [A] Ele
se considera a si mesmo, e se condena, ou de se deter na superfície,
não podendo penetrar até o fundo, ou de observar a coisa por algum
falso lume. Ele se contenta de apenas se garantir contra a perturba-
ção [trouble] e o desregramento; mas quanto à sua fraqueza, ele a
reconhece e a confessa de bom grado. Ele pensa dar justa interpre-
tação às aparências que sua concepção lhe apresenta, mas elas são
fracas e imperfeitas. A maior parte das fábulas de Esopo têm vários
sentidos e inteligências. Aqueles que as alegorizam [mythologisent]
escolhem algum aspecto que se enquadra bem na fábula, mas para
a maior parte é apenas o aspecto primeiro e superficial; há outros
mais vivos, mais essenciais e internos, nos quais eles não souberam
penetrar: eis como eu faço… (II, 10, 410).
Embora a última afirmação — “eis como eu faço” — possa talvez
sugerir que Montaigne se atém apenas ao sentido superficial dos textos,
essa leitura não se sustenta em vista do modo como ele constrói seus
textos, empregando, pelo contrário, o paradoxo como meio de condu-
zir o leitor a superar seu sentido superficial. Trata-se, porém, de salien-
tar que cada interpretação oferecida, por mais que se aprofunde no
exame de um problema, está cingida pelos limites relativos do juízo
daquele que interpreta.
Decorreriam, porém, dessa posição algumas conseqüências que
importa assinalar. As dificuldades assinaladas por Montaigne relativa-
mente à explicação dos limites de nosso entendimento parecem, em
certa medida, projetar-se, de modo auto-referente, sobre si mesmas: se
o entendimento é tido como permanentemente possuidor de uma po-
tencial opacidade mesmo quando se volta para o problema de com-

386

10888_A figura do filosofo.p65 386 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

preender os limites de nosso entendimento, ela não acaba por se proje-


tar nessa compreensão do problema? Tal resposta, em sua particulari-
dade, seria sempre uma imagem “fraca e imperfeita”, por comparação
àquela produzida por um juízo possuidor de presas capazes de arrancar
das coisas, se não uma “verdade”, uma imagem desta mais capaz de
passar num sentido invariável de mão em mão. Mais ainda, o fato de
que tal problema seja, de modo geral, da ordem da interpretação, faz
com que, caso essa leitura seja aceitável, ele se alastre inevitavelmente
pela rede das interpretações acerca do próprio texto de Montaigne (isto
é, da reconstrução da posição do problema de oferecer uma formula-
ção dos limites de nosso conhecimento tal como compreendido por
Montaigne em seus textos). Isso significa que os diversos argumentos e
exames destinados a exibir a leitura que Montaigne empreende da filo-
sofia cética, muito embora não se esvaziem de significado, não podem
ser tomados como convergentes para uma conclusão segundo a qual
estaríamos diante da verdadeira interpretação do problema.
Como compreender tais conseqüências paradoxais? Não são elas,
no que tange à interpretação do texto de Montaigne, conformes às
demais passagens em que, como vimos no capítulo IV, ele repele por
antecipação os leitores que pretendam conhecê-lo tal como verdadei-
ramente foi73? Isso não significa, por certo, que ele mesmo não entenda
ser essa estratégia relativizadora, a despeito de ser a sua interpretação
compatível com a coerência própria que ele pensa estar disponível nos
próprios textos em que os pirrônicos oferecem o seu diagnóstico de
nossa incapacidade de conhecer a verdade. Parece-nos, assim, que não
se trata nem de reconhecer uma contradição que conduza à recusa das
interpretações, nem mesmo de produzir um relativismo geral. Mon-
taigne não pretende negar, como vimos, que o entendimento disponha
de exigências próprias para bem proceder, hauridas do modo como se
move na direção do reconhecimento da verdade (ainda que não possa-
mos estabelecer quais sejam elas e que não viabilizem, de fato, o reco-
nhecimento de uma verdade plenamente compatível com elas). A

73. Ver, por exemplo, III, 9, 982-983 B; texto examinado no item 4.1 — “Retórica do
paradoxo”.

387

10888_A figura do filosofo.p65 387 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

natureza paradoxal dessas conseqüências apenas sublinha o fato de que


de modo geral nosso entendimento não pode reconhecer verdades, e
isso se aplica também às próprias formulações que o cético oferece de
sua filosofia. O paradoxo serve aqui, noutras palavras, para atualizar o
esclarecimento que Sexto Empírico oferece acerca do uso cético da
linguagem, um uso vago, transitório, esvaziado de poder assertivo, e
todavia preciso. Mais exatamente, Sexto esclarece que as expressões
céticas aplicam-se sobre si mesmas e, com as proposições dogmáticas
que pretendem neutralizar, elas são eliminadas tal como os purgantes
são expelidos com os humores que pretendem purgar74.
Ademais, a admissão de que cada formulação de nossa incapacida-
de de encontrar a verdade, por sua simples positividade, está sujeita a
ser superada por um esforço superior, ainda que sempre relativo e limi-
tado, de um entendimento humano que é incapaz de entender plena-
mente seus próprios limites, parece ser conforme à interpretação mon-
taigniana do pirronismo como uma prática incessante da dúvida, pela
qual cada proposição obtida pode ser indefinidamente submetida a uma
nova refutação — aí compreendida a posição apresentada por esses
mesmos céticos75. Observar, porém, que essa marcha ilimitada se faz à
sombra da natureza paradoxal do entendimento humano permite-nos
chamar a atenção para aspectos aparentemente secundários, mas não
menos importantes, do texto de Montaigne. Eis, por exemplo, como
ele apresenta seu veredicto acerca da coerência da crítica dos pirrôni-
cos ao veri similis acadêmico: “[A] A opinião dos Pirrônicos é mais
ousada e, na mesma medida, mais verossímil…” (561; itálico nosso).
Por certo, esse emprego paradoxal do conceito acadêmico, ora critica-
do, na formulação do juízo pró-pirrônico, ora aceito, como parte da
apresentação da posição pirrônica, não há de ser gratuito, mas é igual-
mente evidente que ele tampouco pode visar uma recusa da coerência
da crítica pirrônica — a despeito da dificuldade e da estranheza dessa
posição extrema, “que não pode, na verdade, alojar-se em nossa imagi-
nação senão com dificuldade…” (ibid.). O que concluir, senão que o

74. Ver HP I, 206.


75. Ver 504-505B.

388

10888_A figura do filosofo.p65 388 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

paradoxo é, nalguma medida, o preço a pagar pela forma como essa


maior coerência, de todo modo, se impõe? Noutros termos, precisamos
assentir à coerência do ceticismo extremo mesmo que tendamos irre-
mediavelmente a admitir certas proposições como mais verossímeis que
outras (“a neve é branca” por oposição a “move-se a oitava esfera”) e
sejamos incapazes de nos opor a essa evidência. Não nos permite isso,
afinal, melhor compreender o sentido da conclusão condicional dessa
discussão? “A posição mais segura de nosso entendimento… seria aquela
em que ele se manteria calmo, reto, inflexível, sem abalo nem agita-
ção…” (562B).
A lição a extrair aqui, quanto à fraqueza do entendimento humano,
é a de que o esforço pelo qual ele se move para compreender seus
limites acaba por conduzi-lo, em última instância, à imobilidade: po-
demos encontrar argumentos inteiramente claros que revelam a impro-
priedade das proposições mais evidentes, mas não por isso nos torna-
mos capazes de compreender as conseqüências a que, em última ins-
tância, eles nos conduzem. O próprio ceticismo, devidamente com-
preendido, acabaria por mostrar que, levada às últimas conseqüências,
a tentativa mais coerente de compreender os limites do entendimento
humano acabaria por nos conduzir a um paradoxo, que refletiria a pró-
pria paralisia do entendimento. Tal é, como vimos, o sentido do per-
curso do ensaio sobre “Como nosso espírito se enreda a si mesmo” (II,
14). Embora a posição mais extrema e mais coerente nos ensine que a
“impressão de clareza e verdade” é sempre duvidosa, não pode deixar
de nos aparecer como portadora dessa mesma impressão de verdade76.

76. Um outro exemplo da mesma imobilização do entendimento — entre o que se


impõe como verossímil e o reconhecimento da falta de fundamento do verossímil —
manifestar-se-ia no lema “que sei eu?”. Essa fórmula, com que Montaigne autografa sua
compreensão do ceticismo, é por ele apresentada como opção (que ele adota pela cla-
reza) àquilo que igualmente se oferece pelo paradoxo do mentiroso ou pelo modo como
a metáfora purgativa cética pretenderia neutralizar plenamente a dimensão assertiva da
linguagem (v. 527B). Nela encerrar-se-ia outra tradução da mesma epokhé, a um só
tempo mais radical e mais coerente, dos pirrônicos: mesmo que todas as proposições
humanas estejam marcadas, em sua simples assertividade, pela precariedade, sou nor-
malmente incapaz de compreender, pela finitude do entendimento, em que sentido
elas se comprometem.

389

10888_A figura do filosofo.p65 389 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Significaria isso que o ceticismo é incoerente? Apenas se fosse possível


tomar esse impasse como portador de alguma verdade capaz de suplan-
tar tal diagnóstico da condição humana. Mas, ao contrário, o ceticis-
mo, assim compreendido, mostra que, embora não possamos abrir mão
de nossa pretensão de mirar a verdade e obter uma coerência última e
absoluta no entendimento que possuímos das coisas, a resposta mais
coerente que a filosofia pode oferecer, no ponto extremo a que alcança
sua investigação (ainda que por seu viés negativo), é sempre portadora
de uma coerência imperfeita e relativa. Nossa condição é a dos cães de
Esopo, posto que a sabedoria humana não atinge os fins que prescreve
para si e prescreveria outros além caso os atingisse77. Eis como, afinal,
a epokhé pirrônica, entendida como “fim” em vista do qual os céticos
filosofam, parece ser aqui reeditada na forma de um paradoxo — que
contribui para ressaltar a natureza essencial do próprio percurso, isto é,
do movimento pelo qual o espírito se lança ainda além para constatar
que mesmo a última resposta que ele consegue oferecer demonstra sua
própria limitação e contemplar, num sentido aprofundado, a conclu-
são paradoxal de Plínio, o Antigo: “Nada é tão certo quanto a incerteza,
e nada mais miserável e orgulhoso do que o homem”. É a mesma
consciência, afinal, de que não está ao alcance do homem suprimir
plenamente sua condição vaidosa e ilusória que se exprime nesta pas-
sagem com que encerra o capítulo “Da vaidade”:
[B] Se os outros se observassem atentamente, como faço, eles se acha-
riam, como eu, cheios de inanição e tolice. Desfazer-me disso não
posso sem me desfazer de mim mesmo. Nisso estamos todos mergu-
lhados, tanto uns quanto outros; mas aqueles que o percebem [sentent]
levam isso um pouco melhor em consideração, é o que ao menos sei.
Essa opinião e uso comum de observar o que se passa alhures, que
não em nós, foi bem propícia às nossas necessidades. [O homem] é
um objeto cheio de descontentamento, não vemos aí senão miséria
e vaidade. Para não nos desconfortar, a natureza voltou, bem a propó-
sito, a ação de nossa vista para fora. Nós avançamos e nos extravia-
mos, mas voltar nossa corrida em direção a nós mesmos é um movi-

77. Ver III, 9, 990, passagem citada no item anterior.

390

10888_A figura do filosofo.p65 390 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

mento difícil: o mar se agita e se abate contra si mesmo quando reflui…


Era uma ordem paradoxal aquela que nos dava antigamente esse Deus
de Delfos: olhai em vós, reconhecei-vos, atei-vos a vós mesmos; vosso
espírito e vossa vontade, que se consome alhures, trazei-a para vós;
esgotai-vos, mostrai-vos, aplicai-vos, sustentai-vos: vós sois traídos, dis-
sipados, roubados de vós mesmos… É sempre vaidade, dentro e fora,
mas é menos vaidade quando é menos extensa. Afora ti, ó homem,
dizia esse Deus, cada coisa é a primeira a se estudar e, segundo suas
necessidades, põe limites a seus trabalhos e desejos. Não há delas
uma única que seja tão vazia e carente quanto tu, que abraça o uni-
verso: tu és o escrutador sem conhecimento, o magistrado sem juris-
dição e, apesar de tudo, o bufão da farsa… (III, 9, 1000-1001).

6.5. Uma atitude cética


Eis aqui um ceticismo peculiar, cuja linhagem “radical” nos auxi-
lia a compreender, em contrapartida, a radicalidade da empresa carte-
siana de reconstituição da ciência, ao mesmo tempo em que nos provê
de elementos para examiná-la criticamente. Por mais que a “Apologia”
nos ofereça problemas epistemológicos afins aos que serão discutidos
por Descartes e Locke, certamente Montaigne não almejou produzir
uma epistemologia como a que quiçá encontramos nesses filósofos.
Pela ótica de seu ceticismo, ambas as tentativas de explicar a origem
dos conhecimentos humanos estariam comprometidas não apenas por
seu pressuposto básico, mas porque certamente representariam exem-
plares de uma “extrema ciência”, da qual os pirrônicos, como Montaig-
ne, duvidam que o homem seja capaz (v. 502A). Se podemos chamar
sua reflexão de epistemológica, ela se volta contra a pretensão do esta-
belecimento de limites à atividade dubitativa, sobretudo diante das
teorias epistemológicas, e à constatação de que não podemos, em últi-
ma instância, explicar por que, a despeito do caráter universalmente
dubitável de nossos conhecimentos, assentimos a alguns como aparen-
temente indubitáveis, e somos conduzidos a agir e escolher em vista de
nossas necessidades. Se explicação há, não pretende almejar o estatuto
de conhecimento, mas limita-se à constatação de que somos parte de

391

10888_A figura do filosofo.p65 391 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

uma natureza que transcende indefinidamente nossa capacidade de


conhecê-la, que nos oferece “pés para andar e também prudência para
nos guiarmos na vida” (cf. III, 13, 1073), e oferece, ao nosso corpo e à
nossa alma, perfeitas condições de uso, desde que nela não imiscuamos
nossa “opinião de saber” (III, 13, 1026). Como diz ele, pretender expli-
car as coisas tal como nos aparecem é comprometer a sua fruição:
O conhecimento das coisas pertence somente àquele que tem a con-
dução das coisas, não a nós, que apenas as recebemos passivamente
[qui n’en avons qui la souffrance] e das quais temos um uso perfeita-
mente pleno, segundo nossa natureza. O vinho não é mais agradável
àquele que conhece suas faculdades principais. Ao contrário, o cor-
po e a alma interrompem e alteram o direito que temos de uso do
mundo, aí imiscuindo sua pretensão de ciência. Determiná-la e sabê-
la, como provê-la, pertencem à regência e à mestria; à inferioridade,
sujeição e aprendizagem pertencem o fruir e o aceitar (III, 13, 1026).
Mas isso não significa que a situação desse cético seja a de uma
mera passividade ante o que lhe aparece: não apenas porque ele é con-
duzido a agir, ainda que ignore o modo como a natureza o move a
tanto, mas porque seu ceticismo lhe oferece diretrizes para refletir so-
bre sua ação, em virtude da imagem naturalizada de nossas faculdades
cognitivas propiciada por tal reflexão.
Uma parte dessas conseqüências já foi apresentada ao longo deste
trajeto. Vimos que o cético, abdicando de uma imagem fantasiosa do
poder da razão, pode ser levado a uma particular atitude de tolerância,
e desenvolver especial atenção ao modo como cada qual raciocina com
base em seus pressupostos e em sua capacidade individual. Igualmen-
te, vimos que a consideração atenta de nossa experiência cotidiana, em
particular de nossos juízos, nos deveria conduzir, na medida em que
pudéssemos usar nossa experiência como uma ocasião para agir diver-
samente no futuro, a moderar nosso assentimento àquilo que nos pare-
ce verdadeiro (sabendo que tal assentimento é intrinsecamente relativo
e provisório), bem como, por razões semelhantes, a desconfiar da plau-
sibilidade daquilo que, por sua novidade, nos atrai de modo particular.
Mas essa mesma reflexão, ao chamar a atenção para o modo como
nosso juízo carrega continuamente consigo a crença em seu “bom sen-

392

10888_A figura do filosofo.p65 392 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

so” e em sua capacidade de conhecer a verdade, pode também condu-


zir a uma apreciação diversa das ocasiões em que ele se engana:
[B] Quem se recorda de ter sido tantas e tantas vezes enganado por
seu juízo não é um tolo de nunca dele desconfiar? Quando eu me
acho convencido pela razão de outrem acerca de uma opinião falsa
[que eu sustentava], eu não aprendo tanto o que ele me diz de novo,
bem como esta ignorância particular (seria uma pequena aquisição),
eu aprendo, em geral, minha fraqueza, e a traição do meu entendi-
mento, de onde tiro a reforma de toda a massa. Em todos os meus
erros ajo da mesma maneira, e percebo que essa regra tem grande
utilidade para a minha vida… (III, 13, 1074).
Da mesma constatação de ser enganado por seu juízo (mesmo no
que pode parecer mais certo e indubitável), Descartes extrai, logo no
início da Primeira Meditação, uma conclusão sobre a natureza duvido-
sa de tudo aquilo que tomara por verdadeiro, ante a falta de um critério
diverso; para enfrentar esse problema, iguala metodicamente o duvido-
so ao falso, para melhor detectar um critério de verdade capaz de superá-
lo definitivamente (uma vez que poderia reconhecer ao menos algu-
mas certezas como irrecusáveis). Porém, vemos aqui que essa decisão
metódica seria equivalente a esmagar a dimensão da utilidade prática
que, num plano moral, Montaigne pretende extrair de tal constatação
nas ocasiões em que ela se oferece: “a reforma de toda a massa”. Tal
conseqüência se vincula aqui ao sentido particular que ganha a denún-
cia da precariedade do juízo: esta não se manifesta apenas na apreensão
da verdade, mas também no conhecimento de sua própria falibilidade,
mascarada pelo fio de coerência com que amarra o conjunto de seus
movimentos. Essa passagem é também oportuna para observarmos como
tal atitude, ao mesmo tempo em que assume que tal será permanente-
mente a situação de nosso juízo, deve sempre, no que respeita a sua
utilidade, se ancorar num evento particular que propicie tal exame:
mesmo que nenhuma impressão de verdade possua garantia de objeti-
vidade, é a oportunidade inesperada de observar por um ângulo diverso
alguma dessas impressões que se tinha como provisoriamente admitida
— “quando eu me acho convencido pela razão de outrem acerca de
uma opinião falsa [que eu sustentava]”. Dá-se assim a ocasião de um

393

10888_A figura do filosofo.p65 393 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

movimento reflexivo, pelo qual se busca detectar onde, sem sabermos


exatamente, a rede de coerência que criamos para apreender o conjun-
to dos fatos revelou-se falha. Isso não conduz, evidentemente, a um
pleno abandono de todas as crenças que poderiam ser assumidas como
duvidosas, o que seria impossível (como Descartes perceberia) e inútil
(quanto às conseqüências práticas que aí enxerga Montaigne). Con-
duz, em vez disso, à tentativa de uma reacomodação do conjunto de
modo tal que se possa revelar mais “útil para a vida”. Permanecem aqui
distintas, até o final, a questão da utilidade que teria a admissão de
crenças para a vida prática e a questão de seu poder cognitivo para
representar objetivamente a realidade, analogamente ao modo como a
aceitação do poder do costume, mesmo em vista da sua “utilidade” para
a vida, não equivale a considerá-lo critério de conhecimento. Por mais,
como vimos, que o costume obste a ação do juízo e mascare a verdadei-
ra natureza das coisas, Montaigne nele detecta aspectos úteis, de um
ponto de vista prático, sem confundir os registros com que o observa:
Eu sou grato à fortuna que ela me assalte tão freqüentemente com
o mesmo tipo de armas: ela me forma e me prepara pelo uso, me
curte e me habitua… O acostumar-se me serve também a melhor
esperar para o futuro, pois a condução dessa colheita tendo conti-
nuado por tanto tempo, cabe crer que a natureza não mudará seu
andamento e não ocorrerá pior acidente que aquele que eu já sin-
to… (III, 13, 1092B)78.
Por ainda outra razão essa passagem evoca a filosofia cartesiana:
para Descartes, o modo como a irresolução nas ações é incompatível
com a vida feliz suscita a adoção de certos princípios, constitutivos de
uma moral provisória79. Deveríamos também aqui ver um antecedente
da filosofia cartesiana? Tivemos mais de uma ocasião de aproximá-la
de Montaigne no que tange à admissão, ao menos provisoriamente, de
uma esfera de “certezas práticas”; mas importa aqui não tanto assinalar
que tal esfera tem uma extensão diversa em ambas as filosofias, e se

78. Ver também as análises sobre a noção de natureza e o modo como se confunde
com o costume, no item final do capítulo III (3.4 — “A opacidade dos fenômenos”).
79. Ver Discurso do método (DM), Terceira parte, p. 22 ss.

394

10888_A figura do filosofo.p65 394 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

relaciona diversamente com a possibilidade de dispor de certezas de


outra natureza, teórica e definitiva, capazes de iluminá-las e de servir,
nalguma medida, de cânone para a avaliação de seu estatuto. Sobretu-
do, cabe ressaltar que o rendimento filosófico que se extrai do caráter
provisório das certezas é muito diverso nos dois casos. Ainda que Mon-
taigne associe sua postura cética a uma espécie de dificuldade pessoal
de tomar decisões práticas (que ele confessadamente relaciona a suas
tendências circunstancialmente conservadoras), isso se concilia com
uma prática permanente, ao longo dos Ensaios, de observar continua-
mente a isosthéneia, o equilíbrio que facilmente se estabelece entre as
razões contrárias, mesmo relativas às ações humanas, conciliando-a com
seu modo de agir na prática. No mesmo passo em que identifica a
irresolução como um defeito “pessoal”, incômodo nos afazeres munda-
nos, mas favorecido pelas razões que podem facilmente apoiar lados
opostos80, isso se configura, para ele, como ocasião não de imobilidade,
mas de reflexão sobre as condições da ação: seja para convidá-lo a des-
confiar do poder de persuasão com que a novidade tende a se impor81,
seja para melhor discernir as razões que podem contar em favor de
cada ponto, ainda que a decisão acabe se impondo pela necessidade de
agir, que casualmente a conduzirá:
[B] Eu sei bem sustentar uma opinião, mas não sei escolher… [A]
Assim, eu preservo a dúvida e a liberdade de escolher até o momento
em que a ocasião me pressiona. E então, para confessar a verdade, eu
lanço freqüentemente a pluma ao vento, como se diz, e me abando-
no à mercê da fortuna: uma inclinação ou circunstância bem leves
me carregam… A incerteza de meu julgamento é tão igualmente
balançada na maior parte das ocorrências que eu subscreveria de
bom grado a decisão da sorte e dos dados… (II, 17, 655).
No caso de Descartes, a provisoriedade parece apenas constituir um
meio de delimitar uma esfera de problemas que filosoficamente podem
ser deixados em segundo plano, enquanto para Montaigne tal situação
é permanentemente objeto de exame na particularidade própria com

80. Ver II, 17, 645A.


81. Ibid., 654-655.

395

10888_A figura do filosofo.p65 395 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

que se apresenta. Desse modo, a observação da natureza intrinsecamente


provisória das certezas disponíveis articula-se com o papel positivo e
diferenciado que a própria noção de ação ganha em sua filosofia.
Quando o costume conduz, pelo que vimos, a uma adesão “exter-
na” a certas crenças, opera uma espécie de razão prática, capaz de
avaliar o peso circunstancial das opiniões relativamente aos interlocu-
tores particulares que se tem em vista. O modo como essa reflexão
descortinou a natureza paradoxal do juízo humano permite-nos agora
ver com mais clareza que se desenha, também no âmbito de suas conse-
qüências práticas, uma cisão entre o trabalho realizado pelo juízo hu-
mano e o modo como, à sua revelia, a natureza se impõe. Pois, embora
possamos criticamente tentar perseguir o fio das impressões de verdade
que o juízo enreda, o modo como casualmente nos deparamos com a
possibilidade de perceber seu erro constitui uma ocasião oportuna para
rever “a massa” de suas ações. Isso parece estar em consonância com as
diversas passagens em que Montaigne oporá, de modo mais geral, as
exigências relativas ao domínio da ação, tal como se impõem por si
mesmas, àquilo que nosso espírito pode nos revelar acerca das coisas.
[B] E as opiniões da filosofia, elevadas e admiráveis, acham-se inep-
tas ao exercício. Essa aguda vivacidade da alma, eessa volubilidade
adaptável e inquieta perturba nossas negociações. É preciso manejar
as empresas humanas mais grosseira e superficialmente, e nela dei-
xar boa e grande parte aos direitos da fortuna. Não é necessário escla-
recer os afazeres tão profundamente e sutilmente. Perdemo-nos na
consideração de tantos lumes e formas diversas… (II, 20, 675).
Não faltam nessa passagem que se refere à filosofia em geral ele-
mentos que delineiam o perfil da investigação cética, voltada à exibi-
ção dos “lumes e formas diversas”, das razões favoráveis e contrárias a
uma possível conduta. Mas o ceticismo está associado não apenas dire-
tamente à plena fruição das coisas, mas também à compreensão de
como a ação humana está inexoravelmente submetida ao acaso (de um
modo que deve ser positivamente levado em consideração quando se
tratar de ponderar sobre como agir). No ensaio “Da incerteza de nossos
juízos”, por exemplo, Montaigne contrapõe diversos raciocínios e exem-
plos opostos (relativamente à situação de guerra), para concluir:

396

10888_A figura do filosofo.p65 396 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

Assim, nós bem nos acostumamos a dizer com razão que os eventos
e resultados dependem, notadamente na guerra, por sua maior parte
da fortuna, à qual não quer se acomodar e sujeitar a nosso discurso
e [nossa] prudência… Mas, a bem considerar, parece que nossos
conselhos e deliberações dependem dela igualmente, e que a fortu-
na engaja em seu tumulto e [sua] incerteza igualmente nossos racio-
cínios… (I, 47, 286).
Cabe, assim, novamente concluir que aquilo que mais superficial-
mente pareceria uma crítica é na verdade um meio de precisar indire-
tamente o estatuto com que os “fatos” e a natureza se impõem a nós,
diante de nossa precariedade cognitiva. O ceticismo nos convida assim
a abandonar a pretensão de encontrar uma plena justificativa racional
das possibilidades de ação que se apresentam, e nos convida à conside-
ração, também aqui, de nossa finitude cognitiva e de nossa tendência
a nos extraviar em nossas miragens racionais. “Vale bem mais para nós
deixarmo-nos conduzir sem inquirir, segundo a ordem do mundo…”
— diz Montaigne, ao concluir a apresentação do critério cético para a
ação82. Nos textos mais tardios, ainda, o acesso à “natureza” como cri-
tério de ação é mediado pelo reconhecimento de nossa incapacidade
de abarcá-la: “[B] Deixemos um pouco a natureza agir: ela entende
melhor de seus assuntos do que nós…” (III, 13, 1088)83. Trata-se de
considerar, em suma, como o próprio desenrolar dos fatos (que sempre
ultrapassam nossa capacidade de abarcá-los) pode servir como uma
espécie de lastro capaz de trazer nosso espírito de volta às coisas. Em-
bora essa mesma idéia se apresente já nos ensaios mais antigos, pode-
mos ver como o posicionamento cético de Montaigne acaba por lhe
dar forma e estatuto filosófico próprio — seja no que se refere à ênfase
com que a própria filosofia será vista como exercício concreto do juízo,
seja no sentido mais amplo em que nossa própria ação é tida como
capaz de produzir os parâmetros pelos quais há de se nortear nossa

82. Ver 505-506.


83. Ver igualmente III, 13, 1073, em que a recusa das imagens falsificadas que os
filósofos propõem da “lei geral do mundo” dá lugar a um elogio à adesão à natureza em
sua “simplicidade” própria. Sobre o mesmo problema, ver, de modo geral, o ensaio III, 12.

397

10888_A figura do filosofo.p65 397 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

conduta: “[B] Eu não almejo nenhum outro fruto, agindo, que o de


agir, e não o amarro a longas seqüências e projetos: cada ação faz par-
ticularmente seu jogo…” (III, 9, 792)84.
Porém, esse “retorno esclarecido” ao mundo da ação propugnado
pelo ceticismo vem acompanhado da atribuição de um sentido próprio
à atividade intelectual. Diríamos que o papel da reflexão, desse ponto de
vista, é tanto o de desenvolver o pleno uso de nossas faculdades — aí
compreendida, por exemplo, a “formação do juízo”, tal como considera-
da no item anterior — como o de propiciar uma revisão iluminadora de
“certezas práticas” — provenientes da “natureza” ou do “costume” —
que se impõem individualmente como objeto de adesão, segundo sua
utilidade. Se a dúvida cética pode abarcar de direito todas as opiniões, a
prática da dúvida pode se converter num recuo reflexivo (tanto na polí-
tica como, em sentido amplo, na moral), pelo qual é possível se distan-
ciar e observar provisoriamente as inclinações que enfeixam um sentido
determinado da ação. Nessa medida, o ensaio do juízo converte-se num
esforço prudente, destinado a discernir onde sua permanente clareza es-
conde perigosamente uma falsa impressão de conhecimento das coisas.

84. O tema mereceria um tratamento à parte, mas limitemo-nos a reproduzir aqui


as passagens indispensáveis. Já em I, 4, 22, podemos ler: “[A] … o braço estando levan-
tado para bater, faz-nos mal se o golpe não se dá… do mesmo modo, parece que a alma
se move e se perde a si mesma, se não tem uma empresa: é preciso sempre lhe fornecer
um objeto no qual ela mire e atue… E nós vemos que a alma em suas paixões se ilude
antes a si mesma, estabelecendo para si um objeto falso e fantástico, mesmo contra sua
própria crença, em vez de não agir contra nada…”. Em I, 20 o modo como a dimensão
da “ação” determina nossa existência é assim demarcado em tintas estóicas: “[A] Não se
deve estabelecer nenhum desígnio de tão longo fôlego, ou ao menos com tal intenção
de se apaixonar sem poder ver o fim. Nós nascemos para agir… Eu quero agir, [C] e que
os ofícios da vida se alonguem o tanto que se possa, [A] e que a morte me encontre
plantando minhas couves, despreocupado dela, e ainda menos de meu jardim imper-
feito…”. Posteriormente, sob outro enquadramento filosófico, a esfera da ação perma-
nece possuindo uma espécie de primazia e autonomia: “Minha filosofia está na ação,
no uso natural [C] e presente: pouco na fantasia. Tivera eu gosto de jogar com as avelãs
e os piões…” (III, 5, 842). Num dos primeiros capítulos, “Nossas afecções se movem
para além de nós”, observando o modo como a natureza nos encaminha a desviarmo-
nos dos bens presentes em direção ao futuro, ele acrescentará posteriormente: “… im-
primindo-nos, como tantas outras, essa imaginação falsa, mais interessada em nossa
ação que em nosso saber [science]…” (I, 3, 15C).

398

10888_A figura do filosofo.p65 398 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

Cabe insistir nesse ponto, porque ele parece demarcar um aspecto


peculiar e importante da prática cética dos Ensaios. Ainda que todas as
proposições sejam em princípio passíveis de dúvida, parece haver, ge-
nericamente, dois grupos delas que tendem a se distanciar do foco pri-
vilegiado de sua prática. De um lado, aquelas que configuram as teo-
rias delirantes que a filosofia dogmática incansavelmente produz: dizi-
má-las não parece ser a tarefa mais difícil nem a mais interessante.
Embora essas teorias possam fornecer diversos materiais para o exercí-
cio do juízo, no sentido já considerado, não são levadas a sério segundo
sua pretensão de verdade. De outro, parece haver um conjunto de teses
que representam aparentes certezas básicas, articuladas com nossa in-
serção no mundo, que, mesmo não sendo isentas de uma dúvida pos-
sível, não surgem como objeto de uma reflexão cética — seja por se
tratar de uma atividade que não pode ser praticamente levada a cabo,
seja por se afigurar como irrelevante ou desinteressante, seja por serem
pressupostos de outra crítica que aparece como mais relevante. Afinal,
observado segundo sua prática efetiva, parece-nos que o exercício du-
bitativo de Montaigne acaba por se concentrar preferencialmente nas
ocasiões em que pode ser trazida à tona a ambivalência oculta das
opiniões que o véu do bom senso encobre. São ocasiões de realizar um
exercício autocrítico, em que a prática da epokhé converte-se num es-
forço pelo qual, de modo pontual, impressões individuais de certeza
podem ser vistas com distanciamento e eventualmente exibir um as-
pecto paradoxal até então desprezado. Diríamos, em suma, que o en-
saio cético, em sua forma acabada, parece comportar duas atividades
complementares, que correspondem aos aspectos conflitantes do juí-
zo, tal como os apresentamos. De uma parte, Montaigne dá “livremen-
te sua opinião sobre todas as coisas”, e o ensaio torna-se o anteparo no
qual essas opiniões podem ser colhidas e pesadas ao lado das razões e
opiniões antigas, com as quais elas podem ser acomodadas ou contra-
postas e ser assim mais bemconhecidas e observadas, graças ao distan-
ciamento. De outra, não nos pareceria incorreto dizer (particularmen-
te em vista de ensaios aporéticos como “Da fisionomia”) que tal exer-
cício freqüentemente evolui na forma de uma armadilha deliberada,
pela qual se trata, aparentemente, de enredar o fio de coerência pelo

399

10888_A figura do filosofo.p65 399 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

qual o próprio juízo persegue seu movimento opinativo num paradoxo.


Assim, Montaigne se detém preferencialmente em certos temas — segura-
mente em vista de seu enraizamento problemático na vida prática —,
como a relação entre natureza e arte (ou costume), a ordem pública, a
morte, a natureza geral do homem e a natureza singular de seu próprio
eu. (Persegui-los em sua filigrana própria seria escrever um outro livro:
não deixaremos, contudo, de situar melhor tais preocupações biográfi-
cas no próximo capítulo, ao tratarmos das conseqüências céticas rela-
tivamente à noção de fantasia nos Ensaios.) Também aí se projeta um
esforço autocrítico, pelo qual esse cético pretende refletir sobre a rela-
tividade intrínseca das impressões de verdade que as coisas lhe susci-
tam, e sobre os limites de suas faculdades.
Visto pela ótica da produção de um conhecimento das coisas, o
percurso que deságua no paradoxo pareceria talvez leviano e sem sen-
tido. Visto, porém, como trabalho de uma filosofia na qual o funda-
mental se torna o percurso — o movimento pelo qual o juízo assiste à
produção e à superação das próprias teses, em vista da sua formação ou
da clarificação de seus limites, como um meio de aprofundar e tornar
mais consciente sua inserção na experiência que naturalmente a vida
oferece —, esse filosofar pode ganhar um interesse diverso. É decisivo,
assim, ter em mente que a afirmação de um gênero cético de filosofia
por oposição à atitude dogmática corresponde a uma mudança no sen-
tido geral da própria atividade intelectual: o ceticismo se converte so-
bretudo numa experiência que depende da prática efetiva, para o filó-
sofo ou para o cirurgião, como vimos no capítulo anterior85. Ela não é
apenas um conhecimento acumulado, mas a perda da ingenuidade
dogmática, acompanhada das devidas conseqüências que daí se seguem.
Mas é essencial para a devida caracterização desse gênero a compreen-
são de que nossa situação não é menos paradoxal do que a dos cães de
Esopo: a consciência de nossa precariedade não nos torna capazes de
compreendê-la plenamente, inevitavelmente portadora, ela mesma, de
alguma “vaidade” residual e inexpugnável, no simples gesto pelo qual
se pretende almejar a compreensão de algo. Se o mal do dogmático,

85. Ver II, 37, 764.

400

10888_A figura do filosofo.p65 400 28.03.07, 16:07


Ceticismo em movimento

segundo Sexto, é a oíesis, presunção resultante da precipitação opina-


tiva, parece preciso reconhecer que Montaigne desconfia seriamente
da possibilidade de levar inteiramente a cabo a purgação do dogmatis-
mo, cujas sementes parecem instalar-se em nossa “natureza”, na ação
do próprio juízo: “[A] A presunção é nossa doença natural e original…”
(540, cf. 634A). Defrontarmo-nos ceticamente com nossa situação
paradoxal não constitui aqui nenhuma espécie de preâmbulo da fé
(como ocorrerá na filosofia de Pascal), mas uma ocasião para vermos
mais claramente nossa natureza em sua precariedade intrínseca — aí
compreendida nossa tendência a ignorar nossa precariedade —, aceitá-
la como tal e com ela lidar segundo nossos limites naturais. Trata-se
igualmente de facultar ao homem a possibilidade de gozar de seus
efetivos recursos naturais, corporais e espirituais, segundo a medida
humana, e de ensiná-lo a desconfiar, ao menos, das miragens que ele
pretende buscar mar adentro.

401

10888_A figura do filosofo.p65 401 28.03.07, 16:07


10888_A figura do filosofo.p65 402 28.03.07, 16:07
CAPÍTULO VII

O ensaio como fantasia

Nosso exame das diferentes figuras do paradoxo nos Ensaios —


como estratégia retórica de ocultamento, como meio de induzir a ação
do juízo ou como representação dos limites do conhecimento — seria
incompleto se não considerássemos uma noção-chave da reflexão filo-
sófica dos Ensaios. O ceticismo, denunciando as fraquezas da razão e
preconizando o “ensaio do juízo”, corresponderia a uma atividade in-
telectual diversa daquela pela qual a filosofia de seu tempo converte-se,
de modo geral, num nome “vão e fantástico”, ao aceitar de modo irre-
fletido a autoridade filosófica alheia (I, 26, 160A). E o filósofo pirrônico
é caracterizado como aquele que abandonou “[A] os privilégios fantás-
ticos, imaginários e falsos, que o homem se usurpou, de reger, ordenar
e estabelecer a verdade…” (505; itálicos nossos) — por oposição ao
dogmático, que permanece entretido por suas ficções1. Mais do que

1. Como vimos, Montaigne se refere ironicamente, logo após tal caracterização do


ceticismo, às “idéias, números e átomos” avançados pelos filósofos dogmáticos como
meras “invenções” que, mesmo falsas, foram propostas por possuírem uma aparência

403

10888_A figura do filosofo.p65 403 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

isso, um dos efeitos da observação da multiplicidade de perspectivas


contraditórias que a razão pode sustentar é o de revelar, segundo Mon-
taigne, que tal faculdade se identifica, ao menos em certa medida, à
imaginação e à fantasia (na medida em que somos por ela induzidos a
crer que reconhecemos uma verdade, embora isso se faça de modo
apenas ilusório): “[B] Estimo que não apareça na imaginação humana
nenhuma fantasia tão delirante que não encontre um exemplo nalgu-
ma usança pública e, por conseguinte, que nossa razão não sustente e
fundamente…” (I, 23, 111 ss.)2. E, ademais, como vimos no capítulo
anterior, também a incapacidade do juízo de apreender uma verdade
inteiramente digna desse nome, que passasse incólume de mão em
mão, pode ser vista como resultante da ação de uma faculdade diversa
de uma simples capacidade de compreender as coisas. Assim, o efeito
da crítica cética parece ser o de revelar que, o mais das vezes, nos situa-
mos no terreno da fantasia e da imaginação, ao pretender superá-lo por
meio da obtenção de uma verdade filosófica.
Contudo, o texto de Montaigne nos conduz igualmente a uma
certa perplexidade se consideramos algumas passagens que relacio-
nam a fantasia ao juízo. Em certas passagens ele se refere ambigua-
mente ao juízo ou à fantasia para designar os produtos de nossa facul-
dade de conhecer (como sinônimos de “opinião”)3. Ainda mais, o
próprio termo “fantasia” surge designando, de modo ambivalente, o

sutil e agradável e poderem (ao menos em certa medida) resistir às objeções. O contexto
dessa passagem mostra que essas expressões — imaginário, fantástico e falso — tendem
a ganhar um sentido intercambiável. Trata-se, aliás, de um procedimento estilístico
recorrente nos Ensaios: a repetição de termos de sentido muito próximo ou análogo
buscando a ênfase (para um exemplo ao acaso, v. 522C; cf. AULOTTE, 1979, p. 129).
Para uma identificação similar entre “dogmas” (no sentido filosófico) e “fantasias”, ver
II, 10, 416.
2. Examinamos essa passagem no capítulo III, item 3.1 — “Um traiçoeiro mestre” —
mostrando como, embora a razão possa se identificar à diversidade das fantasias produ-
zidas pela imaginação humana ao sustentar essa diversidade de comportamentos, é o
costume que intercede forjando uma aparência de verdade naqueles que efetivamente
aceitamos, cabendo à reflexão cética relativizar esse aporte dogmático.
3. Ver, entre outros exemplos, que podem ser facilmente recolhidos em todos os
períodos de composição dos Ensaios: I, 21, 104A; I, 22, 107; I, 23, 121A; I, 26, 147; I,
28, 184A; I, 42, 265A; II, 10, 416A; III, 8, 923B; III, 12, 1049.

404

10888_A figura do filosofo.p65 404 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

próprio juízo, isto é, a faculdade mesma da qual se trata de “ensaiar”


filosoficamente:
[A] Quanto às faculdades naturais que se acham em mim, das quais
está aqui o exame [l’essay], sinto-as dobrar sob a carga. Minhas con-
cepções e meu juízo não avançam senão tateando, vacilando, trope-
çando, esfolando-se; e quando eu cheguei o mais longe que eu pude
ir, não me encontro de modo algum satisfeito: vejo ainda um territó-
rio além, mas com uma vista turva e embaçada, que não posso bem
discernir. E empreendendo falar indiferentemente de tudo o que se
apresenta à minha fantasia, e não empregando aí senão meus meios
próprios e naturais, ocorre freqüentemente de eu encontrar por aca-
so, nos bons autores, esses mesmos lugares que eu empreendi de
tratar, como acabo de fazer com Plutarco, agora mesmo, [em] seu
discurso sobre a força da imaginação… (I, 26, 146; itálicos nossos).
Se “fantasia” parece designar aqui sobretudo a produção das opi-
niões, Montaigne não busca, porém, opô-la ao juízo, como se a este
coubesse apenas uma tarefa crítica. O juízo surge aqui igualmente como
sinônimo de “concepções”. Ademais, Montaigne se refere explicita-
mente, no plural, ao ensaio das “faculdades naturais” que nele se en-
contram. E, com efeito, se sua obra é tal ensaio, muito freqüentemente
ele mesmo qualifica suas produções como “songes”, “imaginations”,
“fantasies” ou “resveries”. Em particular, lembremo-nos de que ele sin-
gulariza sua atividade dubitativa, relativamente ao ceticismo antigo, a
ela se referindo como um “niaiser et fantastiquer”4.
Como reagir a essa ambigüidade? Como compreender aquilo que
particulariza a atividade cética, por oposição à filosofia dogmática, por
esse novo prisma conceitual? A análise realizada no capítulo anterior
fornece elementos para explorarmos esse ponto. Como vimos, a preca-
riedade natural do juízo humano faz com que Montaigne compreenda
seu ceticismo como uma atividade crítica capaz de ser levada a efeito
sempre de modo relativo, nunca exaustivo e definitivo. A metáfora que
destacamos para representar o movimento crítico de sua reflexão é tam-
bém aqui relevante: o homem se põe no encalço da verdade, mas perse-

4. V. II, 3, 350, passagem examinada no item 1.3 — “Um novo cético?”.

405

10888_A figura do filosofo.p65 405 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

gue uma miragem inalcançável, posto que os produtos obtidos podem


sempre ser objeto de uma crítica mais profunda, capaz de revelar seu
aspecto fantasioso. Talvez pudéssemos mesmo afirmar que aquilo que
é caracterizado como ação do juízo não o pode ser de modo absoluto,
mas apenas segundo um ângulo relativo, ao longo de um movimento
crítico, podendo dar lugar a outra avaliação que, observando a mesma
ação pelo prisma da distância da verdade, a descreva como um resulta-
do da fantasia. Se julgamos por um poder diverso do poder natural de
julgar presente em todos os homens, determinando individualmente o
que os objetos são (cf. 562A), a fantasia talvez seja um elemento natu-
ralmente presente na própria ação do juízo, pois a mesma ação capaz
de denunciar o caráter fantasioso do que é aceito irrefletidamente traz
em si, na medida em que reflete alguma imagem da verdade (pela qual
se pretende suplantar determinada fantasia), o mesmo germe fantasio-
so que denuncia. Mas não se trata aqui apenas de traduzir em termos
outros a mesma crítica já examinada: os elementos considerados no
capítulo anterior reaparecem aqui, como veremos, por um novo viés,
com base no estatuto e no sentido próprios a essa temática. O termo
“fantasia” também surge, nos Ensaios, como sinônimo de concepção
ou de imaginação (conotando igualmente a natureza fortuita e capri-
chosa de nossa faculdade de imaginar)5. Trata-se de uma faculdade
própria, de uma das “peças da alma” que, por mais que ambiguamente
se mescle com as demais, é possuidora de particularidade e de vida
própria, por assim dizer, nos Ensaios. E sua observação pode alargar a
compreensão dessa prática intelectual cética, oferecendo-nos, de saída,
um fio condutor privilegiado para situarmos de forma mais precisa as
motivações filosóficas de Montaigne e a própria discussão acerca do
ceticismo no contexto mais amplo de seu percurso intelectual.

5. Sobre seu emprego numa acepção semelhante ao que hoje denominamos “ima-
ginação”, ver, por exemplo, II, 29, 711B, bem como, de modo geral, o capítulo 21 do
livro I, “Da força da imaginação”. Em II, 37, 761, em que “fantasie” designa figurada-
mente os interesses próprios do corpo, por contraposição à alma, ela surge como sinô-
nimo de “capricho”. Sobre como a fantasia designa o caráter imprevisível e caprichoso
pelo qual a alma humana formula aleatoriamente concepções e imagens, ou mesmo
interfere sobre as sensações, ver MACFARLANE, 1968, p. 119.

406

10888_A figura do filosofo.p65 406 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

7.1. Quimeras e monstros fantásticos


Retomemos aqui suas primeiras considerações atinentes ao tema
da imaginação, inicialmente redigidas, segundo Villey, por volta de
1572 (antecedendo, portanto, em cerca de quatro anos o contato com
Sexto e a redação da “Apologia”). Nessa época, Montaigne lê as Epis-
tolae Morales ad Lucilium, de Sêneca, e redige partes, ao menos, de
“Da força da imaginação” (I, 21)6. Da mesma época é também o capí-
tulo “Da ociosidade” (I, 8), importante testemunho das motivações
iniciais de Montaigne para o exercício da filosofia7. Conta ele, nesse
capítulo, como buscou evitar que seu espírito permanecesse à deriva
no “vago campo da imaginação”, à falta de algo que o contivesse. Re-
tirando-se para fruir, no repouso e na solidão, o tempo de vida que lhe
restava, ele acabou por constatar que essa forma de ociosidade não lhe
propiciara uma via adequada para que seu espírito obtivesse tal fim:
… ao contrário, como um cavalo em fuga, ele se dá cem vezes mais de
trabalhos a si mesmo que os que assumiria para outrem e engendra
tantas quimeras e monstros fantásticos, uns sobre os outros, sem ordem
e sem propósito, que, para contemplar à vontade [sua] inépcia e [sua]
estranheza, eu comecei a registrá-los [mettre en rolle], esperando com
o tempo fazer-lhes vergonha a eles mesmos (I, 8, 33A; itálicos nossos).
Quanto às motivações pessoais originais que determinaram, em sua
origem, o engajamento filosófico de Montaigne, essa passagem nos
informa, primeiramente, que a razão primeira da redação dos Ensaios
decorre da busca de controlar a imaginação8. Isso se faz desejável por-

6. Cf. nota introdutória de VILLEY, Les Essais, p. 97. Ver também as notas introdutórias
dos capítulos I, 2 (p. 11); I, 14 (p. 50); I, 19 (p. 78); I, 20 (p. 81).
7. Lembremos que o prefácio auto-retratista, no qual Montaigne afirma ser ele mesmo
a matéria de seu livro, foi redigido tardiamente, em março de 1580. Cf. Les Essais, Au
Lecteur, p. 3; ver a nota de Pierre Villey.
8. Segundo Villey, essa declaração de motivações não deve ser levada a sério: produ-
to de uma visão retrospectiva, ela atenderia à necessidade de se desculpar diante das
damas pela condição de escritor por ele assumida, pouco condizente com sua nobreza
(VILLEY, 1992, p. 29). De nossa parte, não vemos, nesse caso particular, que relação
mais precisa poderia haver entre esses pontos, nem por que isso seria uma razão para
esvaziar o conteúdo do que é dito. A eventualidade de estarmos diante de uma explica-
ção retrospectiva, ademais, não nos parece particularmente significativa se levamos em

407

10888_A figura do filosofo.p65 407 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

que, segundo a mesma explicação, seu descontrole, produzido na soli-


dão e na ociosidade, é fonte de perturbação. O trabalho pelo qual Mon-
taigne se põe a registrar os “monstros fantásticos” (em sua obra) reflete,
nalguma medida, uma certa expectativa terapêutica (considerando-se
aqui esse termo numa acepção próxima daquela em que as filosofias
helenísticas pretenderam, por meio de suas prescrições relativas à sabe-
doria, promover a tranqüilidade da alma — como veremos com mais
detalhe a seguir). O inventário de tais “monstros” que viria a ser os
Ensaios tem seu valor inicialmente lastreado no modo como ele exibe
a desordem da alma e na possibilidade de que o contato com seu as-
pecto perturbador tenha algum efeito benéfico: revistos de outras pers-
pectivas, tais monstros poderiam conduzi-lo a “envergonhar-se de si
mesmo”. Pode-se dizer que esse relato se articula com a perspectiva de
ele observar a si próprio de modo distanciado, de um modo tal que
auxiliaria a alma a recobrar o controle sobre sua prole monstruosa.
Outra descrição do mesmo propósito inaugural da obra esclarece
que recobrar esse controle é igualmente recobrar a harmonia desfeita
pelo “humor melancólico” que dele se apoderou, pela tristeza decor-
rente de sua longa solidão. Assim ele expõe a Mme. d’Estissac a pertur-
bação originária dos Ensaios:
[A] É um humor melancólico, e um humor, por conseguinte, bem
inimigo de minha compleição natural, produzido pela tristeza da soli-
dão na qual há alguns anos me vejo lançado, que me pôs primeira-
mente na cabeça esse devaneio de me meter a escrever… (II, 8, 385).
Essa passagem, por sua vez, nos convida a remeter essa causa ori-
ginária a uma instância ainda anterior ao momento em que Montaigne
se pôs a registrar suas quimeras. Se há “alguns anos” ele se vê lançado
na tristeza da solidão, não cabe ver aqui, em consonância com a inter-
pretação clássica, uma alusão à morte do amigo La Boétie, a quem
dedica Montaigne seu ensaio sobre a amizade9? Importa, contudo, evo-

conta que o projeto filosófico do qual ela é parte, como veremos, antecede em muito a
própria época designada pela redação desse texto.
9. Certas passagens desse capítulo convidam a considerar os Ensaios, de modo geral,
como uma maneira de preservar alguma forma de comunicação com a memória do

408

10888_A figura do filosofo.p65 408 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

car esse dado pelo modo como completa o quadro dessa primeira con-
cepção de “ensaio filosófico”, voltada ao controle da imaginação e ao
projeto de recuperar um acordo com a sua natureza (não-melancóli-
ca), em conformidade com as preconizações estóicas de Sêneca10.
De fato, é todo um projeto filosófico que passa a ser concebido
anteriormente à redação dos Ensaios, no âmbito dos interesses que ele
compartilha com La Boétie pela filosofia estóica. Ele se deixa clara-
mente entrever nas considerações de Montaigne sobre a firmeza da
atitude de seu amigo ao enfrentar a agonia da morte, como revela uma
eloqüente carta escrita, na ocasião (agosto de 1563), a seu pai. Assim
narra ele esta confissão que dirigiu ao amigo, em resposta aos discursos
testamentários que ele ainda proferia em meio a sua agonia, à véspera
de sua morte:
… eu lhe disse que havia ruborizado de vergonha por ter deixado de
ouvir o que ele, que estava tomado pelo mal, tinha tido a coragem de
me dizer; que até então eu pensara que Deus não nos houvera dado
tão grande poder sobre os acidentes humanos e acreditava com difi-
culdade naquilo que lia nos historiadores, mas que, tendo tido disso
uma tal prova, eu louvaria a Deus pelo fato de que isso tenha se dado
com uma pessoa por quem eu fui tão estimado e que me era tão cara,
e que isso me serviria de exemplo quando fosse a minha vez de de-
sempenhar o mesmo papel… Ele me interrompeu, para me pedir a
assim proceder, e mostrar, pelas ações [par effet], que os discursos
que nós houvéramos mantido juntos durante a nossa saúde, nós não
os portássemos apenas na boca, mas gravados bem antes no coração
e na alma, para pô-los em execução nas primeiras ocasiões que se
oferecessem, e a isso acrescentando que era a verdadeira prática de
nossos estudos e da filosofia… (Lettres, p. 38).
Os primeiros ensaios filosóficos, redigidos por Montaigne a partir
de 1572, foram construídos, basicamente, com base em citações estóicas,

amigo perdido, sempre presente à imaginação de Montaigne: “[A] Não há ação ou


imaginação onde eu não reconheça sua falta [où je ne le trouve à dire]…” (I, 28, 193-194;
itálicos nossos). Consideraremos adiante outro aspecto da relação entre o modo como
Montaigne se defronta com sua fantasie e o exemplo de la Boétie.
10. Ver capítulo V, item 5.2 — “O ensaio como investigação cética”.

409

10888_A figura do filosofo.p65 409 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

provenientes sobretudo de Sêneca, articuladas em torno dos temas da


reflexão filosófica desse autor (como igualmente admitem os comenta-
dores, a despeito das divergências interpretativas de seu significado fi-
losófico)11. Destaca-se especialmente entre esses temas a reflexão sobre
a morte (como mostra o título do ensaio que mais claramente exprime
o sentido do mesmo projeto: “Que filosofar é aprender a morrer”)12.
Esses ensaios balizam, portanto, uma busca da tranqüilidade, que se
almeja auferir do reencontro com a natureza — mais exatamente, da
reconstituição de uma “compleição natural”. Cumpre ao autor, para
tanto, purgar um “humor” melancólico, oriundo da solidão e manifes-
to na tristeza que o impede de levar a bom termo seu projeto de fazer
face, de modo eficiente, à iminência da morte e bem gozar do tempo
que lhe resta.
As afinidades entre esse projeto e a filosofia estóica demandam,
contudo, um exame mais minucioso, pois parecem estar presentes
mesmo em passagens nas quais não são normalmente reconhecidas.
No capítulo “Da ociosidade”, por exemplo, eis a razão que Montaigne
atribui à geração dos monstros que pretenderia conter: “[A] A alma que
não tem fim estabelecido se perde: pois, como se diz, estar em todos os
lugares é não estar em nenhum…” (I, 8, 32). Esse é talvez o primeiro
embrião de uma idéia a que nos referimos no capítulo anterior e que
ganhará, posteriormente, maior importância nos Ensaios: a de que a
ação pode, por si mesma, suplantar os impasses reflexivos que a alma
cria para si mesma. Aqui, mais precisamente, trata-se de alegar que, na
falta de objetos definidos de ação, a alma se perde. Assim, suas paixões

11. Para a interpretação clássica sobre o período estóico, ver STROWSKI, 1931, p. 93
ss. A interpretação é retomada por VILLEY, 1933, t. II, p. 52 ss., passim, que se refere a
tais ensaios, para designar seu esquema de composição, como mosaicos de sententiae.
Para uma leitura divergente do significado filosófico desses ensaios, ver FRIEDRICH,
1968, p. 71-78 (cujos argumentos, apoiados sobretudo em aspectos formais e filosofica-
mente discutíveis, parecem-nos todavia insuficientes para negar a existência de tal pe-
ríodo estóico).
12. Ainda que Montaigne não faça nenhuma alusão nominal a Sêneca (como não
o fará igualmente a Sexto), o título mesmo desse capítulo I, 20 (e o mesmo valeria para
I, 19: “Que não cabe julgar de nossa felicidade senão depois da morte”), se inspira
diretamente em passagens das Epistolae ad Lucilium (cf., I, xxvi, xxxvii).

410

10888_A figura do filosofo.p65 410 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

a movem a se iludir e criá-los por si mesma, de modo desordenado e


muitas vezes inconveniente — “dispondo um objeto [subject] falso e
fantástico, e mesmo contra a sua própria crença” (I, 4, 22). Sêneca, de
sua parte, afirma que é necessário fixar por meio da razão o objeto
adequado a ser visado pela ação dos homens, posto que o caráter ilimi-
tado dos desejos, paixões e opiniões é uma marca da inconstância
humana, que conduz à escravização. Assim responde ele a Lucílio:
“O que é a sabedoria? desejar as mesmas coisas e recusar as mesmas
coisas.” Não preciso acrescentar ainda esta fórmula: deve-se desejar
o bom [rectum], pois ninguém pode permanecer satisfeito com o
mesmo sem desejá-lo. Por isso, os homens não sabem o que desejam,
a menos no momento em que desejam; ninguém jamais decidiu de
uma vez por todas o que desejar e o que recusar. O juízo varia coti-
dianamente, muda-se em seu oposto, fazendo muitos homens passa-
rem sua vida como num jogo [per lusum]. Persista, então, uma vez
que começaste; talvez sejas levado a alguma espécie de perfeição…
(Epist., I, xx, 5-6)13.
Tais instâncias tirânicas serão várias vezes caracterizadas como aquilo
que é desprovido de limites e, nessa medida, se opõe aos desejos natu-
rais, por si mesmos limitados14. É possível que o sentido preciso em que
Sêneca diz que um “desejo” é ilimitado possua alguma diferença da-
quele em que Montaigne se refere à ilimitação de suas fantasias. Sêne-
ca não se atém particularmente ao tema da “imaginação” como causa
de perturbação15. De todo modo, é certo que provém da leitura de suas

13. Sobre o risco de que a alma perca sua autonomia racional diante do poder das
paixões e opiniões, ver também III, cxvi. O tema estóico do controle da vontade ressoa
igualmente em ensaios de Montaigne compostos na mesma época: “[A] Nós não pode-
mos nos manter para além de nossas forças e de nossos meios. Por essa causa, porque
os efeitos e execuções não estão de modo algum em nosso poder, e não há nada que
esteja sabidamente sob o nosso poder do que a vontade: nela se fundam necessariamen-
te e se estabelecem as regras do dever do homem…” (I, 7, 30). Para uma exposição
geral do estoicismo (e particularmente da teoria das paixões) ver especilamente BRÉHIER,
1978, vol. III.
14. Ver Epist., I, xvi, 9; I, xxxix, 5-6.
15. Não encontramos o emprego do termo phantasía nas Epistolae. A única passa-
gem, salvo engano, em que Sêneca se refere estritamente ao caráter imaginativo ou

411

10888_A figura do filosofo.p65 411 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Epístolas a problematização da perda de limites da alma tal como ela


se formula, a essa altura, nos Ensaios — como uma perda das rédeas de
suas motivações por parte da alma, de modo tal que ela se deixa escra-
vizar por instâncias sobre as quais a razão não tem controle, como é
particularmente o caso, para Montaigne, da imaginação.
Segundo Sêneca, cabe à “filosofia” ou “sabedoria” (estóica, funda-
mentalmente) remediar essa perda de limites, por meio da subordina-
ção dos desejos e das vontades à constância da alma16, e um tema que
retorna constantemente nas Epístolas (e igualmente nos Ensaios) é o
da necessidade de que o filosofar, em vista desse fim, se dê não apenas
nas palavras, mas também através das ações:
… deixa, Lucílio, a filosofia navegar em tua alma e teste o teu pro-
gresso, não apenas através de teu discurso, mas pela firmeza de tua
alma e pela diminuição de teus desejos… [A filosofia] ensina que os
homens devem viver segundo suas leis, que a sua vida não deve estar
em desarmonia com as palavras, que a sua vida interior [intra vita]
não deve estar em dissensão com todas as suas atividades. Este é o
dever mais alto e a mais alta prova de sabedoria: as ações e as palavras
devem estar em acordo, o homem deve ser igual a si mesmo sob
todas as condições, deve ser sempre o mesmo… (Epist., I, xx, 1-2)17.

ficcional de certos sofrimentos é Epist., I, xiii, 5, em que o filósofo condena o hábito de


exagerar, antecipar e imaginar as dores. Tal passagem oferece contudo um mote repe-
tidamente retomado — o de que nossas perturbações são causadas por nossa alma — e
que ressurge, nessa mesma página, em outra versão que inspira considerações contem-
porâneas de Montaigne: “Há mais, Lucílio, coisas que nos assustam que nos atingem;
sofremos mais na opinião [opinione] que na realidade”.
16. Cf. nota anterior. Como vimos no capítulo V (5.3 — “O filósofo e as abelhas”),
Sêneca busca se afastar de uma postura de adesão incondicional ao estoicismo, reser-
vando-se o direito de assentir apenas àquilo com que seu próprio entendimento mostrar-
lhe aceitável, além de concluir, invariavelmente, cada epístola com um comentário
elogioso acerca de alguma máxima de Epicuro. Não obstante, ele se apresenta expres-
samente como um filósofo estóico (em I, xiii, 4).
17. Ver também Epist., I, xvi, 3. O mesmo tema da conformidade entre as palavras
e as ações como meta da filosofia é recorrente em Montaigne, como atesta a citação da
carta em que ele narra ao pai o exemplo da morte de La Boétie, e permanece presente
(ainda que filosoficamente revisto) mesmo em textos posteriores ao período senecano.
Sobre a presença do ideal estóico da constância nos Ensaios mais antigos, ver, precisa-

412

10888_A figura do filosofo.p65 412 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

Isso só se faria possível, porém, pelo modo como a filosofia guia


nossa alma, banindo as incertezas, posto que a intranqüilidade é fruto
das opiniões incertas18. O mesmo ideal filosófico igualmente se formu-
la, também para Sêneca, na forma de uma conformação à natureza
(em contraponto à obediência às paixões desnaturadas), compreendida
como obediência à reta razão (em lugar da aceitação irrefletida de
opiniões incertas)19. Eis, em linhas gerais, o esquema conceitual pelo
qual o estoicismo de Sêneca pensa o enfrentamento das perturbações,
no qual é patente o otimismo racionalista: é preciso desmascarar, me-
diante a reflexão racional, as falsas impressões e opiniões incertas que
são a causa dessas perturbações, ao aprisionar a vontade humana. Tais
opiniões só se sustentam no desconhecimento da verdadeira natureza
das coisas. À reflexão filosófica cabe reconduzir o homem, pelo conhe-
cimento racional, a uma harmonização com a natureza no âmbito de
diversos temas em que a posse de opiniões incertas pode ser nociva —
o engajamento na sociedade, a solidão, a posse dos bens materiais, a
doença e, especialmente, a morte.
São múltiplas as passagens redigidas por Montaigne no mesmo
período (1572-1575), segundo a cronologia de Villey, em que podemos
redescobrir o mesmo esquema filosófico. Por exemplo, ele escreve:
[A] Ei-nos portanto já soterrados e enterrados. As crianças têm medo
mesmo dos seus amigos quando os vêem mascarados, também nós o
temos. É preciso arrancar a máscara, tanto das coisas quanto das pes-
soas. Uma vez arrancada, nós não encontraremos por debaixo mais
do que essa mesma morte que um cavaleiro ou uma simples cama-
reira enfrentaram ao fim sem medo… (I, 20, 96).

mente, “Da constância” (I, 12, esp. 45A), em que a mesma idéia é apresentada como
meio de fazer face à surpresa dos males e inconvenientes. Cf., a esse respeito, Epist.,
I, xvi, III, cvii, em que Sêneca igualmente trata da “paciência” e submissão ao destino
estóica.
18. Ver Epist., I, xvi, 3.
19. Sobre a razão como qualidade essencial que define a superioridade do homem,
na medida em que conduz à vida conforme à natureza, cf. Epist., I, xli. Ainda sobre a
ideal de conformação à natureza: I, v, 4; xvi, 8 (“As exigências da natureza são exíguas,
as da opinião, ilimitadas…”). Ver também I, xxxvii.

413

10888_A figura do filosofo.p65 413 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Retomando aqui quase literalmente um diagnóstico apresentado


por Sêneca nas Epístolas20, Montaigne identifica como causa de per-
turbação, na morte, o modo como a cercamos de “aspectos e ritos as-
sustadores… que nos fazem mais medo do que ela”. Seguindo a
preconização do autor estóico, ele adota como ideal filosófico a postu-
ra de pensar continuamente nela, diversamente do que faz o vulgo:
não, certamente, para se deixar possuir por imaginações mórbidas, mas
para melhor enfrentá-las, dissipando os fantasmas por meio da razão, e
finalmente recobrar a verdadeira imagem natural das coisas:
[A] aprendamos a enfrentá-lo [o inimigo: a morte] com pés firmes, e
a combatê-lo. E para começar a neutralizar sua maior vantagem,
tomemos um caminho inteiramente oposto ao comum. Tiremo-lhe
a estranheza, pratiquemo-la, acostumemo-nos a ela. Retomemo-la, a
todo instante, na nossa imaginação, e sob todas as faces… É incerto
o lugar onde a morte nos espera, esperemo-la em toda parte. A pre-
meditação da morte é premeditação da liberdade. Quem aprendeu
a morrer, desaprendeu a servir… (I, 20, 86-87)21.
Não basta aqui reconhecer que Montaigne se vale de múltiplos
argumentos de proveniência senecana para mostrar a insensatez de nosso
temor da morte. É preciso admitir, mais do que isso, que o sentido com
que são retomados autoriza uma aproximação filosófica mais estreita: o
emprego de tais argumentos se apresenta como a efetivação do traba-
lho da razão, levado a cabo por Montaigne, contra o temor irracional22.
Eles instauram, de uma só vez para o leitor em geral e para o próprio
Montaigne, a mesma diretriz senecana que ainda ecoará em passagens
tardias: “Nunca um homem se preparou para deixar o mundo mais

20. Cf. Epist., I, xxiv; nessa epístola, entre muitas outras (cf. nota seguinte), Sêneca
tematiza a necessidade de enfrentar racionalmente o medo da morte.
21. Cf. Epist., I, xxx, 18: “Pense sempre na morte para poder nunca temê-la”; ver
também iv, xvii, xxiv, xxvi, xxxvi; sobre a recusa da forma pela qual o vulgo enfrenta o
problema, ver I, 20, 84-85; Sêneca tematiza a necessidade de afastar-se das opiniões do
vulgo, por exemplo, em Epist., I, xxv, xxxi.
22. Montaigne o afirma explicitamente, por exemplo, em I, 20, 91-92, 95A (cf. Epist.,
I, xxx, xix). Há um conjunto mais amplo de textos no mesmo sentido mapeados por
VILLEY em Les Essais, p. 1232.

414

10888_A figura do filosofo.p65 414 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

pura e plenamente, e nem se desprendeu mais universalmente do que


eu me atenho a fazer…” (I, 20, 89).
Contudo, cabe assinalar que tal terapia estóica não deixa de exibir
um viés próprio ao ser retomada por Montaigne. Pensar constantemen-
te na morte é uma prática que ele adota, a essa altura, para enfrentar
as imagens assustadoras com que ela se apodera da imaginação. A mesma
terapêutica parece ser tematizada no capítulo “Da solidão”, que reto-
ma a necessidade de fixar a deriva da imaginação, por meio desta fór-
mula lapidar (na qual transparece, igualmente, a temática estóica da
autonomia do sábio): “Nós temos uma alma contornável [contournable]
em si mesma. Ela pode se fazer companhia e tem meios de atacar e de
defender, de receber e de dar: não temamos nessa solidão estagnarmos
numa ociosidade tediosa…” (I, 39, 241). Em seu contexto, essa ima-
gem alude à necessidade de que a alma disponha de um certo espaço
recolhido, uma sala nos fundos (“arrière boutique”) onde ela possa se
entreter, numa solidão pacífica, consigo mesma, e obter sua “verdadei-
ra liberdade”, a salvo dos monstros fantásticos que a fazem partir num
movimento desgovernado, como um cavalo em disparada. Mas o ter-
mo “contourner” possui uma especial riqueza semântica — pela qual
pode significar igualmente “voltar-se sobre si mesmo” (como sugere o
contexto), “tornear” ou “transformar”23. Diríamos que o próprio con-
texto parece fazer com que esses sentidos diversos se encontrem aqui
sobrepostos: a alma “contornável”, em si mesma ou por si mesma, ao
menos a essa altura de suas reflexões, seria não apenas aquela que se
pode limitar — entreter-se consigo, libertando-se das amarras que a
fazem depender das opiniões alheias —, mas também aquela que, por
essa razão, pode também se transformar por meio de um trabalho pau-
latino sobre si mesma, destinado a dizimar racionalmente suas fontes
passionais de tormento. Com isso, não se trata de propor que o tema

23. Contourner provém do latim tornare, literalmente “trabalhar com o torno”, “ar-
redondar” (cf. DUBOIS, 1994, p. 416). GREIMAS e KEANE (1979) usam o exemplo de
Montaigne para traduzir o termo, nessa ocorrência, por “contornável”, “recurvável”,
“dobrável” (p. 142), mas oferecem outras possibilidades, entre elas “transformar” (p.
141). Sobre como as expressões francesas de Montaigne conservam significações lati-
nas, ver SCREECH, 1989.

415

10888_A figura do filosofo.p65 415 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

seja inteiramente novo: Sêneca retoma sempre, em suas exortações a


Lucílio, o tema da dificuldade e da lentidão do processo de engajamento
nas verdadeiras diretrizes da razão, capazes de modificar a existência24.
Igualmente, ele retoma diversas vezes a tese de que a alma é a principal
fonte de seus infortúnios, bem como de sua felicidade25. A afirmação
de Montaigne sobre a capacidade da alma de “se contornar” significa,
portanto, a possibilidade de auferir uma existência tranqüila no ócio e
em sua solidão consigo mesma, atinando o que aí haja de proveitoso,
desengajando-se das verdadeiras fontes de perturbação, mais ameaça-
doras do que as que podem enredá-la na vita activa (como diz ele,
seguindo mais uma vez os passos de Sêneca)26. Alcançar isso equivale,
metaforicamente, a propiciar à alma que assuma, pelo emprego da ra-
zão, as rédeas de si mesma; sem isso, como vimos, ela se desgoverna,
arrastada pelas próprias fantasias. Assim Montaigne traduz o diagnósti-
co estóico, valendo-se explicitamente dessa noção: “Nós carregamos
nossos ferros conosco: não é uma inteira liberdade, voltamos ainda a
vista ao que nós deixamos, temos ainda a fantasia repleta…”27.
A nota particular da reflexão de Montaigne parece-nos soar clara-
mente neste ponto: a “imaginação” surge para ele não apenas como

24.Ver, por exemplo, Epist., I, iv, v, xvi, xxiii, xxvii; sobre a concepção estóica de
sabedoria como aperfeiçoamento da mente, ver III, cxvii, 16 ss.
25. Ver I, xxx, 17; I, lxiii; I, xvii, 12; I, xviii, 15. Por oposição às perturbações que a
alma causa a si mesma, ela é também a verdadeira fonte de sua felicidade: Epist., I, lv,
7. Ver também, de modo geral, I, xxiii, esp. 6.
26. Nas Epístolas, a tematização da “solidão” pode ser igualmente considerada se-
gundo uma dupla perspectiva. De uma parte, ela pode representar um inconveniente
— por exemplo, em face da necessidade natural do homem de estabelecer amizades (I,
ix), ou no sentido em que o insensato pode ser uma companhia inconveniente para si
mesmo, embora o contato com o vulgo seja nocivo para a busca da sabedoria (I, xxv),
ou ainda na crítica à inutilidade das viagens (I, xxviii). De outra, ela designa o sentido
da autonomia do sábio estóico, que busca retirar sua alma da massa comum (v. I, xii:
sobre as eventuais vantagens da velhice para a prática da filosofia; I, xiv, sobre o recolhi-
mento do sábio estóico; I, vii, sobre o distanciamento das opiniões do vulgo; I, x, xix, xv,
lvi, xxxi, sobre a autonomia do sábio na obtenção de sua felicidade). Não apenas os
temas isolados são retomados em I, 39 (v. esp. I, 39, 238-242; I, 20, 91), mas uma
tematização análoga da solidão — isto é, segundo o sentido em que ela pode ser dese-
jável ou proveitosa — constitui o eixo central desse capítulo.
27. I, 39, 240; itálico nosso; cf. Epist., I, xviii.

416

10888_A figura do filosofo.p65 416 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

veículo das perturbações (como vimos, esse termo pode desde então
igualmente significar “opinião” ou “representação”), mas também como
instrumento da dizimação dos males que ela mesma gera. Montaigne
afirma se valer de um expediente similar àquele das pessoas que evitam
as crises de que costumam ser acometidas simplesmente por saber que
o remédio está à mão:
[A] Basta-me, sob o favor da fortuna, preparar-me ao seu desfavor, e
representar-me, estando à vontade comigo mesmo, o mal futuro, o
tanto que a imaginação pode alcançá-lo: do mesmo modo como nos
acostumamos às justas e aos torneios e contrafazemos a guerra em
plena paz… (I, 39, 243).
O tema da preparação contra os imprevistos do acaso provém do
estoicismo28, bem como o reconhecimento de que é à razão, funda-
mentalmente, que cabe essa tarefa (faculdade que Montaigne clara-
mente opõe à fantasia, nas passagens de inspiração estóica)29. Porém,
ele outorga-lhe, ao mesmo tempo, um papel terapêutico coadjuvante,
por assim dizer, e subordinado ao poder da razão. Mais exatamente,
Montaigne busca imaginar-se na posição do vulgo — isto é, de um
mendigo que bate à sua porta e enfrenta seu infortúnio exclusivamente
pela força do hábito — para meditar, em seguida, sobre a impossibili-
dade de que o poder da razão seja inferior ao do costume, e se conven-
cer, por fim, a não temer “o que um menor do que ele suporta com tal
paciência” (v. ibid., 243A). Eis aqui um bom exemplo de como Mon-
taigne emprega sua razão para fazer com que suas fantasias “se enver-
gonhem de si mesmas”: situar-se imaginariamente numa situação ir-
real converte-se num meio de meditar sobre os limites da “necessidade
natural” (ibid.) e se contrapor à perturbação causada pelo medo da
morte que sempre o rondou (v. I, 20, 87A).
Esse exercício que Montaigne desenvolve consigo mesmo indica
que ele reconhece a imaginação como instância portadora de um po-

28. Tematizado por Sêneca à exaustão, num sentido aparentemente análogo ao de


Montaigne: ver, por exemplo, Epist., I, iv, viii, xxiii, xvi, lviii; esp. liii: “Incredibilis phi-
losophiae vis est ad omnem fortuitam vim retundendam…”.
29. Ver I, 39, 240-242, 247-248A.

417

10888_A figura do filosofo.p65 417 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

der próprio e de certa autonomia, pela qual ela não apenas se subtrai
a um domínio imediato da razão, mas demanda uma estratégia própria
para ser domesticada, como sugeria já a metáfora do cavalo em dispa-
rada. Tudo se passa como se ela possuísse um modo de ser peculiar,
que precisasse ser levado em conta para que as diretrizes racionais
estóicas pudessem ser implementadas de modo proveitoso contra o seu
desregramento30. Ocasionalmente, trata-se de abrandar as rédeas da ima-
ginação e deixá-la seguir seu curso, mas ela deve, todavia, permanecer
escoltada por um elemento dela diverso, que a dirija e sirva de referên-
cia, que permita à alma voltar-se sobre si mesma e caminhar no sentido
de sua própria transformação.
Mas como tal operação terapêutica é levada a cabo? Se o ensaio é,
como diz Montaigne, o registro dos “monstros fantásticos”, seu núcleo
filosófico se constitui do mosaico de sententiae da sabedoria estóica por
ele compiladas. A própria atividade de constante releitura, que se torna
constitutiva da obra, indica que o texto dos ensaios se constituiu origi-
nalmente, ao menos em parte, como uma espécie de breviário filosó-
fico: nele se oferecem lado a lado as máximas estóicas (sobre as quais
ele medita, antes de inscrever, nas vigas de sua biblioteca, os lemas
céticos que tomarão seu lugar) e os registros de sua imaginação ante o
que a perturba (o medo da morte, do poder da imaginação e das pai-
xões, do acaso com que os eventos se tornam imponderáveis, especial-
mente nos tempos de guerra em que tal experiência se situa). Em certa
medida, pode-se dizer que o ensaio é, por ora, o esforço de empreender
essa mediação. E, se apenas posteriormente o livro assume como fim
próprio o projeto de empreender um auto-retrato, cabe dizer que, no
texto desses ensaios estóicos, se projetam, a um só tempo, duas imagens
diversas: a do autor que se reconhece nas fantasias fora de controle, que

30. É possível que haja aqui vestígios de outras leituras da mesma época, como o De
Occulta Philosophia, de Agrippa (que, segundo Villey, é fonte de várias passagens de I, 21
e I, 23), especialmente no que se refere ao modo como este enfatiza o poder da imagina-
ção, a fim de aproximá-lo ao poder da razão. Ele o faz, contudo, no bojo de uma teoria
neoplatônica da alma tripartite — dividida em mens, ratio e eidolon — percorrida por
uma mesma luz proveniente de Deus, no processo de conhecimento, em direção aos
corpos, que Montaigne deixa inteiramente à parte; op. cit., cap. xliii, p. 362-363.

418

10888_A figura do filosofo.p65 418 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

registra para delas “se envergonhar” (diante das quais poderá agir racio-
nalmente, buscando implantar em sua alma as diretrizes inexistentes),
e, no horizonte, a de seu alter ego, que frui a tranqüilidade da alma,
pintado em tintas estóicas pelas quais se poderia vislumbrar a conten-
ção da imaginação pela razão. Noutros termos, se a escrita dos ensaios,
por ora, é o registro pelo qual Montaigne dá rédeas livres à sua imagi-
nação, o retrato é aqui assumido como atividade de uma alma em busca
de transformação e superação desse regime provisório e, em certa me-
dida, pré-filosófico, no qual tal tarefa ganha sentido. Nesse regime vi-
gem a inconstância humana e o desregramento da imaginação, mas
isso demarca igualmente a distância em que o autor se reconhece rela-
tivamente ao império da razão (que, factível ou não como almejado, é
de todo modo projetado idealmente, como um ponto de fuga dessa
auto-observação). Como vimos, “ensaiar” é, em sua origem, empreen-
der um exercício, fazer uma lição, apenas tentar pôr em prática a filo-
sofia, sem saber ao certo se ela obterá sucesso: a perspectiva de Mon-
taigne diante do estoicismo é a de um “ensaio” nesse sentido, isto é,
uma tentativa de pôr em ação a filosofia. Com esse fim, ele retrata suas
fantasias, segundo sua manifestação particular e pessoal, para tentar
lhes conferir um ponto de convergência, que estanque seu curso des-
regrado e as enquadre, por assim dizer, numa moldura racional. No
capítulo “Da solidão” a expressão essayer é empregada, precisamente,
para designar sua tentativa de se situar, imaginariamente, diante dos
objetos de sua perturbação, para desenvolver a capacidade de enfrentá-
la: especialmente, por meio de uma ação do entendimento contra o
poder do costume: “[A] Eu vejo a que limites vai a necessidade natural;
e considerando o pobre mendigo à minha porta, freqüentemente mais
alegre e sadio do que eu, eu me ponho em seu lugar, e ensaio de calçar
minha alma pelo seu viés…” (I, 39, 243; itálico nosso)31.
Compreende-se também em que medida o ensaiar não poderia aqui
ainda constituir uma identidade filosófica estável: ele remonta ao fracas-

31. Ver também I, 19, 80A, numa alusão ainda mais óbvia ao estoicismo, em que
Montaigne afirma que o último dia da vida é aquele no qual se julgam todas as ações
e o fruto dos estudos, com o intuito de saber se estes se reduzem a palavras ou partem
do coração.

419

10888_A figura do filosofo.p65 419 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

so de um projeto filosófico estóico, relatado, como vimos, em I, 8: em


vez de propiciar a vida tranqüila, que corresponderia ao equilíbrio e à
constância do sábio estóico, seu retiro deliberado na solidão da bibliote-
ca, em parte herdada de La Boétie (possivelmente levando a cabo o
mesmo propósito narrado na carta de 1563), mergulhou-o nas perturba-
ções das quimeras e dos monstros fantásticos gerados por sua alma. Dessa
perspectiva, os capítulos estóicos podem nos conduzir a uma constata-
ção importante sobre a evolução filosófica dos Ensaios: embora a crítica
tenha se prendido a um debate sobre a “crise cética” de Montaigne,
parece-nos que esse termo, afinal, caberia melhor a essa primeira con-
cepção do ensaio. Se é preciso meditar estrategicamente sobre a força
da imaginação e, mais do que isso, registrar o curso desregrado das fan-
tasias para transformá-las, tal esforço visa eminentemente à abolição do
regime em que são produzidas e que é sua própria razão de ser. Trata-
se de tentar equiparar, nalguma medida, sua tentativa de se engajar numa
existência filosófica àquela posta em prática por La Boétie, nas palavras
como nas ações. Em comparação com os “ensaios” do amigo, ele obser-
va e descreve os seus (valendo-se dos mesmos adjetivos com que apre-
sentara suas perturbações em “Da ociosidade”) como meras fantasias,
“corpos monstruosos, montados de diversos membros, sem figura certa,
não tendo ordem nem proporção que não na casualidade” (I, 28, 183A);
em suma, ele os qualifica como “crotesques” — “pinturas fantasiosas
[fantasques], que não têm graça senão na variedade e estranheza” (ibid.)
— destinados a emoldurar a valiosa obra do amigo morto32.
Embora ainda estejamos distantes da concepção cética de ensaio
— que consistirá, ao contrário, a partir de 1576, numa postura filosófi-

32. O termo crotesque, segundo GREIMAS e KEANE, designa originariamente uma


“decoração mural italiana rica e fantasista, à imitação da Antiguidade” (1992, p. 166).
A introdução de “Da amizade”, na qual se encontra essa passagem, oferece uma das
primeiras alusões aos Ensaios por meio de uma metáfora pictórica. Sublinhemos, con-
tudo, que a metáfora escolhida não é a do auto-retrato, mas a dos “crotesques”, cujo
caráter “fantasque” se alia à ausência de uma natureza propriamente representativa.
Todavia, essa parece ser também uma das primeiras passagens em que Montaigne tam-
bém reconhece nessas fantasias algum valor positivo, relacionado à sua “variedade e
estranheza” — anunciando um aspecto da transformação que examinaremos a seguir.

420

10888_A figura do filosofo.p65 420 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

ca que, em suas linhas gerais, permanecerá estável33 —, emergem já


aqui alguns elementos que permanecerão ocupando um lugar central.
Dois, em particular, parecem-nos dignos de nota. O primeiro é relativo
ao modo como essa “crise estóica” move Montaigne a refletir sobre a
condição individual na qual se encontra, diretamente relacionada à
ação de sua imaginação, no que tange às conseqüências para a boa
consecução de sua terapia filosófica. A consciência de que ele se situa
de modo particular diante do problema — seja tal situação plenamen-
te transformável ou não — emerge claramente quando ele contrasta,
por exemplo, as práticas filosóficas das naturezas “firmes e fortes”, que
podem fazer de seu otium algo glorioso e exemplar (capazes de levar
adiante as prescrições estóicas a ponto de se desfazerem de suas rique-
zas e se infligirem a dor), à sua “compleição”, que o impede de alcan-
çar esse grau de virtude:
[A] Na verdade, em todas as coisas, se a natureza não empresta um
pouco, é difícil que a arte e a indústria avancem. Eu sou, quanto a
mim mesmo, não melancólico, mas sonhador [songecreux]. Não há
nada com que eu me tenha mais entretido que com as imaginações
da morte… (I, 20, 87)34.
Montaigne entende, portanto, ao menos a essa altura, que sua com-
pleição se singulariza por ser “imaginativa”. Em vez de ir à guerra, ele
cria para si “torneios imaginários” que lhe servem de arma contra a

33. Recusando-se a ver a adesão de Montaigne ao ceticismo como uma crise,


SCHIFFMANN (1984) a vê, igualmente, como a solução de uma crise intelectual que ele
próprio situa, contudo, um pouco diferentemente: tratar-se-ia, em linhas gerais, de su-
perar um conflito entre sua formação pedagógica segundo hábitos argumentativos cé-
ticos (in utramque partem) e os “lugares-comuns” da visão de mundo herdada da tradi-
ção escolástica.
34. Segundo GREIMAS e KEANE, “songecreux” é “pessoa que pensa profundamente”
ou “pessoa que alimenta seu espírito de sonhos e quimeras” (1992, p. 596). Não nos
parece desprezível a hipótese de que o uso montaigniano de “complexion” remonte à
teoria dos temperamentos, oriunda das correntes médicas afinadas ao estoicismo, segun-
do a qual a alma é entendida como uma combinação de humores corpóreos (cf. BRÉHIER,
1978, 38 ss.; SCREECH, 1992, p. 37-41). Porém, não nos parece, como a Screech, que
o modo como Montaigne se refere à sua índole imaginativa se resuma a um expediente
retórico, decorrente da auto-ironia (1992, p. 34).

421

10888_A figura do filosofo.p65 421 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

perturbação (v. 243A). Ao fazê-lo, ao mesmo tempo em que se mira nos


argumentos que garantem a superioridade da razão do sábio aos costu-
mes do vulgo, Montaigne se situa, comparativamente, numa posição
análoga à do vulgo, cujo procedimento costumeiro ele, todavia, recusa.
Mas ele também parece reconhecer que não se afasta inteiramente do
mesmo padrão, ao se valer dos subterfúgios que estão ao seu alcance
para rumar em direção à tranqüilidade almejada: as armas do costume
não diferem essencialmente das armas da imaginação. Essa mesma
consciência se traduz na busca de avaliar como sua “compleição” via-
biliza a aplicação dos preceitos estóicos relativos à vida filosófica solitá-
ria ao seu caso particular:
[A] Há compleições mais próprias a esses preceitos [C] do recolhi-
mento [A] do que outras. Aquelas que têm uma percepção branda e
frouxa [apprehension molle et lache], uma afecção e vontade delica-
da, e que não se submetem e se empregam com facilidade, tal como
eu sou por condição natural e por reflexão [discours], elas se dobrarão
melhor a esse conselho que as almas ativas e ocupadas, que tudo
abraçam e em tudo se engajam, que se apaixonam por todas as coi-
sas, que se oferecem e se apresentam, e se dão em todas as ocasiões
(I, 39, 242A; itálicos nossos).
Se também essa passagem antecipa aspectos do projeto do auto-
retrato — como se depreende das próprias declarações de Montaigne a
esse respeito35 —, cabe insistir que aqui não se trata ainda de reconhe-
cer, como um fim em si mesmo, a auto-observação e a manifestação do
juízo em sua singularidade própria. Por ora, ele se orienta pelas próprias
preconizações filosóficas do estoicismo, que explicitamente convidam a
um auto-exame. Ao mesmo tempo em que exorta Lucílio a persistir na
busca de uma vida filosófica, Sêneca não deixa de ponderar acerca dos

35. Em II, 8, 385, depois de afirmar que sua atividade de escrever é oriunda do
humor melancólico produzido pela tristeza, ele informa que se tomou como tema, achan-
do-se desprovido de outro. “[A] É … um desígnio pioneiro [farouche] e extravagante…”
(II, 8, 385). Há razão, nessa medida, em observar que já esses primeiros capítulos, com-
postos antes de 1574, não são inteiramente desprovidos de elementos “pessoais”, tal
como propõem GENZ (1962) e LA CHARITÉ (1971), o que permitiria recusar ou, pelo
menos, relativizar o diagnóstico de Villey sobre a natureza impessoal desses capítulos.

422

10888_A figura do filosofo.p65 422 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

limites do empreendimento de aderir racionalmente ao que dita à na-


tureza, diante dos entraves que se podem interpor a essa tarefa: sejam os
vícios, que se tornam de cura difícil ou impossível à medida que se
tornam hábitos, seja aquilo que aportamos como constituindo a nossa
natureza, na forma de uma limitação intrinsecamente pessoal, que a
sabedoria filosófica seria incapaz de superar36. Como saber quais são
esses limites? Como traduzir exatamente as prescrições morais estóicas
segundo a trama particular dessas circunstâncias desconhecidas?
Tu compreendes que é preciso se subtrair dessas ocupações más e
especiosas, mas desejas saber de que modo isso pode ser obtido. Há
certas coisas que só podem ser apontadas pelos que estão presentes.
O médico não pode prescrever por carta quais as ocasiões das refei-
ções e dos banhos, ele precisa medir o pulso… Podemos apenas for-
mular regras gerais e deixá-las por escrito, quanto ao que comumente
se faz ou deve ser feito… (Epist., I, xxii, 1-2).
Eis por que Sêneca exorta Lucílio ao auto-exame37: como a vida
filosófica depende do conhecimento dessas circunstâncias, a observa-
ção de si mesmo é um aspecto integrante da autonomia do sábio.
Na medida em que os ensaios são aqui “monstros fantásticos”, que
trazem a marca da distância em que se encontram de um objetivo filo-
sófico há muito perseguido e ainda inalcançado, eles convidam à con-
sideração do caminho a ser percorrido em busca desse fim. Essa preo-
cupação se traduz, como vimos, na interrogação sobre o sentido em que
sua natureza pessoal, à luz dos conselhos estóicos, exigiria uma redefi-
nição desse projeto para sua boa consecução. Mas, além disso, dela
também decorre uma focalização particular dos preceitos filosóficos es-
tóicos, posto que sua compreensão se dá, por ora, num regime assumi-
damente prévio ao pleno uso filosófico da razão. O controle da imagi-
nação é uma ação da razão, iluminada pela boa compreensão que ela

36. Ver Epist., I, xi, 1, 7 (“Tudo aquilo que nos é assinalado pelo nosso nascimento
e pela nossa têmpera corporal [temperatura corporalis] permanecerá conosco, a despei-
to de quanto tempo ou esforço a alma despender para se dominar a si mesma…”); ver
ainda as cartas xxv, xxix, xxxix.
37. Ver Epist., I, xvi, 2-3.

423

10888_A figura do filosofo.p65 423 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

produz, acerca tanto dos falsos motivos dessas perturbações como das
verdades que elucidam a possibilidade mesma de sua superação. Se
assim é, há ocasião de suspeitar que a compreensão atual dos preceitos
que orientam essa atividade não seja ainda plenamente satisfatória. Eis
por que, ao lado dos ensaios até aqui considerados, encontramos outros,
aparentemente contemporâneos (1572-1574), cuja temática é claramen-
te epistemológica. São, por exemplo, capítulos como estes, eloqüente-
mente denominados “Nossas afecções se deixam ir para além de nós
mesmos” (I, 3) ou “Como a alma descarrega suas paixões sobre objetos
falsos quando os verdadeiros lhe faltam” (I, 4). A despeito do tom solene
com que Montaigne assume as argumentações senecanas como fio
condutor de seus ensaios estóicos, é preciso levar em conta a hesitação
que ressoa em questões como estas que, a essa altura, ele discute: deve-
mos aceitar que a alma, em seu contato com as coisas, experimenta
apenas aquilo que ela própria projeta nelas? Em que medida será a
alma inteiramente capaz de agir sobre si mesma (em particular, sobre
sua fantasia) de um modo satisfatório em vista de suas perturbações?
[A] Os homens (diz uma antiga sentença grega) são atormentados
pelas opiniões que têm das coisas, não pelas próprias coisas. Haveria
uma grande conquista para o alívio de nossa miserável condição
humana se fosse possível estabelecer essa proposição como verdadei-
ra, sempre e plenamente. Pois, se os males não adentram em nós
senão por nosso juízo, parece que estaria em nosso poder desprezá-los
ou transformá-los [contourner] num bem. Se as coisas se oferecem à
nossa mercê, por que não as aproveitamos, ou não as acomodamos a
nosso favor? Se o que chamamos mal e tormento não é nem mal nem
tormento em si, mas é apenas a nossa fantasia que lhe dá essa quali-
dade, está em nós [o poder] de mudá-la… (I, 14, 50; itálicos nossos).
Reparemos como juízo e fantasia foram articulados nessa passa-
gem, que introduz o capítulo “Que os bens e os males dependem em
grande parte da opinião que deles temos”: embora o termo “juízo”, à
primeira vista, designe, sobretudo, o modo pelo qual avaliamos e opi-
namos acerca das coisas e o termo “fantasia” aponte antes o elemento
subjetivo que configura nossas apreensões, tais instâncias são afinal
equiparadas e identificadas como aquilo pelo que “os males adentram

424

10888_A figura do filosofo.p65 424 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

em nós”. A hipótese “mentalista” considerada nessa passagem — hipó-


tese de orientação estóica, segundo a qual nós seríamos sempre a causa
de nossas apreensões dos males — seria, para Montaigne, bem-vinda,
na medida em que, se verdadeira, determinaria, ao menos em tese, a
possibilidade de intervirmos sobre a experiência dos males (“cabe a nós
mudá-la”)38. Mas notemos que essa hipótese epistemológica está sendo
considerada, basicamente, como objeto de investigação. O próprio
capítulo (I, 14) se estrutura como um exame dos principais males com
os quais temos que nos defrontar (sobre os quais igualmente se concen-
tram as reflexões de Sêneca) — a dor, a pobreza e a morte —, que,
contudo, não emergirão desse exame como equivalentes: contrapondo
a morte à dor, por exemplo, Montaigne admite que, no caso da primei-
ra, o poder de ação da alma sobre a experiência do mal tende a ser
consideravelmente maior39.
A despeito da orientação estóica dessa discussão, é curioso observar
que Montaigne recorre a exemplos provenientes de outras filosofias em
busca de uma virtual corroboração de suas considerações: o famoso
porco de Pirro — que, permanecendo calmo a bordo de um barco em
plena tempestade, teria sido apontado pelo filósofo como exemplo da
virtude originária da ignorância — é então arrolado como argumento,
em favor tanto do reconhecimento da intervenção da alma no que tange
ao medo da morte como da restrição desse poder quando se trata da

38. Talvez essa avaliação hipotética do poder da alma pudesse ser aproximada a um
conhecido aspecto da doutrina estóica da percepção (segundo a qual só temos diretamente
acesso às phantasiae, modificações de nossa alma, entre as quais deveríamos assentir ape-
nas às que fossem “apreensivas”, isto é, verdadeiras por representar adequadamente a rea-
lidade exterior). Não há, ao que parece, nenhum texto do período que permita estabelecer
essa aproximação de modo mais rigoroso. Porém, numa passagem tardia, acrescida ao
capítulo I, 12, aparentemente proveniente de Aulo Gélio, Montaigne usa o termo “fanta-
sie” para traduzir precisamente a noção estóica de phantasía, significando igualmente uma
impressão sensível e uma paixão que se apresentaria diante da alma do sábio impassível (v.
I, 12, 46C). Considerações de teor análogo se encontram em Sêneca (v. Epist., I, xi), mas
esse autor não usa a expressão phantasía. Aparentemente, Montaigne só estudou as demais
fontes antigas que discutem essa teoria estóica (como os Academica) posteriormente. Para
uma apresentação sucinta dessa doutrina estóica, ver BRÉHIER, 1978, vol. III.
39. Ver I, 14, 55-56A.

425

10888_A figura do filosofo.p65 425 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

experiência sensível da dor40. Isso não significa que, segundo Montaig-


ne, a alma não tenha um papel decisivo no que se refere à experiência
da dor, mas isso o conduz à constatação de que aí o costume pode ser
mais efetivo do que a razão: “[A] O que nos faz sofrer a dor com tanta
impaciência é não estarmos acostumados a encontrar nosso principal
contentamento na alma…” (I, 14, 57). Igualmente, no capítulo desti-
nado ao exame da força da imaginação (I, 21), ao lado das mais diversas
constatações, presentes já na primeira edição (colcha A), sobre o poder
dessa faculdade, especialmente no que tange às relações entre o corpo
e a alma41, Montaigne tende a dimensioná-la em vista do modo como
cada alma é capaz de resistir a suas impressões (opondo a credulidade
do vulgo à reflexão dos mais sábios)42.
Eis, portanto, como se articula o ensaio estóico de Montaigne, em
torno da tentativa de efetuar uma terapia filosófica da perturbação ori-
ginada pela idéia da morte e da investigação correlata das condições
que determinam a boa consecução dessa tarefa. Determinadas já no
nível da “compleição natural” do filósofo, elas abarcam uma gama di-
versa de particularidades que as favorecem ou prejudicam, e incluem
uma avaliação da própria compreensão relativa que tem o filósofo dos
elementos racionais que as norteiam. Por ora, tais elementos apenas se
projetam no plano das “fantasias” ou “opiniões”, que exibem implici-
tamente a distância que ele reconhece mediar entre sua versão singular

40. Ver I, 14, 54-55A: “Aqui o porco de Pirro nos acompanha. Ele bem pode não ter
medo da morte, mas se lhe batem, ele guincha e se atormenta…” (ibid.). O que faz com
que nessa ocasião o porco se alie a Montaigne? Provavelmente, não é o fato de que ele
se contraporia à tese de que o medo da morte é produzido por nossa imaginação (e que
ele entende ser consoante com o que dizem os estóicos), mas antes o fato de que ele
ofereceria um contra-exemplo a uma hipótese mais geral sobre o enfrentamento das
perturbações: o porco, noutras palavras, parece então servir como porta-voz das dúvidas
do autor acerca do sentido ou da validade das teses em pauta, que não chegam, porém,
a constituir uma reflexão cética organizada como as que se elaboram posteriormente,
tal como as examinamos. A fonte dessa passagem é, provavelmente, Diógenes Laércio
(Vidas dos filósofos ilustres, XI, lxviii), muito embora, segundo Villey, a anedota seja
recorrente nas compilações contemporâneas (v. Les Essais, p. 1228).
41. Ver I, 21, 98A, 103-104A.
42. Ver I, 21, 99A, cf. I, 27, 178A.

426

10888_A figura do filosofo.p65 426 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

do empreendimento filosófico e o ideal que almeja. Ao mesmo tempo,


tais fantasias nos permitem apreender o significado filosófico central
de que é investida a faculdade que as produz: ela tanto é a causa de
perturbação, obstáculo aos projetos racionais vislumbrados, como tam-
bém pode ser o fator individual de superação de seu próprio domínio,
graças ao fio condutor da razão estóica. Tais são os traços gerais desse
panorama, cuja transformação mediante o contato com o ceticismo
cabe agora tentar examinar.

7.2. Da fantasia dogmática à fantasia cética


Considerar essa mudança de perspectiva filosófica segundo o fio
condutor desse exame nos permite compreender melhor a importância
da reflexão epistemológica para Montaigne (ainda que suas preocupa-
ções principais não deixem, por isso, de ser concernentes à esfera da
“moral”). O problema relativo ao modo como nossas representações
dependem de nossa alma receberá, por volta de 1576, uma resposta
mais definida e estável, que permanecerá a ser aceita na evolução ul-
terior dos Ensaios (ainda que, por seu estatuto filosófico próprio, pos-
sua um caráter intrinsecamente provisório). Igualmente, o conceito de
“fantasia” passará a ser empregado num sentido filosófico mais preciso
do que aquele que podemos observar nos ensaios estóicos. Isso não
significa, porém, que não se preservem elementos da concepção pre-
sente nesses ensaios, importantes para a compreensão das inflexões auto-
retratistas que o ensaio montaigniano ganhará.
Qual é a resposta que Montaigne adota, segundo uma perspectiva
cética, para o problema enunciado? Passagens posteriores a essa época
que tratam do tema retomam a idéia de que a alma intervém em grande
medida no modo como apreendemos as coisas: só as conhecemos de um
modo relativo à ação de nossas faculdades cognitivas e não podemos nos
pronunciar, por conseguinte, acerca de como elas são em si mesmas43 .

43. Por exemplo, ver I, 50, 302: “[C] As coisas, elas mesmas à parte, têm talvez seu
peso, medida e condição, mas interiormente, em nós, [a alma] lhes talha como bem
entende…”; ver também II, 20, 673A.

427

10888_A figura do filosofo.p65 427 28.03.07, 16:07


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Montaigne pretende revelar a fraqueza cognitiva do juízo, como vimos


no capítulo anterior, alegando que, em vez de serem as coisas conhe-
cidas em sua natureza própria, elas se alojam em nós como nos apraz44.
Ele parece assumir, assim, com seu ceticismo, uma espécie de menta-
lismo, cujo sentido precisa, porém, ser esclarecido: não apenas porque
ele não corresponde à admissão de pressupostos epistemológicos de
natureza teórica, mas também porque conduz a um resultado inteira-
mente oposto do que seria o esperado segundo as reflexões estóicas.
Tal mentalismo não corresponde à admissão de uma tese epistemo-
lógica que permita determinar, de modo geral, a natureza de nossas
representações. Muito ao contrário: ainda que certas idéias possam ser
um produto de nossas faculdades, o fato de o nosso juízo ser sujeito à
intervenção de um meio diverso de um puro poder de conhecer é lem-
brado como um fator, dentre outros, que nos impede de dispor de um
critério para saber o que são as coisas. Exprimindo sua concordância
com os pirrônicos, na “Apologia”, ele se manifesta claramente sobre
esse ponto na introdução do “exame dos sentidos”, nos quais reside, a
seu ver, “o maior fundamento e prova de nossa ignorância…”: nós sim-
plesmente não podemos saber se aquilo que pensamos conhecer, no seu
todo ou em parte, é um produto da ação transformadora da alma ao
apreender as coisas, ou se corresponde, ao contrário, a como as coisas
efetivamente são45. Admitir a possibilidade de uma intervenção de cer-
tas partes da alma sobre outras no processo de cognição, sem que saiba-
mos determinar exatamente como isso ocorre, significa, no fim das
contas, reconhecer que nosso poder cognitivo é mais fraco do que ima-
ginamos ser quando espontaneamente pensamos conhecer as coisas, e
que não dispomos de conhecimento seguro acerca de como nossa alma
intervém na percepção, eventualmente comprometendo o valor objeti-

44. Ver 562A, passagem analisada em 6.2.1.


45. A esse respeito, cf. 587AC, em que Montaigne opõe diversas posições filosóficas
acerca do problema de saber se nossas representações correspondem às coisas, entre as
quais a dos pirrônicos, que “atingem sempre o mais alto ponto da dúvida” ao dizer que
não sabem a resposta. Embora apresentada em terceira pessoa, como uma resposta
entre outras, é fácil constatar que a ela correspondem os argumentos que, em seguida,
Montaigne apresenta para sustentar a mesma posição dubitativa.

428

10888_A figura do filosofo.p65 428 28.03.07, 16:07


O ensaio como fantasia

vo da cognição. Trata-se de um problema similar àquele que se mani-


festa no exame da ação do costume, tal como vimos anteriormente46:
por sua ação, ele nos rouba os critérios para o reconhecimento de sua
presença. Problema similar, mas aqui presente de um modo talvez mais
radical, uma vez que nossa própria alma se imiscui sorrateiramente no
andamento das faculdades pelas quais poderíamos conhecer as coisas,
de modo tal que conduz Montaigne a concluir, como vimos, que “nos-
so juízo natural não obtém claramente o que obtém” (v. 562). Se isso
ocorre, é simplesmente porque não podemos exatamente determinar
em que medida um meio diverso de um “simples poder natural de co-
nhecer” — seja ele o costume ou a imaginação47 — intervém naquilo
que tomamos como verdadeiro, produzindo apenas mais uma perspec-
tiva individual e particular que, não obstante seu conflito com as que
lhe são potencialmente opostas, almeja sempre oferecer a verdade.
Em suma, são as próprias tentativas de oferecer uma solução a esse
problema epistemológico que, consideradas em sua contradição inso-
lúvel e segundo os diversos problemas demonstrativos que suscitam,
vão agora se revelar meras especulações fantasiosas, que proliferam à
sombra da ignorância de nossos limites cognitivos. Com efeito, esse é
um tema freqüentemente retomado nos Ensaios a partir desse momen-
to: a própria idéia de que a razão ou o entendimento humano possa
obter verdades passa, de modo geral, a ser vista como uma fantasia
(tratada aqui como sinônimo de pura imaginação). Ao justificar a sus-
pensão cética, Montaigne assim alude à diaphonía das filosofias dog-
máticas: “[B] Não é melhor permanecer em suspensão do que se em-
baraçar em tantos erros que produziu a fantasia humana?…” (504;
itálico nosso)48. Trata-se aqui de mais uma ressonância das fontes céti-
cas desconsiderada pelos comentadores: nas Hipotiposes de Sexto Empí-

46. Cf. capítulo III, item 3.1 — “Um traiçoeiro mestre”.


47. Os termos com que Montaigne descreve a situação oscilante do julgamento,
logo em seguida, sugerem que o “outro meio” intervindo na particularidade de nossas
opiniões pode corresponder à fantasia: “[A] Quão diversamente julgamos nós as coisas?
Quantas vezes nós mudamos nossas opiniões [fantasies]?” (563).
48. Ver, ademais, as passagens mencionadas no início deste capítulo, bem como
511AC.

429

10888_A figura do filosofo.p65 429 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

rico, os dogmatismos são por vezes descritos como uma ficção produ-
zida pelos filósofos, que meramente imaginam, ainda que não o sai-
bam, conhecer uma verdade nas opiniões que apresentam como cer-
tas. Assim Sexto comenta, por exemplo, a teoria pitagórica dos núme-
ros: “Tais são as ficções que eles imaginam…” (III, 156)49. Igualmente,
no Quod Nihil Scitur (1581), de Francisco Sanches, possivelmente lido
por Montaigne antes da publicação da segunda edição dos Ensaios, as
filosofias dogmáticas são expressamente qualificadas como ficções50.
O tema, de todo modo, recebe um tratamento particularmente
enfático nos Ensaios, possivelmente resultante, em parte, da leitura das
obras morais de Plutarco (uma das quais se intitula “Que os estóicos
dizem coisas mais estranhas do que os poetas”)51, ou ainda das obras de
Agrippa (seja o De Occulta Philosophia, no qual encontramos um elo-
gio das forças da imaginação, seja principalmente a autocrítica cética
que esse autor posteriormente faz de suas reflexões anteriores, intitula-
da De Vanitate Scientiarum)52. Essa ênfase não distorce, contudo, o

49. Ao longo dos livros II e III das Hipotiposes, Sexto argumenta para mostrar a
“inapreensibilidade” das concepções particulares dos filósofos dogmáticos. Em HP III,
114, por exemplo, ele conclui sua investigação sobre as noções de geração e corrupção
afirmando que a física dos dogmáticos é “irreal e inconcebível” (“tó anúparkton… kaì
anepinóeton”). Noutra passagem, a propósito da teoria platônica da alma, ele afirma ser
um contra-senso admitir que “a construção imaginária [aneidelopoiésin] da alma pro-
posta por Platão seja capaz de receber o Bem…” (HP III, 189).
50. Por exemplo, empregando um argumento aristotélico contra a tese platônica
segundo a qual haveria uma identificação entre conhecer e lembrar, Sanches afirma:
“Com minhas desculpas a esse pensador normalmente tão brilhante, esta é uma ficção
desprovida de fundamento [leue admodum figmentum], que não se sustenta nem pela
experiência nem por argumento racional — como mil outros sonhos que ele sonhou
acerca da alma, como irei demonstrar no meu ‘Tratado sobre a Alma’…” (QNS 17,
193). Ver, igualmente, QNS 13-14, 189; 22, 199.
51. Ver PLUTARCO, op. cit., 560-561. Trata-se, nesse opúsculo, de ironizar a moral
estóica em diversos de seus aspectos — a liberdade do sábio, a noção de virtude, a
apatia, a inconstância —, afirmando que tais idéias são similares às descrições mitoló-
gicas dos heróis homéricos (tidas por ele como mais verossímeis que as invenções dos
estóicos). Noutro opúsculo que, do mesmo modo, Montaigne certamente leu, intitula-
do “As contradições dos filósofos estóicos”, tais contradições doutrinais são examinadas
por meio de argumentos que o próprio autor atribui aos acadêmicos (v. 561 D-E).
52. Ver nota 30 deste capítulo. No ensaio I, 21, encontramos um dos primeiros
exemplos claros do procedimento montaigniano de “torcer as razões” para lhes conferir

430

10888_A figura do filosofo.p65 430 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

sentido essencial da crítica cética à vaidade que ele intermedeia —


esteja ela presente no antropomorfismo religioso53, no modo como os
supostos conhecimentos das coisas “humanas e naturais”, como as rol-
danas e amarras que segurariam os astros, segundo Platão, em seus
movimentos, revelam-se apenas “sonhos e fantásticas loucuras” (v. 536-
537A); ou ainda na forma como, numa glosa à afirmação platônica de
que a natureza seria uma “poesia enigmática” que nos incita a inúme-
ras conjecturas, é a própria filosofia, segundo Montaigne, que se torna
uma “poesia sofismada”54. Tal é a amplificação que o tema recebe que
a própria razão, como dissemos, chega a ser assimilada, em sua opera-
ção, a essa faculdade: “[A] … eu chamo razão nossos devaneios e so-
nhos, com a autorização da filosofia, que afirma que mesmo o louco e
o raivoso enlouquecem pela razão, mas que se trata de uma razão de
forma particular…” (523)55.

deliberadamente um sentido diverso daquele que se encontra originalmente em seus


autores, freqüentemente de modo irônico. Os exemplos de Agrippa anteriormente con-
siderados, sobre o poder especial com que a imaginação nos outorgaria um contato
corporal com o sobrenatural, convertem-se, segundo Montaigne, num exemplo do que
é capaz a imaginação humana (não mais aqui no sentido, contudo, de designar um
poder de intervenção na realidade, e sim no sentido compatível com a crítica cética).
Por meio dessa ironia, ele se aproxima, porém, do Agrippa tardio, que, no De Vanitate,
critica os diversos saberes num tom análogo. Em 89 ss., por exemplo, ele se refere à
astrologia, ao longo de uma digressão autobiográfica, como “puras mentiras e fábulas
poéticas, prodigiosos devaneios e falsas imaginações”.
53. Ao longo da radical crítica que Montaigne dirige à pretensão de conhecimento
religioso — que o leva a afirmar que deveríamos, quanto às coisas celestes, imaginá-las
inimagináveis (v. 518, 523) —, ele alude a diversas manifestações da religiosidade hu-
mana (invariavelmente por meio de exemplos antigos ou maometanos) como “chimeres”
(529) ou “fantasies” (521); em 532-533, Montaigne retoma de Cícero um argumento
contra o antropomorfismo divino dos epicuristas, atribuído a Xenófanes: se, como nós,
os animais inventarem deuses, como é verossímil que o façam, eles deverão tomar a si
mesmos como modelos, como nós o fazemos: o Deus do pato, assim, deverá possuir a
forma do pato.
54. Cf. 536-537A. No original, “poesie sophistiqué”, em que o segundo termo signi-
fica, provavelmente, “feita de sofismas”. GREIMAS e KEANE (1992, p. 596), traduzem
essa ocorrência como “transformar desnaturando”, embora também reconheçam para
esse termo, no moyen français, os sentidos de “enganar” e “desnortear”.
55. Villey não oferece nenhuma indicação de fonte para essa passagem, mas seu
contexto é claro. Os “devaneios” racionais em jogo são exemplos da aplicação da razão

431

10888_A figura do filosofo.p65 431 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

É curioso, porém, que o termo “fantasia”, ao mesmo tempo, seja


sistematicamente empregado por Montaigne para traduzir as ocorrên-
cias de “phantasía” nos textos pirrônicos por ele retomados. Pode-se
dizer que esse termo de origem estóica possui, igualmente, um estatuto
técnico no pirronismo de Sexto, designando as afecções ou impressões
que o cético assume como virtualmente correspondentes ao que é phai-
nómenon e às quais dá assentimento, como parte do critério prático.
Em HP I, 13, por exemplo, Sexto informa que o cético admite crenças
no sentido amplo de “aprovação a algo”, como, por exemplo, “aos sen-
timentos que resultam de nossas impressões [phantasíai] — de tal modo
que ele não dirá ‘acredito estar com frio (ou calor)’ quando estiver sen-
tindo calor (ou frio)”. O assentimento estaria suspenso apenas no sen-
tido em que dogma designa, além dos sentimentos e das phantasíai que
o causam, um objeto não-evidente da investigação filosófica (ibid.).
Logo adiante, Sexto esclarece que, analogamente, o cético não quer
abolir o aparecer das coisas, isto é, “aquilo que nos conduz ao assenti-
mento involuntário de acordo com uma impressão passiva [phantasía
pathetiké], isto é, aquilo que é phainómenon” (HP I, 19)56. A julgar por
essas linhas, a phantasía corresponderia à impressão perceptiva ou
mental que teria como causa uma afecção (pathé), como em HP I, 13,
mas corresponderia a tudo aquilo a que, de modo amplo, assentimos
involuntariamente como pertencente à esfera do phainómenon (as
impressões sensíveis correspondentes aos objetos externos, os valores a
que assentimos por força de nossos hábitos e tradições, os efeitos de
nossas faculdades internas, ou mesmo a linguagem e os conceitos filo-
sóficos pirrônicos a que o cético assente segundo sua experiência)57.

no âmbito da teologia, exemplo privilegiado da “espantosa embriaguez do entendimen-


to humano” (516) que Montaigne visa igualmente atestar por meio dos outros casos que
arrola. Ainda aqui, porém, convém lembrar que, ao relatar a “Vida de Pirro”, Diógenes
Laércio, aludindo às hoje perdidas Hipotiposes de Enesidemo, atribui a esse autor céti-
co uma identificação análoga entre razão e imaginação (v. op. cit., p. 182, 184).
56. Se tomamos por base a versão latina de Hervet, possivelmente usada por Mon-
taigne, o termo “phantasía” é mantido, tanto nessa passagem quanto na que foi citada
anteriormente (v. op. cit., cap. VII, p. 407).
57. Ver BURNYEAT, 1978, p. 127: opondo-se a Charlotte STOUGH (Greek Skepticism,
Berkeley/Los Angeles, 1969), para quem phantasía significa estritamente “impressão

432

10888_A figura do filosofo.p65 432 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

Tais phantasíai correspondem, em suma, àquilo a que o cético em


suspensão dá assentimento de modo involuntário. Na introdução do
livro II das Hipotiposes, Sexto esclarece que a recusa das sutilezas filo-
sóficas propostas pelos dogmáticos não impede o cético de pensar e
proceder à sua investigação, dado que a suspensão, limitando-se à rea-
lidade dos objetos não-evidentes propostos por essas filosofias, não atin-
ge a phantasía — o que lhe aparece espontânea e passivamente no
pensamento pelo simples fato de realizar essa investigação sobre os obje-
tos dogmáticos, ainda que sejam eles irreais58. Ao mesmo tempo, situar
no domínio da phantasía o objeto do assentimento para o cético con-
tribui para marcar o viés assumidamente relativo e subjetivo desse as-
sentimento, pois seu estatuto é o da narrativa de um cronista que se
limita a registrar os fatos tal como lhe aparecem nesse momento (v. HP
I, 4). Referindo-se às diversas posições filosóficas que se ofereciam como
candidatas ao assentimento, Sexto informa que o cético, inicialmente
perturbado pelo problema de discriminar quais phantasíai eram verda-
deiras ou falsas (cf. HP I, 25-27), viu-se incapaz de escolher entre as
antíteses de igual peso e acabou por encontrar nessa epokhé sua imper-
turbabilidade. Contudo, o fato de que a renovação da epokhé se con-
verta casualmente num fim da atividade cética — tal como ocorreu ao
pintor Apeles, que casualmente se deparou com a espuma na boca do
cavalo ao ter lançado a esponja sobre a tela, quando desistia de obter o
efeito desejado — é algo que aparece para o filósofo cético, igualmen-
te, com o estatuto de phantasía, isto é, de algo que se impõe involun-
tariamente à apreensão desse filósofo (cf. HP I, 28-30). Não é por meio
de uma expressão diversa que Montaigne alude ao sentido não-asserti-
vo em que os pirrônicos fazem de seu fim a ataraxía, numa discussão
sobre as controvérsias da filosofia moral:

sensível”, Burnyeat observa que, em Sexto, como no vocabulário estóico, há phantasíai


que não correspondem a impressões sensíveis, entre elas a própria phantasía segundo a
qual não podemos reconhecer uma phantasía apreensiva. Ademais, insiste ele, os as-
pectos do phainómenon ao qual o cético dá assentimento (os objetos mentais, o pensa-
mento, as próprias expressões céticas) não corresponderiam a tal interpretação; ver tam-
bém p. 129 ss.
58. Ver HP II, 10.

433

10888_A figura do filosofo.p65 433 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

“[A] Os pirrônicos, quando dizem que o soberano bem é a ataraxía,


que é a imobilidade do juízo, não entendem dizê-lo de uma forma
afirmativa; é o mesmo movimento da sua alma que os faz evitar os
precipícios e se abrigar que lhes apresenta essa fantasia [fantasie] e
lhes faz recusar uma outra… (578).
Aqui “fantasie” designa precisamente o sentido fenomênico em que
essa ataraxía se aceita (como uma decorrência imediata da epokhé), sen-
tido em que se podem igualmente aceitar, como mostra essa passagem,
as impressões sensíveis e o conteúdo de suas reflexões. É por meio do
mesmo termo que Montaigne alude a outras concepções que são objeto
de assentimento do filósofo pirrônico; seja a idéia de que a linguagem se
isenta de peso assertivo, uma vez que a dúvida cética se aplica sobre suas
afirmações59, seja o sentido em que a “epokhé”, segundo seu entendi-
mento pessoal, se impõe involuntariamente para os pirrônicos: “[A] …
exprimo essa fantasia na medida em que posso…” (505; itálico nosso).
O mesmo cuidado conceitual confirma-se noutras passagens em
que Montaigne, ainda mais claramente, traduz termos técnicos do ce-
ticismo pirrônico. Ao final da “Apologia”, pondo o próprio testemunho
dos sentidos em questão no cume de sua retomada sistemática da argu-
mentação cética, ele escreve:
[A] Nossa fantasia não se aplica às coisas externas [choses estrangeres],
ela é antes concebida por intermédio dos sentidos; e os sentidos não
compreendem [comprennent] o objeto [subject] externo, antes as suas
próprias paixões [passions]; assim, a fantasia e aparência [fantasie et
apparence] não é do objeto, mas somente da paixão e recepção do
sentido, sendo essa paixão e o objeto coisas diversas. Por isso, quem
julga pelas aparências julga por outra coisa que pelo objeto. E [quan-
to a] dizer que as paixões do sentido reportam à alma a qualidade dos
objetos externos [subjects étrangers] por semelhança, como podem a
alma e o entendimento se assegurar dessa semelhança, não tendo
por si nenhum comércio com os objetos externos? Tal como quem
não conhece Sócrates, vendo seu retrato, não pode dizer que lhe é
semelhante… (601; itálicos nossos).

59. “Esta fantasia é mais seguramente concebida pela interrogação: Que sei eu?
como eu a uso como divisa numa balança” (527A; itálico nosso).

434

10888_A figura do filosofo.p65 434 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

Aqui ele adapta uma passagem das Hipotiposes (HP II, 72 ss.), si-
tuada no exame dos diversos critérios dogmáticos de verdade, em que
Sexto alveja, mais precisamente, a teoria estóica da representação apre-
ensiva (phantasía kataleptiké). Nessa argumentação, o ataque ao estoi-
cismo tem um papel de destaque, seja pelo fato de o próprio exame se
orientar por uma divisão estóica das partes da filosofia (lógica, física e
ética), seja pela visível intenção de voltar contra os estóicos seus pró-
prios pressupostos (evidenciando que a tese de que só temos acesso à
nossa phantasía, modificação de nossa própria alma, nos retira os meios
de reconhecer qual delas seria kataleptiké, isto é, apreensiva da realida-
de externa). Uma rápida comparação com o texto latino de Hervet
mostra aqui, novamente, que, ao adaptá-lo, Montaigne cuida de pre-
servar a terminologia cética, empregando “passions” para traduzir “pas-
siones”, “subject estranger” para “subjectus externus”, “comprendre” para
“comprehendere” — e, para “phantasia”, o termo “fantasie” (ao qual
associa, como sinônimo, “apparence”)60. Não deixemos, ademais, de
notar que, na primeira ocorrência do termo na passagem acima, “fan-
tasia” parece designar, além de nossas simples representações, uma ação
de “nossa” faculdade apreensiva humana, tal como a empregamos diante
dos objetos sensíveis que percebemos como objetos externos. Essa mes-
ma acepção se confirma em outros textos citados por Montaigne, como
este de Plutarco, por meio do qual ele busca, na “Apologia”, precisar os
contornos conceituais da epokhé: “Das três ações da alma, a imagina-
tiva [l’imaginative], a apetitiva e a do assentimento [consentante], eles
[os céticos] acolhem as duas primeiras; a última, eles a suspendem e a
mantêm ambígua, sem inclinação nem aprovação de uma parte ou de
outra, por mais ligeira que seja…” (503). O emprego de “imagination”
não é tampouco aqui uma inovação de Montaigne: trata-se da mesma
expressão que Amyot emprega para traduzir aquilo que no original de
Plutarco é phantasía61. O mesmo Plutarco, por meio dos termos que

60. Cf., por exemplo, a passagem latina correspondente a HP II, 72-75.


61. Ver PLUTARCO, “Contre l épicurien Colotes”, 596 D-E. Para o original de Plu-
tarco, ver Plutarch’s Moralia, Prós Kolótem úper tón allón philosophon, Loeb Classical
Library, Harvard University Press, XIII, p. 219, 1112 A-F.

435

10888_A figura do filosofo.p65 435 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

lhe empresta Amyot na tradução lida e elogiada por Montaigne, cuida


de esclarecer que “imagination” designa aquilo a que os céticos (acadê-
micos) assentem, seja como objeto involuntário da percepção sensí-
vel62, seja como aquilo que se apresenta como um bem em virtude do
qual a ação é possível: ela é, segundo essa filosofia, aquilo cuja aceita-
ção basta para agir no mundo conforme a natureza.
Portanto, o termo “fantasia” é igualmente usado por Montaigne
para nomear aquilo que é objeto de assentimento para o cético, num
sentido involuntário e relativo, concomitante à epokhé, mas já aqui é
resultante da ação de uma faculdade da alma. Igualmente, porém, o
mesmo termo designa aquilo que essa faculdade produz, no caso das
filosofias dogmáticas, como especulações delirantes e ilusórias que po-
dem passar, para quem as adota, por verdades inabaláveis sobre o mundo.
Mais ainda, o próprio Montaigne o emprega para se referir aos ensaios
de seu juízo, nomeando, precisamente, a faculdade pela qual ele pas-
sivamente apreende aquilo que lhe ocorre63. Se ele cuida de seguir,
como vemos, em seu detalhe terminológico, os textos céticos que reto-
ma, por mais que os leia de modo inovador, é significativo que ele
singularize sua atividade ensaística referindo-se a ela como um “fanta-
siar”, um filosofar caracterizado pela formulação de “fantasias irresolu-
tas”: não uma apresentação do mundo e das coisas, mas apenas uma
exposição estritamente pessoal e provisória do que pensa:
[A] Eu proponho fantasias disformes e irresolutas, como fazem aque-
les que publicam questões duvidosas, para debater nas escolas: não
para estabelecer a verdade, mas para procurá-la… (I, 56, 317).
[C] Eu proponho fantasias humanas e minhas, simplesmente como
humanas fantasias, não como decididas e regradas pelas ordenações
celestes, isentas de dúvidas e altercação: matéria de opinião, não
matéria de fé, o que eu discorro [discours] segundo eu mesmo, não

62. Explicando a diferença entre as três ações da alma segundo os acadêmicos, Plu-
tarco escreve: “quanto à imaginativa [imaginative] ou apreensão, não se poderia supri-
mi-la quanto bem se quisesse, pois é forçoso que quando nos acercamos das coisas, seja-
se informado e moldado [informe & moulé], por assim dizer, por elas, e receba-se a
impressão delas…” (ibid.).
63. Cf. I, 26, 146; passagem citada no início deste capítulo.

436

10888_A figura do filosofo.p65 436 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

o que creio segundo Deus, assim como as crianças fazem suas lições
[essais]: capazes de ser instruídas, não instrutoras; de matéria leiga,
não clerical, mas sempre mui-religiosa… (ibid., 323).
Igualmente significativo, porém, é o fato de que tais “fantasias”
céticas permaneçam igualmente sendo, como o eram na fase estóica,
produtos de sua imaginação — os “devaneios” (resveries) de um ho-
mem que apenas saboreou a crosta das sciences (v. I, 26, 146A), ou, nos
termos em que bem posteriormente ele ainda se referirá ao seu ócio
filosófico: “Por vezes eu sonho [je reve], por vezes eu registro e dito,
caminhando, estes devaneios [songes] que aqui estão…” (III, 3, 828B).
Trata-se de uma inconsistência? Pensamos que, ao contrário, pres-
tar atenção à ambivalência desse termo não apenas confirma que
Montaigne reconheça uma espécie de afinidade entre a filosofia céti-
ca e a dogmática (quanto à natureza dos objetos a que se assente), mas
permite, sobretudo, precisar o sentido da diferença que ele entende
haver entre essas formas de filosofar (relacionada, como vimos, a uma
tomada de consciência diversa dessa situação, bem como às atitudes
filosóficas com ela coerentes). Trate-se de um cético ou de um dogmá-
tico, a fantasia é aquilo que designa, seja objeto externo ou interno,
aquilo que humanamente nos surge como objeto do assentimento.
Em ambos os casos, na medida em que tal assentimento aponta uma
“impressão de verdade”, estamos ainda diante de um objeto determi-
nado por nossas faculdades subjetivas — pelo modo como o juízo põe
diante de si uma idéia de verdade, ou bem por nossa própria imagina-
ção de possuir algo de verdadeiro, que se imiscui de algum modo na-
quilo que é objeto de nosso assentimento, se não na própria idéia de
verdade pela qual permanentemente nossas faculdades cognitivas na-
turalmente se guiam. O emprego desse único termo em todas as situa-
ções descritas parece sublinhar, uma vez mais, que o cético assente de
modo relativo àquilo que permanece lhe aparecendo como verdadei-
ro, ainda que restritamente ao “uso” das coisas: trata-se de algo que
não é verdadeiro em si, mas que aparece como verdadeiro e poderia,
em princípio, revelar-se falso e fantasioso a um olhar mais penetrante,
capaz de discernir, no ato de assentimento, a intervenção ilusionista
da fantasia.

437

10888_A figura do filosofo.p65 437 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Nessa medida, a “fantasia” montaigniana parece afinal antecipar


um fenômeno típico da filosofia moderna, ao se oferecer como uma
espécie de solo epistemológico básico da própria atividade do pensa-
mento, seja cético ou dogmático. Porém, o recurso a essa temática
esclarece que, enquanto o filosofar dogmático acaba por se revelar, de
modo geral, solidário de uma pretensão malfadada de evadir do terreno
da fantasia, que apenas acaba por levar o filósofo a nele se enredar mais
profunda e sutilmente, o ceticismo, ao contrário, corresponderia a uma
denúncia do caráter vão de tal pretensão e, sem abdicar da intenção de
realizar uma crítica da ação ilusória da fantasia (da qual o filósofo dog-
mático é a vítima exemplar), ao reconhecimento, afinal, da impossibi-
lidade de o fazer cabalmente. O terreno da fantasia, em toda a sua
dimensão, revela-se permanente e inescapavelmente constitutivo de
nossa situação no mundo: o que podemos, na melhor das hipóteses, é
minimizá-lo, conhecê-lo e nalgum grau conscientemente aceitá-lo —
como veremos melhor no item seguinte.
Por fim, cabe ainda observar que a redução das teorias filosóficas
dogmáticas ao terreno da fantasia tem, por certo, conotações que ultra-
passam a dimensão epistemológica. Como já se observou fartamente,
a idéia de um enfrentamento racional da dor e do medo da morte, tal
como proposta pelo estoicismo, passa a ser amplamente recusada por
Montaigne como desumana e fantasiosa. No que respeita a esse per-
curso, a superação do estoicismo fará com que a idéia mesma de um
controle racional da imaginação, derivado do conhecimento de verda-
des que tenham o poder de contê-la, acabe por ser relativizada e perca
o sentido que possuía. É disso que trataremos no item final deste capí-
tulo. Tal transformação não significa, como veremos, que a imaginação
deixe de ser vista como fonte de perturbação. O que muda é a forma de
encarar o papel dessa faculdade e o modo de intervir sobre ela. De fato,
o projeto de registrar as fantasias e examinar a singularidade com que
a imaginação se manifesta, ancorado na fase estóica, não será abolido
por essa transformação, mas aprofundado. Ele deixa de se subordinar
ao objetivo de sua transformação pela “vergonha” que elas poderiam
fazer a si mesmas, sob um olhar iluminado pela reta razão, e adquire
um sentido autônomo: o ensaio, mais do que um trabalho de formação

438

10888_A figura do filosofo.p65 438 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

de juízo, converte-se num exame da fantasia como uma província da


subjetividade que se subtrai à nossa consciência e ao nosso controle, no
seu próprio curso impremeditado — ainda que seja essa própria ação
da imaginação, em grande medida, oculta pela imagem fantasiosa que
tendemos a fazer de nós mesmos.

7.3. Uma quimera que não cabe na imaginação


Para melhor como o projeto original estóico de conformação à
natureza mediante um conhecimento racional da verdade dá lugar a
uma concepção bastante diversa de “naturalização” de nossas fantasias,
mediada pela reflexão cética, consideremos dois exemplos. Um primei-
ro, extraído da “Apologia”, apresenta-se na crítica à vaidade com que o
homem se julga numa posição naturalmente privilegiada com relação
às demais criaturas. Outro, mais tardio, é o exame dos processos de
feitiçaria em “Dos coxos” (III, 11). Ambas as discussões interessam aqui
especialmente na medida em que nos permitem observar o papel am-
bivalente da fantasia — igualmente relacionada com a crítica aos dog-
matismos e com a determinação do estatuto daquilo que, por meio
dessa própria crítica, estaríamos em posição de reconhecer e aceitar.

***
Já tivemos outras oportunidades de nos referir à crítica da “vaidade
do homem” — primeiro movimento argumentativo da “Apologia”, no
qual, valendo-se da estratégia dialética de aceitar os pressupostos do
adversário para refutá-lo, Montaigne combate teses de proveniência
estóica (presentes, como já dissemos, nas defesas humanistas da digni-
tas hominis e na Teologia de Sebond) sobre a posição privilegiada do
homem em relação às demais criaturas, graças à posse da razão64. Aqui
não faltam exemplos do emprego de um vocabulário associado à ima-
ginação: tal crença, diz Montaigne, é um “delírio” (frenaisie, 448),

64. Ver itens 2.1 — “Um fideísmo paradoxal” — e 6.2.4 — “O movimento natural
das opiniões”.

439

10888_A figura do filosofo.p65 439 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

produto de um orgulho exacerbado; as teses pelas quais inventamos


mundos diversos do nosso, com o propósito de nos assegurar de que
estamos no melhor deles, nada mais são que “sonhos da vaidade huma-
na” (452). Igualmente fantasiosa é a idéia de que o homem teria sido
o único ser agraciado pela natureza com a posse da razão, por oposição
aos demais animais, criados apenas para servi-lo:
[A] É pela vaidade desta mesma imaginação que o homem se iguala
a Deus, que ele se atribui condições divinas, que ele se escolhe a si
mesmo e se separa da massa das outras criaturas, decide a parte que
cabe aos animais, seus confrades e companheiros, e lhes distribui tal
porção de faculdades e forças que lhe parece boa… (452).
Em vez de assumir nossa ignorância acerca dos “móveis internos e
secretos” dos outros animais, dizemos que eles agem por “instinto” —
um expediente fantasioso a mais para lhes negar a posse da razão, pela
qual nos elegemos superiores ao resto. Trata-se, assim, de buscar neu-
tralizar tal crença acerca da excelência essencial do homem e trazê-lo
de volta ao mundo natural que ele coabita com os animais65.
Isso se faz por meio de uma argumentação cética que se contrapõe
a esta, sustentando que homens e animais possuem, de modo geral, as
mesmas faculdades (particularmente a razão), e que não há uma dife-
rença essencial entre eles; se diferença há, é sobretudo de grau. Dia-
leticamente, Montaigne assume a crença de que os animais agiriam
por puro instinto, para concluir que seria preciso, nesse caso, reconhe-
cer que a natureza foi mais bondosa com eles, posto que cuidaria de
guiá-los às coisas que lhes seriam adequadas, enquanto nós permane-
cemos à mercê da “liberdade de imaginação e desregramento do pen-
samento”, isto é, do uso de nossas faculdades falíveis nas diversas deli-
berações que se fazem necessárias ao longo da vida, com as perturba-
ções daí decorrentes66. Invertendo a hipótese estóica em suas conse-
qüências, Montaigne parece conduzir implicitamente o leitor a um
dilema: ou bem seria preciso aceitar, com tal crença, que o homem é

65. Ver 459A. Para uma análise mais detalhada dessa argumentação, ver EVA, 1994
e 2004, capítulo 1.
66. Ver 455-460A.

440

10888_A figura do filosofo.p65 440 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

inferior (e efetivamente ele ocupa algumas páginas com o desenvolvi-


mento dos argumentos tradicionais da miseria hominis para dar corpo
a tal hipótese, que o contexto converte numa espécie de ameaça retó-
rica ao dogmático estóico-sebondiano, partidário de um universo hie-
rarquizado no qual o homem é o ser superior), ou bem seria preciso,
recusando também essa alternativa, abandonar a postulação mesma de
uma diferença essencial e considerar o problema por ótica diversa. É,
com efeito, nessa segunda direção que o texto prossegue, exibindo um
exemplário de comportamentos animais, extraídos de fontes variadas67,
diante do qual se aplica uma única e mesma regra natural para julgar
a relação entre homens e animais: de comportamentos semelhantes,
cabe inferir a posse de faculdades semelhantes (v. 460A). Montaigne
retoma, então, um exemplo de Plutarco (muito similar a outro ofereci-
do por Sexto Empírico, ao longo da apresentação do Primeiro Tropo
de Enesidemo)68 que, ao mesmo tempo, inaugura o mostruário e lhe
serve de paradigma: se a raposa, da qual os trácios se serviam para atra-
vessar um rio cuja superfície congelou, aproxima seu ouvido do gelo
para ouvir se o som está mais próximo ou distante e, por conseguinte,
se o gelo é mais fino ou mais espesso, caberia ver aí um exemplo de
ação meramente instintiva? Em vez disso:
[A] … não teríamos nós razão de julgar que lhe passa pela cabeça
esse mesmo raciocínio [discours] que se passaria pela nossa? O que
faz barulho se move; o que se move não está congelado; o que não
está congelado está líquido; o que está líquido cederá ao peso. Pois
atribuir isso apenas a uma vivacidade do sentido da audição, sem
raciocínio e sem conseqüência, é uma quimera, e não pode caber na
nossa imaginação… (460; itálicos nossos).
O que significa isso: uma quimera que não cabe na imaginação?
Eis uma pista valiosa para a compreensão do sentido geral dessa ar-

67. Ver 456A ss. Os exemplos são extraídos de autores vários, como Plínio, Lactân-
cio, Heródoto, mas, sobretudo, de Plutarco, especialmente dos opúsculos “Quais ani-
mais são os mais inteligentes” e “Que os animais usam da razão”. Cf. VILLEY, Les Essais,
p. 1279-1282; Les Sources, II, 30.
68. Cf. 463A ss., HP I, 62 ss.

441

10888_A figura do filosofo.p65 441 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

gumentação. Primeiramente, notemos que o exame, como um todo,


parte da constatação de que, uma vez que não temos acesso direto ao
que se passa no espírito dos animais, tudo o que podemos fazer é esta-
belecer conjecturas. Isso não é mais do que uma conseqüência imediata
da argumentação pirrônica do Primeiro Tropo (apresentada mais deta-
lhadamente num momento posterior da “Apologia”): devemos consta-
tar que nossas representações são apenas relativas a nós, o animal hu-
mano, um animal entre outros69. Como não podemos ultrapassar o âm-
bito das percepções relativas a nós, não podemos pretender alegar como
elas efetivamente aparecem aos outros seres percipientes, segundo suas
faculdades próprias (o que seria necessário, alega esse tropo, para que
pudéssemos tomar nossas representações humanas como conhecimen-
to das coisas em si mesmas). Assim, a imaginação é o continente em
que as explicações acerca daquilo que ultrapassa nossa experiência ime-
diata se produzem: seja de modo inconsciente, como fazem os dogmá-
ticos (pensando dispor de verdades evidentes, que não passam de uma
fantasia acerca da superioridade ou inferioridade essencial relativamente
àquilo que desconhecemos), seja conscientemente, isto é, respeitando
critérios pelos quais podemos, ao menos, reduzir a ilegitimidade com
que imaginamos o que em si nos é inacessível. Se alguns dos compor-
tamentos animais nos deixam perplexos e se afiguram estranhos pelo
modo como, segundo Montaigne, escapam à nossa capacidade de con-
jecturar (como a aranha construindo sua teia)70, a própria imaginação
pode, contudo, se pautar, até certo ponto, por critérios mais fiáveis,
como a experiência:

69. Ve HP I, 40-63: Sexto aí procura comparar as representações conflitantes que os


diversos animais parecem ter (em vista, por exemplo, das diferenças de seus órgãos
perceptivos), para concluir pela impossibilidade de julgar qual das representações po-
tencialmente conflitantes melhor representaria o real (posto que não é possível, tam-
pouco aqui, um acesso independente ao “real” que não seja parte envolvida no confli-
to): os homens não podem senão narrar o que lhe aparece relativamente à sua circuns-
tância de animal humano, devendo se abster de pronunciar sobre o que são as coisas em
si mesmas. Montaigne retoma essa argumentação na “crítica da vaidade da razão”; ver
590A, 596-598A.
70. Ver 467A.

442

10888_A figura do filosofo.p65 442 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

[A] Eu digo, portanto, … que não há verossimilhança [apparence]


em julgar que os animais façam por inclinação natural e forçada as
mesmas coisas que nós fazemos por nossa escolha e indústria. Nós
devemos concluir de semelhantes fatos semelhantes faculdades, e
confessar, por conseguinte, que essa mesma razão [discours], essa
mesma via que temos de operar, é também aquela dos animais. Por
que imaginamos nós neles essa determinação natural [o instinto],
nós que nunca experimentamos fato semelhante?… A vaidade de
nossa presunção faz com que nós pretendamos deixar nossa capa-
cidade por conta de nossas próprias forças que de sua liberalidade
[= da natureza]… (460; itálico nosso).
Se podemos tentar contornar ou minimizar o aspecto propriamen-
te arbitrário pelo qual age a imaginação ao produzirmos nossas conjec-
turas, é igualmente possível inspecionar as explicações rivais, que o
dogmático quer validar como conhecimento, para nelas entrever, afi-
nal, suas costuras imaginativas ocultas. Como apenas os homens pos-
suem a razão, os animais agem exclusivamente por instinto ou pela
pura “excelência auditiva”, subproduto conceitual incongruente dessa
falsa ciência, que denuncia o caráter ficcional da própria teoria. Pois
imaginar que a excelência auditiva conduz por si só à ação parece ser
mais evidentemente fantasioso, segundo o que nossa experiência nos
oferece, do que o seria o conjunto explicativo contrário (ainda que
também ele não passe de uma conjectura, talvez falsa, acerca do que
não podemos conhecer). Trata-se, em suma, de controlar criticamente
o terreno da fantasia, no qual estamos, em alguma medida, inapelavel-
mente instalados. Poder-se-ia dizer que o reconhecimento de que o
animal humano está submetido à experiência direta de suas re-
presentações, que só pode ultrapassar em sua fantasia, é o preço a pagar
para evitar explicações mais quiméricas, como as que, movidas pela
vaidade com que o homem cegamente admira suas faculdades, relega
aos animais uma condição meramente maquinal.
A mesma crítica da imaginação pode ser observada no ensaio “Dos
coxos” (III, 11), em que se trata, igualmente, de exibir sua presença
onde ela passa despercebida, mesmo na pretensão de superá-la plena-
mente. Montaigne invoca inicialmente a reforma que instituíra o ca-

443

10888_A figura do filosofo.p65 443 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

lendário gregoriano — cujas correções efetuadas foram, diz ele, tão im-
perceptíveis no transcurso de nossa vida quanto eram os erros do calen-
dário anterior — para apontar a incerteza das coisas e o caráter “gros-
seiro, obscuro e obtuso” de nossa percepção71. Igualmente é “livre e
vaga” nossa razão: uma vez que abandona o plano dos “fatos”, “[B]
[ela] é capaz de produzir uma centena de mundos diferentes e ainda
de descobrir os seus princípios e sua estrutura…” (III, 11, 1027). São,
por certo, elaborações fantasiosas, que encontram uma ocasião propí-
cia para proliferar ao deixarmos de considerar nossa ignorância (e per-
demos de vista que se trata de mera especulação):
[B] Engendram-se muitos abusos no mundo, [C] ou, para dizê-lo
mais enfaticamente, todos os abusos do mundo se engendram [B] de
que nos ensinam a temer a confissão de nossa própria ignorância [C]
e que somos obrigados a aceitar tudo aquilo que não podemos recu-
sar… (III, 11, 1030).
Essa afirmação dá vez a desenvolvimentos claramente inspirados
pelo pirronismo: uma condenação aos que tratam o verossimilhante
como verdadeiro, bem como um elogio aos modos de falar “não-reso-
lutivos” e à ignorância “forte e generosa” que nada deve em honra e
coragem ao “saber” (science), e para cuja compreensão, segundo Mon-
taigne, não é preciso menos science do que para a compreensão da
própria science (v. ibid.). Igualmente anuncia-se aí a motivação central
do ensaio: condenar os abusos das condenações das feiticeiras pelos
tribunais da Inquisição. Montaigne, em linhas gerais, denuncia o modo
como tais condenações são resultantes de processos fantasiosos, que se
iniciam na construção das provas, embora terminem em fogueiras reais.
Assim comenta ele um primeiro exemplo de condenação de feiticeira,
originado numa acusação feita numa brincadeira infantil:
[B] Podem-se ver [as coisas] claramente neste caso, que é escancara-
do. Mas em diversas coisas de qualidade semelhante, que ultrapas-
sam nosso conhecimento, sou da opinião de que devemos suspender
nosso juízo, tanto para recusar quanto para aceitar… (III, 13, 1030).

71. Ver III, 11, 1026BC.

444

10888_A figura do filosofo.p65 444 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

Poder-se-ia dizer, com base nessa fórmula, que se pretenderia esta-


belecer uma espécie de suspensão de juízo (entendendo-se aqui este
termo inclusive em seu sentido jurídico) relativamente aos processos
de acusação de feitiçaria. Para tanto, retomando J. Wier, ele argumen-
ta: “[B] Para matar as pessoas, é preciso uma evidência luminosa e
nítida, e a nossa vida é demasiado real e essencial para corroborar esses
eventos sobrenaturais e fantásticos…” (III, 11, 1031). Como vemos, o
problema reside na base precária das condenações: “[B] Sobretudo, é
preciso estimar suas conjecturas num valor bem alto para cozinhar um
homem vivo…” (III, 11, 1032).
Se o leitor pode se surpreender com a simplicidade do argumento,
cabe lembrar que a posição de Montaigne não apenas é bastante ousa-
da e corajosa em seu tempo, ao se confrontar à autoridade dos tribunais
da Inquisição, mas oposta ao senso comum jurídico da época, que ado-
ta como paradigma a Demonomanie des Sorciers, de Jean Bodin72. Como
notou Tournon, a estratégia argumentativa de Montaigne parece visar
os termos próprios das exigências de absolvição postuladas por Bodin73.
Este reage contra a tentativa de Wier de salvar as bruxas, segundo quem
as alegações seriam incompatíveis com a ordem da natureza. Para Bo-
din, essa argumentação é fraca: é preciso provar mais, quando se quer
salvar uma presumida bruxa; é preciso oferecer uma prova clara de que
os eventos alegados são incompatíveis com os milagres descritos nas
Escrituras. Uma vantagem da argumentação de Montaigne contra Bodin
seria, assim, a de não requerer nenhum conhecimento absoluto da ordem
da natureza e das condições de sua eventual transgressão. Alegando que
nossa imaginação produz causas de modo descontrolado quando aban-
dona o terreno dos fatos, ela devolve o ônus da prova à acusação:
Para acomodar os exemplos que a palavra divina nos oferece de tais
coisas, exemplos mui certos e irrefragáveis, e aplicá-los aos eventos
modernos, posto que não vemos nem suas causas nem seus meios, é
preciso um engenho [engine] diverso do nosso. Cabe, eventualmen-

72. Sobre a atitude de Montaigne contra os tribunais, ver VILLEY, 1933, t. II, p. 357
ss.; FRIEDRICH, 1968, p. 148-150.
73. Ver TOURNON, 1986, p. 75-76.

445

10888_A figura do filosofo.p65 445 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

te, a esse único todo-poderoso testemunho dizer-nos: este aqui é,


aquele também, mas não esse outro. Deus deve ser acreditado, há
verdadeiramente razão, mas não, em absoluto, algum de nós, que se
espanta com sua própria narrativa (e necessariamente ele se espanta
se não perdeu o senso), ainda que ele a empregue contra si mesmo…
(III, 11, 1031).
Porém, há mais do que isso — tanto em nível jurídico como filosó-
fico. Para vê-lo, é preciso bem observar como a crítica da imaginação
se torna aqui um pivô da argumentação cética. O aspecto talvez mais
interessante consiste no modo como esse ceticismo vai além da crítica
às especulações metafísicas que a imaginação produz além da expe-
riência. Estas seriam apenas uma forma mais flagrante de uma ativida-
de bem mais natural e corriqueira, pela qual a própria imaginação
inventa “fatos” — à qual alude o próprio título do ensaio. Como se
relacionam, afinal, com a crítica dos processos de feitiçaria estas outras
duas discussões paralelas: sobre por que as mulheres coxas propicia-
riam maior prazer sexual ou por que o hipismo deixaria as pernas mais
finas? Indaga-se sobre a causa de fatos sem antes se perguntar se os fatos
mesmos ocorrem:
[B] Eu divagava presentemente, como sempre faço, sobre como é a
razão humana um instrumento livre e vago. Eu vejo comumente
que os homens, ante os fatos que lhes são propostos, se entretêm mais
em buscar a razão do que em buscar a verdade: eles deixam de lado
as coisas, e se divertem em tratar das causas… Eles passam por cima
dos fatos [effects] mas examinam cuidadosamente as conseqüências.
Eles começam normalmente assim: Como isso aconteceu? — Mas
aconteceu? — é o que seria preciso dizer… (III, 11, 1026-1027)74.
Nessa singular revisitação do tema cético da vaidade dogmática
articulam-se a ação da razão e da imaginação: uma vez assumida, im-
plicitamente, a posse da verdade, os homens passam a se ocupar de sua

74. Ver também III, 11, 1034B, em que Montaigne explicitamente identifica essas
discussões pelo modo como exibem “a flexibilidade com que nossa invenção forja ra-
zões para toda sorte de sonhos” e nossa imaginação facilmente aceita “impressões falsas
a partir de verossimilhanças bem frívolas”.

446

10888_A figura do filosofo.p65 446 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

fundamentação e sua justificação, para persuadir os outros. Montaigne


alega, de sua própria experiência, haver observado como histórias mi-
lagrosas se constituíram com base em causas insignificantes ou desco-
nhecidas, transformadas pela tendência dos homens a fortalecer a ve-
rossimilhança das histórias que relatam, produzindo ficções que aten-
dam à intenção de persuadir, que naturalmente predomina sobre a
intenção de investigar:
[B] Eu vi o nascimento de diversos milagres em meu tempo… Os
primeiros que são embebidos nesse começo de estranheza, vindo a
semear sua história, percebem, pelas oposições que lhe são feitas,
onde reside a dificuldade de persuasão, e vão calafetando esse lugar
com alguma peça falsa. [C] Além disso, “insita homines libidine alendi
de industria rumores”75: nossa consciência naturalmente nos conduz
a devolver aquilo que nos foi emprestado com alguma usura e acrés-
cimo de nossa parte. O erro particular se faz primeiramente erro
público, e por sua vez, posteriormente, o erro público se faz particu-
lar… [B] É uma progressão natural. Pois cada qual que crê em algo
estima que é obra de caridade persuadir a outrem; e, para o fazer, ele
não teme acrescentar algo de sua invenção, na medida em que ele o
vê, por sua conta, ser necessário, para responder à resistência e ao
defeito que ele pensa estar na forma de conceber de outrem… (III,
11, 1027-1028; itálicos nossos).
Essa tendência natural à ficção, movida pela vaidade dogmática,
surge aqui como motor das condenações inquisitoriais: “Não há nada
a que comumente os homens sejam mais inclinados do que a dar ca-
minho a suas próprias opiniões: onde falta o meio ordinário, nós soma-
mos a ordem, a força, o ferro e o fogo…” (III, 11, 1028). A isso, soma-
se que o vulgo se deixa persuadir mais credulamente e a aceitação da
ficção pela opinião comum lhe confere um peso que a protege de ser
desfeita76. A própria curiosidade dos homens, enfim, não se vê normal-
mente saciada com causas que, por sua pequenez, escapam do apetite

75. TITO LÍVIO, Historia, xxviii, xxiv: “… pela tendência inata que leva o homem a
dar vazão aos rumores…”.
76. Ver ibid.

447

10888_A figura do filosofo.p65 447 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

da imaginação77. Contudo, aquelas das quais efetivamente se geram


essas ficções são geralmente desprezíveis, ou irrecuperáveis, ou enco-
bertas por aquilo que se presumem ser os fatos, quando não mascaradas
pela forma como os próprios condenados, por vezes, defendem, parcial
ou integralmente, por loucura ou ignorância, versões que conspiram
contra eles mesmos78.
Essa rica análise psicológica da constituição de crenças em fatos
imaginários permite-nos novamente observar que o ceticismo de Mon-
taigne não se restringe a uma crítica ao dogmatismo no sentido restrito
em que ele se apresentaria nas teorias filosóficas. A filosofia ofereceria
apenas um terreno especialmente fértil, porquanto especialmente des-
pregado dos fatos, em que podem agir as mesmas tendências ficcionais
que pontuam a existência cotidiana dos homens. Ao mesmo tempo,
vemos como esse ceticismo se projeta numa direção pela qual aparen-
temente os antigos não enveredaram, pois a mesma atividade fantasio-
sa que se deixa observar, de modo mais incisivo, na atividade filosófica
estaria potencialmente presente, em algum grau, já no processo pelo
qual descrevemos os fatos que se encontram à nossa disposição. Se já a
crítica do juízo, tal como exposta no item anterior, nos permitiu cons-
tatar que, em princípio, toda e qualquer impressão de verdade surge
como potencial objeto de suspeita e de uma possível crítica cética, esse
exame da imaginação não apenas confirma esse ponto, mas permite
melhor mapear as forças ativas que conduzem à produção de crenças
fantasiosas na posse de verdades, presentes no nível das motivações mais
básicas que conduzem os homens à ação e capazes de comprometer a
veracidade dos próprios relatos que buscam representar os fatos que se
oferecem à nossa experiência. Esse problema não parece ser, pela ótica
do ceticismo montaigniano, transitório ou secundário, posto que é re-
tomado em outras passagens79.

77. Ver III, 11, 1029B.


78. Ver III, 11, 1029-1031, esp. 1031B.
79. Por exemplo, no capítulo “Dos canibais”, eis como Montaigne apresenta o tes-
temunho no qual se baseia para discorrer sobre os povos do Novo Mundo: “[A] Esse
homem com quem estive era simples e grosseiro, o que é condição própria para dar
testemunho verdadeiro, pois as pessoas finas observam mais coisas, e bem mais curiosa-

448

10888_A figura do filosofo.p65 448 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

Ao mesmo tempo, a alegação de que o poder da imaginação é maior


e mais difundido do que estamos dispostos a reconhecer oferece um
pano de fundo para a argumentação jurídica. Não estaria o tribunal
meramente se solidarizando às fantasias que assume como verdadeiras,
ao se poupar do trabalho de verificar se os fatos alegados ocorreram?
Entre os exemplos de “histórias milagrosas” que Montaigne oferece,
encontram-se casos em que o tribunal admitiu a veracidade de relatos
sobre o assassinato de pessoas que posteriormente foram achadas vivas e
saudáveis (III, 11, 1031B). Abre-se, assim, caminho para o oferecimento
de um critério diverso daquele proposto por Bodin: em vez de aceitar
como verdadeiro um relato possível, à falta de provas conclusivas sobre
sua falsidade, é preciso antes examinar se os fatos de que dispomos são
compatíveis com esses relatos e considerar se eles não podem ser me-
lhor acomodáveis segundo uma explicação mais verossímil, segundo os
diversos aspectos de nossa experiência comum (aí compreendida, por
certo, nossa experiência sobre o poder da imaginação humana):
[B] Nessas outras acusações extravagantes eu diria, de bom grado,
que é bem suficiente que um homem, seja qual for sua recomenda-
ção, seja acreditado enquanto ser humano; quanto a aquilo que está
fora de sua capacidade de conceber e é fato [effect] sobrenatural, deve-

mente, porém as glosam. Para fazer valer sua interpretação e persuadir, não podem
evitar alterar um pouco a história: eles nunca vos representam as coisas puras, inclinam-
nas e mascaram-nas com a face que nelas viram. Para dar crédito a seu julgamento e
atrair-vos a ele, apresentam de bom grado a matéria daquele lado, alongam-na e ampli-
ficam-na. Ou bem é preciso um homem muito fiel, ou bem tão simples que não tenha
com o que construir e dar verossimilhança a invenções falsas, com nada comprometi-
do…” (I, 31, 205). Essa passagem poderia, à primeira vista, sugerir que as “pessoas
simples” seriam mais capazes de dizer a verdade do que as “pessoas finas”. Diríamos que
o critério é outro: trata-se de evitar os testemunhos das pessoas mais capazes porque, a
despeito dos méritos que possam conter, a própria capacidade destas, porquanto envol-
ve as mesmas tendências ficcionais, compromete sua veracidade. Assim, os testemunhos
das pessoas simples permitem mais facilmente fazer a triagem daquilo que é evidente-
mente forjado. Eis por que, adiante, Montaigne será forçado a relativizar o próprio
critério por ele adotado: “[A] Falei com um deles mui longamente, mas tinha um intér-
prete que me seguia tão mal e que, por sua estupidez, estava tão impedido de com-
preender minhas idéias [recevoir mes imaginations] que não pude obter nada muito
satisfatório…” (ibid., 214).

449

10888_A figura do filosofo.p65 449 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

se nele crer apenas quando uma aprovação sobrenatural o autorizar…


Tenho as orelhas calejadas de mil contos como este: três o viram um
tal dia no levante, três o viram no dia seguinte no ocidente, a tal hora,
em tal lugar, assim vestido. Quanto acho eu mais natural e verossímil
que dois homens mintam do que alguma espécie de homem passe,
em doze horas, como fazem os ventos, do oriente ao ocidente? Quão
mais natural que seu entendimento seja transportado de seu lugar
por nosso espírito desregulado do que alguém seja raptado numa
vassoura, pelo buraco da sua chaminé, em carne e osso, por um es-
pírito estranho? Não busquemos ilusões externas e desconhecidas, nós
que já somos perpetuamente agitados por ilusões domésticas e nossas.
Parece-me perdoável de descrer numa maravilha, tanto mais se po-
demos elidir sua verificação por uma via não maravilhosa. Sou da
opinião de santo Agostinho, segundo quem vale mais pender para a
dúvida do que para a segurança nas coisas de difícil prova e de peri-
gosa crença… (III, 11, 1031-1032; itálicos nossos).
É importante notar, contudo, que a verossimilhança que preside
essa opção interpretativa — pela qual é mais fácil crer que dois estejam
mentindo ou que aquele que não se espanta com seu relato sobrenatu-
ral esteja “fora de si”80 — não pretende se medir, como ocorria no caso
de Wier, por um conhecimento inviolável da ordem da natureza. Ela
se apresenta apenas como uma explicação mais aceitável, ainda que
meramente no plano da verossimilhança, ante os riscos maiores em
que incorre a explicação oposta de comungar com uma explicação
falsa. Por certo, Montaigne não descrê da loucura dos réus ou da men-
tira delirante das testemunhas, como não exclui a possibilidade de
aplicação de penas judiciais cabíveis quando fatos que as mereçam pu-
derem ser averiguados81. Possivelmente, referindo-se à sua explicação
como mais “verossímil”, ele atenda a algum cuidado retórico diante
dos interlocutores, posto que se trata de simplesmente negar a ocorrên-
cia de fatos diante dos que estão dispostos a examinar suas causas82. Mas

80. Ver os exemplos oferecidos e comentados em III, 11, 1028B e 1032B.


81. Ver III, 11, 1031B.
82. Ver III, 11, 1027B.

450

10888_A figura do filosofo.p65 450 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

não se trata apenas disso, e sim de uma conseqüência de sua postura


cética que se traduz aqui numa vantagem argumentativa (ao menos na
medida em que Montaigne não se apóia, como dissemos, numa pre-
sunção sobre a ordem absoluta da natureza). Assim, sua crença na
explicação que sustenta contra as acusações de bruxaria pode ser admi-
tida com o estatuto de uma fantasia alternativa proposta pela razão, por
si mesma capaz de sustentar uma infinidade de versões diversas dos
fatos, especialmente quando estes não são passíveis de verificação.
Montaigne não pretende apenas abdicar de julgar acerca do sobrena-
tural, mas também de tratar o verossímil como verdadeiro, e aqui o
critério que lhe permite se fiar no verossímil, segundos os diversos as-
pectos da experiência humana que podem servir de guia, reside tanto
na evidência com que determinada “fantasia” se impõe (posto que aos
fatos mesmos não se tem acesso) quanto, sobretudo, no modo como
uma outra explicação pode ser elidida — como uma quimera que não
cabe em nossa imaginação. Se Montaigne aceita uma e recusa outra,
não pretende se fiar num critério capaz de garantir a solidez essencial
de um tipo de explicação por oposição a outro: o assentimento, mesmo
aqui, obedece aos mesmos princípios céticos e é inteiramente relativo
às evidências disponíveis, provisório e reversível, bem como inteiramente
conforme ao uso de uma razão que se reconhece incapaz de determi-
nar a verdade.
[B] O que eu digo, como alguém que não é nem juiz nem conselhei-
ro dos reis e não se estima nem de longe digno, mas antes um ho-
mem comum [homme du commun], nascido e votado à obediência
da razão pública nos seus feitos e dizeres. Quem levasse meus deva-
neios em conta em prejuízo da mais cativa lei de seu vilarejo, ou
opinião, ou costume, cometeria um grande erro, e também com re-
lação a mim. [C] Pois, naquilo que digo, não deponho outra certeza
senão aquela que tenho então no meu pensamento, pensamento
tumultuado e vacilante. Nec me pudet, ut istos, fateri nescire quod
nesciam [“Não tenho, como tais pessoas, vergonha de confessar que
ignoro o que ignoro” (Cícero, Tusculanas, I, xxv)] [B] Eu não seria
tão ousado a ponto de falar se me coubesse ser acreditado, e foi o que
respondi a um eminente que se queixava da aspereza e da combati-

451

10888_A figura do filosofo.p65 451 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

vidade [contention] de minhas exortações. Sentindo-vos inclinado e


predisposto para um lado, eu vos proponho o outro com todo o cui-
dado que posso, para esclarecer vosso juízo, não para obrigá-lo…
(III, 11, 1033)83.
É no terreno comum da fantasia, portanto, que podem vicejar tan-
to as explicações claramente delirantes — cuja aceitação coletiva pode
criticamente nos alertar sobre como nos iludimos sobre o alcance de
nosso conhecimento — como as explicações mais verossímeis que se
podem oferecer em troca — entre as quais o próprio diagnóstico cético
sobre a precariedade da razão, e que se relativiza a si próprio, como
vimos, de um modo análogo ao que a dúvida cética, segundo os anti-
gos, se aplica sobre si mesma.
Dado o caráter assumidamente precário das estimações acerca dos
fatos e a natureza meramente “prática” das decisões que se podem tomar
nessas condições, não se tem aí uma boa razão para evitar, por princípio,
as penas mais radicalmente irreversíveis? Apesar da relativa vantagem
argumentativa da posição de Montaigne relativamente à de Wier, o ponto
não se torna, por isso, menos delicado, pois sua simples opção pela ex-
plicação verossimilhante, como ele mesmo informa, provocou as rea-
ções mais exaltadas84. Por que a alternativa rebatida não seria apenas,
segundo Montaigne, “difícil de ser provada”, mas também representaria
uma “perigosa crença”? Um perigo particular, decorrente da pretensão
de afirmar a verdade nos assuntos em que o próprio santo recomenda a
dúvida e a prudência, pode residir no modo como aquele que alega a
ocorrência de um milagre se situa tacitamente na situação de intérprete
do poder divino. Não seria particularmente arriscado, especialmente nesse
contexto de perseguição e intolerância dogmática, envolver-se indireta-
mente numa questão legislativa acerca dos desígnios sobrenaturais?
Esses dois exemplos aqui comentados revelam, em nosso entender,
uma importante faceta da prática cética de Montaigne — pela qual ela

83. Ver igualmente III, 11, 1026BC.


84. Ver III, 11, 1031B. Isso parece ter relação com seu recurso à autoridade de Agos-
tinho na passagem que citamos, o que ofereceria, nesse contexto, um importante argu-
mento adicional.

452

10888_A figura do filosofo.p65 452 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

se apresenta como uma crítica da imaginação que reconhece, ao mes-


mo tempo, a impossibilidade de se evadir plenamente do terreno da
imaginação. Disso resulta, como vimos, uma atitude de autocrítica e
tolerância: “[B] … é preciso um inquisidor bem prudente, atento e sutil
em tais pesquisas, indiferente e sem pré-julgamentos…” (III, 11, 1029).
Esses exemplos nos mostram, igualmente, como as ilusões “externas e
desconhecidas”, que são propriamente seu objeto, apenas projetam em
grandes caracteres as ilusões “domésticas e nossas” que permanentemente
nos agitam. Para além dos “delírios” que claramente se opõem ao curso
regular da experiência, o próprio Montaigne confessa que, a despeito de
seu “singular escrúpulo em não mentir”, se percebe freqüentemente
acalentado — “ou pela resistência de outrem, ou pelo calor próprio da
narração” — a dispor suas fantasias numa versão mais aceitável para
aqueles a que se destinam, com eventual prejuízo de sua plena veraci-
dade85. Trata-se de uma vaidade na qual involuntariamente nos embara-
çamos, inerente à condição humana, e da qual o cético não se encontra
imune simplesmente em virtude de seu engajamento filosófico: “[B]
Nós amamos nos embrulhar na vaidade, como é conforme a nosso ser…”
(III, 11, 1027). O que esse engajamento lhe propicia é, sobretudo, uma
consciência particular dessa situação e a possibilidade de adotar uma
atitude mais conseqüente diante dela. Também por esse viés, a zétesis
cética tende a se converter numa atividade incessante e indeterminada,
diante de um movimento fantasiador natural da alma humana86.
Podemos também ver que, se a exigência de um exame das pró-
prias fantasias se enraíza no mesmo projeto filosófico de que resulta-
ram os ensaios estóicos (como meio de avaliação das condições particu-
lares pelas quais Montaigne poderia levar esse projeto a bom termo), a
superação cética do estoicismo acentua o viés introspectivo que, liber-
tado da normatividade do projeto filosófico inicial, acaba por se desen-
volver na forma do “retrato do eu” (que consistirá tanto num exame
autocrítico da fantasia como num expediente para melhor conhecê-la).
Podemos igualmente compreender por que a onipresença da fantasia

85. III, 11, 1028B.


86. Ver III, 11, 1027-1028B.

453

10888_A figura do filosofo.p65 453 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

no campo de nossas percepções não se converte, para Montaigne, num


problema relativo à determinação da existência do mundo exterior, como
ocorrerá na filosofia pós-cartesiana. As questões sobre a correspondên-
cia entre nossas fantasias e as coisas encontram-se plenamente formu-
ladas, como vimos. Mas para que a impossibilidade de identificarmos
nossas representações às coisas se converta num problema de refutação
do solipsismo e de prova da existência do mundo exterior são necessá-
rios outros pressupostos (entre os quais a admissão de que o duvidoso
possa ser identificado ao falso; ou mesmo a crença de que possamos
dispor de uma ciência absoluta acerca do mundo além de nossas repre-
sentações, como ocorrerá na filosofia cartesiana). No caso de Montaig-
ne, a naturalização cética da fantasia pretende ser, ao contrário, a con-
seqüência do reconhecimento de nossos limites cognitivos, relativos a
como nos inserimos no mundo, e diante disso buscar, se possível, uma
maneira menos irrealista de enfrentar nossas perturbações.

7.4. Uma imagem menos fantasiosa do homem


Cabe agora examinar melhor as transformações aportadas pelo ce-
ticismo às motivações filosóficas originárias de Montaigne — a saber,
dissipar os “monstros fantásticos” produzidos pela imaginação solitária.
Se antes o objetivo era, como vimos, obter seu controle por intermédio
das verdades que obtém a reta razão, harmonizando-a com a natureza,
o aspecto mais claro em que essa mudança se apresenta talvez seja o
que reside na transformação profunda da idéia de “contornar [con-
tourner] a alma”. Na época da redação da “Apologia”, a expressão “tor-
near [tourner] a razão” surge associada não ao conhecimento da verda-
de, mas à capacidade de bem usá-la, considerada em sua ambigüidade
própria, pela qual se pode igualmente argumentar pró e contra qual-
quer opinião — capacidade essa que corresponderia a uma compreen-
são mais aguda de sua natureza87. O núcleo dessa transformação, portan-

87. Passagens que exemplificam essa acepção cética de contourner encontram-se em


559A, 565A (ver item 2.4 — “Doença racional e terapia cética”); I, 23, 112A; III, 8,
929B.

454

10888_A figura do filosofo.p65 454 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

to, reside no abandono da crença filosófica de que a razão possa conhe-


cer verdades (e, por esse meio, encontrar uma maneira de suplantar
seus próprios desarranjos imaginativos).
Vimos que, no contexto da defesa da Teologia de Sebond, a capa-
cidade de “contourner” a razão concernia ao modo como ela podia ser
empregada em vista das razões dos objetores que se tratava de rebater,
segundo sua força variável e aquilo que poderia, supostamente, ser aceito
por qualquer objetor. Ora, o objetivo mesmo dos Ensaios será — a
partir de 1578, quando Montaigne formula explicitamente o projeto
de oferecer um “retrato de si” por meio de sua obra — associado à
exibição daquilo que constitui a individualidade de seu autor, tal como
se evidencia, em especial, no tratamento particular que seu juízo dá
aos exemplos e opiniões considerados em sua obra. Porém, na medida
em que tal manifestação não se pretende a enunciação de uma verdade
absoluta, ela pode se refletir no registro de suas “fantasias”:
[A] Não tenho dúvida que freqüentemente me ocorre de falar de
coisas que são mais bem conhecidas pelos mestres desses assuntos
e mais verdadeiramente. Aqui está apenas o ensaio de minhas fa-
culdades naturais, e não das adquiridas, e quem acusar minha igno-
rância nada fará contra mim, pois dificilmente eu responderia a
outrem por minhas considerações [discours], eu que não respondo
nem a mim mesmo, nem estou com elas satisfeito. Quem estiver
em busca do saber [science] que o pesque onde ele está. Não há
nada de que eu faça menos profissão. Aqui estão minhas fantasias,
pelas quais eu não viso conhecer as coisas, mas a mim mesmo. Elas
[as coisas] me serão casualmente conhecidas um dia, ou outrora o
foram, segundo o modo pelo qual a fortuna me tenha podido levar
aos lugares onde elas estejam esclarecidas… Assim eu não almejei
nenhuma certeza, mas apenas fazer conhecer a que ponto vai, neste
momento, o conhecimento de que disponho… (II, 10, 407-408;
itálicos nossos).
Se já no período estóico formulava-se o projeto de um auto-exame
de sua condição imaginativa, agora as fantasias que resultam de suas
faculdades naturais conferem a tal projeto autonomia e posição central
na obra. Contudo, em que sentido pretende Montaigne conhecer a si

455

10888_A figura do filosofo.p65 455 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

mesmo? A “ignorância” é admitida em vista da ausência de um critério


para discernir, entre as diversas opiniões, passadas ou presentes, aquela
que corresponderia à science. Dizer que as coisas foram “casualmente”
conhecidas um dia significa, no contexto acima, apenas reconhecer
que eventualmente admitimos, com as crenças falsas, outras verdadei-
ras, sem dispor de critérios adequados para detectá-las. Assim, se algum
“conhecimento” ele pretende oferecer, sem todavia dispor de tal crité-
rio, não se trata de science, no mesmo sentido que, algumas linhas aci-
ma, esta foi recusada. Trata-se agora de simplesmente exibir o movi-
mento de suas crenças, assumidamente transitórias, tal como produzi-
das segundo suas faculdades naturais — numa palavra: suas “fantasias”.
A essa altura, Montaigne observa seu projeto filosófico anterior como
um exemplo da forma fantasiosa como os dogmáticos concebem nossa
existência: a posse da razão revela-se antes indissociável da experiência
de paixões que nos assaltam sem cessar (v. 486A), e os saberes disponí-
veis são agora vistos, de modo geral, como incapazes de nos propiciar
uma existência mais tranqüila do que aquela que o homem comum
pode fruir pela força do costume. A “doutrina”, diz ele, embora não
seja de todo inútil para a vida, tem seu valor relativizado, posto ao lado
da glória e da dignidade; ele se determina “um pouco mais por fantasia
que por natureza”88. A própria fantasia ocupa o lugar de critério prático
e determina, assim, a utilidade da science (como veremos melhor adian-
te). Contudo, a despeito desse valor circunstancial, ela tende a ser
observada, doravante, como fonte de perturbação: as falsas opiniões
que a filosofia alimenta acerca do que somos originam males adicio-
nais, que se somam aos naturais, sem propriamente remediá-los: “[B]
… a science, buscando nos armar de novas defesas contra os inconve-
nientes naturais, imprimiu mais em nós, na fantasia, sua grandeza e
seu peso do que nos protegeu deles com suas razões e sutilezas…” (III,
12, 1038). Ainda outra vez estamos diante de uma temática pirrônica:
segundo Sexto, embora os céticos assintam ao páthos involuntariamente
causado pela experiência dos males, sua moderação opinativa (metrio-

88. Ver 487A.

456

10888_A figura do filosofo.p65 456 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

pathía) permite que eles se defrontem com os infortúnios inevitáveis


sem amplificá-los. Já os dogmatismos, incapazes de sanar os males que
naturalmente possuímos, acrescentam outros à nossa simples experiên-
cia, ao fomentarem a crença de que as coisas sejam boas ou más em si
mesmas. Tal tema, objeto de várias reflexões à época da “Apologia”89,
reaparecerá em passagens tardias que relatam sua experiência pessoal:
[B] Eu represento as minhas doenças, na sua maior parte, tal como
elas são, e evito as palavras compostas de mau prognóstico e excla-
mação… Eu quero estudar a doença quando estou são; quando ela
está presente, ela faz a sua impressão de modo bastante real, sem que
minha imaginação a ajude… (III, 9, 979).
Mas considera Montaigne a possibilidade de um conhecimento
numa esfera meramente subjetiva? Estaríamos, ao voltar-nos para o
“eu”, diante de uma esfera epistemicamente privilegiada na qual, por
oposição aos objetos situados no mundo externo ao eu, poderíamos
garantir a possibilidade de conhecimento — como ocorrerá, de modo
geral, na epistemologia cartesiana e moderna? De fato, na “Apologia”,
ao longo de uma argumentação crítica, Montaigne sugere que, se a
alma fosse capaz de conhecer algo, deveria antes conhecer a si mesma
que às coisas externas90. Se, em vez de tais coisas, temos apenas acesso
às representações produzidas por nossas faculdades, devemos supor que
o conhecimento do próprio homem seja mais factível.
Embora possa parecer artificial a aproximação dessas questões morais
e epistemológicas, importa aprofundar a compreensão de seu posicio-
namento cético relativo ao problema do conhecimento do homem para
ver que a transformação mais radical da espécie de terapia filosófica
inicialmente almejada pelos Ensaios deixa de depender, propriamen-
te, de um conhecimento teórico da natureza humana. A partir de seu
engajamento cético, Montaigne não vislumbrará, seja na esfera dos

89. Ver 490-491A (desenvolvimento examinado em 4.2 — “Um pirronismo lúdico”);


cf. HP I, 27-30.
90. “[A] Por onde melhor poderíamos experimentá-la [a razão] do que por ela mes-
ma? Se não podemos nela crer falando de si mesma, dificilmente seria ela apropriada
a julgar as coisas externas…” (541-542).

457

10888_A figura do filosofo.p65 457 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

objetos externos ao eu, seja na esfera da subjetividade, nenhuma instân-


cia de conhecimento em sentido próprio. O que a razão mostra acerca
da alma humana é uma confusão de opiniões contraditórias e falsas,
que ainda uma vez o conduzem a assemelhar as posições dos filósofos
às ficções dos poetas91. Se, no caso do homem, a exigência de ve-
rossimilhança é maior que a que se aplica aos pintores que represen-
tam apenas paisagens de coisas distantes e desconhecidas92, isso se afir-
ma para enfatizar as críticas àquilo que a filosofia, de modo geral, ofe-
rece a esse respeito:
[A] Eles fazem [do homem] uma coisa pública imaginária. É um
objeto que eles pegam e manejam, outorgando-se todo o poder de
descosturar, arrumar, ajuntar e preencher, cada qual segundo a sua
fantasia; e mesmo sem ainda o possuir. Nem em verdade, nem mesmo
em sonho eles não o podem regular de um modo que não se encon-
tre alguma cadência ou som que escape à sua arquitetura, tão mons-
truosa que ela é, e montada de mil pedaços falsos e fantásticos…
(538; itálicos nossos).
A proximidade do homem relativamente a si próprio acaba, em vez
disso, por conferir uma nota paradoxal ao seu empreendimento de obter
uma imagem verdadeira de si, posto que ela conduz à exigência de
uma espécie de representação que acaba por se revelar bem mais difícil
do que a das coisas situadas no exterior93. Isso não significa que o autor

91. Ver 542-544 ABC.


92. Ver 538C.
93. Segundo BRUSH (cf. 1966, p. 33-34), seria possível identificar as filosofias céticas
de Montaigne e Francisco Sanches, na medida em que ambos reconheceriam a existên-
cia de uma distância intransponível entre o homem e a realidade externa e a maior
facilidade que o homem teria de se conhecer por oposição à realidade externa. Parece-
nos, ao contrário, que, embora ambos os filósofos afirmem explicitamente a impossibi-
lidade de conhecimento externo e interno, o tratamento dessa oposição é diverso em
ambos os autores. Segundo Sanches, são fatores diversos que caracterizam a maneira
como nos acercamos dos objetos e a impossibilidade de “conhecimento perfeito”, no
âmbito interno e externo: “… neste último tipo, o entendimento dispõe de algo a que
ele pode se ater, isto é, a forma de um homem, uma pedra ou uma árvore, a qual ele
derivou dos sentidos… Mas no primeiro tipo, que tem a ver com as noções interiores,
o entendimento não encontra nada que ele possa extrair, ele tropeça aqui e ali, e vai
cambaleando como um cego em busca de saber se ele pode se apoiar em algo… Por

458

10888_A figura do filosofo.p65 458 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

dos Ensaios abdique de pretender oferecer um conhecimento mais acei-


tável do homem e, em especial, de si mesmo — empresa à qual, em
vista de sua utilidade e a despeito de sua especial dificuldade, ele su-
bordina sua obra:
[C] Como diz Plínio, cada um é uma boa escola [discipline] para si
mesmo desde que tenha a capacidade de se observar de perto. Esta
aqui não é minha doutrina, é meu estudo, e não é a lição de outrem,
é a minha. E não me levem a mal se, entretanto, eu a comunico. O
que me serve pode também por acidente servir a um outro… É uma
empresa espinhosa, mais do que o parece, seguir um andamento tão
errante como o do nosso espírito, e de penetrar as profundezas opa-
cas de suas dobras internas, de escolher e fixar [arrester] tantos ares
minúsculos de suas agitações… Não há descrição igual em dificul-
dade que a descrição de si, nem certamente em utilidade… (II, 6,
377-378)94.
Mas será factível, afinal, tal empresa, em vista desse caráter parado-
xal que assume? Sua especial dificuldade é assinalada mesmo nos mo-
mentos em que Montaigne evoca, como meio de criticar e ridiculari-
zar os dogmáticos que pretendem investigar as coisas exteriores, a fami-
liaridade que o homem tem consigo próprio:
[A] De todas as opiniões que a Antiguidade teve sobre o homem em
geral, aquelas que eu abraço mais prontamente e às quais eu mais
me atenho são aquelas que mais nos desprezam, rebaixam e anulam.
A filosofia não me parece nunca fazer nada de melhor do que quan-
do combate nossa presunção e vaidade, quando ela reconhece de
boa-fé sua irresolução, fraqueza e ignorância… Essas pessoas que par-

oposição a isso, no entanto, a apreensão dos objetos externos, adquirida por meio dos
sentidos, é superada em certeza pela espécie de apreensão que temos dos objetos que se
originam ou existem no interior de nós. Pois eu estou mais seguro de que eu possuo
tanto a inclinação quanto a vontade, e de que estou em determinado momento contem-
plando esta idéia, e em outro momento evitando e repelindo aquela idéia, do que estou
de poder ver um templo, ou Sócrates…” (QNS, 58, pp. 243-244). Assim, Sanches pa-
receria estar mais disposto que Montaigne a admitir aquilo a que Descartes recorrerá
contra a dúvida cética e se converterá em uma premissa básica, de modo geral, das
teorias do conhecimento clássicas.
94. Ver ainda III, 9, 1000-1001 (passagem citada no final do capítulo anterior).

459

10888_A figura do filosofo.p65 459 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

tem a galope sobre o epiciclo de Mercúrio, [C] que vêem tão longe
nos céus, [A] elas me arrancam os dentes. Pois no estudo que eu faço,
cujo objeto é o homem, encontrando uma tão extrema variedade de
juízos, um tão profundo labirinto de dificuldades umas sobre as ou-
tras, tanta diversidade e incerteza na escola mesma da sabedoria,
podereis pensar: posto que [os sábios] não puderam nem mesmo se
decidir no que tange ao conhecimento deles mesmos e de sua con-
dição, que está continuamente presente a seus olhos e que está neles
mesmos, posto que não sabem como se move aquilo mesmo que os
faz mover, nem como nos pintar e decifrar as molas que eles mesmos
manejam, como poderia eu crer no que dizem da causa do fluxo e do
refluxo do Nilo?… (II, 17, 634-635).
Se nalguma medida se faz possível um “conhecimento” do homem,
não cabe esperar mais do que a obtenção de uma imagem “mais veros-
similhante” do que as quimeras que “nem em sonho” poderiam satis-
fazer um olhar mais atento. Porém, o primeiro passo a ser dado nessa
direção, como mostra essa passagem, consiste em reservar, no centro
dessa imagem, um lugar principal para o reconhecimento de nossa
ignorância sobre o que somos — onde se projetam os mesmos limites
naturais de nossas faculdades cognitivas já considerados.
Situamo-nos, assim, num registro bem diverso daquele das filoso-
fias dogmáticas, que, a despeito de se enredarem num “profundo labi-
rinto de dificuldades”, reeditam implicitamente uma mesma crença
na dignitas hominis, ao pretender que a razão humana seja capaz,
nalguma medida, de superar as vicissitudes de nossa condição. Contu-
do, apesar de algumas passagens poderem sugerir o oposto, Montaigne
não pretende sustentar a concepção dogmática oposta — pela qual o
homem se encontraria numa situação essencialmente inferior à de outras
criaturas. Trata-se sobretudo de alertar para o modo como somos con-
duzidos a fantasiar nossos poderes e a perder de vista aquilo que efeti-
vamente nossa experiência nos pode oferecer: “[B] Não busquemos
ilusões externas e desconhecidas, nós que somos perpetuamente agita-
dos por ilusões domésticas e nossas” (III, 11, 1032). A crítica cética da
fantasia não almeja, por sua vez, produzir uma compreensão completa
ou absoluta de nossa condição, nem propiciar uma superação de nossa

460

10888_A figura do filosofo.p65 460 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

condição imaginativa: ela se concebe como um esforço filosófico rela-


tivo, precário e limitado diante de uma natureza humana que, como a
natureza externa, parece transcender indefinidamente, e talvez mais
claramente, nossa pretensão de abarcá-la.
Também aqui seria possível divisar a distância entre as reflexões de
Montaigne e a tematização do homem por Descartes. Apesar de a filo-
sofia cartesiana valer-se também de uma crítica da imaginação para
traçar sua concepção de subjetividade95, o tipo de conhecimento por
ela almejado a situaria, em princípio (sem entrarmos aqui no mérito de
seus argumentos), no alvo da mesma crítica geral que Montaigne diri-
ge à filosofia dogmática. Seja o entendimento do eu acerca de sua na-
tureza pensante um fio condutor do exame pelo qual ele se compreen-
de, na Segunda Meditação, como uma substância pensante distinta do
corpo, cuja essência seria o próprio entendimento, à qual se agrega-
riam, como seus atributos ou modos, todos os demais atos do eu (duvi-
dar, conceber, afirmar, negar, querer, imaginar ou sentir)96 — não
motivaria tal percurso a Montaigne essa mesma avaliação acerca de
como os filósofos “pegam e manejam [o homem], outorgando-se todo
o poder de descosturar, arrumar, ajuntar e preencher, cada qual segun-
do a sua fantasia…”? Ofereça ou não o cogito a crença em uma certeza
inabalável, o problema diz respeito ao estatuto dessa crença como uma
pedra basilar para a produção de uma imagem definitiva do homem, a
salvo da ingerência da imaginação. Não poderia, de um ponto de vista
cético, o teor absoluto dessa certeza representar antes um testemunho
da cegueira de nosso entendimento, em vista dos demais elementos
que nossa experiência nos oferece acerca de nós mesmos? Em lugar de
uma arquitetônica das faculdades humanas, no centro das quais se si-
tuaria o conhecimento, Montaigne pretende descrever nossa condição

95. Ver, em especial, o parágrafo décimo da Segunda Meditação: “Mas eu não posso
me impedir de crer que as coisas corporais, cujas imagens se formam pelo meu pensa-
mento, e que caem sob os nossos sentidos, não sejam mais distintamente conhecidas
que não sei qual parte de mim mesmo que não se oferece de modo algum à imagina-
ção… Mas vejo bem o que é: apraz a meu espírito extraviar-se; ele não se pode conter
ainda nas medidas justas da verdade…” (AT VII, 29, ed. Beyssade, 82-83).
96. V. AT VII, 23-30, ed. Beyssade, 70-83.

461

10888_A figura do filosofo.p65 461 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

tendo em vista que, seja qual for a imagem obtida, tratar-se-á sempre,
nalgum grau, de uma fantasia. Trata-se de adotar uma postura filosó-
fica coerente com o reconhecimento dos elementos imaginativos que
inexoravelmente cimentam a nossa natureza. Eis como Montaigne
alude, no ensaio “Dos coxos”, ao seu auto-retrato:
[B] Até este momento, todos esses milagres e eventos estranhos se es-
condem diante de mim. Eu não vi monstro ou milagre mais expresso
que eu mesmo. Familiarizamo-nos com toda a estranheza pelo uso e
o tempo, mas mais eu me persigo e me conheço, mais minha deformi-
dade me espanta, menos eu me entendo em mim… (III, 11, 1029).
O apelo reiterado de sua argumentação a substituir as simplifica-
ções dogmáticas pelo esforço de considerar mais atentamente nossa
experiência também aqui se aplica. Contra a tendência a nos conside-
rarmos um composto de duas partes separadas, corpo e alma, encontra-
remos, nos Ensaios, freqüentes considerações destinadas a evidenciar
como nossa condição é “espantosamente corporal” (mais do que, su-
postamente, tendemos a perceber), mas também à remissão daquilo
que é corporal a um aspecto “espiritual” a ele relacionado, que tende-
mos a desconsiderar97. Tendemos, também, a desconsiderar a interfe-
rência de elementos que escapam à nossa consciência na apreensão
das coisas, outorgando, em vez disso, uma espécie de auto-suficiência
ilusória a nossas faculdades cognitivas. Este tema, já examinado no
capítulo anterior da perspectiva da ação do juízo, ressurge em diversas
ocasiões — como nos diversos exemplos alinhados em “Da vaidade”,
relativos ao poder que a presença dos objetos sensíveis pode ter sobre
nossa vontade98, ou ao poder com que as paixões, uma vez instaladas,

97. Ver, por exemplo, III, 13, 1114B: “Que o espírito vivifique o peso do corpo e o
corpo detenha a leveza do espírito e a fixe…”. Cf., igualmente, ibid., 1106B, 1110C; II,
17, 639-642A. São freqüentes, em especial, passagens que evocam a corporalidade da
nossa condição, contra aqueles que nos pretendem tomar como seres essencialmente
espirituais (cf., p. ex., ibid., 1115BC), ou então que buscam pôr em paralelo a condição
do corpo e da alma (p. ex., III, 4, 823B, 839B; III, 11).
98. “Eu elevo minha coragem ao encontro das adversidades; os olhos, eu não pos-
so…” (III, 9, 954); ver também III, 8, 930B. Parece ecoar nessa temática a argumenta-
ção cética da “Apologia” acerca de como os sentidos contradizem a razão e sobre ela se
impõem; cf. 594A.

462

10888_A figura do filosofo.p65 462 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

permanecem agindo a despeito de nos crermos capazes de dominá-


las99. Numa posição igualmente antagônica àquela que o estoicismo
delega ao poder da razão e àquela que identificaria o eu pensante e a
vontade consciente como a substância que daria unidade aos diversos
atos do sujeito ao longo do tempo, Montaigne insiste na idéia de que
tendemos a constituir uma identidade imaginária para aquilo que so-
mos, possuidora de estabilidade e uniformidade num grau que não cor-
responde àquele que poderemos constatar se observarmos devidamen-
te o que nos oferece nossa experiência acerca de nós mesmos:
[A] Nós não pensamos no que queremos senão no instante em que
o queremos, e mudamos como esse animal que toma a cor do lugar
onde o pomos… Nós não vamos, somos levados, como as coisas que
flutuam, ora suavemente, ora com violência, conforme seja a água
revolta ou tranqüila… Cada dia, nova fantasia, e movem-se os nossos
humores com o movimento do tempo… [C] Nós flutuamos entre
diversas opiniões: nós não queremos nada livremente, nada absoluta-
mente, nada constantemente… (II, 1, 333).
Podemos ver que a imagem da instabilidade e da variedade que
compõem a nossa natureza — motivo central da imagem do homem
que se desenha a partir do segundo livro dos Ensaios — tem como
pano de fundo a crítica da ficção dogmática que nos concebe como
seres constantes e estáveis em suas opiniões e percepções, num grau
maior, ao menos, do que aquele que corresponde à nossa experiência
efetiva. Não apenas nossas opiniões são mais provisórias e movediças
do que temos tendência a admitir, mas pensamos, a cada instante, poder
discriminar um estado determinado como aquele que nos caracteriza;
igualmente, pensamos o homem como uma composição organizada e

99. Ver III, 9, 950B. A mesma idéia é o tema central do capítulo quarto do livro III,
no qual Montaigne propõe seu método da “diversão” (diversion), isto é, de expedientes
para desviar, através de uma “fácil e insensível inclinação”, a “paixão do luto”, uma vez
instalada. Isso porque pretender enfrentá-la diretamente, pela razão, parece-lhe algo
fadado ao insucesso: “Procedem mal os que se opõem a essa paixão, pois a oposição
aguilhoa-os e engaja-os mais fundo na tristeza: exaspera-se o mal pela vaidade da discus-
são…” (III, 4, 830). Mais uma vez, esses desenvolvimentos parecem remontar ao modo
como na “Apologia” Montaigne observa o poder com que as paixões podem dominar
nosso juízo (v., p. ex., 568-569). Ver ainda III, 10, 1017B.

463

10888_A figura do filosofo.p65 463 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

bem equilibrada de faculdades que se inter-relacionam e complemen-


tam, por meio de “mil peças [lopins] falsas e fantásticas” (composição
que cada filosofia moral dogmática procura expor e aperfeiçoar, sem
poder chegar a um acordo, nem mesmo a um retrato fiel do modelo
comum). Essa imagem Montaigne substitui por outra, que pretende
resultante de sua experiência e observação de si — mas presumida-
mente compatível com aquela que qualquer um obteria se se detivesse
como ele em observar a si mesmo, ao menos em alguns de seus aspec-
tos principais: “[A] Nós somos todos [feitos] de pedaços [lopins], e de
uma contextura tão disforme e tão diversa que cada peça, cada momen-
to, faz seu jogo. E se encontra tanta diferença de nós a nós mesmos
quanto de nós a outrem…” (II, 1, 337)100. Em vez de subordinadas a
uma identidade única e autônoma, as partes de que somos compostos
possuem uma autonomia relativa que desconhecemos e ocultamos sob
o que imaginamos a nosso respeito. Em vez de sermos permanente-
mente idênticos a nós mesmos, por intermédio de nossa consciência,
esta simplifica a ambigüidade intrínseca e a multiplicidade indetermi-
nada de estados, eventualmente incongruentes:
[B] Não somente o vento das ocorrências [accidens] me move segun-
do sua inclinação, mas, além disso, eu me remexo e perturbo a mim
mesmo pela instabilidade de minha posição. Quem observa isso aten-
tamente quase nunca se encontra duas vezes no mesmo estado. Eu
dou à minha alma ora uma face, ora uma outra, segundo o lado para
o qual a volto. Se eu falo diversamente de mim, é porque me observo
diversamente. Todas as contrariedades aí se encontram de alguma
maneira [tour] e nalguma forma [façon]. Envergonhado, insolente.
[C] Casto, luxurioso. [B] Falador, taciturno. Laborioso, delicado.
Engenhoso, embotado. Aflito, afável. Mentiroso, veraz. [C] Sabedor,
ignorante, e liberal, e avaro, e pródigo, [B] tudo isso, eu vejo em mim
nalguma medida, na medida em que me volto; e qualquer um que se
estude bem atentamente encontra em si, e no seu próprio juízo, essa
volubilidade e discordância. Eu nada tenho a dizer de mim inteira-

100. Um desenvolvimento eloqüente da mesma imagem encontra-se na “Apologia”,


em 565-566AB.

464

10888_A figura do filosofo.p65 464 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

mente, simplesmente e solidamente, sem confusão e sem mistura,


nem numa só palavra. Distingo é o membro mais universal da minha
lógica (II, 1, 335).
O ensaio “Da vaidade”, por sua vez, nos oferece um importante
aspecto complementar da mesma imagem. Montaigne ali se detém
em explicar seu procedimento de acrescentar prolongamentos (allon-
geails) ao texto original dos Ensaios, sem alterar sua redação original,
oferecendo ao leitor duas razões. A primeira consiste no fato de que, a
seu ver, não possui mais esse direito aquele que “hipotecou ao mundo
a sua obra” (III, 9, 963). Condenando os que não refletem suficiente-
mente antes de exibir seus escritos em público, ele afirma que o seu
livro é “sempre um”. Embora não corrija aquilo que outrora escreveu,
mesmo mudando de “fantasia”, ele não se proíbe, porém, de fazer acrés-
cimos ao texto, que acabam, por vezes, por transformar o sentido do
texto original: “… eu me dou o direito de aí ajuntar, posto que [ele] é
um mosaico desconjuntado [marqueterie mal jointe], alguma incrusta-
ção gratuita [emblème super-numéraire]…”. Mas é a segunda razão
oferecida por Montaigne que nos parece especialmente relevante aqui:
Em segundo lugar, no que me concerne, eu temo perder na troca.
Meu entendimento não vai sempre adiante, ele também vai recuan-
do; eu não desconfio menos de minhas fantasias por serem segundas
ou terceiras, primeiras ou presentes, do que por serem passadas. Nós
nos corrigimos com freqüência tão tolamente quanto nós corrigimos
os outros. Minhas primeiras publicações foram no ano de 1580. A
partir de então, eu envelheci consideravelmente, mas não me tornei
mais sábio com certeza uma polegada sequer. Eu agora e eu outrora
somos bem dois. Qual o melhor? Nada posso dizer. Seria bom ficar
velho se caminhássemos apenas para o aperfeiçoamento. É um
movimento de ebriedade, titubeante, vertiginoso, disforme; [são]
juncos que o ar maneja casualmente como quer… (III, 9, 964).
Em conformidade com a alusão ao ceticismo que se segue imedia-
tamente a essa passagem, oferece-se aqui uma imagem da subjetivida-
de que se presta a aproximações mais estreitas com a argumentação
cética antiga. No Quarto Tropo, referente às “circunstâncias”, Sexto
Empírico procura mostrar, como vimos, que não dispomos de um crité-

465

10888_A figura do filosofo.p65 465 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

rio isento para julgar o conflito entre os juízos discordantes segundo


suas circunstâncias perceptivas diversas (não apenas as diversas idades,
mas a vigília por oposição ao sonho, a alegria e a tristeza, o amor e o
ódio, a sobriedade e a embriaguez, a normalidade e a loucura)101. Em-
bora Sexto não desenvolva nenhuma reflexão sobre as conseqüências
dessa relativização quanto à forma cética de compreender a natureza
do homem que conhece por meio dessas circunstâncias, parece-nos
que a descrição que Montaigne oferece da progressão de suas fantasias
é bastante compatível com a que estaria subjacente às argumentações
epistemológicas desse tropo. Pois o que significa o reconhecimento dessa
impossibilidade de dizer “qual o melhor” destes “eus” que se sucedem
se não o reconhecimento de que nenhuma das circunstâncias em que
julgamos (em conflito com aquele que ofereceremos noutra circuns-
tância) configura a presença, digamos assim, de um “eu” privilegiado,
capaz de julgar do exterior essa própria e certificar-se de que sua atual
impressão de certeza — e não a de outrora — é a que corresponde a
uma imagem absoluta e objetiva de como as coisas efetivamente são?
O cético não pode fazer mais do que registrar as coisas tais como lhe
aparecem a cada momento, à maneira de um cronista, sem asseverar
que as coisas sejam exata e positivamente como as apresenta (HP I, 4).
Assim, incapacitado de detectar a presença de um “eu” absoluto ao
longo dessa progressão — um eu que represente um ponto fixo absolu-
to para o entendimento, sem o qual não se pode assegurar de avançar
na direção da verdade —, o cronista cético se observa, para não pressu-
por injustificadamente tal critério, como um conjunto de circunstân-
cias sucessivas — ou melhor, de lopins, como diz Montaigne, cujos
movimentos próprios interessa mapear para contrapor à imagem fanta-
siosa da identidade que emprestamos a nós mesmos.
É significativo que uma das primeiras passagens dos Ensaios em
que, segundo Villey, se apresenta explicitamente o projeto do auto-
retrato seja um prolongamento do ensaio “Da exercitação” (II, 6), em
que Montaigne expõe a progressão oscilante e contraditória de suas

101. Ver HP I, 101 ss. Discutimos esse tropo argumentativo no item 6.2.3 — “Uma
doença natural do juízo”.

466

10888_A figura do filosofo.p65 466 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

memórias de um acidente que ele sofrera, caindo do cavalo, pelo qual


quase perdera a vida. Esse evento, cuja narrativa ele oferece como
ocasião relativa de “experimentar” a proximidade da morte, à qual nunca
podemos ter acesso direto, oferece, por assim dizer, uma metáfora da-
quela que será sua investigação nos Ensaios: uma experiência de se
acercar permanentemente, por meio de seu retrato, de um “eu” que
nunca pode ser conhecido absolutamente, mas apenas em perspectivas
sabidamente parciais, mutáveis e incompletas.
[C] Há diversos anos que só tenho a mim mesmo como a visada dos
meus pensamentos, que eu não controlo e estudo senão a mim mes-
mo. E se eu estudo outra coisa é para de imediato deitá-la sobre
mim, ou em mim, para dizer melhor. E não me parece de modo
algum ser um defeito se, como se faz nas outras ciências [sciences],
sem comparação menos úteis, eu também comunico o que eu apren-
di nesta, ainda que eu quase não me contente do progresso que
faço. Não há descrição igual em dificuldade que a descrição de si,
nem certamente em utilidade. Ainda é preciso se experimentar
[tastonner], ainda é preciso se ordenar e arrumar para aparecer em
público. Eu me enfeito [pare] sem cessar, pois eu me descrevo sem
cessar… (378)102.

102. Ver, mais amplamente, II, 6, especialmente 377-379. Montaigne aponta aqui a
existência de uma potencial atividade falseadora no mero gesto pelo qual se descreve —
seja ela deliberada (em conformidade com a possibilidade que sugerimos no capítulo
IV) ou não. Isso se acomoda igualmente com o que dissemos sobre como seu ceticismo
problematiza o conhecimento no nível da própria descrição dos fatos (como visto no
item anterior). É curioso notar que, embora o termo “parer” seja freqüentemente tra-
duzido nessa passagem como “enfeitar”, em vista do contexto, ele igualmente pode
significar, no francês do período, “preparar” ou mesmo “despelar” (para essa acepção,
cf. GODEFROY, 1982, vol. V, p. 760). Essa possibilidade de tradução poderia ser mais
facilmente desconsiderada se não tivéssemos em conta essa relação metafórica que,
como dissemos, o ensaio parece estabelecer entre a possibilidade de ter uma experiên-
cia direta da morte ou uma apreensão plena do eu, ou esta outra passagem que se segue,
algumas linhas adiante: “Eu [aqui] me instalo inteiro: É um skeletos em que, de uma
olhar, as veias, os músculos e os tendões aparecem…” (379C). A despeito de enfatizar
o sentido em que o retrato se pretende integral, não anunciaria essa metáfora, ambigua-
mente, que a empresa de se descrever está sempre aquém da integridade da experiência
vivida? Ademais, o auto-retrato é noutra passagem representado por outra metáfora que

467

10888_A figura do filosofo.p65 467 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Tal experiência, contudo, por mais que ofereça a seu autor uma
perspectiva diversa acerca de si mesmo, jamais poderá se traduzir num
“ensinamento” de algo; ela guardará sempre o estatuto de uma simples
narração, assumidamente provisória e subjetiva, que reflete o reconhe-
cimento de seu autor acerca de sua “ignorância” — tal como faz o
filósofo pirrônico que, desconhecedor da verdade, se limita a descrever
aquilo que pessoalmente lhe aparece, tal como faz um cronista: “[A]
Eu proponho fantasias disformes e irresolutas, como fazem aqueles que
publicam questões duvidosas, para debater nas escolas: não para esta-
belecer a verdade, mas para procurá-la…” (I, 56, 317)103.
No contexto da evolução do pensamento de Montaigne, podemos
constatar que o novo sentido e a autonomia que ganha esse projeto de
auto-retratar-se é, por certo, uma conseqüência do engajamento filo-
sófico cético ante o projeto inicial de um auto-exame em busca do
controle da imaginação. Mas essas motivações filosóficas originárias
ajudam a compreender, em contrapartida, as inflexões particulares que
ganhará a reflexão cética nos Ensaios. Em nosso capítulo IV, observa-
mos como o auto-retrato pode possuir uma dimensão paradoxal retó-
rica (associada a uma estratégia de ocultamento e de mediação entre
a interioridade e a exterioridade); e, no capítulo seguinte, constatamos
que a zétesis cética ganha, para Montaigne, a dimensão positiva de
uma instância de formação do juízo e, no mesmo passo, da manifesta-
ção da própria subjetividade. Vemos agora que, mais do que isso, essa
zétesis, na medida em que assume como objeto explícito e autônomo
um objetivo de autoconhecimento, conduz a um permanente esforço
de desmascarar as ficções imaginativas que o “eu” produz acerca de si
mesmo (e, como veremos adiante, de uma aceitação relativa de nossa
dimensão imaginativa). Esse é um aspecto da filosofia de Montaigne

reflete esse mesmo sentido: “[B] … ninguém nunca penetrou tão fundo na sua matéria
[no tema de sua investigação], nem destrinchou [eplucha] mais minuciosamente seus
membros e prolongamentos [membres et suites]…” (III, 2, 805).
103. Igualmente eloqüente é a passagem de III, 2, 806, sobre a fidelidade com que
seu livro pode representá-lo: [B] … eu falo investigando e ignorante. E me conforman-
do por resolução, puramente e simplesmente, às crenças comuns e legítimas. Eu não
ensino nada; eu narro…” (III, 2, 806).

468

10888_A figura do filosofo.p65 468 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

aparentemente portador de conseqüências históricas, a despeito da


pouca atenção que lhe tem sido dada. Se essa imagem da subjetivida-
de corresponde à que subjaz às reflexões epistemológicas do ceticismo
antigo, não é a tentativa cartesiana de produzir uma concepção de
sujeito capaz de garantir a possibilidade de conhecimento objetivo, ao
menos em parte, uma reação a esse aspecto da reflexão epistemológica
cética nos Ensaios? Montaigne pretende que sua descrição do “eu”, a
despeito de ser uma descrição de alcance meramente individual e
pessoal, ofereça um retrato mais geral acerca da condição humana —
que ele anuncia claramente em diversas ocasiões, como nesta passa-
gem célebre:
[B] Os outros formam o homem. Eu o descrevo [recite], e represento
um, em particular, bem malformado. A este, se me coubesse nova-
mente dar forma, eu o faria verdadeiramente bem outro do que ele
é. Mas agora está feito. Ora, os traços de minha pintura não se per-
dem, ainda que eles mudem e se diversifiquem. O mundo não é
senão um perene balanço. Todas as coisas nele balançam sem cessar:
a terra, as montanhas do Cáucaso, as pirâmides do Egito. Tanto do
balançar público quanto do delas próprias. A constância não é senão
um balançar mais lânguido. Eu não posso fixar [asseurer] meu obje-
to. Ele vai, turbulento e oscilante [trouble et chancelante], de uma
ebriedade natural. Eu o tomo neste ponto, tal como ele é, no instan-
te em que me ocupo dele. Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem.
Não uma passagem de uma era a outra, ou, como diz o povo, “de sete
a sete anos”, mas de dia a dia, de minuto a minuto. Preciso acomodar
minha história ao momento. Eu poderia em breve mudar, não ape-
nas por acaso [fortune], mas também por intenção. É um registro de
diversas e mutáveis ocorrências [accidens], e de imaginações irresolu-
tas. E, quando é o caso, contrárias. Seja porque eu sou outro eu
mesmo. Seja porque eu tome os assuntos por outras circunstâncias e
considerações. Tanto há, que eu bem me contradigo, eventualmen-
te. Mas a verdade, como dizia Demades, eu não a contradigo nunca.
Se a minha alma pudesse tomar pé, eu não me ensaiaria, eu me
resolveria. Ela está sempre em aprendizagem e em teste [en épreuve].
Eu proponho uma vida baixa e sem brilho. Dá no mesmo. Vincula-
se tão bem toda a filosofia moral a uma vida popular e privada quan-

469

10888_A figura do filosofo.p65 469 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

to a uma vida de mais rico estofo. Cada homem traz em si a forma


inteira da condição humana… (III, 2, 804-806).
Essa passagem não apenas articula diversos elementos céticos do
projeto montaigniano anteriormente mencionados — a dimensão me-
ramente descritiva de seu projeto, a imagem mutável, provisória e mes-
mo contraditória que dele emerge, a recusa em apresentá-la como re-
sultado de um conhecimento definitivo acerca de si — mas também
relaciona, como dissemos, seu retrato ao propósito de oferecer uma
imagem da condição humana. Como é possível compreender esse pro-
pósito num registro propriamente cético — se o relato cético assume-
se como provisório e relativo exatamente na medida em que se recusa
a se pronunciar além daquilo que se oferece à experiência? Noutros
termos, como esse relato da experiência individual que o “eu” tem de
si mesmo pode ser tomado como conhecimento de uma forma que
cada homem traz em si, de modo que vincule toda a filosofia moral?
Esse problema, situado no âmago do auto-retrato de Montaigne, é
uma versão particular de outro que se pode reconhecer na passagem
pela qual iniciamos este percurso: em que medida a natureza “impre-
meditada e fortuita” do percurso individual realizado por Montaigne
pode consistentemente ser vista como a reedição de um mesmo discur-
so cético original, já ele formulado em primeira pessoa? Trata-se de
saber como pode, de modo geral, o discurso cético almejar algum grau
mais geral de persuasividade sem abrir mão de ser deliberadamente
limitado a uma dimensão subjetiva, à expressão de um páthos que não
pode ser assumido, sem mais, como descrição do que são as coisas em
si. Procuramos sugerir, noutro lugar104, que a resposta a esse problema,
já no ceticismo antigo, depende de um expediente retórico fundamen-
tal — a exemplaridade de que se pode revestir o discurso em primeira
pessoa. Mais exatamente, pensamos que o próprio relato cético só pode
ganhar um valor persuasivo para outrem (além daquele que efetiva-
mente perfaz a experiência narrada pelo discurso) na medida em que
ele o assume como significativo, por sua conta e risco, no âmbito de

104. Tratamos desse problema de modo mais amplo em EVA, 2005; essas considera-
ções retomam, em linhas gerais, as que ali propomos.

470

10888_A figura do filosofo.p65 470 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

sua experiência individual. O texto de Sexto Empírico, ao expor a cau-


sa da filosofia cética, se limita a narrar a experiência de “homens de
talento” que, em busca de uma verdade sobre as coisas, se depararam
com uma contradição filosófica racionalmente insolúvel, na qual ca-
sualmente acabaram encontrando a ataraxía que antes buscavam nas
filosofias dogmáticas (e, por isso, passaram a filosofar deliberadamente
em busca de renovar a experiência da epokhé)105. Se assumimos esse
relato de uma experiência biográfica como persuasivo para nós, isso
depende do modo como cada um de nós se vale desse relato para ree-
xaminar sua experiência intelectual e o elege, eventualmente, como
persuasivo, solidariamente ao seu juízo sobre a possibilidade de reco-
nhecer a verdade nalgum dos sistemas filosóficos disponíveis. Analoga-
mente, embora Montaigne confira a suas reflexões sobre si mesmo (tanto
naquilo em que ele se reconhece como singular e diverso quanto na-
quilo que reconhece como uma característica mais geral acerca dos
homens) um valor estritamente vinculado à sua experiência, pessoal e
relativa106, é na experiência do leitor que se ancora a possibilidade de
uma generalização desse relato. Assim, a afirmação de que “cada ho-
mem porta a forma inteira da condição humana” deve ser interpretada,
ao que nos parece, como o anúncio da possibilidade da generalização
de uma experiência que, de todo modo, sempre se enuncia de modo
pessoal e subjetivo. Só se pode reconhecer alguma legitimidade nas
afirmações mais gerais sobre o homem no âmbito da experiência indi-
vidual. Esse é o horizonte máximo de generalidade em que se pode
almejar o reconhecimento de algo comum à condição humana — a
“forma” humana, afinal, a que se alude aqui. Eis por que não caberia
ver essa “ciência cética” do homem, fundada na exemplaridade de um
relato assumidamente singular, como uma espécie de recaída dogmá-
tica, filosoficamente incongruente com os demais indícios aqui exami-
nados; ela representa, em vez disso, uma primeira instanciação da re-
tomada de um expediente retórico cético — pelo qual a experiência
pessoal é oferecida como evidência argumentativa — cujo uso será

105. Cf. HP I, 12, 26.


106. Ver, por exemplo, II, 6, 964.

471

10888_A figura do filosofo.p65 471 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

freqüente na epistemologia moderna, ainda que dissociado do contex-


to problemático em que emerge107.
Importa notar, ademais, que há uma íntima relação entre o conteú-
do do retrato e seus aspectos formais: o caráter fragmentário e variável
concerne tanto à imagem do homem que aí se perfila como ao próprio
livro no qual ela se deposita — segundo Montaigne, um “mosaico
desconjuntado”. Não apenas a eventual diversidade com que os temas
são retomados, mas a própria transformação da obra em evolução (pos-
to que os alongamentos freqüentemente transformam, como vimos, o
sentido das passagens anteriores, mesmo quando estas permanecem
intocadas) parece refletir o modo como o “eu” apenas se deixa apreen-
der por meio das edições diversas e eventualmente incongruentes de si
mesmo, nenhuma delas representando de modo absoluto e definitivo
seu modelo. Mas, se o problema reside, justamente, na parcialidade
com que o registro instantâneo pode falsear o modelo, não é essa uma
boa razão para que se busque descrever e observar tais variações desde
sua origem — tal como alega Montaigne ser o objetivo da obra?
Este feixe de tantas peças diversas se faz nesta condição: só ponho
nele a mão quando uma ociosidade demasiado relaxada me move, e
nunca noutro lugar que minha casa. Assim ele se faz em diversas
posições e intervalos, uma vez que as ocasiões me detêm fora às vezes
por vários meses. Em suma, eu não corrijo minhas primeiras opi-
niões [imaginations] pelas segundas… Eu quero representar o pro-

107. Não pensamos aqui apenas no modo como o cogito cartesiano é extraído de
uma argumentação na qual Descartes, em primeira pessoa, faz o trajeto das razões de
duvidar, mas também no modo como Locke retoma usualmente essa fórmula em suas
argumentações. Ver, por exemplo, Essay concerning Human Understanding, introd., §
8: “Eu presumo que me será concedido que haja tais idéias na mente dos homens: cada
um é consciente delas nele mesmo…”; ou então, quando argumenta para provar que
todas as nossas idéias provêm da sensação ou da reflexão: “… Deixe quem quer que seja
examinar seus próprios pensamentos e buscar a fundo em seu entendimento, e que ele
então me diga se todas as idéias originais que ele tem aí não são apenas os objetos dos
seus sentidos, ou as operações de sua mente consideradas como objetos de sua refle-
xão…” (ibid., Ch. I, book ii, § 5). Esse mesmo expediente retórico talvez possa igual-
mente oferecer um esclarecimento inesperado sobre a fonte desta passagem dos Pensa-
mentos de Pascal (sem deixar de projetar-lhe um sentido igualmente paradoxal): “Não
é em Montaigne, mas em mim que encontro tudo o que nele vejo…” (§ 689-64).

472

10888_A figura do filosofo.p65 472 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

gresso de meus humores, e que se veja cada peça em sua nascente.


Eu teria prazer de ter começado mais cedo e a reconhecer o anda-
mento de minhas mutações… (II, 37, 758A).
Talvez, assim, a visão em perspectiva possa agregar-se, como uma
espécie de referência relativamente constante (ainda que mutável), às
imagens presentes que faz o autor de si, auxiliando-o a relativizá-las e
observá-las diversamente. Igualmente útil para esse mesmo propósito
parece ser o hábito de cotejar as próprias opiniões e os juízos diversos
de outros autores, como repetidamente ele o faz.
Eis, em suma, por que ganham um valor especial nesse ceticismo
a observação e o registro das produções mais diversas e contraditórias
da fantasia, sejam próprias do autor ou colhidas noutra parte, ainda
que posta entre parênteses sua eventual pretensão de verdade:
[C] Também no estudo que faço de nossos modos de agir [mœurs] e
movimentos, os testemunhos fabulosos, posto que sejam possíveis,
servem como os verdadeiros. Ocorrido ou não, em Paris ou Roma, a
João ou a Pedro, é sempre um feito [tour] da capacidade humana, do
qual sou utilmente informado por esse conto [recit]… Há autores
cujo fim é dizer os eventos. O meu, se eu soubesse a ele chegar, seria
dizer o que pode ocorrer… Nos exemplos que aí lanço, acerca do
que eu ouvi, fiz ou disse, eu me proibi de alterar mesmo as mais leves
e inúteis circunstâncias. Minha consciência não falsifica um iota,
meu saber [science] não o sei… (I, 21, 105-106)108.
Assim como a “forma humana” se deixa reconhecer no modo como
a experiência individual refaz um percurso mais geral, a observação das
fantasias em sua diversidade pode oferecer uma imagem da “capacidade
humana” em sua esfera imaginativa, seja no inusitado com que se con-
trapõe a nossas expectativas, seja na surpresa das próprias recorrências.
Seja como for, o ponto de fuga dessa diversidade reside no modo como
auxiliam o autor do registro a situar a singularidade de suas fantasias, na
medida mesma em que se é naturalmente conduzido a pensar e opinar.
A observação da fantasia, em seus diversos aspectos, colabora para a ten-
tativa de se observar distanciadamente, posto que a imagem imediata e

108. Ver 516A, 545C; III, 8, 545C.

473

10888_A figura do filosofo.p65 473 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

demasiado próxima facilmente se solidariza com uma ilusão, pela qual


perdemos de vista a dimensão ambivalente e movediça do objeto:
[C] Eu ouso não somente falar de mim, mas falar somente de mim;
eu me extravio quando escrevo sobre outra coisa e me furto a meu
assunto. Eu não me amo tão desmedidamente e não sou tão ligado
e imiscuído a mim mesmo que não possa me distinguir e considerar
a distância, como um vizinho, ou como uma árvore… (III, 8, 942).
Mas quais são os efeitos filosóficos do ceticismo relativamente às
preocupações morais que motivaram inicialmente o projeto montaig-
niano de registrar suas fantasias — em especial no que tange a sua
dimensão terapêutica? Não podemos terminar nosso percurso sem uma
palavra sobre esse tema.

7.5. Imaginação, experiência e impremeditação


No mesmo passo em que Montaigne abandona o esquema concei-
tual estóico que o orientava, transforma-se o diagnóstico do problema
que articulava o projeto de terapia estóica naqueles ensaios. Se antes
era a presença da melancolia que se afigurava como alvo particular de
sua terapia estóica, o ceticismo transforma a imagem que Montaigne
faz de si, de modo que aquele traço de sua personalidade surgirá como
um fantasia dentre outras a seu respeito. Na “Apologia”, ele assim se
descreve: “Ocorrem mil agitações intempestivas e casuais em mim. Ou
o humor melancólico me tem, ou o colérico; e segundo sua autoridade
privada, neste momento a tristeza predomina em mim, naquele a ale-
gria…” (566). Não estaríamos aqui diante de um exemplo peculiar do
modo pelo qual, segundo os céticos, a suspensão da crença pode mo-
derar a experiência dos males, que a tematização dogmática, ao contrá-
rio, inflaciona? Nas Hipotiposes, Sexto afirma que o fim em vista do
qual o cético filosofa é a quietude com respeito aos assuntos de opinião
e a moderação dos sentimentos (metriopathía) com relação às coisas
inevitáveis (HP I, 25). Assim ele explica a maneira pela qual a suspen-
são o conduz a esse fim:
Pois o homem que opina que algo é por natureza bom ou mau está
continuamente inquieto: quando ele está sem as coisas que estima

474

10888_A figura do filosofo.p65 474 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

boas, ele se crê atormentado pelas coisas naturalmente más, e anseia


pelas coisas que são, como ele pensa, boas; as quais, quando ele as
obtém, o lançam em perturbações ainda maiores, por causa de seu
desejo irracional e imoderado por elas, e pelo seu temor de uma
mudança da fortuna, de modo que ele emprega todos os seus esfor-
ços para evitar perder as coisas que ele estima boas. Por outro lado,
o homem que nada determina acerca daquilo que é por natureza
bom ou mau nem evita nem persegue nada avidamente; em conse-
qüência, ele permanece imperturbado… (HP I, 27-28)109.
Assim, embora o esforço auto-reflexivo de Montaigne seja uma
herança de seu período estóico, seu teor investigativo muda de nature-
za. Mesmo que essa reflexão cética o conduza a esboçar uma imagem
geral do homem, Montaigne não pretende extrair daí, ao que tudo
indica, um critério geral para a obtenção de tranqüilidade filosofica-
mente. Também no que tange à moral, sua reflexão cética conduz a
uma espécie de reconhecimento acerca da individualidade como traço
irredutível dos homens:
[C] Toda a glória que eu pretendo da minha vida é a de tê-la vivido
tranqüila: tranqüila não segundo Metrodoro, ou Arcesilau, ou Aristipo,
mas tranqüila segundo eu mesmo. Posto que a filosofia não soube
encontrar nenhuma via para a tranqüilidade que fosse boa em co-
mum, que cada um a busque em seu particular… (II, 16, 622).
Uma vez que as reflexões de Montaigne permanecem norteadas
pelo objetivo de se regrar, para encontrar a “ordem, harmonia e tranqüi-
lidade de opiniões e de conduta”110, cumpre reconhecer que tal objetivo
subordina igualmente o auto-retrato, e mesmo que a ele atenda o modo
como ele descobre que a própria atividade de se auto-retratar acaba por
produzir uma concomitante transformação no modelo retratado:
[C] Moldando sobre mim mesmo essa figura [os Ensaios], foi-me
preciso com freqüência levantar-me e compor-me para me extrair, [de

109. Diversas passagens dos ensaios posteriores ao engajamento cético de Montaig-


ne apontam o modo problemático como a razão antecipa as experiências, no âmbito da
moral: cf. II, 12, 486; II, 37, 760; III, 11, 1034; III, 12, 1044, 1053.
110. Ver II, 17, 658A.

475

10888_A figura do filosofo.p65 475 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

maneira tal] que o molde se afirmou e de algum modo se formou a si


mesmo. Pintando-me para outrem, pintei-me a mim mesmo de cores
mais nítidas do que eram as minhas primeiras. Eu não fiz mais o meu
livro do que o meu livro me fez, livro consubstancial a seu autor, que
não se ocupa senão dele, membro de minha vida; não de uma ocupa-
ção e fim terceiros, como todos os outros livros… (II, 18, 665).
Não será possível aqui examinar todas as conseqüências da inves-
tigação de si mesmo, pela qual Montaigne ou bem se vê num fluxo de
fantasias variadas ou oscilantes, a cuja variedade imprevisível cabe even-
tualmente se amoldar, ou bem pretende discernir nesse fluxo a cons-
tância eventual de seu juízo, pelo qual se guia, ou das formas im-
plantadas “mais fundo” pela natureza ou pelo costume.111 Em vista do
tema que estivemos aqui perseguindo, todavia, não podemos deixar de
nos interrogar pelo destino da noção de fantasia no âmbito desse pro-
jeto terapêutico.
Referindo-se agora ao seu projeto como um estudo profundo, um
registro metódico, de longa duração, por oposição àqueles que se con-
sideram apenas “por fantasia e pela boca”112, Montaigne persevera em
sua intenção de “organizar” suas fantasias, mas a eventual ação tera-
pêutica dessa atividade parece agora ser depositada no próprio ato de
seu registro:
[C] A natureza nos habilitou de uma ampla faculdade de nos entre-
termos à parte, e a isso nos chama com freqüência para nos ensinar
que nós somos devedores em parte à sociedade, mas na melhor parte
a nós. Com o fim de ordenar [renger] minha fantasia a sonhar mes-
mo com alguma ordem e projeto, e guardá-la de se perder e ex-
traviar ao vento, basta dar corpo e registrar esses tantos pensamentos
miúdos que a ela se apresentam. Eu escuto meus devaneios porque
tenho de registrá-los [enroller]… (ibid.).
Resta indagar como esse registro pode ser investido de um efeito
“terapêutico” e se ainda aqui deveríamos encontrar aspectos da refle-
xão moral do pirronismo antigo. Em continuação da passagem que

111. Ver, nesse sentido, por exemplo, III, 2, 813-4, 816BC, cf. III, 3, 818B.
112. II, 18, 665C.

476

10888_A figura do filosofo.p65 476 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

citamos acerca das conexões entre a epokhé e a “moderação das opi-


niões”, Sexto nos oferece a metáfora do pintor Apeles, a que já nos
referimos, para ilustrar a casualidade com que o cético atinge o seu
objetivo: assim como Apeles obteve por acaso o efeito da espuma na
boca do cavalo quando jogou, irritado, a esponja sobre a tela, a tranqüi-
lidade que o cético antes buscara na posse da verdade passa a casual-
mente seguir a epokhé, como uma sombra acompanha o objeto que a
causa113. Procuraremos agora mostrar que o papel próprio que se reser-
va, na reflexão de Montaigne, à imaginação, a partir de seu contato
com o ceticismo, reflete-se no reconhecimento de um papel igualmen-
te especial do acaso, até no âmbito da reflexão moral.
Se antes, como vimos, Montaigne pretendia suprimir um suposto
desarranjo transitório pelo qual a imaginação mostrava-se incapaz de
conter-se em seus limites, agora não faltam passagens que apontam
para o modo como a “fantasia” — ainda que num diagnóstico formu-
lado de modo sabidamente provisório — adquire um papel central e
relativamente autônomo no seio de nossa condição natural. Ao discutir
a experiência dos males, eis, por exemplo, o que ele escreve:
[B] Os médicos dobram com freqüência utilmente as suas regras à
violência das vontades ardentes que advêm aos doentes. Esse grande
desejo não pode ser imaginado tão estranho e vicioso que a natureza
não se aplique a ele. E ademais, quanto não é preciso contentar, a
fantasia! Na minha opinião essa é a peça que importa, ao menos
além de qualquer outra. Os males mais graves e comuns são aqueles
dos quais a fantasia nos carrega… (III, 13, 1087)114.
E não se trata de uma simples consideração teórica, mas de uma
avaliação que se refletirá na prática argumentativa de Montaigne. Em
“Da fisionomia” (III, 12), por exemplo, ele retoma o mote cético da
metriopathía, criticando o modo como a science imprime em nossa
fantasia males diversos daqueles que efetivamente sofremos. A mesma
metáfora alimentar que, na “Apologia”, justificava o uso de argumen-
tos demonstrativamente falhos é retomada para destacar o modo como

113. Ver HP I, 28-29.


114. Cf. III, 9, 949B; I, 39, 243A.

477

10888_A figura do filosofo.p65 477 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

o simples contato com as fantasias propostas pela ciência pode impor,


por si mesmo, um efeito em nossa imaginação, positivo ou, mais geral-
mente, negativo115. Descortina-se aqui, portanto, um valor diverso dos
argumentos desprovidos de solidez demonstrativa que Montaigne diz
semear em seu livro116: ainda que se possa manter em suspenso o juízo
sobre a veracidade das fantasias propostas pelos diversos autores, elas
podem se revelar propícias pelo modo aparentemente imprevisível e
involuntário como acabam por intervir ou se impor à imaginação da-
quele que as considera. Num acréscimo tardio a um ensaio original-
mente inspirado no estoicismo, ele escreve:
[C] … [A alma] é variável em toda sorte de formas, e adapta a si e ao
seu estado, seja qual for, os sentimentos do corpo e todas as outras
eventualidades [accidents]. Entretanto, é preciso estudá-la e inquirir,
e nela despertar suas molas todo-poderosas. Não há razão, nem pres-
crição, nem força que possa contra sua inclinação e sua escolha. De
tantos milhares de vieses que ela possui à sua disposição, demo-lhe
um que seja próprio ao nosso repouso e à nossa conservação: ei-nos
não apenas protegidos de todas ofensas, mas gratificados mesmos, e
adulados, se assim lhe parece, pelas ofensas e males. O erro e os
sonhos servem-lhe utilmente, como uma matéria válida para nos pôr
ao abrigo e nos contentar… É fácil ver que o que atiça em nós a dor
e a vontade é o aguilhão de nosso espírito… posto que nós nos eman-
cipamos das regras [da natureza], para nos abandonarmos à liberda-
de errática [vagabonde] de nossas fantasias, ao menos ajudemos a
dobrá-las para o lado mais agradável… (I, 14, 57-58).
E ele mesmo declara que não recusará o que, segundo sua expe-
riência, vier a revelar um efeito benéfico sobre sua imaginação, em
vista da obtenção da felicidade:
[B] Ora, eu trato minha imaginação o mais docemente que eu posso
e a desincumbiria, se pudesse, de todo o esforço e contestação. É
preciso socorrê-la e adulá-la, e iludir [piper] se for possível. Meu es-
pírito é próprio para esse serviço: não faltam aparências [de verdade]

115. Ver III, 12, 1039C, cf. II, 12, 46C.


116. Ver III, 12, 1037-1040B.

478

10888_A figura do filosofo.p65 478 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

por todo lado, se ele persuadisse na medida em que discursa, ele me


socorreria com sucesso… (III, 13, 1090).
Quando lhe aflige a pedra nos rins, Montaigne passa a examinar
razões capazes de abreviar o modo como a imaginação amplifica os
males: trata-se, por exemplo, de um mal aceitável para sua idade, melhor
do que outros que o poderiam acometer etc. (v. ibid.). O mesmo expe-
diente lhe propicia, noutra ocasião, a retomada de uma imagination
estóica — dado o encadeamento geral das causas, não é possível inter-
vir num detalhe sem que a seqüência toda se altere — que ele julga,
contudo, pertinente em razão do modo como sua imaginação é susce-
tível ao arrependimento (v. III, 2, 815B). Se o abandono do projeto
estóico de conter a imaginação conduziu Montaigne a considerar a
maleabilidade da razão e a diversidade da força que os argumentos
podem ganhar em contextos diversos, aqui o mesmo olhar cético se
oferece em outro ângulo. Eis como Montaigne interpreta a temática
do “demônio” que Sócrates alegava por vezes consultar:
[B] O demônio de Sócrates era talvez um certo impulso da vontade,
que se apresentava a ele, sem esperar o conselho de sua razão
[discours]. Numa alma bem depurada como a sua, e preparada pelo
contínuo exercício de sabedoria e de virtude, é verossímil que essas
inclinações, ainda que temerárias e indigestas, fossem sempre impor-
tantes e dignas de serem seguidas. Cada um sente em si alguma ima-
gem de tais agitações [C] de uma opinião imediata, veemente, e
fortuita. Cabe a mim lhes dar alguma autoridade, eu que dou tão
pouca à nossa sabedoria. [B] E delas houve [C] igualmente fracas
em razão e violentas em persuasão, ou antes, em dissuasão, que eram
mais comuns em Sócrates, [B] pelas quais eu me deixei carregar tão
utilmente e tão felizmente que elas poderiam ser tomadas como
possuidoras de alguma coisa de inspiração divina… (I, 11, 44).
Certamente a aceitação dessas opiniões eventualmente “fracas”,
de um ponto de vista da razão, não se justifica por sua veracidade in-
trínseca; trata-se, em vez disso, de uma conseqüência particular da mes-
ma transformação que o ceticismo opera sobre a idéia de argumenta-
ção, já observada em outros aspectos. O ceticismo, como explica Sexto,
consiste numa terapia do “mal dogmático” que autoriza, para esse fim,

479

10888_A figura do filosofo.p65 479 28.03.07, 16:08


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

o uso de argumentos possuidores de pesos diversos117. Esses textos suge-


rem que Montaigne interpreta de um modo bastante peculiar esse uso
terapêutico de razões, como um expediente para intervir sobre a ima-
ginação — mesmo a sua própria — observada como fonte de uma
apreensão virtualmente distorcida ou dogmática das coisas. Tal como
certas fantasias sensíveis e involuntárias podem ser aceitas, como parte
do phainómenon, a mesma necessidade de agir parece justificar a apro-
priação fenomênica de certas fantasias racionais ou opinativas em vista
de seu poder sobre nossa imaginação. Mais exatamente, trata-se de
reconhecer que essas fantasias, além de nossa capacidade de compreen-
der como e por que isso ocorre, podem agir sobre nossa imaginação,
segundo nossas diferenças individuais, e produzir efeitos inesperados
sobre o modo como experimentamos nossas afecções: “[B] Os homens
são diversos em força e em paladar, é preciso conduzi-los a seus bens
segundo eles mesmos, e por vias diversas…” (III, 12, 1052). Assim, entre
o modo como cada argumento se oferece com força determinada em
vista de como cada qual o aprecia e, de outra parte, o modo como a
imaginação individual reage amplificando ou moderando uma certa
afecção estabelece-se uma relação que não pode ser plenamente
abarcada pelo entendimento. Não se trata, assim, de presumir a exis-
tência de um vínculo racional entre a veracidade de um determinado
argumento e suas conseqüências morais; apenas a experiência indivi-
dual é que estabelece a relação entre essas instâncias, que se apresenta,
nessa medida, de modo casual. Eis como, afinal, a science se subordina
à fantasia: involuntariamente, o contato com as opiniões dos diversos
filósofos pode conduzir a uma persuasão ou a uma dissuasão relativa-
mente a crenças em que a imaginação obsessivamente se agarra, de um
modo que ultrapassa nossa capacidade de compreensão.
Isso nos mostra também como, de modo mais geral, emerge da
reflexão montaigniana, ao lado da razão (destronada do poder autôno-
mo que o otimismo estóico lhe conferia), uma espécie de província
incógnita — a imaginação, dotada de certa autonomia natural e de

117. Examinamos essa passagem conclusiva das Hipotiposes no capítulo II, item
2.4 — “Doença racional e terapia cética”.

480

10888_A figura do filosofo.p65 480 28.03.07, 16:08


O ensaio como fantasia

meios de operar que escapam à nossa capacidade de compreensão. No


que tange à nossa “experiência dos males”, a razão tende mesmo a se
converter numa instância subalterna, que se determina pela imagina-
ção de um modo que normalmente tende a passar despercebido. Se,
para Sêneca, cabe à filosofia oferecer meios para combater o acaso118,
Montaigne recusa-lhe esse papel explicitamente na “Apologia” (v. 489A,
494A), invertendo os termos dessa relação. Agora é a própria razão que
se deve reconhecer movida pelo acaso:
[B] Eu digo mais, que mesmo a nossa sabedoria e deliberação segue
a condução do acaso [hazard]. Minha vontade e meu raciocínio
[discours] se movem ora de um ar, ora de outro, e há diversos desses
movimentos que se governam sem mim. Minha razão tem impulsos
e agitações diárias [C] e casuais… (III, 8, 934)119.
Se tais impulsos surgem como “diários e casuais” é porque, pos-
suam ou não alguma lógica própria, esta não pode ser abarcada por
nossas faculdades cognitivas. Mas esses “movimentos que se governam
em mim” certamente se reportam, pelo que vimos, à ação da imagina-
ção. Isso nos permite vislumbrar, finalmente, uma dimensão positiva
nas considerações de Montaigne sobre o caráter “impremeditado e
fortuito” de sua nova figura de filósofo. Essa fórmula parecia indicar a
um só tempo, como assinalamos no capítulo I, tanto o caráter impre-
visto com que ele reconhece a compatibilidade entre sua experiência
pessoal e a dos antigos céticos como a valorização especial que ganha
essa experiência da impremeditação (descrita pela metáfora do pintor
Apeles) como elemento fundamental da prática investigativa perma-
nente, pela qual o cético assume a provisoriedade intrínseca de suas
posições120. Em seu viés terapêutico, o ceticismo de Montaigne se con-

118. Em Epist., I, xxiii, 7, SÊNECA descreve a fonte do verdadeiro bem como prove-
niente da boa conduta, dos princípios honrados, das ações virtuosas, do desprezo pelo
acaso e “de um modo de viver calmo e constante, que se orienta regularmente numa
única direção…” (ibid., 7); ver também I, viii, ix, xxvii.
119. Ver igualmente I, 47, 286AC: “[C] Nós raciocinamos ao acaso [hazardeusement]
e inconsideradamente, diz Timeu em Platão, pelo que, como nós mesmos, nossa razão
tem grande participação do acaso”.
120. Ver capítulo I, item 1.3 — “Um novo cético?”.

481

10888_A figura do filosofo.p65 481 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

verte, como vimos, num exercício auto-retratista capaz de transformar


o próprio objeto retratado, ainda que não o possa apreender senão
segundo perspectivas sabidamente parciais; notemos agora que, tal
como a ataraxía surge para o cético como um resultado inesperado de
seu engajamento filosófico, também esse efeito transformador é apre-
sentado por Montaigne como um proveito imprevisto de sua investi-
gação: “[B] Eu sinto este proveito inesperado da publicação dos meus
modos de ser [moeurs]: ela me serve nalguma medida de regra… (III,
9, 980; itálico nosso).
Caberia mesmo dizer que, na pintura montaigniana de si, feita
sobre o fundo da fantasia, essa impremeditação parece ganhar novas
cores: ela surge agora não apenas como um elemento constitutivo do
próprio retrato, mas também como um aspecto das ações do sujeito
retratado que se torna objeto do retrato. Isso porque o registro do modo
impremeditado com que as fantasias se sucedem, na mesma medida
em que elas assim escapam da esfera de nossa razão, oferece uma pos-
sibilidade de transcender a imagem que podemos dispor, racional e
conscientemente, de nós mesmos, em dado momento. Assim, os atos
que ultrapassam nossa deliberação consciente guardam um potencial
representativo estratégico nesse auto-retrato, como se pode ver nestas
considerações de Montaigne sobre sua atividade:
Eu tomo ao acaso o primeiro tema. Eles me são igualmente bons. E
não pretendo nunca pô-los em evidência por inteiro. [C] Pois de nada
eu vejo o todo, e não o fazem aqueles que nos prometem fazê-lo…
Semeando aqui um dizer, ali outro, fragmentos desprendidos do seu
lugar, afastados, sem desígnio e sem promessa, eu não me comprome-
ti em fazer melhor, nem de neles me apoiar eu mesmo, sem variar
quando assim me aprouver; assim [posso eu] entregar-me à dúvida e
à incerteza, à minha forma mestra [forme maitresse], que é a ignorân-
cia. Todo movimento nos revela… (I, 50, 302-303; itálicos nossos).
Esse texto, que já examinamos para qualificar o gênero filosófico
dos ensaios121, alude em diferentes aspectos ao modo como Montaigne
pretende manifestar sua individualidade: de uma parte, ele se refere à

121. Ver final do item 5.1 — “O ceticismo como gênero filosófico”.

482

10888_A figura do filosofo.p65 482 28.03.07, 16:09


O ensaio como fantasia

particularidade com que sua leitura retoma os caminhos já trilhados


por outrem; de outra, alude à sua “forma mestra” — a ignorância —
que, segundo essa passagem, se expõe por meio da “variação” opinati-
va. Podemos agora mirar um outro ponto, aparentemente secundário,
à primeira vista, desse quadro: se Montaigne acaba por concluir que
“todo movimento nos revela”, não deveríamos incluir a própria esco-
lha casual — impremeditada e fortuita — dos argumentos e temas
considerados como alguma coisa que, nessa casualidade mesma, pode
revelar algo a seu respeito? Essa não é a única passagem (mesmo entre
as já mencionadas) que sublinha o caráter fortuito dos movimentos
retratados como um elemento importante do auto-retrato. Logo após
reconhecer que não sabe qual o melhor — ele agora ou ele outrora —
Montaigne escreve: “[B] É um movimento de ebriedade, titubeante,
vertiginoso, disforme; [são] juncos que o ar maneja casualmente como
quer…” (III, 9, 964; itálico nosso). Aqui ocorre uma identificação entre
a percepção do movimento como casual e a indeterminação de uma
identidade que permitira coligir as diversas circunstâncias em que o eu
apreende a si mesmo. Essa casualidade apresenta-se na imagem com
que esse eu aparece para si mesmo quando se recusa a postular uma
identidade imaginária pela qual seu movimento poderia ser reduzido e
interpretado. A mesma idéia se apresenta em III, 2, 805B, ao longo da
descrição do movimento “turbulento e oscilante, de uma ebriedade
natural” do objeto de seu retrato, que ele não consegue fixar:
Se a minha alma pudesse tomar pé, eu não me ensaiaria, eu me
resolveria. Ela está sempre em aprendizagem e em teste [en épreuve]…
As fantasias da música se conduzem pela arte, as minhas pelo acaso
[par sort]. Ao menos tenho isto segundo a disciplina: jamais um
homem tratou de assunto que ele entendesse ou conhecesse melhor
do que eu faço naquele que empreendi…
À falta de poder conhecer uma unidade capaz de superar o que
aparece por meio dessa percepção casual e oscilante de si, é preciso
ensaiar — isto é, registrar fielmente os movimentos das suas fantasias
na própria casualidade com que provisoriamente se apresentam, como
possuidores de consistência e aparente estabilidade, mas buscando
valorizá-los no que possuem de propriamente casual e imprevisto, em

483

10888_A figura do filosofo.p65 483 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

nome da fidelidade do retrato. A incorporação desse aspecto responde


à natureza particular da zétesis na forma do ensaio:
[A] Não tenho outro sargento de batalha para organizar as minhas
peças do que o acaso [fortune]. Tal como meus devaneios se apresen-
tam, eu os amontôo; por vezes eles se apresentam em tumulto, por
vezes se seguem em fila. Eu quero que se veja o meu passo natural
e ordinário, tão desregrado quanto for. Eu me deixo ir como eu me
acho. Não se acham aqui matérias das quais não seja permitido igno-
rar, e de falar casualmente e temerariamente… (II, 10, 409)122.
Em suma, a obra consubstancial ao seu autor, retratando-o e permi-
tindo que ele se transforme por sua leitura, torna-se um meio de obter
uma visibilidade privilegiada acerca de si mesmo, além de como ele se
imagina ou compreende ser num momento dado — seja pelo distan-
ciamento temporal pelo qual a impressão atual que se tem de si pode
ser relativizada, seja trazendo ao primeiro plano certos aspectos do eu
que podem se fazer presentes, mas tendemos a encobrir, julgando-os
irrelevantes ou pouco importantes na imagem que tendemos a formar
de nós mesmos (como os caprichos da imaginação, que nos faz fortui-
tamente nos ater a um argumento, um exemplo ou um fato). Aqui a
imagem produzida segundo as variações do acaso resulta do rigor pró-
prio com que essa investigação cética do homem é concebida por
Montaigne: busca-se depurar aquilo que nossa experiência pode nos
oferecer acerca de nós mesmos, desde que devidamente auscultada, e
desde que nos disponhamos a suspender as crenças prévias e imagina-
tivas pelas quais projetamos no retrato o que esperamos encontrar.
Agregar-lhe esse movimento casual é um meio de registrar-se além da
imagem de verdade pela qual, a cada momento, podemos nos deixar
seduzir. Nossa tendência a forjar-nos uma identidade estável e cons-
ciente (a despeito da presença eventual de alguma “forma mestra” que
pode ser mais bem conhecida ao longo da investigação) revela, parado-
xalmente, um aspecto essencial de como agimos, cujo efeito é o de

122. Ver também III, 9, 963: “[B] … meu intuito é o de representar, ao falar, um
total distanciamento [nonchalance], e movimentos fortuitos e impremeditados, como se
nascessem das ocasiões presentes…”.

484

10888_A figura do filosofo.p65 484 28.03.07, 16:09


O ensaio como fantasia

ocultar aquilo que efetivamente somos e pode vir à tona pela esponta-
neidade e pela casualidade; como se nossa razão operasse, como dize-
mos hoje, uma “racionalização” acerca de nós mesmos — de nossos
desejos e impressões — que tal retrato pretenderia superar, valendo-se
do registro da casualidade. Porém, por mais que essa interpretação possa
curiosamente aproximar Montaigne de uma concepção de sujeito
extemporânea, nossa intenção não é a de “psicanalisar” o texto dos
Ensaios: não queremos aqui interpretá-lo com instrumentos alheios,
mas apenas tentar esclarecer o sentido com que Montaigne teria pen-
sado sua terapia filosófica sob a égide da retomada das morais antigas
— em especial, adaptando sua reflexão cética a elementos que não são
diretamente tematizados pelo ceticismo antigo. Não deixa de ser curio-
so que a imagem produzida nos pareça estranhamente familiar, espe-
cialmente se contraposta à que se produz pelo cartesianismo — por
mais que essa filosofia, de um ponto de vista histórico, pareça ter con-
tribuído mais decisivamente para os rumos pelos quais a psicologia mo-
derna procurou se constituir como ciência —, assunto esse para uma
outra ocasião. Montaigne nos oferece, graças a seu ceticismo, um raro
exemplo de filósofo que reconhece um valor especial e definido, para
a obtenção de uma imagem mais fiel do homem, no registro daquilo
que pertence à imaginação e está além do conhecimento racional.
Ademais, importa destacar outra conseqüência dessa valorização
do acaso na zétesis auto-retratista, relativa à interpretação do ceticismo
por Montaigne. Vimos, nos dois capítulos precedentes, que essa inter-
pretação conduz a uma valorização particular da própria investigação,
seja em sua relação com a formação do juízo, seja ao caracterizar o
ceticismo como permanente questionamento das crenças que inevita-
velmente admitimos. Compreendidas como imagens provisórias das
opiniões que um sujeito pode ter de si mesmo, as fantasias registradas
são igualmente submetidas a uma investigação virtualmente intermi-
nável, sem que se possa apreender, por meio de nenhuma delas, o “ser”
que se quer retratar — a despeito de nossa tendência a crer que as
opiniões de que hoje dispomos são as corretas e as melhores: “[B] Quem
não vê que eu tomei um caminho pelo qual, sem cessar e sem dificul-
dade, eu irei o quanto houver de papel e tinta no mundo? Eu não posso

485

10888_A figura do filosofo.p65 485 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

manter um registro de minha vida por minhas ações, a fortuna as situa


muito baixas; eu o mantenho pelas minhas fantasias…” (III, 9, 945).
Essa prática cética, por oposição ao modo como os dogmáticos se afer-
ram à autoridade dos dogmas que aceitam, é a que facultaria ao ho-
mem, todavia, um uso pleno de todas as suas faculdades naturais, como
homem vivo, pensante e raciocinante. O que diferenciaria o cético do
dogmático, desse ponto de vista, seria sobretudo a postura diante do
estatuto provisório de suas opiniões. Não corresponde, então, o reco-
nhecimento do caráter “impremeditado e fortuito” com que nossas
fantasias se sucedem uma afirmação da própria “liberdade” que, se-
gundo Montaigne, caracteriza a atividade argumentativa cética? Tudo
se passa como se a experiência cética da incapacidade de encontrar a
verdade, que pode conferir a esse filósofo uma identidade intelectual e
lhe propiciar certa tranqüilidade, se convertesse num paradoxal para-
digma: ao mesmo tempo em que aí se retrata a condição permanente-
mente investigativa do cético, anuncia-se a necessidade de refazer a
experiência, porquanto ela comporta sempre algo de “impremeditado
e fortuito” — como se a própria casualidade com que os eventos se
apresentam anunciasse um ganho irredutível na efetividade da ação e
da experiência, que não pode estar contido na autoridade do modelo
tomado como paradigma filosófico dessa experiência123. Se esse ganho
esteve até aqui visível na forma da particularidade com que o juízo se
manifesta, podemos ver agora que o rendimento prático desse ceticis-
mo é o de afirmar uma certa autonomia da esfera da ação e da expe-
riência vivida, por oposição ao modo como somos capazes de abarcar
essa experiência mediante nossas fantasias racionais: “… ser consiste
em movimento e ação, razão pela qual cada um está de algum modo
em sua própria obra…” (II, 8, 386-387)124. Eis como o momento da
morte deixa de ser a pedra de toque pela qual se há de avaliar o teor do
engajamento filosófico: o ceticismo descortina aqui a imagem do ho-

123. Um eco dessa idéia parece eventualmente ressoar nos Pensamentos de Pascal:
“Que não se diga que eu nada disse de novo, a disposição das matérias é nova. Quando
se joga a pela, é com uma mesma bola que um e outro jogam, mas um a coloca melhor
que outro” (696-22).
124. Ver também III, 5, 842; I, 4, 22A; II, 37, 764.

486

10888_A figura do filosofo.p65 486 28.03.07, 16:09


O ensaio como fantasia

mem não como “ser” (porque este nos está vedado pela natureza, como
o está a experiência direta da morte), mas como “passagem”; um ho-
mem essencialmente voltado para a vida, contra a mortificação produ-
zida pelas filosofias dogmáticas.
Mas essa investigação potencialmente indefinida aponta parado-
xalmente um fim que ela não pode alcançar. Por mais que Montaigne
possa colher o movimento surpreendente de suas fantasias e que o re-
gistro retomado possibilite a sua transformação, é um aspecto integran-
te da própria investigação, como dissemos, o abandono de uma fantasia
fundamental — a de pretender se evadir absolutamente do próprio
terreno da fantasia. Inesperadamente, por essa via, retornamos ao pon-
to de partida. Pois a confusão dos bibliotecários diante da estante de
filosofia e de literatura talvez não se revele agora tão fortuita como nos
aparecia num primeiro momento, ainda que por razões impremeditadas.
Estamos diante de um autor para quem o preço a pagar pela imagem
menos fantasiosa do homem que pode obter a filosofia — mesmo dian-
te daquilo que nossa experiência de nós mesmos mais imediatamente
nos apresenta — é o reconhecimento de que ela não pode se situar
plenamente fora do terreno da ficção.

487

10888_A figura do filosofo.p65 487 28.03.07, 16:09


10888_A figura do filosofo.p65 488 28.03.07, 16:09
CONCLUSÃO

Ceticismo e subjetividade

Onde reside afinal a novidade do filósofo de “nova figura”? Antes


de mais, no fato de ser ele um filósofo cético stricto sensu. Como disse
Schiffman1, o ceticismo é a filosofia que se oferece a Montaigne como
um espelho em que ele pode reconhecer sua identidade intelectual, e
aqui pudemos constatar que esse espelho, embora cético, é muito mais
fiel e rigoroso do que se costuma perceber. A tal ponto que, em vez de
um retrato intelectualmente intangível ou indecifrável, ele efetivamente
nos oferece a imagem de um filósofo. O que não nos impede de cons-
tatar que essa imagem, em mais de um sentido, seja pessoal e singular.
Fomos postos diante de um ceticismo paradoxal — não apenas pela
forma inovadora com que ele se vale filosoficamente do paradoxo, mas
também pela maneira como, através de seu próprio engajamento a uma
filosofia dada, esse cético se torna consciente da inexorável particulari-
dade de sua reflexão — seja como índice da impossibilidade de obter

1. Ver SCHIFFMAN, 1984, p. 513.

489

10888_A figura do filosofo.p65 489 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

a verdade, seja como resultado do pleno emprego das capacidades hu-


manas, potencializadas por essa naturalização cética. Não será demais
repetir que os céticos, como diz ele, pretenderam sobretudo se fazer
“homens vivos e raciocinantes”, e empregar plenamente, “em ordem e
com retidão”, todas as suas peças corporais e espirituais, renunciando
aos privilégios imaginários de determinar a verdade (505AC). A cons-
ciência da particularidade é a tal ponto significativa que esse ceticismo
reencontra o lema socrático — “conhece-te a ti mesmo” — e se conver-
te num empreendimento de auto-retrato. Não é surpreendente, desse
ponto de vista, que Montaigne não tenha produzido uma “seita”, uma
posteridade no sentido filosófico mais habitual, mas tenha legado, en-
tre outras coisas, um gênero reflexivo (que deixou de ser compreendido
em sua relação com a verdadeira matriz filosófica da qual derivou). De
outra parte, ele legou à posteridade problemas filosóficos fundamentais
que certamente contribuíram, ainda que indiretamente, para que o tema
da subjetividade tenha ganhado a dimensão que ganhou entre os mo-
dernos. Tampouco aqui o legado dessa reflexão não mais se reconhece,
ainda que na medida restrita que lhe caberia, a partir da matriz de onde
proveio, dada a nova configuração que recebeu no debate posterior.
Além do que já foi dito, parece-nos oportuno, para concluir, ainda in-
sistir um momento na consideração desse traço historicamente decisi-
vo do ceticismo montaigniano — isto é, sua retomada do ceticismo
antigo na forma de uma “filosofia da subjetividade”.
Vimos, no capítulo V2, que Montaigne não apenas confere ao
próprio discurso o estatuto subjetivo e provisório que marca, já no ceti-
cismo antigo, o uso cético da linguagem, como também reconhece, ao
menos implicitamente, a importância da exemplaridade do discurso em
primeira pessoa como um expediente retórico importante, tanto para a
coerência interna da postura cética quanto para a manifestação de suas
opiniões. Mas, na medida em que estamos diante de um discurso cético
vazado na terminologia das “faculdades da alma”, que povoam como
personagens as reflexões dos Ensaios, quão longe estaríamos do ceticis-
mo antigo e quão próximos da tematização da subjetividade que ocorre

2. Ver item 5.4 — “Exemplaridade, subjetividade e filosofia moderna”.

490

10888_A figura do filosofo.p65 490 28.03.07, 16:09


Conclusão — Ceticismo e subjetividade

na filosofia moderna? É freqüente nos Ensaios o emprego do termo


“faculdade” para designar capacidades específicas da alma e particular-
mente no contexto da interpretação ou da produção de uma argumen-
tação cética3. Trata-se de um dos termos de um diversificado vocabulá-
rio que Montaigne emprega para designá-las — ao lado de qualidades
(qualitez) — ou bem as partes da alma —, peças (pieces), molas (ressorts),
movimentos (mouvements) e funções (functions). Essa variedade — alia-
da ao modo como as faculdades particulares se apresentam, como vi-
mos, sem que se possa definir exatamente seus limites — parece con-
tribuir para caracterizar um traço recorrentemente detectado como “pro-
blemático” pelos comentadores: a fluidez e a aparente vagueza com
que, a despeito de suas diversas nuances, surgem tais conceitos4. Por
esse ângulo, certamente nos afastamos das arquiteturas do sujeito cog-
noscente que serão produzidas por Descartes ou Kant.
Contudo, como também vimos, mesmo que desprovidas de um
contorno nítido, tais “peças” são nomeadas por termos que possuem
um sentido técnico aparentemente comparável àquele que, no ceticis-
mo antigo, possuem expressões como diánoia, lógos ou phantasía. No
caso dessa última, é particularmente nítida a intenção de Montaigne
de adaptar seu vocabulário à tradução da expressão pirrônica, ainda
que o termo transplantado ganhe eventualmente nova dimensão se-
mântica. Mas podem esses termos, no ceticismo antigo, designar algo
análogo às faculdades da alma, tal como Montaigne a elas se refere?
Sexto Empírico, ao combater as diversas teorias propostas pelos antigos
dogmáticos a respeito, suspende o juízo sobre a natureza e a realidade
da alma (e igualmente do corpo), também sobre a realidade do intelec-
to e sobre o alegado poder que ele teria de se conhecer a si mesmo e
à sua substância, assim como sobre as chamadas faculdades (dúnameis)

3. Ver, por exemplo, 503AC, 564A. Por “faculdades”, Montaigne parece indiferen-
temente se referir às ações da alma e ao seu produto, tal como ocorre no emprego dos
termos que, nos Ensaios, designam as faculdades particulares (como o julgamento, a
razão ou a imaginação).
4. Sobre o modo “difuso” (blurring) com que Montaigne trata das “categorias psico-
lógicas”, ver, por exemplo: LA CHARITÉ, 1968, p. 1; MCFARLANE, 1968, p. 122; e HO-
LYOAKE, 1969, p. 502.

491

10888_A figura do filosofo.p65 491 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

da alma5. E Montaigne o segue quando critica, como também vimos,


a maneira como os filósofos forjam inúmeras teorias sobre os “mil frag-
mentos falsos e fantásticos” que eles inventam para explicar as funções
e faculdades que sentimos em nós6. Notemos apenas, além do que já
dissemos, que isso não o impede de apresentar um julgamento — ime-
diatamente após se apresentar como um filósofo impremeditado e for-
tuito — sobre a opinião mais verossímil nesse assunto:
[A] Para voltar à nossa alma, quanto ao fato de Platão ter posto a
razão no cérebro, a ira no coração e a cupidez no fígado, é verossímil
que isso tenha sido antes uma interpretação [interpretation] dos
movimentos da alma do que uma divisão e separação que ele tenha
querido fazer nela mesma, como dividir um corpo em diversos mem-
bros. E a mais verossímil de suas opiniões é a de que é sempre uma
alma que, pela sua faculdade, raciocina, lembra-se, compreende,
julga, deseja e exerce todas as suas outras operações, por diversos
instrumentos do corpo (como o piloto governa o seu navio segundo
a experiência que dele tem, ora puxando, ora relaxando uma corda,
ora levantando a antena ou movendo o remo, por um único poder
conduzindo diversos efeitos [effects]), e que ela se situa no cérebro: o
que se extrai de que os acidentes que tocam essa parte perturbam de
imediato as faculdades da alma… (542).
Essa passagem poderia sugerir que, como Descartes, Montaigne
sustentasse uma espécie de dualismo ontológico (que incorreria, ade-
mais, nos problemas que aquele pretendeu contornar ao esclarecer que
a estreita união entre a alma e o corpo, em face de sua obscuridade
para nosso entendimento, exigiria que nos referíssemos ao homem como
uma terceira substância). Porém, mesmo que as reflexões cartesianas
tivessem em vista essa passagem precisa, tal conclusão seria falsa, por
desconsiderar as freqüentes comparações entre a alma e o corpo que
buscam, precisamente, neutralizar as ficções abstratas dos dogmáticos
e contribuir para que a consideremos em sua efetiva condição natural7.

5. Cf. HP II, 57-58; AM VII, 348 ss.


6. Ver 537A; cf. item 7.4 — “Uma imagem menos fantasiosa do homem”.
7. Diversas vezes Montaigne argumenta contra a idéia platônica de uma alma sepa-
rada do corpo; ver 519A, 523A; II, 17, 639A, III, 13, 1106B, 1114-1115BC.

492

10888_A figura do filosofo.p65 492 28.03.07, 16:09


Conclusão — Ceticismo e subjetividade

Montaigne se recusa a identificar o fato de que constatamos a presença


de faculdades diversas (e eventualmente diversas entre as pessoas) à
tese de que a alma é efetivamente divisível em partes (como observa-
mos ser o corpo), mas ele não pretende que se possa extrair daí nenhu-
ma tese metafísica, seja sobre sua unidade, seja sobre sua fragmenta-
ção. O conteúdo mesmo dessa metáfora será, poucas páginas adiante,
embargado pela maneira como aquilo que nos surge como “verossí-
mil” acerca da natureza da alma será contraposto à verdade revelada e
reduzido a um testemunho de nossa cegueira (v. 552-553). Como pro-
curamos mostrar noutro texto8, isso não revoga as hipóteses naturalistas
esboçadas, desde que tomadas como conjecturas capazes de exibir uma
imagem menos fantasiosa de nossa natureza, ressaltando, todavia, o
estatuto meramente “imaginativo” que tal conjectura não pode deixar
de ter, por mais razoável que nos pareça. A teoria platônica é vista aqui,
mais exatamente, como uma “interpretação”, isto é, uma conjectura
com base em elementos oferecidos por nossa experiência (a alma pare-
ce situar-se no cérebro) sem que, com isso, se pretenda tratar o veros-
símil por verdadeiro; são conjecturas cuja persuasividade deverá ser
averiguada por quem se dispuser a considerar a mesma experiência e as
razões que puderem ser oferecidas. E, sobretudo, essa conjectura deve
se prender àquilo que podemos mais diretamente constatar sobre as
suas faculdades (raciocinar, imaginar, lembrar) — tal como podemos
constatar a palidez da face —, sem saber de fato a que isso corresponde
além do modo como as percebemos (se são de fato “partes” distintas, se
se identificam umas com outras etc.) Mas, mesmo nessa descrição, não
se pretende dizer o que sejam, em si mesmas, essas instâncias da alma
que podemos, por meio de nosso discurso e de nossa experiência, apreen-
der acerca de nós mesmos. Tal como o cético pirrônico assente ao “guia
da natureza”, pelo qual admitimos, como critério para a vida prática,
nossa capacidade de pensar e perceber, Montaigne, ao reconhecer a
plena conformidade entre o ceticismo e o uso das faculdades corporais
e espirituais que temos à nossa disposição, não se furtará a descrevê-las
segundo as diferenças pelas quais cada uma delas pode aparecer a nós.

8. Ver EVA, 2004, p. 125-145, bem como 1994a, especialmente p. 33.

493

10888_A figura do filosofo.p65 493 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Contudo, tal descrição, como dissemos, não almeja ser uma apresen-
tação de sua essência: os nomes, para usar a expressão de Montaigne,
são apenas “partes estrangeiras” coladas às coisas, e fora delas (v. II, 16,
618A); nesse caso, especialmente, “jugement”, “raison” e “fantasie” são
exemplos de expressões pelas quais se trata de levar adiante essa “espi-
nhosa empresa, e mais do que possa parecer, de seguir um andamento
tão incerto [vagabonde] como este do nosso espírito, de penetrar as
profundezas opacas de suas dobras internas, de escolher e de fixar
[arrester] tantos ares e agitações diminutas…” (II, 6, 378C). Ou, ainda,
em “Da vaidade”: “… [as faculdades] possuem divisões e limites difí-
ceis de discernir, e delicados…” (III, 9, 992B)9.
Assim, a fluidez semântica do vocabulário epistemológico dos En-
saios pode ser vista como parte da imagem que Montaigne nos ofere-
ceria de uma “unidade” da alma compatível com nossa incapacidade
de circunscrever e precisar claramente suas partes. A vagueza desse
vocabulário não constitui, nessa medida, uma imperfeição conceitual,
mas, ao contrário, é parte da tentativa de descrever a fluidez e a com-
plexidade próprias do phainómenon que se oferece nos movimentos de
nossa alma e, mais ainda, de exibir, no detalhe da relação ambígua que
se dá entre essas partes, como fracassam nossas tentativas de fixar as
condições que propiciariam conhecimento objetivo das coisas. A natu-
reza difusa da caracterização montaigniana é, desse modo, a conse-
qüência natural do esforço de oferecer uma pintura mais verossímil de
nossa condição cognitiva efetiva, além da imagem fantasiosa que surge
de nossa tendência a tomar as etiquetas pelas próprias coisas.
Parece-nos também relevante assinalar que a dificuldade própria da
reflexão montaigniana parece resultar da atenção especial que dedica às
considerações céticas sobre a impossibilidade de conferirmos à expres-
são do que nos aparece um sentido absoluto: ela é apenas relativa ao

9. Trata-se de uma temática na qual igualmente insiste Sanchez: “E sobretudo con-


templar a alma, suas faculdades, e suas ações, é algo muito difícil e objeto de muitas
perplexidades; é algo tão difícil quanto qualquer estudo o possa ser… Não apenas a
investigação da natureza da mente é cheia de obscuridades, mas lamacenta, árdua,
abstrusa, sem pistas, por muitos intentada mas por ninguém conseguida, e de uma
espécie que ninguém conseguirá…” (QNS, 53, 239-240).

494

10888_A figura do filosofo.p65 494 28.03.07, 16:09


Conclusão — Ceticismo e subjetividade

filósofo que a emprega e à experiência que lhe confere sentido10. Não se


trata, como dissemos, de relativismo, mas sim de assinalar que a lingua-
gem — em especial, o próprio vocabulário “epistemológico” — ganha
sentido conceitual relativamente àquilo que descreve. Ou bem a lin-
guagem se emprega segundo o sentido que possui no filósofo que se
trata de refutar, ou bem ela ganha o sentido adequado para descrever os
conceitos na medida em que a própria experiência reflexiva pode lhes
conferir sentido. Seríamos aqui novamente tentados a retomar uma
aproximação entre Montaigne e Descartes (que igualmente pretenderia
vincular a efetiva compreensão dos conceitos mobilizados na discussão
sobre nossas faculdades de conhecer à sua ação efetiva), mas os resulta-
dos extraídos dessas considerações são, de todo modo, bem diversos.
Se Montaigne se refere, por exemplo, ao costume como uma espé-
cie de faculdade (de se adaptar à repetição, com os efeitos negativos
que isso pode gerar quanto ao conhecimento das coisas), distingui-lo da
razão é algo que só parece ganhar sentido na medida em que o empre-
go dessa última ofereceria uma via para o conhecimento da verdade
diversa daquela que, apenas por esse meio, poderá agora ser referida
como decorrente da simples autoridade do costume. O costume se
“oculta a si mesmo” ao aparecer como idêntico à razão, e nos oferece
como uma imagem enganosa, tanto de como as coisas seriam, natural
e verdadeiramente, quanto da própria racionalidade, que nos aparece-
ria segundo a imagem relativa ao uso limitado de nossas faculdades
cognitivas que não comporta essa distinção. Porém, se o uso da razão
nos convida a tal distinção, nossas limitações naturais não nos permi-
tem levá-la plenamente a cabo, mas isso não significa que ela seja des-
provida de sentido. Somos forçados a concluir que, na prática, não
podemos abandonar o substrato do costume, por mais que ele nos ofe-
reça um material passível de ser observado diversamente, caso arran-
quemos a máscara que ele projeta, e assumir que tal ação — bem como
a própria partilha entre razão e costume — é sempre o resultado de
nossa capacidade relativa.

10. Sobre o uso cético da linguagem, ver itens 5.1 — “O ceticismo como gênero
filosófico”, 7.3 — “Uma quimera que não cabe na imaginação”.

495

10888_A figura do filosofo.p65 495 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

Mas se compreendemos, além disso, que nossa imagem habitual


da razão é dependente do costume — posto que, segundo seu pleno
emprego natural, ela pode se revelar uma “xícara de duas asas”, capaz
de oferecer subsídios potencialmente equivalentes a toda suposta ver-
dade que se ofereça —, já nesse passo se oferece um grau diverso de
aprofundamento no uso de nossas faculdades cognitivas. Não é nesse
mesmo passo que a razão também se mostra insuspeitadamente próxi-
ma da fantasia? Desse novo ponto de vista, ganha sentido considerar o
juízo uma faculdade diversa da razão, mas tampouco essa faculdade
escapará da mesma naturalização cética. Por mais que se possa revelar
idêntica ao “eu” que avalia e conhece, tal como ele se pode reconhe-
cer no espaço onde recua diante da falibilidade de sua razão, um “eu”
que pode se formar em sua singularidade por meio de sua atividade
judicativa, o olho do juízo depende, para ver, do ponto cego situado
em sua permanente impressão de certeza. E se isso permite a Montaig-
ne traçar o projeto pelo qual se pode recuar dessas impressões de cer-
teza e considerar-se projetado em seu livro, trata-se de reconhecer que
o ensaio de seu juízo não deixa igualmente de ser obra da fantasia, sem
que, com isso, seja anulado o ponto de vista pelo qual essas distinções
permanecem fazendo sentido. A fantasia, por fim, agindo de modo
semelhante ao costume, acaba por exibir seu poder de permanente-
mente imiscuir-se na ação de nossas demais faculdades cognitivas e
revelar a dimensão fundamental que efetivamente possui em nossa
experiência, num grau igualmente insuspeitado, e finalmente inerradi-
cável, uma vez que a idéia de que poderíamos proceder a sua plena
depuração seria, segundo Montaigne, apenas uma fantasia dentre ou-
tras. Cabe assim reconhecê-la como parte constitutiva de nossa condi-
ção, portadora de uma importância normalmente desconsiderada no
que tange à nossa efetiva inserção no mundo. Em suma, diríamos que
essa imagem naturalizada do homem, observada pelo eixo dessa dinâ-
mica das faculdades em que se explicita, oferece uma ilustração privi-
legiada da metáfora dos cães de Esopo diante das miragens que os fa-
zem avançar mar adentro.
Como dizíamos, a subjetividade montaigniana não se arquiteta em
conceitos claros e distintos, pela perspectiva da justificação dos conheci-

496

10888_A figura do filosofo.p65 496 28.03.07, 16:09


Conclusão — Ceticismo e subjetividade

mentos a que temos acesso, e tampouco segundo a exigência de justi-


ficação da Nova Ciência (cujo método experimental se oferece como
promessa renovada para a produção de conhecimento, particularmen-
te no que tange às ciências físicas). Mas desqualificá-la sob a alegação
de um atraso histórico seria cegar-se para a importância que pode ter
essa reflexão sobre a subjetividade no limiar da constituição dessa pro-
blemática moderna. Popkin parece ter sido o primeiro a reconhecer
que já se encontravam formulados na “Apologia” aqueles que viriam a
se tornar os problemas centrais do projeto da epistemologia moderna,
tal como os encontramos formulados no Ensaio de Locke — a saber,
determinar a origem, a extensão e o grau de certeza de nossos conhe-
cimentos11. Mas o ceticismo antigo já possui, ao menos implicitamen-
te, uma concepção de “sujeito” epistemológico: o “homem”, naturali-
zado pela crítica cética, não pode corresponder a um sujeito absoluto;
ele é apenas, ao lado das demais criaturas, o animal humano, possuidor
de recursos cognitivos particulares e limitados de conhecimento, que o
impedem de conhecer plenamente essas limitações por meio desses
próprios instrumentos12. Montaigne, de sua parte, não busca retratar o
homem em vista de uma eventual facilidade metodológica de admitir
o nosso acesso às nossas próprias representações como objeto de co-
nhecimento; ao contrário, ele não cessa de sublinhar a dificuldade desse
empreendimento investigativo, do qual se vê como um pioneiro (pon-
do à parte dois ou três antigos dos quais o nome seria hoje desconhe-
cido)13. Podemos aqui reconhecer que seu pioneirismo reside, em par-
te, na maneira como a imagem mais verossímil do homem que preten-
deu oferecer corresponde a uma explicitação dessa subjetividade céti-
ca; uma subjetividade cujas “profundezas e dobras opacas” que
transparecem através de nossa inserção efetiva no mundo ofereceriam
antes a pintura, por assim dizer, de um “sujeito do desconhecimento”,

11. POPKIN, 1988, p. 682.


12. Ver PORCHAT, 1992, p. 102-103. Tratamos desse tema no item 7.3 — “Uma
quimera que não cabe na imaginação”.
13. Ver especialmente II, 6, 378A; II, 17, 634A. Cf. item 7.4 — “Uma imagem
menos fantasiosa do homem”.

497

10888_A figura do filosofo.p65 497 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

incapaz de obter uma imagem plenamente clara das coisas e de si


mesmo. Menos relevância teria ela se, considerada no detalhe e na
riqueza argumentativa da sua explicitação, não nos oferecesse, por
antecipação, boas razões de desconfiança crítica com relação aos diver-
sos modelos epistemológicos que lhe sucederiam.
Não percamos tampouco de vista a especificidade do projeto mon-
taigniano e sua justificação intrínseca: como dissemos, ela não decorre
da facilidade da empresa, mas da utilidade que a observação de nossa
condição natural poderia propiciar — em vista da plena fruição daqui-
lo que está a nosso alcance, por mais que a imagem resultante possa
destoar daquela que desejaríamos que fosse. O modo como sintetiza-
mos e organizamos a relação cambiante das faculdades (de um modo
que o próprio Montaigne nunca explicitamente se ocupou) talvez o
aproximasse daquilo que se convencionou chamar de “dialética pasca-
liana”. Todavia, por mais que Pascal tenha em vista a imagem montaig-
niana de homem como um componente fundamental de sua antropo-
logia, Montaigne nos parece estar mais próximo das exigências pró-
prias da valorização moderna da experiência. Pela sua radicalidade,
com que pretende permanecer rente à experiência efetiva, a naturali-
zação montaigniana passa inteiramente ao largo de qualquer dimensão
teleológica ou apologética ou de qualquer pressuposto da teologia cris-
tã (divergindo aqui da maneira como a subjetividade será focalizada
mesmo pelas epistemologias que a admitirão como instância capaz de
garantir conhecimento).
Eis-nos diante de um ceticismo singular e mesmo desconcertante
à luz da imagem corrente que, não vendo além da articulação cartesia-
na entre a tematização da subjetividade e a suspensão “cética” de nossa
inserção no mundo da experiência vivida, não pode tampouco com-
preender como uma filosofia autenticamente cética, que assume ple-
namente a validade dos questionamentos epistemológicos antigos so-
bre nosso acesso a uma verdade objetiva e reconhece, nessa mesma
atitude, um meio de nos expor aquilo que efetivamente somos, pode
igualmente nos oferecer a condição da plena fruição da vida em uma
dimensão propriamente humana. O cético, à falta de poder se referir a
uma verdade objetivamente dada a todos os homens, nada ensina; apenas

498

10888_A figura do filosofo.p65 498 28.03.07, 16:09


Conclusão — Ceticismo e subjetividade

narra o seu páthos subjetivo; oferece-se como exemplo, a ser colhido


ou recusado no âmbito de outra experiência igualmente pessoal. Se
Descartes pretende extrair da exemplaridade da experiência humana
uma verdade que subverta o ceticismo, Montaigne se vale da diversi-
dade da experiência humana para examinar mais profundamente a si
mesmo, em face da impossibilidade de obter uma imagem definitiva
daquilo que pretende retratar. A utilidade da reflexão situa-se não na
busca de uma verdade capaz de estancar a investigação, mas numa
valorização da própria investigação em seu caráter simultaneamente
singular e provisório, capaz de nos oferecer indefinidamente, no que
possui de casual e imprevisto, uma transformação do próprio objeto
examinado. Se dela emergem, para aquele que investiga, tanto figuras
relativamente estáveis daquele que se investiga para si mesmo (formas
mestras implantadas pelo costume e pela natureza) como figuras que
se possam oferecer aos leitores como imagens da própria experiência
humana, ela nos mostra, ao mesmo tempo, que a pretensão de estabe-
lecer uma clara partilha entre o que há de universal e de singular na
experiência subjetiva tende a ser apenas uma ilusão a mais, gerada pela
incapacidade de irmos além na mesma investigação. Eis-nos afinal diante
de um filósofo de nova figura que permanece ainda, em boa medida,
a descobrir.

499

10888_A figura do filosofo.p65 499 28.03.07, 16:09


10888_A figura do filosofo.p65 500 28.03.07, 16:09
Bibliografia

1. Edições das obras de Montaigne e


instrumentos de análise utilizados
MONTAIGNE, Michel de. Les Essais. Ed. Pierre Villey, V.-L. Saulnier, Paris,
PUF, 1988 (col. Quadrige).
______. Lettres. Ed. Bernard Manciet, Bordeaux, L’Horizon chimérique, 1991
(com base em Œuvres Complètes “L’Integrale”, Le Seuil, 1967).
DUBOIS, Jean (dir.). Dictionnaire de la Langue Française — Lexis. Paris,
Larrousse, 1979, 1994.
BONNET, Pierre. Bibliographie méthodique et analytique des ouvrages et
documents relatifs à Montaigne. Paris/Genève, Slatkine, 1983.
GREIMAS, A. J., KEANE, T. M. Dictionaire Larousse du Moyen Français — La
Renaissance. Paris, Larousse, 1992.
GODEFROY , Frédéric. Dictionaire de l’Ancienne Langue Française. Paris,
Slatkine, 1992.
LEAKE, R. E. Concordance des Essais de Montaigne. Genève, Droz, 2 t., 1981.

501

10888_A figura do filosofo.p65 501 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

2. Outras fontes primárias


AGOSTINHO. Contra Academicos. In: Œuvres de Saint Augustin. Traduction et
notes R. Jolivet (Bibliothèque Augustinienne), IV, I. Texte de l’Edition
Bénedictine. Paris, Desclée de Brouwer et cie, 1948.
AGRIPPA, Henri Cornellius. Paradoxe sur l’incertitude, vanité & abus des sciences.
Trad. de De Vanitate Scientiarum, ed. 1608, in 12, Bibl. Sorbonne: Hjf56
(tradutor ilegível).
_____. Filosofia oculta. Trad. de De Philosophia Occulta, trad. Hector Morel.
Buenos Aires, Kier, 1982.
BACON, Francis. Novum Organum. Introduction, traduction et notes Michel
Malherbe et Jean-Marie Pousseur. Paris, PUF, 1986.
CICERO. De Natura Deorum [Dnd]/Academica [Acad.]. Ed. H. Rackham, Loeb
Classical Edition. Cambridge, Harvard University Press, 1933.
______. Tusculan Disputations (Tusculanarum Disputationem) [Tusc.]. Ed. J.
E. King, Loeb Classical Editions. Cambridge, Harvard University Press,
1927, 1996.
DESCARTES, René. Discours de la Méthode [DM]. Texte et commentaire par
Étienne Gilson. Paris, J. Vrin, 1987.
______. Œuvres et Lettres. Textes presentés par André Bidoux. Paris, Bibliothè-
que de la Pléiade, 1941.
______. Méditations Métaphysiques. Présentation par Michelle et Jean-Marie
Beyssade. Paris, GF Flamarion, 1992.
EMERSON, R. W. Montaigne, or the Skeptic. In: Representative Men, Seven
Lectures, 1876.
ERASMO. Encomium Moriae. Trad. Elogie de la Folie (EL), Maurice de Nolhac.
Paris, Garnier [s.d.].
______. Érasme (Col. Bouquins) [obras diversas]. Paris, Robert Laffont, 1992.
GUY DE BRUÈS. Dialogues contre les Nouveaux Accademiciens (Dial. 1557).
Ed. Panos Paul Morphos. Baltimmore, The Johns Hopkins Press, 1953.
HUME, David. Enquires concerning Human Understandind and concerning the
Principles of Morals (EHU). Reprinted from the 1777 edition with
Introduction and Analytical Index by L.A. Selby-Bigge. Oxford, Claren-
don Press, 31975.
NIETZSCHE, F. W. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (1873). In:
Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril
Cultural, 1983 (Col. Os Pensadores).

502

10888_A figura do filosofo.p65 502 28.03.07, 16:09


Bibliografia

PASCAL, Blaise. Pensées. In: Oeuvres Complètes. Ed. Lafuma. Paris, Éditions du
Seuil, 1963.
______. Entretien avec M. de Sacy. Ed. Pierre Courcelle. Paris, Vrin, 1981.
PLUTARQUE. Les Oeuvres Morales & meslées de Plutarque, translatees du Grec
en François par Messire Jacques Amyot (…) à Paris, de l’imprimerie de
Michel de Vascosan, 1572 (OM) (ed. fac-símile M. A. Screech).
SANCHES, Francisco. That Nothing is Known (Quod Nihil Scitur) (QNS). Ed.
Elaine Limbrick, Douglas Thomson (s/ Lugduni: apud Antonium
Gryphium, 1581). Cambridge, Cambridge University Press, 1988.
SENECA. Ad Lucilium Epistolae Morales (Epist.). Trad. Richard Gummere.
Loeb Classical Edition, Harvard, 1917, 1989.
SEXTUS EMPIRICUS. Sextus Empiricus in Four Volumes. Ed. R. G. Bury. Loeb
Classical Editions, Harvard, 1933 (reimpr. 1993); v. 1: Outlines of
Pyrrhonism (Hypotyposes Pyrrhonianas) (HP); v. 2-4: Adversus Mathematicos
(AM).
______. Outlines of Pyrrhonism. Trad. Julia Annas, Johnathan Barnes. Cam-
bridge, Cambridge University Press, 1994.
Sexti Empirici Viri Longe Doctissimi Adversus Mathematicos, Hoc est, aduersus
eos qui profitentur disciplinas, opus eruditissimum, complectens vniuersam
Pyrrhoniorum cutissimorum Philosophorum disputandi de quidbuslibet
disciplinis & artibus rationem, Graecè numquam, Latinè nunc primum
editum, Gentiano Herveto Aurelio Interprete. Eiuvsdem Sexti
Pyrrhoniarum Hypotyposeom libri tres: Parisiis, Apud Martinum Iuuenem,
MDLXIX (Bibliothèque Nationale, côte BN R72).

3. Fontes secundárias
ANNAS, Julia. The Heirs of Socrates. Phronesis, 33, 1988, 100-112.
______. Plato the Sceptic. In: James C. KLAGGE, Nicholas D. SMITH (eds.).
Methods of Interpreting Plato and his Dialogues. Oxford Studies of Ancient
Philosophy. Oxford, Oxford University Press, 1992, 43-72.
AULOTTE, Robert. Montaigne — Apologie de Raimond Sebond. Paris, CDU-
Sedes, 1979.
BARNES, Jonathan. The Beliefs of a Pyrrhonist. Proceedings of the Cambridge
Philological Society, 208 (New Series 28), 1982, 1-29.
BEAUJOUR, Michel. Miroirs d’Encre — Rhétorique de l’autoportrait. Paris, Seuil,
1980.

503

10888_A figura do filosofo.p65 503 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

BELLENGER, Yvonne. Paradoxe et ironie dans les Essais de 1580. In: M. T.


Jones-Davis (org.). Le paradoxe au temps de la Renaissance. Paris, Jean
Touzot Libraire-Editeur, 1982, 9-22.
BLINKENBERG, Andreas. Quel sens Montaigne a-t-il voulu donner au mot Essais
dans le titre de son oeuvre? Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne
(BSAM), 3eme serie, 29 (jan.-mar.), 1964.
BOWEN, Barbara. The Age of Bluff: Paradox and Ambiguity in Rabelais and
Montaigne. University of Illinois Press (Illinois Studies in Language and
Literature 62), 1972.
BRAHAMI, Fréderic. Le scepticisme de Montaigne. Paris, PUF, 1996.
BRÉHIER, Émile. História da filosofia. Trad. Eduardo Sucupira. São Paulo,
Mestre Jou, 1931, 1978. 3 v.
BRUSH, Craig. Montaigne and Bayle, Variations on the Theme of Skepticism.
Martinus Nijhoff, The Hague, 1996.
BURNYEAT, Myles. Can the Skeptic Live His Skepticism? In: Myles Burnyeat
(ed.). The Skeptical Tradition. California, University of California Press,
1983(1980), 117-148.
______. The Sceptic in His Place and Time. In: R. RORTY, J. SCHEEWIND, Q.
SKINNER (ed.). Philosophy in History. New York/New Rochelle/Melbour-
ne/Sidney [s.n.], 1984, 225-254.
CARDOSO, Sérgio. Uma fé, um rei, uma lei. A crise da razão política na França
das Guerras de Religião. In: A crise da razão. São Paulo: Minc-Funarte/
Companhia das Letras, 1996, 173-193.
CARRAUD, Vincent. Pascal et la Philosophie. Paris, PUF, 1992.
CAVE, Terence. Au cœur de l’Apologie: la logique de l’antiperistase. In: Ilana
ZINGER (ed.). Le Lecteur, L’Auteur et l’Écrivain — Montaigne 1492, 1592,
1992. Colloque Internationale de Haifa. Paris, Honoré Champion, 1993,
1-15.
______. Psyché et Clio: le cas Montaigne. Carrefour Montaigne. Quaderni
del Seminario di Filologia Francese, Pisa, ETS/Slatkine, 1994, 95-116.
______. Cornucopia. Figures de l’Abondance au XVIème siècle: Érasme, Rabe-
lais, Ronsard, Montaigne. Paris, Macula, 1997. Trad. Ginette Morel, do
original The Cornucopian Text: Problems of Writing in the French
Renaissance. Oxford, Clarendon Press, 1979.
CÉARD, Jean. La coutume dans les Essais de Montaigne. In: M. T. Jones-Davis
(org.). Expérience, Coutume et tradition au temps de la Renaissance. Paris,
Kliensieck, 1992, 23-38.

504

10888_A figura do filosofo.p65 504 28.03.07, 16:09


Bibliografia

COMPAGNON, Antoine. Nous, Michel de Montaigne. Paris, Editions du Seuil, 1980.


COMTE-SPONVILLE, André. “Je ne suis pas philosophe” — Montaigne et la Phi-
losophie. Paris, Honoré-Champion, 1993.
CONCHE, Marcel. Montaigne et la philosophie. Paris, Éditions de Mégare, 1987.
CURLEY, E. M. Descartes Against the Skeptics. Oxford, Basil Blackwell, 1975.
DEMURE, Catherine. Les allongeails dans l’“Apologie”: la question de la cohé-
rence philosophique. Révue d’Histoire Littéraire de la France, n. 5, 1988,
991-1005.
______. Le libre essai du “juger” dans les Essais. BSAM, 21-22 (jul.-déc.),
1990, 96-106.
DRESDEN, S. La précision paradoxale de Montaigne. Neophilologus, 47, 1963,
269-276.
EVA, L. A. A. O fideísmo cetico de Montaigne. Kriterion, 86, 1992, 42-59.
______ . Montaigne e o ceticismo na “Apologia” de Raymond Sebond: a na-
tureza dialética da crítica à vaidade. O que nos faz pensar, 8 (nov.), 1994a,
106-117.
______ . A vaidade de Montaigne. Discurso. São Paulo, Discurso Editorial, 23,
1994b, 25-52.
______. Notas sobre a presença de Sêneca nos Ensaios de Montaigne. Educa-
ção e Filosofia, Universidade Federal de Uberlândia (MG), 17 (1) (jan.-
jul.), 1995, 39-52.
______. Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno. Revista
Latinoamericana de Filosofia, v. XXVII, n. 2 (primav.), 2001, 199-225.
______. Montaigne contra a vaidade. São Paulo, Humanitas, 2004.
______. O primeiro cético — acerca da coerência do pirronismo. In: Waldomiro
SILVA, Plínio SMITH (org.). O ceticismo e a possibilidade da filosofia. Ijuí,
Ed. Unijuí, 2005, 45-86.
FAYE, Emmanuel. Descartes et la Renaissance: philosophie de l’homme, métho-
de, métaphysique. In: Descartes et la Renaissance, actes du Colloque Interna-
tional de Tours des 22-24 mars 1996. Paris, Honoré Champion, 1999, 11-56.
FARQUHAR, Sue. Les Tactiques du Scepticisme dans l’Apologie de Raymond
Sebond. BSAM, 23-24, 1995, 19-44.
FRAME, Donald. Did Montaigne betray Sebond? Romanic Review, XXXVIII,
4, 1947, 297-329.
______. Montaigne, The Humanization of a Humanist. New York, Columbia
University Press, 1955.

505

10888_A figura do filosofo.p65 505 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

FRANKFURT, H. G. Demons, Dreamers and Madmen. The Defence of Reason


in Descartes’Meditations. Indianapolis/New York, The Bobbs-Merrill
Company, 1970.
FREDE, Michael. The Sceptic’s Two Kinds of Assent and the Question of the
Possibility of Knowledge. In: R. RORTY, J. SCHEEWIND, Q. SKINNER (ed.).
Philosophy in History. New York/New Rochelle/Melbourne/Sidney, [s.n.],
1984, 225-254.
FRIEDRICH, Hugo. Montaigne. Paris, Gallimard, 1968. (ed. original: A. Franke
Verlag AG, 1949).
GARAVINI, Fausta. Monstres et Chimères, le Texte et le Fantasme. Paris, Honoré
Champion, 1993.
GENZ, H. E. First Traces of Montaigne’s Progression Toward Self-Portraiture.
Symposium, XVI, 1962, 206-212.
GILSON, Etienne. Le cogito et la tradition augustinienne. In: Études sur le role de
la pensée médiévale dans la formation du système cartésien. Paris, Vrin, 1930.
______. Introduction à l’Étude de Saint Augustin. Paris, Vrin, 1987.
GLAUSER, Alfred. Montaigne paradoxal. Paris, Nizet, 1972.
GLUCKER, John. Cicero’s philosophical affiliations. In: J. M. DILLON, A. A.
LONG (ed.). The Question of Eclecticism — Studies in Later Greek Phi-
losophy. [s.l.], University of California Press, 1988, 34-69.
GOLDSCHMIDT, Victor. Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos
sistemas filosóficos. In: A religião de Platão. São Paulo, Difel, 1970(1956).
GONTIER, Tierry. Charron face à Montaigne. Strategies du scepticisme. In:
Montaigne et la question de l’homme. Paris, PUF, 1999, 103-144.
GRANADA, Miguel. Apologétique platonicienne et apologétique sceptique: Ficin,
Savonarole, Jean-François Pic della Mirandole. In: P. F. Moreau (dir.). Le
Scepticisme au XVIe et au XVIIe siècle. Paris, Albin Michel, 2001, 11-47.
GRAY, Floyd. The “Nouveaux Docteurs” and the Problem of Montaigne’s Con-
sistency in the “Apologie de Raimond Sebond”. Symposium (Spring) 22-
34, 1964.
______. Montaigne’s Pyrrhonism. In: O un amy! Essais on Montaigne in Honor
of Donald Frame. French Forum, Lexington, 1997, 119-136.
GUEROULT, Martial. Descartes selon l’ordre des raisons. Paris, Aubier. 2 v., 1968.
GUITON, Jean. Où est le débat sur la réligion de Montaigne. Romanic Review,
XXXV, 2, 1944, 98-115.
HADOT, Pierre. Qu’est-ce que la philosophie antique? Paris, Gallimard (Folio),
1995.

506

10888_A figura do filosofo.p65 506 28.03.07, 16:09


Bibliografia

HOLYOAKE, S.-J. Further reflexions on Montaigne and the Concept of Imagina-


tion. Bibliothèque d’Humanisme et Renaissance, XXXI, 1969, 495-523.
______. Is Ignorance Desirable? A New Approach to an old Problem in Mon-
taigne’s Essais. Nottingham French Studies, 25, II, 1989, 1-13.
JONES-DAVIS, M. T. La Coutume, monstre ou ange à l’ere élisabéthaine. In:
______ (org.). Éxperience, Coutume et Tradition au Temps de la Re-
naissance. Paris, Kliensieck, 1992, 125-142.
LA CHARITÉ, R. C. The Concept of Judgement in Montaigne. The Hague, Mar-
tinus Nijhoff, 1968.
______ . Montaigne Early Personal Essays. Romanic Review, LXII, 1, 1971, 5-15.
LIMBRICK, Elaine. Was Montaigne really a Pyrrhonian?, Bibliothèque d’humanis-
me et renaissance, 39, 1977, 67-80.
______. La relation du scepticisme avec la subjectivité. In: Eva KUSHNER (org.).
La Problématique du Sujet chez Montaigne. Paris, Honoré-Champion,
1995, 73-86.
MACGOWAN, Margaret. Montaigne’s deceits: the art of persuasion in the Essais.
London, University of London Press, 1974.
MALLOCH, A. E. The Techniques and Function of the Renaissance Paradox.
Studies in Philology, LIII, 1956, 191-203.
MARCU, Eva. Quelques invraisemblances et contradictions dans les Essais. In:
Mémorial du 1er Congrès International des Études Montaignistes (1963).
Bordeaux, S.I.A.M., 1964, 238-246.
McFARLANE, Ian. Montaigne and the Concept of Imagination. In: The French
Renaissance and Its Heritage. London, Methuen, 117-137.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Leitura de Montaigne. In: Sinais. [s.l.], Minotauro,
1960.
MICHA, André. Le Singulier Montaigne. Paris, Nizet, 1964.
NACAS, Athanase. Le sens du mot Essai et les Intentions de Montaigne. BSAM,
3-4, 1980.
O’BRIEN, John. Montaigne and the Exercise of Paradox: Essais III. 12. In:
Montaigne in Cambridge. Proceedings of the Cambridge Montaigne
Colloquium, april 1988. Ed. Philip Ford and Gillian Jondorf. Cambridge,
Cambridge University Press, 1989, 53-67
PANOFSKY, Erwin. Renascimento e renascimentos na arte ocidental. Lisboa,
Presença, 1960.
PENELHUM, Terence. God and Skepticism. Dodrecht, D. Reidel Publishing,
1983.

507

10888_A figura do filosofo.p65 507 28.03.07, 16:09


A figura do filósofo — Ceticismo e subjetividade em Montaigne

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo, Martins Fontes, 1997.


PHOLIEN, Georges. Montaigne et la Science. BSAM, VIIe série, 19-20 (jan.-
juin.), 1990, 61-74.
POPKIN, Richard. The History of Scepticism from Erasmus to Espinosa. California,
University of California Press, 1979.
______. Theories of Knowledge. In: C. SCHMITT, Q. SKINNER. The Cambridge
History of Philosophy of Renaissance. Cambridge, Cambridge University
Press, 1988.
PORCHAT PEREIRA, O. Sobre o que aparece. Discurso. São Paulo, Discurso
Editorial, 19, 1992, 83-121.
______. Ceticismo e argumentação. In: Vida comum e ceticismo. São Paulo,
Brasiliense, 1993, 213-254.
POUILLOUX, J.-Y. Montaigne, l’Éveil de la pensée. Paris, Honoré-Champion,
1995.
REGOSIN, Richard. The Matter of My Book: Montaigne’s Essais as the Book of
the Self. Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 1977.
RIGOLOT, François. Perspectives Modernes sur la Subjectivité Montaignienne.
In: Eva KUSHNER (org.). La Problématique du Sujet chez Montaigne. Paris,
Honoré-Champion, 1995, 149-170.
RODIS-LEWIS, Geneviève. Montaigne, Charron, Descartes et le doute. In: Des-
cartes et la Renaissance, actes du Colloque International de Tours des 22-
24 mars 1996. Paris, Honoré Champion, 1999, 79-86.
SCHIFFMAN, Z. S. Montaigne and the rise of the skepticism in early modern
Europe: a reappraisal. Journal of the History of Ideas, 45, 1984, 499-516.
SCHMITT, C. B. The Rediscovery of Ancient Scepticism. In: Myles BURNYEAT
(ed.). The Skeptical Tradition. California, University of California Press,
1983, 225-251.
SCREECH, M. A. Montaigne: Some Classical Notions in their Context. In:
Montaigne in Cambridge. Proceedings of the Cambridge Montaigne
Colloquium, April 1988, ed. Philip Ford and Gillian Jondorf. Cambridge
University Press, 1989, 39-52.
______. Montaigne et la mélancholie. Trad. Florence Bourgne. Paris, PUF
(Questions), 1992(1983).
SEDLEY, David. The Motivation of Greek Skepticism. In: Myles BURNYEAT
(ed.). The Skeptical Tradition. California, University of California Press,
1983, 9-29.

508

10888_A figura do filosofo.p65 508 28.03.07, 16:09


Bibliografia

SMITH, Plínio J. Continuar e conservar: Montaigne e o poder. História: Questões


e Debates, Depto. de História, UFPR, ano XIII, n. 25 (jul.-dez.), 1996, 58-
81.
STAROBINSKI, Jean. Montaigne em Movimento. São Paulo, Companhia das
Letras, 1993.
STEVENS, L. C. The Meaning of “Philosophy” in the Essais of Montaigne.
Studies in Philology, LXII, 1965, 147-154.
STROUD, Barry. The Significance of Philosophical Skepticism. Oxford, Claren-
don Press, 1985.
STROWSKI, Fortunat. Montaigne. Paris, Félix Alcan, 21931.
TAYLOR, Charles. The Sources of the Self. Harvard, Harvard University Press, 1996.
TOURNON, André. La Glose et l’Essai. Lyon, Presses Universitaires de Lyon,
1983.
______. L’argumentation pyrrhonienne: structure d’Essai dans le chapitre “Des
Boîteux”. Cahiers Textuel, 34/44, 2, 1986, 73-85.
______. Montaigne en toutes lettres. Paris, Bordas, 1989.
______ . Images du pyrrhonisme selon quelques écrivains de la Renaissance.
In: Mitchiko ISHIGAMI-IAGOLNITZER (éd.). Les humanistes et l’antiquité
grecque. Paris, Presses du Centre Nationale de Recherche Scientifique
(CNRS), 1991, 27-37.
VILLEY, Pierre. Les Sources & L’Évolution des Essais de Montaigne. Paris,
Hachette, 1933.
______ . Montaigne et François Bacon. Genève, Slatkine Reprints, 1973.
______ . Les Essais de Montaigne. Paris, Nizet (Col. Les grands évènements
littéraires), 1992(1931).
VINCENT, Hubert. Verité du Scepticisme chez Montaigne. Paris, l’Harmattan,
1998.
WALTON, Craig. Montaigne on the art of judgement: the trial of Montaigne.
In: Richard WATSON, James FORCE (ed.). The Sceptical Mode in Modern
Philosophy — Essays in Honor of Richard Popkin. Dodrecht, Martinus
Nijhoff, 1988, 87-102.
WILD, Markus. Les deux pyrrhonismes de Montaigne. BSAM, viiie série, 19-20
(juillet-décembre), 2000.
WILLIAMS, Michael. Descartes and the Metaphysics of Doubt. In: Amelia RORTY
(ed.). Essais on Descartes Meditations. California, University of California
Press, 1986, 117-140.

509

10888_A figura do filosofo.p65 509 28.03.07, 16:09


10888_A figura do filosofo.p65 510 28.03.07, 16:09
Este livro foi composto nas famílias tipográficas
Goudy e Electra
e impresso em papel Offset 75g/m2

10888_A figura do filosofo.p65 511 28.03.07, 16:09


10888_A figura do filosofo.p65 512 28.03.07, 16:09

Vous aimerez peut-être aussi