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10888_A figura do filosofo.p65 2 28.03.07, 16:00
Luiz Eva
A figura do filósofo
Ceticismo e subjetividade em Montaigne
Edições Loyola
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ISBN: 978-85-15-03265-5
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007
Apresentação ................................................................................ 11
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neles próprios. Esse terceiro emprego do paradoxo revela, por sua vez,
uma outra “novidade” com que se manifesta o ceticismo montaignia-
no, talvez não de todo consciente por parte do filósofo, embora nos
pareça decisiva de um ponto de vista histórico — a saber, a articulação
do diagnóstico cético de nossa incapacidade de conhecer a verdade em
torno dos limites naturais de nossas faculdades cognitivas.
A mesma constatação permitirá transitar, no capítulo VII, pelo exa-
me das considerações de Montaigne sobre imaginação ou fantasia. O
leitor verá que elas oferecem por si mesmas um derradeiro fio condutor
capaz de abarcar a trajetória filosófica de Montaigne em sua inteireza,
segundo seus contornos mais peculiares. Mais ainda, como se verá, a
noção de fantasia é precisamente aquela que nos permite melhor com-
preender não apenas o significado biográfico de seu contato filosófico
com o ceticismo, mas também a maneira como seu engajamento céti-
co se articula coerentemente com um projeto de se auto-retratar e
autoconhecer, no sentido maduro que ele adquire.
O esforço de compreender a singularidade filosófica dos Ensaios
acaba, assim, por imprimir ao percurso uma feição bastante sinuosa.
Mas não se trata aqui de mimetizar o modo próprio com que avança
em seu texto, aos “saltos e piruetas”, o filósofo de nova figura. Devo
confessar — talvez sem poder contornar inteiramente um paradoxo —
que esse me parece ter sido, involuntariamente, um preço a pagar pela
busca de exibir com clareza uma figura filosófica que opera de modo
mais rigoroso do que aquele que costuma transparecer na vagueza do
ensaísmo: “É o leitor indiligente que perde meu objeto, não eu”.
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Seria impossível mencionar aqui o nome de todos que deram sua
colaboração para o livro que o leitor tem agora em mãos. Limitar-me-ei
a registrar minha gratidão a Franklin Leopoldo e Silva, orientador de
minha pesquisa de doutoramento; a Bento Prado Jr., Danilo Marcon-
des, Paulo Faria e Sérgio Cardoso, pelas argüições ao texto do doutora-
mento, que contribuíram para sua revisão; e aos demais professores,
colegas e amigos com quem pude debater algumas das idéias aqui
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1. Cf. 438-604; v. esp. 438a, em que se formula o objetivo do capítulo: avaliar se são
verdadeiras as posições que atribuem à filosofia o poder de ser a mãe de toda a vir-
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taigne se refere à maneira casual com que trata dos mais diversos temas
sem abortar a possibilidade de lê-lo como um filósofo mais coerente —
e mais interessante aos olhos dos filósofos que o lêem, nem sempre
com a devida paciência diante do percurso singularmente sinuoso de
seus textos. Não se trata, contudo, de aplicar um “princípio de carida-
de” hermenêutico como norma interpretativa exterior e auto-evidente.
Trata-se apenas de tentar ler um filósofo seguindo mais fielmente suas
preconizações — valorizando o alerta desta passagem de “Da vaidade”:
“É o leitor indiligente que perde o meu objeto, não eu…” (III, 9, 994C).
Um segundo problema metodológico relevante diz respeito não
tanto à coerência filosófica de sua “nova espécie” de filósofo, mas ao
sentido em que sua filosofia se diria “nova”. Sem dúvida, a novidade
deve forçosamente se dizer “nova” em face de algum panorama da
“tradição” (continuamente mobilizada nos Ensaios, por inúmeras alu-
sões, especialmente aos “antigos”, mas também aos filósofos tal como
os encontra existentes). Não é todavia incomum a adoção precipitada
de um axioma interpretativo tácito pelo qual se exige de Montaigne
(inimigo declarado de tantas nouvelletez) a exibição de alguma “novi-
dade filosófica”, e que acaba por desencorajar uma apreciação mais
cuidadosa do rigor filosófico próprio com que a “tradição” é eventual-
mente retratada em seu texto5. Quão mais impaciente o comentador
nessa investigação prévia, tanto maior a chance de que a “novidade”
encontrada não seja mais do que a projeção de um panorama que, de
certo modo, ele já tem diante dos olhos — como fazem aqueles que
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dievais lógicos e metafísicos que opõem realistas e nominalistas, a despeito das insisten-
tes críticas de Montaigne aos “ergotismos” da filosofia de seu tempo.
6. Trata-se ou bem da edição de Henri ESTIENNE, publicada em 1562: Sexti Philosophi
Pyrrhoniarum hypotyposeon libri III… Interprete Henricus Stephano (cf VILLEY, Les
Essais, p. lix.), ou bem da edição de Gentian HERVET, de 1569, que inclui também os
Adversus Mathematicos. Restringiremos nossas análises às aproximações possíveis com
o texto das Hipotiposes, valendo-nos eventualmente das edições renascentistas, embora
tenhamos em vista para as nossas análises principalmente as edições modernas de Bury
e de Annas e Barnes.
7. Cf. VILLEY, 1933, I, p. 243.
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8. “pánti lógo lógos ísos antíkeitai”. V. Les Essais 436 e lxvii; Hipotiposes Pirronianas
(HP I-12).
9. Parece-nos possível demarcar aqui uma certa tradição interpretativa na crítica
anglo-americana, que remontaria, eventualmente, a R. W. Emerson. Craig Brush, por
exemplo, põe-se de acordo com Donald Frame ao afirmar que há um componente
cético permanente na personalidade de Montaigne, por vezes resumido na expressão
“open mind” (cf. BRUSH, 1966, p. 37). Segue-se daí uma tendência a negar a idéia de
uma “crise cética”, bem como, igualmente, a logo perder de vista o problema de esta-
belecer mais precisamente a relação conceitual desse “ceticismo” com aquele historica-
mente constituído como doutrina filosófica.
10. É o caso de André Tournon, para quem o paradoxo é o instrumento pelo qual
Montaigne isenta suas afirmações de poder assertivo (v. TOURNON, 1983, p. 227, 246)
Pouilloux julga que a novidade do “ceticismo” de Montaigne revela-se na maneira como
sempre as teses são apresentadas de modo provisório, para serem seguidamente destruí-
das, num movimento pelo qual a sua “nova ciência … estabelece os limites nos quais
nós devemos regular nossa prática intelectual” (POUILLOUX, 1995, p. 104-105). Ver
também DEMURE, 1990. Retomaremos essas leituras no capítulo IV.
11. Para M. Merleau-Ponty, as considerações sobre um Montaigne cético “não vão
longe” (1960, p. 302). Jean Starobinski, igualmente, entende que a identificação de
ceticismo em Montaigne significa sempre reduzir a filosofia dos Ensaios a um esque-
matismo falseador (v. STAROBINSKI, 1993, p. 8). Ver, no mesmo sentido, COMTE-
SPONVILLE, 1993.
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16. Diz Montaigne, ao concluir sua exposição dos conceitos principais do ceticismo:
“Eis como, das três seitas gerais da filosofia, duas fazem expressa profissão de dúvida e
de ignorância…” (506A).
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17. Ver p. 502-506. Todos esses, salvo o último, são conceitos pirrônicos dos quais
se poderá encontrar análogos no ceticismo acadêmico, como devidamente o ilustrará
Montaigne nos alongamentos do texto, a partir de 1588. Quanto à ataraxía como noção
exclusiva do pirronismo, ver ANNAS, 1988, p. 107.
18. Montaigne travou contato com Plutarco por meio da tradução francesa de Jacques
Amyot que, segundo Villey, ele passou a ler por volta de 1573-1574 — período próximo
ao da leitura das obras de Sexto. Os juízos de Montaigne acerca das moralia de Plutar-
co, fonte de numerosas citações em várias épocas da composição dos Ensaios, são normal-
mente elogiosos (v. VILLEY, 1933, t. I, p. 219-221). No opúsculo “Contra Colotes” en-
contra-se uma apresentação e defesa da filosofia acadêmica contra a interpretação do
epicurista Colotes (v. OM, 597E).
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19. Ver ibid.; a mesma idéia é desenvolvida por Sexto em HP II, 10. Em OM, 596
D-E, Plutarco identifica três movimentos na alma: o imaginativo, o apetitivo e o assen-
timento, ressaltando que “aqueles que se retêm e duvidam de todas as coisas não o
suprimem, mas se servem da apetência ou do instinto, naturalmente conduzindo cada
um ao que lhe é próprio…” (OM, 596 D-E). Essa parece ser a fonte de Montaigne,
quando afirma: “[A] Das três ações da alma, a imaginativa, a apetitiva e a do assentimen-
to [consentante], eles acolhem as duas primeiras; a última, eles a suspendem e a man-
têm ambígua, sem inclinação nem aprovação de uma parte ou de outra, por mais ligeira
que seja…” (503).
20. Cf. 505; HP I, 24: “Aderindo, assim, ao aparecer das coisas [phainómena], nós
vivemos de acordo com as regras normais da vida, de modo não dogmático, vendo que
não podemos permanecer inativos. E parece-nos que essa regulação da vida possui quatro
aspectos… O guia da natureza é aquele pelo qual somos naturalmente capazes de sen-
sação e pensamento; a exigência das paixões é aquela pela qual a fome nos leva a comer
e a sede, a beber; a tradição dos costumes e das leis, aquela pela qual nós consideramos
a piedade nas ações da vida um bem, e a impiedade um mal; e a instrução das artes
aquela pela qual não somos inativos nas artes [téchnai] que empreendemos…”.
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21. Plutarco afirma, em OM, 596 D-E: “O que é, então, que [os céticos] evitam? É
o ‘opinar’, o aplicar e prestar seu assentimento, no qual, apenas, reside a mentira e o
engano, que é um ceder pela fraqueza às aparências, sem nenhuma verdadeira utilida-
de. Pois a ação tem necessidade de duas coisas, da apreensão ou da imaginação das
coisas que lhes são próprias e do instinto e apetência das coisas que lhes são próprias,
nenhum dos quais se opõem à suspensão. Pois tal raciocínio nos subtrai o ‘opinar’, e não
a apetência nem a imaginação…”.
22. Como bem sublinha DEMURE, 1988, p. 992, 1002. Quanto ao termo discours,
notemos que ele é freqüentemente empregado nos Ensaios como sinônimo de razão,
seja designando o que denominaríamos a faculdade discursiva de raciocínio (v., p. ex.,
439A), seja designando as razões que são a expressão lingüística dessa faculdade (v., p.
ex., I, 26, 161-163A).
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que com ela se harmoniza: a posição cética seria não apenas a mais
racional ao reconhecer, nos esforços empreendidos pela filosofia dog-
mática, a incapacidade da razão em matéria demonstrativa, mas tam-
bém uma filosofia de cuja prática resultaria um uso pleno e livre de
nossas faculdades racionais, tal como nos são naturalmente dadas.
Levando o uso da razão às últimas conseqüências, os filósofos mais
sábios, segundo Montaigne, constataram a ausência de fundamentos da
razão, isto é, sua incapacidade para obter verdades (v. 526). Embora essa
formulação beire o paradoxo, afirmar que a razão é uma faculdade de
produzir argumentos de igual força, em favor e contra as mais diversas
teses que a ela se ofereçam, não significa declarar que podemos ou de-
sejamos aboli-la ou negá-la como faculdade humana que naturalmente
nos é dada. Pelo que vimos, a constatação da fraqueza da razão conduz
à suspeita acerca da ação de arrester em uma acepção precisa, isto é, de
sentenciar acerca do que é verdadeiro ou falso. Em que consiste exata-
mente essa ação e como é exatamente posta em prática a suspensão
cética? A que corresponderia, além dessa suspensão, o uso cético da
razão? Por ora, o que importa sublinhar é que essa precisão, embora
sutil, é essencial para que não tomemos precipitadamente tal posição
filosófica — pela qual se afirma a incapacidade de reconhecer racional-
mente a verdade como a postura mais racional e inteiramente conforme
ao uso adequado da razão — como uma postura contraditória.
Ademais, importa salientar o cuidado exegético de Montaigne no
exame das diversas interpretações disponíveis, normalmente desperce-
bido pelos comentadores. Graças ao modo como acompanha os textos
de Sexto e Plutarco, ele recusa a crítica tradicional sobre a impratica-
bilidade da posição cética, tal como a encontra nas obras de Diógenes
Laércio, Luciano e Aulo-Gélio, ou na posição expressa pelo epicurista
Colotes, tal como apresentada por Plutarco. Tais descrições caricaturais
do cético se resumem, segundo Montaigne, a um “desdenhar de sua
filosofia” (v. 505A). Mesmo se aceitarmos que Montaigne freqüente-
mente adapta os argumentos que toma, de toda parte, aos interesses de
sua discussão23, nesse caso ele está visivelmente interessado em rea-
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26. Como, por exemplo, COMTE-SPONVILLE, 1993, p. 22; STEVENS, 1965, p. 151;
e FRIEDRICH, 1968, p. 69. Em oposição, sobre esse ponto, ver CONCHE, 1987, p. 27.
27. Cf. POUILLOUX, 1995, p. 54, 57 ss., 97. Para esse intérprete, de fato, a novidade
filosófica de Montaigne residiria na estrutura deliberadamente contraditória do ensaio,
admissão essa que parece dispensá-lo ou impedi-lo de examinar como o discurso dos
Ensaios poderia ser conseqüência de uma rearticulação do ceticismo considerado como
doutrina filosófica. TOURNON (1989) entende, por sua vez, que o caráter “fragmentário
e inacabado” do filosofar montaigniano deixa entrever “uma filosofia em fragmentos
[une philosophie en miettes]…” (p. 68). DEMURE, embora enfatize corretamente, a
nosso ver, a necessidade de observar reconstituir a coerência filosófica de Montaigne
com base em suas aparentes contradições, bem como que a única doutrina compatível
com a prática filosófica de Montaigne é o ceticismo (1988, p. 992-993, 1003; 1990, p.
98 passim), toma a questão da coerência filosófica desse autor como resolvida pelas
leituras de Tournon e Pouilloux. Não escapa, assim, de algumas simplificações exces-
sivas (cf., p. ex., 1990, p. 99), em vez de se dirigir a uma exegese do ceticismo com base
em suas fontes.
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28. Ver, por exemplo, 441, 510, 535, 541, 557, 569-570.
29. Muitos deles foram identificados por VILLEY (v. Les Essais, p. 1282 ss.), que
contudo opina que Montaigne, ao transcrever Sexto, não se julga plenamente pirrônico
(cf. 1933, II, p. 196). Ver também, na mesma direção, MICHA, 1964, p. 30.
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30. Um fenômeno análogo parece ocorrer na retomada dos textos estóicos de Sêne-
ca em ensaios formulados anteriormente a 1576, segundo a cronologia de VILLEY (v., p.
ex., Les Essais, p. 1232).
31. Um dos cinco Tropos de Agripa, pelos quais o cético suspende o juízo, corres-
ponde a um tópico a que já aludimos: a diaphonía entre as opiniões diversas que os
diferentes filósofos, com igual poder de persuasão, sustentam acerca dos diversos temas
de suas doutrinas (v. HP I, 165, 172, 175-177). Em muitas passagens das Hipotiposes,
Sexto alude ao conflito em geral das filosofias (p. ex., I, 26, 88, 185 etc.) ou se vale do
tropo argumentativo apontando a controvérsia dos filósofos acerca de pontos precisos
(sobre a verdade, II, 85; sobre a alma, II, 31-2; sobre a natureza I, 98 etc.).
32. Ver 585A, 587A; cf. HP I, 210-211, 218: Montaigne contrapõe, de uma parte,
Pitágoras e Heráclito (para quem a contrariedade das percepções sensíveis residiria nas
próprias coisas) e, de outra, Demócrito (segundo quem essa diversidade se restringiria
às percepções), valendo-se das passagens em que Sexto apresenta e critica tais doutrinas
com base em sua diferença relativamente à posição cética. Em seguida, ele expõe a
posição dos pirrônicos como a de permanecer em suspensão acerca de ser ou não o mel
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falta a maior parte do aspecto das coisas nos seja oculta?” (589). Esse
mesmo episódio oferece a Montaigne a oportunidade de considerar
que o próprio homem poderia ser a causa da diversidade que ele per-
cebe — possibilidade adiante desenvolvida argumentativamente, pela
consideração de que o múltiplo sensível poderia ser um produto dos
sentidos humanos e não um efeito de qualidades do próprio objeto, tal
como ocorre com o ar na trombeta que, sendo sempre o mesmo ar,
produz uma variedade de sons —, usando assim mais um exemplo
proveniente de Sexto (v. 599AB; cf. HP I, 95). Em seu conjunto, afinal,
os argumentos aí propostos por Montaigne parecem retomar a dúvida
pirrônica de Sexto em seu sentido preciso: não sabemos se o múltiplo
sensível percebido é causado pelo recorte de nossos sentidos ou pela
natureza do objeto; não sabemos, portanto, se este é em si mesmo idên-
tico ou dessemelhante ao modo como o percebemos (possuindo qua-
lidades diversas ou iguais às percebidas). Não podemos, portanto, de
modo mais geral, tomar nossas percepções como índices de como são
os objetos tais como seriam neles mesmos, mas apenas como percep-
ções relativas a uma situação determinada, segundo as diversas dimen-
sões em que se apresenta uma potencial incongruência com outras
percepções do mesmo objeto, e que todavia teriam, não obstante, a
mesma prerrogativa epistêmica para representar as coisas.
Mas por que não podemos determinar qual dessas representações
conflitantes seria correta? Montaigne permanece seguindo Sexto quan-
do argumenta para mostrar a dificuldade radical de encontrarmos um
critério que permita escolher alguma instância perceptiva como a re-
presentação mais adequada dos objetos em si mesmos. O julgamento
dessa diversidade conduziria necessariamente a uma petição de princí-
pio, uma vez que o juiz estará sempre situado numa circunstância par-
ticular, que, como as demais, está sub judice36. Além disso, a tentativa
de resolver o conflito conduz sempre a uma falácia formal: ou bem a
uma circularidade (pois o julgamento da diversidade exige um critério,
que não pode ser aceito sem prova, a qual exige, por sua vez, um cri-
tério para ser julgada aceitável), ou bem a uma regressão ao infinito
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39. Para uma análise mais detalhada desse modo de argumentar cético na “Apolo-
gia”, ver ainda EVA, 1994.
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40. Ver 449-486, 536 ss., 560A, 585A; II, 14, 611. Quanto ao sentido de “philosophie”
atribuído a essa pesquisa, ver GREIMAS-KEANE, 1992, p. 474. Sobre as temáticas medie-
vais da dignitas e da miseria hominis, ver FRIEDRICH, 1968, p. 131-134.
41. Ver, por exemplo, II, 10, 418A.
42. Nicolau Tartaglia parece ter sido o primeiro autor a utilizar a expressão “scienza
nuova”, no século XVI, para designar sua aplicação do raciocínio matemático ao desen-
volvimento dos projéteis (num contexto do qual as reflexões de Montaigne são bem
distantes). Os Diálogos acerca dos dois sistemas de mundo, de Galileu, seriam publica-
dos, por sua vez, apenas em 1632. Sobre a posição de Montaigne relativamente à ciên-
cia experimental, ver ainda FRIEDRICH, 1968, p. 153 ss.
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palidez da face, por meio das quais pretendem afirmar o que as coisas
são efetivamente, em sua estrutura interna (v. 538-539). É graças a esse
sentido preciso de sua crítica que Montaigne, seguindo Sexto, prosse-
gue afirmando, contra os peripatéticos, que os philosophes que evocam
os fenômenos sensíveis como resposta àquele que os põe em dúvida são
“mui indignos da profissão filosófica”:
[A] Eles não precisam me dizer: é verdadeiro, pois vês e sentes assim;
é preciso que me digam se o que eu penso sentir eu o sinto, portanto,
de fato [en effect]; e, se eu o sinto, que eles me digam depois por que
eu o sinto, e como, e o quê; que eles me digam o nome, a origem, os
componentes e os produtos do calor, do frio, das qualidades daquele
que age e daquele que padece; ou então que eles abandonem sua
profissão, que é a de não receber nem aprovar nada senão pela via da
razão: é a sua pedra de toque em toda a espécie de investigações
[d’essais], mas certamente é uma pedra de toque plena de falsidade,
de erro, de fraqueza e de falha… (541).
Os filósofos indignos da filosofia são, como se vê, os dogmáticos,
que filosofam segundo um uso indevido da razão. Fazendo dela uma
pedra de toque para a obtenção de verdades demonstrativas, com base
em evidências supostamente seguras, não nos deixam ir segundo “nos-
sos apetites simples e regrados pela condição de nosso nascimento…”
(ibid.). É, portanto, apenas esse contexto justificacionista, erigido pela
pretensão de encontrar, na manifestação sensível das coisas, alguma
science acerca do que elas são nelas mesmas (“de fato”), que acaba por
exigir uma argumentação contra os effects segundo as prescrições de
Sexto, já consideradas. Trata-se não de abolir nossa experiência percep-
tiva tal como se oferece naturalmente a nós, mas de mostrar a fraqueza
da razão, em resposta aos dogmáticos que presumem que a razão seja
capaz de oferecer conhecimento sobre as coisas (e mesmo capaz de
garantir que nossos sentidos possam, eventualmente, ser aceitos como
um critério para dizer o que as coisas sejam de fato).
Como dissemos, Montaigne frisa, ao apresentar o ceticismo, que
a suspensão “extrema” dos pirrônicos é compatível com um pleno
engajamento nas ações comuns da vida, seguindo textualmente as
Hipotiposes:
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50. Cf. ANNAS, 1988, p. 105; 1992, p. 66, 69; POUILLOUX, 1995, p. 134.
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o conjunto desses indícios mostra que esse não parece ser o caso, em particular, da
relação de Montaigne com o ceticismo.
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soal, despida da pretensão de conhecimento acerca dos “objetos externos” (v. HP I, 15).
56. Ver, por exemplo, TOURNON, 1989, p. 87; 1991, p. 35.
57. Ver LIMBRICK, 1977, p. 68-69. No que tange à passagem em tela, Limbrick
reconhece a presença, lado a lado, de elementos pirrônicos e acadêmicos e a toma
como ilustração da similaridade entre pirronismo e filosofia acadêmica do ponto de
vista epistemológico (ibid., p. 76), embora não a discuta mais diretamente e não leve
em consideração o fato de que Montaigne alega, aparentemente, recusar a solução
cética (pirrônica) ora apresentada para lidar com a precariedade da linguagem.
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59. Ver especialmente HP III, 280-1, mas também HP I, 20, 177, 186, 205, 212 e
237. Os filósofos da Nova Academia fazem, como veremos, objeções bastante similares
à filosofia dogmática.
60. As citações latinas provêm dos Academica: “Eles se agarram a qualquer doutrina
como o fariam a uma rocha, extenuados pela tempestade…” (II, iii, 8); “Esses são mais
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ria algo de seu eventual poder de persuasão o relato em que Sexto narra
a experiência original dos primeiros “homens de talento, perturbados
pelas anomalias das coisas e desconcertados quanto a saber quais delas
deveriam escolher” (HP I, 12), se ele correspondesse a um relato me-
ramente ficcional, jamais efetivamente vivido por um filósofo existen-
te, mas destinado a reorganizar idealmente as etapas lógicas do engaja-
mento do cético em sua perspectiva filosófica?64
Não faltam razões, portanto, para instruir nossa desconfiança das
aparências de novidade filosófica, ainda que disponhamos agora, um tanto
inesperadamente, de uma nova pista. Para aprofundar a discussão desse
ponto, parece-nos porém conveniente examinar, antes de mais, o sentido
em que Montaigne poderia se pensar historicamente um novo filósofo,
relativamente aos antigos, num terreno mais recentemente explorado
pelos intérpretes de seu ceticismo. Trataremos agora de seu fideísmo.
64. Discutimos em detalhe esse tema, ao qual retornaremos ainda adiante, em EVA, 2005.
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A esgrima cética
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camente decisivo, pelo modo como ali o pirronismo (até então subor-
dinado à teologia, como antídoto católico às teologias protestantes que
procuraram fazer da razão individual o critério da “lei da fé”, em lugar
do critério tradicional, que conferia à antiguidade da Igreja autoridade
interpretativa) adquiriu uma dimensão autônoma, graças à qual se for-
mulam primeiramente as questões fundamentais da epistemologia mo-
derna. Montaigne pôde assim ser redescoberto como referência cética
importante para uma tradição filosófica posterior que esteve às voltas
com os mesmos problemas, na qual se incluem, entre outros, Charron,
La Mothe le Vayer, Gassendi, Bayle, Descartes e Pascal. Eis uma inter-
pretação inovadora e instigante acerca do papel histórico decisivo da
filosofia de Montaigne, cujo alcance ainda não foi, a nosso ver, intei-
ramente reconhecido e explorado2.
Igualmente, Popkin observa que o pirronismo ressurge em Mon-
taigne com “vestes fideístas”, sob a forma do “fideísmo cético” do Re-
nascimento (no qual, em linhas gerais, a postura teológica que elege a
fé como um fundamento não-racional da religião alia-se a uma postura
filosófica cética acerca dos poderes da razão de conhecer verdades)3.
De fato, não apenas os argumentos céticos de Montaigne são ladeados
por afirmações sobre a dependência da Revelação cristã a um abraço
sobrenatural da fé, mas também, como noutras versões da defesa fideís-
ta cética do catolicismo, parecem conduzir, em conformidade com as
preconizações sextianas, a uma espécie de aceitação filosófica da tradi-
ção e dos costumes — na forma, por exemplo, do reconhecimento da
“majestade plena de autoridade e comando” da crença tradicional contra
os “ateístas”, que ousam desafiá-la com as armas da razão, cuja preca-
riedade desconhecem (v. 440-448A). Parece-nos, contudo, que aqui é
2. Ver POPKIN, 1979, cap. 1 a 3, esp. p. 54. Diversas leituras recentes do ceticismo de
Montaigne não observam devidamente o modo como ele constitui uma reconstrução
filosófica consistente e argumentada do ceticismo antigo, por contraposição a outros
“céticos” renascentistas pré-montaignianos (como, p. ex., VINCENT, 1998, p. 7).
3. Ver, além de Popkin, especialmente PENELHUM, 1983, que discute a viabilidade
de um fideísmo cético como forma autêntica de pensamento religioso; ver também
FRIEDRICH, 1968, p. 117 ss., e BRAHAMI, 1996, p. 29 ss., para uma confrontação entre
os fideísmos de Pomponazzi e de Huet.
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4. Para um sumário das principais posições, que abrangem, num amplo e diversifi-
cado leque, desde os que o viram como um fiel ardoroso até os que o tomaram por ateu
e destruidor dissimulado da religião, ver AULOTTE, 1979, p. 110 ss.
5. É o que opina FRIEDRICH, 1968, p. 118.
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[A] Não há, na invenção humana, nada que possua tanta verossimi-
lhança e utilidade. Este [o cético] apresenta o homem nu e vazio,
reconhecendo sua fraqueza natural, próprio para receber do alto
alguma força estrangeira, desguarnecido do humano saber [science],
e tanto mais apto para alojar em si o divino, reduzindo a nada o seu
juízo para dar mais lugar à fé; [C] nem descrente, [A] nem estabe-
lecendo nenhum dogma contra as observâncias comuns; humilde,
obediente, disciplinável, estudioso; inimigo jurado da heresia, e se
isentando, por conseguinte, das vãs e irreligiosas opiniões introdu-
zidas pelas falsas seitas. [B] É uma folha em branco preparada para
receber do dedo de Deus as formas tais que lhe aprouver aí grafar…
(506).
Inegavelmente essa passagem responde ao intuito de mostrar que a
“utilidade” da filosofia cética se vincula ao fato de que tal filósofo não
é um inimigo da Igreja tradicional, e o faz explicando quais seriam, a
seu ver, as linhas gerais da acomodação conceitual entre religião e ce-
ticismo. Se os céticos adotam os “costumes” como critério para a ação
na vida comum (v. 505A), esse aspecto, por si só, pareceria conduzir a
uma espécie de adesão à religião costumeira (tal como propuseram
outros “fideístas céticos” no Renascimento). Mas isso é ainda insatisfa-
tório para caracterizar, por assim dizer, a conversão cética. Nas palavras
de Montaigne, mediante sua recusa em estabelecer dogmas, esses filó-
sofos se tornam uma “página em branco” sobre a qual pode haver uma
intervenção sobrenatural (em deferência, talvez, ao menos num pri-
meiro momento, à aceitação dos elementos próprios dessa tradição
religiosa). Como compreender esse passo? A suspensão parece surgir
como uma circunstância propícia para que, admitida a nossa “fraqueza
natural” em reconhecer a verdade e aceitar a religião costumeira, possa
a verdade se instalar em nós por uma instância sobrenatural. Tal cir-
cunstância abriria um espaço a ser ocupado pela fé e pela intervenção
sobrenatural de Deus (aqui figurada pela ação especial da mão divina,
gravando, na alma do cético, a compreensão das verdades que lhe aprou-
verem). A verdade revela-se ao cético, por meio da fé, como um adven-
to que se sobrepõe à situação natural de incapacidade de reconhecer a
verdade, por meios humanos, por intermédio dessa intervenção suple-
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7. Ver GREIMAS, KEANE, 1992, p. 42, 411. A referência para “atheíste” provém de
DU BELLAY, Défense et illustration de la langue française (1549), obra citada por Mon-
taigne. Veremos, porém, que o próprio texto dos Ensaios parece acomodar-se bem à
compreensão do termo nesse sentido.
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***
Em certa medida, tal sinuosidade parece decorrer da maneira como,
na introdução do ensaio, Montaigne enuncia dois propósitos distintos
de que se ocupará e que, ao menos à primeira vista, não parecem ter
maior relação entre si. O primeiro se apresenta em suas linhas iniciais:
[A] É, na verdade, partido bem útil e grande, a “science”. Aqueles
que a desprezam testemunham bastante de sua burrice. Nem por
isso eu estimo seu valor nessa medida extrema que alguns lhe atri-
buem, como o filósofo Herilus, que situava nela o soberano bem e
sustentava que ela nos podia fazer sábios e contentes, coisa em que
não creio, e nem no que outros disseram, que a ciência é a mãe de
toda virtude e todo vício é produzido pela ignorância. Se isso é ver-
dade, eis o objeto de uma longa investigação [interpretation]… (438).
Porém, em vez de se dirigir diretamente ao exame do valor da
science, Montaigne passa a narrar as circunstâncias particulares em
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que seu pai tomou contato com os homens de letras que freqüenta-
vam seu castelo e, por seu intermédio, com a Teologia Natural do
teólogo catalão Raymond Sebond, que ele traduzira a seu pedido. Jus-
tificando a importância dessa obra por meio de razões diversas — sua
utilidade como meio de defesa da religião tradicional ante as novida-
des de Lutero e a popularidade pelo livro auferida, notadamente entre
as damas — ele descreve o objetivo dessa obra e passa a defendê-la de
duas espécies de objeções. São essas respostas que ele oferece a tais
objeções (articuladas à intenção de oferecer uma defesa da religião
tradicional) que, formalmente, definirão a estrutura argumentativa do
ensaio — sobrepondo-se, desse modo, sem maiores explicações, ao
objetivo de saída apresentado (objetivo que, embora não seja mais
retomado de modo explícito, voltará indiretamente à discussão e se
tornará o tema principal, enquanto Sebond, por sua vez, acabará por
ser aparentemente relegado ao esquecimento à medida que o texto
progride). Trata-se apenas da primeira curiosidade desse paradoxal
labirinto que é a “Apologia”.
Segundo Montaigne, Sebond, em sua obra, “[A] … empenhou-se
em estabelecer e verificar, por razões humanas e naturais, contra os
ateístas, todos os artigos da religião cristã…” (440). A primeira objeção
de que pretende defendê-la é a de que os cristãos se enganam ao que-
rer apoiar sua religião em razões humanas, posto que ela só se concebe
pela intervenção da fé e pela graça divina (v. ibid.) Essa objeção é
respondida ao longo das oito páginas seguintes, de modo relativamen-
te rápido, portanto, em comparação com as cento e sessenta páginas
restantes do capítulo em que Montaigne formalmente se ocupa em
oferecer uma resposta à segunda objeção. Esta, por sua vez, consiste
em alegar que os argumentos de Sebond são “fracos e ineptos para
verificar o que ele quer”, razão pela qual seus objetores se põem pron-
tamente a atacá-lo (v. 448A). E o que justifica o longo ataque à vaidade
do homem, da science e da razão que será desenvolvido no ensaio,
como parte dessa resposta, parece depender das exigências impostas
pela natureza desse segundo grupo de objetores: na medida em que
apenas aceitam, segundo Montaigne, digladiar na arena da razão hu-
mana, Montaigne se propõe mostrar, contra eles, que a razão humana
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9. Cf. 603-604AC. Montaigne enfatizará que essa mesma instância da fé, almejando
uma “divina e milagrosa metamorfose”, inteiramente dependente de um abraço ex-
traordinário de Deus, é a condição exclusiva de transcendermos a situação humana de
“impossibilidade de comunicação com o ser”, dado o fato de estarmos inteiramente
submetidos ao devir.
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10. Ver especialmente TOURNON, 1983, p. 230 ss.; VILLEY, Les Essais, p. 436, 1277,
1278, 1281; BRAHAMI, 1996, p. 29 ss. Seria ocioso retomar os diversos e eloqüentes
exemplos com que tais comentadores recusam a hipótese de que haveria uma oposição
meramente casual ou fortuita entre Montaigne e Sebond (v., p. ex., AULOTTE, 1979).
Outro argumento decisivo contra essa hipótese é oferecidos por GRAY, 1964: Montaigne
possivelmente reviu sua própria tradução no momento em que escreveu a “Apologia”,
da qual publicou uma reedição corrigida em 1581.
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13. “[B] Os nomes dos meus capítulos nem sempre abraçam a matéria; freqüente-
mente eles a denotam apenas por alguma marca, como estes outros [C] títulos: o Ândrio,
o Eunuco, ou esses outros [B] nomes: Sila, Cícero, Torquato. Eu amo a progressão
poética, em saltos e cambalhotas. [C] É uma arte, como dizia Platão, leve, volúvel,
demoníaca…” (III, 9, 994).
14. Ver FRAME, 1947.
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com objetores que, combatendo na arena da pura razão humana, não admitiriam a
alegação da pura fé como um pressuposto que “solidificaria” a veracidade dessas passa-
gens (cf. 447-449A).
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o que afirma “nossa religião”, isto é, com aquilo que aceitamos por
sua “majestade plena de autoridade”17.
Mas se esse embate acerca da interpretação da verdade, em que se
opõem os diversos “partidos” interpretativos considerados, surge, aos
olhos de Montaigne, como exemplo de uma controvérsia dogmática
(que comporta uma tentativa de estabelecer não apenas uma verdade
interpretativa, mas um critério de verdade), não deveríamos também
esperar que, de um ponto de vista cético, fosse essa uma ocasião propí-
cia para a suspensão do juízo? Eis, justamente, o que preconiza Mon-
taigne: “[C] … Na opinião de Sócrates, e também na minha, o juízo
mais sensato acerca do céu é não julgar…” (535; itálicos nossos). Mas
se cabe suspender o juízo ante as alternativas em conflito, e se a primei-
ra objeção a Sebond formula uma posição fideísta (Montaigne oferece,
efetivamente, argumentos contra essa objeção, mesmo que se detenha
especialmente em rebater a segunda), como atribuir ao próprio Mon-
taigne uma posição “fideísta”? Não seria isso inseri-lo no próprio deba-
te do qual ele pretenderia manter exterioridade mediante sua posição
suspensiva (analogamente, talvez, ao modo como seu filosofar fortuito
se pretenderia das diversas “seitas” filosóficas por ele inspecionadas, como
vimos no capítulo anterior)? Assim, a despeito do que sua alegação
poderia sugerir, quanto à semelhança com a posição dos primeiros
objetores, Montaigne, não pretendendo tomar parte nesse debate, não
pretenderia tampouco, portanto, defender uma posição fideísta. É plau-
sível reconhecer como fideísta uma posição que se abstém explicita-
mente de representar um “partido” determinado no embate teológico
17. Seria eventualmente possível encontrar uma imagem histórica real dessa oposi-
ção entre dois tipos de objetores na controvérsia entre os seguidores de Lutero e o fideís-
mo de Erasmo, analisada em POPKIN, 1979, esp. cap. 1. Segundo GRAY (1964), quando
Montaigne alega defender a princesa católica Marguerite do veneno insidioso dos
“nouveaux docteurs” que pretenderiam brilhar “a expensas de sua salvação”, refere-se
precisamente aos protestantes da corte do rei de Navarra (que tal comentador identifica
erroneamente, em nosso entender, com “céticos”). Não nos parece seguro, porém, que
Montaigne esteja aludindo, por meio dessas objeções “principais”, a personagens preci-
sos que ele se recuse a nomear, nem que isso seja necessário para compreender o sen-
tido geral de sua estratégia argumentativa.
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18. Tal crítica se desenvolve em grande medida na esteira dos argumentos estóicos
contra o epicurismo ventilados por Cícero no De Natura Deorum e se detém particu-
larmente no emprego de termos que tomam de empréstimo descrições relativas ao
homem para se referir à dimensão divina. Ver especialmente 514 a 523.
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19. “[A] … assim julgo eu: que, para uma coisa tão divina e alta, e ultrapassando
tanto a inteligência humana, como é o caso desta verdade que aprouve a Deus nos
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esclarecer, é ainda necessário que ele nos empreste seu socorro de um favor extraordinário
e privilegiado para que a possamos conceber e alojar em nós…” (441; itálicos nossos).
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26. Torna-se assim igualmente compreensível por que Montaigne enfatiza de modo
hiperbólico (e mesmo caricatural) a maneira como os filósofos céticos estariam total-
mente desincumbidos de defender qualquer tese, nestes termos precisos: “[A] Eles se
propiciaram uma maravilhosa vantagem no combate, estando desincumbidos do cuida-
do de se manter em guarda. Não lhes importa ser atingidos, desde que também atinjam;
e valem-se de tudo para suas necessidades…” (504).
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27. Ver 527A, em que o próprio Montaigne explica a metáfora pirrônica, tomada de
Sexto (HP I, 46), que retomaremos adiante.
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néades ante a questão e afirma crer que tal exposição deixará antes
claro para o leitor que se deva constatar a impossibilidade de reconhe-
cer a verdade (Dnd, I, 13-16). Isso não o impede, contudo, de oferecer
a seguinte ponderação acerca dos problemas atinentes a esse tema:
Mas se, ao contrário, os deuses não possuem nem o poder nem a
vontade de nos ajudar, se eles não velam por nós nem se apercebem
de nossas ações, se eles não podem exercer nenhuma influência
possível na vida dos homens, que fundamento nós temos para prestar
qualquer espécie de culto, honra ou prece aos deuses imortais? A
piedade, como todas as demais virtudes, não pode existir como mera
simulação; sem a piedade, a reverência e a religião necessariamente
desaparecem. Estas, quando se vão, deixam a vida em desordem e
confusão; com toda a probabilidade, o desaparecimento da piedade
para com os deuses irá gerar o desaparecimento da lealdade e da união
social entre os homens, bem como da própria justiça, a rainha das
virtudes (Dnd, I, 5; itálicos nossos).
Essa passagem mostra que, aos olhos de um cético acadêmico, a
idéia de uma adesão sincera a valores, religiosos ou não, não deve se
opor à suspensão do juízo. Embora admita que tais crenças não corres-
pondem ao conhecimento de verdades, ele pode, ainda assim, reco-
nhecer que são indispensáveis para a manutenção da sociedade e para
a boa consecução da vida prática, havendo assim uma razão de ordem
pragmática que torna justificada ou mesmo necessária a adoção de tais
crenças. A despeito das diferentes interpretações a que pode se prestar
esta reflexão, desejamos chamar a atenção para o fato de que, tanto em
Cícero como em Montaigne (como também se pode verificar noutros
textos de proveniência neo-acadêmica28), o valor da crença na interven-
ção dos deuses no mundo é diretamente vinculado à regulação das
relações sociais entre os homens — mais precisamente, à manutenção
da própria sociedade. Há conveniência em preservar a crença na inter-
venção dos deuses no mundo porque a dúvida acerca desse ponto é
potencialmente problemática para a maneira como a religião contribui
para a coesão social. Parece-nos igualmente possível, contudo, assina-
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mais útil para a nossa vida. As seitas mais ousadas, a Epicurista, a Pirrônica e a da Nova
Academia são, ainda elas, constrangidas a se dobrar à lei civil, no fim das contas…” (512).
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de notar que essa metáfora médica é a mesma pela qual Sexto caracte-
riza a prática argumentativa pirrônica. Na conclusão das Hipotiposes,
ele assim explica como os céticos escolhem argumentos adequados para
terapeuticamente se contrapor à arrogância dos filósofos dogmáticos:
O cético é um amigo da humanidade [philántropos] que deseja curar
pelo discurso [lógos], na medida em que puder, a precipitação [pro-
péteia] e a presunção [oíesis] dos dogmáticos. Assim como os médi-
cos que curam doenças do corpo têm remédios que diferem em força
e aplicam os mais fortes aos pacientes mais severamente adoecidos e
os mais brandos aos mais brandamente afetados, o cético propõe razões
[lógoi] que diferem em força: empregam argumentos pesados, capa-
zes de vigorosamente purgar o mal do dogmático da presunção, con-
tra aqueles que se encontram atingidos por uma forte precipitação,
enquanto emprega argumentos mais brandos contra aqueles atingi-
dos por uma presunção mais superficial e de mais fácil cura, dos
quais é possível restituir a saúde por meios mais brandos de persua-
são. Por isso, aqueles que argumentam ceticamente não hesitam em
propor, às vezes, argumentos que são de maior persuasividade e, outras
vezes, argumentos que parecem menos persuasivos; eles o fazem
deliberadamente, posto que freqüentemente um argumento mais
fraco é suficiente para que ele atinja seu propósito (HP III, 280).
Já vimos, no capítulo anterior, como Montaigne contrapõe à propé-
teia dogmática sua impremeditação filosófica. Se os céticos pirrônicos
se vêem como philántropoi, por meio de sua prática argumentativa, é
no mesmo passo que vêem os dogmáticos como philautói, amantes de
si mesmos, apegados a seus pré-julgamentos, cuja veracidade não se
sustentaria se pudessem avaliá-los mais cuidadosamente de um ponto
de vista racional, com a ajuda dos argumentos suspensivos (v. ibid., I,
90). Esse tema cético encontra-se em circulação durante o Renasci-
mento ao menos a partir de Erasmo, que igualmente critica a philautía
dos filósofos (dogmáticos) e dos teólogos reformistas, aludindo direta-
mente aos filósofos Acadêmicos34. Na “Apologia”, não apenas algumas
34. Para o tema da philautía, ver, por exemplo, Elogio da Loucura, LI, 114-115;
prefácio, 4-7. Para a referência aos Acadêmicos, “os menos insolentes dentre os filóso-
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zir tantos males inevitáveis e uma tão horrível corrupção dos costu-
mes que as guerras civis e as mutações do estado aportam, em coisa
de tal peso e no seu próprio país… (I, 23, 120).
Eis por que eles oferecem a Montaigne a ocasião de um ataque
frontal e direto, que condena, num só golpe, as pretensões gerais da
razão em obter uma verdade qualquer e as daqueles que, desconhecen-
do esse fato, se tornam, mesmo sem ter plena consciência disso, “inimi-
gos da religião” que, por isso, podem ser tratados um pouco mais rude-
mente: “… eles são mais perigosos e mais maliciosos do que os primei-
ros…” (448A). Não se trata, contudo, de uma avaliação moral, e sim de
uma crítica à terapia a que pretenderiam submeter a religião e as ins-
tituições políticas (v. I, 31, 121).
Diversamente destes, os primeiros objetores merecem um tratamento
mais brando, na medida em que sua objeção é movida por “zelo de
piedade”. Não deveria essa duplicidade dos vieses argumentativos, cuja
diferença respeita a rudeza ou a suavidade, ser vista como ilustração da
natureza cética dessa terapia? Tal diferenciação pode ser igualmente
aproximada das preconizações ciceronianas no preâmbulo do De natu-
ra Deorum. Em sua defesa da posição suspensiva de Carnéades, que
ele julga ser inteiramente compatível com a ratio moral, cabe conside-
rar, diz Cícero, seus adversários dogmáticos segundo a particularidade
com que argumentam: “… a hesitação amigável deverá ser respondida
pela explicação e os ataques hostis pela refutação” (Dnd, I, 6). É pos-
sível que, no caso de Montaigne, a diferenciação das atitudes argumen-
tativas diante dos objetores de Sebond obedeça ainda a outras particu-
laridades. Mas por que deixaria a resposta à primeira objeção de obe-
decer ao mesmo princípio retórico cético que vale para a segunda?
Como vimos, os primeiros objetores tomam parte num debate dogmá-
tico sobre o critério de interpretação da verdade revelada ao alegar que
apenas a fé, e não a razão, pode fazê-lo (por oposição ao modo como
os céticos argumentariam inteiramente desprovidos de vaidade, estan-
do desobrigados da defesa de qualquer posição). Assim, embora Mon-
taigne apenas formule o objetivo de destruir a vaidade ao anunciar a
resposta à segunda objeção, esse paralelo nos convida a admitir que,
também aqui, por maior que seja seu “zelo de piedade” ou sua “bran-
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44. E isso mesmo no caso de intérpretes cuidadosos como Hugo FRIEDRICH: embora
ele nos ofereça uma análise da relação de Montaigne com a religião, a nosso ver, bastan-
te adequada, em seu sentido mais geral, ele identifica a religiosidade pessoal de Mon-
taigne a uma “vaga forma de piedade filosófica”, sem objeto preciso (por vezes Deus, por
vezes la Nature), como uma modalidade religiosa compatível com o ceticismo filosófico
em sua versão pirrônica (1968; cf. p. 118-125). Na “Apologia”, Montaigne apresenta
como a mais verossimilhante opinião dos antigos sobre a religião aquela que concebe
Deus “ [A] como uma potência incompreensível, geradora e conservadora de todas as
coisas, toda bondade, toda perfeição, recebendo e tomando em boa parte a honra e a
referência que os humanos lhe rendem sob qualquer face, sob qualquer nome e matéria
que possa ter…” (513). Nada nos autoriza, porém, a tomar essa opinião — que será,
posteriormente, considerada ímpia por A. de Laval (1623) e Boucher (1628); cf. Essais,
p. 1163 — como representante da crença pessoal do autor, pelo simples fato de que ele
declara, como vimos, sua adesão em bloco ao party catholique, segundo toda a sua tra-
dição. Em seu comentário a Des Prières, em que encontramos declarações de Montaig-
ne sobre suas rezas, Villey entende exprimir-se aí uma forma de religiosidade segundo
a concepção de Pirro, conciliando crítica da razão e adesão à tradição, de um modo que
o alinha imediatamente aos católicos, ainda que em conformidade a certas tendências
“agnósticas” que foram provisoriamente aceitas em Roma (Les Essais, p. 317).
45. CÍCERO, Dnd, I, v, citado por Montaigne em 507C.
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facultasse abdicar desse aspecto), não há, salvo engano, quaisquer ele-
mentos no texto de Montaigne que possam ser arrolados como decisi-
vos acerca de sua compreensão pessoal sobre a distância que haveria
entre a adesão ao culto e a dimensão interior da religião: tudo se passa
como se estivéssemos diante de uma questão privada que o autor se
recusa a responder abertamente49. Por mais que os Ensaios se conver-
tam num auto-retrato, como veremos adiante, Montaigne não parece
considerar que a questão sobre sua religiosidade, mesmo que inevitá-
vel, possa vir à tona sem comprometer o aspecto da religião que, por
razões de ordem pública, lhe interessa enfatizar.
Destaquemos, finalmente, que o fato de Montaigne filosofar num
ambiente cristão e fideísta não basta para que encontremos uma dife-
rença filosófica relevante na posição de Montaigne relativamente ao
ceticismo antigo, por força de sua situação histórica. Em vez de o ceti-
cismo ser submetido a uma transformação conceitual, é a religião que
invariavelmente recebe, em seu texto, um tratamento cético segundo
as exigências conceituais e argumentativas dessa filosofia, tal como por
ele retomada, seja quanto à recusa dos poderes da razão em encontrar
Crisipo, e por Gaius Laelius, que é tanto áugure quanto é filósofo, cujo famoso discurso
sobre a religião prefiro ouvir do que a qualquer líder dos estóicos…” (Dnd, III, ii, 5). O
final dessa passagem é citado por Montaigne em I, 23, 121C, e acompanhado pelo
elogio “Cotta protesta bem oportunamente”: naquele contexto preciso, trata-se igual-
mente de defender a religião tradicional para se contrapor à desordem política causada
pela Reforma.
49. Há, com efeito, passagens bastante comentadas em que Montaigne oferece des-
crições substanciais de uma prática religiosa, como suas narrativas sobre as missas assis-
tidas na Itália, em seu Journal de Voyage, ou suas descrições sobre suas práticas de
oração, em “Das rezas” (I, 56; v. esp. 319-320A). Mas elas versam sobre uma adesão
ritualística: nada aí desmente a natureza cética na adesão; nada se esclarece sobre a
natureza da crença “interior” de Montaigne. Ainda que se referindo a um autor antigo,
e num contexto não-religioso, os termos com que Montaigne o apresenta parecem mos-
trar que, a seu ver, são coisas em princípio distintas a adoção de condutas e opiniões
piedosas: “[C] E Epicuro, do qual os dogmas são irreligiosos e delicados, porta-se em
sua vida de modo mui devoto e laborioso…” (II, 11, 428). Tal acréscimo comenta, por
sua vez, uma passagem auto-retratista anterior: “[B] … Direi uma monstruosidade, mas
direi assim mesmo: encontro … em muitas ocasiões, muito mais de decisão e regra em
meus costumes [moeurs] do que em minha opinião, e minha concupiscência mais li-
cenciosa que minha razão…” (ibid.).
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50. Como propõe BRAHAMI, 1996; ver p. 29 ss., 36, 55, 71.
51. Afora o que já vimos no capítulo I, é importante observar que a terminologia
religiosa é geralmente empregada por Montaigne de modo bastante fluido e em contex-
tos inteiramente laicos. O termo “miracle”, por exemplo, sofre uma “naturalização”, na
medida em que tem seu significado atrelado ao modo como as coisas nos surgem em
vista de nos referirmos ao natural de forma sempre relativa (cf. III, 13, 1081B; II, 37,
763A e, especialmente, 526AC).
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O império do costume
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1. Ver também II, 12, 573, 576-584, em que Montaigne expõe e comenta as contro-
vérsias filosóficas acerca da noção de bem e a impossibilidade de obtermos uma lei
natural.
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ções). Foi sobretudo graças a seu fundamento cético que o ensaio “Dos
canibais” (I, 31) — no qual Montaigne pretende pôr em questão a
maneira pela qual os leitores (tacitamente os europeus) se outorgam
uma superioridade injustificada com relação aos tupinambás — se tor-
nou um marco do relativismo antropológico moderno.
Opondo-se, ademais, à tendência de desqualificarmos como “bár-
baros” os costumes diversos dos que praticamos, Montaigne afirma que
assim proceder é pôr-se numa situação “própria do vulgo”, isto é, da-
quele que considera as coisas pela voz comum, e não pela via da razão
(v. I, 31, 202A). Como dissemos, Montaigne soube ver que o ceticismo
não é um irracionalismo, ainda que o reconhecimento desse fato con-
duza a afirmações que beiram o paradoxo. Na citação anterior, a supe-
ração racional da atitude do vulgo (que condena como bárbaro o que
é contrário ao seu costume) parece levar ao reconhecimento de que
nosso critério de “razão e verdade” situa-se apenas no próprio costume,
isto é, no “exemplo e na idéia das opiniões e usanças do país de onde
somos”. Porém, prestemos atenção ao modo como o juízo de Montaig-
ne que introduz esse ponto é modalizado: “não parece que tenhamos
outra mira de razão e verdade”. O que significa isso? Por mais que
nossos valores possam limitar nosso acesso ao que nos é inabitual, tal-
vez essa formulação procure capturar a perspectiva daquele que se si-
tua segundo aquilo que lhe parece verdadeiro e razoável (por oposição
ao “bárbaro”), antes de ter devidamente avaliado o modo como a razão
pode igualmente secundar costumes diversos e, assim, reconhecer que
tal mira originária “da razão e da verdade” precisa ser corrigida. Não
fosse assim, como compreender o sentido da crítica que o próprio en-
saio desenvolve, em busca de relativizar o juízo de seu leitor acerca do
que é natural (e do que é, por oposição, bárbaro), no que tange aos
povos do Novo Mundo? Essa crítica cética destina-se, afinal, a neutra-
lizar a primeira avaliação que tendemos a fazer, quando imersos em
nossos costumes, do que poderia parecer, a um só tempo, racional e
verdadeiro, desse ponto de vista.
Contudo, o modo como razão e costume tendem a se relacionar
paradoxalmente — ora a razão podendo se confundir com o costume,
ora podendo, graças a um aprofundamento de sua ação, dele recuar e
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4. Ver I, 23, 115C. Com “leis de consciência” Montaigne parece aludir aos valores
que pautam nossa conduta moral.
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ocultando, seja qual for ele, o “ser da natureza”, que sob esse viés não
pode ser apontado senão como diverso e oposto do que percebemos
como natural, isto é, como “milagre”; sua causa é uma paralisia, nal-
gum grau, de nossa capacidade de refletir e raciocinar, de julgar ade-
quadamente as coisas e de reconhecer enfim que nosso juízo não age
de modo plenamente racional.
Mas até onde pode a reflexão avançar nessa tarefa reanimadora? A
julgar por algumas passagens, ela pode conduzir a paisagens bastante
imprevistas:
[A] Ir segundo a natureza, para nós, não é senão ir segundo nossa
inteligência, à medida que ela avança e o tanto que aí vemos. O que
fica além é monstruoso e desordenado. Ora, a essa conta, para os
mais sábios e capazes tudo será, portanto, monstruoso, pois a esses a
razão humana bem persuadiu que não possui nenhum pé ou funda-
mento… (II, 12, 526).
Deveríamos tomar ao pé da letra essa última afirmação? É possível
que, nas duas últimas passagens citadas, opere algum exagero retórico,
pois é certo que não se trata de proceder a uma crítica do sábio cético
como alguém que seria conduzido a uma doutrina impraticável: tais
passagens se harmonizam com o sentido geral da análise cética do cos-
tume. Elas parecem, contudo, orientar o ceticismo aí implícito num
sentido particularmente radical, ao identificar estreitamente aquilo que
nos surge como natural ou compreensível — de modo bastante amplo:
“ir segundo nossa inteligência” — e um possível falseamento dogmáti-
co, eventualmente relacionado à ação do costume, cuja descoberta de-
riva da compreensão de que a “razão humana … não possui nenhum
pé ou fundamento”. A julgar por esse texto, tudo se passa como se, a
cada vez que nos deparamos com alguma impressão de certeza, propi-
ciada por nosso entendimento particular das coisas, pomo-nos ipso fac-
to diante de um potencial candidato à suspensão, que convidaria a re-
flexão cética a prosseguir ainda além. Nunca poderíamos dispor de
uma garantia absoluta de que, ao julgarmos acerca do que seria natural
ou racional, não seríamos enganados pelo costume. Por onde se deve
concluir que tais juízos são sempre relativos — em especial, à nossa
capacidade individual de empreender tal reflexão cética, que, por si
138
139
não por uma lei5, o Nono Tropo de Enesidemo, tal como o apresenta
esse autor, destina-se a estabelecer a suspensão com base no modo di-
verso com que as coisas nos impressionam, relativamente à sua rarida-
de ou à freqüência com que ocorrem (cf. HP I, 141-144). Em geral, diz
Sexto, aquilo que é raro, único, ou que vemos pela primeira vez, sur-
preende-nos mais que aquilo a que estamos habituados. Embora o sol
seja mais impressionante (ekpléktikos) que um cometa, o segundo nos
impressiona mais devido à sua raridade; muito mais impressionante
ainda seria o sol, argumenta ele, se apenas raramente iluminasse as
coisas com seu brilho costumeiro (HP I, 141). Por conseguinte, não
podemos dizer como é o objeto externo em si mesmo — impressionan-
te, valioso, ou o oposto disso —, mas apenas relatar o modo como ele
nos aparece em virtude dessa circunstância.
Como compreender o sentido da suspensão aí proposta? Trata-se
de mostrar que as coisas nos parecem “impressionantes” (expressão esta
que ganha, portanto, um sentido bastante difuso, posto que os exem-
plos abarcam o valor que atribuímos ao ouro por sua raridade6, a sur-
presa que temos diante da primeira visão do mar ou ainda a impressão
sensível causada pela luminosidade do sol) de um modo sempre rela-
tivo à nossa experiência, embora tendamos a atribuir esses valores e
impressões integralmente às próprias coisas. Mas isso não significa, tam-
pouco, que se possa determinar que tal impressão seja meramente
ocasionada por nossa reação subjetiva, como mostra o experimento
mental proposto pela comparação entre o sol e o cometa (segundo o
qual se infere que o sol pareceria mais “surpreendente” que o cometa
se a freqüência de aparição daquele pudesse à deste ser equiparada).
Sobrepõem-se aqui uma eventual diferença objetiva das coisas e uma
diferença ligada ao modo como subjetivamente as coisas nos aparecem
submetidas a alguma freqüência ou raridade particular segundo nossa
experiência; não podemos, porém, observar as coisas de modo inteira-
mente isento, sem estarmos situados nalguma experiência particular
140
7. Sexto inclui esse Tropo na classe daqueles que se referem à relação entre sujeito
e objeto (enquanto, diversamente, o Décimo Modo corresponderia apenas à relação
objetiva entre as coisas); cf. HP I, 38-39.
141
142
8. Dnd, II, xxxviii, 96. A citação provém da crítica estóica ao epicurismo e é empre-
gada por Montaigne como premissa da defesa da adesão integral aos artigos de fé da
religião cristã (contra aqueles que, confundindo o verossímil com o verdadeiro, preten-
dem eleger por si mesmos os artigos de fé aceitáveis).
9. Dnd, I, XXX, 81, citado em I, 23, 111C. No contexto original do qual é extraída,
essa passagem constitui uma réplica que o cético Cotta, representante da Nova Acade-
mia, endereça ao antropomorfismo da teologia epicurista. Particularmente, trata-se de
observar que, a despeito de todos os absurdos e incongruências gerados pela pressupo-
sição de deuses de forma humana, se os epicuristas os aceitam, isso se deve ao fato de
que os romanos, desde sua infância, foram postos em contato com deuses representados
por essa forma. No ensaio de Montaigne, ela se insinua como “desculpa” das fantasias
humanas que as religiões elaboraram sobre aquilo que desconhecemos, à falta da cla-
reza da verdade revelada.
143
entre nós encontrará fatos [effects] tão admiráveis quanto aqueles que
se podem recolher nos países e séculos estrangeiros … Eu vi outrora
entre nós homens trazidos pelo mar de país longínquo, dos quais não
entendíamos nada de sua língua, cuja feição, em suma, e a postura,
e as roupas eram totalmente distantes das nossas; quem de nós não os
acharia selvagens e brutos? … Tudo o que nos parece estranho nós
o condenamos, e também o que não entendemos, como ocorre no
juízo que fazemos dos animais. Eles têm diversas condições que se
reportam às nossas; dessas, por comparação, podemos tirar alguma
conjectura; mas acerca do que eles têm de particular, o que nós sa-
bemos?… (467).
Nesse trecho parecem articular-se as temáticas de pelo menos três
Modos pirrônicos: o Nono, o Décimo e o Primeiro (em vista do qual
devemos admitir o testemunho perceptivo dos animais, potencialmen-
te diverso do nosso, como ocasião de constatar a relatividade da percep-
ção humana). Exatamente como Sexto, ao apresentar o Nono Modo,
Montaigne assinala que as coisas incomuns nos parecem mais valiosas
e admiráveis, e tampouco se pretenderia aqui suprimir a própria expe-
riência pela qual tais coisas são imediatamente percebidas como pos-
suidoras desses valores. Se Montaigne explora retoricamente a admira-
ção causada pelo inusitado, cuida também de assinalar que o valor que
atribuímos às coisas raras é relativo — uma vez que os objetos da nossa
experiência comum, por si mesmos, não lhes são intrinsecamente infe-
riores. O dogmatismo aqui alvejado parece residir, justamente, na crença
de que os fatos (effects) com os quais estamos habituados possuam em
si um valor diverso daqueles que nos causam admiração por serem de
países e séculos longínquos. A despeito dessas similaridades, a argu-
mentação de Montaigne ganha um viés inesperado. Montaigne pros-
segue afirmando que os mesmos exemplos inusitados (que pareçam,
nessa medida, valiosos) são objeto de uma desvalorização, derivada,
precisamente, do fato de escaparem de nosso hábito: “Tudo o que nos
parece estranho nós condenamos, e também o que não entendemos,
como ocorre no juízo que fazemos dos animais”. Assim, a estupidez
que atribuímos aos animais é aqui associada à estranheza dos bárbaros:
o inusitado e não-habitual, se suscita admiração, suscita igualmente
144
145
parece ser o seu originalmente, que emerge uma vez que trazemos o
texto para perto de suas fontes pirrônicas (de modo análogo ao que
vimos ocorrer noutras ocasiões)? Talvez essa peripécia nos dê ocasião
de assinalar, em vez disso, que Montaigne pretende, a despeito da se-
melhança conceitual das discussões, assinalar a dificuldade da tarefa
do efetivo reconhecimento da dimensão com que a ação do costume se
apresenta. Pois afirmar que a segunda valoração (segundo a qual o ina-
bitual é visto como estranho e inferior) não é diretamente relacionada
à presença do costume não significa, como vimos, dizer que ela não
seja causada por ele: ela é, com efeito, produto de um costume que se
escondeu a si mesmo e não pode mais ser visto como mero costume por
aquele que avalia desse modo (e pensa, afinal, estar simplesmente jul-
gando conforme a razão). Assim, essa curiosa solda argumentativa en-
tre as reflexões céticas que parecem ser tomadas dos Tropos Nono e
Décimo, pelo elo conceitual do reconhecimento da ação do costume
em ambos os casos, não apenas oferece uma exemplificação do movi-
mento pelo qual o costume se esconde a si mesmo (e que pareceria, à
primeira vista, ser inteiramente avulso em vista dos elementos céticos
da reflexão), mas o faz coincidir com uma aparente inversão do sentido
de sua ação.
Em que medida, afinal, essa espécie de “dialética” montaigniana se
afasta de um registro cético? Independentemente do sentido que ganha
em face de fontes que Montaigne presumivelmente tem em vista, a
passagem parece conter um comentário paradoxal sobre o costume: sua
ação parece produzir ora uma espécie de desvalorização, ora uma espé-
cie de valorização. Nos dois casos, porém, a avaliação é objeto de críti-
ca: ela corresponderia a juízos dogmáticos, que falseiam nossa apreen-
são. Se assim é, esse expediente pelo qual Montaigne argumenta de
ambos os lados (mostrando que dois efeitos opostos podem ser igual-
mente extraídos do modo como um único exemplo se subordina à nossa
apreciação costumeira) assinala também o duplo sentido em que se
manifesta seu efeito dogmatizante. Ao menos negativamente, seria pre-
ciso concluir que a identificação de sua presença não poderia se tradu-
zir na identificação de uma espécie de lei pela qual o costume invaria-
velmente agiria (a que seríamos conduzidos, por exemplo, se nos ativés-
146
semos apenas ao sentido de seu efeito tal como apontado pelo Nono
Tropo). Mais precisamente, mesmo que seja possível, em determinado
sentido preciso, reconhecer efeitos regulares da ação do costume (ao
acostumarmo-nos com as coisas, passamos a julgá-las menos dignas de
atenção e de curiosidade), isso não diz respeito exatamente às razões
pelas quais ele poderia, segundo Montaigne, ocasionar uma apreensão
dogmática das coisas. Alegar que ele pode ser causa tanto de uma valo-
rização como de uma desvalorização da mesma coisa (ainda que sob
vieses diferentes) talvez seja apenas uma forma diversa de sublinhar o
caráter ardiloso e imprevisível de sua ação. Essa ilustração da ambigüi-
dade do costume, assim, esclarece por que o costume se torna causa de
dogmatismo na justa medida em que, como diz Montaigne, ele se “es-
conde a si mesmo”. E isso, a bem dizer, parece ser visível nos casos dos
problemas considerados pelos dois Tropos (e refletidos na duplicidade
dos efeitos), ainda que em graus e sentidos diferentes. Num primeiro
momento, embora se trate de um efeito cuja relação com o costume é
ainda imediatamente visível, o juízo dogmático decorre de não sermos
capazes de ver que aquilo que tomamos como um valor da própria coisa
é determinado nalgum grau pela ingerência de nos acostumarmos. Con-
fundimos aquilo que é relativo ao costume com o que a coisa é, mesmo
sendo capazes de reconhecer que o costume age no sentido de produzir
uma valorização determinada das coisas. Trata-se, contudo, apenas de
um primeiro grau de adormecimento de nosso juízo, que se aprofunda
no momento em que nem mesmo a ação do costume pode mais ser
percebida, como ocorre nos casos em que deixamos de reconhecer sua
presença como algo que contribui para o juízo sobre a naturalidade ou
a racionalidade do que percebemos. Assim, em suma, o costume se
esconde a si mesmo, fomentando uma apreensão dogmática das coisas,
sem ser o fundamento positivo desse dogmatismo. Seus efeitos dogmá-
ticos decorrem não do fato de distorcer nossas percepções sempre num
mesmo sentido, mas do modo como ele nos impede de julgar adequa-
damente as coisas, tanto as que valorizamos como as que desvaloriza-
mos. Importa aqui lembrar que, embora a ação do costume possa ter
essa conseqüência negativa do ponto de vista da pretensão de conhecer
as coisas, sua ação não é tida por Montaigne como intrinsecamente má
147
10. Trata-se de um aspecto da reflexão moral tardia sobre o poder do costume nos
Ensaios, cuja raiz pode aqui ser reconhecida. Ver, a esse respeito, II, 37, 759B; III, 13,
1092BC.
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11. Referimo-nos agora a uma segunda parte do texto, que corresponderia às p. 116-
122, e poderia ser subdividida em dois momentos: uma consideração geral sobre a crí-
tica precedente acerca do poder do costume em vista de suas conseqüências práticas
(116-118), que em sua maior parte já está presente na edição de 1580, e uma análise de
um caso particular (isto é, das novidades reformistas, 118-122), inteiramente composta,
salvo pelo parágrafo final, de alongamentos posteriores a 1580.
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14. Em III, 9, 957-958, Montaigne escreve: “Não por opinião, mas em verdade, a
política excelente e melhor para cada nação é aquela sob a qual é mantida. Sua forma
e comodidade essencial depende do uso… Nada pressiona mais um estado que a ino-
vação; a mudança por si mesma dá forma à injustiça e à tirania…”. Em seguida, porém,
essa afirmação geral é circunstanciada; trata-se de alvejar a precipitação daqueles que
procuram extirpar os males sem refletir o suficiente sobre o que é melhor para o pacien-
te: “[C] O fim do cirurgião não é o de fazer morrer a carne má, mas sim o de encami-
nhar a sua cura…” (v. ibid.). Sobre o caráter de urgência com que os problemas atinen-
tes à guerra civil se afiguram para Montaigne, ver FRIEDRICH, 1985, p. 128-129.
15. Ver, por exemplo, III, 13, 1065: “[B] A razão tem tantas formas, que não sabemos
a qual nos ater; a experiência não as tem menos. A conseqüência que nós pretendemos
extrair da semelhança dos eventos é incerta, porquanto eles são sempre dessemelhantes:
não existe nenhuma qualidade tão universal nesta imagem das coisas quanto a diversi-
dade e a variedade…”. Ver também 1070B.
16. Ver os comentários de Montaigne sobre sua experiência do recrudescimento da
guerra civil no Périgord, ao longo de 1585, em III, 12, 1041-1042.
153
17. Ver II, 12, 583: “[A] As leis ganham sua autoridade da posse e do uso; é perigoso
remontar à sua nascente: elas crescem e se enobrecem correndo, como os nossos rios.
Segui-os contra seu curso até sua origem: não é senão um pequeno fio d’água dificil-
mente reconhecível, que assim se torna mais imponente e se fortifica ao envelhecer.
Vede as antigas considerações que deram o primeiro impulso a essa famosa torrente,
plena de dignidade, de honra e de reverência: vós as achareis tão superficiais e tão
delicadas, que essas gentes que pesam tudo e o remetem à razão, e nada recebem por
autoridade e a crédito, não é de surpreender que tenham seus juízos tão afastados do
uso comum…”. Cf. I, 23, 116-117.
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21. Ver 520A: “[A] … [A razão humana] não faz senão se extraviar por toda parte,
mas especialmente quando se mete em assuntos divinos. Quem o sente mais evidente-
mente que nós? Pois, ainda que nós lhes tenhamos dado princípios certos e infalíveis,
ainda que nós esclareçamos seus passos com a santa lâmpada da verdade que aprouve a
Deus nos comunicar, nós vemos contudo diariamente como, por pouco que ela se equi-
voque no caminho ordinário, e que ela se desvie ou se afaste da via traçada e batida pela
Igreja, ela imediatamente se perde, se atrapalha e se entrava, volteando e flutuando
neste vasto mar das opiniões humanas, sem rédeas e sem destino. Tão logo ela se perde
desse grande e comum caminho, ela vai se dividindo e dissipando em mil rotas diver-
sas…” (520; itálicos nossos). Cf., no mesmo sentido, 579C.
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[B] Deus bem sabe: quantos, na nossa presente disputa entre protes-
tantes e católicos, onde há centenas de artigos a suprimir e restaurar,
grandes e profundos artigos, serão os que possam se vangloriar de
conhecer exatamente as razões e fundamentos de um e de outro
partido? É um número, se for, que não tem muito com o que nos
perturbar. Mas toda essa massa vai em que direção? (I, 23, 122).
O otimismo racionalista que se espelha na conduta dos reformistas
corresponderia, assim, a um aprofundamento do mesmo sono dogmá-
tico que o ceticismo, num primeiro momento, denunciaria num senti-
do apenas teórico. Se conhecessem melhor a maleabilidade da razão,
poderiam não apenas desconfiar do poder demonstrativo que ilusoria-
mente atribuem às suas, mas sobretudo compreender que, a despeito
disso, seus efeitos práticos dependem sobretudo da forma pela qual seus
interlocutores as avaliam. Eis por que, nesse caso, a cegueira dogmáti-
ca reclama uma posição de cautela radical:
[B] Eu desgosto da novidade, tenha ela a face que tiver, e tenho
razão de fazê-lo, tendo visto seus efeitos mui-desastrosos. Aquela que
nos oprime há tantos anos não realizou tudo, mas pode-se dizer, com
plausibilidade [apparence], que, casualmente [par accident], ela tudo
produziu e engendrou — a saber, os males e ruínas que se fazem a
partir de então sem ela e contra ela … (I, 23, 119).
Mas em que medida essas considerações permitem elucidar o pro-
blema de seu próprio estatuto? Isso fica mais claro se se observar como
elas são retomadas noutra chave conceitual. Explicando por que ade-
riu, a despeito de seus defeitos, ao partido católico, Montaigne afirma:
O outro partido [calvinista] é bem mais rude, pois se põe a escolher
e mudar, usurpa a autoridade de julgar e se deve julgar muito capaz
de julgar o erro que elimina e o bem que produz. [C] Esta vulgar
consideração me afirmou em meu lugar … [e me conduziu] a não
carregar em meu ombro esse tão pesado fardo, de responder por um
conhecimento de tal importância e ousar nisso aquilo que em são
juízo eu não ousaria … nas coisas em que a temeridade de julgar não
traz nenhum prejuízo: pareceu-me muito iníquo querer submeter as
constituições e observâncias públicas à instabilidade da fantasia pri-
vada — a razão privada só tem jurisdição privada — e submeter às
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leis divinas aquilo que nenhuma política poderia fazer com as leis
civis, ainda que a razão humana tenha aqui muito mais comércio …
A capacidade extrema serve para explicar e estender os usos recebi-
dos, não para desviá-los e inová-los … (I, 23, 121; itálicos nossos).
Essa passagem mostra que a cegueira dogmática dos reformistas,
em seus desdobramentos teóricos e práticos, é uma incapacidade de
ver que a “razão privada” tem uma jurisdição apenas “privada”. O que
significa isso? Que as razões dos calvinistas valem apenas para eles
mesmos, assim como a crítica cética de Montaigne só vale para ele
próprio? Não se trata de nenhum relativismo dessa natureza. A limita-
ção da jurisdição dessa razão não é aqui uma limitação teórica, apenas
relativa à sua incapacidade de provar demonstrativamente as verdades
que pretenderiam provar. Sua incapacidade é a de compreender que
suas razões, a despeito de seu mérito teórico particular (desnecessário
repetir que, contudo, esse erro filosófico de avaliação está na raiz de
sua atitude), podem conduzir, uma vez disseminadas publicamente, a
conseqüências que ultrapassam essa esfera de considerações (como lhes
teria mostrado, à saciedade, a experiência das guerras civis). Trata-se de
uma incapacidade de perceber que, no espaço público, as razões ga-
nham uma dimensão retórica (isto é, um valor determinado pela cir-
cunstância relativa em que poderão ser compreendidas) que ultrapassa
o valor que possuiriam segundo seu peso demonstrativo. Se, contudo,
isso não passa despercebido ao cético, é em decorrência de sua prática
de opor razões permitir salientar essa dimensão que permanece em
segundo plano, se não oculta, àqueles que pensam dispor de um crité-
rio capaz de estabelecer a verdade. Eis por que, ao mesmo tempo em
que preconiza esse exercício antinômico da razão como meio de se
desfazer do “violento prejuízo do costume” e situar o juízo numa po-
sição mais segura (v. I, 23, 117), Montaigne interpreta o critério prático
do ceticismo como um convite à adesão “exterior” aos costumes rece-
bidos, por oposição ao espaço “interior” que se reserva para a livre ação
do juízo:
Essas considerações não desviam, entretanto, um homem de enten-
dimento de seguir o estilo comum; antes, pelo contrário, parece-me
que todas as maneiras [façons] dele afastadas e particulares antes
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23. A citação provém de Academica, II, xii: “Tal como o peso necessariamente faz
pender o prato da balança, a evidência faz o espírito ceder”.
24. Seja ante o que aceitamos ordinariamente, como quando os pirrônicos, segundo
Montaigne, se valem dos argumentos da razão para arruinar a “aparência de experiên-
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cia” (cf. 571A), seja ante aquilo que, em vista do que admitimos ordinariamente, nos
surge como espantoso, como ocorre com nossa surpresa diante dos bárbaros “[que] não
são em nada mais maravilhosos para nós do que nós o somos para eles, nem com mais
ocasião…” (I, 23, 112A).
25. Ver novamente 439AB.
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35. Este ensaio, em que Montaigne trata de como o hábito lhe ensinou a conviver
com a doença e empreende uma irônica crítica aos médicos, inspirada em Corneille
Agrippa, oferece-se a diversas outras aproximações com o tema cético da adesão ao
phainómenon como critério prático. Em HP I, 29-30, por exemplo, Sexto apresenta e
explica a noção pirrônica da metriopátheia (moderação das afecções), em sua relação
com a imperturbabilidade (ataraxía), reconhecendo que o cético não é totalmente isen-
to de perturbações, pois é afetado pelo que se impõe involuntariamente, como o frio e
a sede. Contudo, diz Sexto, os céticos procedem de modo mais moderado diante dessas
afecções do que as pessoas comuns, na medida em que não acrescenta a essa experiência
a crença de que aquilo que o aflige seja um mal “por natureza”. Montaigne, igualmente,
no início de II, 37, narrando o modo como aprendeu a lidar com sua “pedra” nos rins,
opõe as regras “supérfluas” que diversas filosofias propõem para o enfrentamento do mal
ao modo como ele próprio, por força do costume, convive com seu mal procurando não
o amplificar pela sua razão (v. II, 37, 763). Sobre o mesmo tema, ver II, 6, 372.
36. Ver, por exemplo, III, 13, 1073C, em que Montaigne critica o modo como os
filósofos falsificam a natureza, apresentando-a sob uma face “… demasiado colorida e
sofisticada, donde nascem tantos retratos diversos de um tema tão uniforme…”.
37. Ver II, 6, 378-379C.
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39. Ver III, 10, 1009-1010. Segundo Jean Céard, dever-se-ia, ao contrário, constatar
uma “mudança profunda” no pensamento de Montaigne sobre o costume ao longo da
evolução dos Ensaios: ele passaria de uma oposição resoluta entre o costume e a razão
(ou, igualmente, a natureza) à idéia posterior de uma conveniência em guiar-se pelos
costumes, que, por sua vez, são submetidos às leis naturais (1992, p. 26 ss.) Pensamos
que, em vez disso, seria melhor nos referirmos, na melhor das hipóteses, a uma mudan-
ça de ênfase: ainda que a idéia de uma regularidade da natureza seja cada vez mais
destacada a partir de 1588, ela já se faz plenamente presente na edição de 1580 (cf., p.
ex., II, 12, 459A), bem como o reconhecimento do modo ambíguo como tendemos a
tomar o meramente costumeiro igualmente como natural ou como razoável.
40. Ver ibid.
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como a ela por vezes se refere — uma transcendência que talvez ocupe,
nalguma medida, o lugar do Deus cristão, trata-se, ao mesmo tempo, de
uma instância que possui leis e regularidades próprias que escapam a
nossas tentativas de abarcá-la por meio de nossas faculdades cognitivas.
Aquilo que, segundo Montaigne, nos surge como natural não é mais do
que uma imagem de nossa limitação relativa em apreender mais profun-
damente o que nos aparece: “[C] Nós dizemos que é contra a natureza
o que surge contra o costume: tudo é sempre segundo a natureza, seja
o que for. Que essa razão universal e natural nos livre do erro e do espan-
to que a novidade nos aporta” (II, 30, 713). Tal erro, portanto, é produto
de nossa inserção singular e limitada numa natureza que nos abarca e
nos transcende, na qual tudo tem o seu lugar, mesmo o que nos parece
inútil41; uma natureza indefinidamente capaz de frustrar as imagens que
dela humanamente produzimos. Essas reflexões tardias, no mais, se
harmonizam perfeitamente com as considerações do ensaio “É loucura
reportar o verdadeiro e o falso à nossa capacidade” (I, 27), em que, como
vimos, a crítica ao modo como confundimos o verossímil e o verdadeiro
vem de mãos dadas com o reconhecimento do poder infinito da mãe
natureza, ao qual pretendemos insensatamente prescrever limites42.
É difícil, em face do laconismo e da vagueza já mencionada dos
textos sextianos, avaliar a exata medida em que essa noção de natureza
seria diversa ou incompatível com aquela que ali subjaz. De todo modo,
o domínio do aparecer natural das coisas parece emergir na reflexão de
Montaigne como portador de uma opacidade e uma espessura próprias
(que não parecem, à primeira vista, discerníveis na transparência que
aparentam ter os conceitos pirrônicos que o descrevem, mesmo que
não haja incompatibilidade conceitual, a propriamente dizer, entre esses
dois autores). Tal opacidade corrobora, todavia, nossa impossibilidade
de admitir que teríamos acesso às coisas tal como elas são naturalmen-
te43, posto que só as conhecemos, ademais, segundo o modo como delas
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44. Ver, por exemplo, I, 14, 51A, II, 12, 562A, 598A, 599A; I, 50, 302: “[C] As coisas,
elas mesmas à parte, têm talvez seu peso, medida e condição, mas interiormente, em
nós, [a alma] lhes talha como bem entende…”. Aprofundaremos esse exame adiante,
no capítulo VI.
45. Ver, por exemplo, 452A.
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no limite, lhes pareceria “milagre”, mesmo que não fosse possível agir
num mundo que permanentemente frustrasse nossas expectativas acer-
ca de suas regularidades. Esse caso imaginário, que Montaigne figura
com um sábio ideal, aponta a distinção entre um plano de certezas
práticas e um plano da “ciência”, ao qual não temos legitimamente
acesso; estamos humanamente fadados a aceitar, como critério para a
ação, um número indefinido de certezas que, independentemente do
que possam vir a representar acerca das coisas em si mesmas, são re-
queridas pela fruição plena da vida.
Eis por que não vemos contradição quando Montaigne, de uma
parte, reconhece um efeito dogmático do costume e, de outra, admite
a importância de assentir a ele, segundo a forma como ele se manifesta
a cada um de nós, como uma via importante para a obtenção da tran-
qüilidade46. Do mesmo modo que, em certas passagens, ele afirma que
permaneceu seguindo seus moeurs ou suas tendências naturais47, diz
em outras que somos incapazes de nos contrapor às paixões e aos vícios
que se enraizaram em nós por um longo hábito, e que foi ele próprio
incapaz de corrigir sua natureza (num contexto em que a relação entre
esta e o costume era particularmente difusa)48. Ao fazê-lo, Montaigne
não está abandonando seu ceticismo; está apenas pondo em ação o
critério cético para a inserção na vida prática, tal como o compreende
no nível da reelaboração pessoal dos conceitos céticos. Sua reflexão
cética observa a aceitação dos costumes e da natureza como casos de
aplicação de um mesmo critério, em vista do qual o reconhecimento
de limites impõe a aceitação daquilo que se nos oferece. Não há, ao
menos desse ponto de vista, uma diferença essencial entre o modo como
se trata de assentir “externamente” aos costumes aceitos (em vista da
impossibilidade prática de subvertê-los, tal como observamos, e ainda
que a razão que conduz a essa aceitação dependa justamente do modo
46. Ver II, 37, 759A, III, 13, 1080B ss. Em III, 3, 818B, entretanto, Montaigne pre-
coniza como uma importante capacidade a de não nos atarmos muito fortemente à
nossa compleição, mas termos a maleabilidade de nos adaptar a diversos usos, sem ser
obrigados a proceder segundo um único modo de vida.
47. Além da passagem que citamos em epígrafe ao início (546A), ver II, 17, 638.
48. Ver III, 2, 908; III, 12, 1058-9.
173
49. Sobre o contato de Descartes com o ceticismo e sua intenção de oferecer uma
solução à dúvida cética, ver particularmente POPKIN, 1979, esp. cap. 9 e 10. Segundo
Popkin, Descartes exprimiu grande interesse pelo ceticismo da época, tendo lido
Cornelius Agrippa na juventude e demonstrado familiaridade com os escritos de Mon-
taigne e Charron à época da redação do Discurso do método.
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costume lhe conduz a aceitar segundo seu próprio juízo — exame esse
que, a rigor, parece não poder ser levado a cabo de forma definitiva,
sempre refletindo o limite relativo das capacidades daquele que o em-
preende, como veremos melhor adiante. Por ora, importa examinar a
maneira como a distinção entre esses dois sentidos diferentes em que a
reflexão de Montaigne preconiza a adesão ao costume é importante
pode ter conseqüências para o modo como se explicita seu ceticismo e,
por conseguinte, para a investigação sobre sua “novidade” filosófica.
Vimos ainda que a aceitação “externa” das crenças costumeiras pelo
“sábio” não significa uma limitação teórica do ceticismo; ao contrário,
ela corresponde à delimitação de um âmbito privado e “interior” do
juízo no qual ele disporia, em princípio, das melhores condições de
liberdade para considerar as coisas segundo sua “verdade”. Tal é o âmbito
em que seria lícito julgar as opiniões segundo seu peso próprio, como
diz Montaigne, sem levar em conta o valor que ganham em vista dos
que as adotam; é também o âmbito em que a reflexão cética poderia
plenamente vigorar, e ser explicitada segundo o sentido filosófico pre-
ciso de suas conseqüências. Essa oposição corresponde, assim, precisa-
mente ao modo pelo qual a reflexão cética de Montaigne define, para
si mesma, um âmbito de rigor, por oposição à esfera na qual o proble-
ma da aceitação de crenças sofre interferência da ordem da “utilida-
de”, e, nessa medida, dos valores coletivamente estabelecidos, segundo
as determinações dogmáticas que comportam. O mesmo espaço públi-
co em que os reformistas equivocadamente pretendem rebater os dog-
mas costumeiramente aceitos seria aquele em que, de modo mais ge-
ral, inviabiliza-se a interlocução filosófica, tal como concebida por Mon-
taigne, segundo seus próprios critérios, e, quão mais imperiosa fosse a
vigência das razões da ordem da utilidade, tanto mais essa discussão
deveria levar em conta, no modo como se explicita, a força particular
com que as opiniões costumeiras se impõem, ao menos no que tange
aos costumes associados à ordem pública.
Porém, ser capaz de distinguir teoricamente as dimensões do “ex-
terno” e do “interno” — como faz Montaigne, de passagem, no ensaio
sobre o costume — não é o mesmo que dispor de uma linha demarca-
tória plenamente clara entre elas ou admitir que seria possível estabele-
180
cê-la. Assim, mesmo que tal esquema teórico ofereça uma chave geral
para determinar diretrizes para a ação (especialmente na medida em
que se pretende atravessar tal linha demarcatória), é importante, para
compreendermos melhor a maneira como esse critério se materializa,
segundo a compreensão de Montaigne, observar a forma pela qual seu
juízo se explicita em vista de obstáculos “externos” da natureza aqui
vislumbrada, indicados por seu próprio texto. O campo da defesa da
religião revela-se particularmente digno de atenção, segundo esse novo
enfoque.
Embora essa diretriz cética de ação se traduza, como vimos, numa
defesa em bloco da religião costumeira, esse simples fato certamente
não garante que a autoridade do costume, tal como externamente ele se
impõe, e a de seu próprio juízo possam ser sempre acolhidas de modo
harmônico, a despeito da clareza com que se distinguem os sentidos
diferentes da adesão. Mesmo que sua defesa “exterior” da religião se
traduza numa declaração de submissão ao conjunto completo dos arti-
gos de fé da Igreja tradicional, Montaigne igualmente explicita, ainda
que com a devida cautela, noutras passagens sua recusa em se submeter
integral ou incondicionalmente à autoridade dos tribunais eclesiásti-
cos, entre as quais a mais eloqüente seja talvez a passagem em que ele
se contrapõe às ameaças que a Inquisição lhe teria dirigido, graças à
dúvida que professa relativamente aos testemunhos fantásticos que, uma
vez aceitos como verdadeiros, serviriam de base para a condenação das
feiticeiras: “[B] Eu bem vejo que se remoem, e que me proíbem de
duvidar, sob pena de injúrias execráveis. Pelo amor de Deus, minha
crença não se maneja a socos…” (III, 11, 1031). Nos desenvolvimentos
mais tardios, Montaigne assume, cada vez mais abertamente, a liber-
dade de manifestar seus julgamentos nos casos em que a prudência
talvez lhe teria antes recomendado o silêncio: Servet, entre outros pro-
testantes, foi condenado ao fogo em 1553 por suas interpretações heré-
ticas, em meio a um ambiente de perseguições e intolerância crescente
de ambas as partes em conflito1, e Galileu, como sabemos, seria poste-
1. Sobre esse ponto, ver TOURNON, 1989, p. 14-18. Friedrich, de sua parte (1985, p.
40), considera que as críticas eventuais de Montaigne à Igreja, embora inegáveis, são,
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devidas a seu ceticismo, menos ousadas que as de Rabelais, Bodin e Dolet (este igual-
mente condenado à fogueira).
2. Convém lembrar, seguindo Villey (v. Les Essais, p. 317), que, embora as “tendên-
cias agnósticas” da defesa da religião montaigniana tenham então sido vistas como acei-
táveis pelo Maestro del Sacro Palazzio, em Roma, em 1581, uma das idéias centrais do
ensaio I, 56 (em que narra suas opiniões sobre as preces), foi censurada e, nem por isso,
Montaigne a tirou de seu texto (ressalvando antes que ali a introduzira por desconhecer
que se tratava de um “erro”). Igualmente, vimos que ele elogia, na Apologia, concep-
ções pitagóricas sobre um Deus incompreensível que seriam igualmente objeto de con-
denação. Seu elogio de Juliano Apóstata, imperador romano anticristão, num capítulo
sugestivamente nomeado “Da liberdade de consciência”, foi igualmente criticada por
Roma (ibid., p. 668).
3. Ver 565A, em que Montaigne descreve a vaidade que encontra em si mesmo,
paradoxalmente aludindo à relatividade de suas apreensões segundo as circunstâncias (v.
568-569), que é um motivo cético da suspensão e da crítica da vaidade ou “propéteia”
dogmática (que corresponde ao sentido desse termo na grande maioria das ocorrências).
Não obstante, tal vaidade “cética” (que Montaigne afirma ser perceptível em cada um
que se observe mais de perto, v. 566B) será ela mesma contraposta, algumas páginas
adiante, à adesão pessoal ao catolicismo narrada por Montaigne em 569A, nos termos em
que a examinamos. Retomaremos esse tema no capítulo seguinte.
4. Guy DE BRUÈS, no prefácio de seus Dialogues contre les Nouveaux Academiciens
(1557) — tidos como a primeira obra de língua francesa a tratar exclusivamente de fi-
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dade (sem destruir sua estratégia, na medida em que ela deve justamen-
te ocultar o que a motiva), ele pode, ao menos, “apontá-la com o dedo”?
[B] … à medida que minha comodidade [bienséance] mo permite,
faço aqui sentir minhas inclinações e afecções, mas o faço mais livre-
mente e de melhor grado de boca a quem quer que deseje ser infor-
mado. Tanto há aqui que nestas memórias, se nelas olharem, desco-
brirão que eu tudo disse, ou tudo designei. O que eu não posso expri-
mir, eu o mostro com o dedo: Verum animo satis hæc vestigia parva
sagaci sunt, per quæ possis cognoscere cætera tute. Eu nada deixo a
desejar e a adivinhar de mim… (III, 9, 983)10.
Montaigne não está, nessa nova versão do mesmo paradoxo, contra-
ditoriamente afirmando e negando, no mesmo sentido, a completude
das informações que oferece, mas novamente conciliando, pelo ângulo
possível, as exigências postas pela fidelidade ao juízo “interno” e pelo
respeito ao costume na sua dimensão “externa”. Dizer que não se pode
dizer, de todo modo, é dizer claramente algo, que não precisa ser adi-
vinhado. Mas o que deixa ele de dizer? Só pode apontá-lo com o dedo,
e transferir ao leitor a responsabilidade de ver além dos demais. Ainda
esta vez, a própria passagem não deixa de convidar o intérprete a julgar,
ao apontar os limites de sua clareza — “à medida que minha comodi-
dade mo permite” —, por mais que o gesto de apontar possa aqui pe-
rigosamente contrariar certos costumes.
Essas passagens mostram que, segundo Montaigne, dizer fielmen-
te segundo o seu juízo não significa dizer tudo o que se pensa, como
ele mesmo declara claramente, após criticar o vício da dissimulação:
“[A] Não é preciso sempre dizer tudo, pois isso seria tolice, mas o que
se diz, é preciso que seja tal como se pensa, de outro modo é malda-
de…” (II, 17, 648). Essa nova informação paradoxal, por sua vez, exem-
plifica a maneira como o texto, em plena conformidade com a decla-
ração de boa-fé do prefácio, apresenta-se, todavia, como critério de sua
própria incompletude e como o espelho autorizado da interioridade
que não pode ser inteiramente refletida. Mais uma vez, tal estratégia
10. A citação é de Lucrécio (De rerum natura, I, 403): “Em verdade, estas breves indi-
cações bastam a um espírito penetrante, pelas quais poderias descobrir todo o resto”.
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11. Ver “Ao leitor”, p. 3: “Eu próprio sou a matéria de meu livro”. A mesma crítica
foi feita por MARCU (v. 1964, p. 240). Outros comentadores observaram que já nesse
prefácio, inserido na obra em março de 1580, a mesma estratégia paradoxal parece
operar desde sua declaração inicial, acerca da boa-fé dessa obra originalmente dirigida
apenas aos parentes e aos amigos (v., p. ex., DRESDEN, 1963, p. 269-270).
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12. Sobre esse ponto, ver a introdução de Claude BLUM (Bouquins, p. 3).
13. É o que ocorre, segundo FRIEDRICH (1965), não apenas nos procedimentos
autodepreciativos de Montaigne, mas igualmente no caso de antecessores como Erasmo,
More e Corneille Agrippa (v. p. 24-28). MACGOWAN, igualmente, relaciona os expe-
dientes paradoxais dessa e de outras obras de Erasmo à “autoproteção” (v. p. 43). Inspi-
rados por preceitos retóricos relacionados com o “método de prudência”, tal como pre-
sente em Ramus, e remontando a fontes antigas, como Quintiliano (a comentadora
cita, em particular, Institutio Oratoria, IX, 2: “o expediente mais artístico é aquele pelo
qual uma coisa é indicada por meio de outra”), os Colóquios de Erasmo, por exemplo,
se constroem de modo que deixam o ônus da interpretação a cargo do leitor — que é,
de modo aparentemente contraditório, convidado a se identificar com um, nenhum ou
ambos os interlocutores (ibid.). O mesmo expediente inconclusivo, segundo BOWEN,
se poderia observar já em autores medievais, como Guilherme de Ockham, mediante
o uso deliberado da ambigüidade e da ficção. Igualmente aqui, Bowen sublinha, entre
outras de suas possíveis motivações práticas, a necessidade eventual de esconder posi-
ções perigosas ante a situação de intranqüilidade política e religiosa (v. 1972, p. 13-14).
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14. Não cabe aqui um exame da aplicação individual do paradoxo por esses autores,
dos quais, segundo Villey, Montaigne dá testemunhos certos da leitura (salvo Du Plessis
Mornay e Pasquier, que constam apenas como “muito provavelmente”, no “Catalogue
des Livres de Montaigne” da edição de referência dos Ensaios). Segundo MacGowan,
a estratégia de disfarce é um meio que Du Plessis e Pasquier, por exemplo, justificam
como particularmente adequada para a apresentação de verdades no contexto das guer-
ras civis (ibid.). Para uma análise geral do desenvolvimento da literatura paradoxal na
França do século XVI, ver BOWEN, 1972: trata-se de um recurso estilístico o emprego
do paradoxo, da antítese, do enigma e da ambigüidade, a fim de conduzir deliberada-
mente o leitor a um jogo de decifração das opiniões do autor e do verdadeiro peso a ser
atribuído às suas afirmações.
15. Ver RABELAIS, Tiers livre du Pantagruel, cap. 36, apud. TOURNON, 1991, p. 32.
Montaigne, de sua parte, inclui o livro de Rabelais entre os que considera “apenas
divertidos” (plaisans) (v. II, 10, 410A). Noutra passagem ele se refere a Pirro, porém,
como o filósofo “que fez da ignorância uma tão agradável ciência” (plaisante science)
(II, 29, 705A; itálico nosso).
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16. Das passagens dessa obra que se avizinham de argumentos montaignianos, dois
exemplos merecem destaque: o ataque à circularidade da argumentação pelas causas
dos “dialéticos” e ao modo como Aristóteles preconiza os sentidos como base do conhe-
cimento, sem levar em conta que eles são enganosos, em 41ff, e a crítica ao que ele
denomina a “cosmimetrie, ou consideration des mesures du Monde” (76ff-78vf) — na
verdade, a junção da cosmologia e da geografia —, ele ressalta que os autores são tão
discordantes entre si dos limites, longitudes, latitudes, magnitudes, medidas, distâncias,
climas e temperaturas que não sabemos a qual deles devemos nos ater. Como Montaig-
ne, ele constrói um argumento cético com base na opinião de que não havia outra terra
habitável além de Europa, Ásia e África, revelada falsa pelos navegadores portugueses e
espanhóis, contra as “resveries” dos antigos poetas e a falsa opinião de Aristóteles. A
presença desse autor como fonte dos Ensaios é particularmente visível no irônico exa-
me da medicina empreendido por Montaigne no capítulo II, 37 (“Da semelhança dos
filhos aos pais”).
17. Esse é o propósito do uso do paradoxo nessa obra, segundo Barbara BOWEN (C.
Agrippa’s De Vanitate: Polemic or Paradox?, B. H. R. [1972] 249-256, apud TOURNON,
1991, p. 30). Na Apologie contre les teologues de Louvain, o mesmo Agrippa defende sua
obra “cética”, o De Vanitate, das censuras dirigidas por esses teólogos esclarecendo o
sentido em que ela é uma declamatio: um trabalho feito à moda de exercício, subtraído
das regras que determinariam a verdade e que, nessa medida, não pretende produzir
nenhuma asserção e engajar o assentimento (apud TOURNON, 1991). Digamos que a
definição de declamatio parece fazer parte do mesmo dispositivo retórico pelo qual o
autor se desengaja publicamente da responsabilidade pelo que afirma, sem que isso
cancele, por certo, o sentido das críticas feitas quando tomadas pelo que valem. Isso
parece ser confirmado pelo fato de que Agrippa dispõe-se, ainda assim, a prosseguir com
a encenação refutando ponto por ponto os seus censores teólogos (v. ibid.).
18. Cf. TOURNON, 1991, p. 29-31.
192
19. Sobre o contato de Agrippa com os textos de Sexto, ver POPKIN, 1979, p. 23 ss.,
que lê a obra de Agrippa sem considerar nem mesmo a possível dimensão lúdica de seu
texto. Segundo Popkin, trata-se apenas de um “antiintelectualismo fundamentalista”,
que dificilmente pode representar um argumento genuinamente filosófico para o ceti-
cismo sobre o conhecimento humano, ressaltando, igualmente, a inexistência de qual-
quer “análise epistemológica séria”.
20. TOURNON identifica a confusão entre textos e comentários nos Ensaios como
um traço genuinamente cético dessa obra, que conferiria um novo alcance ao “pirronis-
mo lúdico”, pelo qual haveria um jogo na construção do discurso destinado a minar as
“instâncias reguladoras da comunicação” e a “armação lógica da linguagem” (1991, p.
36-37). Se assim fosse, teríamos dificuldade em compreender em que medida tal “ce-
ticismo” seria diverso daquele que o mesmo comentador reconhece em Agrippa, cujo
discurso se situaria num lugar intermediário entre o verdadeiro e o falso (ibid., p. 29).
Parece-nos que a descoberta desse “novo ceticismo” só se faz possível ao preço de con-
ferir ao pirronismo um sentido mais vago do que ele possuiu aos olhos do próprio Mon-
taigne. Uma premissa da identificação entre epokhé e paradoxo no sentido em que o faz
193
Tournon reside na admissão de que Montaigne deve ser inteiramente levado a sério
quando alega se afastar dos pirrônicos em virtude dos defeitos que a linguagem natural
possuiria, impedindo os céticos de filosofar. Tournon parece não ter percebido que
estamos, como já vimos no capítulo I, também nessa discussão sobre a linguagem cé-
tica, diante de um paradoxo da mesma natureza desses outros, e que a proximidade de
Montaigne ao ceticismo antigo, como vimos, é maior, nesse aspecto, do que ele perce-
beu. De um modo mais precavido, Hugo FRIEDRICH (1968, p. 376), examinando a
vagueza estudada da terminologia de Montaigne, no âmbito de uma análise estilística
de sua “consciência literária”, identifica-o como um “filósofo da ambigüidade”, por se
aproveitar da incerteza semântica do vocabulário do Moyen Français no qual escreve na
fluidez de seu discurso.
21. Embora o auto-retrato de Montaigne não se reduza, como veremos adiante, a
um exercício da arte do paradoxo, há aspectos importantes a recuperar nas análises de
BOWEN (1972) e MACGOWAN (1974) caso se queira avaliar com justeza a dimensão na
qual o auto-retrato ultrapassa essa dimensão. MacGowan, como dissemos, procura mostrar
como se desenvolvem, nos Ensaios, estratégias de dissimulação (“deceits”) segundo as
preconizações estilísticas de Castiglione e Petrus Ramus (lidos e citados por Montaig-
ne). Bowen, por sua vez, aproxima Montaigne de Rabelais ao julgar que o livro (e o
auto-retraro nele presente) é uma composição artística deliberadamente constituída de
inverdade, ambigüidade, ironia, paradoxo e contradição, exemplificando o que ela deno-
mina de arte do “Bluff” (“blefe”) (v. 1974, p. 103). Embora os Ensaios, em nosso enten-
der, não se resumam nisso, pensamos que essas análises permitem problematizar passa-
gens que poderiam ser lidas, à primeira vista, como afirmações que parecem ir no senti-
do oposto: “Se fosse para procurar o favor do mundo, eu teria me enfeitado mais e me
apresentaria numa marcha estudada. Eu quero que me vejam na minha feição simples,
natural e ordinária, sem contensão e artifício: pois eu me pinto a mim mesmo…” (“Ao
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Leitor”). Já se observou que Montaigne aqui alude aos preceitos do decoro que o Livro
do cortesão, de Castiglione, endereça à nobreza. Mas em que sentido se deveria com-
preender essa sua “naturalidade não-estudada” se a sprezzatura (segundo Castiglione, a
virtude fundamental do nobre) consiste justamente em “esconder a arte, e que mostra
o que se fez e disse veio sem esforço e quase sem pensar…”? (v. Castiglione, p. 54).
Deveríamos julgar que a erudição oculta nas linhas dos Ensaios foge desses moldes?
Ademais, a despeito do que afirma o prefácio, como compreender a afirmação com que
Montaigne alude a seu auto-retrato, no qual reconhece que se trai pelo simples fato de
se descrever? Cf. II, 6, 378C: “Ora, eu me enfeito sem cessar, pois me descrevo sem
cessar…”. Consideraremos uma interpretação alternativa dessa mesma passagem no
capítulo VII.
22. Além de Tournon, BELLENGER (1982) entende que o emprego montaigniano do
paradoxo não constitui mero ornamento, mas corresponde a uma preocupação profun-
da, relacionada com seu ceticismo (p. 15). DEMURE (1988) opõe ceticismo e paradoxo,
considerando que as eventuais contradições dos Ensaios são antes o resultado não da
arte do bluff, mas de uma zétesis cética pela qual Montaigne volta atrás relativamente
a suas opiniões anteriores (p. 1000); considera, assim, inaceitável o viés de leitura pro-
posto por Bowen, por ser incompatível com a coerência filosófica das contradições de
Montaigne (p. 1002). Contudo, parece-nos que também a resposta de Demure exclui
precipitadamente a possibilidade de uma conciliação entre o ceticismo de Montaigne
e o emprego deliberado de expedientes paradoxais.
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26. Ver 518AC, em que Montaigne afirma, com relação às promessas divinas, como
a da imortalidade da alma, ser preciso “imaginá-las inimagináveis”. Considerar, por
exemplo, que a estrutura paradoxal destina-se a engendrar a epokhé referida por essas
palavras seria ou bem redundante, ou bem incompreensível.
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percebe [qui ne se sent point], que não se julga, que deixa a maior
parte de suas faculdades naturais ociosas. Eu quero tomar o homem
no seu mais alto assento. Consideremo-lo nesse pequeno número de
homens excelentes e escolhidos que, dotados de uma bela e particu-
lar força natural, fortificaram-na ainda e afinaram-na, pelo estudo e
pela arte, e ascenderam ao ponto mais alto que a sabedoria pode atin-
gir… é neles que se situa a altura máxima da natureza humana… Não
vou considerar senão tais pessoas, seu testemunho e sua experiência.
Vejamos até onde eles foram e onde se detiveram… (501-502).
Se esse aviso dará imediatamente lugar ao exame do ceticismo an-
tigo, devemos logo concluir que a porção de texto que se situa anterior-
mente a ele — precisamente, a discussão sobre a fraqueza da filosofia
em propiciar a felicidade humana — é ainda determinada, nalguma
medida, pela necessidade de considerar as vozes não apenas por seu
peso, mas por seu número; pelos critérios, afinal, que atendem o teste-
munho e a experiência do homem en gros, não dos filósofos como tais.
Tal como a loucura erasmiana, que assume a palavra para ironizar
a pretensão do saber filosófico, aqui é a ignorance, identificada à rusti-
cidade do vulgo, que tripudia sobre a infelicidade do sábio. Por trás da
oposição grosseira que aí se encena entre filosofia e religião, encontra-
mos, porém, modelos filosóficos particulares, que dão sentido especial
a essa ironia: Montaigne ataca, sob a pele dos “filósofos”, a vaidade de
estóicos como Sêneca, segundo quem o sábio rivaliza em felicidade
com os deuses, e grande parte dos exemplos dos subterfúgios a que,
segundo ele, a filosofia recorreria inutilmente, dada sua incapacidade
de alcançar a felicidade, são diretamente dirigidos contra o estoicis-
mo31. Em contrapartida, é visível que a descrição do homem do vulgo
31. Para atermo-nos aqui a alguns poucos exemplos: quanto à afirmação montaignia-
na sobre a incapacidade da filosofia de oferecer armas contra a “fortune”, cf. 489-490AC,
Epist., I, xvi, xxxvii, lii e liii. Quanto à posição estóica em relação às dores, ironizada por
Montaigne em 490A, cf. Epist., I, xxiv, ix. Elogiando a loucura como meio de acesso à
felicidade, em 495C, ele parece se contrapor a Epist., I, vii, x, xviii, ix, xvi, xx, xxxi.
Enfim, no que se refere ao tema da morte, criticado como paliativo filosófico na impos-
sibilidade da obtenção de felicidade, cf. Epist., I, iv, xii, xxiv, xxvi, liv. Essa crítica de
Montaigne, especialmente se confrontada aos ensaios anteriores de orientação estóica,
203
como I, 20, exemplifica bastante bem sua mudança de postura filosófica. Retomaremos
esse ponto adiante, no capítulo VII.
32. Sobre o tema pirrônico da metriopátheia, ver HP I, 29-30, III, 236. Por certo, o
procedimento do “homem comum”, imerso em seu dogmatismo habitual, não há de
ser, a despeito do que aí Montaigne afirma, absolutamente idêntico à postura cética de
aceitar apenas externamente as formas de comportamento recebidas. Se Montaigne
afirma, quanto aos céticos, que “eles deixam guiar por essas coisas suas ações comuns,
sem nenhuma opinação ou julgamento…” (505), trata-se bem, como vimos, de uma
suspensão do julgamento diversa da daquele que simplesmente adere aos costumes,
sem julgá-los.
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33. Sobre a defesa da simplicidade religiosa, ver especialmente 467 ss. Outras trans-
formações retóricas dessa temática que podem ser compreendidas com base no mesmo
esquema interpretativo cético estão, por exemplo, em 488A, 491C.
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3. Tal é a tradução de Bury para agoghé, que Barnes, por sua vez, traduz por “per-
suasão”. Se se preferir esse termo, ele deverá, naturalmente, ser dissociado de suas im-
plicações dogmáticas.
4. Ver, especialmente, HP I, 187 ss.
5. Ver ibid.; cf. HP I, 24: “Dizemos tudo isso [sobre o critério cético e ação] sem
sustentar quaisquer opiniões…”.
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nente à experiência pessoal e relativa que a justifica6. Eis por que, aos
olhos do cético (isto é, daquele que “investiga”), sua investigação (zé-
tesis), comparada ao sentido usual do termo “filosofia”, situar-se-ia numa
posição de exterioridade ao espaço discursivo que a ele corresponde, e
no qual as diferentes filosofias se engendram, por meio de suas teses,
que ora tematizam o aparecer das coisas com o propósito de corroborar
a persuasividade de sua descrição do mundo, ora versam sobre objetos
que Sexto entende ser inapreensíveis (o que não o impede de investigá-
las criticamente, segundo o modo como esses discursos podem ser con-
siderados de um ponto de vista extrafilosófico)7.
Embora pouco salientado pelos comentadores, esse é um ponto ao
qual a interpretação de Montaigne dá atenção especial em sua inter-
pretação do ceticismo. Mais do que isso, parece-nos que se trata de um
ponto importante para elucidar o sentido de sua filosofia, no que tange
não apenas à maneira como ele compreende sua prática intelectual,
mas também como a situa exteriormente às diversas “seitas” disponí-
veis. Dessa apropriação talvez um primeiro sinal possa ser reconhecido
no fato de que ele não apenas retoma a divisão tripartite entre as filo-
sofias proposta por Sexto, mas o faz apresentando-a em seu próprio
nome, sem indicar a fonte (502A). Ao fazê-lo, não está ele, antes de
mais, imediatamente assumindo a distinção que os pirrônicos empre-
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9. Ver 503-504BC.
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11. “[A] Eles [os pirrônicos] julgam que aqueles que pensam tê-la encontrado [a
verdade] enganam-se infinitamente, e que há ainda uma vaidade muito temerária nesse
segundo grau que assegura que as forças humanas não são capazes de encontrá-la. Pois
isso, de estabelecer a medida de nosso poder, de conhecer e julgar a dificuldade das
coisas, é uma grande e extrema ciência, da qual duvidam que o homem seja capaz…”
(502). Trataremos a seguir, mais detidamente, do problema das diferenças entre ceticis-
mo pirrônico e acadêmico segundo Montaigne.
12. Comentando sua própria argumentação para mostrar que a alma humana, des-
conhecendo-se, não possui meios adequados para discriminar a verdade, Montaigne
discute as divergências entre as concepções de suspensão de pirrônicos e acadêmicos.
Seguindo as Hipotiposes, ele afirma que os acadêmicos admitem alguma inclinação de
julgamento, por acharem muito rude a afirmação de que a brancura da neve é tão
pouco segura quanto o movimento da oitava esfera celeste. Para evitar essa “dificuldade
e estranheza”, que a seu ver dificilmente se aloja em nossa “imaginação” (561A), eles
admitem o verossimilhante (vray-semblable) como critério de diferenciação entre as re-
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14. O exemplo mais eloqüente nos parece ser a citação latina dos Academica que é
inserida, posteriormente a 1588, como comentário da crítica dos pirrônicos aos acadê-
micos citada nas páginas anteriores: “Entre o verdadeiro e o falso não há diferença para
o assentimento da alma” (Acad., II, xxviii). Embora introduzida como comentário a
uma passagem pirrônica, tal citação se opõe frontalmente ao que o texto de 1580 afir-
mava acerca do sentido do verossimilhante segundo os acadêmicos: a passagem de Cícero
sugere justamente que o veri similis não deve ser tomado como critério de conhecimen-
to, mas antes, possivelmente, como um critério de ação que se pretende neutro ante a
suspensão filosófica, tal como a adesão pirrônica ao phainómenon. Considerar, no mesmo
sentido, as citações acadêmicas inseridas em 503-504BC e 505C.
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15. Ver, por exemplo, os comentários acerca desse ponto que se seguem a uma
discussão sobre a ataraxía pirrônica, em 578A. Vimos igualmente que, em 505A, ele
frisa que exprime a noção cética de epokhé apenas “na medida em que é capaz”, o que
não o impede de tomar partido pela interpretação segundo a qual seria plenamente
possível conciliá-la com a vida prática.
16. Já Aulo-Gélio assim se referia à questão sobre as diferenças entre pirrônicos e
acadêmicos (v. Noites áticas, XI, 5, 6, obra que Montaigne cita diversas vezes nos En-
saios), que a bem dizer permanece ainda, em certa medida, atual. Popkin nos oferece
testemunhos de sua discussão, especialmente a partir da publicação das traduções lati-
nas renascentistas de Sexto, por parte de outros contemporâneos de Montaigne, como
Giordano Bruno, Justus Lipsius (autor a quem Montaigne se refere elogiosamente) e
Petrus Valentia (v. POPKIN, 1979, p. 35).
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17. O texto latino está em De diuinatione, II, iii: “Eu direi, sem nada afirmar; eu
investigarei todas as coisas, freqüentemente duvidando e desconfiando de mim mesmo…”.
18. Parece-nos, de todo modo, que a interpretação montaigniana seria aceitável a
alguns intérpretes contemporâneos de Cícero, como John Glucker, segundo quem a
aceitação de aspectos de doutrinas filosóficas “dogmáticas” como probabile por Cícero
seria, no mais, conforme à prática de Carnéades (v. GLUCKER, 1988, esp. p. 62 ss.)
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seu cotejo com as fontes céticas, essa busca acaba por nos levar a cami-
nhos inesperados19.
O leitor poderia objetar que a solução aqui apresentada não parece
satisfazer plenamente as dificuldades que apontamos: se Montaigne
compreende o ceticismo como um gênero filosófico próprio que abar-
ca tanto pirrônicos como acadêmicos, como se apóia ele, afinal, numa
divisão pirrônica das filosofias segundo a qual essa doutrina se distingue
da filosofia acadêmica pela extremidade da dúvida com que se aparta
da vaidade ainda presente nessa modalidade cética? Seja qual for a
resposta, não pode desconsiderar a feição paradoxal que esse texto assu-
me ao ser cotejado com as fontes céticas explicitamente discutidas por
essa passagem — a exemplo do que ocorre, implicitamente, no texto
em que Montaigne trata de seu filosofar impremeditado e fortuito. A
discussão geral da filosofia cética assume inicialmente uma divisão tri-
partite dos gêneros de filosofia de origem pirrônica, pela qual esses
filósofos se distinguem dos céticos acadêmicos, e prossegue ilustrando
a liberdade correspondente à prática dessa mesma dúvida extrema com
passagens certamente extraídas dos Academica, novamente sem que o
leitor seja informado dessa particularidade, concluindo pela afirmação
de que se tratou ali das duas seitas que professam a ignorância, sem
claramente delinear sua diferença. Não é desprezível que esse fenôme-
no paradoxal seja recorrente nos textos de Montaigne que gravitam em
torno da mesma problemática da diferença entre as vertentes céticas.
Como mostramos, ele retoma literalmente a crítica que os pirrônicos
dirigem ao vray-semblable acadêmico; mas notemos que, formulando
19. Essa crítica se aplica, nalguma medida, à própria leitura que fizemos do ceticis-
mo de Montaigne em textos como EVA, 1993 e 2004, posto que ali permanecemos
orientados pela questão de saber se estávamos diante de um autor pirrônico ou acadê-
mico. Insistamos, porém, que esse é, em boa medida, um resultado natural do reconhe-
cimento dos indícios textuais legados pelo próprio Montaigne. Se entendemos ser aqui
possível aprofundar o tratamento do mesmo problema, dizemos que, até certo ponto, o
seu tratamento à luz das fontes pirrônicas e acadêmicas é um pressuposto indispensável.
Isso não revoga o reconhecimento dos aspectos pirrônicos e acadêmicos presentes na
reflexão de Montaigne, tal como lá os indicamos, mas apenas nos conduz a observá-los
de um novo ponto de vista que permite melhor compreender as conseqüências desse
ceticismo no âmbito mais geral dos Ensaios.
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sua concordância com essa objeção, ele se exprime por meio do pró-
prio critério recusado: “[A] A opinião dos pirrônicos é mais ousada e,
no mesmo passo, mais verossímil…” (562; itálico nosso).
Desses paradoxos, o efeito mais imediato, por certo, é o de descon-
certarem o leitor, e especialmente aquele que busca saber qual é exata-
mente a posição de Montaigne diante da velha questão sobre as diver-
gências das seitas céticas. E o próprio Montaigne, em vez de elidir o
aspecto desconcertante da conclusão pela qual o cético pode se opor às
próprias teses que definem sua filosofia, apenas acentua a nota paradoxal
que aí ressoa, demonstrando que essa liberdade acaba por conduzir o
cético a reconhecer sua vitória mesmo nas disputas em que é derrotado:
[B] Eles reservaram para si uma maravilhosa vantagem no combate,
uma vez que se desincumbiram do cuidado de se defender. Não lhes
importa que se lhes atinja, desde que atinjam; e de tudo acabam por
se aproveitar. Se eles vencem, vossa proposição falha, se vós, a deles.
Se provarem que nada se sabe, tudo bem, se não o souberem provar,
é igualmente bom. [C] Ut, quum in eadem re paria contrariis inpartibus
momenta inveniuntur, facilius ab utraque parte assertio sustineatur. E
contam com o fato de se achar bem mais facilmente com que mostrar
que uma coisa seja falsa, do que verdadeira, e o que não é, do que é;
e o que não crêem, do que o que crêem… (504-505)20.
Seria essa uma ironia para com os céticos, afeita às descrições in-
sólitas de Diógenes Laércio? Mas essa discussão culminará, justamen-
te, numa recusa explícita da leitura laerciana que conduz o cético ao
precipício.
Todos os paradoxos que acabamos de mencionar parecem possuir
importantes elementos em comum. Primeiramente, eles se relacionam
tematicamente à discussão de aspectos conceituais do ceticismo e, de
modo mais ou menos direto, à posição filosófica pessoal de Montaigne
em face deles. Além disso, tais paradoxos — sejam ou não dependentes
do confronto com as fontes céticas originais — tendem a se transformar
significativamente ou mesmo a se dissolver quando considerados à luz
20. A citação latina provém de Acad., I, xii: “Para, descobrindo acerca de cada coisa
razões contrárias, ser mais fácil suspender o julgamento por ambos os lados”.
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faço, deve ser duvidar. Pois cabe aos aprendizes investigar e debater
[enquerir et debattre], e ao catedrático resolver…” (II, 3, 350). “Eles”,
os mestres para os quais filosofar é duvidar, são certamente os céticos,
apontados laconicamente. Montaigne declara sua proximidade desses
filósofos ao dizer que possui razões ainda mais fortes de duvidar, por se
ocupar de ninharias e fantasia. Tal atividade é igualmente caracteriza-
da como um modo de “investigar e debater” transposto no nível dos
aprendizes. Contudo, no mesmo passo, há um afastamento implícito
relativamente aos filósofos céticos, pois, uma vez caracterizada como
atividade de aprendizes, e não dos mestres, não corresponde exatamen-
te à dúvida dos “filósofos”, nalguma medida equiparados, segundo a
mesma assimetria, aos “catedráticos”. Mas qual seria a natureza filosó-
fica desse “fantasiar”, igualmente identificado e diferenciado da ativi-
dade dos filósofos que duvidam.
Talvez se possa pensar que esse paradoxo seja desfeito pela seqüên-
cia desta passagem: “[A] O meu catedrático é a vontade divina, que nos
rege sem oposição e tem seu lugar acima dessas vãs e humanas contes-
tações” (ibid.). Não é preciso, porém, retomar aqui as considerações de
Montaigne sobre a nossa impossibilidade de sondar a vontade divina.
Não seria esse desenlace antes um indício dos inconvenientes de exibir
uma identidade cética de índole puramente filosófica, e da conveniên-
cia em ocultá-la por meio de um alter ego filosofante que se subordinas-
se à autoridade da religião? Ainda assim, essa hipótese não explicaria
exatamente por que Montaigne identifica, nessa passagem, sua atitude
dubitativa com a de um “aprendiz” que “investiga”, por oposição aos
“catedráticos” — da filosofia ou da fé.
Um elemento adicional torna essa questão, a nosso ver, mais inte-
ressante. Segundo a cronologia estabelecida por Villey, Montaigne
decidiu batizar sua obra como “Os ensaios de Michel de Montaigne”
às vésperas da publicação da primeira edição, em 1580 — posterior-
mente, portanto, à redação da “Apologia”. Sem pretender aqui aden-
trar na discussão dos comentadores sobre o sentido do termo “ensaio”23,
23. Cf., por exemplo: BLINKENBERG, 1964; NACAS, 1980; e principalmente FRIE-
DRICH, 1968, cap. VII, especialmente 353 ss.
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cética. Ademais, ele se vale da mesma metáfora para aludir diretamente à sua prática
antinômica, em III, 8, 923-924.
26. Em “Contre l’epicurien Colotes” (569D), Plutarco afirma que a “seita” dos aca-
dêmicos se teria constituído por meio de uma investigação (essay) de todas as coisas, no
intuito de engendrar uma ampla dúvida destinada a uma “legítima e justa” disputa
contra os estóicos.
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[privauté] que é preciso ter para poder julgá-los, e aqueles a que minha
condição me põe em contato mais comumente, na sua maior parte,
pessoas com pouco cuidado da cultura da alma, aos quais se propõe
apenas a honra como toda a sua beatitude, e como toda perfeição
apenas a coragem… (II, 17, 658A)28.
Essa passagem é uma dentre muitas nas quais uma mesma nota
ressoa ao fundo das comparações que Montaigne traça entre seu mun-
do e a Antiguidade: a inferioridade do primeiro em relação à segunda29.
Todavia, por mais que se possa aqui reconhecer uma aura de idealida-
de projetada nos antigos, aquilo que torna, a seu ver, os homens antigos
dignos de consideração, até de um ponto de vista filosófico, é justa-
mente o mesmo que, faltando na atividade intelectual de seus contem-
porâneos, os impede de apreciar adequadamente essa grandeza. Inte-
ressam-lhe os antigos não por sua antiguidade, mas como exemplos de
um exercício superior e particularmente livre das faculdades intelec-
tuais, por oposição a um culto servil à memória e à autoridade daqueles
que teriam encontrado verdades cujo valor — relativo ou absoluto —
não pode mais ser adequadamente reconhecido pelas práticas intelec-
tuais em que normalmente os textos dos antigos são retomados. Tal
nota é particularmente audível quando Montaigne examina as formas
institucionais adquiridas pela filosofia contemporânea, formas que ini-
bem a ação do juízo e comprometem o próprio sentido em que ela
pode, de modo geral, ser compreendida.
[A] Não é pouco que as coisas estejam assim em nosso século, que a
filosofia seja, mesmo para as pessoas de entendimento, um nome vão
e fantástico, sem nenhum uso e nenhum valor, [C] por opinião e de
fato [par effect]. [A] Eu creio que esses ergotismos, que se apodera-
ram de seus caminhos, são a causa… (I, 26, 160).
O problema diz respeito às condições gerais da atividade filosófica:
o sentido que ganha o próprio termo “filosofia” é aqui, mais uma vez,
233
30. STEVENS (1965) opina que o leque semântico do termo “philosophie” nos en-
saios é mais amplo do que o usual nos autores do século XVI (v. p. 147), mas equivoca-
se na leitura que faz da definição tripartite dos gêneros de filosofia, desconhecendo sua
proveniência cética (v. p. 148; tal desconhecimento é aliás corrente entre os comenta-
dores que se põem a analisar a noção montaigniana de filosofia, como COMTE-SPON-
VILLE, 1993, p. 30). Segundo Stevens, Montaigne não emprega o termo “philosophie”
designando a “pesquisa da pedra filosofal”, que ele identifica em Pasquier e é relativa-
mente comum na época (v. p. 153; v. tb., p. ex., GREIMAS, KEANE, 1992, p. 474). Pare-
ce-nos difícil, porém, negar que as críticas de Montaigne à alquimia se enquadrem no
mesmo modelo geral da crítica ao dogmatismo.
31. Em HP I, 18, Sexto responde à questão “O cético lida com a Física?” explicando
que o cético não a aborda com o intuito dogmático de fazer asserções, mas sim ao opor
proposições com o objetivo de obter a quietude. “É com o mesmo espírito que nós
abordamos as partes lógicas e éticas do que eles chamam de filosofia” (itálicos nossos).
Ver também HP II, 11.
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37. Em I, 25, depois de examinar uma primeira explicação sobre a causa pela qual
os homens com mais saberes podem se tornar menos sábios (segundo a qual a ação do
espírito demasiado atarefado acaba se curvando pelo peso, explicação que ele imedia-
tamente rejeita; v. 134A), Montaigne avalia, detendo-se especialmente em seus con-
temporâneos, que isso depende da “má forma” como eles se ligam à ciência e da forma
de instrução vigente, voltada apenas “a nos mobiliar a cabeça de science”, sem se ocupar
da virtude e do juízo.
38. III, 8, 923B.
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39. Embora, em meio a uma crítica às formas que assume a educação de seu tempo,
Montaigne afirme que “nós não trabalhamos senão para abastecer a memória, e deixa-
mos o entendimento e a consciência vazios…” (I, 25, 136AC), ele também explica,
noutra parte, que a memória é uma ferramenta fundamental para o bom uso do julga-
mento (II, 17, 649A). Trata-se de uma concepção de filosofia identificada com a plena
capacidade de exercitar as diversas faculdades espirituais humanas, em seu conjunto.
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de modo mais claro suas causas, que certamente não se limitam aqui
aos perigos da plena exposição do juízo pessoal. Assim como o parado-
xo permite dissimular as dimensões inconvenientes das opiniões a ser
apresentadas, ele também exige do leitor que empregue por si mesmo
(para enfrentar os enigmas e decifrações que propõe) a capacidade de
julgar que, segundo essa concepção de filosofia, é a própria condição
de compreensão de seu sentido. Trata-se aqui de um aspecto peculiar
da estruturação argumentativa dos Ensaios, para o qual chamaram a
atenção alguns dos comentadores que os aproximaram da literatura do
paradoxo (mesmo que o tenham feito sem explorar suficientemente a
articulação entre essa estratégia argumentativa e o posicionamento fi-
losófico cético do qual ela se converte em instrumento)40. Podemos
agora ver que o paradoxo serve a Montaigne como instrumento para
conduzir o leitor à “boa” atividade filosófica, tal como a preconiza e
busca pôr em prática. Tal como vimos em outros exemplos, percebe-
mos que também aqui o paradoxo tende a se dissolver no momento em
que compreendemos que o engajamento cético sugerido por tais pre-
conizações não corresponde ao sentido usual, não-qualificado ou “dog-
mático”, do engajamento filosófico. Além das “teses” que o poderão
descrever, esse engajamento consiste prioritariamente na liberdade com
que o filósofo se dispõe a empregar seu juízo externamente a toda e
qualquer doutrina: no ensaio do juízo que Montaigne preconiza a seu
aluno ideal, e ao qual indiretamente convida seus leitores reais, à falta
de poderem reconhecer qual seria exatamente o seu juízo sobre a ques-
240
41. Naturalmente isso não diz respeito a todas as opiniões que Montaigne emite em
seu texto. Todavia, diversos capítulos se apresentam como um conjunto de julgamen-
tos acerca de determinado problema sem que se possa, ao que nos parece, obter uma
resposta conclusiva acerca da posição exata do autor sobre o problema. Limitemo-nos
aqui a dois exemplos. O leitor poderia consultar o capítulo I, 31 (“Dos canibais”), em
busca de determinar exatamente o critério por ele aceito para a confiabilidade dos
relatos sobre os costumes diversos (se os testemunhos dos mais capazes tendem a ser
maquiados por sua intenção de conferir verossimilhança ao que contam, v. 205A, e, ao
mesmo tempo, os menos capazes, se permitem melhor que observemos onde emen-
dam a estória, nem sempre compreendem bem o que relatam, v. 214A); ou o capítulo
III, 12, em busca de saber exatamente qual seria a posição do autor sobre o que signi-
fica exatamente agir “conforme a natureza” (tal como ali interpreta o modo de proce-
der socrático), ante as diversas dimensões que se podem contrapor (o conhecimento, a
arte, o costume, a dissimulação) às várias interpretações que esse próprio termo adquire
ao longo do capítulo. Para uma análise da estrutura paradoxal desse capítulo, ver
O’BRIEN, 1989.
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43. Segundo Rodis LEWIS (1999), é com Montaigne que Descartes aprende a se
opor às pretensões filosóficas da lógica silogística e da retórica (v. p. 82-83).
44. Ver Méditations, II, ed. Beyssade, p. 77; Abregé de six méditations suivantes, p. 49
da mesma edição. Importa igualmente notar que Descartes é sensível ao fato de que o
espírito deve ser exercitado a buscar aquilo que já foi encontrado por outros para apren-
der a reconhecer filosoficamente as evidências filosóficas, tal como afirma no comen-
tário da décima das Regras para a direção do espírito.
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45. Cf. Sêneca, Epist. I, xx, 132 et. ss.; Ensaios, I, 26, 158-159A, 168AC; I, 25, 137A.
46. Ver ibid., I, xxix, 163; xxxiii, 183; e, especialmente, I, xxi, 115: “… deve-se filo-
sofar como se age no senado: quando não partilho de um ponto do senador, peço a
divisão e só voto no que aprovo”.
47. Para uma análise mais detalhada desse ponto, ver EVA, 1995. Retomaremos esse
tema no capítulo VII.
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ilustrar o modo como, segundo Cícero, a postura cética acadêmica se associaria à ad-
missão “eclética” de opiniões filosóficas diversas como probabile. Infelizmente, Glucker
não indica a fonte de sua metáfora.
55. Ver I, 25, 136C.
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56. A despeito de suas muitas críticas e ironias para com os médicos (em sua maior
parte tomadas de Agrippa), Montaigne oferece-nos a seguinte analogia entre os médicos
e sua maneira de ver: “[A] A medicina se forma por exemplos e experiências, [assim]
também se faz minha opinião…” (II, 37, 764). LA CHARITÉ observa ainda que um dos
sentidos freqüentes do termo “jugement” nos autores do século XVI é o de designar uma
qualidade pessoal, por meio de uma demonstração de gosto ou de astúcia em apreciar
o valor de algo que ainda não está devidamente demonstrado (ibid., p. 5-6).
57. Ver, por exemplo, a comparação entre Sêneca e Plutarco, em III, 12, 1040BC,
segundo o modo como agem sobre o juízo: o primeiro, mais vivo, o arrebata; o segundo,
mais assentado e informativo, o ganha. Não parece estar em jogo, nessa confrontação,
saber qual das opiniões desses filósofos corresponde à verdade. Ademais — e mesmo
que Montaigne confessadamente o prefira, a essa altura —, o modo como o estilo de
Plutarco é remetido à ação do entendimento não obsta o interesse pela forma senecana
de julgar e por seu efeito em nosso juízo.
58. Ver I, 26, 152 AC: Montaigne compara o emprego do julgamento à prática de
um instrumento musical, que não se pode bem tocar sem exercício. Para tanto, segundo
Montaigne, qualquer objeto pode ser adequado: a malícia de um pajem, a tolice de um
250
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60. Em III, 13, 1070B, por exemplo, por meio de considerações análogas, Montaig-
ne contrapõe a inteira dessemelhança dos eventos e das formas ao fato de que nenhum
difere inteiramente do outro, para concluir que também a relação que se extrai da
experiência é sempre falha e imperfeita. Extrair daí uma tese ontológica é apoiar-se
numa afirmação parcial, que força o leitor a assumir pressupostos filosóficos que não são
seus: tal afirmação é, ao contrário, parte de uma reflexão epistemológica destinada a
estender o âmbito do reconhecimento da incapacidade de obtenção da verdade.
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64. Embora atribua a opinião a Epicarmo, Montaigne parece apresentá-la para ates-
tar concordância pessoal. Montaigne reserva à palavra “conscience” sobretudo o sentido
moral (tema central, aliás, do ensaio II, 5), mas “jugement” também surge igualmente
com essa conotação (v. LA CHARITÉ, 1968, p. 24).
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67. Ver III, 8, 923BC ss., especialmente 928C: “E todos os dias eu me divirto em ler
os autores, sem cuidar de sua ciência, mas buscando sua feição [façon], e não sua matéria
[subject]…”.
68. Caberia frisar que o próprio esforço de conhecer o alcance de suas “faculdades
naturais”, por sua explicitação verbal nos ensaios, poderia ser visto como um aspecto
desse exercício: o reconhecimento dos limites do juízo, como vimos, são, segundo Mon-
taigne, demonstração importante da ação do próprio juízo.
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69. Ver, além de I, 50, 302-303, seu comentário sobre a maneira como considera o
julgamento de Tácito em seus relatos históricos, em III, 8, 940-941BC.
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70. Ver ainda os textos nos quais Montaigne contrapõe sua postura “investigativa” e
irresoluta ao estilo professoral e taxativo dos eruditos livrescos, como, entre outros, II,
17, 657; I, 26, 145-146A; III, 8, 943BC.
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coerente, ele deve impor a todo custo sua filosofia aos demais; ele pode
reconhecer, de modo tolerante, a diversidade de juízos, sem abrir mão
de seu próprio juízo sobre a maior aceitabilidade de suas posições filo-
sóficas, tendo como horizonte a idéia de uma terapia da vaidade e da
precipitação dogmática, a ser buscada segundo sua viabilidade prática
e, sobretudo, seu interesse pessoal em submeter permanentemente a
teste seu próprio juízo sobre sua filosofia. Mas não nos parece que o
cético possa abrir mão, sem incorrer numa incoerência, de aceitar sua
conclusão como potencialmente válida para todo e qualquer filósofo
que se situar de modo igualmente judicioso ante os elementos que ele
considera segundo sua experiência. Em contrapartida, todo interlocu-
tor que recusa sua cogência de um modo consistente e argumentado
sempre propõe potencialmente, ao menos em princípio, um problema
para o cético que concerne ao seu próprio engajamento filosófico (ain-
da que, em virtude da natureza desse problema, ele possa imediata-
mente recusá-lo ou ignorá-lo, equivocadamente ou não). A discordância
desperta, como diz Montaigne, não sua cólera, mas sua atenção (III, 8,
924B). Se o ceticismo não se pretende um irracionalismo, ao descon-
fiar da razão como instrumento humano de conhecimento da verdade,
o empreendimento filosófico cético parece pressupor e projetar um
espaço comum de racionalidade na avaliação da busca humana da
verdade, no centro da qual se sustenta sua própria perspectiva. Nos
termos conceituais da filosofia montaigniana, esse espaço parece ser
aquele que corresponde à ação adequada do juízo: embora tal conse-
qüência não seja rigorosamente demonstrável (no sentido em que um
filósofo dogmático pretende demonstrar a verdade), cabe esperar que o
juízo suficientemente desenvolvido e atilado siga os passos dos demais
filósofos que o precederam, e reconheça que sua incapacidade de esco-
lher a verdade entre os sistemas filosóficos conflitantes é uma demons-
tração notável de sua ação.
A ordem de razões pelas quais o cético descreve biograficamente os
passos de seu engajamento filosófico parece ser, como vimos, um as-
pecto fundamental para a boa compreensão da posição pirrônica. Mas
tampouco esse aspecto é secundário nos Ensaios, seja na medida em
que a obra pretende ser um registro fiel das idéias do autor em sua
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cético lhe aparece como mais persuasiva do que a posição dos filósofos
dogmáticos, tal aparecer não pode corresponder a uma avaliação da
persuasividade intrínseca dessa posição; ele se limita a ser a expressão
subjetiva e provisória de um páthos, eventualmente revogável por uma
argumentação virtualmente irrefutável em favor de alguma posição fi-
losófica dogmática (possibilidade essa que o cético, por força da lógica
interna de sua posição, não pode plenamente abolir). A adoção de uma
postura suspensiva se assenta, como dissemos, numa decisão filosófica
pessoal, imanente à avaliação individual do que a experiência filosófica
oferece. Como compreender esse engajamento, porém, em vista das
considerações aqui esboçadas? Parece-nos que tal decisão pessoal de
assentir à persuasividade das motivações biograficamente alegadas pelo
cético para suspender o juízo equivale a conferir, ainda que momenta-
neamente, à experiência singular descrita pelo “primeiro cético” uma
espécie de universalização. Dizendo de outro modo: o filósofo que adere
ao ceticismo reconhece, por meio dessa adesão, em sua experiência
intelectual pessoal, considerada em seu sentido estritamente individual
e singular, uma espécie de imagem, nalguma medida, da mesma des-
crição autobiográfica individual que o cético previamente oferece de
sua experiência filosófica. Quando isso ocorre, a descrição prévia, legada
pelo cético que o antecede, parece ser investida de um sentido argu-
mentativo pelo qual transcende, mesmo que momentaneamente, sua
particularidade, adquirindo um valor exemplar.
Isso permitiria explicar em que medida o ceticismo, ao se constituir
como uma doutrina filosófica, não transgride a autolimitação subjetiva
que impõe à validade de seu discurso: a despeito de cada cético natu-
ralmente presumir, quando adere à sua perspectiva filosófica, que ela
corresponda (ainda que de modo provisório) àquela que ele julga ser a
mais razoável em face dos elementos de que dispõe para julgar a ques-
tão, o ato filosófico pelo qual ele universaliza a experiência de outro
filósofo é plenamente individual. É a ele próprio que cabem inteira-
mente o poder e a responsabilidade filosófica de assentir à exemplari-
dade e reconhecer um papel argumentativo à descrição autobiográfica
do cético que lhe antecede. Assim, o fato de o cético almejar universa-
lidade para o seu diagnóstico filosófico não aboliria a subjetividade da
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74. Ver, por exemplo, Recherche de la Verité par la Lumière Naturelle, in Oeuvres,
p. 669.
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Para Montaigne, a ação do juízo acaba por exibir, como vimos, um viés
único e individual, que espelha, ao mesmo tempo, a distância em que
cada qual se encontra do conhecimento de uma verdade que, se fosse
conhecida como tal, deveria poder se apresentar exatamente no mes-
mo sentido a cada juízo individual. Mais ainda, o fato de que não haja
proposição humana, segundo Montaigne, que não possa se mostrar
controvertida o levará a concluir que “[A] nosso juízo natural não apreen-
de claramente o que apreende … [e] que eu obtive [tal opinião] por
um meio diverso do que o seria um poder natural de julgar presente
em mim e em todos os homens…” (562)76.
É bastante curioso que Descartes não apenas pretenda, com sua
prova, oferecer uma verdade acerca da própria subjetividade humana
que se oporia diretamente, no nível mesmo dos conceitos empregados,
às conclusões dessa argumentação, mas que também empregue para
tanto um expediente retórico análogo àquele de que o próprio ceticis-
mo (segundo a análise que realizamos aqui) se vale para se compreen-
der como uma filosofia coerente. Não pretendemos aqui avaliar a res-
posta cartesiana, mas apenas mostrar que se pode reconhecer, nessa
reflexão, um solo comum, de origens céticas, determinantes para sua
tematização posterior ao longo da filosofia moderna. Se é possível apro-
ximar Descartes e Montaigne sob o viés de suas diferentes reações a
essa ambigüidade cética, entre a singularidade da experiência intelec-
tual subjetiva e a generalidade das concepções filosóficas que formula,
abre-se aqui, ao menos, uma oportunidade inusitada de observar as
raízes históricas daquilo que Merleau-Ponty, à sua moda, descreveu
como a ambigüidade intrínseca da concepção de sujeito moderna, que,
em suas diversas formulações, “não é coisa nem substância, mas extre-
midade do particular e do universal”77. Se Descartes se vale da genera-
lização da experiência singular para pretender limitar a dúvida meto-
dológica, Montaigne, inversamente, ao assumir a dúvida cética, recu-
76. Dedicamos o item 6.2.1 do próximo capítulo ao exame detido desse argumento
montaigniano.
77. Ver MERLEAU-PONTY, 1980, Em toda e nenhuma parte, “5. A descoberta da
subjetividade”, especialmente p. 232.
270
78. Essa tensão parece ser especialmente notável no Discurso do método. Embora o
método seja, de saída, assumido como via para a obtenção de verdades pelo uso adequa-
do da razão, que se situa em cada um de nós como a forma da espécie humana (DM,
primeira parte, p. 2-3), Descartes anuncia que o abordará, em vista da possibilidade do
erro, na forma de um discurso biográfico privado, a ser considerado como uma “fábula”
(ibid., p. 4). Contudo, diversas vezes, adiante, ele aludirá à dimensão meramente pes-
soal com que a empresa de produzir tais verdades é levada a cabo: seja no que tange à
perfeição das obras conduzidas por um só (v. ibid., p. 12-14), seja ainda ao reservar para
si mesmo uma maior capacidade de levar adiante a busca metódica de outras verdades
(v. ibid., p. 69-72).
271
céticas) sem que nelas seu juízo se veja sempre em posição de reconhe-
cer claramente algo que produz de modo particular, a partir de si. Mes-
mo no âmbito de sua experiência, Montaigne reconhece uma perma-
nente “forma dominante” (forme maistresse), oposta à educação e “à
tempestade das paixões que lhe são opostas” e reconhecível por todo
aquele que se escutar devidamente (v. III, 2, 811)79, bem como a pos-
sibilidade de uma generalização da “vida simples e sem brilho” que
seus ensaios retratam, sugerindo que “cada homem porta a forma intei-
ra da condição humana”. Tal afirmação, porém, pela qual Montaigne
parece justificar ao leitor a eventual utilidade do auto-retrato como
objeto de seu livro, é acompanhada por outras que sublinham o aspec-
to oscilante da imagem obtida, bem como o caráter estritamente par-
ticular com que é retratado esse suposto “ser universal” humano:
[B] É um registro de diversos e mutáveis acidentes; e de imaginações
irresolutas e, de vez em quando, contrárias. Seja porque eu mesmo
sou outro, seja porque eu apanho os assuntos noutras circunstâncias e
considerações… Se minha alma pudesse firmar pé, eu não me ensaia-
ria, eu me resolveria: ela está sempre em aprendizagem e posta à pro-
va… [C] Os autores comunicam-se ao povo por alguma marca parti-
cular e estrangeira; eu sou o primeiro que o faço pelo meu ser univer-
sal, como Michel de Montaigne, não como gramático, poeta ou
jurisconsulto. Se o mundo se queixa de que falo demasiado de mim
mesmo, eu me queixo de que ele não pensa apenas em si… (ibid.).
Em suma, os dois filósofos parecem operar de modos diversos com
base na mesma ambigüidade argumentativa entre a natureza estrita-
mente pessoal do discurso e a possibilidade de generalização do que é
dito. Enquanto a “substância pensante” cartesiana se oferece como a
formulação metafísica da forma racional universalmente presente nos
homens, acessível por uma meditação metódica que necessariamente
79. Cf. I, 50, 302, em que Montaigne afirma, numa passagem de evidente inspiração
cética, ser a “ignorância” sua forma mestra. Por mais que seja tentador encontrar nessa
instância uma espécie de núcleo estável da subjetividade em Montaigne, não parece
haver mais elementos que abonem esse passo. Ademais, não se poderia admitir, em vista
do que já examinamos, que tal instância possa ser perfeitamente separável da dimensão
do costume (“l’institution”) à qual se opõe.
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81. Não poderemos aqui dar suficiente atenção a esse importante ponto. Mas note-
mos que, a partir da interpretação ora proposta, seja talvez possível reconhecer uma
inspiração moral cética, nesse sentido preciso, numa afirmação como esta (que, à pri-
meira vista, parece mais uma vez enfatizar a simples exterioridade relativamente às
soluções particulares encontradas por uma filosofia): “[C] Toda a glória que eu preten-
do de minha vida é a de ter vivido tranqüilo: tranqüilo não segundo Metrodoro, ou
Arcésilas, ou Aristipo, mas tranqüilo segundo eu mesmo. Posto que a filosofia não soube
encontrar nenhuma via para a tranqüilidade que seja boa em comum, que cada um a
busque particularmente…” (II, 16, 622C). Também nesse aspecto, o ceticismo mon-
taigniano poderia ser visto como o desenvolvimento da ênfase na individualidade do
sujeito da moral, já presente em Sêneca, no sentido de uma adaptação da moral a cada
indivíduo que a concerne (v., p. ex., III, 2, 807: “[B]… Nós outros, principalmente, que
vivemos uma vida privada que apenas importa para nós, devemos ter estabelecido um
padrão interno pelo qual medir nossas ações e, segundo ele, por vezes nos agradar, por
vezes nos castigar. Eu tenho minhas leis e minha corte para me julgar, e me dirijo a eles
mais do que a outra coisa. Eu restrinjo bem minhas ações a partir de outrem, mas eu só
as estendo a partir de mim mesmo…”). Talvez devamos compreender nesse mesmo
contexto a passagem que citamos no início de nosso trajeto: “[C] Eu não sou filósofo:
os males me assolam segundo o que pesam; e pesam segundo a forma como segundo
a matéria, e por vezes ainda mais…” (III, 9, 950). Talvez Montaigne se refira aqui ao
fato de que, em sua prática filosófica pessoal do ceticismo, não encontra um modo
suficientemente eficiente para se valer da argumentação antinômica a fim de obter a
metriopátheia cética.
82. A esse respeito, ver FAYE, 1999.
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no em questão seja uma novidade histórica em sentido estrito, apesar do sentido particu-
lar que ganha e da intensidade com que se manifesta. Myles Burnyeat, por exemplo,
assinala que, no caso de Aristóteles, a distinção entre filosofia primeira e os demais ramos
do conhecimento não deve ser vista como uma distinção entre gêneros de saber, mas
atende, em vez disso, a uma departamentalização do conhecimento (v. 1984, p. 246).
85. Ver regras III a V (Oeuvres, esp. p. 11, 14). O tema, na verdade, é recorrente e
ganha relevância crescente nas obras posteriores, como o Discurso do método (v. primei-
ra parte).
86. Cf. as introduções de A Treatise of Human Nature e Enquiries concerning Human
Understanding. O que pretendemos sugerir é que, para Hume, a própria atividade fi-
losófica apenas parece fazer sentido se associada à esperança não apenas da produção
de um novo sistema filosófico, mas de uma nova maneira de filosofar que reúna as
virtudes desses dois tipos de filosofia (um deles, grosso modo, preocupado com o homem
como um ser voltado para a ação; outro com os problemas relativos ao conhecimento
racional da verdade). Ver especialmente EHU, p. 16.
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sofia? Outro exemplo claro nos parece ser o oferecido por Kant, na
medida em que a própria idéia de uma crítica das faculdades está dire-
tamente ligada à determinação de uma dimensão própria da atividade
filosófica, pela qual a razão possa livremente desempenhar o papel ao
qual seria naturalmente apta. Isso impõe tanto o discernimento desse
papel em contraposição ao “uso dogmático” da razão (que Kant exami-
na precisando as condições do conhecimento filosófico por oposição
ao conhecimento matemático, ao qual a razão tende, segundo ele, a ser
dogmaticamente assimilada por alguns filósofos)87 como o reconheci-
mento da justeza apenas parcial da postura dos céticos ante os dogmá-
ticos (que ele define como uma mera “censura” às pretensões da razão
de ultrapassar o domínio da experiência), insuficiente para o estabele-
cimento de uma filosofia efetivamente “crítica”, graças à qual, exclusi-
vamente, a razão seria investida da autonomia que lhe cabe para co-
nhecer a priori seus limites88.
Em suma, assistimos na filosofia pós-cartesiana (ou pós-montaig-
niana) o que parece corresponder a uma transformação e radicalização
do conflito das filosofias dogmáticas, que agora abrange não apenas as
diversas pretensões de formular a verdade e explicar o que seja o real,
mas também “a natureza e o escopo da filosofia, o sentido e o alcance
do discurso filosófico e do discurso em geral”89. Mas isso não é também
pôr em questão, de um modo radicalmente novo, o próprio sentido em
que se pode dizer filosofia? Por essa razão, talvez seja insuficiente a
87. Ver o corolário que Kant extrai relativamente à “natureza da filosofia” com base
na diferença entre demonstração matemática e prova discursiva, na Crítica da Razão
pura, III, 482, B763.
88. Ver ibid., III, 495, A757/B785 ss., e especialmente III, 496, A760-761/ B788-789.
Sobre a especificidade do projeto da filosofia crítica, entre outros textos kantianos, ver a
primeira introdução da Crítica do Juízo e o segundo prefácio da Crítica da Razão pura.
89. A formulação é de Oswaldo PORCHAT (1993, p. 219) e se aplica, em seu contex-
to, às nuances que ganham certas posturas dogmáticas no discurso filosófico contempo-
râneo. Diversos discursos filosóficos que se pretendem liberados de uma postura dogmá-
tica não percebem que, nessa medida, a preservam; ainda que abandonem a pretensão
de revelar a realidade das coisas ou professar uma verdade absoluta, não percebem que
permanecem. Porchat considera a hipótese de que tal dogmatismo dissimulado seja em
parte decorrente de uma “infeliz e generalizada ignorância do pirronismo histórico”,
cujas críticas se aplicariam igualmente a essa forma não-confessada de dogmatismo.
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Ceticismo em movimento
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3. Ver FREDE, 1979; 1984. Ao menos em suas linhas mais gerais assim descritas, essa
visão do pirronismo antigo parece-nos próxima daquela que se apresenta na reconstru-
ção pessoal do pirronismo antigo por Oswaldo PORCHAT, na forma de um “neopirronis-
mo” (v., p. ex., 1992).
4. Ver BURNYEAT, 1980. Sua posição é posteriormente aprimorada (v. 1984) em
virtude das críticas à identificação entre “dogma” (como objeto de suspensão) e crença
feita no primeiro artigo. O próprio Burnyeat sintetiza a controvérsia (1984, p. 230-232).
5. BURNYEAT sustenta (v. 1984, p. 230-231) que a dúvida dos antigos pirrônicos é
incompatível com o “insulamento” — isto é, a restrição de um domínio próprio de
validade das questões filosóficas acerca de objetos cuja existência é normalmente admi-
tida. O filósofo, por exemplo, que nega a realidade do tempo não vê nenhuma relação
entre essa discussão e o fato de ter que ser pontual em seus compromissos. Segundo
esse comentador, trata-se de um fenômeno desconhecido dos antigos, historicamente
produzido pelo modo como o ceticismo foi retomado por Descartes e respondido pelos
modernos, que acabaram por confinar a discussão filosófica num registro não-empíri-
co. Kant é, a seu ver, a figura decisiva, por imunizar o realismo empírico da dúvida
cética com seu idealismo transcendental. Sobre isso, ver também STROUD, 1984, cap.
IV, p. 128-169.
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[B] … cada nação tem diversos costumes e usanças que são, não
apenas desconhecidas, mas selvagens e miraculosas para uma outra
nação… Eu digo com freqüência que é pura tolice o que nos faz
correr atrás de exemplos remotos e escolásticos… Pois, se dizemos
que nos falta autoridade para dar fé a nossos próprios testemunhos,
nós o dizemos fora de propósito… De tal modo que, na minha opi-
nião, das coisas mais ordinárias e comuns e conhecidas, se soubermos
encontrar o lume, podem se formar os maiores milagres da natureza
e os mais maravilhosos exemplos, notadamente nas ações humanas…
(III, 13, 1081; itálicos nossos).
Notadamente as ações humanas se deixam apreender sob múlti-
plos vieses, proibindo-nos de identificar nossas impressões relativas com
aquilo que as coisas são. Notadamente, mas não exclusivamente: trata-
se apenas de um caso particular do que se poderia verificar nas demais
“coisas”. Do mesmo modo, o texto anterior é bastante claro quanto ao
escopo legítimo da dúvida, o que se confirma pelo modo como a crí-
tica desenvolvida à autoridade dos princípios é finalmente traduzida
na terminologia da certeza e da evidência: “a impressão de certeza é
um testemunho certo de loucura e de extrema incerteza”. Não se trata,
ao que parece, de reservar nenhuma forma de “certeza” que poderia
ser distinta da mera “impressão de certeza”; Montaigne não convoca os
“fatos” como um critério de conhecimento, por oposição ao modo como
estariam vedados no plano teórico, mesmo que afirme serem eles “pre-
feríveis à razão”.
Noutra passagem dessa mesma discussão sobre a science dogmáti-
ca, Montaigne questiona concepções cosmológicas e geográficas vi-
gentes e se refere à argumentação dos pirrônicos nos seguintes termos:
[A] … e os Pirrônicos não se servem de seus argumentos e de sua
razão senão para arruinar a aparência de experiência, e é uma mara-
vilha [ver] até onde a maleabilidade da nossa razão os acompanhou
nesse desígnio de combater a evidência dos fatos [effects], pois eles
provam [verifient] que não nos movemos, que não falamos, que não
há pesado nem quente, com uma força de argumentação semelhan-
te àquela com que provamos as coisas mais verossimilhantes… (571).
À evidência aparentemente inquestionável dos “fatos”, a argumen-
tação pirrônica se contrapõe para mostrar que a razão não é um instru-
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15. A crítica da “vaidade do saber” se estende, segundo Villey (v. ibid., 438), de 486
a 559, enquanto a crítica à “vaidade da razão” e das demais faculdades cognitivas vai de
559 a 600. Oferecemos um mapa argumentativo mais detalhado, sem divergências sig-
nificativas com a divisão proposta por Villey, em EVA, 2003.
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18. “[C] Uma coisa não pode ser mais ou menos compreendida que outra, posto que
para todas as coisas há uma só definição de compreender…” (561; cf. Acad., II, xli, 128).
Embora essa afirmação possua em seu contexto original um propósito dialético (desti-
nado a criticar a maneira como os estóicos operam com uma única definição de “per-
ceber” em situações que se aplicam tanto à percepção dos fenômenos quanto à inves-
tigação de suas causas), aqui tal citação parece aludir apenas ao modo como nossas
tentativas de demarcar uma região onde seria possível o conhecimento tendem a ser
fadadas ao insucesso, caso examinemos mais a fundo as condições dessa demarcação.
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19. Há pelo menos dois indícios de uma possível mudança na interpretação acerca
desse aspecto do ceticismo acadêmico por parte de Montaigne após 1588. Adicionando
tardiamente uma passagem de Cícero para ilustrar a exposição do critério cético de
ação (que passa, portanto, a ser comentado por passagens oriundas dessas duas orienta-
ções céticas indistintamente), Montaigne afirma que a necessidade de viver obriga o
sábio a admitir coisas “não compreendidas, não percebidas e não consentidas” (505-506;
itálicos nossos). Como o termo consentement é empregado por Montaigne como sinô-
nimo de “assentimento”, talvez não mais se trate, a essa altura, de compreender a ade-
são ao “provável” como uma forma de assentimento a uma inclinação do julgamento.
De modo geral, Montaigne tenderá a interpretá-la, como dissemos no capítulo III, co-
mo um critério puramente prático. A mesma idéia é exposta nesta citação latina dos
Academica, também tardia, que Montaigne justapõe à crítica dos pirrônicos aos acadê-
micos: “Nenhuma diferença há entre as aparências verdadeiras e as falsas que mova a
alma ao assentimento” (562; cf. Acad. II, 28). Qual pode ser o sentido desse acréscimo
se não o de levantar uma suspeita acerca da justeza da interpretação dessa filosofia
proposta pelos pirrônicos, então aceita por Montaigne? Tal passagem parece oposta à
hipótese de que eles teriam deliberadamente conferido algum peso epistêmico ao “pro-
vável”, pressuposta por aquela interpretação. Assim, Montaigne poderia preservar a coe-
rência da crítica, mas discutir sua eventual pertinência interpretativa. De todo modo,
sublinhemos que já em 1580 Montaigne aproxima, duas páginas depois, pirrônicos —
aqueles que duvidam de tudo, mesmo de que “o céu está sobre a nossa cabeça” — de
acadêmicos — aqueles que dizem que nada pode ser compreendido, nem mesmo que
“o céu está sobre a nossa cabeça” — como as “duas opiniões que são…, sem compara-
ção, as mais fortes” entre as diversas sustentadas pelos filósofos (v. 563A).
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21. Diante da impossibilidade de uma datação precisa, VILLEY conjectura que esse
ensaio tenha sido composto posteriormente a 1576 (v. Les Essais, p. 705, 676, 668). Seja
como for, é evidente o interesse pronunciado de Montaigne pelo ceticismo — aí discu-
tido, em particular, a partir das Vidas de Diógenes Laércio.
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22. “[A] Eles [os pirrônicos] deixam por essas coisas [os quatro aspectos do phainóme-
non] suas ações comuns, sem nenhuma opinação ou julgamento. O que faz com que
eu não possa conciliar com esse discurso o que se diz de Pirro…” (505; itálicos nossos).
Villey informa que, nas edições publicadas antes da morte de Montaigne o texto assim
precisava: “… o que Laércio diz da vida de Pirro, e a que Luciano, Aulo Gélio e outros
parecem se inclinar: …”.
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das pela ação no mundo — tal como a dúvida articulada pela Primeira
Meditação cartesiana ou atribuída por Hume ao cético pirrônico).
Essa mesma espécie de exercício reflexivo, com base em conside-
rações hipotéticas, parece se apresentar noutras passagens em que se
discute o mesmo ponto. Quando Montaigne sugere que aos mais sá-
bios, capazes de examinar às ultimas conseqüências o poder com que
a razão pode igualmente sustentar teses opostas, “tudo pareceria desor-
denado ou monstruoso” (v. 526AC), não se trata de admitir que seja
realmente possível pôr em prática tal relativização, mas tampouco se
trata de criticar a extremidade da dúvida pirrônica. Isso nos mostra ser
importante cuidar de não confundir dois aspectos diversos dessa refle-
xão, para não sermos conduzidos à incapacidade de compreender como
eles se conciliam: de uma parte, o juízo de Montaigne sobre a coerên-
cia com que os pirrônicos denunciariam nossa incapacidade extrema
de conhecer; de outra, seu juízo sobre a possibilidade de praticar um
exercício dubitativo que faça plenamente justiça ao reconhecimento
dessa incapacidade. O fato de que o pirronismo, segundo Montaigne,
ofereça o posicionamento filosófico mais coerente acerca de nossa si-
tuação natural no que tange ao conhecimento de verdades não signifi-
ca necessariamente que a dúvida que a ela corresponderia de modo per-
feito deva ser passível de ser posta em prática. Isso parece depender de
um esforço interpretativo independente, e o modo como se responde
a esse problema não tem necessariamente implicações sobre o primei-
ro. Importa distinguir, assim, de uma parte, o fato de que as mais diver-
sas proposições que podem ser oferecidas como conhecimento de algo
(os exemplos oferecidos abarcam enunciados como “a neve é branca”
ou “existe algo”) possam revelar-se ilimitadamente como objeto de
dúvida e, de outra, a possibilidade de praticar integralmente uma dú-
vida que a elas corresponda e que nos permita abandoná-las conjunta-
mente. Noutros termos, Montaigne parece considerar implicitamente
como coisas diversas o problema de saber se são igualmente passíveis
de dúvida as proposições “a neve é branca” e “a oitava esfera celeste se
move” (problema cuja resposta seria, a seu ver, afirmativa) e o proble-
ma de saber como isso pode se acomodar em nossa “imaginação” ou
mesmo em nossa prática. O primeiro parece dizer respeito à dubitabi-
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pensamento de que a neve é água congelada e a água é negra; portanto, a neve é negra
(v. HP I, 33, cf. HP II, 244).
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peito às razões que tal ceticismo encontra para formular uma dúvida,
ao menos potencialmente, tão extrema como a que propõe, e para tan-
to examinaremos os argumentos destinados a exibir a precariedade do
juízo, na “Apologia”. De todo modo, a despeito da validade do modelo
interpretativo que passamos a esboçar, importa ressaltar que o proble-
ma parece-nos justificar o esforço em vista de seu interesse histórico.
Estamos aqui diante da possibilidade de observar como Montaigne re-
constrói uma certa forma de ceticismo “extremo”, cuja prática ele não
entende ser incompatível com nossa plena inserção no mundo natural,
segundo a dimensão das possibilidades humanas. Um ceticismo, por-
tanto, que, embora se aproxime da dúvida cartesiana, eleita pela poste-
ridade como marco fundador de uma forma “moderna” e radical de
ceticismo26, faz isso num sentido diverso daquele pelo qual Descartes
conciliará tal dúvida com nossa inserção natural no mundo.
26. Sobre isso, ver BURNYEAT, 1984, p. 247; WILLIAMS, 1986, p. 118.
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27. Cf. 587-588. Ainda que não se constitua como alvo central do ataque cético de
Montaigne, como ocorrerá no caso de autores como Sanchez, o modo como ele igual-
mente alveja a epistemologia aristotélica (pelo recurso à mediação problemática das
nossas faculdades sensíveis) faz com que não possamos concordar com T. Gontier, se-
gundo quem a separação entre sensível e inteligível abriria caminho, em Montaigne, a
um “conhecimento do sensível” (v. GONTIER, 1999, p. 106).
28. Acompanhamos a divisão proposta por Villey, em seu sentido mais amplo. Ver II,
12, 438; 560-604. A discussão sobre a fraqueza do julgamento humano vai de 560 a 576.
29. Grosso modo, esse trajeto poderia ser dividido em três etapas (que nem sempre
corresponderão às etapas de nossa análise a seguir): (1) Análise de nossa incapacidade
de atingir a verdade, que corresponde, em linhas gerais, ao percurso descrito no pará-
grafo anterior, que se encerra com as ponderações sobre a necessidade de nos conduzir-
mos com moderação diante das impressões de verdade (560-564). (2) Análise de inter-
ferência das paixões em nosso juízo, sejam paixões de natureza corporal (564-566),
sejam paixões produzidas pela própria alma (567-569). (3) Constatação sobre a impos-
sibilidade de obtenção de conhecimento atual da natureza pela razão, posto que a pró-
pria natureza determina nossas crenças de um modo que nos escapa (569-576).
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30. O fato de serem precedidos por uma discussão em que Montaigne se situa pes-
soalmente no fio histórico de um debate sobre a possibilidade de encontrar a verdade
parece-nos apoiar a presunção de que se trata aqui de desenvolvimentos argumentativos
assumidamente originais. De todo modo, isso não é essencial para o nosso exame.
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diversas vezes lhe ocorrera no passado32. Para limitar essa dúvida, por
sua vez, Descartes oferecerá, precisamente, um exemplar de uma pro-
posição supostamente capaz de se revelar indubitável ante o exercício
de uma dúvida levada às últimas conseqüências.
Ademais, o conflito das percepções acerca de um mesmo objeto,
segundo Montaigne, mostra que a alma deles se apropria sem garantia
de que preserva a sua “essência”, e a natureza controvertível de todas as
proposições, que não existe “um poder natural de julgar presente em
mim e em todos os homens”. Tal “poder natural de julgar”, faculdade
da alma potencialmente responsável pela eventual apreensão da verda-
de, caso esta esteja a nosso alcance, é comparada a presas que precisa-
riam, para tanto, ser possuidoras de força que lhes permitisse colher os
objetos percebidos “sem alteração”. Mas a inexistência de uma evidên-
cia que se imponha universalmente leva à conclusão não apenas de
que o juízo não apreende a verdade, mas de que sua própria identidade
como faculdade responsável pelo conhecimento se encontra ameaça-
da. Equivocarmo-nos quanto àquilo que julgamos ser objetivamente
verdadeiro é equivocarmo-nos igualmente, ao menos nesse caso parti-
cular, quanto àquilo que supomos ser nossa faculdade de conhecer as
coisas. A suposta “faculdade” ou capacidade de conhecer, ao não cum-
prir adequadamente as exigências que ela própria reconheceria, não é,
portanto, essa presumida capacidade. É a própria faculdade de conhe-
cer — o entendimento ou juízo — que não se encontra, assim, plena-
mente presente, em sentido absoluto, para todos os homens, como um
poder naturalmente dado, em vista da diversidade irredutível com que
ela (ou aquilo que almejaria ser tal faculdade) se manifesta nos ho-
mens. É o que parece confirmar um texto do ensaio “Da presunção”,
no qual o modo com que cada um se julga portador de bom senso (a
despeito da controvérsia universal de opiniões) surge antes como razão
de desconfiança tanto em relação às verdades que ele produz como
relativamente à posse da faculdade que seria designada por essa expres-
são33. Muito mais célebre tornou-se, contudo, a introdução do Discurso
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34. Ver DM, p. 1-3. Segundo Descartes, o bom senso, desde que devidamente com-
preendido como o que ele denomina a razão, pode propiciar um critério seguro para
a superação da controvérsia opinativa entre os homens desde que devidamente condu-
zido pelo método (do qual, portanto, o conhecimento adequado da própria razão se
torna solidário). Assim, se os “ensaios do método” que a esse discurso se seguirão po-
deriam ser invocados como uma espécie de argumentação indireta em favor dessa tese
sobre o papel da razão em reconhecer a verdade, eles igualmente teriam a função
tácita de exibir, uma vez aceitos pelos leitores de Descartes, sua igual distribuição entre
os homens como condição de compreensão das verdades que por seu intermédio se
formulariam.
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35. Ver, por exemplo, Meditação Segunda, ed. Beyssade, p. 76-77, AT VII, 27.
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36. Quanto a isso, ver, de modo geral, o ensaio “Da arte de conversar” (III, 8), e em
particular 922B ss.
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40. Cf. HP I, 100 ss. Em 562A, Montaigne ilustra a divergência dos julgamentos
humanos por meio do exemplo sextiano da diferença de percepção de sabor nos estados
de saúde e de doença, como faz Sexto em HP I, 101.
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42. Acad., II, 88-89. A crítica dos estóicos ao argumento acadêmico, segundo a qual
ele nos impossibilitaria de distinguir a vigília do sonho, encontra-se formulada em Acad.
II, 51-53. A resposta de Cícero a essa crítica, por sua vez, da qual essa citação faz parte,
em Acad. II, 88-90.
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das coisas (em oposição às distorções cognitivas que podemos mais cla-
ramente detectar nas situações de doença). O que precisa ser restabe-
lecido é o juízo de senso comum sobre a diferença entre a saúde e a
doença, que tal argumento pretende ter revelado ser grosseiro — e não
a crença elementar de que estamos acordados, sem a qual se compro-
meteria, por certo, a própria possibilidade da vida prática.
Essa oposição entre os argumentos se reflete no nível da análise de
sua estrutura lógica. Mais precisamente, podemos observar que o argu-
mento cartesiano opera uma sutil inversão, porém decisiva, na ordem
argumentativa com que Montaigne extrai uma conclusão dubitativa
de suas premissas. No caso do argumento cartesiano, a razão que temos
para desconfiar de nosso conhecimento decorre da hipótese de estar-
mos sonhando: se estamos sonhando, não conhecemos o mundo exte-
rior. Antes de aceitarmos essa conclusão, a que seríamos conduzidos
por evidências da vida comum que nada teriam de problemáticas, ne-
nhum problema cognitivo é detectável; eles são inteiramente derivados
da admissão da conclusão sobre a impossibilidade de reconhecermos
em que circunstância estamos. Não é exatamente o mesmo que nos
propõe em consideração o argumento montaigniano, pois a razão para
suspeitarmos de nosso juízo não decorre da possibilidade de estarmos
sempre doentes. Ao contrário, são as razões que encontramos para as-
semelhar a situação da saúde à situação de doença que geram, de
modo autônomo, o problema cético — e a conclusão rigorosa desse
problema (isto é, de que não podemos, seja na saúde, seja na doença,
nos assegurar de que nosso juízo nos oferece uma imagem adequada
do real) é que poderão ser traduzidas na fórmula “nunca estamos sem
doença”. Como vimos, essa fórmula pode se prestar a mal-entendidos:
ela não significa que nós não dispomos de critério para determinar se
estamos doentes ou não no sentido literal desse termo — ou, pelo menos,
no sentido em que permanece vigente essa oposição quando nos reco-
nhecemos doentes ou saudáveis (tal como reconhecemos que estamos
despertos e não dormindo), mesmo que pudéssemos estar, num caso
ou noutro, enganados a esse respeito. Ela significa, sim, que bem obser-
vada a relação entre a saúde e a doença, além dessa avaliação prática (a
que sempre nos prendemos, em certa medida), teríamos razão para
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admitir que, diante das razões que temos para desconfiar do juízo,
poderíamos, em certo sentido, admitir que “nunca estamos sem doen-
ça”. Montaigne não pretente alegar que somos incapazes agora de dis-
cernir a saúde da doença segundo o uso habitual dessas palavras. Como
vimos, ele principia seu argumento reconhecendo que, na doença,
percebemos que o juízo é comprometido. Em seguida, porém, ele não
irá sustentar que estamos também doentes quando não pensamos es-
tar, mas sim que, também quando não estamos propriamente doentes
podemos considerar a presença de interferências diversas, ainda que
com igual efeito problemático — sejam as paixões da própria alma
(além das paixões do corpo, às quais ele implicitamente associa a doen-
ça), sejam certos desarranjos normais e naturais das peças diversas de
que nos compomos, sejam mesmo “paixões imperceptíveis” cuja natu-
reza não podemos devidamente reconhecer.
Assim, se tanto Descartes como Montaigne assumem, de saída, uma
avaliação de senso comum sobre a oposição de circunstâncias para em
seguida subvertê-la, isso é feito de modo muito diferente nos dois casos.
Descartes preserva, até o final da argumentação, o significado epistêmi-
co da distinção de senso comum entre “vigília” e “sonho”, da qual partiu.
Mas seu argumento, identificando-as, cria uma espécie de curto-circui-
to nas pretensões cognitivas do senso comum, ainda vigentes, que des-
trói a distinção mais elementar que seríamos capazes de estabelecer
entre essas circunstâncias (para restabelecê-la filosoficamente, seis
meditações mais tarde, como veremos adiante) e faz do senso comum
refém de sua incapacidade de comprovar que se encontra situado na
posição que permanece aceitando como condição básica de conheci-
mento. Montaigne, por sua vez, preserva a distinção de senso comum,
em certo sentido, além do que o faz o argumento cartesiano: a conclu-
são de seu argumento não nos impede de permanecer aceitando que
por vezes nos aparece estar doentes, em outras que estamos saudáveis
(no mesmo nível, talvez, em que Descartes, quando interrompe sua
Meditação, retoma suas certezas práticas). Contudo, o próprio argu-
mento cético montaigniano pretende, diversamente do que ocorre em
Descartes, criticar a interpretação que o senso comum confere a essa
oposição, assimilando-a a um esquema perceptivo simplista e fantasio-
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44. Parece-nos relevante, por exemplo, que Descartes, na formulação do seu argu-
mento, afirme que “o que ocorre no sonho não lhe parece tão claro nem tão distinto
quanto tudo isso” (que seus sentidos lhe oferecem quanto aos objetos que o cercam na
situação de vigília). Ele se vale de seus próprios termos técnicos, que apenas com a
evolução argumentativa poderão ser investidos de sentido pleno, para designar a apa-
rência de critério oferecida pela evidência de vigília, e que o argumento do sonho acaba
justamente por dissolver.
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47. Cf. EVA, 2001, para uma exposição mais detalhada das razões que, em nosso
entender, apóiam esse julgamento. Apoiamo-nos nesse trabalho para a justificativa su-
cinta que se segue daqui.
48. Efetivamente, o passo é explicitamente dado no parágrafo seguinte àquele em
que se toma o argumento do sonho por formulado. Se a conclusão do parágrafo quinto
346
da Meditação Primeira afirma apenas que “minha estupefação é tanta que sou quase
capaz de me persuadir que durmo…” (itálico nosso), o parágrafo sexto se inicia com
esta afirmação: “Suponhamos, portanto, que sonhamos…” (ed. Beyssade, p. 58-59, AT
VII, 19). Nossa sugestão é, assim, a de que a inferência significada por esse “portanto”
compreende a instanciação do princípio da dúvida hiperbólica — tratar o duvidoso
como falso — como premissa.
49. Ver, por exemplo, a referência ao sonho no Discurso do método (cf. DM, Quarta
Parte, p. 32), descrito como uma “decisão de fingir” que todas as coisas que lhe advieram
ao espírito seriam como as ilusões dos sonhos.
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50. Para uma explanação mais ampla acerca do emprego cético de argumentações
dialéticas na “Apologia”, em especial na crítica à “vaidade do homem”, ver EVA, 1994a,
e 2003, especialmente cap. 1.
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las, em vista de sua forma natural de agir (forma essa que não oferece,
nessa medida, nenhuma garantia de objetividade). O ceticismo de
Montaigne, nessa medida, parece nos conduzir a um corolário singu-
lar: não apenas ele se ocupa de observar os limites cognitivos de nosso
entendimento, mas acaba por assinalar que tais limites são sempre, em
alguma medida, para nós invisíveis através dele mesmo, e por causa do
seu modo natural de conhecer — o que não impede que ele nos possa
indicar a existência de tais limites de um modo suficiente para compro-
meter nossa pretensão de conhecimento. No mesmo sentido, Montaig-
ne nos convida a observar, noutra passagem, o “instinto fortuito” que
insensivelmente agiria de modo permanente sobre nosso juízo: caso
nos detivamos, com especial atenção, em inspecionar nossa experiên-
cia, poderemos não apenas senti-lo continuamente imantado por fato-
res “tão importantes” como o favoritismo aos amigos, a beleza ou a
vingança, mas também por uma “sombra de vaidade qualquer” que nos
leva a preferir uma a outra numa alternativa de coisas equivalentes do
ponto de vista da razão (v. 565). Em conformidade com o que observa-
mos ao examinar a discussão de Montaigne em “Como nosso espírito
se enreda a si mesmo” (II, 14)51, trata-se aqui de aludir a um “instinto
fortuito” (que lá ele recusara para a explicação do mesmo fenômeno)
como parte de um conjunto de causas que nos movem a julgar “sem a
licença da razão”. O que importa não é apenas o fato de serem justas
as causas pelas quais se julga, mas sobretudo saber se elas podem ser
reconhecíveis como causas (a beleza, a vingança etc.), uma vez que,
embora de menor monta, elas são igualmente problemáticas em face
da pretensão de julgar de modo objetivo e isento, uma vez que fazem
igualmente a balança pender. A capacidade do juízo humano revela-se
finalmente relativa à sua capacidade de considerar esse conjunto de
fatores potencialmente indeterminados e inabarcáveis: um juiz incom-
petente talvez seja incapaz de reconhecer as inclinações em favor dos
parentes e dos amigos que interferem em seu juízo como problemáti-
cas, que outros (a despeito de qual seja o veredicto) poderão ao menos
detectar; um olhar mais penetrante, porém, poderia ainda distinguir,
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52. Ver sobre esse “fenômeno” natural, por exemplo, I, 31, 205A, ou as interessantes
análises de III, 11, 1027BC ss. sobre como as narrativas fantásticas vão naturalmente se
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constituindo ao passar de mão em mão, acalentadas pelo amor que os homens têm de
se tornar persuasivos, com base nessa observação cética. Examinaremos essa discussão
no capítulo seguinte.
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***
É tempo de sintetizar, nalguns traços principais, a imagem natura-
lizada do juízo humano projetada por essa argumentação. A despeito
de ser identificado à eventual capacidade humana de reconhecer a
verdade — mesmo que negativamente, correspondendo à instância pela
qual é possível recuar para observar a plasticidade contraditória exibida
pela razão —, o juízo revela-se igualmente inapto a esse propósito. No
mesmo passo em que a razão se revela uma faca de dois gumes, pela
qual se pode argumentar in utramque partem, o juízo (identificado ao
entendimento) se apresenta, ao ser distinguido da razão, como um órgão
destinado à observação da verdade e ao assentimento, instância pela
qual individualmente colhemos as crenças que nos parecem pertinen-
tes em face do que nos é oferecido pela razão. Contudo, a observação
naturalizada do modo como humanamente age o juízo, como a razão,
também nos mostra dele uma imagem bastante diversa daquela que
presumíamos ter. A despeito da semelhança geral que o juízo dos diver-
sos homens parece possuir, ele é apenas, em cada um, a faculdade
singular e individual de se acercar da verdade, tal como se projeta em
sua diversidade, que testemunha da incapacidade geral do homem de
efetivamente obtê-la; ele é portador de uma oscilação permanente entre
as diversas opiniões que se apresentam; nunca está, ademais, inteira-
mente livre dos sonhos e da ingerência das paixões, as quais, quando se
apresentam de modo especialmente pronunciado, ele confessa com-
prometerem sua capacidade de conhecer. Seus próprios produtos pos-
suem uma natureza similar à dos demais objetos naturais que ele tende
a desconhecer mediante a imagem que faz de seu próprio poder cog-
nitivo. Ademais, em conformidade com o exame acerca de sua capaci-
dade de desenvolver-se ou de embotar, vista no capítulo anterior, ele
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pode tanto se deixar arrastar por esquemas cognitivos ilusórios que ofe-
recem um quadro para sua ação quanto se aprofundar no exame mais
cuidadoso de sua própria experiência, a fim de desvelar uma imagem
de suas limitações, que não pode ser senão sempre limitada. Tal diag-
nóstico autoriza a conclusão de que toda e qualquer imagem de verda-
de produzida por tal instrumento está ipso facto posta sob suspeita;
tudo o que é objeto de nossa faculdade de conhecer é duvidoso: “nosso
juízo natural não apreende claramente o que apreende”. Isso porque a
tendência permanente de nosso juízo a se mascarar e a se tomar como
possuidor de um poder diverso decorre de sua forma natural de agir:
embora seja um juízo singular, toma-se por universal; embora seja os-
cilante, toma-se, a cada vez, por definitivo; embora nunca se dissipem
as trevas dos sonhos inteiramente, inventa para si uma situação ideal na
qual pensa estar conhecendo a realidade; embora possa compreender
que causas externas nele intervêm permanentemente, toma-se sempre
por representante do “bom senso”. É em virtude desse segundo aspecto
que cabe afirmar que o juízo porta uma dupla fraqueza: ele é não in-
capaz apenas de reconhecer uma verdade que seria compatível com as
exigências que ele mesmo admite (e o pode perceber, desde que foca-
lize melhor aquela que pensa ter encontrado), mas também de reco-
nhecer adequadamente sua fraqueza e seus limites, sendo permanen-
temente imantado por alguma imagem da verdade que acaba por ocul-
tá-los. Diríamos agora que a particular atenção a esse aspecto natural
parece ser uma razão das estratégias retóricas que, como vimos, Mon-
taigne imprime a seus argumentos céticos.
Eis o diagnóstico cético que Montaigne nos oferece da faculdade
de que naturalmente disporíamos para conhecer a verdade e que não
resulta numa preconização a que abandonemos seu uso. É por seu
intermédio que assentimos às crenças e podemos eventualmente apri-
morá-las, aprimorando nossa capacidade de pesá-las; é por tal exercício
que ele manifesta, como dissemos, sua diversidade singular, que, em-
bora represente um grau de afastamento da verdade objetivamente
inalcançável, cabe melhor conhecer, diante do modo como tendemos
a mascará-la; é por seu intermédio, afinal, que podemos desenvolver
um olhar cético para aquilo que mascara nossa experiência, desemba-
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54. I, 31, 205A. Ver também I, 37, 230C; II, 17, 634A; III, 9, 980B. Isso nos parece
confirmar (cf. nota 27 deste capítulo) que não faria sentido considerar, segundo Mon-
taigne, uma forma humana de conhecimento que ultrapassasse a esfera da abrangência
do juízo ou entendimento, tal como o considera: o que está em jogo é, numa palavra,
a forma pela qual conhecemos, e pensamos poder descrever adequadamente as coisas
em geral ao empregar a linguagem.
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55. Ver 2.2, em que esse problema é abordado relativamente ao sentido das supostas
teses fideístas formuladas por Montaigne.
56. Embora Montaigne se refira aqui imediatamente, e com ironia, ao problema da
interpretação das Escrituras, parece-nos que as análises anteriores confirmam que ele
estende além desse âmbito a mesma crítica cética que Erasmo assim dirige ao modo
como os “teólogos” esticam o texto sagrado como uma “pele”, do modo como lhes
convém (v. Elogio da Loucura, lxiii-lxiv).
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57. Cf. Les Essais, vol. III, p. 69; Quod Nihil Scitur (QNS), p. 5, 178; 8, 182 ss.
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mento pudesse, como vimos, ser praticada por um curto instante, Mon-
taigne reconhece que seria impossível, caso fosse desejável, pôr em
prática tal suspensão de modo constante. Simplesmente, nosso juízo
não cessa de naturalmente produzir, por força de sua situação no mundo,
impressões acerca do que é verdadeiro ou falso (que são sempre, em
princípio, num maior ou menor grau, objeto potencial de uma crítica
cética). E a própria constatação da fraqueza do juízo não é obtida se-
não pelo juízo. Ora, não pretendemos suprimir aquilo que somos, se-
gundo o que involuntariamente se manifesta em nossa natureza; é
preciso, ao contrário, levar mais longe nossa constatação do que somos,
conferindo a nossas faculdades cognitivas um sentido autocrítico e auto-
reflexivo que lhes permita compreender melhor sua natureza, seja para
apreender o modo como necessariamente se orientam pela busca da
verdade, seja para confessar sua incapacidade de reconhecê-la. Com-
preende-se assim por que não são poucas as passagens em que esse
cético Montaigne insiste na importância de buscar a verdade (sem pre-
tender, ele mesmo, que seu juízo deixe de estar continuamente movi-
do na direção de seu reconhecimento) e nos males que, em seu enten-
der, decorrem da deturpação dessa busca, como nesta passagem do
ensaio “Do desmentir”:
[A] O primeiro traço da corrupção dos costumes e o banimento da
verdade: pois, como dizia Píndaro, o ser verdadeiro é o princípio de
uma grande virtude… Nossa verdade de agora é, não o que é, mas o
que se persuade a outrem: como nós chamamos de moeda não ape-
nas aquela que é legal, mas também a falsa assim como a circulan-
te… Nossa inteligência conduzindo-se unicamente pela via da pala-
vra, aquele que a falsifica trai a sociedade pública. É o único utensí-
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60. Note-se porém que, nesse contexto moral, a verdade não é oposta a falsidade,
mas à mentira: trata-se especialmente de condenar a traição ao propósito de dizer a
verdade, e não a eventual incapacidade de dizê-la em virtude de limitações gerais do
entendimento humano. Ver, também, III, 13, 1065B; II, 17, 647-648; II, 5, 885; III, 8,
924B, III, 2, 805B.
61. Para a distinção entre o reconhecimento da fraqueza cognitiva do juízo e o seu
uso “regrado”, ver ainda II, 10, 410A.
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63. Ver GREIMAS, KEANE, 1992, p. 36; os autores encontram igualmente um exem-
plo em Montaigne, em que o termo arrest é empregado como sinônimo de “limite”.
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64. Em I, 26, 147, Montaigne assinala que desenvolve seu exercício do juízo “indi-
ferentemente”, a partir de tudo com o que se depara sua fantasia, freqüentemente para
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nos parece irrefutável, seja uma garantia de que conhecemos uma ver-
dade capaz de excluir a possibilidade de engano, tal solução parece
conduzir a um círculo (efetivamente explicitado nas Quartas Obje-
ções, por Arnaud, no que tange à prova cartesiana da existência de Deus,
e fartamente discutido pelos comentadores). É preciso, de modo mais
geral, provar que a clareza do entendimento humano exclui a possibi-
lidade de que ela se comprometa em seus resultados em vista de fatores
que ultrapassam o seu alcance, mas a prova oferecida só pode ser evi-
dente para o entendimento humano, cuja clareza está de modo geral
embargada pela constatação dos problemas decorrentes de sua finitude
cognitiva. Como nos assegurar de que essa possibilidade inexiste, ainda
nesse caso privilegiado, se sua eventual existência ser-nos-ia radical-
mente invisível em virtude da natureza de nosso entendimento?
Ademais, ainda que o cogito pretenda oferecer uma verdade a ser
compreendida no mesmo sentido por todo e qualquer espírito que per-
faça a mesma reflexão, a história das interpretações não mostra que
essa evidência aparentemente inquestionável pôde se tornar fonte de
disputas acirradas e intermináveis entre os comentadores dessa filosofia
da clareza e da distinção? Pode-se alegar que, a despeito dessa disputa,
existe a boa compreensão da prova, tal como a pensou o próprio filó-
sofo. De todo modo, a disputa permanece em si mesma significativa se
passamos, de uma filosofia voltada para a observação de como a certeza
imediata do entendimento poderia instituir uma verdade, para outra
voltada para o modo como aquilo que nos aparece instantaneamente
como evidente deixa de assim nos aparecer se repomos essa evidência
num percurso ao longo do qual o movimento paradoxal realizado pelo
espírito humano em busca da verdade pode exibir suas fraquezas. Tal-
vez se possa dizer que o recorte dos momentos isolados em que o en-
tendimento conhece a certeza de sua existência surgiria, sob um olhar
cético-montaigniano, como um expediente pelo qual se constrói uma
imagem fantasiosa da natureza humana, recusando, afinal, precisamente
aquilo que seria essencial para o aprofundamento de sua compreensão.
Supor que uma determinada proposição (“eu sou, eu existo”) entende-
se exatamente no mesmo sentido por meio do ato de julgar em que ela
se formula seria talvez, para Montaigne, contentar-se com uma apreen-
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69. Ver BARNES, 1982, p. 19: “Quanta epokhé precisa alguém para sua ataraxía ou
saúde mental?… Claramente, isso depende da doença…”. Consideraremos no capítulo
seguinte alguns aspectos de como a dimensão terapêutica do ceticismo se reflete nos
Ensaios.
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70. Ver item 5.1 — “O ceticismo como gênero filosófico”. Procuramos ali sustentar
que Montaigne lê o ceticismo como um gênero filosófico compatível, ao menos em
princípio, com um número indefinido de interpretações acerca de como conciliar coe-
rentemente, pela prática efetiva, a epokhé e a inserção na vida comum.
71. Concluindo o ensaio “Dos coxos” (III, 11), Montaigne escreve: “[B] Ogni medaglia
a suo riverso. Eis por que Clitômaco dizia antigamente que Carnéades tinha superado
os trabalhos de Hércules, por ter arrancado o consentimento dos homens, isto é, a
opinião e a temeridade de julgar. Esta fantasia de Carnéades, tão vigorosa, nasceu, na
minha opinião, do despudor daqueles que professam saber, e da sua arrogância desme-
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dida… Assim ocorreu na escola da filosofia: o orgulho daqueles que atribuíam ao espí-
rito humano a capacidade de todas as coisas causou, noutros, por despeito e emulação,
a de que ele não é capaz de nada. Uns têm a ignorância na mesma extremidade que
outros têm o saber [science], a fim de que não se possa negar que o homem seja sempre
imoderado, e que ele não tem parada [arrest] senão diante da necessidade e da impos-
sibilidade de ir além” (III, 11, 1035). Como bem observou TOURNON (1986, p. 80), não
se trata aqui de uma recusa tardia do pirronismo, como supuseram Villey, Armangaud
e Limbrick, uma vez que a condenação é dirigida não a um pirrônico, mas a Carnéades
(interpretado aqui segundo a visão sextiana da filosofia acadêmica, isto é, defendendo
a tese de que a verdade é incognoscível). Mas a suposta crítica a Carnéades não é
desprovida de ambigüidade, pois a “imoderação” desse filósofo justifica-se pela desme-
dida da opinião contrária (à qual se faz corresponder, aliás, a dimensão dialética de seu
ceticismo). Porém, o modo como o comentário de Montaigne exibe sua tentativa de
equacionar a pretensão humana de encontrar verdades e a compreensão da fraqueza da
razão pode significar, paradoxalmente, que é ela que se pretende afirmar como intrin-
secamente provisória, resultante de uma impossibilidade de ir além.
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73. Ver, por exemplo, III, 9, 982-983 B; texto examinado no item 4.1 — “Retórica do
paradoxo”.
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78. Ver também as análises sobre a noção de natureza e o modo como se confunde
com o costume, no item final do capítulo III (3.4 — “A opacidade dos fenômenos”).
79. Ver Discurso do método (DM), Terceira parte, p. 22 ss.
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Assim, nós bem nos acostumamos a dizer com razão que os eventos
e resultados dependem, notadamente na guerra, por sua maior parte
da fortuna, à qual não quer se acomodar e sujeitar a nosso discurso
e [nossa] prudência… Mas, a bem considerar, parece que nossos
conselhos e deliberações dependem dela igualmente, e que a fortu-
na engaja em seu tumulto e [sua] incerteza igualmente nossos racio-
cínios… (I, 47, 286).
Cabe, assim, novamente concluir que aquilo que mais superficial-
mente pareceria uma crítica é na verdade um meio de precisar indire-
tamente o estatuto com que os “fatos” e a natureza se impõem a nós,
diante de nossa precariedade cognitiva. O ceticismo nos convida assim
a abandonar a pretensão de encontrar uma plena justificativa racional
das possibilidades de ação que se apresentam, e nos convida à conside-
ração, também aqui, de nossa finitude cognitiva e de nossa tendência
a nos extraviar em nossas miragens racionais. “Vale bem mais para nós
deixarmo-nos conduzir sem inquirir, segundo a ordem do mundo…”
— diz Montaigne, ao concluir a apresentação do critério cético para a
ação82. Nos textos mais tardios, ainda, o acesso à “natureza” como cri-
tério de ação é mediado pelo reconhecimento de nossa incapacidade
de abarcá-la: “[B] Deixemos um pouco a natureza agir: ela entende
melhor de seus assuntos do que nós…” (III, 13, 1088)83. Trata-se de
considerar, em suma, como o próprio desenrolar dos fatos (que sempre
ultrapassam nossa capacidade de abarcá-los) pode servir como uma
espécie de lastro capaz de trazer nosso espírito de volta às coisas. Em-
bora essa mesma idéia se apresente já nos ensaios mais antigos, pode-
mos ver como o posicionamento cético de Montaigne acaba por lhe
dar forma e estatuto filosófico próprio — seja no que se refere à ênfase
com que a própria filosofia será vista como exercício concreto do juízo,
seja no sentido mais amplo em que nossa própria ação é tida como
capaz de produzir os parâmetros pelos quais há de se nortear nossa
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sutil e agradável e poderem (ao menos em certa medida) resistir às objeções. O contexto
dessa passagem mostra que essas expressões — imaginário, fantástico e falso — tendem
a ganhar um sentido intercambiável. Trata-se, aliás, de um procedimento estilístico
recorrente nos Ensaios: a repetição de termos de sentido muito próximo ou análogo
buscando a ênfase (para um exemplo ao acaso, v. 522C; cf. AULOTTE, 1979, p. 129).
Para uma identificação similar entre “dogmas” (no sentido filosófico) e “fantasias”, ver
II, 10, 416.
2. Examinamos essa passagem no capítulo III, item 3.1 — “Um traiçoeiro mestre” —
mostrando como, embora a razão possa se identificar à diversidade das fantasias produ-
zidas pela imaginação humana ao sustentar essa diversidade de comportamentos, é o
costume que intercede forjando uma aparência de verdade naqueles que efetivamente
aceitamos, cabendo à reflexão cética relativizar esse aporte dogmático.
3. Ver, entre outros exemplos, que podem ser facilmente recolhidos em todos os
períodos de composição dos Ensaios: I, 21, 104A; I, 22, 107; I, 23, 121A; I, 26, 147; I,
28, 184A; I, 42, 265A; II, 10, 416A; III, 8, 923B; III, 12, 1049.
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5. Sobre seu emprego numa acepção semelhante ao que hoje denominamos “ima-
ginação”, ver, por exemplo, II, 29, 711B, bem como, de modo geral, o capítulo 21 do
livro I, “Da força da imaginação”. Em II, 37, 761, em que “fantasie” designa figurada-
mente os interesses próprios do corpo, por contraposição à alma, ela surge como sinô-
nimo de “capricho”. Sobre como a fantasia designa o caráter imprevisível e caprichoso
pelo qual a alma humana formula aleatoriamente concepções e imagens, ou mesmo
interfere sobre as sensações, ver MACFARLANE, 1968, p. 119.
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6. Cf. nota introdutória de VILLEY, Les Essais, p. 97. Ver também as notas introdutórias
dos capítulos I, 2 (p. 11); I, 14 (p. 50); I, 19 (p. 78); I, 20 (p. 81).
7. Lembremos que o prefácio auto-retratista, no qual Montaigne afirma ser ele mesmo
a matéria de seu livro, foi redigido tardiamente, em março de 1580. Cf. Les Essais, Au
Lecteur, p. 3; ver a nota de Pierre Villey.
8. Segundo Villey, essa declaração de motivações não deve ser levada a sério: produ-
to de uma visão retrospectiva, ela atenderia à necessidade de se desculpar diante das
damas pela condição de escritor por ele assumida, pouco condizente com sua nobreza
(VILLEY, 1992, p. 29). De nossa parte, não vemos, nesse caso particular, que relação
mais precisa poderia haver entre esses pontos, nem por que isso seria uma razão para
esvaziar o conteúdo do que é dito. A eventualidade de estarmos diante de uma explica-
ção retrospectiva, ademais, não nos parece particularmente significativa se levamos em
407
conta que o projeto filosófico do qual ela é parte, como veremos, antecede em muito a
própria época designada pela redação desse texto.
9. Certas passagens desse capítulo convidam a considerar os Ensaios, de modo geral,
como uma maneira de preservar alguma forma de comunicação com a memória do
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car esse dado pelo modo como completa o quadro dessa primeira con-
cepção de “ensaio filosófico”, voltada ao controle da imaginação e ao
projeto de recuperar um acordo com a sua natureza (não-melancóli-
ca), em conformidade com as preconizações estóicas de Sêneca10.
De fato, é todo um projeto filosófico que passa a ser concebido
anteriormente à redação dos Ensaios, no âmbito dos interesses que ele
compartilha com La Boétie pela filosofia estóica. Ele se deixa clara-
mente entrever nas considerações de Montaigne sobre a firmeza da
atitude de seu amigo ao enfrentar a agonia da morte, como revela uma
eloqüente carta escrita, na ocasião (agosto de 1563), a seu pai. Assim
narra ele esta confissão que dirigiu ao amigo, em resposta aos discursos
testamentários que ele ainda proferia em meio a sua agonia, à véspera
de sua morte:
… eu lhe disse que havia ruborizado de vergonha por ter deixado de
ouvir o que ele, que estava tomado pelo mal, tinha tido a coragem de
me dizer; que até então eu pensara que Deus não nos houvera dado
tão grande poder sobre os acidentes humanos e acreditava com difi-
culdade naquilo que lia nos historiadores, mas que, tendo tido disso
uma tal prova, eu louvaria a Deus pelo fato de que isso tenha se dado
com uma pessoa por quem eu fui tão estimado e que me era tão cara,
e que isso me serviria de exemplo quando fosse a minha vez de de-
sempenhar o mesmo papel… Ele me interrompeu, para me pedir a
assim proceder, e mostrar, pelas ações [par effet], que os discursos
que nós houvéramos mantido juntos durante a nossa saúde, nós não
os portássemos apenas na boca, mas gravados bem antes no coração
e na alma, para pô-los em execução nas primeiras ocasiões que se
oferecessem, e a isso acrescentando que era a verdadeira prática de
nossos estudos e da filosofia… (Lettres, p. 38).
Os primeiros ensaios filosóficos, redigidos por Montaigne a partir
de 1572, foram construídos, basicamente, com base em citações estóicas,
409
11. Para a interpretação clássica sobre o período estóico, ver STROWSKI, 1931, p. 93
ss. A interpretação é retomada por VILLEY, 1933, t. II, p. 52 ss., passim, que se refere a
tais ensaios, para designar seu esquema de composição, como mosaicos de sententiae.
Para uma leitura divergente do significado filosófico desses ensaios, ver FRIEDRICH,
1968, p. 71-78 (cujos argumentos, apoiados sobretudo em aspectos formais e filosofica-
mente discutíveis, parecem-nos todavia insuficientes para negar a existência de tal pe-
ríodo estóico).
12. Ainda que Montaigne não faça nenhuma alusão nominal a Sêneca (como não
o fará igualmente a Sexto), o título mesmo desse capítulo I, 20 (e o mesmo valeria para
I, 19: “Que não cabe julgar de nossa felicidade senão depois da morte”), se inspira
diretamente em passagens das Epistolae ad Lucilium (cf., I, xxvi, xxxvii).
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13. Sobre o risco de que a alma perca sua autonomia racional diante do poder das
paixões e opiniões, ver também III, cxvi. O tema estóico do controle da vontade ressoa
igualmente em ensaios de Montaigne compostos na mesma época: “[A] Nós não pode-
mos nos manter para além de nossas forças e de nossos meios. Por essa causa, porque
os efeitos e execuções não estão de modo algum em nosso poder, e não há nada que
esteja sabidamente sob o nosso poder do que a vontade: nela se fundam necessariamen-
te e se estabelecem as regras do dever do homem…” (I, 7, 30). Para uma exposição
geral do estoicismo (e particularmente da teoria das paixões) ver especilamente BRÉHIER,
1978, vol. III.
14. Ver Epist., I, xvi, 9; I, xxxix, 5-6.
15. Não encontramos o emprego do termo phantasía nas Epistolae. A única passa-
gem, salvo engano, em que Sêneca se refere estritamente ao caráter imaginativo ou
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412
mente, “Da constância” (I, 12, esp. 45A), em que a mesma idéia é apresentada como
meio de fazer face à surpresa dos males e inconvenientes. Cf., a esse respeito, Epist.,
I, xvi, III, cvii, em que Sêneca igualmente trata da “paciência” e submissão ao destino
estóica.
18. Ver Epist., I, xvi, 3.
19. Sobre a razão como qualidade essencial que define a superioridade do homem,
na medida em que conduz à vida conforme à natureza, cf. Epist., I, xli. Ainda sobre a
ideal de conformação à natureza: I, v, 4; xvi, 8 (“As exigências da natureza são exíguas,
as da opinião, ilimitadas…”). Ver também I, xxxvii.
413
20. Cf. Epist., I, xxiv; nessa epístola, entre muitas outras (cf. nota seguinte), Sêneca
tematiza a necessidade de enfrentar racionalmente o medo da morte.
21. Cf. Epist., I, xxx, 18: “Pense sempre na morte para poder nunca temê-la”; ver
também iv, xvii, xxiv, xxvi, xxxvi; sobre a recusa da forma pela qual o vulgo enfrenta o
problema, ver I, 20, 84-85; Sêneca tematiza a necessidade de afastar-se das opiniões do
vulgo, por exemplo, em Epist., I, xxv, xxxi.
22. Montaigne o afirma explicitamente, por exemplo, em I, 20, 91-92, 95A (cf. Epist.,
I, xxx, xix). Há um conjunto mais amplo de textos no mesmo sentido mapeados por
VILLEY em Les Essais, p. 1232.
414
23. Contourner provém do latim tornare, literalmente “trabalhar com o torno”, “ar-
redondar” (cf. DUBOIS, 1994, p. 416). GREIMAS e KEANE (1979) usam o exemplo de
Montaigne para traduzir o termo, nessa ocorrência, por “contornável”, “recurvável”,
“dobrável” (p. 142), mas oferecem outras possibilidades, entre elas “transformar” (p.
141). Sobre como as expressões francesas de Montaigne conservam significações lati-
nas, ver SCREECH, 1989.
415
24.Ver, por exemplo, Epist., I, iv, v, xvi, xxiii, xxvii; sobre a concepção estóica de
sabedoria como aperfeiçoamento da mente, ver III, cxvii, 16 ss.
25. Ver I, xxx, 17; I, lxiii; I, xvii, 12; I, xviii, 15. Por oposição às perturbações que a
alma causa a si mesma, ela é também a verdadeira fonte de sua felicidade: Epist., I, lv,
7. Ver também, de modo geral, I, xxiii, esp. 6.
26. Nas Epístolas, a tematização da “solidão” pode ser igualmente considerada se-
gundo uma dupla perspectiva. De uma parte, ela pode representar um inconveniente
— por exemplo, em face da necessidade natural do homem de estabelecer amizades (I,
ix), ou no sentido em que o insensato pode ser uma companhia inconveniente para si
mesmo, embora o contato com o vulgo seja nocivo para a busca da sabedoria (I, xxv),
ou ainda na crítica à inutilidade das viagens (I, xxviii). De outra, ela designa o sentido
da autonomia do sábio estóico, que busca retirar sua alma da massa comum (v. I, xii:
sobre as eventuais vantagens da velhice para a prática da filosofia; I, xiv, sobre o recolhi-
mento do sábio estóico; I, vii, sobre o distanciamento das opiniões do vulgo; I, x, xix, xv,
lvi, xxxi, sobre a autonomia do sábio na obtenção de sua felicidade). Não apenas os
temas isolados são retomados em I, 39 (v. esp. I, 39, 238-242; I, 20, 91), mas uma
tematização análoga da solidão — isto é, segundo o sentido em que ela pode ser dese-
jável ou proveitosa — constitui o eixo central desse capítulo.
27. I, 39, 240; itálico nosso; cf. Epist., I, xviii.
416
veículo das perturbações (como vimos, esse termo pode desde então
igualmente significar “opinião” ou “representação”), mas também como
instrumento da dizimação dos males que ela mesma gera. Montaigne
afirma se valer de um expediente similar àquele das pessoas que evitam
as crises de que costumam ser acometidas simplesmente por saber que
o remédio está à mão:
[A] Basta-me, sob o favor da fortuna, preparar-me ao seu desfavor, e
representar-me, estando à vontade comigo mesmo, o mal futuro, o
tanto que a imaginação pode alcançá-lo: do mesmo modo como nos
acostumamos às justas e aos torneios e contrafazemos a guerra em
plena paz… (I, 39, 243).
O tema da preparação contra os imprevistos do acaso provém do
estoicismo28, bem como o reconhecimento de que é à razão, funda-
mentalmente, que cabe essa tarefa (faculdade que Montaigne clara-
mente opõe à fantasia, nas passagens de inspiração estóica)29. Porém,
ele outorga-lhe, ao mesmo tempo, um papel terapêutico coadjuvante,
por assim dizer, e subordinado ao poder da razão. Mais exatamente,
Montaigne busca imaginar-se na posição do vulgo — isto é, de um
mendigo que bate à sua porta e enfrenta seu infortúnio exclusivamente
pela força do hábito — para meditar, em seguida, sobre a impossibili-
dade de que o poder da razão seja inferior ao do costume, e se conven-
cer, por fim, a não temer “o que um menor do que ele suporta com tal
paciência” (v. ibid., 243A). Eis aqui um bom exemplo de como Mon-
taigne emprega sua razão para fazer com que suas fantasias “se enver-
gonhem de si mesmas”: situar-se imaginariamente numa situação ir-
real converte-se num meio de meditar sobre os limites da “necessidade
natural” (ibid.) e se contrapor à perturbação causada pelo medo da
morte que sempre o rondou (v. I, 20, 87A).
Esse exercício que Montaigne desenvolve consigo mesmo indica
que ele reconhece a imaginação como instância portadora de um po-
417
der próprio e de certa autonomia, pela qual ela não apenas se subtrai
a um domínio imediato da razão, mas demanda uma estratégia própria
para ser domesticada, como sugeria já a metáfora do cavalo em dispa-
rada. Tudo se passa como se ela possuísse um modo de ser peculiar,
que precisasse ser levado em conta para que as diretrizes racionais
estóicas pudessem ser implementadas de modo proveitoso contra o seu
desregramento30. Ocasionalmente, trata-se de abrandar as rédeas da ima-
ginação e deixá-la seguir seu curso, mas ela deve, todavia, permanecer
escoltada por um elemento dela diverso, que a dirija e sirva de referên-
cia, que permita à alma voltar-se sobre si mesma e caminhar no sentido
de sua própria transformação.
Mas como tal operação terapêutica é levada a cabo? Se o ensaio é,
como diz Montaigne, o registro dos “monstros fantásticos”, seu núcleo
filosófico se constitui do mosaico de sententiae da sabedoria estóica por
ele compiladas. A própria atividade de constante releitura, que se torna
constitutiva da obra, indica que o texto dos ensaios se constituiu origi-
nalmente, ao menos em parte, como uma espécie de breviário filosó-
fico: nele se oferecem lado a lado as máximas estóicas (sobre as quais
ele medita, antes de inscrever, nas vigas de sua biblioteca, os lemas
céticos que tomarão seu lugar) e os registros de sua imaginação ante o
que a perturba (o medo da morte, do poder da imaginação e das pai-
xões, do acaso com que os eventos se tornam imponderáveis, especial-
mente nos tempos de guerra em que tal experiência se situa). Em certa
medida, pode-se dizer que o ensaio é, por ora, o esforço de empreender
essa mediação. E, se apenas posteriormente o livro assume como fim
próprio o projeto de empreender um auto-retrato, cabe dizer que, no
texto desses ensaios estóicos, se projetam, a um só tempo, duas imagens
diversas: a do autor que se reconhece nas fantasias fora de controle, que
30. É possível que haja aqui vestígios de outras leituras da mesma época, como o De
Occulta Philosophia, de Agrippa (que, segundo Villey, é fonte de várias passagens de I, 21
e I, 23), especialmente no que se refere ao modo como este enfatiza o poder da imagina-
ção, a fim de aproximá-lo ao poder da razão. Ele o faz, contudo, no bojo de uma teoria
neoplatônica da alma tripartite — dividida em mens, ratio e eidolon — percorrida por
uma mesma luz proveniente de Deus, no processo de conhecimento, em direção aos
corpos, que Montaigne deixa inteiramente à parte; op. cit., cap. xliii, p. 362-363.
418
registra para delas “se envergonhar” (diante das quais poderá agir racio-
nalmente, buscando implantar em sua alma as diretrizes inexistentes),
e, no horizonte, a de seu alter ego, que frui a tranqüilidade da alma,
pintado em tintas estóicas pelas quais se poderia vislumbrar a conten-
ção da imaginação pela razão. Noutros termos, se a escrita dos ensaios,
por ora, é o registro pelo qual Montaigne dá rédeas livres à sua imagi-
nação, o retrato é aqui assumido como atividade de uma alma em busca
de transformação e superação desse regime provisório e, em certa me-
dida, pré-filosófico, no qual tal tarefa ganha sentido. Nesse regime vi-
gem a inconstância humana e o desregramento da imaginação, mas
isso demarca igualmente a distância em que o autor se reconhece rela-
tivamente ao império da razão (que, factível ou não como almejado, é
de todo modo projetado idealmente, como um ponto de fuga dessa
auto-observação). Como vimos, “ensaiar” é, em sua origem, empreen-
der um exercício, fazer uma lição, apenas tentar pôr em prática a filo-
sofia, sem saber ao certo se ela obterá sucesso: a perspectiva de Mon-
taigne diante do estoicismo é a de um “ensaio” nesse sentido, isto é,
uma tentativa de pôr em ação a filosofia. Com esse fim, ele retrata suas
fantasias, segundo sua manifestação particular e pessoal, para tentar
lhes conferir um ponto de convergência, que estanque seu curso des-
regrado e as enquadre, por assim dizer, numa moldura racional. No
capítulo “Da solidão” a expressão essayer é empregada, precisamente,
para designar sua tentativa de se situar, imaginariamente, diante dos
objetos de sua perturbação, para desenvolver a capacidade de enfrentá-
la: especialmente, por meio de uma ação do entendimento contra o
poder do costume: “[A] Eu vejo a que limites vai a necessidade natural;
e considerando o pobre mendigo à minha porta, freqüentemente mais
alegre e sadio do que eu, eu me ponho em seu lugar, e ensaio de calçar
minha alma pelo seu viés…” (I, 39, 243; itálico nosso)31.
Compreende-se também em que medida o ensaiar não poderia aqui
ainda constituir uma identidade filosófica estável: ele remonta ao fracas-
31. Ver também I, 19, 80A, numa alusão ainda mais óbvia ao estoicismo, em que
Montaigne afirma que o último dia da vida é aquele no qual se julgam todas as ações
e o fruto dos estudos, com o intuito de saber se estes se reduzem a palavras ou partem
do coração.
419
420
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35. Em II, 8, 385, depois de afirmar que sua atividade de escrever é oriunda do
humor melancólico produzido pela tristeza, ele informa que se tomou como tema, achan-
do-se desprovido de outro. “[A] É … um desígnio pioneiro [farouche] e extravagante…”
(II, 8, 385). Há razão, nessa medida, em observar que já esses primeiros capítulos, com-
postos antes de 1574, não são inteiramente desprovidos de elementos “pessoais”, tal
como propõem GENZ (1962) e LA CHARITÉ (1971), o que permitiria recusar ou, pelo
menos, relativizar o diagnóstico de Villey sobre a natureza impessoal desses capítulos.
422
36. Ver Epist., I, xi, 1, 7 (“Tudo aquilo que nos é assinalado pelo nosso nascimento
e pela nossa têmpera corporal [temperatura corporalis] permanecerá conosco, a despei-
to de quanto tempo ou esforço a alma despender para se dominar a si mesma…”); ver
ainda as cartas xxv, xxix, xxxix.
37. Ver Epist., I, xvi, 2-3.
423
produz, acerca tanto dos falsos motivos dessas perturbações como das
verdades que elucidam a possibilidade mesma de sua superação. Se
assim é, há ocasião de suspeitar que a compreensão atual dos preceitos
que orientam essa atividade não seja ainda plenamente satisfatória. Eis
por que, ao lado dos ensaios até aqui considerados, encontramos outros,
aparentemente contemporâneos (1572-1574), cuja temática é claramen-
te epistemológica. São, por exemplo, capítulos como estes, eloqüente-
mente denominados “Nossas afecções se deixam ir para além de nós
mesmos” (I, 3) ou “Como a alma descarrega suas paixões sobre objetos
falsos quando os verdadeiros lhe faltam” (I, 4). A despeito do tom solene
com que Montaigne assume as argumentações senecanas como fio
condutor de seus ensaios estóicos, é preciso levar em conta a hesitação
que ressoa em questões como estas que, a essa altura, ele discute: deve-
mos aceitar que a alma, em seu contato com as coisas, experimenta
apenas aquilo que ela própria projeta nelas? Em que medida será a
alma inteiramente capaz de agir sobre si mesma (em particular, sobre
sua fantasia) de um modo satisfatório em vista de suas perturbações?
[A] Os homens (diz uma antiga sentença grega) são atormentados
pelas opiniões que têm das coisas, não pelas próprias coisas. Haveria
uma grande conquista para o alívio de nossa miserável condição
humana se fosse possível estabelecer essa proposição como verdadei-
ra, sempre e plenamente. Pois, se os males não adentram em nós
senão por nosso juízo, parece que estaria em nosso poder desprezá-los
ou transformá-los [contourner] num bem. Se as coisas se oferecem à
nossa mercê, por que não as aproveitamos, ou não as acomodamos a
nosso favor? Se o que chamamos mal e tormento não é nem mal nem
tormento em si, mas é apenas a nossa fantasia que lhe dá essa quali-
dade, está em nós [o poder] de mudá-la… (I, 14, 50; itálicos nossos).
Reparemos como juízo e fantasia foram articulados nessa passa-
gem, que introduz o capítulo “Que os bens e os males dependem em
grande parte da opinião que deles temos”: embora o termo “juízo”, à
primeira vista, designe, sobretudo, o modo pelo qual avaliamos e opi-
namos acerca das coisas e o termo “fantasia” aponte antes o elemento
subjetivo que configura nossas apreensões, tais instâncias são afinal
equiparadas e identificadas como aquilo pelo que “os males adentram
424
38. Talvez essa avaliação hipotética do poder da alma pudesse ser aproximada a um
conhecido aspecto da doutrina estóica da percepção (segundo a qual só temos diretamente
acesso às phantasiae, modificações de nossa alma, entre as quais deveríamos assentir ape-
nas às que fossem “apreensivas”, isto é, verdadeiras por representar adequadamente a rea-
lidade exterior). Não há, ao que parece, nenhum texto do período que permita estabelecer
essa aproximação de modo mais rigoroso. Porém, numa passagem tardia, acrescida ao
capítulo I, 12, aparentemente proveniente de Aulo Gélio, Montaigne usa o termo “fanta-
sie” para traduzir precisamente a noção estóica de phantasía, significando igualmente uma
impressão sensível e uma paixão que se apresentaria diante da alma do sábio impassível (v.
I, 12, 46C). Considerações de teor análogo se encontram em Sêneca (v. Epist., I, xi), mas
esse autor não usa a expressão phantasía. Aparentemente, Montaigne só estudou as demais
fontes antigas que discutem essa teoria estóica (como os Academica) posteriormente. Para
uma apresentação sucinta dessa doutrina estóica, ver BRÉHIER, 1978, vol. III.
39. Ver I, 14, 55-56A.
425
40. Ver I, 14, 54-55A: “Aqui o porco de Pirro nos acompanha. Ele bem pode não ter
medo da morte, mas se lhe batem, ele guincha e se atormenta…” (ibid.). O que faz com
que nessa ocasião o porco se alie a Montaigne? Provavelmente, não é o fato de que ele
se contraporia à tese de que o medo da morte é produzido por nossa imaginação (e que
ele entende ser consoante com o que dizem os estóicos), mas antes o fato de que ele
ofereceria um contra-exemplo a uma hipótese mais geral sobre o enfrentamento das
perturbações: o porco, noutras palavras, parece então servir como porta-voz das dúvidas
do autor acerca do sentido ou da validade das teses em pauta, que não chegam, porém,
a constituir uma reflexão cética organizada como as que se elaboram posteriormente,
tal como as examinamos. A fonte dessa passagem é, provavelmente, Diógenes Laércio
(Vidas dos filósofos ilustres, XI, lxviii), muito embora, segundo Villey, a anedota seja
recorrente nas compilações contemporâneas (v. Les Essais, p. 1228).
41. Ver I, 21, 98A, 103-104A.
42. Ver I, 21, 99A, cf. I, 27, 178A.
426
43. Por exemplo, ver I, 50, 302: “[C] As coisas, elas mesmas à parte, têm talvez seu
peso, medida e condição, mas interiormente, em nós, [a alma] lhes talha como bem
entende…”; ver também II, 20, 673A.
427
428
429
rico, os dogmatismos são por vezes descritos como uma ficção produ-
zida pelos filósofos, que meramente imaginam, ainda que não o sai-
bam, conhecer uma verdade nas opiniões que apresentam como cer-
tas. Assim Sexto comenta, por exemplo, a teoria pitagórica dos núme-
ros: “Tais são as ficções que eles imaginam…” (III, 156)49. Igualmente,
no Quod Nihil Scitur (1581), de Francisco Sanches, possivelmente lido
por Montaigne antes da publicação da segunda edição dos Ensaios, as
filosofias dogmáticas são expressamente qualificadas como ficções50.
O tema, de todo modo, recebe um tratamento particularmente
enfático nos Ensaios, possivelmente resultante, em parte, da leitura das
obras morais de Plutarco (uma das quais se intitula “Que os estóicos
dizem coisas mais estranhas do que os poetas”)51, ou ainda das obras de
Agrippa (seja o De Occulta Philosophia, no qual encontramos um elo-
gio das forças da imaginação, seja principalmente a autocrítica cética
que esse autor posteriormente faz de suas reflexões anteriores, intitula-
da De Vanitate Scientiarum)52. Essa ênfase não distorce, contudo, o
49. Ao longo dos livros II e III das Hipotiposes, Sexto argumenta para mostrar a
“inapreensibilidade” das concepções particulares dos filósofos dogmáticos. Em HP III,
114, por exemplo, ele conclui sua investigação sobre as noções de geração e corrupção
afirmando que a física dos dogmáticos é “irreal e inconcebível” (“tó anúparkton… kaì
anepinóeton”). Noutra passagem, a propósito da teoria platônica da alma, ele afirma ser
um contra-senso admitir que “a construção imaginária [aneidelopoiésin] da alma pro-
posta por Platão seja capaz de receber o Bem…” (HP III, 189).
50. Por exemplo, empregando um argumento aristotélico contra a tese platônica
segundo a qual haveria uma identificação entre conhecer e lembrar, Sanches afirma:
“Com minhas desculpas a esse pensador normalmente tão brilhante, esta é uma ficção
desprovida de fundamento [leue admodum figmentum], que não se sustenta nem pela
experiência nem por argumento racional — como mil outros sonhos que ele sonhou
acerca da alma, como irei demonstrar no meu ‘Tratado sobre a Alma’…” (QNS 17,
193). Ver, igualmente, QNS 13-14, 189; 22, 199.
51. Ver PLUTARCO, op. cit., 560-561. Trata-se, nesse opúsculo, de ironizar a moral
estóica em diversos de seus aspectos — a liberdade do sábio, a noção de virtude, a
apatia, a inconstância —, afirmando que tais idéias são similares às descrições mitoló-
gicas dos heróis homéricos (tidas por ele como mais verossímeis que as invenções dos
estóicos). Noutro opúsculo que, do mesmo modo, Montaigne certamente leu, intitula-
do “As contradições dos filósofos estóicos”, tais contradições doutrinais são examinadas
por meio de argumentos que o próprio autor atribui aos acadêmicos (v. 561 D-E).
52. Ver nota 30 deste capítulo. No ensaio I, 21, encontramos um dos primeiros
exemplos claros do procedimento montaigniano de “torcer as razões” para lhes conferir
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59. “Esta fantasia é mais seguramente concebida pela interrogação: Que sei eu?
como eu a uso como divisa numa balança” (527A; itálico nosso).
434
Aqui ele adapta uma passagem das Hipotiposes (HP II, 72 ss.), si-
tuada no exame dos diversos critérios dogmáticos de verdade, em que
Sexto alveja, mais precisamente, a teoria estóica da representação apre-
ensiva (phantasía kataleptiké). Nessa argumentação, o ataque ao estoi-
cismo tem um papel de destaque, seja pelo fato de o próprio exame se
orientar por uma divisão estóica das partes da filosofia (lógica, física e
ética), seja pela visível intenção de voltar contra os estóicos seus pró-
prios pressupostos (evidenciando que a tese de que só temos acesso à
nossa phantasía, modificação de nossa própria alma, nos retira os meios
de reconhecer qual delas seria kataleptiké, isto é, apreensiva da realida-
de externa). Uma rápida comparação com o texto latino de Hervet
mostra aqui, novamente, que, ao adaptá-lo, Montaigne cuida de pre-
servar a terminologia cética, empregando “passions” para traduzir “pas-
siones”, “subject estranger” para “subjectus externus”, “comprendre” para
“comprehendere” — e, para “phantasia”, o termo “fantasie” (ao qual
associa, como sinônimo, “apparence”)60. Não deixemos, ademais, de
notar que, na primeira ocorrência do termo na passagem acima, “fan-
tasia” parece designar, além de nossas simples representações, uma ação
de “nossa” faculdade apreensiva humana, tal como a empregamos diante
dos objetos sensíveis que percebemos como objetos externos. Essa mes-
ma acepção se confirma em outros textos citados por Montaigne, como
este de Plutarco, por meio do qual ele busca, na “Apologia”, precisar os
contornos conceituais da epokhé: “Das três ações da alma, a imagina-
tiva [l’imaginative], a apetitiva e a do assentimento [consentante], eles
[os céticos] acolhem as duas primeiras; a última, eles a suspendem e a
mantêm ambígua, sem inclinação nem aprovação de uma parte ou de
outra, por mais ligeira que seja…” (503). O emprego de “imagination”
não é tampouco aqui uma inovação de Montaigne: trata-se da mesma
expressão que Amyot emprega para traduzir aquilo que no original de
Plutarco é phantasía61. O mesmo Plutarco, por meio dos termos que
435
62. Explicando a diferença entre as três ações da alma segundo os acadêmicos, Plu-
tarco escreve: “quanto à imaginativa [imaginative] ou apreensão, não se poderia supri-
mi-la quanto bem se quisesse, pois é forçoso que quando nos acercamos das coisas, seja-
se informado e moldado [informe & moulé], por assim dizer, por elas, e receba-se a
impressão delas…” (ibid.).
63. Cf. I, 26, 146; passagem citada no início deste capítulo.
436
o que creio segundo Deus, assim como as crianças fazem suas lições
[essais]: capazes de ser instruídas, não instrutoras; de matéria leiga,
não clerical, mas sempre mui-religiosa… (ibid., 323).
Igualmente significativo, porém, é o fato de que tais “fantasias”
céticas permaneçam igualmente sendo, como o eram na fase estóica,
produtos de sua imaginação — os “devaneios” (resveries) de um ho-
mem que apenas saboreou a crosta das sciences (v. I, 26, 146A), ou, nos
termos em que bem posteriormente ele ainda se referirá ao seu ócio
filosófico: “Por vezes eu sonho [je reve], por vezes eu registro e dito,
caminhando, estes devaneios [songes] que aqui estão…” (III, 3, 828B).
Trata-se de uma inconsistência? Pensamos que, ao contrário, pres-
tar atenção à ambivalência desse termo não apenas confirma que
Montaigne reconheça uma espécie de afinidade entre a filosofia céti-
ca e a dogmática (quanto à natureza dos objetos a que se assente), mas
permite, sobretudo, precisar o sentido da diferença que ele entende
haver entre essas formas de filosofar (relacionada, como vimos, a uma
tomada de consciência diversa dessa situação, bem como às atitudes
filosóficas com ela coerentes). Trate-se de um cético ou de um dogmá-
tico, a fantasia é aquilo que designa, seja objeto externo ou interno,
aquilo que humanamente nos surge como objeto do assentimento.
Em ambos os casos, na medida em que tal assentimento aponta uma
“impressão de verdade”, estamos ainda diante de um objeto determi-
nado por nossas faculdades subjetivas — pelo modo como o juízo põe
diante de si uma idéia de verdade, ou bem por nossa própria imagina-
ção de possuir algo de verdadeiro, que se imiscui de algum modo na-
quilo que é objeto de nosso assentimento, se não na própria idéia de
verdade pela qual permanentemente nossas faculdades cognitivas na-
turalmente se guiam. O emprego desse único termo em todas as situa-
ções descritas parece sublinhar, uma vez mais, que o cético assente de
modo relativo àquilo que permanece lhe aparecendo como verdadei-
ro, ainda que restritamente ao “uso” das coisas: trata-se de algo que
não é verdadeiro em si, mas que aparece como verdadeiro e poderia,
em princípio, revelar-se falso e fantasioso a um olhar mais penetrante,
capaz de discernir, no ato de assentimento, a intervenção ilusionista
da fantasia.
437
438
***
Já tivemos outras oportunidades de nos referir à crítica da “vaidade
do homem” — primeiro movimento argumentativo da “Apologia”, no
qual, valendo-se da estratégia dialética de aceitar os pressupostos do
adversário para refutá-lo, Montaigne combate teses de proveniência
estóica (presentes, como já dissemos, nas defesas humanistas da digni-
tas hominis e na Teologia de Sebond) sobre a posição privilegiada do
homem em relação às demais criaturas, graças à posse da razão64. Aqui
não faltam exemplos do emprego de um vocabulário associado à ima-
ginação: tal crença, diz Montaigne, é um “delírio” (frenaisie, 448),
64. Ver itens 2.1 — “Um fideísmo paradoxal” — e 6.2.4 — “O movimento natural
das opiniões”.
439
65. Ver 459A. Para uma análise mais detalhada dessa argumentação, ver EVA, 1994
e 2004, capítulo 1.
66. Ver 455-460A.
440
67. Ver 456A ss. Os exemplos são extraídos de autores vários, como Plínio, Lactân-
cio, Heródoto, mas, sobretudo, de Plutarco, especialmente dos opúsculos “Quais ani-
mais são os mais inteligentes” e “Que os animais usam da razão”. Cf. VILLEY, Les Essais,
p. 1279-1282; Les Sources, II, 30.
68. Cf. 463A ss., HP I, 62 ss.
441
442
443
lendário gregoriano — cujas correções efetuadas foram, diz ele, tão im-
perceptíveis no transcurso de nossa vida quanto eram os erros do calen-
dário anterior — para apontar a incerteza das coisas e o caráter “gros-
seiro, obscuro e obtuso” de nossa percepção71. Igualmente é “livre e
vaga” nossa razão: uma vez que abandona o plano dos “fatos”, “[B]
[ela] é capaz de produzir uma centena de mundos diferentes e ainda
de descobrir os seus princípios e sua estrutura…” (III, 11, 1027). São,
por certo, elaborações fantasiosas, que encontram uma ocasião propí-
cia para proliferar ao deixarmos de considerar nossa ignorância (e per-
demos de vista que se trata de mera especulação):
[B] Engendram-se muitos abusos no mundo, [C] ou, para dizê-lo
mais enfaticamente, todos os abusos do mundo se engendram [B] de
que nos ensinam a temer a confissão de nossa própria ignorância [C]
e que somos obrigados a aceitar tudo aquilo que não podemos recu-
sar… (III, 11, 1030).
Essa afirmação dá vez a desenvolvimentos claramente inspirados
pelo pirronismo: uma condenação aos que tratam o verossimilhante
como verdadeiro, bem como um elogio aos modos de falar “não-reso-
lutivos” e à ignorância “forte e generosa” que nada deve em honra e
coragem ao “saber” (science), e para cuja compreensão, segundo Mon-
taigne, não é preciso menos science do que para a compreensão da
própria science (v. ibid.). Igualmente anuncia-se aí a motivação central
do ensaio: condenar os abusos das condenações das feiticeiras pelos
tribunais da Inquisição. Montaigne, em linhas gerais, denuncia o modo
como tais condenações são resultantes de processos fantasiosos, que se
iniciam na construção das provas, embora terminem em fogueiras reais.
Assim comenta ele um primeiro exemplo de condenação de feiticeira,
originado numa acusação feita numa brincadeira infantil:
[B] Podem-se ver [as coisas] claramente neste caso, que é escancara-
do. Mas em diversas coisas de qualidade semelhante, que ultrapas-
sam nosso conhecimento, sou da opinião de que devemos suspender
nosso juízo, tanto para recusar quanto para aceitar… (III, 13, 1030).
444
72. Sobre a atitude de Montaigne contra os tribunais, ver VILLEY, 1933, t. II, p. 357
ss.; FRIEDRICH, 1968, p. 148-150.
73. Ver TOURNON, 1986, p. 75-76.
445
74. Ver também III, 11, 1034B, em que Montaigne explicitamente identifica essas
discussões pelo modo como exibem “a flexibilidade com que nossa invenção forja ra-
zões para toda sorte de sonhos” e nossa imaginação facilmente aceita “impressões falsas
a partir de verossimilhanças bem frívolas”.
446
75. TITO LÍVIO, Historia, xxviii, xxiv: “… pela tendência inata que leva o homem a
dar vazão aos rumores…”.
76. Ver ibid.
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mente, porém as glosam. Para fazer valer sua interpretação e persuadir, não podem
evitar alterar um pouco a história: eles nunca vos representam as coisas puras, inclinam-
nas e mascaram-nas com a face que nelas viram. Para dar crédito a seu julgamento e
atrair-vos a ele, apresentam de bom grado a matéria daquele lado, alongam-na e ampli-
ficam-na. Ou bem é preciso um homem muito fiel, ou bem tão simples que não tenha
com o que construir e dar verossimilhança a invenções falsas, com nada comprometi-
do…” (I, 31, 205). Essa passagem poderia, à primeira vista, sugerir que as “pessoas
simples” seriam mais capazes de dizer a verdade do que as “pessoas finas”. Diríamos que
o critério é outro: trata-se de evitar os testemunhos das pessoas mais capazes porque, a
despeito dos méritos que possam conter, a própria capacidade destas, porquanto envol-
ve as mesmas tendências ficcionais, compromete sua veracidade. Assim, os testemunhos
das pessoas simples permitem mais facilmente fazer a triagem daquilo que é evidente-
mente forjado. Eis por que, adiante, Montaigne será forçado a relativizar o próprio
critério por ele adotado: “[A] Falei com um deles mui longamente, mas tinha um intér-
prete que me seguia tão mal e que, por sua estupidez, estava tão impedido de com-
preender minhas idéias [recevoir mes imaginations] que não pude obter nada muito
satisfatório…” (ibid., 214).
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oposição a isso, no entanto, a apreensão dos objetos externos, adquirida por meio dos
sentidos, é superada em certeza pela espécie de apreensão que temos dos objetos que se
originam ou existem no interior de nós. Pois eu estou mais seguro de que eu possuo
tanto a inclinação quanto a vontade, e de que estou em determinado momento contem-
plando esta idéia, e em outro momento evitando e repelindo aquela idéia, do que estou
de poder ver um templo, ou Sócrates…” (QNS, 58, pp. 243-244). Assim, Sanches pa-
receria estar mais disposto que Montaigne a admitir aquilo a que Descartes recorrerá
contra a dúvida cética e se converterá em uma premissa básica, de modo geral, das
teorias do conhecimento clássicas.
94. Ver ainda III, 9, 1000-1001 (passagem citada no final do capítulo anterior).
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tem a galope sobre o epiciclo de Mercúrio, [C] que vêem tão longe
nos céus, [A] elas me arrancam os dentes. Pois no estudo que eu faço,
cujo objeto é o homem, encontrando uma tão extrema variedade de
juízos, um tão profundo labirinto de dificuldades umas sobre as ou-
tras, tanta diversidade e incerteza na escola mesma da sabedoria,
podereis pensar: posto que [os sábios] não puderam nem mesmo se
decidir no que tange ao conhecimento deles mesmos e de sua con-
dição, que está continuamente presente a seus olhos e que está neles
mesmos, posto que não sabem como se move aquilo mesmo que os
faz mover, nem como nos pintar e decifrar as molas que eles mesmos
manejam, como poderia eu crer no que dizem da causa do fluxo e do
refluxo do Nilo?… (II, 17, 634-635).
Se nalguma medida se faz possível um “conhecimento” do homem,
não cabe esperar mais do que a obtenção de uma imagem “mais veros-
similhante” do que as quimeras que “nem em sonho” poderiam satis-
fazer um olhar mais atento. Porém, o primeiro passo a ser dado nessa
direção, como mostra essa passagem, consiste em reservar, no centro
dessa imagem, um lugar principal para o reconhecimento de nossa
ignorância sobre o que somos — onde se projetam os mesmos limites
naturais de nossas faculdades cognitivas já considerados.
Situamo-nos, assim, num registro bem diverso daquele das filoso-
fias dogmáticas, que, a despeito de se enredarem num “profundo labi-
rinto de dificuldades”, reeditam implicitamente uma mesma crença
na dignitas hominis, ao pretender que a razão humana seja capaz,
nalguma medida, de superar as vicissitudes de nossa condição. Contu-
do, apesar de algumas passagens poderem sugerir o oposto, Montaigne
não pretende sustentar a concepção dogmática oposta — pela qual o
homem se encontraria numa situação essencialmente inferior à de outras
criaturas. Trata-se sobretudo de alertar para o modo como somos con-
duzidos a fantasiar nossos poderes e a perder de vista aquilo que efeti-
vamente nossa experiência nos pode oferecer: “[B] Não busquemos
ilusões externas e desconhecidas, nós que somos perpetuamente agita-
dos por ilusões domésticas e nossas” (III, 11, 1032). A crítica cética da
fantasia não almeja, por sua vez, produzir uma compreensão completa
ou absoluta de nossa condição, nem propiciar uma superação de nossa
460
95. Ver, em especial, o parágrafo décimo da Segunda Meditação: “Mas eu não posso
me impedir de crer que as coisas corporais, cujas imagens se formam pelo meu pensa-
mento, e que caem sob os nossos sentidos, não sejam mais distintamente conhecidas
que não sei qual parte de mim mesmo que não se oferece de modo algum à imagina-
ção… Mas vejo bem o que é: apraz a meu espírito extraviar-se; ele não se pode conter
ainda nas medidas justas da verdade…” (AT VII, 29, ed. Beyssade, 82-83).
96. V. AT VII, 23-30, ed. Beyssade, 70-83.
461
tendo em vista que, seja qual for a imagem obtida, tratar-se-á sempre,
nalgum grau, de uma fantasia. Trata-se de adotar uma postura filosó-
fica coerente com o reconhecimento dos elementos imaginativos que
inexoravelmente cimentam a nossa natureza. Eis como Montaigne
alude, no ensaio “Dos coxos”, ao seu auto-retrato:
[B] Até este momento, todos esses milagres e eventos estranhos se es-
condem diante de mim. Eu não vi monstro ou milagre mais expresso
que eu mesmo. Familiarizamo-nos com toda a estranheza pelo uso e
o tempo, mas mais eu me persigo e me conheço, mais minha deformi-
dade me espanta, menos eu me entendo em mim… (III, 11, 1029).
O apelo reiterado de sua argumentação a substituir as simplifica-
ções dogmáticas pelo esforço de considerar mais atentamente nossa
experiência também aqui se aplica. Contra a tendência a nos conside-
rarmos um composto de duas partes separadas, corpo e alma, encontra-
remos, nos Ensaios, freqüentes considerações destinadas a evidenciar
como nossa condição é “espantosamente corporal” (mais do que, su-
postamente, tendemos a perceber), mas também à remissão daquilo
que é corporal a um aspecto “espiritual” a ele relacionado, que tende-
mos a desconsiderar97. Tendemos, também, a desconsiderar a interfe-
rência de elementos que escapam à nossa consciência na apreensão
das coisas, outorgando, em vez disso, uma espécie de auto-suficiência
ilusória a nossas faculdades cognitivas. Este tema, já examinado no
capítulo anterior da perspectiva da ação do juízo, ressurge em diversas
ocasiões — como nos diversos exemplos alinhados em “Da vaidade”,
relativos ao poder que a presença dos objetos sensíveis pode ter sobre
nossa vontade98, ou ao poder com que as paixões, uma vez instaladas,
97. Ver, por exemplo, III, 13, 1114B: “Que o espírito vivifique o peso do corpo e o
corpo detenha a leveza do espírito e a fixe…”. Cf., igualmente, ibid., 1106B, 1110C; II,
17, 639-642A. São freqüentes, em especial, passagens que evocam a corporalidade da
nossa condição, contra aqueles que nos pretendem tomar como seres essencialmente
espirituais (cf., p. ex., ibid., 1115BC), ou então que buscam pôr em paralelo a condição
do corpo e da alma (p. ex., III, 4, 823B, 839B; III, 11).
98. “Eu elevo minha coragem ao encontro das adversidades; os olhos, eu não pos-
so…” (III, 9, 954); ver também III, 8, 930B. Parece ecoar nessa temática a argumenta-
ção cética da “Apologia” acerca de como os sentidos contradizem a razão e sobre ela se
impõem; cf. 594A.
462
99. Ver III, 9, 950B. A mesma idéia é o tema central do capítulo quarto do livro III,
no qual Montaigne propõe seu método da “diversão” (diversion), isto é, de expedientes
para desviar, através de uma “fácil e insensível inclinação”, a “paixão do luto”, uma vez
instalada. Isso porque pretender enfrentá-la diretamente, pela razão, parece-lhe algo
fadado ao insucesso: “Procedem mal os que se opõem a essa paixão, pois a oposição
aguilhoa-os e engaja-os mais fundo na tristeza: exaspera-se o mal pela vaidade da discus-
são…” (III, 4, 830). Mais uma vez, esses desenvolvimentos parecem remontar ao modo
como na “Apologia” Montaigne observa o poder com que as paixões podem dominar
nosso juízo (v., p. ex., 568-569). Ver ainda III, 10, 1017B.
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101. Ver HP I, 101 ss. Discutimos esse tropo argumentativo no item 6.2.3 — “Uma
doença natural do juízo”.
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102. Ver, mais amplamente, II, 6, especialmente 377-379. Montaigne aponta aqui a
existência de uma potencial atividade falseadora no mero gesto pelo qual se descreve —
seja ela deliberada (em conformidade com a possibilidade que sugerimos no capítulo
IV) ou não. Isso se acomoda igualmente com o que dissemos sobre como seu ceticismo
problematiza o conhecimento no nível da própria descrição dos fatos (como visto no
item anterior). É curioso notar que, embora o termo “parer” seja freqüentemente tra-
duzido nessa passagem como “enfeitar”, em vista do contexto, ele igualmente pode
significar, no francês do período, “preparar” ou mesmo “despelar” (para essa acepção,
cf. GODEFROY, 1982, vol. V, p. 760). Essa possibilidade de tradução poderia ser mais
facilmente desconsiderada se não tivéssemos em conta essa relação metafórica que,
como dissemos, o ensaio parece estabelecer entre a possibilidade de ter uma experiên-
cia direta da morte ou uma apreensão plena do eu, ou esta outra passagem que se segue,
algumas linhas adiante: “Eu [aqui] me instalo inteiro: É um skeletos em que, de uma
olhar, as veias, os músculos e os tendões aparecem…” (379C). A despeito de enfatizar
o sentido em que o retrato se pretende integral, não anunciaria essa metáfora, ambigua-
mente, que a empresa de se descrever está sempre aquém da integridade da experiência
vivida? Ademais, o auto-retrato é noutra passagem representado por outra metáfora que
467
Tal experiência, contudo, por mais que ofereça a seu autor uma
perspectiva diversa acerca de si mesmo, jamais poderá se traduzir num
“ensinamento” de algo; ela guardará sempre o estatuto de uma simples
narração, assumidamente provisória e subjetiva, que reflete o reconhe-
cimento de seu autor acerca de sua “ignorância” — tal como faz o
filósofo pirrônico que, desconhecedor da verdade, se limita a descrever
aquilo que pessoalmente lhe aparece, tal como faz um cronista: “[A]
Eu proponho fantasias disformes e irresolutas, como fazem aqueles que
publicam questões duvidosas, para debater nas escolas: não para esta-
belecer a verdade, mas para procurá-la…” (I, 56, 317)103.
No contexto da evolução do pensamento de Montaigne, podemos
constatar que o novo sentido e a autonomia que ganha esse projeto de
auto-retratar-se é, por certo, uma conseqüência do engajamento filo-
sófico cético ante o projeto inicial de um auto-exame em busca do
controle da imaginação. Mas essas motivações filosóficas originárias
ajudam a compreender, em contrapartida, as inflexões particulares que
ganhará a reflexão cética nos Ensaios. Em nosso capítulo IV, observa-
mos como o auto-retrato pode possuir uma dimensão paradoxal retó-
rica (associada a uma estratégia de ocultamento e de mediação entre
a interioridade e a exterioridade); e, no capítulo seguinte, constatamos
que a zétesis cética ganha, para Montaigne, a dimensão positiva de
uma instância de formação do juízo e, no mesmo passo, da manifesta-
ção da própria subjetividade. Vemos agora que, mais do que isso, essa
zétesis, na medida em que assume como objeto explícito e autônomo
um objetivo de autoconhecimento, conduz a um permanente esforço
de desmascarar as ficções imaginativas que o “eu” produz acerca de si
mesmo (e, como veremos adiante, de uma aceitação relativa de nossa
dimensão imaginativa). Esse é um aspecto da filosofia de Montaigne
reflete esse mesmo sentido: “[B] … ninguém nunca penetrou tão fundo na sua matéria
[no tema de sua investigação], nem destrinchou [eplucha] mais minuciosamente seus
membros e prolongamentos [membres et suites]…” (III, 2, 805).
103. Igualmente eloqüente é a passagem de III, 2, 806, sobre a fidelidade com que
seu livro pode representá-lo: [B] … eu falo investigando e ignorante. E me conforman-
do por resolução, puramente e simplesmente, às crenças comuns e legítimas. Eu não
ensino nada; eu narro…” (III, 2, 806).
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104. Tratamos desse problema de modo mais amplo em EVA, 2005; essas considera-
ções retomam, em linhas gerais, as que ali propomos.
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107. Não pensamos aqui apenas no modo como o cogito cartesiano é extraído de
uma argumentação na qual Descartes, em primeira pessoa, faz o trajeto das razões de
duvidar, mas também no modo como Locke retoma usualmente essa fórmula em suas
argumentações. Ver, por exemplo, Essay concerning Human Understanding, introd., §
8: “Eu presumo que me será concedido que haja tais idéias na mente dos homens: cada
um é consciente delas nele mesmo…”; ou então, quando argumenta para provar que
todas as nossas idéias provêm da sensação ou da reflexão: “… Deixe quem quer que seja
examinar seus próprios pensamentos e buscar a fundo em seu entendimento, e que ele
então me diga se todas as idéias originais que ele tem aí não são apenas os objetos dos
seus sentidos, ou as operações de sua mente consideradas como objetos de sua refle-
xão…” (ibid., Ch. I, book ii, § 5). Esse mesmo expediente retórico talvez possa igual-
mente oferecer um esclarecimento inesperado sobre a fonte desta passagem dos Pensa-
mentos de Pascal (sem deixar de projetar-lhe um sentido igualmente paradoxal): “Não
é em Montaigne, mas em mim que encontro tudo o que nele vejo…” (§ 689-64).
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111. Ver, nesse sentido, por exemplo, III, 2, 813-4, 816BC, cf. III, 3, 818B.
112. II, 18, 665C.
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117. Examinamos essa passagem conclusiva das Hipotiposes no capítulo II, item
2.4 — “Doença racional e terapia cética”.
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118. Em Epist., I, xxiii, 7, SÊNECA descreve a fonte do verdadeiro bem como prove-
niente da boa conduta, dos princípios honrados, das ações virtuosas, do desprezo pelo
acaso e “de um modo de viver calmo e constante, que se orienta regularmente numa
única direção…” (ibid., 7); ver também I, viii, ix, xxvii.
119. Ver igualmente I, 47, 286AC: “[C] Nós raciocinamos ao acaso [hazardeusement]
e inconsideradamente, diz Timeu em Platão, pelo que, como nós mesmos, nossa razão
tem grande participação do acaso”.
120. Ver capítulo I, item 1.3 — “Um novo cético?”.
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122. Ver também III, 9, 963: “[B] … meu intuito é o de representar, ao falar, um
total distanciamento [nonchalance], e movimentos fortuitos e impremeditados, como se
nascessem das ocasiões presentes…”.
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ocultar aquilo que efetivamente somos e pode vir à tona pela esponta-
neidade e pela casualidade; como se nossa razão operasse, como dize-
mos hoje, uma “racionalização” acerca de nós mesmos — de nossos
desejos e impressões — que tal retrato pretenderia superar, valendo-se
do registro da casualidade. Porém, por mais que essa interpretação possa
curiosamente aproximar Montaigne de uma concepção de sujeito
extemporânea, nossa intenção não é a de “psicanalisar” o texto dos
Ensaios: não queremos aqui interpretá-lo com instrumentos alheios,
mas apenas tentar esclarecer o sentido com que Montaigne teria pen-
sado sua terapia filosófica sob a égide da retomada das morais antigas
— em especial, adaptando sua reflexão cética a elementos que não são
diretamente tematizados pelo ceticismo antigo. Não deixa de ser curio-
so que a imagem produzida nos pareça estranhamente familiar, espe-
cialmente se contraposta à que se produz pelo cartesianismo — por
mais que essa filosofia, de um ponto de vista histórico, pareça ter con-
tribuído mais decisivamente para os rumos pelos quais a psicologia mo-
derna procurou se constituir como ciência —, assunto esse para uma
outra ocasião. Montaigne nos oferece, graças a seu ceticismo, um raro
exemplo de filósofo que reconhece um valor especial e definido, para
a obtenção de uma imagem mais fiel do homem, no registro daquilo
que pertence à imaginação e está além do conhecimento racional.
Ademais, importa destacar outra conseqüência dessa valorização
do acaso na zétesis auto-retratista, relativa à interpretação do ceticismo
por Montaigne. Vimos, nos dois capítulos precedentes, que essa inter-
pretação conduz a uma valorização particular da própria investigação,
seja em sua relação com a formação do juízo, seja ao caracterizar o
ceticismo como permanente questionamento das crenças que inevita-
velmente admitimos. Compreendidas como imagens provisórias das
opiniões que um sujeito pode ter de si mesmo, as fantasias registradas
são igualmente submetidas a uma investigação virtualmente intermi-
nável, sem que se possa apreender, por meio de nenhuma delas, o “ser”
que se quer retratar — a despeito de nossa tendência a crer que as
opiniões de que hoje dispomos são as corretas e as melhores: “[B] Quem
não vê que eu tomei um caminho pelo qual, sem cessar e sem dificul-
dade, eu irei o quanto houver de papel e tinta no mundo? Eu não posso
485
123. Um eco dessa idéia parece eventualmente ressoar nos Pensamentos de Pascal:
“Que não se diga que eu nada disse de novo, a disposição das matérias é nova. Quando
se joga a pela, é com uma mesma bola que um e outro jogam, mas um a coloca melhor
que outro” (696-22).
124. Ver também III, 5, 842; I, 4, 22A; II, 37, 764.
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mem não como “ser” (porque este nos está vedado pela natureza, como
o está a experiência direta da morte), mas como “passagem”; um ho-
mem essencialmente voltado para a vida, contra a mortificação produ-
zida pelas filosofias dogmáticas.
Mas essa investigação potencialmente indefinida aponta parado-
xalmente um fim que ela não pode alcançar. Por mais que Montaigne
possa colher o movimento surpreendente de suas fantasias e que o re-
gistro retomado possibilite a sua transformação, é um aspecto integran-
te da própria investigação, como dissemos, o abandono de uma fantasia
fundamental — a de pretender se evadir absolutamente do próprio
terreno da fantasia. Inesperadamente, por essa via, retornamos ao pon-
to de partida. Pois a confusão dos bibliotecários diante da estante de
filosofia e de literatura talvez não se revele agora tão fortuita como nos
aparecia num primeiro momento, ainda que por razões impremeditadas.
Estamos diante de um autor para quem o preço a pagar pela imagem
menos fantasiosa do homem que pode obter a filosofia — mesmo dian-
te daquilo que nossa experiência de nós mesmos mais imediatamente
nos apresenta — é o reconhecimento de que ela não pode se situar
plenamente fora do terreno da ficção.
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Ceticismo e subjetividade
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3. Ver, por exemplo, 503AC, 564A. Por “faculdades”, Montaigne parece indiferen-
temente se referir às ações da alma e ao seu produto, tal como ocorre no emprego dos
termos que, nos Ensaios, designam as faculdades particulares (como o julgamento, a
razão ou a imaginação).
4. Sobre o modo “difuso” (blurring) com que Montaigne trata das “categorias psico-
lógicas”, ver, por exemplo: LA CHARITÉ, 1968, p. 1; MCFARLANE, 1968, p. 122; e HO-
LYOAKE, 1969, p. 502.
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Contudo, tal descrição, como dissemos, não almeja ser uma apresen-
tação de sua essência: os nomes, para usar a expressão de Montaigne,
são apenas “partes estrangeiras” coladas às coisas, e fora delas (v. II, 16,
618A); nesse caso, especialmente, “jugement”, “raison” e “fantasie” são
exemplos de expressões pelas quais se trata de levar adiante essa “espi-
nhosa empresa, e mais do que possa parecer, de seguir um andamento
tão incerto [vagabonde] como este do nosso espírito, de penetrar as
profundezas opacas de suas dobras internas, de escolher e de fixar
[arrester] tantos ares e agitações diminutas…” (II, 6, 378C). Ou, ainda,
em “Da vaidade”: “… [as faculdades] possuem divisões e limites difí-
ceis de discernir, e delicados…” (III, 9, 992B)9.
Assim, a fluidez semântica do vocabulário epistemológico dos En-
saios pode ser vista como parte da imagem que Montaigne nos ofere-
ceria de uma “unidade” da alma compatível com nossa incapacidade
de circunscrever e precisar claramente suas partes. A vagueza desse
vocabulário não constitui, nessa medida, uma imperfeição conceitual,
mas, ao contrário, é parte da tentativa de descrever a fluidez e a com-
plexidade próprias do phainómenon que se oferece nos movimentos de
nossa alma e, mais ainda, de exibir, no detalhe da relação ambígua que
se dá entre essas partes, como fracassam nossas tentativas de fixar as
condições que propiciariam conhecimento objetivo das coisas. A natu-
reza difusa da caracterização montaigniana é, desse modo, a conse-
qüência natural do esforço de oferecer uma pintura mais verossímil de
nossa condição cognitiva efetiva, além da imagem fantasiosa que surge
de nossa tendência a tomar as etiquetas pelas próprias coisas.
Parece-nos também relevante assinalar que a dificuldade própria da
reflexão montaigniana parece resultar da atenção especial que dedica às
considerações céticas sobre a impossibilidade de conferirmos à expres-
são do que nos aparece um sentido absoluto: ela é apenas relativa ao
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10. Sobre o uso cético da linguagem, ver itens 5.1 — “O ceticismo como gênero
filosófico”, 7.3 — “Uma quimera que não cabe na imaginação”.
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Pyrrhoniorum cutissimorum Philosophorum disputandi de quidbuslibet
disciplinis & artibus rationem, Graecè numquam, Latinè nunc primum
editum, Gentiano Herveto Aurelio Interprete. Eiuvsdem Sexti
Pyrrhoniarum Hypotyposeom libri tres: Parisiis, Apud Martinum Iuuenem,
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